caderno de resumos

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caderno de resumos
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Agradecimentos
Agradecemos o apoio da secretaria em todas as etapas do Encontro, especialmente de Geni Ferreira Lima,
Luciana Nóbrega, Marie Marcia Pedroso, Ruben Dario, Susan Thiery e Edson Yamazaki.
Aos pós-doutorandos e professores pela coordenação das mesas.
Ao Departamento de Filosofia pelo apoio institucional.
Comissão Organizadora:
Bruno Rosa
Dioclézio Faustino
Gustavo Dalaqua
Jefferson Viel
Julia Marchevsky
Lucas Machado
Lucila Lang
Lourenço Fernandes
Ravena Olinda
Sacha Kontic
Obra da Capa: Mira Schendel, Sem título, da série Objetos Gráficos, 1973.
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Sumário – Programação
Apresentação do Encontro .......................................................................................................................................4
Programação Geral de 3 a 5 de novembro ...............................................................................................................6
Terça-Feira, 3 de Novembro .....................................................................................................................................7
Quarta-Feira, 4 de Novembro: ...............................................................................................................................11
Quinta-Feira, 5 de Novembro: ................................................................................................................................14
Resumos expandidos organizados em ordem alfabética por nome dos autores ..................................................17
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Apresentação do Encontro
O que significa pensar a filosofia hoje? E no que os tempos atuais se deixam pensar pela
filosofia? Parece-nos que essas duas perguntas intimamente ligadas – pensar a filosofia hoje e pensar o “hoje”
pela filosofia – servem para colocarmos uma questão mais geral e fundamental: seja qual for o momento
histórico de seu surgimento, qual é a relação da filosofia com a sua atualidade?
Aqui, é importante lembrar que essa questão foi sempre um dos motores que propulsionou a
filosofia, quer internamente, quer externamente. Desde a peça de Aristófanes até os velhos contos sobre o
Grande Sábio que, mergulhado em sua sabedoria, acaba por afundar em um poço, a questão sobre que relação
a filosofia teria com o presente, com o seu momento histórico, com a sociedade em que ela surge apresentouse como um problema central para pensar o sentido e o significado do fazer e do pensar filosóficos. Vale notar
que a importância dessa questão não se impõe apenas por críticas exteriores à filosofia, como as de Aristófanes
a Sócrates, visto que, para o próprio Sócrates, sua filosofia era um meio de servir à sua cidade e às suas leis; a
filosofia, muito antes de dever se ocupar com especulações inócuas sobre as nuvens, deveria se ocupar com as
questões que dizem respeito à vida e existência humanas, questões que digam respeito, ainda que
indiretamente, ao ser humano e à sua vida como indivíduo e em sociedade.
A questão da relação da filosofia com a sua atualidade, portanto, mostra-se central para a
discussão do papel, da finalidade e da legitimidade do pensar e do fazer filosóficos. Não por outro motivo, a
vemos ressurgindo a cada momento na história da filosofia e, em particular, em nosso tempo. Com o avanço
sem precedentes das ciências, com a pretensa derrocada da metafísica e com a aparente perda cada vez maior
do domínio de questões que antes pertenciam exclusivamente à filosofia, há quem hoje se pergunte: teria a
filosofia ainda algum papel a desempenhar? Poderia ela relacionar-se de algum modo significativo com a sua
contemporaneidade, trazendo alguma contribuição importante para se pensar e compreender o nosso tempo?
Ou teria sido ela renegada a um mero entretenimento de eruditos, a um estudo autofágico de sua história que
giraria no vazio?
Seja como for, parece-nos que, mais do que nunca, é fundamental trazer à tona a reflexão
acerca da atualidade da filosofia, reflexão central para compreender a filosofia no fazer e no pensar que lhe são
próprios. Será mesmo que os tempos de hoje não se deixam pensar pela filosofia? Ou será que, tanto quanto
antes, com figuras como Kant, Hegel ou Foucault, a filosofia ainda tem um papel fundamental em pensar o seu
tempo e em fornecer um “diagnóstico do presente”? Haveria ainda questões que não podem ser simplesmente
respondidas e resolvidas definitivamente pelo avanço das ciências, questões para a resposta das quais a
filosofia ainda teria um papel fundamental e único a desempenhar? E, onde o fazer filosófico é marcado pelo
seu diálogo constante com a história da filosofia, isso implicaria que a atividade filosófica reduziu-se a uma
autofagia inconsequente e desvinculada do presente, a uma distração erudita sem nenhum papel maior? Ou a
filosofia, ao dialogar com os autores de sua história e assim possibilitar uma atualização dos conceitos, ideias e
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sistemas desenvolvidos por eles, renova a si mesma e permite que a potência das ideias produzidas em sua
história ganhe força e peso para se pensar a atualidade?
Essas são as questões centrais que subjazem ao tema desta edição de nosso encontro:
“Diálogos em torno da atualidade da filosofia”. Esperamos, por meio delas, estimular um diálogo sobre a
atualidade da filosofia a partir de diferentes perspectivas que permitam renovar a reflexão, a nosso ver sempre
necessária, sobre o sentido e a relevância do fazer e do pensar filosóficos.
A comissão.
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Programação Geral de 3 a 5 de novembro
Terça-feira
10h30 –
12h30
Mesas
Quarta-feira
Mesas
Quinta-feira
Mesas
Almoço
14h –
18h30
Mesas
Mesa redonda:
“As mulheres e a
filosofia” –
Monique Hulshof
(UFABC) e
Djamila Ribeiro
(UNIFESP)
Mesas
Intervalo
16h30 –
18h30
Mesas
Mesas
Mesa Redonda: “A
atualidade da
filosofia” – Ricardo
Terra (USP)
Jantar
19h30 21h30
Palestra: “Para
que serve a
filosofia?” Homero
Santiago (USP)
Mesa redonda:
“Filosofia e
Política Hoje” –
Edson Telles
(UNIFESP) e
Silvana Ramos
(USP)
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Horários das Mesas
Terça-Feira, 3 de Novembro
Das 10h30 às 12h30
Mesa 1: Filosofia Brasileira (Sala 8)
A PROPOSTA DE UMA FILOSOFIA ALÉM DA LINGUAGEM PARA UM FILOSOFAR BRASILEIRO DESCOLONIZADO
Amanda Veloso Garcia (UNESP)
JOVENS CIDADÃOS: CONSTRUINDO UMA REFLEXÃO CRÍTICA A PARTIR DO LÚDICO NA FILOSOFIA
Selma de Sá Barros (USP)
FILOSOFIA COMO DIAGNÓSTICO DO PRESENTE? SOBRE A PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DE PENSAMENTO
FILOSÓFICO NO BRASIL
Suze Piza (UFABC)
Coordenação: Valter José Maria Filho (USP)
Mesa 2: Estética (Sala 14)
A CENA DE UM MUNDO TRAGICÔMICO EM CHRISTOPH MENKE
Artur Sartori Kon (USP)
CINEMA E FILOSOFIA: A DIMENSÃO DO DISCURSO
Lucila Lang Patriani de Carvalho (USP)
DA FILOSOFIA COMO MEDIADORA PARA A (IM)POSSÍVEL INTERLOCUÇÃO ENTRE A PSICANÁLISE E A ARTE
Mariana Rodrigues Festucci Ferreira (PUC-SP)
JUDITH SCOTT, SEM DÚVIDA. UMA PERSPECTIVA SOBRE A PRODUÇÃO OUTSIDER NA CONTEMPORANEIDADE
Solange de Oliveira (USP)
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AUTONOMIA DA ARTE E NOVAS POSSIBILIDADES DO DISCURSO FILOSÓFICO
Wesley de Faria Leonel (UFOP)
Coordenação: Maria Edivânia Vicente dos Santos (USP)
Das 14h às 16h
Mesa 3: Metodologia (Sala 8)
A CONVERSAÇÃO COMO EXERCÍCIO FILOSÓFICO: SOBRE A ARTE DE CONFERENCIAR NO ENSAIOS DE
MONTAIGNE
Alan Barbosa Buchard (UFF)
ABELARDO E A LEITURA DE TEXTOS FILOSÓFICOS COMO MÉTODO
André Botelho Scholz (USP)
A “RACIONALIDADE SOFT” NA EPISTEMOLOGIA DA CONTROVÉRSIA DE MARCELO DASCAL
José Augusto Cereijido Altran (PUC-SP)
POR QUE FILÓSOFO? OU SOBRE A CONTINUIDADE DA FILOSOFIA ENQUANTO ATIVIDADE
Lucas Nascimento Machado (USP)
Coordenação: Ricardo Fabbrini (USP)
Mesa 4: Neurociência (Sala 14)
LA METTRIE E A ORGANIZAÇÃO DA MATÉRIA NO L’HOMME MACHINE
Marcelo Luchini (USP)
A ATUALIDADE DA FILOSOFIA EM TEMPOS DE NEUROCIÊNCIA
Rogério de Souza Teza (USP)
IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DA NEGAÇÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO: ESPINOSA CONTEMPORÂNEO?
Victor Fiori Augusto (USP)
Coordenação: Bia Sorrentino (USP)
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Mesa 5: Estudos Culturais (Sala 100)
DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA À CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA
Arthur Augusto Catraio (Paris I)
A DIALÉTICA ATRAVANCADA: AINDA SOBRE HEGEL E AS MULHERES
Bruno Rosa (USP)
O SABER MÉDICO, A CIÊNCIA E O CONTROLE DOS CORPOS FEMININOS
Clara Guimarães Santiago (UFABC)
ALGUNS ASPECTOS DA RECIPROCIDADE EM O SEGUNDO SEXO DE SIMONE DE BEAUVOIR
Juliana Oliva (UNIFESP)
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA, TEORIA CRÍTICA E GÊNERO
Laiz Fraga Dantas (UFBA)
Coordenação: Bia Machado (USP)
Das 16h30 às 18h30
Mesa 6: Capitalismo e Ética (Sala 8)
A ECONOMIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA SOB À PERSPECTIVA DA FILOSOFIA
Everaldo Leite da Silva (UFG)
FINALIDADE NA ACUMULAÇÃO DE RIQUEZAS – UMA ANÁLISE DO ARTIGO POSSIBILIDADES ECONÔMICAS DE
NOSSOS NETOS DE JOHN MAYNARD KEYNES
Julia Fleider Marchevsky (USP)
A ARTICULAÇÃO ENTRE JUSTIÇA E RESPONSABILIDADE FACE AO PROBLEMA ÉTICO DA POBREZA GLOBAL: UMA
ANÁLISE CRÍTICA DAS CONTRIBUIÇÕES DE THOMAS POGGE E IRIS MARION YOUNG
Pedro Clemente Bessa Prado Lippmann (ENS – Paris)
A TEORIA ECONÔMICA MARGINALISTA: PROLEGÔMENOS DE UMA EPISTEME POR VIR
Pedro Ivan de Moreira Sampaio (USP)
Coordenação: Alexandre Amaral Rodrigues (USP)
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Mesa 7: Ética e Responsabilidade (Sala 14)
A PROPUESTA PEDAGÓGICO-FILOSÓFICA DE HEGEL. A PROPÓSITO DE SU CONCEPTO DE FORMACIÓN
(BILDUNG)
Andrés Felipe Hurtado Blandon (Universidad de Antioquia, Colombia)
POSSIBILIDADES ALTERNATIVAS E RESPONSABILIDADE MORAL: APROXIMAÇÕES ENTRE CRISIPO E HARRY
FRANKFURT
Camila Pilotto Figueiredo (UFPEL)
HABERMAS E A PERTINÊNCIA DO PROBLEMA DA ESFERA PÚBLICA
Dean Fábio Gomes Veiga (Unespar)
HANS JONAS E AS RELAÇÕES ENTRES OS INDIVÍDUOS NA CONTEMPORANEIDADE: A BUSCA POR UM NOVO
CONCEITO DE COMUNIDADE
João Batista Farias Junior (UFPI)
Coordenação: Maria Edivânia Vicente dos Santos (USP)
Mesa 8: Atualização da História da Filosofia (Sala 100)
A PENA QUE O TRIBUNAL PEDE PARA O RÉU É… O RISO: SÓCRATES E O BEM (REPÚBLICA VI 506D-E)
André Luiz Braga da Silva (USP)
HEGEL E SANTO AGOSTINHO, POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO POR UMA NOVA HISTÓRIA DA
SUBJETIVIDADE
Daniel Fujisaka (USP)
AS CONCEPÇÕES DE FILOSOFIA MEDIEVAL DE ÉTIENNE GILSON E ALAIN DE LIBERA
Gustavo Paiva (USP)
KANT E A <REFLEXÃO> COMO MECANISMO TRANSCENDENTAL DA FACULDADE DE JULGAR INTERPRETAR A
“HISTÓRIA DA FILOSOFIA”
Rodrigo Andia Araújo (USP)
Coordenação: Homero Santiago (USP)
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Quarta-Feira, 4 de Novembro:
Das 10h30 às 12h30
Mesa 9: Filosofia da Religião (Sala 8)
A ESPIRITUALIDADE ATEÍSTA DE ANDRÉ COMTE-SPONVILLE
Anna Paula Marques Haddad Basso (PUC-SP)
A TEOLOGIA NATURAL DO SÉCULO XIX E O CRIACIONISMO CIENTÍFICO NO MEIO ACADÊMICO
CONTEMPORÂNEO: UMA DISCUSSÃO SOBRE O PODER PASTORAL
Luciana Valéria Nogueira (USP)
DO REDUCIONISMO DOGMÁTICO AO CETICISMO METODOLÓGICO: ALGO SOBRE A NECESSÁRIA POSTURA
ANTI-DOGMATIZANTE NA CONTEMPORANEIDADE
Thiago Rodrigues (UNIFESP)
Coordenação: Sertório de Amorim Silva Neto (UFU)
Mesa 10: Filosofia da História (Sala 14)
A MEMÓRIA EM TEMPOS DE CRISE
Cátia Cristina B. de Almeida (USP)
AS FORMAS DE AUTOCOMPREENSÃO HISTÓRICA EM NOSSO TEMPO E A FILOSOFIA DO ZEITGEIST NO PERÍODO
ENTREGUERRAS
Cleber Ranieri Ribas de Almeida (USP)
POR UMA HISTÓRIA MENOR: MARXISMO E PSICANÁLISE NA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE HISTÓRIA DE
DELEUZE E GUATTARI
Larissa Drigo Agostinho (USP)
AS HISTÓRIAS E O TEMPO NA CONCEPÇÃO VOLTAIRIANA DE HISTÓRIA
Priscila Aragão Zaninetti (UFSCar)
Coordenação: Luís César Oliva (USP)
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Mesa 11: Estado e Poder (Sala 101)
HANNAH ARENDT: COMPREENDER PARA SE RECONCILIAR COM O MUNDO
Elivanda de Oliveira Silva (UFMG)
É POSSÍVEL PENSAR RAZÃO DE ESTADO HOJE?
Eugênio Mattioli Gonçalves (USP)
ESPINOSA E O CORPO COMUM DA MULTIDÃO
Fernando Bonadia de Oliveira (USP)
A FILOSOFIA DIAGNOSTICANDO MODOS DE AGIR DO CONTEMPORÂNEO
Silvia Maria Brandão Queiroz (UNIFESP)
Coordenação: Carlos Enrique Ruiz Ferreira (USP)
Das 16h30 às 18h30
Mesa 12: Perspectivas (Sala 14)
OS LIMITES DO RELATIVISMO CULTURAL FRENTE À VIDA HUMANA
Lili Pontinta Cá (UFSCar)
GEOMETRIA PROJETIVA; ÓPTICA; TRANSFORMAÇÃO MÍTICA
Raquel de Azevedo (PUC-RJ)
JANELA ABERTA: PERSPECTIVA E VISÃO NA TECNOLOGIA DAS TELAS NO SÉC. XXI
Ricardo Zanchetta (USP)
Coordenação: Daniel Santos (USP)
Mesa 13: Diagnóstico do Presente (Sala 101)
DA HISTÓRIA SEM SENTIDO AO ESTÉTICO SENTIDO DO PRESENTE: FILOSOFIA COMO DIAGNOSE DE SI E DE SEU
TEMPO
Fran de Oliveira Alavina (USP)
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UMA HERMENÊUTICA DE FOUCAULT: FORMAS DE PROBLEMATIZAÇÃO, FOCOS DE EXPERIÊNCIA E MODOS DE
TRANSFORMAÇÃO DE SI
Jefferson Martins Cassiano (UnB)
ANTONIO NEGRI E O NOVO LÉXICO DO POLÍTICO
Jefferson Martins Viel (USP)
FILOSOFIA DO SÉCULO XX: POLÍTICA E FELICIDADE A PARTIR DA HIBRIDRAÇÃO ENTRE UTOPIA E HISTÓRIA NO
PENSAMENTO DE REMO BODEI
Miguel Ivân Mendonça Carneiro (UnB)
Coordenação: Gisele Amaral (USP)
Mesa 14: Filosofia e Liberdade (Sala 1041)
MODERNIDADE E LIBERDADE – REFLEXÕES SOBRE A CRÍTICA DE HEGEL AO IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE
KANT
Bianca Rocha Machado (UnB)
SOBRE A RELAÇÃO DA FILOSOFIA COM O PRESENTE EM J. S. MILL
Gustavo Hessmann Dalaqua (USP)
A IMPORTÂNCIA DE MAQUIAVEL PARA PENSAR OS CONFLITOS POLÍTICOS E A LIBERDADE REPUBLICANA
João Aparecido Gonçalves Pereira (UFG)
Coordenação: Saulo H. S. Silva (USP)
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Quinta-Feira, 5 de Novembro:
Das 10h30 às 12h30
Mesa 15: Filosofia e Saúde Pública (Sala 14)
NIETZSCHE E O ALZHEIMER
Fábio Takao Masuda (USP)
O MAL DO SÉCULO: COMO PENSAR A DEPRESSÃO (MELANCOLIA) A PARTIR DE ESPINOSA
Paula Bettani Mendes de Jesus (USP)
EUTANÁSIA, ABORTO E SUICÍDIO PELAS LENTES DE ESPINOSA
Ravena Olinda (USP)
Coordenação: Thomaz Kawauche (USP)
Mesa 16: Filosofia Crítica (Sala 8)
A FILOSOFIA EM TEMPOS DE CRISE: ENTRE O COLAPSO DO CAPITAL E A INSUFICIÊNCIA CRÍTICA
Douglas Rodrigues Barros (UNIFESP)
AUTOCRÍTICA DO CONCEITO E DIALÉTICA NEGATIVA: SOBRE A ATUALIDADE DA FILOSOFIA EM THEODOR W.
ADORNO (TEXTO COMPLETO)
Gabriel Petrechen Kugnharski (USP)
A ATUALIDADE DA FILOSOFIA E A FILOSOFIA COMO ATUALIZAÇÃO: MEDIAÇÃO E IMEDIATIDADE NA
CONSTITUIÇÃO DA EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA DA DIALÉTICA NEGATIVA
Mariana Fidelis Jerônimo de Oliveira (UFMG)
A ATUALIDADE DA UTOPIA NO HORIZONTE ESTÉTICO DE ERNST BLOCH E THEODOR W. ADORNO
Ubiratane de Morais Rodrigues (USP)
Coordenação: Nathalie Bressiani (CEBRAP)
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Mesa 17: Epistemologia (Sala 100)
A ATUALIDADE DO CONCEITO DE NÚMENO NA EPISTEMOLOGIA DE GASTON BACHELARD
David Velanes de Araújo (UFBA)
BOLTZMANN E A ESTRUTURA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO: A INEVITABILIDADE DO MODELO NA INTERFACE
ENTRE TEORIA E EXPERIMENTAÇÃO
Denis Paulo Goldfarb (USP)
GILBERT SIMONDON: O TRANSINDIVIDUAL PERANTE OS IMPASSES CONTEMPORÂNEOS
Diego Soares Viana de Oliveira (USP)
Coordenação: Robinson Guitarrari (USP)
Das 14h às 16h
Mesa 18: Publicidade e Opinião Pública (Sala 8)
AS FANTASMAGORIAS DE NOSSO TEMPO, OU A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN
Fernando Araújo del Lama (USP)
A LINGUAGEM DA INDÚSTRIA CULTURAL E AS TOCHAS DA LIBERDADE
Raphael Eduardo Alves Concli (UNICAMP)
A AUTONOMIA DO PENSAR NA ATUALIDADE SOB A PERSPECTIVA DA AUFKLÄRUNG KANTIANA
Wagner Barbosa de Barros (UFSCar)
JEAN-JACQUES ROUSSEAU A PROPÓSITO DA MANIPULAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA
Wilame Gomes de Abreu (UFG)
Coordenação: Thomaz Kawauche (USP)
Mesa 19: Atualidade de Foucault (Sala 14)
AS LUTAS DA ATUALIDADE DE MICHEL FOUCAULT E A NOÇÃO DE CONTRACONDUTA
Mario Antunes Marino (USP)
A FILOSOFIA COMO DIAGNÓSTICO DO PRESENTE EM FOUCAULT
Renato Alves Aleikseivz (UFPR)
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FOUCAULT E A INVENÇÃO DE SI: UMA EXISTÊNCIA ESTÉTICA COMO ATITUDE DE LIBERDADE
Ramon Taniguchi Piretti Brandão (UNIFESP)
RESSONÂNCIAS CONTEMPORÂNEAS DO CUIDADO DE SI A PARTIR DA OBRA DE MICHEL FOUCAULT: DA VIDA
COMO OBRA DE ARTE AO CORPO FETICHIZADO
Raquel Rodrigues Rocha (UFRJ)
Coordenação: Gisele Amaral (USP)
Mesa 20: Metafísica e o devir do Homem (Sala 100)
UMA LEITURA SOBRE O PÓS-HUMANISMO E O ACABAMENTO DA METAFÍSICA EM HEIDEGGER
Adrielle Costa Gomes de Jesus (UFBA)
COMO PENSAR O “HOJE” À LUZ DA HERMENÊUTICA HEIDEGGERIANA DA FACTICIDADE
Ana Carla de Abreu Siqueira (UFC)
GÊNESE DA FILOSOFIA E ENSINO UNIVERSITÁRIO EM SCHOPENHAUER
Carlos Alberto Leite de Moura (FSB-SP)
LA BOÉTIE E SEU TEMPO
Flávio Campos de Lima (PUC-SP)
Coordenação: Daniel Santos (USP)
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Resumos expandidos organizados em ordem alfabética por nome dos autores
Nome: Adrielle Costa Gomes de Jesus
Instituição: UFBA
Orientadora: Acylene Ferreira
Título: Uma leitura sobre o pós-humanismo e o acabamento da metafísica em Heidegger
A crise da metafísica, e consequentemente a crise do humanismo, passou a ser um tema veemente na filosofia.
Ela expressa a derrocada das categorias tradicionais que pretendiam determinar um fundamento para o
homem. Essa crise adveio do confrontamento do sujeito para com seus próprios limites, do reconhecimento de
sua própria finitude, e com ela surge a exigência de reformulações de teorias absolutistas e essencialistas para
descrever o mundo e a condição humana. Em tais reformulações fora reivindicado o abandono da metafísica visto que os seus sistemas não davam mais conta de descrever a totalidade do real - e a superação do
humanismo em vista de um pós-humanismo, que, por vezes, ensaia o aperfeiçoamento do homem por meio da
técnica (e da tecnologia), e que culmina no desenvolvimento da engenharia genética, a qual propõe uma
superação das limitações da espécie humana.
O modo como Heidegger pensa a crise da metafísica e do humanismo não se pauta por uma correção de
sistemas filosóficos e nem por um aperfeiçoamento do homem. Mas por uma recondução do homem a sua
essência. Ao tentar mostrar que ele está sempre a caminho de uma consumação, e por isso as mudanças de
seu modo de ser não estão limitadas a um aperfeiçoamento técnico ou a uma correção de sistemas
ultrapassados, mas é historial. Com essa recondução, Heidegger pretende indicar um fenômeno histórico que
nos condiciona, chamado esquecimento do ser. Através do qual nos tornamos inclinados a tomar um único
período como nossa medida fundamental, desde os primórdios de nossa civilização ocidental até a era da
técnica, que define a nossa essência atual. Segundo Heidegger, é porque o homem padece de um
esquecimento que ele se submete a uma vontade de poder, enquanto princípio metafísico da era da técnica. E
por isso, o mundo e o homem passam a ser desvelados como entes disponíveis para a exploração e o consumo.
A tomada de uma única medida para definir um período e a própria essência do homem conduz a subsunção
do caráter de abertura para possibilidades de ser. É a partir do reconhecimento do esquecimento e de suas
possibilidades de ser que o homem poderia ser reconduzido ao seu elemento, àquilo que lhe é próprio
enquanto homem.
A partir de tais reflexões de Heidegger sobre a metafísica e o humanismo pretendemos sondar a possibilidade
de lê-lo a partir do modo como ele pôde reverberar no pensamento contemporâneo. Almejamos, então,
pensar a seguinte questão: podemos situá-lo no fenômeno do acabamento da metafísica (assim como ele fez
com Nietzsche)? Em caso afirmativo quais seriam as implicações dessa interpretação?
Uma das possibilidades é conceber que Heidegger teria contribuído para um distanciamento e um
enfraquecimento ainda maior do fenômeno da abertura do ser, chamado por ele de o “esquecimento do
esquecimento”. E que sua crítica sobre o humanismo não supera, mas o exacerba ao tentar reconduzir o
homem às suas possibilidades elevadas.
Estas interpretações são expressas em argumentos de dois críticos que ousaram interpretar as ressonâncias de
Heidegger no contexto atual. A saber, Vattimo e Sloterdijk. Segundo a interpretação de Sloterdijk, Heidegger,
ao criticar o conceito de homem como um animal racional, exclui deste o caráter de animalidade e o define
como um ente quase divino, por ser o único capaz de corresponder ao apelo do ser. E assim, o seu pós17
humanismo, ao invés de superar o humanismo tradicional, o leva até as últimas consequências; ao defender
que o homem não é um simples sujeito dotado de racionalidade, um animal racional, mas o pastor do ser. Para
Vattimo, a superação do humanismo de Heidegger se configurou a partir do conceito de esquecimento de ser,
que realizou a diluição do conceito tradicional de fundamento do homem. Nesse sentido, ele levou em
consideração que o homem só é capaz de corresponder ao apelo do ser por estar sempre padecendo de um
esquecimento, e desse modo, obedecer ao império da vontade de poder, na era da técnica.
Reinterpretando Heidegger, Vattimo defende que é preciso ler a história como um longo adeus e um infindável
enfraquecimento do ser. A superação da metafísica, por sua vez, deve ser entendida como um recordar-se
desse esquecimento, e não como um recordar-se do próprio ser. Pois, se concebêssemos a superação como
uma rememoração do ser, retornaríamos à mesma dificuldade tradicional de entificar o ser e reduzi-lo à
substancialização, e desse modo a diferença ontológica seria suprimida. É preciso então se posicionar a
respeito do problema deixado em aberto pelo próprio Heidegger. Qual seja? A de que o pensamento sobre o
ser almeja indicar e preparar uma outra época, na qual o homem poderá assumir a sua correspondência ao
apelo do ser, enquanto tal.
Deve-se então pensar Heidegger dentro do movimento de acontecimento da metafísica ocidental, mostrando
que ele prepara e pertence ao último estágio do esquecimento do ser. Segundo Vattimo, repensar Heidegger a
partir da descrição do mundo pós-moderno pode ajudar a perceber os alcances do seu pensamento, face aos
resquícios transcendentalistas que ainda persistem em sua filosofia e o mantêm no limite do idealismo
moderno.
Diante desse empasse, pretendemos com esse trabalho sondar a possibilidade de pensar Heidegger dentro de
um fenômeno de acabamento, ou, de radicalização da metafísica, com base na sua leitura do esquecimento do
ser. Questionaremos se a leitura da filosofia de Heidegger como parte de um acabamento da metafísica –
fenômeno descrito pelo próprio filósofo – não elimina ou suprime a possibilidade da questão do ser, e com ela,
a questão do homem como abertura e correspondência, defendida por ele ao longo de todo o seu
pensamento. Para lidar com tal questão tomaremos como interlocutores os filósofos Gianni Vattimo, que
defende que Heidegger, sucedendo a Nietzsche, consuma o último estágio da metafísica, definido por ele de
pós-modernidade; e Peter Sloterdijk que afirma que o filósofo nos lega um pensamento pós-humanista do
homem. Em debate com essas interpretações, pretendemos indagar se tal leitura do pensamento
heideggeriano como consumação de tal pós-modernidade e do pós-humanismo se adequa ou, ao contrário,
contradiz a crítica feita por Heidegger à era da técnica na qual as relações do homem com o mundo estão
niveladas ao ideal do cálculo e da disponibilidade dos entes ao controle da vontade de poder. Nesse sentido,
questionaremos se o pensamento de Heidegger ganhou voz e consumação no mundo da técnica - que, levado a
suas últimas consequências, desdobra-se como contexto no qual se pretende eliminar a própria questão do ser
como último resquício da metafísica e superar o humanismo por meio de um aperfeiçoamento genético -; ou
se essa interpretação caminha na contramão das intenções de Heidegger de reconstituir uma relação do
homem com o ser, seja como abertura ou como seu esquecimento. Tomaremos como fio condutor as
seguintes indagações: Heidegger contribuiu para uma saída da metafísica? Devemos dizer que vivemos em uma
época em que a humanidade se consuma como correspondência ao apelo do ser? Para tentar pensá-la
precisamos levar em conta o modo como os termos “acabamento, superação e fim” da metafísica e da filosofia
se copertencem e em que sentido estão sendo pensados por Heidegger.
Palavras-chave: metafísica, acabamento, humanismo, ser.
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Nome: Alan Barbosa Buchard
Instituição de Ensino: Universidade Federal Fluminense
Orientador: Celso Martins Azar Filho
Título: A conversação como exercício filosófico: sobre a arte de conferenciar no Ensaios de Montaigne.
O presente trabalho tem por objetivo analisar o ensaio montaigneano “Da arte da conversação” (Ensaios, III, 8),
com o intuito de apresentar o que o filósofo renascentista compreende sobre o modo como se dão as relações
interpessoais. A partir dos dados biográficos coletados no trato com a nobreza de Bourdeaux, assim como no
trato com as “pessoas comuns” (camponeses e artesãos), Montaigne engendra uma crítica à sociedade de sua
época e ao próprio modo de filosofar do homem escolástico. Veremos que o âmbito da “conversação” é, para o
filósofo, o terreno por excelência da dialética do conhecimento (Ensaios, I, 28) e do exercício da virtude, tendo
por esses motivos, grande repercussão ao longo das páginas dos Ensaios.
No ensaio em questão, Montaigne afirma que o exercício do saber é a maior conquista humana, entretanto,
esse saber montaigneano não se configura nos moldes escolásticos (disputas lógicas e erísticas), com “letras
que nada curam”, mas na conversação entre espíritos humildes e não presunçosos. Montaigne chega mesmo a
dizer que a lógica é inútil no tocante à terapêutica da alma e dos males da vida: tal afirmação é uma dura crítica
à artificialidade e não efetividade dos modelos filosóficos legados pela tradição.
Como filósofo moralista, Montaigne pretende que a filosofia o auxilie a viver bem e em conformidade com a
natureza, uma vez que nega à razão a exclusividade de auxiliar o ser humano na aquisição da felicidade. Em um
de seus principais ensaios, a Apologia de Raymond Sebond (Ensaios, I, 12) Montaigne crítica o lugar privilegiado
que os filósofos conferem à razão como elevadora da condição humana: contrariamente, a razão produz mais
“monstros e quimeras fantásticas” do que propriamente sabedoria de vida. Na esteira das filosofias da
Antiguidade, Montaigne confere à natureza a responsabilidade de nos ensinar a melhor forma de viver, e às
“pessoas comuns” o exemplo de conduta. Além disso, Montaigne utiliza diversos termos nos Ensaios que
denotam sua preocupação em aproveitar seu “bom humor” para dar ao seu leitor um tipo de filosofia que se
fundamenta sobre a diversão, sobre o poupar da vontade.
Analisando tais termos utilizados poderemos defender que Montaigne talvez seja o primeiro pensador a
encarar a filosofia pelo viés do deslizar sobre as questões humanas. Herdeiro da tradição clássica, o filósofo de
Bourdeaux considerava que a tarefa da filosofia era auxiliar o ser humano na aquisição do “bem viver”, sem
que para isso fosse necessário repetir as categorias da escrita filosófica que o precedeu. Veremos que o
método montaigniano parte das experiências que o filósofo obteve ao longo de sua vida, assim como do
exemplo de conduta das pessoas comuns – em oposição aos modelos filosóficos e heroicos dos primeiros
ensaios – para expor uma filosofia “vulgar e sem brilho” , cuja finalidade é a pintura de si. Para tanto, em seus
ensaios Montaigne pretenderá se desnudar com simplicidade e sem verborragias.
Também procuraremos evidenciar que a filosofia montaigniana é “leve” – em oposição à maneira de filosofar
da tradição, isto é, por tratados sistemáticos e hermeticamente fechados – por ser mediada por uma escrita
fluida, balizada por uma ética em conformidade com a natureza a volúpia: Montaigne fundamenta sobre esses
dois princípios, um terceiro, o princípio de desvio (diversion) tão importante na composição dos Ensaios.
Ao longo de nossa exposição pretendemos mostrar que o agir e o filosofar montaigneano foram intensamente
influenciados pela conversação socrática (dialética) e a teoria dos prazeres de Epicuro. O hedonismo epicurista
encontrou a modéstia intelectual socrática para produzir uma filosofia que encontra na conversação a
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realização de seu projeto. Projeto este que pretende dinamitar qualquer presunção humana de estabelecer
relações (acadêmicas ou pessoais) fundamentadas no pedantismo intelectual. Nas palavras do filósofo: “Por
serem mais eruditos não são menos ineptos.” (Ensaios, III, 8).
Por fim, embora circunscrita no contexto do Renascimento, a crítica de Montaigne pode ser direcionada
também a nós hoje, que do mesmo modo carecemos de coragem para dizer a verdade, assim como de vigor e
generosidade nas relações interpessoais. Desejamos concluir, assim como Montaigne, que a conversação é o
terreno por excelência do exercício filosófico.
Palavras-chave: Montaigne, Renascimento, filosofia moral, exercício filosófico, humanismo
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Nome: Amanda Veloso Garcia
Instituição de Ensino: UNESP
Orientadora: Maria Eunice Quilici Gonzalez
Título: A proposta de uma filosofia além da linguagem para um filosofar brasileiro descolonizado
No Brasil, a influência europeia inserida através de processos coloniais está presente em diversos aspectos de
nossa cultura. Com a Filosofia não foi diferente. Os modos de entender, estudar e fazer Filosofia no Brasil estão
intimamente ligados às práticas europeias de filosofar. E esse modelo contém algumas características próprias
que o vinculam, por exemplo, a práticas discursivas, lógicas e sistemáticas de escrita de textos.
Como parece haver, na tradição filosófica Ocidental, uma vinculação necessária entre a Filosofia e a linguagem
oral/escrita, temos como objetivo repensar práticas filosóficas dentro da universidade. Desse modo visamos a
propor uma ampliação nas formas de expressar a filosofia acadêmica para valorizar mais a comunicação de
visões de mundo do que o formato em que ideias são expressas. Além disso, pretendemos analisar a
potencialidade de pensamento existente em outros formatos de expressão filosófica.
O peso da linguagem na Filosofia
Pensar a Filosofia no Brasil é entendê-la a partir de um paradigma no qual para filosofar é preciso expressar-se
de forma linguística, especialmente através do comentário de filósofo. Para o Ocidente, local do qual vieram os
colonizadores do Brasil, a linguagem oral/escrita carrega um peso muito grande.
Durante o período colonial a linguagem foi um importante mecanismo de dominação. As formas de
manipulação da linguagem permitiram em grande parte a colonização. Através, por exemplo, da exclusão dos
nativos no diálogo, permitindo ao colonizador que descrevesse o nativo e montasse o ideário do outro a partir
unicamente de seu ponto de vista, de modo que não havia como o indígena participar da construção de sua
imagem. Uma vez que a linguagem influencia processos semânticos, a imposição de uma língua, qual foi feito
na colonização brasileira, traz em seu bojo a imposição de uma ideologia, uma religião e costumes próprios.
Além do que, a imposição da língua determina quem tem direito à fala.
Em seu primeiro livro, o Tractatus Logico‐Philosophicus, Wittgenstein (1994, p. 165) compreende a linguagem
como um ponto central em nosso entendimento do mundo: “O pensamento é a proposição dotada de sentido.
A totalidade das proposições é a linguagem”. Em outro aforismo, o autor (WITTGENSTEIN, 1994, p. 131)
destaca que “Poder‐se‐ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode dizer,
pode‐se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve‐se calar”. Assim, em seu primeiro
livro, Wittgenstein procura traçar um limite para a expressão de pensamentos através da linguagem, de forma
que esta última delineia os limites do mundo.
Entretanto, um gesto fez Wittgenstein reformular toda a sua teoria que foi publicada posteriormente em seu
segundo livro Investigações Filosóficas. Numa conversa com seu interlocutor Piero Sraffa, um economista
italiano a quem Wittgenstein atribui a existência de seu segundo livro, o autor recebe um gesto que lhe obriga
a repensar sua teoria do Tratactus. Sraffa lhe faz o gesto de roçar o queixo com os dedos, conhecido como o
“gesto napolitano do desacato”, enquanto lhe pergunta: “Qual a forma lógica disso?”. Sobre esse
acontecimento, Scarborough (2015, n.p., tradução nossa) explica:
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[...] é geralmente aceito que o gesto encapsula tudo – seguido da pergunta a Wittgenstein feita por Sraffa:
"Qual é a forma lógica disso?"
Sraffa não precisava ter roçado o queixo com os dedos. Poderia ter sido um soco. "Qual é a forma lógica
disso?". Ou um abraço. [...] A visita do presidente Kennedy à Berlim Ocidental, podemos supor, era um gesto. A
bomba sob Mururoa. A independência do Timor Leste. A destruição das Torres Gêmeas. Em seu sentido mais
amplo, estes são todos gestos. São ações, ou seja, realizados para expressar um sentimento ou intenção.
Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein formula uma teoria da linguagem bem diferente da primeira e que
teve grande influência no pensamento contemporâneo. O autor constrói a ideia dos jogos de linguagem para
entender os processos significativos. O “jogo de linguagem” corresponde “ao conjunto da linguagem e das
atividades com as quais está interligada” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 30). Nesse sentido, as palavras não
designam algo objetivamente, mas designam algo apenas através de seu uso. Para ele, “o que nos confunde é a
uniformidade da aparência das palavras, quando estas nos são ditas, ou quando com elas nos defrontamos na
escrita e na imprensa. Pois seu emprego não nos é tão claro. E especialmente não o é quando filosofamos”
(WITTGENSTEIN, 1999, p. 31).
Por causa da variabilidade de significados que o uso confere às palavras que o contexto em que elas são
expressas se mostra importante. “O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é
uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 35). Por exemplo, comandar,
relatar ou conjecturar sobre um acontecimento, defender uma tese, inventar uma história, contar uma piada,
representar, cantar, contar um segredo, pedir algo, solicitar socorro, agradecer, maldizer, orar, entre outros.
Assim, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 43). Desse modo,
mesmo o uso da linguagem perde seu sentido sem o contexto em que ela emerje e, por isso, Wittgenstein
aponta para as limitações da linguagem escrita na expressão de pensamentos.
Como aponta Scarborough na observação supracitada, um gesto pode expressar muito. Ele (SCARBOROUGH,
2015, n.p., tradução nossa) destaca ainda um outro acontecido dos anais da história da Filosofia:
Quando o médico de Kant o chamou em seus últimos dias, o Kant doente, com alguma dificuldade, levantou-se
para recebê-lo, e não se permitiu-se sentar de novo até que o médico tivesse tomado seu lugar.
[...] o sinal de uma vida que ligou o pessoal com o universal. Ou seja, era um gesto que revelou o imperativo
categórico – um gesto tão amplo como o mundo, e não apenas para seu próprio bem – na verdade, até mesmo
às suas próprias custas. Para Kant, também, gestos encarnam uma ética, que transcendia, interesses paroquiais
pessoais mais estreitos.
Em outras palavras, assim como Sraffa, Kant apresentou um gesto que combina ação e significado de modo
que parece não poder ser expresso meramente pela linguagem oral/escrita. Talvez uma explicação linguística
não fosse suficiente para expressar o “imperativo categórico kantiano” tão fortemente quando o gesto
supracitado de Kant. Desenvolvemos cotidianamente um repertório de gestos que poderia nos propicia a
construção de uma ética que direciona nossa comunicação (SCARBOROUGH, 2015, n.p.). Existem diferentes
formas de comunicar e expressar pensamentos, entretanto, ocidentalmente a linguagem oral/escrita ganhou
destaque. Na Filosofia, a linguagem oral/escrita é entendida como a única forma de filosofar, de modo que a
tarefa do filósofo seria a de ler e escrever textos.
Em nosso trabalho, temos como objetivo realizar uma análise semiótica das formas de expressar pensamentos,
especialmente através dos trabalhos de Charles Sanders Peirce. A partir da concepção de “mente” elaborada
por Peirce, pretendemos discutir de que modo o pensamento se cristaliza no corpo. Para Peirce (CP 5.289 ,
nota 1), “[...] Do mesmo modo como dizemos que um corpo está em movimento e não que o movimento está
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num corpo, devemos dizer que estamos em pensamento e não que pensamentos estão em nós”. Isto porque,
para Peirce (CP 6.613), "a mais alta qualidade da mente envolve uma grande prontidão para adquirir hábitos, e
uma grande prontidão para perdê-los". Se o pensamento está no cosmos e se materializa através da
cristalização de hábitos, o gesto pode ser entendido como uma forma de expressar pensamentos. Sendo assim,
em nosso trabalho, analisaremos através de uma abordagem semiótica os limites e as possibilidades de se
expressar pensamentos além da linguagem.
Palavras-chave: Filosofia Brasileira. Linguagem. Formas de Expressão de Pensamentos.
Referências:
PEIRCE, C. S. (1935,1958). Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Hartshorne, Weiss & Burks. Cambridge:
Harvard Univ. Press.
SCARBOROUGH, T. A Philosophy of Gestures. Publicado em 13 de abr. 2015. Disponível em:
http://www.philosophical-investigations.org/2015/04/a-philosophy-of-gestures.html. Acesso em: 21 de jun.
2015.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico‐Philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1994.
______. Investigações Filosóficas. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
WUNDT, W. The Language of Gestures. The Hague, Netherlands: Mouton, 1973.
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Nome: Ana Carla de Abreu Siqueira
Instituição de Ensino: UFC
Orientador: Fernando Ribeiro de Moraes Barros
Título: Como pensar o “hoje” à luz da hermenêutica heideggeriana da facticidade
Quando pesquisamos filosofia, voltamos continuamente nosso olhar à tradição. Em consequência, tratamos de
questões levantadas em períodos apartados daquele no qual vivemos e que, embora digam respeito aos
problemas inerentes a todo e qualquer ente humano, envolvem algumas situações distintas da nossa
atualidade. Todavia, o conhecimento filosófico é indispensável para que também possamos nos debruçar sobre
as questões que dizem respeito ao momento hodierno. O presente trabalho busca examinar como as teorias
do filósofo alemão Martin Heidegger sobre o que ele denomina de “hoje” podem ser apropriadas por nossas
reflexões atuais.
Filosofar significa, para Heidegger, estar em correspondência com o ser e revelar os seus fundamentos, em vez
de se limitar a questionar os entes, tal como acontecera com as teorias da tradição. É preciso, portanto,
colocar-se à disposição de se corresponder com aquilo que há para ser dito sobre as coisas, sem abandonar um
aspecto teórico e meditativo, mas em sintonia com o mundo histórico, afetivo e prático, permitindo que as
coisas despertem nosso interesse. Por tal motivo, o exercício filosófico não pode deixar de colocar em
discussão o ente que pergunta, ou seja, o Dasein em suas relações com o mundo, com os outros e sua vida
cotidiana.
Encontramos na literatura heideggeriana alguns apontamentos sobre o tema que aqui se circunscreve: a
questão do “hoje”, com a qual estão diretamente implicados a hermenêutica da facticidade, a situação
concreta do Dasein e o exercício da filosofia. A obra que norteia seu desenvolvimento é o curso Ontologia
(Hermenêutica da faticidade), do início dos anos vinte. Em um primeiro momento, discutimos os dois aspectos
do Dasein, a saber, ser meu a cada caso (Jemeinigkeit) e existência (Existenz). Ao afirmar que a essência do
Dasein é sua existência, deve-se ter em mente que Heidegger pretende mostrar que o Dasein não tem um
pressuposto de igualdade com as entidades intramundanas.
Além disso, tal posição nega a noção de que o homem é um sujeito isolado que faz representação acerca dos
objetos diante de si e se comporta enquanto um espectador, já que a tradição contra a qual o pensamento
heideggeriano se insurge teria excluído do seu horizonte as experiências concretas do homem. O pensador
alemão ressalta que Dasein tem a habilidade de se desenvolver no mundo, capaz de perguntar por sua
possibilidade mais própria e se projetar em sua direção. Ou seja, ao existir, ele está situado num ambiente no
qual os eventos acontecem, vive suas experiências, atribui um significado aos entes intramundanos e situações,
em relação participativa com os demais entes.
Por sua vez, dizer que Dasein é a cada caso meu revela que este modo de ser é um fato irreversível e marcado
pela temporalidade, em vez de ser uma propriedade que se modifica durante a existência. Que o Dasein é tão
somente na sua ocasionalidade significa que a cada momento ele se determina e se encontra a caminho das
significações do seu mundo fático, concreto e histórico sempre a cada ocasião. Com o desenvolvimento de uma
hermenêutica da facticidade, Heidegger nos ensina a pensar o homem a partir de uma compreensão atual, que
prioriza sua inserção no mundo, a cotidianidade e o seu caráter histórico. O “hoje” aparece como uma das
ocasiões nas quais o Dasein se apresenta, uma vez que ele se apropria continuamente do seu presente.
Falar do “hoje” não se limita a narrar os acontecimentos atuais, no momento determinado em que se vive o
presente. O que Heidegger procura mostrar é que, enquanto um conhecimento existencial e interpretativo da
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facticidade, a hermenêutica é capaz de explorar o campo das relações do Dasein no seu mundo cotidiano. A
interpretação do “hoje” é desenvolvida tomando com fio condutor o como hermenêutico. Com isso, Heidegger
não quer impor regras filosóficas, mas indicar formalmente um caminho de reflexão. Para ele, “hoje” é
expressão do pertencimento do ser-aí ao momento em que se vive, incorporando dois elementos: a situação
de ser em um mundo e a historicidade. Constata-se que além de viver em determinado espaço de
acontecimentos e possibilidades, Dasein é um ente histórico, cuja existência só é possível num fluxo temporal e
não cíclico.
Para pensar o “hoje”, é imperioso excluir do campo de discussão as tendências que estão em relevo, o que
levaria um pensador a comprometer-se meramente com especulações vazias e supérfluas; e não se prender,
enquanto filósofo, a questões estritamente particulares, numa situação de isolamento. Tal postura não significa
excluir o interesse prévio que qualquer um é capaz de cultivar por determinado problema, mas alerta que o
ente que nós mesmos somos é dotado de um caráter público, articulado através da linguagem.
Em seguida, mostramos os dois quadros possíveis de interpretação do “hoje”: na consciência histórica e na
contemporaneidade daquele que interroga, ou seja, no próprio hoje. No primeiro caso, está em discussão a
noção de que somos dotados de um passado que influencia nossa ocasionalidade, quer o passado seja aceito
ou quer seja superado. O resultado pode ser encontrado, por exemplo, através de uma expressão vivencial
com as artes, as ciências e costumes. No segundo caso, trata-se de fixar o objeto da filosofia no momento em
que as questões são levantadas.
Com a constatação de que há regiões do ser e, em consequência, de ontologias regionais, Heidegger acredita
que o primeiro passo é tentar delimitar os entes em um quadro geral teórico e prático. Percebemos então que
nosso caminho resulta numa analítica do Dasein e sua atuação no hoje, na consciência histórica e na filosofia.
De certo modo, pensar o “hoje” é pensar o próprio ser-aí, que é essencialmente capaz de perguntar e
compreender o ser dos entes que não possuem o seu modo de ser: além de experiências concretas, apenas ele
tem como comportamento o filosofar. A interpretação do “hoje” volta sua atenção a discutir sobre o que trata
a própria filosofia e como inserir problemáticas atuais. Ou seja, é uma questão de método, relevante a
qualquer investigação dos fenômenos.
Palavras-chave: Filosofia. Hoje. Facticidade. Heidegger.
Referências
HEIDEGGER, Martin. Ontologia (Hermenêutica da faticidade). Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011.
________. Que é isto, a Filosofia? Identidade e diferença. Tradução de Ernildo Stein. 2ª edição. Petrópolis:
Vozes, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2009.
________. Ser e Tempo. Coleção Pensamento Humano. 16ª edição. Tradução de Márcia Sá Cavalcante
Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Towards the Definition of Philosophy, Translated by Ted Sadler. London: Continuum
Books, 2008.
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Nome: André Botelho Scholz
Instituição de Ensino: USP
Orientador: José Carlos Estêvão
Título: Abelardo e a leitura de textos filosóficos como método
Em seu livro “Obras inéditas de Pedro Abelardo para servir à História da Filosofia na França”, Victor Cousin,
então Ministro da Instrução Pública do ministério do visconde de Martignac, descreveu Pedro Abelardo assim:
“Héros de roman na igreja, espírito livre em um tempo bárbaro, chefe de escola e quase um mártir de opinião,
tudo isso faz de Abelardo uma personagem extraordinária. Mas de todos seus títulos aquele que mais se
aproxima de nosso objeto, e que coloca em um lugar à parte na história do espírito humano, é a invenção de
um novo sistema filosófico e a aplicação desse sistema a favor da filosofia e teologia” (Cf. Cousin, p. 5).
O “objeto” a que se refere Cousin era uma espécie de renovação da universidade francesa, fundamentada no
estudo da História da Filosofia e pela eleição de duas figuras históricas para constituir sua narrativa: “Abelardo
e Descartes são incontestavelmente os dois maiores filósofos que produziu a França, um na Idade Médio, o
outro nos tempos modernos; e já há doze anos a França não produziu uma nova edição completa de Descartes
e ainda espera uma edição completa de Abelardo...” (Cf. Cousin, p. 5). O “método” a que se refere é a
aplicação sistemática da teologia e da dialética, ou basicamente a renovação da lógica e da crítica ao realismo
dos universais. O primeiro exemplo que teríamos deste método é o “Sim e Não”, coletânea de questões
polêmicas em que são opostas, em duas colunas, citações de autoridades que reforçam o “sim” e o “não”.
Acusado de cético a seu tempo, ou “pássaro da tempestade” na expressão de Bernardo de Claraval, esse
expediente, como remonta Cousin, é fruto de oito problemas ou constatações acerca da leitura de textos
sagrados. Esses princípios podem ser grosseiramente resumidos: a linguagem das Escrituras não é destinada
aos sábios; a corrupção dos textos e a dúvida sobre apócrifos; a busca por trechos em que a autoridade
porventura se retrate; a “erudição profana”; um certo “sentido genérico” de suas falas, necessários por conta
da multidão de pessoas a quem se dirigem; a variação de significação da multidão de palavras; um critério para
decidir entre passagens contraditórias; e a divisão canônica entre antigo e novo testamento, sem fazer
confusão com textos e comentários (Cf. Cousin, p. 191-193).
Como mostrará Jean Jolivet mais de um século depois, o “Sim e Não” faz parte de uma tradição de coletâneas
que mais pra frente levariam ao desenvolvimento dos métodos das ordinatio, e sua maior novidade é a
organização e divisão metódica dos textos, além do prólogo (Cf. Jolivet, p. 240).
Chama-nos atenção no prólogo a seguinte passagem: “a primeira chave da sabedoria é definida como assídua
ou frequente interrogação. Aristóteles, o mais perspicaz dos filósofos, exorta os estudiosos a apoderar-se dela
com todo o ardor, ao falar da categoria da relação: <<talvez seja difícil pronunciar-se resolutamente acerca
destas coisas, a não ser que sejam tratadas muitas vezes; examinar, porém, tudo não será inútil>>. Pois,
examinando, chegamos à pesquisa; pesquisando, descobrimos a verdade” (Cf. Sic et Non, p. 127).
O problema deste método é que é um método em construção. Abelardo se retratará muitas vezes e estará
constantemente pesquisando novos textos, inclusive de vários contemporâneos. Seus textos estão muito longe
de serem sistemáticos, até porque a questão da própria possibilidade do conhecimento é complicada para
Abelardo. A título de exemplo, vale a pena relembrar o vigésimo segundo parágrafo do Tratado das
Intellecções: “Quanto ao que diz Boécio, que a inteligência pertence a pouquíssimos homens, nós, e
Aristóteles, acreditamos que nunca pode ocorrer nessa vida, a menos que a revelação ocorra a alguém por um
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excesso de contemplação; e acreditamos que Aristóteles chama esse excesso mental de “ciência” em vez de
intelecção, e nem deve ser dito ânimo humano, mas divino, pois a alma ascende a Deus como quando, fraco,
nosso homem moribundo suscita-se a Deus.”.
Esse problema todo começará com a pesquisa de texto. Vejamos outro exemplo: no início de seu comentário à
Isagoge de Porfírio, o conceito de “intelecção” é tomado como ponto de partida para o comentário ao texto do
filósofo. As questões propostas por Porfírio foram solucionadas de diversas maneiras, diz Abelardo a partir de
Boécio: “Aristóteles admite que os gêneros e as espécies subsistem apenas nos sensíveis, são, porém,
inteligidos fora deles; Platão, no entanto, admite que eles, não só são inteligidos fora dos sensíveis, mas
também que eles são fora dos sensíveis” (LP, p. 52). É claro ao leitor como Abelardo elege estas duas soluções
antigas para posicionar um problema, e como a diferença entre as duas soluções é o estatuto garantido ao
inteligível: em um caso a ação de inteligir, a intelecção, se dá fora do sensível e no outro, além disto, ela está
fora dos sensíveis. Como se sabe, através das posições de Roscelio e Guilherme de Champeaux, Abelardo
tomará posição no debate histórico-filosófico que ficou conhecido como “querela dos universais”, colocando o
universal na significação, a qual é explicada através da intelecção, e deslocando-o tanto das posições que o
colocam no sensível, como as que o colocam foram dele. Mas o que quer dizer que a significação do universal é
explicada pela intelecção? Explicar como o universal significa algo é um dos objetivos da Lógica para
principiantes, pois a palavra que constitui um universal não pode significar como as outras palavras, processo
que é explicado pela constituição de uma intelecção que impõe um significado à palavra. Ao passo que a
palavra “Sócrates” tem sua significação explicada pela intelecção de uma coisa que é Sócrates, o universal
“homem” não pode ser explicado pela intelecção de uma coisa que é homem no mesmo sentido que Sócrates,
pois “homem” não é um indivíduo e tampouco pode ser dito uma coleção. Para refinar sua explicação,
Abelardo criará categorias que exprimem os diversos modos de inteligir uma coisa, de maneira que a intelecção
fixada pelo universal será denominada “isolada, nua e pura”. Isso quer dizer que o universal fixa uma intelecção
determinada de tal modo particular que significa algo que não está nos sensíveis. Tal intelecção será possível a
partir de um processo de abstração. Para determinar uma intelecção de algo universal é preciso que o espírito
dirija sua atenção considerando uma natureza em uma coisa abstraindo o que não concerne a esta natureza.
Desse modo será possível explicar como pode haver um universal mesmo que as coisas a partir das quais ele foi
inteligido cessem de existir; o universal poderá, nas palavras do autor, “constar da significação da intelecção”,
ou seja, o universal não precisará ser encontrado nas coisas denominadas pela palavra, mas apenas da
intelecção destas coisas.
É uma maneira de possibilitar que haja conhecimento do significado das proposições se fazer recorrência à
uma teoria da participação, colocando a possibilidade do conhecimento na intencionalidade do ato de
conhecer. Assim, embora não possamos chegar ao conhecimento das coisas, podemos ter um conhecimento
sobre as proposições, constituindo assim o que Jolivet cunhou de “ciência total da linguagem” (Cf. Jolivet, p.
21). O objetivo dessa comunicação será problematizar mais detalhadamente como Abelardo organiza um
projeto filosófico a partir da linguagem, levantando questões sobre o porquê, as dificuldades e facilidades
deste método. Acreditamos que a partir dessa exposição, poderemos terminar com uma provocação que se
encaixa dentro da proposta do encontro: há outro método para estudar filosofia além da leitura de textos
filosóficos?
Palavras-chave: Abelardo, Leitura de Textos Filosóficos, História da Filosofia
Referências:
Cousin, V. “Ouvrages inédits d'Abelard : pour servir à l'histoire de la philosophie scolastique en France”. Paris:
Imprimirier Royale, 1854.
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Jolivet, J. “Arts du language et théologie chez Abélard”. Paris: Vrin, 1982.
Abelardo. “Lógica para principiantes”. Ed. UNESP, 2004.
Abelardo. “Prólogo do Sim e Não”. In: Estêvão, J. C. Abelardo e Heloísa”. São Paulo: Paulus, 2015.
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Autor: André Luiz Braga da Silva
Instituição: USP
Orientador: Roberto Bolzani Filho
Título: A pena que o tribunal pede para o réu é... o riso: Sócrates e o Bem (República VI 506d-e)
Em não curto período da Antiguidade, a enorme fama e respeito associados à obra de Platão caminhou,
vigorosa e surpreendentemente, lado a lado com uma dúvida que, aos nossos olhos modernos, possivelmente
obstaria a força desta admiração: o que exatamente seria a tal “filosofia platônica”? (ANNAS, 1990). É notável,
inclusive, que na própria Academia, nas décadas que se seguiram à morte de seu fundador (ocorrida em IV
a.C.), nunca se chegou a um consenso do que seria esta “filosofia”, esta “doutrina” que o mestre veiculou em
seus diálogos (GONZALEZ, 1995). O status quo de “dúvida” do problema se arrastou a ponto de, apenas sete
décadas e meia após a morte de Platão, Arcesilau – que, tudo indica, ainda possuía os manuscritos do corpus
(Diog. Laer. IV, 32-33) – assume a direção da Academia e defende que não há nas obras do mestre nenhuma
afirmação positiva de uma doutrina “dele”, Platão. E a discussão não foi encerrada no âmbito da instituição:
pouco mais de dois séculos depois, ainda era possível ver alguém da envergadura de Cícero não hesitar em
afirmar que, nos “livros” de Platão, nihil adfirmatur et in utramque partem multa dissenruntur, de omnibus
quaeritur, nihil certi dicitur (“nada é afirmado, muitos argumentos são apresentados em ambos os lados da
questão, e tudo é investigado, sem nenhuma certeza ser dita”, Academica, I. 46). Ainda que não unânime, esta
opinião foi compartilhada por muitos outros ainda.
Qual não seria então a surpresa desses antigos se estivessem vivos hoje em dia e, abrindo qualquer manual de
filosofia antiga, lessem nele que a Ideia de Bem é certamente o fundamento de todo o pensamento ético,
epistemológico, metafísico e cosmológico platônico. Ora, o que poderia ter modificado tão radicalmente a
leitura da obra do filósofo grego, desde a Antiguidade que lhe foi contemporânea, até os nossos dias?
Certamente, muitos fatores contribuíram, inclusive posições dentro da própria Academia (como a de
Espeusipo), mas Tigerstedt (1974) identifica que a virada decisiva dessa leitura ocorreu na Antiguidade tardia,
com a doutrina que restaria conhecida depois como “Neoplatonismo” (século II d.C. em diante). Esta corrente
de talentosos pensadores – distante, portanto, seis séculos de Platão –, lançou novas interpretações de certos
trechos específicos de alguns diálogos (neles incluídos os três símiles dos livros centrais da República: Sol, Linha
Dividida e Caverna). E, através disto, eles ajudaram a cunhar como certeza a fundamentação de todo o
pensamento do autor dos diálogos na Ideia de Bem. E tal concepção, ainda que tenha adquirido as mais
variadas nuances através dos dezoito séculos posteriores, foi inegavelmente legada à posteridade.
Sobre a interpretação do platonismo, um novo questionamento eclode então na atualidade, adquirindo mais
força a partir do final do último século (PRESS, 1993; GONZALEZ, 1995; etc): ele diz respeito às mudanças que
uma leitura atenta dos elementos “dramáticos” dos diálogos pode eventualmente imprimir sobre algumas das
certezas que a história da filosofia ocidental sempre teve em relação ao conteúdo das obras do filósofo. Este
questionamento, obviamente, pode ser aplicado tanto especificamente a algum diálogo ou trecho de diálogo,
quanto a um grupo de diálogos, ou mesmo, em termos mais gerais, ao todo do corpus. O presente artigo
debruçar-se-á sobre tal questão em termos específicos, concentrando sua atenção sobre certas nuances
dramáticas presentes no texto do livro VI da República. Tendo em mente a diferença traçada acima entre uma
das mais marcantes leituras da Antiguidade (a do Platão “não-dogmático”), e a leitura posterior de influência
neoplatônica (a da doutrina da Ideia de Bem como “pedra fundamental” de todo o platonismo), nosso leit
motiv será: o que pode significar, para a compreensão do papel do Bem no pensamento do fundador da
Academia, conceder importância a toda a atmosfera de insegurança e tergiversação do personagem Sócrates
no texto da “introdução” que precede a narrativa dos três símiles na República (504e4-507a6). Nessa
29
passagem, aparecem alguns elementos que parecem importantes – posto que adicionados ao texto pelo
próprio Platão – para direcionar a querela entre as duas mencionadas leituras do problema:
a) os personagens Glauco e Adimanto exigem de Sócrates um discurso ontológico e argumentativamente
fundamentado sobre o Bem (504e4-6; 506b2-4).
b) O filósofo diz que a Ideia do Bem é um assunto sobre o qual não possui genuíno conhecimento, mas apenas
opiniões (505a5-6; 506c2-3), e diz que expor opiniões sem conhecimento é uma completa vergonha (506c6-7);
c) Sócrates diz que, apesar de seu entusiasmo pelo assunto, ele não será capaz de realizar a tarefa
argumentativa exigida, mas sim coisas vergonhosas, devido às quais ele será “condenado” a sofrer gargalhadas
dos companheiros (506d7-8);
d) ratificando sua posição, o filósofo acrescenta ainda que, a partir de suas opiniões e do impulso do momento
da discussão, não será alcançado o que é a Ideia de Bem, pois ela está bem para além de suas opiniões, e
propõe deixar de lado a exigência dos dois irmãos (506d8-e3);
e) como alternativa, ele propõe apresentar imageticamente a sua caracterização dessa Ideia (506e3-5);
f) nessa proposta, Sócrates deixa claro duas coisas: por um lado, sua “dívida”, i.e, a explanação argumentativa
do que o Bem é, não será “paga” ali; por outro, a própria narrativa imagética, oferecida como alternativa ao
“pagamento”, poderá ser um discurso “fraudulento” e “enganoso” (507a1-5);
Não pode se perder de vista que, se avançássemos na discussão da República, veríamos que esse receio que
Sócrates manifestou, na “introdução” aos símiles, de ser “punido” com gargalhadas, acaso se arriscasse a expor
as suas opiniões sobre o assunto, cumprir-se-á integralmente: a exposição do símile do Sol (508b12-509b10) é
finalizada com uma explosão de risos do personagem Glauco, que justifica essa sua reação acusando a
exposição socrática de ter cometido um forte “exagero” (hyperbolé, 509c1-2). E é notável, ainda, que o filósofo
ateniense, que já havia previsto a aplicação desta “condenação” (o verbo ophliskáno, com uma falta ou crime
em genitivo, 506d7-8, é típico da linguagem dos tribunais para as “condenações”), não procurará arguir em sua
própria defesa nesse caso, como o mesmo personagem fará, anos depois, no seu julgamento diante do tribunal
de Atenas (Apologia de Sócrates). Haveria alguma aceitação da parte de Sócrates de que, no que tange à sua
exposição sobre o Bem na República, a sua “condenação” ao ridículo é justa? O personagem não só não
apresenta uma “defesa”, como também não argumenta que as coisas expostas não seriam risíveis; ele apenas
acusa o seu companheiro de ser o responsável por a exposição ter acontecido: “Pois o culpado és tu [...],
[Glauco], obrigando-me a dizer minhas opiniões sobre isso [sc. o Bem] (sý gàr […] aítios, anankázon tà emoì
dokoûnta perì autoû légein, 509c3-4).
Concentrando então a atenção nesses elementos dramáticos do texto da “introdução” aos símiles (República VI
504e4-507a6), nosso artigo pretende sugerir uma interpretação da narrativa sobre o Bem divergente daquela
que foi milernamente aceita. No limite da oportunidade, procederemos, nesse ínterim, à avaliação das opiniões
de alguns estudiosos da passagem (ADAM, 1902; CORNFORD, 1967; SANTAS, 1983; ANNAS, 1997; BALTES,
1997; DIXSAUT, 2000; GUTIERREZ, 2003; SZLEZÁK, 2003; VEGETTI, 2003; TRABATTONI, 2003; FERRARI, 2003;
SHIELDS, 2011).
Palavras-chave: Platão; República; Bem; Sol; Sócrates.
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Nome: Andrés Felipe Hurtado Blandón
Instituição de Ensino: Universidad de Antioquia, Colombia.
Orientador: Carlos Emel Rendón Arroyave
Título: La propuesta pedagógico-filosófica de Hegel. A propósito de su concepto de formación (Bildung).
Desde que en el contexto europeo, y muy tardíamente en el hispanohablante, comenzó a llamarse
profundamente la atención sobre la amplitud semántica del concepto clásico alemán Bildung, el interés por
develar el posible papel que éste desempeñó en las teorías y propuestas literarias, políticas, filosóficas y
pedagógicas de la Alemania de finales del siglo XVIII y principios del XIX, aumentaron significativamente y
abrieron en suma nuevos horizontes para su comprensión. Lo que un principio comenzó como una sola
investigación filológica (Rudolf Vierhaus; Ulrich Herrmann), pronto se convirtió en un asunto de interés general
para la pedagogía (Wolfgang Klafki) y la filosofía en gran parte de europea (Jerónima Ipland; Arsenio Ginzo) y
en las últimas décadas también en Latinoamérica (Andrés Klaus Runge). Hoy día continúan las investigaciones
sobre la presencia y sentido de dicho concepto en varios autores como Winckelmann, Goethe, Herder, Schiller,
Wilhelm von Humboldt, Schleiermacher, Friedrich Schlegel, Kant, Fichte y fundamentalmente en Hegel, de
quien dijo Gadamer (1993, p. 40), fue el que con más agudeza desarrolló este concepto.
Una de las particularidades del concepto de Bildung tiene que ver precisamente, por un lado, con el modo en
que él aparece articulado a las distintas teorías o sistemas de pensamiento de estos autores; y por otro lado,
con el hecho de demostrar estar pensado, en el mayor de los casoso, como respuesta a los ideales, problemas,
retos y acontecimientos políticos y filosóficos más importantes de la época. Por estas razones puede afirmarse
que este concepto constituye un digno representante de su tiempo: depositario y testigo de sus limitaciones,
necesidades, logros, esfuerzos, y esperanzas; pero por otra parte, demuestra también grandes virtudes que le
permiten elevarse críticamente por encima de él.
Ahora, en el caso de Hegel, cabe afirmar tres cosas: en primer lugar, que el concepto está presente en casi toda
su obra; incluso con una notable presencia en sus escritos maduros. Lo que habla de la importancia que
siempre tuvo para él. En segundo lugar: el modo como el concepto se encuentra articulado con su sistema
filosófico, y de manera especial con conceptos como libertad, voluntad, razón (Vernunft), espíritu y
reconocimiento (Anerkennung). Incluso no es desatinada la posibilidad de pensar aquéllos también en relación
con este concepto. Y en tercer lugar: a juzgar por la amplia experiencia docente de Hegel y su profunda amistad
con el reformador educativo Fr. Inmmanuel Niethammer (1766-1848), el concepto Bildung, bandera de del
movimiento Neohumanista que éste último lidero con W. von Humboldt, contiene y refleja gran parte de las
ideas filosóficas, educativas y políticas que Hegel asumió y defendió ante su propio presente.
Así pues, el concepto de Bildung posee en Hegel un trasfondo histórico y filosófico digno de resaltar. Las
últimas investigaciones en el contexto alemán (Universität Jena, 2010, 2012) insisten principalmente en el
segundo aspecto. Sin embargo, es sabida la dificultad de este tipo de escisiones en su propio pensamiento. Por
esta razón, esta conferencia se encargará especialmente de dos cosas: en primera instancia, explicar el
espectro histórico e ideológico al que arriba se ha aludido; y en segundo lugar, mostrar cómo el carácter
pedagógico y filosófico del concepto de Bildung responde precisamente a tal espectro. De esta manera se
mostrará a un Hegel que tuvo la osadía de pensar y tomar posición sobre su propio presente desde una
perspectiva hoy día enmarcable dentro de una Filosofía de la educación; y además, considerando el sentido
fundamentalmente dialéctico, que aquí explicaremos, que Hegel le ha otorgado al concepto no sólo permite
comprenderlo a la luz de las contradicciones más importantes de aquélla época sino también de las del
presente. Muchos problemas, ideas y presupuestos políticos, educativos y antropológicos mantienen hasta el
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día de hoy su vigencia. Una razón adicional no despreciable para destacar la pertinencia de esta reflexión
dentro un evento sobre “da atualidade da filosofía” que busca trascender retrospectiva y prospectivamente,
mediante el diálogo, el propio presente.
Palavras-chave: Bildung, Libertad, Eticidad, Reconocimiento.
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Nome: Anna Paula Marques Haddad Basso
Instituição de ensino: PUC-SP
Orientador: Eduardo Rodrigues Cruz
Título: A Espiritualidade ateísta de André Comte-Sponville
Sobre o materialismo pode-se dizer que lhe é próprio – em certa perspectiva - apegar-se a aspectos aparentes,
formais e porque não dizer, sendo fiel as principais referências da obra em questão, sensualista (ver o
epicurismo). É possível que seja por conta de em ausente a substância autossuficiente e criadora reste a nós
aquilo que vemos, sentimos, e podemos forçosamente produzir em nossa miserável tentativa de ascender de
alguma forma.
O materialismo imanentista do filósofo francês André Comte-Sponville (1952-) tem um tanto disso, a qualidade
da forma chega a se confundir com o argumento filosófico, simpatia da associação beleza e verdade.
O objeto da nossa pesquisa é o texto do “Tratado do Desespero e da Beatitude” (t. 1,1984/t. 2, 1988; PUF) e
sua intersecção com a proposta de espiritualidade ateísta que será melhor delimitada em “O Espírito do
Ateísmo” (2006, Albin Michel).
Felizmente a forma não se resume a reproduzir o encantamento da sofística, a apropriação da tradição
filosófica é feita com cuidado e, por fim, numa leitura mais apurada vence o argumento, o ratio. É preciso
“desesperar” – ir ao neutro, abdicando das expectativas - é preciso regozijar-se na verdade (a beatitude, a
verdade felicidade).
Ambos os textos foram redigidos em estilo ensaístico, no esquema do diálogo socrático, exigindo do leitor
certa entrega espiritual à discussão, ao desenvolvimento do texto; respondendo um tanto espantado e
meditando por percursos imagéticos e conceituais já caminhados pelo autor, formulando suas próprias
respostas para parágrafo a parágrafo responder aos flertes de um sedutor.
Por que seria este materialismo imanentista relevante enquanto proposta de espiritualidade para o século XXI?
Oras, o niilismo nos assombra, preguiça e fraqueza em investir contra a realidade com a força da consciência,
persistência transformadora, e por isso, abre-se o vácuo facilmente preenchido pelos dogmatismos da pior
espécie.
Nas palavras do autor, não se trata apenas da versão mais comum dele, e sim de um “niilismo prático em vez
do ontológico: a negação, não da essência, mas do valor! Filosofia do tudo se equivale (já que nada vale), do
para quê, da inanidade de tudo, da renúncia, do abandono.” (Bom dia Angústia, 1997).
Fazer frente a este “inimigo” com as armas da desonestidade, negando o que o homem “é”; ser do qual a
espiritualidade faz parte é ser desonesto no sentido mais essencial do pensamento, a busca pelo verdadeiro.
Ainda conversando com a virtual vitória do niilismo Sponville elabora um sistema que aposta no homem (sem
a adoração infantil do humano); na sua racionalidade como capaz de constituir valores sem fiança
transcendente (resposta ao fantasma da aniquilação da moral sob a perspectiva niilista); propõe a fidelidade à
tradição formadora do ocidente (a greco-romana judaico-cristã - o que é resposta ao fanatismo ateísta e uma
conciliação entre “espíritos livres - abertos e tolerantes” em ambos os campos); e coloca a filosofia como à
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serviço da felicidade enquanto uma resposta à cultura do entretenimento efêmero e sem direção, o apego ao
verdadeiro.
Escrito em 1984 e 1988, o Tratado, até pelo seu caminho conceitual (que é de proposição de uma sabedoria,
com referências estruturais em Montaigne, Espinosa, Pascal) não trava diálogo com os projetos da esfera
científica e que abalaram a investigação do homem no que diz respeito à religião neste início do século XXI, cito
apenas dois deles: estudos na neurociência apontando para a predisposição a percepção dualista da realidade
(Bloom, 2007) o que para os ateus é a refutação da exterioridade da origem da crença e, paradoxalmente
também, para os crentes, a confirmação da engenharia do divino a guiar nossa matéria para o “absoluto
transcendente”. Outro, são os resultados das pesquisas do também neurocientista Antonio Damasio no sentido
de compreender o que é a consciência, o papel da emoção na razão (2009).
A proposta sponvilliana foge de constituir-se ancorada em dados científicos (da ciência diz: “só podem
alcançar o relativo, elas podem apenas descrever, ou às vezes, explicar”, 2003) busca o sentido filosófico da
formulação de uma ideia a dar conta do todo. E na busca pela atemporalidade de uma pergunta que perpasse
tudo se estabelece também construindo com imagens e símbolos de tradições religiosas um lugar do homem
laico com espiritualidade.
Dentre muitas ofertas do texto essa é uma delas, reconhecer na produção humana símbolos pródigos
de estados espirituais. Finalizo com a conceituação do próprio autor acerca do que viria a ser a espiritualidade
do ateu, a saber, a vida do espírito:
“A potência de pensar, na medida em que tem acesso ao verdadeiro, ao universal ou ao riso. Neste sentido
esta palavra só é utilizada no singular (falar de espíritos é superstição). É que a verdade, na medida em que a
ela temos acesso, é a mesma em todos. É por isso que ela é livre (não obedece a ninguém, nem mesmo ao
cérebro que a pensa), e que liberta. Essa liberdade em nós, que não é a de um sujeito, mas da razão, é o
próprio espírito. Engana-se quem vê nela uma substância, mas não se engana menos quem nela vê um puro
nada. O espírito não é uma hipótese, dizia Alain, já que é incontestável que pensamos. Nem uma substância, já
que não pode existir sozinho. Digamos que é o corpo em ato, na medida em que tem a verdade em potência.
Em potência, não em ato. Nenhum espírito é a verdade; nenhuma verdade é o espírito (seria Deus). É por isso
que o espírito duvida de si mesmo e de tudo. Ele sabe que não sabe, ou que sabe pouco. Preocupa-se ou
diverte-se com isso. Duas maneiras (pela reflexão, pelo riso) de ser fiel a si mesmo, sem se crer. O espírito, sob
essas duas formas, parece próprio do homem. É também uma virtude: a que supera o fanatismo e a tolice.”
(COMTE-SPONVILLE, 2003,p. 207)
COMTE-SPONVILLE, André. Traité du Desespoir et de la Beatitude. Paris: Presses Universitaires de France, 2011.
____________________, Bom Dia, Angústia! 1°. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
____________________, Dicionário Filosófico. 1° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
____________________, O Espírito do Ateísmo: Introdução a uma espiritualidade sem Deus. 1. ed. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2007.
BLOOM, Paul. Religion is Natural. Department of Psychology, Yale University. 2007.
DAMASIO, Antonio. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Palavras-chave: ateísmo; espiritualidade; niilismo.
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Autor: Arthur Augusto Catraio
Instituição de ensino: Paris I
Orientadora: Sophie Guérard de Latour
Título: Da Crítica da razão pura à Crítica da razão negra
No período moderno da história europeia, entre 1685 à 1848, vigorou com força de lei a estruturação
hierárquica das raças que permitia a legalidade do colonialismo escravista através do Código Negro francês.
Paralelamente, na Crítica da razão pura (1781, 1787), Kant pretendeu demonstrar o funcionamento das
estruturas categóricas de uma antropologia universal. Filosofia do absoluto (apesar de crítica); do
enciclopedismo universalista, a modernidade europeia ‘humanizava’ o mundo à imagem da cultura local. Era
necessário ‘purificar’ as raças colonizadas; humanizá-las. Passados mais de dois séculos, a filosofia póscolonialista evidencia a problemática pureza da razão pura.
Em Os sertões, Euclides da Cunha faz a seguinte observação sobre a categoria geográfica da região: “Uma
categoria geográfica que Hegel não citou” (CUNHA, Cap. I 5). Pensador sistemático e holístico, Hegel foi incapaz
de pensar o Brasil. A inadequação do pensamento hegeliano se deve no entanto menos a um equívoco do
autor com relação à terra pátria, mais a um equívoco generalizado por parte da filosofia europeia moderna.
Aquilo que se tomava pelo todo, era em realidade somente parte.
Publicada em 2013, a obra Critique de la raison Nègre (MBEMBE, 2013) denuncia tal inadequação dos
conceitos filosóficos modernos para a compreensão do fenômeno atual das culturas do Sul anteriormente
colonizadas. Achille Mbembe, filósofo camaronês, acusa a pretensão de pureza da terminologia filosófica
europeia que observava, sobretudo nos negros, uma modalidade de razão impura:
“consequência direta desta lógica da autoficção, da autocontemplação, i.e. do fechamento, o Negro e a raça
não fizeram senão um no imaginário das sociedades europeias. Designações primárias, pesadas, desajeitadas e
perturbadas, símbolos da intensidade crua e da repulsão, [assim foi] a aparição do Negro no saber e no
discurso moderno sobre ‹‹ o homem››[.]” (MBEMBE, 2013 p. 10)
Segundo Mbembe, o Negro é a figura que escapa ao imaginário da razão pura. E a pureza abstrata da razão
europeia encerrava, na realidade, uma autocontemplação de uma razão branca: fonte igualmente de ‹‹ delírio
›› para a constituição de um liberalismo político moderno histérico que afirmava ao mesmo tempo igualdade
entre os homens, e a diminuição da humanidade do homem negro. Se o conceito filosófico de razão pura nos
parece portanto inadequado, cumpre-nos analisar a pertinência de uma atualização do conceito tal como
proposta por Mbembe de uma razão negra.
Se entendemos o sentido da ‹‹ crítica da razão negra ›› tal como proposto por Mbembe, a saber: que ela seja
uma crítica capaz de refletir ‹‹ uma nova possibilidade de universalidade ›› acompanhada de uma ‹‹
descentralização e provincialização das tradições do pensamento europeu ››, urge examinar até que ponto esta
reivindicação e atualização conceitual kantiana é pertinente, e quais suas possíveis limitações. Nos
esforçaremos, assim, em desenvolver uma interpretação do trabalho filosófico pós-colonialista apresentado
pelo autor a partir dos três seguintes eixos:
I.
Antinomia entre razão pura e razão negra;
II.
Particularidades de uma razão negra face a possibilidade da existência de outras razões;
III.
Raças e a questão da universalidade;
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Utilizaremos, especialmente, a investigação dos juristas Gerald Torres e Lani Guinier publicada por vez primeira
em 2002 sob o título The Miner’s Canary: enlisting race, resisting power, transforming democracy (Harvard
University Press, 2003) para avaliar e interpretar o conceito de ‹‹ Negro ›› bem como o de ‹‹ raça ››
reivindicado por Mbembe.
A importância da referida estratégia hermenêutica reside no fato de Guinier e Torres compreenderem a ‹‹ raça
›› como um fenômeno político e não biológico. Afinal, se uma ‹‹crítica da razão negra ›› nos permite questionar
a legitimidade do conceito de ‹‹razão pura ››, por que não poderíamos nós sugerir igualmente uma crítica da
razão feminina ou ainda uma crítica da razão operária? O que veremos é que, ao compreender a ‹‹ raça ››
como um fenômeno político, o conceito de ‹‹ Negro ›› como classificação biológica é extrapolado para o
acolhimento de outros tipos biológicos. Isto é, devido ao fato da ‹‹raça›› ser sempre definida a partir de um
ponto de vista relacional, “estas categorias passam a ser políticas, não somente físicas. E [por isso] requerem
uma resposta política, não uma homogeneização física” (TORRES, 2003 p. 9). Tal interpretação, acreditamos,
deve nos indicar um sentido original de pesquisa para este novo tempo da filosofia.
No momento em que a cultura do desenvolvimento ocidental capitalista se encontra em crise, talvez a tarefa
do pensamento filosófico pós-colonial seja a de justamente revirar o arcabouço conceitual do pensamento
moderno constitutivo da filosofia e da política contemporânea. Não para excluir o hemisfério Norte Ocidental
de tal avanço crítico, mas para originar e centrar uma nova força filosófica a partir do Sul. Força esta que
deveria repensar uma universalidade mais abrangente do que aquela proposta pela filosofia anglo-continental,
e corrigir a falha política estrutural encontrada em tal sistema. A resposta política e filosófica para a resolução
desta questão deve constituir, de modo essencial, parte importante da inovação no pensamento filosófico. O
passo da ‹‹ razão pura ›› à ‹‹razão negra›› contribui certamente para esta travessia.
Palavras-chave: Pós-colonialismo, Raça, Política, Criticismo
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Nome: Artur Sartori Kon
Instituição de ensino: USP
Orientador: Ricardo Fabbrini.
Título: A cena de um mundo tragicômico em Christoph Menke
Seria o mundo contemporâneo o palco de uma tragédia ou de uma farsa? Pululam em diversos campos e nas
mais diferentes posições as constatações de um tempo do fim: fim da história, fim das ideologias, fim do
projeto moderno, fim da crença na possibilidade de um mundo radicalmente outro; viveríamos um tempo sem
saída, que nos obrigaria a uma séria tarefa de desilusão, sobriedade e conformação (seja para melhor aceitar o
mundo como está dado, no caso da ideologia neoliberal da “pós-história”, seja para buscar as possibilidades
realmente existentes de mudança, sem ilusões ou pretensões desmedidas, como na busca Por uma esquerda
sem futuro do crítico marxista T. J. Clark). Ou talvez, pelo contrário, seja esse um momento crítico que exige
justamente a ampliação e afirmação das possibilidades criativas e transformadoras do homem, uma ética do
impossível, a renovação da capacidade de gozar o mundo no duplo sentido da palavra: ao mesmo tempo
zombar e aproveitar, mistura de distância crítica e mergulho alegre, proposição de uma gaia ciência. Ou ainda,
poderão ser essas duas versões faces da mesma moeda, fenômenos complementares correspondentes a
experiências fundamentais da atualidade?
O filósofo Christoph Menke, habitualmente considerado membro de uma chamada terceira geração da Escola
de Frankfurt (ao lado de pensadores como Axel Honneth, Martin Seel e Josef Früchtl), tem refletido de modo
consistente a respeito de temas como esses tanto em trabalhos na área da Filosofia Política quanto na da
Filosofia da Arte. Já em seu primeiro livro, A soberania da arte: experiência estética em Adorno e Derrida,
tratava-se de pensar o fenômeno estético como portador de uma potencialidade profundamente política de
desfazer a estabilidade e fixidez da experiência cotidiana (e contemporânea, como vimos) do mundo,
deslocando sua apreensão habitual pelo entendimento, abrindo-o para uma infinidade de perspectivas e
forças. Já em Tragédia na moralidade: justiça e liberdade em Hegel, Menke se dedicava de reler na filosofia do
jovem Hegel o diagnóstico da modernidade como experiência trágica de um poder insuperável e “fatídico” que
faz surgir entre as pessoas o “monstro da desunião”, experiência da inevitabilidade e necessidade de colisões
entre aspectos normativos fundamentais da vontade e ação. Em nossa comunicação, trataremos
fundamentalmente do modo como os conceitos de tragédia e comédia são retomados e ganham atualidade a
partir das reflexões desenvolvidas pelo filósofo em seus dois livros seguintes.
Em A atualidade da tragédia: ensaio sobre juízo e representação, o autor analisa o trágico a partir do estudo de
várias obras clássicas, desde o Édipo Rei, passando por Hamlet, chegando até o teatro de Samuel Beckett
(principalmente com seu Fim de partida) e Heiner Müller (Filoctetes), entre outros dramaturgos
contemporâneos. Deverá nos interessar principalmente o hiato entre os dois primeiros e o segundo, passagem
imposta principalmente pelo projeto político-cênico de Bertolt Brecht: se a poética brechtiana (especialmente
em suas peças didáticas) podia ser compreendida como uma tentativa de aniquilação da dimensão trágica por
meio de uma passagem programada do campo da estética para o campo da práxis social, por sua vez o teatro
contemporâneo como pós-brechtiano (ou mesmo pós-dramático, como podemos observar principalmente em
outros artigos de Menke nos quais o filósofo dialoga com o teatrólogo Hans-Thies Lehmann) seria marcado pela
impossibilidade dessa passagem, pelo fechamento ou enclausuramento da representação (como proposto por
Derrida) que passa a girar sobre si mesma, encenando seus próprios limites e a impossibilidade de se sair do
jogo teatral. Fica evidente aqui o privilégio concedido no tratamento do trágico em detrimento do cômico,
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visto por Menke como preso em um paradoxo (ou seja, em uma ironia trágica): ou a comédia e a liberdade
representada por ela (em contraposição à necessidade e ao destino encarnados na tragédia) se limitam à
esfera da arte, contraposta ao mundo da práxis com suas aspirações e fracassos, ou o jogo quer ser prática e se
converte em seriedade. Assim, por mais que a comédia parodie a tragédia, acaba sempre se transformando no
seu contrário, que buscava eliminar.
Pretendemos buscar no livro seguinte do autor, Reflexos da igualdade: filosofia política após Adorno e Derrida,
uma possível outra visão sobre a complexa dialética do cômico e do trágico. Ali, porém, não se trata de
investigar obras de literatura dramática, mas antes eventos históricos e – principalmente – suas interpretações
por diversos pensadores do político. Central para nós será o questionamento empreendido acerca do sentido e
dos descaminhos da Revolução Francesa, desqualificada pelo filósofo conservador Edmund Burke como “uma
cena tragicômica monstruosa”, que mina sua própria busca de igualdade criando novas e maiores desgraças,
novos insultos e injúrias. Contra essa crítica, Menke revê e reafirma o duplo caráter trágico e cômico da
revolução, mas sob nova perspectiva: essa autossabotagem (intencional ou não) da busca de igualdade pela
revolução poderia ser justamente um argumento a favor dela, como pretenderemos mostrar acompanhando a
reflexão proposta no livro estudado. Aqui, é a combinação de trágico e cômico que permite uma redefinição
das posições, abrindo o campo dos possíveis para repensar a ideia de uma mudança radical.
Poderá essa segunda leitura do cômico corrigir a primeira, muito diminuidora? Como deveremos criticar e
avaliar o pensamento de Menke sobre as relações entre tragédia e comédia? Após acompanhar seus
argumentos nos dois livros referidos, deveremos nos dedicar brevemente ao seguimento de suas ideias na
proposição de uma teoria da “força” como categoria estética e de uma “estética da igualdade”, para talvez
imaginar como os problemas abertos pelo filósofo em suas mais importantes obras têm ganhado continuação
sob outras formas e outros nomes, mas ainda na busca de, aliando estética e política, repensar questões que
pareciam decididas e abrir caminhos que parecem definitivamente fechados.
Palavras-chave: Estética contemporânea; Estética do teatro; Tragédia e comédia; Estética e política; Christoph
Menke.
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Nome Completo: Bianca Rocha Machado
Instituição de Ensino: UnB
Orientador: Alexandre Hahn
Título: Modernidade e Liberdade – Reflexões sobre a crítica de Hegel ao idealismo transcendental de Kant
Hegel se defronta com uma racionalidade que impõe reformulação. Sua obra busca as condições de superação,
em nome do resgate das promessas de emancipação do esclarecimento, de equívocos progressivamente
consolidados ao longo da história do pensamento. Por meio de uma análise detida de seu momento histórico,
Hegel encontra na manutenção do subjetivismo moderno – e suas radicalizações mais significativas, na filosofia
kantiana – o equivalente filosófico às rupturas e tensões que se anunciam na práxis, evidenciando os efeitos
deletérios, para qualquer filosofia prática, de compreensões epistemológicas equivocadas e unilaterais, uma
vez que conduzem a uma compreensão também equivocada da ideia de liberdade. Hegel considera que a
preservação das expectativas e promessas de liberdade e emancipação postas pelo esclarecimento exige que
se repense o tipo de racionalidade privilegiado pela modernidade, em vista da necessidade histórica da
afirmação de um modelo de liberdade que realize efetivamente a emancipação de indivíduos. Para atingir esse
feito, Hegel estabelece uma relação crítica com o idealismo transcendental de Kant.
Kant afirma que intuições intelectuais não podem alcançar conhecimento, uma vez que a razão, operando sem
conteúdo sensível, ora se enreda em contradições, ora se vê forçada a abandonar suas pretensões de
objetividade. Sua revolução copernicana e a posterior delimitação das condições da experiência objetiva
traçam o caráter incontornavelmente conceitual da experiência – que, para Kant, articula forma e conteúdo
por meio das formas puras da intuição sensível e do entendimento. A afirmação do aspecto conceitual de
asserções com pretensão de validade objetiva será de vital importância para Hegel, que ampliará, com isso, sua
noção de experiência, de modo afirmar que todo pensamento já se encontra imerso em estruturações
conceituais.
Entretanto, Hegel também vê na filosofia kantiana o ápice do subjetivismo que ele próprio pretende superar.
Uma das principais decorrências do projeto filosófico kantiano é a impossibilidade de conhecer um objeto
como ele é em si mesmo. Kant insiste ao longo de sua obra em que temos conhecimento apenas de fenômenos
captáveis pela sensibilidade, não tendo qualquer experiência das coisas-em-si. Esse resultado não apenas sela a
cisão moderna entre sujeito e objeto com um muro intransponível, tornando passível de total engano
afirmações acerca de algo que tenha a pretensão de ultrapassar o âmbito fenomênico, mas também consolida
um paradigma de racionalidade que considera em separado forma e conteúdo do conhecimento. A abstração
da qual esse modelo resulta se consolida de tal modo que sua pretensão máxima se torna, com Kant,
desvendar as nuances da estrutura formal do conhecimento em vista da melhor manipulação dos conteúdos. A
instrumentalização do conhecimento que disso decorre será, para Hegel, o legado mais nocivo da
modernidade.
Para Hegel, a concepção moderna de racionalidade, assumida e consolidada por Kant, inviabiliza a percepção
de elementos históricos, situacionais e sociais inerentes a essa mesma experiência e não permite a visualização
do conjunto de normas e valores que influenciam de antemão as práticas, os usos que os sujeitos fazem de seu
próprio saber. E uma vez que tais práticas constituem o ambiente que os homens compartilham, compondo a
realidade que se transforma e atualiza por meio da ação desses mesmos homens, a filosofia moderna oculta,
pela formalização do conhecimento, o potencial da intervenção valorativa e normativa sobre a realidade, com
propósito transformador, em suas dimensões sociais, históricas e políticas. Em outras palavras, a filosofia
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moderna impossibilita a crítica, engessa a práxis e estanca possibilidades de emancipação, na medida em que
impossibilita uma teoria da sociedade moderna que compreenda suas especificidades. O modelo cognitivo
moderno, ao centralizar na subjetividade a pedra de toque de seus conhecimentos, aparta o sujeito de seu
próprio mundo e impede o reconhecimento de que a subjetividade não é uma instância a priori, mas uma
esfera do saber, também constituída em um ambiente de valores e normas compartilhados e sujeitos à
atualização e transformação.
Uma das facetas esgotadoras dessa racionalidade unilateral – a mais relevante para Hegel, em vista de seus
efeitos devastadores – reside precisamente em sua concepção limitada de liberdade, calcada nos princípios
epistemológicos da cisão abstrata. A modernidade é calcada na noção de liberdade individual, cujo
fundamento último é o arbítrio. A razão binária e excludente trabalha com uma ideia de liberdade como
realização pessoal da vontade e toma a vontade do outro como oposta à sua, o que redunda na anulação de
uma das vontades, quando alguma outra se lhe opõe. A dialética se faz necessária, portanto, para pensar um
conceito de liberdade no qual o ser-aí livre não colapsa em outro ser-aí igualmente livre: a liberdade não é um
dado anterior às relações humanas, inato, extrínseco aos sujeitos, que as instituições devem defender, mas um
elemento da vida social que a instituições devem construir e preservar.
Sobre a relação entre o conceito de liberdade e a historicidade da racionalidade dialética, Axel Honneth
defende que o propósito de Hegel é explicar o entrelaçamento entre racionalidade e realidade social . A
Fenomenologia do Espírito tratará precisamente de criar um sistema de pensamento que justifique essa
relação, evidenciando suas condições de possibilidade. Desse modo Hegel revoga uma noção de racionalidade
que seja pura ou pré-institucional (como pretende o pensamento moderno de Descartes a Kant), defendendo
uma dimensão compartilhada de racionalidade, fator determinante para a aproximação entre Hegel e questões
contemporâneas da teoria social: sua filosofia é mais sensível à estruturação das instituições e às patologias da
sociedade moderna. Acerca disso, Charles Taylor defende que “a tentativa contemporânea de ir além desse
dilema, de situar a subjetividade, relacionando-a com nossa vida como seres corporificados e sociais, sem
reduzi-la a uma função da natureza objetificada, nos remete constantemente à Hegel” .
Por outro lado, as instituições modernas que pensam a liberdade como arbítrio consideram a existência de
uma hierarquia abstrata entre forma e conteúdo, priorizando a forma – ou seja, seu aspecto subjetivo – e
rebaixando o conteúdo a uma instância à qual a forma se aplica como princípio normativo. Como
consequência, estas instituições conduzem o homem a uma vida sacrificial que colapsa na dissolução de seus
potenciais emancipatórios. Um sujeito puro não pode, por exemplo, ser o fundamento último da moralidade,
como quer a moral kantiana, uma vez que o critério do qual esse sujeito se vale para reconhecer quais são as
práticas mais desejáveis meramente é interno, não possui valor objetivo e conduz a uma compreensão
distorcida de normas e valores. Qualquer critério válido de normatividade deve se originar na práxis. A
proposta hegeliana abre caminhos no debate acerca do tipo de racionalidade devemos nos esforçar para
privilegiar, sobretudo em tempos nos quais se consolidam formas de organização social cada vez mais pautadas
pela racionalidade técnica de operacionalização de meios cujos fins são a produtividade crescente e o
cumprimento de exigências mercadológicas que pouco ou nada tem a ver com as exigências humanas mais
fundamentais.
Palavras-chave: Hegel – Kant – Modernidade – Crítica – Liberdade
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Nome: Bruno Ferreira da Rosa.
Instituição de Ensino: FFLCH/USP.
Orientador: Ricardo Ribeiro Terra.
Título: A dialética atravancada: ainda sobre Hegel e as mulheres.
O impacto dos movimentos sociais sobre a história do pensamento ocidental, especialmente na segunda
metade do século XX, colocou para a filosofia e, mais especialmente, para a história da filosofia, questões que,
gostem ou não os intérpretes, se tornaram incontornáveis. Incontornáveis na medida mesma em que nos
obrigam a tomar uma posição (tácita ou explícita) frente a essas peças de nossa cultura que chamamos de
textos clássicos da filosofia. A um leitor mais ou menos experimentado, não terão, por exemplo, passado
desapercebidas as sentenças nada lisonjeiras dedicadas às mulheres, aos negros, aos índios, e assim por diante,
no interior de alguns desses textos clássicos. Preconceitos de época, alguns dirão, uma vez que ninguém (nem
mesmo esse tipo arredio que chamamos de filósofo) está além de seu tempo; mas rapidamente emendarão:
isso em nada invalida seu sistema.
Contudo, uma vasta literatura gestada no bojo da assim “década das humanidades” não se contentou com essa
resposta e, aprofundando suas suspeitas, procuraram mostrar como essas peças de nossa cultura carregam
muito mais profunda e especificamente as marcas da mesma enquanto produto de um certo grupo, de um
certo gênero, de uma certa raça, e assim por diante, de modo que temas tidos por secundários passaram,
então, para o plano de frente dos estudos e análises. Ora, essa inflexão no tratamento do cânone filosófico
implica, por sua vez, que a resposta à pergunta por ela colocada não pode mais se dar, digamos, pela simples
desculpa de um preconceito de época, uma vez que o que está em causa é justamente se esses sistemas se
sustentam para além dos mesmos, ou se eles, esses sistemas, são a morada filosófica dos mesmos, seu lugar de
justificação e acabamento. O que está em causa, portanto, não é apenas se esses sistemas são imputáveis ou
não, mas algo mais rico em implicações filosóficas: a capacidade de esses sistemas, esses pensamentos serem
aproveitados em nosso tempo para pensar criticamente o nosso tempo, numa palavra, a sua possibilidade de
serem atualizados.
O caso de Hegel é, no interior desse questionamento, algo de notável e que solicita ponderações. Por um lado,
o filósofo da “dialética do reconhecimento recíproco” e da “luta por reconhecimento” parece ser aquele capaz
de nos fornecer, a uma primeira vista, boas ferramentas para se pensar a luta das mulheres pela emancipação
e por seus direitos; por outro lado, não são poucas as passagens de sua obra em que Hegel dirige às mulheres
sentenças nada honrosas, além de sua opção por confina-las, no interior da Eticidade, unicamente à esfera do
lar, alijando-as do espaço público-político. Trata-se de uma opção (Cf. BENHABIB, 1992), já que o filósofo
dispunha, a seu tempo, de bons exemplos de lutas de mulheres que poderiam ter servido de contraponto à
figura tradicional de mulher que ele endossa. A questão que se levanta é, contudo, dimensionar essa opção à
luz do método dialético empregado por Hegel na construção de sua doutrina do Espírito Objetivo e, mais
especificamente, de sua Filosofia do Direito.
A expressão mais aguda dessa questão, e colocada em termos bastante acentuados, pode ser resumida na
interpretação oferecida por Barber, para quem a falha do método dialético residiria justamente nisso: em se
converter na legitimação do existente, sendo o caso das mulheres (tal como Hegel o estiliza) o exemplo
paradigmático dessa vocação conservativa e legitimadora da dialética. Para esse intérprete, é da tensão mal
resolvida entre a história (a vertente motriz) e o saber absoluto (a vertente estática) que Hegel se resolveria
pela ênfase neste último, paralisando a marcha da história e, com ela, o papel das mulheres no interior da
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sociedade. A dialética estaria a serviço de legitimar e acolher num sistema os preconceitos do seu tempo,
elevando-os ao que é racional em si e para si.
Ora, essa interpretação de Barber, embora toque em problemas importantes, parece ser demasiado apressada.
Que Hegel confine a mulher ao lar, projetando sobre ela todos os preconceitos do ocidente sobre as mulheres
(passiva, sentimental, maternal, etc), não quer dizer que o método o levou necessariamente a isso, enfim, que
é a dialética que legitima o existente tal como é. O que se há de perguntar é, antes, se a dialética mesma não
era capaz de munir Hegel das ferramentas necessárias para triturar os (seus) preconceitos de época sobre as
mulheres, se ela mesma não era capaz, com sua processualidade, de subverter essas cristalizações de
preconceitos, enfim, se ela, ao invés de ser o corolário de um conformismo filosófico, não foi justamente
aquele elemento que foi bloqueado em certo sentido e sob certo aspecto de fora pelos preconceitos que
entraram no sistema.
Com efeito, a reavaliação dessa questão, que passa por uma justa apreciação do famigerado capítulo sobre o
saber absoluto, sobre a natureza do trabalho enquanto aquele elemento capaz de formar o homem em suas
faculdades (para além do fundamento natural) e da relação entre dialética e sistema, pode nos apontar na
direção de pensar aquilo que Hegel poderia ter pensado, mas não pensou, não por uma falha em seu sistema e
em seu método, ou seja, não por um problema de sua filosofia, mas por um preconceito que veio de fora, se
infiltra no sistema, atravancando, ali na figura da mulher, a dialética da consciência da liberdade e da
reconciliação (na Filosofia do Direito não levada a cabo, mas entrevista na Fenomenologia do Espírito) entre a
mulher e a cidade. Este parece ser um caminho não para desculpar Hegel de seus preconceitos, mas de manter
vivo e atual aquilo que o sistema hegeliano legou de mais profícuo seja para a geração que o seguiu
imediatamente, seja para nosso tempo – a força da dialética em suas mais diversas configurações.
Referências:
BARBER, Spirit’s Phoenix and History’s Owl or The Incoherence of Dialetics in Hegel’s Account of Women. In:
Political Theory. V. 16, n. 1. 1988.
BENHABIB, S. On Hegel, Women and Irony. In: Situating the Self. Gender, Community and Postmodernism in
Contemporary Ethics. New York: Routledge, 1992.
____________. & NICHOLSON, L. Politische Philosophie und die Frauenfrage. In: FETSCHER, I. & MÜNKLER, H.
(edt). Pipers Handbuch der politischen Ideen. Vol. 5. Mucih; Zurick: Piper Verlag, 1987.
PINKARD, T. Saber absoluto: Porque a filosofia é seu próprio tempo apreendido em pensamento? In: Revista de
Estudos Hegelianos. Ano 7, nº 13, Dez/2010.
KERVÉGAN, J.-F. Hegel e o Hegelianismo. São Paulo: Loyola, 2008.
KRELL, D. F. Lucinde’s Shame. Hegel, Sensuous Woman and the Law. In: CORNELL, D; ROSENFELD, M. &
CARLSON, D. G (edts). Hegel and Legal Theory. New York: Routledge, 1991.
TERRA, R. R. Kant racista? In: Coleção CLE. vol. 57. Campinas, 2010.
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Nome: Camila Pilotto Figueiredo
Instituição de ensino: UFPel
Orientador: João Hobuss
Título: Possibilidades alternativas e responsabilidade moral: aproximações entre Crisipo e Harry Frankfurt
O requerimento de possibilidades alternativas é um critério considerado desde o período antigo como
importante quando se tratava acerca da responsabilidade moral. Grande parte dos autores incompatibilistas
durante toda a história da filosofia atesta a necessidade do agente possuir possibilidades alternativas de ação
para que seja responsabilizado moralmente por seus atos. Os estóicos compreendiam que sua filosofia fatalista
não era compatível com tal critério, mas entendiam que a responsabilidade moral podia ser sustentada através
de outros elementos. Atestamos esse fato através da afirmação de Alexandre de Afrodísia:
(1) Pois os estoicos negam que o homem tenha a possibilidade de escolher entre ações opostas, e dizem que o
que acontece através de nós é o que está em nosso poder... (6) Eles dizem que os movimentos causados pelo
destino através dos animais ‘estão em poder dos animais’. Em termos de necessidade, seus movimentos são
como qualquer outra coisa, já que também para eles as causas externas devem ser presentes por necessidade,
resultando que, de certa maneira, é por necessidade que eles comandam o seu movimento auto-propulsor de
acordo com um impulso. Mas, pelo fato desses movimentos sucederem por impulso e assentimento (...) eles
dizem que este movimento ‘está no poder dos animais (...).’ (LONG; SEDLEY, (1987, p.389-390) tradução do
autor).
Na passagem supracitada vemos, então, que Crisipo nega o critério de possibilidades alternativas e recorre
processos internos ao agente para explicar como os seres humanos podem ter poder sobre suas ações. Os dois
estados mentais a que se recorre, então, são impulso e assentimento. Segundo o pesquisador Ricardo Salles
(2005, p. 59), os processos internos necessários para a responsabilização moral do agente, de acordo com o
estoicismo, acontecem da seguinte maneira:
(a) Uma impressão impulsiva (φαντασíai ορμητικαί) é recebida apresentando um curso de ação como
apropriado; (b) eu reflito sobre a apropriação da ação considerando todos os aspectos, me perguntando ‘dadas
as presentes circunstâncias, é a ação digna de escolha? Eu deveria assentir à impressão?’; (c) eu chego à
conclusão de que a ação é digna de escolha e, assim, dou assentimento (σιγκατάτεσις) e aceitação à impressão;
(d) o impulso (πρακτική ορμή) produz a ação. Por causa do passo (b), o impulso em (d) é chamado de ‘impulso
completamente racional’ (κρíσις).
Nessa passagem nos deparamos com o critério estóico de responsabilidade moral. Crisipo sustenta que um
impulso completamente racional é suficiente para a atribuição de responsabilidade moral, o que significa que
se um indivíduo age sob um impulso que tem por base reflexões prévias (krisis), ele demonstra que agiu sob a
convicção de que sua ação era digna de realização e de que sua convicção é baseada em razões. Essas razões
são o que justifica o ato do agente; não importa que sua ação tenha sido necessária, pois ela foi realizada com
base em razões e foi assentida por ter sido considerada a ação correta a se fazer.
Assim como Crisipo, o filósofo contemporâneo Harry Frankfurt, em sua obra ‘Alternate Possibilities and Moral
Responsibility’ nega o princípio de possibilidades alternativas, sustentando que o mesmo é falso. O pensador
explica que a maior parte das pessoas acredita que (AP) ‘A liberdade da vontade requer o poder de agir
diferentemente, ou possibilidades alternativas’, e isso ocorre porque esta noção baseia-se no Principio de
Possibilidades Alternativas (PPA), que defende que ‘pessoas são moralmente responsáveis pelo o que fizeram
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apenas se puderam ter agido diferentemente’. Frankfurt lança uma série de exemplos para tentar refutar o
PPA, exemplos conhecidos nomeadamente como ‘FrankfurtTypes’, cujo exemplo mais famoso é o que segue:
Suponha que alguém, Black, vamos dizer – quer que Jones realize uma certa ação. Black está preparado a ir
longe para conseguir o que quer, mas ele prefere evitar mostrar sua mão desnecessariamente. Então ele
espera até que Jones esteja perto de decidir o que fazer, e não faz nada a não ser que esteja claro para ele
(Black é um juiz excelente de tais coisas) que Jones irá decidir fazer algo diferente do que ele quer que Jones
faça. Se tornar-se claro que Jones irá decidir fazer outra coisa, Black dará passos efetivos para garantir que
Jones decida fazer, e que de fato faça, o que ele quer que Jones faça. Quaisquer que forem as preferências
iniciais e inclinações de Jones, Black saberá. (FRANKFURT (1969, p.835) tradução do autor).
O ponto crucial do exemplo é deixar claro que Jones não pode agir diferentemente porque Black não deixará, o
que significa que o agente não possui possibilidades alternativas. Mas Jones pode decidir voluntariamente
fazer o que Black quer, caso em que Black não interviria. Assim, se agir voluntariamente (‘on his own’), Jones é
moralmente responsável por sua ação, mesmo que de fato não tenha possibilidades alternativas. Mas, se para
Frankfurt o PPA é falso, qual seria o critério suficiente para considerarmos um sujeito moralmente responsável
por suas ações? Do pouco que foi apresentado até o momento, percebemos que é necessário que o agente aja
por si mesmo (‘on his own’), mas em algumas obras de Frankfurt, compreendemos ainda que parece
necessário e suficiente para a responsabilidade moral que o agente possua a capacidade de ter desejos de
segunda ordem, ou seja, possua capacidade de refletir acerca dos desejos que possui e que quer possuir. O
único caso em que Frankfurt deixa claro que um indivíduo não é moralmente responsável por sua ação é
quando ele age contra a vontade que possui, sendo externamente coagido. Ainda, podemos inferir dos artigos
de Frabkfurt que, embora um agente não seja livre, ele pode ser moralmente responsabilizado por sua ação, já
que é responsável por não conseguir que sua volição de segunda ordem se torne sua vontade.
Como é possível perceber nessa breve exposição, há algumas aproximações entre a teoria compatibilista do
estoico Crisipo e do contemporâneo Harry Frankfurt. Além de ambos buscarem refutar argumentos
incompatibilistas que aleguem a necessidade do critério de possibilidades alternativas para a responsabilidade
moral, ambos partem da necessidade reflexiva como critério necessário e suficiente para a responsabilidade
moral, considerando tal critério compatível com um mundo completamente determinado. O artigo completo
possui como objetivo, além de apontar essas similaridades, evidenciar a importância das presentes
considerações feitas acerca das teorias desses filósofos no debate contemporâneo acerca do determinismo e
da liberdade da vontade.
Palavras-chave: Possibilidades Alternativas. Responsabilidade Moral. Determinismo.
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Nome Completo: Carlos Alberto Leite de Moura
Instituição de Ensino: Faculdade de São Bento-SP
Nome do Orientador: Franklin Leopoldo e Silva
Título do Trabalho: Gênese da filosofia e ensino universitário em Schopenhauer
O presente trabalho abordará dois aspectos da filosofia de Arthur Schopenhauer, o primeiro é a caracterização
da atividade filosófica como efeito da necessidade metafísica no homem e, o segundo, a posição do filósofo em
relação ao ensino universitário de então. Ambas as abordagens complementam-se mutuamente e resgatam, a
nosso ver, temas importantes e recorrentes, tais como o fundamento da filosofia e seu ensino, enfim, a gênese
e a dimensão social.
Para Schopenhauer a filosofia é o produto de um anseio imperioso, uma necessidade metafísica presente em
mentalidades eminentes, aquelas que não se satisfazem com a metafísica popular (religião). A mentalidade
filosófica espanta-se na imensidão dos mistérios e, nesta condição, inclina-se aos questionamentos que
tencionam ultrapassar a crise produzida pelo desconhecimento. Enfim, tal como Platão (no Teeteto) e
Aristóteles (na Metafísica), Schopenhauer entende que a filosofia começa com o espanto (thaumazein). A
crítica do filósofo de Frankfurt a seu ex-professor e figura importante do idealismo alemão, Johann Gottlieb
Fichte, ilustra (polemicamente) esta questão.
Sendo a filosofia uma metafísica imanente, destinada à busca da resolução do enigma do mundo, compreendese porque o filósofo a considera como a mais alta realização da inteligência. Diante de uma natureza
aristocrática, ou seja, os poucos gênios e os muitos tolos assim o são desde o nascimento, então a tarefa
elevada da filosofia jamais será “popular”. Desta forma, como conciliar a filosofia com seu ensino?
O filósofo de Frankfurt considera a filosofia como uma espécie de integração dos conhecimentos, no sentido
de que as ciências particulares (empíricas) comprovam o que a metafísica (aqui sinônimo de filosofia)
apresenta e ainda dela dependem para a obtenção de seus respectivos fundamentos, deste modo, a filosofia é
também um tipo de conhecimento, mas sua transmissão – como pretendemos esclarecer – é problemática.
Dada esta especificidade que combina o mais amplo panorama dos conhecimentos com o mais vivo impulso
interrogante (o thaumazein), a pessoa do professor de filosofia deve, segundo Schopenhauer, ser levada em
conta previamente. Critério compreensível na medida em que pode haver tanto o professor perplexo diante do
mundo quanto o professor indiferente ao mundo, limitado à erudição livresca, porém toda e qualquer filosofia
só pode existir onde houver o espanto, condição sine qua non do amor ao saber. Enfim, o primeiro aspecto
relevante nesta análise é que o ensino da filosofia não deve ser estranho a seu modus operandi.
O segundo aspecto, derivado do primeiro, é o da docência que tem a filosofia como meio ou como fim. O
professor familiarizado com o espanto “viverá pela filosofia”, porém aquele motivado apenas pela
sobrevivência material “viverá da filosofia”. A grande questão aqui é a possível mácula dos interesses pessoais.
Unido a este segundo aspecto está o vínculo estatal da universidade e o possível comprometimento do
professor com a orientação de seu patrão, o Estado. Assim, se determinada posição filosófica se opõe aos
valores defendidos por um superior hierárquico, provavelmente o professor que tem a filosofia como meio irá
ignorar tal posição, ainda que a ela dê crédito, uma vez que sob este aspecto ele não passa de um funcionário
que prioriza sua renda.
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A crítica de Schopenhauer ao vínculo estatal das universidades tem em vista a preservação da liberdade de
pensamento e a exposição idônea das diversas filosofias. Tal idoneidade é importante para que não seja
transmitido, sob o nome de filosofia, teologia e religião (algo que o filósofo identificou e atacou).
Um terceiro aspecto de relevo, nestas reflexões schopenhauerianas, é a possibilidade do professor apresentarse aos jovens, em geral inadvertidos, como juiz soberano de filósofos e obras. Por esta razão o filósofo defende
o contato com as obras clássicas a fim de se evitar distorções de intermediação e de se beneficiar com tal
contato.
Desta concepção elitista de filosofia associada a uma severa crítica ao ensino universitário (Alemanha do século
XIX), destacamos duas etapas preliminares para uma reflexão sobre a atualidade da filosofia: definir o que se
entende por ela e avaliar sua atividade/ensino com base na harmonia ou desarmonia em relação à definição.
Em outras palavras trata-se da relação entre “a essencialidade (da gênese) e a historicidade (do ensino)”. Tais
etapas, atentas à permanência essencial e à transitoriedade histórica, permitem-nos de algum modo conhecer
e re-conhecer a filosofia no curso do tempo.
Por fim, pode-se afirmar que compreender a complexidade da esfera educacional da filosofia implica em
dirigir-se a um tratamento pluridimensional, incluindo sua gênese e sua posição hierárquica entre as ciências.
Por transitar nesta via, a filosofia schopenhaueriana oferta questionamentos relevantes tanto hoje quanto no
século XIX.
Referências:
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Unesp, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Filosofia Universitária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Filosofia e seu Método. São Paulo: Hedra, 2010.
Palavras-chave: Filosofia, metafísica, ensino, professor.
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Nome: Cátia Cristina B. De Almeida
Instituição de USP
Orientador: Homero Santiago
Título: A memória em tempos de crise - Pensar a crise pelo viés de uma história-memória em Espinosa.
Apenas com o intuito de nos situarmos no texto, uma vez que o foco aqui não é tratar da gênese da memória,
mas sim de sua prática, é importante ressaltar que o que me levou a pensar a memória nos moldes da história
se deu através de uma investigação sobre o corpo. Nesse caso, a tentativa se amarra fundamentalmente numa
memória sob a perspectiva corporal e não do tempo. Obviamente que tentar fundamentar uma memória pelo
viés do corpo nos faz esbarrar com conceitos muito caros a filosofia espinosana, como trazer a tona a questão
do tempo e também da história. Afinal, é a Espinosa endereçada a dura crítica de esvaziar o tempo de conceito
ontológico e com isso o sentido de história. Assim, estamos falando de uma filosofia sem tempo e tampouco,
sem história. Bem, nossa intenção é articular por outros caminhos, que nos levem a conceber um tempo, uma
história e com isso uma memória que não nos moldes da tradição até o século XVII.
Bem, estamos expondo tudo isso aqui para dizer que a memória em Espinosa não é outra coisa senão um
engendramento entre coisas e ideias que se passa na mente com o seu corpo. Isto é, a memória é fruto de uma
relação entre os corpos, entre os indivíduos, dessa relação que travamos com as coisas e com os outros, somos
marcados mutuamente, ou seja, afetamos e somos afetados, registramos coisas, frases, imagens, enfim, tudo
passa por nós, retemos, fixamos, e estas coisas que nos permitimos imprimir, narrar, é o que Espinosa
denominará de vestígios corporais ou traços, marcas. Essas marcas denominarei de memórias, e mais
detalhadamente, em minha pesquisa, é o que pretenderei denominar de história. Porém, me deterei apenas à
relação de memória e história através da práxis e não sob o aspecto ontológico que as aproxima e fundamenta,
a ponto de torná-las idênticas em Espinosa.
Assim, quanto de memória trouxemos para o presente momento? Quanto de nossas marcas e de impressões
de nossos de nossos encontros de outrora, da infância, trouxemos para hoje, sobretudo para o diálogo
político? O que se pretende mostrar? O que se quer esconder? Aliás, o que é viável rememorar ou não? Que
marcas são essas que nos fazem desejar aquilo que não conhecemos realmente? Pois, jovens indo às ruas pedir
pela volta da Ditadura? Pela intervenção militar? Desconhecimento? Ignorância intelectual? Não, não estou tão
certa. Em tempos de manifestações, reivindicações, ou seja, crises sociais, econômicas e políticas, os protestos
que tomaram conta do Brasil desde junho de 2013, o famoso junho de 2013, ainda nos convoca a demonstrar
que a ação de rememorar, aspira, sobretudo, ao devir. A volta ao passado, sem dúvida, quer, através da
história, legitimar e consolidar a memória coletiva seja negando ou afirmando o nosso passado histórico.
Contudo, esse texto não se dará e nem terá espaço suficiente para reflexões profundas sobre o embate político
que ainda permeia as diversas manifestações. Mas, partindo do conceito de rememoração, procuraremos
refletir sobre os mecanismos e apropriações da memória, bem como seus usos nos processos de construção e
transmissão de uma prática social.
Junho de 2013 certamente ficará marcado para nós brasileiros pelo início de uma série de manifestações. O
fator desencadeante é pautado pela redução das tarifas do transporte público onerada em 0,20 centavos de
real. No entanto, e em meio a uma pauta referente ao transporte público, outras tantas se lançam. Grupos
diversos se formam para falar, reivindicar, contestar, sem uma questão definida, mas com inúmeras a definir.
É, em meio a todo esse movimento de aquisições distintas, cuja presença do mutável e do instável se faz, que
gostaríamos de nos remeter. Porém, antes de continuarmos, é importante salientar que esse texto não só
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pretende nos levar a pensar sobre as questões políticas que perpassam pelos protestos e nos movimentam em
direção às ruas, mas também, e, sobretudo, a um outro: a ação de rememorar. O termo nos parece muito
pertinente e atual quando dizemos que rememorar é o ato de atualizar. Atualizar nossos registros ou ainda
nossas impressões. Reorganizar nossas marcas que ao voltar-se para um momento histórico se vê inscrita sob
as mesmas incertezas e imprevisibilidades de futuro de outrora. Todavia, vemos que nossa volta ao passado se
fortifica graças ao coletivo, que, por sua vez, se reforça por meio de acontecimentos que marcaram a história.
O que também nos faz refletir sobre uma memória individual que muito se estrutura e insere-se na memória
coletiva. De acordo com nossa pesquisa, até o momento, percebemos que a memória não é só um fenômeno
individual, ela é, também e, sobretudo, uma construção social e um fenômeno coletivo. Pois, quando falamos
em memória coletiva, aqui manifesta em forma de protestos, mas que surge também como comemorações,
reuniões políticas ou sociais, enfim, até mesmo em uma simples união de pessoas. O que as diferencia entre si,
são os seus usos. Rapidamente falando, no que diz respeito à maneira com que as datas comemorativas
reforçam nossa memória coletiva é o fato de estarmos focados nas comemorações, e isso tende a nos dispersar
dos problemas sociais, políticos, econômicos que assolam o presente e esquecemos, quase totalmente, das
situações históricas constrangedoras do passado, um exemplo: descobrimento do Brasil, e toda a violência
histórica contra índios e negros, ou seja, celebra-se a conquista histórica selecionando a memória coletiva. E
essa é uma outra e longa discussão. Voltemos aos protestos. Esse retorno ao passado tem a capacidade de nos
fixar no presente, fazendo com que esse ato seja, de fato, um trabalho. Apenas a título de esclarecimento,
quando optamos por falar “em um trabalho” da memória, não queremos, sob certo aspecto, atribuir-lhe o peso
que lhe foi vinculado desde Hegel e Marx; mas sim que este ocupe, em nossa concepção, um teor quase que
puramente operacional, isto é, um movimento que não deixa de ser um esforço natural feito pelo corpo em
mais uma de suas associações. Uma aquisição da memória em sua reorganização. Digo uma aquisição, no
sentido de que a ação de reatualizar, envolve o passado (velho), bem como uma prática nova, uma ação
pautada pelo ineditismo em algum momento.
Junho de 2013 certamente deixou seu registro, retomou um passado, uma história, bem como entrou para ela.
Vemos claramente essa retomada quando analisamos a movimentação de alguns grupos, por exemplo: àqueles
que levantaram a bandeira dos “sem partido,” que logo foram comparados pelas mídias sociais aos discursos
promulgados pelos grupos no golpe Militar de 1964 e até mesmo às propostas nazistas. A ida em massa às ruas
num ato semelhante em favor das “diretas já” de 1984 que mobilizou a sociedade brasileira, artistas cantando
em comícios a favor das eleições presidenciais. E por último, remetemos aos “caras pintadas,” que foram às
ruas com seus rostos pintados com as cores da bandeira brasileira para o impeachment do então presidente
Fernando Collor. Diante desses acontecimentos, nosso texto pretende discutir o fato de rememorar enquanto
prática social e política, servindo-se das manifestações ocorridas desde junho de 2013 no Brasil.
Palavras chaves: memória, história, rememoração
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Nome Completo: Clara Guimarães Santiago
Instituição de Ensino: UFABC
Nome do(a) Orientador(a): Graciela de Souza Oliver
Título: O saber médico, a ciência e o controle dos corpos femininos.
O presente trabalho diz respeito a um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “Mulher, Ciência e
Tecnologia: uma análise feminista do jornal News Seller”, que tratou, por meio de uma leitura foucaultiana,
apontar as rupturas presentes na trajetória do jornal entre 1958 e 1969, além de fazer uma análise das
matérias direcionadas ao público feminino. O recorte aqui apresentado, diz respeito especificamente, a
hipótese de que o jornal fazia uso da ciência como recurso de controle os corpos femininos. Para isso, foi
utilizada uma categoria emergida do texto chamada de “o uso da ciência” com o intuito de analisar noventa e
duas matérias publicadas no caderno feminino do ano de 1968. Partindo do entendimento de Foucault para
poder, disciplina e controle, foram problematizadas questões acerca da construção da identidade feminina e
disciplinarização de seus corpos, e por meio da categoria de análise apresentada, chegou-se a conclusão que
todas as 92 matérias direcionadas às mulheres da temática de saúde usavam o discurso científico como forma
de legitimar discursos. Esta pesquisa foi realizada e vinculada a um programa de pós-graduação interdisciplinar
que inclui filosofia e teve como órgão de fomento a FAPESP.
Esta pesquisa relaciona epistemologia feminista, história das ciências, estudos sobre a imprensa feminina e
conceitos foucaultianos para analisar matérias direcionadas ao público feminino e publicadas no jornal News
Seller do ABC paulista entre os anos de 1958 e 1969. A relação entre estas teorias se deu pelo entendimento da
epistemologia feminista de que o saber médico seria utilizado como legitimação de um local para a mulher de
inferioridade em relação aos homens, (RAGO, 2001), que poderia ser percebido na relação entre a imprensa
feminina, o saber médico e a divulgação científica. Estas discussões corroboram com o uso da ciência que
Foucault aponta como legitimador dos discursos.
Neste sentido, a relação entre saúde e controle dos corpos pode ser observada por meio da medicina científica
fundada no século XVIII (FOUCAULT, 2007a, p. 79), que surgiu como algo coletivo, tratando dos corpos,
inclusive do proletariado, e garantindo o nível da força produtiva, pois o controle social inicia-se pelo corpo,
que se torna uma massa corpórea de trabalho. Mas, junto com essa medicina, surge também o hospital como
instrumento terapêutico (FOUCAULT, 2007a, p. 99). Muito dessa “nova” forma de organizar os hospitais, vem
das instituições militares e marítimas, e por meio dessa tradição apropriam-se de uma tecnologia que passa a
ser o fator determinante para essa reorganização: a disciplina (FOUCAULT, 2007a, p. 105).
A disciplina é uma ferramenta do poder operada 24 horas na vida dos indivíduos, pois não basta observar se os
sujeitos seguiram as regras, é preciso vigiá-los durante todos os momentos, inclusive todo o seu tempo de
trabalho. Os sistemas disciplinares estão atrelados a uma hierarquia, ou seja, um soberano que é instituído em
todos os locais, seja nas igrejas, famílias, cidades; nesse caso, o poder atua por meio de núcleos. “A disciplina é
o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua
singularidade.” (FOUCAULT, 2007a, p.106-107).
Na medicina, essa trajetória nos leva à manutenção do saber médico enquanto mecanismo disciplinar, pois
caberia ao médico ter o domínio do controle disciplinar, e ao hospital a função de “[...] assegurar o
esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização.” (FOUCAULT, 2007a, p.108). Sendo assim, a
institucionalização da medicina mostrou-se como um segundo meio ou estratégia de busca para legitimação
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das relações de poder; por outro lado também é uma prática considerada “essencial” ao fazer científico, pois é
por meio dela que o cientista pode divulgar suas pesquisas à sociedade. E é por meio dessa divulgação que os
indivíduos conhecem o que é “certo” e “errado”, e o que é “saudável” para o seu corpo. É através da prática
médica e do controle do corpo que os discursos machistas (RAGO, 2001; SOIHET, 2004; SWAN, 2001) são
perpetuados também na definição do que é saudável ao corpo feminino, nas práticas obstétricas e em alguns
casos na “normalização” da violência.
Sendo assim, na medicina e nas ciências passa a existir um lugar fundamental nesse processo de
individualização do sujeito enquanto objeto de estudo, que resulta, muitas vezes, em um mecanismo de
sujeição das multidões quietas e domesticadas. O controle do registro, da bipolaridade entre saúde e doença,
normal e anormal, são regulações que controlam os corpos. Foucault aponta essa relação de controle e
sujeição justificando-a pelas técnicas do poder e disciplinares, que criam sujeitos úteis e dóceis.
Para análise das matérias foi utilizada uma categoria que emergiu do texto intitulada de “o uso da ciência”, que
foi constituída pelo entendimento de que o estabelecimento dos sujeitos masculinos, femininos e neutros
dentro dos espaços científicos pode ser relacionado com as técnicas do poder, que Michel Foucault (2007a, p.
7-12; 2007a, p.183-184) entende que não pode ser representado por um objeto específico ou algo palpável,
pois o poder está em todos os locais e transita pelas pessoas Nesse sentido, o poder opera pela construção das
verdades, que se organizam por meio de normas, regras, leis e normatização de comportamentos. Tenho como
hipótese que o News Seller produz por meio de argumentos que usam a ciência como “domesticação” dos
discursos e controle dos corpos femininos.
Essa domesticação se relaciona diretamente com o que Foucault chama de “docilização”, que é um conjunto de
comportamentos que resulta das relações de poder, formando um grupo de sujeitos que sentem prazer em
reproduzir as regras criadas pelas técnicas do poder. Com o uso desta categoria, optamos por analisar noventa
e duas matérias da temática saúde do caderno feminino. A escolha desta temática se deu, principalmente,
pelas problematizações encontradas na obra de Foucault entre ciência, medicina, controle dos corpos e
medicina.
Entendemos que podemos observar o uso da ciência em todas as matérias da temática de saúde analisadas.
Chegamos à conclusão de que o News Seller controlava os corpos femininos ao se utilizadas da legitimação da
ciência e buscar “domesticar” o conhecimento que as mulheres devem ter, por exemplo, para educar seus
filhos e administrar sua casa. “A medicina é uma estratégia bio-política [...]”, e por meio dela se controla os
corpos, que desde seu surgimento se tornaram massa de trabalho. Para Foucault (2007a) a ciência virou um
instrumento a serviço do poder, se conectando as estruturas sociais e isso podemos observar nas matérias de
saúde do jornal News Seller.
Palavras-chave: Foucault, controle dos corpos, epistemologia feminista, ciência.
Referências:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007a.
______. Nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008b.
RAGO, Maria Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva, v. 15 n. 3, p.
53-66, 2001.
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Nome Completo: Cleber Ranieri Ribas de Almeida
Instituição de Ensino: USP
Nome do(a) Orientador(a): Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros
Título do Trabalho: As formas de autocompreensão histórica em nosso tempo e a filosofia do Zeitgeist no
período entreguerras
O objetivo deste artigo é reconstituir o debate humanista ocorrido durante o interludium bellicum do
entreguerras de forma a demonstrar bibliograficamente que os modos de autocompreensão histórica desta
época, estabeleceram os modos de autocompreensão em nosso tempo. Dentre os lugares-comuns próprios a
este Zeitgeist estão o diagnóstico da falência civilizacional típico do Kulturpessimismus oriundo do
expressionismo alemão, a crítica da técnica e da tecnologia, a denúncia da desumanização e reificação do
homem na sociedade de massa, o “mal-estar na civilização”, as acusações de triunfo do irracionalismo, além
das teses apocalípticas da falência das utopias e do “declínio do ocidente”. A questão a ser discutida resume-se
em saber se a reedição de tais lugares-comuns pela filosofia no que diz respeito à autocompreensão histórica
de nosso tempo se dá em virtude de uma suposta obsolescência conceitual, do fim da história ou do fim da
própria filosofia como intérprete do Espírito do tempo.
“A questão: ‘que é o homem?’ tem agora o aspecto de um caminho liberto e quem, entretanto, o percorre
sem abrigo, atrai sobre si a tempestade do ser” Martin Heidegger
A historiografia política recente costuma demarcar o início do século XX a partir da deflagração da Primeira
Guerra Mundial. Miríades de justificativas podem ser detectadas para tal demarcação, embora nenhuma delas
tenha implicado em conseqüências à elaboração de uma teoria política em nossa época. Em verdade, para a
teoria política normativa e para a maioria dos autores que produziram, e ainda produzem, a reflexão política
acerca das principais questões surgidas neste século, as formas de pensar o político produzidas neste período,
o entreguerras, assemelham-se mais a um amontoado museológico que nada pode oferecer às questões
atuais: seu legado pertence ao sótão empoeirado da história das idéias políticas. A leitura de autores como
Jacques Maritain, Gilbert K. Chesterton, Gabriel Marcel, Max Scheler, Martin Buber e Ernst Jünger, para nos
atermos apenas a estes nomes, traz a lume questões teológicas ou de natureza filosófico-antropológicas que
nos parecem anacrônicas se as compararmos às indagações presentes na reflexão política de autores
hodiernamente em voga, tais como John Rawls, Michael Walzer e Jürgen Habermas. Este hiato lingüístico e
conceitual entre dois grupos de autores cuja distância cronológica é quase desprezível pode ser explicado tanto
pela falência do paradigma humanista hegemônico naquele contexto histórico do entreguerras, quanto pelo
conteúdo teológico-metafísico daquele tipo de reflexão, em contraposição à linguagem secular própria ao
segundo grupo de autores. Poder-se-ia ainda alegar, a guisa de Thomas Kuhn, que a teoria política deste século
não se constituíra sob os parâmetros de uma ciência normal, assemelhando-se a uma espécie de
empreendimento babélico que gerou uma proliferação desenfreada de paradigmas. Tais explicações
apodícticas, malgrado plausíveis, deixam em aberto algumas questões acerca dos fatores que interferiram
nesta reviravolta secular do pensamento político no século XX. A primeira indagação diz respeito à suposta
falência do paradigma humanista então hegemônico durante o período entreguerras: quais fatores
determinaram a falência deste modelo teórico? Por que a discussão acerca do ser do homem, que então
tantalizava a inteligência européia e atuava como fundamento conceitual da teoria política, tornou-se
progressivamente obsoleta a partir do fim da Segunda Guerra?
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Marcado pela revivescência do tema do humanismo, o período entreguerras tinha por insígnia a crise da idéia
de civilização e a falência das utopias do século XIX. Nesta atmosfera sombria, as pulsões intelectuais
mobilizaram-se no intuito de prover novas energias utópicas, e o ideário humanista se constituiu na arena de
conflito para a qual todas as forças políticas se encaminharam. Uma vasta literatura de testemunho no front da
Primeira Guerra fora produzida, desde aqueles que exaltavam a experiência bélica, como Ernst Jünger, até
aqueles que denunciavam o conflito como destruição das formas de representação cognitiva do humano, como
Erich Maria Remarque. Entre a barbárie e a civilização, a intelligentsia européia do entreguerras buscava
reconstituir os fragmentos de uma imagem de mundo cujos valores se esfacelavam. Por esta razão, alguns
autores como Norbert Elias e Franklin Baumer assinalaram recentemente que a ascensão da história das idéias
nas principais academias européias durante este período representava uma nítida tentativa de reconstituir
uma imagem total do mundo, sobretudo através da busca de um zeitgeist capaz de dar inteligibilidade às
múltiplas e inovadoras experiências humanas na arte, na política e na ciência. O conflito acadêmico
prevalecente no século XIX entre história política e história da cultura fora resolvido — ante as demandas por
uma representação holística da ação do homem no mundo — através do ressurgimento da história das idéias,
olvidadas desde seu advento na Idade Moderna com Voltaire e o iluminismo do século XVIII. Segundo Baumer,
a história das idéias estabeleceu-se, sobretudo, após a publicação das obras completas de Dilthey em 1920: a
partir daí, este gênero historiográfico representou uma tentativa de estancar a percepção fragmentária da
cultura ocidental. Para Baumer, “a evolução da história das idéias deve muito à fragmentação contínua do
conhecimento na cultura ocidental. Desde o começo [...] a história das idéias representou uma tentativa de
estancar esta direcção fragmentária, para ver se não seria possível considerar as culturas como totalidades e
inter-relacionar as suas partes”. Tal estancamento da tendência fragmentária poderia ser entrevisto, por
exemplo, ainda, nas obras de Oswald Spengler e Arnold Toynbee, autores que buscavam narrar a unidade da
história da humanidade mobilizando o conceito de civilização, ou mesmo na filosofia antropológica de Ernst
Cassirer, que afirmava a unidade do humano enquanto ser simbólico.
Arno Mayer, nesta mesma chave, sustenta a tese segundo a qual as duas grandes guerras representaram a
derradeira deflagração do conflito entre o Ancien Régime e a ordem burguesa, ou seja, entre uma ética
aristocrática, agrária e estamental oposta àquele “evangelho do progresso terreno”, cultivado pela burguesia
liberal-industrial européia. Mayer enfatiza este contexto histórico como um período marcado pela a percepção
pública e difusa da idéia de decadência civilizacional, ressaltando que a assimilação do declínio pela
intelectualidade européia tinha a conotação de uma “queda da cidade clássica da política”. O autor associa a
atmosfera decadentista ao fin-de-siècle e afirma que “a inquieta intelligentsia da Europa julgava que as
contradições exacerbadas entre a cultura humanística e o apelo democrático explodiriam numa era de trevas”.
Essa mesma tonalidade decadentista é sublinhada por Arthur Herman quando este reconstrói a genealogia da
idéia de decadência, distinguindo o entreguerras e o imediato pós-guerra como períodos marcados pelo
“triunfo do pessimismo cultural”, expresso na crítica frankfurtiana ao iluminismo positivista e na concepção de
história de Spengler e Toynbee.
Decerto em virtude da proliferação de correntes humanistas durante o entreguerras, Reinhart Koselleck, ao
tratar dos pares de contraconceitos “Homem/Não-Homem” e “Super-Homem/Sub-Homem”, adverte para o
alto potencial político e ideológico que tais jogos semânticos assumiram desde o início da Idade Moderna.
Embora o autor tenha se concentrado nas transformações conceituais e políticas que tais idéias sofreram
desde a Revolução Francesa até ascensão do discurso racial nazista, é possível entrever em sua argumentação
uma linha progressiva que se encerra justamente ante o exame das múltiplas doutrinas humanistas do
entreguerras. Conforme assinala Koselleck, o estudo dos jogos semânticos do contraconceito Homem/NãoHomem, assumiu, dentre todos os pares por ele investigados, o mais alto teor de ideologização e mobilização
política.
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Este diagnóstico ratifica a constatação de que o humanismo do entreguerras se constituiu num grande
engenho ideológico cuja finalidade seria preencher as lacunas utópicas e dissipar o sentimento público de
decadência e falência civilizacional. O vocabulário humanista e a postulação de uma história das idéias — com
método e objeto claramente definidos — constituíram as estratégias de reconfiguração de uma imagem
integral do mundo e do homem ante a barbárie de duas guerras mundiais. Autores como Arthur Lovejoy e Paul
Hazard mobilizaram-se neste esforço pela apreensão de um Espírito epocal capaz de ver tudo sub specie
temporis e explicar, sob a umbrela de uma idéia unicista, desde os experimentos da arte de vanguarda até a
filosofia do ser. Por esta razão, em plena década de 1930, Lovejoy refere-se à Cadeia do Ser como um conceito
que embora estivesse amplamente espraiado nos clássicos da filosofia ocidental, de Plotino aos românticos,
faltara-lhe a unicidade capaz de reunir os excertos e fragmentos de uma história conceitual que já nos era
familiar. Segundo ele “Muitas partes separadas da história já foram, de fato, contadas antes, sendo, portanto,
presumivelmente mais ou menos familiares; mas é a relação dessas partes com um único complexo de idéias
que as atravessa — e por esse meio, frequentemente, a relação de uma com a outra — o que ainda parece ser
preciso narrar”.
A representação nadificante do mundo, expressa através de conceitos e sentimentos como angústia, náusea,
má-fé, nada, absurdo e alienação, encontrou em autores dos mais variados gêneros de escritura, tais como
Beckett, Kafka, Ionesco, Sartre, Paul Celan, Char e T.S.Eliot sua mais pungente figuração. Em verdade, o
processo de nadificação das formas de representação do mundo consistiu em uma radicalização da experiência
da temporalidade e da própria percepção da finitude da existência. Neste aspecto, Heidegger foi o autor que
melhor compreendeu esta nova experiência da temporalidade, contrapondo-a a percepção aristotélica do
tempo como medida do movimento.
Malgrado tais empreendimentos intelectuais representarem a expressão mais sublime deste período sombrio
da história da civilização ocidental, a experiência do front narrada pela literatura de testemunho da Grande
Guerra — literatura essa que se manifestava, durante o período vitoriano, através do hábito comum das
pessoas em redigir cartas e diários de confissão — deve ser também levada em conta, sobretudo porque os
relatos pessoais se constituíram numa espécie de metonímia da civilização ocidental. Além da denúncia da
despersonificação do sujeito nas trincheiras do Front (“o ocaso do sujeito”, como definira Gianni Vattimo),
expressa em tabulações estatísticas que abstraíam a morte de milhares de seres humanos, a experiência da
guerra trouxe consigo a percepção dos limites da representação de determinados eventos históricos. A
narração do testemunho, diante do inefável, soava sempre como um balbucio que buscava representar um
objeto intransferível pela linguagem, nunca superando o déficit mimético entre a experiência e o relato. Este
limite linguístico intransponível fora a tônica de toda uma geração cuja principal contribuição à história do
pensamento ocidental residiu na elaboração de uma crítica radical ao triunfalismo prometéico do século XIX,
iniciando um movimento intelectual de auto-reflexão do homem, seus limites e suas possibilidades.
Não obstante tal contributo, a reflexão política do denominado interregno bélico é hoje, em sua maioria,
negligenciada. Não há qualquer interlocução entre a vasta produção bibliográfica deste período de
revivescência humanista e a atual voga procedimentalista. É como se a teoria política do pós-guerra, à revelia
das discordâncias entre republicanos e procedimentalistas liberais, se auto-impusesse um esforço de
insulamento histórico, recusando, desde então, a bizantina discussão acerca da condição humana: somente
através dessa recusa o pensamento político poderia dar o seu último passo rumo a uma completa secularização
de suas premissas. Este consenso político e epistemológico, entretanto, vem sendo solapado desde a ruptura
civilizacional do September Eleven. Estaríamos tacitamente experimentando uma espécie de retorno à
antropologia filosófica como fundamento da teoria política: é inegável que autores como Giorgio Agamben,
Peter Sloterdijk, Charles Taylor e Alasdair MacIntyre têm restituído o tema da antropologia filosófica ao
pensamento político moderno.
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Em verdade, a discussão acerca dos fundamentos antropológicos da teoria política especificamente, e da teoria
social em geral, jamais fora abandonada no período pós-guerra. Se averiguarmos com cautela, veremos que
tanto o pós-estruturalismo francês da década de 1960 — sobretudo aquele expresso na obra de Jacques
Derrida e Michel Foucault — quanto a reflexão política de autores como Hannah Arendt, Herbert Marcuse,
Theodor Adorno, Leo Strauss e Eric Fromm, fora, em sua tônica geral, um esforço de compreensão da condição
humana na modernidade. O próprio Leo Strauss já advertira em seu clássico Natural Right and History sobre o
fato de que a questão da natureza do homem permanecia sem solução porque houve um abandono das
premissas do pensamento clássico, e que este dilema não cessou sua perseguição ao pensamento moderno,
agravando seu caráter aporético sob efeito das contradições criadas pela ciência positiva e o historicismo.
O propósito deste projeto de pesquisa é, portanto, reconstituir preliminarmente a trajetória do ideário
humanitas desde o entreguerras até o início do século XXI, mapeando a produção bibliográfica mais relevante
para configuração do problema e suas hipóteses. A partir daí poderemos analisar o papel do humanismo na
teoria política deste período e sugerir qual poderá ser o seu papel em um futuro próximo.
Palavras-chave: Zeitgeist; Autocompreensão histórica; Filosofia do Entreguerras.
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Nome: Daniel Fujisaka
Instituição de ensino: USP
Orientador: Lorenzo Mammi
Título da exposição: Hegel e Santo Agostinho, possibilidades de aproximação por uma nova história da
subjetividade.
Segundo Foucault, o cogito kantiano, nascido há pouco tempo como um duplo empírico/transcendental, se fez
como primeiro pensamento para poder surgir como fundação única do conhecimento das coisas e de si
mesmo. No entanto, como nos quer indicar Foucault, ao empreender o projeto de uma arqueologia do saber
humano, o reinado da metafísica moderna encontrou o seu limite na morte do homem epistemológico.
Vivemos num corte epistemológico. Pode-se dizer que agora esse sujeito tem uma história recente, mas já se
encontra fragilizado:
“o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao saber humano. (...) O
homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra
facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim.”
Parece plausível dizer que este homem desfalece em sua própria pretensão de ser racional, ao perceber-se
calado como ser fundante dos conhecimentos que ele mesmo produziu na ode da modernidade. É interessante
que as ciências humanas, com pretensa dimensão de positividade, vão aniquilando o próprio sujeito, e ao fim, a
veracidade das ciências humanas parece mostrar o próprio limite da razão, concluindo que nada pode ser dito
verdadeiro na analítica do mundo da pura finitude. O homem moderno teria morrido e com ele sua pretensão
de uma filosofia que fale acerca da infinitude. Foucault irá realizar, dessa forma, um trabalho intenso de exame
da racionalidade moderna. Passa a estudar o homem em si, objeto de si mesmo, a fim de verificar sua
constituição interna na expressão finita de si mesmo. Trata-se então de examinar a história do saber humano,
rejeitando o sujeito como alicerce transcendental. Afasta-se, assim, e cada vez mais, de qualquer pretensão
fundacionista da metafísica.
Essa breve introdução foucaultiana pretende somente chamar a atenção para o “espírito de época” em que
vivemos, a fim de nos localizar no terreno da contemporaneidade filosófica. Ler Hegel e Agostinho em dias
atuais é experimentar um duplo movimento: de afastamento e aproximação, afinidades e estranhezas aos
pensadores da subjetividade e da infinitude. Em Hegel, particularmente, nos deparamos com uma das filosofias
sistemáticas mais determinadas a nos apresentar no seio da modernidade e do idealismo alemão um projeto
de um saber absoluto do movimento do real. Neste trabalhamos problematizamos a leitura metafísica que se
fez de Hegel a partir do pressuposto de uma filosofia do sujeito absoluto, retomando a atenção aos
movimentos de sua dialética da contradição, em expressividade do real concreto. Mas o que dizer do luto
contemporâneo pela morte do sujeito moderno? A leitura de Hegel poderia fazer reviver um novo tipo de
kantismo (neo-kantismo?), ressuscitando um sujeito duplo empírico/transcendental? Isto, talvez, explique o
recente interesse na filosofia hegeliana a partir, principalmente, da Fenomenologia do espírito e a Ciência da
Lógica. Mas a análise da possibilidade de um suposto neo-kantismo em Hegel não é o nosso objetivo neste
trabalho. Partiremos da leitura da introdução à Ciência da Lógica, bem como o capítulo sobre a doutrina do ser,
em vista de esboçar um estudo introdutório à noção de dialética em Hegel, tendo como quadro geral o diálogo
com as filosofias da consciência.
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Se em nossos dias Foucault propõe a morte do homem como impossibilidade epistemológica, convidando-nos
à hermenêutica da história em procedimento arqueológico, não devemos pensar que a crítica ao
fundacionismo subjetivo seja algo recente. Hegel já procedia à mesma estratégia, criticando o sujeito
transcendental kantiano e seu instrumental lógico essencial. Notemos, contudo, que mesmo sendo Foucault e
Hegel pensadores que chegaram a resultados aparentemente opostos, ambos parecem compartilhar da
mesma estratégia de base, pois fazem a crítica à substancialidade concreta da verdade primeira, a saber, o
sujeito. É verdade que a filosofia contemporânea parece realizar a crítica do sujeito com o intuito de eliminá-lo
de qualquer papel epistemológico importante e fundacional; enquanto Hegel ainda encontra no sujeito um
lócus do conhecimento, na medida em que o sujeito hegeliano ainda mantém certa substancialidade (mas
como veremos, “sujeito é substância” para Hegel sem estatuto de fundação, pois no interior do sujeito
hegeliano surge uma clivagem interna marcada pela existência simultânea de um determinado imediato e
mediado). Vale dizer que linha de pensamento tem como principal referência o apoio da leitura
contemporânea de Hegel, que procura desvencilhá-lo das chamadas filosofias do sujeito, reencontrando,
talvez, sua maior contribuição para história da filosofia: uma filosofia do infinito marcada pelo movimento real
e racional de negação determinada auto-referencial.
Em seguida, pretendemos revisitar alguns temas da filosofia agostiniana, que, segundo estudos recentes, assim
como nos aponta algumas releituras de Hegel, parecem fazer a crítica da leitura tradicional moderna que
substancializou o sujeito como pura interioridade e primeira certeza. Trata-se de examinar o pensamento
agostiniano, revisando a influência demasiada da metafísica moderna. É certo que não podemos desvencilhar a
metafísica de Agostinho, mas não é certo que a metafísica moderna molde a nossa leitura da metafísica do
bispo. A filosofia de Agostinho foi muitas vezes citada antecessora do conceito da res cogitans cartesiana e,
portanto, associada às filosofias subjetivistas. Descartes, contudo, em seu próprio tempo, foi pessoalmente
alertado por Mersenne de que o cogito não seria estratégia tão original, visto que Agostinho já o esboçara nas
suas obras. O filósofo moderno refuta seu interlocutor dizendo que, apesar de reconhecer a mesma estratégica
contra o ceticismo, o cogito agostiniano não cumpriria o mesmo fim de fundação metafísica. Diz Descartes que
Agostinho não usara o cogito como conceito de substância imaterial. A resposta de Descartes a Mersenne nos
parece em parte correta, no entanto, a história da hermenêutica moderna de Agostinho, muitas vezes, correrá
o risco de tomar a noção de interioridade como idêntica à noção de exame do espírito.
Visto que em Agostinho, a interioridade não se confunde com subjetividade, a interioridade agostiniana não
carece do mesmo embaraço solipisista do sujeito moderno. Parece que Hegel pode nos ajudar a repensar as
próprias demarcações epistemológicas da ontologia e existência das coisas, na medida em que nos ajuda a
pensar os limites de idealidade e realidade. Ao nos convidar para outro modo de pensar que não mais o do
projeto fundacionista do sujeito absoluto, Hegel, talvez nos ajude na leitura de autores pré-modernos cuja
filosofia proponha a análise da infinitude. Adentrando nas profundezas da alma em busca da verdade,
Agostinho se angustia neste itinerário de crise. O caminho à interioridade não o protegia das turbulências e
contradições da vida. Um trecho das Confissões nos chama atenção. Diante da vivência do luto causado pela
perda de um amigo, Agostinho constata: “Tornei-me um grande problema para mim mesmo e perguntava à
minha alma por que estava tão triste e angustiada, mas não tinha resposta”. Não há identidade da alma
consigo mesma, justamente porque a alma se encontra cindida no interior de si mesma. A clivagem no interior
da estrutura do eu é, obviamente, diferente da clivagem na estrutura do sujeito hegeliano. Para Agostinho, a
alma se encontra cindida no campo dos desejos, da vontade. Não se sabe o que se quer, ou melhor dizendo, a
alma não conhece a si mesma, pois, alienada de si mesma e da pura identidade, não se entende ao constatar
que não deseja o que é racional desejar. O exame do problema do mal como privação da vontade é fruto da
jornada do bispo de Hipona que parte do mais exterior material ao mais interior. Encontrará no mais profundo
de si uma única vontade boa, mas cindida, que ao mesmo tempo deseja e não deseja (velle e nolle). Em Hegel,
com vimos, a cisão interna do sujeito se localiza na dupla condição da consciência: ao mesmo tempo imediato,
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dado como puro pensar, e mediado como o eu situado na multiplicidade da realidade, imerso no mundo
fenomenal. Apesar de resultados e estratégias distintas, nos parece que Hegel e Agostinho compartilham o
problema de se colocar o eu como ponto de partida do conhecimento.
Palavras-chave:
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Nome Completo: David Velanes de Araújo
Instituição de Ensino: UFBA
Orientadora: Elyana Barbosa
Título do Trabalho: A atualidade do conceito de númeno na epistemologia de Gaston Bachelard
A epistemologia bachelardiana demarca relevantemente as características de uma nova ciência que surgiu após
as revoluções científicas a partir do final do século XIX e início do século XX. Revoluções que impactara em
grandes rupturas com os conhecimentos do período moderno ao exigir novas formas de racionalidades e,
dessa forma, pôs em discussão a fecundidade de conceitos muito bem sedimentados historicamente no
pensamento, como, por exemplo, a noção de númeno deixado pela herança kantiana. Então, como pode-se
entender o conceito de númeno na ótica do pensamento científico contemporâneo? Acredita-se que ninguém
melhor que Gaston Bachelard, um epistemólogo francês, que presenciou e fundamentou em seu pensamento
epistemológico os desfechos desse novo momento histórico em que se encontram as ciências (Barbosa, 2011),
para nos indicar em sua própria perspectiva, como aquele conceito tão discutido pela tradição filosófica pode
ser entendido na atualidade perante as grandes reorganizações que sofreram o pensamento nos últimos
tempos. A filosofia crítica de I. Kant destacou a noção de númeno como o limite do conhecimento humano. O
filósofo de Königsberg, insiste em sua obra prima intitulada de Kritik der Reinen Vernunft (1781), que o
conhecimento humano é sempre conhecimento dos fenômenos, pois o númeno, a coisa em si, só poderia
pertencer a uma intuição intelectual pura. A noção de fenômeno designa a aparência sensível como
manifestação da realidade aos sentidos humanos e foi caracterizada pelo criticismo kantiano como objeto do
conhecimento que aparece em certas condições muito específicas e determinadas pelo espírito humano. Kant
diferenciou então númeno de fenômeno, deixou ao primeiro o mistério daquilo que não se apresenta à
estrutura cognoscitiva do ser humano, enquanto ao último, designou a matéria de todo conhecimento. Para I.
Kant, a coisa em si é desprovida de realidade empírica, ela é vazia, pois a gemüit, o espírito humano, não pode
ir além das faculdades da sensibilidade, isto é, da experiência sensível no ato do conhecimento da realidade.
Tem-se, com efeito, um uso negativo do conceito de númeno. Essa função negativa permaneceu na filosofia
crítica kantiana como princípio de sua teoria do conhecimento que delineou as condições de possibilidade do
conhecimento. Obviamente, ocorreu toda uma repercussão histórica sobre a problemática deixada pelo
criticismo kantiano acerca dessa noção, como por exemplo, a discussão feita por J. Fichte e F. Schelling que
marcou o surgimento do romantismo alemão. Contudo, ao avaliar o conhecimento científico a partir de suas
revoluções e reorganizações históricas, Bachelard possibilitou a atualização de conceitos cristalizados
historicamente e, os apresenta, nesse sentido, como grandes “obstáculos epistemológicos” que entravam o
progresso do saber na descoberta de conceitos fundamentais. Fato este que demarca uma importância de sua
filosofia ao ressaltar a potência que um conceito atual adquire perante as mutações do pensamento. É preciso
se ater à atualidade dos conceitos, pois estes somente podem ser compreendidos dentro do contexto em que
estão inseridos. Por isso, parece-nos, com efeito, que a utilização do conceito de númeno no pensamento
contemporâneo já não corresponde ao sentido estritamente da filosofia kantiana, sem, obviamente,
desqualificar as noções da filosofia do conhecimento de I. Kant. O que está em jogo, de acordo com Bachelard,
é a perda da fecundidade dos conceitos, bem enfatizado em sua obra Le Rationalisme Appliqué de 1949. De
acordo com Barbosa (1996), os conceitos são dinamológicos, isto é, com o movimento do conhecimento os
conceitos perdem força de explicação acerca de determinados problemas. Por isso, para compreender certos
problemas da atualidade não basta situa-los em um saber já adquirido, é antes necessário reorganizar os
princípios do saber. Assim, os conceitos se reorganizam dentro de novos recortes temporais e discursivos,
como enfatizam de forma semelhante M. Foucault em L'Archeologie du Savoir (1969), e G. Deleuze; F. Guattari
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em Qu'est-ce que la Philosophie (1991). Trata-se de verdadeiras descontinuidades, verdadeiras rupturas
epistêmicas ou cortes epistemológicos. Uma noção só pode ser compreendida dentro de uma atividade
internocional, isto é, interconceptual. Especificamente dentro de um conjunto de proposições, de discursos à
qual ela esta inserida em seu momento teórico e histórico. Com efeito, não existe topologia definitiva no
campo epistemológico, todo pensamento racional reorganiza-se constantemente, haja vista que as ideias, as
noções, os conceitos são sempre deslocados e assumem novas centralidades (Bachelard, 1977). O pensamento
reorganizado ultrapassa todo pensamento organizado, diz Bachelard. Nesse sentido, afirma o pensador francês
que o númeno trata-se agora de uma invenção, de uma criação, ele deixa de ser um mero postulado
metafísico. Ele possui uma estrutura complexa e harmônica onde põe sua objetividade sujeita à prova e
universalidade. O númeno não se encontra mais por “detrás” dos fenômenos e incognoscível como dizia I.
Kant, mas ele é agora pensado integralmente por uma phénomènetechnique em que os fenômenos são
inventados e construídos integralmente. Aqui, se estabelece uma ruptura que dá primazia á reflexão sobre a
percepção. Os fenômenos então são preparados numenalmente por uma aparelhagem técnica bem específica
e constituída. É preciso, desta maneira, tornar entendido de que a atividade do homem da ciência
contemporânea, do homo creator, em sua técnica científica, não está mais baseada na sequência natural da
ordem dos fenômenos da natureza. Mas como justificar que coloquemos sob o fenômeno um númeno em que
nosso espírito se reconhece e se anima? G. Bachelard (2008) responde que o númeno não pode ser tratado
mais como uma convenção e nem como um postulado metafísico. Tal argumento é justificado pela ideia de que
o númeno agora possui uma complexa estrutura encontrada pela reflexão e, sua objetividade discursiva será
encontrada dentro dessa complexidade. O númeno pela metafísica, tinha antes recusado sua análise pela
experiência habitual e comum, isto é, pela sensibilidade. Mas, a Física matemática agora nos autoriza a falar de
sua estrutura. A garantia da objetividade é dada, portanto, pela reflexão. Contudo, essa reflexão não pode ser
entendida a apenas à atividade de um sujeito (Bachelard, 1977). O cientista não se encontra mais sozinho,
solitário frente ao objeto científico, ele encontra-se em um espaço socializado do conhecimento, em uma
comunidade científica, que põe a reflexão dentro de uma intersubjetividade e torna-se capaz de retificar a
historicidade do conhecimento. Neste trabalho, pretende-se enfatizar no âmbito da Filosofia da Ciência
contemporânea, na epistemologia bachelardiana, o processo que modificou o conceito de númeno deixado
pelo kantismo. G. Bachelard percebeu no campo da matemática, física e química contemporâneas um grande
avanço, em ruptura com o passado, que instaurou uma nova epistemologia que ele denominou de novo
espírito científico (Bulcão, 1999). Seria então o que F. Nietzsche chamou de “tremor de conceitos”, onde
conhecimentos inovadores mostraram uma nova estrutura do Mundo desde que as explicações partissem de
novas bases (Bachelard, 1972). Quer-se demonstrar que uma das mudanças trazidas pelo novo espírito
científico se refere à visão de mundo moderna caracterizada pela teoria do conhecimento kantiana entre
númeno e fenômeno.
Palavras-chave: Epistemologia; Númeno; Bachelard; Conceitos.
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Nome: Dean Fábio Gomes Veiga
Instituição de ensino: Unespar
Orientador: Armindo José Longhi
Título: Habermas e a pertinência do problema da esfera pública
O presente trabalho, visa investigar a problemática da esfera pública, presente nas alocuções do trabalho
intelectual de Jürgen Habermas. A filosofia habermasiana dispensa longas apresentações. Cabe, no entanto,
reafirmarmos a importância das discussões do filósofo alemão no irromper da pós-modernidade, entendida
como um erro conceitual segundo o próprio autor. É neste eixo histórico, da crise da razão do surgimento
massivo da técnica em detrimento dos valores éticos é que se aloja a filosofia de Habermas.
Distinta conceitualmente como é próprio dos filósofos alemães, Habermas postula um projeto ousado ao
estruturar sua teoria. Pretende o filósofo, investigar os fundamentos sob os quais a contemporaneidade se
erigi. A teoria, que funciona como um fio condutor da filosofia de Habermas, prevê uma crítica da sociedade
em geral, amparada a luz das discussões da Escola de Frankfurt da qual Habermas é originária.
Investigar a formação da sociedade, o novo modus operandi do conhecimento e o status atual da filosofia é
decerto uma síntese fiel dos propósitos de Habermas. Neste contexto, é que se insere a discussão acerca da
constituição da esfera pública. Se pretendesse investigar a sociedade como um todo em suas diversas faces,
faz-se necessário recorrer a uma categoria que possa expressar a organização geral dessa sociedade. Neste
sentido, a análise de Habermas, parte de uma categoria, que busca (hipótese) abrigar os diversos temas do
projeto de uma teoria crítica da sociedade.
Habermas, inicia a investigação da Esfera pública a partir de sua tese de doutorado apresentada como requisito
para assumir a docência em filosofia na Alemanha. Em 1962 a obra Mudança estrutural da esfera pública, surge
problematizando a constituição de uma esfera pública num sentido burgues, que provocara grandes debates
ao redor do tema.
Para Habermas (1984) a esfera pública é uma categoria fundamental para compreensão da formação das
diversas sociedades. Desde o surgimento da ágora da praça grega e das assembleias políticas, a esfera pública é
concebida como o lugar do debate e da crítica, onde os cidadãos podem expressar seus desejos, anseios,
mediar conflitos e desenvolver o agir comunicativo. Na idade média, a esfera pública é suprimida pelo poder
religioso. A centralização da opinião pública entorno da relação conturbada entre Estado e igreja, suplanta a
esfera pública, extermina o debate e coloca por terra a participação dos agentes comunicativos (seres
racionais, o homem) nas decisões coletivas.
A retomada da esfera pública, surge a partir da concepção dos teóricos políticos na modernidade em
detrimento da formação da sociedade civil. Habermas, dialoga com Rousseau, Kant e Mill, buscando encontrar
nesses autores respaldo para a nova esfera pública na modernidade.
Em Rousseau, com seu conceito de vontade geral e de soberania, Habermas encontra um problema. Tal
problema se constitui pela institucionalização da esfera pública. Para Habermas a esfera pública não pode
operar a partir de um comando, de um soberano. Encontra, entretanto em Kant, a possibilidade de uma
reformulação do conceito de esfera pública. Através do uso público da razão (Kant), os indivíduos passam a ter
a garantia de que na esfera pública, seus anseios e vontades se examinados pela razão entendida como
princípio unificador e universal.
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As conclusões de Habermas (1984) em Mudança estrutural, apontam para o enfraquecimento da esfera
pública, entendida como instrumento de participação popular dos indivíduos, que funciona como um poder
independente que pressiona o aparato estatal para as demandas da sociedade. O surgimento da imprensa, dos
meios de comunicação, em geral, passam a formar a opinião pública, suprimindo o debate, e passando de um
público que “[..] debate mediantes razoes, para um público que apenas consome cultura” (Habermas,1984,
p,39)
Após a publicação de Mudança estrutural, Habermas recebe múltiplas criticas acerca do conceito de esfera
pública. Nancy Fraser (1990) afigura-se como uma das grandes interlocutoras e críticas do modelo de esfera
pública em Habermas. Fraser (1990) em Habermas in the publicy sphere, crítica entre outros pontos a
imaterialidade e abstração de Habermas ao tratar o tema da esfera pública. Falta por exemplo, pistas para a
reconstrução da esfera pública, uma vez que as conclusões de Habermas são do esvaziamento desta.
Transcorridos décadas, Habermas, retoma o problema da esfera pública em dois momentos peculiares. Em
1990, Habermas prepara uma nova edição com troca da editora de Berlim, onde decidi escrever um novo
prefacio com alguns esclarecimentos conceituais sobre a esfera pública. O prefacio, torna-se um guia
indispensável para o leitor de Habermas, na busca de compreender sua teoria.
Um novo marco na atualização do conceito de esfera pública ocorre em 1992 no lançamento de sua obra
clássica de Direito: Direito e democracia, Habermas, indiretamente se reporta as críticas sobretudo de Fraser
(1990) e executa uma espécie de re-exame de sua teoria.
Em Direito e democracia, o autor emprega o papel dos movimentos sociais na reconstrução da esfera pública.
Pouco a pouco, o conceito passa a sair da abstração e tornar material. Neste momento, a esfera pública
começa a tomar um contorno mais atual, que entendemos ser a pertinência dessa discussão no presente
trabalho.
A esfera pública é uma categoria, cheia de contrastes e dificuldades teóricas. Entender o sentido e emprego do
termo na filosofia habermasiana, afigurasse como um desafio intelectual atual.
Marcado por crises, o momento politico atual, deve, e mais do que isto necessita recorrer aos teóricos clássicos
da tradição filosófica politica, para reinterpretar as suas bases e seus fundamentos estruturantes. A esfera
pública como espaço da discussão, do diálogo e da interação entre os indivíduos, parece ser uma contribuição
importante para pensarmos no modelo de democracia vigente.
Habermas entende a esfera pública, mais do que uma instituição ou um órgão de fomento de decisões. O
direito é uma categoria abrigada na discussão da esfera pública habermasiana, mas que, no entanto, tratasse
de uma categoria secundaria. A função da esfera pública é legitimar a democracia, ou seja, atuar diretamente
nas decisões dos líderes (governantes).
Composta por atores plurais, formando uma identidade social construída pelo debate e pela argumentação,
fruto do agir comunicativo, a esfera pública fortalece a interação entre o povo e seus governantes, e mais do
que isto, tornasse uma categoria indispensável na consolidação dos direitos individuais e coletivos e
especialmente os direitos humanos.
Em suma, retomar e problematizar uma vez mais a questão da esfera pública, abre a possibilidade de uma
reconstrução geral da sociedade moderna. Habermas, que entende a sociedade como uma teia multifacetada
que é unificada pela razão, oferece certamente soluções senão pistas para os grandes problemas éticos, morais
políticos e epistemológicos de nosso tempo.
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Neste sentido, a esfera pública, afigurasse como um tema desafiador, instigante, mas que certamente tem
muito a contribuir, sobretudo na tarefa de repensarmos os fundamentos da politica vigente.
Palavras-chave: Habermas. Esfera pública. Direito. Democracia. Agir comunicativo.
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Nome Completo: Denis Paulo Goldfarb
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Valter Alnis Bezerra
Título: Boltzmann e a estrutura do conhecimento científico: a inevitabilidade do modelo na interface entre
teoria e experimentação.
Ludwig Edward Boltzmann (1844-1906) foi um pensador que esteve à frente de seu tempo. A investigação de
seu trabalho filosófico poderá nos revelar como o seu pensamento não está em desacordo com as principais
abordagens contemporâneas da filosofia da ciência, como, p.e., a abordagem empregada pela chamada família
semântica, que utiliza a concepção de classes de modelos como se fossem as impressões digitais pelas quais
podemos identificar, analisar e reconstruir, tanto sincronicamente como diacronicamente, as teorias
científicas. Dito de outra maneira, não é ousado considerarmos que as ideias desenvolvidas por Boltzmann
fazem parte de uma genealogia das abordagens contemporâneas em filosofia da ciência nas quais os modelos
representam um papel central. Boltzmann, em seu tempo, preocupou-se em classificar e diferenciar as diversas
acepções do conceito de modelo – modelos mecânicos, analogias, modelos visuais, estruturas teóricas ou
teoria-como-modelo – a fim de notabilizar o seu valor epistemológico. Isto posto, o presente trabalho pretende
avaliar a importância heurística para o progresso do conhecimento científico daquele tipo de modelo como
estrutura teórica (teoria-como-modelo) e que papel ele desempenhava na relação entre teorias científicas
(enquanto imagens mentais) e a realidade (viz. natureza) dentro da estrutura epistêmica global boltzmanniana.
Todavia, subjaz à avaliação dessa unidade epistêmica específica (i.e., o modelo como estrutura teórica)
idealizada por Boltzmann, a intenção de analisar e problematizar alguns conceitos insertos nas imagens
filosóficas de ciência (IFC) e nas imagens científicas de natureza (ICN) do cientista-filósofo austríaco. A fim de
depreender a valia heurística dessa unidade epistêmica e também depurar como Boltzmann compreende as
tarefas cabíveis do fazer científico, haveremos de apresentar: (a) as principais teses que compõem o núcleo
duro da epistemologia de Boltzmann, quais sejam, o pluralismo teórico, o antidogmatismo, o evolucionismo
epistemológico, o representismo, um tipo de fenomenomenalismo mais frouxo, um atomismo
instrumentalizado e o falibilismo; (b) sua IFC, para que compreendamos como Boltzmann desenvolve sua
axiologia e metodologia, ou seja, quais os valores cognitivos mais fortes que norteiam suas atitudes (p.e.,
consistência, simplicidade, fertilidade, adequação empírica, progressividade, ousadia, testabilidade) e quais os
imperativos hipotéticos metodológicos sugeridos; (c) sua ICN e evidenciar quais pressupostos ontológicos aí
subjazem para que possamos compreender até que ponto vai a postura realista de Boltzmann frente à sua
atitude instrumentalista (sobretudo em relação ao atomismo).
Com estes elementos depurados, teremos condições de mapear as conexões entre as suas IFC e ICN,
apresentando algumas afirmações substantivas sobre o mundo contidas em suas teses metacientíficas e
procurar mostrar como a partir daí Boltzmann constrói imagens específicas, tal qual uma imagem mecânicoestatística baseada num tipo peculiar de atomismo. Dessa ponte a ser construída entre essas duas imagens,
ainda poderemos discutir sua postura em relação à metafísica.
A ideia principal é discutir a coerência da estrutura epistêmica global boltzmanniana para se chegar a
compreender subestruturas, como o conceito de modelo. Essa subestrutura proposta por Boltzmann
claramente foi desenvolvida como parte de uma estrutura maior, com uma axiologia e metodologia
sofisticadas, que se prestou para questionar os valores da atitude empirista de sua época - que procuravam
estabelecer uma demarcação para o conhecimento científico - ao defender a permanência da teoria atomista
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como uma teoria científica e não como uma mera especulação filosófica que ecoasse proposições metafísicas
desde a antiguidade. Dessa forma poder-se-á mostrar que a coerência da estrutura epistêmica antidogmática
de Boltzmann contribuiu para o alargamento do horizonte cognitivo (ou axiológico) de um contexto, ou seja, ao
combater certas atitudes cognitivas restritivas que limitariam o conhecimento científico à análise dos dados
advindos diretamente da experiência, Boltzmann atuou na defesa intensa de certos tipos de imagens mentais
que pudessem ultrapassar a experiência, sendo ao mesmo tempo coerentes e que contribuíssem com o
desenvolvimento do conhecimento científico.
Notadamente a estrutura epistêmica desenvolvida por Boltzmann apresenta uma forte coerência. Uma das
tarefas dessa pesquisa é a de mostrar o quão imbricados estão suas IFC e ICN a ponto de criar uma estrutura
coesa, que se retroalimenta. Não obstante tal coerência, a consistência de certos pontos será problematizada,
como, por exemplo, a questão aventada sobre a inevitabilidade de uma abordagem formal baseada no
descontínuo em relação à abordagem formal de um continuum quando aplicadas ao estudo de determinados
fenômenos físicos. Se se parte de um pressuposto de que nossas teorias em geral, e não apenas as científicas,
sejam imagens mentais que, dada essa natureza, acabam por se distanciar da experiência, quem nos
autorizaria a dizer que uma abordagem seria inevitável em relação à outra, quando levamos a discussão para o
âmbito epistêmico além do da matemática aplicada? Portanto, problematizar certas ideias defendidas por
Boltzmann (analisando consistências e possíveis inconsistências, pois nem toda estrutura de conhecimento tem
de ser estritamente consistente para revelar uma coerência) servirá para compreender como ele construiu a
coerência interna de sua estrutura epistêmica pluralista, a despeito das críticas recebidas, defendendo um tipo
de atomismo não saturado metafisicamente, cuja defesa tem por base idiossincráticas IFC e ICN que
aproximam as teorias científicas a modelos que poderiam cobrir mais ou menos adequadamente os fatos da
experiência, mas nunca cobrir absolutamente a experiência.
Discutir a coerência da estrutura epistêmica boltzmanniana nos evidenciaria os valores cognitivos e o tipo de
racionalidade que a fundamentam, que, por sua vez, nos remeteria à uma discussão de certos problemas, por
exemplo, como os relacionados com a noção de verdade e com o problema da subdeterminação empírica e do
desempate entre teorias em competição por um mesmo domínio de aplicação pretendida. Enfim, a partir de
uma análise da coerência da estrutura epistêmica de Boltzmann, à luz da relação entre teoria-como-modelo e a
experiência, poder-se-á revelar os ingredientes de suas IFC e ICN que levaram o cientista-filósofo a desenvolver
sua peculiar concepção metacientífica.
Palavras-chave: Boltzmann, modelo, epistemologia, teoria, atomismo.
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Nome: Diego Soares Viana de Oliveira
Instituição de ensino: USP
Orientador: Gilson Schwartz
Título: Gilbert Simondon: o transindividual perante os impasses contemporâneos
Morto em 1989, Gilbert Simondon passou a influenciar autores ativos na década seguinte, primeiro na França e
na Itália e, em seguida, no mundo anglófono. Embora suas obras sobre a individuação, a percepção e a técnica
tenham sido redigidas sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, passaram a reverberar na filosofia
contemporânea quando esta última incorporou questionamentos sobre sistemas reticulares, modos digitais de
subjetivação e as possibilidades da política de redes. Se em vida o único autor de primeiro nível a citá-lo
reiteradamente é Deleuze, a partir dos anos 1990 Simondon passa a ser estudado com atenção por autores
como Stiegler, Laruelle, Latour e Jean-Hughes Barthélémy na França; para além de seu próprio país, autores
como Alexander Galloway, Brian Massumi, Adrian Mackenzie, Alberto Toscano e Paolo Virno encontram em
Simondon uma fonte preciosa de conceitos para pensar o contemporâneo, tanto no atual quanto no virtual.
Esta comunicação se propõe a explorar os usos possíveis, em tempos de financeirização da vida e colapso
ambiental, de um dos principais conceitos de Simondon: o transindividual. Entendido corretamente, este
conceito pode ser aplicado tanto na tentativa de engendrar a "axiomática das ciências humanas", conforme era
a intenção do autor, expressa na conferência Formes, Informations, Potentiels (1960), quanto para explorar
problemas contemporâneos no plano da práxis. Em diversas de suas obras, por exemplo, Bernard Stiegler
trabalha o conceito de transindividuação (modificando-o ligeiramente) para investigar a diversidade das
individuações psíquicas e coletivas que se produzem por meio de intermediários técnicos – notadamente os
mais contemporâneos, digitais e reticulares. Paolo Virno, por sua vez, encontra no transindividual um caminho
para conjugar os fenômenos de política molecular com os processos que redundam em estruturas molares,
institucionais.
Quanto à axiomatização desejada por Simondon, pode-se dizer que abre um caminho particular para um antigo
projeto da filosofia das ciências sociais: superar os extremos de um quase holismo social, pelo qual a ação
individual é rigorosamente limitada pelas grandes estruturas molares, e do individualismo metodológico, que
pretende enxergar nos fenômenos coletivos o agregado de iniciativas individuais, como ocorre no utilitarismo
que, em menor ou maior grau, sustenta uma grande variedade de teorias sociais contemporâneas.
O objetivo desta comunicação é investigar como o conceito simondoniano de transindividual (desenvolvido no
texto de A Individuação à Luz Das Noções de Forma e de Informação, que tem previsão para publicação no
Brasil pela Editora 34 no primeiro semestre de 2016) pode ser empregado para enfrentar questões
contemporâneas, notadamente em sua articulação com a tecnicidade, tal como enfatizada por Simondon em
sua tese seminal, Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos (redigida em 1958, será publicada pela editora
Contraponto no Brasil, com previsão para o final de 2015). A investigação visa argumentar que o transindividual
é um conceito adequado para pensar a articulação entre o humano, a técnica e a natureza: trata-se de uma
articulação que se encontra no cerne do problema ambiental contemporâneo.
O transindividual, em Simondon, é uma modalidade particular da relação coletiva. Mais do que uma mera
relação intersubjetiva (à qual o autor reserva o nome de rapport, por oposição ao termo relation, cujo sentido
é mais estrito nos textos de Simondon), o transindividual implica a invenção, isto é, o surgimento de um germe
estrutural, uma reconfiguração do campo social. O transindividual recorre àquilo que Simondon nomeia
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reserva de pré-individual que permanece em cada individuação biológica e, sobretudo, psicossocial, o que faz
dele um ponto singular de convergência entre o atual e o virtual. O pré-individual, indeterminado, virtual,
"mais que um", também recebe em Simondon o nome de natureza. Portanto, o transindividual expressa a
presença inarredável da natureza no humano, isto é, no psicossocial – natureza entendida como infinita
reserva de dinamismo, e não como mundo físico-biológico que se oporia à "cultura". Em Simondon, essa
oposição inexiste.
O conceito do transindividual articula, portanto, os três regimes de individuação de Simondon (físico, biológico,
psicossocial); é a expressão de que não há modelo social, ético ou político que possa evacuar a dimensão
afetivo-emotiva do corpo, nem sua constante inserção no mundo físico – na natureza, diria o vocabulário
clássico – nem a relação transdutiva que entretém com seu meio associado (físico, coletivo...), engendrando
novas formas e imagens (uma obra ainda sem prazo para publicação no Brasil, Imagination et Invention, trata
especificamente da imagem como articulação entre corpo, coletivo e criação), sejam técnicas, estéticas,
sagradas ou reflexivas.
Esta apresentação defenderá que todo problema do coletivo, como as crises do capitalismo ou a mudança
climática, pode ser abordado pela via do transindividual. Afinal, um problema humano é um problema da
capacidade inventiva, da possibilidade de transduzir a partir de germes estruturais que, avançando
reticularmente, reconfigurem o campo do psicossocial. É, portanto, um problema cuja solução passa pelo
recurso ao pré-individual, à virtualidade, à natureza.
Para Simondon, o momento mais rico para estudar a realidade social é aquele que antecede um período
revolucionário, porque é ali que as estruturas intersubjetivas são desmontadas e novos germes podem
emergir. Nas palavras do autor: "[U]n état pré-révolutionnaire, voilà ce qui paraît le type même de l’état
psycho-social à étudier avec l’hypothèse que nous présentons ici; un état pré-révolutionnaire, un état de
sursaturation, c’est celui où un événement est tout prêt à se produire, où une structure est toute prête à jaillir;
il suffit que le germe structural apparaisse et parfois le hasard peut produire l’équivalent du germe structural
(…)".
Ora, em seu estudo sobre a tecnicidade, Simondon argumenta que a tecnologia moderna só poderá superar
seus impasses quando superar a alienação de crer-se um fenômeno do trabalho humano, da mera produção
que recebe insumos e os transforma em bens (e mercadorias, pode-se acrescentar), por outro lado destinados
à obsolescência e a terminarem como resíduos: como lixo. A técnica moderna, entendendo-se como rede de
inserção da tecnicidade humana no devir do mundo natural, passaria a ver, assim, o trabalho como apenas um
de seus momentos e os fluxos que compõem a produção como um processo pertencente ao mesmo tempo ao
mundo natural e à tecnicidade humana.
Aplicando o argumento de Simondon aos problemas contemporâneos, poderíamos acrescentar: a tecnicidade
moderna não poderá superar seus impasses sem enxergar-se como realidade transindividual, uma modalidade
entre outras, embora particularmente poderosa, de articulação entre o físico, o biológico e o psicossocial: entre
o corpo, o cosmo e o coletivo. Essa é a hipótese a explorar, na esteira de Simondon e articulando suas teses
sobre a individuação com suas teses sobre a técnica.
Palavras-chave: transindividual, técnica, natureza, Simondon, transdução.
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Nome: Douglas Rodrigues Barros
Instituição de ensino: Unifesp
Orientador: Silvio Rosa
Título: A filosofia em tempos de crise: entre o colapso do capital e a insuficiência crítica.
A capacidade de sobrevivência que a filosofia, outrora, teve diante dos colapsos de impérios se estabeleceu em
grande medida por sua autonomia teórico-crítica. O que lhe dava condições de buscar nas trilhas do
pensamento aquilo que se considerava até então como “o impossível”. O pensamento filosófico, no alvorecer e
morte do século XIX referendava revoluções ou criticava os caminhos adotados pela sociedade nascente nas
ruas parisienses e londrinas. E isso, independente da filiação, conservadora ou progressista, dos pensadores. O
caminho já era conhecido: desde Platão com sua República o pensamento filosófico se esforçou na ânsia de
querer construir outros mundos.
Alguma coisa, entretanto, parece ter mudado, desde pelo menos os anos 1980 do século passado a filosofia
mundial entrou numa rotina acrítica e produtivista. Por todos os lados há insipidez no pensamento que
contrasta com a forte dinâmica e abalos sísmicos sofridos no oceano econômico-social. A esse pressuposto são
necessárias algumas observações; o enrijecimento do pensamento filosófico atual não é a causado pela
impotência frente a hecatombe do capital que, no exato momento em que escrevemos estas linhas, agudiza
sua crise com a quebra das bolsas asiáticas. Pelo contrário, ele é o efeito. Nesse sentido, a análise sobre as
causas do embotamento do pensamento filosófico pode ser buscada lá atrás.
Foram, sem dúvida, Adorno e Horkheimer os primeiros que trataram da forma embrionária responsável pelo
esgotamento da crítica. Os pensadores conseguiram captar no Esclarecimento aquele germe que irá banir de si
mesmo qualquer pensamento que ouse colocar seu ideário em xeque. A reflexão que desponta a partir das
análises impressas na Dialética do Esclarecimento coloca fundamentalmente em questão a forma burguesa do
sujeito. É a própria estrutura do pensamento moderno o responsável pelos entraves de uma crítica consoante
à emancipação. Do mesmo modo, é a própria síntese desse processo culminando no capitalismo, que eliminará
a possibilidade de crítica radical. Todavia, a crítica expressa pelos críticos tropeça em algumas pedras difíceis de
serem removidas do caminho à época. Época, não nos esqueçamos, marcada essencialmente pela polarização
político-ideológica. Adorno e Horkheimer partem das pistas deixadas por Marx no que se refere a forma da
circulação do capital (troca) e deixam de lado a forma de produção (trabalho). Ambos compreendem a forma
negativa da totalidade apenas no nível da circulação e, isso abre as portas para uma crítica que veja o problema
na totalidade unitária das duas esferas que mantém o capital em curso.
Assim, compreender em nível mais profundo os limites da crítica frankfurtiana parece ser um dos caminhos
para pensar a insipidez que tem tomado conta da filosofia acadêmica em sua incansável tentativa de
especialização. Naturalmente a análise pretendida não é original. Kurz, Jappe e Roswhita Scholz refletiram
sobre isso. A questão é colocar os pressupostos da crítica do valor na baila para ver se é possível negá-lo. A
presente comunicação, portanto, tem como objetivo, primeiro, discutir os limites da crítica adorniana usando
dos pressupostos da teoria marxiana do valor. Segundo, pensar sobre a própria noção de modernidade e seu
funcionamento intrínseco ao modo de produção e reprodução social. E, por fim, pensar como estes
pressupostos estão ligados e são alimentados pela esterilidade que se mantém no pensamento filosófico atual.
Palavras-chave: crítica, esclarecimento, filosofia, valor, teoria crítica.
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Nome: Elivanda de Oliveira Silva
Instituição de ensino: UFGM
Orientador: Newton Bignotto de Souza
Título: Hannah Arendt: compreender para se reconciliar com o mundo
Compreender o fenômeno totalitário é a questão que subjaz toda a filosofia política de Hannah Arendt. Para a
autora, não se tratava apenas de elaborar conceitos teóricos que pudessem explicar esse novo acontecimento
político, mas de compreender os elementos que se "cristalizaram" nessa nova forma de governo e, assim,
entender como e por que o totalitarismo fora possível.
As experiências com as formas de governos totalitários nos fazem refletir sobre um tempo de horror, um
tempo sombrio, marcado por guerras, extermínio humano e a destruição do mundo. É esse cenário de ruína
que, no nosso entendimento, impulsiona Arendt ao exercício mais contundente e árduo de sua vida intelectual.
A preocupação de Arendt, nesse momento, voltava-se para a difícil tarefa de compreender os fenômenos
políticos de sua época, ou seja, compreender o que havia se passado, pois só assim poderia reconciliar-se
novamente com o mundo. Ela queria não apenas analisar o fenômeno político, mas também seus traços
constitutivos, e principalmente, analisar se a política tinha ainda algum sentido.
Debruçada sobre a realidade de seu tempo, Arendt anteviu que as categorias tradicionais com as quais
estávamos acostumados a pensar a política eram insuficientes e limitadas para explicar a inédita violência dos
regimes nazista e stalinista. Com o objetivo de compreender as novas experiências que presenciou, Arendt
construiu uma filosofia política que nos convida a pensar sobre os processos de despolitização de nossas
sociedades e a refletir sobre o sentido da política como espaço de efetivação da liberdade humana.
“O que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como pôde ter acontecido?” (ARENDT, 2006, p. 339).
Com essas interrogações, Arendt inicia a terceira parte de Origens do Totalitarismo que, como fio condutor, a
impulsiona ao exercício do pensamento. Esse “parar para pensar” os acontecimentos de seu tempo é uma
tentativa de buscar algum sentido capaz de iluminar e compreender essa nova forma de governo: o
totalitarismo. O acontecimento que leva Arendt a indagações tão profundas deu-se quando ela tomou
conhecimento, em 1943, do que havia se passado nos campos de Auschwitz: “[...] a fabricação em massa da
morte de milhares de seres humanos.” (ARENDT, 2002, p. 134-135).
O Totalitarismo, como nova forma de governo, materializou-se ao longo do século XX na Alemanha hitlerista e
na Rússia stalinista. Em ambos os regimes totalitários, existiram campos de concentração e estes constituíram a
verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário, atingindo o que parecia ser impensável, ou
seja, a destruição em massa da vida humana.
Como bem sugere o termo, os governos totalitários podem ser compreendidos, na historiografia política, pela
tentativa de domínio total da vida humana em todas as suas dimensões. O domínio total atingiu seu ápice nos
campos de concentração. O campo não era apenas o lugar de eliminação física dos prisioneiros que nele
adentrava. Vida e morte deixavam de ser algo constitutivo à pessoa. Sua existência, memória e lembranças
eram, completamente, extintas da face da Terra. De humano, o que sobrava era apenas uma assombrosa
massa dócil.
Arendt, em Compreensão e Política, é enfática: “[...] o totalitarismo não surgiu do nada, não caiu do céu. Essa
forma de governo se constituiu a partir da cristalização de elementos que já existiam no mundo não
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totalitário.” (ARENDT, 2008, p. 333). Esses elementos dizem respeito à natureza mesma desse fenômeno
político, como a pretensão de domínio mundial e total; a transformação da realidade pelos instrumentos da
ideologia e do terror; a organização sistemática da morte de milhares de seres humanos nos campos de
concentração; o antissemitismo e o imperialismo, entre outros.
Arendt pensa que, para uma análise do totalitarismo enquanto evento inédito, enquanto uma nova forma de
governo na história da humanidade, deve-se refletir sobre os elementos que o constituiu, sem reduzi-los a
causas históricas, sociológicas e psicológicas, uma vez que “[...] a causalidade é uma categoria totalmente
estranha e falseadora nas ciências históricas.” (ARENDT, 2008, p. 342). Afasta-se, portanto, de sua análise
qualquer de determinismo que possa ocultar a compreensão das origens desse fenômeno.
Quando Arendt usa a terminologia origens na sua obra Origens do Totalitarismo não é para indicar causa, mas
no sentido de que os elementos do passado quando tomados para explicar um acontecimento presente podem
iluminá-lo, até o ponto de revelar sua singularidade. Tem-se, nesse modo de compreender o fenômeno
totalitário, uma crítica à concepção de história, concebida com uma série de acontecimentos, explicados por
rígidos esquemas causais, que buscam uma simples reconstituição do passado.
Assim, a tese de Arendt sobre o fenômeno totalitário é que o mesmo é uma forma de governo que implica em
uma ruptura na história ocidental, instaurando-se como um evento inédito e sem precedentes. Trata-se de
ruptura, porque com o Totalitarismo, para além do rompimento com toda uma tradição de pensamento, com
toda uma forma de conceber o mundo e as relações humanas, todas as categorias políticas e morais, quando
aplicadas a esse fenômeno, não conseguiam explicar a novidade de suas ações. É inédito porque para dar cabo
a sua ideia de dominar, totalmente, os homens, até ao ponto de estabelecer uma “humanidade única”
(ARENDT, 2008, p. 359), ousou transformá-los em “coisas sem corpo nem alma” (ARENDT, 2008, p. 226), em
um simples “feixe de reações previsíveis” (ARENDT, 2000, p. 269) e, assim, destituí-los de qualquer marca de
espontaneidade.
Palavras-chave: Compreender, reconciliar, totalitarismo, política, evento inédito.
Referências:
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
_______. Compreender: Formação, Exílio e Totalitarismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
_______. A Dignidade da Política. Trad. Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002.
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Nome Completo: Eugênio Mattioli Gonçalves
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Sérgio Cardoso
Título: É possível pensar razão de Estado hoje?
Em consonância com o tema proposto pelo evento, esta comunicação se propõe a problematizar, brevemente,
a atualidade do conceito de razão de Estado.
Apesar da formulação do termo remontar ao séc. XVI, princípios daquilo que a teoria política viria a considerar
sob a égide da idéia de razão de Estado remontam à antiguidade clássica. Até hoje, porém, tentar encontrar a
origem da idéia de razão de Estado é uma questão que gera controvérsia.
Quanto ao termo em si, a maioria dos comentadores parece concordar em que o primeiro a utilizá-lo no intuito
de descrevê-la teria sido Giovanni Della Casa, em seu Orazione a Carlo V, de 1550. De Mattei, entretanto,
aponta que no diálogo Del Reggimento di Firenze, composto por Guicciardini entre 1521 e 1523, um dos
interlocutores se refere à “ragione degli Stati”. Não surpreende, pois, que pouco profícua pareça a discussão
sobre a nomeação primeira do conceito; a afirmação de Etienne Thuau sobre a presença do vocabulário
estadista na França do começo do século XVII se aplica também – ainda que em menor medida – à Itália do XVI:
O impulso estatizante é perceptível na linguagem da época, e é possível observar uma inflação [no uso] de
expressões onde entra a palavra “Estado”. (...) nos deparamos com “escrúpulos de Estado”, “considerações de
Estado”, “quimeras de Estado”, “crimes de Estado” e “imprudências de Estado”. Nessas expressões, o
qualificativo “de Estado” é equivalente a “política”, e assume portanto o sentido próprio de “que diz respeito à
coletividade racionalmente organizada ou ao aparelho de direção” (...). Mas dessas expressões, as que ocorrem
mais freqüentemente são “razão de Estado”, “golpe de Estado”, “necessidade de Estado” e “mistério de
Estado”. (THUAU, E. Raison d’Etat et pensée politique à l’epoque de Richelieu. Paris: Albin Michel, 2000, p. 394)
Aqui, por razão de Estado, começa a ser esboçada a concepção de uma razão política, uma urgência de grau
superior que o príncipe deve realizar – necessária por se vincular à proteção do governo e de seu próprio
poder, e por isso elevada a uma instância maior –, que justificaria o uso da dissimulação ou outras ações
anteriormente injustificáveis.
É claro que essa temática não é inédita na história da filosofia. Do discurso ciceroniano do útil e do honesto à
derroga em Tomás de Aquino, a discussão sobre a justiça ou tirania de um governante a partir de suas ações no
poder remete à República de Platão. Mas é somente no solo desse Renascimento europeu, num retorno aos
antigos que passa a cultivar novamente a esfera política, que brota o debate sobre os Estados e as razões que
deveriam [ou não] guiá-los.
Quase paradoxalmente, contudo, um autor que nunca se referiu diretamente à razão de Estado se torna para
os modernos referência quase unânime à questão: Nicolau Maquiavel. O peso desse suposto pioneirismo que
se atribui a seu nome é tão grande no período que o debate sobre o novo discurso político passa a se tornar
quase indissociável da recepção das obras do filósofo.
A partir de O Príncipe (1532), livro que se espalha rapidamente por todo o continente, ‘Maquiavel’ e
‘maquiavelismo’ se convertem em expressões gradualmente utilizadas como sinônimos, mas de real significado
70
cada vez mais distinto. Tomando por base passagens polêmicas do livro, como os discursos sobre os usos da
crueldade (capítulo VIII), da maldade (XV) e da mentira (XVIII), seus interlocutores da Contra-Reforma passam a
reforçar uma imagem que pouco a pouco vinha surgindo: a de Nicolau Maquiavel como um pensador
demoníaco, e de sua teoria (o ‘maquiavelismo’), um punhado de escritos do mal. Toda uma literatura da época,
assim, encontra nas passagens do florentino – especialmente nas referidas à conservação do poder de um
governo – o ícone maior do que viriam a considerar como a razão do inferno.
Mas apesar do ódio despertado por Maquiavel na Igreja – classificado como “endemoniado, (...) monstro saído
do inferno em forma humana, (...) flor fedorenta da bela cidade das flores” –, a nova teoria supostamente
trazida por sua obra não podia ser ignorada. Nas palavras de Benedetto Croce:
Não restava, pois, que começar a trabalhar no que tange àquela ciência; e a domesticá-la, amansá-la, cortar-lhe
as pontas afiadas demais, ou buscar conciliá-la (...) com as doutrinas ortodoxas, e sujeitá-la à religião e à moral
religiosa. (CROCE, B. Storia dell’età barocca in Italia. Bari: Laterza, 1946, 77)
Assim, em oposição à ‘cruel’ lógica política divulgada pelo florentino, é alavancado pelo conservadorismo da
Contra-Reforma um movimento que viria a ser conhecido como o do anti-maquiavelismo. Aqui, mais do que
um mero esforço em bradar contra o imoralismo maquiaveliano, é patente a tentativa de adaptar a nova
ciência de príncipes às exigências morais e espirituais da fé cristã. Tal como o maquiavelismo, sua corrente
antagonista constitui também ela um leque disforme e heterogêneo de textos, nesse caso conectados entre si
através dessa “luta pelo bem”, encarnada no confronto a Maquiavel.
De um modo geral, essa luta entre interpretações acerca do maquiavelismo caracteriza a razão de Estado, de
seu período áureo – formação dos Estados modernos – até os debates mais recentes sobre a questão.
Contudo, acontecimentos recentes, como os atentados de 11 de setembro de 2001, bem como a revelação de
documentos sigilosos da Agência de Segurança Nacional (NSA) estadunidense, dão fôlego à perspectiva de se
analisar tais episódios sob a ótica da referida noção. Disso, a pergunta que surge aqui é: seria possível,
portanto, pensar a razão de Estado hoje?
Palavras-chave: razão de Estado; Estado; maquiavelismo.
71
Nome: Everaldo Leite da Silva
Instituição de Ensino: UFG
Orientador: Adriano Correia
Título: A Economia Política Contemporânea sob à Perspectiva da Filosofia
A economia não é uma criação do capitalismo, mas uma dimensão das inter-relações humanas presente na
sociedade há vários séculos, sendo objeto de especulação por Aristóteles no livro V da Ética a Nicômaco e no
livro I da Política já no século IV a.C. O pensamento econômico, portanto, nasce e medra nas filosofias ética e
política, em conformidade à busca do bem pelos indivíduos e pela comunidade. Durante o período feudal se
manteve esta tradição, chegando a ser matéria de estudo de Tomás de Aquino, que a tratou como elemento
minúsculo contido num sistema moral e teológico abrangente. Mais à frente, as ideias que influenciaram a
modernidade, elaboradas entre os séculos XVI e XVIII, influenciam também os princípios mercantilistas
burgueses, fazendo derivar a economia política das filosofias ética e política. Filósofos morais, como John
Locke, Lorde Shaftesbury, Edmund Burke, William Wollaston, Bernard Mandeville, David Hume, Jean-Jaques
Rousseau, Francis Hutcheson e outros, lançaram as bases do desenvolvimento da economia política, que fora
posteriormente elaborada por pensadores como Adam Smith, Robert Malthus, Jean-Baptiste Say, John Stuart
Mill, Frederic Bastiat, Carl Menger e, de modo determinante, por Karl Marx. A partir do século XX a economia,
na sua variante científica, instrumentaliza-se ao encontro de um conjunto largo de ideias – clássicas ou
inovadoras – que passam a ser denominadas genericamente de neoliberais.
Dizer, portanto, que a economia não é uma criação do capitalismo é relevante, visto que quase toda a teoria
econômica moderna, de natureza positiva, tem como único objetivo o estudo acerca da economia liberal de
mercado, tendo reprimido de forma sistemática de suas análises qualquer interveniência da ética e, de maneira
implícita, grande parcela da própria economia política. (De fato, o tratamento econômico marxista foi
integralmente suprimido.) Esse distanciamento da ética, não obstante, resulta em implicações reais, ou como
afirma Amatya Sen, em seu ensaio Sobre Ética e Economia, “examinando as proporções das ênfases nas
publicações da economia moderna, é difícil não notar a aversão às análises normativas profundas e o descaso
pela influência das considerações éticas sobre a caracterização do comportamento humano real” (grifo meu).
Não quer dizer que teorias formais da concorrência e do equilíbrio não sejam respeitáveis no campo lógico e na
discussão de uma grande variedade de problemas práticos, mas se equivoca da análise econômica normativa,
deixando de lado “uma variedade de considerações éticas complexas que afetam o comportamento humano
real” (Sen, 1999, p. 23). A ciência econômica contemporânea busca o conhecimento abstraindo-se por
completo das preferências e valores humanos, almejando apenas a produção do conhecimento objetivo,
separando-se da ética, que delibera e afirma na prática as preferências, escolhas humanas e os valores morais.
Compreendendo as implicações desse afastamento, John Maynard Keynes refletia que uma prudente busca de
conhecimento “significava filosofia e economia, e mais da primeira do que da segunda” (Skidelsky, 1996, p. 17).
É útil, portanto, diferenciar a economia real (economy), a teoria econômica ou economia (economics), e a
economia política (political economy). A primeira é a própria experiência econômica e monetária, ou aonde se
dá efetivamente a produção, a distribuição, as trocas e o consumo. A segunda é a atividade da ciência
econômica, formalizada através de modelos matemáticos elegantes, simplificadores da realidade, e disposta
em leis de mercado e axiomas ou postulados. A terceira, a economia política (political economy), é aquela
categoria que se originou na filosofia moral e que se vale dos dados descritivos da economia (economy) e da
história econômica, tendo atribuição prescritiva acerca dos meios pelos quais ela pode ser integralmente
72
realizada nas sociedades humanas. Os argumentos normativos, aqueles com potencial para mudar o mundo,
portanto, só são possíveis e praticáveis na political economy, pela qual, face ao conhecimento disponível, se
pode combinar política e ética em conservação ao bem-estar coletivo e individual. Não existem, na economia
política, fronteiras definidas entre a análise econômica do bem-estar e outros tipos de investigação econômica,
nota Amartya Sen, “porém, à medida que aumentou a desconfiança acerca do uso da ética em economia, a
economia do bem-estar foi se afigurando cada vez mais dúbia. Confinaram-na em um compartimento
arbitrariamente exíguo, separada do restante da economia” (Sen, 1999, p. 45). De fato, para a economics,
postulados fundamentais da economia, como a racionalidade dos agentes, a maximização das utilidades e a
eficiência alocativa – e técnicas, como a teoria da decisão, teoria dos Jogos e teoria da escolha racional – não se
coadunam com as ideias de solidariedade e geração do bem-estar coletivo.
Evidentemente, a secção da political economy derivou num novo conflito de visões, não mais voltado para
explicar ou denunciar uma sociedade de produção, mas para delinear ou criticar a nova ordem de uma
sociedade de consumo. Há efetivamente um deslocamento do liberalismo como forma de vida instituída no
século XVIII para o neoliberalismo do século XX, e o primeiro efeito deste deslocamento é a passagem da
ênfase numa sociedade de produtores para a ênfase numa sociedade de consumo. Com base em Zygmunt
Bauman, observa-se que “enquanto o foco esteve sobre a troca de mercadorias, a ênfase esteve do lado da
produção; quando o foco se desloca para a competição, a ênfase deixa de estar na produção de bens, passando
para o consumo” (Veiga-Neto, 2013, p. 39). Adjacente ao darwinismo social, Mises defende que “a função da
competição é a de atribuir a cada membro de um sistema social aquela posição na qual pode melhor servir à
sociedade como um todo. É uma maneira de selecionar o mais apto para cada tarefa” (Mises, 2010, p. 152). A
competição, portanto, “não é um direito, garantido pelo estado e pelas leis, que torne possível a cada indivíduo
escolher, à sua vontade, o lugar na estrutura da divisão do trabalho que mais lhe agrade”, conforme Mises,
“atribuir a cada um o seu lugar próprio na sociedade é tarefa dos consumidores que ao comprar ou abster-se
de comprar estão determinando a posição social de cada indivíduo” (Idem, p. 334). Para ele, “a transformação
do pensamento que os economistas clássicos haviam iniciado só foi levada às suas últimas consequências pela
moderna economia subjetivista, que transformou a teoria dos preços do mercado numa teoria geral da escolha
humana” (Mises, 2010, p. 23), a própria praxeologia. O consumidor corporifica uma função distinta no
funcionamento do mercado, integrando-se a todas as outras funções: empresário, proprietário, capitalista,
trabalhador ou chefe de família. Desta forma, todo ator, na sociedade de consumo, será sempre um
empresário e um especulador (abrindo espaço para a imagem do capital humano). Estas funções não são
característica próprias de um determinado grupo ou classe de pessoas, se torna inerente a todas as ações e é
exercida por todos os atores. Nesse sentido, “os capitalistas, os proprietários e os trabalhadores são
necessariamente especuladores. O consumidor também o é, ao prover suas necessidades [ou maximizar suas
satisfações]”. O termo empresário, conforme Mises o emprega, significa “agente homem visto exclusivamente
do ângulo da incerteza inerente a qualquer ação” (Idem, p. 309). Nessa ótica, “a diferenciação de meios e fins
torna-se assim uma diferenciação entre investir e consumir, entre o negócio e a casa, entre gastos comerciais e
gastos domésticos” (Ibidem, p. 319). De fato, se para a economia clássica comprar e destruir significava
consumir, na nova ordem o consumo significa pertencer a um mundo, “e esse pertencimento deve ser o mais
fugaz possível, pois na sociedade de consumidores a concorrência para captura da atenção é incessante”
(Veiga-Neto, 2013, p. 39). Ora, o consumismo, como resultado daquele instante “quando o consumo assume o
papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho”, passa a ser o arranjo social que tem
como “principal força propulsora e operativa da sociedade” a reciclagem “de vontades, desejos e anseios
humanos rotineiros, permanentes, e, por assim dizer, ‘neutros quanto ao regime’”. Esta é, agora, a “força que
coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos
humanos”, preenchendo, concomitantemente, “um papel importante nos processos de autoidentificação
individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais” (Bauman, 2008, p.
73
41). Como expõe Bauman, em Vida para o Consumo: “Numa sociedade de consumidores e numa era em que a
‘política de vida’ está substituindo a Política que antes portava um ‘P’ maiúsculo, o verdadeiro ‘ciclo
econômico’, aquele que de fato mantém a economia em expansão, é o ciclo do ‘compre, desfrute, jogue fora’”
(Bauman, 2008, p. 126).
Mises retoma o argumento liberal tradicional voltado aos interesses individuais, o argumento de que a busca
livre da satisfação desses interesses individuais irá contribuir para o bem comum, mas agora por meio de um
mundo determinado por consumidores/jogadores. Para Bauman, a transformação primordial vinculada ao
ingresso para essa fase da modernidade pode ser localizada “na modificação profunda na maneira como a
individualidade é socialmente construída e no modo como a maior parte da população está socialmente
integrada, fendida, no processo de reprodução do sistema” (Bauman, 2011, p. 208). Desta forma, a
individualidade que emerge pode ser definida pela difusão de indivíduos como organismos experimentadores,
que procuram novas experiências e se encontram livres ao efeito de saturação, quer dizer, “capazes de
absorver e de responder a um fluxo constante e preferencialmente crescente de estímulos”. São também
indivíduos originadores, “caracterizados sobretudo pela mobilidade e flexibilidade de comportamento
espontâneas e facilmente acionadas, e vinculados apenas em grau mínimo à aprendizagem prévia e a hábitos
adquiridos”. Ainda, sem nunca estarem balanceados, eles “tendem a se equilibrar como unidades quase
autossuficientes e autopropelidas” (Idem, p. 208). Para Cícero Silva Oliveira, em A Soberania do Econômico nas
Reflexões de Hannah Arendt e Zygmunt Bauman, o imperativo de consumo se coloca como sendo “a própria
institucionalização da lógica do trabalho ou da vida na economia, e o caráter especialmente econômico da
esfera pública moderna sua mais flagrante implicação política”.
Palavras-chave: Economia Política; ética capitalista; ação humana; libertarianismo; individualismo radical.
74
Nome: Fábio Takao Masuda
Instituição de Ensino: USP
Orientador: José Antonio Vasconcelos
Título: Nietzsche e o Alzheimer
“Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo:
tendes ainda caos dentro de vós”. (NIETZSCHE )
Em seu curto ensaio intitulado O que é o contemporâneo, que na sua primeira versão, de 2005, foi
apresentado na Universidade Federal de Santa Catarina, o pensador italiano Giorgio Agamben se aventurou a
refletir sobre a seguinte questão: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa
ser contemporâneo?”. Uma primeira tentativa, das possíveis respostas aventadas por Agamben, é que,
paradoxalmente, ser contemporâneo é ser extemporâneo: “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é
verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às
suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse
deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo”.
Mas o que significa olhar e perceber o seu tempo histórico? Ora, o próprio Agamben, nesse mesmo texto,
delineou indicações a respeito desse questionamento. Em uma delas, Agamben resgata uma obra do jovem
Nietzsche, a saber, a Segunda Consideração Extemporânea. Da utilidade e desvantagem da história para a vida
(1874). Nessa Consideração de juventude, Nietzsche nos coloca questões seminais para a nossa
contemporaneidade, o que exemplifica o próprio caráter extemporâneo de sua obra. Não por acaso, Agamben
lançou mão justamente da Segunda Consideração Extemporânea. Trata-se de um movimento para adentrar em
um dos núcleos do pensamento nietzscheano:
“Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe que é ontem e o que é hoje; ele saltita de
lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de
maneira fugaz como seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem
enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal,
embora olhe invejoso para a sua felicidade ─ pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem
melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer o animal. O homem pergunta mesmo um
dia ao animal: por que não me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também
responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer, mas também já esqueceu
esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso. Todavia, o homem também se admira de si
mesmo por não poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou: por mais
longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto”.
Portanto, de acordo com Nietzsche, o animal não tem a dimensão do passado e do futuro, pois ele está ligado
somente ao instante presente. Assim, não se enfada e, tampouco, desenvolve a melancolia, precisamente,
porque não conserva uma memória. Por outro lado, o homem, que se orgulha da sua humanidade, inveja o
animal, dado que este não retém o que passou. O animal tem apenas a experiência da “estaca do instante”, ao
contrário do homem, que não consegue desprender-se da lembrança da sua condição de finitude. Logo, o
animal é feliz, uma vez que não conserva a lembrança da dor, do mal e da morte. Ele está conectado somente
ao instante. Já a humanidade do homem é marcada pelo tempo. Nesse sentido, a raiz do homem está fincada à
temporalidade, na medida em que o desenrolar da história humana se constrói no fluxo temporal. Acrescenta75
se ainda que isso coincide com a condição mortal do homem. Trata-se, portanto, da experiência corporal da
finitude, cuja imposição não permite nenhuma escapatória em face da impotência humana diante do
escoamento do tempo: “por mais longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto”. Ainda assim, contra
esta corrente, o homem recorre a inúmeros subterfúgios, que percorre um arco de ressentimento, desde a
vingança até a construção de mundos e entidades metafísicas:
“A finitude é o inimigo odiado pela vontade impotente, que por isso se vinga do passar do tempo, ficcionando
além-mundos, fortalezas metafísicas imaginárias, consolos na eternidade a que só a ascese pode conduzir,
protegidas e asseguradas contra a corrente deletéria do vir-a-ser, contra a instabilidade dos desejos, dos
sentidos, das constringentes pressões do corpo, das mazelas do mundo”.
Mesmo com a assunção de tais reações raivosas contra o passar do tempo, o homem, inevitavelmente,
carrega consigo os elos da corrente do ser mortal. Isso se dá pela memória, isto é, pela relação do homem com
o tempo. Trata-se do desprendimento da “estaca do instante”, que marca a vida dos animais, ao contrário da
existência humana. Não obstante, junto com a memória, há o esquecimento. Essa é a contradição constitutiva
do homem. E para Nietzsche, é por meio do “esquecimento ativo” que ocorre a metabolização, a assimilação,
em suma, a afirmação das experiências traumáticas da finitude: “eis a utilidade do esquecimento, ativo, como
disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê
que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento”. Logo, por
meio da senda nietzscheana, o esquecimento é uma potência, que possibilita encarar a vida na sua
integralidade, mesmo com todo o absurdo da historicidade da existência.
Contudo, o contemporâneo parece colocar um contraponto à questão do valor do esquecimento tão
insistentemente tratado por Nietzsche, haja vista a amnésia devastadora causada pela Doença do Alzheimer:
“Nestes casos, não há dúvida de que o déficit consiste numa perda real de memórias, por lesão generalizada de
sítios de armazenagem; e não há mais como corrigi-lo”. Ademais, com aumento da expectativa de vida,
propiciada por muitos fatores, como, por exemplo, o avanço da técnica moderna, houve, de modo geral, um
crescimento da população de idosos no planeta. Tal fato não se deu de modo diferente em território nacional,
onde também ocorreu um “incremento significativo na proporção de indivíduos idosos no Brasil. A proporção
de indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos passou de 6% em 1975 para 7,9% em 2000, estimando-se
que chegue a 15,4% em 2025”. Ora, com o envelhecimento humano, a incidência de patologias
neurodegenerativas também tende a aumentar. Dentre elas, a Doença de Alzheimer ganha destaque na
contemporaneidade, pois há duras consequências impostas não apenas aos idosos que sofrem com essa
demência, como também para os seus cuidadores, os quais devem aprender a lidar com situações limites, nas
palavras de Agamben: “ver as trevas”.
Desta forma, está colocado o desafio da Doença do Alzheimer para a nossa contemporaneidade. Com efeito,
houve um crescente interesse, o que se reflete nas produções cinematográficas que abordam o Alzheimer, já
que existe toda uma preocupação social em lidar com a patologia. Um exemplo recente, cuja abordagem gira
em torno do Alzheimer, é o filme norte-americano intitulado Still Alice (2014). No Brasil, recebeu o título de
“Para sempre Alice”. No entanto, apesar de estar presente desde os noticiários até as telas do cinema,
passando por pesquisas científicas atuais e artigos acadêmicos, não se trata de uma patologia recémdescoberta, pois, antes era “chamada demência senil ou arterosclerótica”. Logo, essa demência estabelece
uma relação de memória e esquecimento atrelada com o estado fisiológico, ao passo que Nietzsche dá ênfase
ao aspecto sociocultural do tema. Mas, então, por que aproximar a Doença do Alzheimer à Filosofia? A
resposta é norteada pela justificativa de atualização dos conceitos filosóficos para a área da saúde, quiçá, de
uma aurora nietzscheana de “grande saúde”. Daí a relevância da atualização da filosofia para o nosso tempo:
76
“Atualizar um conceito como instrumento filosófico conceitual para a nossa contemporaneidade – instrumento
que nos permita, no caso, pensar as questões da saúde, psicanalíticas, psicossomáticas e médicas – torna-se
assim o passo seguinte a uma desconstrução genealógica. Criar conceitos, propor sentidos novos, serve pois
para dar uma luz nova a debates nos quais as pessoas tenderiam a estar cristalizadas em suas posições por não
verem outras alternativas”.
Palavras-chave: Nietzsche, Alzheimer, Memória, Esquecimento, Saúde.
77
Nome completo: Fernando Araújo Del Lama
Instituição de ensino: USP
Nome do orientador: Ricardo Ribeiro Terra
Título do trabalho: As fantasmagorias de nosso tempo, ou a atualidade de Walter Benjamin.
Trata-se de ensaiar, a partir de um diálogo crítico e uma tentativa de atualização de alguns temas extraídos do
diagnóstico de época formulado por Walter Benjamin durante a década de 30, uma reflexão acerca das
perspectivas emancipatórias e de bloqueio à emancipação de algumas das fantasmagorias de nosso tempo.
O conceito de fantasmagoria (Phantasmagorie), é verdade, não é muitas vezes empregado por Benjamin. Suas
poucas menções podem ser encontradas em alguns escritos vinculados ao complexo das Passagens, sobretudo
em alguns dos ensaios sobre Baudelaire e nos dois exposés, com maior destaque para o de 1939, além de
figurar em algumas discussões epistolares com Adorno. E talvez seja esse o motivo de uma recepção tão
confusa. No contexto dos estudos sobre sua obra, ele frequentemente é alvo de diversos mal-entendidos: sua
especificidade é muitas vezes negligenciada em prol da aura de mistério que envolve o termo; em outras, ela é
sacrificada em função de sua equiparação à noção marxiana de “fetichismo da mercadoria”; mais
recentemente, contudo, graças ao crescimento do interesse em outros tópicos de sua obra relativos à teoria da
mídia para além dos elencados no famoso ensaio sobre “A obra de arte...”, em especial a reflexão sobre e o
sentido de sua atuação no rádio, alguns estudos se propuseram a colocar alguns aspectos desta ideia em nova
e produtiva perspectiva.
Com efeito, a noção de fantasmagoria, no interior da constelação em que Benjamin a insere, assume
fundamentalmente o sentido de um “produto cultural” – para utilizar as palavras de Jean Lacoste – que
cristaliza em sua estrutura interna um conjunto de tensões e, por esta razão, carrega uma abertura a diferentes
tendências de desenvolvimento, sejam elas negativas ou positivas, conservadoras ou transformadoras. Embora
aparentemente vago, o termo “produto cultural” apreende de modo mais ou menos adequado a amplitude da
noção de fantasmagoria, que pode assumir várias e distintas formas: ela pode assumir a forma de um novo
padrão de comportamento que surge num contexto de mudanças na dinâmica da sociedade – por exemplo, as
fantasmagorias do jogo, da flânerie ou dos interiores burgueses, em meados do século XIX –, mas também
podem ser inovações técnicas, que transformam radicalmente a experiência dos habitantes das metrópoles
modernas – por exemplo, as construções das passagens e as exposições universais no século XIX, que dão
origem às fantasmagorias do mercado. Elas surgem como reação às transformações da vida social e, por esta
razão, hesitam e se confrontam ante a assimilação completa pela lógica estabelecida, permitindo
desenvolvimentos em outras direções.
Mas como a ambivalência intrínseca às fantasmagorias opera? Alguns exemplos podem ser um pouco melhor
explorados. Em relação à fantasmagoria do jogo, ela reside na existência simultânea, por um lado, de anseios
reais de atingir o tempo pleno, escapando da temporalidade “homogênea e vazia”, mas que por outro, se
apresenta factualmente como eterno retorno do mesmo mítico, o sempre-igual (Immergleichen) que perpetua
a realidade vigente. Nos parágrafos e fragmentos dedicados ao fenômeno social do jogo, Benjamin mostra
como a repetição ininterrupta de jogadas, somada à diversão que a acompanha, funciona como um
entorpecente, que desconecta o jogador da realidade mundana e impossibilita-o de agir politicamente. Quer
dizer: apesar de estar contido na estrutura mesma da imagem-sonho do jogo, o sonho do tempo pleno está
adormecido, sendo necessário despertar, feito os surrealistas, suas potencialidades revolucionárias. E
enquanto ele não for liberado do aprisionamento mítico, as coisas tendem a permanecer como estão.
78
O comportamento dos burgueses no século XIX, por sua vez, revela a fantasmagoria dos interiores. Em pleno
auge do capitalismo, nas moradas burguesas, a desvalorização do valor de troca dos objetos expressa um certo
desejo saudosista de harmonia com os produtos humanos, não obstante a dinâmica da sociedade, pautada
pela produção e consumo de mercadorias. Ao conferir valor estético aos objetos de que dispõe em seu
enclausuramento, o burguês-colecionador expropria-os de seu valor de troca, característica primordial da
mercadoria, e artificialmente imputa-lhes unicidade e autenticidade, isto é, concebe-os nos moldes da
experiência aurática: para ele, seus objetos se diferenciam de todos os demais pois carregam seus traços, os
traços de sua história. Contudo, esse aprisionamento burguês se revela uma tentativa de evasão, de
rompimento desesperado e relutante com o mundo moderno que não cessa de evanescer, devido ao temor da
submissão à sua lógica. Ora, se para Benjamin um estágio de emancipação plena da sociedade só pode ser
atingido através da mobilização de forças coletivas, se apartar do mundo significa ignorar seus problemas e,
portanto, agir de modo conservador. Seria preciso, pois, liberar o sonho do resgate da harmonia idílica entre
homens e produtos humanos aprisionado na imagem fantasmagórica.
As exposições universais permitem a compreensão de mais uma ambivalência fantasmagórica moderna.
Destinadas às mais diversas camadas sociais e orientadas pelo slogan “instrução e diversão”, elas eram uma
espécie de celebração, no mais claro espírito das luzes, dos progressos científicos, técnicos, estéticos e morais
da humanidade: patrões e trabalhadores suspendiam suas diferenças em prol das maravilhas que o sistema
vigente oferecia. Porém, o sonho de democratizar o acesso aos progressos da humanidade se travestia
ideologicamente, nas palavras de Benjamin, em “centros de peregrinação ao fetiche da mercadoria”: aliado à
espetacularização da exibição no interior dos faraônicos pavilhões, o “sex-appeal” das mercadorias avivava o
poder de sedução exercido sobre os espectadores, fazendo-os aceitar e colaborar com a ideologia vigente.
Assim, seria preciso resgatar o espírito da idealização das exposições universais, realizando-os efetivamente.
O que permite unificar tão diversos fenômenos sob a rubrica fantasmagoria é o fato de todos eles serem
imagens ambivalentes que suprimem a positividade e reificam a negatividade na realidade urbana e, como
sintetiza Marc Berdet, agregar numa só imagem a função ideológica (reprodução da ordem social) na estrutura
mítica (repetição da reconciliação) com o brilho utópico (imagem adormecida da sociedade sem classes. Além
disso, a fantasmagoria é um fenômeno moderno, vinculado ao capitalismo e à sociedade na qual são
produzidas mercadorias.
E em tempos de velozes progressos e transformações como são os nossos, algumas das fantasmagorias podem
ser percebidas nas inovações técnicas e no modo pelo qual elas afetam a vida cotidiana. Assim, temas da
ordem do dia, como a internet e a “esfera pública virtual” que ela possibilita, ou mesmo a propagação de
dispositivos, bem como sua compactação e rápida ampliação de funcionalidades, que combinadas à internet,
permitem o acesso à conhecimentos e informações instantaneamente, podem ser tomadas nesta chave.
Obviamente, como fantasmagorias que são, elas contêm um lado negativo, que tende à assimilação pelo
establishment, sendo necessário, então, a liberação da positividade da imagem-sonho nelas contida.
Enfim, para atingir os objetivos aqui sugeridos, trata-se, primeiramente, de reconstituir alguns aspectos
dirigidos do diagnóstico benjaminiano que conservam sua atualidade, isto é, aqueles calcados na problemática
da fantasmagoria. Em seguida, pretende-se partir destas considerações a fim de esboçar uma reflexão no
sentido de atualizá-las, isto é, transpô-las, com as adaptações necessárias, para o nosso conjunto de
problemas. Além disso, as análises serão relativizadas com importantes estudos sobre o tema, tais como os de
Jaeho Kang, Marc Berdet, Miriam Hansen e Pierre Lévy, dentre outros.
Palavras-chave: Walter Benjamin, fantasmagoria, modernidade, diagnóstico, emancipação
79
Nome: Fernando Bonadia de Oliveira
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Homero Santiago
Título: Espinosa e o corpo comum na multidão
Este trabalho pretende examinar certa perspectiva de atualização de conceitos elaborados por Bento de
Espinosa no século XVII, e retomados em análises contemporâneas da filosofia política, sobretudo na trilogia
que Antonio Negri e Michael Hardt compuseram com Império, Multidão e Comum.
No tempo de Bento de Espinosa (1632-1677), impérios e partes de impérios travavam exacerbado e bilioso
conflito. Era época não só de guerra, mas de guerra civil. A Europa assistiu, ao longo do século XVII, à eclosão
de diversas lutas e revoluções que explicitaram, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista
político, as contradições inerentes ao capitalismo comercial cuja expansão produziu a riqueza moderna, após a
acumulação capitalista dos séculos XV e XVI. Ao mesmo tempo, essa expansão determinou a formação de uma
grande quantidade de marginalizados que não conseguiu acompanhar a elevação do custo de vida social.
Amsterdã, que ostentava a mais avançada forma de capitalismo, conheceu a miséria. Na Inglaterra houve a
Revolução de Cromwell. Além disso, deu-se a guerra da Restauração em Portugal; em Nápoles, a revolta que
consagrou Masaniello; na Suíça, a guerra camponesa de 1653; na Rússia, a rebelião de Stenka Razin e, enfim,
na Holanda, a conhecida tentativa de golpe de estado de Guilherme II. Tais conflitos compõem o contexto
político da formação do pensamento de Espinosa.
Antonio Negri, ao analisar os aspectos econômicos e políticos da Holanda e da Europa no século XVII, observou
que o espaço de tempo que vai da morte de Guilherme II em 1650, perpassa o período da soberania de De Witt
entre 1653 e 1672 e finda com a vitória de Guilherme III e da casa de Orange, configura uma época em que a
forma política holandesa permaneceu difusa, definida pela historiografia ora como “república oligárquica”, ora
como “monarquia bonapartista”, sob um clima constante de golpe. Segundo o filósofo italiano, as tensões
vividas neste tempo, levaram Espinosa a formular a questão fundamental que ocuparia a filosofia nos séculos
subsequentes: como é possível constituir o coletivo como prática? Tal questão pretende identificar quais
seriam as mudanças e os movimentos necessários para a formação da multidão, isto é, de uma multiplicidade
de diferenças que, apesar de suas discrepâncias internas, agisse em conjunto, como um só corpo. O projeto da
filosofia de Espinosa, orientado no sentido de dar resposta a esta perquirição, consistiria em um verdadeiro
trabalho de “constituição política do futuro”, uma alternativa à situação de indefinição que atravessou aquele
tempo histórico e chegou até o tempo presente.
Como já assinalara Deleuze em seu prefácio à obra A anomalia selvagem , Negri compreendeu que a grande
descoberta de Espinosa para o movimento de constituição do futuro foi a negação da alternativa contratualista
de matriz hobessiana e a concepção da prática como operação e composição através de noções comuns, que
permitiriam construir outro projeto político fora da mediação do contrato social. No conceito espinosano de
comum, estaria, segundo Negri, a chave para uma transformação qualitativa da multidão que, descolada de seu
caráter ambíguo e utópico, típico do Renascimento, consolidaria uma genealogia – prática e política – do
coletivo.
Em Multidão, obra recente, Negri e Hardt recorrem à imagem do corpo humano criada pela física de Espinosa
(que possui na Ética sua expressão mais detalhada) para explicar a constituição da multidão enquanto prática.
Ao discutirem as transformações que têm conduzido recentemente à formação do corpo da multidão, eles
apresentam uma ideia básica que tomaremos como tema gerador de nossa reflexão:
80
Talvez devamos identificar nesse processo de metamorfose e constituição a formação do corpo da multidão,
um tipo fundamentalmente novo de corpo, um corpo comum, um corpo democrático. Spinoza nos dá uma
ideia inicial de como poderia ser a anatomia de um corpo assim. ‘O corpo humano’, escreve ele, ‘é composto
de muitos indivíduos de naturezas diferentes, cada um dos quais é altamente heterogêneo’ – e, no entanto,
essa multidão de multidões é capaz de agir em comum como um único corpo. Seja como for, ainda que a
multidão forme um corpo, continuará sempre e necessariamente a ser uma composição plural, e nunca se
tornará um todo unitário dividido por órgãos hierárquicos.
A noção de “corpo humano”, emprestada da Ética para dar uma “ideia inicial” do “corpo da multidão”
defendido por Negri e Hardt, envolve um problema extremamente atual, concernente ao que poderíamos
chamar de “coerência política”, isto é, ao modo como as partes constituintes da multidão devem se relacionar
para que dela resulte um todo estável e equilibrado, no qual nenhuma parte possa mais que as outras. A busca
por essa coerência transparece no sétimo capítulo do Tratado político de Espinosa, destinado a encerrar o
tratamento dos fundamentos do império monárquico instituído por uma multidão livre.
A esta altura da obra, Espinosa oferece um exemplo que expressa bem o sentido de “corpo” pensado por Negri
e Hardt; ele exemplifica o que seria uma monarquia bem ordenada, isto é, aquela cujas partes compõem um só
corpo e uma só mente. Depois de ter argumentado enfaticamente que a natureza é uma e comum a todos, e
que a plebe, se fosse capaz de se moderar, não seria de se temer (TP, 7, § 27), o filósofo fecha o capítulo
afirmando que até os seus dias não havia sido formado um império tal como descrevera. Contudo, até mesmo
a experiência poderia mostrar que sua maneira de pensar a monarquia é a melhor, principalmente se fossem
observadas as causas de conservação de um império não bárbaro e as razões de sua ruína. Neste ponto, ele
recupera o exemplo histórico dos aragoneses, os quais, possuídos de uma lealdade singular e constante para
com seus reis, não violaram as instituições existentes (TP, 7, §30).
Considerando que, assim como Negri, outros filósofos têm chamado atenção para a oportunidade de se pensar
as bases da política espinosana como uma questão contemporânea, esta comunicação pretende mostrar como
a concepção de comunidade definida por Espinosa pode evidenciar, a partir de elementos contundentes, a
atualidade de sua filosofia. Conforme mostraremos, o exemplo histórico do Reino de Aragão, mencionado por
Espinosa no Tratado político, se liga a um problema ainda hoje relevante para perceber como é possível formar
isso que Negri e Hardt chamaram de corpo comum da multidão.
Palavras-chave: Espinosa; Comum; Multidão; Negri & Hardt;
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Nome: Flávio Campos de Lima
Instituição de ensino: PUC-SP
Orientadora: Maria Constança
Título: La Boétie e seu tempo
O filósofo e magistrado Étienne de La Boétie escreve entre 1546 e 1548 um importante texto, trata-se de sua
ilustre obra, o “Discurso da servidão voluntária”. (Discours de La servitude volontaire). Tais datas são
explicitadas por seu grande amigo, o também filósofo Michel de Montaigne. Montaigne comenta em sua obra
intitulada “ensaios” (Essais) a obra de seu amigo La Boétie que morre prematuramente aos 32 anos deixando
uma obra fundamental para aqueles amantes da antropologia, da psicologia e da filosofia. Parece que o
principal objeto de estudo do filosofo La Boétie nesta obra é o homem. La Boétie vai investigar a rigor qual é a
origem da escravidão existente entre os homens, buscando saber, se é ela autorizada pela natureza ou se esta
é uma invenção social. Tal problema leva La Boétie a percorrer os acontecimentos históricos e filosóficos cujo
objetivo parece ser encontrar uma possível resposta a esta complexa questão. Após percorremos suas paginas,
podemos observar que para o filosofo a dominação humana não pode ser autorizada pela natureza que, a seu
ver, fez todos os homens iguais. Resta assim, sustentar a tese que ela, a dominação, só pode ser uma invenção
social. De modo que para La Boétie o homem é escravizado pelo próprio homem, ou seja, por si mesmo.
É difícil entender que todos os homens habitantes de uma sociedade, isto em todo o mundo, obedeçam por
sua livre e espontânea vontade a um único homem que dite como estes homens devem ou não se comportar.
Este fato é para La Boétie muito complexo. Ora, como entender que pessoas nascidas livres, aceitem a
escravidão sem questionamento, transferindo assim, seus direitos a um único representante? É muito estranho
que um só homem possa privar milhões de habitantes de um Estado, de sua liberdade e não haja revolta por
parte desses dominados:
[...] como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações ás vezes suportem tudo de um tirano
só, que tem apenas o poderio que lhes dão que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam
suporta-lo. Não que a ele sejam obrigados por força maior, mas porque são fascinados e, por assim dizer,
enfeitiçados apenas pelo nome de um que não deveriam temer, pois ele é um só, nem amar, pois é desumano
e cruel para com todos eles
Essa voluntariedade parece ser inconsciente, pois, pode acontecer que este homem seja escravo e não o saiba.
Tal esquecimento dar-se em sua desnaturação, ocorrida ao longo da história, sem que ele perceba. Assim, o
homem poderá crer que as coisas foram sempre assim, e que é normal existir aqueles que comandam e
aqueles que nasceram para apenas obedecer sem que caiba ai, nenhuma oposição aos comandantes.
Se aceita a tese que não é por meio da força que o tirano obtém seus servos, para que o tirano deixasse de
existir, bastaria que o povo não mais lhe desse aquilo que na verdade ele não possui, como por exemplo, os
reis do Egito que andavam com a “cabeça pegando fogo”, e o povo aceitava essa “verdade” sem desmascarálos. Mas, segundo La Boétie, existe um por que do povo não tirar a mascara do tirano, o motivo seria, a
transformação dos homens, por parte do tirano, em “homens efeminados”, sem coragem alguma. Sabendo
que este povo foi conduzido a covardia extrema, o tirano, ver-se a vontade para realizar o que bem entender,
como correto, verdadeiro ou falso, pois ter certeza que os homenzinhos não lhe farão oposição alguma.
Parece possível afirmarmos que para La Boétie o homem é livre por natureza, mas este não sabe mais
reconhecer aquilo que lhe é bom nem natural. Esse esquecimento ocorre quando ele, o homem, passa a viver
em sociedade, pois adquire hábitos e costumes que não possuía em sua natureza primeira. De tal maneira que,
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La Boétie, diz ser este segundo momento da existência humana, uma segunda natureza. Esta segunda
natureza, parece ser adquirida por meio da educação que ele recebe agora no meio social e não mais natural
como era antes. A força dos hábitos adquiridos no meio social pelo homem possui um poder esmagador que
logo destrói os ensinamentos naturais, assim, o homem logo perde aquilo que lhe era natural:
Não há dúvida de que, inicialmente, é a natureza que nos dirige segundo as tendências boas ou más que nos
deu; mas também é preciso concordar que ela tem ainda menos poder sobre nós que o hábito; pois, por
melhor que seja o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma a sua maneira,
apesar de nossas tendências naturais. As sementes do bem que a natureza põe em nós são tão frágeis e finas
que não podem resistir ao menor choque das paixões nem á influência de uma educação que as contraria. Não
se conservam bem, abastardam-se tão facilmente e até degeneram, como ocorre a essas árvores frutíferas
que, tendo sua própria espécie, conservam-se enquanto as deixam crescer naturalmente; mas perdem-na para
dar frutos completamente diferentes, logo que as enxertam.
Talvez fique claro na citação acima que, para La Boêtie o costume é um tirano que força o homem a perder
aquilo adquirido por meio da natura que o educa, de maneira que este viva naturalmente, sem que tenha início
sua degeneração. Assim, La Boétie parece sustentar a tese que, as leis naturais, pouco ou quase nada, podem
fazer contra o império dos costumes que se impõem e dominam o homem. Isso talvez aconteça, porque o
homem não é um ser totalmente racional, ele, é também possuidor de paixões que às vezes lhe dominam.
Sendo as leis naturais fracas e insuficientes perante a força tirânica do meio em que o homem vive. Assim, cada
um será aquilo que o meio lhe fornece como certo ou errado. O filósofo ilustra o exemplo dado, quando
mostra dois animais que foram criados: um no campo e outro no ceio domestico:
Contam que Licurgo, legislador de Esparta, criara dois cães, ambos irmãos, ambos amamentados com o mesmo
leite, e os habituara, um na cozinha doméstica e o outro correndo pelos campos, ao som da trompa e do
cornetim. Querendo mostrar aos Lacedemônios a influência da educação sobre o natural, expôs os dois cães na
praça pública e colocou entre eles uma sopa e uma lebre: um correu para o prato e o outro para a lebre. Vede,
disse ele, e, no entanto irmãos! O legislador soube dar tão boa educação aos Lacedemônios, que, cada um
deles teria preferido sofrer mil mortes a submeter-se a um senhor ou reconhecer outras instituições que as de
Esparta.
Assim, segundo La Boétie, a primeira razão da servidão voluntária acontece por intermédio dos costumes que,
aos poucos, se tornam os tiranos do homem sem que este perceba. Mas encontra partida, há aqueles que por
costumes, não abrem mão de sua liberdade em hipótese alguma, preferem a morte, á serem submetidos ao
jugo de um senhor que eles não aceitam. É o caso dos Lacedemônios que, quando foram convidados a falarem
por que não aceitaram os favores do rei, disseram que, sua liberdade não poderia ser posta a venda, e aqueles
que isso faziam, não sabiam o que é ser livre:
Conhecestes o favor de um rei, mas não sabes como é doce a liberdade, nada sabes da alegria que ela
proporciona. Oh! Se tivesses apenas uma ideia, aconselhariar-nos-ias a defendê-la, não só com a lança e o
escudo, mas com as unhas e os dentes. Só os Espartanos diziam a verdade; mas aqui cada um falava conforme
a educação que havia, recebido. Pois era impossível que o Persa lamentasse a liberdade de que jamais gozara,
os Lacedemônios ao contrario, tendo saboreado a doce liberdade, nem mesmo concebiam que se pudesse
viver na escravidão.
Na citação acima, talvez fique claro o paradoxo existente no discurso de La Boétie, pois ao mesmo tempo em
que os hábitos e costumes podem escravizar um povo, estes possibilitam um caminho seguro rumo à
liberdade. Para que seja possível o despertar da liberdade, é necessário que, haja uma educação voltada para
tal finalidade. Ora, pergunta La Boétie, como pode alguém lutar por algo que nunca teve, nem saber o que
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significa? Assim, somente aqueles que foram acostumados a ser livres, possuem essa consciência e é
impossível abrir mão dela.Ao longo do texto, La Boétie explicita vários exemplos de homens ilustres que desde
criança não aceitaram em hipótese alguma a submissão, como é o caso de Catão que, por pertencer a uma
família nobre, visitava com frequência o ditador Sila.
Palavras-chave: homem, desnaturação, costume, dominação.
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Nome: Fran de Oliveira Alavina
Instituição de ensino: USP
Orientador: Luís César Guimarães Oliva
Título: Da história sem sentido ao estético sentido do presente: Filosofia como diagnose de si e de seu tempo
Pensar a Filosofia dotada da capacidade de realização de um diagnóstico do presente supõe, antes de qualquer
coisa, considerar as características mais determinantes da própria Filosofia no presente. Quais mudanças no
estatuto teórico da Filosofia fundamentam a possibilidade de um diagnóstico do presente? De que é capaz a
Filosofia hoje? Como escapar da destinação geral imposta aos saberes de adequação ao status quo, ou seja,
qual o alcance da crítica filosófica? Tais indagações se sustentam na hipótese interpretativa adotada, a saber: o
diagnóstico filosófico do presente requer uma diagnose da Filosofia sobre si mesma. O diagnóstico do presente
se realiza na medida em que o exercício filosófico não se reduz à técnica exegética dos textos. Abdicando de
uma auto-referencialidade ínvia. Trata-se, pois, de pensar as implicações entre o discurso filosófico e as
determinidades do presente, valendo-se, aqui, de uma discussão particularmente característica da filosofia
italiana contemporânea, mais precisamente do debate entre os pensadores Remo Bodei e Gianni Vattimo na
obra Filosofia Al Presente.
Com efeito, as mudanças no estatuto da reflexão filosófica (o aparecimento de novas propostas metódicas e
correntes de pensamento) se expressam já nas diferentes definições do presente: modernidade tardia,
modernidade líquida, hipermodernidade, pós-modernidade. Ainda que sejam diversas as diagnoses do
presente, algo de comum pode ser identificado entre elas: a constante referência à Modernidade. Assim, em
um primeiro momento, o diagnóstico do presente pauta-se em dois aspectos: i) a compreensão da
Modernidade orientadora do diagnóstico; ii) a dinâmica categorial correspondente às diversas correntes de
pensamento.
As correntes de pensamento na atualidade, não obstante, ao mesmo tempo em que tornam a Filosofia
positivamente multifaceada e dinâmica, correm o risco de perderem-se em uma “confusão babélica”. Isto é,
declinar nas unilateralidades de discursos particulares nos quais são perdidos os liames e nexos de
proximidade, pois incapazes de estabelecer pontos de contato. Por conseguinte, de uma “confusão babélica”
de linguagens incapazes de serem absolvidas fora de seus próprios âmbitos, gesta-se discursos emudecidos.
Disciplinas setoriais, discursos particularistas que no isolamento da incapacidade de realizar diálogo buscam
legitimação no reconhecimento de especialidades privilegiadas. Ora, uma das mais fortes características da
Modernidade vincula-se à organização de uma enciclopédia das ciências e saberes filosóficos, preocupação
premente de Descartes a Hegel. Estava, pois, em questão a fundamentação da integralidade do saber,
sustentada na formulação de um liame capaz de dotar as disciplinas filosóficas de uma raiz comum e segura, tal
como na imagem da árvore utilizada por Descartes. Com efeito, em meio às vicissitudes das diferentes
propostas de organização enciclopédica da Filosofia, cumpre ressaltar o aparecimento de duas novas
disciplinas, sem as quais, a capacidade filosófica de diagnose do presente torna-se obliterada. Trata-se da
Filosofia da História e da Estética.
Duas disciplinas filosóficas que se nutrem de um mesmo esforço moderno: dotar de sentido racional duas
esferas secularmente consideradas incapazes de se elevarem ao âmbito de universalidade exigido pela razão .
Daí, o aparecimento das filosofias da história como discursos capazes de estabelecer um sentido global unitário
para o curso dos acontecimentos humanos, dotando do senso de continuidade as múltiplas fraturas de um
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único processo, que outrora se encontrava relegado às vicissitudes dos fins particulares dos povos e das
necessidades singulares dos indivíduos. No caso da Estética, a justificação filosófica de seu estatuto resultou de
uma frontal oposição às poéticas clássicas. Houve, dessa maneira, não apenas uma mudança de estatuto, mas
também de eixo de gravidade. Abandonou-se o estabelecimento das regras objetivas constituidoras do belo,
em favor da legitimação da experiência subjetiva da beleza como âmbito universal e autônomo. Isto é, como
experiência cujo sentido não pode ser aferido nem do âmbito gnosiológico, nem do âmbito prático.
Uma vez justificada a autonomia da experiência estética, em conjunto com a desconstrução das filosofias da
história, e a consequente perda do sentido unitário dos acontecimentos (este último aspecto, de acordo com
Bodei, tratar-se-ia de uma “hemorragia”, consequência de uma fratura que o historicismo buscara, porém não
conseguira compensar), a Estética adquiri grande amplitude, resulta daí que o estético deixa de se restringir ao
belo artístico. Segundo Vattimo, o presente pode ser concebido como época estética na medida em que seu
sentido mais determinante é o estetismo. A estetização da realidade é, em verdade, a desrealização do sentido
unitário da história herdado da Modernidade. O estetismo, isto é, a sobreposição do âmbito estético às esferas
prática e gnosiológica é o fenômeno determinante do ethos do presente.
O estético sentido do presente não é uma promoção da Arte, mas um agenciamento dos mass media. Estes
caracterizam a sociedade de massa como sociedade transparente , em oposição às filosofias da história. Na
sociedade mass mediática, a história perde aquele caráter redentor que se realizaria na consumação final. A
redenção se deixa entrever quando o curso dos acontecimentos é concebido como totalidade orgânica. Nesta
perspectiva, o próprio processo histórico indicaria sua destinação final imanente, porém sendo uma apreciação
histórica feita de um momento particular, a visão da redenção final nunca é visão completa. Segundo Vattimo,
não é este o caso da sociedade transparente, em cujo seio, tudo é exacerbadamente visto. Hiperbólica
imagética, na qual a ordem das coisas é dada como visão completa, sem segredos, sem algo que possa manterse escondido. Assim, nada resistiria à homologação cultural dos mass media, uma vez que o contato direto, o
acesso ao real é cada vez mais mediado pelos agentes da homologação. Os acontecimentos já são dados
segundo um roteiro próprio, porém sem sentido unitário. A realidade não é apenas compreendida, porém mais
propriamente sentida, logo o caráter estético, como uma ficção midiaticamente produzida.
Desse modo, os mass media ocupam o papel das filosofias da história, tomando a direção narrativa dos
acontecimentos. Prepondera a concepção: se não foi noticiado, não aconteceu. Todavia, se neste caso, Vattimo
identificada algo positivo (a liberação do fardo da redenção), Bodei considera negativamente. O presente se
caracteriza como lugar da frustração, pois prescindido do caráter redentor resta somente adequação.
Palavras-Chave: Estetismo. Presente. Diagnóstico.
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Nome: Gabriel Petrechen Kugnharski
Instituição de ensino: USP
Orientador: Luiz Sérgio Repa
Título do trabalho: Autocrítica do conceito e dialética negativa: sobre a atualidade da filosofia em Theodor W.
Adorno
Este trabalho de pesquisa pretende abordar a questão da atualidade da filosofia na fase tardia do pensamento
de Theodor W. Adorno. Buscaremos mostrar como essa questão está intimamente ligada com a necessidade –
bastante enfatizada pelo filósofo alemão – de uma autocrítica do conceito filosófico. Essa exposição será
imprescindível para a compreensão do método da dialética negativa. Em outras palavras, trata-se de
apresentar as razões pelas quais Adorno insiste em um modelo de pensamento que recupera os conceitos da
dialética hegeliana, mas que, em certo sentido, busca também romper com essa dialética, dando a ela um
caráter negativo. Como o próprio Adorno afirma na apresentação de seus Três Estudos sobre Hegel (1963),
trata-se de buscar um conceito modificado de dialética.
Embora a Dialética Negativa seja em grande medida um embate com a dialética hegeliana, ela se inicia com
uma crítica a Marx. Basta lembrarmos a frase com que Adorno abre a obra de 1966: “A filosofia, que um dia
pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” (ADORNO, 2009, p.11).
Logo na primeira seção da obra, intitulada não por acaso “Sobre a possibilidade da filosofia”, Adorno afirma
que a filosofia deve recuar ante a exigência da décima primeira tese sobre Feuerbach, na qual Marx afirma que
“Os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é
transformá-lo”.
Para Adorno, o momento prático de transformação do mundo passou. A análise do economista e sociólogo
Friedrich Pollock, do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, acerca da transição ocorrida desde o fim da
primeira guerra mundial do capitalismo privado para o capitalismo de estado questionou fortemente a teoria
defendida por Marx e pelos marxistas de que o capitalismo jamais encontraria uma estabilidade, mas, ao
contrário, enfrentaria crises sucessivas que o levariam à ruína. Para Adorno, o conceito de capitalismo de
estado aponta para uma combinação entre Estado, capitalismo e totalitarismo que parece zombar tanto dos
prognósticos de Marx e do marxismo acerca da caducidade inevitável do capitalismo quanto da concepção
hegeliana de Estado como a realização máxima da razão.
A exigência de Marx torna-se caduca na medida em que tal transformação não ocorreu, e que a realização da
filosofia não passou de uma promessa. Contudo, é o próprio fracasso da filosofia que instaura a necessidade de
continuar a sua elaboração, pois deve sanar as feridas que ela própria ajudou a abrir ao longo da história. Seu
procedimento só será legítimo, porém, como uma autorreflexão exaustiva que traga à luz as razões desse
fracasso, ou como diz Adorno, só cabe à filosofia “criticar a si mesma sem piedade” (ADORNO, 2009, p.11).
Assim, Adorno interrogará a tradição (sobretudo Kant, Hegel, Marx e Heidegger) em busca dos conceitos que
foram mal pensados e que, portanto, malograram a emancipação e permitiram a recaída na barbárie. Como
afirma Marcos Nobre (1998, p.44), diferentemente de Habermas que pretende reformular as categorias da
tradição filosófica, Adorno busca interrogá-las do ponto de vista de um estado de não-emancipação. A
importância dessa tarefa é claramente expressa por Adorno na seguinte passagem: “Aquilo que em Marx e
Hegel permaneceu teoricamente insuficiente transmitiu-se para a prática histórica; é por isso que é preciso
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refletir novamente de maneira teórica, ao invés de deixar que o pensamento se curve irracionalmente ao
primado da prática” (ADORNO, 2009, p.126).
Logo no início da introdução da Dialética Negativa, Adorno dirá que, assim como Kant investigou a
possibilidade da metafísica após a crítica ao racionalismo, será preciso investigar a possibilidade da dialética
após o fracasso da dialética hegeliana em, “com conceitos filosóficos, mostrar-se à altura do que é heterogêneo
a esses conceitos” (ADORNO, 2009, p.12). Buscaremos então mostrar em que consiste o procedimento da
dialética negativa a partir das críticas que Adorno tece à “versão positiva” dessa dialética: a hegeliana.
Adorno compreende não apenas a dialética hegeliana, mas mais amplamente o idealismo filosófico em termos
de dominação. Nessa chave, o filósofo frankfurtiano fará duras críticas ao primado do sujeito, à hipóstase do
princípio de identidade e ao conceito de totalidade hegelianos. Por outro lado, um elemento da dialética
hegeliana será conservado na dialética adorniana: a negação determinada. Se o impulso de negatividade deve
ser conservado, ele não deve, como em Hegel, apontar para uma positividade. Para Adorno, a categoria da
totalidade mostra-se como o elemento propriamente antidialético da dialética hegeliana, o momento em que a
negatividade é anulada e, com isso, também o princípio crítico dessa dialética.
Consequentemente, Adorno defenderá uma passagem do primado do sujeito para um primado do objeto. Isso
significa que o sujeito se despoja de sua pretensão de totalidade ao apontar para o um elemento ineliminável
de não-identidade que deve impedir que o objeto seja equiparado às categorias do sujeito. Adorno defende
que a racionalidade que extingue de forma totalitária todo rastro de não-identidade do objeto acaba por
empobrecê-lo, o que leva a uma eliminação da própria subjetividade e, em última instância, à instauração da
barbárie.
Assim, um aspecto da tarefa da filosofia compreendida como dialética negativa é o de investir em uma
transformação das categorias de sujeito e de objeto e, consequentemente, da dialética entre eles. Para
Adorno, uma crítica social não pode se restringir a uma crítica da política ou da economia, mas deve se dar em
um nível muito mais fundamental: não há uma transformação social efetiva sem uma transformação da própria
racionalidade. Nesse sentido, a elaboração de um conceito não-violento de racionalidade será o paradigma da
dialética negativa.
Palavras-chave: teoria crítica; dialética negativa; capitalismo de estado, totalidade, identidade;
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Nome: Gustavo Barreto Vilhena de Paiva
Instituição de Ensino: Universidade de São Paulo
Orientador: José Carlos Estêvão
Título: As concepções de filosofia medieval de Étienne Gilson e Alain de Libera
Duas obras têm sido marcantes para a historiografia da filosofia medieval nos séculos XX e XXI, a saber, a de
Étienne Gilson (1884-1978) e aquela de Alain de Libera (1948-). Mais do que elementos basilares da
historiografia francofônica da filosofia, ambos ultrapassaram tal âmbito para se tornarem interlocutores das
mais variadas escolas de pensamento – o primeiro, com uma vasta coleção de escritos ingleses além de seus
clássicos franceses, o segundo mantendo claro diálogo com a filosofia alemã dos séculos XIX e XX. No entanto,
a sucessão cronológica entre os dois corresponde a um grande afastamento do ponto de vista teórico, isto é,
no que diz respeito às suas respectivas concepções de ‘história da filosofia medieval’. Assim, enquanto Gilson
teve o seu auge de influência na primeira metade dos novecentos, produzindo sua obra no contexto do
neotomismo que vinha se desenvolvendo desde as últimas décadas do século XIX, De Libera, por sua vez,
produz seus principais trabalhos a partir da década de 1980, sob influência da recepção francesa da filosofia
alemã que estava em curso desde o período pós-Segunda Guerra Mundial. Dito isso, o que pretendo neste
trabalho é desenvolver uma comparação entre as concepções de ‘filosofia medieval’ dos dois autores, para
compreender como cada um justifica a atualidade de seus respectivos trabalhos e, mais precisamente, de suas
respectivas narrativas da história da filosofia medieval.
No que diz respeito a Étienne Gilson, o que primeiro se deve notar é que, para ele, a narrativa de uma história
da filosofia medieval não é um fim, mas antes um meio para a elaboração de um pensamento filosófico. Dito
de outra maneira, a história da filosofia por ele narrada serve como base (ou justificativa) para a filosofia
tomista que ele pretende desenvolver. Pois bem, que a filosofia não seja a sua própria história já fica claro nas
suas William James Lectures, proferidas na Universidade de Harvard e publicadas sob o nome de The Unity of
Philosophical Experience (1937). Nesse texto, o autor precisamente desenvolve uma narrativa histórica que se
desenrola desde a Idade Média até a filosofia do século XX, com o intuito de demonstrar, a partir das
‘experiências filosóficas’ desses períodos que, “sendo o ser o primeiro princípio de todo conhecimento
humano, ele é a fortiori o primeiro princípio da metafísica” (p. 252), do que redunda a centralidade da
metafísica para o pensamento filosófico. Com essa tese, Gilson pretende se contrapor àquele que ele considera
o grande erro da filosofia moderna, a saber, a afirmação de que “o pensamento, não o ser, está envolvido em
todas as minhas representações” (p. 255, grifo no original). Aqui, ficam claros três elementos basilares do
pensamento de Gilson: [i] a oposição a um modernismo (oposição esta que caracteriza, a bem dizer, todo
movimento neotomista); [ii] a afirmação da centralidade do ser e, mais, da cognoscibilidade do ser como algo
real, para além do sujeito; finalmente, o mais importante para nós, [iii] o fato de que tal centralidade do ser
pode ser demonstrada (como que indutivamente – cf. L’esprit de la philosophie médiévale, 1932) pela narrativa
da história da filosofia. Isso, porém, não explica o porquê da centralidade da filosofia medieval nessa narrativa.
Para compreendê-lo, precisamos nos voltar para obras posteriores, nomeadamente, L’être et l’essence (1948)
e Being and Some Philosophers (1952). Aqui se torna claro que, para Gilson, a filosofia de Tomás de Aquino é
aquela que atinge o ideal de uma filosofia centrada no ser enquanto ‘ser real’, ou seja, do ‘ser enquanto
existente’, fazendo do pensamento algo dependente da realidade. A história da filosofia tal como Gilson
concebe ‘filosofia’, atinge seu auge com Tomás de Aquino e a narrativa dessa história é atual na medida em
que comprova a necessidade de uma retomada do tomismo na filosofia contemporânea, sempre
considerando-o como uma ‘filosofia cristã’, uma noção que deveremos aprofundar.
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É completamente diferente a visão de história da filosofia medieval que encontramos em um autor como Alain
de Libera. Desde começos da década de 1990, já vemos os começos de sua reflexão sobre a própria
historiografia da filosofia medieval, em um livro como Penser au moyen âge (1991). Porém, não é aqui que
encontraremos os principais pontos em que o autor se afasta de Gilson, uma vez que seu adversário neste livro
é antes o Jacques Le Goff de Les intellectuels au moyen âge (1957) e Gilson, de sua parte, “tinha,
evidentemente, bem poucos pontos em comum com os historiadores dos Annales” (Penser..., p. 42), escola
historiográfica de que Le Goff era herdeiro. Assim, a nossa discussão avança mais pela consideração da
introdução a L’art des généralités (1999), onde De Libera expõe resumidamente sua concepção de história da
filosofia e, em particular, da história da filosofia medieval. Em primeiro lugar, fica patente a materialidade de
sua concepção de história: “<n>osso objeto é a memória: a memória material, a memória inconsciente, a
memória sem sujeito, brevemente a memória dos textos” (p. 8). Ou seja, vemos aqui uma narrativa que toma
para si um fundamento claro, a saber, as fontes textuais, o que certamente exige uma reflexão sobre crítica
textual (p. 9). Mais importante, porém, é a concepção desse desenvolvimento de uma história da filosofia
fundada em textos criticamente estabelecidos como uma “arqueologia filosófica” (p. 6), expressão inspirada
pela obra de Michel Foucault. Com isso, se torna clara a utilidade que De Libera enxerga em uma história da
filosofia medieval, a saber, ela é uma ‘arqueologia’ do pensamento moderno e contemporâneo, no sentido em
que ela surge como narrativa da ‘pré-história’ do pensamento moderno e contemporâneo. Nesse contexto, De
Libera propõe o projeto de uma “arqueologia do sujeito” (cf. Où va la philosophie médiévale?, 2014), como
forma de se compreender a noção de ‘sujeito’ (e, em geral, de ‘homem’) que tem marcado a filosofia desde
inícios da modernidade filosófica. Tal projeto vem sendo desenvolvido na série Archéologie du sujet (publicada
desde 2007) e nos cursos do autor no Collège de France (iniciados em 2013-2014).
Dito isso, parece-me fundamental, na comparação entre Gilson e De Libera, o fato de que ambos veem a
narrativa de uma história da filosofia medieval como algo útil, porém diferentemente. Se para o primeiro, a sua
utilidade está em demonstrar, como que por indução, a necessidade de uma retomada contemporânea do
tomismo enquanto filosofia cristã, para o segundo sua utilidade está em nos permitir compreender, como que
por uma arqueologia, as origens do nosso próprio pensamento, isto é, a pré-história da nossa filosofia. É
precisamente essa diferença que pretendo desenvolver neste trabalho.
Palavras-chave: filosofia medieval; história da filosofia; Étienne Gilson; Alain de Libera.
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Nome: Gustavo Hessmann Dalaqua
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros
Título: Sobre a relação da filosofia com o presente em J. S. Mill
O propósito do trabalho é tentar responder as principais questões que animam nosso encontro: qual é a
relação da filosofia com a sua atualidade e a filosofia ainda tem algum papel a desempenhar em nosso tempo?
Para tanto, recorreremos ao pensamento de John Stuart Mill, autor que atribuía à filosofia um papel crucial
para a transformação do presente e das pessoas que nele vivem. A relação da filosofia com o seu tempo é um
tema que Mill elabora já em seus escritos de juventude, tal qual “The Spirit of the Age”, série de artigos que o
autor publicou, em 1831, no semanário Political Examiner. No primeiro dos artigos da série, Mill explica que o
“objeto adequado da investigação filosófica” é oferecer um diagnóstico do presente que desvele “qual é,
realmente, o espírito de [sua] época” (CW XXII, p. 229). Costuma-se exortar os historiadores a pesquisar o
passado, todavia o presente “também é história, e a parte mais importante da história” (CW XXII, p. 230). É
preciso, pois, uma história do presente, uma análise das causas que condicionam a época em que nos
encontramos. Além de expandir nosso conhecimento filosófico, o exame crítico das causas do presente seria
salutar porque nos rumaria à liberdade. É nesse sentido que o estudo filosófico da atualidade é capaz de alterar
não só o presente como também as pessoas que vivem nele. A situacionalidade da vida humana é um fato
incontornável: desde que nascemos, encontramo-nos submetidos a uma situação que nos ultrapassa. Família,
classe social, país de origem – eis alguns exemplos de causas que, segundo Mill, limitam e moldam a vida de
qualquer ser humano. Tais causas podem representar um entrave à liberdade na medida em que sua ação
sobre a vida humana se mantém obscura e inacessível. Entretanto, uma vez que seu mecanismo de ação seja
estudado e desvendado, essas mesmas causas podem servir de suporte à liberdade. Podemos encontrar tal
linha de raciocínio no livro final de A System of Logic, intitulado “On the Logic of the Moral Sciences”. Um dos
objetivos desta obra é argumentar contra a tese de que a vida humana não pode ser livre porque
inevitavelmente encontra-se subjugada a causas históricas que a ultrapassam. Ora, diz Mill, que ninguém possa
escolher nascer em determinado tempo e lugar não nega a liberdade. Constatar que a individualidade humana
é condicionada pelo contexto histórico-social circundante sinaliza o início, e não o fim da liberdade. Se nossa
individualidade é constituída pela situação presente que nos rodeia, isso significa então que o estudo do
presente pode nos levar à autoconstituição, isto é, à liberdade. O primeiro passo para tomar as rédeas de
nosso destino é descobrir quais são as causas que nos moldam. Uma vez que as desocultamos, podemos tentar
direcioná-las ou negociar com elas. Apropriando-se das causas que nos dominam, podemos nos transformar e
agir em causa própria. De determinado, nosso caráter passa a ser, então, determinante. Como buscaremos
explicar, a liberdade para Mill consiste nesse jogo de cintura que o indivíduo crítico, ciente das práticas sociais
que o engendram, adquire com o presente (CW VII, p. 840). Nota-se, pois, que a relação da filosofia com o seu
tempo é de suma importância para Mill. É tomando o presente como objeto de crítica que a filosofia é capaz de
conquistar aquilo que Mill julga ser o atributo mais indispensável do ser humano: a liberdade. O termo “crítica”
que aqui se emprega carrega, se se quiser, uma acepção kantiana: criticar o presente é expor os limites,
escancarar as amarras que constrangem nossos modos de pensar e de agir. Denunciar as causas que limitam
nossa vida pode nos encaminhar à liberdade, porém não necessariamente. Para que seja capaz de mudar a
situação presente, a crítica filosófica deve ser um exercício não só teórico como prático. Os antigos, segundo
Mill, tinham ciência disto. A filosofia, para eles, consistia em uma prática de vida. Não por outro motivo, a
antiguidade foi uma época fascinante e extremamente rica para a filosofia, sobre a qual Mill relata: “Os estudos
do gabinete eram conjugados e vistos como preparação para as atividades da vida. Não havia littérature des
salons [...] na Grécia antiga: a sabedoria não era algo sobre o qual se gabava, mas algo que se fazia. Foi isso que
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preveniu, nos dias gloriosos da Grécia, que a teoria degenerasse em refinamento vão [...]. Criados e imersos
por toda a vida na ação, todas as especulações dos gregos eram com vistas a ela; todas as suas concepções de
excelência tinham uma referência direta à ação” (CW I, p. 287). Para que a filosofia não redunde em mero
entretenimento de eruditos, é necessário que os estudos de gabinete sejam, pois, aliados à prática. A biografia
de Mill é ilustrativa a esse respeito. Ao mesmo tempo em que usava a filosofia na esfera pública de sua época
para defender posições polêmicas (tais como: o sufrágio feminino, o direito à greve e à livre manifestação
política, a reforma agrária etc.), Mill sabia que, sozinha, a crítica filosófica não é capaz de transformar a
realidade, devendo por isso ser conjugada à intervenção política direta. Além de advogar o sufrágio feminino
em seus livros por meio de argumentos filosóficos, Mill fazia questão de defender suas posições dentro das
instituições políticas (inclusive, chegou a se eleger membro do Parlamento inglês no final de sua vida). Ainda
que poucos de nós disponhamos do tempo e dos recursos necessários para agir tão diretamente em nossa
realidade, podemos, na medida do possível, procurar realizar nossas pesquisas filosóficas de modo a contribuir
para a teoria e a prática de nosso tempo. A filosofia ainda pode, com efeito, desempenhar um papel
importante na vida quotidiana. Para ilustrar esse ponto, reconstruirei, brevemente, o argumento que
apresentei em um seminário sobre liberdade de expressão, realizado, este ano, na Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo. Por meio dos argumentos filosóficos contidos no segundo capítulo de On
Liberty, sustentei, neste seminário, que o Projeto de Lei 122 não atenta contra a liberdade de expressão dos
brasileiros. Esta hipótese, como se sabe, foi um dos motivos que levou nossa Câmara a não aprovar o PL 122.
Na contramão desta leitura, procurei mostrar que, visto que incita a violência e provoca dano a outrem, o
discurso homofóbico é passível de ter sua expressão cerceada, sem, por isso, reduzir a liberdade de expressão
de nossos cidadãos. Como pretendo mostrar a partir deste exemplo, a pesquisa filosófica ainda é capaz de criar
contradiscursos que põem em xeque as relações de dominação e exclusão de nossa sociedade.
Palavras-chave: história; liberdade; crítica; política; John Stuart Mill.
Referências:
MILL, John Stuart. (1963-1991). The Collected Works of John Stuart Mill, 33 vols. Toronto: University of Toronto
Press; Londres: Routledge and Kegan Paul.
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Nome: Jefferson Martins Cassiano
Instituição de ensino: UnB
Orientadora: Maria Cecília Almeida
Título: Uma hermenêutica de Foucault - Formas de problematização, focos de experiência e modos de
transformação de si
Esta proposta de comunicação procede como resultado de pesquisa para a dissertação de mestrado, a qual
tem a ontologia de Foucault como questão central de análise. Desenvolvida nos últimos anos de vida do autor,
a ontologia de nós mesmos é apresentada pelo próprio Foucault como a opção filosófica a qual se vincula: “é
essa forma de filosofia [ontologia de nós mesmos] que, de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche,
Max Weber, etc., fundou uma forma de reflexão à que, é claro, eu me vinculo na medida em que posso”.
Assumindo a tarefa filosófica de um pensamento histórico-crítico sobre o que acontece com a atualidade,
Foucault atribui o papel do filósofo como aquele que deve diagnosticar sua atualidade. Logo, a ontologia de
nós mesmos expressa um tipo de questionamento que assume a forma de um diagnóstico do presente.
Foucault compreende a noção de diagnóstico por meio de uma arqueologia da diferença, isto é, estabelecer
que “somos diferença, que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos,
nosso eu a diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é a dispersão
que somos e que fazemos”. Nisto consiste o diagnóstico foucaultiano.
Uma vez entendido que Foucault se propõe a diagnosticar o presente, infere-se que ele toma como ponto de
partida o sujeito, mas o sujeito produzido pelas relações epistêmicas e que atende pelo nome de homem.
Ainda que o prognóstico da ‘morte do homem’ possa ser reconhecido como um lema da filosofia foucaultiana,
é em torno às práticas que possibilitam seu engendramento que Foucault dedicou grande parte de sua obra. O
ponto de convergência para tal tarefa se realiza no âmbito da ontologia, pois neste domínio Foucault trata de
conceber seu próprio pensamento como uma crítica arqueológica que investiga a produção dos discursos sobre
o homem atual e uma crítica genealógica que extrai das circunstâncias a possibilidade desse homem já não ser
o que pensa ser atualmente. Isso significa que a ontologia lida com transformações parciais feitas em
correlação com análises históricas de certas práticas e discursos. Uma maneira de entender como a filosofia de
Foucault pretende ser um diagnóstico do presente é examinando de que modo o autor elaborou o que poderia
se chamar de uma leitura hermenêutica de si, ou seja, uma tentativa de elucidar a si mesmo. Em alguns
momentos de suas obras, Foucault examina a própria condução de seu trabalho e identifica os objetivos até
então presentes em seu pensamento. Dessa forma, três noções são apresentadas por Foucault, a saber: formas
de problematização, focos de experiência e modos de transformação. Pode-se dizer que tais noções não
servem como procedimentos metodológicos nem como operadores conceituais, mas como orientações que
Foucault utiliza para interpretar a história do pensamento ocidental.
Segundo Foucault, as formas de problematizações pretendem “definir as condições nas quais o ser humano
‘problematiza’ o que ele é, e o mundo no qual ele vive” . O autor reconhece o empenho para definir tais
condições que conduziram seu trabalho intelectual: “as problematizações através das quais o ser se dá como
podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam” . Assim, a
arqueologia trata das condições formais de problematização, a genealogia de sua formação a partir de práticas
e suas modificações e a ontologia lida com a constituição histórica de certas formas de existência. Através de
um exercício de problematização se esclarece a razão de Foucault poder afirmar que “uma coisa em todo o
caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao
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saber humano”, concluindo que “o homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso
pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo”.
Se a tarefa da filosofia moderna está em problematizar a existência do ser humano como homem-objeto
analisável e manipulável, Foucault também compreende sua filosofia como focos de experiência: “formas de
um saber possível, matrizes normativas de comportamento, modos de existência virtuais para sujeitos
possíveis –, são essas três coisas, ou antes, é a articulação dessas três coisas que podemos chamar, creio, de
‘foco de experiência’”. Portanto, seja a experiência da loucura, da doença, da criminalidade ou da sexualidade,
estas transpassam por uma matriz de conhecimento, por normas de comportamento e pela constituição de
certo modo de ser. Foucault emprega os focos de experiência como análise histórica na qual se obtém as
formas de objetivação do saber, os modos de sujeição do poder e a constituição histórica da subjetividade
para, enfim, apresentar o ser humano como homem-sujeito.
Enfim, embora Foucault não expresse pontualmente, parece ser bastante plausível que as formas de
problematização e os focos de experiência se complementam para formar os modos de transformação do
sujeito em homem. A experiência não é apenas uma reprodução de vivências pessoais, mas um sentido mais
radical dos modos de transformação. Para tanto, Foucault não concebe o diagnóstico do presente nem como
decadência niilista nem como um tempo pós-moderno, uma vez que as problematizações e experiências
engendram múltiplas transformações. Assim, para Foucault, ao diagnóstico do presente cabe a função de
caracterizar a fragilidade do homem atual, na qual a “descrição se deve fazer segundo uma espécie de quebra
virtual que abre um espaço de liberdade, entendido como espaço de liberdade concreta, isto é, de
transformação possível”. É diante dessas condições de possibilidade que Foucault direciona o estudo das
transformações das práticas discursivas em produção de objetos e regimes de verdades, das tecnologias de
poder em comportamentos disciplinares e gestão de recursos humanos, das formas de subjetivação em uma
arte de autorrealização de si. Porém, o diagnóstico do presente só se equivale à tarefa da filosofia à medida
que condiciona as possibilidades de transformações de si, pois segundo Foucault “se eu [Foucault] conheço a
verdade, me transformarei. E talvez me salve, ou então eu morra”. Portanto, é plausível considerar que a
ontologia de nós mesmos se presta ao diagnóstico do presente quando observada a partir do próprio
autoexame que Foucault deixa ao interpretar sua obra.
Palavras-chave: Foucault, problematização, experiência, transformação de si, diagnóstico do presente.
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Nome: Jefferson Martins Viel
Instituição de ensino: USP
Orientador: Homero Santiago
Título: Antonio Negri e o novo léxico do político
Segundo Eric Hobsbawm, “não há como duvidar seriamente que em fins da década de 1980 e início da década
de 1990 uma era se encerrou...” Esta afirmação sela o fim do que o autor chamou de o breve século XX –
século de enormes agitações, composto, ainda segundo a terminologia do autor, por uma era de catástrofe que
se estendeu do início da primeira ao fim da segunda guerra mundial, uma era de ouro compreendida entre
meados dos anos quarenta ao início dos anos de setenta, e um desmoronamento que se seguiu dos anos
setenta até a queda do bloco soviético. Mas, longe de anunciar com os “especuladores metafísicos” o fim da
história, Hobsbawm afirma a vinda de um futuro. Seguinte ao ocaso de uma era, testemunhamos a aurora de
um novo tempo. Eis um momento propício para a investigação filosófica, diria um grande pensador alemão.
Com o ocaso de uma era e com a completitude e efetuação do processo de formação da realidade, a filosofia
pode chegar altiva para explicar no plano conceitual aquilo que a história mostrou com tanta necessidade:
“quando as sombras da noite começaram a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva”.
A avaliação destes dois autores pode nos introduzir a de um terceiro – o filósofo e militante italiano Antonio
Negri – tanto pelos pontos de contato quanto pelos pontos de afastamento entre elas. Primeiro, há o
diagnóstico do fim de uma era e o início de uma nova. “Estamos em um período de transição ou, melhor, num
interregno”, afirma Negri junto a Michael Hardt. O que é para o historiador o fim de um século, para o filósofo
é, no entanto, o fim de uma era mais abrangente que damos o nome de modernidade. Viveríamos, então, uma
pós-modernidade, noção alvo de diversos questionamentos e disputas, mas que, aqui, não pretende indicar
mais que o presente momento de transição. Segundo, há o momento propício para a filosofia. Não se trata
para Negri, contudo, do alçar do pássaro de Minerva pronto a reconhecer a realidade finalmente efetuada a
fim de reconstruí-la na forma de um império de ideias. Ocorre mesmo o oposto. Em vez do voo em direção ao
reconhecimento do passado, busca-se compreender as dinâmicas do presente não para reconhecê-lo, mas,
antes, para fazer sua crítica, visando não a ereção de um império de ideias, mas a intervenção política e as lutas
pela constituição de um novo futuro.
Nesta comunicação, pretende-se discorrer sobre a especificidade de nosso tempo bem como a postura a ser
tomada diante dele pelo intelectual segundo a interpretação de Antonio Negri. Para tanto, esta apresentação
será organizada em torno de três pontos que me parecem essenciais na discussão negriana sobre este tema:
O diagnóstico do presente. O que há de específico em nosso tempo? Quais as diferenças que nossa época
apresenta em relação à época imediatamente anterior? O que nos impede de duvidar seriamente que uma era
tenha há pouco se encerrado para dar lugar ao início de outra? Para responder estas questões, Negri recorre
(com Hardt) a uma história das descontinuidades, uma análise das transições entre um tempo e outro.
Privilegiar-se-á nesta comunicação as mudanças investigadas pelo autor na dimensão política, na qual é
percebida a passagem para uma nova forma de soberania. Grosso modo, as formas de soberania modernas
exigiam um espaço territorial limitado – os diversos Estados-nacionais – submetido a uma autoridade
transcendente – seja na forma de um Leviatã, seja na forma de uma vontade geral – que se confrontava
continuamente com seu Outro – como a Natureza ou outros Estados soberanos. Em nosso tempo, porém,
Hardt e Negri verificam o enfraquecimento das velhas soberanias nacionais, que são agora cada vez mais
incapazes de regular as trocas econômicas e culturais do mercado capitalista global. O enfraquecimento das
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soberanias nacionais, advertem os autores, não significa, no entanto, o declínio da soberania política per se. Se
as soberanias nacionais têm perdido progressivamente sua capacidade de regular as trocas globais, exige-se,
então, uma nova forma de soberania capaz de regulá-las. Esta nova forma de soberania está hoje em
construção, ela deverá superar os limites próprios às soberanias nacionais, atingindo o espaço global. A esta
nova forma emergente de soberania os autores são o nome de Império.
A crítica do presente. Em uma passagem polêmica, Hardt e Negri afirmam que “a multidão chamou o Império à
existência”. Com isso, os autores querem dizer que nosso tempo atual bem como sua forma emergente de
soberania é fruto das lutas de liberação travadas ao longo do século XX. Mas, embora tais lutas tenham
contribuído para o fim do imperialismo e do colonialismo assim como o conhecemos na modernidade, não se
pode negar que as relações de poder do comando imperial que os sobreveio são ainda baseadas na exploração,
uma exploração que, agora, dá-se ela também em níveis globais: “hoje quase toda a humanidade está em
algum grau absorvida ou subordinada às redes da exploração capitalista”. Tal diagnóstico revela, para aqueles
que são comprometidos com a tradição de pensamento e luta comunistas, a permanência da necessidade da
crítica. A denúncia daquilo que nosso parece inadmissível em nosso tempo pode abrir espaço para a
construção de um novo futuro.
A constituição de um novo futuro. "O Império está [ainda] se materializando sob nossos olhos". A nova forma
soberana de nosso tempo, para usar o vocabulário de Hegel, não completou sua efetuação ou, para usar o
vocabulário de Marx, permanece uma tendência aberta. Um período de transição, um interregno.
Tradicionalmente os interregnos são caracterizados pela intensa disputa pelo poder. Não se pretende afirmar
com isso a existência de um espaço vazio, um vácuo de poder a ser ocupado, mas antes, apontar para as forças
dos mais variados gêneros que neles se apresentam. A aurora de nosso tempo foi marcada pelas guerras do
Golfo (1990-1), de Kosovo (1998-9), do Afeganistão (2001-), do Iraque (2003-11), mas também pelos levantes
populares em Chiapas (1994), de Seattle (1999), de Gênova (2001), de Wall Street (2011), da Praça do Sol
(2011), da Praça Tahrir (2011), da Praça Taksim (2013), dos vinte centavos (2013)... Sendo o Império uma
tendência aberta, sua efetuação ou constituição deverá resultar das lutas e embates políticos travados agora,
no presente. Segundo Hardt e Negri, é papel do intelectual engajar-se nestas lutas: "o intelectual é e só pode
ser um militante, engajado como uma singularidade entre outras, embarcado no projeto de co-pesquisa que
visa construir a multidão". Participante da história em pleno processo de desenvolvimento, o intelectual
comprometido com a política revolucionária deverá fazer sua crítica. Mas, embora a crítica seja de fato
necessária, argumentam Hardt e Negri que ela não se faz suficiente:
o intelectual deve ser também capaz de criar novos arranjos teóricos e sociais, traduzindo as práticas e os
desejos das lutas em normas e instituições, propondo novos modos de organização social. A vocação crítica,
em outras palavras, deve ser empurrada à frente para mover-se continuamente da ruptura com o passado ao
desenho de um novo futuro.
Da perspectiva filosófica, passa pela proposta dos novos modos de organização social um novo aparato
conceitual que possa dar-lhe bases. Se os conceitos são ferramentas, como diria um grande pensador francês,
o intelectual-militante deve ter como objetivo construir novas ferramentas conceitais que participem da
construção de um novo futur. Em suma, um novo léxico do político, que dê conta das aspirações da multidão
global.
Palavas-chave: Antonio Negri, diagnóstico do presente, criação de conceitos
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Nome Completo: João Aparecido Gonçalves Pereira
Instituição de Ensino: UFG
Orientador: Renato Moscateli
Título: A importância de Maquiavel para pensar os conflitos políticos e a liberdade republicana
A atuação dos homens na vida cívica e seus desdobramentos sempre foram e continuam sendo objetos de
estudo da filosofia em todos os períodos de sua história. Em meio aos diversos filósofos que pensaram sobre
este assunto, está Nicolau Maquiavel, o qual elaborou reflexões importantes acerca dos elementos que
constituem a vida política e que podem resultar na grandeza ou na ruína de um corpo político. A relevância
desse autor se justifica na maneira “excêntrica” por meio da qual ele abordou os assuntos relacionados ao
âmbito da política mostrando que este campo possui uma lógica própria a partir da qual se pode julgar o êxito
e o fracasso dos agentes políticos. Tal lógica deve ser construída, conforme Maquiavel, com base em uma
compreensão da verdade efetiva sobre os homens. Por isso, as suas obras principais - especialmente O príncipe
e os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio - revelam um propósito de descrever como os homens são
e oferecer algo útil a respeito do como governar a partir desse conhecimento.
Embora Maquiavel compartilhe a ideia republicana da proeminência do bem coletivo sobre o interesse
particular, ele assevera que os homens não possuem o impulso intrínseco à comunidade política, mas, ao
contrário, são propensos à maldade e à oposição e só agem bem por necessidade. N’O Príncipe (capítulo XVII),
o autor acentua que os homens são perversos e cruéis: “pode-se dizer dos homens, de modo geral, que são
ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos e são ávidos de vantagens.” Já nos Discursos
(Primeira Parte, capítulo III), apoiado em exemplos da história, ele alerta aqueles que estabelecem a forma de
um Estado e promulgam suas leis a partir do seguinte pressuposto: “todos os homens são maus, estando
dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião.” No capítulo XXVII da primeira parte dessa mesma
obra, o florentino relativiza a sua abordagem sobre a maldade humana acentuando que raramente os homens
sabem ser bons ou maus totalmente. Essa relativização do autor nos faz entender que normalmente os
homens são timoratos e medíocres em suas ações.
A alusão que Maquiavel faz à maldade humana não parte de especulações metafísicas acerca de uma essência
ou natureza imutável do homem, mas é inferida de observações do comportamento histórico dos homens de
um modo geral. Com base nessas observações maquiavelianas, pode-se entender que a tendência dos homens
à maldade e às situações de conflitos e rivalidades, tanto na esfera particular quanto na esfera coletiva, se dá
quando os homens buscam a consumação de seus desejos que são infinitos e insaciáveis. Para o escritor
florentino, o desejo é um dos elementos constitutivos da natureza humana e, igualmente, o motor das ações
humanas. Os conflitos existentes no âmbito da convivência social decorrem do fato de que “a natureza criou os
homens com a sede de tudo abraçar e a impotência de atingir todas as coisas. Como o desejo de possuir é mais
forte do que a faculdade de adquirir, disto resulta um secreto desgosto pelo que possuem” (Discursos, Segunda
Parte, Introdução). Os homens desejam tudo, mas não podem ser e ter tudo. Do ponto de vista da carência, o
desejo é sempre infinito, ao passo que, no tocante a sua potência ou ao poder de realizar aquilo que se deseja,
ele é sempre uma força finita.
Consideramos que a compreensão da ideia de liberdade republicana presente no pensamento político de
Maquiavel pressupõe uma análise da teoria dos humores, isto é, da oposição dos desejos que mobilizam os
homens na obtenção de objetivos diversos. Assim, enquanto que a tradição do pensamento filosófico político
que antecedeu este autor via nas situações de conflitos uma ameaça à vida social, o secretário florentino
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afirmou que elas estão na base da vida política, a qual não se restringe a um exercício dialógico da razão feito
em meio a uma praça pública, mas nasce e se desenvolve no embate entre os diferentes humores que
precisam ser bem gerenciados. N’O Príncipe (Capítulo IX), o autor assevera que “em todas as cidades, existem
dois humores opostos: De um lado, o povo que não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes. Do
outro lado, os grandes que desejam comandar e oprimir o povo; desses dois apetites diferentes, nascem um
destes três efeitos: principado, liberdade ou licença.” Nos Discursos, Maquiavel mostra que é sobre a
tramitação adequada dessa divisão social que se pode atingir a liberdade republicana.
Para o autor era lamentável o fato de muitos terem percebido nos conflitos políticos apenas os aspectos
desagradáveis que apareciam de imediato, tais como as arruaças, as gritarias, a bagunça etc. Por sua vez,
Maquiavel analisava as dissensões dos humores para além das aparências, percebendo que na substância de
tais eventos estavam os dois humores distintos que se confrontam no âmbito político podendo causar a
liberdade republicana. A oposição entre eles, sobretudo em uma república, não pode ser ignorada ou
suprimida, mas deve ser bem acolhida e administrada a fim de que os desejos tenham espaço e meios
adequados para se manifestarem. Com o intuito de exemplificar essa ideia, Maquiavel aborda o caso de Roma,
onde os tumultos que nasceram no âmbito coletivo, como a desunião entre o povo e o Senado, produziram
mais consequências boas para a liberdade do que prejuízos ao longo dos séculos da república. Como
contrapartida, ele aborda o caso de Florença, onde os resultados de tais conflitos, devido a não terem recebido
o mesmo tratamento que em Roma, foram mais nocivos que benéficos à liberdade.
Posto isto, partindo do eixo norteador "As (os) filósofas (os) e seu próprio tempo", este trabalho propõe
analisar alguns pontos do pensamento de Maquiavel no que diz respeito à influência dos conflitos políticos ou
dissensões dos humores dentro de uma república, com o objetivo de entender a relação que existe entre eles e
a liberdade civil. Para enfrentar tal problemática, a exposição será organizada em duas partes. A primeira tem
como objetivo examinar se os conflitos políticos podem ou não viabilizar a liberdade republicana e, em caso
afirmativo, em que medida isso é possível. Com essa meta, serão analisados alguns trechos dos Discursos sobre
a primeira década de Tito Lívio, nos quais Maquiavel faz uma abordagem positiva das dissensões dos humores.
A segunda parte visa analisar outros excertos dessa mesma obra e também da História de Florença referentes
às alusões negativas que o autor faz sobre os conflitos políticos. Ou seja, em que medida os tumultos podem
resultar na ruína de uma república? Nas considerações finais serão retomadas algumas ideias principais, para
apontar que os conflitos políticos não são irrelevantes dentro de uma república e nem são, por si mesmos, a
causa única da ruína ou da liberdade civil de tal república. Porém, são situações típicas da vida política que,
quando tratadas adequadamente por uma república, podem contribuir com a manutenção da sua liberdade
civil culminando na sua grandeza, como foi na Roma Antiga.
Palavras-chave: Conflitos políticos, liberdade civil e Maquiavel
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Nome: João Batista Farias Junior
Instituição de ensino: UFPI
Orientador: Helder Buenos Aires de Carvalho
Título: Hans Jonas e as relações entre os indivíduos na contemporaneidade: a busca por um novo conceito de
comunidade
A obra de Hans Jonas surge como uma proposta ética contrastante com as diversas teorias a respeito do
correto agir humano em pauta até o século passado. O próprio filósofo assume como característica de sua ética
da responsabilidade ir até onde as éticas ditas tradicionais não foram, e, por certo, não poderiam ir, afinal, o
imenso poder e os problemas decorrentes da tecnologia moderna representam um novum na história do agir
humano e não despontavam entre os problemas enfrentados anteriormente. O princípio responsabilidade de
Jonas atualiza o caráter novo desse poder através de uma moralidade adequada ao novo tipo de agir. Seu
princípio procura incluir a dimensão temporal e espacial da tecnologia moderna na reflexão moral, destacando
os perigos que nossas ações, potencializadas pela técnica, representam para a humanidade, esteja ela distante
espacial ou temporalmente.
Jonas, no entanto, carrega no horizonte de sua reflexão ética, não só o convite por uma ética do futuro para
assegurar a vida de outras gerações de homens, seu pensamento destoa de outras éticas do futuro porquanto
busca destacar o caráter de bem-em-si presente no fenômeno biológico da vida, alargando assim o escopo da
moralidade do simples bem humano para um bem característico de toda a natureza, um bem inerente a todos
os seres vivos.
O presente trabalho procura elucidar a singularidade da ética da responsabilidade de Jonas, tentando, a partir
de uma caracterização da sociedade contemporânea desenvolvida pelo filósofo, localizar um conceito de
comunidade biótica na ética da responsabilidade jonasiana. Para tanto, iniciaremos apontando um pouco da
corrente discussão a respeito do conceito de comunidade, frisando alguns de seus aspectos mais importantes
para nosso tempo, principalmente aqueles ligados ao desenvolvimento tecnológico e ao fenômeno da
globalização. Em seguida intentamos refletir a respeito da possibilidade de utilizar o pensamento de Jonas e
sua teoria ética na concepção de um conceito de comunidade pertinente ao nosso tempo.
A partir da diferenciação entre a técnica pré-moderna e a técnica moderna, Jonas apresenta a natureza
modificada do agir humano por esta última. Em decorrência disso, exige-se não só a elaboração de um
imperativo que dê conta de regular os novos podes dos homens, mas, sobretudo, a revisão do tipo de relação
que se tem no presente e da própria natureza do homem.
O problema aparece para Jonas não tanto com o antropocentrismo referente às éticas tradicionais, mas na
visão hodierna de um homem que se concebe desligado do meio natural do qual originalmente faz parte. O
próprio filósofo chega a reconhecer que sua ética da responsabilidade carrega um fino antropocentrismo.
Entretanto, Jonas está engajado na tarefa de relembrar à humanidade que a natureza, principal vítima dos
efeitos irresponsáveis e gananciosos do homem em seu uso da técnica moderna, é o ambiente em que estamos
inseridos e sem o qual não se pode pensar nossa existência. Trata-se, assim, de reconhecermos a primeira
comunidade da qual fazemos parte, aquela que a nossa própria existência pressupõe: a comunidade biótica.
Essa seria expressão de uma ‘comunidade mundial’.
99
Não são apenas os laços comunitários que se encontram fragilizados hodiernamente. Sobretudo, a própria
existência exige, mais do que nunca, um cuidado multiplicado, dirigido a toda a vasta gama de formas vida
presente em nosso planeta.
Um dos principais pressupostos na concepção de uma comunidade, conforme apresentamos anteriormente,
seria o sentimento de pertencimento, ou o compartilhamento de uma identidade entre seus participantes.
Com a discussão de Jonas, nenhuma outra identidade pode ser concebida como mais compartilhada do que
aquela de ‘estar vivo’.
Em vista da globalização ninguém consegue se esquivar de, por suas ações e as consequências destas, ser, uma
hora ou outra, responsável, ou melhor, irresponsável e comprometer o futuro de outras vidas. Tanto os efeitos
da globalização como o poder da tecnologia moderna servem-nos de lembrete de que no mundo
contemporâneo as ações resultam, quase sempre, em consequências para diversos indivíduos, estejam eles
próximos espacial e temporalmente ou não.
Fala-se, então, que a crise relacionada à ideia de comunidade tornou-se mais evidente a partir do século
passado. No que diz respeito às relações dos homens com natureza, também o século XX desempenhou um
papel revelador. Mais do que nunca se tornou claro que a natureza estava sob a égide de uma configuração
política, moral e científica que a desqualificava e subjugava perante o paradigma antropocêntrico.
A ética da responsabilidade de Hans Jonas pressupõe um novo posicionamento político-social e, sobretudo,
moral, em que toda a natureza com todas as manifestações de vida, e não só o ser humano, seja reconhecida
como portadora de valores objetivos que devem ser defendidos. A responsabilidade e o sentido comunitário
refletido nesta lembram-nos da tarefa de educarmos a nós mesmos e às próximas gerações, enfatizando que a
escolha do futuro acontece já nas pequenas escolhas locais e cotidianas, exigindo-se, assim, o sentimento
moral regulador e a consciência de participação no reino daquilo que é vivo, da comunidade biótica.
Palavras-chave: comunidade, Hans Jonas, ética da responsabilidade.
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Nome: José Augusto Cereijido Altran
Instituição de ensino: PUC-SP
Orientador: Luiz Felipe Pondé
Título: A “racionalidade soft” na epistemologia da controvérsia de Marcelo Dascal
Sejam quais forem os novos caminhos percorridos pela filosofia na atualidade, e os objetos ou métodos para os
quais agora volta os olhos, as grandes mudanças paradigmáticas no fazer acadêmico sempre evocam
reviravoltas epistemológicas, maiores ou menores. Mesmo que tais tentativas se justifiquem pela demanda de
novos limites conceituais capazes de abarcar os objetos atuais, também hão de ser mediadas por rigores que as
impeçam de reduzir o olhar do pesquisador a meras anarquias epistemológicas. Parece-nos importante,
portanto, investigar as circunstâncias que permitem a emergência de novas e controversas reinterpretações do
aparato teórico convencional, bem como entender a dinâmica própria da controvérsia e suas potencialidades.
Emprestando uma metáfora de Leibniz, o epistemólogo e linguista Marcelo Dascal, professor de filosofia da
Universidade de Tel Aviv, traz a ideia da “balança da razão”, um hipotético instrumento mensurador de
argumentos que seria capaz de inclinar para a verdade. Esta imagem faz-se ilustrativa para compreendermos a
busca pela racionalidade “pura” ao longo da história intelectual, notando que, analogamente, “a racionalidade
humana se embasa essencialmente em nossa capacidade de pesagem” (DASCAL, 2005, p.01). Para a hipotética
balança ter o funcionamento adequado, três exigências hão de ser garantidas: a perfeita calibragem da
balança, a confiabilidade dos pesos e um método de pesagem adequado.
Enquanto a possibilidade desta balança ideal foi defendida pelos racionalistas, também foi severamente
criticada pelos céticos: não apenas seria impossível se alcançar esses três requisitos idealmente, como ainda
seria necessária outra balança para pesar esta, a fiscalizar seu equilíbrio, e os resultados ainda estariam sujeitos
a uma interpretação de contextualidade não-eliminável. Os defensores da balança esforçam-se para refinar a
teoria e reagem contra os céticos, seja recorrendo ao tu quoque ou à estratégia de insulação, que “consiste em
admitir a validade da crítica cética, enquanto se nega que afete todos os usos da Razão” (DASCAL, 2005, p.06).
O embate ainda é revidado: “e o que deveríamos fazer se há áreas que não permitem – por sua própria
natureza – formalização?” (DASCAL, 2005, p.08). O ceticismo pirrônico carrega uma crítica ainda mais severa ao
instrumento: “ela não permitiria que decidíssemos nada, porque permaneceria em equilíbrio” (DASCAL, 2005,
p. 09) - ou seja, sua calibragem e neutralidade culminaria em isostheneia (equipolência), e estaríamos fadados
à paralisia ou, enfim e ironicamente, a uma arbitrariedade.
A discussão se estende com Leibniz sendo invocado dialogicamente no debate, sem se chegar em consenso
algum, senão à sensação de que as tentativas de normatização do conhecimento anseiam uma universalidade
desde os primórdios da filosofia. Quanto Platão nos apresenta o diálogo “Teeteto”, é bastante emblemático o
fato de que a pergunta “o que é o conhecimento?” permanece não respondida, mesmo com o intermédio da
personagem Sócrates ao longo daquelas linhas. A oposição entre o relativismo sofista de Protágoras e os
anseios normativistas de filósofos contemporâneos a eles marca uma dicotomia que pode ser interpretada
como a matriz de uma série de oposições que a história intelectual veria nos milênios seguintes e que
aparentam ser inconciliáveis.
Neste trabalho, tomaremos as publicações de Marcelo Dascal para situar este antigo embate dicotômico entre
realismo e relativismo, que associa ao normativismo popperiano e ao descritivismo kuhniano, respectivamente.
Segundo ele, toda inovação epistemológica segura e transformadora precisa ter em mente esses pólos, mas
101
também encontrar um meio de integrá-los. Segundo Dascal, até mesmo os grandes saltos científicos não
ocorreriam pelo acúmulo quantitativo dos períodos de ciência normal, e nem exatamente no ápice das
revoluções, mas em uma linha que os perpassa e por meio de um processo dialógico capaz de manter o
pesquisador no segundo mundo popperiano (o mundo do indivíduo histórico e circunstancial, não das ideias
absolutas), transitando entre ambos os paradigmas.
Para teorizar o fenômeno, o filósofo formula uma taxonomia que enquadra três tipos de atividades dialógicas
discursivas polêmicas: a discussão é um debate pacífico interno a um mesmo paradigma, onde os envolvidos
buscam resolver um problema circunscrito, mas vêem-se limitados às soluções que aquele aparato oferece; a
disputa, por outro lado, envolve pesquisadores de paradigmas opostos, mas que comumente acaba se
resumindo a diatribes pessoais em linguagens inconciliáveis; já a controvérsia seria uma etapa medial entre as
duas, pois opera por um princípio dialógico transparadigmático. Embora seja muito difícil destacar estes três
tipos ideais em meio aos complexos e acirrados debates filosóficos e científicos de nosso tempo, Dascal aposta
que é esta última instância a que abre o terreno para as renovações seguras de pressupostos que nos
acompanharam ao longo da história intelectual.
Afinal, para o filósofo, seria nativa da controvérsia uma espécie de etapa cognitiva que chama de
“racionalidade soft”. Esta tangencia tanto os exaustivos rigores metodológicos que, para Dascal, congelariam
objetos, quanto a anarquia metodológica de um relativismo exagerado que, enfim, abriria espaço para
arbitrariedades e diversos circunstancialismos e preferências pessoais nocivas à produção de conhecimento
legítimo. Entretanto, por mais convicto que esteja quanto à relevância do curioso fenômeno, Dascal afirma que
esta característica típica das controvérsias ainda é um mistério para a epistemologia. Isso posto, esta
apresentação pretende, portanto, apresentar o cenário dicotômico da epistemologia dascaliana, a taxonomia
dialógica que propõe, e lançar algumas hipóteses quanto a essa forma de racionalidade que o filósofo coloca
como o próprio gérmen das grandes ideias.
Palavras-chave: Dascal; controvérsia; racionalidade soft; paradigma
Referências:
DASCAL, Marcelo. Epistemologia, controvérsias e pragmática. Revista da SBHC, n. 12, São Paulo, p. 73-98, 1994.
________________. Types of polemics and types of polemical moves. In: CMEJRKOVA, S.; HOFFMANNOVA,
J.;MULLEROVA, O.; SVETLA, J.. Dialogue Analysis VI (= Proceedings of the 6th Conference, Prague 1996), v. 1.
Tubingen: Max Niemeyer, p. 15-33, 1998.
________________.The Balance of Reason. In: VANDERVEKEN, D. (ed). Logic, Thought and Action. Dordrecht:
Springer, p. 27-47, 2005.
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Nome: Julia Fleider Marchevsky
Instituição de ensino: USP
Orientador: Rolf Kuntz
Título do Trabalho: Finalidade na Acumulação de Riquezas – Uma análise do artigo Possibilidades Econômicas
de Nossos Netos de John Maynard Keynes
Esta apresentação tem como objetivo inicial discutir o ensaio de John Maynard Keynes, Possibilidades
Econômicas de Nossos Netos (abreviadamente Possibilidades), mas também trazer um tema imperante no
papel e nos desafios de se fazer filosofia hoje: a necessidade da interdisciplinaridade. O trabalho buscará
pensar como a reflexão filosófica é imprescindível ao estudo da economia, principalmente para refletir sobre
suas possibilidades em tempos de crise. Keynes, sem dúvida, deve ser considerado como um dos mais
influentes economistas do século XX e não como um influente filósofo, mas seu ensaio explora uma questão
extremamente importante para a economia, porém investigada essencialmente no campo da filosofia: qual a
finalidade da riqueza?
A questão “para que serve a riqueza?” é dificilmente discutida hoje, principalmente no campo da economia.
Keynes fez esta pergunta em Possibilidades, durante a crise econômica da passagem da década de 1920 para
1930, ao pensar o quanto seria preciso para fornecer à humanidade uma boa vida, pois a acumulação de
dinheiro não poderia ser considerada um fim em si mesmo, exceto em condições patológicas de uma
sociedade. Vale ressaltar que o economista utiliza como importante base teórica do ensaio o pensamento do
filósofo George Edward Moore, principalmente a partir da obra Principia Ethica.
O ensaio Possibilidades foi inicialmente uma apresentação para estudantes da Essay Society at Winchester
College em 1928 e, após diversas revisões, foi publicado em 1930. Escrito em um quadro de grave crise
financeira, na esteira do crash da bolsa em 1929, Keynes tem a audácia de supor que devido ao aumento da
produtividade e do progresso tecnológico, o problema econômico da humanidade poderia ser resolvido dentro
de 100 anos: o problema da luta pela subsistência.
Keynes oferece, em Possibilidades, duas previsões para dali um século, uma em relação à acumulação de
capital e outra em relação ao tempo de trabalho. A primeira foi uma simples e intuitiva análise do poder de
acumulação pelo juros compostos, e o economista supõe que: “Se o capital aumenta, digamos, 2% ao ano, o
equipamento básico do mundo terá crescido 50% em vinte anos e sete vezes e meia em cem anos.” . A segunda
previsão envolve o avanço veloz do progresso tecnológico, pois seria possível realizar atividades em diversas
áreas, tanto na agricultura quanto na indústria, com menos esforço humano, o que aprofundaria o
desemprego, fenômeno denominado desemprego tecnológico.
Mas o ponto central do pequeno ensaio, concentrado em sua segunda parte, é a possibilidade que Keynes
apresenta em contrapartida as duas previsões oferecidas: uma vida que não precise dos motores para a
acumulação de riquezas. A partir da superação do que Keynes denominou de problema econômico, em inglês,
economic problem, isto é, a luta para a conquista das necessidades básicas para a vida do homem, é colocada a
questão de se esta superação poderia acarretar na construção de uma sociedade que soubesse empregar seu
tempo no gozo da própria vida. Este plano é pensado em um mundo de intenso progresso tecnológico e
acumulação de capital, portanto, de pouco trabalho. Para Keynes, o pouco trabalho que ainda fosse necessário
realizar poderia ser dividido entre as pessoas com a finalidade de satisfazer o ímpeto de trabalhar
permanecente, o que deveria ser satisfeito a partir de uma jornada de trabalho de quinze horas semanais.
103
Importante ressaltar um argumento fundamental do economista: a distinção entre as necessidades relativas e
as necessidades absolutas. As primeiras seriam aquelas com finalidade de fazer o homem se sentir superior aos
seus semelhantes, enquanto as segundas são desejadas independente da situação do outro. Tal distinção é
imprescindível, pois as necessidades, em algum ponto, devem ser saciáveis para que seja plausível a superação
do problema econômico.
A solução do problema econômico, na visão de Keynes, causaria o enfrentamento daquilo que seria, de fato, o
problema permanente da humanidade, em inglês, the permanent problem of the human race, isto é, como
dispor do tempo e da liberdade que a acumulação de riquezas e o progresso técnico terão conquistados para a
humanidade, de modo a viver bem e agradavelmente. Por trás deste ponto está uma questão filosófica central:
como o homem deve viver? Keynes, seguindo os traços teóricos de Moore, acreditava que a humanidade
deveria se concentrar em desfrutar daqueles estados de consciência bons em si mesmo, tais como a
contemplação da beleza e os prazeres do sexo.
Possibilidades descreve expõe que o motor de uma sociedade capitalista, isto é, de uma sociedade que
acumula capital, é o amor ao dinheiro, o desejo pela acumulação de riquezas como um fim em si mesmo. O
maior obstáculo da humanidade para uma boa vida ao se libertar do problema econômico , na visão de Keynes,
é a superação do desejo por acumulação.
Keynes reconhece tanto o amor ao dinheiro, quanto a acumulação de riqueza em si, como uma patologia. Se a
humanidade reconhecesse o amor ao dinheiro como uma patologia, consequentemente, haveria grandes
alterações na moral da sociedade: o mundo poderia se desfazer de tradições, condutas e costumes que eram
praticados devido à acumulação do capital, por mais repulsivos, desrespeitosos e injustos que fossem:
O amor ao dinheiro como uma posse - diferente do amor ao dinheiro como meio para o gozo e as realidades da
vida - será reconhecido pelo que é: uma morbidade um pouco fastidiosa, uma dessas tendências
semicriminosas e semipatológicas que se costuma confiar com arrepios a especialistas em doenças mentais.
Em Possibilidades, Keynes refletiu sobre como os recursos acumulados pela humanidade devem servir a uma
boa forma de viver, não discutiu propriamente a alocação de recursos escassos, mas qual a finalidade de tais
recursos, a partir de um ponto de vista reflexivo e de um quadro teórico essencialmente filosóficos. Qual a
finalidade da riqueza? Qual a forma de vida a riqueza deve propiciar? O ensaio foi escolhido para discutir o
tema da atualidade da filosofia, pois ele permite perceber o potencial interdisciplinar que a Filosofia tem.
Talvez, e mais importante, o ensaio permite sugerir que as ciências, como a economia, urgem do pensar
filosófico para compreender o alcance delas mesmas, principalmente em tempo de crise, como em 1929 e
como no nosso tempo presente.
Palavras-chaves: John Maynard Keynes; Amor ao Dinheiro; Possibilidades Econômicas de Nossos Netos;
Acumulação de riquezas
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Nome: Juliana Oliva
Instituição de ensino: Unifesp
Orientadora: Rita de Cássia Souza Paiva
Título: Alguns aspectos da reciprocidade em O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir
Para Simone de Beauvoir, em uma relação intersubjetiva, indivíduos são sujeitos para si e objetos para outro,
essa ambiguidade é o que caracteriza a existência humana, todo indivíduo é sujeito para si e objeto para outro.
Contudo, conforme o estudo da autora apresentado em O Segundo Sexo (1949), as posições do homem e da
mulher estão fixadas por meio da construção de uma situação específica na sociedade e, deste modo, também
na relação intersubjetiva homem-mulher, que se torna uma relação entre, respectivamente, sujeito e objeto
que não trocam de posição. Mas a mulher, mesmo limitada por sua situação, não deixa de existir enquanto
liberdade, nem deixa de apreender, enquanto sujeito, o homem como objeto na relação; há reciprocidade, mas
em potencial, que não se realiza, assim como a ambiguidade sujeito-objeto de cada um.
Beauvoir assinala que a necessidade que um sexo tem do outro em suas relações nunca engendrou
reciprocidade; não há reconhecimento da subjetividade da mulher pelo homem, assim como não há pela
sociedade; ambos estão unidos para garantirem as suas posições no mundo. O homem tem o seu lugar de
sujeito confirmado pela mulher e a mulher faz-se objeto para que o homem justifique a existência dela.
Beauvoir observa as mulheres em conjunto em uma situação de vassalagem, em que a mulher serve o homem
em troca da manutenção de alguns privilégios e segurança em sua situação. Essa relação sem reciprocidade,
criada a partir das categorias “Homem” e “Mulher” e sustentadas por “fatos e mitos”, se concretiza na
“experiência vivida” de homens e mulheres. Beauvoir observa em diferentes momentos e lugares ao longo da
história que as mulheres não estão unidas se opondo à situação de Outro em que vivem, mas estão ligadas aos
homens, como vassalas: a mulher branca é solidária ao homem branco e não à mulher negra , a dona de casa
burguesa reproduz os pontos de vista do marido, e a camponesa não pode sentar à mesa com o marido
durante as refeições na casa que ela também sustenta economicamente ; é com o homem que a mulher
concorda, ela aprende e acredita que é ele quem a define, a assegura, a protege e a poupa de assumir a sua
existência, que é ele quem garante a ela um lugar neste mundo , não apenas na relação de casal, mas nas
relações em todas as esferas das sociedades em todas as épocas, de acordo com a investigação da autora.
Para Beauvoir, é preciso libertar a mulher da categoria do Outro, da situação de opressão que a impele a
encarar um ideal de feminilidade, para que ela seja reconhecida como sujeito, movimento que deslocaria o
homem da posição superior e consequentemente lhe tiraria os seus privilégios, trata-se de um movimento que
depende de ambos os sexos e da transformação das estruturas da situação em que se encontram.
Beauvoir identifica a possibilidade de a mulher ser reconhecida como sujeito em relação ao homem, a
realização da ambiguidade sujeito-objeto que caracteriza a reciprocidade, na relação erótica autêntica, relação
livre, sem “justificação estranha”, cujos valores sejam criados pelo casal, independente de instituições. Por
outro lado, fazer-se objeto erótico é uma das imposições do tornar-se mulher. Como um objeto a ser
contemplado, desejado e possuído pelo homem, o corpo da mulher não pertence a ela; essa compreensão de
si mesma como objeto realizada pela mulher, e confirmada pelo homem, exclui a realização da reciprocidade
na relação erótica, e em qualquer outro tipo de relação entre homem e mulher. Mas, a relação erótica que
Beauvoir chama “autêntica” é consentida e determinada pelos indivíduos que compõem a relação, que são
livres e se relacionam espontaneamente, independente das regras de instituições, ou da necessidade de
realizar um outro projeto por meio dessa relação.
105
Parece-nos que Beauvoir quer enfatizar, na relação erótica autêntica em relação à realização da reciprocidade,
uma situação em que homem e mulher se colocam como sujeitos apreendendo o outro, desejando o outro
como carne, objeto, ao mesmo tempo em que se oferecem a esse outro se fazendo objetos, o que corresponde
à realização do que Beauvoir chama moral existencialista , em que os indivíduos se colocam como sujeitos em
suas relações intersubjetivas e são apreendidos pelo outro (que também se coloca como sujeito) como objeto.
Entendemos que para Beauvoir, a ambiguidade daquele que deseja o outro como objeto e também como
sujeito, para que esse outro também o deseje como objeto, representa a ambiguidade do indivíduo que
justifica a própria existência colocando-se como sujeito diante dos outros que, também como sujeitos,
apreendem e tornam realidade os seus projetos.
A relação erótica, quando autêntica, parece portar um critério que poderia ser empregado na reciprocidade na
relação homem-mulher em todos os âmbitos, e não apenas no erótico. Embora Beauvoir relate momentos nas
vidas de mulheres em diversos âmbitos, em que elas transcendem a situação de Outro, ela não considera essas
conquistas suficientes para que a situação da mulher seja modificada e para que a mulher possa afirmar-se
como sujeito na sociedade.
Palavras-chave: Beauvoir, mulher, reciprocidade
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Nome: Laiz Fraga Dantas
Insituição de Ensino: UFBA
Orientador: José Crisóstomo de Souza
Título: Filosofia contemporânea, Teoria Crítica e gênero
Esse trabalho pretende investigar a necessidade de incluir o gênero na teoria crítica contemporânea, traçando
as consequências desse cruzamento para a compreensão do que se entende por filosofia e de qual é o seu
papel em relação ao nosso tempo. Faremos isso a partir do modelo de teoria crítica proposto por Nancy Fraser
que realiza um debate com outros modelos de teoria crítica apontando neles uma “cegueira de gênero”.
A filosofia moderna apresentava uma série de argumentos que justificam a submissão da mulher e a sua
inaptidão para o exercício da política. Autores como Locke, Rousseau, Hume, mesclavam à sua defesa da
igualdade entre homens na vida pública, argumentos que sustentavam a segregação da mulher ao espaço
privado, considerando que a própria natureza da mulher justificava sua sujeição e dependência com relação ao
homem. Rousseau em seu Emílio recomendava uma educação diferenciada para as mulheres que, devido às
suas inclinações naturais, deveriam servir ao homem. Locke, que argumentava contra o absolutismo
monárquico defendendo relações contratuais livres entre homens, não incluía mulheres como participantes da
sociedade civil. Para Hume, as mulheres seriam incapazes de ultrapassar um sentimento de solidariedade
natural em direção a formulação de normas universais de justiça. A Revolução Francesa e seus ideais, que
mudaram significativamente o arranjo social e político de uma época, não significaram uma mudança real para
a condição da mulher.
As feministas XIX perceberam nos ideais iluministas de igualdade e liberdade o aval para lutar pelos direitos das
mulheres. O entusiasmo com a participação política enaltecida nos escritos políticos da época e simbolizados
pragmaticamente pela democracia e pelo voto, fizeram com que a primeira reivindicação forte do feminismo
fosse o sufrágio universal. O feminismo foi então um filho não desejado do esclarecimento que, mesmo
fundamentado em argumentos que defendiam a natural subordinação da mulher e a sua não participação
política, possibilitaram, contraditoriamente, o nascimento da crítica a essa sujeição. Desse modo, a relação do
feminismo com o esclarecimento é em si contraditória: se por um lado decorre deste, por outro é
necessariamente uma crítica a este.
Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkhei¬mer apresentam uma crítica aos ideais do esclarecimento. A
Odisseia de Homero é apresentada pelos autores como uma metáfora para os processos de dominação que
constituem o esclarecimento. O herói Ulisses é o protótipo do homem burguês que em sua jornada vence as
forças mitológicas usando sua astúcia. Essa epopeia é a metáfora da superação do mito pela razão e da
afirmação do esclarecimento. Assim, na análise do episódio de Circe, Adorno e Horkhei¬mer expõem um dos
mecanismos de dominação do esclarecimento, a saber, o caráter patriarcal da razão. Circe é uma figura
mitológica que atrai os viajantes para a sua ilha, os seduz e, em seguida, os transforma em animais. A forma
animal simboliza a submissão do homem à pulsão instintiva. Assim, Circe representaria o instinto, o “outro da
razão” no qual o corpo, a matéria e a fantasia têm supremacia. A astúcia de Ulisses em não ceder aos encantos
da hetaira representaria o triunfo da razão sobre os instintos e a sua repressão. Ulisses vence os encantos de
Circe propondo a ela um contrato. Esse contrato representaria o casamento burguês que garante a
autoconservação masculina, a dominação da mulher, dos instintos e a reprodução da sociedade burguesa.
Adorno e Horkhei¬mer apontam que a forma como a razão se estrutura é marcada pela dominação da razão
sobre seu outro. Nesse sentido, a razão se opõe às pulsões e à fantasia – identificados com o feminino –,
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elementos que se deve resistir pra que a razão possa operar. As raízes patriarcais do discurso filosófico, e na
racionalidade que o sustenta, é apenas apontado e não é explorado profundamente pelos autores.
Essa lacuna, para Nancy Fraser, significa uma falta crucial para a teoria crítica que compromete a realização do
caráter crítico que a própria corrente se propõe. A autora recupera o sentido de crítica proposto por Marx –
fonte a partir da qual Horkhei-mer define o que é teoria crítica em seu texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica.
Segundo expõe Fraser, para Marx a filosofia deve apresentar uma “autoclarificação das lutas e desejos de uma
época”. A filosofia tem, portando, um compromisso incontornável com seu tempo. Representa uma
autocertificação de uma época e expõe suas contradições e tensões. Faz isso sempre com um interesse prático
iminente que permite à filosofia ir além da mera descrição das condições sociais e apontar soluções práticas
possíveis. Ou seja, o diagnóstico oferecido pela teoria crítica envolve sempre um prognóstico. Para Fraser, é
exatamente o caráter prático e a preocupação com seu tempo, o elemento definidor da teoria crítica, que não
pode ser localizado no seu nível epistemológico, mas sim em seu sentido político. Desse modo, para Fraser,
uma teoria que reivindica um compromisso tão forte com seu tempo não pode estar cega para a questão de
gênero. A luta pelos direitos das mulheres é uma demanda efetiva dos movimentos sociais, cujas reivindicações
possibilitaram uma série de mudanças na estrutura das social e na política democrática nas sociedades
contemporâneas. Como, então, um fenômeno com importância política visível poderia ser deixado de lado nos
diagnósticos sociais das teorias críticas contemporâneas?
Inserir questões de gênero na filosofia significa repensar o próprio sentido do que é filosofia. Esse “novo”
elemento forçaria a reconfiguração de noções que acompanharam a filosofia desde seu surgimento, como
sentido de sujeito, a ideia de razão e o que se entende por teoria e universalidade. Pensar uma filosofia que
inclua o gênero significa necessariamente superar a filosofia em sua formulação moderna e metafísica. Uma
superação própria do discurso filosófico da modernidade – e sua necessidade de autocertificação – da qual
nasce a possibilidade da formulação de uma teoria crítica. Apesar disso, a teoria crítica pareceu aceitar um
sentido de razão decorrente do traço patriarcal e metafísico do esclarecimento que, contraditoriamente, é alvo
de crítica, mas que parece inalterado nessas filosofias. Só assimilando o gênero como elemento da teoria social
crítica que de fato se pode realizar uma crítica à razão burguesa ocidental (incluindo a marxista). Assim, é
possível apontar na razão sua lógica da identidade, tornando aparente o caráter ideológico do androcentrismo,
implícito nas categorias da teoria política, que passa despercebido em teorias que não tematizam o gênero.
Superar a cegueira de gênero da teoria crítica significa possibilitar a realização mais radical do projeto de uma
filosofia crítica atenta ao seu tempo.
Palavras-Chave: Teoria Crítica, feminismo, Nancy Fraser.
Referências:
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ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Editora Zahar,
Rio de Janeiro, 2006.
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CALHOUN, C. Habermas and the public sphere. MIT Press, 1992, p. 109,142.
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HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade
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NYE, Andrea. Teria Feminista e as Filosofias do homem. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos
tempos, 1995.
109
Nome: Larissa Drigo Agostinho
Instituição de ensino: USP
Orientadora: Marilena Chauí
Título: Por uma História menor: Marxismo e psicanálise na construção do conceito de História de Deleuze e
Guattari
Deleuze e Guattari tem uma maneira muito particular de pensar o marxismo e a psicanálise na construção de
um conceito renovado de História, finalmente livre de toda teologia.
Desde as Teses sobre a História de Benjamin, sabemos que o materialismo histórico dialético não pode mais ser
concebido como um fantoche que governa a História. Partindo desta premissa, de ruina do materialismo
histórico e dialético, também diagnosticado por Merleau-Ponty em As aventuras da dialética, Deleuze e
Guattari procuram pensar a História e sua dimensão fantasmática, para que possamos nos livrar de toda forma
de teologia ou transcendência (ou representação, seja simbólica, seja imaginária), e analisar o poder não mais
como dimensão vertical, como um, essência ou fundamento da vida social, mas como racionalidade (máquina
abstrata), práticas discursivas e suas positividades (agenciamentos concretos).
É importante lembrar que a crítica à História benjaminiana se referia também a uma concepção de tempo.
Benjamin dizia que “A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha
no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da
ideia dessa marcha.”
Ou seja, o problema em questão aqui, no que diz respeito, ao progresso histórico, ou ao atraso: é a noção de
tempo. Para nos desvencilharmos de vez de uma certa ideia de progresso, de uma ideia qualquer que seja de
progresso, é preciso que pretendamos repensar o tempo, reconstruí-lo. Essa é uma questão central em
Deleuze desde Diferença e repetição.
Foi também Benjamin quem mostrou que a crítica do materialismo histórico e a crítica da ideia de progresso,
(que move o fascismo), devem ser feitas a partir da crítica de uma noção de tempo que sustenta, tanto a
teologia do materialismo histórico, quanto os ideiais fascistas do progresso. O tempo não é um espaço vazio
que deve ser preenchido por acontecimentos, ele não é o resultado do movimento histórico, ele o determina, é
porque o tempo não é uma marcha contínua em espiral, mas uma sucessão de rupturas que interrompem o
continuum da História que “A Grande Revolução introduziu um novo calendário”. Ou seja, existe filosofia da
História e um conceito renovado de tempo, quando somos capazes de pretender reordenar o tempo,
reinventa-lo. Recriar tempos, pensar o acontecimento. Questão central do pensamento deleuziano, sobretudo
em Lógica do sentido.
Foi também Benjamin quem afirmara que “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre
vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele
se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por
milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas
de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época
anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um "agora" no qual
se infiltraram estilhaços do messiânico.”
110
Se o passado parece incapaz de enterrar seus mortos (contrariando os desígnios do velho Marx), não podemos,
como o historiador benjaminiano, fundar um conceito de “agora” no qual se infiltram estilhaços do messiânico,
porque não podemos captar a configuração em que uma época entra em contato com uma época anterior, não
podemos simplesmente pensar uma época anterior “perfeitamente determinada”. Este passado que nunca
enterra seus mortos, é difuso e presente apenas como fantasma, como um espectro, um espectro que alimenta
nossa imaginação.
Fora também Benjamin quem afirmara que a imagem da felicidade “está indissoluvelmente ligada à da
salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz
consigo um índice misterioso, que o impele à redenção.”
Se a felicidade não está toda aqui, e a salvação também não é um ideal abstrato e por vir, mas um desejo
concreto, é porque o passado não é um indício misterioso que nos conduz inevitavelmente à salvação, mas um
fantasma que assombra o presente, um morto que não pode ser enterrado. Este passado, livre de todo
messianismo, imagem de um tempo de injustiça que tarda em não morrer é o que deveria ser esquecido, um
passado que deveria ter ficado definitivamente para trás construído por um Deleuze nietzschiano, crítico do
ressentimento.
Deleuze e Guattari se recusam a fazer uma História a partir da noção de “presente”. A História se tece nas
relações entre os acontecimentos que formam cadeias que o historiador não pode mais ignorar, é preciso
desfiá-las como as contas de um rosário, para que o “presente” não seja mais um “corte”, capaz apenas de
pensar a configuração atual e uma única relação, a desta com a configuração imediatamente passada e
determinada. A História não pode ser “determinada”, pois como dizia Borges “o tempo é como um rio que me
arrebata”. O tempo do acontecimento é o tempo do esquizofrênico: “o que acontece conosco e para onde isso
vai nos levar?” Pensar a História é pensar continuidades, relações e rupturas, não uma forma única num tempo
determinado. Nenhum fato histórico existe em si mesmo e por si mesmo, não porque ele requer intepretação,
mas porque ele é o resultado de um processo, ou o objeto de um processo cuja racionalidade é a pura forma
da contingência. O acontecimento é justamente este momento em que não sabemos o que devemos agarrar e
o que devemos soltar. É um momento indecidível.
Ora, o que era o messianismo benjaminiano senão o desejo de construção de um verdadeiro Estado de
exceção. Esse verdadeiro estado de exceção, como o messias, está sempre a espera de uma fresta, de uma
porta aberta. Ele está sempre presente, mas não como uma fatalidade “redentora” e fracassada ou
subordinada e realista, mas como uma certeza de que todo momento é um corte móvel, todo momento é um
possível histórico, e pode alçar a um lugar na História.
Deleuze busca pensar tanto a noção de acontecimento, no presente, não como fato histórico, trauma, luto,
perda ou fracasso, mas como condição atual, quanto uma noção renovada de História. Afinal se o
acontecimento é a forma pura do tempo (porque condensa em potência todo o passado e o futuro), o que é o
passado? O passado pode ser o lugar do que morreu? Do que não é mais? Neste caso, ele se transforma em
germe de uma situação atual de transformação, e a História vira um “construtivismo”. Mas se é assim o que
são os “fatos” históricos? Os que podemos circunscrever no passado, que tem começo, meio e fim? Como
pensar o que significa sair da História? Em Diferença e repetição Deleuze pensa o passado em sua dimensão
“imemorável”, do que não pode mais ser lembrado. Afinal, esta dimensão do tempo é a mesma das
reminiscências platônicas, um tempo de gênese das Ideias.
Em Anti-Édipo o tempo e a História adquirem novas proporções. Trata-se aqui de pensar o passado como
fantasia ou fantasma. Os fatos históricos são antes de qualquer coisa uma fantasia, porque estão presentes em
nosso imaginário e determinam a vida social tanto quanto a realidade concreta.
111
O objetivo deste artigo seria explicar de que maneira Deleuze e Guattari concebem este conceito de História
que começamos a esboçar, em relação ao marxismo e em relação à psicanálise. Demonstraremos de que
maneira Deleuze e Guattari utilizam o “modo de produção asiático” como modelo, ao mesmo tempo, histórico
e mítico da gênese do capitalismo. Em seguida analisaremos, o recurso deleuzo-guattariano à psicanálise para
reconstruir a natureza dos delírios investidos na História e no socius. A relevância deste artigo consiste em
demonstrar que Deleuze e Guattari tem um papel fundamental na construção e crítica de um conceito
renovado de História, pós maio de 68, problema que é dos mais importantes da filosofia moderna, pósrevolução francesa, e que atravessou toda a crise e reconstrução do materialismo histórico e dialético. No
entanto, o que distingue Deleuze e Guattari de seus contemporâneos, é que aqui a História não é mais pensada
do ponto de vista único de seus agenciamentos concretos, mas de suas máquinas abstratas, de suas Ideias, de
seus conceitos, mitos e fantasmas.
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Nome: Lili Pontinta Cá
Instituição de Ensino: UFSCar
Orientadora: Marisa da Silva Lopes
Título: Os limites do relativismo cultural frente à vida humana
Leo Strauss, no livro Direito natural e história, dirige crítica aos relativistas. No prefácio à 7ª edição da obra, ele
diz preferir o “direito natural” ao relativismo reinante (STRAUSS, Prefácio, 2014, p. XII). O presente trabalho
não tratará de descontruir o relativismo nas suas várias ramificações, mas, seguindo a crítica deste filósofo,
mostrar sua limitação em pensar alguns problemas presentes no mundo atual como, por exemplo, condenação
de mulher “adúltera” ao apedrejamento baseada em costumes ou crenças, a excisão feminina sem
consentimento da mulher etc. Contudo, a proposta de “solução” desse problema não se dará com Leo Strauss,
visto que, segundo ele, a sua preferência pelo direito natural está ligada ao direito natural clássico, isto é, ele
recorre à verdade que subsiste por si que todos os homens sempre pressentem (id. ibid. p. 150) para responder
aos relativistas. Neste trabalho, pretende-se responder esse problema à luz do pensamento de Rousseau no
que tange a defesa à vida e liberdade como dádivas da natureza, sem, contudo, precisar recorrer a algo em si.
Os chamados relativistas, para Leo Strauss, a princípio, são teóricos alemães que rejeitaram a concepção do
“direito natural” e da “humanidade” e caíram em um relativismo irrestrito (id. ibid. p. 2). Depois, teóricos de
outras nacionalidades também renunciaram tais concepções. Um americano, seja da corrente evolucionista ou
do pensamento criacionista, não mais reconhece nenhum direito natural (id. ibid. p. 3). Entretanto, “a
necessidade do direito natural é tão evidente hoje quanto o foi durante séculos e mesmo milênios. Rejeitar o
direito natural é a mesma coisa que dizer que todo direito é determinado exclusivamente pelos legisladores e
pelos tribunais dos diversos países” (id. ibid. p. 3).
Por que o direito não deve ser determinado pelos países, mas, sim, pela natureza? Isto é, por que haveria
necessidade de pensar um direito cujo fundamento se situa fora de instituições do homem, do direito positivo?
Porque, responde Strauss, há padrão de certo e errado que ultrapassa limites fronteiriças. É com esse padrão
que se torna possível julgar o direito positivo. Sendo assim, o critério possível para julgar uma determinada
legislação jamais deveria se reduzir ao direito positivo adotado por nações.
Se se estabelecer critérios de julgamento do certo e errado por meio do direito positivo, o canibalismo é tão
justificável quanto princípios aceitos por outras sociedades, diz o pensador (id. ibid. p. 3). E, poder-se-á
acrescentar, condenação à pena de morte por apedrejamento em vista da extinção do adultério (só por parte
da mulher) é tão justa quanto penalidade que é atribuída a outros tipos de crimes; a excisão feminina sem
consentimento da mulher é tão justa quanto exame ginecológico. Se se seguir o ponto de vista do relativismo,
todos princípios do direito são sólidos e nenhum pode ser tomado como inferior. Afinal, “todas as sociedades
têm seus ideais” (id. ibid. p. 3). Ademais, “se não há nenhum padrão mais elevado que o ideal de nossa
sociedade, somos completamente incapazes de assumir um distanciamento crítico em relação a esse ideal” (id.
ibid. pp. 3-4).
Para julgar se algo é justo ou injusto (principalmente quando se trata da vida), será que o critério para tal não
deve ultrapassar os limites fronteiriços? Strauss nos mostra que o fato de podermos pôr em questão
o valor ideal de nossa sociedade mostra que há algo no homem que não está escravizado à sociedade onde ele
vive, e que temos a capacidade – e, logo, o dever – de procurar um padrão a partir do qual possamos julgar os
ideais de nossa sociedade, bem como de qualquer outra. Esse padrão não pode ser encontrado nas
113
necessidades das diversas sociedades, pois as sociedades e as suas partes têm muitas necessidades que
conflitam umas com as outras [...] O problema posto a partir do conflito de necessidades sociais não pode ser
resolvido se não tivermos o conhecimento do direito natural (id. ibid. p. 4).
A questão é: em que consiste esse direito natural? O filósofo mostra o seu apreço ao direito natural clássico,
que, segundo ele, não se forma a partir da política. Ou melhor, a filosofia clássica, ao menos na pessoa de
Sócrates, buscava aquilo que é. “Aquilo para o qual a questão ‘O que é?’ aponta é o eidos de uma coisa, o
molde, a forma, o caráter ou a ‘ideia’ de uma coisa” (id. ibid. p. 149). Sócrates, tendo compreensão disso,
buscava aquilo que é por meio de opiniões.
As opiniões se revelam, então, como fragmentos da verdade, fragmentos maculados de uma verdade pura. Em
outras palavras, as opiniões são tornadas necessárias pela verdade que subsiste por si, e a ascensão à verdade
é guiada pela verdade subsistente por si, que todos os homens sempre pressentem (id. ibid. p. 150).
A resposta de Strauss não satisfaz este trabalho por causa dessa busca por uma coisa que é em si. Aqui
pretende-se seguir o viés de Rousseau. É verdade que, no genebrino, o estado de natureza difere do estado de
civil. O homem do estado de natureza segue as leis naturais. Na sociedade, ele se torna membro de corpo
social e segue leis estatuídas pela vontade desse corpo – a vontade geral. Daí a crítica de Strauss dizendo que o
filósofo moderno substitui o seu direito natural pela vontade geral, que nada é senão uma invenção política (id.
ibid. p. 347).
A despeito dessa crítica, é possível dar uma resposta satisfatória ao relativismo à luz do pensamento de
Rousseau. Sabe-se que o homem natural de Rousseau é solitário e segue as leis da natureza. Já a vida do
homem civil se dá na relação com o outro. A sociedade passa a ser regida pela vontade geral. Para fazer parte
do corpo social, faz-se necessário uma alienação total (ROUSSEAU, 1964, pp. 360-361). Contudo, essa alienação
ocorre busca de segurança que a vontade geral deve manter. A seguinte passagem mostra o critério no qual a
vontade geral deve se firmar:
[...] temos de considerar as pessoas privadas que a compõem e cuja vida e a liberdade são naturalmente
independentes dela [da pessoa pública]. Trata-se de distinguir bem os direitos respectivos dos cidadãos e do
soberano, e os deveres que os primeiros têm de cumprir na qualidade de sujeitos do direito natural de que
devem gozar na qualidade de homens.
Em Rousseau, toda soberania está centrada na vontade geral. Contudo, esta deve assegurar a vida e liberdade,
uma vez que elas independem do soberano. Assim, Rousseau atribui à política o papel de assegurar a vida e a
liberdade do homem.
Referências:
STRAUSS, Leo. Direito natural e história. Tradução de Bruno Costa Simões. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2014.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, V. 3, 1964.
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Nome: Luama Socio
Instituição: USP
Orientador: Luiz Henrique Lopes dos Santos
Título do Trabalho: Sobre mundo e lugar: Abordando a abstração e a realidade do espaço com George Berkeley
e Milton Santos
Tratamos nesse trabalho da confluência de elementos filosóficos propostos por George Berkeley,
historicamente irlandeses, datados da primeira metade do século XVIII, em diálogo com a perspectiva da
“natureza do espaço”, historicamente brasileira, registrada na virada do século XX para o século XXI, pelo
pensamento de Milton Santos na sua obra “A Natureza do Espaço”.
O “ser é ser percebido” de Berkeley, por ser um conceito radicado na qualidade dinâmica e móvel da mente,
pode ser lido, hoje, como uma ideia que nos conduz para o sentido de desestabilização da rigidez dos signos
dominantes do “real” à nossa volta, ou seja, do nosso meio ambiente, ou do que está posto como tal,
socialmente, politicamente, economicamente, estimulando a ideia de possibilidade do engendramento e
desenvolvimento de novas significações.
Em Berkeley, o espaço é ideia e, como tal, é dependente do percebido. No contexto de sua obra, o espaço está
também relacionado à ideia de movimento, na medida em que este é sempre compreendido como uma
relação de posição entre corpos:
Quando excito um movimento em alguma parte do meu corpo, estando ela livre ou sem resistência, eu digo
que há espaço, mas se eu encontrar uma resistência, então digo que há corpo, e na proporção em que a
resistência ao movimento é menor ou maior, eu digo que o espaço é mais ou menos puro. Então quando eu
falo de espaço vazio ou puro, não é para se supor que a palavra espaço sustente uma ideia distinta de corpo e
movimento, ou que seja concebida sem corpo e movimento. (BERKELEY, 1982, p. 73)
Milton Santos, por sua vez, propõe, como ponto de partida do desenvolvimento de sua obra, “que o espaço
seja definido como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações” (2012, p. 21).
Assim, a pluralidade de formas em que se constitui a própria natureza do espaço, impede uma
“homogeneização” do próprio espaço, não obstante esta seja desejável aos interesses econômicos
totalitaristas das políticas vigentes:
O processo de globalização, em sua fase atual, revela uma vontade de fundar o domínio do mundo na
associação entre grandes organizações e uma tecnologia cegamente utilizada. Mas a realidade dos territórios e
as contingências do “meio associado” asseguram a impossibilidade da desejada homogeneização. (SANTOS,
2012, p.45)
Isto posto, na situação atual, talvez a filosofia “volte” a fazer sentido, justamente por propiciar reflexões nos
níveis mais radicais ou elementares da nossa percepção do mundo e de nós mesmos, os quais são passíveis de
participarem da estruturação de diferenças que oporão resistência à força de tal homogeneização (a qual
podemos dizer aqui que equivale ao conceito de abstração em Berkeley). E Milton Santos fala disso da seguinte
maneira:
A nova situação antropológica, diz Alain-Marc Rieu (1987, p.51), acentua o risco da prevalência do que ele
chama de pensamento associado, produto mecânico da submissão às máquinas de pensar e contra o qual
115
devemos mobilizar nosso pensamento crítico. Mas o que é pensar, nessas circunstâncias? Rieu acredita que a
informática fará voltar o tempo da filosofia, a única maneira de recusar o que Carneiro Leão, em seu livro A
Máquina e Seu Avesso (1987), denomina de cegueira radical, uma maneira de ver subordinada às formas
padronizadas e automaticamente processadas. (2012, p.187)
Diante desse quadro, a condição de elementaridade ou radicalidade dos conceitos da filosofia de Berkeley,
supondo-a acolhida, não deverá ser confundida com uma deliberada ignorância dos poderes de justificativa
abstrata da política vigente, mas apenas deverá ser vista como uma perspectiva filosófica possível, baseada na
concepção de unidade entre mente e corpo, sob a prerrogativa do mental (na acepção de espiritual).
Talvez seja oportuno lembrar que já se tornou corriqueiro e bastante incômodo, quando não desesperador justamente porque alija o ser humano de um, talvez, indefinível sentimento de poder -, perceber que a
dimensão mais concreta da realidade, mediada pelo corpo humano, tende a se apagar, em meio à
predominância do imaginário globalizado, abstrato.
De uma forma bastante óbvia, o utilitarismo globalizado, abordado por Milton Santos, pode ser compreendido,
pelas lentes berkeleyanas, como algo enraizado na eterna concepção dualista da diferença entre realidade
externa e realidade interna, sujeito e objeto, etc., combatida por Berkeley no seu Tratado sobre os Princípios
do Conhecimento Humano. Solapando a querela sobre tal diferença, Berkeley, com seu “ser é ser percebido”
propõe o círculo da totalidade entre o homem e, podemos dizer aqui, o seu lugar. As ideias, incluindo a de
“espaço”, são existências dependentes da mente. Remetem ao homem real, concreto, se estiverem
coordenadas ao seu viver integral. Porém quando as ideias passam a ser justificadas apenas por palavras, as
quais por “natureza” tendem à fixidez de sua forma, elas não passam então de linguagem “disfarçada” de ideia
e, portanto, de abstração.
Se o espaço, sendo uma ideia como qualquer outra, não tem uma existência independente da mente,
concluímos que nossa era “pós-moderna” evidencia isso de maneira bastante trágica na condição individual,
pela via nefasta do predomínio da concepção de espaço abstrato como condição do mundo, como se a ideia
mesma fosse agora, sinônimo de abstração, e o corpo, um “estrangeiro”. Isso pode ser ilustrado com uma
passagem de um texto do psicanalista italiano Mauro Maldonato:
À dissolução do paradigma espacial corresponde o emergir de uma multidão de espaços qualitativamente
diferentes. A cada espaço corresponde um diferente ponto de vista, e nessa desmaterialização e deslocalização
a ‘presença’ abstrai-se, deslocando-se com respeito aos cânones habituais do corpo, até se tornar experiência
virtual. Metáfora disso é o borderline, a identidade atópica, a existência liminar, sem mais onde, o gesto do
estrangeiro que nos questiona o tempo todo com sua própria presença. (2014, p.188)
Porém, não obstante os elementos da filosofia de Berkeley possam ser reavivados numa reflexão a respeito do
ser das coisas, presentemente, o fato é que persiste a problematização, em toda parte, desse incômodo com a
condição abstrata do nosso mundo no constante paradoxo criado por nossa presença corporal diante da ideia
de tal condição. Então Milton Santos nos propõe a compreensão disso, ao percorrer as relações entre o
concreto e o abstrato pelas linhas do que se chama espaço, concluindo pela coexistência de duas grandes
ordens do espaço, a ordem “abstrata” e a ordem “concreta”:
A ordem global é “desterritorializada”, no sentido de que separa o centro da ação e a sede da ação. Seu
“espaço”, movediço e inconstante, é formado de pontos, cuja existência funcional é dependente de fatores
externos. A ordem local, que “reterritorializa”, é a do espaço banal, espaço irredutível porque reúne numa
mesma lógica interna todos os seus elementos: homens, empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e
116
formas geográficas. (...) Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local,
convivendo dialeticamente. (SANTOS, 2012, p. 339)
Palavras-chave: Espaço, mundo, lugar, abstração, realidade
Referências:
BERKELEY, George. A Treatise concerning the Principles of Human Knowledge. Indiana, EUA: Hackett Publishing
Company, 1982.
_________________ . The Querist. Disponível pela Internet em: The Project Gutenberg EBook, 2009.
COUTINHO, Mauricio Chalfin. A Economia Monetária de Berkeley. Disponível pela Internet em: Revista
EconomiA, 2011.
MALDONATO, Mauro. A Subversão do Ser: identidade, mundo, tempo, espaço: fenomenologia de uma
mutação. Trad. Roberta Barni, Luciano Loprete. São Paulo: Edições Sesc, 2014.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2012.
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Nome: Lucas Nascimento Machado
Instituição: USP
Orientador: Vladimir Pinheiro Safatle
Título: Por que filósofo? Ou sobre a continuidade da filosofia enquanto atividade
Falar da “atualidade da filosofia” pode parecer um contrassenso, se levarmos em conta os diversos ataques
que a filosofia sofreu quanto à sua relevância nos últimos tempos, mas também no século passado. A filosofia,
segundo alguns de seus detratores, teria se esgotado enquanto uma esfera independente e produtiva de
conhecimento, de modo que o discurso filosófico teria perdido todos ou boa parte dos subsídios que lhe
permitiriam se justificar e se legitimar enquanto uma forma de discurso que pudesse reivindicar qualquer
espécie de validade, que dirá superioridade, frente às outras áreas de conhecimento que se estabeleceram e se
firmaram nos últimos séculos. Quer por ser considerada um exercício abstrato e fútil desprendido da realidade,
quer por ser concebida como um discurso inerentemente metafísico que já haveria se consumado em todas as
suas possibilidades, quer ainda por se tomá-la como uma forma de discurso que pressupõe inerentemente uma
certa forma de racionalidade que não seria mais defensável ou mesmo praticável, a filosofia, segundo estes
críticos, teria esgotado as suas potencialidades, e não poderia mais acrescentar nada de novo e significativo ao
nosso conhecimento. Por isso, seria necessário à filosofia dar lugar a outros tipos de conhecimento ou a outras
formas de pensamento.
É nesse sentido, por exemplo, que muitos físicos de grande projeção, tais como Stephen Hawking, Neil
deGrasse Tyson e Lawrence Krauss teriam se pronunciado recentemente contra a filosofia, afirmando que ela
não teria acompanhado o desenvolvimento da física, ciência a qual, por sua referência à experiência, sua
confrontação com os fatos empíricos e seu embasamento na “hard data”, seria a área de conhecimento que
melhor poderia fornecer respostas às nossas questões fundamentais sobre a natureza. A filosofia, segundo
estes autores, teria falhado em oferecer qualquer contribuição significativa nos avanços atuais da física, e,
enquanto uma forma de conhecimento capaz de acrescentar qualquer contribuição no nosso conhecimento
físico do mundo, estaria obsoleta ou mesmo morta.
É interessante notar que esse diagnóstico, embora acompanhado de um juízo de valor fundamentalmente
distinto, não se afasta muito do diagnóstico que o próprio Heidegger, na segunda metade do século XX, emitiu
sobre o destino da filosofia em seu O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Neste artigo, por mais que,
sem dúvida, Heidegger compreenda de uma maneira bastante peculiar o que significa o “fim” da filosofia, fica
claro que a filosofia, enquanto metafísica, tem a sua consumação justamente nas ciências técnicas, as quais
passam a ocupar o seu lugar. Tal diagnóstico, antes de se contrapor ao diagnóstico dos cientistas
contemporâneos mencionados anteriormente, pelo contrário, conflui perfeitamente com ele: as ciências que
têm sua origem na filosofia são a sua consumação, seu aperfeiçoamento e, enquanto tal, tornam uma filosofia
que seja distinta da ciência obsoleta, pois é a ciência, e não a filosofia, que é capaz de melhor responder às
perguntas que são formuladas pela filosofia, tais como são formuladas pela filosofia. A diferença se encontra,
contudo, no fato de que, para Heidegger, o fim da filosofia também é a abertura para uma nova forma de
pensamento a qual, por colocar em questão a forma com que a filosofia e a ciência formulam as suas questões,
ou, em outras palavras, por dirigir-se à questão do pensamento, seria a única capaz de pensar uma questão
que estaria para além daquilo que poderia ser pensado pela metafísica, ou seja, pela filosofia e pela ciência.
Este reconhecimento ambivalente do esgotamento da filosofia, que não cede, ao mesmo tempo, a uma
glorificação irrestrita das ciências, também pode ser encontrado em nossas terras, e particularmente no texto
118
de Gerard Lebrun em resposta à pergunta por que filósofo. Neste texto, Lebrun abre com a observação de que
não seria mais possível falar de filosofia em um sentido único, a não ser no sentido institucional, “sóciocultural” do termo. Isso porque, segundo Lebrun, a pluralidade de sistemas filosóficos, assim como o avanço
progressivo das ciências, impossibilitaria falar da existência da filosofia única, no sentido de uma filosofia que
realize a sua pretensão de ser um saber universal e absoluto. A filosofia, em sua pretensão de alcançar
universais, fracassa tanto em nos fornecer um conhecimento científico do mundo (e, por isso, tem de sempre
evitar ser refutada por este) quanto em nos fornecer um verdadeiro saber absoluto, em chegar de fato a
universais. A época em que se podia fazer filosofia crendo na possibilidade de concretização de seu ideal de
saber universal já haveria passado. Assim, restaria à filosofia, em seu sentido institucional - único sentido em
que se poderia falar da filosofia no singular - ser uma formação para a inteligibilidade. Por isso, o historiador da
filosofia se separaria do filósofo, renunciando à pesquisa deste pelo universal, não sendo mais filósofo: a
filosofia, enquanto “pesquisa do universal”, daria lugar ao estudo da história da filosofia como formação para a
inteligibilidade e como desconstrução do próprio ideal filosófico, desconstrução que levaria mesmo à completa
vitória da antifilosofia.
Assim, vemos que esses diferentes críticos da filosofia fazem suas críticas a partir de uma perspectiva comum, a
saber: a filosofia, enquanto discurso, teria esgotado suas potencialidades e a sua capacidade de nos fornecer
quaisquer novos e significantes conhecimentos sobre o mundo, sendo essencialmente substituída nessa
pretensão pelas ciências. Contudo, os pontos comuns entre essas críticas nos permitem questioná-las de um
mesmo ponto de vista, pois a sua pressuposição comum é o fato de que tomam a filosofia meramente ou
sobretudo como discurso, e atribuem, cada um segundo a sua própria perspectiva, determinadas
características e atributos que definiriam a esse discurso. Caberia perguntar, porém: quais são os meios pelos
quais cada um desses críticos constrói a sua definição de filosofia? Seriam esses meios de uma natureza
completamente distinta dos meios de construção filosófica de definições? Ou, pelo contrário, as definições
fornecidas desse modo seriam, fundamentalmente, definições construídas filosoficamente (e não
“cientificamente”, “historicamente” ou “sociologicamente”), contradizendo, portanto, à própria afirmação
destes autores de que a filosofia teria se exaurido em sua potencialidade, em sua utilidade e em sua
necessidade?
Em nossa apresentação, pretendemos defender a resposta positiva a essa última pergunta, argumentando que,
muito antes de ser entendida como um discurso, a filosofia deve ser compreendida sobretudo como uma
atividade, atividade intimamente ligada ao trabalho com definições, à solidariedade inextrincável de
construção e problematização de definições, motivo pelo qual qualquer definição da filosofia nunca poderia ser
tomada como sendo filosoficamente definitiva. Assim, se a filosofia ainda tem algum papel relevante para a
reflexão sobre a nossa atualidade, isso se deve ao fato de que a atividade filosófica, ao mesmo tempo em que
não se deixa exaurir por definições da filosofia, também não se deixa recusar enquanto uma atividade
fundamental para a reflexão sobre as questões fundamentais que norteiam o debate contemporâneo, inclusive
acerca do próprio lugar da filosofia.
Palavras-chave: Filosofia, ciência, discurso, atividade, atualidade.
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Nome Completo: Luciana Valéria Nogueira
Instituição de Ensino: USP
Orientadores: Maria Elice B. Prestes e Maurício de Carvalho Ramos (coorientador)
Título: A Teologia Natural do século XIX e o criacionismo científico no meio acadêmico contemporâneo: uma
discussão sobre o poder pastoral
O presente trabalho se insere em um projeto mais amplo, de doutorado, que busca compreender os impactos
da Teoria Darwiniana da Evolução sobre a Teologia Natural do século XIX. No entanto, disso não decorre a
defesa de que o criacionismo científico, perceptível no ambiente acadêmico no mundo contemporâneo, seja
equivalente ou uma espécie de reedição da Teologia Natural do século XIX. Trata-se, antes, de buscar
compreender a que forças obedecem as vertentes criacionistas entre acadêmicos na atualidade. Talvez um
caminho esclarecedor nesse sentido seja justamente a de uma comparação entre esses dois modos de
compreender a natureza e, em particular, os seres vivos. Ao lançar mão do campo científico a fim de respaldar
suas crenças religiosas, criacionistas contemporâneos e teólogos naturais do século XIX se aproximam. Mas,
certamente, em chaves de raciocínio e obedecendo a demandas distintas. Acredito que uma abordagem
filosófica sobre ambas manifestações pode lançar luzes para uma melhor compreensão tanto sobre os
impactos da teoria da evolução sobre a teologia natural quanto sobre o fenômeno a que assistimos da
proliferação de acadêmicos francamente criacionistas. O percurso ora proposto toma como documento
principal para análise a obra Natural Theology (1893) do físico e teólogo natural irlândes George Gabriel Stokes
(1819-1903), resultado da série de conferências proferidas por ele nas Gifford Lectures entre os anos de 1891
e 1893. Em particular a conferência X na qual dialoga diretamente com a Teoria Darwiniana da Evolução. O
trabalho do físico irlândes é entendido como um documento que retrata o estado da Teologia Natural pósDarwin. A fim de tratar do criacionismo científico no mundo acadêmico contemporâneo, toma-se como
documento o livro A caixa preta de Darwin (1996), do bioquímico estadunidense Michael Behe (1952-) da
Universidade de Lehigh, Pensilvânia. Nessa obra, Behe toma elementos da complexidade bioquímica a fim de
dar suporte à necessidade racional de existência de design inteligente e, consequentemente, da existência de
um designer.
Na Teologia Natural de Stokes o percurso seguido para chegar à razoabilidade intrínseca da noção de design
inteligente é bastante longo. Vale destacar três aspectos fundamentais acerca de sua fé religiosa. O primeiro
deles refere-se ao argumento do design inteligente de Willian Paley como prova da existência de Deus. O
segundo está ancorado na visão do filósofo William Whewell (1794-1866) acerca do senso moral. Para este, as
noções morais são inatas e não algo derivado a partir de uma via utilitarista ligada à experiência. E, finalmente,
a convicção de que os relatos bíblicos eram portadores da verdade (WILSON, 2011). Foi a partir desse quadro
geral de convicções religiosas que Stokes procurou resolver suas posições na fé na doutrina cristã com as
teorias científicas. De acordo com ele, no imenso período do tempo geológico, Deus interveio repetidas vezes
para criar e dar os desígnios das várias espécies de plantas e animais, incluindo o homem (WILSON, 2011). O
uso apropriado da razão humana, como se observa na ciência, não poderia conduzir o homem a perder-se. Essa
noção de uso apropriado da razão como forma de não errar era uma espécie de dogma para os teólogos
naturais. Assim, para Stokes, a Biologia parecia aceitar um padrão mais baixo de evidências que aquelas
alcançadas pela Física. As teorias de forças não materiais, como a gravidade, o misterioso éter, acabaram por
colocar a Física, por analogia, mais próxima do pensamento religioso. Em contrapartida, os biólogos, de acordo
com o pensamento de Stokes, por abraçarem muito rapidamente a ideia de certa continuidade da Teoria
Evolucionista, isto é, de sua aplicabilidade a todos os seres vivos, em oposição, acabaram por promover o
120
materialismo (STOKES, 1893, p. 247-260). O problema para Stokes não era o conceito de seleção natural, mas,
antes, a noção de ancestralidade comum entre todos os seres vivos. Ele não chega a mencionar esse ponto de
forma direta, mas sua discussão acerca da causação remete a isso. Para Stokes é inadmissível a supressão da
causa primeira, ou seja, de Deus. Por isso a Teoria da Evolução não pode ser considerada uma teoria. A seleção
natural pode ser entendida como uma ocasião para ação de Deus, o que remete inevitavelmente ao
pensamento de Nicolas Malebranche (1638-1715). Mas, a evolução, nos termos de Charles Darwin (18091882), não pode ser aceita na medida em que prescinde do Criador.
Em Behe, a crítica à teoria da evolução se detém sobre outro aspecto: a seleção natural não é capaz de explicar
a microevolução. Ela pode ser admitida em termos de macroevolução, mas esse mesmo mecanismo não é
capaz de explicar a “surpreendente complexidade” dos fenômenos bioquímicos em nível molecular (BEHE,
1997, p. 15). A questão da ancestralidade comum em relação à causa primeira não é o foco do bioquímico
estadunidense. Nesse sentido ele se aproxima de Peter Mark Roget (1779-1869), médico e teólogo natural
inglês, autor do V Tratado de Bridgewater (1834). Para Roget, assim como para Behe, a complexidade e
diversidade dos seres vivos e a perfeita harmonia entre forma e função são provas da existência de um
designer.
Vale ressaltar que a alcunha “criacionismo contemporâneo” nos esclarece muito pouco a respeito dos
conceitos e ideias abrigadas sob esse nome. Há muitos criacionismos na contemporaneidade, de acordo com
Sandro de Souza (2009, p. 41). Aqui nos interessará o criacionismo autointitulado criacionismo científico.
O criacionismo científico mais bem representado politicamente é o criacionismo do design inteligente. As
motivações políticas e religiosas dos movimentos criacionistas ganharam forças novas nas últimas décadas do
século XX com a publicação de Darwin on Trial por Phillip Johnson (1940- ) e a criação do Instituto Discovery em
1990, do qual Behe é membro sênior, e do Centro para a Renovação da Ciência e da Cultura em 1996. Este
centro viu suas estratégias tornarem-se públicas quando o “Documento Wedge” foi colocado, à revelia de seus
autores, na internet. O documento propõe eliminar o materialismo e o seu legado tido como destrutivo para a
moral, a cultura e a política. O materialismo poderia, então, ser substituído pela visão teísta defendendo a ideia
de que a natureza e os seres humanos foram criados por Deus (Souza, 2009, pp. 144-146). Já há mostras de
sucesso nesse empreendimento. Em 1999, no Kansas, o estudo da teoria da evolução foi equiparado, nos
currículos escolares, ao estudo do Gênesis.
Depreende-se dessa breve discussão que se para Stokes o cristianismo não compete com a ciência, mas sim
pode complementa-la, para os criacionistas científicos do século XXI trata-se de uma batalha em que a
conciliação não apenas não é possível, como parece mesmo não ser desejada. Uma reflexão filosófica
profunda, à luz do pensamento de Michel Foucault (1926-1984), sobre esse tema poderia trazer à tona a
discussão acerca dos desdobramentos desse posicionamento criacionista radical. A hipótese de largada é a de
que, ao se revestir de uma suposta cientificidade, esse criacionismo ganha contornos em que o poder pastoral
(FOUCAULT, 1979) pode ser exercido de maneira mais potente. Pretendendo deixar de ser uma fé uma
religiosa, mas, antes, um exercício científico válido, os criacionistas científicos propõem abordagens
educacionais por meio de ações políticas bastante concretas, numa condução das almas e dos corpos a uma
salvação que seria respaldada pela ciência. A chancela dos saberes científicos parece ser um viés fundamental
na contemporaneidade para se ganhar as almas. Seria a proposta criacionista científica uma nova forma de
poder pastoral? Ou apenas uma remodelagem das tecnologias do eu com vistas à construção de subjetividades
assujeitadas ao saber/poder científico-religioso?
Referências:
BEHE, Michael. A caixa preta de Darwin. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
121
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
______. As palavras e as coisas: uma arqueologia
SOUZA, Sandro de. A Goleada de Darwin – Sobre o Debate Criacionismo/Darwinismo. Rio de Janeiro, Record,
2009.
STOKES, George Gabriel. Natural Theology. Londres, Adam and Charles Black eds., 1893
WILSON, David B. ‘Stokes, Sir George Gabriel, first baronet (1819–1903)’, Oxford Dictionary of National
Biography,
Oxford
University
Press,
2004;
online
edn,
Jan
2011
[http://www.oxforddnb.com/view/article/36313, accessed 23 Oct 2013]
WYHE, John van. “The Bridgewater Treatises On the Power Wisdom and Goodness of God As Manifested in the
Creation”, The Victorian Web. Disponível em: http://www.victorianweb.org/science/bridgewater.html. Acesso:
15/10/2013
122
Nome Completo: Lucila Lang Patriani de Carvalho
Instituição de Ensino: USP
Nome do Orientador: Franklin Leopoldo e Silva
Título do Trabalho: Cinema e Filosofia: a dimensão do discurso
A proposta da presente apresentação refere-se, inicialmente de modo abrangente, à relação entre Filosofia e
Cinema a partir da análise do discurso. A entrada no tema que envolve a relação aqui proposta pode ser dada
por diversas perspectivas, como por exemplo: as obras filosóficas (dentro das quais também podemos incluir os
romances filosóficos) que foram filmadas – como Les Dames du Bois de Boulogne (com estreia em 1945),
filmada por Robert Bresson e inspirada no romance Jacques le fataliste et son maître, escrito por Denis Diderot
entre 1765 e 1780. Outra abertura para o tema pode ser dada pelos filmes que retratam a vida dos autores que
fazem parte da tradição – a exemplo dos diversos filmes que Roberto Rossellini dedicou à vida dos filósofos,
tais como Descartes (em Cartesius, de 1974) e Santo Agostinho (Agostino D'Ippona, de 1972), entre outros
filmes e autores. Acresce-se a tais vertentes os exemplos de filmes que são considerados “filosóficos”, em
virtude da seleção da temática escolhida para compor tal obra, e que, por sua estrutura, possibilitam que seja
estabelecido um diálogo com uma determinada tradição filosófica – a exemplo do modo como Deleuze analisa
na obra Cinema – A imagem-movimento de 1983 a imagem conforme é compreendida por Ingmar Bergman no
cinema.
Para além destas diversas possibilidades de análise o intento do nosso trabalho se estabelece em torno da
própria relação que se faz presente nestas diversas perspectivas entre Filosofia e Cinema. Deste modo, nosso
trabalho se detém no cerne desta relação, com foco no modo como ambos os campos se relacionam a partir da
observação do discurso sob o aspecto peculiar do modo como a linguagem cinematográfica pode trazer
elementos que contribuem para o debate filosófico em torno de alguns temas sem que, com isto, as
características de cada um se percam. Assim, antes de melhor aprofundarmos o recorte que aqui desejamos
delimitar e aprofundar em nossa análise cabe melhor esclarecermos o modo como utilizamos “discurso” em
nosso trabalho. Para tal termo não atribuiremos a definição específica de determinado autor, mas sim um
termo genérico que comporta não somente uma exteriorização ou uma expressão – de modo que pudéssemos
utilizar o termo “linguagem”, mas uma expressão que é arquitetada, que é organizada em seu expressar-se.
Neste sentido, embora escolhamos neste trabalho desenvolver nossa análise em relação ao cinema, ao se
estabelecer um espaço que se pretende abrir para o diálogo entre a Filosofia e o Cinema sob a égide da
linguagem e do discurso poderiam ter como objeto de abordagem em relação à literatura e ao teatro, por
exemplo, de tal maneira que se pudesse observar em cada um a estrutura de seu discurso e seu respectivo
modo de organização.
Conforme ressaltado inicialmente, frente à natureza da abordagem e do tema que aqui se propõe, diversas são
as perspectivas possíveis para que se adentre ao nosso objeto de análise. Como uma dentre estas possíveis
perspectivas, analisaremos o modo como Filosofia e Cinema se relacionam na obra do filósofo francês JeanPaul Sartre. Ao longo de sua produção teórica o filósofo se debruçou sobre o cinema (assim como a literatura e
o teatro) e lidou com esta arte de um modo peculiar em relação à sua filosofia. Na aproximação entre Sartre e
o Cinema devemos considerar também que algumas de suas obras foram originalmente escritas para serem
encenadas no teatro e, posteriormente, por conta de sua repercussão junto ao público, acabaram sofrendo
adaptações para o cinema – tal é o caso da peça Entre quatro paredes (intitulada no original de Huis Clos)
encenada pela primeira vez em 1944 que foi livremente adaptada por Jacqueline Audry dez anos depois,
abrindo precedente para que outros diretores fizessem o mesmo. Por outro lado, Sartre possuiu uma relação
mais estreita com o cinema a partir dos roteiros escritos, dentre os quais ficaram mais conhecidos Os dados
estão lançados e Freud, além da alma (datados de 1947 e 1984, respectivamente, com os nomes de Les jeux
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sont faits e Le Scénario Freud). Soma-se a tais títulos, ainda, Typhus (1943) Résistance (escrito entre 1943 e
1944 e descoberto apenas recentemente) que, entre outros, relacionaram o filósofo ao Cinema. Apesar da
pluralidade de abordagens que podem ser estabelecidas a partir deste contexto que começa a se esboçar,
abarcando vários e diferentes temas, a relação concreta de Sartre com o cinema não foi muito feliz, ora por
conta do insucesso dos filmes, ora com problemas nos roteiros conforme encomendado pelos diretores ou
mesmo pela falta de realização das filmagens.
Apesar destes diversos conflitos, que não aprofundaremos em nosso trabalho, ainda consideramos a
perspectiva de Sartre interessante para adentrarmos na discussão entre Filosofia e Cinema a partir da análise
de que este possibilita que se desenrole o “drama da existência”. Embora não seja um privilégio exclusivo do
Cinema, uma vez que é compartilhado com o teatro e o romance, por exemplo, o cinema se apropria de modo
especial do espaço, do tempo e da imagem, estabelecendo uma dimensão peculiar para que o discurso que
esta arte comporta se perfaça. Assim, retomando a perspectiva anteriormente esboçada no início do nosso
resumo, o intento do trabalho é, a partir de Sartre, refletir a respeito da relação da Filosofia com o Cinema,
menos pela dimensão do “drama da existência”, que comporta um viés Existencialista do pensamento
sartriano, mas pensando o modo como o próprio “drama” possibilita a interlocução entre as áreas. Neste
sentido, a própria escolha da dramaticidade já comportaria em si uma estrutura possível de aproximá-la do
discurso, utilizando a narrativa como uma forma de aproximação deste. A partir da melhor delimitação do
contexto dentro do qual nosso trabalho se desenvolve, ressaltamos que não desejamos nos deter
materialmente na análise dos roteiros de Sartre ou das adaptações que suas obras sofreram, mas sim da
possibilidade do discurso da filosofia se inter-relacionar ao discurso do cinema. A proposta é que se reflita
sobre esta possibilidade de aproximação, considerando como o modo da linguagem cinematográfica de lidar
com o espaço e o tempo, o movimento, e as imagens se relacionam com o discurso filosófico, possibilitando
que novas dimensões deste discurso sejam estabelecidas.
Palavras-chave: Cinema, Jean-Paul Sartre, Discurso.
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Nome Completo: Marcelo Luchini
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Maurício de Carvalho Ramos
Título do Trabalho: La Mettrie e a organização da matéria no L’Homme Machine
O presente projeto de pesquisa visa investigar o conceito “organização da matéria” na obra L’Homme Machine
de La Mettrie. Obra que busca uma ruptura epistemológica para a superação da idéia da passividade da
matéria, ou seja, a visão mecânicista cartesiana do mundo na qual a matéria é somente extensão dá lugar a
uma visão médica-fisiológica mais atenta ao problema da vida. O conceito de “organização” tão recorrente na
filosofia materialista de La Mettrie pode ser apontado como amplo, vago, generalizante, entretanto possui um
grande valor para a explicação da “máquina humana”. Para La Mettrie o ser humano é meramente material e
maquinal e todas as suas faculdades (incluindo as superiores) podem ser explicadas simplesmente pela matéria
organizada que possui em si mesmo o movimento, essa conclusão permite a concepção do homem como um
complexo “mecânico-material auto-organizado”.
Para o médico-filósofo Julien Offroy de La Mettrie, a metáfora da máquina possibilitava uma explicação
médica-científica e uma compreensão da “natureza” do homem e do animal, pois analogicamente o homem e
o animal poderiam ser entendidos como “homem-máquina” e “animal-máquina” já que estariam em um
mesmo mundo físico regido pelas mesmas leis mecânicas.
La Mettrie, monista e defensor radical do materialismo, publica em 1747 “L’Homme-Machine” inspirado na
teoria cartesiana do “bête-machine”, porém, inversamente postulava que se admitirmos a existência de uma
“mente material” nos animais, responsável pelos sentidos e percepções, no que deveria consistir essa
diferença em relação aos homens?
Para o médico-filósofo bastava aplicar a hipótese de Descartes do “bête-machine” ao homem, pois, em sua
visão médica este é do mesmo modo uma máquina natural em função da “organização da matéria” e da ação
de forças físicas no corpo. Uma hipótese admissível, pois La Mettrie atribuía à matéria características mentais
ou pensantes, em seu entendimento “a mente” era uma função do corpo; em vários exemplos extraídos da
anatomia comparada sugere, do seu ponto de vista médico, que a mente é uma organização essencialmente
material por ser precisamente uma propriedade material do corpo, o que possibilita apontar semelhanças
entre a “natureza humana” e a “natureza animal”.
Nessa perspectiva, o dualismo cartesiano de substância é suprimido, a alma, postulada como a grande
distinção entre homem e animal, a prova de que o homem não é um autômato, desaparece dando lugar a
“organização da matéria”, desta forma o dualismo cartesiano é “traduzido” em termos puramente
materialistas, a metade espiritual, i.e., a res cogitans é incorporado a matéria, a “res extensa” ou a “realidade
externa” do homem. Para La Mettrie, sua concepção materialista supera o dualismo cartesiano, pois o corpo é
a única realidade do homem e o que determina todo o essencial da vida, assim a “res extensa” se torna uma
consequência lógica e inevitável de todo princípio epistemológico de seus estudos.
O conceito “organização da matéria” é postulado por La Mettrie como a manifestação mais material do
organismo, neste “plano” o material não apresenta nenhuma diferença entre as máquinas artificiais ou
naturais.
125
Nossa pesquisa tem como foco o entendimento do que La Mettrie nomeia como “organização da matéria” em
suas obras. Assim, a questão que se torna relevante é saber qual é a propriedade que permite a agregação
ordenada dos elementos, ou seja, como a matéria se organiza.
A partir da investigação de como La Mettrie lidava com as teorias e modelos que tratavam da explicação do
homem, bem como da importância da relação entre teoria e fenômeno, evidencia-se um problema filosófico
que concerne à pesquisa das bases epistêmicas, a saber, como matéria disposta de certa maneira pode possuir
propriedades que a própria matéria não possui em si mesma?
Também há outras questões secundárias que emanam deste problema mais amplo, como: até que ponto os
exemplos obtidos através da anatomia comparada pelo autor podem ser considerados não especulativos, i.e,
metafísicos? Sendo um defensor do materialismo, obrigatoriamente a explicação do ser vivente deve partir do
empírico ou há espaço para a criatividade nesta mesma explicação? E, sobretudo, como o próprio autor se
declara em sua principal obra, inimigo da metafisica e da teologia, qual a implicação ao utilizar conceitos não
empíricos?
La Mettrie acredita desembaraçar a filosofia de toda teologia e metafisica atacando suas bases de forma
agressiva baseado em sua formação como médico e na experiência que acumulou através da anatomia
comparada que a fisiologia proporcionou, ampliando sua concepção de matéria e sua organização, desta forma
para ele, a matéria já não pode ser considerada apenas como extensão. Em seua compreensão, a organização é
inerente a matéria, mas sobre a natureza dessa organização sua explicação não é clara.
Por fim, o escopo deste projeto de pesquisa é: o que seria a organização da matéria? Um conceito que para o
autor era capaz e suficiente para explicar o homem e o animal. Qual o papel que ele desempenha na
construção da epistemologia lamettriana para o progresso do conhecimento?
Nossa escolha pela obra de La Mettrie como tema de investigação foi por sua filosofia estar pautada
principalmente na busca pela explicação da vida. Nela, a interpretação do ser humano é feita pelo autor
através de dois paradigmas, como máquina, influenciado pala teoria cartesiana e como fenómeno fisiológico
em que o homem e o animal são produtos de uma organização.
La Mettrie deseja realizar uma fusão entre a filosofia e a medicina e ao descrever o homem analogamente a
uma máquina o médico-filósofo não reduz as propriedades "orgânicas" em propriedades "inorgânicas" e
inversamente a fisiologia mecanicista inerte de Descartes, suas conclusões lançam luz sobre uma questão
fundamental: a relação entre corpo e alma – corpo e mente. A tentativa de explicar o funcionamento da mente
em termos puramente materiais sem a necessidade da alma cartesiana, ou em outras palavras, demonstrar
como o pensamento poderia ser o resultado de uma determinada organização da matéria no cérebro, se
tornou a vertente da reflexão de sua filosofia e o aproximou da neurociência moderna.
Do ponto de vista do conhecimento filosófico, pensamos que estudar La Mettrie é preencher uma lacuna no
fluxo do pensamento ocidental e abrir novos caminhos de investigação e reflexão. E por fim, outra questão
relevante é: comparando os seres humanos com os animais ou autômatos impõe-se uma importante demanda,
o que significava ser humano para a filosofia, a medicina e a ciência de seu tempo?
Palavras-chave: La Mettrie, homem-máquina, organização, matéria, movimento, medicina.
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Nome Completo: Mariana Fidelis Jerônimo de Oliveira
Instituição de Ensino: UnB
Nome do Orientador: Erick Lima
Título do Trabalho: “A atualidade da filosofia e a filosofia como atualização: mediação e imediatidade na
constituição da experiência filosófica da Dialética Negativa.”
Desde a ocasião de sua aula inaugural como professor da Universidade de Frankfurt, em 1931, Adorno
responde a questão sobre a atualidade da filosofia indicando sua condição como uma espécie de atualização,
isto é, como pensamento ou interpretação do presente. A própria sugestão, sob influência de Benjamin, de
uma forma constelatória de organização do conhecimento indicava a busca por um modelo de procedimento
filosófico que contrariasse sua forma tradicional de Sistema, negando tanto sua pretensão de totalidade na
apreensão do real, quanto a natureza fixa e supra-histórica de seu conhecimento. A forma da constelação
poderia sugerir à filosofia um tipo de trabalho intelectual adequado à fragmentação do real: a partir de
elementos mínimos, historicamente determinados, ordenados e reordenados em composições cambiantes.
Podemos dizer que, em grande medida, uma de suas últimas obras publicadas em vida, a Dialética Negativa
(DN) de 1966, responde ainda a esta busca por uma forma histórica e concreta de pensamento, elaborando de
maneira mais consistente sua crítica à filosofia como Sistema através de uma crítica imanente do Idealismo e
de suas categorias de síntese e identidade. O diagnóstico da década de 30 vinculado a uma desintegração da
adequação do pensamento ao Ser como totalidade é transformado, na Dialética Negativa, no reconhecimento
da insuficiência da razão, instaurando, por sua vez, a necessidade de aproximação em relação àquilo que lhe
escapa: que não se submete à síntese, que contraria a identidade e que não cabe no conceito. A dialética
negativa, enquanto procedimento filosófico, define-se então como “consciência consequente da nãoidentidade” (DN, p. 13), de modo que esta passa a constituir a referência epistemológica da proposta de
filosofia contida na DN.
Adorno reconhece que a filosofia contemporânea, de uma maneira geral, participa das preocupações quanto à
crítica da identidade e aproximação ao não-idêntico, por exemplo na fenomenologia de Husserl, através da
noção de conteúdo intencional, e na filosofia de Bergson, que resgata a centralidade da intuição como forma
de reconhecimento do devir. Porém, para ele, ambas acabam por retornar à metafísica tradicional (DN, p. 15),
na medida em que a imediatidade é hipostasiada num sentido atemporal quando não é concebida juntamente
com a atividade racional do conceito. Quer dizer, o ponto de inflexão da DN, e sua diferença em relação aos
outros projetos de filosofia na contemporaneidade que se voltam para o nâo-idêntico, é que este movimento
se realiza ainda pela da via do conceito. Isso significa que a dialética negativa não abre mão do processo de
determinação ou interpretação do mundo, mesmo que, no caso de voltar-se para a não-identidade, ela alcance
apenas o que é denominado de “determinação aberta dos momentos particulares” (DN, p. 29).
Gostaríamos neste trabalho de promover uma discussão mais propriamente epistemológica a respeito da
constituição do conceito dentro da experiência filosófica da dialética negativa, no sentido de compreender
como ela seria capaz de cumprir a tarefa que lhe compete, a saber, de abrir o não-conceitual, sem equipará-lo
ou submetê-lo à identificação. Para tanto, nos detemos na segunda parte da obra voltada aos ‘conceitos e
categorias’ da dialética negativa, justificando a tendência de nossa argumentação a interpretá-la no limite de
sua positividade, isto é, enquanto proposição sobre a tarefa e a natureza do conhecimento da filosofia, a partir
da reconfiguração ou, como Adorno denomina, alteração qualitativa (DN, p.8) das categorias do Idealismo.
Nossa intenção é a de compreender como Adorno coloca nos termos tradicionais da relação entre mediação e
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imediatidade o desafio de conjugar identidade e não-identidade no processo cognitivo de determinação do
objeto.
Inicialmente, então, abordaremos a reformulação da noção de experiência intelectual ou espiritual (geistige
Erfahrung) muitas vezes equiparada à noção específica de experiência filosófica que, num movimento de
‘entrega ao objeto’, submete o momento ativo de determinação a um momento passivo e mimético de
observação. Nos termos da teoria do conhecimento, isto representaria a reconfiguração da relação entre
conceito e intuição em uma intermediação constitutiva e dialética, em que um corrige e complementa o outro.
Por um lado, a intuição é desmentida pelo conceito quanto à falsidade de sua aparência simples, que expõe o
objeto apenas em sua configuração presente, como que escondendo (e iludindo) a constituição do objeto em
sua complexidade histórica e temporal. Por outro, o conceito é corrigido pela intuição quanto à falsidade da
identificação que apenas reproduz aquelas determinações universais já (pré)estabelecidas socialmente,
colocando o sujeito numa relação imediata que abre espaço para a percepção do objeto em sua singularidade
e, em especial, diversidade.
A partir daí, seria possível analisar os desdobramentos ou consequências deste modelo de constituição do
conceito sobre a natureza do conhecimento filosófico, em especial, quanto a sua condição temporal e material.
Para Adorno, tomar a imediatidade como momento do conhecimento significa para a experiência
espiritual/intelectual/filosófica abrir a possibilidade de aproximação do pensamento em relação à nãoidentidade. Em última instância, a possibilidade de mediação do imediato sustentaria a constituição do
conceito em função de algo que é estrangeiro/outro/não-idêntico. Através dessa abertura ao diverso,
encontramos a possibilidade de a experiência espiritual realizar, dentro da conceituação, uma posição ou
atitude materialista que Adorno denomina de ‘primado do objeto’. Neste processo que corresponderia a uma
atualização ou presentificação do conceito é que Adorno justifica a possibilidade de um conhecimento
filosófico que não é mais Sistema, que não é mais fechado, estático e tautológico.
Gostaríamos, então, de delinear a relação entre mediação e imediatidade na Dialética Negativa que, em última
instância, abre o horizonte de renovação da experiência de pensamento a partir da concretude do objeto. A
partir daí seria possível compreender a condição temporal da verdade, mais de uma vez afirmada por Adorno,
assim como seu próprio percurso intelectual, marcado por diferentes diagnósticos de tempo e modelos de
teoria crítica. A legitimidade e atualidade da filosofia estariam relacionadas, então, ao exercício do pensamento
filosófico como abertura e atualização, plasmado na forma aberta e dinâmica das constelações.
Palavras-chave: Adorno, Dialética Negativa, Mediação, Imediatidade, Experiência espiritual.
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Nome Completo: Mariana Rodrigues Festucci Ferreira
Instituição de Ensino: PUC-SP
Orientador: Raul Albino Pacheco
Título do Trabalho: Da Filosofia como mediadora para a (im)possível interlocução entre a Psicanálise e a Arte
Encetar uma interlocução entre a Arte e a Psicanálise não é algo fácil, uma vez que implica o risco de tomar as
partes envolvidas como mero objeto enquadrado, reduzido e portanto subjulgado, quando cada qual possui
suas especificidades e autonomia. Mesmo parecendo impossível estabelecer uma interlocução que não recaia
em uma objetificação, tanto artistas quanto psicanalistas já se lançaram nesta via, haja vista os trabalhos de
Sigmund Freud, Jacques Lacan e do movimento surrealista, só para citar alguns exemplos de empreitadas que
por vezes foram exitosas, outras vezes nem tanto. Justamente por isso é que esta comunicação se propõe a
recorrer à Filosofia como mediadora da interlocução entre Psicanálise e Arte.
Dada a dificuldade de estabelecer interlocuções, por que representantes de destaque da Psicanálise quanto da
Arte insistiram na empreitada? Para nos auxiliar nesta questão, nos voltamos para um fragmento do livro "Mito
de Sísifo" escrito por Camus (2013, p.43): "Talvez nunca tenham existido espíritos tão diferentes. Mas, apesar
disso, reconhecemos como idênticas às paisagens espirituais por onde transitam. Do mesmo modo, o grito que
culmina seu itinerário através de ciências tão diferentes [...]. Pode-se dizer que há um ambiente comum aos
espíritos que acabamos de recordar". No que saberes tão diferentes quanto a Psicanálise e a Arte podem
comungar, portanto? Através do real, para o qual tanto o furo em torno do qual as mais diversas obras criativas
se organizam através da sublimação quanto o furo no dito dos mais diversos analisandos aponta. Ocorre que o
real é impossível de ser simbolizado. Mas conforme nos lembra Safatle (2006, p.280) "O impossível é, na
verdade, um regime de negação no interior da clínica. Mesmo sendo "impossíveis", as categorias que estão
arroladas não estão excluídas do campo subjetivo de experiência e direção da cura. Elas só são impossíveis sob
a perspectiva reflexiva da consciência. O que nos explica por que tais categorias podem ser formalizadas, mas
não simbolizadas".
A partir da teoria e práxis psicanalítica sabemos que é impossível simbolizar o real, mas não é impossível
formalizá-lo. Boa parte do esforço de Jacques Lacan em seu ensino passou por isso. E não há campo do saber
que faça a formalização do impossível com mais maestria do que a Arte. Disso já sabia Freud ao assinalar que
no lugar onde o psicanalista tentava chegar, o artista já havia estado muito antes. Assim é que, em matéria do
impossível, a Psicanálise tem muito a aprender com a Arte, e todos os esforços dos psicanalistas nesta direção
são louváveis.
O desafio, entretanto, permanece. Como pensar uma interlocução entre saberes tão peculiares em torno do
"impossível"? É neste momento que julgamos essencial recorrer a via da inestética proposta pelo filósofo
Badiou (2002) como um modelo de bom diálogo.
De acordo com Badiou (2002) se o conhecimento psicanalítico é aplicado à Arte, tomando-a como objeto,
estabelece-se uma relação na qual apenas a Psicanálise sai ganhando – a última apodera-se gratuitamente do
que é fornecido pela primeira. Tal procedimento não lhe parece apropriado, pois a Arte, que por si mesma
descortina verdades, não pode ser reduzida a um mero objeto. Badiou postula então a “inestética” como
modelo para o diálogo com as Artes, diálogo que parte da sua área de conhecimento (a Filosofia) em direção às
Artes, visando descrever “os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de
algumas obras de Arte” (p. 9); tal modelo, a seu ver, se opõe a qualquer objetificação ou reflexão puramente
estética.
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Para exemplificar a tensão entre conhecimento e Arte, Badiou (2002, p.11) recorre a uma “matriz analógica de
sentido” – a relação entre o “mestre e a histérica” tal como é descrita por Lacan: a histérica ao falar faz deslizar
por sua boca uma verdade e supõe que o mestre detenha um saber a respeito dela, por isso o desafia a lhe dar
um parecer. Por mais perspicaz que seja o parecer do mestre, para a histérica ele não passa de uma frágil
aproximação, o que a deixa profundamente insatisfeita ao mesmo tempo em que a faz pôr em xeque a posição
do mestre.
Tal como a histérica se mostra ao mestre a Arte se exibe ao pensador, instigando-o ao mesmo tempo em que
está em constante mutação, fazendo-se sempre inapreensível, o que não deixa outra saída ao pensador a não
ser reconhecer a própria impotência:
Ou [ele] dirá aos jovens, seus discípulos, que o cerne de qualquer educação viril da razão é manter-se afastado
da Criatura, ou acabará por conceber que só ela, esse brilho opaco do qual só podemos ser cativos, nos ensine
sobre o viés por onde a verdade comanda que o saber seja produzido (Badiou, 2002, p.11-2).
Badiou considera a Arte como um “procedimento de verdade”, ou seja, como aquilo que acende ao real,
concepção que muito se aproxima ao que Lacan enuncia no texto “Lituraterra”, escrito em 1971: Lituraterra,
litura na terra, fenda para o real. O real não pode ser enlaçado por discursos acabados, sejam eles científicos
políticos ou amorosos. A Arte, por esta abertura singular para o real, é irredutível a qualquer conhecimento;
não há palavra capaz de capturá-la em totalidade, bem como não há palavra que seja capaz de revelar uma
verdade última. Já o dizia Lacan em Televisão (1973/2003): “sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la
toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível,
inclusive, que a verdade tem a ver com o real” (p.508).
Uma vez que a Arte não pode ser reduzida pelos outros campos de conhecimento, ou seja, por qualquer
categoria fragmentada de verdade, de que forma pode então a Arte nos transmitir algo? Badiou (2002)
responde de maneira precisa: “a coisa pela qual a Arte educa é simplesmente a sua existência. Trata-se apenas
de encontrar essa existência” (p.21), ou seja, de tomar contato com ela, e para tal, tanto a Psicanálise, a
Filosofia ou quaisquer outras ciências podem servir apenas de “alcoviteiras” – instigarem um encontro, nunca
pretendendo fazer uma “mostração completa”, o que corromperia o mistério. É de Mallarmé a crítica ao
movimento dos poetas parnasianos que pretendiam tudo enquadrarem com suas combinações de palavras.
Mallarmé, observa Badiou (2002), “funda uma ética do mistério que é o respeito, pelo poder de uma verdade,
de seu ponto de impotência” (p.38), ponto que não é assimilado pelas ciências em geral. A esse respeito diz
Lacan no texto Lituraterra (1971/2003): “Quando invoco as Luzes, é por demonstrar onde ela faz furo. Já se
sabe há muito: nada é mais importante na óptica, e a mais recente física do fóton mune-se disso” (p.17).
Quando Lacan alude às luzes científicas o faz justamente para evidenciar o que elas deixam descoberto.
É de suma importância que, para além do estabelecimento forçoso de relações ente os dois campos, tente-se
ao menos marcar algo que ambos exploram de modos distintos. O sujeito está no centro da Arte, seja
enquanto artista ou espectador, assim como está no centro da Psicanálise. Ao sujeito cabem desejos, angústia
e a submissão ao inconsciente, bem como lhe ocorre ocasiões em que é assaltado por um estranhamento que
desaloja o eu de seu frágil núcleo identificatório; ao sujeito desvanecente pode lhe restar apenas o grito. Tal
grito a todo o momento emerge tanto da Arte quanto da Psicanálise. E é do "grito" e do "emissor" desse grito
que o mais ancestral dos saberes primordialmente se ocupou. Assim, julgamos impossível pensar na
(im)possível interlocução entre a Arte e a Psicanálise sem recorrer à Filosofia.
Palavras-chave: Filosofia, Arte, Psicanálise.
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Nome: Mario Antunes Marino
Instituição de Ensino: USP
Orientadora: Silvana de Souza Ramos
Título: As lutas da atualidade de Michel Foucault e a noção de contraconduta
Pretendemos argumentar que o tema da contraconduta passa, a partir de 1978, a ser central nas elaborações
de Foucault, pois a abertura da grade analítica do governo compreendido com condução de condutas não é
dissociada da questão: “como não ser governado?”. Em seguida, procuramos aproximar o tema contraconduta
das lutas políticas da atualidade de Foucault no Ocidente – onde prevalecem os governos democráticos liberais
e neoliberais – visando a questão: quais formas essa vontade de não ser governado assume na atualidade?
A partir dos anos 1970, Foucault trata suas elaborações teóricas como uma forma de intervenção política,
como uma prática empenhada nas lutas concretas da sua atualidade. Nesta década, foi intensa a sua militância
política em diversas questões políticas da sua atualidade (sistema prisional, direitos dos indivíduos, justiça
penal etc).
Foucault procurou destacar seu pensamento acerca do poder das correntes hegemônicas nesta época. À
direita, ele diz, o problema do poder é colocado sobretudo em termos de soberania e de constituição,
prevalecendo, portanto, um modelo “jurídico”. À esquerda, a questão do aparato do Estado, das suas
instituições e da reprodução da ideologia , tende à identificação entre teoria política e teoria do Estado. Em
ambos os casos, pratica-se um “economismo” na teoria do poder: à direita, o poder é considerado um direito
do qual se seria possuidor, como um bem que se poderia transferir, ceder ou alienar por meio de um pacto ou
contrato. À esquerda, trata-se da “funcionalidade econômica do poder”, na medida em que o papel essencial
do poder seria o de manter e reproduzir as relações de produção e reconduzir no poder uma classe cuja
dominação advém do desenvolvimento das forças produtivas . Segundo Foucault, o debate entre essas duas
correntes é restrito aos temas globais e não se preocupa com as formas como se exerce o poder no seu
detalhe, em sua especificidade, técnicas e táticas.
É notável que um pensador que costuma ser incluído no rol dos “filósofos” tenha resistido em elaborar teorias
gerais sobre o poder. Pode-se argumentar que a sua produção na década de 1970 é fortemente marcada pelo
desenrolar dos embates políticos. De fato, Foucault não hesita em afirmar que a ausência de uma tal teorização
se deveu ao cenário político de então , caracterizado, por um lado, pelo refluxo das lutas após o Maio de 68,
que implicou no refluxo de concepções do poder como enfrentamento e, por outro lado, o 68 propiciou uma
“abertura política” a uma série de temas (feminismo, gênero, anti-psiquiatria etc) até então ausentes da
agenda política da esquerda marxista tradicional , que os mantinha fora do grande debate político e
institucional . A partir desses temas, a questão do poder é recolocada em termos de lutas e resistência: “Só se
pode começar a fazer este trabalho depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e realizadas na base
com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais finas da rede do poder. Foi aí que apareceu a
concretude do poder e ao mesmo tempo a fecundidade possível dessas análises do poder” .
É neste campo em rápida transformação que Foucault elabora a sua crítica ao poder. No seu trabalho de
pesquisa no Collège de France, ele “testa” diversas hipóteses e faz elaborações que eventualmente serão
abandonadas em proveito de outras mais apropriadas para o tipo de intervenção que tem em mente.
Nesta época seu trabalho acerca do poder passa por diversas reformulações que podemos esquematizar assim:
entre 1973 e 1975 prevalece a forma “polêmico-guerreira” do modelo do poder como enfrentamento,
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elaboração que ele abandona em 1976 em proveito dos temas do biopoder, das lutas políticas e do governo. A
partir de 1978, sua pesquisa se desloca para a formação da razão política no Ocidente a partir do século XVI até
a atualidade. Doravante, o tema do poder será pensado em torno do tema do governo, tomado num sentido
amplo: governo de si, governo da casa e dos filhos, governo das almas pelo pastor religioso, governo do Estado
pelo príncipe e governo da população pelo Estado. “Como quer que seja”, diz Foucault, “através de todos esses
sentidos, há algo que aparece claramente: nunca se governa um Estado, nunca se governa um território, nunca
se governa uma estrutura política. Quem é governado são sempre pessoas, são homens, são indivíduos ou
coletividades” . Desloca-se de uma concepção do poder como enfrentamento para a condução de condutas, ou
seja, como modo de estruturar o campo de ações dos outros, diverso da violência e da imposição pela lei. Esta
pesquisa de Foucault entende que a chave conceitual do governo é correlativa à racionalidade política da sua
atualidade, caracterizada, no Ocidente, por democracias liberais capitalistas.
Ora, o desenvolvimento desta forma “governamental” de poder não pode ser dissociado, diz Foucault, da
questão: “como não ser governado?”. Como não sermos governados desta forma, por estes indivíduos, visando
tais fins? Como não ser tão governado? Como opor limites ao governante? Como opor à autoridade da Igreja
outra interpretação da Escritura, como opor às leis do príncipe o direito natural, como opor à verdade de uma
autoridade aquela ditada pela razão? Como opor a um discurso unitário um conjunto de perspectivas?
Portanto, de um lado, uma questão geral do governo e da condução das condutas, de outro, como correlativo
sempre presente, a resistência e a contraconduta. A partir deste desenvolvimento, a chave conceitual do
biopoder, as elaborações feitas anteriormente por Foucault acerca da anátomo-política dos corpos dóceis e
úteis e da biopolítica – gestão calculada de grupos humanos tomados como uma população de seres viventes –
é recolocada em termos de governo. A chave polêmica, por sua vez, se desloca para o tema da contraconduta.
Palavras-chave: Foucault, contraconduta, política contemporânea, neoliberalismo
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Nome: Miguel Ivân Mendonça Carneiro
Instituição de Ensino: UnB
Orientador: Alex Calheiros
Título: Filosofia do século XX: política e felicidade a partir da hibridração entre utopia e história no pensamento
de Remo Bodei
O presente artigo versa sobre a relação entre felicidade e política no pensamento de Remo Bodei a partir da
leitura de sua obra A Política e a Felicidade, publicada em Roma (1997) em coautoria com Luigi Franco
Pizzolato. Remo Bodei parte da constatação de que a contemporaneidade encerra um ciclo bicentenário em
que se atribuía à política uma função salvífica capaz de tutelar a felicidade no curso da história. A problemática
filosófica fundamenta-se em interpelar quais as consequências do enredo entre história e utopia, denominado
por Remo Bodei de “hibridação”, configurada em quatro etapas: 1) a perfeição desloca-se da noção de
“espaço” para a noção de “futuro”; 2) suspensão das posições filosóficas e religiosas tradicionais mediante a
argumentação de Jean-Jacques Rousseau; 3) eliminação, se necessário pelo uso da força, das injustiças
cometidas pelos Estados; 4) releitura do pensamento Karl Marx, para quem a atividade revolucionária é o
“acontecer do inevitável”.
A problemática sobre política e felicidade é um dos principais temas da investigação filosófica de Remo Bodei,
segundo o qual não se pode separar razão e paixão como realidades vividas extrínsecas e independentes da
experiência e da sensibilidade humanas ao mesmo tempo em que não se a vive (a felicidade) ao próprio alvitre,
a partir de um mero imperativo “seja feliz!”. Felicidade é um projeto simultaneamente antropológico e político
ao modelo aristotélico do zoon politikon, de um irremediável destino do Homem configurado por sua natureza
(physei) de ser vivo (zoon) cuja realização ocorre em comunidade (polis). Entende-se que o espaço da
realização da felicidade é o espaço da própria história cuja “unidade” – ou campo de convergência – é
assegurado pelo o agir político (engajamento). É a política que realiza a tendência da história de “isentar” a
sociedade dos óbices da sua infelicidade (miséria, exploração e violência). O debate proposto por Remo Bodei
envolve tanto a exequibilidade simultânea da organização política (Estado) quanto a realização da felicidade no
plano personalíssimo do sujeito, pois o projeto coletivo da política perdeu o estatuto de garantidor da vida
feliz. Para Bodei, a felicidade ultrapassa a perspectiva subjetiva e exige uma cooperação pública e política.
O objetivo do presente artigo é demonstrar ser o desafio intelectual da contemporaneidade aquele de
redirecionar o sentido da vida pública diante o cenário da perda da esperança sobre a perspectiva de uma
sociedade futura porque a ética do sacrifício ou religiosa foram sucumbidas pelo princípio do consumo e do
fetiche da mercadoria. Portanto, urge reelaborar novos sentidos para os princípios de desejo (paixão futura) e
sentimento (paixão domesticada).
O caminho adotado pautou-se na argumentação metodológica proposta por Hans-Georg Gadamer em Verdade
e método (1999) acerca do médium, segundo o qual “o caso da tradução nos faz conscientes da linguisticidade
como o médium do acordo, através do fato de que este meio tem de ser produzido artificialmente através de
uma mediação expressa” (1999, p. 560) no esforço de não apartar-se das motivações originárias defendidas por
Remo Bodei. Aplicou-se a escala da “escuta” e da “fala” do autor dos originais através da sequência
metodológica “leitura”, “explicação”, “comentário” e “dissertação” da fonte primária La Politica e la Felicità
(Edizioni Lavoro Roma, 1997) e da versão brasileira traduzida por Antônio Angonese (Bauro/SP, Edusc, 2000) A
Política e a Felicidade. Em consonância com Gadamer, “tudo isso, que caracteriza a situação do pôr-se de
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acordo na conversação toma sua versão propriamente hermenêutica, onde se trata de compreender textos”
(1999, p. 562).
O século XX encerra um ciclo bicentenário que atribuía à política uma função salvífica capaz de assegurar aos
povos e às classes sociais a realização da felicidade através da inserção da atividade política na história. Tratase de entender a felicidade enquanto utopias de cuja perfeição era inalcançável.
Bodei utiliza a expressão “virada” para designar a hibridação entre utopia e história ocorrida a partir da
segunda metade do século XVIII, em quatro etapas: primeira é a época do romance ucrônico O ano 2440, de
Louis Sébastien Mercier, quando a ideia de perfeição é deslocada do “espaço” para o “tempo”, ou seja,
“futuro”. Quais as consequências desse deslocamento? Para Remo Bodei, implica em aceitar que a utopia entre
na história e essa se torne o espaço de tempo entre o perfeito do amanhã e o precário de hoje, possibilitando a
conscientização humana de tornar exequível o impossível (adynaton), a utopia por definição; segunda etapa
advém da sentença de Jean-Jacques Rousseau do bom selvagem, a partir da qual fica declarada a
responsabilidade das instituições políticas sobre a precariedade da vida coletiva. Mas, se a natureza humana é
boa, qual é a tarefa da história? Terceira etapa consiste no desdobramento das consequências em se aceitar as
instituições como as responsáveis pela corrupção dos homens: a injustiça do Estado. Cabe, portanto, eliminar
tal injustiça, nem que para isso da força se utilize. A quarta etapa é representada pela concepção marxista da
atividade revolucionária, inevitável na história, pois, defende Bodei, caberá a política eliminar os óbices
impeditivos da felicidade (miséria, exploração, violência).
Qual é a crise filosófica política contemporânea? Para responder essa questão Bodei afirma que a crise atual
não é das ideologias ou das filosofias da história e sim da aliança entre história e utopia, firmada na segunda
metade do século XVIII. O cenário contemporâneo proveniente da problemática sobre a felicidade aponta,
segundo Bodei, para duas possibilidades: primeiro, a derrota do projeto moderno de uma história imanente –
proposta pelos “fundamentalistas”; segundo, do mundo “pós-moderno” que registra o fim das “ilusões
emancipatórias”.
Diante a descrença da política como instrumento realizador i.ou facilitador da felicidade, o cidadão necessita
produzir novos caminhos para alcançá-la. O nous é conduzido sob duas estratégias cognoscíveis:
primeiramente Bodei destaca a perda da confiança no poder salvífica da política (2000, p. 46); segundo, não
replicar a técnica de apartar os condicionamentos históricos do real; em oposição à primeira estratégia, a
segunda estratégia levou os homens à intensificarem seus relacionamentos (pathos) nos prazeres e satisfações
da vida presente, exatamente por admiti-la em sua contingência e finitude, inaugurando a era dos desejos
como árbitro.
Ambas as estratégias são apontadas por Remo Bodei como fuga da política. Nesse sentido, só o indivíduo pode
aceder à felicidade. Eis, portanto, o declínio do projeto político coletivo cujo resultado se aproxima mais de
uma vida angustiante e injustiçada do que a realização da felicidade como coisa em si.
Através da literatura de Émile Zola - aqui representando toda espécie de incentivo ao consumo - Remo Bodei
analisa que o consumismo fora assimilado pelo imaginário coletivo da sociedade europeia a partir de 1883 e a
felicidade fora concentrada em prateleiras estrategicamente montadas para convencer o público das
vantagens em adquirir o produto, alimentando as pseudos-necessidades e pseudos-prazeres em mecanismos
de divulgação suficientemente capazes de não superar a tentation de la porte, precursora da sociedade
classificada em classes de consumidores. A capacidade do Homem pelo thauma sobre os princípios
gnosiológicos fora sucumbida pela doxa fundada na sedução consumista e oligofrênica dos targetgroups. Bodei
(2000, p. 75) nomeia de democratização do luxo e máquinas distribuidoras da felicidade. O consumismo, e não
apenas a mercadoria em si, torna-se capaz de instaurar o medo na esperança do futuro e no eterno. Diante o
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consumo imediato, qual projeto ético sobreveria ao princípio do sacrifício presente em vista de um futuro do
qual o sujeito sacrificado não integrará?
Para concluirmos, destacamos que o pensamento filosófico de Remo Bodei procura explicar a
contemporaneidade e suas circunstâncias sobre o elo político-felicidade a partir de uma arqueologia filosófica
do Homem e seu vínculo com a História. O século XX representa, de acordo com a análise aqui proposta, um
fechamento de um ciclo bicentenário. No interstício temporal entre os séculos XVIII e XX, a política fora
revestida de uma função salvífica que, na pós-modernidade, é falida enquanto arquétipo de felicidade: fechase o ciclo das utopias anunciadoras do ideário de felicidade. Já no século XVIII utopia e história, agora híbridas,
“humanizam” e “territorializam” a perfeição e a felicidade, tornando-as exequíveis na história do mundo qui ed
ora porque a utopia entra na história e a história assume o espaço de tempo entre a perfectibilidade do
amanhã e a precariedade de hoje. Portanto, a crise da contemporaneidade é a crise da aliança do século XVIII
entre História e utopia, cujo discurso político está desautorizado a se pronunciar com portador de felicidade.
Por fim, Remo Bodei propõe resignificar a aproximação filosófica entre desejo e sentimento, pois a felicidade
não chega por encomenda, não pertence à exatidão da razão, não é conjugada no imperativo nem pode ser
sucumbida pelo pathos porque viver é vier por completo. Não se vive feliz em leprosário. Eis, portanto, o
vínculo e a subordinação entre política e felicidade: agir personalíssimo (crítico e dotado de paixão) no espaço
público do locus civis (de regras e pactos político-normativos) construídos a partir da paixão do sujeito. Sem
nenhum prejuízo hermenêutico, felicidade é engajar-se! Pode-se afirmar que a proposta de Remo Bodei é
sustentar que a felicidade não se realiza através da fuga da política nem da história, mas sim do engajamento
do sujeito nas heterogêneas dimensões público e privado.
Palavras-chave: Filosofia do século XX. Política. Remo Bodei.
Referências:
BODEI, Remo; PIZZOLATO, Luigi Franco. A política e a felicidade. Tradução de Antônio Angonese. Bauru, SP:
Edusc, 2000.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
MELO, Marina Félix de. Hermenêutica e dialéctica: Gadamer e Habermas na metodologia das Ciências Sociais,
Revista Angolana de Sociologia [Online], 10 | 2012, posto online no dia 20 Novembro 2013, consultado no dia
28 Julho 2015. URL: http://ras.revues.org/172 ; DOI: 10.4000/ras.172.
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Nome: Paula Bettani Mendes de Jesus
Instituição: USP
Orientadora: Tessa Moura Lacerda
Título: O mal do século: como pensar a depressão (melancolia) a partir de Espinosa
O objetivo dessa comunicação é apresentar a maneira pela qual Espinosa entendeu aquela que, nos tempos de
hoje, é denominada como a doença, ou melhor, o mal do século, a saber, a depressão. Segundo dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é a quarta maior patologia que afeta a humanidade, e
dentro de aproximadamente 20 anos, há a probabilidade de que venha a se tornar a segunda maior patologia.
Nem sempre, no entanto, ela fora vista como uma doença. Embora atualmente seja cada vez mais discutido – o
que não significa que esteja absolutamente claro e esgotado –, o tema da depressão não é algo novo. Desde há
muitos séculos, este é um problema que perpassa os discursos filosóficos sob as mais distintas abordagens,
todavia, através de um outro nome, melancolia. A adoção do termo depressão, pela psiquiatria somente se dá
a partir do século XIX, antes disso, na medicina, na filosofia etc., tratamos da melancolia, seu correspondente
primordial.
É bastante certo, e precisamos fazer essa consideração, que pela diferença tanto de época, quanto de
pensamento, Espinosa apresenta uma visão da melancolia em vários aspectos distinta do que hoje entendemos
como depressão. Porém, ainda assim julgamos que não deixa de ser uma interpretação e, uma contribuição
importante para as discussões em torno desse tema. Sendo que, apesar das diferenças, supomos que seja
possível estabelecer algumas relações. Atualmente, por exemplo, a medicina do comportamento demonstrou
que há um vínculo estreito entre a saúde do corpo e a saúde da mente, de maneira que, mesmo entendendo a
depressão como uma doença mental, seu tratamento não se restringe apenas a psicoterapias, mas também ao
uso de antidepressivos, a prática de exercícios físicos, um melhor estilo de vida etc..
Como mostra o relatório da OMS “reconhece-se hoje em dia que os pensamentos, os sentimentos e o
comportamento exercem significativo impacto na saúde física. Da mesma forma, reconhece-se que a saúde
física exerce considerável influência sobre a saúde e o bem-estar mental”. Esse não deixa de ser o pensamento
que quatro séculos atrás Espinosa defendera, ao afirmar, na Ética que corpo e mente são uma só e mesma
coisa, e que, por conseguinte, o que acontece em um, acontece no outro. O que significa dizer que não
podemos ter uma mente ativa com o corpo passivo, nem tampouco um corpo ativo com uma mente passiva.
Ou ainda, em outras palavras, ter um corpo doente e uma mente sã, ou uma mente doente e um corpo são.
Antes de Espinosa, no entanto, há já toda uma tradição de discussão a respeito da melancolia, tradição com a
qual em vários aspectos ele irrompe. Até Galeno, perpassando por Hipócrates e Aristóteles, a melancolia fora
vista como um temperamento natural, relacionado, sobretudo aos homens de caráter excepcional, isto é,
aqueles homens voltados para as artes, a filosofia, a política etc. Tanto assim que no Problema XXX, 1,
Aristóteles questiona o por quê de os homens considerados excepcionais serem melancólicos. É somente a
partir de Galeno que a melancolia passa a ser de fato compreendida como uma patologia, tal como hoje a
entendemos – embora no período romântico, o sentido aristotélico de melancolia volte a ser resgatado.
Sustentando a teoria humoral apresentada por Hipócrates, Galeno afirma que a melancolia é uma doença
decorrente do desequilíbrio entre os quatro humores, mais especificamente diz que ela resulta da inundação
do cérebro pela bílis negra. A noção galênica da melancolia como uma doença, parece ser apropriada pelo
cristianismo, o qual conferindo a ela uma concepção de ordem religiosa a associa à noção de acedia, um
pecado caracterizado pela tristeza, preguiça, falta de ânimo, de esperança com as coisas espirituais etc.
136
De maneira geral são essas noções que chegam até o século XVII e é diante delas que posicionamos o
pensamento de Espinosa. Para ele a melancolia não é o estado criativo dos românticos; não é uma patologia da
alma, uma vez que afeta a totalidade do indivíduo, isto é, mente e corpo; não é um pecado, não é uma
possessão demoníaca e, por fim, não é uma tristeza de cunho existencial. O que é, portanto, a melancolia para
Espinosa? Para respondermos essa questão é preciso salientar, sobretudo que o filósofo holandês pensa a
dinâmica da vida afetiva através da noção de variação ou, graus de potência. Neste sentido, por alegria
compreende o aumento da potência, ou o que é o mesmo, a passagem de uma perfeição menor a uma
perfeição maior e, por tristeza, por sua vez, a diminuição da potência, isto é, passagem de uma maior a uma
menor perfeição. A melancolia será totalmente o oposto, isto é, um estado de tristeza profunda em que a
potência do indivíduo fica estagnada. Sua definição se segue às definições de alegria e tristeza, Espinosa diz:
Além disso, chamo o afeto da alegria, quando está referido simultaneamente à mente e ao corpo, de excitação
ou contentamento; o da tristeza, em troca, chamo de dor ou melancolia. Deve-se observar, entretanto, que a
excitação e a dor estão referidas ao homem quando uma de suas partes é mais afetada do que as restantes; o
contentamento e a melancolia, por outro lado, quando todas as suas partes são igualmente afetadas.
Enfim, é sobretudo a partir dessa definição, e da compreensão da melancolia como um “fenômeno total”, que
pretendemos pensar o que hoje entendemos por depressão.
Palavras chave: Depressão, afetos, melancolia, tristeza, Espinosa.
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Nome: Pedro Clemente Bessa Prado Lippmann
Instituição de Ensino: ENS-Paris/Paris IV
Orientadores: Francis Wolff e Stéphane Chauvier
Título do Trabalho: A articulação entre justiça e responsabilidade face ao problema ético da pobreza global:
uma análise crítica das contribuições de Thomas Pogge e de Iris Marion Young
Neste trabalho, pretendo inicialmente mostrar que algumas das transformações sociais mais importantes das
últimas décadas, marcadas por uma intensificação do fenômeno da globalização, têm colocado em xeque os
pressupostos de concepções morais e políticas comuns e dado ensejo à uma atualização dos conceitos de
justiça e de responsabilidade. Em seguida, ao tratar dos problemas morais urgentes suscitados pela pobreza
global, tematizo a relação entre os conceitos de justiça e de responsabilidade sob o prisma das contribuições
teóricas recentes de Thomas Pogge e de Iris Marion Young, que implicam uma expansão do escopo da justiça
socioeconômica e uma compreensão estendida da noção de responsabilidade. Na parte final de minha análise,
analiso os méritos e as dificuldades relativas a essas contribuições, e assinalo a importância de futuras
elaborações.
Por « atualização » designo o processo de interação entre teorização filosófica e pratica social que resulta em
uma alteração da definição de um conceito ou em uma modificação de seu escopo. Tal alteração é
caracterizada pelas novas relações que modificam a posição ou papel que um conceito ocupa em uma teoria e
pelos novos usos que lhe são atribuídos na linguagem ordinária.
No que tange ao conceito de responsabilidade, o processo de atualização tem implicado uma deriva e uma
abertura semânticas. As novas acepções tendem a distanciar o conceito de responsabilidade de seu emprego
tradicional, fortemente atrelado às práticas jurídicas que visam a imputar a um agente individual os resultados
de uma infração à uma norma. A noção tradicional de responsabilidade pressupõe uma concepção limitada da
escala das interações humanas. Tal visão subordina a análise das relações causais entre o agente e os efeitos de
suas ações à uma lógica de proximidade espacial e temporal, desconsidera os efeitos negativos que se resultam
da agregação das contribuições não-intencionais dos agentes, e passa ao largo dos efeitos que resultam das
ações de agentes coletivos.
O enfoque individual e retrospectivo da responsabilidade, tributário da sua dimensão forense, tende a se
deslocar progressivamente em direção à um enfoque coletivo e prospectivo. A abertura semântica se
caracteriza por uma inflação do conceito, que passa a adquirir as conotações usualmente atribuídas às
categorias de dever ou de obrigação, e por vezes de virtude, ou mesmo de princípio ético universal.
Por sua vez, o conceito de justiça tem passado por uma alteração de seu escopo, que atinge sobretudo a
dimensão da justiça distributiva. Esta tende a se desvincular do modelo de uma polis autônoma, cujos limites
coincidem grosso modo com os das comunidades políticas nacionais, e passa contemplar o ideal de uma polis
estendida, ou de uma “cosmópolis” cujos horizontes podem ser capazes de abarcar as pessoas de todo o
planeta,
O processo de atualização dos conceitos de responsabilidade e de justiça pressupõem o legado de filósofos
eminentes.
A abertura semântica encontra na principal obra de Hans Jonas « O princípio responsabilidade » uma de suas
origens, e o distanciamento das novas concepções de responsabilidade do paradigma jurídico tradicional
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podem ser associados, inter alia, às reflexões políticas de Hannah Arendt no campo da responsabilidade
coletiva.
No campo específico da justiça distributiva, a obra de John Rawls definiu o pano de fundo teórico que
influenciou o debate sobre as fronteiras da justiça durante as décadas subsequentes. Sua teoria considera a
sociedade de maneira independente ou isolada de outras possíveis sociedades, e endossa em grande medida o
postulado de que cada sociedade é uma unidade autossuficiente. Como os princípios de justiça social de Rawls
se aplicam à estrutura básica da sociedade e como esta última é limitada pelas fronteiras de cada Estadonação, a justiça distributiva é uma questão em última instância doméstica ou interna.
No entanto, a crescente complexidade das interações socioeconômicas, a progressiva interdependência
econômica entre as diversas regiões do globo, as revoluções das telecomunicações, a erosão da capacidade dos
Estados de exercer um controle soberano sobre os seus próprios territórios, e outros tantos fatores ligados à
globalização tem tornado o postulado de autossuficiência, de independência ou de isolamento cada vez menos
plausível. Esse reconhecimento motivou uma série de reflexões sobre a possibilidade de estender a noção de
justiça socioeconômica para além das fronteiras nacionais.
Diante de um cenário de crescente interconexão e de interação entre as pessoas e as instituições de diversas
regiões do mundo, os problemas morais assumem uma dimensão cada vez mais global. Sob essa ética, a
pobreza extrema a que estão submetidas milhões de pessoas de todo o mundo não mais é reduzida ao simples
produto de causas locais, submetidas ao controle de autoridades locais ou nacionais, mas resulta de uma
interação entre uma pluralidade de fatores que ultrapassam as fronteiras e que se ligam a ações de indivíduos
e de instituições de diversas regiões do globo.
A ideia de que somos apenas responsáveis pelas consequências imediatas, diretas de nossas ações, ou de que
as obrigações relativas aos princípios de justiça socioeconômica se aplicam apenas à esfera doméstica se revela
em descompasso com os reais efeitos produzidos por nossas interações e pelo profundo grau de
interdependência econômica entre os diversos países do mundo.
Põe-se assim o desafio de modificar o escopo e o conteúdo dos conceitos de justiça e de responsabilidade, ou,
por assim dizer, de “atualizá-los”. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos recentes de Thomas Pogge e de Iris
Marion Young. Pogge denuncia a violação em larga escala de direitos humanos decorrente da imposição de
uma ordem global injusta às populações pobres do mundo. Como essa imposição deriva, em última instância,
da autoridade dos países mais favorecidos e das elites dos países pobres, Pogge apela às responsabilidades dos
indivíduos e dos representantes políticos de colaborar às iniciativas que visam a tornar a ordem global menos
injusta para as populações extremamente pobres. Young, por sua vez, propõe um modelo de conexão social,
que articula uma concepção política de responsabilidade à um enfoque institucional aplicado ao tratamento
das injustiças que resultam de processos estruturai, sejam eles locais ou globais. O modelo de conexão social
atribui a cada agente envolvido em um processo estrutural de que resultam injustiças a responsabilidade
política de se aliar aos demais agentes que contribuíram ao processo e de promover uma ação coletiva
coordenada que vise a transformar o processo estrutural.
As contribuições de Pogge e de Young são uma instância das atualizações dos conceitos de justiça e
responsabilidade. Porém, como mostrarei na parte final de minha análise, as teorizações de Pogge e Young não
são isentas de problemas e a atualização por elas promovida não supõe a resolução das tensões entre a esfera
social e as concepções éticas que lhe são aplicadas, o que dá ensejo a futuros esforços de elaboração teórica.
Palavras-chave: justiça, responsabilidade, pobreza global, diretos humanos, conexão social
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Nome: Pedro Ivan Moreira de Sampaio
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Alex de Campos Moura
Título: A teoria econômica marginalista: prolegômenos de uma episteme por vir
É provável que Armand Guillaumin tenha pintado seu “Ivry in snow” durante o inverno de 1873. A tela mostra
em seu primeiro plano uma das margens do rio Sena, pequenas embarcações e algumas poucas figuras
humanas, tudo num quadro que remete a uma manhã fria de inverno. A neve cobre toda a margem do rio,
deixando despontar apenas em alguns pontos um pouco do verde da relva. Apesar do título do quadro, a cena
não é propriamente da precipitação cobrindo a cidade, mas sim da manhã que a sucede, do início de um dia
escuro de inverno que permite ao espectador quase sentir o frio e a solidão das poucas pessoas ali
representadas.
Em contraste com a branquidão frígida deste primeiro plano da tela, é possível ver ao fundo, no canto direito
da paisagem, as longas chaminés das fábricas. Todas aparentemente já em funcionamento, expelindo sua
fumaça cuja negridão encontra abrigo na escuridão dos céus e semelhança nos trajes escuros dos solitários
transeuntes. Se a neve, presente no título da obra, nesta tela nos remete ao passado, à força da natureza da
noite anterior; já as pequenas chaminés da margem direita, apontam para o futuro, em um quadro onde o
progresso industrial não pode mais ser escondido pela neve que cobre de branco a relva verde.
Não é apenas nesta pintura e nem somente no trabalho de Guillaumin que é possível se deparar com esses
“detalhes” industriais que despontam de um primeiro plano bucólico. Em diversas telas do impressionismo
este fenômeno é perceptível. É como se no final do século XIX, este ambiente urbano-industrial, signo da
pujança econômica, pouco a pouco roubasse a cena. Observe-se também que não se trata de retratar em
detalhes uma fábrica, o meio industrial ou a situação precária de seus trabalhadores. Nestas pinturas do
impressionismo, quando este “detalhe” desponta, ele aparece quase sempre como um ponto no canto da tela,
algo que desvia o olhar do espectador, que o remete à certa ideia de “progresso” de “desenvolvimento
econômico”, mas sempre em sua generalidade, como um elemento inexorável que teimaria em aparecer até
mesmo quando o objeto primeiro do quadro lhe é avesso.
Esta breve comunicação se orientará então por estes signos que emergem no impressionismo, da pequena
nuvem escura no canto de uma paisagem campestre até a locomotiva a vapor pitada por Monet, invadindo a
cena na Gare de Saint-Lazare, representando a força da economia capaz de recolorir dos muros da cidade às
telas das galerias.
Deste modo, trabalho centrará seus esforços no estudo da teoria econômica contemporânea a estes artistas
impressionistas. Pretende-se abordar o período de alguns anos, de 1871 até 1874, momento de surgimento da
chamada escola marginalista de economia, tomando por referência primeiramente os escritos de Carl Menger ,
William Stanley Jevons e Léon Walras publicados nestes anos. A hipótese da qual se parte é de que neste
breve período, as obras destes autores refletiram uma significativa transformação no âmbito do pensamento
econômico e possivelmente para além dele.
O que se pretende então é caracterizar uma suposta transformação epistêmica a partir do estudo da
emergência da teoria marginalista econômica do final do século XIX. Tomar-se-á como referência condutora
desta reflexão como um todo a pesquisa sobre os neoliberalismos, empreendida pelo filósofo francês Michel
Foucault em 1978-1979, por ocasião de seu curso Naissance de la biopolitique, no Collège de France.
140
Para tentar apontar esta possível transformação epistêmica, pretende-se então extrair dos estudos dos
primeiros escritos marginalistas três “consequências” ou decorrências que acreditamos poderem ser indícios
da mudança de solo epistêmico referida. A partir então do estudo das teoria do valor marginalista em Menger
e Jevos e da teorização do equilíbrio geral do mercado em Walras, se pretende apontar, em primeiro lugar,
para uma mudança atinente à cientificidade do saber econômico; em seguida, para o surgimento do Mercado
enquanto uma entidade capaz de modificar o local até então ocupado pelo homem na produção da verdade, e
por fim, para uma transformação no papel desempenhado pelo tempo no saber econômico tendo como
consequência uma nova forma de experiência da temporalidade já em meados do século XX.
Trata-se assim de uma análise que pretende explicitar os prolegômenos da constituição de um modo de
pensar. Modo este que encontra seu apse, não nas telas do impressionismo, mas talvez no quadro do nosso
presente.
O que se pretende então esboçar aqui são as primeiras nuvens de fumaça escuras que aparecem nas margens
das pinturas impressionistas, os indícios de aproximação da locomotiva de Monet não em Saint-Lazare, mas no
nosso presente trazendo com sigo a experiência de um tempo futuro.
Palavras-chave: Economia Marginalista, Liberalismo, Episteme.
Referências :
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 2008.
_____________. Naissance de La Biopolitique: Coursa au Collège de France 1978-1979. Éditions
Seuil/Gallimard. Paris. 2004.
JEVONS, W. S. A Teoria da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas).
MENGER, C. Princípios de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas).
WALRAS, Léon. Compendio dos Elementos de Economia Política Pura. São Paulo: Abril Cultural. 1983. (Coleção
Os Economistas).
141
Nome: Priscila Aragão Zaninetti
Instituição de ensino: Ufscar
Orientador: José Eduardo Marques Baioni
Título: As histórias e o tempo na concepção voltairiana de história.
Em seu texto “Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento”,
Reinhart Koselleck trata da substituição do termo referente à história que sobrepôs ao termo francês Historie,
o termo alemão Geschichte. A substituição, no entanto, deve ser compreendida como uma etapa inserida em
um processo de transformações semânticas que pôde se desvencilhar do primeiro termo por combinar o
esvaziamento do seu sentido com o surgimento de um outro e, ainda, o gradativo intercâmbio entre os dois. A
Historie enquanto o relato dos fatos do passado com valor pragmático, passível de ensinar o homem do
presente com os feitos daqueles que o antecederam, estará circunscrita ao relato que se considera exemplar e,
assim, submetida à moral, à religião e à verdade. O surgimento da Geschichte concede certa autonomia a esse
âmbito do conhecimento humano, já que desvincula o acontecimento do passado de uma função pragmática e
o considera como um fato em si.
O topos da história como mestra da vida, nos diz Koselleck, durou cerca de dois mil anos e a sua longevidade
foi proporcionada pela variação das formulações que recebeu. A revolução histórica que pôs fim, no século
XVIII, a essa longevidade, foi ocasionada por mudanças nas condições que a sustentava. O processo de
temporalização da história em sua singularidade contribuiu para aquela revolução, na medida em que alterou a
concepção da relação do passado com o futuro e da experiência do presente que os compreende e organiza: a
história toma para si um tempo que lhe é próprio quando deixa de ser a reunião de relatos dispersos daquilo
que se considerava digno de repetição e, portanto, vinculados à duração da vida dos homens do poder, tanto
estatal, quanto religioso, ou ainda, vinculados à duração dos eventos naturais; e passa a ser o conjunto
complexo dos acontecimentos que têm no presente a sua convergência e realização. Sendo assim, a decisão
atual que constitui o futuro, se antes era condicionada pelo reconhecimento, no presente, de circunstâncias
que envolveram um determinado acontecimento do passado para que o ensinamento que dele foi formulado
seja aplicado; agora é o espaço da experiência humana que, sem tutela, abre-se para a imprevisibilidade do
que ainda está por se construir.
A reivindicação da separação entre a história e a história natural e sagrada é aquilo que compõe a definição do
verbete história na Enciclopédia de D’Alembert, verbete cujo autor é Voltaire. Além disso, a definição nos diz
também que “a história é o relato dos fatos dados como verdadeiros”. Comprometida com a verdade, a
história está atrelada à atividade do homem capaz de identificar os elementos fabulosos na história antiga e de
escrevê-la adequadamente daqui pra frente, isto é, de acordo com os preceitos racionais. Esse homem – o
historiador – se torna capaz de escrever a história do gênero humano e separá-la daquela que já foi feita, mas
que está impregnada pela mitologia e pelos preconceitos religiosos, porque se insere em um tempo específico,
tempo em que os avanços do conhecimento humano permitiriam a tomada de um posicionamento crítico em
relação ao passado envolto em trevas e ao futuro que, indeterminado, reserva a possibilidade de alastrar para
a humanidade a aurora da razão.
A atividade crítica que move o projeto iluminista de secularizar todos os âmbitos do conhecimento humano e
que se condensa no âmbito da história, para Voltaire, na figura do historiador; parece pressupor a
consideração da história como um todo interligado e dotado de ordem interna, consideração que se
aproximaria das formulações de Koselleck sobre a história como Geschichte. O outro pressuposto de tal projeto
142
e do qual falávamos anteriormente, a saber, o desenvolvimento de uma civilização que esteja combinado às
conquistas do desenvolvimento racional e que ainda deve se empenhar para o desvelamento do passado,
quando se debruça no âmbito da história, pretende que dela estejam excluídas as elaborações que são frutos
da fantasia e da ilusão. Esse comprometimento com a verdade, no entanto, está relacionado a uma função
pragmática que Voltaire parece manter na sua concepção de história, função que poderia ser identificada tanto
no verbete já citado, quanto ao longo da obra A filosofia da história, quando o filósofo afirma que uma história
circunscrita a relatos verdadeiros é condição para a boa educação dos príncipes, assim, a história ainda
sustentaria o passado como o compêndio dos exemplos a serem seguidos, o que aproximaria a concepção
voltairiana de história das formulações da história como Historie.
Nesse sentido, propomos que o objeto do nosso trabalho seja a investigação da legitimidade de uma hipótese:
a concepção voltairiana de história; submetida ao crivo da verdade e desenvolvida pela atividade crítica que
pretende separar dela a fábula, as construções da mitologia e da religião, conserva as resoluções da história
como mestra da vida, enquanto formula a reivindicação característica do século iluminista de autonomia para o
pensamento, autonomia e capacidade de generalização do discurso suficiente para que a história possa abarcar
o gênero humano como um todo; tal concepção, portanto, parece combinar em si o conceito de história
herdado pela tradição e aquele outro que ainda está sendo forjado na modernidade. A combinação desses dois
conceitos nos permitiria relacionar a concepção voltairiana de história com aquela transição semântica
apresentada por Koselleck, a gradativa sobreposição da história como Geschichte sobre a história como
Historie.
A particularidade do conceito de história em Voltaire foi apontada, inclusive, por Maria das Graças de Sousa em
sua obra Ilustração e História. Para a filósofa, da concepção antiga de história, Voltaire sustenta a visão cíclica
do tempo em que o aperfeiçoamento humano está organizado em grandes épocas, mas rejeita a idéia de
retorno delas; da concepção linear de história, sustenta a idéia de progresso, mas não a de que há um telos em
direção ao qual caminharia a humanidade.
Das argumentações desses dois autores, Koselleck e Maria das Graças, pretendemos ressaltar, sobretudo, que
em ambas a transição na concepção acerca da história parece se tornar possível quando ocorre uma alteração
na concepção do vínculo entre passado, presente e futuro que reserva a esse último a dor e o privilégio da
indeterminação. O futuro do século XVIII, sem tutor e sem a promessa da repetição de uma das grandes
épocas, é o tempo em que o aperfeiçoamento humano do passado converge para a realização da razão, porque
a atividade crítica distingue nele a verdade da ilusão. Porém, ainda assim, em Voltaire, não parece haver outras
garantias em relação ao futuro, além daquela que nos diz que ele é um tempo a se construir.
Enquanto filosofia do seu tempo, a obra de Voltaire parece expressar no âmbito intelectual as revoluções
ocorridas no seu momento histórico; considerando isso, o desenvolvimento da proposta do presente trabalho
seria percorrer a correspondência, o entrelaçamento entre os âmbitos semântico, intelectual e material: ao
identificar a mudança no conceito de história, estaríamos apontando para a reformulação do pensamento dos
homens e para as revoluções das coisas do mundo.
Palavras-chave: História, Iluminismo, tempo, Voltaire.
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Nome Completo: Ramon Taniguchi Piretti Brandão
Instituição de Ensino: Unifesp
Orientadora: Ana Lúcia de Freitas Teixeira
Título: Foucault e a invenção de si: uma existência estética como atitude de liberdade
No começo dos anos 80, o problema da ética – entendida como arte de viver – manifesta-se como um
problema vital na filosofia de Foucault. O cuidado de si – entendido como o conjunto das experiências e
técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo – constitui o plano de uma atitude
que permite ao indivíduo conduzir-se e dar forma à sua própria vida; tudo isso com o objetivo de fazer dela
uma obra de arte.
A ideia do bios como material de uma obra de arte estética é qualquer coisa que me fascina. Também a ideia
de que a moral pode ser uma estrutura muito forte da existência sem estar ligada a um sistema autoritário
nem jurídico em si, nem a uma estrutura de disciplina (FOUCAULT, 2001, p.1209).
A atenção de Foucault, portanto, se volta para as formas que o indivíduo pode dar à sua vida, sem que isso
implique em um sistema disciplinar normativo. Reconhecendo que não existe uma relação de inevitabilidade
entre a moral e as estruturas políticas, sociais e econômicas, mas apenas conjunções históricas, Foucault vê,
então, uma abertura à possibilidade de transformação de uma ordem até então definida como estado natural
da realidade. Neste contexto, a problemática de uma estilística da existência, isto é, o estudo das formas de
vida “pelas quais o homem se manifesta, se inventa, se esquece ou se nega na sua fatalidade de ser vivo e
mortal” (FOUCAULT, 2001, p.1467), torna-se uma dimensão fundamental da ética foucaultiana. A filosofia da
arte de viver e a fundamentação da ética num cuidado de si que se enraíza numa estética da existência prendese à fratura de uma concepção linear do sentido e da cronologia histórica, admitindo no movimento da história
“estas continuidades profundas que marcam, muitas vezes, silenciosamente, a sensibilidade e as atitudes de
toda uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p.1467) . Considerando que a ligação entre o acesso à verdade e a
elaboração de si por si é essencial no pensamento antigo e no pensamento estético, Foucault acredita ser
possível fazer a história da existência humana como arte e como estilo. Em outras palavras, “a existência é a
matéria primeira, a mais frágil da arte humana, mas é também o seu dado mais imediato” (FOUCAULT, 2001,
p.1449).
Sob essa perspectiva, a vida apresenta-se como beleza possível e o bios como obra bela. Ademais, a forma que
o sujeito se atribui ao constituir-se a si mesmo, o conceito de arte de viver enquanto reflexão e prática da
existência, a ética pensada como uma estética da existência e a capacidade de modificação do ser ligam-se a
ideia de um si a se construir e a se criar como obra de arte.
Nous avons à peine le souvenir de cette idée dans notre société, idée selon laquelle la principale oeuvre d’art
dont il faut se soucier, la zone majeure où l’on doit appliquer des valeurs esthétiques, c’est soi-même, sa
propre vie, son existence (FOUCAULT, 2001, p. 1443).
Destarte, a arte de viver não se define sob nenhum tipo de obrigação moral, ela designa as formas pelas quais
o indivíduo, através de um trabalho responsável sobre si, configura a sua existência, encarnando a experiência
de pensar e viver de outro modo. Esta experiência requer certo cuidado “com o que existe e pode existir; um
sentido agudizado do real, mas que nunca se imobiliza perante ele; uma prontidão a achar estranho e singular
aquilo que nos rodeia” (FOUCAULT, 2001, p.927). A arte de viver, portanto, se afigura para Foucault como uma
arte de transformar a vida. A apresentação da existência como uma obra de arte supõe a afirmação da estética
144
como uma forma de vida, ou seja, os valores estéticos passam a constituir-se como a forma, a configuração e a
transformação possível da vida. O que está em jogo na perspectivação da existência como uma obra de arte
não é a procura nostálgica da autenticidade do ser do humano – o ser próprio do humano –, nem o encontro
com a verdade de si mesmo como uma pura entidade, mas a realização de um trabalho sobre si mesmo que
leva o sujeito a inventar-se. A ética se assenta, precisamente, no trabalho que um indivíduo realiza sobre si
mesmo a partir de um conjunto de práticas através das quais se delineiam as suas regras de comportamento,
de possibilidade de transformar-se, de modificar o seu modo de ser, isto é, de fazer da vida uma obra. Isso
significa que a estética da existência está intimamente ligada à questão da forma, ou seja, à interrogação sobre
a forma do homem e sobre as formas de vida do ser humano. Desta forma, a consideração da estética como
uma forma de vida evidencia uma profunda ligação entre a arte e a vida, ou seja, entre a experiência artística e
a arte de viver.
A vida singular poderia ser o testemunho de uma obra de arte que se faz através da experiência e que, sendo a
origem de modos de vida diferentes, traça uma forma dramática que se volta sobre a própria existência. “Que
a vida, porque é mortal, deve ser uma obra de arte, é um tema notável” (FOUCAULT, 2001, p.1434); “A
principal obra de arte com que é preciso preocuparmo-nos, a zona maior onde devemos aplicar os valores
estéticos é nós mesmos, a nossa vida, a nossa existência” (FOUCAULT, 2001, p. 1443). Foucault ainda coloca a
possibilidade de fazer a história da existência como arte: “A existência é a matéria primeira mais frágil da arte
humana, mas é, também, o seu dado mais imediato” (FOUCAULT, 2001, p.1449).
Desde o interior da existência, o jogo contínuo entre a ética e a estética traça um movimento pelo qual o
desejo de transformar a vida surge como condição de transformação do mundo. É a partir dessas
“descontinuidades profundas que marcam, muitas vezes, silenciosamente, a sensibilidade e as atitudes de toda
uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p.1467), que a arte de viver encarna a experiência de ser de outro modo, a
possibilidade de resistência e recriação de si, a irrupção de uma singularidade aguda na existência cotidiana.
Palavras-chave: Ética; Estética; Liberdade; Foucault
Referências:
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II, 1976-1984. Paris: Éditions Gallimard, 2001.
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Nome: Raphael Eduardo Alves Concli
Instituição: Unicamp
Orientador: Marcos Severino Nobre
Título: A linguagem da indústria cultural e as tochas da liberdade
No texto Transparencies on Film de 1967 o filósofo alemão Theodor Adorno viria a afirmar que “a ideologia da
indústria cultural contém o antídoto contra sua própria mentira”. Esta provocativa frase escrita já ao final de
sua vida parece contrastar com a maneira como este autor interpretou o papel e os efeitos da cultura de massa
e dos meios de comunicação a partir de sua teoria da indústria cultural. Esta “mentira” veiculada pelos
produtos culturais diz respeito àquilo que já havia discutido com Horkheimer cerca de 20 anos antes quando da
publicação de Dialética do Esclarecimento: o caráter falso das promessas de escape da realidade, de
gratificação e prazer propiciada por pela indústria da mídia e entretenimento. Ao contrário do que o público
possa imaginar e do que os produtores e realizadores destes bens culturais venham a afirmar, o consumo
destas serve antes como uma forma de apropriação do tempo livre e de recomposição dos indivíduos ao
mesmo mundo do qual imaginam escapar e de minar a consciência crítica dos indivíduos. Anos depois,
entretanto, ao afirmar que ali na própria indústria cultural estaria o antídoto para estes efeitos, Adorno parece
sugerir que há algo de diferente entre as mensagens veiculadas pelos produtos da indústria cultural e a
maneira como estes são apropriados. Há sim transformações no comportamento dos indivíduos propiciadas
por este consumo; existe a possibilidade de que mediante estes bens culturais sejam alimentadas formas de
rompimento com a realidade existente. É com o intuito de perseguir este insight de Adorno que esta minha
comunicação se dará.
A teoria da indústria cultural é um empreendimento que visa unir crítica da cultura e crítica social; Horkheimer
e, especialmente, Adorno, não se ocupam em analisar os produtos da indústria cultural apenas a partir de
critérios estéticos e artísticos; trata-se para eles de compreender estes bens culturais também em termos da
função que exercem na sociedade ao serem consumidos e como a própria organização econômica e política de
uma sociedade interfere em sua produção. Com isto Horkheimer e Adorno estão interessados em avaliar de
que modo a indústria cultural, enquanto uma forma de produção de bens culturais que se adapta à
organização social vigente, serve para como meio de promover a conformidade e a aceitação desta mesma
ordem.
Meu interesse será tomar este propósito da teoria da indústria cultural como fio condutor. Assim, procurarei
apresentar num primeiro momento de que modo Horkheimer e Adorno compreendem que a conformidade se
produz. São três os aspectos a serem discutidos: a apropriação do tempo livre, a neutralização da capacidade
crítica dos indivíduos e a formatação da percepção. O primeiro aspecto nos leva a discutir a função do tempo
livre como forma de recondicionamento para o trabalho; o segundo trata da função do prazer e do
entretenimento como formas de esquecimento da negação; já o terceiro, mais especulativo, diz respeito à
maneira pela qual a linguagem e a forma dos produtos culturais parecem ser internalizadas pelos indivíduos,
dando forma à sua percepção de mundo.
Horkheimer e Adorno seriam acusados em futuras críticas de produzirem um tipo de análise sociocultural que
se restringe a ver a indústria cultural sob a chave da conformidade e da integração social, distanciando-se dos
contextos particulares de recepção e apropriação. Suas análises são bastante aproveitáveis no que diz respeito
à linguagem da indústria cultural, mas é questionável quanto a interpretação de seus efeitos, pois traz à tona
um caráter essencialmente manipulador dos meios de comunicação e dos bens culturais. Esta limitação seria
146
claramente exposta por autores como John Thompson, a quem pretendo recorrer para mostrar como
Horkheimer e Adorno oferecem uma leitura limitada dos processos de recepção incorrendo no que este
sociólogo inglês chama de falácia do internalismo.
A postura mais flexível de Adorno ao final da vida indica um caminho que ele mesmo parece não ter perseguido
mais a fundo, caminho que nos levaria a perguntar: como a indústria cultural poderia servir a algo além da
produção da conformidade? Para responder a isto é preciso que nos voltemos às contradições envolvidas na
recepção e apropriação da indústria cultural em suas variadas formas, inclusive na publicidade. Defendo que
nestes processos há momentos potencialmente emancipatórios que a própria linguagem da indústria cultural é
capaz de produzir, os quais são perdidos de vista caso foquemos apenas no caráter manipulador e conformista
da indústria cultural. Para ilustrar esta posição pretendo discutir a publicidade de cigarros para mulheres a
partir do caso da campanha das “tochas de liberdade” criada pelo relações públicas Edward Bernays. Este
parece ser um exemplo modelo de como padrões comportamentais e morais podem ser desafiados tendo
elementos da linguagem da indústria cultural como mediadores. Reconhecendo a disseminação desta
linguagem na sociedade e a pluralidade das formas de apropria-la podemos encontrar o “antídoto” que Adorno
viria a reconhecer tardiamente.
Palavras- chave: indústria cultural; publicidade; integração; entretenimento
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Nome Completo: Raquel de Azevedo
Instituição de Ensino: PUC-RJ
Orientadora: Déborah Danowski
Título do Trabalho: A área de um mito
Lévi-Strauss é um dos herdeiros da geometria projetiva de Desargues, ou, dito de outra forma, da
incorporação, em um sistema de pensamento, da noção de que linhas concorrentes em um ponto finito e
linhas paralelas de mesma direção são de mesma ordenação, a diferença é apenas a distância, finita ou infinita,
do ponto de intersecção. Desargues concebia uma reta como um círculo fechado em si mesmo a uma distância
infinita. As posições intermediárias entre a reta e o círculo são dadas pelas seções planas de um cone, o que
significa dizer que por sua congruência com o cilindro, o cone contém as transformações entre as duas figuraslimite. Entre a reta e o círculo há, nesta ordem, a hipérbole, a parábola e a elipse, menos como traços estáticos
de um isomorfismo, como queria Desargues, que como geradas por um movimento contínuo de projeção
plana, como imaginava Leibniz. O problema metodológico que Lévi-Strauss se coloca na Abertura de O cru e o
cozido é a introdução do ponto no infinito na análise mítica e, consequentemente, a concepção da unidade de
um mito enquanto estrutura da qual só se pode saber, a exemplo das seções cônicas, uma versão sem inércia.
Lévi-Strauss se vale de um problema da teoria óptica do século XVII para explicar o movimento em que consiste
um mito. Trata-se da anaclástica, a saber, do estudo da forma que uma superfície de refração deveria assumir
para fazer convergir um feixe de raios de luz paralelos em um único ponto. Descartes afirma, em A dióptrica,
que mesmo que o lugar exato da fonte luminosa permaneça hipotético, as propriedades dos meios
atravessados pela luz podem ser determinadas com precisão. Com isso, é capaz de demonstrar
matematicamente que a lente que provocaria o desvio exigido pela anaclástica tem as proporções geométricas
de uma hipérbole. A análise mítica não passa, portanto, pela decomposição das sequências narrativas até que
se atinja uma unidade secreta que dê a chave de sua diversidade. Se os temas míticos se desdobram ao infinito
(como o feixe de raios de luz paralelos), um mito é a estrutura óptica que opera um desvio (uma lente). Em A
gesta de Asdiwal, de 1958, ao avaliar o modo como um esquema mítico se propaga entre duas populações
distintas, Lévi-Strauss afirma que o mito começa por se empobrecer e se embaralhar, mas há um momento
limítrofe no qual, em vez de perder completamente todos os seus contornos, inverte-se e recupera sua
precisão. É como se a óptica lhe desse uma imagem incipiente para sua regra de transformação dos mitos: a
lente converte o objeto em imagem (sujeito em predicado) e faz com que suas representações apareçam
invertidas (substituição pelo contrário). Mas assim como a metáfora da câmara escura está limitada pelas
propriedades da luz e, por extensão, da visão, a análise da transformação mítica entre dois povos vizinhos na
costa canadense do Pacífico parece estar limitada pelas condições específicas de organização social. Nas
Mitológicas, por sua vez, a análise se desvincula progressivamente dos paradigmas externos ao conteúdo
mítico; o contexto dos mitos é cada vez mais os próprios mitos.
Em Do mel às cinzas, o conjunto de transformações associado a uma mitologia da conjunção não mediatizada
com a natureza marcha em direção a uma estrutura estacionária. Esse efeito parece corresponder ao que LéviStrauss chama de uma economia neolítica, no sentido de que o crescimento populacional deixa rastros na
duplicação dos personagens míticos, que alternadamente expressam o desdobramento sincrônico e diacrônico
dos mesmos temas. No entanto, o que interessa a Lévi-Strauss na configuração de uma estrutura estacionária é
menos sua infraestrutura do que o modo como ela atesta o afastamento elementar entre o conteúdo e a forma
do mito, isto é, os mitos só conseguem ilustrar uma decadência por meio de uma estrutura formal estável. A
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variação do conteúdo é máxima quando a variação da forma é mínima. Ao chegar a esse mínimo de movimento
a que corresponde um eixo de transformações míticas, Lévi-Strauss se aproxima de uma hipótese monádica: se
o mito do desaninhador de pássaros é uma mônada que contém em si a relação com todos os outros mitos, se
os mitemas de M1 permitem arrastar para dentro de si todo o campo mítico ao qual se refere, os demais mitos
devem ser capazes de exprimir o mesmo conjunto de relações, com maior ou menor distinção. No § 9 do
Discurso de Metafísica e no § 57 da Monadologia, Leibniz diz que o universo é como que multiplicado tantas
vezes quantas forem o número de substâncias ou mônadas, ou, dito de outra forma, uma mesma cidade é
diversamente representada segundo as diferentes posições daquele que a olha, sendo que cada uma dessas
posições exprime, à sua maneira, a relação de todas as coisas entre si. M303 é uma posição no campo mítico
que confirma não apenas a relação de todos os mitos entre si, mas o modo como eles se transformam.
Estamos diante do mito que analisa a análise, assim como as Mitológicas são o mito da mitologia. O corte
vertical que M303 opera em relação aos demais mitos parece corresponder ao momento em que relações
redundantes informam mais sobre a economia de um sistema do que novos tipos de ligações entre os
elementos. Tudo se passa como se a redundância fornecesse uma dimensão adicional ao campo mítico, como
se a degeneração da mitologia em uma estrutura estacionária lhe garantisse um aspecto de objeto geométrico
volumoso. No início da análise empreendida por Lévi-Strauss, os mitos se reduziam quase que inteiramente a
uma cadeia sintagmática cuja mensagem deveria ser decifrada com o auxílio de conjuntos paradigmáticos
externos. À medida, porém, que o campo mítico se estabiliza enquanto um objeto pluridimensional, as relações
paradigmáticas situadas em seu interior se multiplicam mais rápido do que as relações externas e a própria
diferença entre cadeia sintagmática interna e conjunto paradigmático externo tende a se abolir. É o momento
em que, de fato, os mitos se pensam a si mesmos.
Resta saber qual a área que o campo mítico deve assumir para que adquira o aspecto de máquina animada
(pluridimensional). Os homens não são capazes de dar a uma massa qualquer o mesmo arranjo que tem o
corpo humano, diz Leibniz no manuscrito On animated machines, de 1685, a menos que pudessem conservar
esse arranjo dividindo-o infinitamente. É possível criar uma máquina que se pareça com um homem, mas se for
bem examinada, verificar-se-á que não é máquina em cada uma de suas partes, como um homem ou um
animal. O funcionamento de uma máquina produzida pela arte humana, por outro lado, encontra explicação
em noções simples de força e movimento, conclui Leibniz. O problema do cálculo da área do campo mítico é,
portanto, o problema da integral, isto é, o caminho inverso da divisão infinita de um corpo. É esse caminho que
o corte vertical de M303 parece indicar. Inversão da derivação infinita dos mitos, M303 os estabiliza ao extrair
de sua variação infinitesimal uma dimensão de profundidade.
O problema da área que o campo mítico deve assumir para que surja em seu interior uma congruência entre
um ponto a uma distância finita e outro a uma distância infinita sugere, porém, uma segunda questão ainda
mais fundamental. Se os mitos são transformações uns dos outros, a estrutura cônica que surge no interior das
Mitológicas é uma transformação de quê? O objetivo desse trabalho é pensar a análise mítica lévi-straussiana
como uma perspectiva.
Palavras-chave: Geometria projetiva; Óptica; Transformação mítica.
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Nome: Raquel Rodrigues Rocha
Instituição de Ensino: UFRJ
Orientador: Guilherme Castelo Branco.
Título do trabalho: Ressonâncias contemporâneas do cuidado de si a partir da obra de Michel Foucault: da vida
como obra de arte ao corpo fetichizado.
O presente artigo tem como objetivo pensar qual o lugar do cuidado de si na contemporaneidade e suas
implicações sociais a partir da obra de Michel Foucault. Utilizando a análise genealógica foucaultiana contida
nos últimos cursos do Collége de France, é possível compreender qual o significado do conceito de cuidado de
si, suas finalidades, deslocamentos e rupturas a partir de três períodos do pensamento filosófico, a saber:
Filosofia da Antiguidade Clássica e Tardia, filosofia ascética cristã e, por fim, o momento cartesiano designado
pelo pensamento racional. Tais períodos compreendem respectivamente surgimento e ápice do conceito,
declínio e ruptura com o pensamento filosófico. Portanto, a partir desta base teórica, destacaremos como o
cuidado de si pode ser resgatado na contemporaneidade, qual o lugar do cuidado de si na sociedade
contemporânea, como se dá a relação entre cuidado de si e os sujeitos contemporâneos.
Tal relação entre cuidado de si e a contemporaneidade dar-se sob duas perspectivas distintas: a de um ethos
como atitude crítica limite que permite aos sujeitos pensar a própria vida e seu tempo presente, o que
possibilita ao sujeito constituir e governar a si mesmo tendo como objetivo uma estética da existência; por
outro lado temos o cuidado de si que é transformado em mercadoria. Fetichizado, o cuidado de si torna-se
ferramenta dos dispositivos modernos de dominação, contribui para estabelecer a noção de beleza, saúde e
felicidade baseadas no consumo e na obediência à normatividade estabelecida pelo mercado, fazendo surgir
assim um novo significado de cuidado de si.
Ao propor uma “trip” pela Antiguidade clássica e tardia, período cristão e moderno do pensamento, Foucault
apresenta as descontinuidades e rupturas sofridas no pensamento filosófico, o autor expõe as consequências
das mudanças dos paradigmas filosóficos de cada período, tomando por base a noção de cuidado de si. Em face
desta análise foucaultiana convém considerar o conceito de cuidado de si como principal referencial teórico
para que Foucault trabalhe a relação entre sujeito e verdade, bem como possibilita ao autor trabalhar outros
conceitos caros para a filosofia, a saber: parresía, cinismo, ontologia do presente, subjetividade. Consideramos,
portanto, que constituição do cuidado de si enquanto conceito filosófico, que se estende desde a filosofia
grega até o ascetismo cristão, assume um papel fundamental quer na história das representações, quer na
história das práticas de subjetividade.
Ainda que tenha sido essencial para a constituição do pensamento filosófico, o advento do pensamento
racionalista, moderno e das ciências, relega do cuidado de si o caráter de fio condutor do pensamento e das
práticas filosóficas e tornando o conhecimento de si o conceito primordial para o homem alcançar a verdade. O
conhecimento de si torna-se mais importante que o cuidado de si, este, por sua vez, ao ser esquecido perde
seu caráter de conceito filosófico, sendo reduzido ao campo da espiritualidade. Tal movimento de
esquecimento representa na história da filosofia não apenas uma separação entre cuidado e conhecimento de
si, como também a separação entre filosofia e espiritualidade, isto é, entre pensamento filosófico e a
espiritualidade que até então estavam sempre em comunhão (na Antiguidade, assim como no ascetismo
cristão, a prática filosófica não era dissociada por completo da prática espiritual de elevação, conversão de si,
cuidados com a alma, trabalho sobre si mesmo para alcançar o divino).
150
Portanto, como o próprio Foucault afirma no começo de seu curso A hermenêutica do sujeito, falar sobre o
cuidado de si é restitui-lo ao pensamento filosófico, devolver sua importância enquanto conceito essencial para
compreender a relação entre sujeito-verdade. Foucault nos apresenta o conceito de cuidado de si como um
conceito “mutável”, sua significação muda de acordo com o período vivido, sas finalidades, assim como as
práticas de si, são responsáveis por mudanças na constituição da subjetividade dos sujeitos e nas relações com
a cidade e os outros.
São estes aspectos do cuidado de si apresentados por Foucault que é torna viável pensar como restituir o
caráter filosófico do cuidado de si na contemporaneidade, como identificar nas práticas de vida
contemporânea o cuidado de si como parte da relação sujeito-verdade nos dias atuais, identificando assim o
lugar do cuidado de si na sociedade contemporânea. Mais especificamente, cabe aqui inferir que o cuidado de
si pode ser identificado filosoficamente no pensamento contemporâneo sob dois vieses diferentes, a saber: 1)
sob o viés de uma atitude limite, provocada por um ethos proposto pela ontologia do presente de Michel
Foucault, isto é, enquanto uma atitude limite o cuidado de si se associa à filosofia sob a forma de uma
estilística da existência, assim como no período greco-romano. Nesse sentido de uma estilística da existência,
as práticas de vida contemporâneas baseadas na atitude de crítica com o presente remetem à preocupação em
transformar a vida em obra de arte, onde o cuidar de si mesmo é fundamental para que os sujeitos sejam
responsáveis pela sua constituição. 2) sob o viés da indústria de consumo, onde fetichizado, cooptado pelo
poder capital, o cuidado de si torna-se uma ferramenta do mercado responsável por instigar nos sujeitos a
necessidade de cuidar de si a fim de serem aceitos socialmente. Aqui o cuidado de si é reduzido ao cuidado
com o corpo, a uma busca por um corpo belo, saudável e sempre jovem e feliz.
À vista disso, enquanto por um lado o cuidado de si na contemporaneidade aproxima-se do significado de
cuidado de si na Antiguidade, do outro lado temos um cuidado de si totalmente distanciado de todos os
significados apresentados até então. Podemos então considerar que enquanto uma ferramenta dos
dispositivos modernos da indústria de consumo, o cuidado de si assume outra finalidade, a saber: o significado
de fetichização das práticas de cuidado a partir do corpo. Cuidar de si torna-se uma atividade superficial, de
busca por um corpo ideal em nome de uma satisfação pessoal.
É válido afirmar aqui que conhecer como o conceito de cuidado de si perpassa a história do pensamento
filosófico, nos permitirá compreender como a filosofia sempre estivera ligada às questões da vida prática, ao
poder, à política, aos modos de vida. O cuidado de si nos dá as ferramentas necessárias para pensar a
contemporaneidade com base nas relações estabelecidas anteriormente entre cuidado e sujeito. Nesse
sentindo, será possível identificar e compreender como na contemporaneidade um mesmo conceito pode
assumir significados e finalidades diferentes. Ante este novo sentido dado ao cuidado de si na
contemporaneidade, vemos surgir então uma nova problematização do cuidado de si. Caberá à nós pensar
como sair desta subjetivação do corpo enquanto cuidado de si, isto é, que práticas podem ser estabelecidas
para que seja possível resistir ao mercado? Como afirmar a nós mesmos e cuidarmos de nós enquanto sujeitos
autônomos e críticos? Há uma saída para o cuidado de si na contemporaneidade?
Palavras-chave: Cuidado de si, sujeito, estética, corpo, fetichismo.
151
Nome: Ravena Olinda Teixeira
Instituição de ensino: USP
Orientador: Luís César Guimaraes Oliva.
Título: Eutanásia, aborto e suicídio pelas lentes de Espinosa
Espinosa não nos dá uma definição exata para o conceito de morte na Ética, mas nos permite, através de várias
proposições e exemplos, propor algumas perspectivas possíveis para esse conceito. Primeiramente, a
identificaremos como fim das relações, pois um indivíduo morto não pode manter nenhuma relação com os
corpos exteriores e porque quando cessa a relação interna que faz do indivíduo um ser singular
necessariamente ele deixa de existir. Disso se segue que a morte é, sobretudo, o fim das relações internas e
externas. Com base em uma das principais referências e definições de Espinosa sobre o conceito de morte, na
qual ele a define como um desajuste ou como uma decomposição, veremos que se referida ao homem, ela
acontece tanto no corpo quanto na mente, por isso consideraremos a morte como a decomposição do corpo e
como a decomposição da mente. Nas palavras de Diana Cohen , a primeira é a morte biológica ao passo que a
segunda é a morte psicológica.
O que diferencia os indivíduos são suas relações internas. Entretanto, é importante ressaltar que essas relações
internas são de certa forma resultado de suas relações externas, pois a partir do momento em que o indivíduo
surge, ele inicia seu processo contínuo de individualização e durante esse processo ocorrem, o tempo todo e ao
mesmo tempo, inúmeras relações, tanto entre os corpos que compõem esse recente indivíduo quanto desse
recém indivíduo com os demais corpos externos. Assim, a vida de um indivíduo é ininterruptamente marcada
por suas relações internas e externas, logo poderíamos dizer que sua vida é determinada pelos efeitos
causados por essas relações, ou seja, pelos resultados, positivos ou negativos, de suas afecções. Se é dessa
maneira que se sucede com a vida, é igualmente dessa maneira que se sucede com a morte, por isso se
podemos afirmar que a vida é o início de uma determinada relação singular que tem com os corpos exteriores
muitas relações, isto implica que a morte, por sua vez, nada mais é que resultado das relações com os corpos
externos, que negativamente, resultam no fim da relação singular. Por consequência, a morte é considerada
como o fim das relações.
Na quarta parte da Ética, exatamente no escólio da P39, o filósofo em questão nos dá o exemplo de um
suposto poeta espanhol que havia sofrido de uma enfermidade e esquecido de sua vida passada. É a partir
desse exemplo ele levanta algumas questões que podem sustentar nossa discussão sobre o conceito de morte.
Inicialmente, ele afirma que não significa que um corpo esteja vivo apenas porque suas funções biológicas
estejam funcionando e nem que um corpo morra apenas quando se torna um cadáver. Nesse sentido, Espinosa
parece nos revelar que a morte é algo que pode ser divido em dois acontecimentos, ou seja, ela pode ser
considerada sob duas perspectivas: a morte do corpo e a morte da mente. Também podemos dizer que ele nos
guia para algo ainda mais inovador que é a negação da morte e a afirmação das afecções, sugerindo que em
sua filosofia não existe morte, pois nada deixa de existir e tudo o que existe são as afecções. Afinal, é a partir
do fim de uma relação que novas relações se iniciam e assim sucessivamente. Por isso, Deleuze não conclui que
a morte seja o fim das relações, mas uma nova composição de relações. Não esqueçamos que o indivíduo
enquanto ser singular é resultado de suas relações internas e relações externas, mas são somente as relações
externas que ocasionam o “deixar de existir” desse indivíduo.
Algumas leituras apontam que a concepção de morte apontada por Spinoza parece referir somente ao corpo.
Sabemos que a destruição do corpo é resultado da intensa atividade de mistura entre os corpos. A morte
152
considerada apenas enquanto decomposição do corpo se aplica não só ao homem como também a todas as
coisas singulares corpóreas e se aplica principalmente para o que classificamos como inorgânicos. Mas como
dizemos que um homem está morto? A morte do homem não pode ser analisada apenas por essa perspectiva,
pois o homem não pode ser reduzido ao corpo nem a um conjunto de funções puramente mecânicas. Cohen
assevera: “O homem é tanto história como antecipação, não é vida meramente biológica, senão vida
biográfica”. Isso que dizer que o homem não só está na história como atua sobre ela, tanto na sua história
como na história dos outros corpos, porque o homem é um ser que sabe de sua existência. Com efeito, afirma
que um homem sofre transformações tais que possivelmente faça com que ele não seja mais o mesmo, logo a
morte também pode ser a decomposição da mente. Portanto, considerar a morte como decomposição do
corpo e principalmente como decomposição da mente, é o que faz com que nosso autor tenha um dos seus
maiores distanciamentos da tradição. A morte enquanto decomposição da mente é especificamente aplicada
ao homem e é também reconhecida por Cohen como morte psicológica ou mesmo como a morte da
identidade pessoal, porque o homem não é só um corpo composto de corpos, ele também possui mente e em
sua mente existem várias faculdades que o fazem ter conhecimento de si enquanto pessoa singular. Também
existem traços, deixado por suas afecções que o moldaram construindo o que ele é ao longo de sua duração,
mesmo que o homem esteja sempre em mudança, pois está sempre em encontros. Há sempre de existir algo,
em cada indivíduo, que sejam suas características de personalidade, aquelas através das quais as outras
pessoas nos diferenciam e nos classificam. Segundo Cohen, nessa perspectiva de morte, uma pessoa morre
quando cessam seus processos neurológicos, e, com isso, tem fim sua continuidade psicológica e sua
identidade pessoal. No caso do poeta espanhol, apesar de seu corpo continuar vivo, Spinoza o declara morto.
Ao lermos o exemplo dado por Spinoza sobre o poeta espanhol percebemos que esse suposto poeta sofreu
algumas afecções por conta de uma enfermidade e depois de curado dessa enfermidade ele esqueceu sua vida
passada de tal forma que nem acreditava ter sido o escritor de suas comédias. Desse exemplo, Espinosa parece
nos indicar que a mente do poeta morreu, se decompôs, embora seu corpo continuasse vivo. Cohen confirma
essa interpretação: “está reconhecendo que, ainda que subsistam certas funções vitais, se pode considerar a
esse indivíduo morto”. Com efeito, é a partir dessas colocações sobre o conceito de morte que a filosofia de
Espinosa abre espaço para pensarmos em eutanásia, aborto e suicídio.
Palavras-Chave: Eutanásia. Aborto. Espinosa.
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Nome: Renato Alves Aleikseivz
Instituição de Ensino: UFPR
Orientador: André de Macedo Duarte
Título do trabalho: A filosofia como diagnóstico do presente em Foucault
A comunicação tem a intenção de investigar como a noção de filosofia, entendida como diagnóstico do
presente a partir de Michel Foucault, pode se constituir como importante arma de resistência ao presente.
O filósofo francês Michel Foucault representa um horizonte teórico não negligenciável para os debates e as
lutas que se desenrolam no presente. Desde o início de sua produção teórica de fôlego, notadamente a partir
da década de sessenta com a publicação de História da loucura, seu nome não para de apontar como
importante referencial. Com efeito, nossa investigação pretende demonstrar que se a obra de Foucault possui
esse caráter essencialmente prático, isto é, norteador das lutas cotidianas, é porque sua concepção de filosofia
é compreendida, fundamentalmente, como diagnóstico.
Ainda na década de sessenta, partindo de Nietzsche, Foucault afirma seu trabalho possui uma semelhança com
a filosofia. Essa constatação diz respeito ao fato de que a filosofia, desde Nietzsche, não é mais pensada como
discurso que busca encontrar uma verdade última e que, em última instância, seria válida para todos e em
todos os tempos. Para Foucault, enfim, a atividade filosófica não é outra coisa senão a atividade de
diagnosticar: o que somos nós hoje e o que é esse hoje em que vivemos.
Ora, nossa aposta é de que a compreensão da filosofia como atividade de diagnóstico está intimamente ligada
à possibilidade de resistência. Em outras palavras, a filosofia nos permite pensar novamente a nossa realidade
e o mundo, tornando-nos outros. Nesse sentido, a comunicação tem como recorte a obra genealógica de
Michel Foucault. Pretendemos analisar alguns aspectos da analítica do poder desenvolvida pelo filósofo a partir
de 1970, ou seja, a partir do momento em que se torna professor do Collège de France. A partir desse
momento suas pesquisas, que já demonstravam uma proximidade com o pensamento de Nietzsche, serão
marcadas ainda mais pelo traço nietzschiano. O artigo Nietzsche, a genealogia, e a história parece se constituir
como manifesto desse deslocamento na pesquisa foucaultiana que passa do acento metodológico na
arqueologia (análise das formações discursivas) para a genealogia.
Concentraremos nossos esforços no seguinte sentido: procurar compreender os deslocamentos na pesquisa
foucaultiana dentro do eixo do poder. Isto é, a partir de 1978, mais especificamente a partir do curso
Segurança, território, população, constata-se uma significativa mudança dentro da própria pesquisa sobre o
poder que, ao fim e ao cabo, remodelará a concepção de resistência foucaultiana.
Como apontam seus comentadores, Michel Foucault foi alvo de inúmeras críticas após a publicação de Vigiar e
punir e, principalmente, de A vontade de saber. Acusavam-no de apresentar um poder implacável, que não
reservava espaço algum para a liberdade ou, igualmente, para uma possível resistência. Ora, tais críticas
decorrem do fato de que a analítica do poder foucaultiana, pelo menos até a publicação do primeiro volume da
História da sexualidade, inspirada fortemente em Nietzsche, concebia o poder como sendo essencialmente
uma luta agonística de forças. O poder era compreendido, grosso modo, de modo relacional, isto é, uma força
buscando dominar outra.
Com efeito, o filósofo insistia no fato de que “onde há poder, há resistência”. Fato é que, a despeito das
ressalvas por parte de Michel Foucault de que as resistências não seriam o subproduto das relações de poder,
154
não há uma tematização detalhada dessa questão. Os críticos de Foucault continuavam insistentemente
colocando a questão: se o poder se encontra disseminado por sobre o tecido social, ou seja, se ele não possui
um centro facilmente detectável; e, se as lutas emanam todas da mesma estratégica, como se podem legitimar
os levantamentos e as resistências?
A análise da analítica do poder do ponto de vista de seus deslocamentos internos, poderia nos fornecer, então,
subsídios para melhor compreender como a questão da resistência é refinada no pensamento foucaultiano. A
partir do curso Segurança, território, população identificamos uma mudança na concepção de poder. O poder
não será mais entendido como sendo unicamente da ordem do enfrentamento de forças, mas será
paulatinamente tematizado como sendo da ordem do governo, da condução de condutas.
Assim, questão do como governar aparece como tendo cada vez mais relevância nas pesquisas foucaultianas.
Na medida em que a questão do governo, ou da arte de governar, adquire importância na obra de Foucault, a
noção de resistência também será, em alguma medida, reinterpretada. O filósofo lembra-nos do fato de que a
governamentalização, característica das sociedades do Ocidente a partir do século XVI, não pode estar
dissociada, parece-me, da questão de como não ser governado? Tal preocupação, com efeito, ainda nos diria
respeito intimamente.
Em suma, esta comunicação se inscreve como pertencendo ao esforço, iniciado por Michel Foucault, em
descrever o presente. História do presente, portanto. Foucault, ao permitir a abertura de um campo de estudos
em que a problematização do tempo presente é o primordial, introduz na ordem do dia questões seminais que
nos dizem respeito diretamente. Além disso, ao deixar de ser meramente um tema para estudo teórico e
passar a ser problematização dos modos de sujeição, uma política pode se desenhar. As análises foucaultianas
oferecem-nos instrumentos e resistências para práticas políticas e de liberdade bastante concretas.
Palavras chave: diagnóstico do presente; governamentalidade; resistência.
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Nome: Ricardo Zanchetta
Instituição de ensino: USP
Orientador: Leon Kossovitch
Título: Janela aberta: perspectiva e visão na tecnologia das telas no séc. XXI
A perspectiva, descoberta ou redescoberta na Florença do século XV, provocou um impacto profundo no modo
como vemos as obras de arte desde seus primeiros usos até nossos dias, como também causou grandes
mudanças na própria maneira como a visão é concebida, alterando a relação da visão com as coisas vistas. Pois
as pinturas com construções em perspectiva são, em geral, superfícies planas, mas parecem possuir
profundidade e relevo, ou seja, não vemos nessas obras apenas as linhas e cores dispostas em um plano,
porque a própria superfície da pintura se desdobra em um espaço tridimensional.
A visão, de acordo com a assim chamada “perspectiva natural”, conhece a distância e a localização das coisas
vistas através da relação entre os lugares em que elas estão, de modo que conseguimos reconhecer quando
algo está a direita ou a esquerda, no alto ou no baixo, perto ou longe. O próprio lugar da coisa vista e sua
relação direta com o espectador permite a compreensão dessas relações espaciais pela visão, ou seja, algo
parece estar distante justamente porque está distante, pois podemos comparar as coisas vistas entre si e
compreender através do processo de certificação da visão qual o lugar que algo ocupa.
A pintura, por sua vez, altera e, em certa medida, subverte essa relação ao fazer com que coisas vistas a mesma
distância pareçam ter distâncias diferentes. É possível, em uma pintura feita em perspectiva, distinguir as
figuras que estão ao fundo daquelas que estão à frente, todavia, a própria pintura é uma superfície plana e não
há nada nela que está mais distante para parecer mais ao fundo e esse efeito é obtido através da construção
geométrica utilizada na perspectiva. Assim, a chamada “perspectiva artificial” propõe, em sua construção,
outra maneira de ver as coisas, onde as relações espaciais não são mais julgadas pelo lugar em que as coisas
estão, mas através da disposição delas em uma construção geométrica sobre um plano, estabelecendo com
isso outras relações entre as coisas vistas e o espectador. Além disso, esse modo de ver, como não é natural,
mas feito por meio da arte, apresenta uma série de pressupostos para que o efeito de profundidade e
tridimensionalidade do plano da pintura ocorra. Por exemplo, quem não se posicionar logo abaixo do Oculus
pintado por Andrea Mantegna na Câmara dos esposos não conseguirá ver aquele teto se abrir para o céu,
como se fosse parte integrante da arquitetura; se visto por outros ângulos o efeito perspectivo do Oculus será
perdido, pois, diferentemente da perspectiva natural, a visão segundo a perspectiva artificial exige que o
espectador se posicione corretamente para ver as coisas.
As questões relativas a essa “nova” maneira de ver as coisas ultrapassaram o campo da pintura e das artes,
especialmente com o advento de diversas tecnologias do século XX e XXI que tornaram comuns e usuais o uso
da perspectiva artificial. Primeiramente com a fotografia, depois com o cinema e a televisão e hoje com
computadores, tablets e celulares. Todas essas tecnologias têm em comum o fato de conseguirem transformar
as superfícies planas de suas telas em espaços tridimensionais, como se elas fossem janelas abertas para outros
mundos. Nesse ponto, elas se assemelham à pintura, uma vez que também utilizam mecanismos visuais como
a perspectiva para desdobrarem as duas dimensões de suas telas em uma terceira dimensão, permitindo a
profundidade de suas superfícies planas.
Essas tecnologias também têm pressupostos para sua observação ser corretamente efetuada, o que estabelece
outras relações entre o espectador e as coisas vistas. Um exemplo evidente está nos filmes 3d, onde a
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utilização do óculos especial é obrigatória para alcançar o efeito de relevo; todavia, há outros pressupostos que
já não são mais tão discerníveis por serem demasiadamente óbvios para nossos costumes visuais. Estamos tão
imersos nesses modos de ver que hoje é trivial para qualquer um realizar um esboço em perspectiva, traçando
algumas linhas que se encontrem em um ponto de fuga, sem ser necessário um conhecimento de perspectiva
para fazê-lo. Hubert Damisch afirma em seu A Origem da Perspectiva que “sem dúvidas, nosso período está
muito mais massivamente ‘informado’ pelo paradigma da perspectiva, graças à fotografia, ao cinema e agora
ao vídeo do que estava no século XV, que podia se gabar de pouquíssimas construções em perspectiva
‘corretas’.” O texto de Damisch, publicado a exatos 20 anos não poderia prever como hoje estamos ainda mais
“informados” sobre a perspectiva, já que as telas saíram das paredes para as mãos de todos. Por isso, é preciso
sobretudo recorrer aos princípios da perspectiva nas artes e suas primeiras discussões para compreender
alguns hábitos visuais hoje arraigados pela multiplicação maciça de telas pela tecnologia.
Com efeito, a própria ideia de tela que todos esses aparelhos usam é, em alguma medida, derivada da
terminologia da pintura: a tela é um dos suportes materiais no qual se aplicam as tintas para fazer a pintura e
tornou-se quase sinônimo de pintura, muito embora essa seja feita em diversos suportes além da tela; a
própria materialidade da tela com suas tramas de tecido é suprimida por aquilo que é pintado sobre ela,
chegando ao ponto de mal lembrarmos qual o suporte de uma pintura que vemos, pois, em geral, pouco
importa ao observador comum se ela é feita sobre uma tela, sobre papel, sobre madeira ou qualquer outro
material. A tela de uma televisão ou de um celular utiliza a palavra tela em um sentido análogo ao da pintura,
pois é também uma superfície feita com tecnologias de LED, LCD ou outras, mas isso é praticamente suprimido
ao olharmos para sua tela, pois vemos como que através dela para as coisas que ela mostra, como se as
víssemos através de uma janela aberta.
Propomos nessa comunicação o exame de algumas dessas questões sobre os modos de ver estabelecidos hoje
pelas novas tecnologias e em que medida eles podem ser entendidos à luz das doutrinas de pintura escritas no
século XV, quando surgiram os primeiros textos sobre a perspectiva. Evidentemente, não entendemos com isso
que as tecnologias atuais foram pensadas a partir das noções de perspectiva pictórica, mas essas noções
podem ser usadas para esclarecer algumas questões atuais, possibilitando uma reflexão sobre a própria
visualidade contemporânea.
Para fomentar essa reflexão, tomaremos como base as considerações de Leon Battista Alberti em seu Da
Pintura; esse texto, considerado o primeiro texto moderno sobre pintura, funda uma nova maneira de
conceber a pintura, propondo que ela é como “uma janela aberta a partir da qual se vê a história”. A pintura é,
metaforicamente, uma janela, porque ela é como uma superfície transparente através da qual se vê uma
história; a conjunção de linhas e cores bem compostas quase que anula o suporte material da pintura,
transformando aquela superfície de madeira ou parede em uma abertura para uma história, isso é, um
acontecimento narrado pela própria obra. A metáfora da pintura como janela, junto com a definição de
pintura, propõe um modo de ver as coisas através da perspectiva artificial. Tais noções podem ser usadas, em
alguma medida, para pensar o estatuto visual das telas de televisão ou de celular e quais relações elas
estabelecem com o espectador em seus modos próprios de ver. Assim, analisaremos em que medida é possível
atualizar esses conceitos das doutrinas de pintura do século XV para nossa realidade contemporânea,
apresentando também suas limitações.
Palavras-chave: Pintura, Renascimento, Perspectiva, Tecnologia
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Nome: Rodrigo Andia Araújo
Instituição de ensino: USP
Orientador: Maurício Cardoso Keinert
Título: Kant e a <reflexão> como mecanismo transcendental da faculdade de julgar interpretar a “história da
filosofia”
Querendo partir de um pressuposto judicativo que exige da “razão pura” uma função terapêutica que designa
o estatuto de sua pureza e também de um tribunal, a proposta deste trabalho será a de arriscar uma leitura
nada comum do pensamento kantiano. A saber, de que o projeto crítico, na sua generalidade discursiva de ser
a princípio um exame transcendental das faculdades e não propriamente dos livros e dos sistemas, também
está apoiado em um método que solucionaria a aporia de sua história. Só esta condição nos permitiria, como
queremos, conceber aquela última possibilidade que ainda permanecia vazia no sistema, isto é, de pensar
como parte integrante da filosofia crítica não só uma “história da razão pura” como também de uma história
que fosse “filosofante” do ponto de vista do julgamento e da interpretação do passado da filosofia. Segundo
Kant, esta, no entanto, só seria possível dentro de uma concepção transcendental se um esquema fosse
admitido onde a ideia, ao menos nesta perspectiva, já se encontraria esboçada na forma de um “monograma”.
Neste sentido, o primeiro passo da nossa reflexão será demonstrar que a recepção da história da filosofia, pelo
menos a partir da publicação da Crítica da razão pura, só nasce através de uma experiência própria do filósofo
que só foi possível de ser determinada ou condensada a partir de uma consciência amadurecida do juízo. Só
este amadurecimento da consciência crítica, dirá Giuseppe Micheli, permitiria Kant empreender sobre a
história da filosofia uma teoria da interpretação, isto é, como se o princípio pressuposto na razão na forma de
um esquema fosse justamente esta regra que colocaria a história sob uma perspectiva apenas ideal ou
interpretativa dos sistemas filosóficos.
Assim, mesmo que o filósofo em geral tenha declarado já no Prefácio à segunda edição da Crítica sobre uma
suposta falta de método na metafísica, e de que a partir dela “(...) se pode estar sempre convencido de que um
tal estudo acha-se ainda bem longe de ter tomado o caminho seguro de uma ciência, constituindo-se antes um
simples tatear”, só a partir desta aquisição crítica e própria da razão que surgiria ao mesmo tempo no filósofo a
consciência desta historicidade empreendida pela história da filosofia. Este passo nos parece determinante na
resolução e no enfrentamento de nosso primeiro problema especulativo, isto é, de que apesar da história da
filosofia ser para Kant um “campo de batalha” onde neste combate não houve ainda vencedor algum, vista por
ele como “edifícios em ruínas”, a possibilidade mesma de um sistema para história não se dissolveria, e muito
menos se excluiria de uma crítica, principalmente se o objetivo fosse justamente este, permitindo o filósofo
(que já está de posse agora da ideia do todo através de uma consciência arquitetônica da razão) também
empreender a possibilidade, como se quis no último capítulo da Crítica, de uma história da razão pura. Nesses
termos, mesmo Kant convicto de que já havia introduzido um “acabamento” mais correto para esta ideia, e de
que a arquitetonicidade da razão já encontrara uma completude própria através de um procedimento crítico,
confessaria por isso que “é um infortúnio que só após termos seguido por muito tempo as indicações de uma
ideia oculta em nós ao coletarmos rapsodicamente, como material de construção, (...) se nos tornou
primeiramente possível vislumbrar a ideia em meio a uma luz mais clara e esboçar arquitetonicamente um
todo segundo os fins da razão”.
Então, mesmo que esta passagem possa nos indicar, nessas circunstâncias transcendentais, uma característica
constante da sistemática do pensar kantiano, cujos princípios encontram-se em meio a uma ideia que só
158
poderia ser projetada a partir de um ideal conjectural, Kant já estaria convicto de que além de se comportar
como “germe”, ou propriamente como “membros”, seria verdade também que todos a possuíam “o seu
esquema na razão, o qual simplesmente se desenvolve”. Então, a partir desta colocação, o que era apenas uma
analogia existente entre o conceito e a referida imagem, transforma-se agora, para o filósofo, em esquemas da
razão, ou melhor, em arquétipos, fazendo com que a essencialidade do pensar filosófico seja justamente esta
condição que tornaria possível uma história filosofante da filosofia. Mesmo considerando esses elementos
conceituais, (que caracterizam de alguma forma o pensar sistemático da filosofia kantiana a respeito do seu
julgamento sobre as filosofias do passado), como eles então poderiam ser admitidos, segundo Micheli, numa
interpretação apenas conjectural ou ideal da filosofia enquanto conhecimento racional se são justamente esses
mesmos sistemas que estão sendo “julgados” consistentemente pela filosofia kantiana? Contudo, se a nossa
hipótese a princípio estiver correta, o que exprimiria enquanto capacidade esta legalidade transcendental da
razão buscar um esquema ideal e não apenas conjectural para a história, transformando-a em um sistema da
razão pura, seria exclusivamente a capacidade da reflexão. Somente ela como dispositivo heurístico
transcendental colocaria o jogo das faculdades que interpretam o passado no curso certo da experiência, como
se a amadurecida faculdade de julgar depreendida pela Crítica fosse exatamente este empreendimento
reflexionante e mais consistente com o qual Kant agora julgaria objetivamente uma dada filosofia do passado.
Palavras-chave: história da filosofia – esquema – razão – linguagem – ideia.
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Nome: Rogério de Souza Teza
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Osvaldo Frota Pessoa Jr.
Título: A Atualidade da Filosofia em Tempos de Neurociência
O objetivo dessa comunicação é discutir se a filosofia ainda tem um papel a desempenhar a despeito dos
avanços da neurociência, que tem se empenhado em resolver questões de séculos. Para tanto, divido minha
exposição em três partes. Na primeira, gostaria de examinar a afirmação de Popper de que os mais
importantes problemas filosóficos têm motivação em preocupações ligadas à ciência. Em seguida, me
proponho a analisar se os sucessos recentes da neurociência são realmente respostas a questões filosóficas
que contribuem para a filosofia. Por fim, procuro responder se ainda há questões que não podem ser
resolvidas definitivamente pelo avanço das ciências. Tenho, na verdade, muito mais perguntas do que
respostas a essa questão. Na verdade, é justamente a partir disso que pretendo esboçar uma resposta para o
lugar do fazer filosófico em tempos de neurociência.
Não é raro que nos deparemos com a questão de que a filosofia e a ciência nasceram intimamente ligadas.
Também é corriqueiro se dizer que a filosofia precede todas as ciências; essa é uma questão que só caiba,
talvez, na cultura ocidental, entre os herdeiros de uma tradição grega de pensamento que Husserl gostava de
chamar de cultura europeia. Por isso que a afirmação de Popper pode causar estranheza. Como é possível os
problemas filosóficos serem motivados pelos problemas da ciência? Não haveria aí uma inversão? A verdade é
que a obtenção de conhecimento é um objetivo que pode facilmente ser desvinculado da filosofia, uma vez
que pertence à necessidade biológica que se obtenha conhecimento dos objetos que nos cercam, assim como
todos animais devem conhecer quais dos objetos que o cercam devem lhe servir de alimento e quais os seres
que são seus predadores. Isso institui o controle dos fenômenos naturais, ainda que minimamente a todos os
animais. Assim, se a filosofia é um amor pela sabedoria, pelo conhecer, há um outro conhecer que
necessariamente a precede, e as preocupações desse conhecer do conhecer, desse conhecimento pelo próprio
conhecimento que é a filosofia, hoje um tanto esquecida, muito bem devem ser motivados por outros
problemas do conhecimento e não o contrário como se costuma pensar.
Retratar a filosofia desta maneira, que, em vez de fazê-la primeira, a faz última, pode parecer um equívoco de
uma análise simplista, logicista. A filosofia admitir isso para si própria seria como baixar a guarda e permitir
investidas como a de Wittgenstein quando diz que a filosofia nunca colocou um verdadeiro problema que
merecesse ser levado a sério. É preciso, porém, recordar que mesmo Aristóteles, o Filósofo, propunha uma
taxonomia do conhecer dividido na experiência sensorial ou saber o que é, no técnico ou saber como é, e no
teórico, ou saber por que é. E a filosofia, que desde sempre se encontrou apenas nesse último estágio, precisa
imprescindivelmente pelo menos do primeiro para ter do que duvidar. E a vida nunca prescindiu do segundo
para se preservar.
A filosofia se colocou no estágio mais alto do conhecimento, exigindo o máximo da recursividade, e auxiliou nas
predições dos níveis mais baixos. Mas como toda recursividade, se os elementos iniciais se alteram, os níveis
mais altos também sofrem seus efeitos. E, se, como a história nos mostra, a ciência, tal como a conhecemos
hoje, evoluiu da especialização da filosofia grega depois de passar pelo estágio de filosofia natural, só seguiu
esse curso porque houve sucesso da investigação das causas, como concebido o conhecimento grego, no
controle da natureza e na predição, contribuindo para o conhecimento técnico, no nascimento da ciência
moderna.
160
A despeito, porém, do estereótipo da filosofia natural, é uma questão genuinamente filosófica também se
perguntar pelo homem. Quem somos? Somos uma alma aprisionada em um corpo? Como a alma interage com
o corpo? Qual é a minha liberdade para escolher e decidir? Essas questões só interessaram a ciência mais
recentemente, quando a mente se tornou objeto de investigação sistemática a partir de meados do século XIX.
Da mesma maneira que, em algum lugar do passado, a ciência respondeu qual era a estrutura do sistema solar
e desfez as dúvidas sobre os encaixes das esferas cristalinas, da mesma maneira a neurociência quer lidar com
essas perguntas. E se parecem não fazer mais sentido, são afastadas da ciência, perdendo inclusive seu status
de conhecimento. Ora, onde é o lugar para falar de alma, no sentido cartesiano, por exemplo, senão no
pensamento religioso ou na história da filosofia?
Isso nos coloca frente à questão se não é a filosofia que motiva as questões científicas.
Os avanços da neurociência já explicam em certa medida a memória, a percepção, as emoções, o pensamento
racional. Mas essas eram todas objetos de conjetura filosófica. A neurociência já crê explicar a mente como
resultado de mapas mentais, como afirma Damásio, no seu mais recente livro “E o cérebro criou o homem.”.
Mas será que é isso mesmo? Questões sobre a visão que intrigaram Berkeley, hoje, parecem tão facilmente
respondidas. A memória, que tanto instigou Bergson, já foi tão sistematizada em operacional, de curto e de
longo prazo, já foi posta, ao menos em parte, em termos de sinapses e síntese proteica. A filosofia formulou
tantas teorias, que a ciência agora permite verificar e torna problemas dificílimos tão fáceis. Esse é o caminho?
A filosofia formula perguntas e alimenta as hipóteses para a ciência responder mais cedo ou mais tarde?
É natural que o filósofo veja com desconfiança essa objetividade científica redutora. Será realmente possível
alcançar a felicidade com uma pílula por dia? O escaneamento cerebral pode fazer a sociedade mais justa
permitindo retirar previamente os indivíduos problemáticos? Se não sobra espaço para a filosofia nem sequer
ter a liberdade de arbitrar sobre o livre-arbítrio, se até a formulação conjetural puder se encaixar no
determinismo materialista, qual o espaço então para se fazer filosofia?
Mas essas crenças nos avanços da neurociência são simplistas. Apesar de tudo, fMRI, por exemplo, não é a
fotografia do pensamento, mas apenas da atividade cerebral; a falta de serotonina não é sinônimo para
tristeza. Ora, e como seria possível conjeturar sobre os correlatos cerebrais para estados mentais se a filosofia,
campo da conjetura, deixasse de existir? Como será possível construir um conhecimento objetivo do sujeito se
a própria separação sujeito-objeto não passar do mero arranjo neuro-sináptico que passou do cérebro de
Descartes para o nosso?
A filosofia não é uma ciência. Ela nunca procurou respostas a problemas empíricos. A filosofia também não é
sistemática. Nunca foi um mero método de pôr problemas empíricos. A filosofia não é um saber científico. E, se
é o caso de a ciência ter emergido e, por fim, se separado da filosofia, é porque esta é uma postura que nunca
está satisfeita com o que é aprendido e apreendido. Ela é, afinal, o único expediente capaz de nos preparar
para viver quer a neurociência produza um desencantamento total em relação ao eu ou não, não através de
respostas, mas de novas perguntas, principalmente, aquele velho e grego “por que?”
Palavras-chave: Neurociência; Filosofia da Mente; Materialismo; Reducionismo
161
Nome completo: Selma de Sá Barros
Instituição de Ensino: USP
Nome do orientador: Homero da Silveira Santiago
Título do trabalho: “Jovens cidadãos: construindo uma reflexão crítica a partir do lúdico na filosofia.”
Pretendemos expor neste trabalho alguns relatos sobre procedimentos metodológicos utilizados em turmas
dos Primeiros Anos do Ensino Médio Público, em São Paulo, como estímulos ao desenvolvimento de uma
reflexão crítica pelos alunos, a partir de temas filosóficos relacionando-os às suas vidas, despertando, assim,
suas responsabilidades éticas perante a sociedade, enquanto jovens cidadãos. Partiremos, inicialmente, de
alguns exemplos de atividades lúdicas executadas a partir dos Diálogos de Platão “Crítão (Críton), ou o Dever” e
“O mito da Caverna” ou “Alegoria da Caverna” (Livro VII da República), em que os alunos puderam visualizar a
atualidade destes textos em nosso cotidiano. Neste interim, serão expostos os trabalhos que os alunos fizeram
através de seminários, cartazes, histórias em quadrinhos, curtas apresentações de peças teatrais, cujas
imagens serão mostradas durante a exposição. No segundo momento, falaremos sobre a interpretação crítica
de músicas, filmes que abordam problemas diversos, fazendo referência aos assuntos e períodos filosóficos
tratados nas aulas, em que os alunos puderam analisar, debater, afora escrever textos dissertativos,
relacionando diversos temas com a experiência de outros jovens e/ou deles mesmos. É a partir da
interdisciplinaridade que os alunos começam a enxergar os problemas sociais como sendo responsabilidade de
todos, verificando o que cada um pode fazer para que possíveis soluções surjam, analisando criticamente as
consequências de cada decisão a ser tomada, desenvolvendo, assim, a capacidade de autorreflexão,
reconhecendo também a importância da filosofia no trato com os diversos temas atuais e que os auxilia a
compreender o seu papel enquanto cidadãos no mundo.
Nos trabalhos executados a partir de breves encenações teatrais, os alunos refizeram “O Mito da Caverna”
baseado em situações que eles também consideravam como sendo “as cavernas atuais”, isto é, eles abordaram
temas como internet, vídeo games, televisão que tem aprisionado as pessoas em suas casas e/ou em
ambientes públicos e as tem afastado do contato social e, consequentemente, do que de fato ocorre em sua
volta. A partir dessas analogias, os alunos verificaram a importância de se pôr no mundo enquanto seres
humanos ativos socialmente, intelectualmente etc., quebrando “as correntes” que os prendem ao
individualismo exacerbado e os fazem enxergar o mundo através das “sombras” do “ouvir dizer” e não do que
é verídico. Assim, é a partir dos “mitos atuais” pensados em sala de aula que os alunos se viam na necessidade
de quebrar “as correntes da ignorância, do egoísmo” para ascenderem ao mundo real e mais justo em que
cada um se vê como parte integrante de um todo, colaborando para sua transformação. Logo, passaram a se
sentir como jovens que deveriam estar engajados nos diversos assuntos cotidianos (dentro e fora de suas
casas) sendo partícipes de um mundo que necessita, urgentemente, de ajuda, pois o isolamento social acarreta
patologias produzidas pelas diversas “cavernas” que criamos e que traz consigo sérias consequências.
Tal análise crítica do mundo a partir do “Mito da Caverna” também foi desenvolvida a partir de diversas
situações em que os alunos a transpuseram em forma de histórias em quadrinhos. Alguns alunos que se
identificavam mais com a música compuseram canções em ritmo de Hip Hop, Rock and Roll, onde conseguiram
explicar o mito acima, assim como o diálogo “Críton, ou o Dever”, fazendo comparações com nossa realidade.
Outros expuseram os temas de ambos os temas a partir de seminários convencionais, explicando suas ideias
gerais em que eles mesmos elencaram questionamentos sobre o que ocorria nos textos trazendo suas
respostas de maneira mais conscientes e não como uma mera obrigação de entender e responder algo
162
mecanicamente. Em outras palavras, os alunos que se predispuseram a apresentar os textos oralmente
souberam analisar os temas principais criando situações-problemas cujas ideias iam fluindo espontaneamente,
sem que eles se sentissem forçados a “repetir ideais” das quais não haviam entendido.
Em outro momento, discutimos sobre alguns filmes que tinham relação com certos temas da filosofia,
perpassando diversos períodos históricos, para que eles pudessem conhecer um pouco mais sobre a vida e o
contexto que os filósofos viveram. Em algumas avaliações trabalhamos a interpretação de trechos de algumas
músicas relacionando-os com alguns temas filosóficos que constavam no programa da escola, mas que também
pudemos dar um viés e trazer para nossa realidade, gerando debates em que os alunos se reconheciam dentro
dos problemas e a partir das discussões conseguiam desenvolver argumentos mais tolerantes sobre temas
como homossexualidade, religião, política, suicídio, violência contra crianças e adolescentes etc., trazendo
soluções mais maduras para estas questões.
Ademais, também foi trabalhado em um dos exames, trechos da canção “Botaram tanta fumaça”, do cantor e
compositor “Tom Zé”, em que os alunos deveriam comparar a situação de São Paulo nos anos 60, denunciada
na letra da música, com a situação presente da cidade, identificando alguns conceitos filosóficos sobre ética,
política, cidadania etc., que havia sido trabalhado nas aulas, buscando dar soluções para tais problemas. Ao fim
da análise, eles puderam perceber que a filosofia não estava para além da realidade, mas que ela exercia um
papel fundamental no trato com diversos temas que envolvem as pessoas, suas relações, as organizações das
instituições na sociedade e que eles também eram capazes de “parir ideias”, tal como dissera o filósofo
Sócrates, concluindo não ser uma tarefa impossível poder enxergar as diversas situações cotidianas com um
olhar mais crítico, reconhecendo, também, a importância prática da filosofia.
Portanto, é a partir de trabalhos lúdicos, dentre outras opções, relacionados aos temas da filosofia que
podemos reconhecer nas habilidades artísticas dos alunos uma nova forma de colocá-los num ambiente escolar
em que o conhecimento filosófico pode ser desenvolvido de maneira proveitosa e não cansativa, onde tais
alunos se reconhecem como sendo capazes de compreender, mas também vivenciar a filosofia em suas vidas
como algo concreto e não uma mera abstração de ideias que estivessem longe de nossa época, de nossa
realidade.
Palavras-chave: Jovens cidadãos, autorreflexão, filosofia, trabalhos lúdicos.
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Nome: Silvia Maria Brandão Queiroz
Insitição de Ensino: Unifesp
Orientador: Edson Luis de Almeida Telles
Título: A filosofia diagnosticando modos de agir do contemporâneo
A produção filosófica não se separa e não se limita ao presente do filósofo que a produz. De maneira
extremamente simplista, poderíamos dizer que Kant pensou a moralidade com a Revolução Francesa. Marx, a
luta de classes com capitalismo do século XIX. Benjamin, sua crítica fulminante ao historicismo durante o
nazismo. Ricoeur e Arendt, conectados à experiência do totalitarismo. Foucault, Deleuze e Guattari, em meio a
processos de subjetivação que não se confundem com o sujeito. Contudo, parece-nos que estes filósofos
refletiram acerca de questões de seu presente buscando compreendê-las em perspectiva de um devir mais
liberto das formas de opressão e dominação que os percorreram em seus tempos históricos e para isso
dialogaram com temporalidades, com multiplicidades de temas, atualizaram reflexões, estabeleceram
argumentos, criaram e alteraram perspectivas conceituais, confrontaram paradigmas, elaboraram hipóteses. E
deste percurso surgiram diagnósticos propiciadores de mutações pessoais e sociais potencialmente criativas e
engendradoras de rupturas com as formas de dominação em curso. Hoje estas produções constituem parte do
acervo da história da filosofia. Todavia, consideramos que pensar o fazer filosófico como diagnóstico de
mutação e criação significa compreendê-lo como fluxo que não se desprega e ao mesmo tempo escoa para
além da comunicação conceitual de um território habitado por pares. Dito de outra forma, o potencial do
diagnóstico filosófico só tem possibilidade de emergir na intersecção não fixada entre o conceito e a
experiência. Não somente história da filosofia, o conceito em si, mas indagarmo-nos e refletirmos em meio às
questões do presente.
Nesta perspectiva, buscando exemplificar a atualidade da filosofia, ousamos diagnosticar modos de agir do
contemporâneo. Contudo, ainda que os pensemos como não restritos a um território, um país ou uma data,
considerando nossos laços de pertencimento históricos, comunitários e políticos elegemos como foco
contextual de argumentação a sociedade brasileira. Assim, a reflexão se dará a partir do diálogo com a filosofia
política contemporânea, a memória exemplar dos sobreviventes da recente ditadura e algumas de nossas
formas de agir em democracia.
Após situarmo-nos no debate acerca da atualidade da filosofia passamos então a apresentar nossa hipótese de
diagnóstico. Sintetizando-a, iniciamos conversando com Paul Ricoeur de A memória, a história, o
esquecimento. A partir do filósofo poderíamos dizer então que nas democracias originárias de um passado
violento como a brasileira o trauma é um dos instituintes da memória. Se para Freud o trauma abre uma lacuna
dolorosa na memória e o apaziguamento necessita da elaboração, que se dá no processo de narrar-se, atestarse e reconhecer-se na experiência do vivido tanto como agente do ato quanto como paciente da ação diante de
outrem. Para Ricoeur, na memória coletiva das sociedades afetadas pelo trauma o reconhecimento eleva-se ao
plano institucional e político em sua dimensão dialogal e pública, onde é preciso inscrever as memórias
dolorosas como compartilhamento da pluralidade de um passado em comum e como valor exemplar que
perpassa as ações dos homens no tempo. E o rastro que possibilita a inscrição está guardado na memória
subjetiva dos sobreviventes, daí a importância de seu testemunho. Contudo, as democracias fundadas em
anistias dificultam a inscrição quando instituem o esquecimento por meio do bloqueio ao compartilhamento
público desta memória exemplar. E este nos parece ser o caso da atual democracia brasileira.
164
No Brasil, pensando a partir de Derrida, devido ao perdão condicional imposto pela anistia de 1979 na
democracia a memória subjetiva das vítimas da ditadura tem sido impedida, silenciada, encoberta. E dentre as
consequências hoje temos uma chocante cultura de impunidade e modos de agir pautados no apoio e na
indiferença diante da violência de Estado do passado e do presente.
Se por um lado, não nos parece possível compreender estes modos de agir do contemporâneo sem nos
voltarmos à impunidade estabelecida em 1979, por outro, a problemática não apenas diz respeito a um resto
de um passado violento, mas faz parte também da ação política do presente democrático, como indica a
revalidação da interpretação da lei de anistia da ditadura pelo Supremo Tribunal Federal em 2010. E as
discussões acerca do silêncio público que perpassaram os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade indicam
que o bloqueio não está ausente na apuração dos fatos históricos. E ele não somente impede a elaboração do
trauma como nos expõe mais fortemente as manipulações de sentido que agem nas formas de dominação do
contemporâneo.
Neste contexto, podemos pensar que a ditadura, com a participação de parte das elites empresariais e políticas
e de parceladas da coletividade produziu ações permeadas pela adesão, pelo medo, pela ignorância e pela
indiferença diante do terrorismo de Estado. E estes modos de agir contribuíram com a produção de vítimas e
não estão totalmente ausentes dos processos de subjetivação que no presente modelam nossas ações.
Hoje quando a coletividade não assume a responsabilidade vicária, que de acordo com Arendt todos os povos
têm por coisas de que não participaram, mas foram feitas em seu nome, quando fica na indiferença, acaba por
tornar-se engrenagem da atual fábrica de formatação de condutas que, dentre outras formas, adotando o
argumento do mal menor continua conquistando apoios e fortalecendo indiferenças diante da suspensão de
direitos dos considerados uma ameaça à segurança e ao bem da coletividade como indica a postura de grande
parte da sociedade brasileira frente as recentes manobras políticas pela redução da maioridade penal.
Voltando então a memória exemplar da ditadura e pensando nos atuais modos de agir da coletividade,
argumentamos que o bloqueio à inscrição da memória exemplar nos sentidos comuns compartilhados tem
atuado como uma das engrenagens produtoras de dominações do contemporâneo. E associando ao bloqueio
do testemunho as políticas democráticas de atendimento às vítimas da ditadura e as atuais medidas de
exceção, vislumbramos que se os vitimados do passado, ainda que sem voz, enquanto sofredores e sujeitados
merecem cuidados, hoje os que representam riscos à segurança da coletividade e as subjetividades modelas
podem ter seus direitos legitimamente suspensos sem que grande parte da coletividade, que não foi ou não é
objeto das medidas exceção se indigne e saia da indiferença. Ao contrário, em muitos casos o que temos é o
apoio.
Enfim, trabalhando com a filosofia política contemporânea na perspectiva de diagnóstico do presente e
adotando como exemplaridade contextual a sociedade brasileira, como hipótese, consideramos que hoje os
modos de agir governamentais agem sobre as ações dos governados, garantindo sua eficácia por meio de
processos de subjetivação que nos cortam em grupos estratificados e fixados, capturando assim apoios e
indiferenças através da gestão de pequenos medos que nos fazem desejar nos submeter a grande segurança
proporcionada pelo aparelho estatal e suas instituições.
Palavras-chave: ditadura, democracia, memória, subjetividade, modos de agir.
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Nome: Solange de Oliveira
Instituição de Ensino: USP
Orientador: João Frayze-Pereira
Título: Judith Scott, sem dúvida. Uma perspectiva sobre a produção outsider na contemporaneidade.
Este trabalho propõe uma perspectiva, derivada da filosofia de Merleau-Ponty, sobre a experiência estética na
feitura e na leitura das obras da estadunidense Judith Scott, artista outsider que coloca em situação um vivido
emaranhado por fios e cabos retorcidos. Seus objetos demandam um perfazer artístico que supra a
complexidade e a indeterminação suscitadas pela infinita capacidade de mobilização a que essa obra nos
desafia — interpretá-la é se implicar nas suas tramas tecidas, mas significa também um instrumento que
colabora com a explicitação da experiência estética aludida pelo fazer bruto, e com o olhar crítico que nos
requisita sobre determinados critérios organizadores de conteúdos dentro de um sistema de artes. As obras de
Judith Scott convidam a exercitarmos essa liberdade. Em sua biografia, o historiador John M. McGregor afirma
que a artista tinha expressão calma e pacífica. Quando concentrada era perturbada ocasionalmente pelo hábito
de forçar as mandíbulas, alternando momentos de relaxamento e contração. A afetação foi o resultado de um
longo período de asilo em uma grande instituição, um ritmo que foi gradativamente atenuado, quando
retornou já adulta e frequentou o Creative Growth Center, instituição vizinha da casa que sua irmã gêmea
dividia com a mãe, na qual foi finalmente apresentada aos têxteis. Judith Scott tomava objetos díspares:
ventilador, guarda-chuva, revistas entre outros objetos, e fazia deles o coração de sua criação. Depois de
montá-los e atá-los com barbantes, envolvia-os protegendo e escondendo-os. Um fio, outro fio. Agora um
ventilador que passava a coexistir, então, com CDs. Cabos entornados dividiam sua existência multicor em
situação que, extemporânea e desafiadoramente interrogam a elegante recepção ao desfrutá-los dentro dos
limites do espaço museográfico.
Não obstante essa produção tenha sido catapultada diretamente da institucionalidade das deficiências de
desenvolvimento psicofísico para a institucionalidade artística, o olhar dedicado a esses indivíduos, não raro,
permanece ancorado nos preconceitos e estigmas que acompanham a prescrição da origem, enquanto que o
olhar dedicado à produção, acompanha a do destino, devidamente intelecutalizada. No entanto, o trabalho
parece solicitar uma reflexão sobre seu impacto em esferas politicosociais — tais como debilidades físicas e
perspectivas feministas — na pauta de determinados movimentos de direitos civis, ainda que a artista seja
indiferente a tais questões.
Qual é o segredo dos casulos que Judith Scott faz crescer para além de sua própria estatura? O que nos intriga,
nos impele a fruir algumas das mais exuberantes formas de expressão que surgem justamente das mais duras
condições humanas? A beleza estaria supostamente fundada em uma mórbida atração pelo trágico ou por
manifestações de dor física ou psíquica? Há inúmeras ocasiões em que a arte parece sedimentar-se sobre uma
fundação instável, sobre aquele limiar de humanidade, resgatado da penúria ou do gozo das experiências
vividas — que alguns artistas articulam em suas expressões — sempre prontas a habitá-las.
Alguns indivíduos têm a peculiar habilidade de inaugurar possibilidades de descrever-se a si mesmo, e de
indicar correlações entre pensamento e imaginário, transformadas, então, em uma realidade na qual a fonte
suprema do aprendizado e da certeza são eles próprios. Mas o fazem de modo a catapultá-las para um
contexto muito mais amplo, solicitando cumplicidade. A verdade sobre o mundo surge no contato, na
frequentação do mundo: uma compreensão entranhada, cujo sentido emerge dos vãos, na intersecção e no
intervalo, um espaço privilegiado onde a expressão não é um mero ajustamento. O campo em que o artista
166
trabalha é perceptivo, campo repleto de reflexos e impressões efêmeras que não estão rigorosamente ligados
ao contexto que, tão logo percebido, é situado no mundo —, apesar da sedução fácil que esse impulso possa
despertar. As coisas imaginadas não se confundem com o mundo, ainda que não sejam incompatíveis com seus
contextos.
Quando nos lançamos na leitura de uma obra, nos colocamos diante da intenção significante de outrem, um
terreno além daquele que confortavelmente costumamos frequentar ensimesmados em nossos pensamentos.
Repentinamente uma perspectiva totalmente nova nos assalta que passa a nos habitar. Todavia, ela só se fez
possível através de nosso próprio empenho, de nossa própria perspectiva. Invadidos por um estranho aparelho
de expressão que nos desafia com algo reconhecidamente familiar, em meio a confusa profusão de nossas
experiências. É sobre uma linguagem previamente constituída que se oferece a possibilidade de abertura para
que outra linguagem venha a se constituir e, operante, me conduza a um descentramento, a um outro ordenar
de algo que eu, como leitor — e mesmo seu autor, à medida em que a obra lhe escapa —, jamais teria antes
pensado ou concebido, como que uma desestabilização do que era já tido como dado.
Mas se baseamos nossa percepção na coerência das representações, o fundamento é um risco. Hesitantes,
seguiremos à deriva, abandonados em ponderações, em probabilidades e em conjecturas lógicas. Muitos
comentários sobre as obras no campo da arte privilegiam a razão sobre a expressão. A atividade categorial não
deixa de ser uma maneira de se relacionar com o mundo, mas o faz sob a condição da correlação com uma
configuração preestabelecida da experiência. É um procedimento anormal, à medida que denega a relação
essencial entre linguagem e pensamento, em préstimo da relação entre pensamento e linguagem amputados
de seu sentido mais agudo, de um gesto desencarnado. Como esclarece Merleau-Ponty — por exemplo, em Le
doute de Cézanne (Sens et non-sens, 1966) — o sentido de uma obra não é determinado pela vida do artista ou
pelo contexto em que viveu, não obstante sejam componentes imprescindíveis para que seu trabalho exista
como obra. O sentido não está em algum lugar colocado, segredado, não está nas coisas, nem sua concepção
pode preceder a execução. O sentido exige da obra a sua existência. E a beleza reside em seu mais caro e
precioso bem: a liberdade, um espaço de ação que surge a partir da possibilidade de inaugurar um gesto
completamente inédito e, ao mesmo tempo, coerente com seu projeto em curso, desde sua chegada ao
mundo.
Palavras-chave: Judith Scott. Outsider artist. Experiência estética. Merleau-Ponty. Fenomenologia.
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Nome Completo: Suze de Oliveira Piza
Instituição de Ensino: Unicamp
Orientador: Zeljko Loparic
Título do Trabalho: Filosofia como diagnóstico do presente? Sobre a produção e reprodução de pensamento
filosófico no Brasil.
A relação posta por Foucault entre Aufklärung, crítica e a chamada ontologia do presente (ou Filosofia como
diagnóstico do presente e de nós mesmos) nos anima a pensar [com Foucault] sobre o que estamos fazendo
quando fazemos Filosofia no Brasil. A ousadia do pensamento (ouse saber!) conclamada como lema por Kant
em seu célebre texto Resposta à pergunta: o que é a Aufklärung?, texto lido e relido por Foucault enquanto ele
fazia sua própria Filosofia, pode nos servir de ponto de partida para pensar a produção de pensamento
filosófico entre nós . A ousadia do pensar, tanto em Kant quanto em Foucault, é uma ousadia crítica, na medida
em que não se trata apenas de um gesto contra o poder de um entendimento externo, mas, da provocação
para se pensar por si mesmo. Ao fazê-lo o homem terá que se voltar para si e mudar de atitude, assumir uma
atitude crítica. A atitude da razão que se interroga é o que está em questão aí. A ousadia do pensamento força
a razão ao seu limite, não se reduzindo à uma demarcação epistemológica de um campo, a ousadia se expressa
como atitude que efetiva a Filosofia como prática e exercício de leitura do presente.
Esse é o espírito onde a expressão filosofia como diagnóstico do presente foi forjada. A defesa da autonomia
do pensar é reforçada na tese de Foucault (de que o filósofo é aquele que diz o contemporâneo) por um
conceito: a parresía. Conceito político e antropológico por excelência, a parresía é o dizer a verdade que
permite ou possibilite que o sujeito se constitua como autônomo e que diga a verdade sobre si mesmo e sobre
o mundo. A parresía tem a ver com uma espécie de auto soberania. Essa coragem de verdade, ou o falar
francamente, pode ser tomada como ação política e como ação filosófica. Nisso consiste para Foucault a
própria definição do papel do intelectual ou ainda a tarefa do filósofo: levar a seus contemporâneos o que está
acontecendo. Fazer um diagnóstico do presente.
Pense por si mesmo e tenha coragem de verdade! As duas fórmulas se cruzam e são o cerne da própria atitude
crítica que está presente tanto em Kant quanto em Foucault, marcos na História da Filosofia, marcos do
pensamento moderno. Um projeto que vincula razão e ética – as duas fórmulas aparecem como imperativos.
Aquele que diz a verdade não é forçado a fazê-lo, mas o faz, pois considera este seu dever. Obediência a si
mesmo. Os imperativos, quando obedecidos, garantem a constituição de um sujeito autônomo e que cuidade-si. No curso de 1982, Foucault apresenta o cerne desse cuidar-de-si: uma atitude geral frente ao mundo e
uma conversão do olhar, do exterior para si mesmo; e, a incorporação das técnicas, as ações e os exercícios do
dizer. Essas diferentes práticas formariam o conjunto da cultura de si que é ao mesmo tempo um caminho para
o desassujeitamento, um ato de resistência contra o poder.
Essas ideias, elaboradas por filósofos reconhecidos pelo mundo da Filosofia no Brasil, são trazidas aqui para
esse espaço de reflexão para nos auxiliar na tarefa de compreender: o que estamos fazendo quando fazemos
Filosofia no Brasil? Estamos de alguma maneira próximos dessa atitude crítica? Produzimos pensamento
filosófico de alguma maneira ao ponto de dar conta das nossas questões?
O parâmetro dado por Kant e Foucault possibilita definir o campo do pensar filosófico em nosso território ou
ainda o campo da produção de Filosofia no Brasil. O referencial até aqui nos indica uma Filosofia como prática,
uma espécie de auto posição do sujeito. Kant e depois o próprio Foucault (a partir desse conceito) produzirão
168
em suas teorias uma espécie de ontologia de si – uma ontologia de nós mesmos – centrada no que o homem
pode fazer de si, ou o que Foucault chamará posteriormente de práticas de subjetivação ou técnicas de si. A
Filosofia de ambos, e tantos outros filósofos, poderia ser vista como efeito de uma prática de diagnosticar a si e
ao mundo que temos alguma pertença.
Se tomarmos esse quadro de referência, como podemos avaliar a produção do pensamento filosófico no
Brasil? Resposta simples: não podemos. O que fazemos com o nome de Filosofia no Brasil não passa nem
próximo de uma concepção como essa. Quiça de qualquer outra concepção de Filosofia. Não produzimos,
reproduzimos. Se tomarmos como referência a coragem de verdade e a autonomia do pensar – pensar por si
mesmo – provavelmente, teríamos que admitir que não há o que avaliar em termos de produção de Filosofia,
tampouco há o que avaliar se tomarmos a definição de Deleuze de que a Filosofia é produção de conceitos. Se
a tarefa do filósofo é fazer um diagnóstico do presente não temos Filosofia no Brasil, com raras exceções, que
quando aparecem, normalmente não reconhecidas como Filosofia. Como disse uma vez Paulo Arantes, somos
formados nos cursos de graduação de Filosofia no Brasil para sermos técnicos em referência bibliográfica. O
“filósofo” no Brasil não tem a tarefa de diagnosticar o presente, aliás a uma dissociação entre tempo e Filosofia
no Brasil e ainda como não poderia deixar de ser, falta a esse pensamento um sentido geográfico. É um
pensamento autista. Não há sentido temporal, não há sentido geográfico, não há relação com o mundo. Nossa
razão, como disse Roberto Gomes, é ornamental, dependente, deslocada, afirmativa, subserviente. Somos
ensinados a reproduzir o que já pensaram, fazer paráfrases e explicitações, é o que se chama na academia de
aprofundamento em um aspecto de uma Filosofia ou em um autor. Não pense por si mesmo, não ouse pensar,
mandam os imperativos reais na maior parte dos departamentos de Filosofia no Brasil.
Temos uma relação patológica com a tradição. Não se pensa junto, na ou a partir da tradição, se pensa a
tradição. A tradição não está atrás de nós como mola propulsora para o pensar, ela é o único objeto de reflexão
filosófica, e para ser mais precisos, não a tradição como um todo (o que poderia ser de grande valia) mas um
pedaço dela, solto, alheio ao tempo e ao espaço. Nunca fizemos Filosofia sobre o mundo, sobre nós ou nossos
problemas, quando muito fazemos algo (que chamamos de Filosofia) sobre os problemas da Filosofia; isso
quando se produzem textos sobre problemas, normalmente se faz Filosofia sobre algum conceito de algum
filósofo desatrelado completamente de qualquer problema, de qualquer necessidade, de qualquer afeto. Sem
contar as inúmeras vezes que nem o filósofo é o foco, mas seus comentadores e os comentadores dos
comentadores. Apesar de muito bons explicadores de Filosofia, nossos trabalhos não passam, muitas vezes, de
uma boa revisão de literatura.
É comum ouvir, dos poucos intelectuais que se ocupam com essa questão, que, de fato, não estamos fazendo
Filosofia e, sim História da Filosofia, como fizeram inclusive, muitos filósofos europeus. Autoengano?
Ingenuidade? Ou inapetência? Não estamos fazendo História da Filosofia, estamos requentando os filósofos e
suas ideias, fazer História é ser sujeito da História. Todas as ideias que tem lugar entre nós, que diz algo de nós,
merecem ser lidas, relidas, discutidas, desde que atualizadas, trazidas para o nosso mundo. Mas, toda teoria
filosófica já criada na História da Filosofia diz respeito a nós de alguma forma? E pode/deve ser atualizada? Isso
é História da Filosofia ou historiografia da Filosofia? Não estamos fazendo História da Filosofia, simplesmente
por que não estamos dentro da Filosofia. Nós, latino-americanos, não somos sujeitos históricos nesse processo,
somos não ser e, como já dizia Parmênides – o não ser não é! Somos heterônomos, subservientes,
inconsequentes, pois a transformação de cursos de Filosofia em apresentação de sistemas (sem
comprometimento com a verdade) e, tantas outras críticas dos mesmos sistemas, forma apenas céticos, que é
a nosso ver, um passo para o cinismo. A Filosofia no Brasil trai o cerne da prática filosófica mais básica, inverte
de maneira perversa os princípios mais basilares da produção de pensamento e da responsabilidade para com
o mesmo.
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No campo da Filosofia talvez não haja questão mais primordial, nem mais contemporânea e urgente, que fazer,
como dizia Foucault, uma conversão radical sobre si e perguntar: afinal, o que estamos fazendo? Tem crescido
o interesse pela Filosofia no Brasil. Cada vez mais filósofos se formam em cursos de graduação em nosso país,
temos diversos programas de mestrado e doutorado em Filosofia no Brasil. Os congressos de Filosofia
encontram cada vez mais público e a quantidade de trabalhos apresentados nesses espaços, por vezes,
surpreendem. Mas, qual o modelo de pesquisa que orienta todo esse interesse? O que será proposto, aceito, e,
principalmente, reconhecido como Filosofia nesses departamentos e que consequentemente define o que é a
própria Filosofia entre-nós? Há algo que precisa ser evidenciado: estamos doentes. Temos uma relação
patológica com a tradição e com a nossa profissão, nós a tornamos estéril, temos uma relação de descuido
conosco e com a própria Filosofia. Estamos acaso alucinando quando dizemos que estamos fazendo Filosofia?
Não percebemos que fazemos o contrário daquilo que é indicado pelos próprios filósofos e textos que
estudamos e ensinamos?
A Filosofia no Brasil precisa de uma revolução. Para tanto é preciso defender que é possível assumir uma
atitude sem adotar uma doutrina; que é possível atuar dentro de um modelo filosófico sem adotar os mesmos
conceitos ou a mesma visão de mundo; c) que é possível atualizar um pensamento filosófico sem fazer a
pergunta: o que a autor diria sobre tal tema, problema ou situação hoje?; d) que o estudo da Filosofia pode ser
metafilosófico indicando a maneira como os conceitos foram criados, os operadores conceituais usados por um
filósofo e com isso incitar a criação; e) e, ainda, que é possível pensar não igual a um filósofo, mas em analogia
com ele, em relação a ele, pois um diálogo deve ser ético e isso pressupõe dois seres humanos com o mesmo
estatuto e em relação, relação essa que não pode ser dialética em que o mesmo subsume o outro. É preciso
refletir nesse momento sobre nossa prática para daí quem sabe possamos fazer Filosofia.
Palavras-chave: Diagnóstico do presente, ousadia do pensar, Filosofia no Brasil.
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Nome Completo: Thiago Rodrigues
Instituição de Ensino: Unifesp
Orientadora: Rita de Cassia Souza Paiva
Título: Do reducionismo dogmático ao ceticismo metodológico: algo sobre a necessária postura antidogmatizante na contemporaneidade.
O presente estudo pretende explicitar a atualidade do ceticismo metodológico como elemento central à
atividade filosófica afim de evitar o reducionismo dogmático imperante em grande parte do discurso
contemporâneo. Objetiva-se aqui, mais especificamente, se contrapor àqueles autores que se apresentam
como detentores da reflexão filosófica, mas na realidade impõe uma postura dogmática e anti-reflexiva. Para
tanto torna-se imperativo melhor pontuar nosso problema.
Todo estudante de filosofia aprende logo nas primeiras aulas que certo anti-dogmatismo é imprescindível ao
estudo filosófico. O ceticismo metodológico empregado por Descartes em suas Meditações metafísicas
constitui página central àqueles que pretendem desenvolver uma abordagem filosófica. Não é possível
adentrar no universo da filosofia se adotamos passivamente como certas – Verdadeiras – as palavras de nossos
maestros. Já dizia Nietzsche, “retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno” (NIETZSCHE,
1995, p. 20).
No entanto todo estudante de filosofia sabe também da importância de se estudar nossa herança filosófica.
Não se faz filosofia sem o estudo da história da filosofia, mesmo que a atividade filosófica não se reduza aos
estudos historiográficos. Não se pode contestar Kant, por exemplo, sem ao menos compreender sua filosofia. E
compreender a filosofia kantiana significa também localizá-la no devir filosófico. Desse modo a história da
filosofia, no registro da produção brasileira, surge contra certa produção diletante que imperava até então.
Sabemos, portanto, da necessidade do estudo sistemático e metódico dos autores que compõem a tradição do
pensamento filosófico.
Torna-se imperativo então ressaltar a distinção entre a história da filosofia e a atividade filosófica. É Kant
também, na Crítica da Razão Pura, que alerta para a diferença entre filosofia e filosofar. Nesse sentido:
Pode-se apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão na aplicação dos seus princípios gerais
em certas tentativas que se apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razão tem de procurar
esses próprios princípios nas suas fontes e confirmá-los ou rejeitá-los (KANT, 2001, p. 673).
Sendo assim, devemos conhecer as fontes históricas, mas cabe ao exercício da razão confirma-las ou rejeitá-las,
ou seja, a atividade filosófica se caracteriza por um exercício da razão. O que se entrevê aqui é a recusa de todo
recurso ao princípio de autoridade como uma forma de fuga ao pensar, no sentido em que fala Hannah Arendt.
Não se faz filosofia aderindo passivamente, isto é, acriticamente, à uma corrente de pensamento ou a uma
retórica inflamada. Desse modo, a atividade filosófica exige o exercício da razão. Em outras palavras, filosofar é
adotar certa abordagem metodológica baseada na investigação, o que leva aquele que se aventura nessa
jornada a averiguar os dogmas estabelecidos, e a refletir a fim de alcançar suas próprias conclusões para além
de toda orientação dogmática.
Durante séculos o magister dixit fez do apelo a autoridade a regra do discurso dogmático, isto é, se o “mestre
disse”, logo, não se questiona. Durante o Idade Média, por exemplo, apelava-se ao magister dixit que, no caso,
se referia a filosofia aristotélica, para impor fim a qualquer divergência possível. É inconteste que muitos dos
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representantes do discurso conservador na contemporaneidade lançam mão da retórica dogmática como
forma de legitimar suas teses. Ora, nada mais contrário ao pensamento filosófico.
Desde Platão – filósofo epistemologicamente dogmático –, que o recurso a retórica é combatido. Aquele que
faz uso do discurso inflamado e vazio como única forma de legitimar seu pensamento não pode ser
considerado um pensador. E aquele que adere passivamente às suas teses tão pouco. Ouvimos reverberar aqui
o sapere aude kantiano, ousa saber!, ousa fazer uso do próprio entendimento contra todo e qualquer recurso à
autoridade. É preciso pensar por conta própria e se questionar sobre a validade de todo discurso que se
apresenta como filosófico.
Isso posto, estamos prontos para tomar como ponto de partida certo discurso corrente na contemporaneidade
que exige esses dois erros crassos que contraditam o pensamento filosófico e que foram descritos acima, quais
sejam, [1] aceitar passivamente as palavras de seus mentores ou tutores intelectuais; [2] não se prontificar a
buscar respaldo na história da filosofia, afinal não devemos reinventar a roda todas as vezes que buscamos
pensar sobre algo.
Nossa hipótese fundamental é que por detrás desta técnica retórica, e de outras semelhantes, esconde-se uma
postura autoritária que impossibilita o livre exercício da razão, em outras palavras, aquele que se diz portador
da verdade exige de seus seguidores que abandonem sua capacidade crítica e aceitem suas teses, por mais
absurdas que sejam.
Ao que se propõe aqui, esses exemplos bastam para justificar a defesa do ceticismo metodológico como
condição de possibilidade ao exercício filosófico. É pressuposto, por consequência, o entendimento da filosofia
como um tipo de atividade investigativa. Visando corroborar esta tese, é pertinente uma breve apresentação
da abordagem cética a fim de defender a postura anti-dogmatizante como prerrogativa necessária ao bem
pensar. Para tanto tomaremos como referência algo do ceticismo pirrônico revisitado pelas análises de
Oswaldo Porchat Pereira, sobretudo em A Filosofia e a Visão Comum de Mundo.
Palavras-Chave: Anti-dogmatismo. Ceticismo. Dogmatismo. Discurso. Atividade-Filosófica.
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Nome Completo: Ubiratane de Morais Rodrigues
Instituição de Ensino: USP
Orientador: Oliver Tolle
Título do Trabalho: A atualidade da utopia no horizonte estético de Ernst Bloch e Theodor W. Adorno
A partir da abordagem dialética da Teoria Estética (Ästhetische Theorie) de T.W. Adorno e do Princípio
Esperança (Das Prinzip Hoffnung) de Ernst Bloch, propomos como objetivo deste trabalho apresentar a
atualidade da utopia no horizonte estético destes dois filósofos. Para alcance de nosso objetivo, partimos da
origem e dos desdobramentos dos conceitos enigma (Rätsel) de Adorno e pré-aparência (Vor-Schein) de Bloch
e suas relações com a utopia. Estes conceitos são centrais na tarefa dos dois filósofos para pensar e interpretar
a obra de arte no século XX, e para o autor deste trabalho, ainda respondem questões estéticas da atualidade.
No Brasil, o diálogo Adorno-Bloch é pouco conhecido, Michel Löwy (2009) até o momento é o único vestígio de
diálogo entre ambos traduzido no Brasil, nos propomos também a contribuir para o conhecimento filosófico
destes dois pensadores e apontar a atualidade dos dois no pensamento estético contemporâneo.
Não temos dúvidas da possibilidade de um diálogo entre Adorno e Bloch sobre a utopia, mas, cumpre-nos
investigar se no âmbito da estética os conceitos enigma (Rätsel) e pré-aparência (Vor-Schein) para além de suas
dialéticas com a verdade apontam vestígios utópicos na obra de arte.
A noção pré-aparência (Vor-Schein), que para nós marca esta relação – arte e utopia – está intimamente ligada
aos sonhos acordados, estes, que diferente dos sonhos diurnos são os modeladores da arte. Como modelador
da arte, os sonhos diurnos cumprem a função de apresentar antecipadamente um mundo melhor, que a arte
anteciparia pela pré-aparência (Vor-Schein) do visível, pois nela seriam comunicados os interesses utópicos de
uma vida melhor.
A pré-aparência (Vor-Schein) faz da obra de arte um fragmento do possível real, uma passagem da obra para o
mundo, liga o fragmento ao seu correlato no mundo do qual ele faz parte, posto que “a utopia concreta como
determinação do objeto pressupõe o fragmento concreto como determinação do objeto e o envolve, ainda que
certamente como um fragmento no final das contas passível de anulação” (BLOCH, 2005, p, 212). Ora, “o
elemento ilusório das obras de arte concentrou-se na pretensão a serem um todo” (ADORNO, 2008, p. 159).
Não seria o fragmento a melhor maneira de se escapar à tentativa de totalização da obra de arte? Uma
maneira de sustentar a arte como aparência sem cair no meramente ilusório?
O conceito de Enigma (Rätsel), que aparece mais sistematizado e desenvolvido a partir da seção “caráter
enigmático, conteúdo de verdade; metafísica.” (Ibidem, pp. 183-209), nos remete ao início da obra onde
Adorno afirma que: “a definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que foi outrora, mas apenas é
legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se”
(Ibidem, p. 14).
Há um esforço tanto em Adorno como em Bloch de resgatar a aparência da obra de arte. Este resgate só
poderia ser feito se houvesse para além desta, algo que só se pudesse ter acesso através da aparência. Embora
Bloch fale da utopia, da obra de arte como fragmento utópico, não afirma nenhum acabamento utópico, ou
melhor, não aponta nenhum lugar pronto para habitação. A obra de arte não é acabada, porque como nos
lembra Adorno ela, “(...) a arte só é interpretada pela lei do movimento, não por invariantes. Determina-se na
relação com o que ela não é” (Idem).
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Tanto Bloch quanto Adorno sabem que a aparência não é suficiente para apresentarem um conteúdo de
verdade ou um fragmento de utopia, é na e pela aparência da obra que adentramos na verdade da obra de
arte, seja esta manifesta de forma enigmática ou na forma de pré-aparência (Vor-Schein). É Adorno o autor que
melhor expõe a crise da aparência, e a partir desta, ele chega à exposição do caráter enigmático da obra de
arte. Aqui, ao contrário de Bloch, não há antecipadamente uma função utópica na arte, mesmo sabendo que
“em toda obra de arte genuína, aparece algo que não existe.” (Ibidem, p. 131).
Será o caráter enigmático da obra, ou melhor, o conteúdo de verdade atravessado pelo enigmático da obra que
sustentará a aparência. Ou ainda, a interpretação filosófica da categoria enigma (Rätsel) na obra de arte, é que
para nós, garantirá um estatuto epistemológico à obra de arte, e por fim, poderá sustentar no horizonte
estético adorniano a utopia.
Partindo do desdobramento entre o conteúdo de verdade e enigma (Rätsel), buscamos encontrar um nexo
entre este desdobramento e a utopia em Adorno. Não fugindo de seus princípios, a utopia aparece no
horizonte estético de Adorno negativamente. Mas, não de todo explicitamente abandonada. É preciso adentrar
cuidadosamente neste terreno, pois ao mesmo tempo em que Adorno diz que “a arte, tal como a teoria, não
está em condições de realizar a utopia; nem sequer negativamente.” Ele afirma: “o Novo enquanto
criptograma é a imagem da decadência; só através da sua negatividade absoluta é que a arte exprime o
inexprimível, a utopia.” (Ibidem, p. 58).
Em Bloch, também não há a realização da utopia através da arte, esta apenas antecipa pela pré-aparência
(Vor-Schein) o ainda-não. Bloch não fala como deve ser a reconciliação sujeito-objeto, não transcreve um lugar
pronto e acabado, não determina o indeterminável, mas aponta um horizonte de possibilidade, um possívelreal. Adorno, não é tão otimista e enfático como Bloch, mas sabe que pelo “(...) facto de as obras de arte
existirem mostra que o não-ente poderia existir. A realidade (Wirklichkeit) das obras de arte dá testemunho da
possibilidade do possível” (Ibidem, p. 204).
A obra de arte que espera ainda sua interpretação é enigmática, assim, se “toda a obra é utopia tanto quanto,
pela sua forma, antecipa o que ela, em última análise, seria e isso viria ao encontro da pretensão de obliterar a
proscrição do ser próprio (Selbstsein) disseminado pelo sujeito” (Ibidem, p. 207). Poderíamos, com risco de
errar, levantar a hipótese de que o enigma (Rätsel) da obra é a utopia não decifrada, ainda não alcançada,
irrealizável no mundo administrado, mas à espera, no horizonte da possibilidade. E por fim, reforçar que no
horizonte estético de Bloch e Adorno a utopia aproxima e distância estes dois filósofos sempre torneados pela
crítica e pela interpretação, mas nunca encerrados.
Palavras-chave: Adorno. Bloch. Estética. Utopia.
Referências:
ADORNO, T.W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008.
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. V1. Trad. Nélio Schneider. EDUERJ: Contraponto. Rio de Janeiro. 2005.
__________. The Utopian Functon of Art and Literature: Selected Essays. Studies in contemporary German
social thought. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1988.
LÖWY, Michel. Ernst Bloch e Theodor Adorno: luzes do Romantismo. In cadernos Cemarx, nº 6- 2009, pp. 1127.
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Nome: Victor Fiori Augusto
Instituição de ensino: USP
Orientador: Luís César Guimarães Oliva
Título: Implicações políticas da negação do livre-arbítrio: Espinosa contemporâneo?
O presente trabalho tem a intenção de explicitar alguns dos problemas que a ausência do livre-arbítrio
humano, anunciada por pesquisas neurocientíficas, pode trazer para a política contemporânea, buscando
mostrar também que a filosofia política de Bento de Espinosa pode nos ajudar a vislumbrar soluções concretas
para esses impasses.
As neurociências se tornaram uma ciência bastante influente nas últimas décadas; as pesquisas na área têm
recebido grandes investimentos, e seus resultados, além de impactarem diversos campos do saber (como
biologia, psicologia, educação, entre outros), têm ultrapassado as fronteiras acadêmicas, alcançando os
noticiários e mudando mesmo a forma como as pessoas percebem a si mesmas. Estaríamos assistindo a uma
revolução neurocientífica, a qual mereceu inclusive um manifesto publicado em 2004 na Alemanha por onze
neurocientistas. Uma das teses que dizem respeito a essa pretensa revolução diz respeito à liberdade (ou,
antes, à ausência de liberdade) humana. Influentes neurocientistas têm afirmado, a partir de pesquisas
recentes, a inexistência do livre-arbítrio humano. Se Freud afirmou na primeira metade do século XX que a
psicanálise e a ideia de que “o Eu não é senhor em sua própria casa” representavam a terceira afronta ao
amor-próprio humano (sendo a primeira afronta o geocentrismo copernicano [a terra não é o centro do
universo] e a segunda a teoria da evolução de Darwin [o homem não foi criado por Deus à sua imagem e
semelhança]), o neurocientista espanhol Francisco J. Rubia fala no início do século XXI de uma “quarta
humilhação”, que colocaria em xeque “convicções tão firmes quanto a existência do eu, a realidade exterior ou
a vontade livre” .
Não pretendemos questionar os experimentos neurocientíficos e seus resultados, mas sim refletir sobre suas
possíveis implicações políticas. A negação do livre-arbítrio humano incide diretamente sobre o direito penal e
sobre os conceitos de culpabilidade e responsabilidade, visto que, segundo alguns autores, tais conceitos têm
como base a liberdade da vontade. Dada a importância que as neurociências têm assumido atualmente, é
bastante plausível pensar que suas teses acerca do livre-arbítrio podem abalar os fundamentos de nosso
edifício jurídico-penal , levantando questões acerca do direito e da vida em sociedade que podem ser de
grande interesse para a filosofia política: se o livre-arbítrio humano não passa de uma ilusão, toda malícia ou
todas as ações contrárias aos direitos comuns são desculpáveis, de modo que os atos mais atrozes poderiam
ser escusados pelo simples fato de que o agente que os cometeu não o fez livremente? Ora, se as ações
humanas não têm como causa a livre vontade, faz sentido falar em recompensa para os justos e punições para
os injustos?
Em pleno século XVII, ao demonstrar que os seres humanos não são dotados de livre-arbítrio, Bento de
Espinosa foi confrontado com questões semelhantes às que formulamos acima por pelo menos dois de seus
correspondentes (Tschirnhaus e Oldenburg), como podemos ver nas cartas 57 e 74 da Correspondência
espinosana. De acordo com a filosofia de Espinosa, a livre vontade que os homens imaginam possuir não passa
de um preconceito comum que se deve ao fato de que temos consciência de nossos apetites e volições, mas
ignoramos as causas que nos levam a apetecer e querer. Criticando os filósofos ou teóricos que, por
conceberem a política a partir do homem tal como gostariam que ele fosse (como um ser que está na natureza
qual um império dentro de um império, que tem o poder absoluto de se autodeterminar) e não como ele
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efetivamente é, se afastaram da experiência ou da prática (experientia sive práxis), a intenção declarada de
Espinosa, ao redigir seu Tratado político, é a de pensar a partir do homem tal como ele efetivamente é.
Uma vez que os problemas jurídico-políticos relacionados à ausência do livre-arbítrio humano, que as
neurociências podem trazer para o debate político contemporâneo, já foram considerados por Espinosa,
cremos que a filosofia política espinosana pode ser útil para refletirmos sobre as implicações políticas da
negação da liberdade da vontade e sobre possíveis soluções para os impasses trazidos por ela, sobretudo se
nos interessa pensar a política a partir da perspectiva dos cidadãos (ex parte populi) e não da dos governantes
(ex parte principis) .
Palavras-chave: Espinosa; livre-arbítrio; neurociências; filosofia política; punição.
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Nome: Wagner Barbosa de Barros
Instituição de ensino: Ufscar
Orientador: José Eduardo Marques Baioni
Título: A autonomia do pensar na atualidade sob a perspectiva da Aufklärung kantiana
Os meios de comunicação (televisão, internet e livros, por exemplo) estão cada vez mais democráticos e
chegam aos lugares mais longínquos, onde antes eram precários ou até mesmo nulos. Em um mundo
globalizado, onde as informações estão disponíveis instantaneamente em qualquer parte do planeta e a
qualquer um de nós, é cada vez mais frequente o questionamento se essa disponibilidade tem ajudado ou não
a formação do indivíduo.
Se por um lado os centros educacionais têm utilizado esses recursos com o intuito de dinamizar o ensino e
potencializar a experiência educativa, por outro lado, estes mesmos meios servem de fontes acríticas e como
recurso à desinformação, que não complementam nem ajudam na formação do indivíduo. A utilização dos
resultados obtidos pelo avanço do saber, cotidianamente, aparentam estar designados, em sua maioria, a
suprimir as expectativas de um pensar vazio e sem autonomia. Recorremos então à Aufklärung kantiana, com o
objetivo de ressaltar alguns pontos que podem nos auxiliar a compreender a problemática da falta de
autonomia do pensar, responsável talvez, pela má utilização do avanço do saber.
Ainda que mais de duzentos anos nos separe da publicação do texto kantiano “Resposta à pergunta: que é
esclarecimento (Aufklärung)?”, podemos nos valer deste para compreender algumas questões que se dispõem
em nossa contemporaneidade a respeito da autonomia do indivíduo. É preciso resguardar as especificidades do
momento e do objetivo com que o texto foi escrito, ou seja, ter como plano de fundo a perspectiva histórica
em que Kant vivia em 1784. Vislumbrado talvez pelos preceitos iluministas e, fiel à ideia da força da razão como
senhora de si, relata-nos os meios pelos quais a passagem à maioridade percorre. Porém, como uma filosofia
não se encerra nem se compreende esgotada ou superada, é nos permitido alçarmo-nos um sobrevôo sobre a
Aufklãrung kantiana com o objetivo de apreender maneiras de interpretar nossa contemporaneidade,
estabelecendo um estudo, ainda que breve, sobre a necessidade da construção de uma formação pautada na
autossuficiência racional.
Para Kant, a grande maioria do gênero humano encontra-se, ainda que liberto de suas inclinações animais, em
uma menoridade (Unmündigkeit) racional, pois são covardes e preguiçosos. O menor é então aquele que
dispensa sua capacidade de pensar por si e opta pelo pensar alheio, ausentando-se de sua responsabilidade
racional, designada por sua própria natureza. Sendo assim, essa menoridade, ou seja, a falta de autonomia no
pensar, é uma autoculpa, visto que o menor dispõe sua racionalidade ao uso de outrem.
O menor afigura que um livro que pense por ele torna seus esforços os mínimos possíveis, já que não precisa
refletir sobre sua realidade. Ele consegue obter prontamente uma interpretação sobre determinado tema nas
páginas do livro. Assim como aquele que se ausenta da construção ou embasamento de sua religiosidade e a
entrega a um guia espiritual, age dessa maneira por preguiça, já que requer empenho em um processo
reflexivo dessa construção.
Não há necessidade de pensar quando se tem alguém que pense por você, e é sob este julgo que a preguiça do
menor se determina, visando ausentar-se dos esforços da perspectiva autônoma do pensar, busca-se por
pensamentos, crenças e métodos prontos. A passagem à maioridade é uma ponte difícil de atravessar, pois é
cômodo ser menor, uma vez que o pensamento não necessita compreender-se como senhor de suas decisões,
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e busca-as no pensar alheio. Há sempre uma dependência racional, ou seja, o menor se sujeita às
compreensões de alguém, com o objetivo de privar-se dos esforços do processo racional de lançar-se ao
mundo sob o julgo da razão.
Dirigindo-se em direção a este recorte, ou seja, assinalar as relações que podemos apontar entre a perspectiva
kantiana da Auflkärung e nossa contemporaneidade, conseguimos observar quão atual o ensaio do filósofo
alemão afigura-se. Em uma sociedade onde cada vez mais o ensino se torna tecnicista, e os indivíduos são
submetidos a uma formação, tanto educacional quanto pessoal, sob a perspectiva do efêmero, questionamonos, a fim de estabelecer um fio condutor de nosso estudo, qual é o valor de ter coragem de fazer uso de seu
próprio pensamento na atualidade?
Vivemos em uma sociedade que tem por objetivo formar indivíduos sob os simples aspectos da técnica,
ausentada da reflexão, e de dispor aos seus membros uma heteronomia cultural. Estes mesmos aspectos
remetem à conceitualização realizada acima, do estado de menoridade, ou seja, quando submetidos às
composições midiáticas, ausentam-se da perspectiva racional que poderiam exercer sobre os temas que estas
mídias abordam. O problema nunca foi nem nunca serão os livros, ou cotidianamente, a internet ou a
televisão, mas a maneira pela qual estes instrumentos são utilizados. Se impedem a formação autônoma do
indivíduo, caracterizam-se como um empecilho no designar natural do homem, pois faculta-o de suas
obrigações racionais, a de ser, por exemplo, senhor de seus pensamentos. Um livro que pensa pelo homem
resulta em um indivíduo que se submete àqueles que escreveram este livro, e este indivíduo é então, não mais
um senhor de si, mas um reprodutor de compreensões alheias.
No âmbito espiritual, um líder que estipula aos seus fiéis a maneira pela qual devem pensar sobre determinado
conteúdo, furta de cada um toda a sua designação racional, tendo em vista que soma na perpetuação da
menoridade da humanidade, que se submete ao julgo alheio e por assim fazer, apresenta-se mais frágil e
vulnerável a esta perspectiva.
O advertimento kantiano é o de ousarmos saber: fazermos uso de nosso próprio entendimento. O lema da
Aufklärung revela-nos que contemporaneamente é cada vez mais importante a efetivação deste lema,
aparentemente preterido pela grande maioria, tendo como base a deficiente formação dos indivíduos de nossa
sociedade.
Partindo do ensaio kantiano, tem-se por objetivo expor a relação que podemos estabelecer entre a perspectiva
da autonomia do pensamento com a situação atual de nossa sociedade, ou seja, isenta, na maioria das vezes,
da preocupação com a formação do indivíduo. Contrariando uma formação que seja capaz de fazer-lhe
autônomo em suas decisões e que seja hábil em concatenar seu entendimento sem que precise do pensar de
outrem, sob o julgo de permanecer dependente deste. Asseveramos que podemos assimilar conceitos a partir
do texto kantiano que nos possibilite compreender a atualidade sob uma crítica mais esclarecedora, visto que,
ainda que os questionamentos partam de interpretações de épocas diferentes, a composição filosófica,
inesgotável em uma simples época, nos permite uma aproximação do hoje com o ontem.
Palavras-chave: Kant, Aufklärung, autonomia
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Nome Completo: Wesley de Faria Leonel
Instituição de Ensino: UFOP
Orientador: Romero Freitas
Título: Autonomia da arte e novas possibilidades do discurso filosófico
É o conceito ‘filosofia’ ele mesmo um conceito filosófico a ser atualizado? O que demanda tamanho
empreendimento?
O questionamento acerca do estatuto da atividade filosófica foi costumeiramente trazido por disciplinas das
ciências naturais e mesmo das humanidades – com as quais a filosofia guarda uma relação ambígua. Mas é
razoável considerarmos que o questionamento é também interno à própria filosofia, de modo que esta
indagação assume uma importância autenticamente filosófica e acompanha a filosofia desde seu início. É
forçoso notar que (seja lá o que se compreenda por atualização) a filosofia possui uma dupla relação com a
questão de sua natureza e de sua destinação enquanto atividade reflexiva, de tal forma que o questionamento
partido de dentro adquire mais força e relevância entre os filósofos do que os conceitos e problemas
endereçados à filosofia a partir de fora. Nada apela mais à transformação dos esquemas conceituais da filosofia
do que ela própria.
Não é raro que se considere as críticas mais contumazes à necessidade, destinação e estatuto da filosofia
aquelas endereçadas à metafísica ou à aptidão cognoscitiva da filosofia que teriam partido, de modo geral, das
ciências positivas e/ou seus entusiastas. Desde o florescimento de uma agenda científica clara e delimitada,
estabelecida principalmente entre os séculos XIV e XIX, a filosofia tem sido chamada a mostrar ao que veio – ou
ao menos um motivo razoável para manter seu establishment. A robustez desta agenda e seu sucesso
subverteram o quadro de relações entre o conhecimento candidato ao status de ciência (epistéme/scientia) e
seu juiz sempre absoluto, distante e impassível – a filosofia tendo tradicionalmente ocupado este cômodo mas
perigoso lugar. O filósofo estadunidense Arthur Danto chama a este processo de reversão nos papéis de
autonomização epistemológica de uma agenda de credencialização/descredencialização.
Diferente do que esperaríamos de um filósofo formado em uma escola analítica, o pensamento de Danto não
recai exclusivamente sobre a análise do conhecimento científico, sobretudo daquilo o que se poderia retirar de
conclusão do positivismo lógico para a sobrevida da filosofia. A questão é exatamente que o positivismo lógico,
em meados da década de 1960, já dava claros sinais de esgotamento interno e externo – Quine, Rorty,
Strawson, dentre outros, já haviam chacoalhado à exaustão os amuletos lógicos superestimados dos
seguidores do Círculo de Viena, mostrando sua caduquice. Um desafio ainda maior à turbulenta década de
1960 impõe-se à filosofia, chamando à baila os pensadores atentos a tal acontecimento: operava-se no meio
artístico a instauração de um momento totalmente novo e intelectualmente provocador, do ponto de vista
hermenêutico e mesmo do contexto mais amplo da função de certas atividades do meio artístico, da crítica de
arte, do público, da estética e, portanto, da filosofia. Ao menos na visão de Danto, a arte de então e posterior
jamais será a mesma; não foi algo corriqueiro e de menor importância. O que ocorrera merece o nome de
revolução.
Bem compreendido, o advento da arte contemporânea significou para a filosofia, segundo a interpretação de
Arthur Danto, tanto um aprendizado quanto uma revanche; tanto uma perda a ser absolvida quanto uma
possibilidade enorme de ganho.
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E o advento desta nova era na história da arte deve-se a Marcel Duchamp, com a criação dos objetos
readymades em 1917, e de Andy Warhol que radicalizou o princípio dos readymades e elevou a arte ao nível de
seu conceito, de sua autoconsciência: na medida em que o critério para dirimir qualquer dúvida a respeito de
qual, dentre dois objetos perceptualmente indistintos, é uma obra de arte e qual não é, não pode ser um
critério ou uma diferença acessível ao olho/ouvido puros. Os readymades levaram à última consequência a
intuição segundo a qual se algo se torna uma obra de arte ela o faz por méritos imunes a qualquer semelhança
corriqueira. Ora, o que eleva qualquer obra a tal status é da ordem do abstrato, do conceitual; “o que, afinal de
contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma
certa teoria da arte” . A esta autonomia na constituição de uma nova rede de objetos artísticos, na reflexão
sobre seu fazer e sobre seu significado frente a uma pretensa autoridade estatutária da filosofia sobre a arte é
que Danto chama descredenciamento.
Como se pode prever, o processo de autonomização pelo qual a arte se desvincula de qualquer atitude
descredenciadora da filosofia impõe perdas à maneira tradicional de se compreender o papel da filosofia frente
à atividade artística (seu conteúdo, seu significado último, sua destinação, sua moralidade até). Uma crítica da
arte assentada sobre uma noção purista de contemplação da obra, de fruição plena e imediata dos sentidos,
obviamente perderá o poder (conceitual e institucionalmente adquiridos e assentados) de normatizar a prática
artística. Não mais cânones. Não mais manifestos. Não mais uma estética normativa, portanto. Ora, se se
compreende que a estética é uma disciplina filosófica (conforme o faz parte expressiva da tradição filosófica
desde o século XVIII), então eis aí uma segunda modificação relevante (para além da revisão – um tanto
forçada – que a filosofia da arte tem que fazer de sua posição frente à arte e a fundação de seu estatuto). Além
de a filosofia ter que perder um pouco de sua “petulância” por não ser mais a única autorizada e a melhor
colocada para fundar e justificar a atividade artística, ela deve também refrear qualquer ímpeto de ler a arte de
então e de agora ingenuamente, como se o artista não soubesse o que estivesse fazendo – por uma inaptidão
para o pensamento.
Mas o panorama é, por outro lado, bastante promissor. A auto-credencialização da arte frente a
descredencialização histórica da filosofia não torna falível qualquer empreendimento filosófico acerca da arte
ou outro, ela “coloca a filosofia de volta nos trilhos da razoabilidade”, tornando possível – agora sim – “que a
filosofia diga algo de informativo” e relevante acerca da arte. Neowittgensteinianos, admirados com o
ascetismo intelectual que a prática da terapia quietista dos problemas filosóficos – transformados em nonsense
– prometiam, concluíram – à maneira do mestre – que a arte ou não era definível ou tal definição, se
ligeiramente viável, não era sequer necessária. Cada obra de arte nova guardava com as precedentes uma
coincidente, mas casual, “semelhança de família”. Sob esta perspectiva antifilosófica (de filósofos), nada de
relevante pode ser dito. Obviamente, o uso do conceito de “semelhanças de família” é excessivamente
diacrônico, partindo do pressuposto que obras passadas com as quais as mais recentes guardam relações
foram estabelecidas como obras por um processo muito obscuro, mas não menos infalível. A aplicação deste
conceito não explica por que tais coisas do passado eram obras e não outras coisas.
Todavia, em última instância, o maior dos ganhos que a filosofia poderia extrair da arte contemporânea seria,
admitindo a realidade artística como tal, sem criar especulações idealizantes, ser capaz de dizer algo
informativo sobre ela – o que, para Danto, significa dizer: esclarecer o conceito pós-histórico da arte. A arte
contemporânea conquistou algo sem precedentes e, de certa forma, perene: tornou-se consciente de sua
natureza e legou à filosofia a oportunidade de mostrar sua especialidade insubstituível com o problema
filosófico por excelência: o problema dos indiscerníveis. Do lado da arte, ela teria já compreendido que sua
natureza é conceito, atmosfera teórica. À filosofia cabe, pois, permanecer, até certo ponto, imune às críticas
externas e “limar” mais um conjunto de problemas externos em sua própria linguagem conceitual,
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submetendo-os à sua especialidade: forjar interpretações cogentes e totalizantes capazes de divisar objetos
aparentemente iguais mas ontologicamente distintos.
Radicalizando a inescrutabilidade do problema dos indiscerníveis para outra disciplina que não seja a filosofia,
Danto diz:
Existem 30 versões conhecidas do Census in Bethlehem, de Pieter Bruegel, com o qual se faria uma
maravilhosa exibição estando todos eles para serem mostrados juntos. Mas não há conexão entre o que a
técnica da ressonância molecular pode mostrar e o sobre que são as pinturas.
E continua:
É possível supor que a diferença entre ciência natural e ciências humanas [Geisteswissenschaften] nos engane
quanto ao fato de este imperativo não se aplicar quando consideramos indiscerníveis pares (ou n-tuples) entre
objetos culturais, onde não há nível molecular para o qual descender.
Mesmo quando “existente como um objeto físico”, as análises naturalistas são insuficientes.
Por fim, é possível delinear um ganho conclusivo e ainda mais relevante, não só para a filosofia ou para arte,
mas a partir desta para a filosofia e para as ciências naturais e humanidades. O que substancialmente signifique
esta nova epistemologia das ciências, artes e filosofia, ela é sugerida por uma reviravolta no mundo da arte,
que acaba por trazer à filosofia a possibilidade de reordenar sua atividade e, conforme sucintamente mostrado
acima, recredenciar-se a partir do abandono do discurso descredenciador.
Palavras-chave: Arte contemporânea; indiscerníveis; descredenciamento filosófico da arte; Arthur Danto.
Referências:
DANTO, Arthur. O mundo da arte. Tradução Rodrigo Duarte. Artefilosofia, v. 1, p. 13-25, 2006; The artworld.
Simposium: The Work of art. In The Journal of Philosophy, Vol. 61, No. 19, American Philosophical Association
Eastern Division Sixty-First Annual Meeting (Oct. 15, 1964), pp. 571-584.
_______. Indiscernibility and perception: a reply to Joseph Margolis. British Journal of Aesthetics, vol. 39, n. 4,
October, 1999.
_______. The philosophical disenfranchisement of art. Ney York: Columbia University Press, 1986.
WEITZ, Morris. O papel da teoria na estética. Tradução de Célia Teixeira. Disponível em: <
http://criticanarede.com/fil_teoriaestetica.html>. Acesso em: 2 junho 2011.
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Nome completo: Wilame Gomes de Abreu
Instituição de Ensino: UFG
Orientadora: Helena Esser dos Reis
Título: Jean-Jacques Rousseau a propósito da manipulação da opinião pública
Esta proposta de comunicação tenta responder à chamada do II Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da
USP, com o tema “Diálogo em torno da atualidade da filosofia”, especificamente, ousa o diálogo com o eixo
norteador “As (os) filósofas (os) e seu próprio tempo” e toma como base de reflexão filosófica a “competência”
e “legitimidade” do julgamento da “opinião pública” a partir de Jean-Jacques Rousseau. Tem-se em mente,
para efeito de delimitação do objeto de estudo, a ocorrência de manipulação da opinião pública no contexto da
“Liberdade de Imprensa”. Trata-se de compreender a partir desse contexto como a mentira incide na
formulação da “opinião pública” em Rousseau, de maneira geral; considera-se como fator de reflexão, a obra
Do contrato social (ou Princípios do direito político). Destaca-se o possível contraste entre a noção de
“circulação livre das opiniões”, em especial as que são formuladas tendo em vista a possíveis trapaças ou
engodo, e a noção de “liberdade de imprensa”, assentada mais precisamente em bases de maior legitimidade.
Dialoga-se com o tema da “Liberdade de Imprensa” sem desconsiderar já em “seu próprio tempo”, o valor da
bandeira levantada, de que “a opinião pública” é “o único juiz competente” para o trato das “opiniões
particulares”, “o único censor legítimo dos escritos” (ROBESPIERRE, 1791). Opera-se em dois vieses, um sobre a
questão da opinião pública como julgamento legítimo, o outro acerca da opinião em função de outras
resultantes ou dividendos políticos distintos. Concernente ao primeiro, recorre-se ao sentido da anotação
crítica ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, em que, de forma bem
pontual, Rousseau faz a distinção entre os papeis da “opinião pública” e do “magistrado” quando diz que
“estima pública” é quem estabelece “a diferença entre os maus e as gentes de bem” sendo o “magistrado
apenas juiz de direito rigoroso”, ao mesmo tempo Rousseau estabelece uma argumentação que favorece o
controle popular sobre os modos da sociedade, quando faz a ressalva de que “o povo é o verdadeiro juiz dos
modos; juiz íntegro” e ao acentuar que o povo mesmo submetido à abusos, ainda assim, “jamais se corrompe”
(2002b, p. 76; 1989, p. 158). Há um recorte epistemológico entre dois campos de direito e duas possibilidades
de controle justo, constitutivo da sociedade. De um lado, o tratamento do direito positivo e, de outro, a
indicação da força do direito costumeiro. Na atualidade, é considerável que se defenda como legítima a forma
de censura que é exercida pelo próprio povo. No entanto, Rousseau é cauteloso ao tratar da “estima pública” e
daquilo que é propriamente objeto dela, ou seja, “os costumes” de uma nação. Com o Contrato Social ele lança
mão de procedimento ético-político, ao considerar que a “depuração dos costumes” é uma decorrência do
tratamento adequado de “correção das opiniões”. Abre-se o campo ao trabalho tanto de formação, quanto de
instrução da estima pública, em base de maior dignidade. Principalmente, porque dialoga a razão e a
sensibilidade tendo em vista a finalidade consignada na própria estima pública, os benefícios públicos. O seu
cuidado relativo à equivocidade na produção de discernimento que tem em vista o peso popular aponta a
exigência de “disciplina” do julgamento público: “corrijam as opiniões dos homens” (ROUSSEAU, 2011, p. 186).
Outra forma de controle exercido contra a opinião de um povo seria a usurpação, é como assenhorear-se de
autoridade sem a legitimidade de ato. Em toda parte, dirá Rousseau, “não é a natureza, mas a opinião, que
decide da escolha de seus prazeres”; mas se o “engano” recai “sobre o julgamento” é, portanto, “o julgamento
que se trata de regular” (ROUSSEAU, 2014, p. 107). Referente ao segundo viés, considera-se que, para efeito da
plenitude do exercício da opinião pública “os súditos só devem conta ao soberano de suas opiniões enquanto
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essas opiniões importarem à comunidade” (ROUSSEAU, 2011, p. 197). Infere-se que a configuração das
liberdades de “opinião” e “crença” são ganhos sociais e políticos, tal como a liberdade “civil” e “moral”
(ROUSSEAU, 2011, p. 71), que não vigem soltas no tempo, e, portanto, são disciplinadas. Como qualquer outra
modalidade de ganho ou dividendo, não podem ir além dos limites da “utilidade pública”, estabelecidos pela
própria comunidade via legislação, escrita e não escrita. Diz Rousseau: “Em suma, a liberdade segue sempre o
destino das leis, ela reina ou perece com elas; não conheço nada que seja mais certo do que isso” (2006a, p.
372). Nota-se que a liberdade de imprensa reenvia à liberdade de palavra: “A liberdade de imprensa não pode
ser distinguida da liberdade da palavra; uma e outra são sagradas como a natureza; são necessárias como a
própria sociedade” (ROBESPIERRE, 1791, p. 2). Rejeita-se o uso de método que tem em vista “privar um
homem dos meios que a natureza e a arte colocou em seu poder para comunicar seus sentimentos e suas
ideias”, não importando, nesse sentido, a alegação de “mal uso” ou produção “de calúnia”. Recurso assim se
traduz em “método todo carregado de despotismo” (Robespierre, 1791, p. 4). Robespierre elogia “o império da
opinião pública sobre as opiniões particulares como doce, salutar, natural, irresistível” e acusa o império da
“autoridade e da força” como “tirânico, odioso, absurdo, monstruoso”. Aquele que pode cumprir a função de
esclarecimento levantada por Robespierre “é o homem de letras”. Segundo Milton Meira do Nascimento, “não
será nada fácil”. Considera que “o erro se difunde mais rapidamente do que a verdade”, e, que cabe “aos
intelectuais” “afastar os erros, as opiniões falsas” (1989, p.74). Tanto Rousseau quanto Robespierre veem a
legalidade suficiente contra a “calúnia” e a “difamação”. Mas o enquadramento da liberdade de imprensa em
limitação legal institui o fito de opressão, o próprio “aniquilamento da liberdade de imprensa” (Robespierre,
1791, p.12). A sutilização de pretextos acaba por facilitar “aos homens de autoridade, perseguirem todos os
que tivessem exercido com energia o direito de publicar sua opinião sobre a coisa pública, ou sobre os homens
que governam” (1791, p. 13). Também facilita aos governantes o desenvolvimento de “seus projetos
ambiciosos velados de mistérios, acobertados pelo mesmo pretexto especioso do bem público” (p. 16). Assim,
sob pretexto de punir abuso de liberdade de imprensa o “ostracismo” ganha espaço, o enfraquecimento da
crítica é um contributo à ausência de transparência pública. Portanto, a opinião pública reside na cidadania
verdadeiramente livre. Uma bandeira, a sugestão de Robespierre: “em todo estado livre cada cidadão é uma
sentinela da liberdade, que deve insurgir-se, ao menor barulho, à menor aparência de perigo que a ameace”
(1791, p. 16). Eis o propósito, visualizar limites da opinião pública alimentada pela mentira e por
procedimentos de maior legitimidade para além de “seu próprio tempo”.
Palavras-chave: Opinião pública, competência, legitimidade, mentira e engano.
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