Caderno de Textos – ERAJU 2013
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Caderno de Textos – ERAJU 2013
Encontro Regional das Assessorias Jurídicas Universitárias Centro-Oeste, Sul e Sudeste De 31 de Outubro a 3 de Novembro Assentamento Filhos de Sepé 1 2 Boas-Vindas ao IV ERAJU O Encontro Regional das Assessorias Jurídicas Universitárias, que reúne os núcleos de assessoria popular das regiões sul, sudeste e centro-oeste do Brasil, chega a sua IV edição. Será realizado em Porto Alegre, dos dias 31 de Outubro a 3 de Novembro, sediado pelo SAJU/UFRGS. Este Encontro nasceu de uma vontade dos núcleos integrantes da Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias (RENAJU) da região em organizá-lo, já que há muitos anos não ocorria. A RENAJU tem como costume realizar um encontro nacional – ERENAJU -, que ocorre no primeiro semestre, e outro regional, havendo, além do ERAJU, o ENNAJUP, que abrange o Norte e o Nordeste. Mas enquanto o ENNAJUP vem acontecendo regularmente nos últimos anos, o mesmo não ocorria com o ERAJU. O primeiro ERAJU ocorreu no ano de 2006, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, sediado pelo núcleo CAJU/UPF. Foi sucedido em 2007 por Americana, São Paulo, pelo SAJU/USP. Por fim, a terceira e última edição se deu em Florianópolis, Santa Catarina, em 2008, sediada pelo NEPE/UFSC. Na plenária final deste último encontro, encaminhou-se a IV edição do ERAJU no ano seguinte em Goiânia, contudo este não ocorreu, e de lá para cá, a cada ano, foram feitas tentativas de resgatá-lo. Em 2009 e 2010, ocorreram cursos de formação política (CFPs), realizados pelo SAJUP/UFPR e SAJU/USP, respectivamente, em que foram convidados outros núcleos da RENAJU, onde se pode discutir a situação da Regional. Em 2012, por deliberação da Rede, não ocorreriam encontros regionais, mas sim a tentativa de realizar em seu lugar um curso de formação política nacional – que ocorreu em Porto Alegre, na tentativa de suprir a desarticulação da nossa Regional. Finalmente, em 2013, após a reunião de muitos novos núcleos de assessoria popular da Regional no ERENAJU de Guararema, São Paulo, e a posterior organização destes em reuniões virtuais, foi possível retomar o ERAJU, com o maior número de inscritos de todas as edições! É também o primeiro encontro da Regional realizado em um espaço de luta dos movimentos sociais, no Assentamento Filhos de Sepé, cujo centro cultural é administrado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Que essa retomada seja o início de uma nova articulação da nossa região, em nome de uma rede nacional mais atuante e popular! Justo neste ano de 2013, em que ocorrem diversos tipos de manifestações em todo o país, a Renaju se prepara cada vez mais para a luta junto ao povo. SAJU/UFRGS 3 Grade de Programação Maiores informações no blog do encontro! www.eraju2013.wordpress.com 4 Índice Negritude e Opressão Racial ................................................................................. 7 Caderno em anexo Assessoria Jurídica Popular e Positivismo de Combate ............................... 9 Instituições Totais .................................................................................................. 17 Diálogos Locais: Remoções e o Direito à Cidade ........................................... 25 Feminismos: Megaeventos e o Tráfico de Pessoas ....................................... 31 5 6 Negritude e Opressão Racial O branco inventou que o negro Quando não suja na entrada Vai sujar na saída, ê Imagina só Vai sujar na saída, ê Imagina só Que mentira danada, ê Na verdade a mão escrava Passava a vida limpando O que o branco sujava, ê Imagina só O que o branco sujava, ê Imagina só O que o negro penava, ê Mesmo depois de abolida a escravidão Negra é a mão De quem faz a limpeza Lavando a roupa encardida, esfregando o chão Negra é a mão É a mão da pureza Negra é a vida consumida ao pé do fogão Negra é a mão Nos preparando a mesa Limpando as manchas do mundo com água e sabão Negra é a mão De imaculada nobreza Gilberto Gil – A mão da limpeza 7 8 Assessoria Jurídica Popular e Positivismo de Combate E já não sentimos a noite, e a morte nos evita, e diminuímos como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos ao país secreto onde dormem os meninos. Já não é o escritório e mil fichas, nem a garagem, a universidade, o alarme, é realmente a rua abolida, lojas repletas, e vamos contigo arrebentar vidraças, e vamos jogar o guarda no chão, e na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar – cuidado! – que atrai os pontapés: sentenças de uma justiça não oficial. Canto ao homem do povo Charlie Chaplin Carlos Drummond de Andrade 9 Pedagogia do Oprimido PRIMEIRAS PALAVRAS AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO E AOS QUE NELES SE DESCOBREM E, ASSIM DESCOBRINDO-SE, COM ELES SOFREM, MAS, SOBRETUDO, COM ELES LUTAM. As páginas que se seguem e que propomos como uma introdução à Pedagogia do Oprimido são o resultado de nossas observações nestes cinco anos de exílio. Observações que se vêm juntando às que fizemos no Brasil, nos vários setores em que tivemos oportunidade de exercer atividades educativas. Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que damos e em que analisamos o papel da conscientização, quer na aplicação mesma de uma educação realmente libertadora , é o ―medo da liberdade‖, a que faremos referência no primeiro capítulo deste ensaio. Não são raras as vezes em que participantes destes cursos numa atitude em que manifestam o seu ―medo da liberdade‖ se referem ao que chamam de ―perigo da consciência crítica ( . dizem.) é anárquica.‖ Ao que outros acrescentam: ‗Não poderá a consciência critica conduzir à desordem? Há, contudo, os que também dizem: ―Por que negar? Eu temia a liberdade. Já não a temo‖ Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora, durante longo tempo, operário, se estabeleceu uma dessas discussões em que se afirmava a ―periculoside crítica‖. No meio da discussão, disse este homem: Talvez seja eu entre os senhores, o único de origem operária. Não posso dizer que haja entendido todas as palavras que foram ditas aqui, mas uma coisa posso afirmar: cheguei a esse curso ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me critico. Esta descoberta, contudo, nem me faz fanático, nem me dá a sensação de desmoronamento‖. Discutia-se, na oportunidade, se a conscientização de uma situação existencial, concreta, de injustiça, não poderia conduzir os homens dela conscientizados a um ―fanatismo destrutivo‖ ou a uma ―sensação de desmoronamento total do mundo em que estavam esses homens A dúvida, assim-expressa, implícita uma afirmação nem sempre explicitada, no que teme a liberdade: ―Melhor será que a situação concreta de injustiça não se constitua num ‗percebido‘ claro para a consciência dos que a sofrem‖. Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo a fanatismos destrutivos‖. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação. ―Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes reais de uma situação de opressão.‖ O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel preferindo-a à liberdade arriscada. Raro, porém, é o que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua tendência é, antes, camuflá-lo, num jogo manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou pretende aparecer como o que defende a liberdade e não como o que a teme. Às suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o zelador da liberdade. Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo. Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo, ameaça, então, a liberdade. As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem, tampouco, de outro, resultam apenas de leituras, por mais importantes que elas nos tenham sido. Estão sempre ancoradas, como sugerimos no início 10 destas páginas, em situações concretas. Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa intenção é continuar com estas observações para retificar ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, irá provocar, em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias. Entre estes, haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns, por considerarem a nossa posição, diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando não um ―blablablá‖ reacionário. ―Blablablá‖ de quem se ‗perde‖ falando em vocação ontológica, em amor, em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia. Outros, por não quererem ou não- poderem aceitar as críticas e a denúncia que fazemos da situação opressora, situação em que os opressores se ―gratificam‖, através de sua falsa generosidade. Dai que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em sua totalidade, estes, estamos certqs, poderão chegar ao fim do texto. Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, ―irracionais‖, rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através deste livro. É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização é crítica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva. A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada. Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja doloroso observar que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do revolucionário. Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarizaçâo em que se deixam cair, ao responder à sectarizaçâo direitista. Não queremos, porém, com isto dizer — e o deixamos claro no ensaio anterior — que o radical se torne dócil objeto da dominação. Precisamente porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar passivo diante da violência do dominador. Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. Ë que, para ele, o aspecto subjetivo toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria idéia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com aquele. É exatamente esta unidade dialética que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a realidade para transformá.la. O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua ―irracionalidade‖ que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da realidade ou a percebe equivocadamente. Até quando se pensa dialético, a sua é uma ―dialética domesticada‖. Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita, que, no nosso ensaio anterior, chamamcs de ―sectário de nascença‖, pretende frear o processo, ―domesticar‖ o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também por que o homem de esquerda, ao sectarizarse, se equivoca totalmente na sua interpretação ―dialética‖ da realidade, da história, deixando-se cair em posições fundamentalmente fatalistas. Distinguem-se, na medida em que o primeiro pretende ―domesticar‖ o presente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente ―domesticado‖, enquanto o segundo transforma o futuro em algo preestabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis. Enquanto, para o primeiro, o hoje ligado ao passado é algo dado e imutável, para o segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos se fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão da história, desenvolvem um e outro formas de ação negadoras da liberdade. Ë que o fato de um conceber o presente ―bemcomportado‖ e o outro, o futuro como predeterminado, não significa que se tornem espectadores, que cruzem os braços, o primeiro, esperando a manutenção do presente, uma espécie de volta ao passado; o segundo, à espera de que o futuro já ―conhecido‖ se instale. Pelo contrário, fechando-se em um ―círculo de segurança‖, do qual não podem sair, estabelecem ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos homens lutando e 11 aprendendo. uns com os outros, a edificar este futuro, que ainda não está dado, como se fosse destino, como se devesse ser recebido pelos homens e não criado por eles. A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro. apropriando-se do tempo, de cujo saber se sentem igualmente proprietários. terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele. Enquanto o sectário de direita, fechando-se em ―sua‖ verdade, não faz mais do que o que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e também se encerra, é a negação de si mesmo. Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em torno de ―sua‖ verdade, sentem-se abalados na sua segurança, se alguém a discute. Daí que lhes seja necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade. ―Sofrem ambos da falta de dúvida.‖‘ O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em círculos de segurança‖, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para. conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. 5 Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar. Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário. a radicalização é o próprio do revolucionário. Daí que a pedagogia do oprimido, que implica uma tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio, e a própria leitura deste texto não possam ser realizadas por sectários. Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa primeira leitora, por sua compreensão e estímulos constantes a nosso trabalho, que também é seu. Agradecimento que estendemos a todos quantos leram os originais deste ensaio pelas críticas que nos fizeram, o que não nos retira ou diminui a responsabilidade pelas afirmações nele feitas. Paulo Freire Santiago, outono de 1968 Extratos do texto Assessoria jurídica popular universitária e educação popular em direitos humanos com movimentos sociais, de Luiz Otávio Ribas (...) A década atual é a da expansão do número de grupos de assessoria estudantil em todo Brasil. Nos encontros nacionais da Renaju percebe-se que a assessoria estudantil é cada vez mais realizada por estudantes em todas as regiões do Brasil, em faculdades de direito públicas ou particulares, por estudantes de todos os anos (níveis, fases ou semestres), de todos os sexos e etnias, das mais variadas classes sociais, ideologias, credos, por estudantes de outros cursos, como serviço social, jornalismo, psicologia, urbanismo, etc., com uma participação tímida de professores. Assim, podem-se delimitar os espaços de militância de cada um dos três modelos de prática de assessoria jurídica popular, amplamente considerada, vistos até aqui: – advocacia popular – prática jurídica insurgente desenvolvida por advogados na representação judicial de grupos e movimentos sociais. Não se limita à assistência jurídica tradicional, mas trabalha com a assessoria jurídica popular, voltada para um trabalho comunitário e lutas coletivas por direitos, vinculada a expressões como serviços jurídicos inovadores, alternativos, insurgentes, etc. Como exemplo pode-se citar o Iajup, Gajop, AATR, Acesso, Terra de Direitos, Renaap, e o Ilsa. A maioria dos grupos trabalha também com atividades de educação popular, como é o caso da Themis com ―Promotoras Legais Populares‖, e a AATR, Iajup e Gajop, com os ―Juristas Leigos‖; – assessoria universitária – prática jurídica insurgente desenvolvida por professores e estudantes universitários, ligados a universidades por meio de projetos de pesquisa, extensão ou de estágio. Não se limita à assistência jurídica tradicional, mas trabalha com a assessoria jurídica popular na perspectiva da troca de saberes popular e científico. Vinculada a expressões como assessoria jurídica popular, assessoria jurídica popular universitária, assessoria estudantil, etc. Como exemplos existem o NEP-UnB, Pólos de Cidadania-UFMG; – como espécie da assessoria universitária existe a assessoria estudantil, cuja especificidade é o protagonismo estudantil na proposição e administração das atividades, assim como a autonomia em relação às instituições de ensino superior. Como exemplo existem o Saju-RS (ligado à UFRGS), Najup-RS (autônomo), Renaju, entre outros grupos. Aproxima-se de um conceito de ―assessoria jurídica popular‖: uma prática jurídica insurgente desenvolvida por advogados, professores ou estudantes de direito, entre outros, voltada para a realização de ações de acesso à justiça e/ou educação popular em direitos humanos, organização comunitária e participação popular de grupos ou movimentos sociais. As ressalvas necessárias são de que, em primeiro lugar, cada vez mais outros grupos desenvolvem ações de acesso à justiça e educação popular em direitos 12 humanos que podem perfeitamente serem enquadradas como assessoria jurídica popular. Outra ressalva importante é o caráter multidisciplinar, pois cada vez mais estudantes e professores de outras áreas envolvem-se em projetos de assessoria universitária, assim como profissionais de outras áreas, como arquitetos, antropólogos, psicólogos, etc. Educação popular em direitos humanos com movimentos sociais Parte-se para a descrição da metodologia29 da assessoria estudantil que denomina-se ―assessoria jurídica popular universitária‖ (Ajup universitária), que privilegia as atividades educativas no trabalho popular. Para compreender as causas do trabalho educativo por estudantes de direito é preciso trazer o contexto histórico do Movimento de Educação Popular de Paulo Freire. A sua experiência pode ser somada a outros esforços que compõem a história da educação popular no Brasil. A experiência do ―Movimento de Educação de Base‖ conviveu com outras tantas ricas experiências que na década de 1960 tentaram alfabetizar o povo brasileiro. Essas têm em comum que educavam não só quem não sabia ler, mas também os analfabetos políticos, que não estão unicamente numa profissão, etnia ou classe social. Paulo Freire, na análise sobre o diálogo de agrônomos com camponeses, ensina que o diálogo problematizador tem como função indispensável ―diminuir a distância entre a expressão significativa do técnico e a percepção dos camponeses em torno do significado‖, para que tenha significação para ambos, e ―isto só se dá na comunicação e intercomunicação dos sujeitos pensantes a propósito do pensado, e nunca através da extensão do pensado de um sujeito até o outro‖.Portanto, ―a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados‖. A comunicação eficiente exige que os sujeitos interlocutores ―incidam sua 'admiração' sobre o mesmo objeto; que o expressem através de signos lingüísticos pertencentes ao universo comum a ambos, para que assim compreendam de maneira semelhante o objeto da comunicação‖, e ―nesta comunicação, que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade‖.Assim, ―a tarefa do educador, então, é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza, e não a de dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado‖.Assim, o diálogo emancipatório parte do pressuposto de que a educação é comunicação, é diálogo, é um encontro amoroso dos que buscam significações de significados. Comunicação significa uma via de mão-dupla, multilateralmente os sujeitos emitem e recebem significados. Diálogo é comunicação, que pressupõe horizontalidade e troca de saberes. A horizontalidade significa o reconhecimento da ignorância e conhecimentos, da sua relatividade, parcialidade. A troca de saberes representa que os sujeitos envolvidos participam ativamente, dizem suas palavras, dizem o mundo que está sendo. Paulo Freire acredita num humanismo científico amoroso, apoiado na ação comunicativa, alimentado por uma esperança crítica repousada na crença de que ―os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo. Crença em que, fazendo e refazendo as coisas e transformando o mundo, os homens podem superar a situação em que estão sendo um quaser não ser e passar a ser um estar sendo em busca do ser mais‖. Dessa forma, o método de Paulo Freire é um processo em que ―será a partir do conhecimento que se poderá organizar o conteúdo programático da educação que encerrará um conjunto de temas sobre os quais educador e educando, como sujeitos cognoscentes, exercerão a cognoscibilidade‖. Assim, ―pois bem, o conhecimento desta visão do mundo dos camponeses, que contém seus 'temas geradores' (que, captados, estudados, colocados num quadro científico a eles são devolvidos como temas problemáticos), implica numa pesquisa‖ e implica uma metodologia que deve ser dialógicoproblematizadora e conscientizadora.Os estudantes de direito reconheceram em sua teoria um manancial infindável de idéias para práticas emancipatórias. Faz-se a opção por tratar da temática ―educação, conscientização e transformação‖ em razão da potencialidade dialética que o tema provoca, assim como pelas inúmeras possibilidades de abordagem, podendo incluir toda a experiência extensionista/comunicacional proporcionada nos diálogos com os meios populares. Murilo Oliveira apresenta a proposta educativa do trabalho dos assessores estudantis: As atividades e os Projetos realizados no SAJU almejam a promoção do Acesso à Justiça, exercício da cidadania e efetivação dos Direitos Humanos. Estas finalidades demonstram que o SAJU não estabelece uma relação de mera assistência a comunidades carentes, mas que pretende a conscientização e organização destas comunidades ou movimentos para que, na qualidade de sujeitos ativos do processo histórico-social, com o instrumental do saber jurídico, lutem pelos seus direitos. Ademais, afirma que a socialização do conhecimento jurídico ―e sua desmistificação contribuem com os sujeitos sociais oprimidos para que não mais se sujeitem à dominação e dependência, como também possam identificar as violações aos seus direitos‖. Faz-se a ressalva que outros conhecimentos são necessários para tanto, principalmente da realidade brasileira e das relações políticas e econômicas. Além disso, ―o acesso à informação garante para as comunidades o reconhecimento dos direitos já positivados, indicando os mecanismos e instrumentos disponibilizados pelo ordenamento jurídico para efetivação dos seus direitos‖. Nessa questão é primordial destacar que o trabalho do assessor para a operação desses mecanismos e instrumentos em muitos casos faz-se necessária. Porém, isso ―significa, pois, debater com os próprios sujeitos do direito as razões da inefetividade e do desrespeito das leis, o acesso à justiça e os limites do sistema jurídico‖.Diz ainda sobre as atividades educativas: A educação popular tem uma opção política, a opção pela transformação social. Considerando o direito como ideológico, desmascara a repressão estatal e seu papel de mantenedor do status quo, construindo na prática destes trabalhos novas concepções de direitos, pois pensa esse direito crítico como paradigma de libertação social. A atuação de Paulo Freire na redemocratização do Brasil configurou-se um dos 13 capítulos mais ricos da história política, assim como a atuação do Movimento Educação de Base nas Centrais Eclesiais de Base, que formou grande parte das lideranças brasileiras na atualidade. Não se tem notícia da militância conjunto de estudantes de direito nessas atividades, mas sem dúvida significaram a principal influência para o início das atividades da assessoria estudantil. Além disso, o começo das atividades de educação popular na assessoria estudantil pode ter havido por influência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que desenvolve atividades conjuntas com alguns grupos ligados à Renaju desde sua fundação. Ademais, os MST está muito preocupado com a formação dos estudantes, pois serão os futuros ―operadores do direito‖; é o debate político criado em espaços mistos dos movimentos sociais e estudantes, como a Rede Popular de Estudantes de Direito (Reped). Ainda, o MST tem sua Escola Nacional Florestan Fernandes, e algumas turmas de direito agrário em faculdades de direito, como a da Universidade Federal de Goiás e no IPA, em Porto Alegre. Além do MST, outros movimentos sociais são parceiros dos projetos de assessoria estudantil em todo Brasil, como, por exemplo: os envolvidos na luta pela moradia e acesso à cidade (MLMN - Movimento Nacional de Luta pela Moradia); pela terra (MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens); na luta contra o capitalismo (Movimento Resistência Popular, anarquistas); pelo passe-livre (Movimento Estudantil); pela comunicação comunitária (rádios e associações comunitárias); grupos sociais de luta pela reforma urbana (Central de Movimentos Populares, Fórum Nacional de Reforma Urbana, conselhos populares, associação de moradores) e grupos sociais de luta pela participação democrática (conselhos do orçamento participativo, associações de moradores). Além dos movimentos sociais, ONGs e órgãos públicos são potenciais parceiros das iniciativas de assessoria. (...) Considerações finais A assessoria estudantil consolida-se como prática jurídica insurgente. Tradicionalmente, vem sendo desenvolvida a partir de atividades de extensão em instituições de ensino superior de todas as regiões do Brasil. Por outro lado, muito ainda precisa ser feito entre os estudantes, professores, advogados, associados de ONGs, e outros para repensar um trabalho em rede. Propõe-se uma rede horizontal de grupos e movimentos sociais com o fim de produzir direitos humanos para satisfação das necessidades e uma vida com dignidade do homem na realidade em que vive. Atualmente, as principais questões colocada para os assessores estudantis hoje e para o que trabalham incansavelmente são por que e como a prática da assessoria jurídica popular universitária auxilia esse processo. Como se procurou evidenciar, essa ―metodologia‖ auxilia na informação sobre direitos que podem facilitar o acesso à justiça. Por isso, é preciso ampliar as redes de diálogo com outros estudantes, dos mais diferentes cursos, com outros profissionais do direito, com grupos e movimentos sociais. Os principais desafios, a curto prazo, são a consolidação dessa atividade nas faculdades de direito, a expansão como prática de educação não formal e auxiliar amplamente na educação do brasileiro em relação aos seus direitos. Uma atividade educativa, aliada à atividade jurídica, por parte dos assessores, pode proporcionar um amplo diálogo sobre o direito, a moral, ética, política, etc. A assessoria de grupos e movimentos sociais com esse intento pode colaborar para a satisfação de objetivos concretos e factíveis. Outro obstáculo a ser ultrapassado é o de que os estudantes de direito acabam procurando a assessoria jurídica popular universitária por um sentimento profundo de indignação com o direito, porém dificilmente esse processo é revertido durante o trabalho de campo. Assim, as atividades educativas e lúdicas são priorizadas em detrimento do estudo e de aplicação de um direito crítico e transformador. Sem falar no sentimento de indiferença perante as importantes ferramentas jurídicas à disposição dos grupos e movimentos sociais, tachadas de ―dogmatismo‖, como algo atrasado, como se a dogmática jurídica não fosse uma importante arma de luta política. 14 DIREITO ALTERNATIVO E POSITIVISMO DE COMBATE ―(...)Seguindo lição de Amílton Bueno de Carvalho, grande idealizador do Direito Alternativo, o movimento se divide em três frentes: o Positivismo de Combate, o Uso Alternativo do Direito e o Direito Alternativo Estrito Senso. O Direito Alternativo Lato Senso apresentar-senos-ia, pois, em um primeiro momento, sob a veste do Positivismo de Combate, compreendido como uma luta pelo cumprimento das leis com conteúdos sociais não cumpridas de fato, buscando efetivar as conquistas democráticas já erigidas à condição de lei. Em um segundo momento, teríamos o Uso Alternativo do Direito, que se consubstancia em uma interpretação social ou teleológica das leis, em que a atuação jurisdicional ocorre dentro do sistema positivado, com a utilização das contradições, ambiguidadades e lacunas do direito, numa ótica democratizante. Por fim, mas não menos importante, teríamos o Direito Alternativo em sentido estrito, que vê o Direito sob a ótica do pluralismo jurídico. Privilegia o direito emergente da população, ainda não elevado à condição de lei oficial. A tipologia proposta pelo movimento, como se pôde observar, segue uma hierarquia, o que demonstra a seriedade dos alternativos, posto que alguns julgam o movimento fruto de ato impensado. Tendo em vista a validade inquestionável do ordenamento positivo, o Direito Alternativo busca valer-se, primeiramente, das normas estatais. Quando tal não satisfizer a aplicação da justiça, se recorrerá à hermenêutica, valendo-se das lacunas e antinomias do ordenamento para possibilitar o avanço das lutas populares. No entanto, quando nem o Positivismo de Combate, nem o Uso Alternativo do Direito forem suficientes para afastar a injustiça, deve então o magistrado recorrer ao Direito Alternativo em sentido estrito, negando a validade da lei ilegítima, e buscando a solução justa ao caso (...)‖ DONZELE, Patrícia; MACEDO, Renata Dantas. ―Direito Alternativo e Justiça Social‖. Revista da OAB Goiás Ano XIII nº 49. Disponível em: http://www.oabgo.org.br/Revistas/49/juridico1.htm “(...) O movimento [de direito alternativo] não possui uma ideologia , mas pontos teóricos comuns entre seus membros, destacando-se: 1) não aceitação do sistema capitalista como modelo econômico; 2) combate ao liberalismo burguês como sistema sociopolítico; 3) combate irrestrito à miséria da grande parte da população brasileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades individuais e materialização de igualdade de oportunidades e condição mínima e digna de vida a todos; 4) uma certa simpatia de seus membros em relação à teoria crítica do Direito. Há uma unanimidade de crítica ao positivismo jurídico (paradigma liberal-legal), entendido como uma postura jurídica técnica-formal-legalista, de apego irrestrito à lei e de aplicação de uma pseudo interpretação lógica dedutiva, somada a um discurso apregoador: a) da neutralidade ou avaloratividade; b) do formalismo jurídico ou anti-ideológica do Direito; c) da coerência e completude do ordenamento jurídico; d) da fonte única do Direito e da interpretação mecanicista das normas efetuada através de um método hermenêutico formal/lógico/técnico/dedutivo. Os juristas alternativos, em desacordo com a teoria e a ideologia juspositiva, denunciam: a) ser o Direito, político, parcial e valorativo; b) representar, o formalismo jurídico, uma forma de escamotear o conteúdo perverso de parte da legislação e de sua aplicação no seio da sociedade; c) não ser o Direito coerente e completo. Suas antinomias (contradições) e lacunas (vazios) são várias e explícitas; d) ser a lei fonte privilegiada do Direito, mas a ideologia do intérprete dá o seu sentido, ou o sentido por ele buscado. A exegese de um texto legal não é declarativa de seu conteúdo, mas, bem ao contrário, e axiológica e representa os interesses e fins perseguidos pelo exegeta. Para sua práxis, o movimento defende: 1) Positivismo de Combate hoje chamado de positivação combativa. Trata-se de uma luta pelo cumprimento de várias leis, todos com conteúdos sociais, em pleno vigor, mas não cumpridas de fato; 2) Uso alternativo do Direito. É uma atividade hermenêutica. Realiza-se uma exegese extensiva de todos os textos legais com cunho popular e uma interpretação restritiva das leis que privilegiam as classes mais favorecidas, privilegiando-se a Constituição Federal. Trata-se de uma interpretação social ou teleológica das leis, ou seja, dar um sentido à norma buscando atender (ou favorecer) as classes menos privilegiadas ou a maioria da sociedade civil. É o contrário do realizado pelos juristas tradicionais, quando restringem as normas populares e ampliam as beneficiadoras das classes que lhes interessam; 3) Direito Alternativo em sentido estrito. É o ponto mais polêmico e extrapola os limites deste artigo. Trata-se de uma visão do Direito sob a ótica do pluralismo jurídico. Privilegia-se, como novo paradigma para a Ciência Jurídica, o Direito existente nas ruas, emergente da população, ainda não elevado a condição de lei oficial. Admite-se como Direito as normas não estatais, inclusive como fonte legitimadora do novo paradigma jurídico. Neste ponto, há divergências teóricas no próprio movimento. Eu não concordo com esse entendimento, pois até o momento, a meu ver, não conseguiu sustentação teórica capaz de justificar uma teoria jurídica alternativa. Acaba caindo nos mesmo equívocos do juspositivismo criticado. De todas formas, o Direito Alternativo é uma movimento que se legitima por sua postura transformadora, de busca de mudança da tétrica situação socioeconômica do Brasil, cuja responsabilidade também é das instituições jurídicas. (...)‖ ANDRADE, Lédio Rosa. ―O que é Direito Alternativo‖. Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/lediorosa/2013/07/31/oque-e-direito-alternativo 15 16 Instituições Totais Se tu falas muitas palavras sutis Se gostas de senhas sussurros ardís A lei tem ouvidos pra te delatar Nas pedras do teu próprio lar Se trazes no bolso a contravenção Muambas, baganas e nem um tostão A lei te vigia, bandido infeliz Com seus olhos de raios X Se vives nas sombras freqüentas porões Se tramas assaltos ou revoluções A lei te procura amanhã de manhã Com seu faro de dobermam E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor A lei fecha o livro, te pregam na cruz depois chamam os urubus Se pensas que burlas as normas penais Insuflas agitas e gritas demais A lei logo vai te abraçar infrator com seus braços de estivador Hino de Duran Chico Buarque 17 As características das instituições totais Manicômios, prisões e coventos Erving Goffman Introdução 1 Os estabelecimentos sociais – instituições, no sentido diário do termo, - são locais, tais como salas, conjuntos de salas, edifícios ou fábricas em que acorre atividade de determinado tipo. Na sociologia, não temos urna forma bem adequada para sua classificação. Alguns estabelecimentos, como a Grand Central Station, esão abertos para quem quer que se comporte de maneira adequada; outros como a Union League Club 01 New York, ou os laborat6rios de Los Alamos, restringem um pouco mais a sua freqüência. Outros como lojas e correios, terão alguns membros fixos que apresentam um serviço e urna corrente contínua de pessoas que o recebem. Outros ainda, como moradias e fábricas, incluem um conjunto menos mutável de participantes. Algumas instituições fornecem o local para atividades, nas quais o indivíduo tem consciência de obter seu status social, não importando quão agradáveis ou descuidadas elas possam ser; outras instituições, ao contrário, proporcionam um local para agremiações consideradas como opcionais e de distração, que exigem como contribuição o tempo que sobrou de atividades mais sérias. (...) 2 Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem ·tendências de "fechamento". Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são muito mais "fechadas" do que outras, Seu "fechamento"ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão inc1uídas no esquema físico - por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais, e desejo explorar suas características gerais. As instituições totais de nossa sociedade podem ser, grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos. Em primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes. Em segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também urna ameaça à comunidade, embora de maneira não-intencional; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro tipo de instituição total é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionaís, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escalas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões (do ponto de vista dos que vivem nas moradias de empregados). Finalmente, há os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre exemplos de tais instituições, é possível citar abadías, mosteíros, conventos e outros claustros. Esta classificação de instituições totais não é clara ou exaustiva, nem tem uso analítico imediato, mas dá urna definição puramente denotativa da categoria como um ponto de partida concreto. Ao firmar desse modo a definição inicial de instituições totais, espero conseguir discutir as características gerais do tipo, sem me tornar tautológico. Antes de tentar extrair um perfil geral dessa lista de estabelecimentos, gastaria de mencionar um problema conceitual: nenhum dos elementos que irei descrever parece peculiar às instituições totais, e nenhum parece compartilhado por todas elas; o que distingue as instituições totais é o fato de cada urna delas apresentar, em grau intenso, muitos itens dessa família de atributos. Ao falar de "características comuns", usarei a frase de uma forma limitada, mas que me parece logicamente defensável. Ao mesmo tempo, isso permite usar o método de tipos ideais, através do estabelecimento de aspectos comuns, coro a esperança de posteriormente esclarecer diferenças significativas. 3 Urna disposição básica da sociedade moderna é que o individuo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito coro a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob urna única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e abrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois urna atividade leva, em tempo predeterminado,à seguinte, e toda a seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição. Individualmente, tais aspectos são encontrados em outras locais, além das instituições totais. Por exemplo, nossos grandes estabelecimentos comerciais, industriais e educacionais cada vez mais apresentam refeitórios e recursos de distração para seus participantes; no entanto, o uso de tais recursos ampliados é sob muitos aspectos voluntários, e há cuidados especiais para que a linha comum de autoridade não se estenda a eles. De forma semelhante, as donas de Casa ou as famílias de fazendeiros. podem ter 18 todas as suas principais esferas de vida dentro da mesma área delimitada, mas essas pessoas não são coletivamente arregirnentadas e não vão para as atividades diárias na companhia imediata de um grupo de pessoas semelhantes. O controle de multas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas seja ou não urna necessidade ou meio eficiente de organização social nas circunstâncias - é o fato básico das instituições totais. Disso decorrem algumas conseqüências importantes. Quando as pessoas se movimentam em conjuntos, podem ser supervisionadas por um pessoal, cuja atividade principal não é orientação ou inspeção periódica (tal como ocorre em muitas relações empregador-empregado), mas vigilância - fazer com que todos façam o que foi claramente indicado como exigido, sob condições em que a infração de urna pessoa tende a salientar-se diante da obediência visível e constantemente examinada dos outros. Aqui, não importa discutir o que é que vem em primeiro lugar - se os grandes grupos de pessoas controladas ou o pequeno grupo dirigente; o fato é que um é feito para o outro. Nas instituições totais, existe urna divisão básica entre um grande grupo controlado, que podemos denominar o grupo dos internados, e urna pequena equipe de supervisão. Gera1mente, os internados vivem na instituição e tem contato restrito com o mundo existente fora de suas paredes; a equipe dirigente muitas vezes trabalha num sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo externo. Cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis - a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança: os internados muitas vezes veern os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos; os internados tendern, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados. A mobilidade social entre os dois estratos e grosseiramente limitada; geralmente há urna grande distancia social e esta é freqüentemente prescrita. Até a conversa entre as fronteiras pode ser realizada em tom especial de voz. (...) Embora haja necessidade de certa comunicação entre os internados e a equipe de guarda, urna das funções do guarda é o controle da comunicação entre os internados e os níveis mais elevados da equipe dirigente. Assim como há restrição para conversa entre as fronteiras, há também restrições à transmissão de informações, sobretudo informações quanto aos planos dos dirigentes para os internados. Geralmente, estes não terão conhecimento das decisões quanto ao seu destino. Tanto no caso em que os fundamentos oficiais são militares, por exemplo, ocultar o destino da viagem dos soldados; ou médicos, ocultando o diagnóstico, plano de tratamento, essa exclusão dá à equipe dirigente uma base específica de distância e controle com relação aos internados. Presumívelmente, todas essas restrições de contato ajudam a conservar os estereótipos antagônicos. Desenvolvem, -se dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas com pouca interpenetração. É significativo observar que o edifício da instituição e seu nome passem a ser identificados tanto pela equipe dirigente como pelos internados como algo que pertence a equipe dirigente, de forma que quando qualquer dos grupos se refere às interpretações ou aos interesses "da instituição", implicitamente se referem (tal como o farei) às interpretações e aos interesses da equipe dirigente. A divisão da equipe em dirigente-intemado é uma conseqüência básica da direção burocrática de grande número de pessoas; uma segunda conseqüência refere-se ao trabalho. As condições usuais de vida de nossa sociedade, a autoridade do local de trabalho pára quando o trabalhador recebe um pagamento em dinheiro; o fato de gastá-lo em casa ou em local de diversões é um problema pessoal do trabalhador e constitui um mecanismo pelo qual a autoridade do local de trabalho é mantida dentro de limites bem restritos. Mas dizer que os internados de instituições totais têm todo o dia determinado, para eles equivale a dizer que todas as suas necessidades essenciais precisam ser planejadas. Portanto, qualquer que seja o incentivo dado ao trabalho, esse incentivo não terá a significação estrutural que tem no mundo externo. Haverá diferentes motivos para o trabalho e diferentes atitudes com relação a ele. Este é um ajustamento básico exigido dos internados e dos que precisam levá-los a trabalhar. Às vezes, é exigido tão pouco trabalho que os internados, freqüentemente pouco instruídos para atividades de lazer, sofrem extraordinário aborrecimento. O trabalho exigido pode ser realizado em ritmo muito lento e pode estar ligado a um sistema de pagamentos secundários, freqüentemente cerimoniais - por exemplo, a ração semanal de tabaco ou os presentes de Natal -, e que levam alguns doentes mentais a continuar em seu trabalho. Evidentemente, em outros casos, exige-se mais do que um dia integral de trabalho, induzido, não por prêmios, mas por ameaça de castigo físico. Em algumas instituições totais por exernplo, acampamentos de corte de árvores, navios mercantes - a prática de economia obrigatória adia a relasao usual coro o mundo, que pode ser obtida com dinheiro; todas as necessidades são organizadas pela instituição e o pagamento só é é dado depois de urna estação de trabalho, quando os operários saem do local. Em algumas instituições, existe urna espécie de escravidão, e o tempo integral do internado é colocado à disposição da equipe dirigente; neste caso, o sentido de eu e de posse do internado pode tornar-se alienado em sua capacidade de trabalho. (...) Haja muito ou pouco trabalho, o indivíduo que no mundo externo estava orientado para o trabalho tende a tornar-se desmoralizado pelo sistema de trabalho da instituição total. Um exemplo dessa desmoralização é a prática, em hospitais estaduais para doentes mentais, de "tapear" ou "usar o trabalho de outro" em troca de urna moeda de dez ou cinco centavos que pode ser gasta na cantina. As pessoas fazem isso - às vezes com certa 19 insolência -, embora no mundo externo considerem tais ações como abaixo de seu amor-próprio. (Os membros da equipe dirigente, que interpretam esse padrão através de sua orientação "civil" para a obtenção de dinheiro, tendem a considerá-Io como um sintoma de doenca mental e como urna outra pequena prova de que os internados realmente nao estáo bem). Portanto, existe incompatibilidade entre as instituições totais e a estrutura básica de pagamento pelo trabalho de nossa sociedade. As instituições totais são também incompatíveis com outro elemento decisivo de nossa sociedade - a família. A vida familiar é às vezes contrastada com a vida solitária, mas, na realidade, um contraste mais adequado poderia ser feito com a vida em grupo, pois aqueles que comem e dormem no trabalho, com um grupo de companheiros de serviço, dificilmente podem manter uma existência doméstica significativa. Inversamente, o fato de manter as famílias fora das instituições sociais muitas vezes permite que os membros das equipes dirigentes continuem integrados na comunidade externa e escapem da tendência dominadora da instituição total. Independentemente do fato de determinada instituição total agir como força boa ou má na sociedade civil, certamente terá forca, e esta depende em parte da supressão de um círculo completo de lares reais ou potenciais. Inversamente, a formação de lares dá urna garantia estrutural de que as instituições totais não deixarão de enfrentar resistências. A incompatibilidade entre essas duas formas de organização social deve esclarecer algo a respeito das funções sociais mais amplas de ambas. A instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí reside seu especial interesse sociológico. Há também outros motivos que suscitam nosso ínteresse por esses estabelecimentos, Em nossa sociedade, são as estufas para mudar pessoas; cada urna é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu. (...) 20 # Recortes de Notícia Seletividade penal cria padrão nas prisões brasileiras Retiradas do blog do g10 Em 23 de maio deste ano, a Suprema Corte Americana decidiu que, por causa das péssimas condições a que estão submetidos por causa da superlotação dos presídios, mais de 46.000 presos do Estado da Califórnia teriam que ser libertados. Para a Suprema Corte, essa é a única solução para o problema, que provoca doenças físicas e mentais nos apenados. Demora no atendimento médico, infecções, mortes e suicídios são algumas das consequências da superlotação que ultrapassa os 200%. Ao ver as fotos de um dos presídios californianos observase que o local está, sim, superlotado, mas em condições visivelmente melhores do que muitas das prisões brasileiras. A população carcerária do Brasil soma quase 500.000 presos, dos quais pelo menos um terço é provisório – o que contribui cada vez mais para o aumento deste número já bastante alto. O problema carcerário de nosso país, porém, não se limita à questão da superlotação. Quem estuda o assunto garante que tudo começa com a seleção dos presos. Segundo dados do InfoPen, Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, vinculado ao Departamento Penitenciário Internacional, em dezembro de 2010 461.444 dos quase 500.000 presos no Brasil eram homens. Desses mais de 460.000, 225.678 eram jovens entre 18 e 29 anos, 66.219 eram considerados negros e 170.916, pardos. ―Pela enorme quantidade de condutas classificadas como ‗crime‘, e por ‗crime‘ ser algo absolutamente normal em qualquer sociedade, não existe forma de criminalizar que não seja seletivamente, caso contrário teríamos mais pessoas presas que em liberdade. A questão se desloca, então, para os critérios de seleção‖, explica José Antônio Gerzson Linck, Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Para ele, o termo ―pardo‖ não é válido, não passando de uma invenção para construir o mito de integração que sustentou grande parte dos governos populistas: ―Para mim, ‗pardos‘ são negros‖. Dessa forma, as prisões brasileiras contariam com mais de 237.000 negros em suas unidades. E esse número não é por acaso. A lei áurea, que libertou os negros da escravidão em 1888, não trouxe renda e trabalho para essas pessoas e as deixou em um regime de semiescravidão. Isso explica o número muito maior de negros pobres do que brancos pobres. Assim, eles são os principais selecionados do sistema penal, já que tem a possibilidade de defesa reduzida pela dificuldade de pagar por uma bom advogado. ―Mas essa não é a única explicação. A seleção também utiliza critérios de cor. Como diria Mano Brown ‗preto e branco pobre se parecem mas não são iguais‘‖, completa Linck. Já o grande número de jovens nas cadeias brasileiras pode ter uma de suas explicações nos recordes de natalidade entre os anos 80 e 90, que aumentaram em muito a quantidade de adolescentes no país. Além disso, esses adolescentes, principalmente os homens, estão mais sujeitos a algo que a sociologia chama de ethos guerreiro. ―O ethos guerreiro se faz presente principalmente entre a população pobre, na qual outras formas de construção identitária não estão disponíveis, fazendo com que a formação da identidade através de signos de valentia e rebeldia seja uma forma de diferenciação social no grupo‖, explica Linck. O ethos guerreiro também é alimentado pela cultura do consumo, já que os jovens são aqueles que tem menores possibilidade de adquirir bens. A seletividade também pode explicar o pequeno número de mulheres presas, 34.807 em dezembro de 2010, quando comparadas à quantidade de homens encarcerados. ―As mulheres constroem a identidade através de signos valorativos vistos como menos violentos e não são consideradas uma ―ameaça‖ pelas autoridades policiais, então elas não apenas cometem menos crimes como também são menos selecionadas‖ explica José Linck. Porém, ele lembra que esse é um fenômeno em absoluta inversão: ―As mulheres começam a gerenciar pontos de venda de drogas dos pais e maridos e liderar quadrilhas da mesma forma que estão cada vez mais presentes no mercado de trabalho. A maior rede de varejo de drogas de Porto Alegre, por exemplo, está sendo comandada pela filha do antigo patrão, desde que ele foi preso‖. Arthur Amaral Reis, graduando em Direito na UFRGS e assistente jurídico do Grupo 10 do SAJU/UFRGS, observa o mesmo padrão de seleção nos internos da FASE, instituição responsável pela aplicação das medidas sócio-educativas aos menores condenados. ―Trabalhando na defesa de adolescentes acusados de praticar ato infracional (conhecidos pelos difusores do pânico moral como ‗menores infratores‘), vejo que a seleção segue o mesmo padrão: o poder estatal prefere julgar e encarcerar adolescentes negros do sexo masculino‖ afirma. Ele ainda chama a atenção para as péssimas condições a que são submetidos esses jovens: ―Apesar de os meninos não aparecerem no censo presidiário do CNJ, a situação e os procedimentos das unidades de internação não diferem em muito do sistema penal dos adultos. É que o Brasil ainda acredita que privar um guri de sua liberdade, de sua família e de seus amigos constitui ―medida socioeducativa‖. É só fazer uma visita a esses depósitos de jovens para constatar que de social e de educativa, a casa tem só o nome‖. Dessa forma, o sistema penal pune alguns por crimes cometidos por todos. Selecionando aqueles que têm menos possibilidade de se defender, a justiça brasileira acaba segregando ainda mais pessoas que já tem dificuldades para se incluir na sociedade. Cria-se, assim, um padrão: ser homem, jovem, negro e pobre são os ―pré-requisitos‖ para ser preso. 21 Sobre as profecias que se cumprem Mais um exemplo emblemático da violência que a gente produz? Semana passada, após realização de uma audiência no Fórum Central, interno da Fase foi resgatado por homens armados que interceptaram o veículo que o transportava. O jovem tem 19 anos, ingressou na fundação em 2006 por tráfico e homícido e já havia fugido da unidade esse ano. http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/noticia/2011/11/homensarmados-interceptam-veiculo-e-levam-interno-da-fase-nazona-sul-da-capital-3572827.html Após ler a notícia, não há como escapar dos lamentáveis comentários dos leitores que clamam para que o ―criminoso foragido‖ seja encontrado e encaminhado ao Presídio Central. Essa situação me remeteu, inicialmente, à maneira como alguns internos da Fase se referem à Instituição: ―creche do Central‖. Reproduzo, enfim, uma passagem bastante simbólica e condizente com o presente caso. No livro ―Cabeça de Porco‖, analisando o panorama dos jovens em conflito com a lei, Luiz Eduardo Soares afirma que: ―As instituições os condenam à morte simbólica e moral, na medida em que matam seu futuro, eliminando as chances de acolhimento, revalorização, mudança e recomeço. Foi dada a partida no círculo vicioso da violência e da intolerância. O desfecho é previsível; a profecia se cumprirá: reincidência. A carreira do crime é uma parceria entre a disposição de alguém para transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa Embora descontextualizado e escrito há mais de 130 anos, esse trecho do fabuloso romance de Fiódor Dostoiévski ―Os Irmãos Karamázov‖ nos diz muito sobre a realidade dos adolescentes selecionados pelo sistema penal juvenil no século XXI. O pragmatismo com que o Estado lida com crianças e adolescentes envolvidos em atos infracionais é problemático e inconsequente, visto que falta sensibilidade e mesmo vontade para lidar com situações de tão intensa complexidade. Apesar da máscara de ―instituição socioeducadora‖, os cárceres a que esses jovens são submetidos são como tapetes, para baixo dos quais escondemos a sujeira que estamos com preguiça de limpar, sujeira que deixamos acumular; a analogia é imperfeita e até cruel, mas cabe no que diz respeito às ações do Estado nesse contexto. O estado de sujeira é justamente a vulnerabilidade social que assola uma grande massa de adolescentes, aos quais os seus julgadores não ―deram de comer nem de beber‖, nem lhes ―visitaram no calabouço vazio‖, e, no momento oportuno, os querem punir severamente. O que passa na cabeça de um adolescente que nunca teve real assistência social de qualidade, que sempre foi invisível para quem tem o dever constitucional de lhe dar suporte, que foi marginalizado pela estrutura social de que faz parte, quando é encarcerado exatamente por apresentar os sintomas de toda essa negligência – a rebeldia contra um sistema jurídicopolítico-econômico que nunca lhe deu nada! – ? Arrisco a dizer que o trecho escrito pelo autor russo é uma hipótese de resposta muito possível a essa pergunta. Arrisco a dizer que é até lógico pensar assim, é racional. O tratamento duro dado aos adolescentes, a violência física e psicológica que eles sofrem, a ressocialização na base do castigo e da privação de liberdade a que eles são submetidos, tudo isso traz a reflexão: por que está tão pessoa desista‖. inserida no senso-comum a ideia de que todos esses métodos são realmente os pilares da salvação da humanidade? Tratar Estamos quites “[...] Senhores jurados, nós o condenaremos e ele dirá para com duras penas problemas que são tão claramente compostos de uma complexidade de exigências jamais si mesmo: „Essa gente não me deu de comer nem de beber, não me visitou no calabouço vazio, e eis que agora me funcionou, é claramente visível que não há como funcionar. Da mente de um adolescente que é duramente penalizado manda para os trabalhos forçados. Estamos quites, agora não lhe devo nada nem devo nada a ninguém para todo o por vender drogas aos mesmos que o condenarão (ou aos filhos destes) por tê-lo feito pode plausivelmente sair: ―Ela é sempre. Ela é má, e eu serei mau, ela é cruel, e eu serei cruel‟. Eis o que ele dirá, senhores jurados! [...]” má, e eu serei mau, ela é cruel, e eu serei cruel‖ – referindose àquela gente que o pune por servi-la. 22 Extratos do texto O lugar da prisão na nova administração da pobreza, de Wacquant A PRISÃO E O MERCADO DE TRABALHO DESQUALIFICADO Em primeiro lugar, o sistema penal contribui diretamente para a regulamentação dos segmentos mais baixos do mercado de trabalho — e o faz de um modo mais coercitivo e significativo do que a legislação trabalhista,os sistemas de seguridade social e outras políticas públicas, muitas das quais nem mesmo abrangem o trabalho não-regulamentado. Seus efeitos nesta linha de frente são tripartidos.Primeiro,a prevalência e a escalada impressionantes das sanções penais ajudam a disciplinar as parcelas reticentes da classe trabalhadora, aumentando o custo das estratégias de resistência ao trabalho assalariado dessocializado por intermédio de uma ―saída‖ para a economia informal. Afrontados por uma polícia agressiva,tribunais severos e a possibilidade de sentenças de prisão estupidamente longas para crimes envolvendo drogas ilícitas e reincidência,muitos evitam entrar ou afastam-se do comércio ilegal de rua e submetem-se aos princípios do trabalho não-regulamentado. Para alguns dos recém-saídos de uma instituição carcerária, a intrincada malha da supervisão pós-correcional aumenta a pressão para a opção pela vida ―do caminho certo‖ ancorada no trabalho, quando disponível6. Em um caso como no outro, o sistema de justiça penal atua em anuência com o workfare, para forçar a entrada da sua clientela nos segmentos periféricos do mercado de trabalho. Segundo, o aparato carcerário ajuda a ―fluidificar‖ o setor de empregos mal remunerados e reduz de maneira artificial a taxa de desemprego, subtraindo à força milhões de indivíduos desqualificados da força de trabalho. Estima-se que o confinamento carcerário tenha diminuído o índice de desempregados nos Estados Unidos em dois pontos percentuais durante a década de 1990. Com efeito, segundo Bruce Western e Katherine Beckett,quando se contabilizou a diferença entre o nível de encarceramento das duas áreas, os Estados Unidos divulgaram uma taxa de desemprego mais alta do que a média para a União Européia durante dezoito dos vinte anos entre 1974 e 1994, contrariando a visão propalada pelos entusiastas do neoliberalismo e críticos da ―euroesclerose‖. Ainda que seja verdade que nem todos os prisioneiros fariam parte da força de trabalho se estivessem em liberdade, a diferença de dois pontos percentuais não inclui o estímulo keynesiano proporcionado pela explosão dos gastos públicos e do emprego em instituições correcionais:o número de empregos nas cadeias e prisões municipais,estaduais e federais mais que dobrou nas últimas duas décadas,saltando de menos de 300 mil em 1982,para mais de 716 mil em 1999,quando a folha de pagamento mensal excedia US$ 2,1 bilhões. O crescimento penal também impulsionou o emprego no setor privado de produtos e serviços carcerários, um setor com altas taxas de empregos precários e rotatividade, e que cresce paralelamente à privatização da punição (já que a fonte da ―competitividade‖ das empresas correcionais são os salários incrivelmente baixos e os benefícios insuficientes concedidos ao seu quadro de empregados). Western e Beckett argumentam que a hipertrofia carcerária é um mecanismo tardio, bipartido e com efeitos contraditórios: a um só tempo doura o cenário trabalhista de curto prazo,amputando o suprimento de trabalho na base da hierarquia ocupacional, e agrava-o a longo prazo, inviabilizando em menor ou maior intensidade milhões de pessoas para o trabalho. Na visão desses autores, ―o encarceramento reduziu a taxa de desemprego dos Estados Unidos, mas [...] sustentar índices baixos de desemprego no futuro vai depender da expansão do sistema penal‖10.Porém, esse argumento ignora um terceiro impacto do ultra-encarceramento sobre o mercado de trabalho, que é o de facilitar o crescimento da economia informal e de empregos abaixo da linha de pobreza,e o faz gerando continuamente um grande volume de trabalhadores marginais que podem ser explorados sem quaisquer escrúpulos. Ex-detentos dificilmente podem exigir algo melhor que um emprego degradante e degradado em razão das trajetórias interrompidas, dos laços sociais esgarçados, do status jurídico ignominioso e do amplo leque de restrições legais e obrigações civis implicadas. O meio milhão de condenados que escoam das prisões americanas todos os anos fornece a força de trabalho vulnerável apropriada para suprir a demanda de empregos temporários, o setor do mercado de trabalho que mais cresceu nos Estados Unidas ao longo das duas últimas décadas (e que responde por um quinto de todos os novos empregos criados desde 1984).O encarceramento extremo, portanto, alimenta o emprego contingente, que é a linha de frente da flexibilização do trabalho assalariado nas camadas mais baixas da distribuição de empregos. Além disso, a proliferação de penitenciárias nos Estados Unidos (seu número triplicou em trinta anos, e já ultrapassa 4.800) contribui diretamente para o crescimento e a disseminação do tráfico ilícito (drogas, prostituição, produtos roubados), que são o motor do capitalismo de pilhagem das ruas. A PRISÃO E A IMPLOSÃO DO GUETO A representação maciçamente predominante e crescente de afroamericanos em qualquer nível do aparato penal tinge a segunda função assumida pelo sistema carcerário da nova administração da pobreza na América de uma cor desagradável:compensar e complementar a falência do gueto como mecanismo de confinamento de uma população considerada divergente, desonesta e perigosa, bem como supérflua no plano econômico (imigrantes mexicanos e asiáticos são trabalhadores mais dóceis) e no plano político (negros pobres raramente votam e,de qualquer forma, o centro gravitacional eleitoral mudou das regiões centrais urbanas decadentes para os prósperos subúrbios brancos). Desse ângulo, o encarceramento é apenas a manifestação paroxística da lógica da exclusão etnorracial da qual o gueto tem sido instrumento e produto desde a sua origem histórica.Durante o meio século de domínio da economia industrial fordista (19151965) — para a qual os negros contribuíram com uma quantidade indispensável de trabalho não-qualificado, desde a Primeira Guerra Mundial, que pôs em marcha a ―Grande Migração‖ dos estados segregacionistas do Sul para as metrópoles de trabalhadores do Norte,até a Revolução dos 23 Direitos Civis, que finalmente lhes deu acesso às urnas (cem anos depois da abolição da escravidão) —, o gueto desempenhou o papel de ―prisão social‖, garantindo, assim, o ostracismo social sistemático de afroamericanos e ao mesmo tempo permitindo a exploração da sua força de trabalho na cidade. Após a crise de debilitação do gueto, simbolizada pela grande onda de revoltas urbanas que varreram o país em meados da década de 1960,a prisão preencheu o espaço que se abriu, servindo como um ―gueto‖ substituto para armazenar as parcelas do (sub)proletariado negro que têm sido marginalizadas pela transição à economia de serviços duplos e às políticas estatais de retração do welfare e de retirada das cidades. Logo, ambas as instituições acoplaram-se e complementaram-se, pois cada uma opera à sua própria maneira para reforçar a separação (o significado etimológico de segregare) de uma categoria indesejada,percebida como uma ameaça dupla para a metrópole,indissociavelmente moral e física.E essa simbiose estrutural e funcional entre gueto e prisão encontra uma expressão cultural surpreendente nas letras musicais e no estilo de vida desdenhoso dos músicos de gangsta rap, exemplificado pelo destino trágico do cantor e compositor Tupac Shakur. Nascido na prisão, filho de um pai ausente (sua mãe, Afeni Sahkur, fazia parte dos Panteras Negras),o apóstolo da thug life,herói para uma multidão de jovens dos guetos (e legiões de adolescentes brancos dos subúrbios), morreu em 1996, em Las Vegas, crivado de balas em um carro, após cair numa emboscada armada por membros da gangue rival.Antes disso,foi acusado de atirar contra policiais e cumpriu pena de oito meses por agressão sexual. CODA Escapar do paradigma angelical da imposição do cumprimento da lei e exorcizar o mito demoníaco do ―complexo industrial prisional‖ são duas etapas necessárias e complementares para localizar de forma apropriada as novas funções que a prisão carrega no sistema reconfigurado de instrumentos para gerir o trabalho não-regulamentado, a hierarquia etnorracial e a marginalidade urbana nos Estados Unidos dos dias de hoje. Realizar essas duas etapas revela que a liberação de um aparato penal hipertrófico e hiperativo após meados da década de 1970 não é a lâmina cega de uma ―guerra contra o crime‖, nem o engendramento de um acordo secreto demoníaco entre oficiais públicos e corporações privadas com vistas a faturar com o encarceramento. Em vez disso, revela que o fenômeno participa da construção de um Estado reformado capaz de impor requerimentos econômicos e morais adstringentes do neoliberalismo após o descarte do pacto social fordistakeynesiano e a implosão do gueto negro. O aparecimento dessa nova administração da pobreza de mãos dadas com o workfare restritivo e com punições expansivas exige que tiremos a prisão dos domínios técnicos da criminologia e da política criminal, e a coloquemos diretamente no centro da sociologia política e das ações civis. 24 Diálogos Locais: remoções e o direito à cidade Quando o oficial de justiça chegou lá na favela E contra seu desejo entregou pra seu narciso um aviso pra uma ordem de despejo Assinada seu doutor, assim dizia a petição dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão É uma ordem superior Despejo na Favela Adoniran Barbosa 25 As obras de Mobilidade Urbana em Porto Alegre – Duplicação da Avenida Tronco O que é o Projeto da Avenida Tronco? Inicialmente prevista na Matriz de Responsabilidade da prefeitura municipal de Porto Alegre para a realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014 (as obras de Porto Alegre foram retiradas da matriz no ano de 2013 por iniciativa do executivo municipal), a obra de criação da Av. Tronco repercute na cidade como uma das intervenções com maior impacto na vida das pessoas e comunidades da região. A criação da via irá ligar a Avenida Teresópolis e a 3ª Perimetral com a Avenida Icaraí num trajeto total de 4,5 Km, afetando diretamente em torno de 1.580 famílias, que perderão a sua moradia para dar passagem à obra. Segundo dados da prefeitura municipal, a construção da nova avenida ligará a confluência da Icaraí e da Chuí àquela das ruas Professor Clemente Pinto e Mariano de Matos, das avenidas Carlos Barbosa e Niterói e o prolongamento previsto da avenida Gaston Mazeron, tendo três pistas em cada sentido, faixa preferencial para ônibus, incluindo rótulas e intersecções e contando com mobiliário urbano e iluminação totalmente novos. ―Trata-se de um eixo estruturador do sistema viário da cidade, facilitando o trânsito entre os bairros Cristal e Tristeza, e entre a Zona Sul em geral e as vias que a conectam com as zonas Norte, Nordeste e Leste da Cidade, constituindo, ainda, alternativa de ligação da Zona Sul ao centro da cidade.‖ fonte: site http://www.secopapoa.com.br A obra de criação da Av. Tronco terá um custo total de R$ 78.485.901,16 (setenta e oito milhões, quatrocentos e oitenta e cinco mil, novecentos e um reais e dezesseis centavos), sendo que desse total, R$ 6.805.263,16 (seis milhões, oitocentos e cinco mil, duzentos e sessenta e três reais e dezesseis centavos) são contrapartida do município. A diferença, no valor de R$ 71.680.638,00 (setenta e um milhões, seiscentos e oitenta mil, seiscentos e trinta e oito reais) foi captado pela prefeitura municipal de Porto Alegre perante a União, pela via de empréstimo dentro do PAC Mobilidade – Copa 2014, tendo como representante local da União a Caixa Econômica Federal. O traçado da obra afetará as seguintes comunidades já consolidadas há mais de 20 anos na região: Vila Cristal e Divisa, Vila Cruzeiro, Vila Tronco, Vila dos Comerciários, Vila Maria e moradias da rua Gastão Mazeron e da avenida Silva Paes, num total de aproximadamente 1.580 famílias. A construção já está em andamento físico desde maio de 2012, com maquinário e trabalhadores na região trabalhando nas áreas já liberadas. Para que a obra tenha andamento, portanto, e chegue ao seu final, a postura da prefeitura municipal de Porto Alegre é a de liberação de áreas que estão ocupadas por moradias e comércio para que o trabalho efetivamente avance. Nesse sentido, o Demhab – Departamento Municipal de Habitação – realizou o cadastramento de todas as famílias tocadas pela obra de construção da avenida. Esse já era direcionado para as opções a serem escolhidas pelas pessoas atingidas, as quais o município está trabalhando para a implementação do Plano de Reassentamento dos Atingidos. São opções: a concessão de bônus-moradia, na forma de valor em dinheiro pago ao proprietário de um imóvel a ser adquirido pelo atingido; a concessão de aluguel social e a aquisição de um imóvel do programa Minha Casa Minha Vida, cujos prédios o município se encarregará de construir. Em relação ao comércio existente na região, o Poder Público trabalha com a lógica de indenização por benfeitorias avaliadas por empresa contratada pelo município. Para implementação dessa política municipal de reassentamento, o Demhab instalou na região um escritório para atendimento das pessoas interessadas no encaminhamento de um ou outro modelo de política ofertado pelo município. A fim de viabilizar essa política, o município aprovou a Lei Municipal nº 11.229, de 6 de março de 2012, que institui o bônus-moradia, e o Decreto nº 17.772, de 2 de maio de 2012, que regulamenta a concessão do benefício. Aprovou ainda a Lei Complementar nº 636, de 13 de janeiro de 2010, que instituiu o programa Minha Casa Minha Vida em Porto Alegre, alterado pela Lei Complementar nº 663, de 28 de dezembro de 2010, e pela Lei Complementar nº 699/2012. 26 Foi editada, ainda, a Portaria nº 152/2011, que regulamenta a criação de Comitê Gestor das Obras da Copa junto à SECOPA – Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo de 2014 –, da prefeitura municipal de Porto Alegre, que conta com um comitê específico para a Av. Tronco. Esse comitê tem por finalidade acompanhar as ações do município em relação à obra e é composto por moradores da região. Figura 07 – Obra da Avenida Tronco – Bairro Cristal O Processo de Participação no Comitê Gestor Os impactos dessa obra no conjunto das comunidades afetadas e na vida de seus moradores é realmente muito forte. Muitos moradores literalmente foram expulsos da região por conta da política municipal para atender à liberação de trechos do traçado da avenida e possibilitar as obras de construção. A partir desse contexto, as comunidades afetadas pela obra de criação da Av. Tronco organizaram-se para reivindicação de direitos e tiveram algumas importantes conquistas. Uma delas está relacionada à participação no Comitê Gestor, tendo em vista que haviam lideranças comunitárias que não se sentiam representadas no comitê instituído pelo município. Pois foi quando da realização de Audiência Pública convocada pela Procuradoria Federal do Direito do Cidadão em Porto Alegre e realizada na Assembleia Legislativa do RS, em março de 2011, que o município foi pressionado a incorporar outras lideranças a esse processo de participação. Todavia, os depoimentos dos integrantes do comitê dão conta de que não há mais reuniões convocadas, e que quando existem reuniões, há sérios problemas na convocação e, ainda, que as reuniões não contam com atas firmadas pelos participantes. Esse espaço era importante para comunidades e moradores atingidos pelas obras da Av. Tronco por conta da necessidade de acesso à informação, a qual se demonstra precária e não para a totalidade de moradores que vivem diariamente com o receio dos impactos dos trabalhos. BOX: Entrevista com José Araújo, morador da Vila Cruzeiro há 40 anos, que fala sobre participação na SECOPA Como foi chamado para participar da SECOPA? Como são as reuniões? Qual a periodicidade? Quem participa dessas reuniões? Em 2011, ficamos sabendo que estavam ocorrendo reuniões para discutir sobre situação da região onde passaria a Avenida Tronco, e as pessoas que estavam indo não representavam todos aqueles moradores das duas regiões: Grande Cruzeiro e Divisa Cristal. Apenas três pessoas participavam, mas não nos representavam. Então, solicitamos uma 27 Audiência Pública para debater o que estava acontecendo, pois o governo não estava respondendo às pessoas, estava fazendo reuniões sem a participação da comunidade. Esteve presente nessa audiência MPE (Luciano Brasil), MPF (Alexandre Gavronski), SECOPA e Busatto, entre outras pessoas envolvidas com o direito à moradia na cidade. Os encaminhamentos foram no sentido de que a prefeitura iria fornecer todos os dados para a comunidade. Os projetos viários e habitacionais e os prazos para o reassentamentos das famílias, e também solicitamos que fosse elevado o valor do bônus-moradia para R$ 80 mil, o que não aconteceu. Nesta audiência, também selecionaram mais três pessoas para acompanhar e participar dessas reuniões da SECOPA, e uma delas foi eu. Na verdade, não fui chamado, foi uma imposição. As reuniões eram semanais, depois passaram a ser quinzenais. Quem costumava participar eram o secretário da SECOPA, o pessoal do Demhab e mais estas três pessoas da região que não representavam todo mundo, e, depois da audiência, entrou eu e mais dois. Não atendiam às nossas solicitações, não éramos ouvidos. Às vezes, ocorria de chegar lá e não ter reunião, às vezes, avisavam que o encontro não aconteceria e depois ficávamos sabendo que aconteceu, essas coisas. Eu participei de, no máximo, umas quatro reuniões. Não chamaram mais, e, depois, eu acabei desistindo. Lá na região, tem o Centro Administrativo Regional, onde funcionava também um Conselho Tutelar, e, neste local, foi incorporado um escritório para a SECOPA. Acabou que tiraram o centro e o conselho e ficou somente a SECOPA. No ano passado (2012), o Demhab fez um cadastramento socioeconômico das famílias da área, mas nós não tivemos acesso às informações. Nós queríamos os dados gerais, quantas pessoas queriam bônusmoradia, quantas queriam ser reassentadas na região, essas coisas, mas não nos deram acesso. Mais de 300 famílias já aceitaram bônus-moradia, eu conheço algumas delas que fizeram empréstimos para completar o valor do bônus e conseguiram comprar sua casa. Isso não poderia acontecer. Tudo isso que foi feito, todas as reuniões e audiências com o Ministério Público, promotores de Justiça, Comissão de Direitos Humanos... Eles não tinham como resolver alguma coisa? Eu estou desacreditado. A Política Municipal de Reassentamento Outro problema que se vê instalado na região de intervenção da obra da Tronco é a política municipal de reassentamento destinada aos moradores atingidos pela construção. O bônus-moradia foi fixado pelo município no valor de R$ 52.340,00 para cada família atendida. Esse valor não atende àquela família que pretende ficar na região onde já mora por dezenas de anos, tendo em vista que o valor é muito baixo para aquisição de imóvel com matrícula regular na região. Frise-se, ainda, que o município desencoraja o morador que deseja alcançar o valor do bônus a título de entrada para um financiamento de outro imóvel. Isso inviabiliza mais ainda a aquisição de imóvel na área, não bastasse o baixo valor do benefício. Esses moradores, portanto, são obrigados a se retirarem e irem para outra localidade mais periférica da cidade como o bairro Rubem Berta (Extremo Norte) ou o bairro Restinga (Extremo Sul), ou ainda a saírem da cidade, como é o caso de muitos moradores atingidos que retornaram para seu lugar de origem, no Interior do Estado, ou, então, foram residir no Litoral do Estado ou na cidade de Viamão, onde o valor dos imóveis é menor. Inclusive, é bom lembrar que, no escritório municipal localizado na vila Tronco, existe mural com ofertas de imóveis em todo o território estadual. O município ainda tem apostado no aluguel social para garantir a liberação de trecho para seguimento das obras. As famílias que aceitam o pagamento do aluguel social estão na espera de um imóvel a ser construído pelo executivo municipal pelo programa Minha Casa Minha Vida. Todavia, esses moradores que recebem o aluguel social vivem em completa insegurança, já que, até o presente momento, não se iniciou nenhuma obra do MCMV prometida pelo município. Isso sem falar no valor de R$ 500,00 a título de benefício mensal que restringe as possibilidades da localização de um imóvel de aluguel regular que contemple aluguel, condomínio, água e luz, entre outras despesas. Sobre isso, é importante referir que as obras do MCMV estavam inicialmente previstas para serem realizadas nas AEIS localizadas no Extremo Sul da cidade, mais especificamente no bairro Lami, conforme prevê a Lei Complementar nº 663/2010 (essa lei municipal está sendo impugnada na Justiça pelo Ministério Público Estadual por alterar o Plano Diretor de Porto Alegre em descumprimento do Estatuto da Cidade). Com base na mobilização dos moradores, foi possível garantir que o município desapropriasse imóveis na própria região da Vila Tronco para construção dos prédios do MCMV. Além disso, na Lei Municipal que instituiu o gravame das AEIS a esses imóveis – Lei Complementar nº 716/2013 – ficou estabelecido que essas construções serão direcionadas prioritariamente para o reassentamento dos moradores atingidos pelas obras de criação da Av. Tronco. 28 Visibilidade para o Caso da Criação da Av. Tronco Por via da organização comunitária ainda, foi realizada visita à região da Tronco pelo GT Moradia da Secretaria Especial de Direitos Humanos, onde foram denunciadas as violações aos direitos humanos dos moradores atingidos pelas obras, assim, como visita do GT do Gabinete da Secretaria da Presidência da República que também visitou a área e as autoridades locais. Visitas essas que ocorreram ao longo do ano de 2012. Todas essas iniciativas garantiram visibilidade ao caso da Tronco em nível nacional. Os moradores, juntamente com entidades e organizações de direitos humanos que dão apoio à luta por direitos na região, protocolaram ainda representação no Ministério Público Estadual, que foi recebida pelo ProcuradorGeral de Justiça do Estado do RS. O inquérito tramita hoje perante a Promotoria de Justiça e Direitos Humanos sob nº 01128.00166/2012. Com base nesse inquérito, foi possível a realização da primeira Audiência Pública específica para a Av. Tronco com direito de participação e manifestação dos atingidos. Essa Audiência Pública foi mediada pelo Ministério Público Estadual e aconteceu no dia 23 de novembro de 2012, onde, enfim, foi possível analisar o projeto de construção da avenida e conhecer o entendimento do município sobre a política implementada na região para os afetados, além de ser possível realizar outras denúncias pelos moradores da região. Esse inquérito é importante porque representa outro espaço de tentativa de mediação do grave conflito fundiário instalado na região da Tronco. Numa dessas audiências, as lideranças comunitárias presentes entregaram uma lista de perguntas e demandas ao executivo municipal, a qual foi respondida pelo Demhab. Lamentavelmente, na resposta apresentada, o Poder Público não realizou nenhuma concessão na política de reassentamento adotada. Confirmou que o aluguel social é efetivamente integrante da política do município e que seria, em tese, a solução para a liberação de trechos para o seguimento das obras, mesmo que essa não tenha nenhum requisito de urgência, estando já fora da Matriz de Responsabilidade para a Copa do Mundo de 2014. O pedido e a reivindicação de colocar um fim no aluguel social é legítimo e justo, porque esses moradores poderiam aguardar em suas casas com dignidade o término da construção das moradias do MCMV para somente aí saírem de suas casas. Noutro ponto da resposta, o Demhab afirma que não é possível o aumento do valor do bônus-moradia já que se trata de correção monetária do valor do benefício que era alcançado aos moradores afetados pelas obras do PISA implementado em região próxima e que, na época, estava fixado em R$ 40 mil para cada família atingida. Segundo, ainda, a resposta do Demhab, dos 321 cadastrados que optaram pelo bônus-moradia, 241 já o receberam. Segundo a lei e o decreto do bônus, os valores são repassados do município para o proprietário do imóvel que será adquirido, sem que o morador tenha contato com o recurso, bem como exigindo que o imóvel esteja em situação regular perante o cartório de registro de imóveis. A resposta do departamento refere, além disso, que as indenizações via bônus-moradia já chegam a um patamar de R$ 12.438.540,50 (doze milhões, quatrocentos e trinta e oito mil, quinhentos e quarenta reais e cinquenta centavos), mas embora o município esteja apostando no aluguel social, nenhum prédio foi construído para abrigar as famílias. Referência Bibliográfica: SANTOS, K. F. M. ; MULLER, C. ; SIQUEIRA, L. F. ; MARTINS, C. B. . Violações ao Direito à Cidade e à Moradia Decorrentes de Megaprojetos de Desenvolvimento no Rio Grande do Sul - o caso de Porto Alegre. 1. ed. Porto Alegre: Centro de Direitos Econômicos e Sociais - CDES, 2013. v. 1. 100p . 29 30 Feminismos: Megaeventos e o Tráfico de Pessoas Acho que se deve ser diferente E não como toda a gente Mas igualmente ser gente Como toda essa gente Deste país continente, e de todo o planeta Acho que todo cidadão Ou cidadã Deve ter possibilidades de felicidades Do tamanho de um super Maracanã E deve e pode ser azul, negro ou cinza Sorridente ou ranzinza Verde, amarelo e da cor vermelha Deve-se somente ser e não temer viver Com o que der e vier na nossa telha Vivamos em paz, porque tanto faz Cidadão-Cidadã Jorge Mautner 31 Mudando o Debate sobre o tráfico de mulheres Kamala Kampadoo O tráfico de mulheres é um problema internacional desde meados do século dezenove e é em geral ligado a idéias sobre mulheres no comércio do sexo. Muitas idéias e noções foram formuladas ao longo do tempo e hoje existem muitas em circulação. No que segue, apresento perspectivas e abordagens importantes no debate internacional sobre o tráfico de pessoas, e sublinho alguns dos principais pontos de crítica sobre o referencial contemporâneo hegemônico, pontos esses articulados através de projetos de pesquisaação e de intervenções contra o tráfico nas bases da sociedade. Argumento que, a despeito de mudanças substanciais no entendimento global sobre o tráfico, fortemente influenciadas por dois discursos feministas claramente diferentes (feminismo radical e feminismo transnacional), muito do que se busca hoje em nome de uma guerra ao tráfico tem conseqüências problemáticas para comunidades pobres ao redor do mundo, e tem implicações em termos de raça e gênero. As políticas norte-americanas são aqui trazidas ao debate para ilustrar algumas dessas tendências. Definições feministas do tráfico O "tráfico" está em geral ligado a tratados internacionais que tentavam lidar, entre fins do século dezenove e início do vinte, com o surgimento de mulheres como trabalhadoras migrantes no cenário internacional, começando com um tratado da Liga das Nações no início do século vinte (o precursor do Tratado das Nações Unidas de 1949 para a Supressão do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição de Outros). As idéias sobre o tráfico foram engendradas por ansiedades sobre a migração de mulheres sozinhas para o exterior, e sobre a captura e escravização de mulheres para prostituição em terras estrangeiras. A visão de uma sociedade moral subjacente ao cristianismo informava a definição, e a política do abolicionismo da escravidão negra e do movimento pelo sufrágio feminino tanto na Europa como nos Estados Unidos ajudaram a dar forma ao paradigma do "tráfico de pessoas". Definições feministas foram assim centrais para conceitualizações internacionais. (...) A segunda abordagem do tema, que é crítica da primeira e que em outro lugar chamei de perspectiva feminista "transnacional" ou do "terceiro mundo", toma o tráfico como discurso e como prática que emergem das interseções de relações de poder estatais, capitalistas, patriarcais e racializadas com a operação da atuação e desejos das mulheres de darem forma às próprias vidas e estratégias de sobrevivência e vida. O patriarcado é visto como uma das relações de dominação que condicionam as vidas das mulheres, e não a única, nem necessariamente a principal. Considera-se que racismo, imperialismo e desigualdades internacionais também configuram as vidas das mulheres. Além disso, enquanto o patriarcado significa a degradação de feminilidades em todo o globo onde o trabalho e a vida das mulheres são, de diversas maneiras, concebidas nos discursos hegemônicos como menos valiosos que os dos homens e a serviço dos interesses sexuais masculinos, e onde as mulheres são muitas vezes definidas e tratadas pelo estado como cidadãos de segunda classe ou como propriedades dos homens, as mulheres não são simplesmente definidas como vítimas do poder masculino terrível e paralisante ou como grupo homogêneo. Nesta perspectiva, ao contrário, elas são concebidas como sujeitos atuantes, auto-determinados e posicionados de maneira diferente, capazes não só de negociar e concordar, mas também de conscientemente opor-se e transformar relações de poder, estejam estas enraizadas nas instituições de escravidão, prostituição, casamento, lar ou mercado de trabalho. A atuação e atividade feminina, dessa perspectiva, podem então apresentar-se de diversas maneiras, às vezes reinscrevendo e às vezes contestando a dominação e controle masculinos sexualizados, dependendo de condições, histórias e contextos culturais específicos. Entende-se, ademais, que essa atuação pode ligar-se às vezes a estratégias de sobrevivência ou de geração de renda, estratégias que envolvem energias e partes do corpo sexualizadas, assim comparáveis a outros tipos de trabalho produtivo e, como tais, definidas como "trabalho sexual", embora tomando cuidado com a análise das atividades econômicas sexuais, devidamente contextualizada e historicizada. De qualquer maneira, levando em consideração a atuação e o trabalho sexual, o envolvimento em indústria sexual e em trabalho sexual no exterior aparecem como possibilidades a que as mulheres se dedicam voluntária ou conscientemente de acordo com parâmetros culturais, nacionais ou internacionais específicos. Assim, em lugar de definir a própria prostituição como uma violência inerente contra as mulheres, são as condições de vida e de trabalho em que as mulheres podem se encontrar no trabalho do sexo, e a violência e terror que cercam esse trabalho num setor informal ou subterrâneo que são tidos como violadores dos direitos das mulheres e, portanto, considerados como "tráfico". Embora esta perspectiva seja às vezes referida por feministas radicais como uma posição "pró-prostituição", as que a defendem a entendem como uma perspectiva de direitos humanos ou justiça social. A pesquisa empírica sobre migração, prostituição e atividades em setores informais ou subterrâneos sublinha a relevância da perspectiva feminista tradicional ou da justiça social sobre o tráfico. Por exemplo, raramente se verifica de maneira sistemática que as mulheres sejam abduzidas ou seqüestradas, acorrentadas às camas em bordéis e mantidas como escravas sexuais ou de outro tipo (embora essa situação seja a que chega às manchetes). Ao contrário, o que as pesquisas mostram é que a coerção, extorsão, violência física, estupro, fraude e detenção têm lugar dentro de processos migratórios ou de recrutamento de trabalho e/ou em locais de trabalho no destino. A servidão por dívida e o trabalho contratado, mas forçado, são muito mais comuns que a escravidão. Formas contemporâneas de trabalho forçado na indústria do sexo, que inclui aspectos de consentimento e atuação em defesa do trabalhador, são validadas por pesquisas que documentam a participação ativa das "vítimas" em migrações através de fronteiras – por exemplo, que mulheres e meninas tentam mudar para o 32 exterior consciente e voluntariamente para melhorar suas vidas e as de suas famílias. O que essas mulheres muitas vezes não sabem, ou às vezes aceitam tacitamente, são os perigos das rotas subterrâneas que têm que usar para atravessar a fronteira, os custos financeiros, o tipo de atividades, as condições de vida e de trabalho na chegada, o alto nível de dependência de um conjunto específico de recrutadores, agentes ou empregadores, os riscos de saúde, a duração do emprego, seu status criminoso no exterior, a violência e/ou períodos de detenção ou encarceramento que poderão ter que enfrentar. As pesquisas mostram que a maioria das "pessoas traficadas" expressam algum desejo de migrar e, por exemplo, em torno da metade das mulheres no trabalho sexual global parecem conscientes antes da migração de que estarão envolvidas em alguma forma de trabalho sexual.15 Também aparece que a criminalização da prostituição exacerba a violência que as mulheres migrantes experimentam nas mãos de recrutadores, contrabandistas, empregadores, polícia, funcionários da imigração ou carcereiros de centros de detenção, cadeias ou prisões, entre os quais o triplo estigma de criminosa, puta e imigrante promove intenso desrespeito e tratamento desumano. Foi também a perspectiva feminista transnacional que informou o projeto de pesquisa mundial encomendado pela Relatora Especial da ONU sobre a Violência contra as Mulheres, Rhadika Coomarswamy, em meados da década de 1990, que resultou na sugestão de que a ONU separasse os processos de recrutamento e transporte sob coação do comércio do sexo: isto é, distinguisse conceitualmente tráfico de prostituição.16 Além disso, a Relatora Especial da ONU definiu a prostituição como forma legítima de trabalho, e o comércio global do sexo foi definido como um lugar, mas não o único, em que ocorre o tráfico. O tráfico passou, então, a ser entendido em 1996, no nível das Nações Unidas não como escravização de mulheres, mas como comércio e exploração do trabalho em condições de coação e força. Simultaneamente a essa redefinição feminista do tráfico, multiplicaram-se estudos sobre os temas do contrabando humano transnacional, "novas formas de escravidão", migração sem documentos e deslocamentos forçados que afetavam tanto mulheres como homens.17 Uma diferença importante entre contrabando e tráfico, entretanto, se funda na intenção pela qual o movimento tem lugar. O entendimento atual do tráfico de pessoas salienta as condições de fim – a situação de trabalho forçado ou semelhante à escravidão – em função das quais ocorre o recrutamento e transporte de pessoas dentro do estado ou através das fronteiras nacionais. (...) Problemas com o referencial hegemônico Uma preocupação comum entre as feministas transnacionais e os defensores da perspectiva dos direitos humanos e da justiça social é que o referencial anti-tráfico adotado pela ONU apóia os interesses econômicos neo-liberais das corporações, das principais agências multilaterais, dos especialistas em políticas e dos governos nacionais, e não os dos trabalhadores e populações pobres do mundo. Esse referencial espelha outras políticas globais que abraçam o assim chamado "livre comércio" e o acesso irrestrito das grandes corporações transnacionais a um ilimitado fornecimento de recursos naturais e matérias primas, e que garantem e defendem os direitos de elites socialmente poderosas – as classes proprietárias, gerenciais, cosmopolitas e profissionais – ao mesmo tempo em que limitam o acesso, movimento e direitos dos despossuídos, e dos economicamente fracos. Assim, ainda que o protocolo da ONU requeira que os "estados que o ratifiquem tomem medidas para proteger e assistir as pessoas traficadas" com pleno respeito a seus direitos humanos, chama a atenção de muitos dos envolvidos com pessoas traficadas que as violações de direitos humanos não diminuíram com as políticas e legislação antitráfico. Um dos efeitos mais impressionantes é que, embora as pessoas objeto de tráfico sejam designadas como "vítimas" em várias políticas e leis, a menos que se tornem informantes da polícia e entreguem seus "traficantes", que bem podem ser seus amigos, amantes, irmãos, irmãs, ou seus empregadores, elas são tratadas como imigrantes ilegais, criminosas ou ameaças à segurança nacional. Números crescentes de imigrantes pobres são então adicionados ao número já imenso de pessoas processadas pelos sistemas de justiça criminal, com números também crescentes, sendo detidas ou encarceradas por crimes não violentos como imigração ilegal, uso e tráfico de drogas, e trabalho sexual. Descobriu-se, através da pesquisa internacional anti-escravidão em 2002, que os vistos criados para as pessoas objeto de tráfico podem parecer simples "adiamentos de deportação", uma vez que apenas permitem que o indivíduo permaneça no país de destino pelo período necessário para o processo criminal contra os traficantes. Além disso, pesquisas realizadas pelas principais organizações não governamentais contra o tráfico, como a Dutch Foundation Against Trafficking in Women (STV) [Fundação Holandesa contra o Tráfico de Mulheres], a Global Alliance Against Traffic in Women [Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres], com base na Tailândia, assim como a Anti-Slavery International [Internacional Contra a Escravidão] no Reino Unido, mostram que, além da prisão, detenção e deportação, como modos imediatos de disposição das mulheres, homens, meninas e meninos objetos de tráfico nos países de destino, essas pessoas, quando "resgatadas", são em geral devolvidas aos países de origem como migrantes sem documentos, e têm de enfrentar a vergonha e a humilhação que acompanha tal categorização e o status de deportadas. Há também o medo de represálias dos traficantes ou o medo de que a família ou a comunidade doméstica estigmatize uma mulher por seu envolvimento em atividades sexuais tidas como criminosas. (...) Intervenções estatais que se baseiam em medidas repressivas, como controle mais rigoroso de fronteiras, prisão, detenção e deportação e um paradigma de "resgate de vítimas" sugerem que muitas vezes as "pessoas objeto de tráfico" são resgatadas contra a vontade, podem deixar de cooperar com as autoridades, ou simplesmente ser novamente "traficadas" se devolvidas a seus países de origem. Desigualdades estruturais globais na distribuição de riquezas e no acesso à educação, ao emprego, a seguro-saúde e à previdência social; conflitos e ocupações militares; desastres ambientais e falta de propriedade de terras; e violência fundada em conflitos étnicos, de gênero ou de religião, todos subjacentes ao movimento e busca de segurança social e econômica em primeiro lugar, não são erradicados na abordagem ao tráfico a partir da perspectiva da governança global. As condições no país de origem continuam em sua maior parte iguais e migrantes devolvidos ou deportados podem tentar partir 33 novamente. Como as pesquisas cada vez mais indicam, esforços para reprimir a migração, para manter as pessoas no país, ou para "empurrá-las de volta", muitas vezes fazem mais mal que bem, e vão contra os interesses dos migrantes. Como um comentarista disse de forma sucinta: "As pessoas não querem ser resgatadas, elas querem se sentir seguras. Elas não querem voltar, elas querem continuar...". Ignorar as razões para migrar e as necessidades e desejos das pessoas de deixarem seus países para melhorar de vida, mesmo que isso envolva ser contrabandeado e trabalhar em condições deploráveis no comércio sexual, é fugir do problema da atuação e autodeterminação dos migrantes e leva, portanto, a métodos e estratégias não adequados às necessidades deles. Em segundo lugar, esta perspectiva da ONU tende a mudar algumas migrações e padrões de trabalho ou empurra as atividades mais para o subterrâneo. Cria, por exemplo, o que Phil Marshall e Susu Thatun chamam de efeito "esconde e reaparece", onde as intervenções servem para suprimir o tráfico numa região geográfica ou comunidade e fazem com que ele volte em outro lugar. Algumas comunidades ou grupos podem, então, ser "salvos" por esforços antitráfico ao mesmo tempo em que novas comunidades ou gerações mais jovens passam a suprir a demanda de serviços e trabalho baratos. Ademais, políticas desenvolvidas dentro de um referencial que enfatiza o reforço dos controles sobre a imigração tende a dar poder a sentimentos anti-imigrantes e atos de xenofobia. Já se observou nos EUA que grupos de vigilantes armados de direita complementam agora as forças federais e estaduais nos esforços para deter e dissuadir os que tentam atravessar as fronteiras sem documentos. Terceiro, além da violência que o fervor anti-imigração promove, a abordagem internacional dominante da questão do tráfico identifica principalmente gangues internacionais originadas no estrangeiro e países "fontes" como os principais culpados, criminosos e beneficiários no negócio do tráfico. Dado que a maioria dos países "de destino" são supostamente os países ocidentais pós-industriais, e as nações mais pobres são chamadas de países "fonte", essa distinção cria uma divisão internacional em torno de quem é definido como vilão ou "do mal". A lente estreita dessa abordagem antitráfico internacional e a representação enviesada da migração é particularmente notável para os Estados Unidos. Aqui, embora tenha sido estabelecido que a maior parte do tráfico ocorre não para as indústrias subterrâneas do sexo controladas por criminosos, mas para empresas atrasadas, lavouras e serviço doméstico que são ligados a setores formais da economia, a atenção do estado e do público é atraída para grupos de intermediários que são considerados as ameaças "reais" – agentes de recrutamento e os que assistem os outros em seus movimentos sem documentos ou dinheiro – que são em geral identificados como pessoas gananciosas e imorais do sul global e de antigos estados socialistas. Assim, o primeiro relatório do governo norte-americano a documentar o tráfico para o país identifica famílias mexicanas, africanas e do oriente próximo, homens tailandeses e latino-americanos, grupos do crime organizado e sindicatos da Rússia, Itália e do Leste Europeu, círculos de contrabandistas asiáticos, mexicanos e nigerianos, "jogadores da costa ocidental" do Canadá, tríades chinesas, gangues Hmong, etc., como os agentes principais que lucram e se beneficiam com o tráfico. Relatórios da mídia e de pesquisa sobre o tráfico em todo o mundo muitas vezes reproduzem esse foco. Uma guerra ao tráfico de seres humanos através de um crescente policiamento e controle de imigração é apenas uma resposta que a comunidade governamental internacional dá a esse problema e, desde o 11 de setembro de 2001, ela tem sido ligada à guerra ao terrorismo liderada pelos EUA. A atribuição do tráfico ao "outro" estrangeiro, que é configurado como uma ameaça às sociedades e à civilização ocidentais, serve assim como uma tática para assustar e encurralar sentimentos racistas e nacionalistas e para ofuscar a interação entre o estado e o capital corporativo. Em quarto lugar, muitas das afirmações feitas sobre o tráfico são infundadas e não documentadas, e se baseiam em relatórios sensacionalistas, em hipérboles e em confusões conceituais, problema que se estende para discursos internacionais mais amplos sobre o crime transnacional. Como observa Margaret Beare, o que infesta muitos estudos e afirmações sobre o crime transnacional organizado é "a base não empírica de muitas das respostas da mídia, da polícia e também das respostas políticas", a formatação das notícias como entretenimento, a imprecisão que se insinua nos conceitos por uso excessivo, os exageros e estimativas baseadas em conjeturas, e avaliações não confiáveis. Tentativas de provar casos de tráfico também geram distorções e imprecisões. Em alguns casos, como em países do sul da Ásia, há uma aguda sub-utilização ou falta de recurso a algumas fontes e utilização excessiva de outras. Assim, informação e conhecimento existentes na comunidade local, por exemplo entre educadores voluntários e trabalhadoras do sexo com HIV/AIDS, são raramente utilizados para desenvolver o conhecimento sobre o tráfico, ou para planejar intervenções e políticas. Ao contrário, matérias de jornal criadas por jornalistas visitantes ou estudos de caso reunidos a partir de um punhado de meninas "resgatadas" por zelosos assistentes sociais são em geral tomados como "os fatos". Não existem números precisos sobre o tráfico, e só casos extremos chegam à forma de reportagens interessantes. De qualquer maneira, políticas, legislação e intervenções de longo alcance são construídas na base da "evidência", e "há uma tendência a aceitar estatísticas e dados não verificados, sem questionamento adicional". Existe atualmente uma indústria antitráfico que inclui números crescentes de assistentes sociais, políticos, pesquisadores, "czares" antitráfico e funcionários da imigração, e também leis e políticas novas e fundos e recursos especialmente dedicados para trabalho contra o tráfico, assim como um conjunto de novas medidas e métodos para prender os traficantes e prestar assistência às "vítimas", sem que se possa demonstrar que tenham tido muito impacto nas vidas das mulheres pobres. (...) 34 # Recorte de Notícia De olho no mundial, travestis vão de Fortaleza para São Paulo colocar próteses de silicone através de uma rede de tráfico de pessoas que cresce com a chegada do megaevento Muito antes de Fortaleza ser confirmada como cidade sede da Copa do Mundo de 2014, as travestis Carla e Luana* já trabalhavam nas imediações da imponente Arena Castelão, área histórica de prostituição na cidade. Nas avenidas que rodeiam o estádio e em algumas ruas que adentram os bairros pobres da região, elas, as colegas e prostitutas dividem as calçadas e os clientes em busca de programas que custam de 5 a 50 reais. Durante a tarde de uma segunda-feira quente e seca, típica de abril nordestino, quando acompanhei o trabalho do pessoal da Associação Barraca da Amizade (ONG que há 26 anos atende e acolhe crianças e adolescentes em situação de rua e desde 2009, a pedido das meninas e meninos, também desenvolve um trabalho de combate a exploração sexual) o movimento não era tão grande – duas prostitutas e três travestis se esgueiravam pelas poucas sombras oferecidas pelos muros altos de uma grande empresa, perto de uma rotatória, fugindo do calor. Carla e Luana descansavam em casa de uma noitada de diversão. Sem cafetinas a quem prestar contas, as duas podem fazer seu horário de trabalho. As que estavam na pista, eram abordadas pelos educadores da Barraca, que distribuem preservativos e gel lubrificante como forma de redução de danos e de aproximação. ―Hoje, além das mulheres e adolescentes, trabalhamos com 30 travestis aqui da área, levando insumos, marcando exames nos postos de saúde, oferecendo cursos profissionalizantes e atendendo a algumas demandas delas. Há pouco tempo nós conseguimos, após articulação com orgãos oficiais, a transferência de um médico que fazia piadas homofóbicas com as travestis de um posto de saúde da região. Esses resultados ajudam a fortalecer essa confiança no nosso trabalho‖ explica Paulinha, como a assistente é carinhosamente conhecida entre as travestis. Por confiarem em Paulinha, Carla e Luana abriram as portas de sua casa próxima à Arena e me receberam para falar sobre suas expectativas e medos com a chegada da Copa e também sobre um fenômeno que têm crescido com a aproximação do megaevento na cidade: A viagem do silicone ―Eu vou agora em julho para São Paulo botar silicone no peito, 450, 500 ml em cada. Também vou bombar de novo [por mais silicone industrial no corpo]: bunda, quadril, perna e joelho. Aí na Copa eu vou cobrar mais‖ diz Carla, 25 anos, que há 10 se prostitui no entorno do Castelão, apontando para as partes do corpo que pretende aumentar. ―O silicone industrial dói demais, você fica pra morrer! A mulher injeta e vai fazendo uma massagem para ele espalhar. Mas é a dor da beleza, né?‖ Ela afirma que foi para a ―pista‖ com 15 anos porque quis, assim como a amiga Luana, de 22 anos, que diz ter começado a fazer programas aos 17 também por opção. ―Eu fui uma das primeiras a chegar aqui no Castelão. Hoje a coisa está feia, tem muita postituta fumando pedra e isso queima nosso filme. Ao mesmo tempo que a gente espera que a Copa aumente o movimento, tem medo que a polícia queira limpar a área. Você acha que o prefeito vai querer mostrar isso para os gringos?‖ pergunta. ―Mas a gente é atrevida, se me tirarem daqui vou para ali!‖ Sua deficiência visual parece não atrapalhar o trabalho ou seus planos e nunca é mencionada. ―Peitão e bundão chamam a atenção aqui. Em São Paulo não, porque as mariconas sabem que trava que é muito bombada, é mais rodada, preferem as com carinha de menino. Mas aqui no Ceará quem tem peitão é mais procurada‖ diz entre um comentário e outro sobre a reprise da novela que está passando na televisão. Luana, que já foi para São Paulo colocar as próteses, explica como funciona: ―Tem as cafetinas que levam a gente, pagam a passagem e a operação em uma clínica clandestina. Deve sair uns dois mil reais para elas. Aí ela cobram o dobro ou o triplo e mais uma diária de 30 a 50 reais para a gente morar na casa delas e a gente vai trabalhando para pagar. Trabalha muito, muito mesmo‖. Carla acrescenta: ―Eu já fui fazer programa em São Paulo. É bom porque você ganha mais, mas por outro lado você tem que trabalhar de qualquer jeito, mesmo se estiver doente, não importa. Ninguém vai te dar um remédio. Eu já vi umas travestis apanharem de pau de uma cafetina‖. Segundo as duas, o movimento entre as cidades aumenta a cada dia: ―Só essa semana, fiquei sabendo de quatro que foram. Mês que vem sei de mais cinco. É muita travesti botando peito‖ diz Luana. Ela conta que pagou três mil reais por suas próteses de cerca de 400 ml porque era conhecida da cafetina e que ficou oito meses trabalhando em São Paulo para pagar a dívida. Muitas acabam não voltando porque viram dependentes químicas da cocaína – que ajuda a aguentar o trabalho intenso e é mais acessível na cidade – e não conseguirem pagar suas dívidas. Uma delas fugiu da casa onde estava e neste momento está desaparecida, como me contaria depois Marcela, que conheci já em São Paulo. Lídia Rodrigues, outra educadora da Barraca da Amizade, conta que algumas travestis chegam a fazer de 30 a 40 programas por dia em São Paulo e que os educadores têm percebido que este trânsito para a capital paulista está se intensificando: ―Não dá para afirmar que é somente por causa da Copa, mas elas sabem que virão muitos turistas e muitos homens para a área. Ao mesmo tempo a gente tem medo de uma higienização massiva. Provavelmente o termômetro disso vai ser a Copa das Confederações‖. 35 Tráfico de Pessoas Lívia Xerez, coordenadora Estadual do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado do Ceará diz que, apesar do discurso das travestis de que fazem a viagem por vontade própria, a situação pode ser considerada sim como tráfico de pessoas.―Por mais que elas não denunciem ou achem que estão indo porque querem, o protocolo de Palermo define o tráfico de pessoas como ‗o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração‘. Neste caso, elas seriam as vítimas e os aliciadores os criminosos‖ explica, referindo-se ao protocolo da ONU contra o Crime Organizado Transnacional, que foi ratificado pelo governo brasileiro em 2004. Ainda há muito preconceito e medo por parte das próprias vítimas em denunciar os aliciadores, diz Livia: ―Elas são ludibriadas com promessas de uma vida nova, por vezes luxuosa, de ganhar mais dinheiro e por isso não conseguimos chegar. Muitas também têm medo, talvez por sermos um aparelho oficial, de que serão criminalizadas, quando na verdade elas são as vítimas. Por isso ainda não conseguimos provas de que isso tem aumentado por conta da Copa, apesar de termos fortes suspeitas‖. Outro fator que impulsiona o tráfico é a falta de alternativas profissionais para as travestis, explica Lídia: ―Nós temos uma parceria com o programa Vira Vida do SESI, que dá cursos profissionalizantes para elas mas, no fim das contas, quantas empresas contratam travestis? Nós trabalhamos com muitos garotos que nem eram travestis, eram apenas homossexuais, mas foram colocados para fora de casa e apareceu uma cafetina que ofereceu dinheiro caso eles se montassem. Para a juventude não existem políticas públicas em Fortaleza como existem para crianças e adolescentes – que ainda assim são escassas. As travestis têm o discurso da emancipação, como se a prostituição fizesse parte da própria identidade de ser travesti. Mas nem todas estariam ali se tivessem outras opções‖. “Me senti como a presidente Dilma” Marcela*, 22 anos, cabe no exemplo dado por Lídia. Após cursos profissionalizantes e várias tentativas de arrumar um emprego, ela acabou indo para a rua. Quando nos encontramos de manhã em um shopping do centro de São Paulo para conversar, a cearense arrastou todos os olhares masculinos para seu belo corpo, comprado através do esquema citado por Carla e Luana. ―Vim para São Paulo em abril do ano passado. Paguei o silicone do corpo em três meses, coloquei mais, paguei em um mês e a prótese do peito quitei em 20 dias‖ orgulha-se a travesti, que trabalha das dez da manhã às nove da noite com pausa para o almoço, em um cinema pornô do centro da cidade. ―Chego a tirar oito mil reais por mês mas trabalho muito e não saio nem uso drogas. Todo o meu dinheiro vai para a minha mãe e para o banco porque quero comprar uma casa‖. Marcela conta que descobriu sua homossexualidade aos 13 anos e que por algum tempo escondeu a opção da mãe e das quatro irmãs. ―Eu sentia muito medo de como elas e a sociedade iriam reagir. Mas não tinha outro jeito, era quem eu era. Então contei e elas até que aceitaram bem‖. Já o processo de travestilidade foi mais difícil: ― Minha mãe ameaçou me botar para fora de casa, dizia que eu nunca iria arrumar emprego, não aceitou‖. Ela conta que chegou a se prostituir aos 17 anos mas que preferia trabalhar. Conseguiu uma bolsa de estudos através do programa Vira Vida e passou um ano e meio estudando de manhã e fazendo o curso a tarde. ―Eu sempre gostei de fazer cursos, estudar, queria trabalhar com carteira assinada, nunca quis fazer programa‖ lembra. Marcela diz que chegou a arrumar um emprego em uma firma de lingerie, mas que foi mandada embora quatro meses depois porque adoeceu ―e o patrão não aceitou os atestados médicos‖. Daí em diante, aceitou trabalhar recebendo metade do salário de outros funcionários de uma empresa mas em determinado momento não pôde mais se sustentar com o pouco que ganhava e não achou mais trabalho: ―Todas as portas se fecharam para mim. Não tive outra opção a não ser ir para a rua. Se eu pudesse, escolheria outra vida. Como não posso, me concentro e trabalho muito para poder juntar algum dinheiro para um dia abrir um negócio. Vou ficar velha e ninguém mais vai me querer‖. Vaidosa, maquiada e bem vestida, Marcela conta que hoje paga 30 reais a diária para a cafetina dona da casa onde mora e mais 30 reais a diária do cinema, de onde a cafetina é sócia, mas que pretende sair da casa da aliciadora e alugar um quarto com mais três colegas de Fortaleza para poder atender aos clientes durante a Copa. ―Eu tenho anúncios em sites e também quero ir para a rua na época da Copa. São Paulo estará cheia de gringos e mesmo brasileiros de outros estados, quero aproveitar‖. Para ter lucros mais altos, Marcela assume que já fez sexo sem preservativo: ―Tem gente que paga o dobro e até o triplo do valor para transar sem camisinha, aí eu acabo fazendo. Estou com medo de fazer o exame [de HIV], mas sei que a saúde vem em primeiro lugar‖ se contradiz. Após a Copa, Marcela pretende ir para a Europa, ganhar em euro. ―Já falei com uma pessoa que leva travestis para lá. Ela cobra 10 mil reais para passar a gente‖. Pergunto se ela não tem medo. ―Que nada, é a mesma coisa daqui, só que ganhando em euro‖. Voltar para Fortaleza, só mesmo de férias, como foi há poucos meses: ―Nossa, me senti uma celebridade lá, me senti como a presidente Dilma! Todo mundo vinha falar comigo, ver como eu mudei, até as pessoas que falavam mal de mim viram que eu conquistei‖. Com o dinheiro arrecadado na Copa mais o que pretende conseguir na Europa, Marcela pretende aproveitar o sucesso para aí sim voltar para o Ceará e abrir seu negócio. Um salão de beleza ou uma loja de roupas, porque adora moda. Olhando para o relógio, ela se despede. É hora de voltar para o cinema. *Os nomes foram trocados para segurança das personagens. 36 TRANS MIGRAÇÕES – L’Italia dei Divieti: entre o sonho de ser européia e o babado da prostituição universo da travesti, compondo sua subjetividade. A percepção das estratégias migratórias desenvolvidas com o propósito de materializar esse sonho são frequentemente dissonantes dos argumentos das agências oficiais do uso de engano ou fraude e mesmo de aliciamento.3 Flávia Teixeira Introdução Neste texto trato da circulação das travestis brasileiras entre Milão, Roma e Brasil. Utilizo aqui o termo êmico européia1 para argumentar que os sonhos e as experiências de circulação entre as fronteiras Brasil-Europa integram o universo das travestis com sentidos que podem se afastar daqueles atribuídos pelos órgãos oficiais e outras organizações envolvidas no combate ao tráfico de seres humanos. Os cenários da prostituição surgem como significativos espaços de sociabilidades no campo de diferentes pesquisadores que se aventuraram a investigar o cotidiano das travestis desde o trabalho inaugural de Helio Silva (1993). Também não escapou a eles o fascínio que a Europa exercia e ainda exerce neste universo. O fluxo migratório das travestis foi identificado por Don Kulick (1998, 2008) desde os anos 70 tendo a França como destino preferencial até 1982. Segundo Larissa Pelúcio (2005), esse fluxo se acentuou nos anos de 1980 e nos anos 90 a Itália se consagrou como o destino preferencial das travestis. Embora, a partir do início deste século, países como a Espanha, a Suíça e a Holanda passaram a integrar o roteiro das travestis, identifico a supremacia italiana captada no uso do idioma, nas escolhas das grifes de roupas e perfumes, nos hábitos alimentares das travestis. A experiência de ter vivido na Europa (ou mesmo conhecer alguém que tenha realizado a viagem) integra as conversas que circulam nas calçadas, salões de beleza, clínicas de cirurgia plástica e nas casas, alimentando o desejo de muitas outras que esperam um dia atravessar o Atlântico. As reflexões aqui desenvolvidas estão ancoradas na pesquisa que coordenei sobre vulnerabilidades e prostituição das travestis em Uberlândia e que originou em 2006 o projeto de extensão: "Em Cima do Salto: saúde, educação e cidadania", vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, ainda em execução. Durante esse período, identifiquei a intensificação do uso de termos em italiano como ciao, bella, grazie, regina, cazzo, aiutami no vocabulário das travestis de Uberlândia.2 Não passaram despercebidas as músicas italianas que, juntamente com sucessos de época, embalaram muitas das festas nas quais compareci. A valorização do idioma italiano e sua fluência como capital simbólico pode ser flagrada nos seus álbuns de relacionamento do Orkut. Argumento que a vivência da prostituição e o sonho de trabalhar na Europa integraram o Segundo Piscitelli (2004), a partir dos anos 90, o debate que associa prostituição forçada, o turismo sexual e a prostituição se tornou visível no Brasil, chamando a atenção da opinião pública, dos pesquisadores e dos formuladores de políticas. No entanto, a inclusão das travestis nesses debates é recente e decorre principalmente das alterações introduzidas no Código Penal brasileiro em março de 2005, que substituiu a palavra "mulheres" por "pessoas". Essa modificação impactou a vida das travestis, porque a partir de uma lógica jurídica na qual sexo corresponde a gênero, as travestis anteriormente estavam incluídas no universo de homens e, portanto, fora do alcance jurídico da esfera desse tipo de tráfico. As alterações dos artigos 231 - que faz referência ao crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual - e a introdução do mesmo artigo, que caracteriza o tráfico interno - introduziram para as travestis, no plano técnico, um conjunto de questionamento sobre práticas que, até então, integravam seu universo regidas por uma lógica completamente distante e diversa das disposições do Código Penal. Referendada nos fragmentos da pesquisa de campo, problematizo dois aspectos que impactam a vida das travestis: o primeiro, relacionado ao Código Penal Brasileiro, não contempla a possibilidade de que uma pessoa possa realizar a migração voluntária para trabalho sexual e/ou receber auxílio de outro e a realização desse desejo termina por criminalizar algumas estratégias de acionamento de redes sociais que são legitimamente acionadas em contextos fora da prostituição através de termos como help, ajuda (Assis, 2007; Piscitelli, 2008). O segundo, a paradoxal atuação de ONGs que atuam no combate ao tráfico e na proteção das vítimas no exterior. O não reconhecimento por parte das travestis de que são/foram exploradas/traficadas cria uma situação ambivalente, ora o discurso oficial empregado pelas ONGs coloca as travestis no lugar daquelas consideradas traficadas, exploradas e, portanto, necessitam de proteção ou as deslocam para a situação de "perigosas e bandidas" ao vincular a prostituição à marginalidade (indocumentadas) e à (des)ordem pública. Não afirmo que as travestis que se prostituem na Itália ou em Uberlândia não possam ser traficadas ou exploradas, nos termos do Protocolo de Palermo, em processos que envolvam coação ou fraude, mas, como mostram outros estudos (Davida, 2005), é necessário diferenciar as problemáticas, considerando as lógicas dos sujeitos envolvidos. 1 Segundo Larissa Pelúcio (2005), para ser considerada européia a travesti deve ter vivido uma temporada atuando como prostituta fora do Brasil. Assim como babado é também um termo êmico, mas que carrega a ambigüidade, pode tanto significar algo muito bom ou desastroso; só pode ser apreendido no contexto. 2 É um projeto que atende em média, 40 travestis por mês. As atividades são semanais e devido a rotatividade do grupo, estimamos que mais de 150 travestis integraram as atividades em algum momento. 3 Ressalto que considero problemática a relação direta entre ser travesti e ser prostituta ou que a prostituição é naturalmente um único caminho para as travestis, mas compartilho com outros pesquisadores a percepção de que as calçadas são significativos espaços de sociabilidade. Remeto-me aqui ao reconhecimento de que a maioria das travestis, cerca de 97%, vivencia a prostituição como trabalho, conforme dados obtidos durante I Consulta Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição que ocorreu em Brasília entre 26 e 28 de fevereiro de 2008. 37 O campo Utilizo-me de algumas referências para argumentar que Uberlândia, apesar de situada no interior do Triângulo Mineiro, é um espaço representativo do universo das travestis. Esse destaque pode ser flagrado, por exemplo, quando a BEMFAM (2006) recortou Uberlândia (MG) como um dos espaços para a pesquisa sobre prostituição e HIV/Aids. Conforme observa o próprio documento, a população inicial do estudo seria apenas motoristas de caminhões e mulheres profissionais do sexo. A ampliação da pesquisa envolvendo também as travestis se deu em função do reconhecimento do número expressivo de travestis que trabalham na cidade como prostitutas e suas possíveis interações com os caminhoneiros. Uberlândia também foi citada no documento da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2006) como rota para o tráfico de seres humanos, a partir da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf, 2002). Penso que a justificativa para essa inclusão, já que Minas Gerais não foi uma região pesquisada para o relatório da Pestraf (2002), pode estar associada aos relatórios da Polícia Federal envolvendo investigações sobre tráfico de mulheres. Certamente, Uberlândia seria incluída nos próximos relatórios após evento, amplamente divulgado na mídia nacional, da prisão realizada pela Polícia Federal, em 2006, de duas travestis acusadas de envolvimento no tráfico de seres humanos. Aprendi o bajubá 4 no cotidiano das ruas como a maioria dos antropólogos que fizeram suas etnografias nas calçadas deste país. As reflexões aqui desenvolvidas estão ancoradas no trabalho de campo que consistiu em acompanhar o cotidiano das travestis nas calçadas, nas casas, nas festas de aniversário, Natal e Ano Novo, nas reuniões do projeto e nas situações de dor-adoecimento, morte e violências. Nesse período, acompanhei os preparativos de algumas travestis para trabalhar na sonhada Itália. A poupança destinada aos investimentos corporais que incluem a colocação das próteses de silicone nos seios, a depilação do rosto a laser, a colocação de apliques ou perucas, a obtenção dos documentos, a compra das passagens. Foram aqui tecidos os fios de um vínculo, permitindo que as entrevistadas falassem de assuntos considerados delicados, entre eles, os acordos que conduzem à Europa. Além da observação e contatos estabelecidos com travestis em Uberlândia a partir de 2002, para este trabalho realizei seis entrevistas em profundidade, o critério inicial para escolha da entrevistada seria a experiência de ter vivido na Itália como prostituta. Outros critérios foram estabelecidos com o objetivo de apresentar a heterogeneidade do grupo, e escapar (ou tentar escapar) da simplificação desse fenômeno. Duas de minhas entrevistadas são proprietárias das chamadas casas de pensão para travestis, outras duas são travestis que migraram para Itália com financiamento próprio e retornaram após a primeira temporada, duas utilizaram o esquema de financiamento de outras travestis, 4 Gíria amplamente utilizada pelas travestis composta por termos oriundos do ioruba-nagô, conhecida também como pajubá ou bate-bate. entre elas, duas documentadas - uma residente na Itália e outra no Brasil. A partir de março de 2008 tornou-se evidente a chegada, em Uberlândia, de um maior número de travestis vindas da Itália. Esse movimento motivou parte da pesquisa de campo realizada em Roma (Itália) em maio de 2008 com o objetivo compreender a extensão das políticas migratórias implementadas pelos governos de Silvio Berlusconi e Gianni Alemanno no cotidiano das travestis brasileiras residentes na Itália e explicitadas nas diferentes justificativas que elas apresentavam quando indagadas sobre o período que pretendiam permanecer por aqui. Foram recorrentes as expressões: "a Itália está o Ó"; "vim descansar, mas também esperar as coisas esfriarem por lá"; "parece a mesma perseguição que aconteceu na França, eles vão tombar a Itália". Em Roma, foram entrevistadas a presidente da Associação das Travestis, uma brasileira com nacionalidade italiana 1, a coordenadora da Unidade de Estrada V da Cooperativa Social PARSEC - Projeto Roxanne - e uma das mediadoras culturais - também brasileira - responsável pela distribuição de preservativos, pelo contato nas ruas dessa região adstrita e também uma das tradutoras no Tribunal Penal em Roma nas situações em que o juiz decide sobre a permanência ou deportação de alguma travesti. O masculino das travestis e os vazios nas pesquisas Nos documentos oficiais, em relação ao casamento, as preocupações são direcionadas para as mulheres brasileiras, um universo no qual as travestis sequer são citadas. O casamento com um italiano não desponta no horizonte das expectativas de minhas entrevistadas, nem como porta de entrada para a migração ou permanência com a obtenção de cidadania. No entanto, cabe o alerta de Adriana Piscitelli (2007b) de que a heterogeneidade e a complexidade das relações precisam ser pontuadas. É necessário considerar que as travestis, pelo menos no plano jurídico, estão incluídas na categoria sexo masculino e, na Itália, não se reconhece o casamento de pessoas do mesmo sexo. Nesse caso, ao pensarmos os casamentos mistos ocorridos na Itália, chamo a atenção para os casamentos que devem constar nos documentos oficiais como sendo de um homem brasileiro com uma mulher italiana e que pode ser o de uma travesti brasileira com uma mulher italiana. Não são raros os casos em que esse "arranjo matrimonial" ocorre. Rita é viúvo, casou-se com uma italiana em 2004 após uma negociação de 8.000 Euros. Pergunto sobre suas amigas travestis que identifico através das fotografias que ela vai me mostrando, e ela narra como cada uma das "documentadas" percorreu caminhos semelhantes. Viviane é cidadã italiana, herdeira do nome do avô, neta de um migrante que chegou ao Brasil no final do século XIX. Primeiramente, ela ficou constrangida quando percebeu que eu havia compreendido que falava com suas amigas sobre um arranjo matrimonial. No entanto, era dia de festa e com um sorriso sentou-se mais perto para falar de seus planos futuros. O sobrenome italiano poderá render-lhe muitos Euros caso concorde com a proposta de uma prostituta 38 brasileira residente na Itália. Ela fala com receio do caso, acredita ser constrangedor que os outros saibam que se casou com uma mulher. No entanto, oficialmente, essa união seria registrada como o casamento de um italiano com uma brasileira. Apesar de ter cidadania e também ter residido na Itália, Viviane não pensa em retornar. Priscila conta as diferentes histórias das travestis que conheceu vivendo na Itália nesses oito anos em que realiza o deslocamento Brasil-Itália-Brasil e fala sobre o anonimato das mortes das travestis: nunca vi um cemitério com a placa de identificação de uma travesti que tenha morrido lá... permanecem todas sem nome, como indigente. Para dizer a verdade, conheço uma. Uma teve velório e enterro porque a mulher dela fez, mas enterra como homem. As mortes das travestis, quando registradas, integrariam as estatísticas como pessoas do sexo masculino, ou seja, homens que faleceram no exterior. O mesmo ocorre nas pesquisas sobre tráfico de pessoas, as travestis deixam o país como pertencentes ao sexo masculino e nesta categoria também são informadas durante os retornos. Em análises qualitativas, essa particularidade pode ser assinalada, a exemplo da pesquisa sobre pessoas que foram deportadas ou não admitidas e que regressam ao Brasil via aeroporto de Guarulhos, na qual os pesquisadores tiveram o cuidado de separar homens, mulheres e transgêneros (Secretaria Nacional de Justiça, 2007). Os acordos de viagem O discurso oficial, compartilhado pela opinião pública, é que a ausência de denúncias por parte das travestis seria justificada pelo medo dos traficantes que compõem as redes e das situações de vigilância e violência a que estão submetidas. Novamente enfatizo que podem existir travestis brasileiras traficadas e exploradas por redes criminosas organizadas e vinculadas ao tráfico internacional de pessoas. Porém, nos espaços desta pesquisa, a saída das travestis para a Itália e as condições para a permanência nos primeiros tempos se estabelece por acionamento de redes informais de amizade, gênero e parentesco. Em vários trabalhos sobre migração é possível identificar o acionamento de redes sociais que possibilita a saída e a recepção nos locais de destino. Essas ações, que envolvem as informações sobre o local, o compartilhamento ou a indicação de abrigo, até mesmo o empréstimo ou a compra de passagens, são reconhecidas e nomeadas por diferentes sujeitos envolvidos na transação como "ajuda". As redes sociais acionadas pelas travestis para alcançarem seus sonhos, embora mantenham semelhanças com as acionadas por diferentes sujeitos "em trânsito", poderiam ser precipitadamente identificadas como rede de aliciamento e extorsão. A versão de Rita colabora para pensarmos nessa situação: Rita é considerada belíssima, desembarcou na Itália pela primeira vez em 1996, foi uma das primeiras travestis de Uberlândia a pisar o solo italiano. Para isso, anteriormente permaneceu por dois anos em São Paulo até que adquirisse conhecimento. o primeiro sonho da travesti é o peito, a Itália vem depois... comigo foi assim. Primeiro eu fui para São Paulo, aprendi a me virar na noite. São Paulo era uma escola, ninguém ia para a Europa sem passar por São Paulo antes. Eu cheguei aos 17 anos, e lá fui ficando, juntei o dinheiro da prótese, aprendi sobre os hormônios e conheci a minha mãe com o tempo, ela confiou em mim e disse que eu estava pronta, que ia me ajudar. Comprou as passagens e embarcou comigo para a Europa. Quando eu cheguei fui morar na casa dela, fiquei lá por quase um ano. Ela me acompanhou ate que eu aprendesse o idioma, quando eu fui não sabia uma palavra [risos]. Aprendesse as normas depois disse: segue sua vida. Eu paguei direitinho, foram 2.500 dólares, era muito dinheiro porque o dólar era valorizado, nem mesmo existia o euro, na Itália era a lira. Mas, os programas eram em dólar e eu paguei antes de 06 meses, ela dizia que não tinha pressa, mas eu sei que temos que pagar nossas dívidas, não é assim com os bancos? A fotografia dessa mãe está no porta-retrato em cima da mesa da sala. Em algumas fotos de seus álbuns de viagens pela Grécia, França e Suíça encontro sua mãe entre as turistas. A quantidade de álbuns e pequenossouvenires trazidos como recordação são testemunhos de uma vida que em nada remete à exploração ou ao cárcere. Nas fotografias das viagens percebo que Rita está sempre acompanhada de amigas travestis brasileiras com quem vive ou compartilha espaços de sociabilidade na Itália. Maridos de amigas, familiares dos maridos e namorados vez ou outra também integram o grupo. Cartões e postais estão distribuídos pela casa, em um deles foi possível ler: "para minha mãe". As travestis reinventam seus laços de parentesco, assim, Bruna e Rita são reconhecidas como primas, embora não possuam laços de consangüinidade. Bruna viajou para Europa em 2007, as passagens e a estadia foram presentes de aniversário enviados pela prima e suas amigas. Utilizou uma rota comum para ingresso, sem intermediações. Ela afirma não ter tido nenhuma dificuldade para ingressar em Portugal e, posteriormente, desembarcar em Bologna. Mesmo não tendo embarcado com objetivo de trabalhar, poderia ser considerada suspeita por ser travesti, mas denuncia o preconceito que sofreu no retorno ao Brasil, tendo as malas revistadas e um tratamento que não considerou digno no aeroporto de Guarulhos. A experiência de Bruna é única entre as entrevistadas (indocumentadas), até mesmo Rita que se recusa a comprar passagens de companhias que farão conexões na França, justifica que, mesmo após estar regularizada na Itália, foi desrespeitada em um dos aeroportos daquele País. A experiência de Rita soma-se à percepção de Priscila. Questionada se, para colaborar comigo na pesquisa, ela viajaria para a Itália através de um vôo direto, Guarulhos/Fiumiccino ou Guarulhos/Malpensa. Ela sorri e responde: Jamais. A senhora entraria linda e mulher e eu? Voltaria imediatamente: travesti. Não importa quanto de dinheiro temos no bolso e nem mesmo o que vamos fazer lá.... não entramos. 39 O uso das chamadas rotas alternativas coloca, de fato, as travestis em situação de perigo, a despeito das histórias relatadas sobre essa aventura, percebo que o ingresso na Europa, cada vez mais, se atrela ao uso do que consideram como rotas alternativas. A condição vivida pelas travestis na "dupla ilegalidade" no mercado do sexo se constitui como fonte do poder e controle que exercem sobre os/as migrantes, conforme identificou Adriana Piscitelli (2008). Nesses casos, as leis que impossibilitam a migração e o trabalho sexual legais constituem os principais obstáculos para os/as migrantes que se inserem na indústria do sexo no exterior. Laura não contraiu dívidas para ir à Itália. Reuniu recursos suficientes a partir de seu trabalho na prostituição somados aos rendimentos da pensão por morte de seu pai. No entanto, não viajou sozinha, porque não conhecia as rotas para ingresso no país de destino. "Não tinha conhecimento" e utilizou o mesmo esquema que Mariana para aportar em Milão, viajaram juntas através das rotas alternativas, o mais significativo é que, após seu retorno, Laura adotou o mesmo sobrenome que a dona da casa onde residiu. É significativo o número de travestis que chegava da Itália e, mesmo residindo em apartamentos individuais, visitava com freqüência as donas das casas de pensão e mantinham com estas uma relação de afetividade, muitas permaneceram por semanas na casa antes de visitar a família. A permanência na casa era referida como um tempo de descanso e também de rever as amigas. Visitas médicas para exames de rotina ou mesmo para intervenções de cirurgias plásticas também foram observadas. trans brasileiras somente na região do PARSEC V.Nesse período, o projeto não registrou nenhuma queixa de travestis ou transexuais que se considerasse traficada ou explorada. No entanto, as integrantes da Organização justificam sua atuação inicialmente calcada na vitimização das travestis: elas não se percebem exploradas, elas têm medo de denunciar, elas têm medo das cafetinas. É tanta violência, que elas nem mesmo sabem que são vítimas. As percepções da coordenadora e da mediadora cultural se afinam, documentos nos quais prevalecem os argumentos respaldados no campo das ciências ditas "psi" (OIT, 2006), onde não seria suficiente a pessoa não se perceber explorada para afastar o conceito de tráfico, porque quem está autorizado a dizer se esta pessoa é explorada é um outro. No entanto, Letícia relata um episódio diferente. Aos 26 anos seria facilmente reconhecida como a típica "européia e top" entre as travestis. Ela rejeita os rótulos e, sentada na beira da piscina, se dispõe a falar um pouco de sua experiência na Europa. A Itália não se apresentava como um sonho até que uma amiga travesti, numa das visitas à sua cidade, fez o convite. Em 2000, ela desembarcava em Milão com a perspectiva de fazer a vida, trabalhou nas ruas por um ano até alugar seu próprio apartamento, a partir de então trabalha somente em casa, por telefone e internet. Os retornos ao Brasil são freqüentes, ora para visitar a família que reside no sul do Brasil, visitar as amigas (inclusive em Uberlândia), ora para visitar, em Salvador, a família do então namorado brasileiro que conheceu em Milão e com quem residiu por dois anos. Ela fala de seu acordo para a primeira viagem: O trabalho das travestis Ao migrar, o sonho motivador da travesti é trabalhar na Europa e, nessa perspectiva, este se alinharia ao de milhares de brasileiras que deixaram o país para trabalhar (Assis, 2007). O fato de que o trabalho a ser exercido pelas travestis é majoritariamente a prostituição coloca esse grupo em destaque na discussão da exploração sexual e do tráfico de pessoas. Meu argumento tentará demonstrar que o duplo estigma da condição de prostituta e "indocumentada" colocam as travestis em situação de vulnerabilidade na Itália. Em todas as entrevistas, é imperativa a negativa de que são enganadas ou aliciadas para exercer a prostituição forçada no exterior. se você é travesti e batalha aqui no Brasil, você vai para a Itália fazer o que? A badante? Ninguém vai dizer que foi enganado... e se dizer é mentira [risos]. A fala de Bruna, relatada acima, encontra correspondência com os dados obtidos através da coordenadora de uma das Unidades que compõe o Projeto Roxanne. Em 2007, o projeto contabilizou 1497 prostitutas nas vias e estradas de Roma - na região sobre sua responsabilidade -, entre elas, 30% são trans (termo utilizado no projeto para englobar travestis e transexuais) e desse percentual 97% são brasileiras. Ou seja, de acordo com essa Organização, em 2007, trabalharam nas ruas de Roma aproximadamente 435 O combinado não é caro. Paguei sim, 8.000 Euros pelas passagens e empréstimos para iniciar a vida. Em menos de dois meses já havia pagado a minha dívida, então ela [a amiga travesti] me procurou e disse que precisaria de mais dinheiro. Não achei justo. Procurei a questura e então foi minha decepção, o policial falou: "Você quer fazer uma queixa contra uma cidadã italiana? Ela é documentada e você? Você não é nada, é menos do que um cachorro, porque aqui até os cachorros possuem documentos". Então negociei com ela, paguei 50% do valor que ela me pediu e nunca mais nos falamos. Como identificou Adriana Piscitelli (2006) em relação às mulheres, um certo percentual de juros cobrados pela passagem é considerado lógico e justo, entre as travestis com as quais trabalhei, o sentimento de ser explorada surge apenas quando são acrescidas exigências ao contrato inicial. Esse sentimento, no entanto, não estabelece correspondência com o que está estabelecido como tráfico. As travestis que entrevistei não se consideram vítimas de tráfico ou exploração. Laura pagava 350 Euros por semana para residir em um apartamento com outras três travestis. Perguntei se considerava o valor abusivo: você tem que pagar para comer em qualquer lugar, em qualquer casa onde more, você pensa que vai comer de graça? Tem que pagar para morar, pagar as contas, é o certo. 350 Euros é uma noite de trabalho, ou até menos, então não é muito. Compensa. 40 Embora as travestis brasileiras se constituíssem como os sujeitos da investigação, a existência das travestis peruanas principalmente em lugares de poder - não poderia passar despercebida conforme o depoimento de Priscila sobre a prática do pedágio: eu cheguei na rua, sabia em que região minha amiga trabalhava, e então esperei... estava quase amanhecendo quando ela chegou, fomos para a casa dela e três dias depois eu fui morar numa casa com outras quatro travestis. Não paguei para trabalhar na rua, mas tem alguns pontos que as mais antigas, as peruvianas controlam e então... quando quero trabalhar lá eu pago, pago porque compensa. A fala da Priscila exemplifica que, nesse contexto, os lugares não são fixos. Sendo a dona da pensão em Uberlândia poderia ser "facilmente" encaixada nos parâmetros do Código Penal brasileiro, mas na situação acima relatada preencheria critérios para ser considerada como vítima. Rita coloca uma outra questão sobre o controle dos pontos nas ruas: migrante em situação de fragilidade em terras estrangeiras, como identificado em outros trabalhos sobre a condição do migrante: vou te dar um exemplo, se o apartamento para um italiano é alugado por 350, 450 Euros, para um estrangeiro sem documentos eles alugam por 1.300, 1.500. Pedem três aluguéis de calção, o dinheiro da taxa da agência e mais o aluguel adiantado. E por qualquer coisa você pode perder o apartamento. E quando perde... perde tudo. Da última vez, a panela caiu no chão, a vizinha reclamou, a polícia veio e fechou o apartamento. Essa impotência diante dos cidadãos do lugar coloca as travestis em outras situações nas quais se percebem exploradas, ser travesti e estrangeira implicaria em ocupar um lugar de menor condição para negociar, conforme relata uma das entrevistadas: Você chega a uma loja e quando vai pagar no caixa, o preço para você é maior, mesmo você vendo o preço na etiqueta.(...) Eu pago, vou reclamar para quem? Na percepção das entrevistadas, o rufianismo não constitui uma regra da prostituição para as travestis. Todas exemplificaram o que consideravam exploração, relatando a situação das mulheres romenas, africanas e albanesas: Nem todas as travestis que estiveram por uma ou mais temporadas na Itália desejam repetir a experiência. Mariana viajou com recursos próprios, mas dividiu a casa com outras travestis de Uberlândia por quatro meses e diz que não voltaria. A justificativa para essa "desilusão" é a rua. As difíceis condições de trabalho nas ruas e a sua dificuldade em se adaptar aos clientes italianos. Embora ela não tenha mencionado um possível fracasso na experiência, não observei nenhuma aquisição de bens materiais após seu retorno. essas organizações e a polícia italiana deveriam cuidar das mulheres romenas, africanas, albanesas estas sim, são exploradas pelos cafetões. Eles ficam esperando elas voltarem do programa, por vinte e trinta minutos, porque dá para calcular o tempo que gasta, e quando elas chegam eles levam todo o dinheiro. As mulheres ganham mais dinheiro, se uma travesti recebe 400 Euros numa noite, as mulheres recém 700 Euros, principalmente as albanesas e romenas porque são lindas, brancas. Talvez isso contribua para explicar a desilusão, pois como aponta Larissa Pelúcio (2005), o sucesso desse empreendimento é mensurado pelo grupo quando, no retorno ao Brasil, elas adquirem carros, casas, terrenos. Mas o maior destaque é dado ao corpo. Os cuidados corporais expressos nos cabelos, próteses, lipoaspiração, depilação a laser, e roupas, perfumes, jóias e acessórios: as grifes italianas circulam no grupo como testemunhas deste sucesso. As travestis entrevistadas se reconhecem como exploradas na Itália, em diferentes contextos, no entanto, percebo a dificuldade das entrevistadas das ONGs de compreenderem os sentidos atribuídos por elas a seus cotidianos. Letícia e Clarissa trabalham nos seus próprios apartamentos, atendem seus clientes que as encontram através dos sites na internet ou telefone celular, sendo que a segurança e a comodidade compensariam a despesa de manter o aluguel, entendido como exorbitante: "Não tem que trabalhar na rua ...todos os dias na rua... o frio na rua... os mosquitos nas regiões de bosque, tem que correr da polícia...". Durante a Parada do Orgulho Gay, percebi que são os laços afetivos que mantém Mariana no Brasil; considerada belíssima, seu suposto fracasso na Itália poderia ser atribuído, em parte, ao namoro com uma travesti que permaneceu aqui. Parece-me que, também para as travestis, a decisão sobre migrar e permanecer na Itália pode ser uma estratégia individual de ascensão social, mas é marcada por outras escolhas e projetos, por exemplo, afetivos. eu penso que é igual ao serviço de táxi, cada um tem seu ponto. O táxi registrado no aeroporto de Uberlândia pode estacionar e pegar passageiros no centro? Não. Então tudo tem que ter regra, ter ordem, também a prostituição. Alugar um apartamento é um desafio e uma negociação que envolve acionar uma rede de amigos cidadãos ou documentados para mediar a transação. A exploração das travestis não se resumiria ao universo da prostituição e nem mesmo estaria marcada apenas pelo fato de exercerem a prostituição. Ser trabalhador indocumentado coloca qualquer Quando questionei sobre como vivem as travestis em Roma, a mediadora me contou acerca de uma visita que realizou a um local pobre, onde várias travestis residiam numa mesma casa em condições precárias. Também o fato delas raramente serem vistas circulando durante o dia pela cidade parece alimentar a idéia de que elas residem em situação de cárcere. Desconfio que o desconhecimento das realidades vividas pelas travestis no Brasil colabora para distanciá-las das ONGs, reafirmando discursos com os quais as travestis não se identificam. Como já foi dito anteriormente, na Itália, 41 muitas travestis vivem em situação análoga à do Brasil, sem que seja compreendido como cárcere ou exploração sexual, observa-se a mesma forma de moradia coletiva, comum no Brasil, em que uma travesti é a proprietária ou locatária do imóvel e as outras residem num sistema de pensionato, pagando diárias referentes ao custo da moradia. Em algumas casas, a alimentação está incluída no preço da diária, em outras não. Não percebo uma regra específica para esse contrato. No Brasil, o preço é estabelecido diariamente e na Itália semanalmente. No entanto, isso não reduz a percepção do fenômeno da exclusão social denunciado por Wiliam Peres (2005) e Maitê Scheneider (apud Peres, 2005), no qual as diferentes expressões da violência desencorajam as travestis a estarem no espaço público durante o dia. Na Europa, esse cerceamento pode estar mais associado ao fato de estarem como migrantes indocumentadas, conforme os relatos de Priscila e Letícia. Agosto é um período de férias em Milão, um período considerado difícil por algumas travestis. A dificuldade não está na escassez de clientes, ou relacionada às intempéries do clima. A diminuição do número de pessoas circulando durante o dia deixa maior espaço de visibilidade para as travestis serem "vistas" pela polícia. Eles acham a gente de longe. Podemos estar andando na rua, mas somos levadas para a questura, uma vez eles me colocaram na viatura... circularam pela cidade por umas três horas, depois me soltaram porque houve um problema em que um indiano matou um italiano, eles me deixaram na rua e saíram loucos. Nesse contexto, também são pertinentes as considerações de Adriana Piscitelli (2006) sobre a condição das prostitutas brasileiras indocumentadas na Espanha e as práticas repressivas deste governo em relação à deportação, consideradas por elas como o maior perigo a ser enfrentado. A folha de via obrigatória é um documento conhecido das travestis, elas sabem como funcionam os mecanismos da deportação e algumas também experimentaram a prisão na Itália. Elas sabem que as informações que circulam nas redes são preciosas. Semelhante às considerações de outros estudos sobre trabalhadores indocumentados, quanto maior e mais bem articuladas as redes, maiores são as chances no local de destino (Assis, 2007:752). A socialização do conhecimento integra a rede de ajuda e permite, inclusive, a circulação do dinheiro entre as travestis e seus familiares, pois algumas preferem depositar o dinheiro na conta de uma travesti amiga. Adriana Piscitelli (2007c) enfatiza a importância de se reconhecer o espaço transnacional criado também a partir da circulação de dinheiro do mercado do sexo também nos países de origem das prostitutas. O dinheiro ganho pelas travestis no exterior circula no Brasil e é recorrente o relato de que o primeiro dinheiro ganho na Europa é destinado à compra de uma casa para mãe no Brasil. Não comprei uma casa para minha mãe, porque travesti quando ganha dinheiro, pensa logo na mãe, mas ela já tinha. Então, reformei tudo. Pus do bom e do melhor na casa. Agora, mando o salarinho dela todo mês, é sagrado (Rita). A primeira coisa? Comprei um terreno. A casa da minha mãe eu já tinha comprado com o dinheiro aqui do Brasil mesmo (Priscila). Eu enviei 127 mil reais para ela [a mãe] comprar uma casa. Também estudei meus irmãos, paguei estudo dos dois. E depois levei minha irmã para morar comigo, depois meu irmão (Letícia). Comprei uma casa para minha mãe, e ajudo em casa todo mês. Dou o que precisa, cuido dos sobrinhos (Clarissa). O dinheiro ganho na Europa empodera as travestis diante da família. Mas não apenas diante dela, Priscila conta, entre gargalhadas, notícias de uma travesti (que conheci antes de ir para a Europa) que construiu uma casa numa cidade do interior de Goiás ao lado da casa do prefeito da cidade. "Uma casa que é um palácio [risos] tombou a casa do prefeito". Não estou vinculando aqui a migração das travestis à situação de pobreza, mas sim às expectativas de uma vida melhor, comungando das observações de Adriana Piscitelli (2008) em relação às prostitutas brasileiras na Espanha. Os critérios utilizados por elas para classificar o que seria uma vida melhor podem variar, demonstrando a diversidade que compõem esse universo. Utilizo um fragmento do caderno de campo para exemplificar a variação: quando estou muito triste, desanimada, abro meus armários e fico lá da cama namorando meus vestidos e penso: vale a pena. Antes eu não tinha somente um, um verde limão que trazia na bolsa. Agora tenho Dolce & Gabbana, Versace. São muitos [os vestidos], né? (Priscila). Prostituição: produções discursivas Durante a pesquisa de campo realizada em maio de 2008, houve um acirramento dos discursos e práticas contra migrantes indocumentados em Roma. O governo acenava com discursos e a polícia colocava em prática. Assim como no Brasil, na Itália, a prática da prostituição em si não se configura como crime, embora a intervenção da polícia italiana parece guardar semelhanças ao que ocorre em terras brasileiras, no entanto, utiliza-se de estratégias diferentes para penalizar os clientes da prostituição. Segundo Marlene Rodrigues (2004), no Brasil, a criminalização das diversas atividades que cercam o cotidiano da prostituição, bem como a dificuldade encontrada pelo sistema judiciário para diferenciá-la do lenocínio, e a recorrente compreensão da prostituição como uma questão de (des)ordem pública, favorecem o entendimento de que o exercício desta se inclui entre as competências da polícia. Não sendo irrelevantes as denúncias de que essas ações, não raramente, são desenvolvidas em situações que ferem os direitos das prostitutas e são marcadas por violência. (...) Enquanto a Emenda tramita no Senado... Este artigo pretendeu oferecer uma leitura, parcial, da circulação das travestis no mercado do sexo na Itália e 42 demonstrar que a constituição de suas redes, marcadas pelo gênero e laços de amizade, guarda semelhanças com as redes acionadas por outros migrantes em busca de uma outra vida em outro lugar. O exercício da prostituição também as aproxima, não somente no plano teórico, das brasileiras prostitutas. Mas evidencio que todas as semelhanças não ofuscam as heterogeneidades. Escrevo num momento em que o cerceamento das fronteiras na Itália se intensifica, deixando as travestis em situação de dupla ilegalidade e aumentando, exponencialmente, sua vulnerabilidade. Encerrando, atualizo um convite realizado por Adriana Piscitelli (2007a) ao afirmar que uma das características do movimento feminista tem sido dar voz às mulheres, particularmente às marginalizadas. O debate sobre a prostituição como trabalho oferece uma excelente oportunidade para continuar essa linha de atuação, prestando séria atenção ao posicionamento das prostitutas, individualmente e organizadas no plano regional e nacional, para ampliar esse debate, considerar ainda que neste mesmo cenário de prostituição encontram-se as travestis e as transexuais. 43