Baixar este arquivo PDF

Transcrição

Baixar este arquivo PDF
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp. 60-85
No seio das doutas virgens. Análise pastoral de
um texto preambular de Montaigne
Rafael Marcelo Viegas
I
O tema da “excelência da vida no campo”, equivalente ao bordão “melhor ficar
longe da cidade”, é um antiquíssimo e resiliente topos cultural, que pode ser facilmente
ligado à literatura de fundo bucólico-pastoral – aquela que, grosso modo, deita raízes
nos Idílios de Teócrito (e seus imitadores ou continuadores, como Bion de Phlossa e
Moschos de Siracusa) mas, sobretudo, nas releituras campestres dos idílios promovidas
por Virgílio (a partir das suas Bucólicas), tradição latina continuada pelas obras de
Calpúrnio Sículo e de Nemesiano. Por um lado, o cenário idealizado de pastores
instalados em colinas férteis e verdejantes, sob o sol de um Mediterrâneo benfazejo
(na Sicília ou nas montanhas da Arcádia grega), dados ao cultivo do amor e das artes
poético-musicais. De outro lado, a noção de que a cidade (ou, mais propriamente, a
civilização imperial, cortesã etc.) deturpa a essência do homem – essência, que seria,
de maneira ampla e geral, a de acompanhar ciosamente os ciclos mais elementares da
natureza. O mito da Época de Ouro não está longe1.
Como vimos mais acima, uma longa tradição liga o material clássico grecoromano, sobretudo a écloga latina virgiliana, até Sannazaro e a literatura pastoral
posterior2. O arquétipo dessa crescente produção renascentista continua sendo, em
linhas gerais, o texto das Bucólicas, mas estas não constituem o único texto de cunho
campestre de Virgílio. As Geórgicas, num contexto estético diferente, também são
uma obra agrária – na verdade, do ponto de vista do conteúdo, bem mais agrária que
a anterior, uma vez que em diversos momentos lida, por assim dizer, com aspectos
propriamente “técnicos” da agricultura3. Neste ínterim, o mérito de pô-la na moda
vem das obras latinas do poeta, dramaturgo e erudito italiano Angelo Poliziano (14541494)4. Embora já houvesse escrito um poema (o Manto) no molde das Bucólicas, foi
a partir do seu Rusticus (quer dizer, “O Homem do Campo”) – que tinha entre outros
objetivos servir de propedêutica literária à sua interpretação pública dos Trabalhos e
os Dias, de Hesíodo, e das Geórgicas – que esta obra de Virgílio passou a ser conhecida
1 Harry Levin, The Myth of the Golden Age in the Renaissance, OUP, 1968; Georges Minois, A Idade de Ouro (orig. francês 2009),
Unesp, 2011.
2 Para o desenvolvimento da pastoral pós-virgiliana, Roland Mayer, “Latin Pastoral after Virgil” in Marco Fantuzzi & Theodore
Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, pp. 451-466.
3 É onde Virgílio banca o fazendeiro, na expressão de Philip Thibodeau, Playing the Farmer. Representations of Rural Life in
Vergil’s Georgics, University of California Press, 2011.
4 L. P. Wilkinson, The Georgics of Virgil, A Critical Survey (1978), University of Oklahoma Press, 1997², p. 292.
60
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
de um público mais amplo, ainda que, claro, restrito à capacidade de compreender o
latim clássico5. Seja como for, os dois textos de Poliziano relembraram aos humanistas
europeus uma linhagem poética celebrando a vida no campo, valorizando tanto
modelos agrários (a dinâmica do campo tomada em seu aspecto mais concreto e
ordinário) quanto bucólicos.
Felix ille animi divisque simillimus ipsis,
quem non mendaci resplendens gloria fuco
sollicitat, non fastosi mala gaudia luxus,
20 sed tacitos sinit ire dies et paupere cultu
exigit innocuae tranquilla silentia vitae,
urbe procul, voti exiguus ; sortemque benignus
ipse suam fovet ac modico contentus acervo
non spes corde avidas, non curam pascit inanem ;
securus quo sceptra cadant, cui dira minentur
astra et sanguinei iubar existiale cometae6.
O cenário aqui pode ser entendido na lógica pastoral mais clássica: a
superioridade ética do campo, aliada à vida simples e frugal, longe das intempéries e do
tumulto do mundo, é quase um resumo do que, de fato, o leitor encontra no texto das
Bucólicas de Virgílio – bem como nas Bucólicas de Calpúrnio Sículo. Mas a expressão
literal do trecho citado não está nas Bucólicas e sim, como era o objetivo do Rusticus
no final das contas, nas Geórgicas:
felix qui potuit rerum cognoscere causas
atque metus omnis et inexorabile fatum
subiecit pedibus strepitumque Acherontis auari:
fortunatus et ille deos qui nouit agrestis
Panaque Siluanumque senem Nymphasque sorores.
illum non populi fasces, non purpura regum
flexit et infidos agitans discordia fratres,
aut coniurato descendens Dacus ab Histro,
5 É preciso entender que uma parte dos humanistas cumpria um papel detetivesco e a comunidade contemporânea de
latinistas e grecistas ansiava por novidades de ordem editorial advindas da pesquisa nos arquivos das bibliotecas e nos
repositórios de documentos Europa adentro – obsessão de colecionador que nem todo mundo estava, evidentemente, apto a
fazer – ou simplesmente edições críticas (comparando-se manuscritos de origem diferente) de textos já conhecidos.
6 “Feliz em espírito e comparável aos próprios deuses é o homem que não está preso às tentações da glória, com seus falsos
esplendores, ou aos prazeres malévolos da luxúria arrogante, mas aceita os dias de maneira discreta e, em seu modesto modo
de vida, passa seu tempo na tranquilidade silente de uma vida sem mácula, longe da cidade, com poucos desejos. Ele aceita
seu quinhão resignadamente e é feliz com suas modestas posses. Não alimenta ávidas esperanças ou preocupações vazias no
coração. É indiferente à queda dos reinos, aos que são afetados pelos mórbidos signos no céu e ao brilho fatal dos cometas
cor-de-sangue” (Angelo Poliziano, Rusticus, vv. 17-26).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
61
non res Romanae perituraque regna; neque ille
aut doluit miserans inopem aut inuidit habenti.
quos rami fructus, quos ipsa uolentia rura
sponte tulere sua, carpsit, nec ferrea iura
insanumque forum aut populi tabularia uidit7.
A longa fórmula, retomada por Poliziano, ainda que dita em termos geórgicos, traduz
à perfeição o estado de espírito bucólico que será retomado pelos poetas árcades
posteriores. O discurso pastoral, por definição ideal e intangível (utópico-edênico),
e o discurso agrário (supostamente didático e ao alcance da enxada ou do arado),
funcionam, efetivamente, numa rede mútua de valorizações8.
Entretanto, um detalhe importante sobressai nestas adaptações. Muito embora a
dinâmica diferencial entre real (agrário) e ficcional (bucólico) possa ter sido importante
para Virgílio, ela não existe para Poliziano: temos aí um homem urbano, um cortesão do
Renascimento italiano, mais especificamente do humanismo florentino e da corte dos
Médicis, e Geórgicas e Bucólicas, para ele, são, ambos, modelos puramente literários.
O mesmo para Petrarca e Boccaccio. E, claro, literário será também o uso desses temas
em Sannazaro9.
7 “Feliz o que pode conhecer a causa das coisas e que pôs sob os pés todos os medos, e o inexorável destino, e o ruído do
avaro Aqueronte. Mas afortunado também aquele que conhece os deuses campestres, e Pã, e o velho Silvano, e as ninfas
irmãs. Este, nem os feixes [fasces, machado amarrado com feixes de madeira, símbolo do poder dos cônsules romanos]
outorgados pelo povo, nem o púrpura dos reis conseguiram dobrar, nem a discórdia que impele os irmãos sem fé [provável
referência aos irmãos que disputavam o trono parta], nem o Dácio que desce do conjurado Ister [i.e., o Danúbio; os dácios, que
habitavam a região entre o Danúbio e o Mar do Norte – a Transilvânia e a Moldávia atuais –, eram uma ameaça bárbara temida
pelos romanos], nem os negócios de Roma, nem os reinos destinados ao declínio. Ele não vê em torno de si nem indigentes
a rogar por misericórdia, nem ricos a invejar. Os frutos que dão os ramos, aqueles que as benevolentes campanhas fornecem
de graça, ele os colhe sem conhecer nem as leis de ferro, nem o fórum insensato, nem as tábuas do povo [os atos civis que
ficavam guardados no templo de Saturno]” (Virgílio, Geórgicas, II, vv. 490-502).
8 Esta simbiose entre dois modelos, o bucólico e o agrário, a princípio díspares, é um signo importante do valor desse
material para Poliziano. Para Virgílio, o modelo agrário das Geórgicas estaria, em teoria, mais próximo de sua história pessoal
enquanto filho de proprietários rurais (daí sua qualidade “didática”, obviamente discutível embora reconhecida como evidente
por muitos de seus contemporâneos) que o modelo pastoral idealizado das Bucólicas. Mas Virgílio discorre acerca do agrário
não num tratado técnico sobre a agricultura – como o De Agri Cultura, de Catão (160 a.C.) ou De re rustica, de Marcus Varrão
(116 a.C.-27 a.C.) – e sim em seu longo poema, literário para todos os efeitos, de 2188 hexâmetros dactílicos. Logo, os dois
modelos literários, da qual as Bucólicas (bucólico) e Geórgicas (agrário) são os representantes fundacionais, podem até ser
separados por comodidade técnica e estilística, mas são em muitos aspectos interdependentes do ponto de vista ético e
da concepção de mundo. Embora não se vejam signos propriamente árcades nas Géorgicas (nestas não há flautas, nem
disputas de versos, nem espaço para amores perdidos), é evidente que aí também se trata, tal como nas Bucólicas, de um
modelo idealizado. Logo, os dois modelos se entrecruzam num ziguezague histórico e teórico-literário: e um não pode ser
considerado sem o outro. O debate atual separou, naturalmente, o modelo bucólico-pastoral da mimese do mundo campestre,
considerando a cena pastoral (idealizada), como pano de fundo e pretexto a instâncias indiretas de crítica política e social, em
vez de representação concreta do mundo. Mas isto pode ser colocado em discussão: ver, por exemplo, Ken Hiltner, What Else
is Pastoral? Renaissance Literature and the Environment, que defende uma ideia de discurso pastoral como discurso agrário –
quer dizer, ligado também à descrição concreta da natureza.
9 Iacopo Sannazaro (Francesco Erspamer, ed.), Arcadia – L’Arcadie, Les Belles Lettres, 2004.
62
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Vimos, no capítulo anterior, um resumo dessa evolução da pastoral moderna.
Vimos também que a França, claro, não ficou imune a este sucesso. A primeira geração
francesa influenciada por Sannazaro (a partir de meados do século XVI) produziu
um sem-número de textos bucólicos, entre poesia, drama e prosa10. Some-se aí o
impacto da disseminação das novelas imperiais, recém-descobertas pelos humanistas
e traduzidas para o francês por Amyot na década de 155011, e teremos um resumo da
produção literária propriamente moderna (no sentido de vanguarda) desta época: e
foi assim que os pastores Dáfnis, Alexis, Córidon, por oposição aos cavaleiros Artur,
Galvain, Perceval e Amadis, tomam de assalto o cenário subtextual da segunda metade
do século XVI12.
Para alguns autores franceses da geração posterior, no entanto, essa tradição
bucólico-agrária ganhará, aos poucos, contornos diferentes. Uma série de importantes
tratados técnicos sobre a agricultura já havia sido publicada por volta de meados do
século XVI13. Porém, quando escritores como Pierre Charron14 escrevem, na virada do
século seguinte, sobre o campo e seu significado, numa perspectiva mais filosófica
que técnica, vemos que modelo pastoral e modelo agrário (ou doravante modelo
“agrônomo”, se considerarmos que a Agronomia moderna tenha nascido por esta
época15) já se confundem com uma dinâmica de discussão de viés sócio-político (a
10 “Indeed, the 1570s and early 1580s saw a flurry of rustic celebration, especially in the circle surrounding Pierre de Ronsard
and the already elderly Jean Dorat, and De Thou was clearly caught up in this movement” (Ingrid de Smet, “Pastoral Politics in
the Poetry of Jacques-Auguste de Thou, 1553–1617” in Canadian Review of Comparative Literature, March-June 2006, p. 116).
Para o regime pastoral especificamente francês dessa época ver Alice Hulubei, L’eglogue en France au XVIe siècle, Paris, Droz,
1938.
11 Peças relativamente inéditas (oriundas do final da Antiguidade, não entraram nos cânones dos principais gramáticos e
retores romanos, logo, não foram estudadas na Idade Média), exerceram uma influência enorme na Europa literária a partir da
década de 1540, quando começaram a ser traduzidas para as línguas modernas: sobretudo Clitofonte e Leucipéia, de Aquiles
Tatius (~II d.C.); a Etiópica, ou Theagenes e Charicléia, de Heliodoro de Emesa (~III d.C.); e Dafnis e Cloé, de Longo (~II d.C. – III
d.C.). Delas retiraram-se enredos, temas e personagens de inúmeras peças século XVII adentro – das tragicomédias do Barroco
às tragédias de Racine, passando por Shakespeare – e, muito embora não tenham influenciado a Arcadia de Sannazzaro, pois
esta é anterior à sua redescoberta, foram fundamentais na produção subtextual da geração seguinte de escritores europeus
(Belleforest, d’Urfé, Cervantes e daí por diante), permitindo uma mudança profunda no paradigma narrativo da época. Para
sua ligação com a literatura pastoral, ver M. Di Marco, “The Pastoral Novel and the Bucolic Tradition” in Fantuzzi & Papanghelis
(eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, pp. 479-498.
12 Cf. Michel Simonin “La disgrace d’Amadis” in L’encre & la lumière (1976-2000), Paris, Droz, 2004, pp. 189-234.
13 Charles Estienne, Praedium rusticum (1554), traduzido para o francês por Jean Liébault em 1564 como L’Agriculture et la
maison rustique – inúmeras reimpressões; as Vinti giornate dell’ agricoltura et de piaceri délia Villa etc. (1550), de Agostino
Gallo, pai da agronomia italiana, sucesso editorial com mais de vinte edições e reimpressões, foi traduzido por François de
Belleforest em 1570 como Secrets de la vraye agriculture, et honestes plaisirs qu’on reçoit en la mesnagerie des champs. Deve-se
computar aí os tratados antigos, sobretudo os latinos, que circulavam, na primeira metade do século XVI, publicados quase
sempre em conjunto, como antologias: Os Trabalhos e dos Dias, de Hesíodo, os Econômicos de Xenofonte, as Geopônicas de
Cassiano Bassus, o De Agricultura de Catão o Antigo, o Res rustice de Varrão, o De re rustica de Columela, o De re rustica de
Palladius, e, claro, as Géorgicas de Virgílio e a História Natural de Plínio o Antigo, entre outros.
14 No De la Sagesse (1600), capítulo 58 do Livro I (Comparaison de la vie rustique et menée ès villes), ele nos dá seu veredicto:
“Les villes sont prisons mesmes aux esprits, comme les cages aux oyseaux et aux bestes”.
15 “II est communément admis, et à juste titre, qu’avec Le Théâtre d’Agriculture et mesnage des champs s’ouvre la voie de la
science agricole moderne. Dès sa préface, Olivier de Serres, en fondant l’agriculture nouvelle sur la triade « science, experience
et diligence », se distingue de son prédécesseur le plus connu, Charles Estienne, plus théoricien que praticien. Or, il faut
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
63
análise atual dos poemas campestres virgilianos ressaltam, aliás, o mesmo aspecto),
dando margem a uma reflexão moral, ascética (ainda que, obviamente, não monástica),
aliada ao tema do retiro do mundo – tema que ganhará vigor (literário e religioso)
na décadas seguintes16. Mesmo um agrônomo como Olivier de Serres ficará, como
veremos abaixo, tentado a refletir de modo filosófico a respeito do campo – embora, no
seu caso, protestante retirado em suas terras por conta das Guerras de Religião, não se
trate apenas de simbolismo literário quando diz ser no campo que se protege contra a
“fascheuse (...) foule du peuple”17. O desprezo da corte já era o topos de uma importante
obra espanhola de 1539, o Menosprecio de corte y Alabanza de Aldea, de Antonio de
Guevara, traduzido em francês por Allègre (Du mespris de la court & de la louange de la
vie rustique) em 154218. Mas é a geração que escreve entre 1570-1580 que vai aprofundar
esse menosprecio em território francês: e quando isso acontece, entramos já no reino
particular e, de certa forma, pós-pastoral das vies rustiques – que podemos definir
como uma moda cultural paradoxalmente cortesã19.
O De re rustica, de Varrão, já oferecia um ponto de vista mordaz dos valores
éticos da agricultura e da vida no campo em relação à cidade:
désormais compter avec l’expérience née de la pratique et de la confrontation des savoirs savants et paysans” (Danièle Duport,
“La ‘science’ d’Olivier de Serres et la connaissance du ‘naturel’” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme
et la Renaissance, n° 50, 2000, pp. 85-95).
16 Bernard Beugnot, Le Discours de la retrait au XVIIe siècle, PUF, 1996.
17 Le théâtre de l’agriculture et ménage des champs (1600), 4 Vols., Paris, Meurant, 1802, IV, p. 626. 19 edições e reimpressões
até 1675. Irresistível não enxergar nesta expressão um trocadilho com o fasces populi do livro II das Geórgicas de Virgílio (v. 495)
citado mais acima, apesar da etimologia aceita para o adjetivo médio-francês fascheuse (na grafia atual, fâcheux, -euse, quer
dizer, “irritante” ou “fastidioso”) faça-o derivar do latim fastidium e não de fasces, nominativo plural de fascis, -is (“feixe”): usado
no plural, fasces significa o machado envolto em feixes de madeira, símbolo dos cônsules romanos. Ver Martine Gorrichon
“Sources latines d’Olivier de Serres” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme et la Renaissance, n° 50,
2000, pp. 45-58. Para um estudo mais amplo, Jean Boulaine & Richard Moreau, Olivier de Serres et l’évolution de l’agriculture,
L’Harmattan, 2002.
18 Antonio de Guevara (éd. bilingue critique de Nathalie Peyrebonne), Du mespris de la court et de la louange de la vie rustique,
Classiques Garnier, 2012. Ver Pierre Civil, “Le thème de l’éloge de la vie rustique en Espagne au XVIème siècle” in Gabriel-André
Perouse & Hugues Neveux (eds.), Essais sur la Campagne à la Renaissance, Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 103114.
19 Considera-se aqui, claro, uma moda literária e cultural pois poucos autores rustiques tinham, de fato, a experiência real
da vida no campo – o que não quer dizer que a discussão a respeito dos valores atribuídos ao mundo rural por seus autores
seja diminuída. Entre os escritores e as obras desta geração contamos, dentre outros, Les plaisirs de la vie rustique (1574) de
Monsieur de Pibrac; Les Plaisirs de la vie rustique et solitaire (1583) de Claude e Pierre Binet; La columbière ou maison rustique
(1583) de Philibert Hegemon; Les Plaisirs du gentilhomme champestre (1583), de Nicolas Rapin; Le Plaisir des champs, divisé
en quatre parties selon les quatres saisons de l’année, où est traicté de la chasse et de tout autre exercice recréatif, honneste et
vertueux (1583) de Claude Gauchet; Plaisirs et félicités de la vie rustique (1584) de Germain Forget; Les propos rustiques de
Noël du Fail. Obras algumas vezes editadas em conjunto, no formato de antologias. Para o contexto, ver Jacqueline Bouchet,
“Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois” in Gabriel-André Perouse & Hugues Neveux (eds.), Essais
sur la Campagne à la Renaissance, Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 57-72; Pauline Smith, The Anti-Courtier Trend
in Sixteenth Century French Literature, Droz, 1966; Jeannice Brooks, Courtly Song in Late Sixteenth Century France, University
of Chicago Press, 2000, esp. Cap. VI, “Pastoral Utopias”; para o significado do que era ser um nobre rural por essa época, ver
Arlette Jouanna, La France du XVIe siècle, PUF, 2002³, cap. IV; e Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos Camponeses Franceses
(2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II.
64
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Viri magni nostri maiores non sine causa praeponebant rusticos Romanos
urbanis. Ut ruri enim qui in villa vivunt ignaviores, quam qui in agro
uersantur in aliquo opere faciendo, sic qui in oppido sederent, quam qui
rura colerent, desidiosiores putabant. Itaque annum ita diviserunt, ut nonis
modo diebus urbanas res usurparent, reliquis septem ut rura colerent. Quod
dum servaverunt institutum, utrumque sunt consecuti, ut et cultura agros
fecundissimos haberent et ipsi valetudine firmiores essent, ac ne Graecorum
urbana desiderarent gymnasia20.
Mas a fórmula literária que define o modelo rustique utilizado pelos franceses está em
Horácio, declarado admirador das Bucólicas21:
Beatus ille qui procul negotiis,
ut prisca gens mortalium,
paterna rura bubus exercet suis
solutus omni faenore
neque excitatur classico miles truci
neque horret iratum mare
forumque vitat et superba civium
potentiorum limina22.
20 “Não por acaso, grandes homens, nossos ancestrais, preferiam os romanos do campo aos da cidade. Com efeito, assim
como nas terras, os que vivem na casa de campo são mais fracos do que quem se ocupa da lavoura fazendo algum trabalho,
julgavam mais ociosos os que se estabeleciam em cidades do que quem cultivava a terra. Assim, dividiram o ano de modo que
apenas a cada oito dias eles se dessem aos assuntos urbanos, mas, nos outros sete, cultivassem os campos. Enquanto tiveram
esse costume, lograram duas coisas: possuir os mais fecundos campos, cultivando; e serem eles próprios de melhor saúde,
sem acharem falta dos ginásios urbanos à grega” (Varrão, Das coisas do campo, II, 1, [trad. Matheus Trevizam], Ed. Unicamp,
2012, pp. 126-127).
21 A influência rusticizante de Virgílio contaminou os escritores latinos seus contemporâneos e sucessores diretos: “Horace
was not alone in his admiration of Virgilian pastoral. The contemporary erotic elegist, Tibullus, ‘rusticated’ the essentially
urban code of elegy by dreaming of love in the country; his very first elegy strikes this unusual note. Like Horace, he too picks
up Virgil’s ideal of the Golden Age (1.3.35–48), as a contrast to the grim reality of warfare. Tibullus’ work in turn influenced
Propertius, who tries his hand at a recodification of elegy, by joining his mistress in a rustic retreat (2.19). The contrast between
town and country is particularly stressed, and Propertius expresses satisfaction that once in the country his mistress will be
out of the way of urban temptations (shows, and trysting places). Like Virgil’s Gallus, he fancies he’ll do some hunting (ipse ego
venabor, l. 17), not great big lions or wild boars of course (too dangerous), but hares and birds. One last poet’s engagement
with the pastoral mode deserves a word. Ovid incorporated many poetic modes in his kaleidoscopic Metamorphoses, and the
bucolic world is certainly not neglected, particularly in the tales of Pan and of Narcissus” (Roland Mayer, “Latin Pastoral after
Virgil” in Fantuzzi & Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, p. 453).
22 “Feliz aquele que, afastado dos negócios, / como a antiga raça dos mortais, / cultiva os campos paternos com seus bois,
/ liberto de toda usura; nem, como soldado, é despertado pela trombeta ameaçadora / nem teme o mar irado; / aquele que
evita o foro e as soberbas moradias / dos cidadãos mais poderosos” (Horácio, Epodo II, vv. 1-8 e ss; tradução de Arlete José
Mota in Calíope n° 20, 2010, pp. 101-105).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
65
E, efetivamente, o primeiro dos poetas rustiques, Monsieur de Pibrac, retoma de modo
categórico esses termos horacianos, mas que também são os termos georgianos de
Virgílio relidos pelo Rusticus de Poliziano:
O bien-heureux celuy, qui loing des Courtisans,
Et des Palais dorez pleins de soucis cuisans,
Sous quelque pauvre toict delivré de l’enuie,
Jouyst des doux plaisirs de la rustique vie :
La trompette au matin ne l’esveille en sursaut,
Pour hardy des premiers se trouver à l’assaut ;
Ou guindé sur le mast d’un vaisseau n’importune,
Par prieres & vœux le courroncé Neptune.
Il ne luy chaut d’avoir la faveur des grands Rois,
Ny les premiers honneurs aux joustes & tournois,
Les couronnes de prix richements estoffées,
Ny les chars entaillez de superbes trophées ;23
Por sua vez, Olivier de Serres afirma, invocando Virgílio e em torno de um verso de Les
plaisirs de la vie rustique de Pibrac:
Virgile tient qu’à l’homme des champs ne manque, pour sa félicité , que de
connoître son bonheur, disant :
­ h ! que par trop seroient heureux les laboureurs ,
O
S'ils savoient leur bonlieur, auxquels loin des horreurs,
Du discord martial, d'une volonté franche,
De vivre largement, la terre juste épanche24
(...) ­Ces contentemens ont induit plusieurs grands personnages à chanter
le plaisir des champs, s’égayant sur tant riche sujet, dont plusieurs livres
se trouvent écrits, remplis de telle belle nature, et beaucoup d’illustres
hommes à se retirer en la solitude de la campagne , pour, hors de bruit ,
jouir en repos des aises dont elle abonde. La sérénité du ciel, la salubrité
de l’air, le plaisant aspect de la contrée, montagnes, plaines, vallons ,
coteaux, bois , vignobles, prairies , jardins, terre à bled, rivières, fontaines,
ruisseaux, étangs, les beaux promenoirs et jardins, prairies, et d'un autre
côté, la contemplation des belles tapisseries des fleurs, les beaux ombrages
23 Guy Du Faur de Pibrac, Les plaisirs de la vie rustique composez par le S. de Pyb. à Paris, par Federic Morel, Imprimeur du
Roy, 1575 (BNF, Res Ye 4628), vv. 1-12. [Gallica]
24 Virgilio, Geórgicas, II, 458: O fortunatos nimium, sua si bona norint, / agricolas! quibus ipsa, procul discordibus armis, / fundit
humo facilem victum justissima tellus.
66
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
des arbres, la joyeuse musique des oiseaux, les divers chants et langages
du bétail, gros et menu, louant le créateur, en sont les principales causes;
y en ayant d'autres infinies, qui ne se peuvent réciter, pour la nourriture,
vèture, port et plaisir de l’homme, dont Dieu a rempli la terre.
­Là dessus, dit le sieur de Pibrac :
Bref, en l’homme des champs, on ne sauroit choisir
Un jour, heure ou moment, sans honnête plaisir25
Entre lesquelles plaisantes commodités, ceste – ci est remarquable, qu’es
champs, vous n’y voyés que de vos amis, vos ennemis ne vous allans
jamais visiter. Et si bien vous n’y estes pas beaucoup accompaigné de vos
semblables, vous y esprouvés véritable ce commun dire, qu’il vaut mieux
estre-seul, que mal accompaigné ; se pratiquant tous les jours ès villes,
combien fascheuse y est la foule du peuple, parmi lequel sont contraints
de vivre ceux qui y habitent, estans souvent forcés de faire bonne mine à
tels dont ils ne sont guières aimés : au lieu de la saincte liberté, en laquelle
vit nostre noble mesnager26.
Dessas passagens, interligadas como vasos comunicantes, decantamos uma substância
ascética evidente, que, a partir de uma arquitetura mental (e de uma fraseologia)
latina, desconfia (ao menos textualmente) dos elementos e dos quadros sociais que
habitam as grandes cortes do Renascimento europeu. Esta reatualização rustique do
topos bucólico-pastoral tem, contudo, certos pressupostos que devem ser levados em
consideração quando se fala em valorização da vida rural no final do século XVI – uma
vez que esta nova cena deve ser entendida não exatamente no contexto bucólicorenascentista mas já no contexto pré-moderno da civilité, a noção-chave que define o
comportamento cortesão por essa época27.
25 Ver Guy Du Faur Pibrac, Les quatrains de Pibrac; suivis de ses autres poésies, Paris, A. Lemerre, 1874 [Gallica, BnF YE- 30060],
p. 117.
26 Olivier de Serres, Le Théâtre de l’Agriculture et Ménage des Champs (1600), Vol. IV, Paris, Meurant, 1802, p. 626 (conclusion).
Encontrei a referência a Pibrac primeiramente em Maxime Gaume, Inspiration et les sources de l’Oeuvre d’Honoré d’Urfé, Université
de Saint-Etienne, 1977, p. 288.
27 Para a reflexão clássica sobre o valor da civilité, ver Norbert Elias, O Processo civilizador (1939), 2 Vols., Zahar, 2000. E
também Orest Ranum, “Courtesy, Absolutism, and the Rise of the French State, 1630-1660” in The Journal of Modern History,
Vol. 52 n° 3 (Sep., 1980), pp. 426-445; Michael Curtin, “A Question of Manners: Status and Gender in Etiquette and Courtesy”
in The Journal of Modern History, Vol. 57 n° 3 (Sep., 1985), pp. 395-423; Jacques Revel “Os usos da civilidade” in Philippe
Ariès, Georges Duby & Roger Chartier (eds.), História da Vida Privada, Vol. 3, Da Renascença ao Século das Luzes (1986), Cia
das Letras, 2006, pp. 169-209; Marvin Becker, Civility and Society in Western Europe, 1300-1600, Indiana University Press,
1988; Jennifer Richards (ed.), Early Modern Civil Discourses, Palgrave Macmillan, 2003; Anna Bryson, From Courtesy to Civility:
Changing Codes of Conduct in Early Modern England, Clarendon Press, 1998, p. 24.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
67
Tal contexto é, a um só tempo, coerente e paradoxal. Por um lado, a França
do Renascimento e do Ancien Régime é, para todos os efeitos, uma França rural: com
quase 90% de sua população habitando o campo, a existência de uma literatura que o
valorize seria quase que, olhando a partir da nossa experiência contemporânea, uma
obviedade sócio-cultural. Mas, paradoxalmente, o que ocorre é o contrário. Como todas
as suas instituições importantes (legislativas, religiosas, culturais) estão nas cidades e
nas cortes (sobretudo, já por essa época, em Paris), a França pré-moderna pensa sua
realidade interna de um modo esquizofrênico, transformando a cidade (minoritária
em quase tudo) numa obsessão que permeia e controla todas as instâncias da sua vida
intelectual28. Valorizar o campo, neste contexto, mesmo literariamente, tem certo ar
de heterodoxia irônica. Além do mais, ressaltar sua superioridade em relação à cidade
(tema essencial dos teóricos e poetas da vie rustique) implicaria, em última análise, num
tipo de renúncia – uma renúncia complexa, claro, por conta das denegações implícitas
e da lógica de legitimação social e cultural que a Cidade por excelência (Paris e sua
corte, em nosso caso) impõe às classes abastadas francesas por essa época. Pois a Corte
real do final do século XVI é já uma cosmologia particular: diferentemente dos quadros
medievais da noblesse d’épée, onde o rei é um primum inter pares, a “nova” nobreza
francesa, rural ou cortesã, de espada ou de robe, falida ou rica, que toma forma decisiva
a partir dessas últimas décadas – mas cujo processo começa bem antes, com François I
–, é uma aristocracia a mando do (e decorada pelo) Estado. E, em última análise, quando
ocupando postos judiciários, é, na maioria das vezes, direta ou indiretamente, paga por
ele29. Progressivamente, essa nobreza vai-se agregando à Corte naquela simbiose que
define a clássica esfera político-administrativa da França moderna, sobretudo a partir
de Henrique IV e dos Bourbons: a dos nobres estatizados30.
28 “As Hugues Neveux has recently observed, the geographic descriptions of France’s regions and provinces which developed as
a literary genre from the second half of the sixteenth century onward regularly devoted as much as ninety per cent of their space
to describing the towns of the regions in question. This reflects more than the simple fact that the most impressive architectural
monuments of the kingdom were located disproportionately in the cities. Most of the institutions from law courts to episcopal sees
which governed people’s lives and souls were found there as well. Much of the country’s wealth was, if not generated, then spent
and displayed in the towns. And cities possessed exceptional significance in regional and national politics, as events from the Wars of
Religion to the Revolution would demonstrate. Furthermore, it can be argued that between the years 1500 and 1789, the dominance
exercised by cities over France’s economic and social life increased substantially” (Philip Benedict “French cities from the sixteenth
century to the Revolution” in Philip Benedict, Cities and Social Change in Early Modern France, Routledge, 1992, pp. 6-7).
29 O fato de ser nobre paysan não significava, em absoluto, opulência ou tranquilidade financeira por si só: “Les revenus du
domaine forment l’essentiel des ressources des gentilhommes campagnards, même si l’apport des droits seigneuriaux n’est
pas négligeable lorsque ceux-ci sont perçus en nature. Ces moyens suffisent le plus souvent à leur procurer une vie conforme
aux exigences de leur état” (Arlette Jouanna, La France de la Renaissance, Perrin, 2009², pp. 227-228).
30 Os chevaliers e títulos honoríficos concedidos pela Coroa francesa se multiplicam sensivelmente por essa época
e a transformação dos gentilhommes em funcionários públicos é um dos pilares de um Estado Moderno apoiado,
administrativamente, nos quadros da sua noblesse de robe: “A Corte é, antes de mais nada, um instrumento do poder real. Ela
sustenta a nobreza, domesticando-a. Para muitas linhagens que se encontram em dificuldades devido ao modo de vida nobre,
à preocupação com as aparências e à recusa de medir despesas, ‘fazer a corte’ e obter do soberano colocações, benefícios e
doações são o único meio de escapar da ruína e da decadência social. É cada vez mais frequente que gaviões provincianos
se apresentem ao rei para obter dele uma garantia de manter sua posição” (Jean Jacquart, François Ier, Fayard, 1981, p. 384).
“Entre os Montaigne, sabe-se que o problema não é nem tanto a ‘preservação’, mas sim a elevação da posição social, sendo
68
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Para a elite que não só afirma literariamente, mas que efetivamente vive, a vie
rustique, quer dizer, a nobreza paysan de fato, estar retirada no campo (longe da Corte)
significa estar longe da cidade e de suas benesses civilizatórias. Mas para os rustiques
cortesãos – que valorizam o campo de modo literário ou estetizado –, seria certamente
um exagero imaginar que teorizam ou pregam algum tipo de retiro semi-monástico.
Para os rustiques, valorizar o campo não significa dizer que, automaticamente, a
civilização por inteiro é um mal31. Não se trata de macrobiótica social, de abandono
do valor civilizatório da cidade para uma utopia animalesca do puro e do ingênuo,
pois temos aqui um contexto de vida retirada onde os modelos são ainda e sempre
obviamente aristocráticos e cortesãos: micro-ambientes que flutuam sob os poderes
da cité. Pois mesmo quando, eventualmente, não está na Corte, essa aristocracia
continua, às margens do mundo urbano, mesmo a léguas de distância da cidade mais
próxima, funcionando com as armas da civilité: ou antes, contrabandeia e capitaliza
a civilité em armadura, brasão e moral32. É evidente que nem Pibrac, nem Philippe
Desportes33, e tampouco Olivier de Serres se pensam bárbaros porque escrevem sobre
o campo (ou eventualmente a partir dele), glorificando ou estetizando sua excelência.
Muito pelo contrário: o funcionamento da camuflagem aristocrática, já presente, aliás,
na concepção teócrito-virgiliana de pastoral (aquela que põe pastores rústicos falando
mais importante consolidar uma ascensão do que não afundar. Entretanto, na mente de Pierre Eyquem, a vocação de seu
engenhoso herdeiro é inscrever-se nesse movimento que poderia ser descrito como a nacionalização da Corte, no qual
a pequena ou média nobreza provinciana toma parte de bom grado” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 52). Para o
contexto geral da mutação nobiliárquica no Renascimento francês, ver John Russell Major, From Renaissance Monarchy to
Absolute Monarchy: French Kings, Nobles, and Estates, John Hopkins University Press, 1997; Keith Cameron, From Valois to
Bourbon: Dynasty, State and Society in Early Modern France, Liverpool University Press, 1989; Arlette Jouanna. Le devoir de la
révolte. La noblesse française et la gestation de l’État modern, 1559-1661, Fayard, 1989; Guy Chaussinand-Nogaret (ed.), Histoire
des élites en France, du XVIe au XXe siècle, Tallandier, 1991; George Huppert, Les Bourgeois Gentilshommes. An Essay on the
Definition of Elites in Renaissance France, University of Chicago Press, 1977; e para o caso específico de Montaigne, ver George
Hoffmann, Montaigne’s Career, Clarendon Press, 1998.
31 Não devemos esquecer, claro, que a valorização do campo em relação à cidade (e vice-versa) funciona por vagas e depende
de um sem-número de fatores que, muitas vezes, nada têm a ver com a vida no campo em si: “Nos tempos da Renascença, a
cidade fora sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das florestas e encerrá-los numa cidade
era o mesmo que civilizá-los. Como dizia um diálogo elisabetano, um fidalgo criado na cidade seria mais ‘civilizado’ do que
um educado no campo. A cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto e da sofisticação. Era a arena de
satisfação do homem. Adão fora colocado em um jardim, e o Paraíso terrestre associado a flores e fontes. Mas, quando os
homens pensavam no paraíso da salvação, geralmente o visualizavam como uma cidade, a nova Jerusalém. (...)”. No entanto,
o século XVIII começará a inverter essa noção: “(...) já bem antes de 1802, tornara-se lugar-comum sustentar que o campo era
mais bonito que a cidade. ‘Ninguém’, escrevia William Shenstone em 1748, ‘preferirá a beleza de uma rua à de uma relva ou
um bosque; na verdade, os poetas não achariam muito tentador o Elíseo, se o concebessem como uma cidade’” (Keith Thomas,
O Homem e o Mundo Natural, pp. 290-291).
32 “The advantages of the country life are not limited to the abundance of good food, clean air, and fresh water that Guevara
and his French imitators describe. The nobleman in the country is his own master, the ‘petit roi’ of his environs; at court, only
the most powerful enjoy such freedom, while the majority of noblemen of modest fortunes live in servitude and obscurity. In
the rural village, he is honored by the inhabitants of lower social status, and there are people much poorer than he upon whom
he may bestow his liberality” (Jeanice Brooks, Courtly Song in Late Sixteenth-Century France, p. 361).
33 “O bien-heureux qui peut passer sa vie | Entre les siens, franc de haine et d’envie, | Parmy les champs, les forests et les bois,
| Loin du tumulte et du bruit populaire, | Et qui ne vend sa liberté pour plaire | Aux passions des princes et de rois !” (Oeuvres,
Bergeries, I, p. 431).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
69
em sofisticado grego-helenístico ou em hexâmetros dactílicos), continua no contexto
rustique tão vivo, em sua medida, quanto nas idealizações literárias de Poliziano
e Sannazaro: pois aristocratas rurais também têm seu séquito local de empregados,
vizinhos, amigos e frequentadores34. Logo, a civilité não só continua em funcionamento
no campo como é uma carapaça utilizada como forma instrumental de poder. Por esses
e outros motivos, o que os rustiques franceses valorizam no campo não é a natura
naturans, mas a natura naturata: não a natureza selvagem e primitiva dos bosques e
dos rincões perdidos – que será a de Rousseau e a dos Românticos alemães –, mas a
paisagem fértil e cultivável do Vale do Loire e da Île-de-France35.
Ainda assim, o valor ascético do décor agrário-pastoral nas vies rustiques é
evidente e podemos extrair dele até mesmo, pela via de uma amplificação de ordem
ética, um valor medicinal. Este está de par com certas recomendações pré-modernas
contra a melancolia e que envolvem alguma espécie de phármakon pastoral36. Não por
acaso, quando Robert Burton se expressa neste sentido na Segunda Partição da sua
Anatomia, após haver examinado as curas possíveis da melancolia (meios lícitos ou
ilícitos, dietéticos, ascéticos – nas Seções 1 e 2) chegando às proposições de ordem
consolatória (mas antes de passar às digressões de ordem propriamente farmacológica
– na Seção 4), usa exatamente o trecho de Poliziano (que também são os termos de
Pibrac) que citei mais acima, associado ao famoso trecho do Epodo II de Horácio:
Beatus ille qui procul negotiis
Paterna rura bobus exercet suis. [Horácio, Epodo II, 1-2]
34 Vemos, por exemplo, no diário de Gilles de Gouberville (escrito entre 1549 e 1562), oriundo da pequena e modesta
nobreza campestre que não pertence necessariamente à noblesse de épée, uma sucessão de situações que demonstram seu
enorme prestígio junto aos habitantes de sua região: o pároco que espera sua presença na igreja para dar início à missa;
os camponeses que batem à sua porta para dirimir contendas legais – apesar de seu estatuto específico de nobreza não
prever prerrogativas de cunho judiciário; os pedidos de apadrinhamento dos recém-nascidos e assim por diante (Cf. Arlette
Jouanna, La France du XVIe siècle, p. 82). Temos, neste caso, um retrato bastante consistente de um microcosmo social paysan,
hierarquizado por um elemento da pequena nobreza campestre, mas que é, na verdade, um sistema bem horizontalizado de
trocas diretas: “a familiaridade rural entre patrão e empregado, vivendo muito perto um do outro, em constante relação na
família doméstica, nas atividades do campo: as ordens dadas para a realização das tarefas do dia, o salário pago diretamente
pelo dono, o universo do trabalho em comum nos prados, nos campos e nos bosques” (Madeleine Foisil, “A Escritura do foro
privado” in Philippe Ariès, Georges Duby & Roger Chartier (eds.), História da Vida Privada, Vol. 3, Da Renascença ao Século
das Luzes (1986), Cia das Letras, 2006, p. 344). Para o texto de Gouberville, usei Le Journal du Sire de Gouberville (Eugène de
Beaurepaire, ed.), 2 Vols., Caen, Henri Delesques, 1892. Ver Philippe Hamon, “Gilles de Gouberville officier” in Les Cahiers
du Centre de Recherches Historiques, n° 23, 1999; Madeleine Foisil, Le Sire de Gouberville, Flammarion, 2001². Ver também
Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II
35 Jacqueline Bouchet, “Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois”, p. 60.
36 Federico Schneider, Pastoral Drama and Healing in Early Modern Italy, 2010, especialmente o último capítulo “The Pastoral
phármakon”, pp. 203-210: o contexto, neste caso, refere-se mais a uma teoria do drama pastoral como phármakon [quer dizer,
droga medicinal], mas é iluminador para a relação da pastoral com a melancolia. Ver também Laurent Giavarini, “Représentation
pastorale et guérison mélancolique au tournant de la Renaissance: questions de poétique” in Etudes Epistémè, n° 3 (avril 2003),
pp. 1-27; Laurence Plazenet, “Inopportunité de la mélancolie pastorale: inachèvement, édition et réception des œuvres contre
logique romanesque” in Etudes Épistémè n° 3 (avril 2003), pp. 28-95.
70
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Happy he, in that he is freed from the tumults of the world, he seeks no
honours, gapes after no preferment, flatters not, envies not, temporiseth
not, but lives privately, and well contented with his estate;
Nec spes corde avidas, nec curam pascit inanem
Securus quo fata cadant. [Poliziano, Rusticus, vv. 24-25]
He is not troubled with state matters, whether kingdoms thrive better by
succession or election; whether monarchies should be mixed, temperate,
or absolute; the house of Ottomans and Austria is all one to him; he
inquires not after colonies or new discoveries; whether Peter were at Rome,
or Constantine's donation be of force; what comets or new stars signify,
whether the earth stand or move, there be a new world in the moon, or
infinite worlds, &c. He is not touched with fear of invasions, factions or
emulations;
Felix ille animi, divisque simillimus ipsis,
Quem non mordaci resplendens gloria fuco
Solicitat, non fastosi mala gaudia luxus,
Sed tacitos sinit ire dies, et paupere cultu
Exigit innocuae tranquilla silentia vitae. [Poliziano, Rusticus, vv. 17-21]37
Poderíamos estender essas considerações, mas, para o que me propus aqui, esse pequeno
resumo já mostra algumas possibilidades. Fazendo uma temerosa inflexão de ordem
geral, poderíamos dizer que, na sociedade europeia pré-moderna, a disseminação da
literatura pastoral se dá não apenas na aplicação recontextualizada de um modelo
literário helenístico-romano, mas faz parte de uma ampla, contínua e dinâmica reflexão
sobre certos padrões de comportamento e ação envolvendo a cidade e o campo. Essa
reflexão canibaliza e ressignifica elementos de ordem literária na criação de um universo
bastante particular de práticas sócio-culturais. E é a partir de um contexto diretamente
derivado da vie rustique francesa, que por sua vez depende de topoi pastorais clássicos
e modernos (apoteose da vida no campo, phármakon pastoral, revalorização de temas
agrários na literatura, melancolia difusa, complexificação denegatória da civilité), que
gostaria de analisar o texto abaixo.
37 “[Beatus ille...] Feliz daquele que, livre dos tumultos mundanos, não busca honras, não se embasbaca atrás de promoções,
não bajula, não inveja, não temporiza, mas vive reservado e contente com seu estado, [Nec spes...]. Não se perturba com
assuntos de estado, ou se reinos prosperam melhor por sucessão ou eleição, se monarquias deveriam ser mistas, temperadas,
ou absolutas; a casa de Osmã e a Áustria para ele são a mesma coisa; ele não questiona sobre colônias e novas descobertas;
se Pedro está em Roma, ou se a doação de Constantino fora feita à força; que significam cometas e novos astros, se a Terra
está imóvel ou movente, se há um novo mundo na Lua, ou infinitos mundos, etc. Ele não se comove por medo de invasões,
facções ou emulações; [Felix ille...]” (Robert Burton, A Anatomia da Melancolia [tradução de Guilherme Gontijo Flores], Vol. III
da edição brasileira, Segunda Partição, Seção 3, Membro 3, Subseção 1, p. 204. As citações em latim estão no original inglês.).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
71
II
An. Christi 1571 aet. 38, pridie cal. mart., die suo natali, Mich. Montanus,
servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus, dum se
integer in doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium
securus (quan)tillum in tandem superabit decursi multa jam plus parte
spatii: si modo fata duint exigat istas sedes et dulces latebras, avitasque,
libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit38.
Estas linhas ornam uma das paredes da Torre do château de Montaigne e tudo indica
que foram escritas logo após a entrega do posto que Michel ocupava desde 1557 no
Parlement de Bordeaux (seu primeiro posto, na Cours des Aides do Perigord, em 1556, foi
absorvido pelo Parlement quando a Cours foi extinta em 1557). Seu pai, Pierre Eyquem
de Montaigne, morrera um pouco antes, em 1568, e parece que Michel, a partir daí Sire
de Montaigne e até então parlamentar por conta dos desejos de ascensão nobiliárquica
da família, se sentia finalmente livre para cortar o último dos cordões umbilicais39.
38 “No ano do Cristo de 1571, com a idade de trinta e oito anos, na véspera das calendas de março, no aniversário de seu
nascimento, Michel de Montaigne, já há muito tempo entediado com a escravidão da Corte do Parlamento e dos cargos
públicos, sentindo-se ainda bem disposto, vem isolar-se para repousar no seio das doutas Virgens, na calma e na segurança;
aí ele atravessará os dias que lhe restam para viver. Esperando que o destino lhe permita aperfeiçoar esta habitação, estes
doces refúgios paternos, ele os dedicou à sua liberdade, à sua tranquilidade e a seu lazer". A citação em latim em Michel de
Montaigne, Ensaios, Vol. 1, p. LXXXII; a tradução, de Costhek Abilio, p. LIX.
39 “Embora Jacques-Auguste de Thou veja em Montaigne (de longe) um magistrado ‘assíduo’, a experiência de Montaigne
com a toga não deixa de ser uma série de desculpas para se esquivar, de viagens a trabalho, de férias fora de época. É
significativo que a primeira referência a seu nome nos arquivos da região de Guyenne seja relativa a uma falta... E que o
principal caso que conduziu, segundo os arquivos municipais, tenha envolvido a cobrança do imposto sobre bois, vacas e
carneiros...” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 100).
72
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Do ponto de vista formal, esta inscrição de 1571, não é nem literatura, nem
filosofia, nem história, nem ciência, mas uma efeméride, como as que foram escritas
pelos Montaigne nas Efemérides de Beuther40. E as efemérides, que se associam tanto
ao diário íntimo avant la lettre quanto a eventos de ordem cósmica, religiosa e civil,
recortam um momento singular no tempo do indivíduo e do mundo. No entanto, embora
efeméride, podemos facilmente ampliar seu quadro hermenêutico. Efetivamente, a
inscrição pode ser entendida como o primeiro exemplo do mesmo impulso por citações
que anima a ornamentação das famosas traves da sua Biblioteca41. Neste caso, podemos
acrescentar-lhe também uma faceta gnômica explícita – aquela que, por sua vez, é tão
característica do próprio texto dos Ensaios. Se entendida assim, a inscrição de 1571
constitui o primeiro momento da economia citacional que os anima: é sua abertura
simbólica e concreta, ainda que algo paradoxal42.
Com isso em mente, este pequeno texto explicitamente arcaizante43 – a princípio
claro em seus objetivos imediatos (aposentadoria parlamentar e exclusivismo da vida
intelectual), mas no fundo bastante enigmático – pode ser lido no quadro das inscrições
de ordem monumental, como as do antigo Egito ou da antiga Pérsia44. Ou, ao contrário,
como documento de derrota e capitulação45. Pode ser lido como grafito: marcando ou
40 As Éphémérides de Beuther eram uma espécie de agenda (trazendo apenas os dias e os meses) que mostrava as principais
datas comemorativas do calendário. Não trazendo indicação do ano, e como metade de cada página era em branco, o usuário
podia inscrever nela suas próprias efemérides (casamentos, nascimentos, óbitos, festas) durante praticamente a vida toda, e
mesmo além – a agenda passando de pai para filho, por gerações. Ver “Notes de Montaigne inscrites sur son exemplaire des
‘Ephémérides’ de Beuther” in Montaigne (Albert Thibaudet & Maurice Rat, eds.), Œuvres Complètes [Bibliothèque de la Pléaide],
Gallimard, 1962, pp. 1401-1415.
41 Sabe-se que a inscrição de 1571 foi gravada e pintada em um painel na parede do gabinete contíguo, mas as inscrições
gregas e latinas da Biblioteca do château foram talhadas em baixo relevo nas 48 traves e vigas de madeira do seu teto (o
que as torna solidárias de um dos topoi pastorais, como veremos abaixo). Ver Alain Legros, Essais sur poutres. Peintures et
inscriptions chez Montaigne. Klincksieck, 2003².
42 Neste caso, ironicamente, a primeira das citações desta economia gnômica (quer dizer, as frases gregas e latinas das traves
que se juntam às infinitas citações de autores antigos nos ensaios) não só não está no texto dos Ensaios como é do punho do
próprio Montaigne. Reforça o aspecto gnômico geral, obviamente, o fato de a inscrição de 1571 também estar em latim, como
a maioria das citações presentes nas traves e nos Ensaios.
43 “(...) tournée dans l’style de l’épigraphie classique” (Hugo Friedrich, Montaigne, p. 22).
44 Podemos considerar a arte rupestre pré-histórica como inscrições monumentais, mas esta a que me refiro aqui precisa da
invenção da escrita. A inscrição de Behistun (nos montes Zagros, província de Kermanshah, no Irã) é um exemplo disso que
chamo de inscrição monumental: imensa (25 x 15 m), foi gravada por volta de 515 a.C. na rocha de uma falésia, a 100 m de
altura, a mando de Dario I (550-486 a.C.). Escrita em três línguas (antigo persa, elamita e acadiano), conta a história da sua
ascensão ao poder diante de Smerdis da Pérsia. Tem pois uma dimensão solene, grave, institucional e ao mesmo tempo de
júbilo, que caracteriza o ato conquistador.
45 Como se sabe, o título Chevalier de l’Ordre de Saint Michel foi outorgado a Michel de Montaigne também em 1571, a mando
do rei Charles IX. A designação chevalier quer dizer, entre outras coisas, que o nobre com esse título descende da mesma
linhagem dos nobres equestres romanos (a ordo equester reorganizada por Augusto como segunda ordem do Estado, lotada
sobretudo nas províncias). Assim como os membros da ordo equester romana, que eram proprietários rurais (o equestre típico
é um “bonus agricola”), o chevalier embora, essencialmente, um soldado, pode ficar sentado atrás de uma mesa, trabalhando
diante de uma pilha de papel, rodeado por seus assessores ou cuidando de suas terras. Neste caso, um soldado que se alinha
na tradição das antigas decúrias judiciárias do Império, perfazendo uma carreira no Direito e não no exército (Cf. Paul Corbier,
L’épigraphie latine, esp. cap. 5, “Les cursus équestres et leur fusion avec les carrières sénatoriales au IVe siècle”, pp. 63-77). Desse
modo, a inscrição de 1571 pode ser lida como um documento, irônico, de capitulação: à entrada na ordem dos cavaleiros
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
73
poluindo o espaço público ou privado com palavras de ordem, codificações secretas,
esotéricas ou simplesmente ininteligíveis (o latim tem, nisso, algumas vantagens e a
criadagem do château constitui seu público incompreensivo)46. Neste caso, é também
solidário às garatujas de banheiro, quer dizer, marca de comportamento eliminativo47.
Pode ser lido como inscrição de caráter votivo, amoroso ou profético (no registro
pastoral)48, ou como inscrição devocional e simbólica aos daimones ancestrais – os
antigos romanos diriam de devoção aos deuses “Lares”49. Pode ser lido como documento
corresponde a saída da vida pública.
46 Podemos pensar nos antigos graffiti (que para nós perderam completamente a noção de coisa ordinária para entrar no
corpus sagrado dos monumentos) mas também no grafito moderno, demarcando uma cultura ou sub-cultura específica (o
caso do hip-hop é um exemplo, cf. Janice Rahn, Painting without Permission: Hip-Hop Graffiti Subculture, Greenwood Press,
2002). Sem muita elucubração, também podemos pensar o texto na ordem da pichação pura e simples. Há, em todo caso,
uma longa tradição associada a essas operações. “Most out-of-place inscriptions can be classified as tourist graffiti, inner-city
graffiti of toilet graffiti. Tourist graffiti are scratched on rocks, trees and monuments by passing visitors and consist mainly of
names, dates and simple expressions of affection. Roman soldiers left them on the pyramids during their occupation of Egypt,
and hundreds of Greek and Latin inscriptions of the form ‘Kilroy was here’ have been found on rocks at a popular resting spot
beside an ancient trail in Palestine. Inner-city graffiti tend to be more elaborate, featuring names, images and statements of
identity painted on city walls, often staking territorial claims. Toilet graffiti – dubbed ‘latrinalia’ by one scholar – appear on
bathroom walls. They are produced in a setting that is an unusual mixture of private and public. All graffiti-writing requires a
certain amount of secrecy, and bathroom stalls are more private than the spaces where other forms of graffiti are produced,
allowing wall-scribblers more time and leisure to compose their messages. The chances of being caught in the act of writing
are minimal if the latch is correctly engaged” (Nick Haslam, Psychology in the Bathroom, Palgrave, 2012, pp. 114-115).
47 Roger-Henri Guerrand, Les lieux. Histoire des commodités, La Découverte, 1985; Nick Haslam, Psychology in the Bathroom,
Palgrave, 2012; Harvey Molotch & Laura Noren, Toilet: Public Restrooms and the Politics of Sharing, NYU Press, 2010.
48 Se considerarmos a inscrição de 1571 (apesar de pintada numa parede) como mais um texto somado ao conjunto gnômico
das traves, podemos aproximá-las das inscrições que ocorrem nos subtextos bucólicos, inscrições em madeira (quer dizer,
nas árvores clássicas da literatura pastoral: a faia, o plátano, a cerejeira e o pinheiro), ora alimentando a mitologia de uma
iminente época de ouro (Virgílio, Bucólicas IV; Calpúrnio Sículo, Bucólicas, I, vv. 21-89; Bucólicas, IV, vv. 128-136); ora lembrando
recados eróticos entre amantes (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, III, vv. 43 e ss; Virgílio, Bucólicas, V, vv. 13 e ss). Teócrito também
faz referência ao plátano ornado por uma inscrição votiva: “(...) tomando um estilete de prata verteremos o untuoso licor gota
a gota sobre um plátano umbroso. E uma inscrição será gravada sobre sua casca para ser lida pelo passante, como fazem os
dórios: ‘Honrem-me, sou a árvore de Helena’” (Idílios, XVIII, v. 45-49). O tema é retomado por Sannazaro, no prólogo da sua
Arcadia.
49 Juntamente com a pietas – quer dizer, o respeito à memória familiar e cívica –, o culto aos deuses Lares é um dos fundamentos
da vida religiosa romana, desde a época real. Ele era atribuição exclusiva do pater familias (função, aliás, muito parecida
com a de Michel de Montaigne a partir da morte de Pierre Eyquem, noves fora as diferenças históricas mais imediatas), e
normalmente era prestado num altar (o lararium ou sacrarium) que ficava no atrium (peça frontal da casa, próximo à porta), o
que faz do culto doméstico aos Lares uma religião de foyer: “The paterfamilias was responsible for maintaining the traditional
rites of his family, the worship of the Lares and Penates and the other sacra inherited from his ancestors and destined to be
passed on to his descendants (the sacra familiae); while on the country estate, as we learn from the agricultural handbook of
Cato the Elder, the whole household (familia) including the slaves, would gather together for ceremonies to purify the fields
and to pray to the gods for protection and for the fertility of crops and herds” (Mary Beard, John North & Simon Price, Religions
of Rome, Vol. 1, CUP, 1996, p. 49).
74
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
mágico50. Como epitáfio, cenotáfio ou placa memorial51 – e, neste caso, uma derivação
possível é a de ser lido como uma inscrição de esquife52. Pode ser lido como documento
50 Inúmeros papiros gregos mágicos (que respondem pela sigla técnica PGM), por exemplo, mostram não apenas conjuntos
de recitações ou fórmulas, utilizadas em práticas rituais ou semi-rituais, mas também regras para confecção de amuletos
(filactérios) – que, uma vez sacralizados pelo ritual mágico, precisam permanecer junto ao corpo ou nos aposentos dos que
esperam receber dele algum benefício (o olho de boi ou ferradura na porta de entrada das casas de hoje são sobrevivências
dessas práticas antigas). Ver sobretudo Hans Dieter Betz (ed.), The Greek Magical Papyri in translation, University of Chicago
Press, 1986. E também Christopher Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera. Ancient Greek Magic and Religion, OUP, 1991;
John Gager (ed.), Curse Tablets and Binding Spells from the Ancient World, OUP, 1992; Marvin Meyer & Paul Mirecki (eds.),
Ancient Magic and Ritual Power, Brill, 2001; Paul Mireki & Marvin Meyer (eds.), Magic and Ritual in the Ancient World, Brill,
2001; Matthew Dickie, Magic and Magicians in the Greco-Roman World, Routledge, 2001; Jan Bremmer & Jan Veenstra (eds.),
The Metamorphosis of Magic from Late Antiquity to the Early Modern period, Peeters, 2002; Richard Kieckhefer, Magic in the
Middle Ages, CUP, 1989. Boa compilação de ilustrações de amuletos para diversos fins em Sheila Paine, Amulets. A World
of Secret Powers, Charms and Magic, Thames & Hudson, 2004; e também Claude Lecouteux, Le livre des talismans et des
amulettes, Imago, 2005. Um exemplo de fabricação de filactério no contexto greco-romano é o PGM VII, linhas 579-590 (Cf.
Betz, Op. cit., p. 134) – e a inscrição de 1571, com sua logística obsequiosa e de invocação, permite aproximá-la desse tipo
de artefato mágico. No mesmo sentido, a partir de um raciocínio consideravelmente surrealista, a inscrição de 1571, se relida
nesse contexto, poderia levar a uma reavaliação ampla e complexa da própria atividade citacional montaignista: a inscrição,
somando-se à economia gnômica das traves, por sua vez ampliada pela economia gnômica dos próprios Ensaios, formariam
um conjunto sentencioso relativamente coeso e solidário, doravante lido na perspectiva dos grimoires – livros mágicos
contendo compilações de fórmulas e feitiços variados, quase sempre de segunda mão, e seu modus operandi. Ver Owen
Davies, Grimoires, a History of Magic Books, OUP, 2009; Claude Lecouteux, Le Livre des Grimoires. De la magie au Moyen Age,
Imago, 2008³. Neste caso, inverteríamos completamente a ordem das coisas: não o texto dos Ensaios sendo ornamentado por
citações, mas as citações ornamentadas pelo texto dos Ensaios. Por último, como reforço a essa dimensão mágico-religiosa,
não devemos esquecer que o latim, apesar de toda a sua importância para o humanismo do Renascimento, é também uma
língua eclesiástica e, em última análise, também uma língua esotérica.
51 O túmulo e o epitáfio são, visualmente, e enquanto memento mori, os signos árcades da melancolia – elemento explorado,
mais tarde, por Guercino e, sobretudo, por Nicolas Poussin em suas telas retratando Les Bergers de l’Arcadie. O memento mori,
como vimos, já era valorizado como componente pastoral desde Sannazaro (o topos tumular arcadiano foi extraído da Écloga
XII da sua Arcadia). A mais completa iconografia da melancolia (e da melancolia associada ao memento mori) que conheço é
Jean Clair, Mélancolie. Génie et folie en Occident, Gallimard, 2005. Para o epitáfio na Antiguidade, Maureen Caroll, Spirits of the
Dead: Roman Funerary Commemoration in Western Europe, OUP, 2006. Para uma poética do túmulo, Scott Newstock, Quoting
Death in Early Modern England. The Poetics of Epitaphs Beyond the Tomb, Palgrave, 2009. Para a morte na Arcádia ver Bruno
Damiani & Barbara Mujica, Et in Arcadia ego: essays on death in the pastoral novel, University Press of America, 1990. Para uma
perspectiva geral do tema da morte e do fúnebre, Jean-Claude Schmitt, Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval (1994), Cia
da Letras, 1999; e, claro, Philippe Ariès, O Homem diante da Morte (1977), 2 Vols., Francisco Alves, 1982, e História da Morte no
Ocidente (conferências de 1974), Nova Fronteira, 2012 [Saraiva de Bolso].
52 No sentido dos coffin texts egípcios, textos exequiais inscritos no interior dos sarcófagos com o fim de ajudar o morto no
trajeto ao além e no desenrolar da vida póstuma. São, no final das contas, documentos mágicos. A maior parte das inscrições
vem dos textos piramidais do Império Antigo (~2700-2180 a.C.) e do chamado Livros dos Mortos – o que quer dizer que,
inicialmente, eram de domínio exclusivo dos faraós. Depois do colapso do Império Antigo, inscrições desse tipo passam
a figurar também nos sarcófagos comuns (de quem tinha dinheiro para comprá-los, claro), fenômeno denominado pelos
especialistas de “democratização da vida além-túmulo”. Muitos desses textos implicam numa dramatização de um tribunal
divino, o que não deixa de ser interessante no contexto pós-parlamentar de Montaigne (os parlements franceses do Ancien
Régime são instituições de caráter jurídico, quer dizer, tribunais, e não de caráter legislativo): “Salve Thoth e seu Tribunal. Salve,
ó Thoth, em quem está a Paz dos deuses, e todo o tribunal que está contigo!” (Faulkner, I, texto 9). Ver Steven Snape, Ancient
Egyptian Tombs: The Culture of Life and Death, Wiley-Blackwell, 2012; Raymond O. Faulkner, The Ancient Egyptian Coffin Texts, 3
vols., 1972-78. Para os textos do Livro dos Mortos, E. A. Wallis Budge, O Livro Egípcio dos Mortos (1923), São Paulo, Pensamento,
1993.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
75
utópico53. Como documento escatológico-milenarista54. Ou simplesmente como
literatura de parede, onde a própria casa é entendida como livro55.
A inscrição indica ou pressupõe, portanto, um cosmo complexo e cheio de
energia potencial. Ela sugere não apenas uma posição de princípio (no registro ético
ou moral), mas também um lugar – um locus amoenus56 – múltiplo, multifacetado e
com características bastante peculiares. Aqui, no entanto, quero explorar apenas uma
dimensão fracionária desse locus, aquela que se liga à expressão mais propriamente
ascética da vie rustique.
E de fato, sem muito esforço, extraímos da inscrição de 1571, ao menos em
princípio, um modelo de vida onde o Rusticus se sentiria em casa: o innocuae tranquilla
silentia vitae (do verso 21) unido ao urbe procul e ao voti exiguus (do verso 22) do poema
de Poliziano se casam com o ubi quietus, o ominum securus, o dulce latebras do texto da
inscrição – ainda que, neste último caso, isto se dê num contexto que negocia com esse
território austero da vie rustique e, aparentemente (por oposição ao texto de Poliziano,
53 A nova Idade do Ouro é, claro, também um topos pastoral. Em Virgílio, ele parece escapar do contexto das outras écoglas,
mas o fato de ser um tema “um pouco mais alevantado” que os “arbustos e as humildes tamargueiras” da temática pastoral
estrita não quer dizer que também não seja um tema pastoral – afinal de contas, a Écogla IV (que fala do nascimento de um
menino prodigioso, que governará uma Roma beatífica e que terá ampla repercussão nas discussões milenaristas cristãs) foi
publicada pelo próprio Virgílio como sendo uma... écloga. A passagem mais característica desse universo edênico é: “Ultima
Cumaei venit iam carminis aetas; | Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo. | Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna
[Já chegou a última idade da profecia de Cumas; a grande série de séculos recomeça. Já também retorna a virgem, voltam
os reinos de Saturno]” (Virgílio, Bucólicas IV, vv. 4-6). Mais tarde, Calpúrnio Sículo igualmente celebrará sua própria época
beatífica: “aurea secura cum pace renascitur aetas | et redit ad terras tandem squalore situque | alma Themis posito iuvenemque
beata sequuntur | saecula, maternis causam qui vicit Iulis [Assegurada a paz, renasce a Idade de Ouro e, uma vez eliminada a
torpeza e a sordidez, a benéfica Témis regressa, enfim à terra. Tempos felizes acompanham este jovem: saiu vitoriosa a causa
dos maternos Julos]” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, I, vv. 21 e ss.). Estas passagens reforçam a ligação da literatura pastoral como
um todo com os dispositivos utópicos (faceta que tem lugar preponderante também no desenvolvimento da vie rustique). Na
citação de Virgílio, a referência é especialmente interessante, pois esse dispositivo utópico é anunciado, além da expressão
Saturnia regna, pelo termo Virgo – que tem importância estrutural no texto da inscrição de 1571, como veremos abaixo. A
dimensão utópica, neste caso, é, evidentemente, aquela que invoca o nascimento de um novo ciclo do tempo, um novo
começo, uma nova ordem – compatíveis, portanto, com a atmosfera explícita da inscrição feita por Montaigne.
54 Faço uma consideração a respeito mais adiante. Para uma literatura geral sobre o milenarismo ver Norman Cohn, The
Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages, OUP, 1970; Barry Brummett,
“Premillennial Apocalyptic as a Rhetorical Genre” in Central States Speech Journal 35 (Summer 1984), pp. 84-93; Stephen
O’Leary, Arguing the apocalypse: a theory of millennial rhetoric, OUP, 1998; Bernard McGinn, Visions of the End. Apocalyptic
Traditions in the Middle Ages, Columbia University Press, 1979.
55
Na Inglaterra elisabetana, por exemplo, as paredes são também utilizadas para comportar textos, sobretudo textos
poéticos. No Welspring of wittie Conceights (anônimo, 1584) ou no A Hundreth good pointes of husbandry, lately maried unto
a hundreth good poynts of huswifery (1570) de Thomas Tusser, encontramos propostas literárias específicas para esse tipo de
inscrição: “At the end of the Welspring of wittie Conceights occurs a set of ‘Certaine worthie sentences, very meete to be written
about a Bed-chamber or to be set up in any convenient place in a house’. The appendices to Thomas Tusser’s A Hundreth good
pointes of husbandry… similarly include a series of something called ‘Husbandly Poesies’ – ‘Poesis for the hall’, ‘Posies for the
Parler’, ‘Posies for the gest’s Chamber’ and ‘Posies for thine own bed Chamber’. These two sets of poems bear witness to the
surprising fact that the Elizabethan householder was advised to write on his, or her, own walls. Evidence that such advice was
followed is furnished by two Hertfordshire properties, on whose interior walls selections from Tusser’s posies can still be read”
(Juliet Fleming, Graffiti and the Writing Arts of Early Modern England, Reaktion Books, 2009, p. 29).
56 Alexander Samson (ed.), Locus Amoenus. Gardens and Horticulture in the Renaissance, Wiley & Sons, 2012.
76
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
que é altamente virtuosístico), não tenha em si grandes aspirações literárias57. Claro,
por “modelo de vida” devemos entender o sentido que a palavra “modelo” guarda em
termos de singularidade, de valor ideal: na inscrição de 1571, trata-se obviamente de
uma tomada de posição, uma carta de intenções (o cansaço do trabalho no Parlamento
conduziu à entrega do cargo e à vida doravante voltada para o château), mas não
necessariamente de uma práxis real que deva ser entendida ao pé da letra58. E, neste
caso, temos em funcionamento um exemplo de menosprecio – com suas inerentes
contradições e paradoxos cortesãos.
Seja lá como for, quer espelhe uma necessidade contingente ou uma mera
intenção superficial, há algo de irônico nesta declarada ascese rústica, pois o “seio das
doutas virgens” [doctarum virginum sinus] alia uma densidade altamente sexualizada
à imagem do οἶκος ancestral. Essa correlação irônica se fortalece na medida em que
“sinus virginum” coincide actancialmente, no texto da inscrição, com “dulces latebras”
enquanto os lugares invocados como os de repouso e de reflexão59. Pois sinus pode ser
entendido como seio, mas também como vagina60; e o substantivo latebras, embora
seja um termo elegante para refúgio, está muito próximo do adjetivo latebrosus – que,
associado a locus, pode significar tanto o lugar oculto, o recanto profundo e obscuro,
quanto o lugar desrespeitável61. Sem contar que o mesmo radical também serve à
57 “[A inscrição de 1571 é] o pior e menos verdadeiro dos textos que [Montaigne] jamais escreveu” (Jean Lacouture, Montaigne
a cavalo, p. 143).
58 A decisão pelo recolhimento, provavelmente preparada há muito tempo mas anunciada no dia do seu aniversário (28
de fevereiro), tem algo de teatral. Teatral também será a data de publicação da primeira edição dos Ensaios, 1 de março de
1580, no dia seguinte ao seu aniversário de 47 anos. Montaigne considerava seus novos ciclos sócio-profissionais como
renascimentos? Certamente gostava de dramatizá-los. Seja como for, o “retiro do mundo”, como se sabe, mostrou-se um
exagero: mesmo depois da entrega do cargo em 1571, Montaigne continuou uma intensa vida social e política, muito pouco
ascética e solitária. Para uma análise histórica do tema do recolhimento, ver Georges Minois, Histoire de la solitude et des
solitaires, Fayard, 2013; e Bernard Beugnot, Le Discours de la retrait au XVIIe siècle, PUF, 1996. Para uma abordagem sociológica,
ver Roelof Hortulanus, Anja Machielse & Ludwien Meeuwesen, Social Isolation in Modern Society, Routledge, 2006. Em todo
caso, por razões que explico mais abaixo, não gostaria de assimilar muito rapidamente o tema do contemptus mundi (na lógica
místico-eclesiástica) à inscrição de 1571. Para este último, ver Michel de Certeau, Jean Daniélou et alli, Le mépris du monde,
Cerf, 1965.
59 A tradução de Costhek para a inscrição de 1571, que segue literalmente a de Villey (pelo que se vê, o texto em português
foi feito a partir do francês e não do latim), assumiu “dulces latebras, avitasque” como “doces refúgios paternos”, mas seria mais
correto e literal dizer “refúgios doces e avoengos”. Muito embora possa ser subentendida, uma vez que Michel de Montaigne
colocou a inscrição num dos cômodos do castelo que herdou do pai, não é a palavra “păternus, -a” que figura literalmente
no texto em latim mas ăvīta [genitivo de ăvītus]: adjetivo que designa não o pai, mas o avô, o que muda completamente o
contexto. Agradeço a Gustavo Olivieri a observação.
60 “Sinus is used of the vagina or womb by Tibullus, 1.8.36: ‘teneros conserit usque sinus’; cf. Ovid Fast. 5.256 ‘tangitur et tacto
concipit illa sinus’. As an anatomical (or near-anatomical) term sinus strictly denoted the space between the chest and the arms
held in front of the chest as if to clasp an object (= ‘bosom’). It is not from this usage that the above anatomical examples could
be derived, but from its use in application to any hollow space or cavity” (J. N. Adams, The Latin Sexual Vocabulary, Duckworth,
1982, p. 90).
61 É este, por exemplo, o sentido de latebrosus no contexto de uma comédia de Plauto, as Báquidas. A entrada no Lewis-Short
dá o seguinte: “lătēbrōsus, a, um, adj. latebra, full of lurking-holes or coverts, hidden, retired, secret. Lit. (rare but class.): loca,
lurking-places, disreputable haunts, Plaut. Bacch. 3, 3, 26: via, * Cic. Sest. 59, 126: locus, Liv. 21, 54: viae, Amm. 14, 2, 2: loca,
id. 17, 1, 6: flumina, Verg. A. 8, 713: latebrosae tempora noctis, Luc. 6, 120: serpens, Sen. Oedip. 153: latebrosa et lucifuga natio,
Min. Fel. 8, 4.—Poet.: pumex, i. e. full of holes, porous, Verg. A. 12, 587”. A citação de Plauto: Magis illectum tuom quam lectum
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
77
formação do perigoso substantivo latebricola62. Lugar desrespeitável onde se vai para
repousar sobre as vaginas das doutas musas/virgens...63.
Na inscrição de 1571 temos, evidentemente, uma lógica rústica e pastoral – mas
que se cristaliza perfeitamente na performance contemplativa e extática do otium cum
litteris humanista64. Afinal de contas, a rusticidade não se contrapõe à civilização65.
Mas tal performance, em princípio ascética (ou puramente intelectual), existe num
cenário erótico irônico e subliminar. A tensão entre os elementos masculinos e
femininos presentes no texto em latim (expressos por vocábulos intelectualizados e/ou
da tradição monástica, e que ordinária e classicamente são esvaziados de perspectiva
corporal, como quietus, otium, tranquillitas, libertas) pode ser lida como perversamente
complementar a esta densidade erótica e, na esteira desse jogo de significados, a
relação estrutural entre latebras e sinus (relidos e ressignificados, como fiz acima, nos
difamáveis domínios da lubricidade) não faz senão amplificá-la66.
metuo. mala tu es bestia. | nam huic aetati non conducit, mulier, latebrosus locus. [Tenho menos medo dos teus jantares que das
tuas iscas; és um animal sagaz. Na minha idade, moça, devemos evitar esses lugares de má reputação] (Báquides, Ato I, cena
I, vv. 55-56). O contexto (a peça trata de uma escrava meretriz emprestada que não quer voltar ao seu dono) é evidentemente
irônico, mas os tradutores do final do século XIX e início do século XX que verteram esta peça para as línguas modernas
(ao menos nas versões que pude checar em francês e inglês) esvaziaram por completo a expressão latebrosus locus de seu
sentido sexual. No subúrbio carioca dos anos 1970, traduziríamos a expressão latebrosus locus por “inferninho”, gíria da época
para puteiro – guardando assim as características tectônicas e abscônditas de latebrosus, embora com um colorido judaicocristão que não se aplica a Plauto. “Inferninho” é bom ainda por outra razão: coincidentemente, o mais famoso latebrosus
locus intelectual que se conhece hoje é o Enfer da Bibliothèque Nationale (sendo “enfer” um termo genérico usado pelos
bibliotecários franceses para designar suas sessões de livros licenciosos e pornográficos), o que, a partir do projeto intelectual
de Montaigne (a Biblioteca do château estreitamente ligada à produção dos Ensaios), só faria re-energizar sexualmente o
contexto da inscrição e da vida intelectual de seu autor.
62 Quer dizer, “o que frequenta lugares de baixa reputação”. Mais uma vez, o contexto é de uma comédia de Plauto, Trinummus,
v. 240: latebricolarum hominum corruptor.
63 É interessante notar que Starobinski, embora não tenha atentado para a possibilidade desse bricabraque terminológico
psicodélico, também faz uso de uma leitura algo erótica de “sinus virginum” partindo, porém, do conceito psicanalítico de
regressão: “A libertação vai de par com o encerramento. Uma estrita oposição se manifesta entre a expressão do desgosto, a
vontade de ruptura (servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus) e o ato votivo que consagra e circunscreve
estreitamente o lugar de retiro ([...] libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit). Esse lugar é metaforicamente o “seio
das doutas Musas” (doctarum virginum sinus): trata-se, seguramente, das paredes que lhe oferecem, ‘ao curvar-se’ [Ensaios, II,
3, p. 828], a coleção das obras de poesia, de filosofia, de história que ele quer cercar-se. A imagem do afastamento (recessit)
do lugar oculto (dulces latebras), a figura feminina das Musas (...) evocam, para o leitor moderno o conceito psicanalítico de
regressão, com seu cortejo de noções associadas” (Jean Starobinski, Montaigne em Movimento, p. 17). Ainda assim, Starobinski
insiste que “a inscrição inaugural de 1571 não deve ser lida essencialmente como um documento psicológico”.
64 A fórmula deriva de um trecho das Cartas de Sêneca: (...) otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura [O ócio sem
o estudo é a morte, a sepultura do homem ainda em vida] (Epistulae morales 82, 3), servindo como divisa ou inspiração para
diversos humanistas do Renascimento (Cf. Hugo Friedrich, Montaigne (1949), Gallimard, 1968, p. 22).
65 Como já adiantava Idas, personagem de Calpúrnio Sículo: “Ne contemne casas et pastoralia tecta: rusticus est, fateor, sed
non et barbarus Idas [Não desprezes as minhas choupanas nem meus abrigos pastoris. Confesso que Idas é rústico, mas não
bárbaro]” (Bucólicas II, vv. 60-61). Ainda aqui, a inscrição de 1571 acompanha a tradição pastoral, valorizando um de seus
aspectos fundamentais: a imagem do rústico aristocrático.
66 “Quando Montaigne evoca a tranquilidade (quietus, depois tranquillitas), a segurança (securus), o repouso (otium), pode-se
acreditar que não faz mais do que confirmar a natureza regressiva de seu desejo. Por certo, a casa é o lugar ancestral (avitas
sedes) e remete à linhagem dos ancestrais masculinos, mas essa masculinidade, ligada desde 1477 à propriedade dominial,
acha-se contrabalançada (para a argumentação psicanalítica) pelo gênero feminino de sedes e pela preponderância dos nomes
78
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
O jogo erótico não é, evidentemente, estranho ao bucolismo normativo. É
importante não perder de vista que o regime pastoral tem firme no horizonte, desde
sempre, o amor e o amor erótico: é para entender o amor que o Gallus de Virgílio está na
Arcádia da última écloga; e é o amor erótico que está em jogo quando o pastor Córidon
se desespera diante do desprezo do belo Alexis, ou quando Ástaco e Idas disputam
um torneio poético para conquistar a jovem Crócale (Calpúrnio Sículo, Bucólicas II):
não se espera nada de intelectual quando tais desprezos forem contornados, quando
tais conquistas se concretizarem67. Por sua vez, o desenraizamento topográfico da
pastoral em direção a uma autonomia aplicável a contextos não bucólicos, quer dizer,
sua desterritorialização68, torna esse jogo erótico pastoral (filtrado pelos mecanismos
da vie rustique) um dispositivo aplicável também ao contexto da Biblioteca do château.
Quando relidos no ethos pastoral, a amizade e o erotismo se complementam e se
energizam neste espaço da vida intelectual, sobretudo quando sabemos que a Biblioteca
tem sua origem nos livros herdados de Étienne de La Boétie, o amigo por excelência
de Montaigne69. Eis, portanto, outra relação bastante sintomática de reificação erótica
da Biblioteca como um latebras/latebrosus locus70. Ainda uma vez, a inscrição de
1571, como elemento fundacional da economia gnômica e do processo intelectual
femininos, na lista dos termos que a inscrição consagra (depois de libertas e tranquillitas, apenas otium não é feminino, mas
neutro!)” (Starobinski, Montaigne em Movimento, p. 17).
67 Note-se também que o regime erótico pastoral latino, continuado pela pastoral pré-moderna, teve como complemento a
redescoberta da erótica das antigas novelas imperiais.
68 Ampliação de contexto, como vimos, presente já em Sannazaro, quando adaptou o bucolismo pastoral clássico
(exclusivamente agrário) para um milieu não-campestre, substituindo os pastores pelos pescadores da região de Nápoles (as
Eclogas piscatoriae foram publicadas em 1526). Ver Jacopo Sannazaro, “Piscatory Eclogues” in Latin Poetry (Michael Putnan,
ed.), Harvard University Press [I Tatti Renaissance Library], 2009, pp. 102-141.
69 “On ne peut qu’en supposer les motifs [do retiro de Montaigne]; lui-même s’est exprimé de façon très vague à ce sujet. Ils
tiennent peut-être dans l’obligation, survenue à la mort de son père, de reprendre la charge du château en qualité d’héritier. Il
est possible que des déceptions politiques, la satiété de sa magistrature, le chagrin d’avoir perdu son ami La Boétie, aient joué
leur rôle. Nous savons en tout cas qu’il s’installa dans sa ‘librairie’, entouré de livres dont la plupart lui venaient de la succession
de La Boétie (…).” (Friedrich, Montaigne, p. 22).
70 Um dos elementos mais fundamentais da civilité, a conversação, não escapa de uma perspectiva erótica – complementada
na imagem do casamento heterossexual como dispositivo que desfaz, no cidadão comum (quer dizer o cortesão que não é
nem eclesiástico, nem asceta em busca de Deus), os perigos da solidão (problema complexo no contexto corteggiano, uma
vez que impede o exercício das virtudes civis que são próprias ao homem socializado): “(...) et con la medesima raggione
debbiamo porre quest’altro fondamento, ch’essendo l’huommo animal sociabile, ami di natura sua la prattica de gli altri
huomini, & habbia in odio la solitudine, & facendo il contrario offenda l’istessa natura” (Stefano Guazzo, La Civil Conversazione,
Tomazzo Bozzola, 1574, pp. 4-5). Milton, por exemplo, falará do casamento insistindo nesses termos: “In The Doctrine and
Discipline of Divorce, [John] Milton argues that the original purpose of marriage was ‘to comfort and refresh [man] against
the evil of solitary life’, assuaging ‘God-forbidden loneliness’ with ‘meet and happy conversation’. And, as Milton insists in
Tetrachordon, such fulfillment is possible only in the heterosexual relation...” (Melissa E. Sanchez, Erotic Subjects: The Sexuality
of Politics in Early Modern English, OUP, 2011, p. 212). Se não há referências diretas ao casamento na inscrição de 1571,
sobram especulações sobre esse lugar privilegiado onde se unem erotismo e civilité: “Montaigne dirá que não sabe se não
preferiria ter produzido um filho ‘nascido de um comércio [acointance, termo que até o século XVI é “próprio da linguagem
nobre da ‘courtoisie’” (Cf. TLF-i), significando neste caso comércio no sentido sexual] com as musas a um produto das suas
relações [acointance] com minha mulher’ (Ensaios II, VIII, p. 401 [“Da Afeição dos pais pelos filhos”, CA II, p. 105])” (Starobinski,
Montaigne em movimento, p. 17). Ver também Georges Minois, Histoire de la solitude et des solitaires, Fayard, 2013; e Peter
Burke, A Arte da Conversação (orig. inglês 1993), Ed. UNESP, 1995, esp. cap. 4.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
79
que ressignifica a Biblioteca e suas traves em dispositivo rustique, embora tenha um
funcionamento interno irônico e multifacetado, permanece de fato sincrônica a uma
das instâncias maiores do regime pastoral: esse lugar do retiro e da solidão é não só um
lugar do cultivo da amizade, da amizade perdida que permanece no culto da memória
(pública e privada) e do luto (pelo amigo e pelos ancestrais), como também o lugar do
prazer e, mais profundamente ainda, o do gozo71.
Por sua vez, esse dispositivo ascético, que se esvazia em ironia sexual implícita,
precisa também ser lido em paralelo ao dispositivo político que lhe é inerente: a decisão
de um funcionário de Estado de entregar seu cargo também é irônica na medida em
que esta ação apenas o liberta de compromissos imediatos com a ordem hierárquica
a qual ele estaria preso, se continuasse empregado no Parlamento. A frase “Servitii
aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus” precisa, portanto, ser entendida
em seu sentido literal. Cansado da escravidão da corte e dos cargos públicos – e não
do trabalho, dos compromissos aristocráticos que sua posição exige e da ação política
ordinária72. Ele pode, perfeitamente, agora que não representa mais o Estado, tornarse capaz de ações políticas concretas sem necessariamente revogar sua condição de
71 Resistirei à tentação de colocar no rol desta análise o funcionamento dos vários modelos monásticos cristãos, desde as
primitivas regras cenobíticas de Antônio e de Pacômio até às ordens criadas no século XVI – modelos que exprimem, em
teoria, microcosmos ideais, ainda que permeados de problemas práticos de todas as cores e tamanhos. Mas é evidente que
as correlações são totalmente possíveis, sobretudo na insistência – estabelecida pelos reguladores desses contextos ascéticoanacoréticos – da problemática sexual como um dos pilares de sua organização teórica e prática. Uma leitura montaignista
mais tradicional (p. ex., Friedrich, Montaigne, p. 21 e ss; Legros, Essai sur poutres, p. 239 e ss.), claro, valorizará a cena quase
religiosa do “espaço votivo” ao falar da inscrição de 1571 – concepção que se liga, em última análise, à visão da Biblioteca do
château como um tipo de monastério laico. Mas gostaria de acrescentar que, quando observo o cosmo citacional das traves
conjuntamente com a inscrição de 1571, fica-me também a impressão irresistível e característica do pin-up – sobretudo se
considerarmos as inscrições nesse contexto do gozo, ainda que intelectual. Logo, outra leitura possível é, para dizer o mínimo,
a de inversão irônica dessa perspectiva monástica em uma dinâmica sexualizada – cujo rastro nos levaria, com um pouquinho
mais de esforço, às margens totalmente laicas do... bordel. Ver Mark Gabor, Pin-up, a Modest History, Taschen, 1996²; Maria
Elena Buszek, Pin-up grrrls: feminism, sexuality, popular culture, Duke University Press, 2006.
72 No trecho, Costhek Abílio parece ter se baseado exclusivamente na tradução francesa feita por Villey e não no texto
latino da inscrição, pois literalmente “aulici”, em latim, significa apenas “corte”, no sentido de “corte do rei” – e não “corte
do Parlamento”, como traduz Villey: aulĭcus, a, um, adj., of or belonging to a prince’s court, princely: apparatus, Suet. Dom. 4;
luctatores, id. Ner. 45.—Hence subst.: aulĭci, ōrum, m., courtiers, Nep. Dat. 5, 2; Suet. Calig. 9 (cf. Lewis-Short). Neste caso, ela
só teria razão em manter o acréscimo se entendermos “corte” como “corte de justiça” – quer dizer, neste caso, o Parlement
de Bordeaux (no Ancien Régime, os parlements são instituições judiciárias e não legislativas), local de trabalho do Sire de
Montaigne. No entanto, criaríamos aí uma ironia ainda mais profunda, pois uma coisa é a “corte” (i.e., a corte do Rei) e outra
coisa é o “Parlement” (instituição mantida pelo Rei, mas que, em diversos momentos, por articulações de cunho políticonobiliárquico e pelas idiossincrasias da casuística judiciária, podia paradoxalmente fazer oposição ao poder real). Embora seu
papel de oposição ao poder real só seja plenamente sentido no século XVIII, os Parlements provincianos, assim como outras
instituições administrativas regionais (cours des aides, chambres de comptes etc.), são uma força de equilíbrio na dinâmica
de poder do Absolutismo francês: “Si nous tenons compte de leurs origines qui nous sont bien connues, de leurs pouvoirs
exactement délimités, calqués sur ceux des organes similaires qui existaient dans l’entourage du roi, il est clair qu’elles [as cortes
provincianas] ne possédaient aucun caractère représentatif, et qu’elles ne pouvaient exercer aucune action politique. Elles
n’auraient jamais inquiété le gouvernement central, si leur activité ne s’était pas parfois manifestée en faveur des autonomies
provinciales : elles répondaient en effet à ce désir, généralement répandu, d’une administration renfermée dans un cadre
régional étroit, et exercée par de magistrats originaires du pays [quer dizer, da região]” (Roger Doucet, Les institutions de la
France au XVIe siècle, Tome I, Picard, 1948, p. 211)
80
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
neutralidade – o que lhe será útil quando exercer o futuro papel de mediador entre
Henrique de Navarra e Paris73. Neste aspecto, ainda uma vez, a inscrição de 1571 pode
ser lida a partir do contexto bucólico clássico, pois a neutralidade do enquadramento
político, embora não seja nominalmente declarada nos subtextos, é também uma
das facetas explícitas do regime pastoral e, especialmente, da sua dinâmica utópica –
ainda que a faceta implícita (que é a crítica subliminar ao poder constituído, dimensão
valorizada pelos críticos atuais da pastoral) diga justamente o contrário. Tanto a IV
Écloga de Virgílio quanto as éclogas I e III, de Calpúrnio Sículo, localizam a Época de
Ouro após o advento de uma figura política real: Polião (neto de Otaviano) e Nero,
respectivamente – segundo uma leitura mais tradicional. Pois a estabilidade edênica
da pastoral depende de ações políticas diretas e concretas, de manutenção da ordem
e de apaziguamento militar e/ou diplomático do cenário externo e interno74. Restaria
saber que ordem existe na França (a agitadíssima França dos Guise e da Liga) em
157175. Ou se o texto aponta, nas crises preliminares que culminarão na Noite de São
Bartolomeu (23-24 de agosto de 1572), seja para uma ordem política e social que precisa
se reestabelecer de imediato para que a França não mergulhe no caos da guerra civil
(onde a inscrição alcançaria seu sentido edênico pleno76); seja para uma nova ordem
do indivíduo em relação às tensões crescentes e inevitáveis das Guerras de Religião (no
que a inscrição, escrita em 1571, representaria, de certa forma, uma profecia77). Neste
sentido, enquanto registro pastoral (funcionando numa dinâmica de forte crise de
identidade social, política e religiosa da França na segunda metade do século XVI, mas
também a da crise do indivíduo que remodela sua própria existência – no que não se
poderia desprezar, no caso de Montaigne, também uma dinâmica intelectual própria
ao ceticismo renascentista), a inscrição seria também um phármakon78.
73 “Até então [1586], esse católico confesso pôde atravessar sem maiores obstáculos as tempestades da guerra, considerado
pelos seus [católicos] como um fiel aliado do poder, pelos reformados como um tolerante exemplar, respeitoso em relação
a suas crenças, cujo irmão, irmã e muitos amigos haviam abraçado a Reforma. Seus textos sobre a guerra, que permeiam o
primeiro tomo dos Ensaios, mostram duas faces do mesmo homem: facilmente envolvido ( junto aos católicos) nas operações
longe de sua propriedade, do Poitou à Île-de-France, mas pacífico quando a batalha chega perto de seus horizontes familiares,
de sua casa e dos seus” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 249).
74 “É ele [o recém-entronizado imperador da época, i.e., Nero] que concede paz às minhas montanhas; é graças a ele que,
se me apraz cantar ou pisar, em ritmo ternário, a relva flexível, ninguém mo impede. Não só posso cantar dançando, como
também gravar os meus cantos na casca verde de uma árvore, sem que as estridentes trombetas de guerra abafem a minha
siringe” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, IV, vv. 128-136).
75 Sobre o contexto político envolvendo a Liga Católica, ver Jean-Marie Constant, La Ligue, Fayard, 1996. E também Pierre
Miquel, Les Guerres de Religion, Fayard, 1980.
76 “Guerras civis” e “reestabelecimento da ordem” são tópicas subliminares das Bucólicas clássicas, como vimos acima.
77 O anúncio de uma nova Civitas Dei, mas de caráter particular e privado – como convém, aliás, numa visão grosseira, aos
politicamente céticos.
78 Para alguns críticos (por exemplo, Susan Snyder, Pastoral Process: Spenser, Marvell, Milton, Stanford University Press, 1998), e
resumindo aqui seus argumentos de maneira simplista, a pastoral tem por pano de fundo a alienação. Snyder pensa a nostalgia
como o conceito chave da pastoral – sendo isso o que define, na prática, o que ela entende por alienação: “Nostalgics suffered
from anxiety, depression, disruption of eating and sleeping. They were likely to court death through active or passive means. In
a variety of ways they withdrew from present life, obsessed instead with private fantasies of the lost home” (Pastoral Process, p.
17). O sentido de nostalgia usado por ela, por sua vez, vem do médico suíço Johannes Hofer (Dissertatio medica de nostalgia,
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
81
Não discutirei aqui no detalhe o contexto profético-milenarista e o contexto
utópico, mas precisamos levar em conta que este último pode ser lido de maneira
implícita no texto da inscrição e podemos explorá-lo de maneira especulativa de modo
mais incisivo. Como vimos mais acima, na IV Écloga de Virgílio, o termo Virgo da
expressão “Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna [Já também retorna a virgem,
voltam os reinos de Saturno]” implica numa assunção do reino de Saturno, quer
dizer, o retorno a uma era de pujança e de plena potência. Os escoliastas virgilianos
interpretaram a expressão literalmente, como sendo uma referência à constelação da
Virgem, mas, como se entende hoje, ela poderia ser também Astréia (a versão romana da
Δίκη, deusa grega da Justiça)79. Entendida como deusa ou constelação, temos a palavra
latina virgo como marca contextual, elemento de anunciação dos novos tempos – no
que efetivamente é o caso do contexto evangélico (no sentido propriamente grego, o de
“boa nova”, do termo) da inscrição de 1571. Por esse motivo, o virginum (da inscrição) é
tão evidentemente implicado na síntese de um momento edênico para Montaigne que
sua associação imediata ao virgo (signo da Época de Ouro) da IV Écloga torna a relação
etimológica entre esses dois termos uma obviedade quase absoluta.
Entretanto, tal como na perspectiva do bucolismo clássico, os novos bons tempos,
a nova era de Saturno, implicam sempre numa melancolia de fundo: a que reconhece
sua própria finitude como inexorável80. A pujança e o bem-estar, signos maiores da
Arcádia, se posicionados no âmbito dessa perspectiva cíclica ou circular do tempo
cósmico, terão certamente um fim – o que permite reconhecer sua abordagem temporal
na linhagem também clássica do tema do Eterno Retorno81. Na inscrição de 1571, o reino
oder Heimwehe, Basel, 1688, translated by Carolyn Kiser Anspach in The Bulletin of the Institute of the History of Medicine Vol.
2-6, 1934, pp. 379-91) sendo a caracterização clínica do Heimweh (ou mais particularmente do Schweizerheimweh, quer dizer,
a “saudade” de casa dos mercenários suíços de Luís XIV) o expediente, em Hofer, do que seriam essas “fantasies of the lost
home”. Além disso, Snyder divide a nostalgia/alienação pastoral em dois vetores – uma pastoral “árcade” (nostalgia centrada
na dimensão espacial) de uma pastoral “edênica” (nostalgia centrada na dimensão temporal). Logo, utilizando-se as categorias
de Snyder, poderíamos afirmar que, na inscrição de 1571, desilusões de todas as ordens (políticas, religiosas, filosóficas) nos
fazem localizar no texto o princípio nostálgico de “evasão do real” – um dispositivo inerente à esfera bucólica tradicional.
Sendo esse “real” aqui entendido na discussão essencialmente rustique do menosprecio da corte, quer dizer, se reportando
indissoluvelmente à ontologia do mundo cortesão, teríamos na inscrição de 1571 tanto o aspecto mais particularmente
temporal (quer dizer, o in illo tempore da Idade do Ouro: “doutas virgens”, “refúgio ancestral”) quanto o aspecto espacial
(“corte” ou “corte do Parlamento”). Logo, a inscrição poderá ser lida, na nomenclatura de Snyder, como um exemplo de
pastoral plena, ao mesmo tempo árcade e edênica. Este tipo de leitura, por sua vez, permite pensar uma resultante terapêutica
à pastoral – uma vez que tal evasão do real equivaleria a uma catarse. Os dispositivos rustiques têm, certamente, esse efeito – e
a inscrição de 1571 acompanha, de certo modo, essa conformação catártica geral.
79 João Pedro Mendes, Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio, p. 224, n. 7; Jérôme Carcopino, Virgile et le mystère de la
IVe Éclogue. Paris, L’Artisan du Livre, 1943².
80 Não podemos esquecer aqui a associação de Saturno com a melancolia – ainda que esta relação direta não seja encontrada
nos textos fundadores da etiologia atrabilar, mas uma formulação muito posterior, já árabe-medieval – porque as teorias
renascentistas do gênio, que Montaigne segue de perto, reconhecem-na como uma de suas coordenadas mais elementares.
Para a melancolia e Saturno, ver Rudolf & Margot Wittkower, Les enfants de Saturne, Macula, 1991; Erwin Panofsky, Fritz Saxl
& Raymond Klibansky, Saturne et la mélancolie, (1923-69²), Gallimard, 1989; para a melancolia e o gênio, ver Noel L. Brann,
The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance, Brill, 2002; e também Michael Screech, Montaigne et la
mélancolie (1984), PUF, 1992.
81 Mircea Eliade, Le mythe de l’éternel retour (1969), Gallimard, 1991.
82
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
das doutas virgens/musas, no contexto da Biblioteca (o latebras/latebrosus locus),
existirá, portanto, somente até a morte daquele que ordenou seu registro na parede do
quarto contíguo (e, posteriormente, porá inscrições na própria Biblioteca, nas traves
que flutuam acima dela): graffiti e garatujas que projetam sua sombra melancólica a
partir dos “dos tempos que [a Michel de Montaigne] restam para viver”. A inscrição
de 1571 é, portanto, como lembrei mais acima, também uma mensagem apocalíptica,
uma prece para o fim dos tempos. Apesar do contexto edênico do momento presente
(doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium securus (quan)tillum...), das
forças revigoradas que apontam para uma nova era, ela é subitamente transfigurada
em um memento mori ou uma vanité a partir da imagem diferida da morte e do fim (...
in tandem superabit decursi multa jam plus parte spatii)82. O que, mais uma vez, ajuda
a inflar o domínio semântico da inscrição até atingir as descrições pré-modernas da
melancolia (que tem na vanitas, pictorialmente, um elemento chave)83.
Por outro lado, se a inscrição de 1571 pressupõe, nessa dedução melancólica
indireta, a finitude e a morte, no sentido inverso, ao pé da letra, ela se refere à vida, embora
unicamente à vida daquele que mandou gravá-la na parede. E, de fato, o locus amoenus
do responsável pela inscrição foi preparado e pensado exclusivamente para si mesmo:
representa o fim de um ciclo (ancestral, amical, profissional), do qual seu autor se toma
por herdeiro direto e privilegiado; e também o início de um novo, embora este que se
82 Uma vanité é uma derivação do gênero pictórico natureza-morta, com forte acento alegórico em torno da noção de
finitude da vida: é a estetização pictural do memento mori. O termo (de uso corrente no mercado das artes francês por volta
de 1652) foi transportado da Pintura para as Letras já no século XVII. “Le critère d’une vanité en littérature, le premier et le plus
évident, repose sur cette articulation textuelle entre une matière austère et pessimiste traditionnellement identifiée autour
du memento mori et de la vanité de toutes choses face au temps qui passe (savoir, gloire, richesses, beauté) et la volonté de
donner à voir une représentation artistique au sens large en termes de beauté et d’effets” (Thierry Brunel, “«Vanités textuelles»,
«Vanités littéraires», validité du concept et critères de reconnaissance dans la littératures du XVIIe siècle?” in Études Épistémè,
22, 2012). A vanité literária será, claro, uma especialidade do Barroco. A expressão vanitas/vanité, por sua vez, vem do texto
hebraico do Qoheleth (Eclesiastes), quer dizer, o “pregador das assembleias”, que a tradição cristã latina assimilou através
da Vulgata: “(…) vanitas vanitatum omnia vanitas [vaidade de vaidades, é tudo vaidade]” (Ecl., 1:2). Sabe-se que onze, das
dezesseis sentenças veterotestamentárias das traves, são citações do Eclesiastes: “En tout, entre les sentences et les Essais,
Montaigne cumule une cinquantaine d’emprunts bibliques distincts, dont quatorze, proportion considérable – entre le quart
et le tiers –, en provenance de L’Ecclésiaste. Aucun autre livre de la Bible n’a de loin la même importance pour l’auteur des
Essais” (Jean-Charles Darmon, Littérature et vanité, PUF, 2011, pp. 10-11). Ver Alain Tapié (ed.), Les Vanités dans la peinture au
XVIIe siècle [catalogue de l’exposition du Musée des Beaux-Arts de Caen], Albin Michel, 1990; M. Moutahar, Les Vanités, Ed.
Traversière, 1994; Karine Lanini, Dire la vanité à l’âge classique. Paradoxes d’un discours, Honoré Champion, 2006. Para o gênero
natureza-morta, ver Norbert Schneider, Naturezas Mortas (or. alemão Stillleben, 1999), Taschen, 1999; Claus Grimm, Natures
mortes (2 Vols.), Herscher, 1996.
83 “Le système de représentation du XVIe et du XVIIe siècle établit une étroite parenté entre la mélancolie, la mort et la
conscience de la vanité. La bile noire, qui présente les deux qualités contraires à la vie (froideur et sécheresse), est l’humeur de
la mort. (...) La mélancolie est aussi associée au passage du temps et au sentiment de la vanité. Saturne est Chronos, le Temps
qui ‘dévore ses œuvres’ et qui met en évidence la fugacité de toute chose. (...) L’iconographie met en évidence la parenté
étroite de la mélancolie et du savoir de la vanité. La Melancholia I de Dürer représente en arrière-plan un sablier, symbole
du passage du temps qui obsède le mélancolique et, de manière générale, la mélancolie est souvent associée à des objets
exprimant l’inanité des choses matérielles (des sabliers, des souches d’arbres, des colonnes brisées ou de crânes)” (Christine
Orobitg, Garcilaso et la mélancolie, Presses Universitaires du Mirail, 1997, pp. 159-160). Para a articulação pictural da vanitas
com a Melancolia, ver Jean Clair, Mélancolie. Génie et folie en Occident, Gallimard, 2005.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
83
abre seja totalmente autorreferente. Não há sombra de parentes, consortes, qualquer
sinal de que tudo aquilo que está descrito e pressuposto na inscrição (o atestado desse
novo ciclo) possa estar sendo oferecido também para sua esposa, sua linhagem, seus
filhos, netos, bisnetos ou amigos. Operação sumamente diferente da que preparou
seu bisavô, legando aos Eyquem-Montaigne (o próprio Michel o reconhece usando
a expressão avitasque) o latebras que é agora sua propriedade exclusiva84. E muito
diferente do gesto de Etienne de La Boétie, ao doar em testamento os livros que Michel
instalou no aposento contíguo e serão, doravante, seus companheiros durante os vinte
anos de composição dos Ensaios85. A inscrição de 1571 é, portanto, para usar a expressão
do topos pictural que surgirá algumas décadas depois86, o Et in Arcadia ego de Michel
de Montaigne: o início de um projeto intelectual individual (e individualista) de toda
uma vida sob o signo paradoxalmente melancólico, vaidoso, tumular e exequial (em
outras palavras, pastoral, na roupagem moderna de Sannazaro) do seu próprio fim.
Vemos, pois, que uma dinâmica pastoral pode se estabelecer a partir de um amplo
espectro de questões heterogêneas (e não apenas da retomada do tema campestre em
si). O exemplo da inscrição de 1571 mostra como essa dinâmica, funcionando já no
contexto da vie rustique, poderia ter afetado um intelectual nobre vivendo o fim do
“beau XVIe siècle”. Por extensão, e ao menos a título de exercício, a lógica paysan tornaria
possível uma abordagem também pastoral de diversos capítulos dos Ensaios – o que,
no final das contas, permitiria uma releitura do seu contexto geral, ressignificando
alguns extratos, ampliando ou redimensionando seu campo teórico e, sobretudo, seu
significado literário.
84 Como se sabe, o bisavô de Michel, Ramon Eyquem, comprou a propriedade de Montaigne (castelo e título nobiliárquico)
em 1477. Tratava-se, então, de uma senhoria pertencente a outro comerciante da região, Guillaume Duboys, que por sua
vez havia adquirido as terras da nobreza arruinada pela Guerra dos Cem Anos. Ligadas a um título nobiliárquico, as terras de
Montaigne são um investimento em longo prazo, oferecido à sua descendência – sobretudo porque Ramon, que contava já
com 75 anos, não deveria mesmo imaginar que sobreviveria tempo suficiente para tornar-se um aristocrata. De fato, morreu
cerca de um ano depois, em 1478.
85 Legros, Essai sur poutres, p. 248.
86 Por conta dos quadros de Guercino (1622) e sobretudo de Poussin (1638). Ver Erwin Panofsky, “Et in Arcadia Ego”, p. 387
e ss.
84
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Resumo
Pouco estudada entre nós, a inscrição de 1571
– o texto escrito por Montaigne para decretar
sua aposentadoria parlamentar e ao mesmo
tempo dar início à sua carreira intelectual –
permanece como um signo estruturante não
apenas da sua biografia como também da escritura dos Ensaios. Neste artigo, faço algumas considerações que permitem entendê-la
numa dinâmica ampla, deitando raízes na
literatura bucólico-pastoral clássica e apontando para formas de leitura centrífugas, de
modo a recontextualizá-la num dispositivo
narrativo multifacetado.
Sobre o autor
Rafael Marcelo Viegas é pós-doutorando na área de Letras na Universidade Federal
do Rio de Janeiro
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
85