Caderno de Textos – ERAJU 2013

Transcrição

Caderno de Textos – ERAJU 2013
Encontro Regional das Assessorias
Jurídicas Universitárias
Centro-Oeste, Sul e Sudeste
De 31 de Outubro a 3 de Novembro
Assentamento Filhos de Sepé
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Boas-Vindas ao IV ERAJU
O Encontro Regional das Assessorias Jurídicas Universitárias, que reúne os núcleos de assessoria
popular das regiões sul, sudeste e centro-oeste do Brasil, chega a sua IV edição. Será realizado em Porto
Alegre, dos dias 31 de Outubro a 3 de Novembro, sediado pelo SAJU/UFRGS.
Este Encontro nasceu de uma vontade dos núcleos integrantes da Rede Nacional de Assessorias
Jurídicas Universitárias (RENAJU) da região em organizá-lo, já que há muitos anos não ocorria. A
RENAJU tem como costume realizar um encontro nacional – ERENAJU -, que ocorre no primeiro semestre,
e outro regional, havendo, além do ERAJU, o ENNAJUP, que abrange o Norte e o Nordeste. Mas enquanto
o ENNAJUP vem acontecendo regularmente nos últimos anos, o mesmo não ocorria com o ERAJU.
O primeiro ERAJU ocorreu no ano de 2006, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, sediado pelo
núcleo CAJU/UPF. Foi sucedido em 2007 por Americana, São Paulo, pelo SAJU/USP. Por fim, a terceira e
última edição se deu em Florianópolis, Santa Catarina, em 2008, sediada pelo NEPE/UFSC. Na plenária
final deste último encontro, encaminhou-se a IV edição do ERAJU no ano seguinte em Goiânia, contudo
este não ocorreu, e de lá para cá, a cada ano, foram feitas tentativas de resgatá-lo.
Em 2009 e 2010, ocorreram cursos de formação política (CFPs), realizados pelo SAJUP/UFPR e
SAJU/USP, respectivamente, em que foram convidados outros núcleos da RENAJU, onde se pode discutir a
situação da Regional. Em 2012, por deliberação da Rede, não ocorreriam encontros regionais, mas sim a
tentativa de realizar em seu lugar um curso de formação política nacional – que ocorreu em Porto Alegre, na
tentativa de suprir a desarticulação da nossa Regional.
Finalmente, em 2013, após a reunião de muitos novos núcleos de assessoria popular da Regional no
ERENAJU de Guararema, São Paulo, e a posterior organização destes em reuniões virtuais, foi possível
retomar o ERAJU, com o maior número de inscritos de todas as edições! É também o primeiro encontro da
Regional realizado em um espaço de luta dos movimentos sociais, no Assentamento Filhos de Sepé, cujo
centro cultural é administrado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Que essa retomada seja o início de uma nova articulação da nossa região, em nome de uma rede
nacional mais atuante e popular! Justo neste ano de 2013, em que ocorrem diversos tipos de manifestações
em todo o país, a Renaju se prepara cada vez mais para a luta junto ao povo.
SAJU/UFRGS
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Grade de Programação
Maiores informações no blog do encontro!
www.eraju2013.wordpress.com
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Índice
Negritude e Opressão Racial ................................................................................. 7
Caderno em anexo
Assessoria Jurídica Popular e Positivismo de Combate ............................... 9
Instituições Totais .................................................................................................. 17
Diálogos Locais: Remoções e o Direito à Cidade ........................................... 25
Feminismos: Megaeventos e o Tráfico de Pessoas ....................................... 31
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Negritude e
Opressão Racial
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza
Gilberto Gil – A mão da limpeza
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Assessoria Jurídica
Popular
e Positivismo de Combate
E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar – cuidado! – que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.
Canto ao homem do povo Charlie Chaplin
Carlos Drummond de Andrade
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Pedagogia do Oprimido
PRIMEIRAS PALAVRAS
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
As páginas que se seguem e que propomos como uma introdução à Pedagogia do Oprimido são o resultado de nossas
observações nestes cinco anos de exílio. Observações que se vêm juntando às que fizemos no Brasil, nos vários setores em que
tivemos oportunidade de exercer atividades educativas.
Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que damos e em que analisamos o papel da
conscientização, quer na aplicação mesma de uma educação realmente libertadora , é o ―medo da liberdade‖, a que faremos
referência no primeiro capítulo deste ensaio.
Não são raras as vezes em que participantes destes cursos numa atitude em que manifestam o seu ―medo da liberdade‖ se
referem ao que chamam de ―perigo da consciência crítica ( . dizem.) é anárquica.‖ Ao que outros acrescentam: ‗Não poderá a
consciência critica conduzir à desordem? Há, contudo, os que também dizem: ―Por que negar? Eu temia a liberdade. Já não a
temo‖
Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora, durante longo tempo, operário, se estabeleceu
uma dessas discussões em que se afirmava a ―periculoside crítica‖. No meio da discussão, disse este homem: Talvez seja eu entre
os senhores, o único de origem operária. Não posso dizer que haja entendido todas as palavras que foram ditas aqui, mas uma
coisa posso afirmar: cheguei a esse curso ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me critico. Esta descoberta,
contudo, nem me faz fanático, nem me dá a sensação de desmoronamento‖. Discutia-se, na oportunidade, se a conscientização de
uma situação existencial, concreta, de injustiça, não poderia conduzir os homens dela conscientizados a um ―fanatismo
destrutivo‖ ou a uma ―sensação de desmoronamento total do mundo em que estavam esses homens
A dúvida, assim-expressa, implícita uma afirmação nem sempre explicitada, no que teme a liberdade: ―Melhor será que a
situação concreta de injustiça não se constitua num ‗percebido‘ claro para a consciência dos que a sofrem‖.
Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo a fanatismos destrutivos‖. Pelo contrário, a
conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua
afirmação.
―Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes
reais de uma situação de opressão.‖
O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o
que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel preferindo-a à liberdade arriscada.
Raro, porém, é o que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua tendência é, antes, camuflá-lo, num jogo
manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou pretende aparecer como o que defende
a liberdade e não como o que a teme.
Às suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o zelador da liberdade.
Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo. Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo,
ameaça, então, a liberdade.
As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem, tampouco, de outro,
resultam apenas de leituras, por mais importantes que elas nos tenham sido. Estão sempre ancoradas, como sugerimos no início
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destas páginas, em situações concretas. Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média,
que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa intenção é continuar com estas observações
para retificar ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, irá provocar, em
alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias.
Entre estes, haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns, por considerarem a nossa posição,
diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando não um ―blablablá‖ reacionário.
―Blablablá‖ de quem se ‗perde‖ falando em vocação ontológica, em amor, em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia.
Outros, por não quererem ou não- poderem aceitar as críticas e a denúncia que fazemos da situação opressora, situação em que os
opressores se ―gratificam‖, através de sua falsa generosidade.
Dai que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais.
Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em sua totalidade, estes, estamos
certqs, poderão chegar ao fim do texto.
Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, ―irracionais‖, rechaçarão o diálogo que
pretendemos estabelecer através deste livro.
É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário, é sempre
criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização é crítica, por isto
libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais
no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva.
A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada.
Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja doloroso observar que nem
sempre o sectarismo de direita provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do revolucionário.
Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarizaçâo em que se deixam cair, ao responder à
sectarizaçâo direitista.
Não queremos, porém, com isto dizer — e o deixamos claro no ensaio anterior — que o radical se torne dócil objeto da
dominação.
Precisamente porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar passivo diante da violência do
dominador.
Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. Ë que, para ele, o aspecto subjetivo toma corpo numa unidade
dialética com a dimensão objetiva da própria idéia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato
cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer
solidário com o atuar e este com aquele. É exatamente esta unidade dialética que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a
realidade para transformá.la.
O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua ―irracionalidade‖ que o cega, não percebe ou não
pode perceber a dinâmica da realidade ou a percebe equivocadamente.
Até quando se pensa dialético, a sua é uma ―dialética domesticada‖.
Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita, que, no nosso ensaio anterior, chamamcs de ―sectário de
nascença‖, pretende frear o processo, ―domesticar‖ o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também por que o homem de
esquerda, ao sectarizarse, se equivoca totalmente na sua interpretação ―dialética‖ da realidade, da história, deixando-se cair em
posições fundamentalmente fatalistas.
Distinguem-se, na medida em que o primeiro pretende ―domesticar‖ o presente para que o futuro, na melhor das
hipóteses, repita o presente ―domesticado‖, enquanto o segundo transforma o futuro em algo preestabelecido, uma espécie de
fado, de sina ou de destino irremediáveis. Enquanto, para o primeiro, o hoje ligado ao passado é algo dado e imutável, para o
segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos se fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão
da história, desenvolvem um e outro formas de ação negadoras da liberdade. Ë que o fato de um conceber o presente ―bemcomportado‖ e o outro, o futuro como predeterminado, não significa que se tornem espectadores, que cruzem os braços, o
primeiro, esperando a manutenção do presente, uma espécie de volta ao passado; o segundo, à espera de que o futuro já ―conhecido‖ se instale.
Pelo contrário, fechando-se em um ―círculo de segurança‖, do qual não podem sair, estabelecem ambos a sua verdade. E
esta não é a dos homens na luta para construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos homens lutando e
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aprendendo. uns com os outros, a edificar este futuro, que ainda não está dado, como se fosse destino, como se devesse ser
recebido pelos homens e não criado por eles.
A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro. apropriando-se do tempo, de cujo saber se sentem
igualmente proprietários. terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele.
Enquanto o sectário de direita, fechando-se em ―sua‖ verdade, não faz mais do que o que lhe é próprio, o homem de
esquerda, que se sectariza e também se encerra, é a negação de si mesmo.
Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em torno de ―sua‖ verdade, sentem-se abalados
na sua segurança, se alguém a discute. Daí que lhes seja necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade.
―Sofrem ambos da falta de dúvida.‖‘
O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em círculos de segurança‖, nos quais
aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para. conhecendo-a melhor, melhor poder
transformá-la.
Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o
diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. 5 Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador
dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar.
Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário. a radicalização é o próprio do revolucionário. Daí que a
pedagogia do oprimido, que implica uma tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio, e a própria
leitura deste texto não possam ser realizadas por sectários.
Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa primeira leitora, por sua compreensão e
estímulos constantes a nosso trabalho, que também é seu. Agradecimento que estendemos a todos quantos leram os originais deste
ensaio pelas críticas que nos fizeram, o que não nos retira ou diminui a responsabilidade pelas afirmações nele feitas.
Paulo Freire
Santiago, outono de 1968
Extratos do texto Assessoria jurídica popular
universitária e educação popular em direitos
humanos com movimentos sociais, de Luiz
Otávio Ribas
(...) A década atual é a da expansão do número de grupos de
assessoria estudantil em todo Brasil. Nos encontros
nacionais da Renaju percebe-se que a assessoria estudantil é
cada vez mais realizada por estudantes em todas as regiões
do Brasil, em faculdades de direito públicas ou particulares,
por estudantes de todos os anos (níveis, fases ou semestres),
de todos os sexos e etnias, das mais variadas classes sociais,
ideologias, credos, por estudantes de outros cursos, como
serviço social, jornalismo, psicologia, urbanismo, etc., com
uma participação tímida de professores. Assim, podem-se
delimitar os espaços de militância de cada um dos três
modelos de prática de assessoria jurídica popular,
amplamente considerada, vistos até aqui:
– advocacia popular – prática jurídica insurgente
desenvolvida por advogados na representação judicial de
grupos e movimentos sociais. Não se limita à assistência
jurídica tradicional, mas trabalha com a assessoria jurídica
popular, voltada para um trabalho comunitário e lutas
coletivas por direitos, vinculada a expressões como serviços
jurídicos inovadores, alternativos, insurgentes, etc. Como
exemplo pode-se citar o Iajup, Gajop, AATR, Acesso, Terra
de Direitos, Renaap, e o Ilsa. A maioria dos grupos trabalha
também com atividades de educação popular, como é o caso
da Themis com ―Promotoras Legais Populares‖, e a AATR,
Iajup e Gajop, com os ―Juristas Leigos‖;
– assessoria universitária – prática jurídica insurgente
desenvolvida por professores e estudantes universitários,
ligados a universidades por meio de projetos de pesquisa,
extensão ou de estágio. Não se limita à assistência jurídica
tradicional, mas trabalha com a assessoria jurídica popular
na perspectiva da troca de saberes popular e científico.
Vinculada a expressões como assessoria jurídica popular,
assessoria jurídica popular universitária, assessoria
estudantil, etc. Como exemplos existem o NEP-UnB, Pólos
de Cidadania-UFMG;
– como espécie da assessoria universitária existe a
assessoria estudantil, cuja especificidade é o protagonismo
estudantil na proposição e administração das atividades,
assim como a autonomia em relação às instituições de
ensino superior. Como exemplo existem o Saju-RS (ligado à
UFRGS), Najup-RS (autônomo), Renaju, entre outros
grupos.
Aproxima-se de um conceito de ―assessoria jurídica
popular‖: uma prática jurídica insurgente desenvolvida por
advogados, professores ou estudantes de direito, entre
outros, voltada para a realização de ações de acesso à justiça
e/ou educação popular em direitos humanos, organização
comunitária e participação popular de grupos ou
movimentos sociais. As ressalvas necessárias são de que, em
primeiro lugar, cada vez mais outros grupos desenvolvem
ações de acesso à justiça e educação popular em direitos
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humanos que podem perfeitamente serem enquadradas como
assessoria jurídica popular. Outra ressalva importante é o
caráter multidisciplinar, pois cada vez mais estudantes e
professores de outras áreas envolvem-se em projetos de
assessoria universitária, assim como profissionais de outras
áreas, como arquitetos, antropólogos, psicólogos, etc.
Educação popular em direitos humanos com movimentos
sociais
Parte-se para a descrição da metodologia29 da assessoria
estudantil que denomina-se ―assessoria jurídica popular
universitária‖ (Ajup universitária), que privilegia as
atividades educativas no trabalho popular. Para compreender
as causas do trabalho educativo por estudantes de direito é
preciso trazer o contexto histórico do Movimento de
Educação Popular de Paulo Freire. A sua experiência pode
ser somada a outros esforços que compõem a história da
educação popular no Brasil. A experiência do ―Movimento
de Educação de Base‖ conviveu com outras tantas ricas
experiências que na década de 1960 tentaram alfabetizar o
povo brasileiro.
Essas têm em comum que educavam não só quem não sabia
ler, mas também os analfabetos políticos, que não estão
unicamente numa profissão, etnia ou classe social. Paulo
Freire, na análise sobre o diálogo de agrônomos com
camponeses, ensina que o diálogo problematizador tem
como função indispensável ―diminuir a distância entre a
expressão significativa do técnico e a percepção dos
camponeses em torno do significado‖, para que tenha
significação para ambos, e ―isto só se dá na comunicação e
intercomunicação dos sujeitos pensantes a propósito do
pensado, e nunca através da extensão do pensado de um
sujeito até o outro‖.Portanto, ―a educação é comunicação, é
diálogo, na medida em que não é a transferência de saber,
mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a
significação dos significados‖. A comunicação eficiente
exige que os sujeitos interlocutores ―incidam sua 'admiração' sobre o mesmo objeto; que o expressem através de
signos lingüísticos pertencentes ao universo comum a
ambos, para que assim compreendam de maneira semelhante
o objeto da comunicação‖, e ―nesta comunicação, que se faz
por meio de palavras, não pode ser rompida a relação
pensamento-linguagem-contexto ou realidade‖.Assim, ―a
tarefa do educador, então, é a de problematizar aos
educandos o conteúdo que os mediatiza, e não a de dissertar
sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se se
tratasse de algo já feito, elaborado, acabado,
terminado‖.Assim, o diálogo emancipatório parte do
pressuposto de que a educação é comunicação, é diálogo, é
um encontro amoroso dos que buscam significações de
significados. Comunicação significa uma via de mão-dupla,
multilateralmente os sujeitos emitem e recebem
significados. Diálogo é comunicação, que pressupõe
horizontalidade e troca de saberes. A horizontalidade
significa o reconhecimento da ignorância e conhecimentos,
da sua relatividade, parcialidade. A troca de saberes
representa que os sujeitos envolvidos participam ativamente,
dizem suas palavras, dizem o mundo que está sendo.
Paulo Freire acredita num humanismo científico amoroso,
apoiado na ação comunicativa, alimentado por uma
esperança crítica repousada na crença de que ―os homens
podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o
mundo. Crença em que, fazendo e refazendo as coisas e
transformando o mundo, os homens podem superar a
situação em que estão sendo um quaser não ser e passar a
ser um estar sendo em busca do ser mais‖. Dessa forma, o
método de Paulo Freire é um processo em que ―será a partir
do conhecimento que se poderá organizar o conteúdo
programático da educação que encerrará um conjunto de
temas sobre os quais educador e educando, como sujeitos
cognoscentes, exercerão a cognoscibilidade‖. Assim, ―pois
bem, o conhecimento desta visão do mundo dos
camponeses, que contém seus 'temas geradores' (que,
captados, estudados, colocados num quadro científico a eles
são devolvidos como temas problemáticos), implica numa
pesquisa‖ e
implica uma metodologia que deve ser dialógicoproblematizadora e conscientizadora.Os estudantes de
direito reconheceram em sua teoria um manancial infindável
de idéias para práticas emancipatórias. Faz-se a opção por
tratar da temática ―educação, conscientização e
transformação‖ em razão da potencialidade dialética que o
tema provoca, assim como pelas inúmeras possibilidades de
abordagem, podendo incluir toda a experiência
extensionista/comunicacional proporcionada nos diálogos
com os meios populares. Murilo Oliveira apresenta a
proposta educativa do trabalho dos assessores estudantis:
As atividades e os Projetos realizados no SAJU almejam a
promoção do Acesso à Justiça, exercício da cidadania e
efetivação dos Direitos Humanos. Estas finalidades
demonstram que o SAJU não estabelece uma relação de
mera assistência a comunidades carentes, mas que pretende
a conscientização e organização destas comunidades ou
movimentos para que, na qualidade de sujeitos ativos do
processo histórico-social, com o instrumental do saber
jurídico, lutem pelos seus direitos.
Ademais, afirma que a socialização do conhecimento
jurídico ―e sua desmistificação contribuem com os sujeitos
sociais oprimidos para que não mais se sujeitem à
dominação e dependência, como também possam identificar
as violações aos seus direitos‖. Faz-se a ressalva que outros
conhecimentos são necessários para tanto, principalmente da
realidade brasileira e das relações políticas e econômicas.
Além disso, ―o acesso à informação garante para as
comunidades o reconhecimento dos direitos já positivados,
indicando os mecanismos e instrumentos disponibilizados
pelo ordenamento jurídico para efetivação dos seus
direitos‖. Nessa questão é primordial destacar que o trabalho
do assessor para a operação desses mecanismos e
instrumentos em muitos casos faz-se necessária. Porém, isso
―significa, pois, debater com os próprios sujeitos do direito
as razões da inefetividade e do desrespeito das leis, o acesso
à justiça e os limites do sistema jurídico‖.Diz ainda sobre as
atividades educativas:
A educação popular tem uma opção política, a opção pela
transformação social. Considerando o direito como
ideológico, desmascara a repressão estatal e seu papel de
mantenedor do status quo, construindo na prática destes
trabalhos novas concepções de direitos, pois pensa esse
direito crítico como paradigma de libertação social.
A atuação de Paulo Freire na redemocratização do Brasil
configurou-se um dos
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capítulos mais ricos da história política, assim como a
atuação do Movimento Educação de Base nas Centrais
Eclesiais de Base, que formou grande parte das lideranças
brasileiras na atualidade. Não se tem notícia da militância
conjunto de estudantes de direito nessas atividades, mas sem
dúvida significaram a principal influência para o início das
atividades da assessoria estudantil. Além disso, o começo
das atividades de educação popular na assessoria estudantil
pode ter havido por influência do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que desenvolve
atividades conjuntas com alguns grupos ligados à Renaju
desde sua fundação.
Ademais, os MST está muito preocupado com a formação
dos estudantes, pois serão os futuros ―operadores do
direito‖; é o debate político criado em espaços mistos dos
movimentos sociais e estudantes, como a Rede Popular de
Estudantes de Direito (Reped). Ainda, o MST tem sua
Escola Nacional Florestan Fernandes, e algumas turmas de
direito agrário em faculdades de direito, como a da
Universidade Federal de Goiás e no IPA, em Porto Alegre.
Além do MST, outros movimentos sociais são parceiros dos
projetos de assessoria estudantil em todo Brasil, como, por
exemplo: os envolvidos na luta pela moradia e acesso à
cidade (MLMN - Movimento Nacional de Luta pela
Moradia); pela terra (MST – Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra, Movimento Nacional dos Atingidos por
Barragens); na luta contra o capitalismo (Movimento
Resistência Popular, anarquistas); pelo passe-livre
(Movimento Estudantil); pela comunicação comunitária
(rádios e associações comunitárias); grupos sociais de luta
pela reforma urbana (Central de Movimentos Populares,
Fórum Nacional de Reforma Urbana, conselhos populares,
associação de moradores) e grupos sociais de luta pela
participação democrática (conselhos do orçamento
participativo, associações de moradores). Além dos
movimentos sociais, ONGs e órgãos públicos são potenciais
parceiros das iniciativas de assessoria. (...)
Considerações finais
A assessoria estudantil consolida-se como prática jurídica
insurgente.
Tradicionalmente, vem sendo desenvolvida a partir de
atividades de extensão em instituições de ensino superior de
todas as regiões do Brasil. Por outro lado, muito ainda
precisa ser feito entre os estudantes, professores, advogados,
associados de ONGs, e outros para repensar um trabalho em
rede.
Propõe-se uma rede horizontal de grupos e movimentos
sociais com o fim de produzir direitos humanos para
satisfação das necessidades e uma vida com dignidade do
homem na realidade em que vive. Atualmente, as principais
questões colocada para os assessores estudantis hoje e para o
que trabalham incansavelmente são por que e como a prática
da assessoria jurídica popular universitária auxilia esse
processo.
Como se procurou evidenciar, essa ―metodologia‖ auxilia na
informação sobre direitos que podem facilitar o acesso à
justiça. Por isso, é preciso ampliar as redes de diálogo com
outros estudantes, dos mais diferentes cursos, com outros
profissionais do direito, com grupos e movimentos sociais.
Os principais desafios, a curto prazo, são a consolidação
dessa atividade nas faculdades de direito, a expansão como
prática de educação não formal e auxiliar amplamente na
educação do brasileiro em relação aos seus direitos.
Uma atividade educativa, aliada à atividade jurídica, por
parte dos assessores, pode proporcionar um amplo diálogo
sobre o direito, a moral, ética, política, etc. A assessoria de
grupos e movimentos sociais com esse intento pode
colaborar para a satisfação de objetivos concretos e
factíveis.
Outro obstáculo a ser ultrapassado é o de que os estudantes
de direito acabam
procurando a assessoria jurídica popular universitária por
um sentimento profundo de indignação com o direito, porém
dificilmente esse processo é revertido durante o trabalho de
campo. Assim, as atividades educativas e lúdicas são
priorizadas em detrimento do estudo e de aplicação de um
direito crítico e transformador. Sem falar no sentimento de
indiferença perante as importantes ferramentas jurídicas à
disposição dos grupos e movimentos sociais, tachadas de
―dogmatismo‖, como algo atrasado, como se a dogmática
jurídica não fosse uma importante arma de luta política.
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DIREITO ALTERNATIVO E POSITIVISMO DE
COMBATE
―(...)Seguindo lição de Amílton Bueno de Carvalho, grande
idealizador do Direito Alternativo, o movimento se divide
em três frentes: o Positivismo de Combate, o Uso
Alternativo do Direito e o Direito Alternativo Estrito Senso.
O Direito Alternativo Lato Senso apresentar-senos-ia, pois, em um primeiro momento, sob a veste do
Positivismo de Combate, compreendido como uma luta pelo
cumprimento das leis com conteúdos sociais não cumpridas
de fato, buscando efetivar as conquistas democráticas já
erigidas à condição de lei. Em um segundo momento,
teríamos o Uso Alternativo do Direito, que se consubstancia
em uma interpretação social ou teleológica das leis, em que
a atuação jurisdicional ocorre dentro do sistema positivado,
com a utilização das contradições, ambiguidadades e lacunas
do direito, numa ótica democratizante. Por fim, mas não
menos importante, teríamos o Direito Alternativo em sentido
estrito, que vê o Direito sob a ótica do pluralismo jurídico.
Privilegia o direito emergente da população, ainda não
elevado à condição de lei oficial.
A tipologia proposta pelo movimento, como se
pôde observar, segue uma hierarquia, o que demonstra a
seriedade dos alternativos, posto que alguns julgam o
movimento fruto de ato impensado. Tendo em vista a
validade inquestionável do ordenamento positivo, o Direito
Alternativo busca valer-se, primeiramente, das normas
estatais. Quando tal não satisfizer a aplicação da justiça, se
recorrerá à hermenêutica, valendo-se das lacunas e
antinomias do ordenamento para possibilitar o avanço das
lutas populares. No entanto, quando nem o Positivismo de
Combate, nem o Uso Alternativo do Direito forem
suficientes para afastar a injustiça, deve então o magistrado
recorrer ao Direito Alternativo em sentido estrito, negando a
validade da lei ilegítima, e buscando a solução justa ao caso
(...)‖
DONZELE, Patrícia; MACEDO, Renata Dantas. ―Direito
Alternativo e Justiça Social‖. Revista da OAB Goiás Ano
XIII nº 49. Disponível em:
http://www.oabgo.org.br/Revistas/49/juridico1.htm
“(...) O movimento [de direito alternativo] não
possui uma ideologia , mas pontos teóricos comuns entre
seus membros, destacando-se: 1) não aceitação do sistema
capitalista como modelo econômico; 2) combate ao
liberalismo burguês como sistema sociopolítico; 3) combate
irrestrito à miséria da grande parte da população brasileira e
luta por democracia, entendida como a concretização das
liberdades individuais e materialização de igualdade de
oportunidades e condição mínima e digna de vida a todos; 4)
uma certa simpatia de seus membros em relação à teoria
crítica do Direito. Há uma unanimidade de crítica ao
positivismo jurídico (paradigma liberal-legal), entendido
como uma postura jurídica técnica-formal-legalista, de
apego irrestrito à lei e de aplicação de uma pseudo
interpretação lógica dedutiva, somada a um discurso
apregoador: a) da neutralidade ou avaloratividade; b) do
formalismo jurídico ou anti-ideológica do Direito; c) da
coerência e completude do ordenamento jurídico; d) da fonte
única do Direito e da interpretação mecanicista das normas
efetuada através de um método hermenêutico
formal/lógico/técnico/dedutivo.
Os juristas alternativos, em desacordo com a teoria
e a ideologia juspositiva, denunciam: a) ser o Direito,
político, parcial e valorativo; b) representar, o formalismo
jurídico, uma forma de escamotear o conteúdo perverso de
parte da legislação e de sua aplicação no seio da sociedade;
c) não ser o Direito coerente e completo. Suas antinomias
(contradições) e lacunas (vazios) são várias e explícitas; d)
ser a lei fonte privilegiada do Direito, mas a ideologia do
intérprete dá o seu sentido, ou o sentido por ele buscado. A
exegese de um texto legal não é declarativa de seu conteúdo,
mas, bem ao contrário, e axiológica e representa os
interesses e fins perseguidos pelo exegeta.
Para sua práxis, o movimento defende: 1)
Positivismo de Combate hoje chamado de positivação
combativa. Trata-se de uma luta pelo cumprimento de várias
leis, todos com conteúdos sociais, em pleno vigor, mas não
cumpridas de fato; 2) Uso alternativo do Direito. É uma
atividade hermenêutica. Realiza-se uma exegese extensiva
de todos os textos legais com cunho popular e uma
interpretação restritiva das leis que privilegiam as classes
mais favorecidas, privilegiando-se a Constituição Federal.
Trata-se de uma interpretação social ou teleológica das leis,
ou seja, dar um sentido à norma buscando atender (ou
favorecer) as classes menos privilegiadas ou a maioria da
sociedade civil. É o contrário do realizado pelos juristas
tradicionais, quando restringem as normas populares e
ampliam as beneficiadoras das classes que lhes interessam;
3) Direito Alternativo em sentido estrito. É o ponto mais
polêmico e extrapola os limites deste artigo. Trata-se de uma
visão do Direito sob a ótica do pluralismo jurídico.
Privilegia-se, como novo paradigma para a Ciência Jurídica,
o Direito existente nas ruas, emergente da população, ainda
não elevado a condição de lei oficial. Admite-se como
Direito as normas não estatais, inclusive como fonte
legitimadora do novo paradigma jurídico. Neste ponto, há
divergências teóricas no próprio movimento. Eu não
concordo com esse entendimento, pois até o momento, a
meu ver, não conseguiu sustentação teórica capaz de
justificar uma teoria jurídica alternativa. Acaba caindo nos
mesmo equívocos do juspositivismo criticado. De todas
formas, o Direito Alternativo é uma movimento que se
legitima por sua postura transformadora, de busca de
mudança da tétrica situação socioeconômica do Brasil, cuja
responsabilidade também é das instituições jurídicas. (...)‖
ANDRADE, Lédio Rosa. ―O que é Direito Alternativo‖.
Disponível
em
http://atualidadesdodireito.com.br/lediorosa/2013/07/31/oque-e-direito-alternativo
15
16
Instituições Totais
Se tu falas muitas palavras sutis
Se gostas de senhas sussurros ardís
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar
Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raios X
Se vives nas sombras freqüentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de dobermam
E se definitivamente a sociedade
só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo,
és um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
depois chamam os urubus
Se pensas que burlas as normas penais
Insuflas agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar infrator
com seus braços de estivador
Hino de Duran
Chico Buarque
17
As características das instituições totais
Manicômios, prisões e coventos
Erving Goffman
Introdução
1
Os estabelecimentos sociais – instituições, no
sentido diário do termo, - são locais, tais como salas,
conjuntos de salas, edifícios ou fábricas em que acorre
atividade de determinado tipo. Na sociologia, não temos
urna forma bem adequada para sua classificação. Alguns
estabelecimentos, como a Grand Central Station, esão
abertos para quem quer que se comporte de maneira
adequada; outros como a Union League Club 01 New York,
ou os laborat6rios de Los Alamos, restringem um pouco
mais a sua freqüência. Outros como lojas e correios, terão
alguns membros fixos que apresentam um serviço e urna
corrente contínua de pessoas que o recebem. Outros ainda,
como moradias e fábricas, incluem um conjunto menos
mutável de participantes.
Algumas instituições fornecem o local para
atividades, nas quais o indivíduo tem consciência de obter
seu status social, não importando quão agradáveis ou
descuidadas elas possam ser; outras instituições, ao
contrário, proporcionam um local para agremiações
consideradas como opcionais e de distração, que exigem
como contribuição o tempo que sobrou de atividades mais
sérias. (...)
2
Toda instituição conquista parte do tempo e do
interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo;
em resumo, toda instituição tem ·tendências de
"fechamento". Quando resenhamos as diferentes instituições
de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são
muito mais "fechadas" do que outras, Seu "fechamento"ou
seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social
com o mundo externo e por proibições à saída que muitas
vezes estão inc1uídas no esquema físico - por exemplo,
portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água,
florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome
de instituições totais, e desejo explorar suas características
gerais.
As instituições totais de nossa sociedade podem ser,
grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos. Em
primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas
que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse
caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes.
Em segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de
pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e
que são também urna ameaça à comunidade, embora de
maneira não-intencional; sanatórios para tuberculosos,
hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro
tipo de instituição total é organizado para proteger a
comunidade contra perigos intencionaís, e o bem-estar das
pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato:
cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra,
campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições
estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais
adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam
apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis,
navios, escalas internas, campos de trabalho, colônias e
grandes mansões (do ponto de vista dos que vivem nas
moradias
de
empregados).
Finalmente,
há
os
estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo,
embora muitas vezes sirvam também como locais de
instrução para os religiosos; entre exemplos de tais
instituições, é possível citar abadías, mosteíros, conventos e
outros claustros. Esta classificação de instituições totais não
é clara ou exaustiva, nem tem uso analítico imediato, mas dá
urna definição puramente denotativa da categoria como um
ponto de partida concreto. Ao firmar desse modo a definição
inicial de instituições totais, espero conseguir discutir as
características gerais do tipo, sem me tornar tautológico.
Antes de tentar extrair um perfil geral dessa lista de
estabelecimentos, gastaria de mencionar um problema
conceitual: nenhum dos elementos que irei descrever parece
peculiar às instituições totais, e nenhum parece
compartilhado por todas elas; o que distingue as instituições
totais é o fato de cada urna delas apresentar, em grau
intenso, muitos itens dessa família de atributos. Ao falar de
"características comuns", usarei a frase de uma forma
limitada, mas que me parece logicamente defensável. Ao
mesmo tempo, isso permite usar o método de tipos ideais,
através do estabelecimento de aspectos comuns, coro a
esperança de posteriormente esclarecer diferenças
significativas.
3
Urna disposição básica da sociedade moderna é que
o individuo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes
lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes
autoridades e sem um plano racional geral. O aspecto central
das instituições totais pode ser descrito coro a ruptura das
barreiras que comumente separam essas três esferas da vida.
Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados
no mesmo local e sob urna única autoridade. Em segundo
lugar, cada fase da atividade diária do participante é
realizada na companhia imediata de um grupo relativamente
grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma
forma e abrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto.
Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são
rigorosamente estabelecidas em horários, pois urna atividade
leva, em tempo predeterminado,à seguinte, e toda a
seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema
de regras formais explícitas e um grupo de funcionários.
Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas
num plano racional único, supostamente planejado para
atender aos objetivos oficiais da instituição.
Individualmente, tais aspectos são encontrados em
outras locais, além das instituições totais. Por exemplo,
nossos grandes estabelecimentos comerciais, industriais e
educacionais cada vez mais apresentam refeitórios e
recursos de distração para seus participantes; no entanto, o
uso de tais recursos ampliados é sob muitos aspectos
voluntários, e há cuidados especiais para que a linha comum
de autoridade não se estenda a eles. De forma semelhante, as
donas de Casa ou as famílias de fazendeiros. podem ter
18
todas as suas principais esferas de vida dentro da mesma
área delimitada, mas essas pessoas não são coletivamente
arregirnentadas e não vão para as atividades diárias na
companhia imediata de um grupo de pessoas semelhantes.
O controle de multas necessidades humanas pela
organização burocrática de grupos completos de pessoas seja ou não urna necessidade ou meio eficiente de
organização social nas circunstâncias - é o fato básico das
instituições totais. Disso decorrem algumas conseqüências
importantes.
Quando as pessoas se movimentam em conjuntos,
podem ser supervisionadas por um pessoal, cuja atividade
principal não é orientação ou inspeção periódica (tal como
ocorre em muitas relações empregador-empregado), mas
vigilância - fazer com que todos façam o que foi claramente
indicado como exigido, sob condições em que a infração de
urna pessoa tende a salientar-se diante da obediência visível
e constantemente examinada dos outros. Aqui, não importa
discutir o que é que vem em primeiro lugar - se os grandes
grupos de pessoas controladas ou o pequeno grupo dirigente;
o fato é que um é feito para o outro.
Nas instituições totais, existe urna divisão básica
entre um grande grupo controlado, que podemos denominar
o grupo dos internados, e urna pequena equipe de
supervisão. Gera1mente, os internados vivem na instituição
e tem contato restrito com o mundo existente fora de suas
paredes; a equipe dirigente muitas vezes trabalha num
sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo
externo.
Cada agrupamento tende a conceber o outro através
de estereótipos limitados e hostis - a equipe dirigente muitas
vezes vê os internados como amargos, reservados e não
merecedores de confiança: os internados muitas vezes veern
os dirigentes como condescendentes, arbitrários e
mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente tendem a
sentir-se superiores e corretos; os internados tendern, pelo
menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos,
censuráveis e culpados.
A mobilidade social entre os dois estratos e
grosseiramente limitada; geralmente há urna grande
distancia social e esta é freqüentemente prescrita. Até a
conversa entre as fronteiras pode ser realizada em tom
especial de voz. (...) Embora haja necessidade de certa
comunicação entre os internados e a equipe de guarda, urna
das funções do guarda é o controle da comunicação entre os
internados e os níveis mais elevados da equipe dirigente.
Assim como há restrição para conversa entre as
fronteiras, há também restrições à transmissão de
informações, sobretudo informações quanto aos planos dos
dirigentes para os internados. Geralmente, estes não terão
conhecimento das decisões quanto ao seu destino. Tanto no
caso em que os fundamentos oficiais são militares, por
exemplo, ocultar o destino da viagem dos soldados; ou
médicos, ocultando o diagnóstico, plano de tratamento, essa
exclusão dá à equipe dirigente uma base específica de
distância e controle com relação aos internados.
Presumívelmente, todas essas restrições de contato
ajudam a conservar os estereótipos antagônicos.
Desenvolvem, -se dois mundos sociais e culturais diferentes,
que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas
com pouca interpenetração. É significativo observar que o
edifício da instituição e seu nome passem a ser identificados
tanto pela equipe dirigente como pelos internados como algo
que pertence a equipe dirigente, de forma que quando
qualquer dos grupos se refere às interpretações ou aos
interesses "da instituição", implicitamente se referem (tal
como o farei) às interpretações e aos interesses da equipe
dirigente.
A divisão da equipe em dirigente-intemado é uma
conseqüência básica da direção burocrática de grande
número de pessoas; uma segunda conseqüência refere-se ao
trabalho.
As condições usuais de vida de nossa sociedade, a
autoridade do local de trabalho pára quando o trabalhador
recebe um pagamento em dinheiro; o fato de gastá-lo em
casa ou em local de diversões é um problema pessoal do
trabalhador e constitui um mecanismo pelo qual a autoridade
do local de trabalho é mantida dentro de limites bem
restritos. Mas dizer que os internados de instituições totais
têm todo o dia determinado, para eles equivale a dizer que
todas as suas necessidades essenciais precisam ser
planejadas. Portanto, qualquer que seja o incentivo dado ao
trabalho, esse incentivo não terá a significação estrutural que
tem no mundo externo. Haverá diferentes motivos para o
trabalho e diferentes atitudes com relação a ele. Este é um
ajustamento básico exigido dos internados e dos que
precisam levá-los a trabalhar.
Às vezes, é exigido tão pouco trabalho que os
internados, freqüentemente pouco instruídos para atividades
de lazer, sofrem extraordinário aborrecimento. O trabalho
exigido pode ser realizado em ritmo muito lento e pode estar
ligado a um sistema de pagamentos secundários,
freqüentemente cerimoniais - por exemplo, a ração semanal
de tabaco ou os presentes de Natal -, e que levam alguns
doentes mentais a continuar em seu trabalho.
Evidentemente, em outros casos, exige-se mais do que um
dia integral de trabalho, induzido, não por prêmios, mas por
ameaça de castigo físico. Em algumas instituições totais por
exernplo, acampamentos de corte de árvores, navios
mercantes - a prática de economia obrigatória adia a relasao usual coro o mundo, que pode ser obtida com dinheiro;
todas as necessidades são organizadas pela instituição e o
pagamento só é é dado depois de urna estação de trabalho,
quando os operários saem do local. Em algumas instituições,
existe urna espécie de escravidão, e o tempo integral do
internado é colocado à disposição da equipe dirigente; neste
caso, o sentido de eu e de posse do internado pode tornar-se
alienado em sua capacidade de trabalho. (...)
Haja muito ou pouco trabalho, o indivíduo que no
mundo externo estava orientado para o trabalho tende a
tornar-se desmoralizado pelo sistema de trabalho da
instituição total. Um exemplo dessa desmoralização é a
prática, em hospitais estaduais para doentes mentais, de
"tapear" ou "usar o trabalho de outro" em troca de urna
moeda de dez ou cinco centavos que pode ser gasta na
cantina. As pessoas fazem isso - às vezes com certa
19
insolência -, embora no mundo externo considerem tais
ações como abaixo de seu amor-próprio. (Os membros da
equipe dirigente, que interpretam esse padrão através de sua
orientação "civil" para a obtenção de dinheiro, tendem a
considerá-Io como um sintoma de doenca mental e como
urna outra pequena prova de que os internados realmente
nao estáo bem).
Portanto, existe incompatibilidade entre as instituições totais
e a estrutura básica de pagamento pelo trabalho de nossa
sociedade. As instituições totais são também incompatíveis
com outro elemento decisivo de nossa sociedade - a família.
A vida familiar é às vezes contrastada com a vida solitária,
mas, na realidade, um contraste mais adequado poderia ser
feito com a vida em grupo, pois aqueles que comem e
dormem no trabalho, com um grupo de companheiros de
serviço, dificilmente podem manter uma existência
doméstica significativa. Inversamente, o fato de manter as
famílias fora das instituições sociais muitas vezes permite
que os membros das equipes dirigentes continuem
integrados na comunidade externa e escapem da tendência
dominadora da instituição total.
Independentemente do fato de determinada
instituição total agir como força boa ou má na sociedade
civil, certamente terá forca, e esta depende em parte da
supressão de um círculo completo de lares reais ou
potenciais. Inversamente, a formação de lares dá urna
garantia estrutural de que as instituições totais não deixarão
de enfrentar resistências. A incompatibilidade entre essas
duas formas de organização social deve esclarecer algo a
respeito das funções sociais mais amplas de ambas.
A instituição total é um híbrido social, parcialmente
comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí
reside seu especial interesse sociológico. Há também outros
motivos que suscitam nosso ínteresse por esses
estabelecimentos, Em nossa sociedade, são as estufas para
mudar pessoas; cada urna é um experimento natural sobre o
que se pode fazer ao eu. (...)
20
# Recortes de Notícia
Seletividade penal cria padrão nas prisões
brasileiras
Retiradas do blog do g10
Em 23 de maio deste ano, a Suprema Corte
Americana decidiu que, por causa das péssimas condições a
que estão submetidos por causa da superlotação dos
presídios, mais de 46.000 presos do Estado da Califórnia
teriam que ser libertados. Para a Suprema Corte, essa é a
única solução para o problema, que provoca doenças físicas
e mentais nos apenados. Demora no atendimento médico,
infecções, mortes e suicídios são algumas das consequências
da superlotação que ultrapassa os 200%.
Ao ver as fotos de um dos presídios californianos observase que o local está, sim, superlotado, mas em condições
visivelmente melhores do que muitas das prisões brasileiras.
A população carcerária do Brasil soma quase 500.000
presos, dos quais pelo menos um terço é provisório – o que
contribui cada vez mais para o aumento deste número já
bastante alto. O problema carcerário de nosso país, porém,
não se limita à questão da superlotação. Quem estuda o
assunto garante que tudo começa com a seleção dos presos.
Segundo dados do InfoPen, Sistema Integrado de
Informações Penitenciárias, vinculado ao Departamento
Penitenciário Internacional, em dezembro de 2010 461.444
dos quase 500.000 presos no Brasil eram homens. Desses
mais de 460.000, 225.678 eram jovens entre 18 e 29 anos,
66.219 eram considerados negros e 170.916, pardos.
―Pela enorme quantidade de condutas classificadas como
‗crime‘, e por ‗crime‘ ser algo absolutamente normal em
qualquer sociedade, não existe forma de criminalizar que
não seja seletivamente, caso contrário teríamos mais pessoas
presas que em liberdade. A questão se desloca, então, para
os critérios de seleção‖, explica José Antônio Gerzson
Linck, Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela
PUCRS. Para ele, o termo ―pardo‖ não é válido, não
passando de uma invenção para construir o mito de
integração que sustentou grande parte dos governos
populistas: ―Para mim, ‗pardos‘ são negros‖. Dessa forma,
as prisões brasileiras contariam com mais de 237.000 negros
em suas unidades.
E esse número não é por acaso. A lei áurea, que libertou os
negros da escravidão em 1888, não trouxe renda e trabalho
para essas pessoas e as deixou em um regime de semiescravidão. Isso explica o número muito maior de negros
pobres do que brancos pobres. Assim, eles são os principais
selecionados do sistema penal, já que tem a possibilidade de
defesa reduzida pela dificuldade de pagar por uma bom
advogado. ―Mas essa não é a única explicação. A seleção
também utiliza critérios de cor. Como diria Mano Brown
‗preto e branco pobre se parecem mas não são iguais‘‖,
completa Linck.
Já o grande número de jovens nas cadeias brasileiras pode
ter uma de suas explicações nos recordes de natalidade entre
os anos 80 e 90, que aumentaram em muito a quantidade de
adolescentes no país. Além disso, esses adolescentes,
principalmente os homens, estão mais sujeitos a algo que a
sociologia chama de ethos guerreiro. ―O ethos guerreiro se
faz presente principalmente entre a população pobre, na qual
outras formas de construção identitária não estão
disponíveis, fazendo com que a formação da identidade
através de signos de valentia e rebeldia seja uma forma de
diferenciação social no grupo‖, explica Linck. O ethos
guerreiro também é alimentado pela cultura do consumo, já
que os jovens são aqueles que tem menores possibilidade de
adquirir bens.
A seletividade também pode explicar o pequeno número
de mulheres presas, 34.807 em dezembro de 2010, quando
comparadas à quantidade de homens encarcerados. ―As
mulheres constroem a identidade através de signos
valorativos vistos como menos violentos e não são
consideradas uma ―ameaça‖ pelas autoridades policiais,
então elas não apenas cometem menos crimes como também
são menos selecionadas‖ explica José Linck. Porém, ele
lembra que esse é um fenômeno em absoluta inversão: ―As
mulheres começam a gerenciar pontos de venda de drogas
dos pais e maridos e liderar quadrilhas da mesma forma que
estão cada vez mais presentes no mercado de trabalho. A
maior rede de varejo de drogas de Porto Alegre, por
exemplo, está sendo comandada pela filha do antigo patrão,
desde que ele foi preso‖.
Arthur Amaral Reis, graduando em Direito na UFRGS e
assistente jurídico do Grupo 10 do SAJU/UFRGS, observa o
mesmo padrão de seleção nos internos da FASE, instituição
responsável pela aplicação das medidas sócio-educativas aos
menores condenados. ―Trabalhando na defesa de
adolescentes acusados de praticar ato infracional
(conhecidos pelos difusores do pânico moral como ‗menores
infratores‘), vejo que a seleção segue o mesmo padrão: o
poder estatal prefere julgar e encarcerar adolescentes negros
do sexo masculino‖ afirma. Ele ainda chama a atenção para
as péssimas condições a que são submetidos esses jovens:
―Apesar de os meninos não aparecerem no censo presidiário
do CNJ, a situação e os procedimentos das unidades de
internação não diferem em muito do sistema penal dos
adultos. É que o Brasil ainda acredita que privar um guri de
sua liberdade, de sua família e de seus amigos constitui
―medida socioeducativa‖. É só fazer uma visita a esses
depósitos de jovens para constatar que de social e de
educativa, a casa tem só o nome‖.
Dessa forma, o sistema penal pune alguns por crimes
cometidos por todos. Selecionando aqueles que têm menos
possibilidade de se defender, a justiça brasileira acaba
segregando ainda mais pessoas que já tem dificuldades para
se incluir na sociedade. Cria-se, assim, um padrão: ser
homem, jovem, negro e pobre são os ―pré-requisitos‖ para
ser preso.
21
Sobre as profecias que se cumprem
Mais um exemplo emblemático da violência que a gente
produz?
Semana passada, após realização de uma audiência no
Fórum Central, interno da Fase foi resgatado por homens
armados que interceptaram o veículo que o transportava. O
jovem tem 19 anos, ingressou na fundação em 2006 por
tráfico e homícido e já havia fugido da unidade esse ano.
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/noticia/2011/11/homensarmados-interceptam-veiculo-e-levam-interno-da-fase-nazona-sul-da-capital-3572827.html
Após ler a notícia, não há como escapar dos lamentáveis
comentários dos leitores que clamam para que o ―criminoso
foragido‖ seja encontrado e encaminhado ao Presídio
Central.
Essa situação me remeteu, inicialmente, à maneira como
alguns internos da Fase se referem à Instituição: ―creche do
Central‖.
Reproduzo, enfim, uma passagem bastante simbólica e
condizente com o presente caso. No livro ―Cabeça de
Porco‖, analisando o panorama dos jovens em conflito com
a lei, Luiz Eduardo Soares afirma que:
―As instituições os condenam à morte simbólica e moral, na
medida em que matam seu futuro, eliminando as chances de
acolhimento, revalorização, mudança e recomeço. Foi dada
a partida no círculo vicioso da violência e da intolerância. O
desfecho é previsível; a profecia se cumprirá: reincidência.
A carreira do crime é uma parceria entre a disposição de
alguém para transgredir as normas da sociedade e
a disposição da sociedade para não permitir que essa
Embora descontextualizado e escrito há mais de 130 anos,
esse trecho do fabuloso romance de Fiódor Dostoiévski ―Os
Irmãos Karamázov‖ nos diz muito sobre a realidade dos
adolescentes selecionados pelo sistema penal juvenil no
século XXI. O pragmatismo com que o Estado lida com
crianças e adolescentes envolvidos em atos infracionais é
problemático e inconsequente, visto que falta sensibilidade e
mesmo vontade para lidar com situações de tão intensa
complexidade. Apesar da máscara de ―instituição
socioeducadora‖, os cárceres a que esses jovens são
submetidos são como tapetes, para baixo dos quais
escondemos a sujeira que estamos com preguiça de limpar,
sujeira que deixamos acumular; a analogia é imperfeita e até
cruel, mas cabe no que diz respeito às ações do Estado nesse
contexto.
O estado de sujeira é justamente a vulnerabilidade social
que assola uma grande massa de adolescentes, aos quais os
seus julgadores não ―deram de comer nem de beber‖, nem
lhes ―visitaram no calabouço vazio‖, e, no momento
oportuno, os querem punir severamente. O que passa na
cabeça de um adolescente que nunca teve real assistência
social de qualidade, que sempre foi invisível para quem tem
o dever constitucional de lhe dar suporte, que foi
marginalizado pela estrutura social de que faz parte, quando
é encarcerado exatamente por apresentar os sintomas de toda
essa negligência – a rebeldia contra um sistema jurídicopolítico-econômico que nunca lhe deu nada! – ? Arrisco a
dizer que o trecho escrito pelo autor russo é uma hipótese de
resposta muito possível a essa pergunta. Arrisco a dizer que
é até lógico pensar assim, é racional.
O tratamento duro dado aos adolescentes, a violência
física e psicológica que eles sofrem, a ressocialização na
base do castigo e da privação de liberdade a que eles são
submetidos, tudo isso traz a reflexão: por que está tão
pessoa desista‖.
inserida no senso-comum a ideia de que todos esses métodos
são realmente os pilares da salvação da humanidade? Tratar
Estamos quites
“[...] Senhores jurados, nós o condenaremos e ele dirá para
com duras penas problemas que são tão claramente
compostos de uma complexidade de exigências jamais
si mesmo: „Essa gente não me deu de comer nem de beber,
não me visitou no calabouço vazio, e eis que agora me
funcionou, é claramente visível que não há como funcionar.
Da mente de um adolescente que é duramente penalizado
manda para os trabalhos forçados. Estamos quites, agora
não lhe devo nada nem devo nada a ninguém para todo o
por vender drogas aos mesmos que o condenarão (ou aos
filhos destes) por tê-lo feito pode plausivelmente sair: ―Ela é
sempre. Ela é má, e eu serei mau, ela é cruel, e eu serei
cruel‟. Eis o que ele dirá, senhores jurados! [...]”
má, e eu serei mau, ela é cruel, e eu serei cruel‖ – referindose àquela gente que o pune por servi-la.
22
Extratos do texto O lugar da prisão na nova
administração da pobreza, de Wacquant
A PRISÃO E O MERCADO DE TRABALHO
DESQUALIFICADO
Em primeiro lugar, o sistema penal contribui diretamente
para a regulamentação dos segmentos mais baixos do
mercado de trabalho — e o faz de um modo mais coercitivo
e significativo do que a legislação trabalhista,os sistemas de
seguridade social e outras políticas públicas, muitas das
quais nem mesmo abrangem o trabalho não-regulamentado.
Seus efeitos nesta linha de frente são tripartidos.Primeiro,a
prevalência e a escalada impressionantes das sanções penais
ajudam a disciplinar as parcelas reticentes da classe
trabalhadora, aumentando o custo das
estratégias de resistência ao trabalho assalariado
dessocializado por intermédio de uma ―saída‖ para a
economia informal. Afrontados por uma polícia
agressiva,tribunais severos e a possibilidade de sentenças de
prisão estupidamente longas para crimes envolvendo drogas
ilícitas e reincidência,muitos evitam entrar ou afastam-se do
comércio ilegal de rua e submetem-se aos princípios do
trabalho não-regulamentado.
Para alguns dos recém-saídos de uma instituição carcerária,
a intrincada malha da supervisão pós-correcional aumenta a
pressão para a opção pela vida ―do caminho certo‖ ancorada
no trabalho, quando disponível6. Em um caso como no
outro, o sistema de justiça penal atua em anuência com o
workfare, para forçar a entrada da sua clientela nos
segmentos periféricos do mercado de trabalho.
Segundo, o aparato carcerário ajuda a ―fluidificar‖ o setor de
empregos mal remunerados e reduz de maneira artificial a
taxa de desemprego, subtraindo à força milhões de
indivíduos desqualificados da força de trabalho. Estima-se
que o confinamento carcerário tenha diminuído o índice de
desempregados nos Estados Unidos em
dois pontos percentuais durante a década de 1990. Com
efeito, segundo Bruce Western e Katherine Beckett,quando
se contabilizou a diferença entre o nível de encarceramento
das duas áreas, os Estados Unidos divulgaram uma taxa de
desemprego mais alta do que a média para a União Européia
durante dezoito dos vinte anos entre 1974 e 1994,
contrariando a visão propalada pelos entusiastas do
neoliberalismo e críticos da ―euroesclerose‖. Ainda que seja
verdade que nem todos os prisioneiros fariam parte da força
de trabalho se estivessem em liberdade, a diferença de dois
pontos percentuais não inclui o estímulo keynesiano
proporcionado pela explosão dos gastos públicos e do
emprego em instituições correcionais:o número de empregos
nas cadeias e prisões municipais,estaduais e federais mais
que dobrou nas últimas duas décadas,saltando de menos de
300 mil em 1982,para mais de 716 mil em 1999,quando a
folha de pagamento mensal excedia US$ 2,1 bilhões.
O crescimento penal também impulsionou o emprego no
setor privado de produtos e serviços carcerários, um setor
com altas taxas de empregos precários e rotatividade, e que
cresce paralelamente à privatização da punição (já que a
fonte da ―competitividade‖ das empresas correcionais são os
salários incrivelmente baixos e os benefícios insuficientes
concedidos ao seu quadro de empregados). Western e
Beckett argumentam que a hipertrofia carcerária é um
mecanismo tardio, bipartido e com efeitos contraditórios: a
um só tempo doura o cenário trabalhista de curto
prazo,amputando o suprimento de trabalho na base da
hierarquia ocupacional, e agrava-o a longo prazo,
inviabilizando em menor ou maior intensidade milhões de
pessoas para o trabalho. Na visão desses autores, ―o
encarceramento reduziu a taxa de desemprego dos Estados
Unidos, mas [...] sustentar índices baixos de desemprego no
futuro vai depender da expansão do sistema
penal‖10.Porém, esse argumento ignora um terceiro impacto
do ultra-encarceramento sobre o mercado de trabalho, que é
o de facilitar o crescimento da economia informal e de
empregos abaixo da linha de pobreza,e o faz gerando
continuamente um grande volume de trabalhadores
marginais que podem ser explorados sem quaisquer
escrúpulos.
Ex-detentos dificilmente podem exigir algo melhor que um
emprego degradante e degradado em razão das trajetórias
interrompidas, dos laços sociais esgarçados, do status
jurídico ignominioso e do amplo leque de restrições legais e
obrigações civis implicadas. O meio milhão de condenados
que escoam das prisões americanas todos os anos fornece a
força de trabalho vulnerável apropriada para suprir a
demanda de empregos temporários, o setor do mercado de
trabalho que mais cresceu nos Estados Unidas ao longo das
duas últimas décadas (e que responde por um quinto de
todos os novos empregos criados desde 1984).O
encarceramento extremo, portanto, alimenta o emprego
contingente, que é a linha de frente da flexibilização do
trabalho assalariado nas camadas mais baixas da distribuição
de empregos. Além disso, a proliferação de penitenciárias
nos Estados Unidos (seu número triplicou em trinta anos, e
já ultrapassa
4.800) contribui diretamente para o crescimento e a
disseminação do tráfico ilícito (drogas, prostituição,
produtos roubados), que são o motor do capitalismo de
pilhagem das ruas.
A PRISÃO E A IMPLOSÃO DO GUETO
A representação maciçamente predominante e crescente de
afroamericanos em qualquer nível do aparato penal tinge a
segunda função assumida pelo sistema carcerário da nova
administração da
pobreza na América de uma cor desagradável:compensar e
complementar a falência do gueto como mecanismo de
confinamento de uma população considerada divergente,
desonesta e perigosa, bem como supérflua no plano
econômico (imigrantes mexicanos e asiáticos são
trabalhadores mais dóceis) e no plano político (negros
pobres raramente votam e,de qualquer forma, o centro
gravitacional eleitoral mudou das regiões centrais urbanas
decadentes para os prósperos subúrbios brancos).
Desse ângulo, o encarceramento é apenas a manifestação
paroxística da lógica da exclusão etnorracial da qual o gueto
tem sido instrumento
e produto desde a sua origem histórica.Durante o meio
século de domínio da economia industrial fordista (19151965) — para a qual os negros contribuíram com uma
quantidade indispensável de trabalho não-qualificado, desde
a Primeira Guerra Mundial, que pôs em marcha a ―Grande
Migração‖ dos estados segregacionistas do Sul para as
metrópoles de trabalhadores do Norte,até a Revolução dos
23
Direitos Civis, que finalmente lhes deu acesso às urnas (cem
anos depois da abolição da escravidão) —, o gueto
desempenhou o papel de ―prisão social‖, garantindo, assim,
o ostracismo social sistemático de afroamericanos e ao
mesmo tempo permitindo a exploração da sua força de
trabalho na cidade. Após a crise de debilitação do gueto,
simbolizada pela grande onda de revoltas urbanas que
varreram o país em meados da década de 1960,a prisão
preencheu o espaço que se abriu,
servindo como um ―gueto‖ substituto para armazenar as
parcelas do (sub)proletariado negro que têm sido
marginalizadas pela transição à economia de serviços duplos
e às políticas estatais de retração do welfare e de retirada das
cidades.
Logo,
ambas
as
instituições
acoplaram-se
e
complementaram-se, pois cada uma opera à sua própria
maneira para reforçar a separação (o significado etimológico
de segregare) de uma categoria indesejada,percebida como
uma ameaça dupla para a metrópole,indissociavelmente
moral e física.E essa simbiose estrutural e funcional entre
gueto e prisão encontra uma expressão cultural
surpreendente nas letras musicais e no estilo de vida
desdenhoso dos músicos de gangsta rap, exemplificado pelo
destino trágico do cantor e compositor Tupac Shakur.
Nascido na prisão, filho de um pai ausente (sua mãe, Afeni
Sahkur, fazia parte dos Panteras Negras),o apóstolo da thug
life,herói para uma multidão de jovens dos guetos (e legiões
de adolescentes brancos dos subúrbios), morreu em 1996,
em Las Vegas, crivado de balas em um carro, após cair
numa emboscada armada por membros da gangue
rival.Antes disso,foi acusado de atirar contra policiais e
cumpriu pena
de oito meses por agressão sexual.
CODA
Escapar do paradigma angelical da imposição do
cumprimento da lei e exorcizar o mito demoníaco do
―complexo industrial prisional‖ são duas etapas necessárias
e complementares para localizar de forma apropriada as
novas funções que a prisão carrega no sistema reconfigurado
de instrumentos para gerir o trabalho não-regulamentado, a
hierarquia etnorracial e a marginalidade urbana nos Estados
Unidos dos dias de hoje. Realizar essas duas etapas revela
que a liberação de um aparato penal hipertrófico e hiperativo
após meados da década de 1970 não é a lâmina cega de uma
―guerra contra o crime‖, nem o engendramento de um
acordo secreto demoníaco entre oficiais públicos e
corporações privadas com vistas a faturar com o
encarceramento. Em vez disso, revela que o fenômeno
participa da construção de um Estado reformado capaz de
impor requerimentos econômicos e morais adstringentes do
neoliberalismo após o descarte do pacto social fordistakeynesiano e a implosão do gueto negro. O aparecimento
dessa nova administração da pobreza de mãos dadas com o
workfare restritivo e com punições expansivas exige que
tiremos a prisão dos domínios técnicos da criminologia e da
política criminal, e a coloquemos diretamente no centro da
sociologia política e das ações civis.
24
Diálogos Locais:
remoções e o direito
à cidade
Quando o oficial de justiça chegou
lá na favela
E contra seu desejo entregou
pra seu narciso um aviso
pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor,
assim dizia a petição
dentro de dez dias quero a favela vazia
e os barracos todos no chão
É uma ordem superior
Despejo na Favela
Adoniran Barbosa
25
As obras de Mobilidade Urbana em Porto Alegre – Duplicação da Avenida Tronco
O que é o Projeto da Avenida Tronco?
Inicialmente prevista na Matriz de Responsabilidade da prefeitura municipal de Porto Alegre para a
realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014 (as obras de Porto Alegre foram retiradas da matriz no ano de 2013
por iniciativa do executivo municipal), a obra de criação da Av. Tronco repercute na cidade como uma das
intervenções com maior impacto na vida das pessoas e comunidades da região. A criação da via irá ligar a Avenida
Teresópolis e a 3ª Perimetral com a Avenida Icaraí num trajeto total de 4,5 Km, afetando diretamente em torno de
1.580 famílias, que perderão a sua moradia para dar passagem à obra. Segundo dados da prefeitura municipal, a
construção da nova avenida ligará a confluência da Icaraí e da Chuí àquela das ruas Professor Clemente Pinto e
Mariano de Matos, das avenidas Carlos Barbosa e Niterói e o prolongamento previsto da avenida Gaston Mazeron,
tendo três pistas em cada sentido, faixa preferencial para ônibus, incluindo rótulas e intersecções e contando com
mobiliário urbano e iluminação totalmente novos.
―Trata-se de um eixo estruturador do sistema viário da cidade, facilitando o trânsito entre os
bairros Cristal e Tristeza, e entre a Zona Sul em geral e as vias que a conectam com as zonas
Norte, Nordeste e Leste da Cidade, constituindo, ainda, alternativa de ligação da Zona Sul ao
centro da cidade.‖ fonte: site http://www.secopapoa.com.br
A obra de criação da Av. Tronco terá um custo total de R$ 78.485.901,16 (setenta e oito milhões,
quatrocentos e oitenta e cinco mil, novecentos e um reais e dezesseis centavos), sendo que desse total, R$
6.805.263,16 (seis milhões, oitocentos e cinco mil, duzentos e sessenta e três reais e dezesseis centavos) são
contrapartida do município. A diferença, no valor de R$ 71.680.638,00 (setenta e um milhões, seiscentos e oitenta mil,
seiscentos e trinta e oito reais) foi captado pela prefeitura municipal de Porto Alegre perante a União, pela via de
empréstimo dentro do PAC Mobilidade – Copa 2014, tendo como representante local da União a Caixa Econômica
Federal.
O traçado da obra afetará as seguintes comunidades já consolidadas há mais de 20 anos na região: Vila
Cristal e Divisa, Vila Cruzeiro, Vila Tronco, Vila dos Comerciários, Vila Maria e moradias da rua Gastão Mazeron e
da avenida Silva Paes, num total de aproximadamente 1.580 famílias.
A construção já está em andamento físico desde maio de 2012, com maquinário e trabalhadores na região
trabalhando nas áreas já liberadas. Para que a obra tenha andamento, portanto, e chegue ao seu final, a postura da
prefeitura municipal de Porto Alegre é a de liberação de áreas que estão ocupadas por moradias e comércio para que o
trabalho efetivamente avance.
Nesse sentido, o Demhab – Departamento Municipal de Habitação – realizou o cadastramento de todas as
famílias tocadas pela obra de construção da avenida. Esse já era direcionado para as opções a serem escolhidas pelas
pessoas atingidas, as quais o município está trabalhando para a implementação do Plano de Reassentamento dos
Atingidos. São opções: a concessão de bônus-moradia, na forma de valor em dinheiro pago ao proprietário de um
imóvel a ser adquirido pelo atingido; a concessão de aluguel social e a aquisição de um imóvel do programa Minha
Casa Minha Vida, cujos prédios o município se encarregará de construir. Em relação ao comércio existente na região,
o Poder Público trabalha com a lógica de indenização por benfeitorias avaliadas por empresa contratada pelo
município. Para implementação dessa política municipal de reassentamento, o Demhab instalou na região um
escritório para atendimento das pessoas interessadas no encaminhamento de um ou outro modelo de política ofertado
pelo município.
A fim de viabilizar essa política, o município aprovou a Lei Municipal nº 11.229, de 6 de março de 2012,
que institui o bônus-moradia, e o Decreto nº 17.772, de 2 de maio de 2012, que regulamenta a concessão do benefício.
Aprovou ainda a Lei Complementar nº 636, de 13 de janeiro de 2010, que instituiu o programa Minha Casa Minha
Vida em Porto Alegre, alterado pela Lei Complementar nº 663, de 28 de dezembro de 2010, e pela Lei Complementar
nº 699/2012.
26
Foi editada, ainda, a Portaria nº 152/2011, que regulamenta a criação de Comitê Gestor das Obras da Copa
junto à SECOPA – Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo de 2014 –, da prefeitura municipal de Porto Alegre,
que conta com um comitê específico para a Av. Tronco. Esse comitê tem por finalidade acompanhar as ações do
município em relação à obra e é composto por moradores da região.
Figura 07 – Obra da Avenida Tronco – Bairro Cristal
O Processo de Participação no Comitê Gestor
Os impactos dessa obra no conjunto das comunidades afetadas e na vida de seus moradores é realmente
muito forte. Muitos moradores literalmente foram expulsos da região por conta da política municipal para atender à
liberação de trechos do traçado da avenida e possibilitar as obras de construção. A partir desse contexto, as
comunidades afetadas pela obra de criação da Av. Tronco organizaram-se para reivindicação de direitos e tiveram
algumas importantes conquistas. Uma delas está relacionada à participação no Comitê Gestor, tendo em vista que
haviam lideranças comunitárias que não se sentiam representadas no comitê instituído pelo município. Pois foi quando
da realização de Audiência Pública convocada pela Procuradoria Federal do Direito do Cidadão em Porto Alegre e
realizada na Assembleia Legislativa do RS, em março de 2011, que o município foi pressionado a incorporar outras
lideranças a esse processo de participação.
Todavia, os depoimentos dos integrantes do comitê dão conta de que não há mais reuniões convocadas, e
que quando existem reuniões, há sérios problemas na convocação e, ainda, que as reuniões não contam com atas
firmadas pelos participantes.
Esse espaço era importante para comunidades e moradores atingidos pelas obras da Av. Tronco por conta da
necessidade de acesso à informação, a qual se demonstra precária e não para a totalidade de moradores que vivem
diariamente com o receio dos impactos dos trabalhos.
BOX: Entrevista com José Araújo, morador da Vila Cruzeiro há 40 anos, que fala sobre participação na
SECOPA
Como foi chamado para participar da SECOPA? Como são as reuniões? Qual a periodicidade? Quem participa dessas
reuniões?
Em 2011, ficamos sabendo que estavam ocorrendo reuniões para discutir sobre situação da região onde passaria a
Avenida Tronco, e as pessoas que estavam indo não representavam todos aqueles moradores das duas regiões: Grande
Cruzeiro e Divisa Cristal. Apenas três pessoas participavam, mas não nos representavam. Então, solicitamos uma
27
Audiência Pública para debater o que estava acontecendo, pois o governo não estava respondendo às pessoas, estava
fazendo reuniões sem a participação da comunidade. Esteve presente nessa audiência MPE (Luciano Brasil), MPF
(Alexandre Gavronski), SECOPA e Busatto, entre outras pessoas envolvidas com o direito à moradia na cidade. Os
encaminhamentos foram no sentido de que a prefeitura iria fornecer todos os dados para a comunidade. Os projetos
viários e habitacionais e os prazos para o reassentamentos das famílias, e também solicitamos que fosse elevado o
valor do bônus-moradia para R$ 80 mil, o que não aconteceu. Nesta audiência, também selecionaram mais três
pessoas para acompanhar e participar dessas reuniões da SECOPA, e uma delas foi eu. Na verdade, não fui chamado,
foi uma imposição. As reuniões eram semanais, depois passaram a ser quinzenais. Quem costumava participar eram o
secretário da SECOPA, o pessoal do Demhab e mais estas três pessoas da região que não representavam todo mundo,
e, depois da audiência, entrou eu e mais dois. Não atendiam às nossas solicitações, não éramos ouvidos. Às vezes,
ocorria de chegar lá e não ter reunião, às vezes, avisavam que o encontro não aconteceria e depois ficávamos sabendo
que aconteceu, essas coisas. Eu participei de, no máximo, umas quatro reuniões. Não chamaram mais, e, depois, eu
acabei desistindo. Lá na região, tem o Centro Administrativo Regional, onde funcionava também um Conselho
Tutelar, e, neste local, foi incorporado um escritório para a SECOPA. Acabou que tiraram o centro e o conselho e
ficou somente a SECOPA. No ano passado (2012), o Demhab fez um cadastramento socioeconômico das famílias da
área, mas nós não tivemos acesso às informações. Nós queríamos os dados gerais, quantas pessoas queriam bônusmoradia, quantas queriam ser reassentadas na região, essas coisas, mas não nos deram acesso. Mais de 300 famílias já
aceitaram bônus-moradia, eu conheço algumas delas que fizeram empréstimos para completar o valor do bônus e
conseguiram comprar sua casa. Isso não poderia acontecer. Tudo isso que foi feito, todas as reuniões e audiências com
o Ministério Público, promotores de Justiça, Comissão de Direitos Humanos... Eles não tinham como resolver alguma
coisa? Eu estou desacreditado.
A Política Municipal de Reassentamento
Outro problema que se vê instalado na região de intervenção da obra da Tronco é a política municipal de
reassentamento destinada aos moradores atingidos pela construção. O bônus-moradia foi fixado pelo município no
valor de R$ 52.340,00 para cada família atendida. Esse valor não atende àquela família que pretende ficar na região
onde já mora por dezenas de anos, tendo em vista que o valor é muito baixo para aquisição de imóvel com matrícula
regular na região. Frise-se, ainda, que o município desencoraja o morador que deseja alcançar o valor do bônus a título
de entrada para um financiamento de outro imóvel. Isso inviabiliza mais ainda a aquisição de imóvel na área, não
bastasse o baixo valor do benefício. Esses moradores, portanto, são obrigados a se retirarem e irem para outra
localidade mais periférica da cidade como o bairro Rubem Berta (Extremo Norte) ou o bairro Restinga (Extremo Sul),
ou ainda a saírem da cidade, como é o caso de muitos moradores atingidos que retornaram para seu lugar de origem,
no Interior do Estado, ou, então, foram residir no Litoral do Estado ou na cidade de Viamão, onde o valor dos imóveis
é menor. Inclusive, é bom lembrar que, no escritório municipal localizado na vila Tronco, existe mural com ofertas de
imóveis em todo o território estadual. O município ainda tem apostado no aluguel social para garantir a liberação de
trecho para seguimento das obras. As famílias que aceitam o pagamento do aluguel social estão na espera de um
imóvel a ser construído pelo executivo municipal pelo programa Minha Casa Minha Vida.
Todavia, esses moradores que recebem o aluguel social vivem em completa insegurança, já que, até o
presente momento, não se iniciou nenhuma obra do MCMV prometida pelo município. Isso sem falar no valor de R$
500,00 a título de benefício mensal que restringe as possibilidades da localização de um imóvel de aluguel regular que
contemple aluguel, condomínio, água e luz, entre outras despesas.
Sobre isso, é importante referir que as obras do MCMV estavam inicialmente previstas para serem realizadas
nas AEIS localizadas no Extremo Sul da cidade, mais especificamente no bairro Lami, conforme prevê a Lei
Complementar nº 663/2010 (essa lei municipal está sendo impugnada na Justiça pelo Ministério Público Estadual por
alterar o Plano Diretor de Porto Alegre em descumprimento do Estatuto da Cidade). Com base na mobilização dos
moradores, foi possível garantir que o município desapropriasse imóveis na própria região da Vila Tronco para
construção dos prédios do MCMV. Além disso, na Lei Municipal que instituiu o gravame das AEIS a esses imóveis –
Lei Complementar nº 716/2013 – ficou estabelecido que essas construções serão direcionadas prioritariamente para o
reassentamento dos moradores atingidos pelas obras de criação da Av. Tronco.
28
Visibilidade para o Caso da Criação da Av. Tronco
Por via da organização comunitária ainda, foi realizada visita à região da Tronco pelo GT Moradia da
Secretaria Especial de Direitos Humanos, onde foram denunciadas as violações aos direitos humanos dos moradores
atingidos pelas obras, assim, como visita do GT do Gabinete da Secretaria da Presidência da República que também
visitou a área e as autoridades locais. Visitas essas que ocorreram ao longo do ano de 2012. Todas essas iniciativas
garantiram visibilidade ao caso da Tronco em nível nacional.
Os moradores, juntamente com entidades e organizações de direitos humanos que dão apoio à luta por
direitos na região, protocolaram ainda representação no Ministério Público Estadual, que foi recebida pelo ProcuradorGeral de Justiça do Estado do RS. O inquérito tramita hoje perante a Promotoria de Justiça e Direitos Humanos sob nº
01128.00166/2012. Com base nesse inquérito, foi possível a realização da primeira Audiência Pública específica para
a Av. Tronco com direito de participação e manifestação dos atingidos. Essa Audiência Pública foi mediada pelo
Ministério Público Estadual e aconteceu no dia 23 de novembro de 2012, onde, enfim, foi possível analisar o projeto
de construção da avenida e conhecer o entendimento do município sobre a política implementada na região para os
afetados, além de ser possível realizar outras denúncias pelos moradores da região.
Esse inquérito é importante porque representa outro espaço de tentativa de mediação do grave conflito
fundiário instalado na região da Tronco. Numa dessas audiências, as lideranças comunitárias presentes entregaram
uma lista de perguntas e demandas ao executivo municipal, a qual foi respondida pelo Demhab. Lamentavelmente, na
resposta apresentada, o Poder Público não realizou nenhuma concessão na política de reassentamento adotada.
Confirmou que o aluguel social é efetivamente integrante da política do município e que seria, em tese, a solução para
a liberação de trechos para o seguimento das obras, mesmo que essa não tenha nenhum requisito de urgência, estando
já fora da Matriz de Responsabilidade para a Copa do Mundo de 2014. O pedido e a reivindicação de colocar um fim
no aluguel social é legítimo e justo, porque esses moradores poderiam aguardar em suas casas com dignidade o
término da construção das moradias do MCMV para somente aí saírem de suas casas.
Noutro ponto da resposta, o Demhab afirma que não é possível o aumento do valor do bônus-moradia já que
se trata de correção monetária do valor do benefício que era alcançado aos moradores afetados pelas obras do PISA
implementado em região próxima e que, na época, estava fixado em R$ 40 mil para cada família atingida. Segundo,
ainda, a resposta do Demhab, dos 321 cadastrados que optaram pelo bônus-moradia, 241 já o receberam. Segundo a
lei e o decreto do bônus, os valores são repassados do município para o proprietário do imóvel que será adquirido, sem
que o morador tenha contato com o recurso, bem como exigindo que o imóvel esteja em situação regular perante o
cartório de registro de imóveis. A resposta do departamento refere, além disso, que as indenizações via bônus-moradia
já chegam a um patamar de R$ 12.438.540,50 (doze milhões, quatrocentos e trinta e oito mil, quinhentos e quarenta
reais e cinquenta centavos), mas embora o município esteja apostando no aluguel social, nenhum prédio foi construído
para abrigar as famílias.
Referência Bibliográfica:
SANTOS, K. F. M. ; MULLER, C. ; SIQUEIRA, L. F. ; MARTINS, C. B. . Violações ao Direito à Cidade e à
Moradia Decorrentes de Megaprojetos de Desenvolvimento no Rio Grande do Sul - o caso de Porto Alegre. 1. ed.
Porto Alegre: Centro de Direitos Econômicos e Sociais - CDES, 2013. v. 1. 100p .
29
30
Feminismos:
Megaeventos e o
Tráfico de Pessoas
Acho que se deve ser diferente
E não como toda a gente
Mas igualmente ser gente
Como toda essa gente
Deste país continente, e de todo o planeta
Acho que todo cidadão
Ou cidadã
Deve ter possibilidades de felicidades
Do tamanho de um super Maracanã
E deve e pode ser azul, negro ou cinza
Sorridente ou ranzinza
Verde, amarelo e da cor vermelha
Deve-se somente ser e não temer viver
Com o que der e vier na nossa telha
Vivamos em paz, porque tanto faz
Cidadão-Cidadã
Jorge Mautner
31
Mudando o Debate sobre o tráfico de mulheres
Kamala Kampadoo
O tráfico de mulheres é um problema internacional desde
meados do século dezenove e é em geral ligado a idéias
sobre mulheres no comércio do sexo. Muitas idéias e noções
foram formuladas ao longo do tempo e hoje existem muitas
em circulação. No que segue, apresento perspectivas e
abordagens importantes no debate internacional sobre o
tráfico de pessoas, e sublinho alguns dos principais pontos
de crítica sobre o referencial contemporâneo hegemônico,
pontos esses articulados através de projetos de pesquisaação e de intervenções contra o tráfico nas bases da
sociedade. Argumento que, a despeito de mudanças
substanciais no entendimento global sobre o tráfico,
fortemente influenciadas por dois discursos feministas
claramente diferentes (feminismo radical e feminismo
transnacional), muito do que se busca hoje em nome de uma
guerra ao tráfico tem conseqüências problemáticas para
comunidades pobres ao redor do mundo, e tem implicações
em termos de raça e gênero. As políticas norte-americanas
são aqui trazidas ao debate para ilustrar algumas dessas
tendências.
Definições feministas do tráfico
O "tráfico" está em geral ligado a tratados internacionais que
tentavam lidar, entre fins do século dezenove e início do
vinte, com o surgimento de mulheres como trabalhadoras
migrantes no cenário internacional, começando com um
tratado da Liga das Nações no início do século vinte (o
precursor do Tratado das Nações Unidas de 1949 para a
Supressão do Tráfico de Pessoas e a Exploração da
Prostituição de Outros). As idéias sobre o tráfico foram
engendradas por ansiedades sobre a migração de mulheres
sozinhas para o exterior, e sobre a captura e escravização de
mulheres para prostituição em terras estrangeiras. A visão de
uma sociedade moral subjacente ao cristianismo informava a
definição, e a política do abolicionismo da escravidão negra
e do movimento pelo sufrágio feminino tanto na Europa
como nos Estados Unidos ajudaram a dar forma ao
paradigma do "tráfico de pessoas". Definições feministas
foram assim centrais para conceitualizações internacionais.
(...)
A segunda abordagem do tema, que é crítica da primeira e
que em outro lugar chamei de perspectiva feminista
"transnacional" ou do "terceiro mundo", toma o tráfico como
discurso e como prática que emergem das interseções de
relações de poder estatais, capitalistas, patriarcais e
racializadas com a operação da atuação e desejos das
mulheres de darem forma às próprias vidas e estratégias de
sobrevivência e vida. O patriarcado é visto como uma das
relações de dominação que condicionam as vidas das
mulheres, e não a única, nem necessariamente a principal.
Considera-se que racismo, imperialismo e desigualdades
internacionais também configuram as vidas das mulheres.
Além disso, enquanto o patriarcado significa a degradação
de feminilidades em todo o globo onde o trabalho e a vida
das mulheres são, de diversas maneiras, concebidas nos
discursos hegemônicos como menos valiosos que os dos
homens e a serviço dos interesses sexuais masculinos, e
onde as mulheres são muitas vezes definidas e tratadas pelo
estado como cidadãos de segunda classe ou como
propriedades dos homens, as mulheres não são
simplesmente definidas como vítimas do poder masculino
terrível e paralisante ou como grupo homogêneo. Nesta
perspectiva, ao contrário, elas são concebidas como sujeitos
atuantes, auto-determinados e posicionados de maneira
diferente, capazes não só de negociar e concordar, mas
também de conscientemente opor-se e transformar relações
de poder, estejam estas enraizadas nas instituições de
escravidão, prostituição, casamento, lar ou mercado de
trabalho. A atuação e atividade feminina, dessa perspectiva,
podem então apresentar-se de diversas maneiras, às vezes
reinscrevendo e às vezes contestando a dominação e
controle masculinos sexualizados, dependendo de
condições,
histórias
e
contextos
culturais
específicos. Entende-se, ademais, que essa atuação pode
ligar-se às vezes a estratégias de sobrevivência ou de
geração de renda, estratégias que envolvem energias e partes
do corpo sexualizadas, assim comparáveis a outros tipos de
trabalho produtivo e, como tais, definidas como "trabalho
sexual", embora tomando cuidado com a análise das
atividades econômicas sexuais, devidamente contextualizada
e historicizada. De qualquer maneira, levando em
consideração a atuação e o trabalho sexual, o envolvimento
em indústria sexual e em trabalho sexual no exterior
aparecem como possibilidades a que as mulheres se dedicam
voluntária ou conscientemente de acordo com parâmetros
culturais, nacionais ou internacionais específicos. Assim, em
lugar de definir a própria prostituição como uma violência
inerente contra as mulheres, são as condições de vida e de
trabalho em que as mulheres podem se encontrar no trabalho
do sexo, e a violência e terror que cercam esse trabalho num
setor informal ou subterrâneo que são tidos como violadores
dos direitos das mulheres e, portanto, considerados como
"tráfico". Embora esta perspectiva seja às vezes referida por
feministas radicais como uma posição "pró-prostituição", as
que a defendem a entendem como uma perspectiva de
direitos humanos ou justiça social.
A pesquisa empírica sobre migração, prostituição e
atividades em setores informais ou subterrâneos sublinha a
relevância da perspectiva feminista tradicional ou da justiça
social sobre o tráfico. Por exemplo, raramente se verifica de
maneira sistemática que as mulheres sejam abduzidas ou
seqüestradas, acorrentadas às camas em bordéis e mantidas
como escravas sexuais ou de outro tipo (embora essa
situação seja a que chega às manchetes). Ao contrário, o que
as pesquisas mostram é que a coerção, extorsão, violência
física, estupro, fraude e detenção têm lugar dentro de
processos migratórios ou de recrutamento de trabalho e/ou
em locais de trabalho no destino. A servidão por dívida e o
trabalho contratado, mas forçado, são muito mais comuns
que a escravidão. Formas contemporâneas de trabalho
forçado na indústria do sexo, que inclui aspectos de
consentimento e atuação em defesa do trabalhador, são
validadas por pesquisas que documentam a participação
ativa das "vítimas" em migrações através de fronteiras – por
exemplo, que mulheres e meninas tentam mudar para o
32
exterior consciente e voluntariamente para melhorar suas
vidas e as de suas famílias. O que essas mulheres muitas
vezes não sabem, ou às vezes aceitam tacitamente, são os
perigos das rotas subterrâneas que têm que usar para
atravessar a fronteira, os custos financeiros, o tipo de
atividades, as condições de vida e de trabalho na chegada, o
alto nível de dependência de um conjunto específico de
recrutadores, agentes ou empregadores, os riscos de saúde, a
duração do emprego, seu status criminoso no exterior, a
violência e/ou períodos de detenção ou encarceramento que
poderão ter que enfrentar. As pesquisas mostram que a
maioria das "pessoas traficadas" expressam algum desejo de
migrar e, por exemplo, em torno da metade das mulheres no
trabalho sexual global parecem conscientes antes da
migração de que estarão envolvidas em alguma forma de
trabalho sexual.15 Também aparece que a criminalização da
prostituição exacerba a violência que as mulheres migrantes
experimentam nas mãos de recrutadores, contrabandistas,
empregadores, polícia, funcionários da imigração ou
carcereiros de centros de detenção, cadeias ou prisões, entre
os quais o triplo estigma de criminosa, puta e imigrante
promove intenso desrespeito e tratamento desumano.
Foi também a perspectiva feminista transnacional que
informou o projeto de pesquisa mundial encomendado pela
Relatora Especial da ONU sobre a Violência contra as
Mulheres, Rhadika Coomarswamy, em meados da década de
1990, que resultou na sugestão de que a ONU separasse os
processos de recrutamento e transporte sob coação do
comércio do sexo: isto é, distinguisse conceitualmente
tráfico de prostituição.16 Além disso, a Relatora Especial da
ONU definiu a prostituição como forma legítima de
trabalho, e o comércio global do sexo foi definido como um
lugar, mas não o único, em que ocorre o tráfico. O tráfico
passou, então, a ser entendido em 1996, no nível das Nações
Unidas não como escravização de mulheres, mas como
comércio e exploração do trabalho em condições de coação
e força. Simultaneamente a essa redefinição feminista do
tráfico, multiplicaram-se estudos sobre os temas do
contrabando humano transnacional, "novas formas de
escravidão", migração sem documentos e deslocamentos
forçados que afetavam tanto mulheres como homens.17 Uma
diferença importante entre contrabando e tráfico, entretanto,
se funda na intenção pela qual o movimento tem lugar. O
entendimento atual do tráfico de pessoas salienta as
condições de fim – a situação de trabalho forçado ou
semelhante à escravidão – em função das quais ocorre o
recrutamento e transporte de pessoas dentro do estado ou
através das fronteiras nacionais. (...)
Problemas com o referencial hegemônico
Uma preocupação comum entre as feministas transnacionais
e os defensores da perspectiva dos direitos humanos e da
justiça social é que o referencial anti-tráfico adotado pela
ONU apóia os interesses econômicos neo-liberais das
corporações, das principais agências multilaterais, dos
especialistas em políticas e dos governos nacionais, e não os
dos trabalhadores e populações pobres do mundo. Esse
referencial espelha outras políticas globais que abraçam o
assim chamado "livre comércio" e o acesso irrestrito das
grandes corporações transnacionais a um ilimitado
fornecimento de recursos naturais e matérias primas, e que
garantem e defendem os direitos de elites socialmente
poderosas – as classes proprietárias, gerenciais,
cosmopolitas e profissionais – ao mesmo tempo em que
limitam o acesso, movimento e direitos dos despossuídos, e
dos economicamente fracos. Assim, ainda que o protocolo
da ONU requeira que os "estados que o ratifiquem tomem
medidas para proteger e assistir as pessoas traficadas" com
pleno respeito a seus direitos humanos, chama a atenção de
muitos dos envolvidos com pessoas traficadas que as
violações de direitos humanos não diminuíram com as
políticas e legislação antitráfico.
Um dos efeitos mais impressionantes é que, embora as
pessoas objeto de tráfico sejam designadas como "vítimas"
em várias políticas e leis, a menos que se tornem
informantes da polícia e entreguem seus "traficantes", que
bem podem ser seus amigos, amantes, irmãos, irmãs, ou
seus empregadores, elas são tratadas como imigrantes
ilegais, criminosas ou ameaças à segurança nacional.
Números crescentes de imigrantes pobres são então
adicionados ao número já imenso de pessoas processadas
pelos sistemas de justiça criminal, com números também
crescentes, sendo detidas ou encarceradas por crimes não
violentos como imigração ilegal, uso e tráfico de drogas, e
trabalho sexual. Descobriu-se, através da pesquisa
internacional anti-escravidão em 2002, que os vistos criados
para as pessoas objeto de tráfico podem parecer simples
"adiamentos de deportação", uma vez que apenas permitem
que o indivíduo permaneça no país de destino pelo período
necessário para o processo criminal contra os traficantes.
Além disso, pesquisas realizadas pelas principais
organizações não governamentais contra o tráfico, como a
Dutch Foundation Against Trafficking in Women (STV)
[Fundação Holandesa contra o Tráfico de Mulheres], a
Global Alliance Against Traffic in Women [Aliança Global
contra o Tráfico de Mulheres], com base na Tailândia, assim
como a Anti-Slavery International [Internacional Contra a
Escravidão] no Reino Unido, mostram que, além da prisão,
detenção e deportação, como modos imediatos de disposição
das mulheres, homens, meninas e meninos objetos de tráfico
nos países de destino, essas pessoas, quando "resgatadas",
são em geral devolvidas aos países de origem como
migrantes sem documentos, e têm de enfrentar a vergonha e
a humilhação que acompanha tal categorização e o status de
deportadas. Há também o medo de represálias dos
traficantes ou o medo de que a família ou a comunidade
doméstica estigmatize uma mulher por seu envolvimento em
atividades sexuais tidas como criminosas. (...) Intervenções
estatais que se baseiam em medidas repressivas, como
controle mais rigoroso de fronteiras, prisão, detenção e
deportação e um paradigma de "resgate de vítimas" sugerem
que muitas vezes as "pessoas objeto de tráfico" são
resgatadas contra a vontade, podem deixar de cooperar com
as autoridades, ou simplesmente ser novamente "traficadas"
se devolvidas a seus países de origem. Desigualdades
estruturais globais na distribuição de riquezas e no acesso à
educação, ao emprego, a seguro-saúde e à previdência
social; conflitos e ocupações militares; desastres ambientais
e falta de propriedade de terras; e violência fundada em
conflitos étnicos, de gênero ou de religião, todos subjacentes
ao movimento e busca de segurança social e econômica em
primeiro lugar, não são erradicados na abordagem ao tráfico
a partir da perspectiva da governança global. As condições
no país de origem continuam em sua maior parte iguais e
migrantes devolvidos ou deportados podem tentar partir
33
novamente. Como as pesquisas cada vez mais indicam,
esforços para reprimir a migração, para manter as pessoas no
país, ou para "empurrá-las de volta", muitas vezes fazem
mais mal que bem, e vão contra os interesses dos migrantes.
Como um comentarista disse de forma sucinta: "As pessoas
não querem ser resgatadas, elas querem se sentir seguras.
Elas não querem voltar, elas querem continuar...". Ignorar as
razões para migrar e as necessidades e desejos das pessoas
de deixarem seus países para melhorar de vida, mesmo que
isso envolva ser contrabandeado e trabalhar em condições
deploráveis no comércio sexual, é fugir do problema da
atuação e autodeterminação dos migrantes e leva, portanto, a
métodos e estratégias não adequados às necessidades deles.
Em segundo lugar, esta perspectiva da ONU tende a mudar
algumas migrações e padrões de trabalho ou empurra as
atividades mais para o subterrâneo. Cria, por exemplo, o que
Phil Marshall e Susu Thatun chamam de efeito "esconde e
reaparece", onde as intervenções servem para suprimir o
tráfico numa região geográfica ou comunidade e fazem com
que ele volte em outro lugar. Algumas comunidades ou
grupos podem, então, ser "salvos" por esforços antitráfico ao
mesmo tempo em que novas comunidades ou gerações mais
jovens passam a suprir a demanda de serviços e trabalho
baratos. Ademais, políticas desenvolvidas dentro de um
referencial que enfatiza o reforço dos controles sobre a
imigração tende a dar poder a sentimentos anti-imigrantes e
atos de xenofobia. Já se observou nos EUA que grupos de
vigilantes armados de direita complementam agora as forças
federais e estaduais nos esforços para deter e dissuadir os
que tentam atravessar as fronteiras sem documentos.
Terceiro, além da violência que o fervor anti-imigração
promove, a abordagem internacional dominante da questão
do tráfico identifica principalmente gangues internacionais
originadas no estrangeiro e países "fontes" como os
principais culpados, criminosos e beneficiários no negócio
do tráfico. Dado que a maioria dos países "de destino" são
supostamente os países ocidentais pós-industriais, e as
nações mais pobres são chamadas de países "fonte", essa
distinção cria uma divisão internacional em torno de quem é
definido como vilão ou "do mal". A lente estreita dessa
abordagem antitráfico internacional e a representação
enviesada da migração é particularmente notável para os
Estados Unidos. Aqui, embora tenha sido estabelecido que a
maior parte do tráfico ocorre não para as indústrias
subterrâneas do sexo controladas por criminosos, mas para
empresas atrasadas, lavouras e serviço doméstico que são
ligados a setores formais da economia, a atenção do estado e
do público é atraída para grupos de intermediários que são
considerados as ameaças "reais" – agentes de recrutamento e
os que assistem os outros em seus movimentos sem
documentos ou dinheiro – que são em geral identificados
como pessoas gananciosas e imorais do sul global e de
antigos estados socialistas. Assim, o primeiro relatório do
governo norte-americano a documentar o tráfico para o país
identifica famílias mexicanas, africanas e do oriente
próximo, homens tailandeses e latino-americanos, grupos do
crime organizado e sindicatos da Rússia, Itália e do Leste
Europeu, círculos de contrabandistas asiáticos, mexicanos e
nigerianos, "jogadores da costa ocidental" do Canadá,
tríades chinesas, gangues Hmong, etc., como os agentes
principais que lucram e se beneficiam com o
tráfico. Relatórios da mídia e de pesquisa sobre o tráfico em
todo o mundo muitas vezes reproduzem esse foco. Uma
guerra ao tráfico de seres humanos através de um crescente
policiamento e controle de imigração é apenas uma resposta
que a comunidade governamental internacional dá a esse
problema e, desde o 11 de setembro de 2001, ela tem sido
ligada à guerra ao terrorismo liderada pelos EUA. A
atribuição do tráfico ao "outro" estrangeiro, que é
configurado como uma ameaça às sociedades e à civilização
ocidentais, serve assim como uma tática para assustar e
encurralar sentimentos racistas e nacionalistas e para ofuscar
a interação entre o estado e o capital corporativo.
Em quarto lugar, muitas das afirmações feitas sobre o tráfico
são infundadas e não documentadas, e se baseiam em
relatórios sensacionalistas, em hipérboles e em confusões
conceituais, problema que se estende para discursos
internacionais mais amplos sobre o crime transnacional.
Como observa Margaret Beare, o que infesta muitos estudos
e afirmações sobre o crime transnacional organizado é "a
base não empírica de muitas das respostas da mídia, da
polícia e também das respostas políticas", a formatação das
notícias como entretenimento, a imprecisão que se insinua
nos conceitos por uso excessivo, os exageros e estimativas
baseadas
em
conjeturas,
e
avaliações
não
confiáveis. Tentativas de provar casos de tráfico também
geram distorções e imprecisões. Em alguns casos, como em
países do sul da Ásia, há uma aguda sub-utilização ou falta
de recurso a algumas fontes e utilização excessiva de outras.
Assim, informação e conhecimento existentes na
comunidade local, por exemplo entre educadores voluntários
e trabalhadoras do sexo com HIV/AIDS, são raramente
utilizados para desenvolver o conhecimento sobre o tráfico,
ou para planejar intervenções e políticas. Ao contrário,
matérias de jornal criadas por jornalistas visitantes ou
estudos de caso reunidos a partir de um punhado de meninas
"resgatadas" por zelosos assistentes sociais são em geral
tomados como "os fatos". Não existem números precisos
sobre o tráfico, e só casos extremos chegam à forma de
reportagens interessantes. De qualquer maneira, políticas,
legislação e intervenções de longo alcance são construídas
na base da "evidência", e "há uma tendência a aceitar
estatísticas e dados não verificados, sem questionamento
adicional". Existe atualmente uma indústria antitráfico que
inclui números crescentes de assistentes sociais, políticos,
pesquisadores, "czares" antitráfico e funcionários da
imigração, e também leis e políticas novas e fundos e
recursos especialmente dedicados para trabalho contra o
tráfico, assim como um conjunto de novas medidas e
métodos para prender os traficantes e prestar assistência às
"vítimas", sem que se possa demonstrar que tenham tido
muito impacto nas vidas das mulheres pobres. (...)
34
# Recorte de Notícia
De olho no mundial, travestis vão de Fortaleza para São
Paulo colocar próteses de silicone através de uma rede de
tráfico de pessoas que cresce com a chegada do megaevento
Muito antes de Fortaleza ser confirmada como
cidade sede da Copa do Mundo de 2014, as travestis Carla e
Luana* já trabalhavam nas imediações da imponente Arena
Castelão, área histórica de prostituição na cidade. Nas
avenidas que rodeiam o estádio e em algumas ruas que
adentram os bairros pobres da região, elas, as colegas e
prostitutas dividem as calçadas e os clientes em busca de
programas que custam de 5 a 50 reais.
Durante a tarde de uma segunda-feira quente e seca,
típica de abril nordestino, quando acompanhei o trabalho do
pessoal da Associação Barraca da Amizade (ONG que há 26
anos atende e acolhe crianças e adolescentes em situação de
rua e desde 2009, a pedido das meninas e meninos, também
desenvolve um trabalho de combate a exploração sexual) o
movimento não era tão grande – duas prostitutas e três
travestis se esgueiravam pelas poucas sombras oferecidas
pelos muros altos de uma grande empresa, perto de uma
rotatória, fugindo do calor. Carla e Luana descansavam em
casa de uma noitada de diversão. Sem cafetinas a quem
prestar contas, as duas podem fazer seu horário de trabalho.
As que estavam na pista, eram abordadas pelos educadores
da Barraca, que distribuem preservativos e gel lubrificante
como forma de redução de danos e de aproximação.
―Hoje, além das mulheres e adolescentes,
trabalhamos com 30 travestis aqui da área, levando insumos,
marcando exames nos postos de saúde, oferecendo cursos
profissionalizantes e atendendo a algumas demandas delas.
Há pouco tempo nós conseguimos, após articulação com
orgãos oficiais, a transferência de um médico que fazia
piadas homofóbicas com as travestis de um posto de saúde
da região. Esses resultados ajudam a fortalecer essa
confiança no nosso trabalho‖ explica Paulinha, como a
assistente é carinhosamente conhecida entre as travestis. Por
confiarem em Paulinha, Carla e Luana abriram as portas de
sua casa próxima à Arena e me receberam para falar sobre
suas expectativas e medos com a chegada da Copa e também
sobre um fenômeno que têm crescido com a aproximação do
megaevento na cidade:
A viagem do silicone
―Eu vou agora em julho para São Paulo botar silicone no
peito, 450, 500 ml em cada. Também vou bombar de novo
[por mais silicone industrial no corpo]: bunda, quadril, perna
e joelho. Aí na Copa eu vou cobrar mais‖ diz Carla, 25 anos,
que há 10 se prostitui no entorno do Castelão, apontando
para as partes do corpo que pretende aumentar. ―O silicone
industrial dói demais, você fica pra morrer! A mulher injeta
e vai fazendo uma massagem para ele espalhar. Mas é a dor
da beleza, né?‖ Ela afirma que foi para a ―pista‖ com 15
anos porque quis, assim como a amiga Luana, de 22 anos,
que diz ter começado a fazer programas aos 17 também por
opção. ―Eu fui uma das primeiras a chegar aqui no Castelão.
Hoje a coisa está feia, tem muita postituta fumando pedra e
isso queima nosso filme. Ao mesmo tempo que a gente
espera que a Copa aumente o movimento, tem medo que a
polícia queira limpar a área. Você acha que o prefeito vai
querer mostrar isso para os gringos?‖ pergunta. ―Mas a
gente é atrevida, se me tirarem daqui vou para ali!‖ Sua
deficiência visual parece não atrapalhar o trabalho ou seus
planos e nunca é mencionada. ―Peitão e bundão chamam a
atenção aqui. Em São Paulo não, porque as mariconas
sabem que trava que é muito bombada, é mais rodada,
preferem as com carinha de menino. Mas aqui no Ceará
quem tem peitão é mais procurada‖ diz entre um comentário
e outro sobre a reprise da novela que está passando na
televisão.
Luana, que já foi para São Paulo colocar as
próteses, explica como funciona: ―Tem as cafetinas que
levam a gente, pagam a passagem e a operação em uma
clínica clandestina. Deve sair uns dois mil reais para elas. Aí
ela cobram o dobro ou o triplo e mais uma diária de 30 a 50
reais para a gente morar na casa delas e a gente vai
trabalhando para pagar. Trabalha muito, muito mesmo‖.
Carla acrescenta: ―Eu já fui fazer programa em São
Paulo. É bom porque você ganha mais, mas por outro lado
você tem que trabalhar de qualquer jeito, mesmo se estiver
doente, não importa. Ninguém vai te dar um remédio. Eu já
vi umas travestis apanharem de pau de uma cafetina‖.
Segundo as duas, o movimento entre as cidades
aumenta a cada dia: ―Só essa semana, fiquei sabendo de
quatro que foram. Mês que vem sei de mais cinco. É muita
travesti botando peito‖ diz Luana. Ela conta que pagou três
mil reais por suas próteses de cerca de 400 ml porque era
conhecida da cafetina e que ficou oito meses trabalhando em
São Paulo para pagar a dívida. Muitas acabam não voltando
porque viram dependentes químicas da cocaína – que ajuda
a aguentar o trabalho intenso e é mais acessível na cidade –
e não conseguirem pagar suas dívidas. Uma delas fugiu da
casa onde estava e neste momento está desaparecida, como
me contaria depois Marcela, que conheci já em São Paulo.
Lídia Rodrigues, outra educadora da Barraca da Amizade,
conta que algumas travestis chegam a fazer de 30 a 40
programas por dia em São Paulo e que os educadores têm
percebido que este trânsito para a capital paulista está se
intensificando: ―Não dá para afirmar que é somente por
causa da Copa, mas elas sabem que virão muitos turistas e
muitos homens para a área. Ao mesmo tempo a gente tem
medo de uma higienização massiva. Provavelmente o
termômetro disso vai ser a Copa das Confederações‖.
35
Tráfico de Pessoas
Lívia Xerez, coordenadora Estadual do Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de
Justiça e Cidadania do Estado do Ceará diz que, apesar do
discurso das travestis de que fazem a viagem por vontade
própria, a situação pode ser considerada sim como tráfico de
pessoas.―Por mais que elas não denunciem ou achem que
estão indo porque querem, o protocolo de Palermo define o
tráfico de pessoas como ‗o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas,
recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre
outra para fins de exploração‘. Neste caso, elas seriam as
vítimas e os aliciadores os criminosos‖ explica, referindo-se
ao protocolo da ONU contra o Crime Organizado
Transnacional, que foi ratificado pelo governo brasileiro em
2004.
Ainda há muito preconceito e medo por parte das
próprias vítimas em denunciar os aliciadores, diz Livia:
―Elas são ludibriadas com promessas de uma vida nova, por
vezes luxuosa, de ganhar mais dinheiro e por isso não
conseguimos chegar. Muitas também têm medo, talvez por
sermos um aparelho oficial, de que serão criminalizadas,
quando na verdade elas são as vítimas. Por isso ainda não
conseguimos provas de que isso tem aumentado por conta
da Copa, apesar de termos fortes suspeitas‖.
Outro fator que impulsiona o tráfico é a falta de
alternativas profissionais para as travestis, explica Lídia:
―Nós temos uma parceria com o programa Vira Vida do
SESI, que dá cursos profissionalizantes para elas mas, no
fim das contas, quantas empresas contratam travestis? Nós
trabalhamos com muitos garotos que nem eram travestis,
eram apenas homossexuais, mas foram colocados para fora
de casa e apareceu uma cafetina que ofereceu dinheiro caso
eles se montassem. Para a juventude não existem políticas
públicas em Fortaleza como existem para crianças e
adolescentes – que ainda assim são escassas. As travestis
têm o discurso da emancipação, como se a prostituição
fizesse parte da própria identidade de ser travesti. Mas nem
todas estariam ali se tivessem outras opções‖.
“Me senti como a presidente Dilma”
Marcela*, 22 anos, cabe no exemplo dado por
Lídia. Após cursos profissionalizantes e várias tentativas de
arrumar um emprego, ela acabou indo para a rua. Quando
nos encontramos de manhã em um shopping do centro de
São Paulo para conversar, a cearense arrastou todos os
olhares masculinos para seu belo corpo, comprado através
do esquema citado por Carla e Luana. ―Vim para São Paulo
em abril do ano passado. Paguei o silicone do corpo em três
meses, coloquei mais, paguei em um mês e a prótese do
peito quitei em 20 dias‖ orgulha-se a travesti, que trabalha
das dez da manhã às nove da noite com pausa para o
almoço, em um cinema pornô do centro da cidade. ―Chego a
tirar oito mil reais por mês mas trabalho muito e não saio
nem uso drogas. Todo o meu dinheiro vai para a minha mãe
e para o banco porque quero comprar uma casa‖.
Marcela conta que descobriu sua homossexualidade
aos 13 anos e que por algum tempo escondeu a opção da
mãe e das quatro irmãs. ―Eu sentia muito medo de como elas
e a sociedade iriam reagir. Mas não tinha outro jeito, era
quem eu era. Então contei e elas até que aceitaram bem‖. Já
o processo de travestilidade foi mais difícil: ― Minha mãe
ameaçou me botar para fora de casa, dizia que eu nunca iria
arrumar emprego, não aceitou‖.
Ela conta que chegou a se prostituir aos 17 anos
mas que preferia trabalhar. Conseguiu uma bolsa de estudos
através do programa Vira Vida e passou um ano e meio
estudando de manhã e fazendo o curso a tarde. ―Eu sempre
gostei de fazer cursos, estudar, queria trabalhar com carteira
assinada, nunca quis fazer programa‖ lembra. Marcela diz
que chegou a arrumar um emprego em uma firma de
lingerie, mas que foi mandada embora quatro meses depois
porque adoeceu ―e o patrão não aceitou os atestados
médicos‖. Daí em diante, aceitou trabalhar recebendo
metade do salário de outros funcionários de uma empresa
mas em determinado momento não pôde mais se sustentar
com o pouco que ganhava e não achou mais trabalho:
―Todas as portas se fecharam para mim. Não tive outra
opção a não ser ir para a rua. Se eu pudesse, escolheria outra
vida. Como não posso, me concentro e trabalho muito para
poder juntar algum dinheiro para um dia abrir um negócio.
Vou ficar velha e ninguém mais vai me querer‖.
Vaidosa, maquiada e bem vestida, Marcela conta
que hoje paga 30 reais a diária para a cafetina dona da casa
onde mora e mais 30 reais a diária do cinema, de onde a
cafetina é sócia, mas que pretende sair da casa da aliciadora
e alugar um quarto com mais três colegas de Fortaleza para
poder atender aos clientes durante a Copa.
―Eu tenho anúncios em sites e também quero ir para
a rua na época da Copa. São Paulo estará cheia de gringos e
mesmo brasileiros de outros estados, quero aproveitar‖. Para
ter lucros mais altos, Marcela assume que já fez sexo sem
preservativo: ―Tem gente que paga o dobro e até o triplo do
valor para transar sem camisinha, aí eu acabo fazendo. Estou
com medo de fazer o exame [de HIV], mas sei que a saúde
vem em primeiro lugar‖ se contradiz.
Após a Copa, Marcela pretende ir para a Europa,
ganhar em euro. ―Já falei com uma pessoa que leva travestis
para lá. Ela cobra 10 mil reais para passar a gente‖. Pergunto
se ela não tem medo. ―Que nada, é a mesma coisa daqui, só
que ganhando em euro‖. Voltar para Fortaleza, só mesmo de
férias, como foi há poucos meses: ―Nossa, me senti uma
celebridade lá, me senti como a presidente Dilma! Todo
mundo vinha falar comigo, ver como eu mudei, até as
pessoas que falavam mal de mim viram que eu conquistei‖.
Com o dinheiro arrecadado na Copa mais o que pretende
conseguir na Europa, Marcela pretende aproveitar o sucesso
para aí sim voltar para o Ceará e abrir seu negócio. Um
salão de beleza ou uma loja de roupas, porque adora moda.
Olhando para o relógio, ela se despede. É hora de voltar para
o cinema.
*Os nomes foram trocados para segurança das personagens.
36
TRANS MIGRAÇÕES – L’Italia dei Divieti:
entre o sonho de ser européia e o babado da
prostituição
universo da travesti, compondo sua subjetividade. A
percepção das estratégias migratórias desenvolvidas com o
propósito de materializar esse sonho são frequentemente
dissonantes dos argumentos das agências oficiais do uso de
engano ou fraude e mesmo de aliciamento.3
Flávia Teixeira
Introdução
Neste texto trato da circulação das travestis brasileiras entre
Milão, Roma e Brasil. Utilizo aqui o termo êmico
européia1 para argumentar que os sonhos e as experiências
de circulação entre as fronteiras Brasil-Europa integram o
universo das travestis com sentidos que podem se afastar
daqueles atribuídos pelos órgãos oficiais e outras
organizações envolvidas no combate ao tráfico de seres
humanos.
Os cenários da prostituição surgem como significativos
espaços de sociabilidades no campo de diferentes
pesquisadores que se aventuraram a investigar o cotidiano
das travestis desde o trabalho inaugural de Helio Silva
(1993). Também não escapou a eles o fascínio que a Europa
exercia e ainda exerce neste universo. O fluxo migratório
das travestis foi identificado por Don Kulick (1998, 2008)
desde os anos 70 tendo a França como destino preferencial
até 1982. Segundo Larissa Pelúcio (2005), esse fluxo se
acentuou nos anos de 1980 e nos anos 90 a Itália se
consagrou como o destino preferencial das travestis.
Embora, a partir do início deste século, países como a
Espanha, a Suíça e a Holanda passaram a integrar o roteiro
das travestis, identifico a supremacia italiana captada no uso
do idioma, nas escolhas das grifes de roupas e perfumes, nos
hábitos alimentares das travestis. A experiência de ter vivido
na Europa (ou mesmo conhecer alguém que tenha realizado
a viagem) integra as conversas que circulam nas calçadas,
salões de beleza, clínicas de cirurgia plástica e nas casas,
alimentando o desejo de muitas outras que esperam um dia
atravessar o Atlântico.
As reflexões aqui desenvolvidas estão ancoradas na pesquisa
que coordenei sobre vulnerabilidades e prostituição das
travestis em Uberlândia e que originou em 2006 o projeto de
extensão: "Em Cima do Salto: saúde, educação e cidadania",
vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Uberlândia, ainda em execução. Durante esse período,
identifiquei a intensificação do uso de termos em italiano
como ciao, bella, grazie, regina, cazzo, aiutami no
vocabulário das travestis de Uberlândia.2 Não passaram
despercebidas as músicas italianas que, juntamente com
sucessos de época, embalaram muitas das festas nas quais
compareci. A valorização do idioma italiano e sua fluência
como capital simbólico pode ser flagrada nos seus álbuns de
relacionamento do Orkut. Argumento que a vivência da
prostituição e o sonho de trabalhar na Europa integraram o
Segundo Piscitelli (2004), a partir dos anos 90, o debate que
associa prostituição forçada, o turismo sexual e a
prostituição se tornou visível no Brasil, chamando a atenção
da opinião pública, dos pesquisadores e dos formuladores de
políticas. No entanto, a inclusão das travestis nesses debates
é recente e decorre principalmente das alterações
introduzidas no Código Penal brasileiro em março de 2005,
que substituiu a palavra "mulheres" por "pessoas". Essa
modificação impactou a vida das travestis, porque a partir de
uma lógica jurídica na qual sexo corresponde a gênero, as
travestis anteriormente estavam incluídas no universo de
homens e, portanto, fora do alcance jurídico da esfera desse
tipo de tráfico. As alterações dos artigos 231 - que faz
referência ao crime de tráfico internacional de pessoas para
fins de exploração sexual - e a introdução do mesmo artigo,
que caracteriza o tráfico interno - introduziram para as
travestis, no plano técnico, um conjunto de questionamento
sobre práticas que, até então, integravam seu universo
regidas por uma lógica completamente distante e diversa das
disposições do Código Penal.
Referendada nos fragmentos da pesquisa de campo,
problematizo dois aspectos que impactam a vida das
travestis: o primeiro, relacionado ao Código Penal
Brasileiro, não contempla a possibilidade de que uma pessoa
possa realizar a migração voluntária para trabalho sexual
e/ou receber auxílio de outro e a realização desse desejo
termina por criminalizar algumas estratégias de acionamento
de redes sociais que são legitimamente acionadas em
contextos fora da prostituição através de termos como help,
ajuda (Assis, 2007; Piscitelli, 2008). O segundo, a paradoxal
atuação de ONGs que atuam no combate ao tráfico e na
proteção das vítimas no exterior. O não reconhecimento por
parte das travestis de que são/foram exploradas/traficadas
cria uma situação ambivalente, ora o discurso oficial
empregado pelas ONGs coloca as travestis no lugar daquelas
consideradas traficadas, exploradas e, portanto, necessitam
de proteção ou as deslocam para a situação de "perigosas e
bandidas" ao vincular a prostituição à marginalidade
(indocumentadas) e à (des)ordem pública.
Não afirmo que as travestis que se prostituem na Itália ou
em Uberlândia não possam ser traficadas ou exploradas, nos
termos do Protocolo de Palermo, em processos que
envolvam coação ou fraude, mas, como mostram outros
estudos (Davida, 2005), é necessário diferenciar as
problemáticas, considerando as lógicas dos sujeitos
envolvidos.
1
Segundo Larissa Pelúcio (2005), para ser considerada européia a travesti
deve ter vivido uma temporada atuando como prostituta fora do Brasil.
Assim como babado é também um termo êmico, mas que carrega a
ambigüidade, pode tanto significar algo muito bom ou desastroso; só pode
ser apreendido no contexto.
2
É um projeto que atende em média, 40 travestis por mês. As atividades
são semanais e devido a rotatividade do grupo, estimamos que mais de 150
travestis integraram as atividades em algum momento.
3
Ressalto que considero problemática a relação direta entre ser travesti e
ser prostituta ou que a prostituição é naturalmente um único caminho para
as travestis, mas compartilho com outros pesquisadores a percepção de que
as calçadas são significativos espaços de sociabilidade. Remeto-me aqui ao
reconhecimento de que a maioria das travestis, cerca de 97%, vivencia a
prostituição como trabalho, conforme dados obtidos durante I Consulta
Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição que ocorreu em
Brasília entre 26 e 28 de fevereiro de 2008.
37
O campo
Utilizo-me de algumas referências para argumentar que
Uberlândia, apesar de situada no interior do Triângulo
Mineiro, é um espaço representativo do universo das
travestis. Esse destaque pode ser flagrado, por exemplo,
quando a BEMFAM (2006) recortou Uberlândia (MG)
como um dos espaços para a pesquisa sobre prostituição e
HIV/Aids. Conforme observa o próprio documento, a
população inicial do estudo seria apenas motoristas de
caminhões e mulheres profissionais do sexo. A ampliação da
pesquisa envolvendo também as travestis se deu em função
do reconhecimento do número expressivo de travestis que
trabalham na cidade como prostitutas e suas possíveis
interações com os caminhoneiros.
Uberlândia também foi citada no documento da Organização
Internacional do Trabalho (OIT, 2006) como rota para o
tráfico de seres humanos, a partir da Pesquisa sobre Tráfico
de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de
Exploração Sexual Comercial (Pestraf, 2002). Penso que a
justificativa para essa inclusão, já que Minas Gerais não foi
uma região pesquisada para o relatório da Pestraf (2002),
pode estar associada aos relatórios da Polícia Federal
envolvendo investigações sobre tráfico de mulheres.
Certamente, Uberlândia seria incluída nos próximos
relatórios após evento, amplamente divulgado na mídia
nacional, da prisão realizada pela Polícia Federal, em 2006,
de duas travestis acusadas de envolvimento no tráfico de
seres humanos.
Aprendi o bajubá 4 no cotidiano das ruas como a maioria dos
antropólogos que fizeram suas etnografias nas calçadas
deste país. As reflexões aqui desenvolvidas estão ancoradas
no trabalho de campo que consistiu em acompanhar o
cotidiano das travestis nas calçadas, nas casas, nas festas de
aniversário, Natal e Ano Novo, nas reuniões do projeto e nas
situações de dor-adoecimento, morte e violências. Nesse
período, acompanhei os preparativos de algumas travestis
para trabalhar na sonhada Itália. A poupança destinada aos
investimentos corporais que incluem a colocação das
próteses de silicone nos seios, a depilação do rosto a laser, a
colocação de apliques ou perucas, a obtenção dos
documentos, a compra das passagens. Foram aqui tecidos os
fios de um vínculo, permitindo que as entrevistadas falassem
de assuntos considerados delicados, entre eles, os acordos
que conduzem à Europa.
Além da observação e contatos estabelecidos com travestis
em Uberlândia a partir de 2002, para este trabalho realizei
seis entrevistas em profundidade, o critério inicial para
escolha da entrevistada seria a experiência de ter vivido na
Itália como prostituta. Outros critérios foram estabelecidos
com o objetivo de apresentar a heterogeneidade do grupo, e
escapar (ou tentar escapar) da simplificação desse
fenômeno. Duas de minhas entrevistadas são proprietárias
das chamadas casas de pensão para travestis, outras duas são
travestis que migraram para Itália com financiamento
próprio e retornaram após a primeira temporada, duas
utilizaram o esquema de financiamento de outras travestis,
4
Gíria amplamente utilizada pelas travestis composta por termos oriundos
do ioruba-nagô, conhecida também como pajubá ou bate-bate.
entre elas, duas documentadas - uma residente na Itália e
outra no Brasil.
A partir de março de 2008 tornou-se evidente a chegada, em
Uberlândia, de um maior número de travestis vindas da
Itália. Esse movimento motivou parte da pesquisa de campo
realizada em Roma (Itália) em maio de 2008 com o objetivo
compreender a extensão das políticas migratórias
implementadas pelos governos de Silvio Berlusconi e
Gianni Alemanno no cotidiano das travestis brasileiras
residentes na Itália e explicitadas nas diferentes justificativas
que elas apresentavam quando indagadas sobre o período
que pretendiam permanecer por aqui. Foram recorrentes as
expressões: "a Itália está o Ó"; "vim descansar, mas também
esperar as coisas esfriarem por lá"; "parece a mesma
perseguição que aconteceu na França, eles vão tombar a
Itália".
Em Roma, foram entrevistadas a presidente da Associação
das Travestis, uma brasileira com nacionalidade italiana 1, a
coordenadora da Unidade de Estrada V da Cooperativa
Social PARSEC - Projeto Roxanne - e uma das mediadoras
culturais - também brasileira - responsável pela distribuição
de preservativos, pelo contato nas ruas dessa região adstrita
e também uma das tradutoras no Tribunal Penal em Roma
nas situações em que o juiz decide sobre a permanência ou
deportação de alguma travesti.
O masculino das travestis e os vazios nas pesquisas
Nos documentos oficiais, em relação ao casamento, as
preocupações são direcionadas para as mulheres brasileiras,
um universo no qual as travestis sequer são citadas. O
casamento com um italiano não desponta no horizonte das
expectativas de minhas entrevistadas, nem como porta de
entrada para a migração ou permanência com a obtenção de
cidadania. No entanto, cabe o alerta de Adriana Piscitelli
(2007b) de que a heterogeneidade e a complexidade das
relações precisam ser pontuadas. É necessário considerar
que as travestis, pelo menos no plano jurídico, estão
incluídas na categoria sexo masculino e, na Itália, não se
reconhece o casamento de pessoas do mesmo sexo. Nesse
caso, ao pensarmos os casamentos mistos ocorridos na Itália,
chamo a atenção para os casamentos que devem constar nos
documentos oficiais como sendo de um homem brasileiro
com uma mulher italiana e que pode ser o de uma travesti
brasileira com uma mulher italiana. Não são raros os casos
em que esse "arranjo matrimonial" ocorre.
Rita é viúvo, casou-se com uma italiana em 2004 após uma
negociação de 8.000 Euros. Pergunto sobre suas amigas
travestis que identifico através das fotografias que ela vai
me mostrando, e ela narra como cada uma das
"documentadas" percorreu caminhos semelhantes.
Viviane é cidadã italiana, herdeira do nome do avô, neta de
um migrante que chegou ao Brasil no final do século XIX.
Primeiramente, ela ficou constrangida quando percebeu que
eu havia compreendido que falava com suas amigas sobre
um arranjo matrimonial. No entanto, era dia de festa e com
um sorriso sentou-se mais perto para falar de seus planos
futuros. O sobrenome italiano poderá render-lhe muitos
Euros caso concorde com a proposta de uma prostituta
38
brasileira residente na Itália. Ela fala com receio do caso,
acredita ser constrangedor que os outros saibam que se
casou com uma mulher. No entanto, oficialmente, essa união
seria registrada como o casamento de um italiano com uma
brasileira. Apesar de ter cidadania e também ter residido na
Itália, Viviane não pensa em retornar.
Priscila conta as diferentes histórias das travestis que
conheceu vivendo na Itália nesses oito anos em que realiza o
deslocamento Brasil-Itália-Brasil e fala sobre o anonimato
das mortes das travestis:
nunca vi um cemitério com a placa de identificação de uma
travesti que tenha morrido lá... permanecem todas sem
nome, como indigente. Para dizer a verdade, conheço uma.
Uma teve velório e enterro porque a mulher dela fez, mas
enterra como homem.
As mortes das travestis, quando registradas, integrariam as
estatísticas como pessoas do sexo masculino, ou seja,
homens que faleceram no exterior. O mesmo ocorre nas
pesquisas sobre tráfico de pessoas, as travestis deixam o país
como pertencentes ao sexo masculino e nesta categoria
também são informadas durante os retornos. Em análises
qualitativas, essa particularidade pode ser assinalada, a
exemplo da pesquisa sobre pessoas que foram deportadas ou
não admitidas e que regressam ao Brasil via aeroporto de
Guarulhos, na qual os pesquisadores tiveram o cuidado de
separar homens, mulheres e transgêneros (Secretaria
Nacional de Justiça, 2007).
Os acordos de viagem
O discurso oficial, compartilhado pela opinião pública, é que
a ausência de denúncias por parte das travestis seria
justificada pelo medo dos traficantes que compõem as redes
e das situações de vigilância e violência a que estão
submetidas. Novamente enfatizo que podem existir travestis
brasileiras traficadas e exploradas por redes criminosas
organizadas e vinculadas ao tráfico internacional de pessoas.
Porém, nos espaços desta pesquisa, a saída das travestis para
a Itália e as condições para a permanência nos primeiros
tempos se estabelece por acionamento de redes informais de
amizade, gênero e parentesco. Em vários trabalhos sobre
migração é possível identificar o acionamento de redes
sociais que possibilita a saída e a recepção nos locais de
destino. Essas ações, que envolvem as informações sobre o
local, o compartilhamento ou a indicação de abrigo, até
mesmo o empréstimo ou a compra de passagens, são
reconhecidas e nomeadas por diferentes sujeitos envolvidos
na transação como "ajuda". As redes sociais acionadas pelas
travestis para alcançarem seus sonhos, embora mantenham
semelhanças com as acionadas por diferentes sujeitos "em
trânsito", poderiam ser precipitadamente identificadas como
rede de aliciamento e extorsão. A versão de Rita colabora
para pensarmos nessa situação:
Rita é considerada belíssima, desembarcou na Itália pela
primeira vez em 1996, foi uma das primeiras travestis de
Uberlândia a pisar o solo italiano. Para isso, anteriormente
permaneceu por dois anos em São Paulo até que
adquirisse conhecimento.
o primeiro sonho da travesti é o peito, a Itália vem depois...
comigo foi assim. Primeiro eu fui para São Paulo, aprendi a
me virar na noite. São Paulo era uma escola, ninguém ia
para a Europa sem passar por São Paulo antes. Eu cheguei
aos 17 anos, e lá fui ficando, juntei o dinheiro da prótese,
aprendi sobre os hormônios e conheci a minha mãe com o
tempo, ela confiou em mim e disse que eu estava pronta, que
ia me ajudar. Comprou as passagens e embarcou comigo
para a Europa. Quando eu cheguei fui morar na casa dela,
fiquei lá por quase um ano. Ela me acompanhou ate que eu
aprendesse o idioma, quando eu fui não sabia uma palavra
[risos]. Aprendesse as normas depois disse: segue sua vida.
Eu paguei direitinho, foram 2.500 dólares, era muito
dinheiro porque o dólar era valorizado, nem mesmo existia
o euro, na Itália era a lira. Mas, os programas eram em
dólar e eu paguei antes de 06 meses, ela dizia que não tinha
pressa, mas eu sei que temos que pagar nossas dívidas, não
é assim com os bancos?
A fotografia dessa mãe está no porta-retrato em cima da
mesa da sala. Em algumas fotos de seus álbuns de viagens
pela Grécia, França e Suíça encontro sua mãe entre as
turistas.
A
quantidade
de
álbuns
e
pequenossouvenires trazidos
como
recordação
são
testemunhos de uma vida que em nada remete à exploração
ou ao cárcere. Nas fotografias das viagens percebo que Rita
está sempre acompanhada de amigas travestis brasileiras
com quem vive ou compartilha espaços de sociabilidade na
Itália. Maridos de amigas, familiares dos maridos e
namorados vez ou outra também integram o grupo. Cartões
e postais estão distribuídos pela casa, em um deles foi
possível ler: "para minha mãe". As travestis reinventam
seus laços de parentesco, assim, Bruna e Rita são
reconhecidas como primas, embora não possuam laços de
consangüinidade.
Bruna viajou para Europa em 2007, as passagens e a estadia
foram presentes de aniversário enviados pela prima e suas
amigas. Utilizou uma rota comum para ingresso, sem
intermediações. Ela afirma não ter tido nenhuma dificuldade
para ingressar em Portugal e, posteriormente, desembarcar
em Bologna. Mesmo não tendo embarcado com objetivo de
trabalhar, poderia ser considerada suspeita por ser travesti,
mas denuncia o preconceito que sofreu no retorno ao Brasil,
tendo as malas revistadas e um tratamento que não
considerou digno no aeroporto de Guarulhos. A experiência
de Bruna é única entre as entrevistadas (indocumentadas),
até mesmo Rita que se recusa a comprar passagens de
companhias que farão conexões na França, justifica que,
mesmo após estar regularizada na Itália, foi desrespeitada
em um dos aeroportos daquele País.
A experiência de Rita soma-se à percepção de Priscila.
Questionada se, para colaborar comigo na pesquisa, ela
viajaria para a Itália através de um vôo direto,
Guarulhos/Fiumiccino ou Guarulhos/Malpensa. Ela sorri e
responde:
Jamais. A senhora entraria linda e mulher e eu? Voltaria
imediatamente: travesti. Não importa quanto de dinheiro
temos no bolso e nem mesmo o que vamos fazer lá.... não
entramos.
39
O uso das chamadas rotas alternativas coloca, de fato, as
travestis em situação de perigo, a despeito das histórias
relatadas sobre essa aventura, percebo que o ingresso na
Europa, cada vez mais, se atrela ao uso do que consideram
como rotas alternativas. A condição vivida pelas travestis na
"dupla ilegalidade" no mercado do sexo se constitui como
fonte do poder e controle que exercem sobre os/as
migrantes, conforme identificou Adriana Piscitelli (2008).
Nesses casos, as leis que impossibilitam a migração e o
trabalho sexual legais constituem os principais obstáculos
para os/as migrantes que se inserem na indústria do sexo no
exterior.
Laura não contraiu dívidas para ir à Itália. Reuniu recursos
suficientes a partir de seu trabalho na prostituição somados
aos rendimentos da pensão por morte de seu pai. No entanto,
não viajou sozinha, porque não conhecia as rotas para
ingresso no país de destino. "Não tinha conhecimento" e
utilizou o mesmo esquema que Mariana para aportar em
Milão, viajaram juntas através das rotas alternativas, o mais
significativo é que, após seu retorno, Laura adotou o mesmo
sobrenome que a dona da casa onde residiu.
É significativo o número de travestis que chegava da Itália e,
mesmo residindo em apartamentos individuais, visitava com
freqüência as donas das casas de pensão e mantinham com
estas uma relação de afetividade, muitas permaneceram por
semanas na casa antes de visitar a família. A permanência na
casa era referida como um tempo de descanso e também de
rever as amigas. Visitas médicas para exames de rotina ou
mesmo para intervenções de cirurgias plásticas também
foram observadas.
trans brasileiras somente na região do PARSEC V.Nesse
período, o projeto não registrou nenhuma queixa de travestis
ou transexuais que se considerasse traficada ou explorada.
No entanto, as integrantes da Organização justificam sua
atuação inicialmente calcada na vitimização das travestis:
elas não se percebem exploradas, elas têm medo de
denunciar, elas têm medo das cafetinas. É tanta violência,
que elas nem mesmo sabem que são vítimas.
As percepções da coordenadora e da mediadora cultural se
afinam, documentos nos quais prevalecem os argumentos
respaldados no campo das ciências ditas "psi" (OIT, 2006),
onde não seria suficiente a pessoa não se perceber explorada
para afastar o conceito de tráfico, porque quem está
autorizado a dizer se esta pessoa é explorada é um outro.
No entanto, Letícia relata um episódio diferente. Aos 26
anos seria facilmente reconhecida como a típica "européia e
top" entre as travestis. Ela rejeita os rótulos e, sentada na
beira da piscina, se dispõe a falar um pouco de sua
experiência na Europa. A Itália não se apresentava como um
sonho até que uma amiga travesti, numa das visitas à sua
cidade, fez o convite. Em 2000, ela desembarcava em Milão
com a perspectiva de fazer a vida, trabalhou nas ruas por um
ano até alugar seu próprio apartamento, a partir de então
trabalha somente em casa, por telefone e internet. Os
retornos ao Brasil são freqüentes, ora para visitar a família
que reside no sul do Brasil, visitar as amigas (inclusive em
Uberlândia), ora para visitar, em Salvador, a família do
então namorado brasileiro que conheceu em Milão e com
quem residiu por dois anos. Ela fala de seu acordo para a
primeira viagem:
O trabalho das travestis
Ao migrar, o sonho motivador da travesti é trabalhar na
Europa e, nessa perspectiva, este se alinharia ao de milhares
de brasileiras que deixaram o país para trabalhar (Assis,
2007). O fato de que o trabalho a ser exercido pelas travestis
é majoritariamente a prostituição coloca esse grupo em
destaque na discussão da exploração sexual e do tráfico de
pessoas. Meu argumento tentará demonstrar que o duplo
estigma da condição de prostituta e "indocumentada"
colocam as travestis em situação de vulnerabilidade na
Itália.
Em todas as entrevistas, é imperativa a negativa de que são
enganadas ou aliciadas para exercer a prostituição forçada
no exterior.
se você é travesti e batalha aqui no Brasil, você vai para a
Itália fazer o que? A badante? Ninguém vai dizer que foi
enganado... e se dizer é mentira [risos].
A fala de Bruna, relatada acima, encontra correspondência
com os dados obtidos através da coordenadora de uma das
Unidades que compõe o Projeto Roxanne. Em 2007, o
projeto contabilizou 1497 prostitutas nas vias e estradas de
Roma - na região sobre sua responsabilidade -, entre elas,
30% são trans (termo utilizado no projeto para englobar
travestis e transexuais) e desse percentual 97% são
brasileiras. Ou seja, de acordo com essa Organização, em
2007, trabalharam nas ruas de Roma aproximadamente 435
O combinado não é caro. Paguei sim, 8.000 Euros pelas
passagens e empréstimos para iniciar a vida. Em menos de
dois meses já havia pagado a minha dívida, então ela [a
amiga travesti] me procurou e disse que precisaria de mais
dinheiro. Não achei justo. Procurei a questura e então foi
minha decepção, o policial falou: "Você quer fazer uma
queixa contra uma cidadã italiana? Ela é documentada e
você? Você não é nada, é menos do que um cachorro,
porque aqui até os cachorros possuem documentos". Então
negociei com ela, paguei 50% do valor que ela me pediu e
nunca mais nos falamos.
Como identificou Adriana Piscitelli (2006) em relação às
mulheres, um certo percentual de juros cobrados pela
passagem é considerado lógico e justo, entre as travestis
com as quais trabalhei, o sentimento de ser explorada surge
apenas quando são acrescidas exigências ao contrato inicial.
Esse sentimento, no entanto, não estabelece correspondência
com o que está estabelecido como tráfico. As travestis que
entrevistei não se consideram vítimas de tráfico ou
exploração. Laura pagava 350 Euros por semana para residir
em um apartamento com outras três travestis. Perguntei se
considerava o valor abusivo:
você tem que pagar para comer em qualquer lugar, em
qualquer casa onde more, você pensa que vai comer de
graça? Tem que pagar para morar, pagar as contas, é o
certo. 350 Euros é uma noite de trabalho, ou até menos,
então não é muito. Compensa.
40
Embora as travestis brasileiras se constituíssem como os
sujeitos da investigação, a existência das travestis peruanas principalmente em lugares de poder - não poderia passar
despercebida conforme o depoimento de Priscila sobre a
prática do pedágio:
eu cheguei na rua, sabia em que região minha amiga
trabalhava, e então esperei... estava quase amanhecendo
quando ela chegou, fomos para a casa dela e três dias
depois eu fui morar numa casa com outras quatro travestis.
Não paguei para trabalhar na rua, mas tem alguns pontos
que as mais antigas, as peruvianas controlam e então...
quando quero trabalhar lá eu pago, pago porque compensa.
A fala da Priscila exemplifica que, nesse contexto, os
lugares não são fixos. Sendo a dona da pensão em
Uberlândia poderia ser "facilmente" encaixada nos
parâmetros do Código Penal brasileiro, mas na situação
acima relatada preencheria critérios para ser considerada
como vítima.
Rita coloca uma outra questão sobre o controle dos pontos
nas ruas:
migrante em situação de fragilidade em terras estrangeiras,
como identificado em outros trabalhos sobre a condição do
migrante:
vou te dar um exemplo, se o apartamento para um italiano é
alugado por 350, 450 Euros, para um estrangeiro sem
documentos eles alugam por 1.300, 1.500. Pedem três
aluguéis de calção, o dinheiro da taxa da agência e mais o
aluguel adiantado. E por qualquer coisa você pode perder o
apartamento. E quando perde... perde tudo. Da última vez, a
panela caiu no chão, a vizinha reclamou, a polícia veio e
fechou o apartamento.
Essa impotência diante dos cidadãos do lugar coloca as
travestis em outras situações nas quais se percebem
exploradas, ser travesti e estrangeira implicaria em ocupar
um lugar de menor condição para negociar, conforme relata
uma das entrevistadas:
Você chega a uma loja e quando vai pagar no caixa, o
preço para você é maior, mesmo você vendo o preço na
etiqueta.(...) Eu pago, vou reclamar para quem?
Na percepção das entrevistadas, o rufianismo não constitui
uma regra da prostituição para as travestis. Todas
exemplificaram o que consideravam exploração, relatando a
situação das mulheres romenas, africanas e albanesas:
Nem todas as travestis que estiveram por uma ou mais
temporadas na Itália desejam repetir a experiência. Mariana
viajou com recursos próprios, mas dividiu a casa com outras
travestis de Uberlândia por quatro meses e diz que não
voltaria. A justificativa para essa "desilusão" é a rua. As
difíceis condições de trabalho nas ruas e a sua dificuldade
em se adaptar aos clientes italianos. Embora ela não tenha
mencionado um possível fracasso na experiência, não
observei nenhuma aquisição de bens materiais após seu
retorno.
essas organizações e a polícia italiana deveriam cuidar das
mulheres romenas, africanas, albanesas estas sim, são
exploradas pelos cafetões. Eles ficam esperando elas
voltarem do programa, por vinte e trinta minutos, porque dá
para calcular o tempo que gasta, e quando elas chegam eles
levam todo o dinheiro. As mulheres ganham mais dinheiro,
se uma travesti recebe 400 Euros numa noite, as mulheres
recém 700 Euros, principalmente as albanesas e romenas
porque são lindas, brancas.
Talvez isso contribua para explicar a desilusão, pois como
aponta Larissa Pelúcio (2005), o sucesso desse
empreendimento é mensurado pelo grupo quando, no
retorno ao Brasil, elas adquirem carros, casas, terrenos. Mas
o maior destaque é dado ao corpo. Os cuidados corporais
expressos nos cabelos, próteses, lipoaspiração, depilação a
laser, e roupas, perfumes, jóias e acessórios: as grifes
italianas circulam no grupo como testemunhas deste
sucesso.
As travestis entrevistadas se reconhecem como exploradas
na Itália, em diferentes contextos, no entanto, percebo a
dificuldade das entrevistadas das ONGs de compreenderem
os sentidos atribuídos por elas a seus cotidianos. Letícia e
Clarissa trabalham nos seus próprios apartamentos, atendem
seus clientes que as encontram através dos sites na internet
ou telefone celular, sendo que a segurança e a comodidade
compensariam a despesa de manter o aluguel, entendido
como exorbitante: "Não tem que trabalhar na rua ...todos os
dias na rua... o frio na rua... os mosquitos nas regiões de
bosque, tem que correr da polícia...".
Durante a Parada do Orgulho Gay, percebi que são os laços
afetivos que mantém Mariana no Brasil; considerada
belíssima, seu suposto fracasso na Itália poderia ser
atribuído, em parte, ao namoro com uma travesti que
permaneceu aqui. Parece-me que, também para as travestis,
a decisão sobre migrar e permanecer na Itália pode ser uma
estratégia individual de ascensão social, mas é marcada por
outras escolhas e projetos, por exemplo, afetivos.
eu penso que é igual ao serviço de táxi, cada um tem seu
ponto. O táxi registrado no aeroporto de Uberlândia pode
estacionar e pegar passageiros no centro? Não. Então tudo
tem que ter regra, ter ordem, também a prostituição.
Alugar um apartamento é um desafio e uma negociação que
envolve acionar uma rede de amigos cidadãos ou
documentados para mediar a transação. A exploração das
travestis não se resumiria ao universo da prostituição e nem
mesmo estaria marcada apenas pelo fato de exercerem a
prostituição. Ser trabalhador indocumentado coloca qualquer
Quando questionei sobre como vivem as travestis em Roma,
a mediadora me contou acerca de uma visita que realizou a
um local pobre, onde várias travestis residiam numa mesma
casa em condições precárias. Também o fato delas
raramente serem vistas circulando durante o dia pela cidade
parece alimentar a idéia de que elas residem em situação de
cárcere. Desconfio que o desconhecimento das realidades
vividas pelas travestis no Brasil colabora para distanciá-las
das ONGs, reafirmando discursos com os quais as travestis
não se identificam. Como já foi dito anteriormente, na Itália,
41
muitas travestis vivem em situação análoga à do Brasil, sem
que seja compreendido como cárcere ou exploração sexual,
observa-se a mesma forma de moradia coletiva, comum no
Brasil, em que uma travesti é a proprietária ou locatária do
imóvel e as outras residem num sistema de pensionato,
pagando diárias referentes ao custo da moradia. Em algumas
casas, a alimentação está incluída no preço da diária, em
outras não. Não percebo uma regra específica para esse
contrato. No Brasil, o preço é estabelecido diariamente e na
Itália semanalmente. No entanto, isso não reduz a percepção
do fenômeno da exclusão social denunciado por Wiliam
Peres (2005) e Maitê Scheneider (apud Peres, 2005), no qual
as diferentes expressões da violência desencorajam as
travestis a estarem no espaço público durante o dia.
Na Europa, esse cerceamento pode estar mais associado ao
fato de estarem como migrantes indocumentadas, conforme
os relatos de Priscila e Letícia. Agosto é um período de
férias em Milão, um período considerado difícil por algumas
travestis. A dificuldade não está na escassez de clientes, ou
relacionada às intempéries do clima. A diminuição do
número de pessoas circulando durante o dia deixa maior
espaço de visibilidade para as travestis serem "vistas" pela
polícia.
Eles acham a gente de longe. Podemos estar andando na
rua, mas somos levadas para a questura, uma vez eles me
colocaram na viatura... circularam pela cidade por umas
três horas, depois me soltaram porque houve um problema
em que um indiano matou um italiano, eles me deixaram na
rua e saíram loucos.
Nesse contexto, também são pertinentes as considerações de
Adriana Piscitelli (2006) sobre a condição das prostitutas
brasileiras indocumentadas na Espanha e as práticas
repressivas deste governo em relação à deportação,
consideradas por elas como o maior perigo a ser enfrentado.
A folha de via obrigatória é um documento conhecido das
travestis, elas sabem como funcionam os mecanismos da
deportação e algumas também experimentaram a prisão na
Itália. Elas sabem que as informações que circulam nas
redes são preciosas. Semelhante às considerações de outros
estudos sobre trabalhadores indocumentados, quanto maior e
mais bem articuladas as redes, maiores são as chances no
local de destino (Assis, 2007:752).
A socialização do conhecimento integra a rede de ajuda e
permite, inclusive, a circulação do dinheiro entre as travestis
e seus familiares, pois algumas preferem depositar o
dinheiro na conta de uma travesti amiga. Adriana Piscitelli
(2007c) enfatiza a importância de se reconhecer o espaço
transnacional criado também a partir da circulação de
dinheiro do mercado do sexo também nos países de origem
das prostitutas. O dinheiro ganho pelas travestis no exterior
circula no Brasil e é recorrente o relato de que o primeiro
dinheiro ganho na Europa é destinado à compra de uma casa
para mãe no Brasil.
Não comprei uma casa para minha mãe, porque travesti
quando ganha dinheiro, pensa logo na mãe, mas ela já
tinha. Então, reformei tudo. Pus do bom e do melhor na
casa. Agora, mando o salarinho dela todo mês, é sagrado
(Rita).
A primeira coisa? Comprei um terreno. A casa da minha
mãe eu já tinha comprado com o dinheiro aqui do Brasil
mesmo (Priscila).
Eu enviei 127 mil reais para ela [a mãe] comprar uma casa.
Também estudei meus irmãos, paguei estudo dos dois. E
depois levei minha irmã para morar comigo, depois meu
irmão (Letícia).
Comprei uma casa para minha mãe, e ajudo em casa todo
mês. Dou o que precisa, cuido dos sobrinhos (Clarissa).
O dinheiro ganho na Europa empodera as travestis diante da
família. Mas não apenas diante dela, Priscila conta, entre
gargalhadas, notícias de uma travesti (que conheci antes de
ir para a Europa) que construiu uma casa numa cidade do
interior de Goiás ao lado da casa do prefeito da cidade.
"Uma casa que é um palácio [risos] tombou a casa do
prefeito".
Não estou vinculando aqui a migração das travestis à
situação de pobreza, mas sim às expectativas de uma vida
melhor, comungando das observações de Adriana Piscitelli
(2008) em relação às prostitutas brasileiras na Espanha. Os
critérios utilizados por elas para classificar o que seria uma
vida melhor podem variar, demonstrando a diversidade que
compõem esse universo. Utilizo um fragmento do caderno
de campo para exemplificar a variação:
quando estou muito triste, desanimada, abro meus armários
e fico lá da cama namorando meus vestidos e penso: vale a
pena. Antes eu não tinha somente um, um verde limão que
trazia na bolsa. Agora tenho Dolce & Gabbana, Versace.
São muitos [os vestidos], né? (Priscila).
Prostituição: produções discursivas
Durante a pesquisa de campo realizada em maio de 2008,
houve um acirramento dos discursos e práticas contra
migrantes indocumentados em Roma. O governo acenava
com discursos e a polícia colocava em prática. Assim como
no Brasil, na Itália, a prática da prostituição em si não se
configura como crime, embora a intervenção da polícia
italiana parece guardar semelhanças ao que ocorre em terras
brasileiras, no entanto, utiliza-se de estratégias diferentes
para penalizar os clientes da prostituição. Segundo Marlene
Rodrigues (2004), no Brasil, a criminalização das diversas
atividades que cercam o cotidiano da prostituição, bem
como a dificuldade encontrada pelo sistema judiciário para
diferenciá-la do lenocínio, e a recorrente compreensão da
prostituição como uma questão de (des)ordem pública,
favorecem o entendimento de que o exercício desta se inclui
entre as competências da polícia. Não sendo irrelevantes as
denúncias de que essas ações, não raramente, são
desenvolvidas em situações que ferem os direitos das
prostitutas e são marcadas por violência. (...)
Enquanto a Emenda tramita no Senado...
Este artigo pretendeu oferecer uma leitura, parcial, da
circulação das travestis no mercado do sexo na Itália e
42
demonstrar que a constituição de suas redes, marcadas pelo
gênero e laços de amizade, guarda semelhanças com as
redes acionadas por outros migrantes em busca de uma outra
vida em outro lugar. O exercício da prostituição também as
aproxima, não somente no plano teórico, das brasileiras
prostitutas. Mas evidencio que todas as semelhanças não
ofuscam as heterogeneidades. Escrevo num momento em
que o cerceamento das fronteiras na Itália se intensifica,
deixando as travestis em situação de dupla ilegalidade e
aumentando, exponencialmente, sua vulnerabilidade.
Encerrando, atualizo um convite realizado por Adriana
Piscitelli (2007a) ao afirmar que uma das características do
movimento feminista tem sido dar voz às mulheres,
particularmente às marginalizadas. O debate sobre a
prostituição como trabalho oferece uma excelente
oportunidade para continuar essa linha de atuação, prestando
séria atenção ao posicionamento das prostitutas,
individualmente e organizadas no plano regional e nacional,
para ampliar esse debate, considerar ainda que neste mesmo
cenário de prostituição encontram-se as travestis e as
transexuais.
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