Boletim de março 2001

Transcrição

Boletim de março 2001
Ano XVIII – n.º 184 – Março de 2001
GUIA DA PASTORAL DA SAÚDE PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE
“A revelação do Evangelho da vida foi-nos confiada como um bem que há de ser comunicado a
todos: para que todos os homens estejam em comunhão conosco e com a Trindade (cf. 1Jo 13,3). Não
poderemos ter alegria plena se não comunicarmos este Evangelho aos outros” (Evangelium Vitae, n.
101).
Essas palavras de João Paulo II na carta Encíclica Evangelium Vitae nos apresentam de forma
muito positiva e sugestiva a missão fundamental da Pastoral da Saúde. Com efeito, a todos os cristãos
compete promover, cuidar, defender e celebrar a vida, tornando presente na história o dom libertador e
salvífico de Jesus, que veio nos trazer vida e vida em abundância (cf. Jo. 10,10).
Nesse espírito oferecemos às Conferências Episcopais da América latina e do Caribe algumas
orientações gerais para inculturar a Boa Nova no mundo da saúde.
Este guia é fruto do trabalho levado a cabo em nossos encontros regionais e latino-americanos
de Pastoral da Saúde que, a partir de 1989, foram convocados pelo Departamento de Pastoral –
DEPAS- CELAM. No II encontro Latino-Americano e do Caribe realizado em Quito, Equador em
1994, se conseguiu a colaboração de um primeiro documento de trabalho, que foi enriquecido com as
contribuições das Comissões Episcopais e dos grupos de agentes de Pastoral da Saúde de todo o
continente que estão comprometidos na evangelização do mundo da saúde. Essa primeira fase do
processo culminou no III Encontro Latino-Americano e do Caribe, realizado em Santo Domingo, em
1998, onde também se abordou a temática da formação dos agentes de Pastoral da Saúde.
Junto com este guia orientador, o CELAM oferece o Manual de Teologia da Pastoral da Saúde e
outros subsídios de formação que, sem dúvida alguma, serão de ajuda e apoio para a preparação dos
profissionais e dos agentes de pastoral que trabalham no campo da saúde na América Latina e no
Caribe.
Agradecemos o permanente e generoso esforço do Pe. Adriano Tarrarán (camiliano) e dos
demais membros da Equipe de Assessoria de Pastoral da Saúde do CELAM, bem como de todas as
pessoas que se empenharam para que este guia fosse uma realidade. É nosso desejo que estas
orientações sirvam para impulsionar e fortalecer a Pastoral da Saúde no continente. Que toda a
comunidade cristã, com renovado espírito missionário, se sinta chamada a anunciar, celebrar e servir ao
Evangelho da vida e da esperança (cf. Evangelium Vitae, n. 80 a 91).
Capelães no Mundo da Saúde
Um dia Jesus decidiu visitar alguns hospitais de diversas nações. Em cada um deles, desde as
modernas catedrais da tecnologia médica até as mais modestas instituições sanitárias, observou
atentamente o estilo de assistência procurando ver até que ponto foi realizada a sua mensagem: “Ide,
proclamai a boa nova, curai os doentes...” Quis encontrar-se também com os capelães destes hospitais,
dirigindo-lhes uma pergunta semelhante à que lhe fora dirigida no princípio da sua vida pública: És tu o
capelão ou temos de esperar outro?
As respostas obtidas, coincidindo embora num ponto fundamental, isto é, na vontade de
comunicar o amor resgatante do Senhor a todos quantos vivem situações de enfermidade ou de crise,
diferem de modo considerável sob numerosos aspectos.
Em Québec, na Bela Província do Canadá, por exemplo, o capelão encontrado empenhou-se em
mostrar ao hóspede os três volumes duma investigação sobre os hospitais católicos do Canadá,
elaborado ainda em 1972 por técnicos da Universidade Laval (Rouleau, 1972), na qual a atividade
pastoral da saúde é sublinhada com pronunciado relevo.
Falou-lhe depois da Associação dos Capelães de Québec que diríamos ser bastante florescente.
Jesus perguntou-lhe: fazem parte mulheres? “Não”, insistiu o capelão, “há algumas irmãs empregadas
na pastoral da saúde, mas elas não têm ainda acesso à associação. Nas outras Províncias canadenses é
diversa a situação”.
Nos Estados Unidos, Jesus bateu no departamento da pastoral da saúde dum grande hospital.
Abriu-lhe uma irmã que, sorridente, perguntou: “Posso ajudá-lo?” “Desejava falar com o capelão”,
respondeu Jesus. “Sou eu” disse a irmã. Passado um instante de espera, Jesus continuou: “Como nos
arranjamos com o código de Direito Canônico?” A irmã hesitou, fugiu ao problema e preferiu explicar
ao hóspede a estrutura da Associação dos Capelães Católicos dos Estados Unidos onde, dos mais de
três mil inscritos 59 são religiosos (religiosas) e leigos. Por fim deu-lhe de presente o último
documento da Associação da Saúde, na qual a filosofia da assistência pastoral é exposta com esmero e
onde aparecem as linhas gerais dos padrões da formação dos capelães (fath, 1980). “Quanto ganha um
capelão?”, perguntou Jesus antes de partir: “De 25 a 30 mil dólares ao ano”, foi a resposta, “um mês de
férias e dois dias livres por semana...”
Chegando em Paris Jesus não encontrou o capelão no hospital visitado. No lugar dele encontrou
uma jovem senhora que fazia parte da capelania. Ainda desta vez queria ele fazer-lhe a pergunta sobre
o código de Direito Canônico, mas a sua interlocutora, como ousada francesa, adiantou-se explicandolhe os resultados da reflexão feita durante os últimos anos pela Igreja transalpina: a distribuição já não
se identifica apenas com os padres mas compreende também os religiosos e os leigos; não se limita aos
doentes e ao hospital. Além disso, os leigos não devem macaquear os sacerdotes, mas encontrar as
modalidades do ministério típicas da condição deles na Igreja. Deu-lhe os últimos números da
apreciada revista das capelanias dos hospitais (A.H.) e deteve-se em falar-lhe da situação da Bélgica,
onde as comunidades eclesiais, cheias de vida, promoveram uma maravilhosa rede de grupos de
visitantes pastorais dos doentes, elaborando apropriados programas de formação.
Na Itália, ficou Jesus surpreendido por não encontrar ainda uma associação de capelães, mas
pensando nas inúmeras crises de governo não apresentou perguntas a respeito, limitando-se a apreciar a
organização da pastoral da saúde: consulta nacional, regional, diocesana..., organização que encontrara
na Espanha em outros países. Antes de partir quis saber se o serviço de pastoral da saúde está melhor
organizado nos hospitais públicos ou nos particulares católicos. “Nos públicos”, respondeu o capelão.
Durante a parada no Brasil, Jesus atirou na escrivaninha do capelão dum grande hospital o
estatuto da Associação dos Capelães Católicos Americanos. O jovem capelão folheou-o e, ao certificarse não dever cada capelão ter à própria conta mais de 10 doentes, comentou: “É bem verdade que, ao
lado do capitalismo econômico, há também um capitalismo pastoral”. E falou da pastoral da saúde da
América do Sul, centrada na animação dos leigos, de tal modo que possa tornar a comunidade cristã
responsável pelos problemas da saúde dos próprios irmãos. “É o caminho que se deve percorrer em
todos os países, especialmente naqueles onde os padres e os religiosos escasseiam; nos nossos países da
América Latina, mas penso também nos da Ásia e da África”. Também citou ele os autores em favor da
própria tese...
Com todo material recolhido, pôde Jesus operar uma síntese, baseada evidentemente em
informações que ultrapassam os dados materiais.
Angelo Brusco é padre, Superior Geral da Ordem dos Ministros dos Enfermos.
Dicas de Saúde
Frutas e Verduras Podem Diminuir o Risco de Derrame
Conforme o trabalho de pesquisadores japoneses, publicado no Strake, Journal of the American
Heart Association (edição de outubro/2000), reduzir o risco de derrame pode ser tão simples como
tomar um copo de suco de laranja no café da manhã e acrescentar algumas fatias de tomate no
sanduíche.
Em um estudo de 20 anos que mediu os níveis de vitamina C no sangue de mais de 21 mil
moradores de áreas rurais do Japão, com 40 anos de idade ou mais, constatou-se que pessoas que
comiam mais frutas, legumes e verduras apresentavam níveis mais altos de vitamina C no sangue e
foram entre 28% e 41% menos propensas a ter um derrame do que aquelas com baixos níveis de
vitamina C.
A concentração mais alta de vitamina C no sangue está associada à redução do risco de enfarte
cerebral (isquemia cerebral) e derrame hemorrágico. Os pesquisadores explicam que a vitamina C,
abundante em frutas e vegetais, é um antioxidante, substância que neutraliza radicais livres,
compostos capazes de destruir o DNA das células causando envelhecimento e doenças crônicas.
Os antioxidantes podem impedir o depósito de gordura nas paredes das artérias, que provoca o
enfarte cerebral. Outros mecanismos podem estar em ação, pois pessoas com altos níveis de vitamina C
também tiveram um risco mais baixo de derrame hemorrágico, no qual há ruptura de vasos sangüíneos.
Assim, ingestão de grande quantidade de frutas, verduras e legumes pode funcionar como redutor da
pressão arterial ou como marcador para algo que reduza o risco de derrame.
Os especialistas alertam que ainda não estão certos sobre qual é o mecanismo correto de
redução desse risco. Frutas, legumes e verduras são ricos que vitaminas C, potássio, magnésio, cálcio,
fibras e caroteno e qualquer desses nutrientes pode proteger contra o derrame. Além disso, o consumo
desses produtos geralmente é mais alto entre pessoas que não fumam, não bebem demais e têm
atividades física. Esse comportamento saudável pode ser uma proteção contra o derrame.
Seja qual for o mecanismo, concentrações maiores de vitamina C no sangue diminuem a
incidência de derrame mesmo em pessoas com outros fatores de risco como pressão arterial alta,
consumo freqüente de álcool, fumo e vida sedentária. Os cientistas também destacaram que o estudo
observou a vitamina C dos alimentos, não suplementos alimentares.
A Dor dos Remédios
Por que tanto alvoroço em torno dos preços dos remédios no Brasil? Por um motivo simples e
claro: tais preços aumentaram, em média, nos últimos dez anos (1989-1999), cerca de 54% mais que a
inflação. São dados coletados pela Fipe, da Universidade de São Paulo. Não é preciso recorrer a um
filósofo do direito econômico para ter o direito de qualificar esse desempenho como abusivo.
Aliás, mesmo sem conhecer ou analisar os números da Fipe, a população conhece muito bem o
problema, pois afeta seu bolso e seu bem-estar: em pesquisa recente da CNT – Vox Populi, 96% dos
entrevistados consideram que o item do seu consumo cujos preços mais têm crescido é “remédio”. Há
consideração adicional e relevante a fazer, ainda, em relação à evolução dos preços versus o dispêndio
das pessoas com remédios.
Primeiro, a média da inflação esconde o drama – como aliás qualquer média - que envolve
alguns preços específicos: por exemplo, nos últimos dez anos os preços dos medicamentos para
doenças cardiovasulares subiram 105% reais; para doenças respiratórias o salto foi de 143% acima da
inflação.
Segundo, há truques mercadológicos que disfarçam a inflação verdadeira, por exemplo, quando
um laboratório acrescenta um “plus” a um colírio ou a um antiácido e, junto, faz espetaculares
reajustes de preços. Um caso exemplar é o do colírio Lacrima, cujo preço máximo para o consumidor é
de R$4,64. O mesmo produto, com acréscimo de um “plus” (Lacrima Plus) saltou para R$8,65
(máximo). Evidentemente, não seria o acréscimo de um pouco de lubrificante que justificaria quase
dobrar o preço do colírio.
De todo modo, mudou o produto (não essencialmente), e o índice de preços deixa de registrar
essa inflação específica. O pesquisador de preços pode até desconfiar da malandragem, mas não tem
como registrar o aumento – seria, formalmente, comparar dois produtos heterogêneos. Há ainda um
terceiro problema – e aqui não há truques – relacionado à introdução de medicamentos autenticamente
novos e que trazem melhores terapias para as pessoa. A troca de um artigo por um novo, melhor e
mais caro, também não é registrada nos índices.
Um bom exemplo refere-se ao tratamento das úlceras e gastrites, em que o Tagamet
(cimetidina), cujo custo diário de tratamento (400mg) é de R$ 1,25, foi sendo substituído pelo Zilium
(sanitidina), cujo custo correspondente ( 300mg) é de R$1,85, e este pelo Losec (omeprazol), cujo
custo diário (20mg) é de R$4,2. Fenômeno semelhante observa-se no caso dos antiinflamatórios
Voltaren (150mg) e Celebra (200M\mg), cujos custos eqüivalem a R$ 0,81 e R$ 2,6, respectivamente.
Não é possível, porém, comparar os preços de uns e de outros nem, portanto, registrar alguma
inflação quando os produtos mudam. Embora destinados ao mesmo tratamento, são medicamentos
diferentes. Porém, para o portador da doença, o tratamento novo, embora melhor, será mais caro, a
menos que ele prefera o antigo, situação difícil de aceitar ou se conformar. Por último, vale registrar
dois truques típicos de economistas para subestimarem níveis ou aumentos de preços. Um, a escolha de
períodos convenientes para exibirem variações moderadas de preços – daí a necessidade, sempre, de
que os leigos exijam séries mais abrangentes no tempo, ao lado das mais curtas.
Outro truque está na comparação de preços em dólares, para mostrar, eventualmente, que os
preço brasileiros são mais baixos do que em outros países. E daí? Isso não quer dizer nada, até porque a
desvalorização cambial distorce o significado desse tipo de comparação. Além disso, apesar de que
gostariam, os brasileiros não ganham em dólares. De mais a mais, o componente em dólares dos preços
dos produtos farmacêuticos domésticos é pequeno, pois há também matérias-primas nacionais, alto
valor adicional local, gastos com distribuição, propaganda e comercialização e ampla margem de
lucro nesses setores: o custo das importações no preço de farmácia dos medicamentos raramente
ultrapassa os 10%.
Por último, os preços de mercado de alguns países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá ou
França não são representativos dos que são pagos de fato. Na Inglaterra, por exemplo, o mercado livre
deve representar menos de 5% do volume de medicamentos. O resto é comprado (ou reembolsado)
pelo poder público, direta ou indiretamente, a preços menores, até porque existe controle
governamental sobre as margens de lucro do setor. Se estão muito altas, o governo induz as empresas a
reduzirem os preços, ameaçando retirar seus produtos da lista de compras. Aliás, é interessante notar
que nem o furor neoliberal nem pró-mercado de Margaret Thatcher mudou radicalmente esse modelo,
pois ela manteve a forte intervenção do governo no setor.
Já nos Estados Unidos o mercado livre é limitado, nesse caso pelo poder contrabalançador do
próprio setor privado, além do governo (Medicaid). Os planos de saúde, que congregam grande parte
da população, trazem reembolso de compra de medicamentos, negociando com os laboratórios, pois
dispõem da arma da exclusão ou troca de medicamentos nas suas listas de referências.
EVOLUÇÃO E COMPLICAÇÕES
Vejamos com mais detalhe o que tem acontecido no mercado brasileiro de medicamentos.
1. O grande salto aconteceu quando foram eliminados os controles de preços - por certo
precários e imperfeitos –, após o Plano Collor 2. Depois do Plano Real os preços dos
remédios não retrocederam, em temos reais, no ritmos da sobre-valorização cambial,
crescendo mais do que câmbio nominal, mas isso não impediu que subissem rapidamente
diante da desvalorização de 1999.
2. Nota-se, também, que a ascensão dos preços dos medicamentos não se deveu a um eventual
aumento de custos unitários de produção. Tanto é assim que, ao longo da última década,
subiu bastante a rentabilidade média do setor: foi mais de quatro vezes superior à mediana
do conjunto da indústria (31 setores).
3. Na verdade, o mercado de medicamentos não é complicado apenas no Brasil. Há
características perversas que envolvem seu funcionamento em qualquer lugar do mundo. A
diferença entre nós e os outros é que até há pouco tempo não tivemos ações que
amenizassem a vulnerabilidade dos consumidores.
MERCADO “IMPERFEITO”
Essencialmente, trata-se de um mercado em que a concorrência entre produtores opera muito
pouco. Por quê? Em primeiro lugar, os consumidores não detêm a informação, o conhecimento sobre
os produtos – condição fundamental para que opere bem a concorrência.
Comprar um medicamento é diferente de comprar por exemplo, uma lata de ervilhas. Neste
caso, o consumidor sabe bem o que esperar do produto, compara preço, pode mudar de marca ou
escolher um sucedâneo. Mesmo quando compra um automóvel, o que é mais complexo, ele já se
informou antes e é capaz de avaliá-lo razoavelmente ao longo do tempo. Já que no caso dos
medicamentos a avaliação é mais difícil, a possibilidade de trocar de marca é mínima e a substituição
por sucedâneos quase impossível.
Por isso tudo e em razão da maior essencialidade do produto, a demanda por medicamentos
tende a ser inelástica ao preço: quando este sobe as pessoas não deixam de comprá-los nem reduzem o
volume de sua demanda proporcionalmente. Por último, há também barreiras tecnológicas, de escala e
mercadológicas importantes que dificultam muito a entrada de novos produtores concorrentes no setor,
que de outro modo aumentariam a produção e orçariam os preços para baixo.
Assim, na área de medicamentos, os preços são “feitos” pelos produtores. Mas isso não
acontece porque alguma empresa ou algum pequeno grupo domine uma fatia alta do conjunto de
mercado. O domínio é exercido por classes terapêuticas. Ou seja, uma ou poucas empresas sempre
dominam os mercados de determinadas doenças e terapias. Por exemplo, o laboratório Roche domina o
mercado de vitaminas, o Alcon, o de colírios, o Schering, o de anticoncepcionais. Nos países mais
desenvolvidos há defesas maiores contra essas imperfeições do mercado de medicamentos, a começar
pelo fato de que, neles, o poder de compra é mais organizado, como vimos no caso da Inglaterra e dos
Estados Unidos e como prevalece em tantos outros países, como Canadá, França e Alemanha.
CONSUMIDOR INDEFESO
Já no Brasil, o poder de compra de medicamentos (que é o nono maior do mundo) é
fragilmente organizado, sendo mais difícil, assim, coibir os abusos de preços da indústria farmacêutica
em relação aos consumidores. Essa é a questão mais essencial: entre nós, os poderes
contrabalançadores são frágeis. Mas não são os laboratórios que irão reforçá-los. Eles cumprem seu
papel natural de produzir e ganhar dinheiro. Cabe ao poder público e às forças da sociedade
organizarem a defesa dos consumidores de modo racional e firme.
Além disso, há fenômenos peculiares ao nosso mercado, a começar pela carga tributária. É
preciso reconhecer que, no Brasil, ela é elevadíssima. Apenas o ICMS, que é o IVA (imposto ao valor
adicionado) caboclo, eleva-se a 22%, sendo de uma vez e meia a duas vezes mais alto do que nos
outros países! Isso sem contar o PIS, o Cofins e a CPMF, cuja incidência acumulada nos
medicamentos não é inferior a 10%. Falta, ainda, o imposto sobre importação. A carga tributária final
sobre a cerveja, por exemplo, deve ser mais ou menos o dobro. Mesmo assim, tem cabimento uma
diferença tão pequena entre um medicamento para o coração e uma bebida alcoólica?
Outros fatores conspiram a favor dos preços altos, a começar pela notável fragmentação do
comércio: no Brasil há 50 mil farmácias, quando 25 mil poderiam dar conta do mercado, e a
distribuição atacadista é fortemente oligopolizada. Isso permite que as margens de lucro nessa
atividade sejam 60% mais altas no Brasil do que na média (aritmética simples) de 12 outros países. No
caso das farmácias, as tais margens são mais altas do que em todos esses países, com exceção da
Suíça.
Por fim, temos as especulares despesas com publicidade e marketing, cujas margens chegam a
representar até 40% do preço de fábrica de muitos produtos, um custo exorbitante que reflete as
mesmas distorções do mercado: elevadíssimo autoconsumo de medicamentos, relações de clientelismo
entre laboratórios e médicos, comissões extras para as farmácias praticarem a “empurroterapia” etc.
O COMEÇO DO COMEÇO
Há uma área em que o poder de compra de medicamentos no Brasil está sendo rápido e
eficazmente organizado: o das compras governamentais. Elas servem como exemplo do que pode ser
obtido quando o poder em mãos dos compradores é exercido de forma eficaz. Aliás, somente a
organização desse poder permitirá estabelecer formas competentes de controle. Congelar preços, pura e
simplesmente, seria ineficaz.
Em medicamentos, o Ministério da Saúde gastará diretamente cerca de R$ 1,4 bilhões neste
ano, principalmente na área de medicamentos excepcionais, estratégicos e para transplantes. Depois de
fecharmos a Central de Medicamentos (Ceme), foco de concorrências e compras duvidosas, para dizer
o menos, disciplinamos e adotamos políticas duras de redução de preço. A política é: não satanizar os
laboratórios, mas infernizar sua vida em matéria de preço. Assim, nos dois últimos anos reduzimos os
preços das compras pelo ministério em cerca de 40% reais, isto é, descontada a inflação. Na área de
vacinas, passamos a comprar no exterior via Opas ( Organização Panamericana da Saúde), reduzindo,
por exemplo, o custo da vacina contra a hepatite de US$ 3,5 para US$ 0,70 a dose.
Depois de introduzirmos, no ano passado, a vacina contra a gripe, importada, induzimos a
formação de uma associação entre um laboratório estrangeiro e o Instituto Butantã, que em cinco anos
produzirá essa vacina integralmente no Brasil. Por isso, e já nestes anos, conseguimos reduzir o seu
preço de US$ 4,6 para US$ 1,8 a dose! Foram criados até sites na Internet exibindo os preços de
compras de insumos e medicamentos dos hospitais federais, para que a imprensa nos ajudasse a
controlar abusos e eventuais irregularidades nas entidades públicas.
Ainda na esfera das compras públicas criamos o programa da farmácia Básica e mais do que
triplicamos os recursos federais destinados à distribuição gratuita de medicamentos para a população
mais carente: cerca de R$ 160 milhões por ano. Lembre-se que 40% das famílias brasileiras dispõem de
uma renda mensal inferior ou igual a três salários mínimos, não tendo nenhuma condição de comprar a
maior parte dos medicamentos de que necessitam.
Aqui, não há mercado perfeito ou imperfeito que resolva. Os recursos federais vão para os
estados e municípios, que devem entrar também com um montante equivalente de dinheiro e fazer suas
compras. O grande estrangulamento da distribuição gratuita é a falta de oferta de produtos abaixo do
preço. Por isso vamos investir US$ 15 milhões em cinco laboratórios públicos estaduais, aumentando
em 50% o volume de produção, para que abasteçam todo o Brasil. No caso de Pernambuco, vamos
criar um pólo de produção para todo o Nordeste e o Norte do Brasil. A diferença de preços entre os
produtos dos laboratórios públicos e dos privados chega a ultrapassar 1.500, como no caso de antihipertensivos (Captopril). Isso porque sobre seus preços não incidem despesas de publicidade e
marketing, imposto, lucros de produtores, distribuidores, farmácias etc.
Com vista à faixa de consumo das farmácias e dos hospitais, impulsionamos a implantação dos
medicamentos genéricos. Quando assumi o ministério constatei que o projeto de lei que regulamentava
o assunto, de autoria do incansável deputado Eduardo Jorge, não caminhava. Apoiados pelo presidente
Fernando Henrique mobilizamos as forças do governo e conseguimos aprovar um substitutivo. A lei
foi promulgada há mais ou menos um ano e trabalhamos durante seis meses (prazo legal) na montagem
do novo sistema, abrindo, em seguida, os pedidos de registro, desde setembro. Ao contrário do folclore
nascente, não há atraso nenhum na implantação dos genéricos. O processo é que tem de ser rigoroso
para que os médicos acreditem nos genéricos e os adotem em suas receitas. Do contrário, o programa
fracassará. Além disso, é preciso evitar o retorno das falsificações, duramente reprimidas pelo
Ministério da Saúde: pode ser mais fácil falsificar um produto genérico novo do que uma marca de
fantasia conhecida.
É pouco compreendido o fato de que a decisão de produzir genéricos depende dos produtores
privados. Para facilitar, criamos laboratórios para análise de qualidade e equivalência em unidades e
instituições públicas, além de permitirmos a realização de testes em laboratórios qualificados no
exterior. Muitas empresas não só resistem a produzi-los, face às menores margens de lucro (os preços
serão entre 30% e 40% mais baratos), como fizeram até campanha contra. Mas quem produzir
primeiro vai ganhar mais dinheiro. A concorrência acabará prevalecendo e pouco a pouco o volume de
oferta de genéricos aumentará. Em menos de cinco anos os genéricos poderão absorver entre 30% e
40% do mercado.
Outro passo na direção da organização do mercado de medicamentos foi dado com a criação da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária, seguindo o modelo da FDA norte-americana, com
funcionários melhor remunerados, diretoria com mandato (aprovada pelo Senado) e mais imune às
pressões políticas. Foram eliminadas de vez as tentações de “criar dificuldades para vender
facilidades”, reforçadas as ações contra propaganda enganosa, de controle da qualidade dos produtos
que afetam a saúde e de monitoramento de preços.
Tal agência, que tem receita própria, reforçará também a capacidade científica nacional na área
de medicamentos, pois contrata pesquisa e serviços de institutos e universidades. Os exemplos acima
mostram o tremendo potencial da organização eficiente do poder de compra, mas seu impacto em
benefício dos consumidores (e das finanças públicas) é ainda pequeno. O próximo passo, tão mais
essencial como complexo, será a organização do mercado para pacientes atendidos pelo SUS e que são
clientes das farmácias com uma lista mínima de medicamentos básicos, a preços menores.
Dentro disso, há um primeiro movimento: começar por um conjunto de medicamentos básicos
para tratar as doenças crônicas, num acordo que, se a indústria farmacêutica vier a aceitar, terá tido o
mérito de reconhecer que fará bem a todos a introdução de um pouco de ética em um dos mercados
mais essenciais para a vida das pessoas.
José Serra é Ministro da Saúde.
Ética em 10 Palavras
O Jubileu 2000 constitui uma oportunidade para cada pessoa se voltar para Jesus e aprofundar o
encontro com Ele e a vida de encanto que caracteriza o Cristianismo. É uma oportunidade para cada um
pensar nas próprias atitudes, confrontando-as com as de Jesus.
A primeira é a Pessoa
A pessoa está no centro: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc
2,27). Todas as normas existem em função da pessoa. Com a primazia da pessoa está o primado da
vida, de cada vida, a começar pela mais débil. A pessoa é vista sempre e simultaneamente como fim,
nunca apenas como meio. A dignidade da pessoa humana é um valor absoluto; a vida, quer esteja no
princípio, no meio ou no seu termo, é um valor fundamental.
A segunda é o Amor
O amor como novo mandamento, não como algo que se impõe, mas como fascínio que se
descobre e cultiva. Ao amor que Deus nos tem, a única resposta válida é a do amor. Resposta de amor é
a atitude do bom samaritano que se faz próximo (Lc 10,29-37). Jesus é o perfeito samaritano da
humanidade. Para cada um ele diz: “Vai e faz também tu o mesmo” (Lc 10, 37). Devemos amar como
Jesus. Já não se trata de amar o próximo como a nós mesmos (cf. Lv 19,18), mas de amar como Jesus
ama, com o seu amor (cf. Jo 13,34).
A terceira é a Novidade
Com Jesus nasce uma nova civilização. Algo de radicalmente novo acontece. Deus faz-se
homem e diviniza a humanidade: os caminhos de Deus cruzam-se com os caminhos dos homens.
Surge uma nova aliança. Até os dias de hoje, foram já 2000 anos que mudaram o mundo. A civilização
de Jesus fundamenta-se no amor novo: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros”
(Jo 13,34). Esta civilização é entendida, não como obrigação, como uma espécie de legalismo cristão
para substituir o judaico, mas fundamentalmente como vida nova.
A quarta é o Serviço
Jesus aproxima-se de nós, de toalha à cinta, para nos lavar os pés. É o grande servidor: “Dei-vos
o exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15). Nesta atitude a comunidade
cristã descobre a sua identidade: uma Igreja de toalha à cinta, atenta não só a todos os tipos de
sofrimentos, mas também a todas as alegrias e esperanças da humanidade.
A quinta é a Misericórdia
Com Jesus a misericórdia de Deus “estende-se de geração em geração” (Lc 1,50). Deus é
misericórdia (cf. Lc 15). Ultrapassando a lógica da justiça humana, Deus convida-nos a entrar no
segredo da Sua misericórdia: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36); é a
dinâmica do perdão: é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado (cf. Lc 6, 37-38).
A sexta é o “Pai-Nosso”
O Pai-nosso constitui a chave hermenêutica da ética de Jesus. Esta ética, patente no sermão da
montanha (Mt 5-7), está, quanto ao essencial , centrada no duplo mandamento do amor a Deus e ao
próximo, mais precisamente na qualidade da relação a estabelecer e a desenvolver com Deus Pai e com
os nossos irmãos e irmãs. A vida cristã consiste em estabelecer com Deus Pai uma relação de filho ou
filha e com toda a pessoa humana uma relação de irmão ou irmã.
A sétima é a Felicidade
As bem-aventuranças, miolo do Evangelho, são desafio à felicidade (Lc 6, 20-26 e Mt 5, 3-13).
São felizes todos aqueles que cruzam com Deus em seus caminhos. Jesus foi um homem feliz porque
viveu em permanente comunhão com o Pai. Foi um homem pobre, para quem toda a riqueza vinha do
Pai. O pobre? Humilde (não o miserável é categoria teológica fundamental para afirmar a felicidade.
Pobre é aquele, que de coração, reconhece que só Deus é rico. O Pai é o garante da nossa felicidade.
A oitava é a Santidade
Pelo batismo o cristão entra na dinâmica da vida da santidade de Deus (cf. Rm 6). O cristão é
sano porque vive uma relação existencial e transformante com Jesus, o santo por excelência. Paulo
apresenta a ética cristã como antropologia dinâmica; pensa no dever, a partir do ser: “Já que aceitastes
Jesus Cristo como Senhor, vivei como cristão” (Cl 2, 6). O cristão vive de acordo com a sua identidade:
“Exorto-vos a que procedais de um modo digno do chamamento que recebestes” (Ef 4,1).
A nona é a Liberdade
Jesus é um homem livre, o Evangelho é um anúncio de liberdade: “O Espírito do Senhor está
sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação
aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um
ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4, 18-19). A doação total de Jesus na cruz é expressão máxima
desta liberdade. Os nosso encontros devem ser libertadores.
A décima é a Cruz
A cruz é a história da fidelidade de Jesus a si, ao Pai e à humanidade. Sintetiza todas as outras
“palavras”. Ao olhar para cruz, o cristão olha para a história do máximo mistério de Deus sempre fiel.
Cada qual tem a sua cruz. A nossa cruz sintetiza todas as nossas contrariedades e infidelidades.
Assumi-la é sempre fiel (cf. Mc 8,34). Deus ama-nos, não porque somos bons, mas porque Ele é bom.
Somos convidados a amar ilimitadamente. Na cruz, aquele Corpo entregue e aquele Sangue derramado,
pela vitória da Ressurreição, interpelam-nos a dar sentido positivo à nossa vida como à nossa morte e
ressurreição.
Fr. Hermínio Araújo, Artigo extraído do boletim Carta ao Amigo Jul/Ago 2000