A CULPA É DE QUEM?

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A CULPA É DE QUEM?
TEXTO SUPLEMENTAR – ATUALIDADES NO ENSINO MÉDIO – 3º ANO - 1º TRIMESTRE 2016
CRISE POLÍTICA: A CULPA É DE QUEM?
Victor Bartoletti Sartori
As promessas da civilização ocidental não são cumpridas na medida mesma em que se proclama a "era dos
direitos", em que se tece um "elogio à serenidade" e em que a virtude liberal da tolerância parece ter as
melhores condições possíveis para se realizar.
Para muitos, o colapso do "comunismo" parecia abrir uma nova era, plenamente democrática, e marcada,
seja à direita, seja à esquerda (se é que estas noções ainda fariam algum sentido), pela moderação e pela
serenidade. Após o "curto século XX", a "era dos extremos", para que se use a expressão de Eric Hobsbawm
(1917-2012), parecia estar efetivamente aberto o caminho para soluções negociadas e conciliadoras, em uma
"era dos direitos", marcada pela garantia da participação cidadã e pela centralidade da política juridicamente
mediada e garantida.
Tendo em conta este panorama, outros poderiam dizer que o século XXI mostra que, em verdade, é o oposto
que se deu - não são poucas as guerras que marcaram nossa época desde o fim da URSS (símbolo de
grande parte das esperanças da esquerda no século XX); conflitos religiosos e "fundamentalismos" (inclusive
quando se diz oficialmente que "Deus abençoe a América") não são raros, sendo que as próprias promessas
dos melhores momentos das revoluções burguesas (principalmente a francesa e a americana, com suas
garantias individuais e políticas presentes nas cartas de direitos humanos) - Estado laico, participação
política, cidadania, resolução das "questões sociais" - passaram longe de se realizar de modo pleno; em
verdade, nem mesmo garantias mais básicas como a vedação de tortura são obedecidas pelos principais
baluartes da "democracia" (basta pensar em Guantánamo).
A posição habermasiana sobre as possibilidades de um mundo em que o socialismo
parecia não ser mais solução está no enfoque de uma razão específica, a razão comunicativa, por meio da
qual se trataria justamente de realizar as promessas, no limite, "iluministas", tendo-se o " iluminismo como um
projeto inacabado". Portanto, mesmo que Jürgen Habermas (1929) seja um autor que passa longe de um
otimismo cândido quanto ao "colapso do comunismo", há de se apontar que se trata de um autor que não
deixou de enxergar uma abertura importante neste. Na medida mesma em que caía a URSS, alguns falsos
caminhos saíam do horizonte, sendo possível a retomada de uma espécie de "democracia radical", tratada
pelo autor, sobretudo, em Direito e democracia, obra bastante influente na intelectualidade brasileira, e - de
modo bastante mediado, é verdade - mesmo na intelectualidade ligada aos dois principais partidos nacionais,
o PT e o PSDB.
A QUESTÃO DO CAPITALISMO
Dada não só a envergadura de um autor do calibre de Habermas, mas também sua seriedade e sinceridade
na crença do potencial crítico que os intelectuais (e da razão mesma) poderiam ter é necessária uma análise
mais cuidadosa da questão: o próprio modo pelo qual a serenidade, tratada por Norberto Bobbio (1909-2004),
vem a se ligar à "conciliação" e às soluções "negociadas" já indica que talvez haja algo subjacente a ser
tratado, e o autor alemão não deixa de perceber isto, claro.
Primeiramente, isto se dá porque, no próprio modo como se constroem as esperanças posteriores ao
"colapso do comunismo" tem-se como suposto que, afinal de contas, a tarefa colocada pela esquerda do
século XX, a saber, a supressão do capitalismo, era algo impossível, inviável, e mesmo indesejável. Ou seja,
grande parte da "mudança de paradigma" - considerada central e inafastável por muitos (inclusive por
Habermas) - consistiu em "superar" uma questão pungente, diriam alguns (como aqueles que ainda acreditam
que o marxismo seja uma referência inafastável, como David Harvey, só para citar um exemplo), fingindo que
ela nem sequer era uma questão a ser tratada como tal. Para que se coloque em termos bastante rasteiros: a
sujeira pode ter sido colocada "embaixo do carpete". E, com isso, a centralidade da luta anticapitalista foi
abandonada por parte da esquerda (da qual faz parte o próprio Habermas), restando certo equilíbrio entre
uma forma de ação estratégica que lidaria com aspectos como a burocracia, as finanças e a própria
organização do trabalho de um lado, e uma ação mais ligada à formação das subjetividades e das
identidades que passariam pelo reconhecimento intersubjetivo e comunicativo, opostos ao agir estratégico,
por outro. Isto, como se percebe, não é nada ingênuo - autores como Habermas e Axel Honneth (1949), por
exemplo, precisam ser respeitados, certamente: quanto a isto, não há dúvidas - no entanto, talvez tal
posicionamento traga como ponto cego questões que pareciam "ultrapassadas", mas que, diante do
desenvolvimento da sociedade contemporânea, fazem que a serenidade possa, no limite, ser levada a seu
oposto.
DIREITO E DEMOCRACIA, DE JÜRGEN HABERMAS, É BASTANTE INFLUENTE NA
INTELECTUALIDADE BRASILEIRA LIGADA AOS DOIS PRINCIPAIS PARTIDOS NACIONAIS, O PT E O
PSDB.
Manter a serenidade, bastante defendida por
um autor "progressista" importante como
Norberto Bobbio, diante da crescente influência
dos imperativos econômicos na gestão estatal é
bastante difícil, por exemplo. Autores como
Habermas certamente se opõem a isto, não há
dúvida. No entanto, se seguirmos o diagnóstico
de Karl Marx (1818-1883) (retomado por Harvey
e outros), a resolução da questão traz à tona,
novamente, a retomada decidida de uma luta
anticapitalista, e não a contraposição entre duas
Uma esquerda que se coloca como "esquerda para o
formas de razão. A questão é bastante mediada
capital" solapa as próprias bases, como aconteceu com o
e complexa, no entanto; para o que tratamos
Partido dos Trabalhadores, principalmente na última
aqui, basta que tenhamos mencionado a
década.
influência
habermasiana
na
teorização
contemporânea, bem como certa recusa, por parte da grande maioria daqueles influenciados por este grande
pensador, de um enfrentamento decididamente anticapitalista.
BRASIL E A SERENIDADE
Para tratar do tema que aqui abordamos de modo mais explícito, pode-se dizer que a questão acerca da
"mudança de paradigma" da história recente efetivamente se colocou na medida em que, em âmbito mundial,
mas de modo particular na história recente do Brasil, o modo pelo qual se organizou, seja a oposição, seja o
apoio àqueles que detinham institucionalmente o aparato político-partidário, foi essencialmente "conciliador"
(em oposição à radicalidade de uma solução "comunista") na medida em que se reconciliou também com
aquilo que subjaz na organização social contemporânea (a própria estrutura produtiva capitalista) e que fez
que toda "conciliação" fosse também, literalmente, uma "negociação". E, neste ponto, as coisas adquirem
contornos que são bastante importantes para se
tratar do presente, e do Brasil em específico.
De certo modo, a própria serenidade e
moderação passam a ter que ser coniventes
com aquilo mesmo que traz a impossibilidade de
um "reconhecimento" autêntico entre os autores
sociais (questão tida como central por Honneth
e, de modo mais mediado, por Habermas);
neste sentido, ao se deixar de tratar da
supressão do capitalismo como uma questão de As passeatas "populares" que vêm sendo apoiadas pelo PSDB
grande relevo, este último bate na porta e faz dariam orgulho aos organizadores da famigerada "Marcha pela
que o próprio ímpeto de um Habermas e de um
família com Deus pela liberdade", de março de 1964.
Honneth (bastante influentes em parte da
esquerda da década de 1990 e 2000, e ainda bastante influentes hoje) veja-se reforçado somente na medida
em que é ontopraticamente, em verdade, inviabilizado pela continuidade das questões que foram "colocadas
embaixo do tapete". Aquilo mesmo que é tirado de campo pela "mudança de paradigma" inviabiliza a
realização das promessas daquela mudança.
Na medida mesma em que a separação entre "sistema" (em que os imperativos de mercado aparecem) e
"mundo da vida" (esfera de reconhecimento intersubjetivo e de um agir destituído de dominação) parecem ser
centrais para um autor como Habermas, e para muitos ideólogos dos partidos da ordem do Brasil, para
preservar a esfera democrática nas sociedades atuais, a questão, ligada à estrutura objetiva da sociabilidade
capitalista, traz à tona o fato de só ser possível se colocar contra a influência econômica nas decisões, por
assim dizer, "políticas", ao se suprimir o próprio capitalismo. Uma forma de sociabilidade mais democrática é
certamente desejável e a dificuldade de tal tarefa não é pouca. E, neste sentido, Habermas e Honneth
passam longe de qualquer defesa cínica da convivência com o ímpeto agressivo da reprodução diuturna do
capital; no entanto, aqueles que se viram como gestores de problemas urgentes de uma sociedade capitalista
hipertardia como o Brasil, tanto o PT quanto o PSDB, se quisessem apresentar resultados imediatos em seus
mandatos da presidência, foram levados a certas "negociações" e "conciliações" justamente com o que há de
mais vil na sociabilidade capitalista (ao contrário do que seria defendido por Habermas, por exemplo). Um fato
importante a se notar, pois, é que longe de se tratar de governos que tiveram a falta de intelecto como marca,
teve-se o apoio de certa nata da intelectualidade brasileira de cada lado - o PSDB, por exemplo, foi apoiado
pelo filósofo José Arthur Giannotti (1930), ao passo que o PT foi apoiado pela filósofa Marilena Chaui (1941).
E, neste sentido, as mudanças efetivas não se dão tanto ao se mudar o modo de conceber determinadas
noções - não se trata sequer de "ressignificá-las"; antes, é necessário transformar efetivamente a própria
realidade.
TANTO O PT QUANTO O PSDB, PARA APRESENTAREM RESULTADOS IMEDIATOS EM SEUS
MANDATOS, SERÃO LEVADOS A NEGOCIAÇÕES E CONCILIAÇÕES COM O QUE HÁ DE MAIS VIL NO
CAPITALISMO.
O ELOGIO à serenidade pode parecer real e efetivamente como o outro lado da necessidade de convivência com uma
potência social cujo ímpeto agressivo já foi
destacado por muitos, e principalmente por Karl
Marx, o capital.
Uma "mudança de paradigma" teve apoio ativo
da intelectualidade nacional. No que é
necessário, novamente, algum cuidado quanto a
esta "mudança" - ela pode muito bem trazer
uma continuidade decisiva - não basta, assim,
"compreender o mundo de diferentes maneiras;
trata-se de transformá-lo", como apontou Marx
na sua XI tese sobre Feuerbach. Para que se A democracia brasileira, desde seu início, convive em conciliação com
explicite a coisa por outro ângulo: no fundo, aqueles que apoiaram o golpe em 1964 e que, se não contemplados
também o "elogio à serenidade", de um seus interesses financeiros, apoiam-no também hoje.
Norberto Bobbio, tem por trás de si como pressuposto a mesma assunção: afinal de contas, a sociabilidade
capitalista não é algo a ser colocado em questão, tratando-se de um dado ineliminável, a ser "compreendido
de maneira diferente". E isto tem consequências grandes para o pensamento crítico, é preciso que se diga.
Os vernizes de serenidade, de tolerância e todas as virtudes liberais imagináveis, para que se use a dicção
de Marx sobre Georg Hegel (1770-1831), ao final, poderiam ter uma função - mesmo que inconsciente nefasta: a de "tornar sublime o existente". Se Marx ainda é atual como querem Harvey e outros, na medida
mesma em que se coloca "debaixo do tapete" uma questão pungente, nada mais se faz que "dourar a pílula".
Neste sentido, tal "mudança de paradigma" pode ter errado o alvo de modo decisivo, dando ensejo
justamente à permanência daquilo que parecia não ser mais um problema decisivo, mas que, ao final, pode
ser central em diversos sentidos, a própria posição anticapitalista.
Quando se percebe que, no Brasil, ao final, para que se atue em meio à política institucional dos partidos da
ordem foi necessário "dourar a pílula" e supor como dado imutável justamente o que tem que ser
questionado, a "crítica" corre o sério risco de se colocar de modo bastante paradoxal: como aquilo que Paulo
Eduardo Arantes (1942) chamou - justamente ao analisar o pensamento uspiano de um Giannotti, mas
também de outros - de "crítica a favor". Por vezes, justamente ao se criticar o desenvolvimento de aspectos
pontuais da sociabilidade capitalista (e não o capitalismo como tal), vem-se a legitimar o último, e mesmo as
consequências do último, de modo que o discurso crítico, neste ponto, aparece como essencialmente
esvaziado: novamente, correndo-se o risco de ser bastante rasteiro, pode-se dizer que se criticam os
sintomas sem se buscar um modo de curar o paciente da doença. Uma "esquerda" que atue deste modo
somente poderia se conformar como uma "esquerda para o capital", como disse Eurelino Coelho. O cenário
do PSDB - social-democrata, no nome - também é bastante preocupante, dado que o partido não só é levado
à defesa de programas de governo que se colocam contra qualquer conquista de uma social--democracia
digna de tal nome; ele também é levado a se apoiar nas camadas mais conservadoras (e raivosas) da
sociedade brasileira. Se antes se buscava o apoio dos Giannottis, hoje, parece ser mais importante o apoio
daqueles que vociferam contra qualquer programa social e que tendem a ter posições políticas claramente à
direita (inclusive, demonstrando simpatias por um golpe militar ou por qualquer coisa que vá retirar "a
esquerda" do poder).
O QUADRO POLÍTICO BRASILEIRO MANTÉM INTACTAS AS BASES E OS PROTAGONISTAS SOCIAIS
QUE APARECERAM ATÉ ENTÃO AO LADO DAQUELES QUE DERAM APOIO À DITADURA MILITAR
RESQUÍCIOS DA DITADURA
Diante disso, deve-se dizer: o cenário político brasileiro atual, até certo ponto, é absolutamente vergonhoso depois de uma transição "lenta, gradual e segura", elege-se, sem eleição direta, Tancredo Neves - um
presidente que não assume e em seu lugar aparece José Sarney, um tradicional político do partido de apoio à
ditadura. Depois, com a primeira eleição direta da "nova república" é eleito Fernando Collor de Mello, outro
político cuja família era intimamente ligada à preservação da ditadura militar - a "nova república" já nasce
velha, pois. Depois disso, em 1994, parte da nata da intelectualidade brasileira, representada na "esquerda"
do MDB (conformada no PSDB dos anos 1990) faz justamente aquilo que os "liberais" (economicamente)
saídos da ARENA, partido de apoio à ditadura, não conseguiram dar conta no mandato inacabado de Collor;
depois disso, de 2002 até 2014, o PT, é verdade que com algumas importantes "conquistas" (que podem se
perder com os "ajustes" de hoje...) no aspecto social, mantém intactas as bases mesmas e os mesmos
protagonistas sociais que apareceram até então ao lado daqueles que deram apoio, inclusive, à ditadura
militar no passado. Neste sentido, a conciliação permeia a história política recente na medida em que se tem
uma reconciliação com o velho, representado pelas forças sociais retrógradas que noutro momento
derrubaram o presidente João Goulart.
As consequências da "volta dos que não foram"
Colocada a questão nestes termos, é preciso que se reconheça uma dupla irracionalidade: de um lado, uma
"esquerda" que vem a ter como palavra de ordem "não vai ter golpe" já admite que, ao final, na melhor das
hipóteses, as coisas vão continuar como estão, sendo seu potencial crítico extirpado. Doutro lado, a "volta
dos que não foram", coloca-se de modo absolutamente animalesco, nas ruas, com demonstrações racistas,
homofóbicas e com um discurso contrário a qualquer posição, não só à esquerda, mas minimamente
tolerante - eis que o próprio discurso liberal é visto como "comunista".
“Ou seja, a rigor, a “redemocratização” nem sequer retirou de cena o espectro do “golpe” o qual - tal qual as
vicissitudes inerentes à sociabilidade capitalista - foi colocado, por assim dizer, “ debaixo do tapete",
esperando-se que, por si, nunca mais voltasse à cena política; no cenário atual é claro tal espectro que, com
a "bancada da bala", aparece desavergonhadamente em deputados e, inclusive, em algumas figuras públicas.
O ridículo da situação é evidente na medida em que justamente aqueles que se contrapuseram à "ordem"
pós-1964 (tanto a intelectualidade do PSDB, quanto do PT), ao buscar compor governos com base na
conciliação e na negociação com aqueles mesmos que apoiaram a ditadura militar, acabaram - indiretamente
- propiciando as condições para que soluções negociadas e conciliadoras fossem vistas como sinônimo de
democracia, restando a "democracia radical" (defendida por um autor como Habermas) como algo, ao fim,
inalcançável, e mesmo indesejável: trata-se não
cabe mais "embaixo do tapete".
Neste sentido específico, por mais que se trate
de algo absolutamente brutal, e por mais que
seja vergonhosa, de qualquer ponto de vista, a
defesa de um golpe militar (ou de um "golpe
branco", como ocorrido recentemente no
Paraguai), não é surpreendente que tal dicção
volte à tona.
Em nome da "governabilidade", a Educação sofre cortes gritantes por
Primeiramente,
porque
ela
nunca
foi parte do atual governo, ao passo que o imposto sobre grandes fortunas
acaba se tornando algo não só distante, mas impossível com uma
efetivamente extirpada - a morte natural de
agenda conciliadora.
posições conservadoras e intimamente afinadas
com aquilo de pior na realidade nacional não é algo que possa se dar. Em segundo lugar, a pauta da
esquerda institucional da nova república foi emergencial: diminuir significativamente a miséria (PT), por
exemplo, era algo urgente, e há de se reconhecer que isto realmente se deu nos três primeiros mandatos do
PT no Planalto. Isto, porém, foi conseguido com um elevadíssimo custo: alianças espúrias feitas em nome da
"governabilidade" confluíram com a perda do destaque dado aos movimentos sociais e aos próprios
trabalhadores, de tal feita que o Partido dos Trabalhadores começa a deixar de ter sua base de apoio nos
próprios trabalhadores. Mesmo os programas sociais do governo não reverberam no incremento de direitos trata-se de programas de governo, conseguidos, também, mediante acordos espúrios, e a manutenção
destes acordos não só é custosa; dependendo da conjuntura econômica (que tem o "mercado mundial" como
principal ator), só pode ser mantida com concessões tremendas justamente nos campos que foram, e
teoricamente ainda são, os mais valorizados pela esquerda.
foram, e teoricamente ainda são, os mais valorizados
pela esquerda. esquerda.
A "esquerda" institucional, pois, deixa de lado os
próprios programas da esquerda e vê-se
realizando o programa (neo)liberal com um
ajuste fiscal que não teme cortar as verbas da
Educação. Neste sentido, a estratégia "realista"
da conciliação e das reformas graduais leva a
seu oposto. Na medida mesma em que se
colocaram questões pungentes "debaixo do Que fique claro: a "corrupção" disseminada não é fruto senão daquilo que
tapete", elas cobram a conta hoje, de modo
"resta da ditadura"
brutal: tanto a busca de uma democracia de
massas (que não rompesse com o capitalismo) quanto a manutenção da arquitetura institucional da ditadura
militar (como no caso da militarização da polícia, por exemplo, e do aparato jurídico, como mostrou Gilberto
Bercovici) se apresentam na medida em que, de um lado, o "mercado" não só é personificado, é muito mais
considerado que movimentos sociais, dando as rédeas da política econômica do governo. Doutro lado, cresce
a "bancada da bala" e as posições conservadoras em todos os campos, as quais, coligadas com diversos
tipos de intolerância, não têm vergonha alguma em dizer para todos que queiram, e não queiram ouvir, que
há de se render homenagens à ditadura militar, aos torturadores, tendo-se bandeiras como aquelas dos
direitos humanos como algo a ser aviltado e extirpado.
A serenidade, pois, neste contexto, torna-se seu oposto, sendo impossível contar com qualquer tipo de
tolerância. "Negociar" neste terreno não só é uma tarefa inglória: talvez, seja efetivamente fadada ao
fracasso, sendo a conciliação um rendimento àquilo demais vil.
SERENIDADE E AGRESSÃO
A manutenção mesma das bases da sociedade capitalista nos moldes brasileiros, bem como da organização
política da "nova" república, supostamente defendidos em nome da serenidade e das soluções que não
fossem "radicais", tem como consequência o fortalecimento daquilo que foi colocado "debaixo do tapete" na
"redemocratização", e que aparece com toda a força hoje, quando a "era dos direitos" é conciliada com o
ataque aos direitos trabalhistas ao passo que o "elogio à serenidade", e mesmo a tolerância, são confundidos
com nada menos que "o comunismo" em certas camadas mais virulentas e raivosas dos conservadores.
Neste sentido, se uma crítica ao capitalismo mesmo foi vista como algo "utópico", talvez seja muito mais
"utópico" se acreditar no poder da conciliação e da negociação; assim, talvez possa ser o caso de se voltar
àquele que tratou com mais cuidado justamente daquilo que, o desenvolvimento social mesmo mostrou, não
pode ser colocado "embaixo do tapete", Karl Marx. Isto se dá, não só porque, talvez, trate-se do autor mais
mal lido na tradição filosófica ocidental; o autor ganha relevo na medida em que, como mostraram István
Mészáros (1930) e David Harvey, por caminhos distintos, mas convergentes, a existência e reprodução
mesma da sociedade capitalista, hoje, trazem consigo aquilo de mais grotesco na sociabilidade
contemporânea. Para estes autores, tal qual em Marx, formas distintas de agressão e de opressão não são
simplesmente algum acidente na história do capitalismo: são o modo mesmo de expressão deste sistema
social, que tem como certidão de nascimento a "acumulação originária" realizada principalmente com os
cercamentos (expropriação sangrenta dos camponeses de suas terras) e como atestado de sua reprodução
diuturna aquilo que Harvey chamou de "acumulação por espoliação", realizada tanto por meio de guerras
como de privatizações de serviços básicos e tantas outras maravilhas do (neo) liberalismo.
Dificilmente seria possível negar que os ânimos estão à flor da pele no Brasil contemporâneo. Isso, porém,
não significa necessariamente que exista uma polarização clara no campo da política institucional - antes,
justamente este acirramento de ânimos pode advir da falência do projeto conciliador da nova república,
desenvolvida a partir da transição "lenta, gradual e segura". O modo pelo qual a questão se coloca
(principalmente na mídia oligopolizada brasileira) passa longe de esclarecer as raízes da questão. Hoje, no
Brasil, a serenidade de outrora dá lugar ao discurso inflamado, convertendo-se em uma crítica ao "tamanho
do Estado" e à "ineficácia do Estado", tendo-se por claro que, com aquilo que fora colocado "debaixo do
tapete", há uma defesa exacerbada de uma nova rodada de "acumulação por espoliação" (e não é por acaso
que a "indignação seletiva" volta-se contra a Petrobras). Até mesmo o "combate à corrupção" não é possível
com a conciliação e com a negociação - muito pelo contrário: estas últimas que, mediante a preservação
tanto da égide do capital (agora, bastante financeirizado) quanto daquilo que "resta da ditadura", levam à
necessidade desta na política institucional. Neste sentido, aquilo colocado "debaixo do tapete" cobra um alto
preço também quando parece haver certo curto-circuito entre a "volta dos que não foram", a reprodução
diuturna do capital e o financiamento (que é um investimento) privado e empresarial das campanhas políticas.
Até certo ponto, dizer que uma esfera pública que tem estas bases é realmente democrática só pode ser uma
piada, de muito mau gosto, diga-se de passagem.
O discurso verborrágico que vem ganhando força é justamente o discurso a favor da manutenção destas
vicissitudes. E, dado que a conciliação já não se mostra mais possível, é preciso se dizer que um programa
contra estes vícios somente é possível com uma posição decidida contra "o que resta da ditadura", o que tem
como consequência uma posição firme contra a própria conformação do capitalismo brasileiro. Certamente
pode-se falar de crise hoje, não há dúvidas. Isto, porém, não se dá tanto nos termos propagandeados pela
mídia oligopolizada, quanto na medida em que esta traz consigo uma situação insustentável dentro das
estruturas vigentes (tanto econômicas quanto políticas). Tratar desta questão no Brasil certamente é bastante
difícil, dado que na crise, "verificam-se os fenômenos patológicos mais variados".1 Por aqui, certamente,
verificamos estes fenômenos, expressos na "volta dos que não foram"; no entanto, aqui "o velho" nem sequer
morreu, e parece não estar disposto a qualquer espécie de eutanásia. O "novo", por sua vez, tratado por
Antônio Gramsci (1891-1937), só pode nascer com uma posição decidida contra a ordem presente, e, neste
sentido, não é tanto preciso uma "mudança de paradigma", mas uma crítica resoluta à própria conformação
do capitalismo, como aquela feita por Karl Marx.
1
GRAMSCI, 2002, pág. 184
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