Nietzsche e a Música

Transcrição

Nietzsche e a Música
ROSA MARIA DIAS
Nietzsche
e a Música
- Série Diversos -
Direção
JAYME SALOMÃO
Imago
INTRODUÇÃO
"A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa
f
�anc:ati�a, �m eXI1io"1• �ss� frase de Nietzsche resume toda a �-i'!l�r���
.
_
_
1mportane1a que ele atnbm a mus�ca para o p�nsamento � para 'la.
a vida. Segundo Curt Janz, se reumssemos os hvros O Nasczmento _,,....,�-/ u­
da Tragédia no Espírito da Milsica, Richard Wa{!;Yler em Bayreuth, O ç 1/1).!' J
�r
Caso Wa{!;Yler e Nietzsche contra Wa{!;Yler, as anotações e as cartas
em que Nietzsche trata da música, teríamos dois volumes consi­
deráveis sobre.a arte 111usical2• Tal observação por si só justifica­
ria uma abordagem da concepção nietzschiana da música. _No
entanto, mais que uma numerosa bibliografia do próprio Nietzs­ JJj
che sobre o tema, o ��!imJJlQ P.ª-r.ªiªz�r.�-�J�.!mb.alho foi enten­
çier que qualq�er uma de s.uas..idéiassobre am1ísica levaria.sem
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.<it!��f:l, élo âlnago.de .S.ell.pensament:Q.
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.
Para seguir essa trajetória e acompanhar esse pensador,
nascido, como ele mesmo diz, das "entranhas da música" e que
afirma m<,�.nter com as pessoas e as coisas um convívio constituído de "inconscientes relações musicais", fui buscar, em sua
estética musical, ·ª r.elª�-.2. m:ús�ca _e_ paJ.a_vra _s�l:>s>xg_i�.'!g_t:J:_.à.
_gues�ol):ll!�ic;a_e vida._ Até agora, o que tem sido normalmente
apontado por outros estudiosos de Nietzsche como centro de
sua concepção da arte é a relação arte e vida. Apóiam-se para
isso no próprio filósofo, quando ele diz, em "Ensaio de Autocrí._
11
.
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tica", ter examinado, em O Nascimento da Tragédia, a ciência na
ótica do artista e a arte na ótica da vida3. Já a questão da música
não tem merecid��-<:tte!_lç��: Muit�_cQ!_sa <!!nda..est;!_pQLS.e_
gizer. Essa é a orige�.!!....c!�ss �_(!�t_ !!_�
Quando se relaciona Nietzsche à música, imediatamente a
isso se associa o nome de Wagner. É inegável que, na obra do
filósofo, podem-se identificar os diferentes momentos de seu
relacionamento com o compositor: a fértil amizade, a profunda
admiração e a feroz hostilidade. Mas, evidentemente, não se
pode atribuir a Wagner o fato de Nietzsche ter devotado grande
parte de seu pensamento à música. A razão dessa afirmação está
na parte dedicada a O Caso Wagner, no escrito autobiográfico
Ecce Homo, onde ele escreve: "Para fazer justiça a este trabalho,
é preciso sofrer do destino da música como de uma ferida
aberta. - De que sofro, quando sofro do destino da música? Do
fato de a música ter sido despojada de seu caráter afirmativo e
transfigurador do mundo, de ser música da décadence e não mais
a flauta de Dioniso . . . Supondo, porém, que se sinta a causa da·
música de tal modo como sua própria causa, como a história do
próprio sofrimento, então se verá este escrito como pleno de
deferência e sobremaneira suave"4•
Como vemos, a música sempre ocupou um lugar central na
estética de Nietzsche que, durante toda a sua vida, buscou I
"'
.�sempre desmascarar qualquer subterfúgio que pudesse desviá-la
' de sua finalidade: a afirmação da existência.
Para abordar tal tema este estudo se dividirá em duas partes:
Música e Tragédia, Música e Drama.
trata das relações música/palavra e
música/vida na tragédia grega. Nietzsche reinterpreta os gregos
a partir dos "impulsos artíst!çg�--<!ª-�_atureza", o apolíneo e o
çlionisíac9. São dois impulsos antagônicos, duas faculdades fun­
damentais do homem: a imaginação figurativa, que gera as artes
da aparência (as palavras poéticas e as artes plásticas), e a
potência emocional, que dá voz e vez à música. Partindo da
descoberta do dionisíaco no cerne da civilização grega, Nietzs­
che nega que o conceito de serenidade, como pensavam os
Música e Tragédia
u�t
12
helenistas germantcos, possa dar conta de todas as artes ali
desenvolvidas. A música, por espelhar o querer e não os fenô­
menos, não pode estar incluída nessa categoria, que tem como
parâmetro a beleza.
.Interessado em apresentar a união da música e palavra na {}J
_ �_da t�agédia: a
tragédia ática, Nietzsch� a� isa _QS_p�ecur
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n�ssas n:amfe �ta�oes
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Identtfi
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a
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a tragedta: a
ongem
da
artísticas o mesmo mecamsmo que
música, gerando as imagens e as palavras, e a linguagem, procurando imitar a música. Na canção popular, a melodia é o espelho
musical do mundo, as estrofes produzem uma profusão de
imagens e as palavras procuram imitar a música.
_ _«:_f>�'!YE�-na canção popula!J
Partindo da uni�o de !!l�i�a
Nietzsche afirm�_q_ll.� ª _trªgÇ_<:1i.<t gregat�m ���_nascime!t} o no
-���1.��-���úsica._A princípio um coro, um "cofre vivo de
ressonâncias", que "incessantemente se descarrega em um mun­
do apolíneo de imagens"\ em seguida, com o aparecimento em
cena do ator que representa a figura vislumbrada pelo coro, a
união mais perfeita de música e palavra. b. mú§ica, ext�r:i...r.Q i�ªº'9.<:>. (iS_imag_e_n�, e as palavras, transpondo eS.�<t�.i!!!<t�ns em sons.
!La-PCit:.tlr d���ª n:lação de..música_e.p.alavra _q.lJe Ni�?:.sçhe
_ ª·-�2-g.édia. Embora a
vê a���po d'!_ afirmªªº-.d.�_#stfm,çiªn
como uma
funcionam
estas
palavras,
das
prescinda
música
ao
indivíduo
o
arrastar
proteção contra o poder que ela tem de
estado de natureza, onde ele perderia a sua individualidade e se
aniquilaria. A música, o mito, a imagem e as palavras, juntos,
permitem ao espectador alegrar-se com o aniquilamento do
herói, pois, através dele, pode experimentar o estado de identi­
ficação com a natureza e pressentir que a vida "no fundo das
coisas, a despeito de toda mudança dos fenômenos, é indestru­
tivelmente poderosa e alegre"6•
Mas essa união perfeita de música e palavra, música e vida
é rompida com a aliança de Eurípides e Sócrates. A ausência de
música, a predominância da palavra, o domínio da dialética
otimista (a 'justa de palavras e argumentos") fazem aparecer na
tragédia um tipo de pensamento que, subordinado à moral,
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nega a vida. Surge o enlace da arte com a ciência, que acredita
poder atingir o âmago da vida, e até mesmo corrigi-la. Chega ao
fim a idade trágica e principia a idade da razão.
A ópera, que surge no século XVI de uma necessidade do
ouvinte de entender as palavras sob o canto, é uma herdeira
desse socratismo. O fato de a palavra ser privilegiada na ópera
é, para Nietzsche, um sintoma de que ela nasceu não de uma
preocupação estética, mas teórico-moral. Um grupo de teóricos
em Florença, pensando recriar o drama musical grego, engen­
dra o recitativo, estilo meio cantado e meio falado que enfatiza
a modulação das palavras. Esses eruditos florentinos, ao subme­
terem a música à palavra, tinham por objetivo reproduzir o que
julgavam ser a linguagem originária da humanidade. Acredita­
vam ter encontrado um antídoto para o pessimismo, trazendo
de volta à cena uma época sonhada, essencialmente idílica, onde
o homem era naturalmente bom e arústico.
Música e Drama- mostra como as relações música/pala­
vra e música/vida ressurgem na análise de Nietzsche sobre o
drama musical wagneriano.
Nietzsche, em Richard Wagner em Bayreuth, reconhece a
música como elemento principal do drama e a palavra como
i'.'?� recurso capaz de expressar a riqueza de sugestões que a música
';!J:t't traz para a cultura moderna. Além disso, percebe que, para criar
"'
uma harmonia perfeita entre mlísica e palavra, Wagner teve de
inventar uma linguagem que se assemelhasse à música e buscar
não apenas a musicalidade das palavras, mas concebê-la em "atos
sensíveis ou visíveis", isto é, pensá-la de forma mítica como o
povo sempre pensou. Segundo Nietzsche, a música de Wagner
é o prenúncio de uma nova cultura, ou melhor, do renascimento
de uma cultura trágica. Iniciando seus ouvintes em algo supra­
pessoal, Wagner, através da música, permite que eles experi­
mentem o estado de alma trágico sem desviá-los da realidade do
mundo, reavivando neles a certeza de uma permanência da vida
e a esperança de um melhor relacionamento entre os homens.
Mas Nietzsche, pouco tempo depois, apresenta uma mu­
dança na avaliação do drama wagneriano. Ronipe com o com14
positor e escreve O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner. Nesses
livros, investiga, na relação música e palavra o tema da significa­
ção, isto é, o fato de a música, em Wagner, querer dizer alguma
coisa, ser um meio e não um fim. Percebe que nos últimos
dramas wagnerianos - período influenciado por Schope­
nhauer, a música não é mais a soberana da cena, mas sim
caudatária de um enredo, cuja finalidade é veicular um sentido
moral, religioso, metafísico. A música, por encontrar sua justifi­
cação no drama e não em si mesma, por estar construída em
torno das noções de virtude, de pureza, de castidade, de reden­
ção, não pode ser pensada verdadeiramente como música sinônimo, para Nietzsche, de afirmação da existência.
Nessas obras a crítica de Nietzsche se coloca não mais na
perspectiva de uma "metafísica da música", mas na de uma
"fi siologia da arte": o drama wagneriano seria doente, porque
não foi gerado a partir de uma plenitude de vida, e sim, de seu
depauperamento. Para Nietzsche, ao contrário, a música é antes
de tudo uma "arte afirmativa" ou de "grande estilo". Nasce da
superabundância; diviniza e intensif ica a totalidade da existên­
cia. Carmem de Bizet é um exemplo dessa arte. Nietzsche apóia-se
nessa obra para lutar contra a tendência �oralizante da música
de Wagner, ou de qualquer outro tipo de música que tenha por
objetivo querer dizer alguma coisa, "fazer falar o sentimento",
ou passar uma mensagem desse ou do outro mundo. Assim, livre
da submissão ao sentido, a música desperta a criação, o poder
de inventar novas possibilidades de viver e de pensar.
***
Serviram de base a esse trabalho: O Nascimento da Tragédia
no Espírito da Música (1871); as conferências da mesma época:
"A Visão Dionisíaca do Mundo", "O Drama Musical Grego",
"Sócrates e a Tragédia"; A Consideração Extemporânea; Richard
Wagner em Bayreuth; O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner.
Como complemento, fragmentos póstumos e trechos de outros
livros de Nietzsche que têm relação direta com o assunto tratado.
15
NOTAS
1 . Nietzsche, Cartas a Peter.Cast, Nice, 15 de janeiro de 1888.
2. Cf. Janz, Curt Paul, "The Form - Content Problem in Friedrich
Nietzsche's Conception of Music", in Nietz.5che's New Seas, org. por
Michael Allen Gillespie e Tracy B. Strong, Chicago, The University
of Chicago Press, 1988: p.97.
3. Nietzsche, "Ensaio de Autocrítica", 2, in O Nascimento da tragédia.
4. Nietzsche, Ecce Homo, "O Caso Wagner", 1 .
5. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 8.
6. Idem, 7.
16
CAPÍTULO
·A
1
p.fÚSICA: A ARTE DIONISÍACA
As idéias de Nietzsche sobre a música encontram-se, em O
Nascimento da Tragédia, inseridas em uma problemática funda­
mental ao seu pensamento, que atravessa toda sua obra, dos
primeiros aos últimos textos: 'ª_r�laçãq_ -ªLte...e vi@�entro
'
g_est�_r:��Q_mú.skaepalavra.
Quatorze anos após a primeira edição de O Nascimento da
Tragédia, Nietzsche acrescenta-lhe um prefácio a que denomina
r
"Ensaio de Autocrítica". Nele, afirma ter, em O Nascimento da� .vv �:z/ú.
Tragédia, ousado pensar a arte na perspectiva da vida1. A questão
�tafí!)içª-���-��-11I!e?" cQlm:;i�� a questão e��tegçjªl
om
·�q_�J!l_Qs.enti®dªY!ç!a}". Avi
"JU!�.
comQ nec_���!!ri---ª-JlrQ
. t�<tda.:rida.,.a,_�i�Q sei!!§1ill9!.!®s.o
.Qm
fenômeg�_tÇ,ti,çQ: - constituem praticamente um Leitmotiv
que acompanha todas as questões fundamentais desse livro. E é
preciso frisar que, quando Nietzsche fala em arte, é sempre na
música que ele pensa3: " só a música colocada ao lado do
mundo pode nos dar uma idéia do que deve ser entendido por
justificação do mundo como fenômeno estético"4•
Arte e vida, música e palavra são pensados em O Nascimento
da Tragédia, principalmente, na perspectiva da tragédia grega,
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23
e a partir do que Nietzsche chama de ".!l!!E}Jl�qs artísticos d�
na!�!
. �-�!!��-_g�po._!í�e.o._ e..� ,c!i.o._!!_isí�co. Contrário aos helenistas
germânicos, tais como Winckelmann6 e Lessing, que derivaram
a arte de um único princípio, tomado como origem rieceuária
de toda obra de arte, Nietzsche fixa seu olhar em duas divinda·
des gregas- Apolo e Dioniso- , reconhecendo nelu a evid6n·
da de dois mundos distintos de arte. A diferença entre a arte
tomou· se
plástica - apolínea - e a música - dionisíaca
clara para ele em sua leitura de Schopenhauer, que, embora nlo
fizesse referência ao simbolismo dos deuses, foi o primeiro a
sugerirqueamúsicafossecompreendidadiferentementeduarteJ
plásticas. Partindo do fato de que a música fala uma língua que
todospodementenderimediatamente,Schopenhauerreconhece
que-�-'! "dife_re_de tod� as_ outras artes p.oLnãQ.ser cópia do..
f�nômeno ou, mais corretamente, da objeti\j<!.ª9e ª=ºequada da
yo"'Ut�de; mas cópia imediata da própria von�de e. portan.ta,
ep:r:_(!senta, para tudo o que é físiço no mundo_...QçQrrelato metafl·
fenômeno a cqisª em sC'.. Como bem observa
�-i.�_?!.P'.lX:� _t9do
Gérard Lebrun em seu artigo "Quem era Dioniso?", Nietzsche
percebe que Schopenhauer inaugura uma nova maneira de se
compreender a música: "Antes de Schopenhauer, pensava-se
que a música nos proporcionasse a mesma espécie de prazer que
as belas formas; julgava-se a música conforme a mesma idéia de
beleza que se usava para as artes plásticas"8• _Assim, a art�-�
e a arte em �-�l_fyncf.arn.:�IJtaVaii!::.�Ç em serenidade, m�didª ..S:....
Qª=ffil_Quja.
A compreensão de Schopenhauer, importante para toda a
estética musical, também é seguida por Wagner, que, no seu
Beethoven9, insiste em que se deva apreciar a música segundo
princípios bem diversos dos que costumam ser aplicados às artes
plásticas. A música, pelo seu caráter extático, libera o.hom�m.
! _I!li!l:<l:�_Ç?
!��pQs.a.riª-I.!!e.�-�e _<f.� Yontad� jndividllill- e o Q._��a. <f.?
pela nªture7.:.a; un1a emoç�o desmesurada se apodera de todo o_
:.s.êiíti.õlêniOs.õiiScuros que não podem
seu_�er e desperta .ncl.ê
.
�er expliçªdos _pela _ça.t�gsuj-ª.Sk.b.ek�.
A caracterização da música como arte diferente de todas as
-
.
-
- .
..
- - -----· ··
.
..
.
24
....
outras constitui para Nietzsche um talismã que lhe permite
estudar a origem da tragédia ática. Mas por que sua preocupação
com essa arte? Certamente não é o desejo de erudição que move
sua pesquisa. Nietzsche sempre usou a filologia como instru­
mento para pensar o presente e é em função do presente que
ele aborda os autores trágicos. O fato de Wagner considerar-se
herdeiro de Ésquilo10 e de a ópera aparecer como desenvolvi­
mento da tragédia grega foi suficiente para reacender em Nietzs­
che um antigo interesse pela tragédia, que já havia se
manifestado quando estudara Édipo Rei, no colégio de Pforta.
Em "Ensaio de Autocrítica", ele relembra a série de ques­
tionamentos que deram origem a O Nascimento da Tragédia:
"Nascimento da tragédia no espírito da música. Na música?
Música e tragédia? Gregos e a música de tragédia? Gregos e a
obra de arte do pessimismo? A raça mais bem sucedida de
homens nascidos até então, a mais bela, a mais invejada, a mais
apta a nos seduzir em favor da vida- os gregos- como? Será
que logo eles tiveram necessidade da tragédia? Mais ainda - da
arte? Para que - arte grega?... "11 Teriam razão os helenistas
germânicos- Winckelmann, Goethe,Schiller- , ao interpretara
arte grega a partir do conceito de "serenidade"? Será de fato que '
os gregos produziram belas obras porque eram eles mesmos belos,
harmoniosos e serenos, ou os helenistas alemães projetaram sobre
a cultura grega sua euforia racionalista?
Meditando sobre essas questões, desfazendo pedra por
pedra a "montanha mágica do Olimpo", símbolo até então da
cultura apolínea, Nietzsche encontra, ao lado dessa serenidade,
e em oposição a ela, desmesura e violenta crueldade. Oim.n'!Jillt
·ªP-olipeº criador.da bela !l...P-ªrênciadomun..dQ.
_ doJ}Jimp....o...esfcra.
qe beleza onde os gr�gos yêem suas imagen.u.efletid�....colllQ..em_
� espelho, coe:l'istia..com um ou.tr.oimpulso, o dionisíaçQ,_q.u.e
fipontava para'l:lrn.�_re;;tlid!!.de.maisJ.undamentai...de..d.or e exces­
�o, em dilaceraut..e. .contradição ..consigo própt:ia_.r�elando a
par, te obscura eabsm:dadaexistênci.a. Para esconder esse mun­
do de emoções contraditórias, terrível e sedutor, os gregos
criaram o mundo apolíneo, um jogo de espelhos da beleza, em
__
25
que viam os deuses como seus belos reflexos12• Por meio dessa
miragem, criaram uma "visão libertadora", lutaram contra o
talento para o sofrimento, ·correlato ao talento artístico, e abis­
maram-se na contemplação da beleza. Assim, permaneceram
calmos e serenos.
Ter encontrado o qjQiti§Í�fQ_I_!o ;%mago da civilizaçãoapolí­
nea leva Nietzs_s.h�"�Q.ÇQf.ª.Ç�o�.c:la tt:ag��!.�_�J]>O!"_!,antQtW..JW.ea
o;;,to�s importante de sua filosofia da música é o desen­
volvimento dos aspectos dionisíaco e apolíneo na arte grega,
considerados como impulsos antagônicos, como duas faculda­
des fundamentais do homem: a imaginação figurativa, que
produz as artes da imagem - a esculturà, a pintura e parte da
poesia - e a potência emocional, que encontra sua voz na lingua­
gem musical. Cada um desses impulsos manifesta-se na vida huma­
na por meio de estados fisiológicos, o sonho e a embriaguez, que
se opõem, como o apolíneo e o dionisíaco. O sonho e a embriawez
são çg_n<;liç_õe.s.n&9���á.,rias para que a arte s�. prgqy�. Por isso, o
;;:tis ta, sem entrar em um desses estados, não pode criar.
O §.onh
.
Q_�"ª"fgr.ça_art!sti_çªJll!����-P!:oj��-�
z
!EQ<i!l . g_ .c:euár.ig .d� .formas .e figuras Apala é..AJlome grego
l?�!a. a fac:\ll<lade de sonhar� é o princípio dç Jy_z, _q_ue fãZ sllfiir
Q_�\111<.!9 _a_part;ir_go c�os orig:ip.ciriç; �- o priqcíp�Q,2f}ienador
g_l!�.tend<tc:lwna.do.as. forças.cegas.da natureza. SJJbmete-as a.
YJ.l.l�.Jeg:ra. Símbolo de toda aparência, de toda energia plástica,
que se expressa em formas individuais, b,pQ}ç __é._o�magníficQ
mg9.m divi,no _do prinçipium individu_q,tiovi$:�14• Dá forma às
coisas, delimitando-as com contornos precisos, fixando seu ca­
ráter distintivo e determinando, no conjunto, sua função, seu
sentido individual. Modelando o movimento de todo elemento
vital, imprimindo a cada um a cadência- a forma do tempo­
ele impõe ao devir uma lei, uma medida. Apolo é também o deus
da serenidade que, tendo superado o terror instintivo em face da
vida, domina-a com um olhar lúcido e sereno: "Esse é o verdadeiro
propósitoestéticodeApolo,sobcujonomereunimostodasaquelas
inumeráveis ilusões da bela aparência que a cada instante tomam
Op
..
•.
..
• .
..
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..
26
a existência digna de ser vivida e nos incitam a viver o instante
seguinte"15•
já.a.
..emhriaguez._
fi�it� � o i�di_Yi
al é��des!r�R�dc;tç<b,,sWOie o
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j!Jjnci.p.i1J.mi.rul�7,JJ�rasga-se.o..veu
-ªPªrc::ç�_[J!ill�Lr�alidade.mais fundam.entilJ;_a_ypJã.Q. do homem
..
ç_QinA..D.a.ture�a...
_
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"/
""',JJ,#t
Sob o mundo das aparências, das formas, da beleza, da justa
medida está o espaço de Dioniso- .o nome grego para o êxtase.
Dioniso é o deus do caos, da desmesura, da disformidade, da
fúria sexual e do fluxo da vida; é o deus da fecundidade da terra
e da noite criadora do som16; é o deus da música, a arte universal,
mãe de todas as artes. Nascido da fome e da dor, perseguido e
dilacerado pelos deuses hostis, Dioniso renasce a cada primave­
ra, e aí cria e espalha a alegria.
Despertadas as emoções dionisíacas provocadas por bebi­
ctas narcóticas ou pelo desencadeamento dos instintos primave• 17, o hornem, em extase, sente que todas as barreiras entre ele
ns
e os outros homens estão rompidas, que todas as formas voltam
a ser reabsorvidas pela unidade mais originária e fundamental
- o "uno primordial" (das Ur-Eine)- Qlx.i�.
ld�JL(U� te 1Ug:.i!...L12M.il.
A i!ll�!l�j_çl-ªg�. Nesse mundo das emoções inconscientes, que
abole a subjetividade, o homem perde a consciência de si e se
vê ao mesmo tempo no mundo da harmonia e da desarmonia,
da consonância e da dissonância, do prazer e da dor, da cons­
trução e da destruição, da vida e da morte.
visto o dionisíaco ao lado do apolíneo na arte grega
!J
.
posstbdtta a Ntetzsche formular uma "hipótese metafísica", isto o&
M, )c,
&nao apenas pensar a, arte como a ativt
. 'dad<:humana que se cuft
encarna em obras,. mas apresentá-la corno algo que� encontl}l_""�Ç e �'\
.u'!OMt
na esfera da natureza.
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ou o fim de toda efêl!}_�r._ª-i_ndividMª"lidade. t um "ser_ge naturªª-.
ser _p.en_sadn__�Qill.(U:�P-�QJ! ªndo �IJ.Ui
�smq_�-!I.!!P-ª�sjyelgy:p_aÇífico, ma�_qt,�_ç_tnu: em si uma guerra.
sem limites. Vivendo em constante contradição consigo mesmo ,
_
em incessante dor, esse ser não pode permanecer por muito
tempo indeterminado. Uma força vinda dele mesmo obriga.lóe
fragmentar-se; a multiplicar-se em seres finitos, a fixar-se :em
imagens e a produzir o mundo das formas individuam, da
•. '!;,,,
realidade fenomênica19•
O mundo fenomênico, como resultado desse movi�
do querer, traz em si as marcas da dor, do despedaçament6lab
uno primordial e, para se libertar dessa dor, faz um s
O
movimento, dessa vez estético, reproduzindo o movimento'litl•
cial que a vontade realizou em direção à aparência. Desseú1tlmb
emana a "aparência da aparência" ou a "bela aparêndll�:1 do
sonho, um bálsamo para o querer, um remédio para li�lo
momentaneamente da dor pelo seu desmembramento em'mdi·
víduos.
É dessa maneira que Nietzsche, no capítulo IV de O Nasci­
mento da Tragédia, explícita o processo transfigurador do uno
primordial, que a "natureza artista" realiza por meio do sonho
para criar a bela aparência. Esse não é, porém, nem o único,
nem o mais fundamental estado fisiológico pelo qual a natureza
realiza seus impulsos artísticos. 9 mais �S.S.�!!�*"-�-ª-!!mbriaguez.,
As aparências só adquirem sentido quando relacionadas ao
mundo dionisíaco que lhes é metafisicamente anterior: "Na
embriaguez dionisíaca, no impetuoso percurso de todas as
escalas anímicas durante as excitações narcóticas ou no desen­
cadeamento dos impulsos primaveris, a natureza�0 se manifesta
em sua força mais poderosa: ela reúne novamente os indivíduos
e faz com que sintam como uma só unidade, de tal modo que o
principium individuationis aparece como um estado prolongado
de fraqueza da vontade. Quanto lJI.<liulelülitada estiver _a vonta·
dç_,P.l�S o todq_��.ff_'!g!!!e.!lJ,<!I.áe.m p.artesisoladas; quanto mais.
Q.iru!!_yídu.
Q for_�QÍ�ta f:!_ élr.bitrá,rio, mais f_I:ac() ser� s_eu ()_rganis·
J1lQ., Por isso, em tais est.ados, apresenta-se um traço sentimental
���ti;�,;--g�-�_Jiãq�:R_º-�-
�
28
da vontade, um 'soluço da criatura' pelas coisas perdidas; no
prazer supremo, ressoa o grito de espanto, os gemidos nostálgi­
cos de uma perda irreparável. A natureza exuberante celebra,
·ao mesmo tempo, suas saturnais e suas exéquias. ( . .. ) As dores
despertam prazer, ojúbilo arranca do peito gritos cheios de dor.
O deus, o liberador, desatou, em torno dele, todas as amarras,
a tudo transformou"21•
Na embriaguez, o processo pelo qual a vontade satisfaz seus.
impulsos artísticos é o inverso do movimento de produção das
aparências. Com o colapso do principium individuationis pela
intensificação das emoções dionisíacas, tudo volta a seu ponto
de origem, à unidade primeira. ÇQ�_!!!Qrte_ou aniquilação _das
!!l!lhid.ualidades.-o..hQw� re!Q__ma...llil..�g.Q�ral, recQ_n!;_i­
�ia-seçqm_ ª º"ªlt,�I�· Essa reunificação gera um prazer supre­
mo, um êxtase delicioso que ascende desde o íntimo de seu ser
e mesmo da natureza, ressoando em "gritos de espanto" e
"gemidos nostálgicos". Com cantos e danças, esse ser entusias­
mado, possuído por Dioniso, manifesta seu júbilo. Dá voz e
movimento à natureza. Voz e movimento, que não se acrescen­
tam a ela como algo artificial, mas parecem vir do seu âmago:
"Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro
de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar,
e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus
gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam
e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo
de sobrenatural: ele se sente deus, caminha tão extasiado e
enlevado, como vira em sonhos os deuses caminharem. O
homem não é mais artista, tomou-se obra de arte: a força
artística de toda natureza, para a deliciosa satisfação do uno
primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez"22.
Mas é preciso observar que, na Grécia dionisíaca, essa
dilaceração do principium individuationis tornou-se pela primei­
ra vez um fenômeno artístico23. Há nos festivais greco- orgiásti­
cos uma ética diferente da dos bárbaros orgíacos. A diferença
está na introdução do caráter apolíneo, ou seja, na "idealização
da orgia". Enquanto nos bárbaros o dionisíaco tomava o aspecto
29
de uma sensualidade desenfreada e de uma crueldade ritual
exagerada, nos gregos, esse Dioniso selvagem, que nos poemas
de Homero não tinha <Ydireito de sentar-se à mesa com os deuses
do Olimpo, espiritualiza-se e toma-se o gênio da arte. Apolo
impôs os laços da beleza ao deus poderoso, refreou o que havia
de irracionalmente natural em Dioniso - a mistura da volúpia
e da crueldade - , retirou-lhe das mãos as armas mortíferas, ao
ensinar-lhe a medida.
O jogo
�) �
)
do artista
__
Ao apresentar sua "metafísica de artista", Nietzsche, no
primeiro momento de sua análise, não faz menção ao artista
humano. Apolíneo e dionisíaco são impulsos artísticos que
emergem do seio da natureza independentemente da mediação
do artista. A perfeição do mundo dos sonhos existe sem que seja
necessária a cultura artística do indivíduo, e a realidade da
embriaguez existe, sem levar em conta o próprio indivíduo, já
que ele se encontra aniquilado, embora redimido num senti­
mento místico de unidade.
E��- se !orl],�_lLID-ª- atjvidade do ser humano é_
��':1��-�
.Efecis���--�jg<;lh':i..d\l.Q_dê forma ao sonho e �
como isso se fará?Pelaimitaçã.a:.4• O artista é um imitador que,
�m estado IMi�� ga ou com o sonho ou com a embriaguez
- ou no caso do artista trágico, com ambos ao mesmo tempo.
Porém, essa imitação não deve ser entendida como reprodução
ou cópia da natureza, mas como .imL�Q..g�m processo da
�ª..2. <?E �<!. g() movim�nto q!!� rlª-.teali?:ª p_ªg_ç_Ijªr ()1!
!:_ÇPrg�f..� ªparêi!_C��L()_U_d()mOvimentO que faz par4rt.ab::
�_()rve:r_:g}!g_e._s!n.tir as aparê:r1ciª�:, "A_Qi?f(], de_fpj_e_e_q_i!l:di'CJJd.'ttQ são
u�a �epetição dÇ?_p_roces�_grjgj_n._4rio_ d.�_Qn.d�_.su.:rg:i.Y Q J!!!!!! doz..de
alguma forma �!!Lm;l.tl.de onda.nª_Q.J!ç\ª:'25.
Para explicar o jogo da arte com os sonhos26, Nietzsche, em
"A Visão Dionisíaca do Mundo", estabelece a seguinte diferença:
enquanto o homem que sonha joga com a realidade, com a
-;jo
.. . .
.
-
vigHia, o artista joga com o sonho. A bela aparência do mundo
dos sonhos, em cuja produção todo homem é um artista perfei­
to, é a condição prévia de toda arte da imagem, seja ela pintura,
escultura ou poesia épica: "A estátua, bloco de mármore, é uma
coisa muito real, mas a realidade da estátua, como forma onírica
é a pessoa viva do deus. Enquanto a estátua, como produto da
imaginação, paira diante dos olhos do artista, ele ainda joga com
a realidade; quando traduz essa imagem em mármore, ele joga
com o sonho"27.
��g:ttªntoL no _es�dg_ª,RQl!I]..�Ql-Q..h..Qm�xnjQga coma reali�
�<_lge, _I].()_ �!�do_<;llim.i§í.iJSQ,._pu. g�--�m!niªgnr;�;, d�jQK<U:;.QnL-ª
vontade ou com_�.P!"QEfͪ.nªmrt:!�<_lql1� �C'!!e s� r�y�lª: "Que lhe
importam de agora em diante imagens e estátuas? O homem
não é mais artista; ele se tomou obra de arte, ele erra em êxtase
e exaltação, como em sonho havia visto errarem os deuses"28.
ri
a
j gº a
(!?; f:O!!!;-<l.h-<?!n�El�
? QJ· $o
í.--� --�a-- -cri
--�ç_
��!!!!?naguez... O
servidor de Dioniso deve estar em estado de embriaguez e ao
mesmo tempo permanecer postado atrás de si como um obser­
vador. Não é na alternância entre lucidez e embriaguez, mas em
sua simultaneidade, que se encontra o estado dionisíaco"29• O
artista dionisíaco não se encontra no mesmo estado de identi­
dade com a natureza como o homem embriagado. O artista
dionisíaco não é, como diz Platão, aquele que cria quando está
ébrio, mas o que joga com a embriaguez. .N.�!ª�<:IK9.-..!!e�-��
ia
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qu.e.s.e.intr:oduz,
�.m art�.. É o momento em que
11
l�t,/;�têft1
:--:iwtJ2: J-.
Apolo vem em socorro do artista, distinguindo-o, envolvendo-o )f'
no véu da ilusão, salvando-o do desejo de perder-se na vontade '
e de aniquilar-se no devir dionisíaco.
Nesse estado de emoção, o artista dionisíaco é levado ao
"paroxismo de suas faculdades simbólicas", a natureza o força a
se exprimir, a dominar o caos da vontade, que ainda não se
31
·
/
1!
bolos
novo mundo de sím
ura 30, e a criar um
fig
em
ou
aca.
orm
nisí
dio
transf
ubstância da arte
lingt,ta_gem e a s
da palavra
el
que constituirá a
nív
no
olos não está
símb
de
do
mun
Esse novo
afinidade
nal, mas tem uma
não é convencio
em,
mag
i
à mími­
da
de
ou
Ele correspon
lidade que simboliza.
rea
a
m
deve
co
l
za
natura
a da nature
"Agora a essênci
a:
sic
mú
à
,
se
nça
ca, à da
undo de símbolos
ólica; um novo m
mb
si
via
r
po
nas o sim­
expressar-se
cor poral, não ape
o o simbolismo
tod
io,
ssár
njunto
ece
n
o
faz
palavras, mas co
dos semblantes, das
,
ios
láb
dos
ntos
mo
me
bolis
bros em movi
bailantes dos mem
s
esto
g
os
os
tod
ritmo,
inteiro,
música
s simbólicas da
ça
for
as
m
bé
tuosidade
rítmicos. Tam
súbito com impe
onia - crescem
as forças
as
dinâmica e harm
deamento de tod
estado de desenca
se
es
gir
grau
atin
a
esse
Par
chegado a
e o homem tenha
qu
ciso
pre
é
as,
simbólic
simbolicamente
procura exprimir-se
que
si
de
nto
me
de despoja
por essas forças"31•
-
.
música dionisíaca
Música apolínea e
1
rdina­
a e palavra, subo
r a união de músic
fazer
Antes de investiga
de
ga, gostaria
vida na tragédia gre
e
sica
mú
ção
rela
da à
do, no ato de criação
che, por ter percebi
tzs
Nie
.
ção
erva
e por ter
uma obs
elemento apolíneo,
co, a lucidez, um
Dioniso
o
do artista dionisía
e
o, selvagem,
tre o Dioniso asiátic
en
ção
in
dist
a
ito
fe
questão: seria a músios diante de uma
ca-n
colo
,
ico
rtíst
a
grego,
en_tç
que
cª_l1ma arte puram
para a dist inção
ndê-la, atentemos
po
res
o
m
Antes de
Co
ea.
ca e a apolín
a música dionisía
ele
ra,
Nietzsche faz entre
ças de uma e out
rcar bem as diferen
objetivo de dema
a na Grécia mais
isíaca foi introduzid
dion
ica
mús
e
a
a grega,
observa qu
assimilada pela cultur
ulo VII a.C. e logo
Antes
ta.
ou menos no séc
flau
anhada da
ncipalmente acomp
pri
ada
toc
línea,
do
apo
sen
qualificada de
uíam uma música
poss
s
já
o
greg
s"32
os
disso,
tura dórica de son
nas uma "arquite
ape
era
o
t
etan
entar
que entr
dobrava para apres
rítmica" que se des
- uma "ondulação
djonisíaca?
__
32
.
· do, uma espécie
os estados apolíneos·' um moVImento cade nCia
.
.
de Apolo' que recitava
de som que a cítara produzia O musico
'
os poemas de Homero aco
hado da .cítara, só manejava as
, . de
forças plásticas ou arquitet ats do som·. uma outra espeCie
.
Imagem. Com sons apenas insinuados' ele recortava figuras no
, .
estava mais proXIma das artes
tempo, e por isso sua mUSlCa
.
.
.
P1 asucas do que da música r�opnamente dita. A música apolí.
.
- da linguanea só foi definida como musica por uma Imprecisao
.
gem; a ela faltavam os eIementos básicos que constituem a
.
.
essenCia da música·. 0 dinamismo tonal (ou o poder emocional
.
dos tons), o fluxo unitário da me1od'Ia e o mundo da harmoma3 3.
.
.
.
,
,
A diferença radical entre a musica
'
----�-musica
:- aQohnea
' .,
. tomsi��a
encontra-se
nrin
. · 1mente msto· en
d
.-E�
-----�
·---q}!�to . �. .<w.olí-�-a
m
ô
d
a
fen
roduz
o
en
re
o·
\S
U IQÇ _t� u� o querer. A voz
��� p
"
�
��
z d�o
uerer. De um qu�rer entend'do não
o�
da m u' s ica é�a:..v
�q�:!
_
:�=
; ��� origem
r
CQ!fiO
ou suieitç da sonoridad " �as como objeto. "A
vontade, escreve Nietzsche'---:b·:----d--a�--'
e o l)elo
muszca, e não a sua fionte.
.
.
_
( .. . ) Quanto à origem da música,J á e I'Iquei, ela nao pode estar
na vontade·' ao contrário ' resi'de no seiO desta f,orça que engen·
· - . A ongem
da
dra sob a forma de vontade um mundo de vtsoes
.
.
.
,
'
.
musica está situada além da m d'IVIduaçao34' ISSo fitca evt'dente a
. ,
.
partir do que dissemos do d'IOnisiaco"35
. · Por mam'fiestar e comu.
mcar diretamente a emoçao,
- o sentimento - o prazer e a dor
·
:�
'
·
,
•
di�----.-.:
..
-
�
·
x�
do querer - por revelar o quere_r com total imediatez, antes de
. ,
fi
ele ter ingre sado em algum enomeno
' a música d'tomstaca é a
.
.
,
umca VIa de acesso à vontade.
;
Então, respondendo àh pergunta proposta, M.S.Silk e
J.P.Stem, autores de lvze
u· tzsc e on Tragedy ' o bservam que não
.
�:l.<:lS!�_giQPi�íªco -P-uro na conce ça-? de arte de Nietzsche. A
�
,
·
'. .
!:lialética
entre-0 an
---------------e-� ta.na�sel_!�
º-_dionlSlaco
=.= .!.�-º-t:
---·
Mesmo
r.�<:\�s_�lorm�--� em todQs os. ..a.s.pectos da arte tr'
,
--.
-----------�.&.!S2-..:,
dwnisía
ca, nao e, seguna mustca, a umca arte verdadetramente
do e1es, puramente dionisíaca36. Basea�am-se, para essa afirma­
ção, na interpretação fiei' t a por Ntetzsche do fen ômeno
.
dionisíaco na Grécia37' e na passagem re1acwnada ao mito
.
,
tragtco (item 25)' onde e1e escreve: "Daquele fundamento de
�
.
,
·
.
___ ___ ___
..
.. .
..
.
,
33
.
toda a eXistência, do substrato dionisíaco do mundo, só é dado
penetrar na consciên
ç� d,o indivíduo humano exatamente aque­
le tanto que pode ser de novo subjugado pela força transfigura­
clara ( . . . ). Lá onde os poderes dionisíacos se erguem tão
impetuosamente ( . . . ), lá também Apolo, envolto em uma nu­
vem, já deve ter descido até . nós e uma próxima geração, sem
dúvida, contemplará seus soberbos efeitos de beleza"38•
Ao que foi muito bem observado pelos autores de Niet'Z.Sche
on Tragedy, acrescento também que Nietzsche, em outros textos
da mesma época, principalmente em "A Visão Dionisíaca do
Mundo", mostra claramente que a música não é uma arte
puramente dionisíaca. Relacionando-a à questão da vontade, no
item 4 desse ensaio, ele afirma que há nela elementos -
harmonia e melodia - que traduzem diretamente a dor e o
prazer, e outros - ritmo e dinâmica - que acalmam �men­
taneamente a dor, moderando-a pela medida. A harmonia, livre
9_9_espaço e do tempo, guarda em sua textura e ���raso.ll:o_z.:.a
a essên�!�E.? querer-�1- P-Or isso, __p�_IJ!l._�n�_c� como elemento
��ç!ti�2-<i-ª. .!!!'=Í.�isa. Já
_
o ritmo . é apresentado como fator de
ilusão - véu apolíneo jogado sobre o inebriante mundo sonoro.
Enquanto a harmonia expressa o núcleo mais íntimo do querer,
1
o ritmo é o símbolo externo da vontade, sua aparência individual
que não reflete o todo.
O ritmo está no ponto de encontro entre
a plástica e a harmonia, o fenômeno e a vontade, a aparência e
a essência, o sonho e a embriaguez, o apolíneo e o dionisíaco.
"Enquanto o ritmo e o dinamismo continuam sendo de uma
certa forma aspectos exterjores da vontade, que se exprime por
símbolos, enquanto carregam quase que neles próprios as carac­
terísticas da aparência, a harmonia é símbolo da essência pura
da vontade. Portanto, no ritmo e na dinâmica, o fenômeno
isolado tem de ser considerado como fen'ômeno, e, vista sob esse
aspecto, a música pode ser tratada como arte da aparência. �ffi.Q:­
��a, qu_�-�_i_n<_li_�i�ível, fala q� v�mt_aq�� _qe�tro e fora de..to.das .as___
doJeP.Q!!lc:!I10, é, por!Afito, não apenas um simbolismo d�
fQrmª-s
sentimento mas do
.....-:-"' --- ---
-
-
'
- '- · - - - --
-
.
mundo"39
. ...._
..._ - -�- ----··-�---
mos ainda no frag
.
mento p óstumo d .
o Ini,cio de 1 8 69
de 1 8 70: "A músic
e primavera
a não e, PIenam
.
ente oro-i
o·ástica mas tem ma .
embnaguez que a
is
apolínea "40. Dess .
a for
ant�---d-<:_ h_ ?:Yer
_:'!� de música e palavra, do - -. - -.;- -;---- ma
-�
a
- --, .
dwmstaco e o d
tr-a_g�dia, haveria na
1
'
----.;__2_<!RQJ�
....
na
must
' ·ca o encontro
desses dois onost
, ..
têm
, .
os
-PE2�!-���EIUstJcq_s diferentes . En - -- -L--- ·-1--91!.<:
--:- - o
ytsa_ ª_ ªftrmªção ® etemid
t ª-fl�t�--ªPR.lirr �
da a
en
l!!!fo
na ao !Q.
visa
.O sofrimentQ, _ a art
_ §Qpre .
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I
<L
f!
!l !"!!laç
tal �-ª
da e_temidade a
Q
.
---- ----:--9 _VIdé!., So ela da conta
que está atrás dos c
do
1enomenos . Asst
m' enquan to nas
neas a verdade é
artes apolícn"a t·xvam ente esc
, .
ond"1da, na musxc
revelada·. "( . . . ) a
a ela é
natureza fala-nos
com sua voz ver
disfarce·
da
deira sem
'Sede como eu s
.
ou.r sob a Ince
ssante mudança
aparenctas, a m
das
ãe primord"al'
I . eternam ent
e cn· adora, que
namente força a
eter
exis tir' que se reg
ala eternamente
mudança das apa
com essa
rências "4I.
A meq ver o fat
o de Nietzsche
.
ter des tacado o .
dmamxca, que dis
ntmo e a
tribuem d" .d
m a s nor dade
no tempo, tomo
no
?
espaço e
um aspect p as t
Ico no In tenor
signifi ca que ela
da música, não
deixe de s uma
r dionisíaca.
é bom frisar que
Pelo con trário,
p ara ele
a me
· a e a ha monia
ser chamadas p
42 merecem
�
opriame te de
mus 1ca. o ntmo
sao estranhos à
e
.
a
d"mamica
sua essêncIa. Mas
e bora esses
não reflitam a
dois
�
ele
.
men tos
,
essência da mus
xca nao poden,am
I os. Para que se
os d ela separátome p ercepti, '
Vel é p reciso
·
acoplem. Desse
que eles a ela se
m odo nao
- p oden,amos
t
d
"
zer
que a música é
puramen te dio
nísiaca.
Resumindo, Nietzs
, .
che pensa a mus
ica como arte dio
que traduz diretam
nisíaca
ente a dor e o
pr
azer do querer,
com o arte p ura
m
as
não
.
men
te dionxsx
· ,aca, p 01s carr
.
, .
ega em SI um ele
to plastlco, cuja
.
men
função é d mmar
a torren te unit
e da harmonia
ária
d
a
mel
odia
e apazigua a dor
.
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Para reafirmar o que está expresso nessa citação, encontra-
34
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35
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A
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.,...
-- ----··-----------·--·-··-------
(
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------·---�
NOTAS
entar que
Autocrítica" , 2 . É preciso sali
mesma
1 . Cf. Nietzsche, "Ensaio de
da
a
vid
concebe o conceito de
ia, no
nesse prefácio Nietzsche não
géd
Tra
da
o
ent
em O Nascim
forma como é apresentado, mas como vontade de potência.
ísico,
sentido cosmológico-metaf
da Tragédia, 5 e 24.
o
ent
scim
Na
O
he,
2. Cf. Nietzsc
mbém Fragmen­
tumos, 187 1 9[90],cf.ta
Pós
os
3. Cf. Nietzsche, Fragment
undo o depoi­
Seg
6.
188
de
de 188 5, outono
tos Póstumos, outono
va pelas
tzsche raramente se interessa
peito
mento de Ida Overbeck, Nie
res
iam
diz
sobre a arte sempre
artes plásticas; suas conversas
poraitem
con
ses
ant
dev
he
nquis, Nietzsc
à música (ver Génévieve Bia
nes, p.3 6).
da Tragédia, 24.
Trieb po r
4. Nietzsche, O Nascimento
pulsos artísticos". Traduzo
"im
e
rieb
nstt
Ku
2,
,
Idem
5.
espanhola
to, com o fazem a tradução
impuls o, em lugar de instin
Bianquis
eve
e a francesa de Génévi
de Andrés Sanches Pascual
ia.
para O Nascimento da Tragéd
xa uma nota
eb por instinto, mas dei
Tri
duz
tra
l
cua
A. Sánches Pas
o Trieb
ívocos que podem surgir traduz
explicativa: "Apesar dos equ
Kuns­
de
o
o
com
a esse termo, assim
Sem
por instinto. Nietzsche tom
.
uer
nha
ope
Sch
de
o
co), do vocabulári
ttrieb (instinto artísti
amplo
ito
mu
o
tid
sen
um
em
into
dúvida deve-se entender inst
19 p. 259 ).
ta
(no
a"
par
cia
dên
"ten
o
com
ento da
sa da Gallimard de O Nascim
nce
fra
ção
Os tradutores da edi
Nan­
uc
n-L
Jea
e
the
bar
-La
oue
Philippe Lac
mo
Tragédia, Michel Haar,
ter
o
m
rda
ulsion ou pulsion e gua
ento
cy, traduzem Trieb por imp
scim
Na
O
em
e
rec
alemã Jnstinkt, que apa
instinct para a palavra
13.
rates entra em cena no item
Sóc
ndo
da Tragédia qua
acepção já
sma
me
a
ar
serv
con
a
par
Traduzo Trieb por impulso
he, obras
tzsc
Nie
de
uesa na tradução
encontrada em língua portug
Filho, e
s
rre
To
s
ben
Ru
sadores 197 4), de
incompletas , (Col. Os Pen
Mal de
do
e
Moral .e de Além do Bem
na tradução de Genealogia da
sobre
za
Sou
ar
a nota de Paulo Cés
Paulo César Souza. Ver também Mal {p. 216-22 0). Também Jacó
e do
essa questão em Além do Bem
Trieb por
ento da Tragédia, traduz
cim
Nas
O
de
r
uto
trad
Guinsburg,
a
impulso.
um dos primeiros alemães
an Joachin Winckelmann foi Gerd Borheim, "Escorço do
Joh
6.
go (ver
interessar-se pelo mundo gre
ndo
Ao travar contato com o mu
.
64)
p.
al",
tur
Cul
nte
en­
Horizo
ann
elm
nck
Wi
vés da escultura,
a
helênico, principalmente atra
calm
a
e
de
ida
plic
sim
" . . . a nobre
contra seu ideal de beleza:
ou
tica
de vida, toda uma arte , poé
se
grandeza" . Todo um modo
inada pelo ideal de beleza que
dom
visual, aparece, para ele,
7.
8.
36
;
�
i�
9.
�
�
·
•
,
-
-
1
...)
. . .
encontra n� est�tuária grega. Essa visão da Grécia, que pnVIlegta
a beleza, fm redimencionada or N'Iet�che. Para ele, ela aplica-se
' ' ,
at1ca.
às artes plásticas' mas não à t agedIa
N'Ietzsche, 0 Nascimento da Tragédia 16
,
Gerard
Lebrun "Quem era D'� �Iso.
.' ._,; ' p.41. Eduard Hanslick
(1825-1904), crÍtico musical au� naco, em seu Vom Musicalisch
Schonen (Do Belo Musical)
���ado p a primeira vez em 1854
(Leipzig), considerava qu�
';lsic� p o uzia o mesmo efeito que
as artes plásticas a saber "a e�citaçao o gosto pelas formas belas".
,
de Beethoven, Wagnerprojetafazer
Para comemora� o cent�nano
, . de atos musicms,
· · que entretanto
durante o ano de 1870 uma sene
.
não chegaram a se realizar' devidO a guerra franco-prussiana. Para
não deixar passar em branco uma data que ele consi'derava fundamentaI para a cultura alemã, deci'd'lU honrar seu mestre com um escrito
- Beethoven
publ'tcado em novembro de 1870 Sobre esse livro
.
N 1etzsche escreve a Carl von Ger dorff em 7 de novembro de 1870:
. , um maravilhoso manuscrito
"Wagner me enviou' há alguns Ias
,
.
,
intitulado Beethoven . N os temos at_ uma verdadeira fi1losofia da
. .
, .
mus1ca, inspirada pela m s ngorosa fidelidade a Schopenhauer.
Esta obra será publicad em homenagem a Beethoven, como a
maior homenagem que Ihe possa dar a naç-ao" (ver Curt Paul Janz,
N'zetzsche, tomo 1 , P · 354).
.
No ensaio ópera e Drama' Wagner da, espeoal destaque à tragédia
de Ésquilo' que considerava como a mais completa �orma de arte
.
e CUJO espírito deveria ser recriado na AIemanha. Ele mesmo se vê
.
, · os
como o Ésquilo germâmco, que pode trazer para a musica
.
.
antigos deuses e as heróicas lendas da mitologia alemã.
.
,.
Nietzsche ' "Ensa10 de Autocntlca",
1.
.
f. NI�tzsche, O Nascimento da Tragédia, 3.
.
er Ntetzsche em O Nascimento da Trag'édia, 1, quando ele dtz que
" a bela aparência do mundo do sonho , em cuia
:.� produçao
- cada ser
.
.
humano e, um artista consumado, c?nstltm a precondição de toda
arte plástica, e também ( .. . ) de uma Importante metade da poesia" .
N'Ietzsche, O Nascimento da Trage'dza,
. 1.
.
.
o pnnapio
·
de individuação deve ser entendido, tal como Scho. . .
penhauer o concebeu' como pnnopto do espaço e do tempo.
,
Segundo ele, a vontade como "
t ? � nucleo do mundo" é una,
mas múltipla em suas formas fe
emcas. O que determina essa
p�uralidade são o espaço e o temPo ·
Nietzsche, Idem, 25.
Nietzsche Fragmentos Rostumos,
'
inverno de 1869 - primavera de
1870, 3 [37].
c:. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia 1 ·
NIetzsche, Idem, 6.
:
·
10.
·
�
·
11.
12.
13.
14 .
�
,
C::.�::
15.
16 .
��-
·
·
•
37
'
19. Cf. Nietzsche, Idem, 4. Ver também a interpretação de Rosana
Suarez sobre esse assunto em sua dissertação de mestrado Arte e
linguagem nos prim'eiroS escritos de Nietz.sche, p.23.
20. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, influenciado por Schope­
nhauer, concebe o mundo, o ser, como natureza, cuja essência é
a vontade e cuja aparência é a representação. Identifica a eterna
vida com a vontade, e a vida contingente, individualizada, com a
representação.
2 1 . Nietzsche, "A Visão Dionisíaca do Mundo", 1 .
22. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 1 .
23. C f. Nietzsche, Idem, 2 .
24. Ver O Nascimento da Tragédia, 2, onde Nietzsche escreve: "Em face
desses estados artísticos imediatos da natureza, todo artista é um
'imitador', e isto quer como artista onírico apolíneo, quer como
artista extático dionisíaco, ou enfim - como por exemplo na
tragédia grega - enquanto artista ao mesmo tempo onírico e
extático".
25. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, final de 1 870
abril de 1871,
7[1 1 7].
26. Déborah Danowski,em sua dissertação de mestrado Sonhadores e
Replicantes: A Matéria dos Sonhos e seu lugar na Filosofia de Nietz.sche,
analisa com grande acuidade a questão do jogo na arte apolínea.
27. Nietzsche, "A Visão Dionisíaca do Mundo", 1 .
28. Nietzsche, Idem, 1 e O Nascimento da Tragédia, 1 .
29. Nietzsche, "A Visão Dionisíaca do Mundo", 1 .
30. Cf. Idem.
3 1 . Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 2.
32. Nietzsche, Idem, 2.
33. Cf.Nietzsche, "A Visão Dionisíaca do Mundo", 2.
34. Comentando essa passagem, Bernard Pautrat, em Versions du
Soleil, diz que "a música deve ser compreendida como o som puro,
impessoal, o sopro sem origem: a música é ela mesma originária,
fazendo-se ouvir antes mesmo que um ouvido a perceba, o que
indica a presença dissimulada do querer. De um querer que não
é a origem ou o sujeito da sonoridade: 'A vontade, escreve Nietzs­
che, é o objeto da música, ela não é a fonte'. Assim a música, para
além de todas suas formas e suas sonoridades, é a voz pura vinda
do 'além da individuação', indicando o querer como seu 'objeto'
sem representá-lo pela imagem, reproduzindo o querer sem ser
produzida por ele, sendo, portanto, voz sem causa. Voz, se se
preferir, causada sem causa, texto sem autor: alguma coisa como
a prosa imediata do querer original" (p. 6 1 ).
35. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, início de 1871, 12 [ 1 ] .
% . Cf. Silk, M.S. e Stern J.P., Nietz.sche on Tragedy, p. 245.
-
38
37.
38.
39.
40.
Cf. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 2.
Nietzsche, Idem, 25.
Nietzsche, "A Visão Dionisíaca do Mundo", 4.
Nietzsche, Fragmentos Póstumos, início de 1869 e primav
era de
1870, 3 [ 1 2].
4 1 . Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 16.
42. T�mbém em relação a aspectos que dizem respeito
à harmonia,
Ntetzsche faz uma distinção. Pense-se no fragmento póstum
o do
final de 1 870 e abril de 1871, 7 [ 1 16], quando ele fala da
"realid
ade
_
da dtsson
ância" e da "idealidade da consonância" . Na sua estétic
a
musical de O Nascimento da Tragédia, que tem como obra
máxima
Tristão, a dissonância é o elemento verdadeirame
nte musical é ela
qu� reflete mais ?iretamente o querer, enquanto a
conson'ância
es� a ela subordmada. Segundo Pierre Lasserre, em
Les Idées de
Nzetz.sche sur �a Musique, a "dissonância é, para
Nietzs
che,
bem 0
ce�n; ?a m�s�- ca e a consonância é apenas um aciden
te, um
eptsodto fugtdto, uma parada agradável no curso da
dissonância"
( p. 106).
..
39
CAPiTU
ill
A CANÇÃO POPULAf'
"A vida pulsando melodias"
V
(A noite em que icente Celestino
morreu, de Péricles Cavalcanti)
A análise do pensamento de Nietzsche sobre a mus1ca
esteve, num primeiro momento, circunscrita à delimitação do
campo do apolíneo e do dionisíaco - apresentados como
"impulsos artísticos antagônicos" - e, em seguida, centrada na
própria música. Mas, para chegar ao cerne da investigação de
Nietzsche, à questão da música na tragédia, não basta pensar a
música como atividade independente; é preciso mostrar como
��Aª a lJ.Iliª--º º'ªP!!l-ª:IT-ª.Ç·Q.ª .m�si��1-�o apolí�o e d_2_.Q.iol!�síaco
no drama musicalantigo.
Essa união, embora não tão perfeita, já existia na Grécia e
foi realizada pela primeira vez por Arquíloco, criador da poesia
lírica\ no século VII a.C. Os gregos, para reverenciarem seu
gênio, colocaram-no lado a lado com Homero, em jóias e
esculturas: "Homero, o velho sonhador absorto em si mesmo, o
tipo do artista ingênuo, apolíneo, vê, então, admirado, a cabeça
apaixonada do belicoso servidor das Musas: Arquíloco"2•
Na terminologia estética de sua época, Nietzsche observa
que existe um epíteto para Homero e outro para Arquíloco. O
primeiro é chamado de artista objetivo e o segundo de subjetivo.
41
, �u�ndo designa a
Também Schopenhauer faz essa distinçã?
.
mdiVIdual e a poesta
poesia lírica como expressão da vontade
em geral. Segundo
épica como expressão da vontade humana
e s a arte"5,
obje
o
�� � �
ele, 0 poeta lírico "encontra em si mesmo
iramente
mte
e
go)
enquanto 0 épico (romancista ou dramatur
de todos os outros
estranho ao objeto de seus escritos; é o caso
menos se escon�:
gêneros poéticos, em que o escritor mais ou
completamente .
cer
atrás de seu tema e termina por desapare
ui nenhum
Entretanto, a essa distinção , Nietzsche não atrib um mau
etivo é
valor. Rejeita-a integralmente. O artista subj
�V.erá ser neces­
-c:l
����
r�_(:\:
<l:c:lei
artista, um não-artista. Çm ve�<i
é, ser capaz de conter .t!. <:��o querer
Q..- sariamente objetivo, ist()
ão de toda
·i!!ªIY!��â!:Ótr��fo sol:>�e <l: s��j_e_t!vic:lac:le é <l COilc:liç
JuJ
.1�' l�
1 .1 .
arte e de to<;l.Q__Q .PQ���
Cl.-� --ora, se é essa a condição para existir uma verdadetra arte ,
, ustament� e��·
como é possível considerar Arquíloco um artist� �
oes e des�JOS ,
que "canta toda a escala cromática de su�s paix
? Que poe em
enunciando-os na primeira pessoa do smgular
Licambes, e sua
versos sua paixão pela garota Neóbula6, filha de
sa?
fúria mordaz contra o ex-sogro que o recu
resposta: a
Nietzsche encontra para essas questões uma
m':l:�!.l!!l?-Qri<!�e
música. Para ele, ·:.� som é_ () meio
' 7 O poeta lí:ic é antes d
. �,��-�!!�iyi��-���:ª�t!: • que re�uncta a? sua, s bJetl
Q_e_�tor,
�3�E
��
aco
�
s
dwm
ta
t
artis
tudo composi
e e refl�tt-la ?a
vidade para se identificar à verdadeira reah�a�
de artista dio­
música. Eis como: "primeiramente , na condtçao
ao uno pri:U?r­
nisíaco, o poeta lírico identificou-se inteiramente
a de musica
form
a
dial à sua dor e à sua contradição; e é sob
tem direito
se
que' ele reproduz esse uno primordial - . se � que
uma se��da
de dizer que a música é uma reduphcaçao e
a-se-lhe vtsiVel
reprodução do mundo - ; agora, porém, apresent
, como uma
íneo
essa música, sob a influência do sonho apol ria.naJ!s!Ú ica,
_g!
º:_á
_r_e:�x�_<:l���-�JÍ._
/ 1 1,),. 4-. imagem onírica simbólica. Q.
concetto, ey._!'_�gel1@9 .��o�
�-t�m imªg_eiil I1Çll1
�
.um s�g:tindo re�_ex? que e sn�l:J()l�, ou
/� r{.rr'l �-�_nçia geramll._aaLgor.a
,
_Ora, no. processo dtonlSlaco, o artistaJa se
':.::;�#'·" �xe��-��iYi.<J
�
.·
y
__
, /!t
1
__
)
"·
42
encontra despojado de sua subjetividade : a imagem que ele tem
agora de sua união com o coração do mundo é uma cena onírica
que torna sensíveis aquela contradição e aquela dor primordiais
e o prazer originário próprio da aparência. O eu do poeta lírico
ressoa, pois, desde o abismo do ser; sua 'subjetividade' , no
sentido da estética moderna, é pura quimera"s.
Assim, �_p_!_��!�a!Ilt:m�_na músj_ca que_-ªE._arece o verdadeiro
§Uj�i_!Q da ª[t�ão_� "pessoa real empírica" que a executi! ­
esta há muito já deixou de ser sujeito no processo dionisíaco - ,
IllªS _() pr9P.ti<> q��l:'.<'!!J ? g��i�_da �.spéci� <.ll!�-��prime simboli­
e<trnente sua d�ela mediaç�o do h9.m�m chamª.<;l�
O poeta Jír!�()..!B.9 _é_Q. çrjilll.or do reino da arte� mas um
figurªIJ.t.� .n9jg_g()_Q()_ql,le.rer_çollsig
9 _Q m�sm<>; u�;-i-�ag;;�-;:;�
projeção artística, um médium através do qual o sujeito que
realmente existe "festeja sua redenção na aparência". Por estar
em sintonia, fundido com o artista primordial dó mundoto,
n.rquíloco é tão somente aquele que conhece alguma coisa sobre
a essência da arte e a exprime na música: "Nesse estado é ele,
.
mtsterios
�mente, idêntico àquela imagem do conto de fadas que
pode reVIrar os olhos e ver a si mesma; é ele agora, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto, poeta, ator e espectador" 11•
A aparente subjetividade do poeta lírico, sua individualiza­
ção e� termos de enunciado é uma criação que o próprio gênio
do umverso usa para traduzir o querer, na sua dor e na sua
contradição, para redimir paixão, raiva e sofrimento, inclusive
as do homem Arquíloco, dando-lhes a forma e o sentido simbÓ­
lico da arte.
Considero que essa reflexão se dá, no item 5 de O Nascimen­
to da Tragédia, no momento em que Nietzsche está empenhado
em evidenciar-ª relação . 1Il1J.sica e palaYI.a - centro.. .am�
çle su,_<l Í!!Y�.sügação _s_g_Qr,:e ª_ m]J§.i_ça e mostrar como o poeta I
lírico é ao mesmo tempo dionisíaco e apolíneo, artista da música
e da palavra. Sob a influência de Dioniso, em estado de embria­
guez, ele produz "a cópia do uno primordial como música". Sob
a in�uência de Apol� , em estado de sonho, transfigura essa
,
.
mustca
em palavras, stmbohza-a
na forma específica da língua..
_
:-:::-
__
43
em poética: "vemos o embriagado entusiasta Arquíloco caído
o sono _ tal como nos d�screve Eurípides nas Bacantes, o sono
no alto da montanha a� sol do meio-dia. Neste momento, A�ol?
dele se aproxima e o toca com os louros. o. en�tamento diom­
síaco-musical do adormecido lança, por assim dizer, a seu redor,
feixes de imagens, poesias líricas que, em seu desdobramento
. · �bos d�' u· os" 12
supremo, chamam-se tragédias e dIUr
�
Mas em que isso difere do procedimento cnattvo �Uhzado
por Homero, para criar sua obra poética, ainda não fOI esclar�­
cido. Não seriam, por acaso, também as palavras, na poesia
épica, cristalização das visões?
. .
Na verdade são muitos os pontos que tomam disUntas
a
poesia épica e a írica. Nietzsche adverte que se tenha o cuidado
de não unir as duas sob um mesmo vocábulo, sob o pretexto de
ambas usarem as palavras como meio para fixar e exprimir as
visões . ��- p()es� ��C:':!:>. �_1���-�g�m- �!IIlP_O.!i�<L
_ <.? mund�
fenôm�D.Q�; n.,a poesi� lírica., ela simboliza o mundg_ <!ª. !!lUSIQ.
��oção originária da vontade�13• A primeira conduz à arte
piá;ti��; a �egunda, à música. Q_pr�zer. pela
dm�Jioa
a epopéia . a vontade se revela. na lírica. A pri rn.etm diss.aci�
da música, a segunda .permahece aliada :a ela.14. Enquanto o
.
artista épico, absorvido na pura contemplação as Imagens, sob
_ com uma
a proteção de Apolo, olha o mundo e suas �naçoes
certa distância, o poeta lírico, em comunhao c?m o mundo
.
dionisíaco, gera a partir de si e funde-se no que cna. s Imagens
nascem e crescem de sua condição metafísica de umdade e de
renúncia de si próprio. Por isso, pode dizer: eu. Contudo, e �sa
,
individualidade não é a do homem desperto, mas a umca
individualidade verdadeiramente existente e eterna, que jaz no
•
âmago de todas as COisas 15.
�
·.
.
Í
?º�
-
· ··
apar�ncj�
'
..
.
�
�
Hegemonia da música
A principal caracterís��c:a. cl.a P9esiª gr�g_a.�rª �-�tªI-�§illia.da­
p��c�s ��ies afastava-se desse preceito. Até as últimas
à mÓ�ica.
-----···
44
décadas do século V A.C .16, a música não
existia como atividade
independente, como música pura. A
própria palavra mousiké
deveria significar poesia e música, com
o mostram M.S. Silk eJ P.
7
.
Stern em Nietzsche on Tra
1
gedy .
Também Nietzsche partilha dessa
opinião. Discorda da
tradição grega apenas quanto ao valo
r atribuído a cada um dos
pólos dessa relação. Enquanto Platão
prefere atribuir a heg emo­
nia à palavra, Nietzsche prefere atrib
uí-la à música. Para Platão,
a melodia deve estar, necessariamente
, subordinada à palavra,
não a palavra à melodia 1 8. �é!r.ªJ�i�e.
l
aocontrário. a palavra
deve seguir a p1ú_sj�a 1 9. A união da
música e da palavra deve
sempre terminar na subordinação dess
a última.
Mas por que teria Nietzsche se opo
sto a Platão? O motivo
principal parece-me vir do fato de Nie
tzsche ter aceito o postu­
lado de Schopenhauer, segundo o
qual, atrás dos fenômenos,
existe uma realidade mais fundame
ntal- o Urgrund - e que,
enquanto as palavras reproduzem os
fenômenos, a música refle­
te o Urgrund. Sendo metafisicamente
anterior à palavra, a músi­
ca teria sobre ela primazia.
Outro motivo também relevante tem
origem em Wagner.
ó
Por influência de Schopenhauer, Wa
gner, que em pera e Drama
tendia para uma união perfeita de
música e palavra, inclina-se
em Beethoven para a música. Escreve
a propósito: "Uma união
da música e da poesia só pode resu
ltar em uma situação tão
inferior para a poesia, que não cau
sa surpresa ver os poetas e,
entre outros, os nossos grandes
poetas alemães, empenhados
em resolver o problema dessa uniã
o entre as duas artes"20.
Para defender ainda seu ponto
de vista - a primazia da
música sobre a palavra - Nietzsc
he apresenta dois exemplos:
uma carta de Schiller a Goethe,
de 1 8 de março de 1 706, e a
canção popular.
Na carta a Goethe, escreve Schiller
: "Em mim, a emoção
não tem, inicialmente, um objeto
claro e determinado. É somen­
te mais tarde que este se forma. Pre
cede-o uma certa disposição
musical da alma, e só depois surg
e em mim a idéia poética"21.
Nessa forma de poetar, precedida
não de uma série de imagens,
45
com os pensamentos ordenados de maneira causal, mas de uma
disposição musical, Nietzsche identifica o mesmo processo de
criação que deu origem à poesia lírica grega: a música criando
as palavras.
Já a canção popular - um antepassado direto da poesia
lírica - é a forma mais simples da união do apolíneo e do
dionisíaco. "É inicialmente. um e�pdbo mus!�.<.tlA� !!!�J.:l_QQ,J.lm a
melodia ori nal à procura de uma figura de sonho que lhe seja
paralela e que a exprima na poesia. A melodia é, en�&:· o
primeiro e universal, que, por isso, pode receber vanas obJetiva­
ções e diferentes textos. Ela é, também, na avaliação ingênua do
povo, o que há de mais importante e de mais necessário. De si
mesma, a melodia gera a poesia e volta a fazê-lo sempre de novo:
é isto e nada mais que a forma estrójica da canção popular nos quer
dizer: fenômeno que sempre considerei com assombro, até que
finalmente achei esta explicação" 22.
A melodia incita <l. forçª �s��tiç<t <Lpolínea <l. p-roduzir im��
c�n.!-igüic!ade C()m a mú.sica..precisa.IP
gens qu�-. p�;
ser traduzidas numa linguagem poética que gdª. ��....apJ:OJWn.e.
Estn;-�uradas em estrofes, essas imagens exigem para si não
1 ade25.
apenas a sonoridade da palavra, mas a sua mustca
. I'd
Subjugadas pela música, a imagem e a palavra procuram por
todos os meios uma expressão que lhes seja análoga24.
Da m!l.§Jça, gerando .t1ll1 InJindo de imagens,_ e._ da ��alavré!�
P���urando imitar a música, nascem a canção popu!�! .e a..
.
.
!
_g�!!!- Qª_po.e.S.iaJí.rkª'- dç�!g!Jill .e.irregt.Ilar,_ m!l§ çR.I!!. m!l!ê.
�
musicalidade.
---- . Insisti�d� em seu ponto de vista, Nietzsche lembra ainda
que, assim como a música sugere o texto que a acompanha, os
ouvintes e compositores se utilizam de imagens e expressões
figurativas para definir um trecho de música instrumental.
Beethoven, por exemplo, ao chamar uma sinfonia de Pastoral (um
movimento de "Cena junto ao Ribeirinho", ou um outro de
"Alegre Reunião de Camponeses"), não a indica como objeto
Imitado pela música, mas como imagem por ela engendrada.
"Quando interpreta a música em imagens, ele mesmo descansa
�
e�to
��·t�r�!!l:_e�
__
_
46
na quietude oceânica da contemplação
apolínea, se bem que
tudo o que ele percebe por meio da música
esteja em: movimento
apressado e agitado"25•
A comparação utilizada por Nietzsch
e, em O Nascimento da
Tragédia, da imagem do pescador que navega tran
qüilo em seu
barco com o homem individual, que, no
meio de um mundo de
dor�s, rmanece sereno e impassível, pois
��
se apóia no princípio
_ pode ser aplic
de mdtvtduaçao,
ada à relação entre música e
imagem. !\ :Y��a é
()}�ll�_t<:�E.�_
�
.C:� __<? sg, �j�ªg�_ll:! <?.11 �-P.��vra,
a embarcaç(lg.
É importante ainda ressaltar que, embora
na poesia lírica a
palavra seja dependente da música, esta,
na sua soberania, "não
necessita nem da imagem, nem do conc
eito; apenas os tolera a
seu lado"26• É certo que o poeta líric
o exprime o que já se
encontra sugerido na música; mas a lingu
agem, na condição de
órgão e símbolo dos fenômenos, não pod
e expressar 0 sentido
profundo da música. Por encontrar-se
além de toda individua­
ção, a sua essência permanece inexprim
ível. Metafisicame11te
ante?or os fenômenos, a m�siç_<t, t()}er
<l a seu Ta:ci� p�;;;�;�
�
mas tmpoe-lhes sua e.�g�p.sia - qye se
. . g!spgnham �Íg]J�:!.�
__
���
NOTAS
1 . No �ontexto grego, o termo lírica
(melas) referia-se a qualquer
poe�Ia cantada (não necessariamente
acompanhada pela lira, por
.
um umc� cantor ou por um coro (cora
l lírico). Ver M. S. Silk eJ.P .
Stem , Nzetzsche on Tragedy p. 135; ver
também Francisco Achcar'
"Platão e a Poesia", p. 5 1 .
2. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia,
5.
3. Schopenhauer, O Mundo como Vont
ade e como Representação, p. 3 18.
4. Schopenhauer, Idem, p. 3 1 8.
5. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia,
5.
6. Décio Pignatari traduziu para o port
uguês o poema de Arquíloco
à garota Neóbula:
A Neóbula, ausente
Queria nas minhas as mãos de minha
amiga
47
Pelos ombros, pelo dorso
(E como amava trazer
..,
um ramo de murta
e a bela flor da rosa!)
Como sombra passavam seus cabelos
(Folhetim, 13 de janeiro de 1 985)
7. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, inverno de 1 869-70 -primavera 70,
3 [2 1].
8. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 5.
9. Em sua autobiografia Ecce Homo, 1 888, no item dedicado a Zara­
tustra, Nietzsche reconhece ter sido hospedeiro ou, como se diz
na linguagem da umbanda, "cavalo" para Zaratustra: "Alguém, no
final do século XIX, tem nítida noção daquilo que os poetas de
épocas fortes chamavam de inspiração? Se não, eu o descreverei.
- Havendo o menor resquício de superstição dentro de si, dificil­
mente se saberia afastar a idéia de ser mera encarnação, mero
porta voz, mero medium de forças poderossísimas. A noção de
revelação, no sentido de que subitamente, com inefável certeza e
sutileza, algo se toma visível, audível, algo que comove e transtorna
no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato. Ouve-se,
não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamen­
to reluz como relâmpago, com necessidade, sem excitação na
forma - jamais tive opção. Um êxtase cuja tremenda tensão
desata-se por vezes em torrente de lágrimas, nó qual o passo
involuntariamente ora se precipita, ora se arrasta; um completo
estar fora de si, com a claríssima consciência de um sem-número
de delicados tremores e calafrios que chegam aos dedos dos
pés . . . "(3).
10. Em "Ensaio de Autocrítica", 5, Nietzsche deixa claro quem é esse
"artista primordial do mundo": Dioniso. Referindo-se a O Nasci­
mento da Tragédia, escreve: "( . . . ) o livro todo não reconhece por
trás de todo acontecer mais do que um sentido e um ultra-sentido
de artista, - um 'deus', se quisermos, mas decerto só um deus ­
artista, completamente amoral e desprovido de escrúpulos, que
tanto no construir como no destruir, no bem como no mal, o que
quer é dar-se conta de seu prazer e de sua soberania, um deus
artista que, criando mundos, se desembaraça da necessidade da
abundância e superabundância, do sofrimento das contradições
nele acumuladas: o mundo, em cada instante a alcançada redenção
do deus, o mundo enquanto a visão eternamente mutável, eterna­
mente nova do ser mais sofredor, mais antitético, mais contradi­
tório, que só na aparência sabe se redimir" .
48
11.
12.
13.
14.
15.
1 6.
Nietzsche, O Nascimento da Trau
e.édia 5
'
Nietzsche, "A Visão Dionisíaca
do Mundo" 4
Ide
•
Idem .
'
m.
Idem .
·
?o� os �ompositores do Novo Ditirambo
ático surg . dos ��
ultimas decadas do século v
a.C. (470-460 a. C. )' o' eça�
defimtJ­
� �
vamente a separação da mú
sica e da palavra A mus1ca,
que antes
exprimia a vontade, numa esca
.
la universal e metaf'Isic
a que engendrav
s
i
e
artic
ular à'maneira
de uma
e
escrever processos
extramu · ·
i
sicais. Ao buscar sonoridades
que se
assemel
t
ma t�mpestade arinha, os
compositores do Novo Diti
�
r
mu- sJca de s a
força criadora de mitos. Com
�
o resulta
a a degeneraçao
�a música e o empobrecimento dos fenôm
enos.
Sdk,M .�. e SternJ.P ., Nietzsch
e on Tragedy 137 ·
· �f. Platao, República,
III, 400 a.
19.
agmentos Póstumos da épo
ca de O Nascimento da Trau
i
édia'
o·
e afiIrma ser sua filosofia
·
um platom· smo mv
ertido, cf. final
187 0 - abril 187 1, 7[15 6]
20. Wa er, Beethoven, p. 66, .
�
67.
2 1 . Cf. Nietzsche, O Nascim
ento da Tragédia 5 .
22. Idem, 6. O termo estrofe
significa etim logicamente
.
volta, giro, o
que explica a interpretação
de Nietzsche.
23. Ezra Pound, ao explica
r o fenômeno d
. na poe
�eIape,ia
sia dos
trovadores, no ABC da Lite
ratuT< ·
a
o
exe
mp
lo de Arnaut
Daniel, poeta provençal do
fim d s c lo XII, como um
poeta que
perseguia a musicalidade
da
"Arn ut Dani l. o melh
<:_
artífice ( "il miglior fabbro"), c
?r
�te 0 c
amou, nao se refenu
apenas a pás
qu
avam. EI , efetivamente, fez
os pássaros
C:
cantarem e
sp
na cançao que começa assi
m:
L'aura amara
Fals bruoills brancutz
Clarzir
Que! doutz espeissa ab fuo
ills
Eis letz
Becs
Deis auzels ramencz
Ten balps et mutz" (p. 53,
54) .
·
·
��::;:��·d�:��v� ���:�:) �� �
��:��t:�:= �: �
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t�;�:
Aura Amara
Aura amara
49
�
�
branqueia os bosques, car
come a cor
da espessa folhagem
Os bicos
dos passarinhos
dos,
ficam mu
,
de Augusto de campos)
pares e tmpares" (tradução
CAPÍTULO 3
NASCIMENTO DA TRAGÉDIA
.
a, 6.
scimento da Tragédi
24. Cf. Nietzsche, O Na
endi­
25. Idem.
0 mesmo ent
expressa com e sa afirmação
Diz
a.
avr
pal
e
26. Idem. Nietzsche
sica
mú
ção
rela
�openh r
�� ��
. ��r:
����� %�
�o ,
mento que Sc
Representaç�o:
co o Vontade e como
. dtce �e
_u
este no apen
. sao e constituem-se apenas em um acres­
" As palavras na mustca
, �.
ois o efeito dos sons é
se
cimo estranho de valo_r
s eficaz e mais rápido que
incomparavelmente mats
dem ocupar aí
a as a mú�ica' estas só po
o das palavras_. In�oryo�
rar a todas as
dob
se
fitcante e têm que
m
tg
ms
to
mm
ar
lug
um
exigênnas dos sons"
·
·
Ao pensar a tragédia como obra de arte apolínea- dionisíaca
como sonho e embriaguez, forma e caos, luz e noite, aparên­
cia e essência, imagem e música - Nietzsche apresenta o mesmo
argumento dado para a canção popular: coloca a música como
primária e o diálogo como secundário e retoma a idéia, já
presente em Aristóteles, de que a música surge do ditirambo1.
Partindo dessa concepçãq_, Nietzsche afirma gue a tragédia
nasce da música, do�cantq entoadoemlouvora Dioniso pQr um
-cort<;j_?1E_e�_C!.flQrest'!habita,.da.
.!i.!,
fQ"llP.<.?. _ <.!� p_f!��9.!l..�:rn
2or �!:!- ���� Faziam-se passar por sátiros, figuras híbridas homens com pés de capro e chifres. Com o rosto pintado com
o sumo de diferentes plantas e a testa coberta de flores, erravam
em êxtase, cantando, dançando e tocando a flauta rústica. A um
só tempo ator e espectador, esse coro de sátiros via desenrolar,
diante de si, um espetáculo, visível somente para os que partici­
pavam da excitação dionisíaca.
Porém, esse coro ditirâmbico era bem distinto de qualquer
outro canto coral grego. Enquanto as virgens que se dirigiam
cantando ao templo de Apolo continuavam sendo o que eram
e conservavam sua identidade, os sátiros, cantando e dançando,
--
50
.
�-�,------ � --�--�-
-··--
51
. O (eu) humano . Ao esquecerem todo o seu passado
Sl
de
iam
abol
. am-se de sua civilização como quem
. - o social' despoJav
iça
pos
e a sua .
. catura mentirosa" ' tomavam-se seres da
s.
se despoJa de uma. "ca:n
idores intemporais de seu deu
s
natureza, co�ve uam� e se
un
alg
ulto, participavam, por
do
m
o
çao
san
a
teSob
e absurda que ' subsistindo an
momentos, da real'1dade atroz va-lhes gritos de desespero2.
anc
rior a toda individuação, arr �o provocado pela música é a
Esse fenômeno de possessa , t'lCa ' que começa a eXl. su'r
. - pre'VI· a de toda arte drama
condiçao
s, mas que nao
iro
sát
em
os
ad
ç
far
dis
s
e
quando aparece� ho
enganar os outros . Estando
ontram all par udir ou
se enc
tal .
..
tro ser e comportam-se como
enfe1t1çad os, mgressam em ou
do
cial
como sa, tiro ' eis 0 ponto ini
-se
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ora.
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j/.,.,�I �; •:� !tlSQ.!l?.
nfundido com as visões apolí
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eve�to�
�;.. dr�II_l . r:�
.\!J'
ualiza os personagens e os
'"' do po. eta eplco, que vis 'denu'filCar . É próprio do coro d10mdescntos sem com ele. s se 1 .
fi
personagem que
1denti car-se no
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me
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a
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sía '
, g�ca, traz a, luz.
. a1 ' em um passe de ma
o êxtase music
poeta e o dramaturgo está no
Assim' a diferença entre o
ó é
am com seus personagens. S .
modo como eles se relacion
. capacidade de ver os seres espm­
m que possul a
poeta o home
. cam a seu redor so, e, dramaturgo o que sente "o
. que bnn
tua1s
nte outros
tormar e falar media
impulso irresistível de se trans
corpos e outras almas , . .
- t�!'?..él �!.ll..drama completo . .!:Im
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Com essa nova visão
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iante de si um espetáculo real,
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uma visão. Uma mesma lmagt :� figu·ra: Dioniso dilacerado.
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Nietzsche, ao identificar esses dois momentos, 2entende
todo o processo originário da_.!:_I3g�gia_c;<:)�� a combinação dc. �.J k
.
lll.!:!� de imagens .. A tragédia é "um coro dionisíaco que
ince��<l_!?.te��nte se descarr!-:�?um mundo apolíneo de imag�ns"7. A emoção nascida da música evoca espontaneamente na � J-D.­
imaginação do coreuta representações visuais. Ele projeta, em
cena, imagens de sonho com formas bem delineadas exteriorizando a música. Porém, essa imagem que o coro produz como
expressão do estado dionisíaco não representa a apolínea redenção na aparência, mas justamente o oposto: a dissolução do
individual e a sua unificação na existência primordial:"O coro,
el!l��-ll.P.Q).lleiro .�lágio,.na.tragé.dia.P..!".imitiva... é a imagem que
a nat�_re_z<! �_i<?I?-.!s.!_aç,ª p�J;_<:��_§j me�ma�8•
Embora já existam aqui seus elementos essenciais - músi­
ca, coro, visão - , o drama só se completa verdadeiramente com
o aparecimento, em cena, do ator que deve representar a figura
vislumbrada pelo coro. Esse ator não pertence à épica, não
representa a aparência, mas o dionisíaco. Não é belo,'. mas
verdadeiro: "no ator, nós rt."t:onhecemos o homem dionisíaco
que é poeta, cantor, dançarino por instinto"9.
Quando Apolo, com seu gênio claro, traz à cena o diálogo,
para torná-la inteligível, a tragédia passa a ser um drama pro­
priamente dito. Entretanto, o diálogo10 e a ação, por ele intro­
duzida, só se desenvolveram muito lentamente. Primeiro, um
ator se destacava do coro e trocava com ele algumas palavras. A
ação11 praticamente não existia, as peripécias do drama não
eram representadas, mas relatadas. As palavras eram pronuncia­
das com longos intervalos de silêncio, mais pareciam uma onda
súbita de sons que se propagava sobre a multidão extática. A
palavra do ator ainda era música.
Essa voz, vinda das regiões sonoras que se encontram para
"além de toda a individuação"12, fala do destino do herói: sofrer
e ser destruído; relata, entrecortada por pausas, o sofrimento
de Dioniso, seus feitos e sua história, criando assim um espaço
para o coro apresentar-se em gritos de júbilo, em adoração a
f.Y..'
·
53
ria a respeito do mais íntimo
Dioniso e revelar toda a sua sabedo
da natureza.
��_ya_gédias de EurípiPor muit� temE2_d?.�-�2 -�!�J QS _ ���
ll_l..!.�J?LÇsentado no drama
des13, Dioniso foi o ú!}!çg_p,�!S.Q)!��
po, Orestes, são avataWtigõ�Tõ;dõ ·c;s-;�tros heróis, commao Édi
humana, se submetem às
res desse mesmo deus que, sob for
o eles, purificam-se pelo
penas reservadas aos homens e, com
sofrimento.
e diante dos espectaTambém o herói trágico, que aparec
mentado pelos coturnos,
dores, não é só um enorme boneco. Au
as, em movimentos lentos,
com os braços e as pernas almofadad
to coberto por um a gigan­
impedidos pelo pes o da roupa, o ros
tes, a voz profunda e
tesca 'máscara pintada de cores aberran , ele é, na realidade,
ndo
cavernosa como se viesse de outro mu
ho e nascido da divina
son
do
véu
no
o próprio deus envolvido
embriaguez musical dos espectadores.
bém o espectador, a
O argumento de Nietzsche de que tam
cena não contradiz sua
partir da música, vê aparecer o deus em
que faz surgir a visão de
afirmação anterior de que é o coro
ectador - não estão em
Dioniso. Os dois grupos - coro e esp
ros é, antes de_mais nada,
oposição um ao outro: "o coro dos sáti
o é, por seu turno, o
uma visão da multidão dionisíaca, com
o satírico "14.
mundo do palco uma visão desse cor
rema importância. Can­
sup
de
é
Nes se processo, a música
em êxtase; nesse estado
tando, o coro faz o espectador entrar
do deus na máscara
musical, o espectador projeta a imagem
eto, pensando com pro­
disforme do herói: "Imaginemos Adm
este, morta recentemen­
fundo recolhimento em sua esposa Alc
cação de suas formas,
te, consumindo-se totalmente na evo
ça, coberta por um véu,
quando, de repente, trazem à sua presen
te e com o andar seme­
uma figura feminina com o mesmo por
e súbita inquietação,
lhante ao dela. Imaginemos sua trêmula
instintiva convicção e
sua sofreguidão em compará-las e sua
o que se apoderava do
teremos assim algo análogo ao sentiment
quando via avançar no
espectador entregue ao êxtase dionisíaco
va identificado. Involunpalco o deus, a cujo sentimento já esta
· ,
54
tariamente, ele transferia para esta- figura mascarada a I.magem
ma�Ica
' · do deus que vibrava diante de sua alma e diluía sua
reahdade ?�ma espécie de irrealidade espectral"l5.
.
�-0 11��C!?�-� t�:�.S�c:!�<l: I1�0 <l.P�e-��I1�.Y.��!!fedg , �J!medida
q!J�q_-���!'le!}!9�ê-E2HPeQ_ ga!}ha !'l!lut� os ;tores sae"" -;!,., ·
coro em ��<:lE !lumero
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�-p;�cls;"
que
a
de
Sófocles
ser
mais
�
d� Esqmlo, seu antecessor. O drama, representado em seus
,
diálogos,te
n: �anta clareza, lucidez e beleza que se assemelha a
um poema epico16.
Entr�tanto, é �reciso observar que, se em certas ocasiões,
S�, focles e pa:� Nietzsche superior a Ésquilo, não só por sua
.
tecmca dramatica, mas também pelas idéias expressas em seus
.
· · 1amento e o sofnmento
dramas - o tráoico
odo herói
' o amqm
- ' em outras, é considerado inferior a ele. Ésquilo' por se
. proximo
, .
encontrar mms
ao nascimento da tragédia, e' um dra.
· musiCaP 7. Nos seus dramas, existe a mais perfeita
m�t�rgo mais
umao entre música � p�lavra, entre o dionisíaco e o apolíneo.
.
Ap�lo ?ermite q�� Dwmso se manifeste (supremacia da música)
.
e Diomso p�ssi?Ihta que ,Apolo se exprima (o espetáculo).
A supenondade de Esquilo em relação a Sófocles fica mais
clara �e levar�os em conta que, embora não tenha se afastado
.
da musica, Sofocles privilegia o diálogo como meio de tornar
'
, .
' '1ogo, por ser uma
mais VI' Sive1 o mtimo do personagem E o dIa
d'�sputa de p�avras, é inimigo do pathos trágico, da intensifica­
çao da e�oç�o. Sua �redominância introduz o primeiro germe
da decadenCia no genero tráoico
o·
·· "O- mal teve seu ponto de
.
.
partida no diálogo. Sabe-se que, no início, o diálogo não fazia
parte da tragé�ia. Ele só se desenvolveu a partir do momento
em que �eve dms atores, isto é, relativamente tarde. Havia, antes'
algo analogo na troca de palavras entre o herói e o corifeu' mas '
' era
como um estava subordinado ao outro' a d•o
...,puta di'ale'tICa
,
ImpossiVel.
Desde que dois personagens principais se encontra·
·
·
....
-
·�__-
·
..
·
·
ram fac� a face, com direitos iguais, viu-se nascer, em razão de
.
u� mstmto profundamente helênico, ajustai9 e, precisamente '
a J US ta de palavras e argumentos"20.
55
NOTAS
1 . Cf. Aristóteles, Poéti% cap.4, 1449a.
2. Cf. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 8.
3. Cf. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, inverno de 1 869 - primavera
de 1870, 2[25].
4. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 8.
5. Nietzsche, Idem.
6. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, outono de 1869, 1 [40].
7. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 8. Essa é a melhor definição
de tragédia de O Nascimento da Tragédia. No Fragmento Póstumo,
do final de 1 870 - abril de 187 1 , 7[128], Nietzsche descreve o que
entende por trágico: "O que chamamos de trágico éjustamente a
elucidação apolínea do dionisíaco".
8. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 8.
9. Nietzsche, "A Visão Dionisíaca do Mundo", 4.
10. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, inverno de 1 869 - primavera
1 870, 3[2].
1 1 . Nietzsche critica a concepção aristotélica de a tragédia ser uma
ação, uma práxis. Para ele, o drama é mais um episódio ou uma
cena de grande pathos. Cf. também Caso Wagner item 9 - nota de
Nietzsche.
12. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, início 1871, 12[1].
13. Essa afirmação pode parecer, à primeira vista, estranha, já que foi
Eurípides quem escreveu as Bacantes, uma espécie de hino a
Dioniso. Ela só se tornará clara quando analisarmos, no item
seguinte, as críticas de Nietzsche ao drama de Eurípides, que
concebe as Bacantes em seu ex11io na Macedônia, quando, ao olhar
retrospectivamente sobre sua carreira, sente remorso de ter expul­
so Dioniso de seus dramas. Para remediar seu erro, escreve sua
última peça como um tributo ao deus que ele havia negado.
14. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 8.
15. Idem.
16. Idem, 19.
17. Por exemplo, em "A Visão Dionisíaca do Mundo", 3, Nietzsche
afirma que Sófocles é "mais profundo, mais interior". Já em
"Sócrates e a Tragédia", julga Ésquilo superior: "Para dizer com
franqueza, a floração e o ponto culminante do drama musical é
Ésquilo, em seu grande primeiro período, antes de ter sido influen­
ciado por Sófocles: com este começa a decadência paulatina, até
que por fim Eurípides, com sua reação consciente contra a tragé"
dia de Ésquilo, provoca o final com uma rapidez tempestuosa."
(ed. francesa p. 45, ed. alemã p. 549).
18. Nietzsche emprega Wettkampf como equivalente do grego agôn
56
cuja área sem
ica é maior. Traduzo esse term
o por 'usta como
:em os trad�t
utores franceses, Jean-Louis
Backes Mdhel H
arc B. de/.aunay �ara a edição
da Gallimard, e �ão por riv�
a�
de' co�o az Andres Sanche
z Pascual para a edição da
.
Alianza
E �htonal, por ter esse termo
uma conotação bem m .
c
19.
ócrates
e
a
�
Tragédia" , ed. francesa p. 42, ;
·s
6
ã
.
� ��;��: :
.
: �; �=�
57
CAPÍTULO 4
MÚSICA E VIDA
Vimos que as idéias de Nietzsche sobre a música em O
Nascimento da Tragédia dizem respeito à relação música e pala­
vra. Embora tenham sido indicados os pontos principais dessa
relação, falta ainda dar relevo ao contexto mais fundamental de
onde ela surge: _<!_ !�!_aç�o música-vida.
Para Nietzsche, a tragédia não é apenas uma nova forma de
arte ou um novo capítulo na história da arte; �tem a função
��_!_ral1.�fo�IP:<t� ?. se11timento de desg�s!o çªys_ªç\o p<;:l9_h9.I!Q.L
e absurdo da <:!.�I_1)Jê_J}Çi(l\ numa força capaz de to:rnar . a . Y.i.da
possível. e cj.j_gna..de..s.�:ryj.y!_ga. Toda verdadeira tragédi� traz um
"consolo metafísico": "A vida no fundo das coisas, a despeito de
toda muaan,ça dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e
alegre. Esse consolo aparece com nitidez corporal como coro
de sátiros, coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente
por trás de toda civilização e que, a despeito da mudança das
gerações e da história dos povos, permanecem os mesmos. Com
esse coro, consola-se o heleno profundo, o único igualmente
apto para as dores mais suaves e mais cruéis, que penetrou com
olhar afiado até o fundo da terrível tendência ao aniquilamento,
que move a chamada história universal, assim como viu o horror
59
f'
1
�(}{.
I:�
a.
da natureza e está em perigo de aspirar a uma negação budista
da existência. A arte o salva, mas, pela arte, é a vida que o salva
em seu proveito"2•
A arte trágica demonstra uma notável capacidade aiquímica
de transmudar o estado de náusea, "estado negador da vonta­
de", em afirmação, de modo que esse horror possa ser experi­
mentado não como horror, mas como sublime, e esse absurdo
possa ser vivenciado não como absurdo, mas como cômico3•
Essa função terapêutica da tragédia, que Nietzsche define
como o "poder que excita, purifica e descarrega a vida inteira
de um povo"\ não é a mesma de Aristóteles, que na Poética,
atribui à ação trágica um poder catártico e paradoxal que ao
mesmo tempo desperta e purga os sentimentos de terror e
piedade. Em Nietzsche, essa função terapêutica é mais que um
sedativo ou um calmante, é um tônico. Ao lado desses sentimen­
tos que transformam o horror e o absurdo em sublime e cômico,
é gerado um mais poderoso que está associado à experiência
estética dionisíaca - o sentimento de alegria.
_A razão de ser �-�--!Tagédia �stá n�-��a. O herói trágico
_
é negado para nos convencer do eterno prazer do existir, pois,
com a sua aniquilação, fica restaurada a unidade originária - a
vida eterna da vontade. Nesse momento de êxtase, de "vitória
alcançada na derrota"\ "a luta, a dor, a destruição dos fenôme­
nos aparecem necessárias para nós6", porque deixam entrever
algo de mais profundo que transcende qualquer herói indivi­
dual; o eterno vivente criador7, eternamente lançado à exis­
tência.
A_'!!'�- =- ��_fav()r da vida - , eis a chave d� pe��
Q.����tzs�!Ie. A arte transfigura o ser existente, mas só a tragédia
exprime a crença na eternidade da vida: "Somente a partir do
espírito da música entendemos a alegria diante do aniquilamen­
to do indivíduo"8• O espírito trágico só pode ser explicado em
termos musicais. Só a música "produz uma réplica do uno
primordial"9, só ela transmite a certeza de que existe um prazer
superior para além do mundo dos fenômenos. Mas sem o
recurso da imagem, a música, penetrando no mais fundo segre··
do da vida, é puramente dor primordial e
eco dessa dor. Tem 0
poder de reconduzir o ouvintes à natureza
, ao estado de prazer
�
eterno, onde les sacnficam sua individu
alida
�
de por um senti­
.
.
.
.
ment� Irres
istível de Iden
tificação com o uno primordial.
. Nietzsche descreve o poder da música como algo cheio de
p�ngo, capaz de ac rretar a destruição
do indivíduo. Para que
�
, .
o home� possa ouVIr a mus
ica - sinfonia da afirmação eterna
- e sentir-se tocado pelo seu poder sem
aniquilar-se, Apolo vem
em seu soc rro, restauran o s a i ividu
�
alidade quase aniqui­
� �
lada, traduzmd a s b dona diOn
lSlaca em imagens apolíneas.
�. � �
.
O mito e o herm trag�cos, colocado
s junto à música fazem 0
papel de um Titã poderoso que toma,
sobre seus o bros ' 0
mundo dionisíaco para dele nos livrar.
·
60
�
?
�
Mito e música
Vejamos agora o que Ni tzsche entende
por mito trágico,
�
o qu� este representa na tragedia
,
e
se
gua
rda
0
mesmo estatuto
, go. Para
do dIalo
o
noss
o
filós
ofo,
_
IJl
!�Q._
Ç
_:y
.m.a Jtistória uma
.
cade1� �-e acol!t�c!meqtos �e,m jg,bula
dpç_et {�gl} l�mas t��<l.ci�s e!!_! seu conJunto,?uma
to:o
�P de ::!�!ll!§ --.-fP-�e�-e
- inte
ca. ( . . ) ;; É a-----e;.- cen
ação de -���,.d��
·-, , . ,_.ÇQffi() .J.I1t�r.pJ�t�ao�-ª'?.
mtisica lõ�
No item 16 e O Nascimento da Tragédia
, Nietzsche apr!'!sen­
a, de for
�� sucmta, . sua concepção sobre o mito trágico. Diz:
Duas espeCies de efeito costuma, pois,
exercer a arte dionisíaca
obr
� : � f�culda?e artística apolínea: a música estimula a uma
_ ca d uni
Intu1çao s1�boh
� ;?rsalidade dionisíaca; em seguida, faz
apaz:ecer a Imagem simbohc
a em sua mais alta significação. A
art:lr
es
ses
fato
s,
inte
ligív
eis em si mesmos e que não são
�
.
mac�ss�ve1s a ne huma observação mai
s aprofundada, concluo
�
,
a aptldao da musica ara gerar o mito,
isto
é, 0 mais significativo
�
dos exemplos e precisamente, o mito trág
ico:
0 mito que fala do
conheCi_mento dionisíaco por símbolo l i.
s"
Partindo dessa citação vemos que, para
Nietzsche, mito e
_
__
.
'
�
�
'·
'·
. ...... .. .
..
� -q�; �qi;)�
.. ..
-
,
·
�
·
61
·
sobre ele primazia.
música não estão no mesmo plano. Ela tem
la universal12, enquan­
Expressa a verdade do mundo em sua esca
mundo"1 3• Reinterpre­
to o mito é apenas Ufl!a "�breviatura do
nos termos de um
tado pela música de Dioniso e traduzido
a uma nova força: "O
pessimismo trágico, o mito helênico ganh
sformava o mito em
tran
e
que libertava Prometeu de seu abutre
�ª��-ea!la da música:
veículo de sabedoria dionisíaca? _A_(Q:f.Ç(l_h
g ia COlE­
s r
. i���!P��_ta .o !llit<? -��Jr� �_d. ·
� !!l�!�!� �ç�_<l._ ':IP. �.�aficar
.
nrofunda signi ,.':t:ão"14
:""'"'"�''
nova e mais
,_,,..a:_: �._,,. .,_.,.,._,..,.... _,,,.,
e lhe dá um
A�si!1! 1._a t��gé4!<:l_!C:,sgata o mito que definhava
, de onde
ssiva
�pi-'�
çonteúdo mais profundo, uma fÕrÍna-mais-�
erfeita
�.!� flo���ce com cores ii:lédii_as �·r.��ll��;�s'ií!i�.<l:. ÍE.�s p
o mito e o mito
união de música e mito. A música fecunda
'
ta-o do desej o
liber
ca15,
o esp�'C;t�d�rdoimpacto da músi
guir-se no devir
por ela desencadeado de precipitar-se e extin
me gerado pela
musical. O mito trágico, como símbolo subli
de seu sonho de
música, para torná-la audível, arranca o ouvinte
destruir sua
para
não
aniquilação orgiástico, leva-o à natureza,
eterna vida,
a
individualidade, mas para fazê-lo alegrar-se com
co, encarnado na
que corre como música contínua. O mito trági
a do especta­
própria pessoa do herói, atende ao desej o de belez
, incitando-o
vida"
da
ens
dor, fazendo desfilar diante dele "imag
a captar o núcleo vital nelas contido.
ento que
Haveria ainda, segundo Nietzsche, um outro elem
.9 diálogç. "A
descarregaria a violência dionisíaca na tragédia:
uma manei­
ém
tamb
é
o,
tragédia, diz ele, enquanto drama falad
proteger o
de
16,
ra de descarregar a violência dionisíaca do mito"
embora mito e
homem da terrível dor que o mito revela. Mas
têm o mesmo
diálogo preencham a mesma função, eles não
).Ísica. é. ao..
d(l.!!!
cia
valor. O. .mit.o pr.Qt.ege o ouvi!lte da violên
diálogo é
Q.
_!Jle§!rlo t�ll1P�· dionis_íaco e apolíne_o, enquaptQ_
apolípçp_.. Ago­
-ªR�n.(l� \lma i}us}i.o protetox-ª,_pq.rtanto somente
os ao canto
ra, mito e diálogo juntos, na tragédia, subordinad
discordân­
feia
mais
a
desde
coral, mostram que todas as coisas,
artístico
jogo
cia à mais estranha dissonância, fazem parte de um
nasce e se
jogado no coração do mundo, que tudo o que
• .•·.c�"•'·�· �··• ._,____
•. ··�·- "•.••-•·••·-.,. , •"
individualiza deve perecer: só a vida é necessária, um eterno
prazer.
A_gor prpduti.va.,o sofrimento transfigurado' a vida
s-ra·
o
-do. .mms Yl'da e a vida ..eterna. . eis .o .que. representa o drama
.
NOTAS
�ie�che resume com uma lenda a sabedoria dionisíaca da exis­
1.
tenn�. Conta-se que, em um despertar dos sátiros do estado de
embna�ez na floresta, Midas, rei da Frígia, corre atrás de um
�eles, Sdeno, companheiro de Dioniso, para perguntar-lhe 0 que
e o mel�or e o mais conveniente para os homens. Cala-se 0 sábio
firme e Imo, �el, até que, coagido pelo rei, profere, entre gargalha:
das, as segumtes palavras: "Mis �rável raça de efêmeros, filhos do
�caso e da pena, por que me obngar a dizer o que não tens o menor
mteresse em escutar? O bem supremo: não ter nascido, nao
ser,
,
nada ser, te e ab so1utamente inacessível. Em compensação' 0
segundo dos bens tu podes ter: é logo morrer. " ( 0 N,asczmento da
..
..
p;-�t�g�
62
..
..
musical .gr.ego.
·
Tragédia, 3).
2. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 7.
3. Cf. Idem e "A Visão Dionisíaca do Mundo" ' 3
'
onde 0 subi'une e,
.
cons1'derado como a "SU!Jeiçao artística do horr1'vel" e O COmiCO
, .
c�mo a "descarga artística
do nojo do absurdo".
4. N�etzsche, O Nascimento da Tragédia, 2 1 .
5 . N1etzsche, Fragmentos Póstumos' final de 1870
abril de 1871
.
_
.
A
•
_
7(128].
6. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 17.
7. Cf. Idem, 9 e 16.
8. Idem, 16.
9. Idem, 5.
10. N�etzsche, Fragmentos Póstumos, 1871, 9(125].
1 1 . NIetzsch :, O Nascimento da Tragédia, 16. Rosana Suarez, em sua
d1_ �sertaçao de mestrado: Arte e Linguagem nos primeiros escritos de
trabalha com muita acuidade a noção de símbo1o, que
ela define " co�o o regxme
.
das aparências da arte no qual estas se
c?locam a �erv1�0 d� expressividade da linguagem musical, propi­
_
CI��do ao �magxnar10
da arte a veiculação de um conteúdo origi­
nano e umversal" (p. 5).
12. C�. Idem, 16 e tam�ém Fragmentos Póstumos, outono de 1869, 1 (49].
13. Nietzsche, O Nasczmento da Tragédia, 23.
Nzetz.sche,
63
-
-
· 14. Idem, 10.
- de
a, em sua d'1ss�r çao
15. Cf. Idem, 2 1 . Wilson de Campos Vieir
be
o
mmt
destaca
� ?
mestrado Musiq'U( et .Geste chez. Nietzsche,
o a
relaça
em
tem
neo
caráter protetor �e o elemento apolí
música.
I 4 a. 1 871,9 [12].
16. Niétzsche, Fragmentos Póstumos, 9 = U
�
q
CAPÍTULO 5
A FUGA DA MÚSICA
A fraternidade entre Dioniso e Apolo foi de curta duração.
Depois de Ésquilo e Sófocles, vem Eurípides, e, com este, a
tragédia agoniza e morre. Quando ele abandona a música, a
fonte onde bebe o trágico, quando põe de lado Dioniso, Apolo
também o deixa e desaparece. Quebrada o .liame. enu:e....os
deus.e�.Eurípides. volta-se .para..os.hamens. Huzna.Iliza..Q...teatr.o
deAtenas, suplantando o. drama .dos..deuses..e..dos heróis com a
dram.a. dos s.eres .co.mlJOS.
Com o propósito de reconstruir o drama trágico, Eurípides
dessacraliza a cena. �ele....o_único.her.ói..era Dioniso��emaz:a..
nha.do_n.ared.e..da v.ontade individual "1; com ek. sobe .aa_pako.
o homem..da.Yid.a.cotidiana, .que . deixa ..o. espaço reser.v.ado. .aos
espeçtadw:es.,�de...a..c.en.a. O espelho, que antes refletia a
grandeza apropriada aos semi-deuses, reproduz agora, com
extrema fidelidade, as imagens da vida comum: familiar e coti­
diana. O espectador, que na excitação dionisíaca dividia com o
coro a visão do deus, no novo drama torna-se espectador de si
mesmo. O que vê e ouve é seu duplo, e esse exprime-se bem,
não com a fala própria do semi-deus ou do sátiro embriagado,
mas com a linguagem retórica, cheia de sutilezas. A cena, que
J
64
65
a-se nesse teatro o lugar
na tragédia antiga era secundária, torn
coro ficava e� segundo
privilegiado do espetáculo: "( . . . ) o
passo a ma1s, e a cena
plano, apenas para colorir o conjunto. Um
ópole; o diálogo dos
metr
a
já dominava a orquestra, a colônia
ocuparam o primeiro
personagens e seus cantos individuais
rtante até então: a
plano e sobrepujaram o que havia de impo
do coro"2•
impressão de conjunto dada pela música
r das Bacantes, nem
auto
do
Nietzsche não nega o talento
sim, em investigar o
sua notável produtividade; preocupa-se,
da tradição, d� sua
porquê de sua caminhada a contrapelo
ta à de sua ongem:
reconstrução da tragédia numa vereda opos
a música.
nal, ao afastar
Eurípides, ao fundar o drama sobre o racio
, de que forma
do coração da tragédia seu fundo dionisíaco
opéia drawátka e
dramática dispõe para criar o trágico? pa..ep
ir-se total­
dela sowente. Mas assim como o ator não pode fund
, nem tão
épico
do
mente com suas imagens, como faz o rapso
os
s corp e outras
pouco se transformar e falar mediante outro
co, também não
almas, como acontece com o dramaturgo trági
mente - produ­
poderia - e isso Nietzsche assegura categorica
de estimulantes
zir algum efeito. Por isso, Eurípides lança mão
no apolíneo.
que não se encontram nem no dionisíaco, nem
da lucidez e
Pensamentos frios e paradoxais tomam o lugar
m em cena em
precisão apolínea; explosões emocionais entra
pintados com
ões
lugar .do fundo musical. Pensamentos e emoç
extremo naturalismo 8•
A dialética otimista
fizeram
A ausência da música e o exagero do sentimento
diálogo
o
ela
com
e
,
..;...
ica
dialét
a
aparecer uma nova figura nto da
eleme
Esse
.
assume proporções que antes não tinha
efeito
um
z
dialética se introduz furtivamente no drama e produ
devastador.
na
Com a hegemonia da palavra, a música torna-se serva
66
disputa. Cria-se um dualismo no âmago do drama musical, que
desfaz a unidade interior entre música e palavra, música e ação,
coração e entendimento, querer e intelecto. E então, cada parte
isolada se atrofia4• Qher.ói..do. dramajá não pode suwmhir, é
preciso que ele também..se .tome Uoherói..da"p�
..
Assim, se Eurípides representa um divisor de águas em
relação à antiga tragédia, isso se deve, principalmente, à sua
atitude não como poeta, mas como pensador racional. Sentado
no banco dos espectadores, refletindo sobre a estrutura do
drama de Ésquilo e de Sófocles, Eurípides adquire uma capaci­
dade crítica que o leva a formular uma "estética racionalista" e
a p vilegiar a consciência, a razão, a lógica como critérios pel s
.
quats se deve onentar toda a produção estética.
Na verdade, essa estética consciente é produto de uma nova
aliança: a de Eurípides e Sócrates. Çom elachega aofim a idade
�
�
jd
-::>
trágica epriudp.ia.a. idade.da razão Oenlaceda arte !:.OJD avid;;� cÃbvt/c..
cleixa..dc:: s:xistir � dá lugar ao..da.art.e..c.am.a ciência Para essa
aliança, Nietzsche tem um nome: "socratismo estético". Seu
princípio é mais ou menos o seguinte: tomar a inteligibilidade
o pré-requisito da beleza. Tudo tem de ser inteligível para ser
belo - correlato ao princípio socrático "tudo para ser bom deve
ser consciente".
Com a intenção de tomar o solo dionisíaco consciente
Eurípides introduz o prólogo, que explica, do princípio ao fim
a ação. Isso que um dramaturgo moderno chamaria de quebra
de tensão é, nos dramas de Eurípides, .pro.d.Y.tQ, de .um "agudo
pr.o.çessr.u;ri.tk:oeWD..t.�mpl�l d�.Ia..ciQru!lida.de. Por considerar
que o espectador encontrava-se, nas primeiras cenas, em estado
de inquietude, com receio de perder o entendimento das cenas
posteriores, por faltar-lhe o elo das histórias anteriores, Eurípi­
des coloca na boca de uma divindade, para que não houvesse
qualquer dúvida sobre a realidade do mito, o relato do que
"precede a ação, do que aconteceu até então e mesmo o que irá
acontecer durante o desenrolar da peça"5• !Yd.Q.iS.SiLCOID yma
.
.fimal'd
l.J;!de.�.�Q..l!� . !H;.§{lectador deixe cte.. çbe�r ao patha$.
Ora, mas de que modo poderia ele fruir o efeito patéticq,
:
.. .
.
.. .
..
67
..
..
.
.
se a música é apenas um "excitante", um "estimulante para
nervos indiferentes" e não mais a soberana da cena? Pela paixão
e pela poesia. Eurípides-quer obter, pela fon;;a da palavra. Q
efeito da xmísica.
No drama antigo, "a música estava destinada a apoiar o
poema, a reforçar a expressão dos sentimentos e o interess e das
situações, sem interromper a ação, nem perturbá-la com orna­
mentos inúteis"6• Era empregada para despertar nos espectado­
res uma fortíssima compaixão pelos sofrimentos dos heróis.
produzir
Segundo Nietzsche, também a palavra poéti� poderia
.
.
.
•.l
k
.
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c\;.
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pnme1ro
pms
•
--·
-o mesmo efeito, se bem que de maneira �
atua sobre o mundo conceitual e só depois atinge o sentimento.
A- mftsica, por ser uma _ linguagem universal.... entendida poL
manifestação de algo mais profundo - "o racionalismo socráti­
co", que se resume nessas três fórmulas: "Virtude é saber, só se
peca por ignorância, o virtuoso é feliz"9•
ParaNjetzscbe,_,a,.ma.io.rjnfeliddade.da..G.réda
foi Sócrates.
,
feine.desarmo.nio.su.,,.ter:s.ejnu:o.dmid.o no..dral:ru!...<:Je Eurípides.
..
Eurípides, porém, não consegue produzir com a palavra a
compaixão trágica. Embora tenha construído sua poesia no
modelo do puro sonho, tal como Homero constrói a Ilíada e a
Odisséia, sua tendência apolínea já se encontra "encerrada na
crisálida do esquematismo lógico"8, ou seja, despojada de sua
força poética. O próprio mito trágico, que antes nascera da
música, em suas mãos, é transformado em uma sucessão de
acontecimentos racionalmente concatenados.
Mas a estética consciente de Eurípides não tem apenas o
prólogo como esquema racional, também o epílogo realiza essa
função. O "consolo metafísico", sem o qual seria inexplicável o
prazer e a alegria na tragédia, foi substituído pelo deus ex
machina. Tendo o gênio da música abandonado a tragédia,
sendo a música indissociável do "consolo metafísico", Eurípides
não tem escolha: um deus-máquina desce ao palco, traz "uma
resolução terrestre para a dissonância trágica", um futuro mais
ameno para o herói. Com esse fecho, Eurípidesjustifica sua visão
da tragédia, e o espectador ganha a serenidade do homem
teórico, que acredita poder a ciência guiar a vida, e o saber
endireitar a ordem do universo.
Como vimos, esse espírito racionalista de Eurípides não é a
única causa da morte da tragédia, ele é, em última instância,
Onde deveria reinar o espírito mítico, aristocrático, pessimista,
começa a governar uma dialética e uma ética otimista, que
pressupõe serem os problemas essenciais da existência resolvi­
dos pela atividade do pensamento.
Desprezando tudo o que se realiza "só por instinto"10,
interpretando a arte trágica como algo não racional, que não
pode ser concebido conceitualmente, julgando que o homem se
desvia da verdade ao apresentar "efeitos sem causas e causas sem
efeitos"11, o socratismo condem1 a arte trágica. Coloca-a na
categoria das artes aduladoras que representam o agradável e o
não útil.
É desse modo que Sócrates ignora Dioniso, a raiz selvagem
da arte grega, e dissocia arte e vida. Onde havia afirmação da
vida e dissolução do sofrimento no seio da natureza, proporcio­
nada pela unidade interior entre música/palavra e música/vida,
surge a �_ç_ão _9a v.i_�_o_ciomín.kuia. .dialé.tica..utimista.; "A
dialética otimista, com o açoite de seus silogismos, expulsa a
música da tragédia: isto é, destrói a essência da tragédia, que só
se deixa interpretar como manifestação e figuração de estados
dionisíacos, como simbolização visível da música, como mundo
sonhado por uma embriaguez dionisíaca"12.
A natureza lógica de Sócrates, essa figura histórica do
racionalismo grego, obriga a música a submeter-se à dialética, e
assim p homem .tr� é suh.teórico,
que
.,titnído_p_cl.Q_.l;w.mem
op.õe a idéia à_vida.,julga a.l'.ida pela.idéia.postu.J.a .alida como
algo que deve serjulgado.eln.tro.ch.ll ::a.çrençaina.b.al�;�iy ld�
o pensamento, seguindo o fio. da causalidade, p.o.de..atingil: .a.s
ªl?ismos mais longínquos. do ser e q!Jç.�J�J]..ªO apenas é capaLde
çon.lte.cer o. ser., mas ainda...de_ co.1Xigi:lo." I3.
Em conseqüência desse racionalismo, que tem a ilusão de
poder curar a eterna ferida da existência pelo conhecimento14,
68
69
..
todo:�.tw;a iroediatarn�e .o coração7•
a música, que fora a mãe da tragédia, a voz de Dioniso em pessoa,
que exprimia toda a desmesura do querer, o seu prazer e a sua
dor, limitada entre um .<!to. e outro, abandona o espetáculo: ( . . . )
É ridículo mostrar um fantasma almoçando, é ridículo pedir-se
a uma musa tão misteriosa, como é a musa da música trágica,
que cante no tribunal, nos entreatos das escaramuças dialéticas.
Consciente desse ridículo, perplexa com sua inaudita profana­
ção, a música cala-se na tragédia. Cada vez menos atreve-se a
elevar a voz, e finalmente embaralha-se, canta coisas fora de
propósito, envergonha-se e foge totalmente dos teatros"15•
"
CAPÍTULO 6
PALAVRA E MÚSICA OU
O ESTILO RECITATIVO NA ÓPERA
NOTAS
1 . Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 10.
2. Nietzsche, "O Drama Musical Grego", ed. francesa, p. 25, ed.
alemã, p. 528.
3. Cf. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 12.
4. Cf. Nietzsche, Fragmentos P6stumos, outono de 1869, 1 [49].
5. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 10.
6. Nietzsche, "O Drama Musical Grego", ed. francesa, p. 25, ed.
alemã, p. 528.
.
7. Cf. Nietzsche, "O Drama Musical Grego", ed. francesa p. 28, ed.
alemã, p. 528.
8. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 14.
9. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 14.
10. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 1 3.
1 1 . Idem, 14.
12. Idem.
13. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 15.
I - .:�· ·t.
14. Cf. Nietzsche, Idem, 1 8.
15. Nietzsche, "Sócrates e a Tragédia", ed. francaa pil. ed. alemã p.
548,549.
' �� ' ;
,
l '.'f.
70
O socratismo estético marcou de tal forma a história da
humanidade que, em toda busca que fizermos para esmiuçar a
decadência da vida e da cultura e a conseqüente degenerescên­
cia da arte, ele estará presente, provocando toda espécie de
devastação. Foi assim com a tragédia, será assim com a ópera,
que segue os mesmos princípios do socratismo.
,
, .
.
{"\ "'"
h.erne
_] t•ra do socr;msma e,Jnstamente,
��.torna.anp.era_u
�pri\'.ll�gia.L.a...pala.vra..cm _detri.m�D.to..da.,.w.úsica.t!..de
..
r.ev.elar wna_visão atimistaeidílica daais.têru:ia,istoé,ac;reditar
que, naorigem.do.mundo,.existe um hom".W baw e oatw:al.­
mentt_�ço,..que .. c;anta.p.cl.o.meUQ�:umll!2UÇQ. a fim ge,na
·
w.eno.r_excitação sen�poder qmtí'u:a toda lLQk"1.
.
Mas antes de analisarmos a relação palavra e música na
ópera, uma observação se faz necessária. A partir de seu item
19, O Nascimento da Tragédia toma uma nova direção. Já não
vemos Nietzsche voltado apenas para o estudo dos gregos, mas
preocupado em investigar a origem da ópera2, caracterizá-la
como obra da cultura socrática, em oposição ao drama musical
wagneriano, obra de uma cultura trágica. Essa mudança é vista
71
r
drina desclassifica o dionisíaco e exige que ele se torne visível à
razão, de modo que o trágico - a afirmação da existência ceda lugar ao otimismo do saber e à febre de viver.
.
O que melhor encarna esses ideais é a ópera. Ela é regida
pelos mesmos princípios que regem a cultura socrática: a prima­
zia da palavra, o otimismo do homem teórico e a superioridade
do leigo crítico sobre o artista.
com desconfiança pela maioria dos intérpretes desse livro de
juventude. Acreditam ter Nietzsche, apaixonado por Tristão e
!solda, renunciado à f!!ologia e, influendado por Wagner, se
dedicado à divulgação de sua obra.
No entanto, ao estudar � idéias de Nietzsche sobre a
música, essa segunda parte de 'O Nascimento da Tragédia me
parece perfeitamente orgânica em relação à primeira. Nietzsche
não abandona a filologia, nem muda suas idéias sobre a música.
Entende sim o trabalho do filólogo num sentido diferente de
seus contemporâneos: "Não sei, escreve, para que poderia servir
a filologia clássica no nosso tempo, senão para lançar uma ação
intempestiva contra esta época, sobre esta época e, assim espero,
em benefício do tempo que há de vir"3•
Dessa maneira, avesso à filologia profissional, que havia se
tomado um trabalho de antiquário, Nietzsche busca a cultura e
arte antigas, no que elas podem servir para construir a cultura
moderna. Muito embora saiba que o ideal de uma verdadeira
cultura ( a "unidade de estilo artístico em todas as manifestações
vitais de um povo"4) não mais existe, tendo sido substituído pelo
espírito socrático, acredita que esse ideal deve ser buscado como
alternativa para a decadência da época moderna. Por isso, na
sua ótica, Wagner, ao dar primazia à música, traz à baila a
experiência dos trágicos e, com ela, sua cultura.
Ao discutir a cultura, Nietzsche estabelece uma distinção
entre cultura trágica e socrática. Caracteriza a_trág:ica pela..
�J:ª-º�ªJndtslrutibilidade da vida_._.e .a socrática Ee!Q_�orao
� A primeira se manifesta através da música, a segunda se
exprime pela palavra. Assim, qualquer cultura que assegure a
preponderância da música é trágica, qualquer uma que dê à
palavra prioridade, socrática.
Na ç:JJ,ltura moderna, onde domina a _p<l:!_�vra, o que preva­
lece são os ideais .da._homem-te.óriço que, arma49 de conheci­
wentas..po.derosos. põe a vidaqa_servko da ci� O protótipo
desse homem teórico é Fausto. Descontente, ele entrega-se à
magia e ao diabo por sede de saber. Privilegiando o conheci­
mento em detrimento da arte, essa cultura socrática ou alexan-
O recitativo, estilo meio cantado e meio falado, usualmente
acompanhado por um instrumento, cravo ou violoncelo, enfati­
za a modulação das palavras e permite ao cantor uma espantosa
72
73
Camerata Fiorentina
A ópera surge no final do século XVI, na Itália, quando um
grupo de intelectuais e músicos5, chamado "Camerata Fiorenti­
na" incentivado pelo conde Giovanni Bardi, reúne-se para dis­
cutir a possibilidade do renascimento da arte musical. Esse
grupo, atento ao fato de as letras das músicas não serem com­
preendidas perfeitamente, passa a pesquisar a música grega e a
investigar a ligação música e palavra na tragédia. A partir dessa
pesquisa, ensaia uma nova forma de canto, onde as palavras,
sem destruirem os versos, tornam-se mais inteligíveis.
Para satisfazer ao desejo do ouvinte de compreender as
palavras sob o canto6, surge, então, ao lado da catedral das
harmonias palestrinas, baseado no princípio do contraponto,
do movimento melódico, da consonância e da dissonância, em
cuja construção trabalhou toda a Idade Média cristã, um com­
posto não-natural gerado por impulsos extra-artísticos: o recita­
tivo, stillo rappresentativo, que os florentinos projetam como o
equivalente do discurso melódico que eles supunham ser o
diálogo na tragédia.
O recitativo
-
stillo rappresentativo
flexibilidade, de movimento da fala à tonalidade, de acordo com
a demanda dramática do libreto, sem no entanto sobrepujar
inteiramente a música
Para que não exista a ameaça de a música irromper em cena
como figura principal, o que destruiria o impacto do discurso e
a nitidez da palavra, o autor do libreto ctíã situações onde o
cantor pode estender com virtuosidade sua voz e descansar no
elemento puramente musical, sem levar em conta a palavra.
Assim, ao mesmo tempo em que abre espaço para a música,
circunscreve sua participação aos breves momentos das interjei­
ções líricas, da repetição das palavras e sentenças.
Essa aglutinação de palavras e música foi considerada pelos
criadores da ópera como a verdadeira recriação da arte trágica7•
Para Nietzsche, ao contrário, embora a ópera possa dar uma
idéia· do que era essa arte, ela é apenas uma caricatura do drama
musical grego.
A posição de Nietzsche é clara: os pontos de dessemelhança
entre a tragédia e a ópera são maiores do que os que as
assemelham. Enquanto a tragédia nasce de um cortejo dionisía­
co e da canção popular, quando o liame entre palavra e música
ainda não havia sido rompido, a ópera surge em um gabinete,
das mãos de eruditos florentinos, que pretendiam renovar os
efeitos produzidos pela música na antiguidade8• Ora, fruto de
uma teoria abstrata, a ópera não dá continuidade à magnífica
arte dos antigos, que brotara da vida de um povo. Pelo contrário,
mutila suas raízes, isto é, altera de tal modo as características
dionisíacas da música, que essa se toma escrava do texto e da
aparência dos fenômenos.
De espt:lho. dD.,IDU!lQQ�,..ª·· m!Ísiça . toma�s�- �m3..�;gte . da
imitacão. Mimetiza os fenômenos e, nesse aspecto, tem mais
semelhanças com a música do novo ditirambo ático e com a
música literária da Idade Média do que com a tragédia. Tal como
o novo ditirambo, não reflete a vontade, mas sim imita o sentido
das palavras; uma tormenta no mar, por exemplo, será acompa­
nhada de uma música tormentosa. Tal como a música literária
da Idade Média, cujas notas eram representadas nas partituras
. .... _
·
·
..
74
com a mesma cor das coisas referidas no texto, - isto é, verde
quando mencionava plantas, campos e vinhas, vermelho púrpu­
ra quando falava do sol e da luz - , é feita mais para os olhos do
que para os ouvidos9•
Mas colocar .a música a serviço da imagem e da palavra,
empregá-la como um meio em vista de um fim, parece a Nietzs­
che tão ridículo quanto o personagem que quer se elevar no ar
com a ajuda de seus próprios braços10• A música jamais pode
servir de meio. Mesmo em seu estado mais grosseiro, sempre
ultrapassa o texto e o rebaixa a ser apenas seu reflexo. Compa­
rada à música, toda expressão verbal tem qualquer coisa de
indecente; dilui e embrutece, banaliza o que é raro .
Certamente a música pode engendrar imagens que são "es­
quemas ou exemplos de seu conteúdo universal" 11• Entretanto, o
caminho inverso é impossível. Querer ilustrar musicalmente um
pot>:ma, querer tomar inteligível a palavra pela música é como virar
o mundo pelo avesso, "é como se o filho quisesse engendrar o
pai"12• Imaginar que a ópera precisa de libreto, de palavra para
suscitar o sentimento musical, acreditar que "as palavras são mais
nobres que o contraponto"13, que "a letra governa a polifonia como
o senhor ao escravo", é desconhecer a natureza da música: "Como
o mundo apolíneo do olhar, absorto na sua contemplação, poderia
engendrar o som que simboliza uma esfera excluída e rejeitada
pelo encantamento da visão apolínea? O prazer da aparência não
pode suscitar o prazer da não-aparência; a volúpia do olhar só é
volúpia porque nada nos lembra uma esfera em que a individuação
já está rompida e abolida"14•
Se Nietzsche, fiel à sua estética do apolíneo e do dionisíaco,
não aceita a concepção da ópera, que acredita poder o texto
inspirar a música, também não concorda que esta nasça dos
sentimentos engendrados pelo poema. Na verdade, os senti­
mentos podem simbolizá-la, mas são o que há de não artístico
na arte. Quando um músico faz música para um poema, não se
inspira nem nas imagens, nem no conteúdo sentimental do
texto; quando isso se dá é porque o poema por si mesmo já era
musical, ou tendia a tornar-se música: "Uma incitaÇão musical
75
que vem de esferas inteiramente diferentes escolhe esse texto
como uma expressão que a ela se assemelha"15•
Ainda para enfati:IW' essa idéia da impossibilidade de haver
uma relação necessária entre os dois mundos distintos - som
e palavra - , para mostrar que entre eles existe ape� uma
relação de exterioridade, Nietzsche recorre a um exemplo: a
Nona Sinfonia de Beethoven. Composta para a Ode à Alegria, de
Schiller, essa música nada lembra o poema que a acompanha. A
ode de Schiller não convém à alegria ditirâmbica dessa música,
ingênua e popular, que evoca a redenção universal. Isso é tão
evidente que, ao sermos tocados por ela, não nos preocupamos
em entender as palavras, e até mesmo ouvi-las nos é indiferente16•
Mas, se é verdade que nas inúmeras anotações que fez
para a última parte da Nona Sinfonia o que preocupava Beet­
hoven era a sua música e não as palavras do poema (que, para
ele, tinham um valor puramente sonoro17) por que, então,
escolhera a Ode à Alegria? Nietzsche responde a essa questão
mostrando que Beethoven precisava, para desdobrar ao máxi­
mo a potência sonora e os acordes cheios de alegria de sua
música, do "som persuasivo das vozes humanas" e não do sentido
das palavras. �.z� <:&tavam ali,. �m sua. sinfonia, tr.atadas _à.
_
...
maneirade jnstnn:os:DtO,S .ID\,l.SÍ-'.ais.
Com a música de Beethoven nos ouvidos, com o coro das
mil vozes saudando a música, dominadora e única rainha,
Nietzsche admira-se que a ópera nasça para atender ao desejo
dos ouvintes de querer ouvir e compreender as palavras sob o
canto. Para ele, tal fato é sintoma de decadência, e por isso
adverte: q;uaru.:lQ.a
. .mú�jça pt!r:-.Q<::. sua primazia, também .as.pala­
�"perdern seu ver.dadeiro.sentido comunicativo18•
A ópera: uma visão idt1ica da existência
de que é possível criar uma visão menos sombria da existência,
menos trágica, onde na origem estaria o bem separado do mal
e um homem sem pecado, originalmente bom e virtuoso.
Pouco importa a Nietzsche que os humanistas do Renasci­
mento combatam através dessa crença a concepção teórica cristã
do homem predestinado ao mal e à condenação. Embora_<ks:
§em à áp.era.o caráter de oposição a um dogma, não forail1
radi� a ponto ckgçixar.em�e.sse lugar vazio; preench<':DUU-.uo,
com u.m 9\l�r:() .4ogma; .o .homem na1u:rªJme;:n�.bom. Derruba­
ram, com o seu pretenso paganismo, o verdadeiro paganismo
dos deuses gregos e transformaram o êxtase musical em mera
compreensão racional de uma retórica da paixão, feita de pala­
vras e sons, no stillo rappresentativo.
Assim, querendo restaurar o que julgam ser a linguagem
originária da humanidade19 (o recitativo), esses humanistas
criam uma visão idílica, em oposição · à antiga e verdadeira
simplicidade representada pelos sátiros embriagados; projetam,
na origem da humanidade, um homem eternamente artista,
pastor, cantor, tocador de flauta, e então, sob a inspiração dessa
falsa origem, geram uma espécie de arte despida de caracterís­
ticas apolíneas e dionisíacas, pondo em risco a sobrevivência da
cultura e da própria vida, que precisa da arte como bálsamo e
espelho transfigurador.
Em suma, �rindpal m!kª.!fe Nietzsch�-ª-9�Itá.
4..ell
...Iul.
fa.t.o_d.�.�Jater privilegiado a p�avnu::m d�trlmenta da unis.ü;;�
e.Jey J�ito da música um meio p_a.I1\ YÇi_q.JJ.aL!-J,!P s.�DJid_q_��tri.u;­
��ç_o a.. ela.-:-:- . uma.visão do paraíso pavoadu de..sere.sjogênuos e .
bons - � que � produto de uma hjpçr:!r.9.§'!:..��2-tLzui�mo te�
..
..
·
..
..
NOTAS
A essa crítica à constituição técnica da ópera, Nietzsche
acrescenta uma outra, que diz respeito à visão de mundo contida
em sua poética. Fruto da cultura socrática, a ópera vive da crença
1 . Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 19.
2. Nietzsche, ao estudar a ópera no item 1 9 de O Nascimento da
Tragédia, não faz referência a nenhum comp ositor em especial.
Apenas em seus Fragmentos Póstumos do inverno de 1 871 - outono
de 1 872 encontramos o nome de Gluck e Mozart. O de Gluck
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77
� I
ligado à subordinação da música à palavra: "o texto é, para ele, o
desenho justo e adequado que a música deve contentar-se em
colorir." O de Mozart ligado à subordinação da palavra à mú a.
9 ]).
Ele pede que a poesia·"seja a filha obediente da música" (8[2'
Nietzsche, Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida,
Prefácio.
Nietzsche, David Strauss, o Devoto e o Escritor, 1 .
Os três maiores representantes desse grupo florentino são: Vin­
cenzo Galilei (1520-9 1 ) - pai do físico Galileu - publicou em
1581 o trabalho de teoria musical: Dialogo della música antiga e
moderna; Jacopo Peri - (156 1-1 633) compôs os primeiros dramas
no stillo rappresentativo - Dafne e Eurídice; Claudio Monteverdi
(1576-1643) recriou a riqueza orquestral, mas subordinou a bar- .
monia e o ritmo à palavra. Influenciado pelas idéias de Galilei,
publicou seu primeiro livro de madrigais em 1587 e realizou, em
1607, Oifeo, a primeira obra prima do grupo.
Cf. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 19.
Cf. Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 1 9.
Cf. Nietzsche, "O Drama Musical Grego", ed. alemã, p. 5 16, 517;
ed. francesa, p. 19.
Cf. Nietzsche, "O Drama Musical Grego", ed. alemã, p. 5 1 7, ed.
francesa p. 19.
Cf. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, final de 1870 - abril de 1871,
7[1 27].
Nietzsche, Fragmentos Póstumos, início de 1871, 12[1].
�
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
anotadosmaisdeduzentosaspectosdiferentesdaidéiacondutorado
fmal dessa sinfonia, comprova uma pesquisa obstinada e a especula­
ção puramente musical que a guiava (os versos de Schiller realmente
têm aí um valor apenas sonoro" (p. 36).
18. Segundo Nietzsche, quando existe uma relação harmoniosa entre
palavra e música, não há necessidade de tornarmos compreensí­
veis as palavras. O exemplo dado, para tornar mais clara essa idéia,
é o do poeta lírico ou do cantor popular, que é perfeitamente
compreendido pelos ouvintes que, cantando, acompanham os
versos do compositor. Cf. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, início
de 1871, 12[1].
19. Cf. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, inverno de 1870-7 1, agosto,
8[28].
11.
12. Idem.
13. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, 1871, 9[5] : "Da mesma forma que
a alma é mais nobre que o corpo, as palavras são mais nobres que
o contraponto", carta do conde Bardi citada por Nietzsche.
14. Nietzsche, Fragmentos Póstumos, início de 1871, 12[1]. Para exem­
plificar isso que acaba de dizer, Nietzsche afirma que se pode
contemplar quanto se quiser a Santa Cecília de Rafael escutando
o coro dos querubins, mas isso não evocará nenhuma sonoridade.
E acrescenta: Se Rafael tivesse escutado algum som, certamente
não seria pintor, não teria sido Rafael.
15. Cf. Idem.
16 Cf. Idem.
17. Claude Debussy em Monsieur Croche tem o mesmo pensamento de
Nietzsche sobre a Nona Sinfonia. Eis o que ele diz: "Beethoven não
eraliterário por dois tostões (ao menos, não no sentido que se atribui
hoje em dia a essa palavra). Ele amava orgulhosamente a música; era
para ele a paixão, a alegria, tão duramente ausentes de sua vida
privada. Talvez se deva ver na sinfonia com coros apenas um gesto
mais desmesurado de orgulho, e é só. Um caderninho, onde estão
•.
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