Ritos de passagem no Livro Velho do Tombo

Transcrição

Ritos de passagem no Livro Velho do Tombo
Série Estudos Medievais 4
INTERTEXTUALIDADE
Márcio Ricardo Coelho Muniz
(Organizador)
Araraquara
GT de Estudos Medievais – ANPOLL
2015
Série Estudos Medievais
n. 4
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística
(ANPOLL) - Grupo de Trabalho Estudos Medievais
Comissão Científica:
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Comissão Científica:
Célia Marques Telles (Universidade Federal da Bahia/UFBA)
Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (Universidade de São Paulo/USP)
Maria do Amparo Tavares Maleval (Universidade Estadual do Rio de
Janeiro/UERJ)
Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela/USC)
Rip Cohen (The Johns Hopkins University [USA])
Stephen R. Parkinson (University of Oxford [U.K.])
Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp)
Catalogação:
Programador visual do e-book:
Sumário
Apresentação
Medievística Germanística – fontes e edições de textos: apontamentos
Álvaro Alfredo Bragança Júnior
6
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Ritos de passagem no Livro Velho do Tombo
Célia Marques Telles
30
Universidade Federal da Bahia (UFBA) / CNPq
Uma paródia do amor cortês numa oração farcie:
“Paternoster de las mugeres, hecho por Salazar”
Geraldo Augusto Fernandes
43
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Intra e intertextualidade nas Cantigas de Santa Maria
Gladis Massini-Cagliari
67
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara) / CNPq
O erotismo das imagens femininas na lírica galego-portuguesa
Márcia Maria de Melo Araújo
78
Universidade Estadual de Goiás (UEG)
A Rainha D. Leonor e Gil Vicente diante do Boosco Deleitoso
Maria do Amparo Tavares Maleval
87
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Christine de Pizan e a apologia da mulher:
diálogo e reavaliação crítica de fontes tradicionais da misoginia medieval
Pedro Carlos Louzada Fonseca
103
Universidade Federal de Goiás (UFG)
Clíticos ou afixos no português arcaico?
Tauanne Tainá Amaral
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)
120
Apresentação
Diversas são as concepções de Intertextualidade no campo dos estudos linguísticos e
literários. Desde o conceito de ‘glosa’, ‘citação’ ou ‘acomodação’ medievais, conforme
aponta Geraldo A. Fernandes em ensaio neste livro, às definições mais contemporâneas,
devedoras dos pensamentos de Bakhtin e Kristeva, ou, ainda, às contribuições da
Linguística Textual, as diversas nuances e especificidades do conceito de
Intertextualidade comprovam o quão útil e iluminador, para o criador e para o crítico,
pode ser o modus operandi dialogal em que se baseia. Por isso, quando a
Intertextualidade foi proposta como tema ordenador deste quarto livro da Série Estudos
Medievais a aceitação foi imediata e consensual. A variedade de olhares críticos sobre a
literatura e a língua medievais presentes nos estudos que agora apresentamos,
intermediados pela estratégia intertextual, é prova eloquente de que a escolha foi
acertada.
Os oito ensaios aqui reunidos são frutos das pesquisas desenvolvidas pelos membros do
Grupo de Trabalho sobre Estudos Medievais (GTEM) da Associação Nacional de PósGraduação em Letras e Linguística (ANPOLL). As publicações da Série Estudos
Medievais servem ao objetivo de divulgar as investigações realizadas no âmbito dos
estudos medievais pelos membros do GTEM, cumprindo assim a função de publicizar
os resultados, parciais ou finais, alcançados por seus investigadores. O tema norteador
das discussões – neste livro, a Intertextualidade – propicia o alinhavo necessário à
sistematização das discussões e promove uma aproximação transversal das distintas
pesquisas em andamento.
Em forma de comunicação oral, a maioria dos ensaios aqui reunidos foi apresentada
primeiramente na reunião do GTEM realizada em junho de 2014, na UFSC, em
Florianópolis, no âmbito do Encontro Nacional da ANPOLL, a que o GTEM se
subordina. A diversidade das obras e autores estudados e a variedade das perspectivas
analíticas revelam características próprias do GTEM desde sua criação: a primeira, a de
congregar pesquisadores dos estudos linguísticos e dos estudos literários; a segunda, a
de reunir investigadores de diferentes instituições universitárias do país, alguns com
larga experiência na área, outros, jovens pesquisadores, todos com um interesse
investigativo em comum, o mundo medieval.
Os textos foram ordenados segundo o prenome do autor do ensaio. O primeiro, de
Álvaro Bragança Jr., apresenta uma discussão central para a Medievística Germanística,
o estabelecimento dos textos medievais com que se trabalhar. Partindo de uma espécie
de resenha crítica da coleção de obras publicadas pela Biblioteca da Literatura em
Holandês Medieval, ou BIMILI, e da edição das “obras completas” do denominado
“último trovador” do mundo germânico, Oswald von Wolkenstein, Bragança Jr. elenca
e comenta aspectos linguísticos que orientaram o trabalho com as fontes, refletidos nas
edições que analisa.
Célia Marques Telles renova seus já sólidos estudos sobre o Livro Velho do Tombo do
Mosteiro de São Bento da cidade da Bahia, coletânea de documentos referentes aos bens
patrimoniais imóveis do Mosteiro. Da coletânea, Telles observa atentamente quatro
documentos que trazem registros de rituais de passagem, como a expiação e a
cerimônia do sepultamento e das indulgências. Três são testamentos, de Gabriel Soares
de Souza, de Manuel Nunes Paiva e de Maria Rodriguez de Oliueira; um é traslado de
verba do testamento de Fernão Pirez Manço. Lendo os documentos, Telles testemunha,
com um exaustivo levantamento de exemplos, procedimentos medievais renovados nos
ritos de passagem evocados pelos documentos do Livro Velho do Tombo do Mosteiro de
São Bento da cidade da Bahia.
Tomando duas obras habitual e pertinentemente postas em diálogo, o Cancionero
General de Hernando del Castillo (1511-1514) e o Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende (1516), Geraldo Augusto Fernandes demonstra de que modo os poetas
cancioneiris ibéricos recorriam à intertextualidade para criação de seus poemas.
Apresentando e discutindo um diálogo textual específico – o das trovas quinhentistas
com a oração bíblica, o Pai Nosso –, Fernandes revela as técnicas retóricas a que
recorriam os poetas para o estabelecimento do diálogo: a ‘acomodação’, a ‘citação’ e a
‘glosa’. Conforme argumenta Fernandes, há poetas que optam pela ‘citação’ ou ‘glosa’
da oração bíblica, resultando em poemas de cunho devocional e místico, caso de Hernán
Pérez de Guzmán, poeta do Cancionero General castelhano, e de Luis Anriquez, poeta
do Cancioneiro Geral português. Por outro lado, ao optar por uma chave satírica ou
paródica, Salazar, poeta do Cancionero General, recorre à técnica da ‘acomodação’
para construir seu diálogo intertextual.
Gladis Massini-Cagliari centra seu estudo num desdobramento da noção de
Intertextualidade, a estratégia de auto referenciamento proposta pela “intratextualidade”.
O conjunto de textos que compõem as Cantigas de Santa Maria, cancioneiro atribuído a
Afonso X (1121-1284), é o corpus a partir do qual Massini-Cagliari recolhe um
pequeno número de cantigas cujos conteúdos derivam de uma mesma fonte e que
apresentam características estilísticas comuns. Esta constatação anima Massini-Cagliari
a lê-las e interpretá-las a partir de um diálogo intratextual ou, na perspectiva da
estudiosa, ‘intracancioneril’.
Da mesma forma, Tauanne Tainá Amaral toma as Cantigas de Santa Maria, de Afonso
X, como objeto de seu estudo. A perspectiva agora é a de investigar o “status prosódico
do grupo clítico no Português Arcaico (século XIII)”. A tese, que se comprova
verdadeira, é de que os grupos clíticos, hierarquicamente, “formam a primeira categoria
prosódica pós-lexical no Português Arcaico”, assumindo uma função fonológica que os
eleva à condição de maior independência, quando comparados com os afixos.
Assim como os três estudos anteriores, também o ensaio de Márcia Maria de Melo
Araújo toma a poesia cancioneril como objeto de seus estudos. Desta vez é a poesia
trovadoresca galego-portuguesa profana, mais especificamente as cantigas de amigo de
João Soares Coelho, João Zorro e Pero Meogo, o corpus analisado. Araújo investiga o
erotismo representado nas “imagens femininas” encontrados nas cantigas daqueles três
poetas. A partir de análises das cantigas em paralelo, Araújo discute o diálogo nem
sempre pacífico de elementos constituidores de certa imagem da nobreza medieval, tais
como fidelidade e coragem, ternura e amor.
Em perspectiva distinta, mas ainda no campo da Intertextualidade, Maria do Amparo
Tavares Maleval faz convergir em seu ensaio três de seus grandes interesses
investigativos: o papel político, social e cultural da rainha D. Leonor; a obra de caráter
mais devocional do dramaturgo Gil Vicente; e o tratado de edificação espiritual, o
Boosco Deleitoso. A alinhavar a diálogo entre os três elementos o franciscanismo e/ou
agostinianismo entrevistos ou expressos sejam nas ações de mecenato religioso e
cultural de D. Leonor, nos autos devocionais de Gil Vicente, representados em sua
maioria por animação da Rainha Velha, ou nos aconselhamentos fornecidos pelo
Boosco Deleitoso, também ele mandado trasladar ao português por D. Leonor. Da
análise dos aspectos do franciscanismo e/ou agostinianismo presentes nas ações e obras
acima referidas, Maleval revela um posicionamento comum aos três: “a defesa de uma
concepção da existência humana enquanto peregrinatio rumo ao Eterno”.
Por fim, Pedro Carlos Louzada Fonseca apresenta-nos mais um arguto ensaio fruto de
suas investigações sobre a visão da mulher na Idade Média. Identificando, analisando e
discutindo textos centrais para a construção do discurso misógino e ampliando seu raio
investigativo até “o aparecimento de uma literatura pró-mulher e antimisógina,
culminando com a defesa da mulher pela mulher”, Fonseca toma para análise uma das
obras mais emblemática e polêmica do discurso antimisógino medieval, Le Livre da la
Cité des Dames (c.1405) [O livro da cidade das damas], de Christine de Pizan. O recorte
analítico que Fonseca propõe é o de observar a estratégia de Pizan de, via o diálogo
intertextual com textos clássicos antigos e medievais de teor misógino, de autoria
masculina, promover a desconstrução argumentativa dos discursos discriminatórios
sobre a mulher. Ao longo do ensaio, acompanhamos Fonseca iluminar o texto de Pizan
e revelar seu esforço argumentativo para desconstruir o cerne do discurso misógino
presente nos textos com que dialoga.
Assim, os oitos ensaios que compõem este quarto livro da Série Estudos Medievais são
prova cabal de que a Intertextualidade, seja no campo da criação artística seja no da
leitura crítica, foi e segue sendo um produtivo caminho para se acessar o mundo da
língua e da literatura medieval. Desejamos que o leitor possa, desfrutando das leituras,
concordar com esta perspectiva.
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Medievística Germanística –
fontes e edições de textos: apontamentos
Álvaro Alfredo Bragança Júnior
Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ)
Resumo: O trabalho ecdótico com os textos medievais referentes ao mundo
germânico continental é uma das tarefas basilares da Medievística
Germanística. O presente artigo apresenta, de forma introdutória, três fontes
oriundas do mundo medieval germanófono, a saber, do médio-baixoholandês e do primeiro estágio do moderno-alto-alemão, em que serão
sucintamente elencados aspectos lingüísticos tanto no que concerne às fontes
quanto à organização das edições ora analisadas.
Palavras-chave: Medievística
Frühneuhochdeutsch – Edições
Germanística;
Médio-baixo-holandês;
Abstract: Ecdortic works with medieval texts about the Continental
Germanic world is one of the basic tasks of Medieval Germanistics. This
paper provides an introductory analysis of three German-language medieval
sources, including Middle-Low-Dutch and the first stage of Modern High
German. Linguistic aspects will be listed briefly with respect to the sources
and organization of the editions analyzed.
Keywords:
Medieval
Frühneuhochdeutsch – Editions
Germanistics;
Middle-Low-Dutch;
No cenário acadêmico brasileiro, os estudos relacionados à
Medievística Germanística1 ainda apresentam-se esparsos e
bastante raros, o que não permite aos estudiosos terem um
contato mais substancial com a riquíssima produção literária em
1 - Sobre a conceituação de Medivística Germanística e Filologia Germânica
cf. nota 8.
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8 6
línguas germânicas, em especial durante a Idade Média 2, salvo
exceções ligadas a alguns textos em língua alemã e inglesa. Por
outro lado, praticamente inexistem trabalhos acerca das outras
línguas germânicas e suas respectivas literaturas no medievo.
Com
vistas
ao
preenchimento
desta
lacuna
científica,
aproveitamo-nos, portanto, do lançamento no Velho Continente
de traduções bem cuidadas de fontes literárias medievais em
holandês e em alemão para nossos comentários ensaísticoresenhistas.
As duas primeiras obras pertencem à série intitulada Bibliothek
mittelniederländischer Literatur (Biblioteca da Literatura em
Holandês Medieval, ou BIMILI), publicada pela Agenda Verlag,
2 - Como exceção cita-se a obra capital de Heinrich Bunse, Iniciação à
Filologia Germânica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 1983. Sobre a língua alemã, a partir de um aporte filológico,
as duas obras mais importantes são as de Erwin Theodor Rosenthal, A língua
alemã. São Paulo: Herder, 1963 e a tradução de Jaime Ferreira da Silva e
António Almeida do tratado de Peter von Polenz, História da língua alemã.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1973. Reflexões acerca da importância da
Filologia Germânica no cenário universitário nacional são encontradas em
Bragança Júnior, Álvaro Alfredo & Rocha, Roberto Ferreira da. Notas para
responder à pergunta: o que é Filologia Germânica? In: Silva, Idalina
Azevedo da (Org.). Boletim Inter-Cultural APA-Rio. Rio de Janeiro: APARio, 1996, p. 4-5, e do mesmo autor, Iniciação à Filologia Germânica. Breve
história comparada do inglês e do alemão, encontrado em
http://www.filologia.org.br/vicnlf/anais/caderno02-01.html.
Teses
e
dissertações sobre a literatura medieval em inglês e em alemão também são
escassas, embora seu número tenha crescido significativamente desde 2006.
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8 7
com sede em Münster, Alemanha, e que, sob a coordenação dos
medievistas neerlandeses Bart Besamusca e Carla Dauven-van
Knippenberg, inclui a participação de renomados colegas
holandeses, belgas e alemães como Bernd Bastert, Clara
Strijbosch, Elisabeth Schmid, dentre outros.
A tradução da obra poética do trovador “austríaco”3 Oswald von
Wolkenstein, a cargo de Wernfried Hofmeister, completa o
nosso quadro de exemplos, sobre os quais nos debruçaremos
sucintamente.
No que diz respeito à Biblioteca da Literatura em Holandês
Medieval, doravante BIMILI, a mesma está concebida em 12
volumes, a saber:4
1. Karel ende Elegast / Karl und Ellegast – (lançado em 2005);
2. Reynaerts Historie (lançado no segundo semestre de 2005);
3. Sente Servas, de Heinrich von Veldeken (2008);
4. Reis van Sint Brandaan;
5. Roman van Walewein, de Penninc en Vostaert;
3 - “Austríaco” nos dias de hoje, pois à época do trovador havia a Marca da
Áustria.
4 - Na nomeação dos volumes manteremos os títulos no original.
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6. Beatrijs;
7. Borchgravinne van Vergi;
8. Floris ende Blancefloer, de Diederic van Assenede;
9. Elckerlijc;
10. Strofische gedichten, de Hadewijch;
11. Abele spelen;
12. Die geestelike brulocht, de Ruusbroec.
Como afirmado na contracapa do primeiro volume, a proposta
da BIMILI é:
Editar os mais significativos textos medievais
oriundos do espaço linguístico holandês, vertêlos para o moderno-alto-alemão e comentá-los.
As edições bilíngues dirigem-se aos interessados
em relações interculturais, assim como a
estudantes universitários e cientistas.
Na literatura medieval em holandês, a obra mais conhecida é o
conto Karel ende Elegast, que trata da história do imperador
Carlos Magno, o qual, durante sua estada em Ingelheim, recebe
de Deus a incumbência de partir a cavalo para roubar e, com
isso, fica sabedor de um atentado que se planejava contra sua
vida! A obra em holandês medieval, provavelmente redigida no
século XIII, possui também uma “versão” em médio-alemão,
Karl und Ellegast, cuja datação se situa provavelmente no ano
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8 9
de 1455.5 Ambas são adaptações das canções de gesta com
temática francesa,6 como asseveram Bastert et alii (2005, p. 188194). Sobre os autores ou compiladores dos contos ainda não há
dados seguros que os identifiquem. Entretanto, os textos, bem
como os comentários a eles referentes no Posfácio da obra,
configuram o volume 1 da Biblioteca como uma edição muito
bem cuidada, no tocante à Ecdótica.
Após a apresentação dos textos, por ordem, Karl ende Elegast e
Karl und Ellegast, com o original em uma coluna e a versão em
moderno-alto-alemão na outra, parte-se para a análise da
tradição literária dos contos, na qual estão inseridos – a canção
de gesta – seguindo-se uma caracterização do gênero nos Países
Baixos e na “Alemanha”7, cuja fixação na escrita se prende ao
espaço francófono entre os século X-XI. A preocupação com a
contextualização histórica dos personagens, recepção das obras
5 - Contudo, é importante ressaltar que há várias diferenças estruturais e
conteudísticas entre os textos. Cf. Bastert et alii (2005, p. 193-194).
6 - Pela leitura atenta dos títulos da BIMILI, percebe-se que a influência
francesa em algumas obras em holandês medieval é importante, basta ver o
volume 8, cuja fonte é o romance em versos Floire et Blancheflor, do século
XII.
7 - Utilizamos Países Baixos e “Alemanha” com reservas, pois ambos os
territórios compunham à época da compilação dos contos o então Sacro
Império.
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10
e a própria estrutura das mesmas são contempladas por um
conciso, porém substancial sub-capítulo, em que os tópicos
acima são abordados.8 Por fim, são elencadas diferenças e
semelhanças de estrutura e conteúdo relacionadas com alguns
dos mais importantes topoi das Erzählungen9: Ingelheim, a
floresta e os actantes10 Eggermonde e Orlous.
Do ponto de vista estritamente filológico ressaltamos, após o
Posfácio, a inserção de estudos sobre a Transmissão das fontes,
vital para o estabelecimento do texto definitivo. Segundo Bastert
et alii (2005, p. 206), no que diz respeito ao texto em holandês
medieval, “Karel ende Elegast foi compilado de forma
fragmentária em manuscritos de fins do século 14 e do século
15. Trata-se, no que a isso tange, ... , sempre de folhas únicas ou
duplas, que não abarcam pouco mais do que cem versos”,
enquanto o texto em médio-alemão 11 se resume a um único
8 - Uma das próprias bases da Medievística Germanística. Sobre o assunto
cf., entre outros, BRAGANÇA JÚNIOR, Filologia e Medievística
germânicas – considerações metodológico-práticas, disponível em
http://www.pem.ifcs. ufrj.br/FilologiaMedievalistica.pdf.
9 - Em alemão, no original, “contos”.
10 - Aktanten, no original, os próprios “personagens principais”.
11 - Mitteldeutsch, no original. Corresponde ao “alemão central”, conjunto
de dialetos da língua alemã falada entre os rios Benrath, no norte e Meno, no
sul.
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11
manuscrito
a
Idade
Média
Tardia,
pertencente
ao
Kollegiatstifts12 da cidade de Zeitz, Alemanha.
Logo após as considerações sobre os textos tem-se a Discussão
Bibliográfica, na qual os editores assinalam os principais
estudos críticos sobre os dois contos. Finalizando o volume 1, e
que nos chama bastante atenção, são os critérios para o
estabelecimento dos textos. A edição atual do conto holandês
baseia-se na versão textual de apenas um exemplar de somente
um incunábulo “A”, porque este oferece a (virtualmente) mais
antiga e completa versão conservada do holandês medieval
Karel ende Elegast (BASTERT et al, 2005, p. 213). Após a
apresentação do critério de indexação dos vocábulos do texto
original, as adaptações e correções do manuscrito, a cargo dos
editores, são listadas. Dentre estas citamos as seguintes:
Verso
4
47
134
208
368
Texto Editado
Hoorter
Met
sede
avontueren
doen
Incunábulo A
hoort
Het
seden
avontuer
oen
Português
Ouve
Com
Hábito
Aventuras
Então
12 - No original. Uma tradução aproximada seria “capítulo do colegiado”, em
que “capítulo” se refere a uma assembléia religiosa dentro de uma jurisdição
eclesiástica específica.
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12
O texto-base para a edição em médio-alemão de Karl und
Ellegast, mencionado dois parágrafos atrás, é oriundo do
Kollegiatstifts, localizado na cidade de Zeitz, Alemanha.
Seguem-se as normas que pautaram a edição do texto em médioalemão e o quadro com as variações entre o texto ditado e o
manuscrito original. Algumas das variantes vocabulares são as
seguintes:
Verso
Texto Editado
74
386
503
702
1703
obent
truwe
gemeine
lebet
kampf
Manuscrito
do Kollegiatstift
oben
truge
geyme
lebete
kapf
Português
noitinha13
fidelidade
Juntos
Vive
luta, combate
Um registro com topônimos e antropônimos dos personagens
históricos e ficcionais dos contos antecede a uma extensa
bibliografia, que completa o referido livro, uma edição muito
bem cuidada e com um excelente preparo filológico.
Uma
segunda
fonte
componente
da
Bibliothek
mittelniederländischer Literatur (Biblioteca da Literatura em
Holandês Medieval, ou BIMILI)14 traz à cena um dos mais
importantes textos do mundo ocidental da Baixa Idade Média.
Reynaerts Historie ou A história de Reynart é apresentada ao
13 - Abend, “noitinha”, “anoitecer”, no alemão moderno.
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13
leitor contemporânea em uma edição bilíngüe médio-baixoholandês/moderno-alto-alemão
aos
cuidados
de
Rita
Schlusemann e Paul Wackers.
Talvez um dos textos mais significativos, inclusive dentro da
produção literária do medievo germanófono, a história de
Reynaert, ou em alemão, Reineke, Reinhart, 15 dentre outros
nomes, pertence a uma tipologia textual característica do baixo
medievo, a partir do século XII, que se configura em uma
utilização de animais como metáforas do ser humano em seus
vícios e virtudes. Como estampado na contracapa do volume e
para resumir a épica, a raposa Reynaert, sempre e com
habilidade, sabe se livrar de situações críticas, através de suas
artimanhas, sua astúcia e se aproveitando das fraquezas de seus
oponentes.
14 - A resenha do primeiro volume da Biblioteca foi por nós empreendida.
Cf. em BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Apresentação da Biblioteca
da Literatura em Holandês Medieval – Karel ende Elegast – Karl und
Ellegast. In: SILVA, José Pereira da. (Org.). Revista Philologus., Ano 15,
Número 43. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abri. 2009, p. 175-179.
15 - Devido ao espaço limitado para o artigo não traçaremos aqui a trajetória
profícua de Reynaert pelo medievo germanófono e românico. Sobre o
assunto cf. Reynaerts historie (2005, p. 412-415; p.433-438).
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14
Em alemão o termo Tierepos (épica animal) designa esse
conjunto de textos.16 No caso da obra em holandês medieval,
segundo Schlusemann & Wackers (2005, p. 409), houve duas
importantes versões das aventuras da raposa Reynaert: 17 a
primeira surgida aproximadamente na metade do século XIII
intitulada Van den vos Reynaerde (Sobre a raposa Reynaerd) e a
segunda, uma reedição melhorada e ampliada do texto anterior,
dada à lume ou no século XIV ou no posterior, de título
Reynaerts historie (A história de Reynaert).
Conforme as regras de estabelecimento dos textos da BIMILI,
os
editores
apresentam
diretamente
o
texto
em
mittelniederländisch (holandês medieval) e em moderno-altoalemão. Como em uma edição crítica, são apresentadas em notas
de rodapé informações acerca do texto original, bem como de
conceitos e termos isolados de compreensão importante.
16 - A utilização de animais em diferentes obras e gêneros literários durante
o Baixo medievo demonstra a remissão constante àqueles como quasi
retratos do homem com seus vícios e virtudes. Tanto na épica quanto na
paremiologia em língua latina encontram-se animais como specula humanos.
Sobre a importância destes nos provérbios em latim medieval, cf.
BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. A fraseologia medieval latina como
reflexo de uma sociedade. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, 2009., p. 66-93.
17 - Manteremos em holandês o nome do personagem principal.
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15
Salientamos, e.g., à página 3, a nota acerca do vocábulo
Duutsche:
Duutsche: este conceito, que remonta ao
germânico theuđa através do latim theodiscus,
pode designar todos os dialetos continentais
germânico-ocidentais, as línguas germânicas (cf.
v. 4039-4041) ou também os dialetos do
território lingüístico holandês. Jacob van
Maerlant distingue as línguas do sudoeste
(dietsch) daquelas no norte e no leste
(duutsch). ...18.
Essa preocupação com a inteligibilidade da História de
Reynaert perpassa todos os 7805 versos da obra, após o quê se
procede a sua análise bem mais pormenorizada.
Schlusemann & Wackers apresentam, em um primeiro
momento, a matéria e a tradição da obra, voltando até a possível
fonte original, base para a historie, que teria sido a épica em
latim Ysengrimus, composta por um clérigo na metade do século
XII em Gent, na atual Bélgica. Segundo os editores (2005, p.
411),
este é o primeiro texto europeu, nos quais os
animais não são tipos, mas sim figuras com
18 - As traduções dos originais são nossas.
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16
nomes próprios (os dois mais importantes são o
lobo Ysengrimus e a raposa Reinardus).
Em seguida são mencionadas as fontes em francês Roman de
Renart (redigida entre 1170 e 1250) e o texto já mencionado
Van den vos Reynaerde, anterior a 1270 e composto no leste de
Flandres.
Especificamente no tocante à Reynaerts historie, são mostradas
as diversas camadas textuais e intertextuais que ajudaram ao
pretenso autor, Willam, na composição de seu texto,
salientando-se as variantes de conteúdo e também as
apropriações da obra anterior Reynaerde.
Com um preparo digno das sérias edições filológicas segue-se
um aparato crítico que engloba considerações acerca da
transmissão do texto, via manuscritos B e C, além de dados
técnicos sobre os mesmos, bem como notas relacionadas ao
surgimento dos mesmos.
Outros tópicos componentes da edição que ampliam o horizonte
de investigação relacionam-se à discussão sobre o pretenso autor
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17
do texto, Willam.19 Território e época do surgimento das
peripécias da raposa são também analisados, contudo é
extremamente significativa a análise textual, contida entre as
páginas 421 e 433 e subdividida em “Estrutura”, “Aparência e
Realidade” e “Poder verbal”, sendo que elementos da linguagem
da intimidação e da retórica, absolutamente manipuladores,
encontram-se documentados na fonte.
Para nós, Reynaerts historie é um texto que permite muito bem a
visualização
da
questão
histórico-social,
comumente
denominada “contexto”. Devido ao fato dos Países Baixos
(atuais Holanda e Bélgica) se encontrarem à época da fixação da
obra sob domínio burgúndio, as tensões daí advindas espalhamse. Os estamentos sociais, principalmente a nobreza e os servos,
distanciam-se ainda mais um do outro. Interesses comerciais
familiares,
ligações
pessoais
fortalecidas
e
buscadas,
modificações concernentes à administração pública, em que os
funcionários públicos acabam se constituindo em uma camada
de ligação entre aristocracia e “povo”20 permitem a afirmação de
19 - A questão da autoria – Autorschaft - é tema extremamente presente e
recorrente na Medievística e na Filologia Germânicas.
20 - A palavra “Povo” prende-se aos estamentos inferiores da sociedade de
então. Não entraremos na discussão teórica acerca do conceito histórico,
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18
Schlusemann & Wackers (2005, p. 429), de que pois é
compreensível que uma constelação social de tal monta
constitua um solo fértil para a economia entre primos e para a
corrupção.
A recepção da história da raposa Reynaert em território de
língua holandesa e alemã é detalhada com as obras em prosa e
em verso do mesmo personagem, salientando-se o cuidado com
a indexação e discussão técnica e teórica das fontes. Segue-se,
então, uma sucinta, porém precisa revisão bibliográfica com os
principais trabalhos e estudos sobre o tema desde o século XIX
até o XXI.
Os dois últimos capítulos anteriores à Bibliografia demonstram
a seriedade do trabalho empreendido pelos editores. No primeiro
deles, que trata da edição do texto, encontram-se as sete regras
normativas para a sua fixação, sendo esclarecedor mencionar,
palavras dos editores (2005, p.444), de que
não se tenciona uma reconstrução do texto
original, mas sim uma edição crítica satisfatória,
no que as variantes das fontes, surgidas antes de
1500, são também utilizadas.
antropológico e sociológico do termo.
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19
Para os críticos textuais mais tradicionais, talvez aqui pudessem
incidir críticas, porém a seguir indexa-se uma listagem rigorosa,
que contém o número do verso, a lição da edição, a lição no
manuscrito B, do qual o texto crítico é derivado, e a redação,
que oferece a base para a emendatio. Mostremos alguns
exemplos:
Verso
11
856
2303
3478
5591
Texto Editado
Ic
Hagen
Morgen
Verlengen
Ebenushout
Manuscrito B
My
Hauen
Morge
Verlenge
Elenushout
Português
Eu
Sebe
Dia
Prolongou
Ébano
No capítulo seguinte tem-se um glossário explicativo com os
nomes próprios, ocorrentes na Hiistória de Reynaert, com dados
de ordem histórica e ficcional acerca deles, acrescidos com o(s)
verso(s) em que aparecem. Aristóteles (v.5053) e Hécuba
(v.5526) convivem na história com Juno (v.5500 e 5512) e o
personagem Maradigas (5594), constante da obra Cleomadès de
Adnet le Roi, que viveu entre 1240 e 1300 aproximadamente.
Como síntese de nossa análise das fontes em holandês medieval,
vemos que a História de Reynaert como os seres humanos,
quase que transmutados em animais, agiam e ainda agem em
tempos históricos passados, porém tão cotidianos.
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20
Como último tópico de análise, mudamos o espaço geográfico
dos Países Baixos para a atual Áustria para tratar de um dos
maiores representantes do trovadorismo germanófono, por
muitos pesquisadores considerado o “último trovador” do
mundo germânico, Oswald von Wolkenstein.
Sua data de nascimento presumível situa-se entre 1376 e 1377,
assim como o local, possivelmente o castelo de Schöneck em
Kiens, na parte italiana do Tirol, mas seu falecimento é atestado
no dia 2 de agosto de 1445 em Meran, também localizada na
mesma região, sendo enterrado no mosteiro de Neustift em
Vahrn, onde sua tumba foi redescoberta em 1973. Exerceu
atividades
de
poeta,
compositor
(inclusive
em
alguns
manuscritos com suas cantigas encontram-se notações musicais)
e diplomata. Dos dez aos 24 anos tornou-se escudeiro de um
cavaleiro errante, tendo viajado inclusive para Creta e Espanha.
Sua história de vida foi extremamente movimentada, pois
participou de inúmeras ações políticas e inclusive militares em
defesa ou em oposição a influentes nobres. Todavia, para a
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21
Literatura medieval em alemão, sua contribuição possui um
significado ainda maior.21
Com um repertório que ultrapassa o número de 130 cantigas,
Oswald von Wolkenstein nelas tematiza as viagens, Deus e
sexo, disso resultando uma visão bem acurada da realidade
social e humana que ele vivenciou em sua atribulada existência.
Sua destreza artística o qualifica como o mais importante
trovador da fase final da Idade Média e do incipiente
Renascimento em língua alemã. Três são os manuscritos, nos
quais estão presentes seus poemas:
a)
MS A (Viena), 42 cantigas, completado em 142, e com
adição de outros 66 poemas entre 1427 e1436;
b)
MS B (Innsbruck), de 1432;
c)
MS C (Innsbruck-Trostburg), de 1450, uma cópia de B.
21 - As relações entre Literatura e História, com respeito ao Sacro Império
Romano-Germânico, são exploradas, por exemplo, em BRAGANÇA
JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Poesia histórica e/ou realidade literária? – Walther
von der Vogelweide e a “Alemanha” nos séculos XII e XIII: uma abordagem
culturalista. In: www.abrem.org.br/Poesiarealidade.pdf, p.1-14.
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978-85-8292-068-8
22
Um ponto digno de comentário é o fato do trovador ser o
primeiro poeta de língua alemã que supervisionou, ele próprio,
as edições dos manuscritos A e B.
Wernfried Hofmeister, professor titular de Medievística
Germanística22 na Karl-Franzens-Universität em Graz, Áustria, é
um conhecedor de Wolkenstein, tendo publicado as obras
completas em primeira edição de 1989. Nesta segunda, dada à
luz 22 anos depois pela Walter de Gruyter, o autor acrescenta
melhoramentos e atualizações à edição anterior. A respeito da
postura do editor e a partir de um ponto de vista estritamente
filológico, podemos comentar alguns aspectos da obra que nos
parecem suscetíveis a indagações.
Primeiramente, algumas palavras acerca do tipo de edição. Os
134 textos do Minnesänger são apresentados na tradução para o
alemão moderno, o que, para os estudiosos mais tradicionais de
Crítica Textual, impossibilitaria a collatio com as possíveis
variantes e não permitiria sua classificação como edição crítica.
22 - Para um melhor detalhamento sobre o assunto cf. BRAGANÇA
JÚNIOR, Álvaro Alfredo. O estudo da literatura medieval em alemão no
Brasil à luz da Medievística Germanística – algumas palavras. In: TELLES,
Célia Marques & SOUZA, Risonete Batista de. V Encontro Internacional de
estudos medievais – Anais. Salvador: Quarteto, 2005. p. 258-268.
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23
A referência para as cantigas de Oswald, base para a obra do
pesquisador, é a edição de 1987 organizada por KLEIN.23
Contudo, o trabalho de Hofmeister possui outros princípios
norteadores, como o autor deixa bem claro nas suas
Considerações introdutórias. Em suas palavras (2011, p.2),
“para poder servir como uma ponte cientificamente ´confiável´
entre a transmissão, i.e., da edição crítica dos textos de Oswald e
o potencial de sentido de sua poesia, mostrou-se como mais
apropriada a estrita observância da fidelidade à palavra.” Isso
fica evidente ao analisarmos o corpus dos poemas, pois as
versões em alemão moderno não são obrigatoriamente
metrificadas nem rimadas. Hofmeister (2011, p. 2), conforme
ele mesmo afirma, pretende pautar-se pelo “princípio da
adequabilidade semântica”, embora posteriormente procure
conferir ao seu texto uma legibilidade “fluida e ´convidativa´,
objetivando uma prosa ritmada.
Cuidado especial dedica o germanista à questão da sequência
dos versos, ou seja, à paridade e correspondência entre o
original – não mostrado – e sua proposta de tradução, o que, por
vezes, devido a peculiaridades e diferenças sintáticas e
23 - KLEIN, Karl Kurt (Org.). Die Lieder Oswalds von Wolkenstein. Com a
colaboração de Walter WEISS e Notburga WOLF. Anexo musical de Walter
SALMEN. 3. edição. Tübingen: Max Niemeyer, 1987.
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24
semânticas
entre
os
dois
estratos
do
idioma
alemão,
impossibilita a pontuação conforme o seu desejo inicial.
As
expressões
fraseológicas,
abundantes
na
obra
de
Wolkenstein, também são estudadas por Hofmeister em sua
obra, e para tanto “tais expressões foram, por conseguinte,
adequadamente
traduzidas
e encontram-se eventualmente
explicadas por comentários, com o intuito de esclarecer o
significado de um termo que, caso contrário, permaneceria
´obscuro´” (2011, p. 4).
Em um segundo momento, que consideramos decisivo para a
avaliação
positiva
do
livro
do
medievista
austríaco,
aparentemente não-crítico, o catedrático de Graz acrescenta
indispensáveis comentários às traduções, no total de 558, todos
apensos às cantigas como notas de rodapé. Aqui inserem-se
também os debates acadêmicos sobre a fidedignidade dos textos
atribuídos ao trovador e aqui discorre-se sobre a questão das
variantes – que parecia descartada, como afirmamos parágrafos
atrás – no total sete cantigas.
Como exemplo da forma de análise das cantigas citamos os
primeiros versos do poema 4 Ouça, Cristandade!, no original
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25
em Frühneuhochdeutsch24 (I), a versão de Hofmeister (II) e
nossa proposta de tradução (III). Procuramos colocar os versos
nos estratos em alemão lado a lado, para melhor visualizar a
comparação:
Hör, kristenhait (I)
I
Hör, Christenheit!* (II)
I
Ouça, Cristandade! (III)
I
Hör, kristenhait!
Hör, Christenheit!
Ouça, Cristandade!
ich rat dir das mit
In brüderlicher Treue rate ich
Com fidelidade fraternal
brüderlichen treuen /
dir dies: /
isto te aconselho: /
du hab got lieb für
Liebe Gott mehr als alles
Ame a Deus mais do que tudo, /
alle ding,
andere, /
Disso não te arrependerás;
es wirt dich nicht gereuen,
das wirst du nicht bereuen;
e caso desejes que tudo fique
und wiltu, das dir
und wünschst du, dass es dir
bem contigo,
wolgeling,
gut ergehe,
desvia então tuas ambições dos
dein willen ker von
so wende dein Streben von
prazeres terrenos. / …
irdischem gelust! / …
irdischen Vergnügungen ab. / …
Nota-se nestes primeiros versos o tom de apelo à conversão ao
leitor/ouvinte, para que este passe a dedicar sua vida aos
prazeres do porvir, vivendo para amar a Deus. Como comentário
ao texto original assinalamos com asterisco a nota 8, presente na
edição de Hofmeister: “Provavelmente baseando-se na citação
bíblica Audi, Israel!” (2011, p. 18).
24 - Primeiro estágio do alemão moderno, estando em voga entre a segunda
metade do século XIV e o século XVI.
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26
As duas partes finais conferem ainda mais credibilidade
científica à edição publicada pela de Gruyter. Logo após as
cantigas segue-se o capítulo Bibliografias textuais, em que se
arrolam os autores utilizados para o trabalho com cada uma das
134 cantigas, configurando-se em uma análise que nada deve a
uma investigação filológica de peso.
Como último capítulo, Hofmeister brinda o leitor com uma
extensa
bibliografia,
dividida
em:
Edições,
Traduções/
Adaptações, Obras de referência científica e Bibliografia de
Pesquisa.
A simples relação do conteúdo da Obra poética, de Owald von
Wolkenstein, como visto, é suficiente para se depreender que,
embora aparentemente introdutório, o trabalho de Wernfried
Hofmeister é profundo, filologicamente estimulante, atual e rico,
possibilitando na Europa a continuação e renovação, e no Brasil
o
estabelecimento
de
um
debate
acadêmico,
inter
e
transdisciplinar sobre a Idade Média, mais especificamente,
sobre um autor ainda pouquíssimo estudado em nossos cursos de
História Medieval e Germanística Antiga.
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27
Em um mundo conturbado pela crise de identidade do homem
pós-moderno damos a ele damos a palavra final sobre outro tipo
de valor, que, em sua opinião, une o canto à salvação:
19. Es ist ain altgesprochner rat
XXVIII
19. Existe uma antiga sabedoria
XXVIII
Wie vil ich [sich,] hör, sing und sag, O que eu também ouço, canto ou digo
den louff der werlde strieme,
e sobre o curso do mundo medito:
so ist recht an dem jungsten tag
“No dia do Juízo Final um
ain watsack als ain rieme,
saco de roupas valerá tanto quanto
ain glogghaus gilt ain essich krüg;
uma tira
e um campanário tanto quanto uma
dient wir der sel nach irem füg,
caneca de vinagre”.
Se quisermos, do modo certo, cuidar
das si wer unbetwungen,
so hett ich wolgesungen.
de nossas almas, /
para que elas não pereçam,
então terei cantado por uma boa causa.
Referências Bibliográficas:
BASTERT, Bernd et alii. (Org.) Karel ende Elegast / Karl und
Ellegast. Münster: agenda Verlag, 2005. Bibliothek
mittelniederdeutscher Literatur, v.I.
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28
BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. O estudo da literatura
medieval em alemão no Brasil à luz da Medievística
Germanística – algumas palavras. In: BRAGANÇA JÚNIOR,
Filologia e Medievística germânicas – considerações
metodológico-práticas, disponível em http://www.pem.ifcs.ufrj.
br/FilologiaMedievalistica.pdf.
BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Poesia histórica e/ou
realidade literária? – Walther von der Vogelweide e a
“Alemanha” nos séculos XII e XIII: uma abordagem
culturalista. In: www.abrem.org.br/Poesiarealidade.pdf, p.1-14.
SCHLUSEMANN, Rita & WACKERS, Paul. (Org.) Raynaerts
historie. Münster: agenda Verlag, 2005. Bibliothek
mittelniederdeutscher Literatur, v.II.
TELLES, Célia Marques & SOUZA, Risonete Batista de. V
Encontro Internacional de estudos medievais – Anais. Salvador:
Quarteto, 2005. p. 258-268.
WOLKENSTEIN, Oswald von. Das poetische Werk. Tradução
de Wernfried Hofmeister. Berlin: New York: Walter de Gruyter,
2011.
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Ritos de passagem no Livro Velho do Tombo
Célia Marques Telles
Universidade Federal da Bahia (UFBA) / CNPq
Resumo: O Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento traz o traslado de 91 documentos datados
inicialmente entre o século XVI e o XVIII, copiados, a pedido do Dom Abbade, entre 1705 e 1716.
Alguns desses documentos trazem registros de rituais de passagem, como é o caso da expiação, da
cerimônia do sepultamento e das indulgências, transcritas nos testamentos. Encontram-se ritos de
passagem em 4 documentos, datados de 1584 a 1645: 3 são os testamentos de Gabriel Soares de Souza,
de Manuel Nunes Paiva e de Maria Rodriguez de Oliueira; o outro é um traslado de verba do testamento
de Fernão Pirez Manço. Os ritos de passagem incluem a expiação dos pecados e a invocação dos santos
protetores e à Virgem Maria, a descrição da procissão do sepultamento, os legados pios às irmandades
com as missas encomendadas, as esmolas aos pobres etc. Busca-se mostrar, como esses diferentes rituais
dão continuidade a procedimentos medievais.
Palavras-chave: Livro Velho do Tombo; Resquícios medievais; Ritos de passagem; Testamentos.
Abstract: The Livro Velho do Tombo St. Benedict Monastery brings the shuttle 91 documents initially
dated between the sixteenth and the eighteenth century, copied at the request of Dom Abbade, between
1705 and 1716. Some of these documents bring records of passage rituals, such as the atonement, the
burial ceremony and indulgences, transcribed in wills. They are rites of passage in four documents, dating
from 1584 to 1645: 3 are the wills of Gabriel Soares de Souza, Manuel Nunes Paiva and Maria Rodriguez
Oliueira; the other is a testament to the amount shuttle Ferdinand Pirez Manço. Rites of passage include
the expiation of sins and the invocation of the patron saints and the Virgin Mary, the description of the
burial procession, the pious legacy to brotherhoods with the ordered Masses, alms to the poor etc. Seeks
to show how these different rituals are continuing to medieval procedures.
Keywords: Livro Velho do Tombo; Medieval remains; Rites of passage; Testaments.
INTRODUÇÃO
O Livro Velho do Tombo, como os demais Livros do Tombo, define-se como um
conjunto de cadernos, costurados ordenadamente e formando um bloco (FARIA;
PERICÃO, 2008, p. 458), em papel avergoado, filigranado, provavelmente do século
XVII. Trata-se de um conjunto de folhas dobradas e costuradas no festo, cobertas com
uma capa de material duro, papelão, couro ou outra substância dura, para servir de
registro, de grande formato e robusta encadernação, também chamado livro em branco
(PORTA, 1958, p. 242).
O Livro Velho do Tombo mede 410mm  260mm e acha-se encadernado em
couro marrom (provavelmente feita em 19241). São 215 fólios de papel avergoado,
numerados e rubricados no ângulo superior da margem de corte, no fólio recto, dos
1
No verso da primeira folha, não numerada, acha-se lançada a informação: “De novo encadernado por
Pio Zimmermann Em julho de 1924”, o que permite datar o período em foi feita a encadernação dos
Livros do Tombo.
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30
quais apenas 193 estão escritos no recto e no verso, tendo, em média quarenta e uma
linhas por fólio; com marca d’água representando dois círculos com três folhas
dispostas em triângulo sobre três semicírculos arrumados em pirâmide. Escrita em tinta
ferro-gálica, onde podem ser observadas dezessete scriptae diferentes, em letra cursiva,
uma das quais é sempre a do tabelião público que autentica o traslado e outra a do
escrivão que o faz (TELLES, 2008; 2014).
São ao todo noventa e um documentos,
datados entre 1568 e 1716, trasladados entre 1705 e 1716.
A coletânea de documentos trasladados no Livro Velho do Tombo é referente aos
bens patrimoniais imóveis do Mosteiro, em especial edificações (casas térreas ou
sobradadas) e glebas, no perímetro urbano ou fora dele, inclusive no sertão da Capitania
da Bahia. Entre esses documentos contam-se três testamentos, o de Gabriel Soares de
Souza (1584), o de Manoel Nunes Paiua (1622) e de Maria Rodriguez de Oliveira
(1645), além do traslado de averbação do testamento de Fernão Pirez Manço (1621),
como vai indicado no Quadro 1.
Quadro 1 - Relação dos testamentos trasladados no Livro Velho do Tombo
No.
doc
Ano
81
64
1584
1621
24
1622
33 1645
Título
Localização
LVT
Testamento de Gabriel Soares de Souza
163v.-166r.
Treslado de uerba do testamento que fes Fernão Pi(re)2z manço em que 146r.-146v.
deixara ao Conuento serto legado
Testamento de Manoel Nunes Paiua em q(ue) deixa a este Convento por 50r.-55v.
herd(ei)ro em p(ar)te de seus bens, com os encargos nelle insertos, e asim
mais huma escritura de venda de huãs terras do d(it)o a Dom(ing)os Lopez e
a sentença de Manoel Reis Sanches et c(oetera)3
Testamento de Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em que nos deixou tres 78r.-79v.
moradas de cazas sobradadas ao guindaste e outras deixas com emcargo de
certas misas como dele consta e foi Casada com Ant(oni)o F(e)r(nande)z
Fonte: Livro Velho do Tombo
Localização
Edição 1945
p. 395-401
p. 347-348
p. 103-114
p. 158-161
OS RITOS DE PASSAGEM
Mas, o que são os ritos? Para tanto, recorre-se a Jean-Claude Schmitt:
Sem pretender dar uma formulação exaustiva e definitiva, pode-se dizer que
o rito é uma sequência ordenada de gestos, sons (palavras e música) e
objetos, estabelecida por um grupo social com finalidades simbólicas. Esta
formulação simples, por imperfeita que seja chama a atenção para algumas
características fundamentais do fenômeno, cuja percepção não era todavia
desconhecida dos autores medievais: o liturgista João Beleth, no início do
século XIII, distinguia rigorosamente quatro elementos nos ofícios divinos:
loca, tempora, personae e res. Com efeito, um rito supõe, ou melhor, constrói
na sua execução o espaço (uma igreja, uma praça, uma sala de banquete, a
liça de um torneio etc.) e o tempo (sua duração total, seus ritmos, as pausas e,
2
3
As abreviaturas são desenvolvidas com o auxílio de parênteses ( ).
Usa-se itálico para as formas latinas.
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em particular, os momentos de maior intensidade) que lhe são próprios. Um
rito é pluridimensional, ao mesmo tempo gestual, vocal, vestimentário,
emblemático, e comporta a manipulação de objetos simbólicos (a coroa ou o
cetro da consagração régia, o anel do casamento, o vinho e o pão do rito
eucarístico etc.). Ele é ordenado em ações sucessivas e hierarquizadas que
comportam frequentemente a repetição solene de gestos ou de fórmulas
(bênçãos, incensamentos e aspersões, litanias etc.) que prolongam o rito,
retêm a ação, aumentam a sua solenização, dramatizam os momentos
essenciais. Falando de “estabelecimento” ritual dos valores simbólicos de
uma sociedade, queremos realçar que os conteúdos e as funções simbólicas
dos ritos não podem ser separados do desempenho ritual em si: poder-se-ia
dizer que eles só existem no ritual, na ação solene que os realiza plenamente
[...] (SCHMITT, 2002, v. 2, p. 415).
Acrescentando, mais adiante:
Com ritos ou rituais, no plural, queremos simplesmente lembrar a extrema
diversidade de todas estas encenações, de acordo com os meios sociais, as
circunstâncias, o grau de solenidade, a despesa efetuada, o que se pode perder
ou ganhar. [...] Se se pudesse classificar as sociedades pela importância que
dão ao ritual, poder-se-ia perguntar se a sociedade medieval não desenvolveu
mais do que outras, por exemplo a nossa, a ritualização da vida cotidiana. Ela
lhe deu ao menos outras formas, adaptadas às suas próprias hierarquias – não
somente as da categoria social, mas as da idade e do sexo – e aos modos de
regulação das trocas entre pessoas: a relativa raridade da escrita dava mais
importância às formas gestuais e vocais do contrato (SCHMITT, 2002, v. 2,
p. 415-416).
Daniel Fabre (2009), a propósito das relações do privado contra o costume (no Antigo
Regime), diz:
O rito atribui um papel e ao mesmo tempo formula um julgamento de
conduta; é o inverso obrigatório de sua função agregativa. Assim, quem passa
por ele sente a ansiedade do neófito, intensificada pela expectativa angustiada
dos sinais que traduzem a opinião comum, [lembrando que] [...] o charivari
acompanha o casamento como uma sombra (FABRE, 2009, p. 521).
Sobre a morte e os mortos, lembra C. Duby (2010) que
É preciso evocar uma outra ameaça que pesava sobre a sociedade familiar:
ela vinha dos mortos, presentes, exigentes, e que habitualmente voltava, à
noite, no mais íntimo, no quarto onde seu corpo fora há pouco preparado para
o sepultamento, buscando novos cuidados. Como no mosteiro, um lugar lhes
era reservado no convívio privado a fim de que sua alma não penasse, não
viesse perturbar os vivos. Desde que a família tivesse os meios para isso, e
eram precisos meios consideráveis, preparava um receptáculo para os
despojos de seus defuntos; fundava um mosteiro, uma colegiada onde todos
seriam enterrados; uma necrópole assim se instituía, morada obrigatória para
os mortos da linhagem, dispostos ali em boa ordem, como um anexo da casa
destinado a essa parcela da família, tão perigosa quanto a parcela feminina e,
como ela, confinada. Celebrava-se nesse local não apenas a comemoração do
falecido na missa do primeiro aniversário da morte, mas também seu
aniversário regular, e, nesse dia, a família comia com ele como se fazia no
mosteiro, ou antes por ele, em seu lugar, a fim de com ele conciliar-se
(DUBY, 2010, p. 93-94).
Sobre a representação nos ritos de morte, continua C. Duby:
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[...] Entretanto, era no momento mesmo da passagem que os ritos de
acompanhamento se haviam inicialmente acumulado, em uma representação
em que se vê, como no mosteiro, imbricar-se o público e o privado. (DUBY,
2010, p. 94).
E descreve, então, a cerimônia:
Cerimônia pública, transporte de um lugar privado, o quarto, o leito, a um
outro lugar privado, fechado, a sepultura, mas atravessando necessariamente
o espaço público; portanto, necessariamente festivo, tanto quanto as bodas e
pelo próprio desenrolar de um cortejo, toda a casa, em fila, em ordem,
oferecendo a imagem de sua coesão atrás do defunto do qual era a última
ostentação, do qual eram também as últimas larguezas públicas, distribuídas
entre os pobres, enquanto se desenrolava um vasto banquete; públicas eram
igualmente durante essa fase as manifestações do luto, um espetáculo em que
as mulheres representavam o papel principal, gritando, rasgando suas roupas,
lacerando o próprio rosto. No entanto, essa demonstração sucedia a outros
ritos, estes muito privados  um privado na verdade numeroso, gregário. Esse
ritual de partida tinha início na sala: diante de todos os seus “privados”, mas
também de seus “amigos”, o agonizante anunciava suas últimas vontades, as
disposições da sucessão, procedia à entronização de seu herdeiro, em voz alta
e por meio de gestos bem visíveis (DUBY, 2010, p. 94).
e continua, a seguir:
[...] Terminado esse cerimonial da ruptura, muito semelhante àquele que se
respeitava quando o chefe da casa deixava seu espaço privado para uma
viagem, a cena se despovoava. Contudo, o moribundo não devia ser deixado
só; as pessoas se revezavam para velá-lo noite e dia; pouco a pouco, ele se
despojava de tudo: cedera aquilo de que não era senão o depositário, o
patrimônio; cedia agora todos seus bens pessoais, o dinheiro, os ornamentos,
as roupas; saldava suas dívidas, implorava o perdão daqueles que lesara em
vida; pensava em sua alma, confessava seus pecados; enfim, às vésperas do
trespasse, as portas do outro mundo começavam a entreabrir-se para ele. [...]
(DUBY, 2010, p. 95).
O ritual da morte, último rito de passagem no curso da vida, é “o mais singular, sem
dúvida, pois conduz o morto ao limiar do além” (FABRE, 2009, p. 528). Lembra, então,
que “desde a Idade Média, a Igreja se empenhou em controlá-lo”, destacando “os três
momentos mais disputados: o velório, a expressão dos lamentos fúnebres e a refeição
após o sepultamento” (FABRE, 2009, p. 528). Fala ainda do “cortejo” (FABRE, 2009,
p. 528).
OS TESTAMENTOS
Os ritos ligados à morte implicam a expressão da última vontade, tornada pública no
testamento, a expiação dos pecados, através de invocações à Virgem Maria e aos santos
e, finalmente, os legados pios. Tudo isso vem indicado no Testamento.
Em Morte e mortos, Michel Lauwers (2002) assinala que:
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Entre o final do século XII e o século XIII, as práticas funerárias e
comemorativas elaboradas nas instituições religiosas foram adotadas pelos
simples cavaleiros e pelos habitantes das cidades. Mas, ao difundir-se [sic],
os ritos que até então tinham servido para legitimar um sistema de dominação
não podiam mais desempenhar exatamente o mesmo papel (LAUWERS,
2002, p. 253).
Lembrando, em continuação, que:
[...] na mesma época, a Igreja controlava os fiéis como nunca havia feito
antes. Para os eclesiásticos, as ocasiões de intervir [sic] no momento do
trespasse, em meios sociais diversos, eram mais numerosas: a última
confissão, a extrema-unção, mas também a redação de um testamento 
prática cada vez mais frequente desde que reaparece no final do século XII 
supunham a presença de um padre junto ao leito dos moribundos
(LAUWERS, 2002, p. 253).
E, finalmente, falando dos testamentos:
A transformação do culto dos defuntos que ocorreu a partir do século XIII
reflete a desagregação do mundo consuetudinário. A renovação do direito,
redescoberto pelos canonistas entre os séculos XII e XIII, o estabelecimento
de instituições organizadas e de normas escritas, representaram o fim do
antigo sistema de relações entre os vivos e os mortos. Em uma sociedade de
direito, os mortos não ocupavam mais um lugar central. Os testamentos, que /
reapareceram em massa no Ocidente a partir do século XIII, constituíram um
dos principais veículos dos novos usos. Reconhecendo uma certa autonomia
aos indivíduos, autorizando-os a infringir o costume, a prática testamentária
comprova que a sociedade repousava mais sobre as instituições baseadas no
direito do que nas regras ancestrais (LAUWERS, 2002, p. 255-256).
OS TESTAMENTOS DO LIVRO VELHO DO TOMBO E OS RITOS DE PASSSAGEM
Veja-se como o ritual aparece dentro dos quatro testamentos trasladados no Livro Velho
do Tombo.
1) A intenção do EU sujeito, expresso na primeira pessoa.
a) Testamento de Gabriel Soares de Souza (163v, L. 34-35):
Determinei fazer estetestamento4 em o qual declaro minha deradeira
uontade e fis que seCumprira e guardara Jmteiramente como aBaixo e
aodiante Vai decLarado
b) Uerba de testamento que fes Fernão Pi(re)z manço em que deixara ao Conuento
serto legado (146v, L. 7-17)
4
Usa-se o negrito para o destaque.
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Declaroque eutenho mais ou=5tra propiedade demoradas deCazas +
emquehoraviuo // // Continuos Come=llas huñs chaõs deSeis braças para a
façeadaRua pera abanda daporta de Santa Luzia daÇidade os quaes çhaõs
ficam entre asditas minhas CazaseCazas de gas= par Barboza nos quais estam
Jáfeitasparedes / dePedra ecal digo / pedra ebaro pera Seedeficarem outras
CazasComseus quintaes assim odito çhaõ Como as Cazas emquemoro
quetudo estácomfrontado edemarcado Como Constará doTheor das
esCreturas de Compra as quaes Cazas deminha morada eSeus quintaes etodas
Beñ{s}6feitorias quenellasSeaçharem easimjunta mente os ditos çhaõs
ComSuas Bemfeitorias equimtaes tudo deixo em Capella aomosteiro
dogloriozo Patri=archaSamBento
c) Testamento de Manoel Nunes Paiua em que deixa a este Convento por herd(ei)ro em
p(ar)te de seus bens, com os encargos nelle insertos, e asim mais huma escritura de
venda de huãs terras do d(it)o a Dom(ing)os Lopez e a sentença de Manoel Reis
Sanches et c(oetera (50v, L. 18-28)
Aosvinte esinco diaz domes de Janeyro
do anno de mil eseiz Centos evinte edous nasCazas emoradas de Ma
nueLdeLedesma sitas no Marapé termo daCidade doSaluador Ba
hiadetodos osSantos, estando euManuelNunez Paiua emfermo
dehuma doença que Deos me deo estando emmeuJuizo perfeito
ordeney este meu testamento pella maneiraseguinte − Primeiramente
encomendo minhaaLma aDeos nosoSenhor quequeira perdoar meus
pecados − DecLaro quetenhofeito humTestamento nacidade aqual
está empoder deVicente Rodrigues deSouza naditaCidade, o qual
Testamento etodos os mais quese acharem, oucondecilhos heipor reuoga
dos saluo quesecumprirao dito testamento
d) Testamento de Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em que nos deixou tres moradas de
cazas sobradadas ao guindaste e outras deixas com emcargo de certas misas como dele
consta e foi Casada com Ant(oni)o F(e)r(nande)z. (78r, L. 41 - 79r, L. 12):
1) Em nome de Deos amen saibam quantos este instromento virem
como no anno do nasimento de noso senhor Jezus Christo de
de mil seis Centos quar(en)ta e sinco annos aos vinte dias do mes de
Outubro da dita hera estando eu Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em
meu
perfeito juizo e entendimento que noso senhor me deo temendo me da
morte e dezejando por minha alma no Cam(inh)o da saluaçaõ por naõ
saber o que noso senhor quer de mim fazer quando seja seruido Leuar
me para si faço este testamento na maneyra seguinte
2) e por tudo o asima dito ser minha vltima uontade
ouue este testamento por feito e acabado e por este reuogo todos e quais
quer que antes haja feito so este q(ue)ro que seja firme e ualiozo
2) De imediato, vêm as invocações para a salvação da alma.
a) Testamento de Gabriel Soares de Souza (164r, L. 1-42):
5
Todos os sinais usados pelo scriptor são mantidos na edição semidiplomática, assim como mantiveramse a união ou a separação na scripta.
6
As chaves { } são usadas para indicar trechos de scripta lisíveis, mas não legíveis.
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1) Jezus Christo aquem humilmente peso perdam de meus pecados a honrra das Sin
co Chagas que elle padeseo na aruore da Santa Crus e a honrra de todos os misterios de sua
Sagrada Morte e Payxão a quem peso que não Julge minhas culpas com aquella Ira
q(ue) pella Graueza dellas estou meresendo senão com a grandeza de sua MiZericordia em a
qual ponho a Esperanca de minha Saluacam
2) e no fauor e ajuda da Sacratisima VirgemMaria nosa Senhora Sua May aquem
afinCadamente peso que se lembre deste Seu deuoto a honrra daquelles quinze Misterios
que Se imserrão no Seu Santo Rozario que sou oBrigado mas comfio na Sua Santa Piedade
que não serà iso parte pera deixar de Serminha adeuogada pois a ella sempre foi e he dos
pecadores mas como me eu conheso por major que todos com toda a eficasia lhe peso me
não deZempare pois sempre Socorreo as presas dos que por eIla chamarão;
3) Jtem Tomo por meu adeuogado ao Anyo Gabriel cuio nome Tenho do qual não fui
capas pois me emtreguei tanto aos pecados ao qual peso a honrra e Louuor do Paraizo de
que elle Tanto Goza e a honrra daquella Santa Em Baixada q(ue) elle Leuou a Virgem Nosa
senhora que Seia Terseiro diante della pera que ella o seia diante do seu preciozo filho, e
delle me alcamse perdam de meus pecados;
4) Jtem Autro sim tomo por meu adeuogado o Anyo da minha Guarda pera que como
fauor da Virgem Madre de Deus defenda esta Alma pecadora do Jgnimigo tentador pera que
me não temte nem perturbe na hora da morte em a qual protesto de aCabar como fiel
Christam firme e forte com esperanca que tenho nas Santisimas Chagas de Christo em cuia
fê protesto de uiuer e morrer;
5) Jtem tomo por meu adeuogado o noSo Gloriozo Padre Sam Bento de cuia ordem
Sou Jrmão mas na uontade sou Frade profeso a quem humilmente peso me não dezem
pare e me Recolha deBaxo de seu amparo pois tamanha uontade tenho de o seruir e aju
dar augmentar sua Rellegiam;
6) Jtem Outrosim tomo por meu adeuogado ao SantiSimo Padre Sam Francisco e ao
Senhor Sam Domingos de cuias Ordens sou Jrmão a muitos annos ainda que Ruim pois
tam malos tenho seruido do que lhe pesoperdam e que não Bastem minhas culpas
perdeixarem de sermeus adeuogados diante de Deus aos coais peso que delle me alcamsem
que eu posa GoZar das Jmdulgencias Sacrifícios + oraçons esmollas de que GoZam os seus
frades e Jrmaõs asim na morte como na uida;
7) Item AutroSim tomo por meu adeuogado ao Bemauenturado Santo Alberto da
Ordem da Madre de Deus do monte Carmello em cuia Jrmandade emtrei do que
me não quis numqua aproueitar e andei sempre como ouelha perdida mas ja que
me Deus chegou a este tempo peso ao bemauenturado Santo que tersa por mim de
ante desta Senhora e me alcamse della perdam dos Erros pasados pera que me dei
xe GoZar do que gozam os seus frades e Jrmãos da Sua Santa Ordem com o que tenho
Grande esperanca de me Saluar;
8) Jtem emcomendo mais minha Alma ao Bem auinturado Sam João Bauptista e a todos
os Santos Apostollos aos Gloriozos Martiris Sam Laurenco e sam SeBastiam e a todos
os santos e santas da Corte do Ceo aos quais peso que todos Juntos e cada hum por si
Roguem por mim a nososenhor e lhe \ pesam perdam de meus pecados por mim e me leue a
sua santa Gloria pera quefui creado;
b) Testamento de Manoel Nunes Paiua em q(ue) deixa a este Convento por herd(ei)ro
em p(ar)te de seus bens, com os encargos nelle insertos, e asim mais huma escritura de
venda de huãs terras do d(it)o a Dom(ing)os Lopez e a sentença de Manoel Reis
Sanches et c(oetera) (50v, L. 18-28)
1) Primeiramente encomendo minhaaLma aDeos nosoSenhor quequeira
perdoar meus pecados
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2) pello quallhesencomendo me encomendem minhaalma aDeos emedem o habito para meenterrarem
c) Testamento de Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiur(ei)ra em que nos deixou tres moradas de cazas
sobradadas ao guindaste e outras deixas com emcargo de certas misas como dele consta e foi Casada
com Ant(oni)o F(e)r(nande)z. (78v, L. 2-11):
1) estando eu Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em meu
perfeito juizo e entendimento que noso senhor me deo temendo me da
morte e dezejando por minha alma no Cam(inh)o da saluaçaõ por naõ
saber o que noso senhor quer de mim fazer quando seja seruido leuar
me para si
2) Primeiram(en)te encomendo minha alma a Deos noso senhor q(ue)
a criou e redemio com seu preciosissimo sangue
3) e rogo e peço a bemauenturada sempre virgem Maria May sua e a
todoz oz Santos e Santas da Corte do Ceo queiram ser meus aduogados
diante de Deos noso senhor para que haja misericordia de mim e me perdoe
meus pecadoz
3) Na sequência, são registrados os legados pios, que legitimam as disposições sobre o
sepultamento e o cortejo fúnebre, além das indulgências
a) Testamento de Gabriel Soares de Souza (164r, L. 42 - 164v, L. 49):
1) Jtem donde quer que eu falleser me emterrarão no habito de Sam Ben
to hauendo ahi Mosteiro de Sua Ordem, onde me emterraram, e não
hauendo maneira deste habito, e hauendo Mosteiro de Sam Francisco, me
emterarram no Seu habito, e os Relligiozos dambas estas ordens me
acompanharam e a cada hum darão de EsmollaSinco mil Reis, e pello
habito des Cruzados;
2) Jtem se Deus forseruido que eu faleca nesta Cidade e Capitania meu
Corpo sera emterrado em Sam Bento da dita Cidade na Capella Mor, onde
se me pora huma Campa com hum Letreiro que diga aqui jas hum
pecador, o qual estara no meio de hum Escudo que Se laurara na dita
campa,
3) e sendo Deus seruido de me leuar no Mar ou em Espanhas
toda uia se pora na dita Cappella Mor a d(ita) Campa, com o do Letreiro
em a qual Sepultura Se emterrara minha molher Anna de Argollo;
4) Jtem acompanhara o meu corpo se fallecer nesta Cidade o Cabido
aquem se dara a esmolla custumada e os Padres de Sam Bento Leuaram de
Oferta hum porco e seis Almudes de uinho e sinco cruzados
5) Jtem acompanharmeaõ dous pobres com cada hum sua tocha ou
Cirios nasmaos e daram daluger a comfraria donde forem hum cruzado
de cada huma e a cada pobre pellas leu arem dous Tostoins
6) Jtem não doBraram os Signos por mim e somente se farão os signais
que se fazem por hum pobre quando morre /
7) Jtem deixo a Caza da Santa Mizericordia desta Cidade Corenta mi Reis
de Esmolla pera Se dourar o Retabolla e por me acompanhar sinco mil Reis
8) Jtem deixo a comfraria do Santo Sacram(en)to Sinco mil Reis e a de nosa
senhora do Rozario dous mil Reis
9) Jtem far meão no Mosteiro de Sam Bento quer falleca nestaCa
pitania quer em outra qualquer parte Tres oficios de noue soins digo de no
ue licoiõs em tres dias aReo tanto que eu fallecer ou se souber a certeza de
minha morte em cada oficio se dara de Oferta hum porco e sinco Alqueires
de farinha e não me faram pompa nehuma somente me poram hum
panno preto no chão com dous Bancos Cubertos de preto e em cada hum
sinco uellas asezas
10) Jtem em cada oficio destes me dirão sinco misas Rezadas a honrra das
Sinco Chagas de noSo senhor Jezus Christo com seus Responcos sobre a
Sepultura
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11) Item nos outros dias Seguintes me diram em tres dias aReo cada dia
sinco misas ReZadas as primeira Sinco a honrra dos Gozos de nosa senhora
e ao outro dia as outras sinco a honrra dos Sincos passos dollorozos da Madre
de Deus e ao terCeiro dia outras sinco a honrra dos sinco misterios Gloriozos
da Madre de Deus Conforme a comtemplacaõ do Rozario
12) Jtem me dirão na mesma caza acabados os oficios atras, cento e
sincoenta missas Rezadas e quinze cantadas e as cantadas daram de
oferta a cada hua com sua Galinha e Canada de uinho e huas e outras
sahiram com seu Responco sobre minha Sepultura e as misas se Repartiram
pella maneira seguintea
13) Jtem nos primeiros sinco dias se diram em cada dia des mi
sas ReZadas e hua cantada como asima fica dito a honrra dos Prazeres que
se comtemplam no Rozario de Nosa senhora
14) Jtem nos outros sinco dias Logo
Seguintes se diram em cada dia autras des misas Rezadas e hua cantada a
honrra dos sinco misterios doLorozos da uirgem nosa senhora
15) Jtem nos outro sinco +dias Seguintes se diram em cada dia outras des
misas Rezadas e hua cantada a honrra dos sinco Misterios Gloriozos da
uirgem Madre de Deus/ E senão ouuer Padres no dito Mosteiro que Bastem
pera se dizerem estas misas Juntas humildemente peso ao Padre Abbade que
ordene com os Padres do Collegio ou da Se comque se posam dizer estas
misas como tenho declarado porque tenho comfianca na madre de Deus que
no Cabo destas misas sahira minha Alma do Purgatorio
16) Jtem como se acabarem de dizer estas misas como tenho decrarado ao
outro dia Seguinte se me diga hum oficio de noue licoins como os que
asima tenho declarado
17) Jtem Mando que se digam pella Alma de meu Pay e May Sincoenta
misas Rezadas as quais se diram como se acabarem as que asima tenho
declarado
18) Jtem mando q(ue) se tomara de minha fazenda auallia de quinhentos
cruzados que se Repartiram por sinco mosas pobres Sem cruzados pera
cada huma pera aJúda de seus cazame7s o que lhe pa\rtira o Padre Abbade
com Jmformacão do Prouedor da Santa a Mizericordia
b) Uerba de testamento que fes Fernão Pi(re)z manço em que deixara ao Conuento
serto legado (146v, L. 16-26):
tudo deixo em Capella aomosteiro dogloriozo Patri=archaSamBento
Comperpetuaobrigaçam athefim domundo que odito mos=teiro eos
Se{u}s Relligiozos delle mediramtodos os annos CadaS{e}mana huã Só
mi=ssa Rezada emos domingos demaneira que portodas asmissas naõ seram
mais que Sincoenta eDuas. eoperllado [daCasa deputarã] // pella hordem
edestrebuiçam que lhepareçer. oRelligiozo[q(ue)] ouuer dedizer
CadaDomingo adita missa ejunta mente Comobrigaçam mais decada anno
mefazeremhum offiçio denoueliçois Cantado Comas Solinidades quefor
poçiuel nasua igreia oqual offiçio Sefarálogo odia
depois dafesta deSantoAntonio proximo Seguinte eassim pera asmisas
daCape=lla Como dooffiçio Seramos ditos Relligiozos obrigados dar aSera
Vinho ostias eomais neÇesario
c) Testamento de Manoel Nunes Paiua em q(ue) deixa a este Convento por herd(ei)ro
em p(ar)te de seus bens, com os encargos nelle insertos, e asim mais huma escritura de
venda de huãs terras do d(it)o a Dom(ing)os Lopez e a sentença de Manoel Reis
Sanches et c(oetera) (50v, L. 28- 51v, L. 26):
1) noque toca apagas dediuidas que medeuem, edeuo notoquante as esmolas
deconfraria e mosteyroz declarando mais que deduzentos mil reis que
7
O operador  indica deficiência no suporte
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deixo aoz Padres deSam Francisco lhederam mais sem milReis que
vemasomar trezentos ao todo dos quaes daramvinte paraacaza
SantadeHyerusalem pello quallhesencomendo me encomendem
minhaalma aDeos eme-dem o habito para meenterrarem.
2) Declaro mais que alemdecem mil reis que mando dar no testamento
aospadrez deSam Bento de esmolalhemando dar outros sem que digam
em misas.
3) Declaro mais que no quetoca ao enterramentosefaça oque está notes
tamento, equeasmissas quesemeham de dizer pella minhaalma
sediram nomosteyro deSamBento aonde me mando enterrar enomesmo mosteyrosefaram osmeoz officios pellos ditos
Padres dequemsou Irmão enas Capellas demisas que mando di
zer secumpra o dito testamento quedigo está namam do dito
VisenteRodrigues
4) equequero,8 e he minha vontade queseme faça
humaCapella nomosteyro deSam Bento destaCidadeda Bahia na Igreja noua aonde mepasaram meus osoz, eporam mi
nhacampa no meio dela comhumletreyro poronde seconheçacu
ja heacapela, edequem nellaestá enterrado, a quaL capela se
fará peLaordem, etrasa, enoLugar quepareser aoPadre Dom
Abbade do dito Mosteyroparacujoz gastoz, efabrica, esustentacam anexo, e avinculo todos os meus benz, e fazenda que se achar
quemepertensesedequalquer modo queseja; ‒ asumptuozidade gr(an)de
eseruiço daditaCapelasefará conformeafazenda queseachar
quemefica, eo rendimento dela, tirando dahi as despezas que
sedeuem
d) Testamento de Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em que nos deixou tres moradas de cazas
sobradadas ao guindaste e outras deixas com emcargo de certas misas como dele consta e foi
Casada com Ant(oni)o F(e)r(nande)z (78v, L. 12-27):
1) Vindo que sendo noso senhor seruido Leuar me desta uida pre
Zente meu corpo seja enterrado no mosteiro do Gloriozo Patriarcha
Sam Bento e no seu santo habito
2) e me Leuaram na tumba da santa mizericordia pelo que lhe daram de
esmola dous mil reis e a minha Camaque será para o hospital,
3) acompanhar me haõ as confrariaz do Santissimo e de nosa senhora do
Rozario das quaes sou Jrmaã com tudo dar lhe aõ por iso a cada huma
hum cruzado
4) e juntam(en)te me acompanhará a Confraria de nosa Senhora da Fée,
e lhe daráo duas patacas de esmola e ao Reuerendo Padre Cura com os
seuz Capelans dase pelo acompanhamento
5) daram dous mil reis aos Reuerendos Padres do Carmo
pelo dito acompanham(ent)o [...]quatro mil reis
6) mando que se me diga no dito mosteiro de Sam Bento hum officio no
dia do meu enterramento, e nam hauendo Lugar no mesmo dia se dirá no
seg(uin)te, e assim mais me diram Cem misaz por minha alma, alem
destas maiz des as almas do Purgatorio,
7) e se me diram todos os annoz trez misaz do Natal
8) me mandaram dizer dos rendimentos delas outra Capella por minha
alma e do meu defunto que Deos tem Antonio f(e)r(nande)z
3) O direito de família, a herança e os herdeiros, vêm evocado logo na sequência.
a) Testamento de Gabriel Soares de Souza (164v, L. 49 - 165r, L. 6):
8
Sublinhado no original.
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Jtem eu Tenho duas Jrmaiis Veuuas hua se chama Donna Margarida de
Souza e autra Maria uelhia ambas moradoras em Lixboa e não tenho
herdeiro forcado e darão a cada hua dellas de minha fazenda do Rendimento
de lla en Sua uida uinte mil Reis a cada hua e fallecendo algua dellas ou
sendo ja faLecida daram aque ficar uiua cada anno quarenta mil Reis em sua
uida tam somente os quais lhe mandaram por Letra a Lixboa demaneira que
lhe seia paga a dita Contia
b) Testamento de Manoel Nunes Paiua em q(ue) deixa a este Convento por herd(ei)ro
em p(ar)te de seus bens, com os encargos nelle insertos, e asim mais huma escritura de
venda de huãs terras do d(it)o a Dom(ing)os Lopez e a sentença de Manoel Reis
Sanches et c(oetera) (51r, L. 1-):
1) Denouo ordeno que meusParentez
namsejam herdeiros, saluoselhe dará oseguinte
2) Declaro que nenhumaoutracouzadeixo a
Meus Parentes,
c) Testamento de Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em que nos deixou tres moradas de
cazas sobradadas ao guindaste e outras deixas com emcargo de certas misas como dele
consta e foi Casada com Ant(oni)o F(e)r(nande)z. (78vr, L. 42- 79r, L. 6):
1) Declaro que alem doz beñs que de prezente possuo tenho mais hũa
pertençaõ na Ilha do Pico que herdei de meu marido Antonio
f(e)r(nande)z de quem sou vniuersal herdeira
2) e assim mais outra herança que me ficou de meu Pay Bartolameu Afon
ço e e de meus Tios Gaspar Afonço Raphael Afonço os quaes todos
me fizeram herdeira de seus quinhoens como consta por papeiz que stão
no Cartorio de Fernão feygó escriuam que era na Ilha terseira na qual
herança entrão terras vinhas, oLiueiras e tres moinhos e outras terras que
estão em ourem
4) A presença da Igreja é marcada não apenas nos legados pios, mas com presença
incisiva, como se vê, ao serem indicados os testamenteiros.
a) Testamento de Gabriel Soares de Souza (165r, L. 27-37):
declaro por meus Testamenteiros ao reverendo Padre Frei Antonio
Ventura e a minha molher Anna deArgollo pera que ambos façam
Cumprir este meu Testamento como se nelle comtem e sendo Cazo que
elIa ou por não poder estar prezente na Çidade ou por suas jndespozisons
posa aCudir e fazer Cumprir este meu Testamento que tudo feito pello
Reuerendo Padre somente seia valliozo e porque o tempo fas Grandes
mudanCas que com elIas hamorrer, eauZentar nao podendo por algum licito
jmpedimento cumprir o Reuerendo Padre EstemeuTestamento digo queental
Cazoseiameu Testamenteiro oReuerendo Padre que lhe Suseder no Cargo de
Abbade no d(it)o Mosteiro de sam Bento mas ainda que o Reuerendo
PadreFrei Antonio ventura nao seia Abbade sempRequer o queelleseja meu
Testamenteiro
b) Testamento de Manoel Nunes Paiua em q(ue) deixa a este Convento por herd(ei)ro
em p(ar)te de seus bens, com os encargos nelle insertos, e asim mais huma escritura de
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venda de huãs terras do d(it)o a Dom(ing)os Lopez e a sentença de Manoel Reis
Sanches et c(oetera) (51r, L. 1-36):
1) aadministraçam, enego ceaçam disto aarbitrio de
homens desaã Limpaconsciencia asaber do Padre Dom Abba
de do dito mosteyro, ou aquemsuazvezes tiuer
2) DecLaro
mais quepara melhorsecumprir estez meuz Legadoz deixo econstituo outrosim por meu Testamenteiro ao Padre Dom Abbade
do dito Mosteyro deSam Bento paraquejunta mente comVicente
Rodriguez de Souza mefaça por emexecucçam estemeuTesta
mento decLarando que aspagaz queouuerdefazer, easfazendas
que ouuer devender paracomprimento deLas o nampoderá fazer
semconsentimento, nem ordem do dito Padre, ao qualfaço
tambem meuTestamenteiro como quefose insolidum,
c) Testamento de Maria Ro(dr)i(gue)z de oLiu(ei)ra em que nos deixou tres moradas de
cazas sobradadas ao guindaste e outras deixas com emcargo de certas misas como dele
consta e foi CAsada com An(oni)o F(e)r(nande)z (79r, L. 39- L. ):
1) deixo por meus vniuersaes herdeiros, e testamenteiros aoz Re
ligiozoz do Patriarcha Sam Bento com obrigação que doz rendim(en)tos
das cazas que lhe couberem me diraõ huã Capela todos oz annos
2) pelo que declaro que desde o dia que oz ditos Reuerendos
Padres de Saõ Bento meus Legitimos e uniuersais herdeiros e testamen
teiros tomarem posse das ditas heranças
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredita-se ter conseguido mostrar de que modo os testamentos contidos no Livro
Velho do Tombo mantêm a preservação de rituais de passamento, relativos à morte,
dando continuidade a procedimentos medievais.
Referências bibliográficas:
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velho do tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. Scripta Philologica, Feira de
Santana (BA), n. 4, p. 102-118.
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Uma paródia do amor cortês numa oração farcie:
“Paternoster de las mugeres, hecho por Salazar”
Geraldo Augusto Fernandes
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Porque os melhores discursos, os que são dignos de imitação,
são aqueles que não têm as características de um só mas de vários”.
DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitação. Livro 3º
La correction, la réinterprétation, la nouvelle conception d’une matière
et donc de sa forme, sont les bases de l’art poétique médieval.
DOUGLAS KELLY. Les inventions ovidiennes de Froissart:
réflexions intertextuelles comme imaginations. Littérature.
Resumo: O presente texto pretende estudar a intertextualidade em alguns poemas do Cancioneiro Geral
de Garcia de Resende (1516) e do Cancionero General de Hernando del Castillo (1511-1514), cujo
diálogo textual se dá entre algumas trovas quinhentistas e a oração bíblica, o Pai Nosso, tendo por
técnicas retóricas a acomodação, a citação e a glosa. No poema de Luis Anriquez, do primeiro
cancioneiro citado, e no de Hernán Pérez de Guzmán, do segundo, o diálogo é devocional e místico. Já
nas trovas de Salazar (Cancionero General), o diálogo é satírico e paródico, cujo desenvolvimento se dá
por “acomodação”.
Palavras-chave: Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; Cancionero General de Hernando del
Castillo; paródia; intertextualidade.
Abstract: This paper aims to study the intertextuality in some poems of Garcia de Resende’s
Cancioneiro Geral (1516) and Hernando del Castillo’s Cancionero General (1511-1514), whose textual
dialogue is realized among some sixteenth-century trovas and the biblical prayer, the Our Father. As
rhetorical techniques, the poets make use of the “acomodação”, the quotation and the gloss. In the poem
of Luis Anriquez, in the first songbook quoted, and of Hernán Pérez de Guzmán, in the second, the
dialogue is devotional and mystical. But in the trovas of Salazar (Cancionero General), the dialogue is
satirical and parodical, whose development is given by "acomodação”.
Keywords: Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral; Hernando del Castillo Cancionero General; parody;
intertextuality.
INTERTEXTUALIDADE
Quando se fala de “intertextualidade”, vem à memória, de imediato, o estudioso russo
Mikhail Bakhtin e suas concepções de dialogismo. Segundo Bakhtin, quem usa a língua
não é o falante primeiro, não é ele quem rompeu “pela primeira vez o eterno silêncio de
um mundo mudo. Ele pode contar não apenas com o sistema da língua que utiliza, mas
também a existência dos enunciados anteriores [...] cada enunciado é um elo na cadeia
complexa e organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 1981, p. 69). Assim afirma
que, para constituir um discurso, o enunciador leva em consideração o discurso de
outrem, o qual estará presente no seu. Conforme Diana Luz Pessoa de Barros, em outras
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8
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palavras, “para Bakhtin, toda voz autenticamente criadora só pode ser uma segunda voz
dentro do discurso, na medida em que o escritor é alguém capaz de trabalhar a língua
situando-se fora dela, alguém que possui o Dom da fala indireta” (BARROS, 1994, p.
24).
Baseada nas concepções de dialogismo e polifonia de Bakhtin, a crítica literária
francesa Julia Kristeva apresenta, em 1969, o conceito de “intertextualidade” para o
estudo da literatura. Kristeva foca a atenção no fato de que a escritura literária
redistribui, dissemina textos anteriores em um texto, deixando claro que este é
construído por “citações, [e] que todo texto é absorção e transformação de outro texto.
Isso nos autoriza a pensar todo texto como intertexto” (SOARES, s. d., s. p.). Roland
Barthes ampliou o conceito de Kristeva, afirmando que “todo texto é um intertexto;
outros textos estão presentes neles, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos
reconhecíveis [...]. O intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem
raramente é recuperável, de citações inconscientes ou automáticas, feitas sem aspas”
(Barthes, apud SOARES, s. d., s. p.). Já para Laurent Jenny, “a intertextualidade
designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de
transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que
detém o comando do sentido”. (Saldivar, apud SOARES, s. d., s. p.). Se para Barthes,
todo texto deixa implícito outro texto – o intertexto –, para Jenny, a intertextualidade
está ligada às relações explícitas entre os textos. Romano Affonso de Sant’Anna
denomina “intertextualidade de semelhanças”, quando um texto faz referência a outros
textos como exemplos. Para ele, o texto incorpora o intertexto para continuar a
orientação argumentativa. Já por “intertextualidade das diferenças”, do mesmo
Sant’Anna, entende-se a representação do que foi dito para propor uma leitura diferente
e/ou contrária – é o conceito, sinteticamente falando, da paródia1 (SOARES, s. d., s. p.).
Gérard Genette denomina “transtextualidade” as relações internas de um texto consigo
próprio e com outros textos. A transtextualidade apresenta cinco subtipos: a
“intertextualidade” propriamente dita, evidentes na citação, no plágio, na alusão (a
1 “Na paródia, a linguagem torna-se dupla (...) é uma escrita transgressora que engole e transforma o
texto primitivo: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas, ao mesmo tempo, o nega. (...) O discurso da
paródia é ambivalente: uma coisa está sempre na fronteira com o seu contrário, contradizendo-a,
relativizando-a. Essa ambivalência do discurso da paródia revela-se pela comunicação entre o espaço da
representação pela linguagem e o da experiência na linguagem (como correlação de textos). O texto se
erige e se compreende a partir de sua própria escritura. Torna-se possível a coexistência entre o interdito
(representação monológica) e sua transgressão (o sonho, o corpo, o diálogo)”. (B. Josef, apud FÁVERO,
1994, p. 53). No “Paternoster de las mugeres”, analisado na sequência, pode-se notar o evidente discurso
paródico ambivalente, conforme define B. Josef.
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outros textos e a de um texto a si próprio, configurando, então, a intratextualidade); a
“paratextualidade”, ou seja, a relação entre um texto e seu paratexto (o corpo principal
do texto), tais como títulos, chamadas, prefácios, epígrafes, dedicatórias, notas de
rodapé, ilustrações etc.; a “arquitextualidade”, que é a designação de um texto como
parte de um ou vários gêneros; a “metatextualidade”, um comentário crítico explícito ou
implícito de um texto a respeito de outro texto; a “hipotextualidade”, isto é, a relação
entre o texto e um hipotexto precedente – um texto ou gênero no qual se baseia, mas que
transforma, modifica, elabora ou estende, inclusive a paródia e a sequência (SOARES,
s. d., s. p.).
Finalmente, de acordo com Maria Augusta Babo, a intertextualidade trata de fenômeno
que se denomina “transposição” – “qualquer texto se coloca, face aos outros textos,
numa relação intertextual, pois se define como permuta e reagrupamento de textos
outros, formando o espaço da citação, do cruzamento ou da negação – contestação de
textos anteriores.” (BABO, 1986, s. p.).
CITAÇÃO, ACOMODAÇÃO E GLOSA
A questão da intertextualidade não é um fenômeno da crítica e da teoria literárias
modernas; sabe-se que os diálogos intertextuais sempre aconteceram e fazem mesmo
parte da antiga retórica. No Tratado da Imitação, Livro I, capítulo III, Dionísio de
Halicarnasso refere-se à diferença entre “imitação” e “emulação”; o primeiro termo
seria uma atividade que refunde um modelo, a partir de certos princípios teóricos, e o
segundo seria “uma actividade do espírito que o move no sentido da admiração daquilo
que lhe parece ser belo” (DIONÍSIO DE HALICARNASSO, [1986], p. 49). Mais à
frente, diz que
a imitação não é a utilização dos pensamentos, mas sim o tratamento, como
arte, semelhante ao dos antigos. E imita Demóstenes não aquele que diz o
mesmo que Demóstenes, mas sim o que diz à maneira de Demóstenes. E o
mesmo se diga quanto a Platão e a Homero. Toda a imitação se resume nisto:
emulação da arte que refunde a semelhança dos pensamentos (DIONÍSIO DE
HALICARNASSO [1986], p. 50)2.
O mesmo ponto de vista defende o autor de Retórica a Herênio, no Livro IV, quando
questiona: “não é a própria autoridade dos antigos que torna as coisas mais prováveis e
os homens mais dispostos a imitá-los? (RETÓRICA, 2005, Livro IV, [2])”. O autor
defende que “nisto reside a maior arte: escolher diligentemente coisas várias e distintas,
2 Grifos meus.
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dispersas e espalhadas entre tantos poemas e discursos, para poder subordinar cada tipo
de exemplo a cada tópico da arte” (ibidem, [1]), para concluir, mais adiante: “Eis,
portanto, a maior arte: poder também, em seu próprio tratado, fazer uso de exemplos
alheios (ibidem, [3])3”. Creio que ambos os pontos de vista sejam a raiz do gosto
medieval pela glosa – o respeito à autoridade e a recorrência à erudição com fins
estéticos. Ernst Robert Curtius, ao se referir às sentenças e aos exemplos difundidos na
Antiguidade, remete a Clearco de Soles, da escola de Aristóteles. Nos banquetes, um
verso ou uma sentença eram proferidos, e a mesma ideia deveria ser respondida por
outro poeta. Nessa disputatio, “era preciso saber de cor versos de Homero, começados e
terminados com a mesma letra, ou cujas primeiras e últimas sílabas, reunidas,
formassem um nome, um utensílio ou uma iguaria” (CURTIUS, 1996, p. 95). Pode-se
ver na imitação, na emulação, na citação e na glosa a raiz da moderna teoria da
intertextualidade.
Quanto à citação, segundo Maria Augusta Babo, “Platão deu-se conta do “enjeu” da
citação, ao condená-la como processo mimético de repetição. Não tanto por relevar da
representação, mas por ser imitação da representação, isto é, cópia da cópia.” Segundo a
autora, a citação era phantasmata, uma vez que são a representação do discurso e não da
ideia. Já isso não aconteceria com a maxima sentencia medieval,
citação incontestável e incontestada que surge como afirmação divina. A
laicização da “maxima sentencia” ou “palavra de Deus” tem como substituto
o provérbio proveniente do consenso universal dos homens. As máximas e
provérbios são testemunhos sem testemunhas, anônimos, que citados no
discurso não confirmam tanto verdades como consensos sobre determinadas
afirmações. Apesar de a citação poder funcionar no discurso como
confirmação de valores consentidos ou consensuais, ela não deixa de formar,
no entanto, uma rede de ressonâncias a deixar resto ou rasto, a criar
dissonâncias (BABO, 1986, s. d.).
Margarida Vieira Mendes, num estudo sobre o primeiro dos poemas apresentados na
compilação de Garcia de Resende, o “Cuidar e sospirar”, referindo-se à citação, diz que
ela “equivale à argumentação pela autoridade, [e] serve também para revelar a destreza
ou habilidade específica dos trovadores, a sua arte da memória e do ‘insert’
versificatório equivalente às ‘glosas’ que proliferam no Cancioneiro geral, o que é um
traço característico de arte poética de 1500” (CUIDAR..., 1997, p. 29).
Uma das características que marca a poética dos séculos XV e XVI na Península Ibérica
é a “acomodação” de textos religiosos latinos e gregos nos poemas, qualquer que seja a
3 Grifos meus.
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espécie, sagrada ou profana, seja nos poemas sérios ou satíricos. Conforme Juan Casas
Rigall, “consiste su técnica en la acomodación – no tanto en la cita – de textos de tipo
religioso, engastados casi siempre sin traducción – normalmente en latín – en el seno de
una obra, y en general, con el propósito de mover a, cuando menos, la sonrisa” (1995, p.
176-177). Para Casas Rigall, pode-se diferenciar “acomodação” e “citação” (cita) - esta
seria a repetição literal, tanto em forma quanto em conteúdo, e, ainda, insere-se num
nível de subordinação ao discurso principal4; a acomodação dá-se quando falta algum
desses requisitos, não havendo qualquer subordinação (ibidem, p. 171)5. Nos
cancioneiros português e castelhano dos séculos XV-XVI, especificamente no
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e no Cancionero General de Hernando del
Castillo, encontram-se vários poemas em que os poetas palacianos se valeram da
acomodação para desenvolvimento de uma espécie de texto em que se evidencia a
intertextualidade com textos bíblicos. Um exemplo é a “balada dupla” quinhentista de
Rui Moniz, “Rui Moniz, alegando ditos da Paixam, pera matarem ũa molher de que
s'aqueixava”, poema 195 (CANCIONEIRO GERAL, 1998, pp. 8-10). Moniz produz uma
paródia, em que transpõe passagens dos Evangelhos de São João e de São Mateus,
ajustando-as à sua intenção: denegrir a dame sans merci, que não se rendia aos amores
de seu servidor. Ao decretar a crucificação da mulher “de que s’aqueixava”, o poeta
“radica en una hipérbole sagrada: la equiparación de los avatares que sufre el amador
cortês con la vida y muerte de Jesucristo” (CASAS RIGALL, 1995, p. 179,
parafraseando o que escrevera J. Y. Tillier, relativamente à acomodação validada pelos
Evangelhos). Ao exigir um castigo de tal magnitude, o poeta demonstra a força que o
sentimento de recusa lhe provocou6. À guisa de exemplificação, tome-se a primeira
estrofe da balada e note-se a mistura do texto religioso com uma questão profana, de
cunho amoroso, como se desenvolve ao longo do poema:
Expedite unam mulierem mori7.
Por tal de nam perecerem
as molheres virtuosas
nem suas famas perderem
as damas gentis, manhosas,
assi s'escreve, senhores,
na Paixam por seu castigo,
e eu assi vo-lo digo,
avangelista d’amores.
4 O conceito de “citação” difere de como o concebia Christine de Pizan (século XV). De acordo com o
estudioso Patricio Tucci, “Christine saisit et éclaire l’une des propriétés essentielles de la citation:
conserver la lettre d’un texte et en même temps en altérer les sens, l’insérant dans une nouvelle structure
que la plie à une autre finalité’. (TUCCI, 2007, p. 200). Tucci divide a técnica da citação em três
modalidades: “allegation, citation dialogique, citation synecdochique". Descarto as duas últimas e me
atento à citação por alegação que corresponde, de certa forma, à citação intertextual, que permeia este
meu artigo: “L’allegation est assez facile à définir. Nous en avons remarqué l’accumulation parfois
hyperthrophique dans les ouvrages érudits de la fin du Moyen Age: alléguer signifie convoquer la parole
d’autrui pour authentifier la sienne propre, avec la présupposition que, l’une étant incontestable, l’autre le
devient aussi". (ibidem, p. 200). Parece-me que, nos poemas aqui analisados, a "alegação” corre em par
com os conceitos de “acomodação” e citação, como propostas por Casas Rigall (e outros autores, como se
verá adiante).
5 A base da teoria da acomodação e da citação feitas por Casas Rigall encontra-se nos estudos de Otis H.
Green.
6 Em minha tese de doutorado, empreendi uma análise mais pormenorizada da balada de Rui Moniz e da
técnica da “acomodação”. Cf. FERNANDES, 2011, pp. 33-47.
7 “Tendo desejado que morresse uma única mulher. Frase moldada no Evangelho de S. João, 18-14: ‘Erat
autem Caiphas, qui consilium dederat judaeis: Quia expedit unum hominem mori pro populo’” (DIAS,
2003, p. 864). Note-se que o texto refere-se a hominem; na paródia de Moniz o ataque é a uma mulher.
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O poema de Rui Moniz dialoga com o texto bíblico, e isso certamente agradava a
audiência, pois esse diálogo fazia parte do cotidiano do homem medieval, como
comenta Casas Rigall (1995, p. 171): “el fenômeno literario de la intertextualidad (...)
está constituido por técnicas como la cita, que desde antiguo fue incluida en la esfera de
la agudeza”. A acomodação é parte da citação, uma citação que é manipulada,
engenhosa. Ainda de acordo com o estudioso (ibidem, p. 177), Otis H. Green comentara
que o uso de trechos da Bíblia é um costume antigo8 e faz parte da natureza humana –
evidencia-se isso até hoje. Durante a Idade Média, produziu-se uma clara discordância
entre a consideração social e moral das paródias religiosas: socialmente eram correntes
e aceitas; moralmente, resultavam desprezíveis, vergonhosas. Quanto à peça de Rui
Moniz, pode-se comentar que esse tipo de poesia era aceito e trivial; consultem-se como
exemplos a balada número 368, de Luis Anriquez 9, e a trova número 19, de Joam de
Meneses, ambos com tema religioso, tirados do Cancioneiro Geral, além da trova 590,
o “Paternoster de las mugeres”, de Salazar, publicado na edição de 1511 do
Cancionero General, o qual analisarei em seguida. Quanto a ser desprezível ou
vergonhoso, isso talvez seja verdade quanto à cortesania, tão própria dos serões áulicos.
No entanto, se essa poesia era admitida e usual, esses adjetivos depreciadores parecem
apenas ferir o decoro; o que provocaram, isso é certo em muitos casos e particularmente
com relação aos poemas de Moniz e de Salazar, foi a fúria dos censores.
Aliada à acomodação e à citação, quando esses dois artifícios são usados pelos poetas
medievais, está a glosa. Para Pierre Le Gentil, ela adquire importância na literatura
peninsular do fim do século XV. Este gosto por glosar é bem medieval e do pensamento
escolástico, já que nela cultivam-se hábitos dedutivos (LE GENTIL, 1952, pp. 296297). Porém, esse gosto fazia parte de todo o costume europeu, não só peninsular, o que
revela a mentalidade do homem medieval. Para o estudioso, ao se glosar um texto,
demonstra-se certo respeito religioso (ibidem, 1952, pp. 301-302). O que se percebe nos
cancioneiros quinhentistas peninsulares é que a glosa se apresenta não só pelo apreço e
veneração pelos autores antigos, mas também pelos autores contemporâneos – basta um
8 Já ocorria, por exemplo, nas cantigas de escárnio e nas cantigas religiosas, mas não nas de amigo e de
amor durante o trovadorismo (CASAS RIGALL, 1995, p. 177). Exemplos destas podem ser os poemas
compilados no Cancioneiro da Biblioteca Nacional: de Fernam Soarez [de Quinhone], no. 1469; de
Joham Soares Coelho, no. 1663; de Ayras Perez de Vuytoron, no. 1390.
9 Para Aida Fernanda Dias, Luis Anriquez é um dos poetas palacianos do Cancioneiro Geral mais
ungidos pela religiosidade e o que mais composições sacras legou no cancioneiro. No poema 368,
“compõe, em 1506, ano de peste e de fomes, que tanto sacrificaram Portugal, uma sentida oração à
Virgem, suplicando alívio para tantos males, numa perfeita paráfrase do texto latino citado” (o hino Ave
maris stella do Bispo de Poitiers D. Venâncio Fortunato; para alguns a autoria seria de São Bernardo).
(DIAS, 1998, p. 126). Essa religiosidade também se expressa no “Pater noster grosado per Luis
Anriquez”, como se pode notar a seguir.
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correr de olhos para se cientificar disso. O gosto pela glosa, cujo processo é
incorporação de sentenças, exemplos, versos de autores, antigos ou não, – no caso dos
poemas aqui analisados, incorporação de textos bíblicos –, aos poemas desenvolvidos
pelo poeta medieval, parece, então, ter origem, também, na disputatio10. Talvez
“glosar”, para o poeta medieval, não seja nada mais que isso: buscar referência nos
autores antigos e emular as ideias e mesmo – no caso concreto da glosa – copiá-los. Em
Los trovadores, Martín de Riquer parece referir-se à glosa, quando relata que “los textos
de los trovadores se comparan con pasajes bíblicos y patrísticos, que demuestran el gran
conocimiento que tenían los poetas provenzales de la literatura sacra” (RIQUER, 2001,
p. 97). É assim que a glosa incorpora tanto elementos sacros como profanos.
Se no caso de Rui Moniz a peça retrata uma sátira que denigre a dama amada que
repudia o servidor, no “Pater noster grosado per Luis Anriquez”, poema número 370,
constante do volume II do CGGR11, o poeta simplesmente desenvolve a oração magna
do Cristianismo católico, iniciando a peça com citação grega, Cri'eleison, Crist'eleison,
continua a estrofe em português e arremata-a com o início da oração, Pater noster qui
es in celes. O poema constitui-se de uma trova em sete estrofes, versificadas em
redondilhos maiores, mas, como acontece com a maioria dos textos do CGGR, os versos
gregos e latinos citados, que abrem e fecham cada uma das estrofes, são irregulares 12; no
entanto, e aí mais uma das originalidades dos poetas cortesãos do Cancioneiro de
Resende, os trechos da oração rimam perfeitamente com as palavras em vernáculo.
Essas citações não se tratam de versos alheios (versus cum auctoritate), mas sim
reprodução fiel das frases da oração cristã glosada13 com a intenção única de veneração
a Deus. Observe-se que as partes desenvolvidas levam o poeta a incluir texto seu,
promovendo um diálogo metalinguístico, pois o que faz é continuar a temática primeira
e desenvolvê-la. Não se trata, pois, de uma sátira; é uma maneira de expandir o tema
10 “Houve na universidade medieval a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava
nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à consideração temática sob um
ângulo universal. Um homem como Santo Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o
espírito da disputatio é o espírito da universidade. (...) O importante é que, por trás da forma externa de
disputa verbal regulamentada, a disputa – com toda a agudeza de um confronto real – dá-se no elemento
do diálogo. Este ponto decisivo é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter
sido alguma vez para a universidade medieval”. (Josef Pieper, apud TOMÁS DE AQUINO, 2000, p. 5).
11 Usarei, a partir de agora, a sigla CGGR para as referências ao Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende.
12 Mencione-se que uma das características mais evidentes do CGGR é a irregularidade métrica e
estrófica, como precursora de estéticas vindouras e também como técnica apreciada pelos poetas
cortesãos dos Quatrocentos e Quinhentos. Pierre Le Gentil já havia observado atentamente essa técnica e
acredita ser esta peculiaridade a grande marca da Compilação, sua grande riqueza.
13 Registre-se que, em geral, as orações são versificadas, mas, não necessariamente rimadas, uma das
características da forma poética. Daí não considerar a oração uma glosa de versus cum auctoritate.
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devocional, reforçá-lo através de um comentário do poeta, envolvido que está na
religiosidade que transmite o Pai Nosso; nas palavras de Casas Rigall, o poema
configuraria uma cita (citação), pois a glosa está vinculada aos trechos do Pai Nosso
original. Registre-se que o texto em latim é de origem neotestamentária e sancionado
pela Igreja para a liturgia, em latim, e em vernáculo para uso cotidiano privado. A
oração encontra-se em São Mateus e em São Lucas (Mt. 6, 9-13: Lc. 11, 2-4); a versão
para a devoção particular é a de São Mateus, reproduzida a seguir:
Pater noster qui es in caeles, santificetur nomen tuum. Adveniat regnum
tuum. Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra. Panem nostrum
quotidianum, da nobis hodie. Dimite nobis debita nostra sicut et nos
dimitimus debitoribus nostris. Et ne nos inducas in tentationem, sed
liberanos a malo. Amen14.
Veja-se o poema de Luis Anriquez e comentários adicionais concernentes à sua
temática:
PATER NOSTER GROSADO PER
LUIS ANRIQUEZ15.
Cri'eleison, Crist'eleison,
Tu, Senhor, que nos fizeste,
dá-nos, pois que padeceste
por nós outros, salvaçam!
Dos filhos de maldiçam
a Ti praza que nos veles,
dá-nos, Senhor, contriçam,
Pater noster qui es in celes,
Santificetur nomem tuum,
mui temido e adorado,
de toda gente comũu
de sempre tee fim louvado.
Pois que com a devindade
es eterno Deos e ũ,
pois tomaste humanidade,
adveniat reinum tuum.
Fiat voluntas tua,
Senhor, que nos has livrado
da eternal pena crua,
por teu ser crucificado.
E pois que da cruel guerra
nos livraste, Redentor,
damos-Te graças, Senhor,
sicut in celo et in terra.
14 Para mais detalhes, cf. CANCIONERO GENERAL, 2004, Tomo V, p. 577.
15 Cf. CANCIONEIRO GERAL, 1998, vol. II, pp. 279-281. Cf. também DIAS, 1998, vol. V, pp. 129-130,
com comentários da autora sobre esse poema.
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Panem nostrum quotidiano,
em o qual per fe Te vemos,
praza-Te, pois que Te cremos,
que nos livres do gram dano.
Dá-nos o bem qu'esperamos
depois da morte per fee,
com a qual Te confessamos
Tu da nobis hodie.
Demita nobis debita nostra,
pois é mais ta piedade
que toda nossa maldade,
o bom caminho nos mostra.
Ó tres em ũa pessoa,
donde nos todo bem vem,
perdoa, Senhor, perdoa,
sicut et nos demitimos, amen.
Et ne nos inducas in temptationem,
dá-nos firme fee sem cabo
per u livres do diabo
per tuam remissionem.
E se nos maginações
de Satam ou seu vassalo
vierem ou tentações,
sed libera nos a malo.
Oraçam do autor.
Tu, que as portas abriste
do lago do desconforto,
Tu, que o mundo remiste
per ta morte sem ser morto,
dá-me, Senhor, contriçam,
no ultemo desta vida,
firme fee e salvaçam
e guarda por ta paixam
minh'alma de ser perdida!
Como se pode perceber, Anriquez glosa o Pai Nosso, adicionando novidades como a do
primeiro verso – o Cristo eleison (Kyrie Eleison – “Senhor, tenha piedade”, oração
litúrgica cristã) em grego – e também do latim tuam remissionem, na sexta estrofe,
como que para reforçar sua devoção e implorar a remissão de seus pecados. Mas a glosa
não se restringe apenas a novidades incluídas ao longo do poema, mas, criatividade
quinhentista de cunho trovadoresco16, qual seja, adicionar ao texto uma oração do
16 O CGGR, assim como o cancioneiro de Hernando del Castillo, base da compilação de Garcia de
Resende, é pleno de novidades de forma e conteúdo que antecipam várias estéticas futuras. No entanto,
ambos os cancioneiros mantêm, em grande parte de suas peças, a tradição temática do Trovadorismo
provençal e galego-português.
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próprio Anriquez: na última estrofe, o poeta dirige-se a Deus e pede-lhe, baseado no
teor do Pai Nosso original, que o guarde da perdição, dando-lhe contrição, firme fé e
salvação. Reflete, ainda no fim do medievo, o temor de que sua alma seja perdida,
temor que abrangeu praticamente a totalidade da Idade Média ocidental cristã.
Não é aleatório o fato de que o poema constitui-se de sete estrofes – como sendo uma
oração de contrição, cada estrofe remete à remissão dos sete pecados capitais. Ligadas à
contrição, ressaltam nas trovas as palavras “salvaçam” e “piedade”, além do vocativo
reiterativo “perdoa, Senhor, perdoa”. Ligadas aos pecados e castigos pelos desvios
causados por “toda nossa maldade”, o poeta elenca “eternal pena crua”, “cruel guerra”,
“gram dano”, “diabo” e “maginações / de Satam ou seu vassalo”, além de “tentações”.
A se levar em consideração o valor semântico dessas palavras, note-se que as de valor
negativo superam as de valor positivo; assim a remissão desses pecados somente se
concretizaria, seguindo os cânones cristãos, pela “fé”, que aparece quatro vezes nas
trovas, e pelo “bem qu’esperamos / depois da morte”. De se notar também como os
dogmas da Igreja perfazem o poema e marcam a influencia dela no homem medieval:
“eterno Deus e ũ”, que “toma humanidade” – isto é, Deus consubstanciado em Jesus,
seu filho na forma humana – e a Santíssima Trindade no vocativo “Ó tres em ũa
pessoa”. Na oração final, um contundente apelo à salvação, remete o poeta à
reencarnação de Cristo no paradoxal verso “per ta morte sem ser morto”, paradoxo que
só pode ser explicado pela “firme fee”.
No CGHC17, encontra-se o Pai Nosso cristão glosado de forma similar ao da oração de
Luis Anriquez. Hernán Pérez de Guzman apõe partes da oração latina encabeçando cada
uma das seis estrofes em oitavas e em redondilhos maiores – técnica que caracteriza a
maior parte dos textos dos dois cancioneiros aqui referenciados –, mas desta feita com
um interessante diferencial em relação ao poeta português: Pérez de Guzman faz uma
paráfrase da oração, do latim para o castelhano, e glosa o trecho dando continuidade à
súplica desenvolvida em cada uma das partes. Não se trata de novidade neste tipo de
intertextualidade, mas o poeta castelhano não deixa de ser original quando encerra sua
“tradução” com a última parte do Pai Nosso – sed liberanos a malo. Amen. Observe-se
que a frase não encabeça mais as estrofes e aparece como encerramento da oração:
Libranos de todo mal, / Ihesú, nuestra redempción. Leia-se o poema:
17 Usarei, a partir de agora, a sigla CGHC para as referências ao Cancionero General de Hernando del
Castillo.
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EL PATERNOSTER, HECHO POR
HERNÁN PÉREZ DE GUZMÁN18
PATER NOSTER QUI ES IN CELIS,
SANTIFICETUR NOMEN TUUM
Padre nuestro, que estás
en los Cielos ensalçado,
tu nombre santificado
sea por siempre jamás,
por la gran gloria que has
y por quantos beneficios,
sin méritos ni servicios,
a las criaturas das.
ADVENIAT REGNUM TUUM
Venga el tu reino sancto
a nos con paz y con gracia,
que nos consuela y espacia
y libra de todo espanto,
que nuestro vigor no es tanto
que podamos a él ir
sin tu gracia intervenir
a nos con su dulce canto.
FIAT VOLUNTAS TUA, SICUT IN
CELO ET IN TERRA
Hágase tu voluntad
en la tierra bien obrando,
seyendo y esperando,
amando con caridad;
assí que la humanidad
haga como el Cielo haze:
que siempre sirve y complace
a tu Santa Magestad.
PANEM NOSTRUM COTIDIANUM
DA NOBIS HODIE
El tu pan cotidiano
nos da oy, por tu clemencia,
ca, sin la tu providencia,
¿qué vale el trabajo humano?
Tú, Señor, abres la mano
y hinches todo animal
de tu bendictión, la qual
provee al pueblo mundano.
ET DIMITTE NOBIS DEBITA NOSTRA,
18 Cf. CANCIONERO GENERAL, pp. 307-309, tomo I (edição de Valencia 1511).
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SICUT ET NOS DIMITTIMUS DEBITORIBUS
NOSTRIS
Assí como nós perdonamos
a quien nos fiere y baldona
assí, tú, Señor, perdona
a nosotros quando erramos.
¡Ó, cómo nos condenamos
con esta suplicación
quando nuestra ofensión
cruelmente la vengamos!
ET NE NOS INDUCAS IN
TENTATIONEM
No traigas em temptación,
Señor, la nuestra flaqueza,
pues conosces la crueza
de aquel rugente león
que nuestra condenación
busca con ravia infernal.
Libranos de todo mal,
Ihesú, nuestra redempción.
O Pater Noster de Hernán Pérez de Guzmán apresenta características idênticas ao de
Luis Anriquez e pouca diferença na forma. Se nas trovas de Anriquez, o poeta vale-se
muito da simbologia (sete pecados capitais versus sete estrofes e as questões da unidade
das três pessoas divinas, para citar duas), no poema do poeta castelhano o foco está na
paráfrase da oração original. Isso é claro pela própria disposição das estrofes, cada uma
encabeçada pelas frases latinas do Pai Nosso que levam à “tradução” do poeta, sem, no
entanto, deixar de ser uma sincera potencialização da oração devocional. Observe-se
que o poeta, no uso dos modos verbais, prioriza o imperativo, modo que está muito
ligado a uma atitude manifesta no gênero “oração”. Alguns exemplos: “sea por siempre
jamás” – e aqui a notar a força do paradoxo – “venga el tu reino sancto”, “hágase tu
voluntad”, e assim segue em todas as estrofes. Importante observar, ainda, como na
segunda estrofe, Pérez de Guzmán concretiza, de certa forma, o “mantra” próprio das
orações: o último verso liga o “dulce canto” ao ritmo do poema (e, por extensão, ao
gênero oracional). Nenhuma vez o poeta remete a Satã de forma explícita, como o fez
seu contemporâneo português; no entanto, ao dizer que Deus conhece a “crueza / de
aquel rugente león / que nuestra condenación / busca con ravia infernal” –
alegoricamente Pérez de Guzmán refere-se ao Diabo e, em seguida, pede a Jesus que
“libranos de todo mal”.
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Nos dois poemas, enfim, os poetas esmeram por trazer para as artes literárias um gênero
sacro sem qualquer perversão de sentido como o faz Salazar no “Pater noster de las
mugeres”, que vem em seguida.
ACOMODAÇÃO E PARÓDIA
Tanto na simples citação, quanto na acomodação, o que se ressalta é a “perversão de
sentido”, às vezes como desvirtuação sarcástica, às vezes como alteração proposital,
mas “leve”. Ou ainda proposital com o objetivo de valer-se do texto original para dar
continuidade ao próprio pensamento, conceito ou ideia do autor que emula ou imita.
Ainda segundo Maria Augusta Babo,
no complexo polifônico da intertextualidade, a citação instala, pois, a
perversão do sentido ou o espaço que o nega, interdito. Nessa medida o jogo
da citação pode, em última análise, produzir efeitos semelhantes ao jogo da
paródia que, etimologicamente, significa cantar ao lado, noutro tom. O texto
paródia, tal como o texto citação, consiste na transposição de um texto de um
registro nobre para um registro vulgar. (...) A citação, ao criar, mais do que
ressonâncias, dissonâncias, institui-se como texto paralelo ou paródico, como
texto outro. Enquanto repetição ela é sempre retorno do mesmo, parafraseado
ou parodiado, a fazer sintoma (BABO, 1986, s. p.).
Se nos poemas religiosos de Luis Anriquez e de Hernán Pérez de Guzán não se percebe
intenção satírica, mas sim desenvolvimento de nova oração, logo, de cunho místico,
tendo por base um texto bíblico, no “Paternoster de las mugeres” de Salazar, a sátira
misógina quinhentista é evidente. Digo quinhentista, pois como se verá adiante,
diferencia-se da misoginia trovadoresca. Nas vinte e duas estrofes em quintilhas, com
métrica comum aos cancioneiros aqui analisados – os redondilhos maiores –, Salazar
adiciona um pé quebrado nos quintos versos de cada estrofe, configurando a reprodução
latina do Pater Noster. Note-se que esses pés quebrados são irregulares, pois seguem as
frases latinas da oração original; diferentemente da oração de Luis Anriquez, as
quintilhas somente rimam nos versos em castelhanos – no texto latino não há rima nem
segue a métrica da trova. A versão do poema como editada modernamente por Joaquín
González Cuenca é a que segue:
EL PATERNOSTER DE LAS MUGERES,
HECHO POR SALAZAR19
19 Segundo Joaquín González Cuenca, o poema foi provavelmente escrito por Luiz Salazar, poeta
palaciano quinhentista castelhano e encontra-se no Cancionero General, 2004, Tomo IV, trovas nr. 590,
pp. 298-301. Note-se que o poema consta da segunda edição do Cancionero (Valência, 1514). Cf.
também em DIAS, 1998, vol. V, p. 131, observação crítica da estudiosa.
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Rey alto, a quien adoramos,
alumbra mi entendimiento
a loar en lo que cuento
a ti, que todos llamamos
Pater noster.
Por que diga el disfavor
que las crudas damas hazen,
cómo nunca nos complazen,
te suplico a ti, Señor,
qui es in celis.
Porque las heziste bellas
dizen sólo con la lengua,
por que no caigan en mengua
de mal devotas donçellas:
Santificetur!
Pero, por su vanagloria,
viéndose tan estimadas,
tan queridas, tan amadas,
no les cabe en la memoria
nomen tuum.
Y algunas damas que van
sobre interesse de haver
dizen con mucho plazer,
si cosa alguna les dan:
Adveniat!
Y con este dessear
locuras, ponpas y arreos,
por cumplir bien sus desseos,
no se curan de buscar
regnum tuum.
Y éstas, de quien no se esconde
bondad que en ellas se mida,
a cosa que se les pida
jamás ninguna responde:
Fiat!
Mas la que más alta está
(¡miraldo, si la habláis!),
si a darle la combidáis,
seréis cierto que os dirá:
Voluntas tua!
Tienen una presunción,
que es muy cierta vanagloria
de haver en el mundo gloria
muy complida en perfición,
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sicut in celo.
Tienen un continuo zelo
con verse tan estimadas
que quieren ser adoradas
de los santos en el Cielo
et in terra.
Con hallarse ser tan bellas
que se les debe afición,
hallan que es justa razón
que despendamos por ellas
panen nostrum.
Y, aunque tengamos oficio
de siempre les ofrecer,
dizen no nos pueden ver
si no hazemos servicio
cotidianum.
Y aunque estén a su plazer
todas las cosas sobradas,
os dizen como enojadas:
“No quedó nada de ayer:
da nobis odie.”
Tienen un contino rallo
si algunas joyas tenés,
aunque vos no os acordés
y tengáis bien a quien dallo,
Dimite nobis!
Tanto sobre el seso están
en pensar burlar de nos
que mientra viviere Dios
no creo que pagarán
debita nostra.
Tanto siempre las tenemos
por nuestras governadoras
que de todo quanto havemos
quieren ellas ser señoras
sicut et nos.
Si acaso les proponemos
nuestras passiones delante,
responden con buen semblante:
si dezimos moriremos
dimitimus.
Si quiçá les pedirés
algo que os devan pagar,
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dizen, para os contentar:
“¡Holgá, que siempre serés
debitoribus nostris!”
Señor, pues somos humanos,
satisfaz nuestras querellas.
Rogámoste que de ellas
nos guardes y a sus manos
ne nos inducas.
Porque tanto las queremos
y no podemos vencellas,
tú, Señor, nos guarda de ellas,
que nos pornán, si las vemos,
in tentationem.
Plégate, Señor, querer
haver de nos piedad.
No pongas la libertad,
como a Eva, en su poder,
set20 libranos a malo.
Y, pues que tan desonesto
somos de ellas maltratados,
plégate, Señor, que presto
seamos de ellas pagados.
Amen.
Os três poemas aqui reproduzidos e em análise retratam o que M. Magnin, de acordo
com Teófilo Braga, denomina “oração farcie” – “la farciture (...) emporte
nécessairemente avec soi l’idée de melange” (apud BRAGA, 1867, p. 61). Sendo assim,
tais poemas implicam “melange”, ou seja, mistura – nos casos estudados, mistura de
idioma, mas, especificamente no Pater Noster de Salazar, a mistura vai além – a
temática é paródica e satírica, assim como o poema de Rui Moniz mencionado acima.
Se no poema de Moniz o servidor acusava a dama de crueldade característica da poética
desenvolvida desde o lirismo trovadoresco, no poema de Salazar a crueldade das damas
vai além: a misoginia é evidente e é caracterizada por um novo modo de repúdio à
mulher, o dirigido às mulheres dos séculos XV e XVI.
O teor do poema inicia com a irreverência com que é tratado um assunto sério, a oração
devocional, daí o poema tender para a paródia. Como técnica, valeu-se também Salazar
da acomodação, como se pode constatar pelas considerações feitas ao texto pelo
organizador da mais recente edição do CGHC. Para Joaquín González Cuenca,
20 A conjunção latina é sed; no poema editado por Cuenca aparece como acima (set).
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la irreverencia que supone desfigurar las cláusulas de una oración de tanto
relieve e implantación en la piedad cotidiana como es el padrenuestro, para
acomodarla a un contenido misógino, fue, con toda seguridad, el motivo de
la supresión del poema en las ediciones sevillanas. Incluso en uno de los
ejemplares de la primera edición de Amberes (A57) una mano censora se ha
sentido en la obligación de emborronar el texto, y en otro de la segunda (A73)
quedan las señales de advertencia de su peligrosidad. Peligrosidad que no es
por misoginia, claro, sino por irreverencia.
Por otra parte, por la fragmentación que sufren las cláusulas del padrenuestro
y por su inserción en el texto castellano, se producen desplazamientos del
sentido auténtico que tienen en el contexto latino, lo que obliga a una
traducción decantada hacia su nuevo significado, como si se tratara de
palabras castellanas (CANCIONERO GENERAL, 2004, p. 298, tomo IV).21.
Observe-se que, seguindo os cânones religiosos, a censura preocupou-se com a melange
do sagrado com o profano; a misoginia, como se sabe, nunca preocupava a Igreja, pois
implora Salazar a Deus que “no pongas la libertad, / como a Eva, en su poder, / set
libranos a malo.” Como diz Cuenca, a “mão censora” voltou-se contra o perigo que esta
mistura de sagrado/profano significava para a pregação. O editor ainda registra que, ao
fragmentar as cláusulas do Pai Nosso, seu significado perde o teor original e ganha novo
sentido induzido pelo propósito do poeta. Nota-se, então, que o poema farci vale-se da
técnica da “acomodação” – o objetivo é transformar em paródia um assunto sério de
“tanto relieve e implantación en la piedad cotidiana como es el padrenuestro”; a
acomodação é ainda corroborada pelo verbo “acomodar”, grifado por mim nas
observações de Cuenca acima.
Com relação à irreverência, note-se que ela não só faz parte da sátira, mas ela é
especialmente reavivada na poesia produzida nos séculos XV-XVI, constatada não
apenas nos poemas cancioneris, mas também, na produção dramatúrgica de um Gil
Vicente, por exemplo, ou de seu “mentor” Juan del Encina 22. Quanto a Gil Vicente,
somente para ficar na técnica da “acomodação”, recorde-se a farsa O velho da horta, em
que Mestre Gil toma como mote de seu enredo os amores de um homem mais velho por
uma moça.
Velho: Pater noster criador
qui es in celis poderoso
21 As siglas A57 e A73 que Cuenca adiciona ao seu texto referem-se às edições do CGHC de Amberes de
1557 e 1573.
22 Apenas como recordação, seguem algumas fontes do teatro vicentino. Além de Juan del Encina, podese citar outras fontes castelhanas: Lucas Fernandez; Torres Naharro; Gomes Manrique; Fernando Rojas.
Teria o Mestre desenvolvido em suas peças, romances de cavalaria (Palmerim da Inglaterra e Amadis de
Gaula); elementos da tradição poética peninsular; representações litúrgicas: mistérios, representações da
Paixão, vida dos Santos; momos: festas de caráter aristocrático; fontes religiosas (antigo e novo
testamento, breviário, horas canônicas); da teatralidade medieval, peças de moralité e soties; fontes
literárias: Erasmo e Raimundo Lull.
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sanctificetur senhor
nomen tuum vencedor
nos céus e terra piadoso.
Adveniat a tua graça
regnum tuum sem mais guerra
voluntas tua se faça
sicut in celo et in terra.
Panem nostrum que comemos
cotidianum teu é
escusá-lo nam podemos
inda que o nam merecemos
tu da nobis hodie.
Dimitte nobis senhor
debita nossos errores
sicut et nos por teu amor
dimittimus qualquer error
aos nossos devedores.
Et ne nos Deos te pedimos
inducas per nenhum modo
in tentationem caímos
porque fracos nos sentimos
formados de triste lodo.
Sed libera nossa fraqueza
nos a malo nesta vida
amen por tua grandeza
e nos livre tua alteza
da tristeza sem medida23.
Como analisa Márcio Ricardo Coelho Muniz, Gil Vicente reproduz quase integralmente
o Pai Nosso em latim. Também se valendo da técnica da acomodação, Vicente
acrescenta glosa dele mesmo com propósitos específicos:
na primeira, termos qualificativos (criador, poderoso, senhor, vencedor,
piedoso) exalçam os valores da divindade. Na segunda, realça-se a dívida do
homem com a graça divina (‘“que comemos”, “escusá-lo nam podemos/ inda
que o nam merecemos”, “nossos errores”). Até aqui, uma glosa que guarda,
(...) a solenidade da oração. Já na terceira parte os acréscimos são maiores e
seu conteúdo prepara a entrada no tom gracioso do início do diálogo do
Velho com a jovem. O tema da terceira parte é o das tentações que afligem os
homens e que podem levá-los ao pecado (et ne nos inducas in tentationem/
sed libera nos a malo). Ao pedido, o Velho acrescentará duas justificativas, a
fraqueza da perseverança humana (“porque fraco nos sentimos”) e o baixo de
nossa constituição (“formados de triste lodo”). E, por fim, outro pedido, mas
que carrega um tom mais pessoal, a revelar uma particular condição do
Velho, a tristeza que lhe abate na velhice (“e nos livre tua alteza/ da tristeza
desmedida”), que será confirmada pela farsa e momentaneamente revertida
pelo amor e pelo fogo da vida que lhe proporcionará a jovem (“Porque a
minha hora d’agora/ val vinte anos dos passados”)24.
23 Teófilo Braga refere-se a esse Pai Nosso de O Velho da Horta e a uma Ave Maria, ambos de Gil
Vicente, como orações farcies (BRAGA, 1867, pp. 60-63).
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O professor Muniz desenvolve um estudo da farsa de Gil Vicente, vendo nela uma
espécie de charivari cortesão: um dos vetores de construção da farsa O velho da horta
encontra-se na festa popular medieval do charivari25; no entanto, opondo-se à sátira
mordaz e cruel característica daquela festa, o Mestre opta por um charivari cortesão,
mediado pelo riso e pelo lirismo. O texto de Gil Vicente, analisado por Márcio Muniz,
traz em seu bojo, no gênero dramático, os princípios que venho expondo na análise dos
poemas de cunho religiosos dos cancioneiros ibéricos dos Quatrocentos e Quinhentos –
a acomodação, a oração farcie, a intertextualidade, por fim.
Quanto à misoginia, é evidente que, nos Quatrocentos e Quinhentos, ainda persistia o
preconceito contra a mulher, retrato da rigidez não moralista – ou pelo menos não tão
moralista – mas de cunho religioso. Nos versos “Plégate, Señor, querer / haver de nos
piedad./ No pongas la libertad, / como a Eva, en su poder”, ao se referir à mulher como
“filhas de Eva”, subjaz a persistência misógina. Apesar de faltar o famoso “moralismo
cristão” dos ataques misóginos, a ideia da ”mulher pecadora e tentadora”, digna “cria”
da serpente edênica, sobressai nessas trovas à mulher “gananciosa”, que só quer
“escravizar” o amado e arrancar-lhe os bens. Portanto, aquela afeita à vida de luxo da
corte. Conforme escreve Jean Verdon sobre a misoginia do século XV,
si la misogynie des clercs s’explique en partie par les conceptions de l’Eglise
en matière de sexualité et par le fait qu’ils doivent – en principe – renoncer à
mener une vie sexuelle normale, il n’en va pas de même des laïcs. Pourtant,
chez eux aussi existe un courant misogyne. Crainte de la sexualité féminine
et d’un possible adultère générateur de bâtards, peur de ne pas dominer dans
24 Agradeço ao Prof. Márcio Ricardo Coelho Muniz por enviar-me o texto original, em Word, de sua
comunicação e posterior artigo “Que prática tam avessa da rezam: um charivari cortesão no teatro de Gil
Vicente”. A comunicação foi apresentada no X Congresso AIL, na Universidade do Algarve, de 18 a 21
de julho, 2011. O texto foi publicado em: MUNIZ, M. R. Coelho. Que prática tam avessa da rezam: um
charivari cortesão no teatro de Gil Vicente. Em: PETROV, Petar at alli. Avanços em Literatura e Cultura
Portuguesas: da Idade Média ao século XVI. Santiago de Compostela: Através Ed., 2012, p. 41-61.
25 No artigo mencionado acima (nota 24), Márcio Muniz menciona que “Hilário Franco Jr., em seu livro
sobre a história do país imaginário chamado Cocanha (1998), informa que a palavra charivari surgiu
provavelmente no séc. XIV, embora se possa atestar a presença de sua prática nos séculos anteriores.
Jean-Claude Schmitt afirma que a primeira menção ao rito do charivari encontra-se numa obra literária
do séc. XIV, o Romance de Fauvel, ‘escrito entre 1310 e 1314 por um clérigo tabelião [...], Gervais du
Bus’. Segundo Franco Jr., o ritual marcava um protesto pelas transgressões cometidas por um indivíduo
contra uma determinada comunidade, que, se sentindo prejudicada, saía às ruas para expor ao ridículo o
transgressor da ordem”. Segundo outro estudioso da história do riso, o também historiador José Rivair
Macedo, ‘o ritual apresentava-se na forma de um desfile, cujos participantes apareciam mascarados ou
fantasiados, realizando gestos cômicos , insultuosos e obscenos, provocando enorme algazarra com gritos,
risos e cantos, batendo em caldeirões, caçarolas, guizos, arreios de animais”. As obras mencionadas por
Muniz são: FRANCO JR., Hilário. Cocanha: a história de uma país imaginário. São Paulo: Companhia
da Letras, 1998; MACEDO, José Rivair. Charivari e ritual judiciário: a cavalgada infamante na Europa
medieval. In: TELLES, Célia Marques; SOUZA, Risonete Batista (Orgs.). Anais do V Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Salvador: Quarteto, 2005; SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os
mortos na sociedade medieval. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999,
cujas fontes não consultei.
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le ménage... et aussi désir pour certains auteurs de ne pas se démarquer d’un
topos (VERDON, 1999, p. 97).
Como se pode verificar, Verdon diferencia a misoginia clerical da laica – apesar de nos
fins da Idade Média (é o que desenvolve o autor em sua obra), a misoginia ter
diminuído em relação aos séculos anteriores, existia um ranço do costume. E ele faz-se
notar principalmente nas questões sexuais que poderiam ameaçar o status social através
da geração de bastardos. Mais do que questão religiosa, a misoginia afetaria as relações
sociais, quando aflora uma mulher que percebe seu poder ao pretender se sobressair
através do luxo palaciano. Isso, para Verdon, torna-se claro em relação aos excessos da
vestimenta e da coqueteria (aliadas, ironicamente, à paresse, ou seja, à preguiça).
Convivem na sociedade dois tipos de misoginia, evoluídos desde a Alta Idade Média.
Segundo o estudioso francês,
il convient de noter que la critique des péchés évolue. Ainsi le XIIIe. siècle
met l’accent sur la coquetterie, sur les excès vestimentaires. A la fin du
siècle, la coquetterie-orgueil l’emporte sur la coquetterie-luxure parce que les
nouveaux riches des cités ont la possibilité de la pratiquer. Les auteurs au
XIVe. siècle, insistent le bien-être que la femme doit instaurer au sein du
foyer, ce qui amène à lui reprocher sa paresse. Les peintures murales du XVe.
siècle attribuent deux péchés aux femmes, l’un traditionnel, celui de luxure,
l’autre nouveau, celui de paresse (ibidem, p. 8).
Tais afirmações de Jean Verdon podem corroborar o novo tipo de misoginia velada, mas
ainda em prática na sociedade ibérica, retratada nos versos de Salazar. Tem-se, então,
uma crítica à mulher “nova” desses fins do medievo – o poeta, no entanto, vale-se de
antigo costume denegridor de base religiosa, a ligação entre a mulher coquete e a
“pecadora” Eva. Para investir contra aquela, vale-se o poeta de costume de longa
duração – o preconceito de cunho religioso; mas, o ataque contundente, apesar de
paródico, mostra-se no texto como um todo, principalmente nos versos “Tienen un
continuo zelo / con verse tan estimadas / que quieren ser adoradas de los santos en el
Cielo / et in terra. Observe-se a necessidade de verem-se estimadas pelo fato de
manterem um zelo, um cuidado exterior, contínuo. A paródia, na estrofe, concretiza-se
no fato de fazerem-se, as novas mulheres, adoradas pelos santos – mistura irônica do
sagrado com o profano.
Mas o poema de Salazar não retrata apenas irreverência e misoginia; ele retrata, ainda
nos séculos XV-XVI, a pervivência da cortesania amorosa tão apreciada e difundida
durante o Trovadorismo provençal e galego-português. Deste, o poema é uma evidente
paródia, crítica e burlesca, do “amor cortesão”, das regras dele, no melhor estilo das
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zombarias das cantigas de escárnio e maldizer, mas feitas segundo a normativa dos
séculos XV e XVI – quando a mulher está mais ousada, afoita e corajosa. Para criar esse
clima de zombaria, vale-se o poeta de jargões característicos das cantigas trovadorescas:
as “crudas damas hazen (o disfavor) / cómo nunca nos complazen”. Para contrapor a
zombaria, recheia o poema, de forma irônica, com jargões do lirismo trovadoresco,
como em “porque las heziste bellas”, ou do próprio amor cortês, muito evidente nos
versos “viéndose tan estimadas, / tan queridas, tan amadas, ou “mas la que más alta
está” e é “muy complida en perfeción”. O campo semântico do amor cortês é retomado
ainda na referência à beleza da dama (“con hallarse ser tan bellas / que se les debe
afición) e na referência ao serviço que o amante presta à “dama inatingível”: “hazemos
servicio”, por isso “tanto siempre las tenemos / por nuestras governadoras”. Por esse
serviço (vassálico), devem as damas ser cobradas do “galardon” – “algo que os devan
pagar” – como símbolo do vínculo amoroso. Mas o poeta rende-se, assim como seus
antepassados trovadores, à impossibilia de ter o amor de damas tão altas, perfeitas, belas
– “porque tanto las queremos / y no podemos vencellas”, que Deus guarde os servidores
de tão cruéis damas que os puseram in tentationem. Note-se, ainda, nas trovas de
Salazar, o uso da amplificatio. O artifício retórico é próprio e recorrente na poesia
medieval; ele era parte de um código – o do amor cortês. No entanto, essa recorrência
tem como objetivo ressaltar não só as virtudes positivas de uma dama – como no caso
dessas trovas de Salazar e da grande maioria, se não todas, das composições registradas
nos cancioneiros provençais, galego-portugueses e nos palacianos de Quatrocentos e
Quinhentos – mas ressaltar também as virtudes do poeta como criador. É “através dessa
linguagem superlativa, [que] os seres são considerados do ponto de vista do mais
elevado. É a perspectiva dos sinos mais elevados da catedral, do topo mais elevado de
uma torre, das alturas celestes. Desse ponto de vista, a linguagem descreve os limites
das coisas, sua infinita pequenez” (SCHUBACK, 2008, p. 135).
Comentando uma das características mais evidentes das cantigas de amor galegoportuguesas, Lênia Márcia Mongelli (2009) explica que a base do amor cortesão refletese na coita, isto é, no sofrimento de amor. “O interesse obsessivo pela coita leva à
devassa da afetividade humana e de seus limites”, pois “os obstáculos são maiores do
que a capacidade de resolvê-los”. Esse sofrimento que seria, para a estudiosa, ora jogo
poético ora jogo retórico, não demonstra a sinceridade (nem mesmo a realidade), pois os
textos trovadorescos deixam transparecer uma ficção, um ideal de amor – e de mulher –
que vão além do real. Para Mongelli, ainda, o panegírico da dor centra-se no fato de o
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trovador amar uma mulher inacessível por questões de ordem econômica e social, já que
ele pertence a uma escala inferior ao da dama a que serve, daí que o que produz é uma
poesia de cunho essencialmente idealizado, jamais realizado, ficcional, como afirma
Mongelli. Nesse amor cortesão,
o substrato desse estado perene de excitação é a “tensão” – nota contundente
das cantigas de amor – entre a imagem mental ou sonhada e a realidade
concreta ou tangível, separadas por abismos sociais. O sonho, pela matéria de
que é feito aqui [o amor], superestima a realidade. (MONGELLI, 2009, p.
6)26.
Essa diferença social não mais se revela nos poemas amorosos dos Quatrocentos e
Quinhentos, como deixa transparecer a trova de Salazar. Se a dama ainda é cruel, não é
mais inacessível, pois tanto ela quanto o poeta cortesão estão no mesmo nível da escala
social; no entanto, persiste nas cortes ibéricas peninsulares o ideal cortesão de etiqueta e
de amor, refletido nos jargões explorados pelo poeta castelhano. Como diz Yara
Frateschi Vieira, “o exercício do amor acaba assumindo o caráter de forma de
aprimoramento social, moral e artístico” (VIEIRA, 1987, p. 15), na poesia trovadoresca
– e, como visto até agora, na poesia palaciana dos séculos XV e XVI. No caso do
“Paternoster de las mugeres”, talvez se configure o que Yara Vieira vê em algumas
cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas: essas adquirem “características
enunciativas semânticas e métricas das cantigas de amor, mas imprimem-lhes um
sentido contrário, podendo, portanto ser consideradas como paródias daquelas” (ibidem,
p. 17). Valendo-se de estudos de Giuseppe Tavani, a estudiosa diz ainda que ele
distingue quatro campos semânticos do tipo paródico nas cantigas de amor,
denominadas “escárnio de amor”: 1) o ultraje; 2) a alimentação; 3) a polêmica entre
grupos sociais ou categorias profissionais; e 4) o obsceno (ibidem, p. 18). Se na poesia
trovadoresca de escárnio e maldizer tais campos se entrelaçam, no poema castelhano
aqui reproduzido vigora o ultraje, pois a intenção do poeta é denegrir as afoitas e
desafiadoras mulheres contemporâneas suas. Mas é patente, tanto na poesia
trovadoresca sarcástica quanto na palaciana paródica, que a intenção primeira do poeta é
explorar e expandir as possibilidades que a poesia satírica permite e instiga.
Referências bibliográficas:
26 Agradeço a Profa. Lênia Márcia Mongelli pelas acuradas observações quanto aos jargões do lirismo
trovadoresco presentes no poema de Salazar, bem como as observações quanto à misoginia característica
dos séculos XV-XVI, que tentei explorar neste estudo do mesmo poema.
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Intra e intertextualidade nas Cantigas de Santa Maria
Gladis Massini-Cagliari
Universidade Estadual Paulista (UNESP-Araraquara) / CNPq
Resumo: Este texto explora a noção de intertextualidade nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X
(1121-1284), focalizando uma nuance específica desse vasto conceito: a possibilidade de auto referência,
baseando-nos, principalmente, no trabalho anterior de Parkinson (1998).
Palavras-chave: Intertextualidade, Cantigas de Santa Maria, poesia medieval religiosa.
Abstract: This text explores the notion of intertextuality in Alfonso X’s (1211-1284) Cantigas de Santa
Maria, focusing on a specific nuance of this vast concept: the possibility of self-reference, mainly based
on Parkinson’s (1998) previous work.
Keywords: Intertextuality, Cantigas de Santa Maria, religious medieval poetry.
Tomando como norte o tema específico deste quarto volume da Série Estudos
Medievais, este texto pretende explorar a noção de intertextualidade nas Cantigas de
Santa Maria (doravante, CSM) de Afonso X (1121-1284), focalizando uma nuance
específica desse vasto conceito: a possibilidade de auto referência, aqui denominada de
“intratextualidade”, baseando-nos, principalmente, no trabalho anterior de Parkinson
(1998, p. 72), que mostra que, no vasto conjunto das 420 Cantigas de Santa Maria, há
subgrupos de cantigas com conteúdo derivado provavelmente da mesma fonte ou com
características estilísticas comuns. Desta forma, o recorte que damos a esse conceito diz
respeito ao fato de que alguns pares de cantigas apresentam mais do que semelhanças de
conteúdo e/ou de forma, mas poderiam até ser acusadas de plágio ou de autoplágio, caso
a noção de autoria fosse, naquela época, semelhante à atual.1
Intertextualidade
1 Apesar de ser do conhecimento geral de que vários trovadores trabalharam no scriptorium de Afonso X,
no esforço de compor o conjunto das CSM, o Rei Sábio é apontado como o autor das cantigas, segundo a
ideia de autoria vigente na época. A este respeito, Montoya Martínez (1999a, p. 35) afirma que Alfonso X
é indiscutivelmente o “autor” das CSM, dentro de um conceito “teológico” de autoria: “Este concepto se
asemeja muy mucho al que tiene la Iglesia acerca de la autoría divina de la Biblia. Él, que manejaba con
tanta asiduidad el Libro Sagrado y conocía la teología que hacía al caso, sabía que Dios es el autor
principal de este Libro, que se sirve, a su vez, de autores secundarios quienes dicen todo y sólo aquello
que él quiere que digan. Esta concepción, que él pone de manifesto en repetidas ocasiones, hay que
aplicarla aquí. Y sean muchos o pocos los cantares que él compusiera, no le puede negar la autoría
principal, desde este punto de vista teológico.” A opinião expressa por Montoya Martinez baseia-se, em
grande parte, no seguinte trecho da General Estoria, de Afonso X (conforme editado por Solalinde, 1915,
p. 285-286): “el rey faze um libro, non por quel el escriua com sus manos, mas porque compone las
razones del, e las enmienda et yegua et endereça, e muestra la manera de como se deuen fazer, e desi
escriue las qui el manda, pero dezimos por esta razon que el rey faze el libro.”
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Nos estudos de Linguística Textual, o conceito de intertextualidade costuma ser
definido como uma recorrência a textos prévios, no processo da construção de textos
falados ou escritos. A definição adotada por Koch e Travaglia (1989, p. 88) é a seguinte:
... a intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas quais a
produção e a recepção de dato texto depende do conhecimento de
outros textos por parte dos interlocutores, isto é, diz respeito aos
fatores que tornam a utilização de um texto dependente de um ou mais
textos previamente existentes.
Entretanto, segundo Koch e Elias (2006, p. 78), o processo de “identificar a presença de
outro(s) texto(s) em uma produção escrita depende e muito do conhecimento do leitor,
do seu repertório de leitura. Para o processo de compreensão e produção de sentido, esse
conhecimento é de fundamental importância”.
A intertextualidade pode ser reconhecida em vários níveis, tanto em termos de conteúdo
como de forma. A intertextualidade temática, segundo Koch, Bentes e Cavalcanti (2007,
p. 18-19), pode ser
encontrada, por exemplo, em textos científicos pertencentes a uma mesma
área do saber ou uma mesma corrente de pensamento [...]; entre matérias de
jornais e da mídia em geral, em um mesmo dia, ou durante um certo período
em que dado assunto é considerado focal; entre as diversas matérias de um
mesmo jornal que tratam desse assunto; entre as revistas semanais e as
matérias jornalísticas da semana; entre textos literários de uma mesma escola
ou de um mesmo gênero [...]; entre diversos contos de fadas tradicionais e
lendas que fazem parte do folclore de várias culturas [...]; histórias em
quadrinhos de um mesmo autor; diversas canções de um mesmo compositor
ou de compositores diferentes; um livro e o filme ou novela que o encenam;
as várias encenações da mesma peça de teatro, as novas versões de um filme,
e assim por diante.
Koch e Travaglia (1990, p. 77) afirmam que,
Quanto ao conteúdo, pode-se dizer que a intertextualidade é uma constante:
os textos de uma mesma época, de uma mesma área de conhecimento, de
uma mesma cultura, etc., dialogam, necessariamente, uns com os outros. Essa
intertextualidade pode ocorrer de maneira explícita ou implícita.
Conforme será visto na próxima seção deste trabalho, o reconhecimento da
intertextualidade, principalmente temática, mas também formal, fez que com Parkinson
(1998) considerasse a hipótese de haver mais de uma CSM relacionada a um mesmo
material original (ou seja, um mesmo relato milagroso).
A retomada de conteúdos milagrosos nas CSM
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Parkinson (1998, p. 72) mostra que, no grande conjunto das CSM, há subconjuntos de
cantigas dedicadas a milagres acontecidos em santuários específicos, como os de Salas,
Terena, Montserrat, Tudia e Vila-Sirga. Além destes, há os ciclos do Porto e de
Castroxeriz.
Dentro do conjunto das cantigas do ciclo de Castroxeriz, podem ser encontradas
cantigas extremamente similares, em termos de conteúdo e de forma. Um par que
chamou a atenção de Parkinson (1998, p. 80) é formado das cantigas 242 e 249,
reproduzidas, abaixo, a partir da edição de Mettmann (1988, p. 333-334 e p. 348-349,
respectivamente). A cantiga 242 narra a história de um pedreiro que, estando para cair
da parte mais alta da obra, ficou pendurado pelas pontas dos dedos, mas não caiu, por
intervenção milagrosa da Virgem. Já a cantiga 249 conta uma história bastante
semelhante, em que um pedreiro cai do alto de uma obra, mas é protegido de se
machucar pela Virgem Maria.
CSM 242
Esta é como Santa Maria de Castroxeriz guariu de morte un pedreiro
que ouvera de caer de cima da obra, e esteve pendorado e teve-sse nas
pontas dos dedos da mão.
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer,
pode-o Santa Maria ǀ mui de ligeiro fazer.
E d' ela fazer aquesto ǀ á gran poder, a la fe,
ca Deus lle deu tal vertude ǀ que sobre natura é;
e poren, macar nos ceos ǀ ela con seu Fillo sé,
mui tost' acá nos acorre ǀ sa vertud' e seu poder.
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
E dest' un muy gran miragre ǀ vos quer' [eu] ora contar
que en Castroxeriz fezo ǀ esta Reynna sen par
por un bon ome pedreiro, ǀ que cada dia lavrar
ya ena sa ygreja, ǀ que non quis leixar morrer.
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
Este era mui bon maestre ǀ de pedra põer con cal,
e mais d' outra ren fiava ǀ na Virgen esperital;
e porende cada dia ǀ vĩya y seu jornal
lavrar encima da obra. ǀ E ouve d' acaecer
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
Un dia en que lavrava ǀ no mais alto logar y
da obr', e anbo-los pees ǀ lle faliron e assi
coidou caer, e a Virgen ǀ chamou, per com' aprendi,
os dedos en hũa pedra ǀ deitou; e fez-lo tẽer
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
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A Virgen Santa Maria. ǀ Enas unllas atan ben
o teve, macar gross' era, ǀ que sol non caeu per ren;
e assi chamand' estava ǀ a Sennor que nos manten,
dependorado das unllas ǀ e colgado por caer.
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
E estev' assi gran peça ǀ do dia, com' apres' ei,
que acorrudo das gentes ǀ non foi, segund' eu achei;
mas acorreu-lle a Virgen, ǀ a Madre do alto Rey,
ata que vẽo a gente ǀ e o fez en decender.
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
Todos quantos esto viron ǀ loaron de coraçon
a Virgen Santa Maria, ǀ e aquel pedreyr' enton
ant' o seu altar levaron, ǀ chorando con devoçon,
e fezeron o miragre ǀ per essa terra saber.
O que no coraçon d' ome ǀ é mui cruu de creer...
CSM 249
Como un maestre que lavrava na eigreja que chaman Santa Maria d'
Almaçan, en Castroxeriz, caeu de cima en fondo, e guardó-o Santa
Maria que sse non feriu.
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir,
d' ocajon será guardado ǀ e d' outro mal, sen mentir.
E de tal razon com' esta ǀ un miragre vos direi
que en Castroxeriz fezo ǀ a Madre do alto Rey,
a Virgen Santa Maria, ǀ per com' eu aprix e sei;
e por Deus, meted' y mentes ǀ e querede-o oyr.
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
Quand' a ygreja fazian ǀ a que chaman d' Almaçan,
que é en cabo da vila, ǀ muitos maestres de pran
yan y lavrar por algo ǀ que lles davan, como dan
aos que tal obra fazen. ǀ Mas un deles ren pedir
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
Non queria, mas lavrava ǀ ali mui de coraçon
pora gaannar da Virgen ǀ mercee e gualardon.
E porend' or' ascoitade ǀ o que ll' avẽo enton,
e senpr' averedes ende ǀ que falar e departir.
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
El maestr' era de pedra, ǀ e lavrava ben assaz
e quadrava ben as pedras ǀ e põyas-as en az
eno ma[i]s alto da obra, ǀ como bon maestre faz.
E un dia fazend' esto ǀ foron-ll' os pees falir,
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
E caeu ben do mais alto; ǀ e en caendo chamou
a Virgen Santa Maria, ǀ que o mui toste livrou:
ca pero que da cabeça sobelos cantos topou,
assi o guardou a Virgen ǀ que sol non se foi ferir,
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
Nen sentiu sol se caera ǀ nen recebeu en neun mal;
ante ss' ergeu mui correndo, ǀ que non tev' ollo por al,
mas foi ao altar logo ǀ da Virgen espirital
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por loar a ssa mercee ǀ e os seus bẽes gracir.
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
E quantos ali estavan ǀ deron loores poren
aa Virgen groriosa, ǀ que aos seus val e manten.
E porende lle roguemos ǀ que senpr' ajamos seu ben
e nos gaann' o de seu Fillo, ǀ que nos vẽo remiir.
Aquel que de vontade ǀ Santa Maria servir...
Dada a semelhança de conteúdo, Parkinson (1998, p. 80) considera essas duas cantigas
como derivadas da mesma história, duas expansões do mesmo milagre. Mostra que as
primeiras 3 estrofes da CSM 249 são claramente paralelas às duas primeiras estrofes de
CSM 242; da mesma forma, a quarta estrofe de CSM 249 é paralela em conteúdo à
terceira de CSM 242.
A partir das semelhanças de conteúdo e de layout entre as cantigas 242 e 249, Parkinson
(1998, p. 82) sugere que essas duas cantigas são elaborações do mesmo material básico:
de um único milagre coletado, fez-se a cantiga original 242, com 5 estrofes; esta,
subsequentemente, originou um segundo poema, CSM 249.
Outros dois pares de cantigas que, segundo o autor (PARKINSON, 1998, p. 85),
também teriam a mesma relação de proximidade de conteúdo e de forma são os pares
222/225 e 136/294.
Nas CSM 222 e 225, o milagre contado diz respeito ao fato escatológico de
padres terem engolido aranhas vivas. Reproduzimos, abaixo, as cantigas 222 e 225, na
edição de Mettmann (1988, p. 286-288 e p. 292-294, respectivamente).
CSM 222
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe conplida
non lle nozirá poçõya, | e dar-ll-á por sempre vida.
Ca ela troux' en séu ventre | vida e luz verdadeira,
per que os que son errados | saca de maa carreira;
demais, contra o diabo | ten ela por nos fronteira
como nos nozir non possa | en esta vid' escarnida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
Pois dizer-vos quer' éu dela | un miragre mui fremoso,
e ben creo que vos seja | d' oí-lo mui saboroso,
e demais pera as almas | seer-vos-á proveitoso;
e per mi, quant' ei apreso, | non será cousa falida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
En Portugal, a par dũa | vila, muy rica cidade
que é chamada Lixbõa, | com' eu achei en verdade,
á y un [rico] mõesteiro | de donas, e castidade
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mantẽen, que pois nos ceos | ajan por sempre guarida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
Este mõesteyr' Achelas | á nom' e ssi é chamado;
e un capelan das donas, | bõo om' e enssinado,
estava cantando missa | com' avia costumado,
e avẽo-ll' assi: ante | que foss' a missa fĩida,
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
Quando [a] consomir ouve | o Corpo de Jhesu-Cristo,
per que o demo vençudo | foi ja por sempr' e conquisto,
caeo dentro no caliz, | esto foi sabud' e visto,
per un fi' ũa aranna | grand' e negr' e avor[r]ida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
O capelan hũa peça | estev' as[s]i en dultança
e non soube que fezesse; | pero ouve confiança
na Virgen Santa Maria, | e logo sen demorança
a aranna cono sangui | ouve logo consumida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
Pois que ouv' a missa dita, | o capelan logo dessa
foi contar est' aas donas | des i aa prioressa.
E con medo de poçõya, | mandou-o sangrar log' essa
dona e toda-las monjas, | esta cousa foy ordida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
Mais agora oyredes | todos a mui gran façanna
que ali mostrou a Virgen, | nunca vistes tan estranna:
pelo braço lle sayu | viva aquela aranna,
ante que sangui saisse | per u deran a fferida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
As donas maravilladas | foron desto feramente
e a aranna mostraron | enton a muita de gente,
e loaron muit' a Madre | de Deus Padr' omnipotente,
que todos a[o] sseu reino | comunalmente convida.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
Nos o[u]trossi ar loemos | a Virgen Santa Maria
por tan fremoso miragre, | e roguemos noit' e dia
a ela que do diabo | nos guard' e de ssa perffia,
que pera o parayso | vaamos dereita yda.
Quen ouver na Groriosa | fïança con fe comprida...
CSM 225
Como hũu clerigo ena missa consomiu hũa aranna que lle caeu no calez,
e andava-lle ontr' o coiro e a carne viva, e fez Santa [Maria] que lle
saysse pela unna.
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso,
porque a verdad' entenda ǀ o neicio perfioso.
E daquest' un gran miragre ǀ vos será per mi contado,
e d'oir maravilloso, ǀ pois oyde-o de grado,
que mostrou a Santa Virgen, ǀ de que Deus por nos foi nado,
dentro en Cidad-Rodrigo. ǀ E é mui maravilloso
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
Ontr' os outros que oystes, ǀ e tenn' eu que atal éste
o que vos contarei ora ǀ que avẽo a un preste
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que dizia senpre missa ǀ da Madre do Rei celeste;
e porque a ben cantava, ǀ era en mui desejoso
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
O poblo de lla oyren. ǀ Mas un dia, sen falida,
ena gran festa d'Agosto, ǀ desta Sennor mui conprida
estava cantando missa; ǀ e pois ouve consomida
a Osti', ar quis o sangui ǀ consomir do glorioso
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
Jhesu-Crist'. E viu no caliz ǀ jazer hũa grand' aranna
dentro no sangui nadando, ǀ e teve-o por estranna
cousa; mais mui grand' esforço ǀ fillou, a foro d'Espanna,
e de consomir-lo todo ǀ non vos foi mui vagaroso.
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
E pois aquest' ouve feito, ǀ non quis que ll' enpeecesse
Deus o poçon da aranna ǀ nen lle no corpo morresse;
e pero andava viva, ǀ non ar quis que o mordesse,
mas ontr' o coir' e [a] carn' ya ǀ aquel bestigo astroso.
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
E andava muit' agynna ǀ pelo corp' e non fazia
door nen mal, por vertude ǀ da Virgen Santa Maria;
e se ss' ao sol parava, ǀ log' a aranna viya,
e mostrando-a a todos ǀ dizend': «O Rei piadoso
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
Quis que polos meus pecados ǀ aqueste marteir' ouvesse;
poren rogo aa Virgen ǀ que se a ela prouguesse,
que rogas[s]' ao seu Fillo ǀ que cedo mi a morte désse
ou me tolles[s]' esta coita, ǀ ca ben é en poderoso.»
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
Esta aranna andando ǀ per cima do espĩaço
e depois pelos costados ǀ e en dereito do baço,
des y ya-ll' aos peitos ǀ e sol non leixava braço
per que assi non andasse; ǀ e o corpo mui veloso
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
Avia esta aranna. ǀ E un dia, el estando
ao sol, ora de nõa, ǀ foi ll' o braç' escaentando,
e el a coçar fillou-ss' e ǀ non catou al senon quando
lle sayu per so a unlla ǀ aquel poçon tan lixoso.
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
E tan toste que sayda foi, ǀ o crerigo fillou-a
e fez logo dela poos ǀ e en sa bolssa guardo[u]-a;
e quando disse sa missa, ǀ consumiu-a e passou-a,
e disse que lle soubera ǀ a manjar mui saboroso.
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
As gentes que y estavan, ǀ quand' ouveron esto visto,
loaron muito a Madre ǀ do Santo Rei Jesu-Cristo;
e des ali adeante ǀ foi o crerigo por isto
mui mais na fe confirmado, ǀ e non foi luxurioso.
Muito bon miragr' a Virgen ǀ faz estranno e fremoso...
Por sua vez, as cantigas 136 e 294 se referem ambas a uma mulher que, perdendo no
jogo de dados, e estando por isso furiosa, arremessa uma pedra contra a estátua de Santa
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Maria. No primeiro caso, o braço da estátua da Virgem salva a estátua do menino Jesus
do dano; no segundo, é a estátua de um anjo quem salva a estátua da Virgem. Trazemos,
abaixo, o texto dessas duas cantigas, na versão de Mettmann (1988, p. 106-107 e 1989,
p. 83-84, respectivamente).
CSM 136
Esta é como en terra de Pulla, en hũa vila que á nome Foja, jogava hũa
moller os dados con outras conpannas ant' hũa eigreja; e porque perdeu,
lançou hũa pedra que déss' ao Menỹo da omage de Santa Maria, e ela
alçou o braço e recebeu o colbe.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança,
quenas cuida desonrrar mui fol é sen dultança.
Desto direi un miragre que a Groriosa
fez grand' en terra de Pulla come poderosa
sobr' un malfeito que fez hũa moller astrosa,
por que prendeu poren morte a muy gran viltança.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
Esto na vila de Foja foi ant' ũ' eigreja
u estav' hũa omage da que sempre seja
bẽeita, feita de marmor, de mui gran sobeja
beldade, en que as gentes avian fiança.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
En essa vila, segund' eu aprix en verdade,
fillo do Emperador y era Rey Corrade;
de ssa conpanna jogavan ant' a Majestade
dados omees e molleres, com' é ssa usança.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
Hũa moller aleimãa, tafur e sandia,
jogava y; e porque perdeu, tal felonia
lle creceu, que ao Fillo da omagen ya
corrend' e log' hũa pedra por ssa malandança
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
Lle lançou por eno rostro feri-lo Menynno.
Mais la Madr' alçou o braço logo mui festo,
e eno coved' a pedra fez-ll' un furadynno,
que lle pareceu por senpre por gran demostrança.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
Quand' aquesta maravilla foi al Rei contada,
logo foi por seu mandado a moller fillada,
des i per toda-las ruas da vila rastrada;
desta guisa a sa Madre quis Deus dar vingança.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
Des i el Rei a omagen ben guardar mandava,
e o pintor dessa vila toda a pintava;
mais o braço per nihũa ren non llo tornava
com' ant' era, ca non quis Deus por sinificança.
Poi-las figuras fazen dos santos renenbrança...
CSM 294
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Como hũa moller que jogava os dados em Pulla lançou hũa pedra aa
omagen de Santa Maria, porque perdera, e parou um angeo de pedra
que y estava a mão e recebeu o colbe.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes
Os angeos aa Madre daquel ǀ cujos son sergentes.
Onde vos rogo, amigos, | que un gran miragr' ouçades
que fezo Santa Maria | en Pulla; e ben sabiades
que, des que o ben oyrdes, | certo sõo que tennades
mais o coraçon en ela | e sejades chus creentes.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Esto foi a hũa festa | desta Virgen groriosa,
que ant' hũa sa eigreja | mui ben feita e fremosa
fillou-s' a jogar os dados | hũa moller muit' astrosa
con outros tafures muitos, | que non eran seus parentes.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Aquesta moller cativa | foi de terra d' Alemanna;
e perdendo aos dados, | creceu-ll' en tan gran sanna
que fez hũa gran sandece, | e oyd' ora quamanna,
por que guardados sejades | de seerdes descreentes.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Hũa omagen fremosa | da Virgen Santa Maria,
de pedra mui ben lavrada | sobre la porta siia,
e dous angeos ant' ela, | e qualquer deles avia
senllas mãos enos peitos; | e enas outras tẽentes
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Eran come senllos livros | de mui gran sinificança,
porque todo-los saberes | saben eles sen dultança;
as outras mãos nos peitos | tĩian por semellança
que en Deus sas voontades | tẽen sempre mui ferventes.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Ond' esta moller sandia | viu hũa pedr' e fillou-a,
e catou aa omagen | da Virgen e dẽostou-a
e lançou aquela pedra | por feri-la, mas errou-a;
ca os angeos que eran | ant' ela foron presentes
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Por a [ssa] Sennor guardaren. | Un deles alçou a mão
e recebeu a ferida, | mas ficou-ll' o braço são.
E quantos aquesto viron | fillaron logo de chão
a moller e dar con ela | foron nas chamas ardentes.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
O angeo teve sempre | depois a mão tenduda
que parou ant' a omagen | pera seer defenduda;
onde aquela omagen | foi depois en car tẽuda
mui mais ca ante non era | de todas aquelas gentes.
Non é mui gran maravilla ǀ seeren obedientes...
Conclusão
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A partir da análise que realiza das CSM 242 e 249, Parkinson (1998, p. 85) conclui que:
This account of the genesis of cantiga 242 has interesting implications for the
study of the way in which the texts and manuscripts were produced. At the
textual level, it confirms the supposition that scribes rather than skilled poets
were involved in the elaboration and expansion of collected miracle stories.
It also suggests that composition and layout were closely connected at this
stage in the compilation of the CSM, and that pages were prepared for
cantigas in the royal manuscripts as soon as they were composed, as
compared with earlier stages where compilers selected and ordered cantigas
at leisure.
As considerações de Parkinson (1998) e a análise dos textos das cantigas apontadas por
ele como muito relacionadas em termos de conteúdo e de forma empreendida na seção
anterior deste artigo mostram que, para além de uma intertextualidade de conteúdo e de
forma, trata-se, mais apropriadamente falando, de um caso do que aqui se denominou de
“intratextualidade”, ou seja, de referência interna, de auto referência, em que um texto
da coletânea reelabora outro. De um outro ponto de vista, trata-se de um processo que
hoje em dia, considerando nossa concepção atual de autoria (diferente da medieval,
como anteriormente apontado), poderíamos chamar de plágio (ou de autoplágio, já que é
grande a possibilidade de as cantigas dos pares indicados terem sido escritas pelo
mesmo trovador). Por este motivo, o título do artigo de Parkinson se refere bastante
ironicamente às cantigas do ciclo de Castroxeriz a partir da expressão muito comum em
liquidações de lojas inglesas: “two for the price of one” (“duas pelo preço de uma”).
Referências bibliográficas:
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Intertextualidade: Diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. São
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METTMANN, W. (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 101 a 260): Alfonso X, el
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METTMANN, W. (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 261 a 427): Alfonso X, el
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Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8
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MONTOYA MARTÍNEZ, J. Composición, estructura y contenido del cancionero
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SOLALINDE, A. García. Intervención de Alfonso X en la redacción de sus obras.
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O erotismo das imagens femininas na lírica galego-portuguesa
Márcia Maria de Melo Araújo
Universidade Estadual de Goiás – UEG
Resumo: Trata-se, neste estudo, de uma abordagem das imagens femininas reproduzidas em cantigas de
amigo de João Soares Coelho, João Zorro e Pero Meogo, trovadores galego-portugueses. Nessas imagens,
o erotismo aparece como tema da possibilidade de satisfação, da promessa, do desejo ou da sua negação,
da privação de algo amoroso e da proximidade da felicidade. Nesse sentido, pretende-se refletir sobre
como elementos éticos da fidelidade, da coragem, da ternura são tratados, por uma vertente eróticocultural que compõe a nobreza medieval, capaz de transformar os sofrimentos do amor em beleza,
oferecendo assim um significado e um valor satisfatório para o sentimento.
Palavras-chave: cantigas de amigo; erotismo; imagens femininas; lírica galego-portuguesa.
Abstract: It is, in this study, one of the female images in approach played songs of friend John Soares
Coelho, John Zorro and Pero Meogo, Galician-Portuguese troubadours. In these images, eroticism
appears as the theme of the possibility of satisfaction, of promise, of desire or his denial, deprivation of
something loving and happiness of proximity. In this sense, we intend to reflect on how ethical elements
of faithfulness, courage, tenderness are treated by an erotic-cultural aspects that make up the medieval
nobility, able to transform the sufferings of love beauty, providing meaning and satisfactory value for the
feeling.
Keywords: Friend's songs; eroticism; female images; Galician-Portuguese lyric.
A lírica galego-portuguesa, durante seu período de apogeu, nos séculos XIII e XIV, foi
considerada na Península Ibérica modelo do que era admirável e florescente para a
expressão poética da ars amandi [arte do amor] medieval. Talvez caiba aqui, como
motivação introdutória ao estudo dessa poética afetiva, lembrar a célebre frase de
Andreas Capellanus numa passagem do capítulo IV “Quais são os efeitos do amor?” em
que ele mesmo discorre sobre as nuanças do amor no século XII (CAPELÃO, 2000, p.
13): “Que coisa extraordinária o amor: permite que tantas virtudes brilhem no homem e
confere tantas qualidades a todos os seres, quaisquer que sejam”, querendo significar
que não só elementos que mais tarde estarão associados ao sentimento de cortesania,
mas também, e principalmente, um reconhecimento das virtudes da dama, serão
seguidos de uma evolução estilística da versificação para um estilo mais refinado, em
que o amor muito deve ao símbolo e à correspondência da palavra enquanto expressão
do amor.

Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Goiás e do quadro de docentes
permanentes do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias.
Doutora e Mestre em Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira, respectivamente, pela Universidade
Federal de Goiás, desenvolve pesquisas na área dos Estudos Medievais e da Educação.
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Nessa expressão do amor reside certo anseio pela estilização do que veio a ser a
transformação da vida amorosa em um jogo com regras nobres. Johan Huizinga
comenta que “[n]ão se pode avaliar o quão significativo foi o fato de a classe dominante
de todo um período ter recebido a sua concepção de vida e a sua erudição na forma de
uma ars amandi” (2010, p. 179).
Igualmente, a época que ilumina a Arte de trovar1representa o ideal de amor feminino
em que todas as virtudes cristãs e sociais foram encaixadas na moldura do “verdadeiro
amor” pelo sistema do amor cortês. A pensar a experiência coletiva feminina que
adquire especial importância face ao mundo androcêntrico e patriarcal da Idade Média,
no qual a existência da mulher se subordinava às leis do princípio da fertilidade, as
novas regras significaram uma perspectiva inovadora além de erótica do ideal de vida
cortês, podendo ser equiparada com a escolástica.
Junto com a tradição bíblica, a tradição clássica colaborava para reforçar um modo de
ver a natureza como reflexo da realidade sensível em todos os seus aspectos.
Reconhecida a presença desse modo de ver a vida, Umberto Eco (2010, p. 19) compara
o interesse estético dos medievais e o nosso, delimitando aquele como portador de uma
visão mais dilatada e voltada à atenção para a beleza das coisas frequentemente
estimulada pela consciência da beleza enquanto dado metafísico. Durante o período
medieval, à luz do Trovadorismo, era comum a representação simbólica de questões
sexuais ou mesmo a descrição do ato sexual pelo uso da imagem de alguma atividade
social (HUIZINGA, 2010, p. 182).
Lavar as vestes, por exemplo, tinha significado erótico porque a lavagem das roupas e a
água assumiam significados figurativos, remetendo para núpcias e sensualidade
feminina. Esse tipo de procedimento analógico entre a representação simbólica de algo
correspondendo-o às ações humanas parece ser usual na Idade Média, como se fez
representar nos bestiários, conforme Pedro Fonseca (2011) comenta, em que algumas
espécies do mundo animal, vegetal e mineral são descritos em referência à sua natureza
e traços comportamentais, com frequentes correspondências exemplares com os seres
humanos, numa associação recorrente a ensinamentos relativos à boa conduta baseada
em princípios e em preceitos da moral cristã.
1
Breve texto que aparece no Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, edição crítica e facsímile de Giuseppe Tavani, Lisboa, Colibri, 1999.
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Essa associação, baseada no crescente interesse pela história natural do fim da Idade
Média, traz como consequência uma despersonalização dos agentes mitológicos para
concentrar-se basicamente nos elementos e nas forças naturais que estes agentes
representavam (FONSECA; GARAY, 1993, p. 4).
A correspondência exemplar da natureza com os seres humanos, na lírica trovadoresca,
indica que os trovadores foram importantes para o estabelecimento de uma linguagem
altamente simbólica, entre essas duas realidades. A simbologia erótica dos versos, para
Monroy Caballero, sugerem “símbolos arcaicos a través de los cuales los elementos de
la naturaleza, las plantas y los animales se identifican con la vida sexual humana”
(CABALLERO, 2005, p. 24).
Desse modo, toda a simbologia que normalmente percorre a poética medieval encontrase supostamente transfigurada pela referência alegorizante herdada principalmente da
tradição religiosa, da prática e da utilização exemplar da alegoria e do símbolo. Em uma
tradição que se fundamentava nas raízes clássicas gregas e romanas, em que a leitura de
textos canônicos míticos ou épicos se fazia pelos diversos pensadores cristãos,
respeitados como “doutores” da Igreja, o significado anagógico, a lição moral, a
significação figurada e o significado literal das palavras eram reconhecidos como níveis
interpretativos que possibilitavam flexibilidade no emprego das Escrituras como
verdade padrão. Assim, essas formas de interpretação, repercutiam-se em todos os
setores da vida na sociedade medieval.
Numa versão mais refinada, a alegoria erótico-religiosa transforma-se em forma
literária, opondo-se, de certa maneira, ao espírito ascético da Igreja, ao mesmo tempo
que a destrona como produtora de poesia. Inicia-se, assim, o culto consciente do amor,
tendo este um novo sentido com um tratamento sentimental da inclinação amorosa e
uma tensão na procura de realização pelos amantes.
Assim, a finalidade do presente estudo é a análise comparativa de alguns versos das
cantigas de amigo “Fui eu, madre, lavar meus cabelos”, de João Soares Coelho; “Cabelos, los meus cabelos”, de João Zorro, e “Levou s’ aa alva, levou s’ a velida”, de
Pero Meogo, em que se busca, na interpretação simbólica, o erotismo das imagens
femininas na lírica galego-portuguesa, mais em concreto, nas cantigas de amigo desses
três trovadores.
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Essas três cantigas trazem como traço comum a inspiração na moça e nos seus cabelos.
Nelas há um traço de duplo sentido, próprio do período em que as cantigas foram
compostas, relacionado a um fundo erótico, que torna difícil se estabelecer até que
ponto os aspectos masculino e feminino do amor podem ser revelados. Em geral, a
representação do amor como forma cultural expressa quase exclusivamente uma
concepção masculina.
É na essência do desejo insatisfeito, cuja carência é um dos elementos constitutivos do
Amor desde a perspectiva mitológica de Eros, evocada por Platão em O banquete, que
se encontra um mundo submerso em sensualidade e erotismo. Suscitado pelas escolhas
lexicais, pela carga metafórica, simbólica e pela repetição, esse mundo aponta imagens
poéticas criadas a partir desses recursos e de imagens concretas como cabelos, flores,
fontes, ribeiras, enquanto manifestação imanente a motivos da natureza como mar,
floresta, animais, presentes no simbolismo medieval.
Num primeiro momento, à visualidade textual das cantigas observa-se, de maneira
evidente, uma absoluta moderação na economia dos recursos expressivos,
constatada sobretudo na reiteração de palavras idênticas ou semelhantes. A análise
dessa retórica cuja expressividade estilística é conseguida pela reiteração de valores
linguísticos repetidos ou remodelados, mas com bases afins, identifica nas cantigas
dois recursos principais: a estilística da forma e a representação da variação alusiva.
Em virtude desses valores, apresentamos a primeira cantiga (Fui eu, madre, lavar
meus cabelos) de João Soares Coelho, que escreveu 15 cantigas de amigo durante
seu período de produção lírica que data de 1235 a 1270:
I
3
Fui eu, madre, lavar meus cabelos
a la fonte e paguei m’eu delos
e de mi, louçana
6
Fui eu, madre, lavar mhas garcetas
a la fonte e paguei m’eu delas
e de mi, louçana
II
III
9
IV
12
A la fonte e paguei m’eu deles;
aló achei, madr’, o senhor deles
e de mi, louçana
E, ante que m’eu d’ali partisse,
fui pagada do que m’ele disse
e de mi louçana.
(B 689, V 291)
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Essa cantiga expressa uma ambiguidade de imagens produzida principalmente pela
obsessiva repetição retórica das palavras lavar cabelos/lavar garcetas. Numa
conversa com a mãe, a menina diz que foi à fonte para lavar os cabelos e estava
contente com eles. Ali “achou” o amigo (senhor deles e de mi), com quem ficou
satisfeita pelo que ele lhe disse. A presença da fonte e do cabelo como elementos
simbólicos aponta para
a riqueza histórica de ambos os motivos e sua presença em diferentes
culturas, inclusive na tradição bíblica do Cântico dos cânticos (4, 1). Das
várias implicações, ressalte-se a força erótica dos cabelos, cujas garcetas
indicam a moça virgem sensualmente a lavá-las, e o simbolismo espacial da
“fonte”, local de renovação e fertilidade (MONGELLI, 2009, p. 116).
Em comentário sobre essa cantiga de João Soares Coelho, Lênia Márcia Mongelli
(2009, p. 116) a classifica como do tipo “tradicional” pelo uso do modelo paralelístico
com leixa-pren, além do recurso a símbolos antigos como a fonte e os cabelos, e
também pelo teor narrativo, marcado pelo diálogo com a mãe. O encontro na fonte
constitui um tópico recorrente na literatura desde a época pagã, em que o culto às
fontes, por meio de oferendas de pão e vinho, tinha uma ligação com os ritos de
fecundidade.
Com relação à estilística da forma, a cantiga passa uma produção de sentidos que
ultrapassam a economia linguística. As rimas em delos/delas apontam para o teor
sensual e erótico em que elementos dos gêneros masculino e feminino se aproximam e,
ao mesmo tempo, se relacionam aos cabelos, com sua força erótica, desembocando no
entendimento de que houve um encontro amoroso que transcorreu à beira da fonte. O
verso 8 (aló achei, madr’, o senhor deles) rompe o leixa-pren e introduz a presença do
senhor, criando um novo sentido para o refrão, uma vez que indica que o senhor deles
(dos cabelos) é também o senhor de mi, louçana (da menina).
Quanto à variação alusiva, Stephen Reckert (1996) faz precisamente aqui uma incursão
no terreno semântico das correspondências de imagens da lírica medieval, comparando
essa cantiga de João Soares Coelho com uma outra de João Zorro, propondo a sua
compreensão simbólica, dentro de um contexto histórico-literário que abarca as cantigas
desses trovadores.
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A atividade poética de João Zorro, pelas frequentes referências a Lisboa e a "el-rey de
Portugal", situa-se em Portugal durante o reinado de Dom Dinis (1279-1325). Ao que
tudo indica, esse trovador participava da corte do rei-trovador, possuindo, como deixa
entrever na maior parte de suas cantigas, estreito laço com a política marítima do rei
português.
I
- Cabelos, los meus cabelos,
el rei me enviou por elos,
ai madre, que lhis farei?
- Filha, dade os al rei
II
- Garcetas, las mhas garcetas,
el rei m’enviou por elas,
ai madre, que lhis farei?
- Filha, dade as al rei.
(B 1154, V 756)
As rimas em elos e elas novamente aproximam os gêneros masculino e feminino e
referem-se aos mesmos cabelos como acontece na cantiga de João Soares Coelho. A
figura da mãe também se encontra presente, na forma do diálogo. Entretanto, aqui se
tem a figura de el rei, elemento recorrente nas cantigas de João Zorro e uma das
características do contexto lírico galego-português das composições desse trovador.
Sobre os textos poéticos de João Zorro, sabe-se que representam
o único ciclo lírico em toda a poesia galego-portuguesa cujo cenário é
independente de qualquer referência religiosa (mesmo que as cantigas de
romaria sejam de matéria profana e não religiosa, é no espaço de um
santuário que todos os outros ciclos deste género se desenrolam). (LOPES,
2007, p. 432).
Na cantiga apresentada, a voz feminina ergue-se em diálogo com a mãe, cuja presença
infere que seja um ambiente doméstico assim como o ambiente da primeira cantiga
apresentada. A menina encontra-se em dúvida sobre o que fazer com seus cabelos, que
el rei me enviou por elos. Nesse diálogo, a mãe aconselha: dade os al rei. Geralmente
cabe à mãe o papel de confidente e protetora, aconselhando a filha a proceder com
mesura e decoro, na preservação da sua inocência. Entretanto, nessa cantiga, em
especial, a mãe aconselha a menina a entregar os cabelos al rei, simbolizando a entrega
da virgindade. Neste caso, temos uma figura de mãe que transgride o código de zelar e
guardar, no sentido de proteger a filha. Desse modo, pareceu-nos que a imagem
feminina da mãe é um tanto quanto calculista, mostrando a sua cumplicidade com o rei
e não com a filha, o que justifica a atitude imperativa dos versos finais.
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Nas cantigas de amigo pode ser percebida a presença de certa visão obsessiva para com
a virgindade, que, segundo Bloch (1995, p. 180), está no coração do antifeminismo
medieval. No entanto, em virtude de a própria virgindade apresentar uma abstração, que
se perde com a corporificação, comparamos a lógica da virgindade com o topos do
cabelo, que se alegoriza através do simbólico e do erótico em ambas cantigas
apresentadas até o momento neste trabalho. Na cantiga de Zorro, para a mãe, pela sua
resposta direta, parece ser muito simples a filha dar os cabelos ao rei, mas há um ponto
de desequilíbrio na parte que a filha fala, pois há certa resistência em fazer o que a mãe
deseja. Isso pode ser notado pela repetição de cabelos e garcetas, com o uso do aposto:
Cabelos, los meus cabelos/Garcetas, las mhas garcetas e a personificação deles através
do pronome lhis que compõe as duas estrofes.
O jogo cabelos/garcetas infere a virgindade da menina e a sua dúvida de entregá-la ao
rei, ao mesmo tempo que refere-se a um contexto vivido por mulheres na Idade Média.
O trovador mostra, por meio de sua poética aparentemente simples pela estrutura formal
da cantiga, a projeção psicocultural e aspectos ideários ou ideológicos de um discurso
estruturado hierarquicamente. Mesmo sem saber a resposta da menina, sabemos de sua
dependência e submissão à mãe e ao rei.
Contudo, nem sempre as filhas seguiam os conselhos da mãe, e descumpriam suas
ordens, se expondo em locais públicos, como pode ser visto na cantiga a seguir, de
autoria de Pero Meogo (1260-1300), em que a garota vai alegre lavar seus cabelos na
fontana fria.
Levou s’ aa alva, levou s’ a velida,
vai lavar cabelos na fontana fria
leda dos amores, dos amores leda
Levou s’ aa alva, levou s’ a louçana,
vai lavar cabelos na fria fontana
leda dos amores, dos amores leda
Vai lavar cabelos na fontana fria;
passou seu amigo, que lhi ben queria
leda dos amores, dos amores leda
Vai lavar cabelos na fria fontana,
passa seu amigo, que a muit’ amava
leda dos amores, dos amores leda
passa seu amigo, que lhi ben queria;
o cervo do monte a augua volvia
leda dos amores, dos amores leda
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Passa seu amigo que a muit’ amava;
o cervo do monte volvia a augua
leda dos amores, dos amores leda.
(B 1188, V 793)
No contexto da poética trovadoresca peninsular, o elemento fonte, assim como a ribeira
e o regato, aparecem geralmente associados ao princípio positivo da simbologia líquida,
pois encarnam o desejo de realização amorosa espacial, do prazer comumente associado
com a consumação erótica. O que, sem dúvida, parece característico da cantiga de Pero
Meogo é o motivo da fonte e da força erótica do lavar cabelos – lembremos aqui a
cantiga analisada de João Soares Coelho –, associado à figura do cervo que volvia a
água. Azevedo Filho (1987) explica que o simbolismo do cervo remete à sexualidade
viril, desde a tradição pagã até ser redimensionada pela influência cristã. Parece que, na
cantiga de Pero Meogo, a relação da donzela com o simbolismo da água possui,
sobretudo, um caráter de intimidade que se contém na sua abertura à satisfação
declarada para dois, no qual o cervo que volvia a água pode ser representado pela figura
do namorado.
Dentro da perspectiva dessas três cantigas, detecta-se a individualidade poética no
cancioneiro feminino desses trovadores. A justaposição de elementos simbólicos e
eróticos, na estruturação das cantigas, parece fazer dialogar aquelas tradições e os
modos de a amiga sentir o amor e o desejo. Isto posto é o que agora se tem neste estudo,
querendo-se concluir que tal operação simbólica poderá indicar certas características
elucidativas da visão dos trovadores citados, considerada a realidade de autores e a
posição ideológica relacionada com as suas funções no contexto sociocultural e
filosófico em que se situam como figuras representativas de sua época.
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A Rainha D. Leonor e Gil Vicente diante do Boosco Deleitoso
Maria do Amparo Tavares Maleval
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo: Sabe-se que a rainha D. Leonor foi a principal impulsionadora do teatro de Gil Vicente. Viúva do
Rei D. João II e irmã de D. Manuel, ela foi franciscana da Ordem Terceira e por sua iniciativa muitas obras
religiosas foram publicadas, como o Boosco Deleitoso, tratado de edificação espiritual, que veio a lume em
1515. Pretendemos observar alguns aspectos do franciscanismo e/ou agostinianismo que unem a vida da
Rainha Velha, os autos de devoção vicentinos e a história exemplar que, afinal, constitui o Boosco Deleitoso,
apresentando-nos uma concepção da existência humana enquanto peregrinatio rumo ao Eterno.
Palavras-chave: D. Leonor; Gil Vicente; Boosco Deleitoso; Franciscanismo
Abstract: Queen Leonor was the main driver of Gil Vicente theater. King's widow D. João II and D. Manuel
sister, she was the Franciscan Third Order and responsible for many religious works publications, as Boosco
Deleitoso, spiritual edification treaty, which came to light in 1515. We intend to observe some aspects of
Franciscan and / or Augustinianism that unite the life of the Old Queen, the Vicente’s plays of devotion and
exemplary story that, after all, is the Boosco Deleitoso, presenting us a conception of human existence as
peregrinatio towards the Eternal.
Keywords: D. Leonor; Gil Vicente; Boosco Deleitoso; Franciscan
A rainha D. Leonor (02/05/1458-17/11/1525) viveu no período de mais alto esplendor do
reino de Portugal, quando da conquista do vasto Império ultramarino. Viúva de D. João II,
considerado o maior rei português, foi sobretudo graças ao empenho irredutível dessa
rainha que o seu irmão, D. Manuel, herdou o reino de Portugal. Isto porque D. João II tinha
um filho bastardo, D. Jorge, que queria ver no trono. Mas curvou-se diante da legitimidade
de sucessão do seu primo e cunhado, a quem em testamento legou o poder, evitando com
isto uma possível guerra civil.
As apreciações que sobre D. Leonor têm sido feitas são as mais díspares: de um lado a
acusação, pelos que a consideraram pertencente a um grupo político contrário ao rei,
encabeçado pelos Bragança, de haver até mesmo participado de um possível
envenenamento do seu esposo1. De outro, os que exaltam as suas virtudes, a sua
religiosidade, as obras misericordiosas que realizou.
1
Contra isto se coloca os seus biógrafos laudatórios como António Vasco, Conde de Sabugosa, que, com base
em pareceres de especialistas, conclui não ter sido o grande rei envenenado por arsênico, mas pelo excesso de
carnes e condimentos que ingeria e pelo atraso da ciência de então, incapaz de curar-lhe a grave insuficiência
renal de que padecia (SABUGOSA, 1918, p. 223-244)
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Deixaremos de lado a discussão sobre os possíveis rancores que pudesse alimentar contra o
marido, que, além de ter tido uma amante, D. Ana Mendonça, com quem teve o filho já
referido, assassinou, por razões de Estado, o irmão da rainha, D. Diogo, duque de Viseu; e
mandou para o cadafalso seu cunhado, o duque de Bragança, processado por traição.
Importa-nos, sim, acompanhar as suas realizações meritórias e incontestáveis.
A começar pela fundação da Misericórdia de Lisboa, com a ajuda do seu confessor
franciscano, Frei Miguel de Contreiras. Essa obra assistencial expandiu-se em irmandades
ou confrarias por todo o reino de Portugal. Também digna de nota foi a criação do Hospital
das Caldas, que trouxe inclusive notável desenvolvimento à vila, chamada de Caldas da
Rainha. Além disso, promoveu a edificação de igrejas e mosteiros, como os conventos da
Madre de Deus e da Anunciada, a Igreja de Nossa Senhora da Merceana e as Capelas
Imperfeitas do Mosteiro da Batalha, destinadas ao jazigo perpétuo de seu esposo e do seu
filho precoce e tragicamente falecido.
Já ela própria, quis ser enterrada em campa rasa, junto ao mosteiro da Madre de Deus, o
que se apresenta como uma última prova de humildade franciscana, praticada por uma
membro da Ordem Terceira de São Francisco. Em sua viuvez, trocou pelo hábito das
clarissas os trajes suntuosos, mas preferiu continuar na posse dos seus inumeráveis bens2,
que muito usou em favor dos desvalidos e da Igreja.
Intensa foi a atividade intelectual das cortes dos vários reis – D. João II, D. Manuel e D.
João III – em que viveu e nas quais foi uma verdadeira mecenas: protegeu a imprensa
nascente e fomentou a publicação de obras, sobretudo religiosas, como a tradução da Vita
Christi (1495), O Livro de Marco Polo, (1502)3, Os Actos dos Apóstolos (1505), O Espelho
de Cristina (1518) e, o que nos interessa particularmente, o Boosco Deleitoso (1515),
tratado de edificação espiritual, a que retornaremos adiante. Também patrocinaria a obra
Contra o Juízo dos Astrólogos, de Frei António de Beja (1523), e, do nosso interesse maior,
foi a grande mecenas de Gil Vicente, o extraordinário dramaturgo, que em sua vasta
2
Joaquim Veríssimo Serrão, no entanto, tem outra opinião: “Que não era desapegada de bens materiais e que
os possuía em abundância à data da sua morte, revelam-no várias cartas de quitação. Passadas pela
chancelaria de D. João III” (SERRÃO, 1985, p. 485).
3
E, no mesmo volume, O Livro de Nicolao Veneto e a Carta de um genovez mercador . Volume dedicado a
D. Manuel mas traduzido e impresso por Valentim Franandez, escudeiro da Rainha (SABUGOSA, 1918, p.
305).
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produção conta com muitas obras encomendadas pela Rainha, notadamente “Autos de
devoção”. Antes de nos determos na relação de D. Leonor com o Boosco Deleitoso e com
Gil Vicente, importa destacar alguns aspectos cruciais da sua vida, para o que é
indispensável nos reportarmos à do seu marido4.
D. João II, que reinou de 1481 a 1495, recebeu a alcunha de Príncipe Perfeito 5. Grande
empreendedor e político, sob seu cetro foram tomadas todas as iniciativas para a expansão
marítima que resultou na criação do vasto Império português, que abarcou possessões nos
vários continentes, como se sabe. Dele seu cunhado D. Manuel herdou o mais rico reino da
cristandade, graças sobretudo ao monopólio do comércio de especiarias com a descoberta
do caminho marítimo para as Índias.
Ao contrair matrimônio com D. Leonor tomou para divisa da sua casa, conservando-a ao se
tornar rei, o significativo símbolo do Pelicano, ave capaz de alimentar os filhos com o
próprio sangue6. Ao seu povo se doaria inteiramente – tal indica essa imagem, que na
iconografia cristã representava o próprio Cristo, seu sacrifício redentor. Com isto, indicava
ser divino o seu modelo, bem como o princípio da descendência divina do poder real,
princípio este defendido por Luís XI da França7.
Quanto à justiça, “foi Princepe mui justo, e mui amigo de justiça e nas exucuções dela mais
riguroso, e severo, que piedoso” (PINA, 1950, p. 203). Portanto, tal severidade e rigor, que
atingiu inclusive seus poderosos cunhados, o aproximava de seu antepassado, Pedro, o
Justiceiro. Longe de ser, no entanto, espontâneo e passional como este.
Quando o único filho que teve com D. Leonor, D. Afonso, se casou com a herdeira de
Castela, em 1490, as festas que se realizaram em Évora foram mais que nunca pomposas.
Até porque, com tal casamento, se tornava possível a União Ibérica sob a Coroa
portuguesa, sonho maior do Príncipe Perfeito. As comemorações organizadas para a
ocasião foram inigualáveis. E delas usufruíram não só os grandes fidalgos de Portugal e
4
Cf., a propósito da vida e reinado do grande soberano, Maleval, 1995.
Foi considerado “porventura, o maior dos Reis portugueses”, na competente avaliação de Joaquim
Veríssimo Serrão (1991, p. 24).
6
Com os dizeres “Por tua ley e por tua grey” (PINA, 1950, p. 64).
7
Conforme observamos em estudo anterior (MALEVAL, 1995, p. 142).
5
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Castela, mas também o povo. Rui de Pina (1977) e Garcia de Resende (1991), este de
forma mais minuciosa, narram, nas crônicas que sobre D. João II escreveram, o esplendor
de tais festejos.
Para as comemorações nupciais o rei mandou construir em Évora uma sala de madeira.
Nela foram encenados momos – representações de caráter solene e espetacular, a modo de
desfiles ou procissões – e os banquetes8 foram servidos, ao som de muitos instrumentos,
diante de convidados vestidos com a maior ostentação, sob a influência da moda francesa.
Impressiona a teatralidade dos mesmos, já que, dentre outras iguarias, eram servidos aos
convidados bois assados inteiros puxando uma carreta dourada cheia de carneiros também
assados inteiros e com os cornos dourados: “e vinha tudo posto num cadafalso tam baixo
com rodetas per fundo dele, que não se viam, que os bois pareciam vivos, e que andavam”
(RESENDE, 1991, p. 174). Para completar a surpreendente representação, “vinha um moço
fidalgo com hûa aguilhada na mão, picando os bois, que parecia que andavam, e levavam a
carreta” (RESENDE, 1991, p. 174). Após servidos a Princesa e demais fidalgos, eram
dados ao povo: “com grande grita, e prazer, foram espedaçados, e levava cada um quanto
podia” (RESENDE, 1991, p. 174).
Os festejos continuaram até o Natal, sendo que o casamento realizou-se em final de
novembro de 1490. Atestavam de forma espantosa a magnificência de D. João II. Mas
poucos meses depois, em 11 de julho de 1491, o Príncipe herdeiro morreria tragicamente,
de uma queda de cavalo. O sonho de D. João II cairia por terra, imergindo a Rainha na mais
profunda tristeza e acrescentando ao símbolo do pelicano, em seu brasão, o do camaroeiro,
rede de pesca que foi a última lembrança da morte do filho em uma humilde cabana de
pescador.
Em 1495, o próprio soberano morreria. Não sem antes, com a orientação do seu confessor
franciscano, Frei João da Póvoa, ter dado provas de humildade e arrependimento dos seus
atos.
A Rainha-Viúva, D. Leonor, como irmã de D. Manuel, foi por vezes regente do reino, e
recebeu a alcunha de Rainha Velha. Dona de uma inestimável fortuna, dedicou-se a obras
8
Desenvolvemos maiores considerações a propósito desses suntuosos banquetes em Maleval, 2014.
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de caridade e à proteção da imprensa e do teatro, como vimos. A ela foi dedicado o tratado
doutrinário Boosco Deleitoso, publicado em 1515, por ser “enclinada a toda virtude e bemfazer, zelosa grandemente de sua salvaçam e de tôda alma cristaã” (Boosco, 1950, p. 1).
Principal mecenas do considerado criador do teatro português, Gil Vicente, este, em seus
autos de devoção, veicula ensinamentos do franciscanismo, norteador da Rainha Velha, que
como vimos, pertencia à Ordem Terceira de São Francisco.
Aliás, se atentarmos para as palavras da Mofina Mendes, no auto vicentino que tal
personagem passou a intitular – “todo o humano deleite / como meu pote d’azeite / há de
dar consigo em terra” (Vicente, 2002, p. 126) –, estas se afiguram como uma profunda
reflexão acerca das tragédias humanas, como a que cercou a família do Príncipe Perfeito:
no momento do maior resplendor, atestado inclusive pelo fausto das festas do casamento do
príncipe herdeiro, vê-se diante do phatos mais doloroso, com a sua morte tão precoce e
inesperada. É como se a vida imitasse a arte, dado que no teatro o phatos se apresenta como
o momento mais altamente trágico da peça, provocando no espectador sentimentos de
temor ou compaixão (Aristóteles, [s.d.], p. 313) e conduzindo à catarse.
Da vida de Gil Vicente, sabe-se pouco. Teria nascido por volta de 1465 e falecido à roda de
1536, ano em que foi representado o seu último auto, Floresta de enganos. Sabemos que
foi, além de incomparável autor de peças teatrais, ator, ensaiador, músico, talvez cenógrafo,
e organizador das festas públicas e palacianas nos reinados de D. Manuel e D. João III.
Tem sido identificado ainda com o ourives homônimo, autor da famosa Custódia de
Belém9. Ou mesmo com o “mestre de retórica” de D. Manuel e com um alfaiate. O seu era
um nome bastante comum na época, inclusive há registro também de um carpinteiro assim
chamado no século XV.
O certo é que, ligado à Rainha D. Leonor, em seus autos “de devoção” apresenta uma
concepção agostiniano-franciscana da existência em sua precariedade e enquanto
peregrinatio rumo ao eterno. A consciência da morte e sua inexorabilidade está plenamente
representada na sua famosa trilogia das Barcas, autos em que a dança macabra se
presentifica, atingindo a grande ceifadora a todos, desde os humildes campesinos e tolos
aos poderosos soberanos e eclesiastas.
9
Cf. a propósito Freire, 1944.
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91
O religiosismo vicentino já foi inserido por especialistas, como Manuel Delgado Morales
(2003, pp. 31-43), no neoplatonismo veiculado na Europa principalmente através de Santo
Agostinho, do Pseudo Dionísio, do pensamento íbero-judio e dos franciscanos. Demonstrou
ele como Gil Vicente se afastou diametralmente do naturalismo de Juan del Encina 10 que,
na Égloga de Cristino y Febea, faz Justino convencer Cristino a descer a montanha,
abandonando o eremitismo, e (re)inserir-se no mundo dos sentidos (do amor, das festas,
etc.). Ao passo que Gil Vicente, no Auto pastoril castelhano, não permite que o seu
protagonista homônimo, inclinado à vida solitária e contemplativa (Vicente, 2002, p. 23),
ceda à vanidade e erro da vida mundana à qual o incentiva outro pastor, Brás11.
Vimos, em estudo anterior (MALEVAL, 2012), como no Auto da Alma, conhecida
‘moralidade’ escrita pelo dramaturgo para a rainha D. Leonor e representada diante da corte
na quinta-feira da Paixão de 1508, fica muito clara a concepção cristianizada do
platonismo. Inicia-se e conclui-se o auto, significativamente, com a fala de Santo
Agostinho. Fala da existência terrena como “triste carreira”, na qual a “humana transitória
10
Manuel Delgado Morales (2003, pp. 31-43), endossando a lição de Menéndez Pelayo (1962), insiste em que
a época em que foi produzido o teatro vicentino era de franco florescimento do neoplatonismo italo-hispano
(MORALES, 2003, p. 32), através de nomes como Marcilio Ficino, Cristoforo Landino, Pico della Mirandola,
Leão Hebreu e Sebastião Fox Morcillo. Não tendo, como afirma, a intenção de demonstrar que Gil Vicente
fora leitor de Marcilio Ficino ou de Pico della Mirandola, buscou, sim,”ressaltar a afinidade do seu
pensamento com o contexto neoplatônico da época” e a reconhecida influência dos franciscanos na sua obra
(MORALES, 2003, p. 34). Quanto a Encina, participando de outra tendência da época, usaria “a linguagem e
os motivos do naturalismo que vão desde Lorenzo Valla ou Maquiavel a Rabelais e Montaigne” (MORALES,
2003, p. 32).
11
Retomando a questão, reportemo-nos ao mito platônico, apresentado no famoso diálogo de Sócrates com
Fedro, que compara a alma a “uma força natural e ativa que unisse um carro puxado por uma parelha alada e
conduzida por um cocheiro”, sendo que, no caso da alma humana, diferindo da divina, “um dos cavalos é belo
e bom, de boa raça, enquanto que o outro é de má raça e de natureza contrária”. Daí resulta ser tão árduo ao
cocheiro manter a direção: “conduzir nosso carro é ofício difícil e penoso” (PLATÃO, s.d., p. 224-225). Os
cavalos distintos, que medem forças para levar a alma humana ao divino, ao mundo das realidades
inteligíveis, ao céu das Idéias Eternas ou baixá-lo ao mundo enganoso dos sentidos, dos instintos, teriam nos
dois dramaturgos, nas citadas peças, as suas expressões.
Platão ensina ainda que, se a alma humana consegue evoluir, “chega a conhecer as essências, esse
conhecimento das verdades puras a mergulha na maior das felicidades” (PLATÃO: s.d., p. 226). Mas as que
não o conseguem, “na impossibilidade de se elevarem até a contemplação do Ser Absoluto, caem e a sua
queda as condena à simples Opinião” (PLATÃO: s.d., p. 227). A explicação dessa atração para o “céu da
Verdade” é que “somente aí poderiam elas encontrar o alimento capaz de nutri-las e de desenvolver-lhes as
asas, aquele que conduz a alma para longe das baixas paixões” (PLATÃO, s.d., p. 227).
Se até aqui podemos perceber a sintonia desse mito com o Cristianismo, necessário se faz observar que deste
se afasta ao apontar o Filósofo para as idéias de reencarnacionismo e de politeísmo: “toda alma que segue a de
um deus, contempla algumas das verdades; fica isenta de todos os males até nova viagem e se o vôo não se
enfraquece ela ignorará eternamente o sofrimento” (PLATÃO, s.d., p. 227).
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natureza vai cansada” (VICENTE, 2002, p. 189) e tem necessidade de pousada para
descanso e alimento. Exalta o papel da Igreja nesta peregrinatio existencial da Alma, entre
a orientação do Anjo e as tentações do Demônio, dado ser ela a maternal “santa
estalajadeira” que possibilitará o (re)fortalecimento da peregrina (VICENTE, 2002, p. 190).
Também vale lembrar a lição do mestre Gil aos padres que se arvoravam sabedores do
porvir, através de carta a D. João III, sobre a imperfeição do mundo terreno face à perfeição
divino:
O altíssimo e soberano Deus nosso tem dous mundos. O primeiro foi de sempre e
pera sempre, que é a sua resplandecente glória, repouso permanente, quieta paz,
sossego sem contenda, prazer avondoso, concórdia triunfante, mundo primeiro.
Este segundo em que vivemos, a sabedoria imensa o edificou polo contrairo,
scilicet; todo sem repouso, sem firmeza certa, sem fausto permanente, todo breve,
todo fraco, todo falso, temeroso, avorrecido, cansado, imperfeito, pera que por
estes contrairos sejam conhecidas as perfeições da glória do segre primeiro
(VICENTE, 2002, pp. 479-480).
Portanto, o dramaturgo e a sua mecenas tinham uma evidente preocupação doutrinária,
concretizando inclusive as Virtudes e a Fé em alegorias belíssimas – por exemplo, no Auto
dos mistérios da Virgem ou da Mofina Mendes e no Auto da Fé - que tornavam mais fáceis
de serem apreendidos por leigos os dogmas da Igreja e a necessidade da prática de
costumes virtuosos e de uma religiosidade não superficial, com vistas à salvação. Desta
forma, tinham no pensamento o Boosco Deleitoso, metáfora das benesses espirituais que
intitula a obra de que a seguir trataremos, da mesma forma que outras obras doutrinárias do
período se intitulavam por metáforas relacionadas ao Paraíso, como Horto do Esposo,
Vergel de Consolação etc.
A anônima obra doutrinária Boosco Deleitoso, embora editada no primeiro quartel do
século XVI, foi escrita na centúria anterior ou até antes, segundo especialistas como Leite
de Vasconcelos (1926)12 e os que lhe seguem as pegadas – como, dentre outros, Augusto
Magne (1950)13.
12
Conhecidas são as teses de Leite de Vasconcelos sobre os arcaísmos linguísticos da obra, desaparecidos no
século XV; o que torna possível situar-lhe a escrita em fins do século XIV ou inícios do XV. Cf., a propósito,
MAGNE, 1950, p. II.
13
Ou, mais recentemente, Guido Alberto Bonomini (2008).
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93
Assim, seu contexto de produção e recepção teria como orientação hegemônica o
pensamento neoplatônico e o franciscanismo. Nem podemos nos esquecer o modo atuante,
em todos os sentidos, dos freires por ocasião da Revolução de Avis e durante os primeiros
reinados desta dinastia, sendo inclusive franciscanos os confessores da família real por
gerações. Nem que, já à época de D. Dinis, a sua esposa, a Rainha Santa Isabel (c.12691336), rezava pela cartilha do santo de Assis14, levando uma vida de destacada devoção,
humildade, caridade e paciência, inclusive buscando levar o amor onde existia o ódio. E, ao
enviuvar, segundo a sua crônica (Vida, 1921, p. 51) vestiu o hábito da Ordem das Clarissas,
passando a residir próxima ao convento que construiu e manteve, só não isolando-se nele
pela necessidade de manter-se no século para continuar ajudando aos necessitados, e à
própria Ordem, com os seus bens15. Inspirou, pois, à Rainha D. Leonor.
Uma questão nos preocupou no início de nossas reflexões: se o Boosco se propõe, a partir
da obra De vita solitaria de Francesco Petrarca, o abandono da vida ativa pela vida
solitária, contemplativa, como relacioná-lo à Ordem fundada por S. Francisco, que se
baseava fundamentalmente no trabalho apostólico junto às comunidades, exaltando a
pregação, a caridade, a mendicância?...
Lembramos que o próprio fundador da Ordem dos Frades Menores em muitos momentos
da sua vida sentiu a necessidade de isolar-se. Mas tamanha era a sua força e santidade que
conseguia fazê-lo mesmo que em público. Segundo seu primeiro biógrafo, Tomás de
Celano, na segunda biografia que escreveu do santo de Assis, este
Procurava sempre um lugar escondido, onde pudesse entregar a seu Deus não só
o espírito, mas todo o seu corpo. Quando estava em lugares públicos e era
visitado de repente pelo Senhor, para não ficar sem cela, fazia um pequeno abrigo
com sua própria capa. Às vezes, quando estava sem capa, para não perder o maná
escondido, cobria o rosto com as mangas. Sempre interpunha alguma coisa aos
circunstantes, para não perceberem o toque do Amado, e para poder rezar sem
que o percebessem, mesmo nos estreitos dum navio. Se nada disso conseguia,
fazia de seu próprio peito um templo. Fora de si e totalmente absorto em Deus,
ele parava de tossir, de gemer, de suspirar forte, de se entregar a qualquer
manifestação externa (Escritos, 1988, p. 355).
14
Vale lembrar que S. Franscisco nasceu por volta de 1181 e faleceu em 1226, sendo canonizado dois anos
depois.
15
Sua relação com o franciscanismo foi, pois, muito forte, sendo-lhe inclusive atribuída a responsabilidade de
trazer para Portugal as ideias mais importantes de Joaquim de Fiore (c. 1135-1202), abraçadas pela ala
espiritualista dos franciscanos.
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O mesmo vemos no Bosco Deleitoso, embora seja uma apologia do eremitismo: a vida
solitária é recomendada ou concedida ao ‘mesquinho pecador’ por não ter forças de lutar
contra os vícios na vida mundana16.
Já tem sido suficientemente indicado pela crítica que a obra é uma glosa do De vita
solitária escrito por Petrarca entre 1346 e 135617. Composta por 137 capítulos, já observara
o seu editor no Brasil, Augusto Magne, que do capítulo XVI ao CVII é uma tradução, com
algumas “falhas e interpolações” (MAGNE, 1950, p. V), do citado livro do humanista
aretino. Este se compõe de duas partes, como aliás propunha Aristóteles para a constituição
dos discursos18: apresenta o elogio da vida solitária na primeira, “em que o conceito
eremítico e religioso de solidão se confunde de contínuo com a idéia do bucolismo
clássico” (MAGNE, 1950, p. IV); e uma farta exemplificação de solitários na segunda,
cristãos ou não cristãos, de várias épocas e lugares.
Dentre os paradigmas apresentados19, e o que muito nos interessa, se inclui S. Francisco.
No entanto, deste o apostolado caritativo não é destacado pelo nobre solitário D. Francisco,
homônimo de Petrarca, em seu discurso visando à conversão do Pecador; mas, sim, o
pendor do santo para a contemplação, considerada a causa das distinções alcançadas20.
16
“E pensei que o Senhor Deus, meu padre binino, sabendo que eu era fraco e de pouco poder e saber e
desperteencente pera todas cousas, nom quis que eu servisse e ministrasse em obras pirigosas e caras de fazer
e envoltas e implicadas, mais pola sua piedade quis me consolar per folgança e assessego de contemplaçom,
assi como fraco e enfermo e homem pera pouco. Mas veendo ele os outros ferventes em caridade e fortemente
arreigados em ela, quise-os ordenar sobre as cousas pirigosas e caras, e nom lhe leixa porém de dar
consolaçom em no trabalho e folgança depois do trabalho...” (Boosco, 1950, p. 316).
17
Ao qual acrescentaria o chamado suplemento romualdino feito em 1372, não usado pelo anônimo autor do
Boosco Deleitoso, que não faz menção a S. Romualdo no arrolamento dos solitários exemplares.
18
Aristóteles ensinava que as partes do discurso são essencialmente duas: proposição (exposição ou indicação
do assunto ou questão) e demonstração (argumentação, provas), aceitando-lhe no máximo quatro partes –
exórdio, exposição, prova, epílogo (ARISTÓTELES,[s.d.], p. 246). Ao passo que os romanos, como Cícero
(1997, p. 31), propunham seis partes: exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão. Disso
decorre que a retórica aristotélica era mais conhecida na Idade Média do que se pensa, sendo muitas as
hagiografias e tratados que seguem essa divisão binária do discurso.
19
Desenvolvemos esta e outras considerações sobre a obra em MALEVAL, 2013.
20
“Se ficara na cidade de Assis donde era natural, nom creo que houvera aquela virtude, que ouviam as aves a
sua preegaçom. Nem creo que houvera aquele ardor de Serafim mui maravilhoso, per que a sua mente era
arrevatada em alta contemplaçom, nem houvera aqueles mui nobres sinaaes das santas chagas de Cristo, pelas
quaes os seus membros chagados mostravom que em o seu coraçom era chagado com o mui ardente amor de
Jesu Cristo. Nem creo que houvera tanto acrecentamento de geeraçom de filhos esprituaaes do casamento da
proveza, com que se ajuntou, em tam pequeno tempo este grorioso Francisco, como quer que escolhesse pera
si e pera os seus cavaleiros velas e vigílias perigosas antre as batalhas da vida dos homeês, e esto per saúde de
muitos, per conselho e revelaçom de Deus, segundo dele contam” (Boosco, 1950, p. 202).
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Boosco deleitoso é não um tratado abstrato, mas uma narrativa exemplar, repleta de
alegorias e escrita em primeira pessoa, na qual o discurso direto avulta em importância.
Essa primeira pessoa do discurso é um Pecador inominado, que se apresenta como “mui
mezquinho, desterrado do paraíso terreal das mui doces deleitações, polos pecados dos
primeiros padres, e lançado em o vale da mezquindade deste mundo”, no qual padece
“muitas coitas e trabalhos e mínguas e tribulaçoões sem conto” (Boosco, 1950, p. 3).
Apresenta, pois, neoplatônica concepção da existência terrena como lugar de carências,
dificuldades e sofrimento, de expatriação causada pelo pecado original dos primeiros pais,
Adão e Eva.
Além desse desterro do Édem, sua situação é agravada pelos seus próprios pecados, que o
afastaram também do paraíso espiritual 21, sendo que “este paraíso espiritual da alma é a
casa da boa consciência” onde há “abondança de paz” pelo “ajuntamento das virtudes”,
sendo “a alma do homem virtuoso” “em paraíso espritual enesta vida presente”, ao
contrário do pecador, que já aqui sente “as penas infernaaes” e vive “cercado de mui
grandes treevas” (Boosco, 1950, pp. 3-4). Pecado e culpa, portanto, redundam no inferno
em vida.
Consciente, pois, de sua triste situação, passa a afastar-se da cidade para um “campo mui
fremoso, comprido de muitas ervas e froles de boõ odor”, embora de sobre si não saíssem
“aquelas treevas mui escuras” que o “cercavam em-derredor e dentro” em sua consciência
(Boosco, 1950, p. 4). Próximo a este campo encontrava-se um bosque “mui espesso de
árvores mui fremosas” com “muitas aves que cantavam mui docemente”. Mas o bosque era
escuro, enevoado.
Clamando pela ajuda divina, aparece-lhe o belo e resplandecente Anjo Custódio, que o
conduz por sendas ásperas e cada vez mais perigosas que, trilhadas, conduzem a belos
prados onde se encontram as virtudes, personificadas como belas senhoras.
21
“muito mais grande era minha tribulação e mezquindade porque a minha alma era desterrada do seu paraíso
espiritual, que ham as almas santas enesta vida, do que se trespassam ao paraíso celestial” (Boosco, 1950, p.
3).
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Tais alegorias o rejeitam uma a uma na seguinte ordem: a Justiça,22 a Temperança23, a
Fortaleza24, a Prudência25. São as virtudes cardeais, que, aliás, já na Ética de Aristóteles
(1979, pp. 121-127) se apresentavam como indispensáveis ao alcance da felicidade26.
Com o incentivo do Anjo Custódio, o triste Pecador reinicia a sua peregrinação, por um
caminho longo e perigoso27, confortado pelo seu Guia e pelo doce canto das aves, que
representam os autores das Escrituras sagradas. Neste ermo, se deparam com uma bela
casa, morada das virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade. Também estas não o
acolhem por motivo de suas más obras, vaidades e apego ao mundo e às coisas terrenas.
O fraco Pecador reinicia nova longa caminhada em meio a perigos, sempre estimulado pelo
Anjo, até chegarem a um locus amoenus, com muitas árvores frutíferas e fontes de claras
águas. Aí encontram a Misericórdia, que apresenta como possível a remissão dos pecados
pela Graça decorrente da encarnação e paixão de Jesus Cristo. Então, de mãos dadas com a
Misericórdia e o Anjo, é conduzido a um vergel “deleitoso”, no meio do qual havia uma
casa “mui alta e mui fremosa e mui grande” (Boosco, 1950, p. 16), na qual se encontrava
uma dona “mui fremosa e bem guarnida”, “mui alva” e com uma resplandecente coroa
(Boosco, 1950, p. 17). Esta outra não era senão a Ciência da Escritura de Deus, rodeada de
“santos doutores” e sábios, cuja função divina era “ameezinhar os contritos de coraçom” e
“consolar os tristes e os chorosos (Boosco, 1950, pp. 18-19).
Diante da hesitação do pecador em abandonar a sua vida comandada pelos prazeres e
posses materiais, apesar da doutrinação que lhe é proporcionada pela “mui fremosa”
Ciência das Escrituras, a Justiça “espantosa” o acusa e o atemoriza constantemente, do
mesmo modo que a Misericórdia, “mui piedosa donzela”, o consola.
22
Descrita como “tão espantosa” aos maus (Boosco, 1950, p. 10).
“mui delicada” (Boosco, 1950, p. 10).
24
“aposta e bem composta de seus membros” (Boosco, 1950, p. 11).
25
“mui cuidosa” (Boosco, 1950, p. 12).
26
Dentre elas, o Sábio estagirita considerava ser a justiça “a maior das virtudes”; nela “estão compreendidas
todas as virtudes”, “não é uma parte da virtude, mas a virtude inteira” (ARISTÓTELES,1979).
Coincidentemente, no Boosco grande destaque é dada à mesma, sendo das virtudes cardeais a que
constantemente fala, para atemorizar o pecador que tanto transgrediu os seus ditames.
27
Um “caminho mui longo e mui fragooso”, com “muitas águas e per muitos passos prigosos” e “muitas
animálias bravas” (Boosco, 1950, p. 13).
23
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Em meio a esta situação é que “a dona sabedor e mui fremosa” dá voz a um nobre ermitão,
D. Francisco, para que apresente ao Pecador “o louvor da vida solitária e apartada e
assessegada” (Boosco, 1950, p. 44). Começa, então (capítulo XVI), a tradução, nem sempre
fiel, do De vita solitaria escrito pelo toscano Francesco Petarca (1304-1374) que,
considerado o iniciador do Humanismo, propõe a vida afastada da cidade não apenas com
finalidade mística, de contemplação, mas enquanto propiciadora de auto-conhecimento e
saber a ser passado a todos através de obras escritas.
Mas baldados são os esforços de D. Francisco para convencer o Pecador a mudar
completamente de vida, abandonando a cidade e seus pecados, apesar dos muitos exemplos
de sábios que o fizeram e de vozes que assumem o discurso direto para serem mais
convincentes.
Diante da indecisão e demora da conversão entra em cena, já no capítulo CX, uma estranha
dona, com duas faces – uma muito “amargosa”, para os pecadores, e outra muito bela e
doce e resplandecente, para os virtuosos. Trata-se, segundo a Ciência das Escrituras,
apoiada em Platão28, da “mais alta sabedoria e a mais alta filosofia, e a mais proveitosa que
todalas outras sabedorias”: “a memória e relembrança da morte” (Boosco, 1950, p. 259).
O Pecador é finalmente convertido por graça do “mui alto Deus” e começa a sua penitência
no Bosque Nevoso, tendo diante de si o “fogo do inferno e o fedor dos pecados e as
tormentas do juízo de Deus” (Boosco, 1950, p. 288).
O seu itinerário existencial é resumido no capítulo CXXIII: partiu do Vale Tenebroso da
vida pecaminosa ao Bosque Nevoso da penitência; deste, ao Gracioso Campo da meditação
que leva à Sabedoria e ao deleite espiritual; e, daí, sempre em companhia da Ciência das
Escrituras e do Anjo Custódio, vencidas as últimas batalhas contra a carne, o diabo e o
mundo, eleva-se ao Alto Monte da contemplação. Subir o Monte é alcançar o máximo
deleite espiritual em vida, só conseguido através do cultivo das virtudes, sendo considerada
o estável fundamento das mesmas a humildade (Boosco, 1950, p. 309). Portanto, muito
28
Platão serve de fundamento: “assi o diz o mui antigo e alto filósofo Dom Platom, que toda a vida dos
sabedores é nembrar-se e pensar na morte, que por esta nembrança fugem os pecados”. E conclui: “esta faz o
homem despreçar o mundo, e faz reger dereitamente a vida presente, e esta leva a deanteira antre todalas
obras de Deus; esta é a que remata todolos pecados” (Boosco, 1950, p. 259).
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mais que da Alma vicentina é demorado, interiorizado e conflituoso o seu processo de
ascese espiritual.
O Monte é descrito como um locus amoenus, comparável ao Paraíso (Boosco, 1950, p.
311). E aí alcança o Pecador a humildade completa, só conseguida a partir do autoconhecimento29. Isto lhe faculta o êxtase da experiência mística, descrita de forma bastante
sensual, saindo-se do plano das idéias abstratas de Platão para o concretismo do homem
medieval, como também aconteceu através da personificação de abstrações como as
virtudes, tal qual o Anjo bela e simbolicamente adornadas30.
Passa, desde então, a almejar a Pátria Celestial, a sair do desterro que é a vida terrena. E
atende ao convite do Esposo divino, para o “paaço celestrial. Ca já passou o inverno da vida
do mundo”31.
A descrição que é feita dessa Vidal remete-nos ao trecho já citado de Gil Vicente. É
vida bem-aventurada, vida segura, vida assessegada, vida fremosa, vida limpa,
vida santa, vida que nom sabe morte nem tristeza! Vida sem çugidade e sem
corruçom e sem contorvaçom, sem desvairo e sem mudaçom, vida de toda
nobreza, comprida de toda dinidade, u nom há aversairo lidador, u nom há
tentaçom de pecado, u nom há temor nêhuû, mas amor perfeito! (Boosco, 1950,
pp. 337-338)32.
Enfim, Platão e o Cristianismo se encontram nesta concepção da imperfeição do mundo
material, cujos valores são passageiros e não devem ser cultivados, face ao mundo perfeito
29
Pois “aquele que nom sabe nem conhoce si meesmo nom pode estimar nenhuûa cousa dereitamente”
(Boosco, 1950, p. 320). – Aliás esta condição era recomendada já nos antigos templos de Apolo.
30
Em meio a orações e louvores, estendia as ‘asas do coração’ com o desejo da revelação divina (Boosco,
1950, p. 321), de receber o Esposo da sua alma, embora tardasse a entrega total. O amor místico é então
descrito de forma bastante sensual:
“E depois que o táamo mais de dentro da minha alma era perfeitamente apostado e ordenado e o amado era
dentro metido, crecia a fiúza aa minha alma e tomava grande atrevimento e com grande atrevimento e com
grande desejo, que a constrangia, nom se podia mais deteer, e lançava-se subitamente aos beijos do seu amado
e, com os beiços apegados enele, aficava-lhe beijos de devaçam, mui de dentro do coraçom” (Boosco, 1950,
pp. 323-324).
31
Em linguagem corrente na Bíblia e no universo trovadoresco, dizia o Amado: “Levanta-te trigosamente,
amiga minha, fremosa minha, poomba minha, esposa minha, e vem-te, ca eu cobiiço a tua fremosura”. Ao que
a Alma respondia com igual registro: “...assi como deseja o cervo as fontes das águas, assi desejo a ti, meu
Senhor Deus” (Boosco, 1950, p. 339)
32
Na Jerusalém celestial não existe “treevas nem noite nem nenhuû mudamento de tempo”, iluminada pelo
“Senhor Deus, que é luz, e o Filho de Deus, que é verdadeira luz de luz e sol de justiça” ( Boosco, 1950, p.
340). Entre outras deleitações, “ali reina a caridade perfeita, porque Deus é todalas cousas em todos, o qual
todos veem sem fim, e vendo-o sempre ardem em seu amor...” (Boosco, 1950, p. 341).
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e iluminado das Idéias eternas ou do Céu. Quanto a S. Francisco 33, incluiu, no panteão das
virtudes oficiais, além da Sabedoria, irmã da Simplicidade, a Pobreza e sua irmã, a
Humildade34. Condenou da forma mais verdadeira os bens materiais, e, embora valorizando
a meditação e a contemplação, a sua doutrina se baseou fundamentalmente na caritas,
consubstanciada no amor pelo semelhante, na caridade da palavra e do pão.
Gil Vicente, no Auto dos Mistérios da Virgem ou da Mofina Mendes (Vicente, 2002, pp.
111-133), colocou em cena tais alegorias franciscanas, ao lado da Prudência – virtude
cardeal – e da Fé – virtude teologal. De forma magistral nos legou a concretização
dramatúrgica dos ensinamentos franciscanos.
No Boosco, somente a completa Humildade, alcançada através da Sabedoria aliada à
Consciência da Morte, permitiu ao Pecador a ascensão ao Alto Monte; à contemplação e
religação com o Altíssimo.
E a Rainha D. Leonor, como considerá-la em relação a essas virtudes?... Se não abandonou
os bens materiais e a altivez, a caridade e o incentivo à divulgação dos ideais franciscanos a
aproximaram do Bosco Deleitoso?... As tragédias que lhe marcaram a vida facultaram-lhe o
alcance da Sabedoria, pela Consciência da Morte?... São perguntas que não podemos
responder de forma peremptória. Mas a sua escolha pela campa rasa para túmulo não seria
já uma demonstração da humildade mais completa?...
Referencias bibliográficas:
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. de Antônio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Ed. Ouro, [s.d.].
33
No entanto, pode-se colocar em questão o neoplatonismo franciscano a partir do Cântico das criaturas ou
do Irmão Sol: “e ele é belo e radiante / com grande esplendor: / De ti, Altíssimo é a imagem”... (Escritos,
1988: 71). Como pensar esse enternecimento de São Francisco pelas criaturas e pelo Criador em relação ao
mito da caverna de Platão?...
34
No “Elogio das virtudes”, de sua lavra, nos diz:
“Salve, rainha sabedoria, o Senhor te guarde por tua santa irmã, a pura simplicidade!
Senhora santa pobreza, o Senhor te guarde por tua santa irmã, a humildade!
Senhora santa caridade, o Senhor te guarde por tua santa irmã, a obediência!...”
(Escritos, 1988, p. 166)
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8
100
______. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro & Gerd Bornheim. São Paulo, Abril
Cultural, 1979. (Coleção Os pensadores)
BÍBLIA DE JERUSALÉM (A). S. Paulo: Edições Paulinas, [1981].
BONOMINI, Guido. O itinerário para as delícias: O locus amoenus entre o De vita
solitaria, de Francesco Petrarca, e o Boosco Deleitoso. Niterói, UFF, 2008. Tese de
doutorado.
CICERO, Marcos Tulio. De inventione. De la invención retórica. Ed. bilingue com introd.,
trad. e notas de Bulmaro Reyes Coria. México: Universidad Nacional Autónoma de
México, 1997.
ESCRITOS e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do
primeiro século franciscano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
FREIRE, Anselmo Braamcamp. Vida e obra de Gil Vicente, trovador e mestre da balança.
2 ed. corrigida, Lisboa, 1944.
MAGNE, Augusto. Introdução a Boosco deleitoso. Edição do texto de 1515 com
introdução, anotações e glossário de Augusto Magne. Volume 1 – texto crítico. Rio de
Janeiro, Ministério da Educação e Saúde - Instituto Nacional do Livro, 1950.
MALEVAL, Maria do Amparo. T. Banquetes de rei e do Rei em alguma prosa e teatro
medievos. Abril (Niterói), n. 6, pp. 37-52, 2014.
________. Revisitando o 'Boosco Deleitoso' na companhia de Gil Vicente. Colóquio.
Letras, n. 182, pp. 9-20, 2013.
________. A construção da imagem do Príncipe Perfeito: D. João II. In ______. Rastros de
Eva no imaginário ibérico (séculos XII a XVI). Santiago de Compostela: Laiovento, 1995,
pp. 140-154.
PLATÃO. Fedro. Diálogos. Rio de Janeiro, Ediouro, [s.d.].
VASCONCELOS, José Leite de. Lições de filologia portuguesa. 2. ed., Lisboa: Oficinas da
Biblioteca Nacional, 1926.
SABUGOSA, Conde de. A Rainha D. Leonor – 1458-1525. Lisboa: Portugália Editora,
1918.
SERRÃO, Joel (Org.). Dicionário de história de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas,
1985.
SOUSA, Ivo Carneiro, A Rainha D. Leonor (1458-1525). Poder, misericórdia e
espiritualidade no Portugal do Renascimento. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002.
VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente. Direção científica de José Camões. Vol. I. Lisboa,
IN-CM, 2002.
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8
101
VIDA e milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal. Texto do século XIV, restituído à sua
presumível forma primitiva e acompanhado de notas explicativas por J. J. Nunes, sócio
correspondente da Academia das Sciências de Lisboa. Coimbra: Imprensa da Universidade,
1921.
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8
102
Christine de Pizan e a apologia da mulher: diálogo e reavaliação
crítica de fontes tradicionais da misoginia medieval*
Pedro Carlos Louzada Fonseca
Universidade Federal de Goiás (UFG)
Resumo: Este trabalho faz parte de uma pesquisa que venho recentemente desenvolvendo sobre textos
fundamentais concernentes à visão da mulher na Idade Média, tanto difamada quanto defendida, isto é,
desde os pronunciamentos misóginos da chamada literatura patrística até o aparecimento de uma literatura
pró-mulher e antimisógina, culminando com a defesa da mulher pela mulher. Nesse último aspecto, o
trabalho examina um dos mais polêmicos livros de autoria feminina escrito em defesa da mulher pela
mais significativa voz da antimisoginia medieval, nunca antes tão bem enunciada em termos retóricos e
estilísticos, mas ainda ideológicos e tendenciosamente políticos. Trata-se de Le Livre da la Cité des
Dames (c.1405) [O livro da cidade das damas], de autoria de Christine de Pizan, uma das raras figuras da
intelectualidade literária feminina da Idade Média. O escopo do trabalho consiste numa leitura do livro
citado em relação de diálogo e de intertextualidade caracterizada como pontos de releitura desconstrutora
de obras e de pronunciamentos clássicos antigos e medievais, de autoria masculina, acerca da construção
derrogatória e discriminatória da figura social e do imaginário cultural sobre a mulher.
Palavras-Chave: Literatura medieval antimisógina, autoria feminina, Christine de Pizan.
Abstract: This work is part of a research that I am recently developing about fundamental texts
concerning the vision of woman in the Middle Ages which was defamed and defended as well, that is,
since the misogynous pronouncements of the so-called patristic literature to the emerging of a pro-woman
and antimisogynous literature culminating with the defense of woman by the woman. In this respect, the
work examines one of the most polemic books of female authorship written in defense of woman by the
most important voice of the medieval antimisogyny never before so well expressed not only in rhetorical
and stylistic terms but also in ideological and tendentiously political ones. It is about the Le Livre de la
Cité des Dames (c.1405) [The Book of the City of Ladies] written by Christine de Pizan, one of the rare
figures of female literary intellectuality of the Middle Ages. The purpose of the work consists in a
analysis of the above mentioned book which outstands itself for establishing a relation of dialogue and
intertextuality which is characterized as points of deconstructive rereading of classical works and
pronouncements, ancient as well medieval, of male authorship about the derogatory and discriminatory
construction of the social image and the cultural imaginary about the woman.
Key words: Antimisogynous medieval literature, female authorship, Christine de Pizan,
** Este trabalho é produto parcial da pesquisa intitulada “Mulher difamada e mulher defendida no
pensamento medieval: textos fundadores”, que integra a Rede Goiana de Pesquisa sobre a Mulher na
Cultura e na Literatura Ocidental da Fapeg – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás. A
pesquisa, sob a coordenação do Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca, recebeu apoio financeiro dessa
instituição de fomento para o período de 2013 – 2014. É também produto de plano de trabalho de projeto
de pesquisa relacionado ao tema e desenvolvido em estágio de pós-doutorado em 2013, com bolsa da
Fapeg, junto ao Programa de Pós-Doutorado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, sob a
supervisão da Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval.
Série Estudos Medievais Intertextualidades Nº 4, Salvador, 2015, ISBN: 978-85-8292-068-8
103
Christine de Pizan (1363-c.1430) pode ser considerada como uma das mais
significativas vozes de uma incipiente e moderna reação à misoginia medieval surgida
ainda na tardia Idade Média, embora nela haja indícios de comprometimento com ideais
conservadores e latentes relativos ao decoro feminino (GOTTLIEB, 1990, p. 88-103),
talvez reflexo da tentativa de sua mãe em moldá-la convencionalmente em tarefas
femininas. Entretanto, graças a incentivos de seu pai e de seu marido, Christine
desenvolveu os seus dotes intelectuais e talento literário, legando à posteridade uma
vasta produção que abrangeu cerca de quarenta anos.
Christine, na sua reação antimisógina, recebeu influência, sem, entretanto, dar os
devidos créditos, de Le Livre de Leesce [O livro de Leesce], de Jehan Le Fèvre, uma
pretensa mas suspeita refutação às alegações misóginas contidas em Les Lamentations
de Matheolus [As lamentações de Mateolo], do mesmo autor, ambos escritos na
segunda metade do século XIV (JEHAN LE FÈVRE, 1892-1905).
Apesar de se basear em fontes e referências precedentes apologéticas da mulher, o
propósito de Christine em redefinir o perfil feminino tradicional foi bastante importante
por ter entendido as forças motrizes do pensamento misógino antigo e medieval.
Christine viu com grande clareza a terrível internalização, por parte das mulheres, de
uma injustificável desvalorização de seu sexo e de sua mente. E mais, entendeu, com
uma visão bastante adiantada para a sua época, que a única maneira para um bem
sucedido desafio à misoginia implicava em desmoralizar a idoneidade de prestigiosas
autoridades intelectuais e literárias masculinas do mundo clássico, da patrística e da
vernaculidade medievais.
Em sua visão defensora da mulher, tem sido argumentado que Christine não é
suficientemente antitética na refutação das discriminações misóginas por não fazer uso
convincentemente retórico da contra-argumentação aos lugares-comuns apresentados.
Apesar disso, ela desmantela os cânones da misoginia, de forma retoricamente racional
e inteligentemente apelativa, em defesa da mulher secularmente escorraçada por um
androcentrismo politicamente impiedoso.
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É nesse sentido dialético de construir desconstruindo que Christine constrói o seu
polêmico Le Livre de la Cité des Dames (c.1405) [O livro da cidade das damas].
Portanto, mais do que uma semelhança à ostensiva Cidade de Deus, de Santo
Agostinho, a Cidade de Christine é uma construção defensiva: é construída sobre a
reputação de mulheres, histórica e lendariamente, conspícuas em todo o campo de
empreendimento ou moralidade, sendo uma verdadeira fortaleza para oferecer proteção
ao sexo discriminatoriamente inferiorizado.
Na construção da escrita antimisógina de seu Le Livre de la Cité des Dames, Christine
baseia-se ainda, de forma bastante extensiva, no livro intitulado De mulieribus claris
[Sobre as mulheres famosas], de Giovanni Boccaccio, primeiramente publicado em
1374 (BOCCACCIO, 1964). Entretanto, no decorrer do presente trabalho, poucos
exemplos dessas famosas mulheres bocacianas são citados, porque parece de maior
prioridade representar, tão completamente quanto possível, a moldura que tais exemplos
ilustram, isto é, a investigação de alguns pontos da releitura que Christine faz da visão
tradicional da mulher sujeitada a posturas e prerrogativas androcêntricas.
Nesse sentido, Le Livre de la Cité des Dames é não somente um audaz e penetrante
questionamento mas também uma percuciente resposta, baseada na inteligência e no
bom senso, a uma vasta quantidade de textos misóginos revisitados por Christine, sendo
que alguns dos piores ofensores são diretamente nomeados, como é o caso de Ovídio,
Cecco d’Ascoli, Cícero e Catão, o Jovem (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 136-139).
No capítulo IX do Livro Primeiro, que se intitula “Aqui trata de como Cristina cavou a
terra, quer dizer, as questões que ela fez a Razão, e as respostas dessa última”, tais
ofensores são anatomizados nas suas posturas misóginas:
Eis aqui organizada [diz a senhora Razão] a grandiosa obra que para ti
preparei. Aplica-te então a cavar a terra seguindo a linha que tracei com
minha régua.
Então, para obedecer a suas ordens, empenhei-me a escavar com todas as
minhas forças, falando dessa maneira: Dama, como Ovídio – que dizem,
porém, ser o príncipe dos poetas, apesar de alguns, eu inclusive, concederem
a palma a Virgílio (salvo vossa correção) - pôde falar tão mal das mulheres
em seus poemas: na obra intitulada A arte de amar, por exemplo, ou ainda
em Os remédios de amor ou em outras mais?
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Resposta: Sim, Ovídio demonstrava bastante sutileza na arte da poesia e
mente consideravelmente viva e engenhosa para realizar seus poemas.
Perdeu-se, todavia, nas vaidades corpóreas e nos prazeres da carne. Ele não
se contentava com uma única mulher, entregando-se a quantas mulheres suas
forças lhe permitissem, sem ponderação, lealdade, nem apego a nenhuma
delas. Ele levou essa vida enquanto foi jovem e recebeu, em contrapartida,
aquilo que se merece em tal circunstância: perda de reputação, de bens e de
membros. Pois ele foi condenado ao exílio por suas depravações, tanto em
atos como em palavras, aconselhando os outros a levar a vida que ele
escolheu. Da mesma forma, quando ele saiu do exílio, graças à intervenção
de seus parceiros, jovens e potentes Romanos, e apressou-se para retomar as
desordens pelas quais já havia sido condenado, terminou sendo castrado e
punido na pele, pela sua má conduta. Isto se refere ao que te dizia mais em
cima: Quando se deu conta que não poderia mais levar aquela vida a qual
tinha tido tanto prazer, começou a caluniar as mulheres com seus hábeis
raciocínios, na intenção de torná-las desprezíveis para os outros.
Dama, digamos que seja verdade, mas conheço um livro de outro autor
italiano, cujo nome é Cecco d´Ascoli; originário, creio eu, da região da
Toscana. Nele, há um capítulo em que ele fala coisas incrivelmente
abomináveis; propósitos que ultrapassam qualquer um outro, e que nenhuma
pessoa sensata iria repetir.
Resposta: Filha, não te espante se Cecco d´Ascoli fala mal de todas as
mulheres, pois ele as abominava, odiava e desprezava todas. E sua
hostilidade monstruosa o levava a querer compartilhar com todos os homens
seu ódio e repulsa. Todavia, ele teve a recompensa justa, pois pagou suas
injúrias criminosas morrendo desprezivelmente na fogueira.
Conheço um outro livrinho em latim, intitulado Do segredo das mulheres,
que sustenta que elas são acometidas de grandes defeitos em suas funções
corporais.
Resposta: Tu podes conhecer por ti mesma, dispensando qualquer outra
prova. Aliás, esse livro nos revela ser da mais alta fantasia; um verdadeiro
amontoado de mentiras, e para quem o leu, está explícito que não há nada de
verdade neste tratado. E apesar de dizerem que é de Aristóteles, não dá para
acreditar que um filósofo tão importante tenha se permitido dizer tamanha
asneira. Mas como as mulheres podem saber por experiência que algumas
coisas neste livro não fazem parte da realidade e que são puras tolices, elas
podem deduzir que os outros pontos expostos são da mesma forma mentiras
patentes. E não te lembras que no início do livro ele afirma que um certo
papa havia excomungado todo homem que tivesse a audácia de o ler para
uma mulher, ou de colocá-lo entre as mãos de uma mulher?
Lembro-me muito bem, minha Dama.
Sabes qual foi o a intenção maliciosa com que tal estupidez foi posta no
início do texto para que os homens parvos e limitados pudessem acreditar?
Não, Dama, se não me disserdes.
Foi para que as mulheres não tomassem conhecimento desse livro e para que
elas ignorassem seu conteúdo. Pois, bem sabia aquele que o escreveu que se
elas lessem ou o escutassem, saberiam que se tratava de propósitos absurdos;
e o colocariam em questão, com desprezo. Foi por essa estratégia que o autor
acreditava poder abusar e enganar os homens que o leriam.
Dama, lembro-me que, entre outras coisas, depois de ter insistido durante
bastante tempo que era por debilidade e fraqueza que o corpo que se forma
no ventre da mãe tornar-se o de uma mulher, o autor diz que mesmo a
Natureza tem vergonha de ter feito uma obra tão imperfeita quanto esse
corpo.
Ah! Veja que loucura, doce amiga: é a cegueira insana que o levou a dizer
tais coisas! Como a Natureza, que é dama de companhia de Deus, teria então
mais poder do que seu mestre, se é dele que vem sua autoridade? Deus todopoderoso, na essência de seu pensamento divino, tinha desde sempre a ideia
do homem e da mulher. E quando foi da sua santa vontade criar Adão do
limo da terra, na cidade de Damasco, ele o fez, levando-o então ao paraíso
terrestre, que era e permanece o lugar mais digno nesse mundo de baixo.
Nele, fez Adão adormecer e, com uma de suas costelas, formou o corpo da
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mulher, significando com isso que ela devia estar ao seu lado como uma
companheira, e de maneira alguma aos seus pés como uma escrava, devendo
amá-la como sua própria carne. Será que o Criador Soberano teria vergonha
de criar e formar o corpo feminino e Natureza se envergonharia disso? Eis o
cúmulo da tolice dizer isso. E além do que, de que maneira ela foi formada?
Não sei se percebes; ela foi formada à imagem de Deus. Oh! Como é possível
haver bocas para maldizer uma prova tão nobre?
Mas há loucos que acreditam que quando eles escutam dizer que Deus fez o
homem a sua imagem, que se trata do corpo físico. Isto está errado, pois Deus
ainda não havia tomado forma humana. Trata-se, ao contrário, da alma, a
qual é consciência sensata e durará eternamente à imagem de Deus. E, esta
alma, Deus a criou tão boa, tão nobre, idêntica no corpo da mulher como no
corpo do homem. Mas, voltando sobre a criação do corpo, a mulher foi feita
pelo criador soberano. E em que lugar ela foi feita? No paraíso terrestre! E
foi feita com que? Terá sido de matéria vil? Não, pelo contrário, da matéria
mais nobre que havia sido criada! Pois, foi do corpo do homem que Deus a
criou.
Dama, de acordo com o que me dizeis, a mulher é uma criação muito nobre.
No entanto, Cícero disse que o homem não deve nunca servir a uma mulher,
pois seria se rebaixar, pôr-se a serviço de alguém menos nobre que si.
Resposta: O maior é aquele ou aquela que tem mais méritos. A excelência ou
a inferioridade das pessoas não reside no sexo dos seus corpos, mas na
perfeição de seus costumes e virtudes. E bem-aventurado aquele que serve à
Virgem, ela que está acima de todos os anjos.
Disse ainda, um dos Catão, aquele que foi um grande orador, que se o mundo
fosse sem mulheres, poderíamos conversar com os deuses.
Ela respondeu-me: Ora, podes ver a insanidade daquele que é tido como
sábio, pois foi por intermédio da mulher que o homem pôde reinar junto a
Deus. E, se alguém me disser que ele foi banido por uma mulher, por causa
da dama Eva, responderei que, graças a Maria, ele ganhou grau muito mais
alto do que aquele que havia perdido por causa de Eva. Pois, a humanidade
não teria se unido à divindade se não fosse o pecado de Eva. Homens e
mulheres devem louvar essa falta, que através da qual uma honra tão grande
lhes adveio, pois, quanto maior tenha sido o rebaixamento da natureza
humana por uma criatura, mais alta foi sua elevação por outra criatura.
Quanto a conversar com os deuses se a mulher não existisse, como afirma
este Catão, ele estava mais certo do que pensava, pois era um pagão, e
aqueles dessa religião acreditavam que os deuses encontravam-se tanto no
inferno quanto no céu – eram os demônios que eles chamavam de deuses do
inferno. E não é um erro dizer que os homens conversariam com esses deuses
aí se não fosse Maria (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 136-139).
Mas Christine escolhe diretamente como seu principal perturbador misógino o
volumoso Les Lamentations de Matheolus (c.1371-1372), do já citado Le Fèvre, razão
pela qual o presente trabalho começa com esse livro para levantar os pontos de releitura
do possível intertexto misógino de Christine. Outras fontes simpáticas à figura da
mulher são referidas mais escassamente, excetuando-se o caso de Le Livre de Leesce,
também de Jehan Le Fèvre, cuja referência, por ser muito pontual, a meu ver, merece
um estudo à parte.
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Logo no início do Primeiro Livro, Christine desprezando a autoridade de Les
Lamentations de Matheolus, fica sensivelmente indignada com renomados filósofos,
poetas e oradores depreciadores das mulheres, principalmente na sua malévola
conclusão de que todo comportamento feminino é cheio de vícios, concluindo
ironicamente que Deus só podia mesmo ter criado as mulheres como vis criaturas
deformadas, reportando-se evidentemente aqui à tradição anatomista e fisiologista
aristotélica sobre o assunto.
A partir desse ponto, Christine recebe a visita de três senhoras soberanas e iluminadas,
mais tarde identificadas como Razão, Retidão e Justiça (fig. 1).
Christine de Pisan. Le Livre de la Cité des Dames (The Book of the City of Women) (detail), circa
1405. Manuscripts Department, Western Section, Fr. 607, Paris. From The Allegory of Female
Authority: Christine de Pizan’s Cité des Dames, by Maureen Quilligan (Ithaca: Cornell University
Press, 1991). (Image: Library of Congress/Bibliotheque Nationale de French, Paris.) Disponível
em:<http://www.brooklynmuseum.org/eascfa/dinner_party/place_settings/image.php?
i=22&image=521&b=bio> Acessado em 05/08/13.
Um dos primeiros fundamentos de agudeza silogística para desarrazoar preconceitos
misóginos é o da senhora Razão que argumenta que, mesmo o ataque dos homens às
mulheres, com a finalidade de evitar os vícios e a conduta dissoluta delas, não é uma
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hipótese razoável para generalizações misóginas, porque seria como se condenasse o
bom fogo porque queima e a benéfica água porque afoga, já que todas as coisas podem
servir tanto para o bem como para o mal. Perguntando Christine à senhora Razão se
esses homens fizeram bem, esta lhe responde sabiamente relativizando a moral do
assunto:
Enganas-te, bela filha [...] pois a ignorância total não desculpa de nada. Se te
matassem com boas intenções e por asneira, teria sido bem feito? Fazendo
assim, eles usaram mal seus direitos. Pois, não seria justiça causar danos e
prejuízos a uma parte sob pretexto de estar ajudando outra, como eles
fizeram, condenando, contrariamente aos fatos, a conduta de todas as
mulheres. Posso te demonstrar por experiência. Admitamos que eles fizeram
na intenção de tirar os loucos da loucura; seria como se condenasse o fogo –
elemento, porém, bom e necessário – sob pretexto que alguns se queimam, ou
então a água, por alguns se afogarem. Poder-se-ia dizer o mesmo de todas as
coisas boas, já que se pode usar tanto para o bem quanto para o mal. Todavia,
não são as mulheres que devem ser condenadas se os loucos abusam disso;
por sinal, tu mesma já trataste disso em teus escritos. Aqueles que se
permitiram usar propósitos tão desmedidos, qualquer que tenham sido suas
intenções, usaram meios deturpadores, apenas para chegar a seus fins, como
aquele que confeccionou uma roupa longa e larga, porque não lhe custaria
nada a estopa, e ninguém iria se opor, consentindo assim com a apropriação
de um bem alheio. Mas, como bem disseste outrora, se eles tivessem
procurado como levar os homens à razão, impedindo-os de cair na luxúria,
censurando a vida e os modos de todas as mulheres cuja depravação fosse
patente, então eu admitiria espontaneamente a excelência e a distinção de
suas obras (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 132-133).
Esse mesmo percuciente argumento já John Gower o havia empregado, em seu livro A
Lover’s Confession / Confessio amantis (1386-1390) [Confissão de um amante], em
favor da isenção da mulher na culpa metafórica de afogar ou atear fogo ao homem
(GOWER, 1900, p. 355).
Para a limpeza dos detritos sujos da misoginia, além da lembrança de inveterados livros
misóginos da Antiguidade, a exemplo dos de Ovídio e de Juvenal, Christine menciona o
polêmico e virulento libelo misógino De secretis mulierum [Sobre os segredos das
mulheres], um aberrante tratado ginecológico, espuriamente atribuído a Alberto Magno,
de grande circulação no século XIII, que aberradamente expõe, seguindo a tradição de
Aristóteles e de Santo Isidoro de Sevilha, os efeitos corruptos da menstrução.
Christine comenta que o livro De secretis mulierum imputa à Natureza a vergonha por
ter produzido o corpo da mulher tão deformado e corrompido por origem. Em resposta a
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Christine, a senhora Razão faz uso de um dos mais altos pontos de arrazoamento e de
aguda engenhosidade para enaltecer a mulher como a mais nobre criatura do plano
divino da Criação. Para tanto, recorda que a mulher, ao ser formada da costela de Adão,
foi a primeira a ser criada no Jardim do Éden, reproduzindo-se aqui o conhecido e
anteriormente citado neste trabalho topos da costela de Adão, bastante glosado, no livro
anônimo intitulado Dives and Pauper (1405-1410) [Dives e Pauper], a respeito do tema
da paridade entre o homem e a mulher (Dives and Pauper, 1980, p. 66).
A passagem, em que a senhora Razão enaltece a origem da mulher, está repleta de
pontos de releitura acerca da visão tradicional da mulher, a começar com a teoria de
Aristóteles e de Galeno sobre a imperfeição anatômica e fisiológica do corpo feminino.
A insistência de Christine na controvérsia teológica da criação da mulher à imagem de
Deus, rastreada em autoridades como Santo Agostinho em seu livro De Genesi ad
litteram (401-416) [O sentido literal do Gênesis] (AUGUSTINE, 1982, p. 175-176),
encontrou, entre outros, eco seminal em Graciano, em seu famoso Decretum (c.1140)
[Decreto], um dos livros de referência central na Idade Média por sua compilação
patrística (D’ALVERNY, 1977, p. 105-129).
Ainda sobre a argumentação de a mulher ser a mais nobre parte da criação terrestre,
outro ponto de releitura de Christine consiste na resposta antimisógina, de autoria
anônima, ao livro intitulado Li Bestiaires d’Amour di Maistre Richard de Fournival e li
Response du Bestiaire (c. 1250) [O bestiário do amor do mestre Ricardo de Fournival e
a resposta do bestiário], de Richard de Fournival (RICHARD DE FOURNIVAL, 1986,
p. 41-43). Santo Ambrósio parece ser outro ponto dessa releitura, na passagem de seu
livro De Paradiso (c.375) [Sobre o Paraíso] que comenta, contrário ao tema do
nascimento paradisíaco da mulher, sobre a superioridade do homem em termos de
caráter e graça pela virtude (AMBROSE, 1896, p. 280). Por outro lado, aquela mesma
consideração sobre a excelência original da mulher também é lembrada por Abelardo
em sua Letter 6 (Carta 6, De auctoritate vel dignitate ordinis sanctimonialium [Sobre a
origem das freiras] (ABELARD, 1974, p. 129-175, p. 174).
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A seguir, a senhora Razão argumenta, lembrando a piedade e a caridade das mulheres
devotas, contra a maledicência daqueles que dizem que as mulheres fazem da própria
igreja um local para se exibirem em belos trajes, charmes e sedução (CHRISTINE DE
PIZAN, 2006, p. 141), razão pela qual as condena Le Fèvre em seu Les Lamentations
de Matheolus (JEHAN LE FÈVRE, 1892-1905, II. 1107-1242).
É a seguinte a passagem em que a senhora Razão, elogiando virtudes naturalmente
inerentes ao caráter feminino, desbarata a calúnia dos homens que dizem do vício da
garrulice feminina praticado mesmo nos locais de recolhimento e oração:
Mas, poderás ver, com bem mais frequência [diz a senhora Razão], mulheres
frequentando as igrejas, com terços e livros de oração na mão, onde se
reúnem em multidão, nos sermões e nas confissões, recitando o Pai Nosso e a
oração das Horas.
É verdade, minha Dama, respondi então, mas os homens dizem que elas vão
com seus mais belos trajes, se arrumam para expor seus charmes e atrair o
amor dos galanteadores.
Resposta: Poder-se-ia acreditar nisso, cara amiga, se lá se visse apenas
mulheres jovens e belas, mas olhando bem, para cada jovem que verás
frequentando lugares de culto, encontrarás vinte ou trinta velhas vestidas de
maneira simples e honesta. Mas, se as mulheres já dão prova de devoção, de
caridade é que nem precisa mencionar. Veja bem: quem faz visita aos
doentes? Quem os reconforta? Quem presta socorro aos pobres? Quem vai
aos hospitais? Quem enterra os mortos? Parece-me que se trata de obra das
mulheres, e a via real que o próprio Deus nos ordena seguir (CHRISTINE DE
PIZAN, 2006, p. 141-141).
Ainda nesse sentido derrogatório da mulher, no início do século XIII, um irreverente
poema anônimo intitulado De Coniuge non ducenda (c.1222-1225) [Contra o
casamento] se destaca por falar da má esposa, que procura distantes abadias de
peregrinação para os seus adulterinos propósitos (Gawain on Marriage, 1986, p. 81-82).
O mesmo tema constitui legado para discussão de muitas obras misóginas subsequentes,
a exemplo de Le Roman de la Rose (c.1275) [O romance da rosa], de Jean de Meun, que
se refere à peregrinação das mulheres a lugares santos com intenções luxuriosas (JEAN
DE MEUN, 1971, p. 230-231).
Seguindo no rol das tradicionais denegações da mulher, Christine aborda o velho
provérbio misógino, retomado por Geoffrey Chaucer no Prólogo de seu livro The Wife
of Bath (c.1390-1395) [A esposa de Bath] ( CHAUCER, 1985, p. 219-239), que diz que
“Deus criou a mulher para chorar, falar e tear”( CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 142).
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No tocante a esse trio misógino (chorar, falar e tear), a senhora Razão protesta que
Maria Madalena ganhou a especial graça de Deus em razão de suas lágrimas, enquanto
que o grande pilar da Igreja, Santo Agostinho, havia se convertido pelas lágrimas de sua
piedosa mãe (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 142-143). A passagem em que a
senhora Razão faz a sua apologia à virtude e ao dom da graça do choro feminino é a
seguinte:
Dama [diz a senhora Razão], os homens fazem bastante uso de um provérbio
latino nas suas críticas às mulheres: Deus criou a mulher para chorar, falar e
tear. Resposta: Certo, doce amiga, este ditado é verdadeiro, seja o que se
pense ou diga dele, não se trata de uma crítica. Foi uma excelente coisa Deus
ter lhes dado uma tal vocação, pois quantas não foram salvas por choro, fusos
e palavras. E àqueles que as criticam por serem derramadas em lágrimas,
lembrarei que Nosso Senhor Jesus Cristo, que lê no fundo das almas e de
quem nenhum pensamento pode ser escondido, nunca teria condescendido,
do alto de sua majestade, em derramar lágrimas de compaixão, lágrimas de
seu corpo tão glorioso, ao ver Maria Madalena e sua irmã chorando pela
morte do seu irmão Lázaro, que ele o ressuscitou, se ele acreditasse que as
mulheres só choram por fraqueza e tolice. Oh! Quantos benefícios foram
concedidos por Deus às mulheres graças às suas lágrimas! Ele não desprezou
absolutamente aquelas de Maria Madalena; pelo contrário, tanto as aceitou
que perdoou seus pecados e pelo mérito de tais lágrimas foi recebida
gloriosamente no reino dos céus.
Ele também não desprezou as lágrimas da viúva chorando seu único filho que
era levado da terra. Nosso Senhor vendo suas lágrimas, fonte de toda
piedade, foi comovido e cheio de compaixão, perguntar-lhe: Mulher, por que
choras?, ressuscitando imediatamente seu filho. A Sagrada Escritura conta
vários outros milagres, cuja lista seria bastante longa, que Deus fez em favor
das lágrimas de muitas mulheres; e o faz a cada dia. Ouso afirmar que muitas
dentre elas foram salvas pelas lágrimas de sua devoção, assim como aqueles
e aquelas por quem elas clamaram. O glorioso doutor da Igreja, Santo
Agostinho, não foi convertido, por sua vez, pelas lágrimas de sua mãe?
Aquela mulher excelente chorava sem cessar, rogando a Deus que por favor
iluminasse o coração de um filho pagão, insensível às luzes da fé. Santo
Ambrósio, junto a quem a santa mulher ia frequentemente implorar-lhe que
pedisse pelo seu filho, disse-lhe a esse respeito: Mulher, não acho impossível
que tantas lágrimas sejam vãs. Oh! Bem-aventurado Ambrósio! Tu que não
consideraste frívolas as lágrimas de mulher! Eis como responder aos homens
que as criticam! Pois, foi por causa das lágrimas de uma mulher que esse
santo iluminado, o bemaventurado Santo Agostinho, brilha no altar da santa
Igreja, iluminando-o inteiramente com sua claridade! Que os homens calemse sobre esse assunto! (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 142-143).
Em referência ao falar feminino, comumente considerado na patrística medieval como
falar abrasivo e virulento, Christine desarrazoa a crítica feita à palavra da mulher com a
menção de que Cristo escolheu exatamente uma mulher, Maria Madalena, para anunciar
o mistério tão glorioso de sua Ressurreição. Em termos positivos, Christine está aqui a
reler não só a passagem da já citada Letter 6, de Abelardo, que confere às mulheres,
testemunhas do Ressurreto, uma primazia sobre os Apóstolos (ABELARD, 1974, p.
129-130), mas também a passagem, em defesa da mesma causa, de The Book of
Consolation and Advice / Liber consolationis et consilii) (c.1246) [O livro de
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consolação e conselho], de Albertano de Brescia (ALBERTANO DE BRESCIA, 1873,
p. 12-14), ambos antecessores de Christine na defesa da mulher.
Em termos negativos, relê ainda Christine a tradicional depreciação masculinista da fala
feminina que, adaptada de Ovídio em Les Lamentations de Matheolus, de Le Fèvre,
comenta que, na verdade, os pássaros pararão de cantar e os grilos pararão no verão
também antes que a mulher ache força para prender a sua língua, seja qual for o dano
vindo das suas palavras (JEHAN LE FÈVRE, 1892-1905, II. 177-250). É a seguinte a
passagem que textualiza as qualidades positivas da fala feminina com arrazoada defesa:
Desse mesmo modo [diz a senhora Razão], Deus deu a palavra às mulheres.
E louvado seja ele por isso! Pois, se ele não o tivesse feito, elas seriam
mudas! Contrariamente ao que diz o provérbio – que eu não sei quem o
inventou exclusivamente com a intenção de prejudicá-las –, se palavra de
mulher fosse tão condenável e com tão pouca autoridade como dizem alguns,
Nosso Senhor Jesus Cristo não teria nunca consentido que uma mulher fosse
a primeira a anunciar o mistério tão glorioso de sua Ressurreição. Pois, ele
mesmo mandou a bem-aventurada Madalena, a quem ele apareceu no
primeiro dia de Páscoa, levar a notícia aos Apóstolos e a Pedro. Bendito e
louvado sejas, Ó Deus, por, além dos infinitos dons e graças que fizestes e
concedestes ao sexo feminino, terdes querido que uma mulher fosse a
portadora de tão grande e digna notícia!
Todos esses invejosos fariam melhor se calarem, se pelo menos se dessem
conta. Dama, disse eu, estou rindo de uma loucura que alguns homens
contam, e que me lembro ter ouvido até em sermões, por alguns pregadores
estúpidos, que se Deus apareceu primeiramente a uma mulher, foi por ter
certeza que ela não se calaria, e que a notícia de sua Ressurreição iria o mais
rápido possível espalhar-se. Resposta: Filha, fizeste bem em chamá-los de
loucos aqueles que contaram isso, pois eles não se contentam em criticar as
mulheres, e conferem a Jesus Cristo tal blasfêmia, ao dizer que uma tão coisa
santa e tão perfeita tenha sido revelada por um vício. Eu não sei como eles
ousam sugerir isso, mesmo que seja na brincadeira, pois Deus nunca deve ser
um assunto de zombaria. Mas, voltando a nosso primeiro assunto, foi uma
benção para aquela mulher de Cananéia ser muito falante, e ter seguido Jesus
pelas ruas de Jerusalém, gritando e suplicando sem cessar: Tende piedade de
mim, Senhor, pois minha filha está doente! E o que fez, então, o Deus
bendito? Ele, em quem toda misericórdia sempre há de abundar, a quem uma
única palavra apenas é suficiente, se é vinda do coração, para acordar uma
graça? Parece que ele se deleitou com tantas palavras saídas da boca daquela
mulher, que perseverava incansavelmente nas suas orações. Mas, por que
fazia isso? Foi para provar sua constância: pois, quando ele a comparou com
um cachorro pareceu que foi bastante rude, por ela ser de uma religião
diferente e não da divina. Ela não hesitou em responder-lhe sabiamente e sem
constrangimento: Senhor, isto é verdade, mas os cachorros vivem das
migalhas que caem da mesa do dono. Oh! Digníssima mulher! Quem te
ensinou a falar assim? Foi a pureza da tua alma que te inspirou tais sábias
palavras, levando a tua causa, viu-se claramente quando Nosso Senhor Jesus
Cristo, voltando-se em direção a seus apóstolos, disse que na verdade nunca
em todo Israel ele havia encontrado tanta fé, atendendo, em seguida, a sua
prece. Ah! Impossível negar tal honra concedida ao sexo feminino, que os
invejosos esforçam-se em denegrir, considerando que Deus encontrou no
coração de uma pequenina e humilde mulher de raça pagã mais fé do que em
todos os bispos, príncipes, padres e todo povo judeu reunido, eles que se
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dizem o povo eleito de Deus? A mulher de Samaritana que tinha vindo
buscar água no poço onde Jesus Cristo estava sentado, cansado, dirigiu-se
mais uma vez a ele, rogando a seu favor. Oh! Bendito seja este santo corpo
no qual se encarnou a Divindade! Como permitiste abrir tua santa boca para
oferecer todas essas palavras de proteção a uma pequena e humilde pecadora
que não era nem da tua fé? Demonstraste bem o quanto não tens desprezo
pela devoção do sexo feminino! Deus! Por quanto nossos pontificais de hoje
dirigiriam a palavra a uma simples e humilde mulher, mesmo para sua
salvação?
E não falou menos sabiamente esta mulher que assistiu a um sermão de Jesus
Cristo e inflamou-se com suas santas palavras. Já que dizem que as mulheres
não sabem calar-se, foi uma coisa excelente quando ela levantou-se cheia de
entusiasmo, para gritar no meio da multidão essa frase, solenemente trazida
do Evangelho: Bendito sejam o ventre que te carregou e as mamas que te
alimentaram!
Deves, então, ter entendido, bela e doce amiga, que se Deus consentiu a
palavra às mulheres, foi na verdade para que elas se sirvam. E, não se deve
criticar nelas aquilo em que residem tantos benefícios e tão poucos males.
Pois, raramente observou-se suas palavras provocarem algum dano
(CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 143-146).
Embora apoiando, de forma conservadora, a lei comum que avaliava a mulher com
incapacidade para a pregação e a jurisprudência, a senhora Razão comenta que as
mulheres não têm, por causa disso, um intelecto inferior. E para exemplificar
maximamente a superioridade intelectual da mulher cita o caso de Nicostrata ou
Carmenta, que deu à Itália leis e uma nova língua, isto é, o latim (CHRISTINE DE
PIZAN, 2006, p. 183-185). É o seguinte o trecho em que a senhora Razão, comentando
que “um número considerável de ciências e técnicas importantes foram descobertas
graças à inteligência e habilidade das mulheres, tanto nas ciências puras, como dão
testemunho seus livros, quanto nas artes, demonstradas em obras manuais e elaboradas”
(CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 183), começa, com o exemplo de Nicostrata, o seu
rol de mulheres famosas pela sua intelectualidade:
Primeiramente, falar-te-ei da nobre Nicostrata, que os italianos chamavam de
Carmenta: esta dama era a filha do rei da Arcádia, Palade. Dona de uma
inteligente notável, e dotada por Deus de conhecimentos especiais. Ela
conhecia a fundo a literatura grega; seu falar era tão belo e tão sábio, de uma
eloquência admirável que os poetas da época imaginaram, nos versos que
lhes consagraram, que ela era amada pelo deus Mercúrio. Eles dizem
igualmente que o filho, que ela tinha tido com seu marido, detentor de uma
extraordinária inteligência, era filho desse deus. Em razão de algumas
desordens ocorridas no seu país, esta mulher emigrou à Itália, com o filho e
uma multidão de gente. Eles deixaram seu país em uma grande frota e
chegaram no rio Tibre. Ali, desceu e subiu no alto de uma colina, que ela
chamou Monte Palatino, do nome de seu pai. É nesta colina que foi fundada a
cidade de Roma. Ela construiu uma fortaleza, com a ajuda de seu filho e de
quem a tinha acompanhado. Achando que as pessoas da região viviam como
animais, ela escreveu algumas leis, prescrevendo-os a agirem de acordo com
o direito e a razão, como era justo. Ela foi então a primeira a promulgar leis
naquele país, que teve em seguida tanto prestígio e de onde veio todo o
direito escrito. Aquela nobre dama soube, por inspiração divina e profética
(graça, entre outras, que recebera com especial particularidade), que no
futuro aquela terra seria a mais nobre e célebre no mundo. Pareceu-lhe
indigno para a grandeza romana, destinada a reinar no mundo inteiro, utilizar
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um alfabeto bárbaro e inferior, baseado em caracteres estrangeiros. Para
melhor revelar aos séculos futuros a excelência de sua genialidade, tanto fez
e tanto estudou, até inventar um alfabeto original e diferente daquele das
outras nações: o nosso abc, o alfabeto latino, a formação das palavras, a
distinção entre as vogais e consoantes, e toda a base da gramática. Fez
difundir e ensinar este alfabeto ao povo, e cuidou para que todos o
conhecessem. Não foi por certo uma descoberta de pouca importância, assim,
devemos ser infinitamente gratos a essa mulher, pois a profundidade dessa
ciência, sua grande utilidade e todo o bem que ela trouxe ao mundo, nos
autoriza a dizer que nenhuma outra descoberta foi mais admirável. Os
italianos não se mostraram ingratos a Carmenta por esse benefício; a
descoberta pareceu-lhes tão prodigiosa que diziam que ela não era uma
simples mortal, e sim uma deusa. Por isso, ainda em vida, eles a cultuavam
como a uma divindade, e à sua morte, ergueram no pé da montanha onde ela
havia vivido, um templo dedicado a ela. A fim de perpetuar sua memória,
designaram diferentes coisas do nome da ciência inventada por ela, dando
inclusive seu próprio nome às pessoas daquele país, que receberam o nome
de Latinos, homenageando a invenção feita por aquela mulher. Além do
mais, como a palavra “ita”, que corresponde ao francês “oui” é a afirmação
mais importante da língua latina. Não se contentaram apenas em chamar
aquele país de “terra latina”, mas quiseram que todo o território além dos
Alpes, grande e vasto, que conta com numerosas províncias e domínios de
terra, tivesse o nome de Itália. Foi ainda por essa dama se chamar Carmenta
que os poemas em latim são chamados de carmen. Muito tempo depois, os
romanos começaram a chamar Carmentale uma das portas da cidade de
Roma. E pela boa fortuna que tiveram, e a excelência de seus imperadores, os
romanos não quiseram mudar aquele nome, até hoje utilizado, como
sabemos.
Que queres mais, bela filha? Será que teria coisas melhores para falar de um
homem? Mas, principalmente, não aches que ela tenha sido a única mulher a
descobrir numerosas e diferentes ciências (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p.
183-185).
No Livro Segundo, a senhora Retidão substitui a senhora Razão, e Christine pergunta se
os extremos depreciadores do matrimônio estão certos, citando Valério, o remetente de
The Letter of Valerius to Ruffinus, against Marriage (c.1180) [A carta de Valerius a
Ruffinus, contra o casamento], de Walter Map, e o próprio São Jerônimo que, em seu
livro Adversus Jovinianum (c.393) [Contra Joviniano], aconselha mais a companhia de
servos e de amigos que a ligação a uma esposa, que só conduz o marido à distração e ao
desespero (JEROME, 1893, p. 412).
Ao que a senhora Retidão, dentre uma nobre lista de esposas notáveis por suas virtudes
e bons feitos, responde com o exemplo de Xantipe, a digníssima consorte de Sócrates,
intemerata companheira sua até à morte (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 238),
apresentando um perfil da esposa do filósofo grego extremamente contrário àquele que
dela faz São Jerônimo em seu Adversus Jovinianum (JEROME, 1893, p. 411):
Xantipe, a nobre dama de grande saber, casou-se com o eminente filósofo
Sócrates. Mesmo ele já sendo velho e preferindo passar seu tempo
pesquisando e revirando livros, em vez de procurar presentes para agradar
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sua mulher, ela não deixou de amar seu esposo. A superioridade de sua
inteligência, sua força, sua virtude, e sua firmeza, a levavam, ao contrário, a
venerá-lo e a amá-lo profundamente. Quando essa mulher corajosa ficou
sabendo que os Atenienses haviam condenado seu marido à morte por tê-los
reprovado por adorar ídolos, já que existia apenas um deus que deveríamos
adorar e servir, ela não pôde suportar a notícia: toda encharcada de lágrimas e
em prantos, dirigiu-se ao palácio, batendo no peito de dor, onde haviam
prendido seu marido. Ela o encontrou no meio daqueles juízes indignos que
já haviam lhe dado o veneno que iria abreviar seus dias. Ela chegou no
momento em que Sócrates levava o cálice aos lábios. Precipitou-se até ele e
arrancou-lhe o cálice das mãos, derrubando tudo no chão. Sócrates a
reprovou por isso, a encorajando e a consolando. Como ela não podia impedir
sua morte, começou a lamentar-se forte, dizendo: Ah! que desgraça e que
grande perda fazer morrer injustamente um homem tão justo! Mas, Sócrates a
consolou mais, dizendo que é melhor morrer vítima de injustiça do que por
algo justo. Assim, foi então seu fim. Mas, nunca teve fim, durante toda a
vida, o luto no coração daquela que o amava (CHRISTINE DE PIZAN, 2006,
p. 238).
Uma das mais preferidas discriminações da misoginia medieval criticadas por Christine
consiste na incriminação das mulheres por sua natural tendência e inclinação à não
preservação da castidade, apenas oferecendo resistência quando o assédio sexual fosse
deveras violento, fato esse desculpável no caso dos homens. A defesa da senhora
Retidão contra essa suposta licenciosidade feminina é feita no capítulo XLIV do Livro
Segundo intitulado “Contra aqueles que dizem que mulheres querem ser violentadas são
dados diversos exemplos, primeiramente, o de Lucrécia”, conforme pode ser lido na
seguinte passagem:
Então eu, Cristina, disse assim: Dama, acredito completamente no que vós
dizeis e tenho certeza de que são muitas as mulheres belas, nobres e castas,
que sabem se proteger das armadilhas dos sedutores. Eis porque me irrita e
me deixa triste que os homens afirmem que as mulheres queiram ser
estupradas, que isso não as desagrada, mesmo quando se defendem gritando
alto. Pois, não seria capaz de acreditar que lhes possa ser agradável uma coisa
tão abominável.
Resposta: Sem dúvida, cara amiga, que não há prazer nenhum às damas
castas e de bela vida em serem violentadas, e sim, uma dor inigualável.
Muitas delas demonstraram com seu próprio exemplo, como Lucrecia, a
nobre romana, mulher do nobre Tarquínio Collatino. Tarquínio, o Orgulhoso,
filho do rei Tarquínio, ficou ardentemente apaixonado pela nobre Lucrecia, e
não ousava declarar-se, por causa da grande virtude que ela demonstrava.
Sem esperança de conseguir seus objetivos através de presentes ou
suplicações, pensou possuí-la pela astúcia. Ele se dizia ser muito amigo do
marido dela, e assim podia entrar na casa dela quando queria. Então, sabendo
que o marido não estava, ele apareceu, e a nobre esposa o recebeu com toda a
atenção que merece aquele que se diz amigo íntimo de seu marido. Mas,
Tarquínio, que tinha outras intenções, encontrou um meio de entrar no meio
da noite no quarto de Lucrecia, causando-lhe grande medo. Para resumir a
história, depois de tentá-la convencer com promessas, presentes e oferendas,
e vendo que seus pedidos de nada adiantavam, puxou sua espada e a ameaçou
mata-la se ela falasse alguma coisa e não cedesse aos seus desejos. Ela
respondeu bravamente que a matasse, pois preferia morrer a entregar-se.
Percebendo que a ameaça não tinha efeito, Tarquino encontrou uma outra
estratégia: disse–lhe que iria contar publicamente que a havia encontrado
com um dos seus servos. E, para abreviar a estória, isso era uma coisa tão
horrenda para ela, que pensando que iriam acreditar nas palavras dele, ela
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cedeu à sua força. Mas, Lucrecia não pôde sofrer em silêncio tal sofrimento.
Então, quando amanheceu, mandou chamar seu marido, seu pai e parentes
mais próximos, pertencentes à mais alta aristocracia de Roma, para confessar
aos prantos e gemidos o que lhe havia acontecido. Enquanto seu marido e
parentes, a vendo arrasada com tanta dor, procuravam consolá-la, ela puxou
uma faca, que estava sob seu vestido, e disse: Se posso me livrar do pecado e
provar minha inocência, não consigo me livrar dos tormentos, nem da dor.
De agora em diante, mulheres desavergonhadas e desonrosas irão evocar o
exemplo de Lucrecia. Depois de ter pronunciado tais palavras, introduziu
com força a faca no peito e com um golpe mortal caiu diante do marido e de
seus amigos. Voltaram-se então contra Tarquínio. Roma inteira estava
revoltada com isso e expulsou seu rei. Quanto ao filho, se o tivessem
encontrado, o teriam matado. E nunca mais se quis um rei em Roma. Alguns
afirmam que por causa do ultraje contra Lucrecia, foi promulgada uma lei
condenando à morte qualquer homem que estuprasse uma mulher; é uma
pena legítima, justa e santa (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 266-268).
Esse capítulo que fala da permissividade natural da mulher para ser assediada
sexualmente revela, mais uma vez, a costumeira prerrogativa misógina dos critérios
duplos, também condenada, entre inúmeras outras fontes, pelo livro The Southern
Passion (de antes de 1290) [A paixão sulina], de autoria anônima (1927, est. 1923).
Essa mesma ambivalência de critérios é discutida, com grande força argumentativa em
defesa da mulher, em Dives e Pauper, na parte que trata do adultério no homem e na
mulher (Dives and Pauper, 1980, p. 69).
Conclui a senhora Retidão que, a julgar por certos imperadores romanos e dignitários da
Igreja, os homens têm muito pouco que gabar no que se refere ao quesito da constância.
Nesse caso, exemplos de extrema perversidade são citados, inclusive na própria História
Sagrada, como o do Apóstolo Judas Iscariotes (CHRISTINE DE PIZAN, 2006, p. 275).
E para concluir o tratamento retórico e estilístico, mas não menos ideológico e
politicamente antimisógino, dado à sua alegórica e apologética Cidade das damas,
Christine, no Livro Terceiro, coloca a senhora Justiça a identificar as mais nobres
ocupantes da sua cidade recém-concluída, estabelecendo a Virgem Maria como sua
Imperatriz, seguida pelas venerandas mulheres bíblicas e pelas santas mártires do
cristianismo, constantes e corajosas, encabeçadas por Santa Catarina da Alexandria que,
sacrificada em 307, tornou-se figura pioneira e emblemática do martírio cristão em prol
da devoção e da castidade.
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Apesar de Christine terminar bem sucedidamente a construção de sua cidade com essa
genuína eulogia ao feminino irrepreensível, muita coisa de seu discurso desconstrutor
ainda constitui tributo a ideais conservadores e latentes relativos à figura da mulher.
Somente com o passar dos tempos, com as transformações da sociedade, é que as nobres
e hieráticas senhoras da Cidade das damas irão perder a sua aura de excepcionalidade
para dar lugar a indivíduos-mulheres que são simplesmente construções históricas e
sociais.
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Clíticos ou afixos no português arcaico?
Tauanne Tainá Amaral
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa.
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
Resumo: Este trabalho tem como objetivo descrever o papel do grupo clítico na fonologia do Português Arcaico,
a partir das cantigas medievais religiosas remanescentes (as 420 Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o rei
Sábio). Nosso escopo é demonstrar que os clíticos (mais especificamente os pronomes oblíquos clíticos)
apresentam um status prosódico dentro da hierarquia prosódica, não podendo, então, ser considerados como
simples afixos. O questionamento que guia o trabalho em questão está centrado na pergunta: Onde os pronomes
oblíquos clíticos são prosodizados: no nível lexical ou no pós-lexical? Levantaremos argumentos que
comprovarão que tais elementos apresentam seu lugar na escala prosódica, e que não são como os afixos, os
quais se prosodizam junto à palavra fonológica. Os clíticos têm recebido grande atenção nos últimos tempos. Os
vários artigos e trabalhos que abordam sua estrutura sintática ou prosódica enriquecem a literatura relacionada ao
assunto.
Palavras-chave: Clíticos; Afixos; Fonologia Prosódica.
Abstract: This article intends to describe the role of the clitic group in Archaic Portuguese (AP) Phonology
(13th century), analysing the texts of the reminiscent religious medieval cantigas (420 Cantigas de Santa Maria,
compiled by Alfonso X, the Wise). The objective is to demonstrate that clitics (more specifically the clitic
pronouns) have a status within the prosodic hierarchy and cannot, therefore, be regarded as mere affixes. The
question that guides this work is centered on the question: Where do the prosodic status of clitics come from? Is
it in the lexical or in the postlexical level? We will argue that clitics have a status in the prosodic hierarchy; they
do not behave as affixes that are prosodized with the phonological word, so, they are prosodized in the
postlexical component. Clitics have received great attention in recent times. The various articles and studies
concerning its syntactic and prosodic structure enrich the literature related to the subject.
Keywords: Clitic; Affixes; Prosodic Phonology.
Introdução
O escopo deste trabalho é estudar o status prosódico do grupo clítico no Português Arcaico
(século XIII) a partir das cantigas medievais religiosas remanescentes (as 420 Cantigas de
Santa Maria, de Afonso X, o rei Sábio). Partimos da ideia de que os pronomes clíticos
presentes nas cem primeiras Cantigas de Santa Maria (daqui em diante CSM), juntamente
com a sua palavra hospedeira, formam a primeira categoria prosódica pós-lexical no
Português Arcaico (daqui em diante PA).
Para comprovar nossa hipótese sobre a categoria de constituinte prosódico do grupo clítico,
iremos demonstrar que os pronomes clíticos não funcionam como afixos no PA, uma vez que
apresentam autonomia. Embasamos nossas análises nesse critério, pois muito se tem discutido
sobre o caráter de tais elementos, trabalhos estes que centram seus estudos na possibilidade de
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se admitir os clíticos como afixos, não reconhecendo, portanto, a autonomia e independência
prosódica dessas partículas.
1. Corpus
O corpus selecionado para a realização desta pesquisa são as CSM, de Afonso X - o Sábio
(1221-1284) -, um conjunto de 420 composições em galego-português, que, no século XIII,
era a língua fundamental da lírica culta em Castela. Tais cantigas encontram-se registradas em
quatro manuscritos, um deles na Biblioteca Nacional da Espanha (Códice To, por Toledo),
dois no Mosteiro do Escorial (Códices E e T) e o quarto em Florença (Códice F).
As CSM, de Afonso X, o rei Sábio, são consideradas uma obra muito rica, reconhecida por
muitos estudiosos como um precioso documento linguístico e verdadeira obra de arte literária,
iconográfica e musical (LEÃO, 2007, p. 27; PARKINSON, 1998, p. 179).
Destacadas como o maior monumento literário de culto à Virgem Maria (METTMANN,
1986, p.7), constituem o cancioneiro mariano mais rico da Idade Média. Além de seu caráter
laudatório religioso, as CSM também retratam a cultura e os costumes da época, conforme
afirmam Leão (2007) e Castro (2006):
[...] elas nos falam não só da vida religiosa, mas da vida em toda a sua
complexidade, constituindo talvez o mais rico documento para o conhecimento da
mentalidade, dos costumes, das doenças, das profissões, da prostituição, do jogo,
dos hábitos monásticos, de todos os aspectos enfim do cotidiano medieval da Ibéria
(LEÃO, 2007, p. 153).
Além de representarem as transformações históricas, guardando óbvias ligações com
o culto mariano, não só dão um vasto espaço ao diabo como personagem, mas
também assemelham-se às catedrais na representação da diversidade populacional e
das crenças fantásticas [...]. Em sua vastidão, o texto apresenta uma enorme
variedade de povos (etnias, religiões, nacionalidades, classes sociais) e os mais
fantásticos acontecimentos (CASTRO, 2006, p. 43-44).
É importante salientar que D. Afonso X escolheu o galego-português para a elaboração de
suas cantigas, apesar de o idioma que se falava, em seu reino, ser o castelhano. Tal escolha é
justificada como o fruto da educação recebida pelo monarca, que teve contato com a língua de
Galiza (LEÃO, 2007, p. 18).
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Ainda a respeito da escolha do galego-português, não podemos deixar de considerar essa
opção devido ao prestígio que o monarca teria com a escolha dessa língua; trata-se da
utilização de uma língua de cultura em um país estrangeiro,
[...] o galego-português é usado como língua de cultura em um país estrangeiro,
Castela, a mando do Rei, para poder melhor louvar a Virgem, na língua mais
apropriada para esta finalidade. Trata-se, portanto, de uma especialização de uso, em
território alienígena (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p. 20).
Na opinião de Leão (2007, p. 21), o galego utilizado na elaboração da coleção é o culto e
erudito, e não o falado pelo povo da Galiza; era um verdadeiro idioma literário que tanto
Afonso X quanto outros poetas souberam utilizar magnificamente. Além disso, podemos
afirmar, em relação à escolha do galego-português, que as razões transcendem os domínios
ibéricos, sendo um fenômeno geral da Europa (LEÃO, 2002, s/ paginação).
As CSM apresentam duas vertentes temáticas, uma de teor lírico e a outra, lírico-narrativo,
mas que não deixam de lado características do lirismo laudatório que pode ser verificado nos
refrães e nos finais dos milagres (LEÃO, 2007, p. 23), são elas respectivamente: cantigas de
louvor e as cantigas de milagre. Tanto nas cantigas de milagre como nas de louvor podemos
notar a exaltação da Virgem Maria, que se mostra presente tanto nos milagres relatados como
nas manifestações laudatórias dedicadas a ela.
As cantigas de milagre somam um total de 356 cantigas, enquanto que o restante é composto
pelas cantigas de louvor; desse modo, podemos perceber, em relação à proporção das CSM,
que há uma predominância daquelas sobre estas (BERTOLUCCI PIZZORUSSO, 1993, p.
143). De acordo com Leão (2007, p. 24), a cada nove cantigas de milagre, segue-se uma
cantiga de louvor, remetendo-nos, assim, a uma estrutura de rosário:
As cantigas de milagre predominam sobre as de louvor numa proporção de nove por
um. Isto é: a cada grupo de nove cantigas de milagre segue-se uma cantiga de
louvor, numerada com uma dezena inteira. No final da obra, porém, aparecem
algumas cantigas de festas do calendário cristão, comemorativas de episódicos da
vida de Santa Maria ou da de seu Filho. A estruturação das cantigas obedece, pois, a
um ritmo regular, em que as cantigas de louvor ocupam sempre as dezenas,
enquanto as de milagre têm números terminados pelas unidades de um a nove,
comparando-se esse sistema, aproximadamente, ao de um rosário.
Elvira Fidalgo (2002, p. 148) afirma que esta comparação da distribuição das cantigas com o
rosário não é gratuita, uma vez que este é o instrumento de oração para com a Virgem. Assim
os espaços decenais ocupados pelas cantigas de louvor são especiais dentro do cancioneiro.
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As cantigas de milagre, tidas como manifestações do gênero narrativo com traços de lirismo
laudatório, narram intervenções milagrosas da Virgem em favor de seus devotos ocorridas em
diversos ambientes. Já as cantigas de louvor são poemas líricos que servem para louvar as
virtudes e beleza da Virgem Maria (LEÃO, 2007, p. 24).
Ainda no tangente às cantigas de milagre, Leão (2007, p. 26) afirma que entre os milagres
narrados na coletânea se destacam: “ressurreições, socorro em perigos, cura das mais variadas
enfermidades, engravidamento de mulheres estéreis, punição de delinquentes ou salvação de
devotos da Virgem que caíram em tentação”.
As cantigas de louvor estão configuradas dentro de um plano do gênero lírico, ou seja, elas
constituem a parte “essencialmente lírica da coletânea” (LEÃO, 2007, p. 28), são cantigas que
servem para “cantar” a virgem mediadora, interventora e auxiliadora. Muitos estudiosos
aproximam as cantigas de louvor das cantigas de amor; nestas temos o amor cortês a uma
mulher mortal, naquelas temos a mulher amada na figura de Santa Maria.
A atitude do nosso trovador da Virgem não difere do comportamento masculino
encontrado nas cantigas d’amor, onde o trovador da dona se prostra diante dela para
enaltecer-lhe a beleza ou bom parecer e também para louvar-lhe o valor moral ou
prez, o equilíbrio ou mesura e todas as outras qualidades que fazem dela a Sennor
sem par, perfeita, comprida de bens. (LEÃO, 2007, p. 28)
Deparamo-nos, portanto, com uma transferência de “culto” da mulher mortal para culto à
Virgem Maria, que merece ser louvada por dois motivos: o primeiro, por ser mãe de Jesus; o
segundo, por ela ser garantia de concessão de favores requisitados, uma vez que seu Filho
deve obediência à mãe e desse modo atende suas súplicas (FIDALGO, 2002, p. 167).
Uma questão curiosa que merece ser abordada diz respeito à autoria das cantigas: teria Afonso
X, um rei tão ocupado com questões políticas, tido tempo para compor todas elas sozinho?
“Por um lado, é realmente difícil de acreditar, dada a vasta dimensão e a incomensurável
qualidade artística (literária e musical) da coleção, que o Rei fosse pessoalmente o autor de
todas as músicas e poemas das CSM” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.61). Mas, é válido
considerar Afonso X como o verdadeiro organizador, aquele que projetou as cantigas do
modo que são.
Embora tivesse colaboradores, planejou e revisou pessoalmente toda a sua obra,
além de haver composto, ele próprio, grande parte das cantigas e das músicas. A
autoria de Afonso X fica comprovada pelos inúmeros poemas em primeira pessoa,
muitos deles auto-referentes, em que o Rei fala de seu amor a Santa Maria, de sua
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família, de seus empreendimentos reais, de suas viagens, de seu ofício de trovar, de
suas doenças, de seu livro de cantigas etc. (LEÃO, 2007, p. 38).
Mettmann (1986, p. 18) afirma a possibilidade de vários autores, mas não deixa dúvidas ao
dizer que a maioria das cantigas seja de autoria de uma única pessoa: “es sin embargo
probable que la mayoría de los poemas se deban a una sola persona y que el número de los
autores no haya pasado de la media docena”.
As análises realizadas neste trabalho levaram em consideração as cantigas afonsinas extraídas
da edição de Walter Mettmann, publicada de 1986 a 1989 em Madrid, pela Editora Castalia,
em três volumes, contendo as cantigas. Foi também consultado o quarto volume da edição
publicada pelo mesmo editor em Coimbra, de 1959 a 1972, contendo um glossário elaborado
pelo próprio filólogo.
2. O que são clíticos?
Clíticos são palavras funcionais que não pertencem a uma classe morfológica
específica. Destituídos de acento, apóiam-se no acento de uma palavra vizinha e
raramente se tornam cabeça de frases (BISOL, 2005, p. 164).
Iremos apresentar uma breve revisão de literatura sobre a definição de clíticos (e,
consequentemente, dos pronomes clíticos). Discorrer sobre a conceituação deste elemento
mostrou-se importante, uma vez que existem algumas divergências entre as acepções, estudos
que o comparam com afixos e, além disso, trata-se do foco de análise do trabalho em questão.
Para que as análises desta pesquisa fossem realizadas, primeiramente, foi necessário revisitar
alguns trabalhos que tratassem da natureza dos clíticos. Partindo desse primeiro contato sobre
a conceituação de tais elementos, foi possível perceber que os teóricos analisados divergem
um pouco quanto à classe gramatical dessas partículas, mas todos apontam para o caráter
átono dos clíticos.
Antes de iniciar nossas exposições, trataremos do seguinte questionamento: que tipo de
palavra é um clítico? Trata-se de uma palavra lexical ou funcional? Veremos ainda que há
autores que enquadram os clíticos em outras categorias de palavras, por exemplo: palavra
instrumental, palavra de classe fechada etc. Diante de tais perguntas, faz-se necessário
apresentar algumas definições a respeito dessas duas categorias de palavras.
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Ao tratar das “classes fechadas”, que seriam uma subclasse das palavras funcionais, já que
estas não conseguem abarcar todo o redimensionamento nas classes de palavras, Rosa (2009,
p. 109) afirma que, devido à importância que as palavras funcionais vêm assumindo em
virtude dos estudos de sintaxe, e ao maior conhecimento acerca das línguas do mundo, está
ocorrendo um redimensionamento nas classes propostas, dando origem a uma nomenclatura
variada. Rosa (2009, p. 108) propõe o seguinte a respeito da diferenciação entre palavra
lexical e funcional:
Os estudos tradicionais dedicaram muita atenção às palavras lexicais. Elas são em
maior número nas línguas, carregam significado, geram vocabulário novo. Seus
acidentes nos dão as tábuas de conjugação e de declinação, que ocupam boa parte
das gramáticas. Os estudos de sintaxe têm, no entanto, demonstrado a importância
das palavras funcionais: elas são índice de propriedades gramaticais que fazem a
diferença entre as línguas.
Em alguns dicionários de linguística, também encontramos definições acerca de palavra
lexical e palavra funcional:
Lexical [...] pode indicar uma distinção da GRAMÁTICA, como aquela existente
entre as “PALAVRAS gramaticais” e as palavras lexicais: a primeira se refere às
palavras cuja função é assinalar relações gramaticais (papel geralmente atribuído a
palavras como de, para, o etc. em português); as segundas são palavras com
significação lexical, ou seja, CONTEÚDO semântico (CRYSTAL, 2000, p.158).
palavra funcional Expressão usada ocasionalmente na classificação das
PALAVRAS indicando uma palavra de função totalmente, ou em grande parte,
gramatical, como os ARTIGOS, os PRONOMES e as CONJUNÇÕES. Diversos
termos existem para caracterizar esta noção (palavra GRAMATICAL, PALAVRA
INSTRUMENTAL e outros); todas contrastam com as palavras lexicais de uma
língua, que portam o principal conteúdo SEMÂNTICO (CRYSTAL, 2000, p. 195).
Palavras Funcionais são as que indicam certas relações gramaticais entre os
sintagmas que constituem uma frase (preposições), ou entre as frases (conjunções),
ou que marcam a fronteira de um sintagma nominal que elas determinam (artigos).
As palavras funcionais se distinguem dos morfemas lexicais porque são morfemas
não-autônomos, que só têm sentido relativamente à estrutura gramatical em que
entram; são também denominados marcadores estruturais, palavras instrumentais ou
instrumentos gramaticais (DUBOIS et al., 1978, p. 297).
Observando as citações acima, podemos notar que a classe dos pronomes não é exemplificada
em nenhuma delas. Crystal (2000, p.195) coloca os pronomes dentro da categoria de palavra
instrumental, que, a nosso ver, se trata de uma subcategoria da palavra funcional:
palavra instrumental Expressão usada ocasionalmente na classificação das
PALAVRAS para indicar uma palavra com sentido e função gramaticais, como os
ARTIGOS, PRONOMES, e CONJUNÇÕES. Existem outras expressões para
caracterizar esta noção, como PALAVRA FUNCIONAL, em contraste com palavras
LEXICAIS, aquelas que portam o conteúdo SEMÂNTICO da língua.
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Tomando essas noções, podemos inferir que os clíticos não se enquadram na categoria de
palavra lexical, uma vez que o valor semântico que eles portam só pode ser definido em
função da gramática da língua, assim podemos sugerir o seu enquadramento na noção de
palavra funcional (ou instrumental), já que eles carregam uma função gramatical.
Expostas as categorias utilizadas para classificar as palavras, partimos agora para os trabalhos
de cunho morfológico e morfossintático que abordam a natureza dos clíticos. Em seus
trabalhos de análise da morfologia do português, Câmara Jr. (1985 [1975], 2007 [1970])
dedica um capítulo exclusivo para argumentações e explanações a respeito dos pronomes. De
acordo com este autor, os pronomes se limitam a mostrar o ser no espaço.
Quanto ao pronome, o que o caracteriza semanticamente é que, ao contrário do
nome, ele nada sugere sobre as propriedades por nós sentidas como intrínsecas [...].
O pronome limita-se a mostrar o ser no espaço, visto esse espaço em português em
função do falante: eu, mim, me «o falante qualquer que ele seja», este, isto «o que
está perto do falante», e assim por diante (CÂMARA Jr., 2007 [1970], p. 78).
Sobre os pronomes clíticos, Câmara Jr. (1985 [1975], 2007 [1970]) afirma que são uma das
formas do pronome pessoal, caracterizando-os como uma forma dependente adverbial, “isto é,
usada como forma dependente junto a um verbo, para expressar um complemento, que
fonologicamente é uma partícula proclítica ou enclítica do verbo; respectivamente: me, nos;
te,vos; o, a, ou lhe; os, as, ou lhes” (CAMARA Jr., 2007 [1970], p. 117).
Basílio (2009) atesta a dependência fonológica dos clíticos e, ao mesmo tempo, a sua
independência morfológica, ou seja, ela afirma que esses elementos não fazem parte da
palavra de um ponto de vista morfológico:
Dá-se o nome de clíticos a unidades que se agregam a uma palavra fonologicamente,
sem fazer parte dela do ponto de vista morfológico. Em português, temos nessa
situação os artigos, assim como vários pronomes pessoais: -o, -a, -me, -te, -se etc.
Esses pronomes são chamados clíticos porque não apresentam acentuação própria;
são átonos, integrando-se à pronúncia do verbo, apesar de não fazerem parte dele do
ponto de vista morfológico. Os clíticos colocam mais uma dificuldade de
identificação da palavra, já que fazem parte do vocábulo fonológico mas não da
palavra fonológica. Pois, [...] os elementos que formam uma palavra são
rigidamente ligados aos outros, não admitindo mudança de posição ou interferência
de outro elemento: ora os clíticos podem mudar de posição, como viu-me / me viu
[...]. (BASÍLIO, 2009, p.16)
Rosa (2009, p. 110-111) afirma que a noção de clítico tornou-se sinônimo de pronome
pessoal, e que essa classe de palavras não é definida funcionalmente:
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No estudo das línguas românicas, o termo clítico praticamente tornou-se sinônimo
de pronome pessoal átono; no entanto, a denominação é mais geral que isso. [...].
Ao contrário dos demais tipos de palavras, o clítico: (a) tem uma posição fixa em
relação a um outro elemento da oração (que nos dá as proclíticas e as enclíticas); (b)
tem posição relativamente fixa em relação a outros clíticos – em português de
Portugal (uma vez que no Brasil é construção em desuso), por exemplo, o clítico de
dativo antecede o de acusativo: lha, mo, ta, to (mas não *alhe, *ome...); (c) em geral
se apresenta sem acento, embora em determinadas condições possa receber acento:
as proclíticas gregas são acentuadas se antes de uma enclítica [...].
Ainda versando sobre a natureza dos clíticos, Crystal (2000) também afirma que os clíticos
são dependentes de uma “palavra vizinha”, mas ele não esclarece qual é o tipo de dependência
(morfológica, fonológica etc.) estabelecida entre tal elemento e seu hospedeiro.
Termo usado na GRAMÁTICA com referência a uma FORMA que se assemelha a
uma PALAVRA, mas não pode aparecer sozinha em um ENUNCIADO normal,
sendo estruturalmente dependente da palavra vizinha na CONSTRUÇÃO. (O termo
clítico vem do grego “inclinado”.) Exemplos de clíticos são as formas
CONTRAÍDAS do verbo to be (ser) em inglês: I’m, he’s. Os ARTIGOS são
considerados clíticos, às vezes, no sentido em que uma forma como o ou a não pode
aparecer sozinha em um enunciado, mas seria chamada de palavra por qualquer
FALANTE NATIVO. Em português, são chamados clíticos os PRONOMES átonos:
me, te, se, o, a, etc. Os clíticos podem ser classificados de acordo com sua posição
em relação à palavra de que dependem: proclíticos (próclise) dependem da palavra
seguinte (é o caso dos artigos e de formas como Eu me sento); mesoclíticos
(mesóclise) ficam no meio do VERBO (sentar-me-ei) e os enclíticos (ênclise)
dependem da palavra precedente (sentei-me) (CRYSTAL, 2000, p. 49).
Cagliari (2002, p. 48-49), em um trabalho em que são tratadas tanto questões de morfologia
como de fonologia, faz uma consideração muito completa e esclarecedora a respeito dos
clíticos e ainda argumenta sobre duas posições de cliticização:
Clítico é uma palavra que, embora tenha uma identidade morfológica própria,
aparece sempre grudada sintaticamente em outra, chamada de ‘hospedeira’. Os
pronomes oblíquos do Português são exemplos de clíticos, pois aparecem sempre
ligados a um verbo; por exemplo: ‘eu te vi’; ‘Maria lhe disse’; ‘achei-os na gaveta’,
etc. Na expressão ‘ele mo disse’ há dois clíticos: me + o (cf. *ele me o disse). Os
falantes podem dizer tu!, mas não podem dizer *te!. Embora não possam dizer ti!,
podem dizer para ti! (cf. *para te!). Assim, te é um clítico, porém ti não o é. A
caracterização dos clíticos entram em jogo também aspectos prosódicos: os clíticos
são, por natureza, átonos. Em outros termos, pode-se dizer que os clíticos
combinam-se fonologicamente com palavras das quais dependem prosodicamente,
mas não formam uma unidade morfológica única. Desse modo, os clíticos
distinguem-se também das palavras compostas. Os clíticos grudam-se a verbos ou a
substantivos. Os artigos são clíticos dos substantivos, mas outros determinantes,
como os pronomes demonstrativos, não são clíticos. Em enunciados como a casa de
Júlia é antiga, a preposição de é um clítico, mas na expressão a casa é antiga para
mim, não para você, a preposição para não é clítico, porque pode levar acento
principal. Ao contrário do que diz a gramática tradicional, as preposições com mais
de uma sílaba não são átonas por natureza.
Proclítico é um clítico que precede a palavra hospedeira na cadeia da fala.
Enclítico é um clítico que ocorre logo após a palavra hospedeira na corrente da fala.
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Para finalizar nosso breve panorama a respeito da natureza dos clíticos, trataremos da
definição fonética e fonológica apontada por Silva (2011), em que afirma ser o clítico um
elemento independente gramaticalmente e dependente fonologicamente:
[...] elemento que tem independência gramatical, mas é fonologicamente dependente
de um elemento adjacente. O clítico tem proeminência acentual fraca, sendo
dependente do acento primário da palavra adjacente e à qual se associa. São
exemplos de clíticos em português: se, te, me, lhe etc. (SILVA, 2011, p. 74).
3. Embasamento teórico
A Fonologia Prosódica parte do pressuposto de que a fala é organizada em constituintes
prosódicos os quais são construídos a partir de informações de outros elementos da gramática.
Segundo Nespor e Vogel (1986, p. 2), a Fonologia Prosódica propõe que a linguagem seja
organizada de forma hierárquica em constituintes prosódicos que podem apresentar tanto
informações fonológicas quanto não fonológicas.
Nespor e Vogel (1986, p. 7) propõem que os constituintes prosódicos sejam organizados de
forma hierarquizada, ou seja, que seja desenvolvida uma relação binária de dominante e
dominado entre eles. Segundo as autoras, os constituintes devem ser organizados no que ela
denominou de estrutura ou árvores do tipo X-barra em que todos os elementos ficam sob
domínio do mesmo nó, obedecendo princípios que regulam a hierarquia prosódica.
Já a formação de cada constituinte é explicitada pela regra Prosodic Constituent Construction
[Construção de Constituinte Prosódico] (NESPOR; VOGEL, 1986) em que X P representa um
constituinte prosódico e XP-1 indica outro constituinte imediatamente inferior a XP.
A partir dos princípios de organização dos consituintes prosódicos e de sua regra de
construção, fica bem clara a existência de um sistema de hierarquia em relação aos
constituintes. A respeito dos constituintes, Nespor e Vogel (1986, p. 11) propõem a existência
de sete unidades dentro da escala prosódica:
enunciado – U
frase entoacional – I
frase fonológica – 
grupo clítico – C
palavra fonológica – ω
pé - ∑
sílaba – σ
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O grupo clítico (C), pelo sistema de hierarquia, é definido como a unidade prosódica que
segue imediatamente a palavra fonológica. Bisol (1996, p. 251) afirma que o grupo clítico não
existe na proposta de Selkirk (1984), já que é comum considerar o clítico como um
componente da palavra fonológica. Seguindo a proposta de Nespor e Vogel (1986), Bisol
(1996, p. 252) define o grupo clítico como “a unidade prosódica que contém um ou mais
clíticos e uma só palavra de conteúdo”. Ainda a respeito deste constituinte Bisol (1996, p.
251) afirma que existem dois tipos de clíticos, “os que se comportam junto à palavra de
conteúdo como uma só unidade fonológica e os que revelam certa independência,
submetendo-se às mesmas regras da palavra fonológica”.
The most common approach in phonology is to consider clitics either as belonging
to the phonological word, in which case they are considered similar to affixes, or as
belonging to the phonological phrase, in which case they are considered similar to
independent words. (NESPOR; VOGEL, 1986, p. 145)
Nespor e Vogel (1986), a respeito dessas duas possíveis categorias dos clíticos, afirmam que o
comportamento destes elementos pode se diferenciar do comportamento dos afixos e das
palavras independentes: “some clitics behave like independent words, some like affixes, and
some either like words or affixes depending on the specific rule” (NESPOR; VOGEL, 1986,
p. 146), por esse motivo eles merecem um nível dentro da escala prosódica.
4. Clíticos X Afixos
Devido ao seu caráter híbrido, muitos autores afirmam que os clíticos se comportam como os
afixos por apresentarem: a) um alto de grau de seleção em relação à categoria de sua palavra
hospedeira; b) um especial desencadeamento fonológico na sequência clítico-verbo; c) uma
ordenação com respeito à inflexão (ou flexão).
Para o PB, Bisol (2000) faz uma exposição a respeito do comportamento de certos prefixos,
afirmando que estes lexemas podem ter autonomia em certos casos e em outros não; a autora
sustenta esta afirmação baseada na questão do acento. Segundo a estudiosa, há casos em que a
sequência “prefixo + palavra” se comporta como uma palavra composta, enquanto em outros
casos os prefixos são anexados à base morfológica da palavra primitiva (BISOL, 2000, p. 1314).
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Desse modo, segundo a autora, existem prefixos que funcionam como afixos (por exemplo:
re-, rebater, reformular / a-, amoral, aterrorizar/ des- desmontar) e outros que ficam entre
dois caminhos: forma livre e forma presa (por exemplo: pós; temos a invariante pós-lexical e
a variante pós-tônico e postônico). O fato de diferenciação entre afixos e clíticos reside nessa
questão, pois os prefixos sem autonomia (destituídos de acento) não podem ser confundidos
com os clíticos, uma vez que estes se anexam à palavra fonológica formando o grupo clítico e
aqueles se integram à palavra fonológica:
O ponto em questão é o fato de que prefixos sem autonomia não se confundem com
os clíticos. Aqueles fazem parte da palavra fonológica, depois de terem sido
anexados a uma base morfológica. Todos, sem exceção, integram a palavra
fonológica que ajudam a construir. Clíticos anexam-se diretamente a uma palavra
fonológica bem formada, sem integrá-la [...]. (BISOL, 2000, p. 16)
Resumidamente, o que Bisol (2000) afirma nessa citação é que os clíticos se anexam à palavra
fonológica sem fazer parte dela, o que já não acontece com os afixos, mesmo com aqueles que
apresentam certa autonomia.
Vigário (2001) também discorre sobre esta questão para o Português Europeu (daqui em
diante PE). De acordo com a autora, os afixos se ligam à palavra prosódica no nível lexical,
enquanto que os pronomes clíticos se adjungem ao seu hospedeiro pós-lexicalmente, ou seja,
a cliticização, segundo a estudiosa, se dá no nível pós-lexical. Antes de apresentar a diferença
de comportamento entre esses dois elementos, Vigário (2001, p. 136) afirma que os pronomes
clíticos compartilham as seguintes propriedades com os afixos: a) seletividade no que diz
respeito à categoria do hospedeiro; b) “gatilho” fonológico especial nas sequências clíticosverbo; c) ordem dos clíticos em relação à inflexão.
Mas, mesmo compartilhando essas propriedades, para Vigário (2001, p. 137), a hipótese de
que a cliticização no PE é uma operação pós-lexical é superior à hipótese de que os clíticos
pronominais se adjungem aos seus hospedeiros no componente lexical.
Zwicky e Pullum (1983, p. 503 -504) também diferenciam os clíticos dos afixos baseados nos
critérios listados abaixo:
 os clíticos podem exibir um baixo grau de seleção no que diz respeito aos seus
hospedeiros, enquanto os afixos mostram um alto grau de seleção no que diz respeito
aos seus radicais.
 intervalos arbitrários no jogo de combinações são características mais de palavras
afixadas do que de grupos clíticos.
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 idiossincrasias morfofonológicas são mais características de palavras afixadas do que
de grupos clíticos.
 idiossincrasias semânticas são mais características de palavras afixadas do que de
grupos clíticos.
 os clíticos podem se ligar a um material que já contém clíticos, mas afixos não o
podem fazer.
Vigário (2001), baseada nos critérios propostos por Zwicky e Pullum (1983, p. 503 -504),
propõe algumas evidências a respeito da diferenciação dos pronomes clíticos e afixos. A
primeira evidência de que os pronomes clíticos podem ser independentes de seus hospedeiros
no nível lexical refere-se ao fato de que os clíticos são “móveis”, ou seja, manipulados por
operações sintáticas, eles podem ocorrer antes ou após o verbo, diferentemente do que ocorre
com os afixos lexicais que se ligam à direita ou à esquerda do seu hospedeiro (VIGÁRIO,
2001, p. 142).
Sobre esta “mobilidade” dos clíticos, Vigário (2001, p. 142) afirma que existem elementos
capazes de atrair os clíticos para a posição pré-verbal, como por exemplo: certos advérbios,
quantificadores, operadores Wh1, complementizadores e palavras de forma negativa. Vejamos
em (1) os exemplos utilizados por Vigário (2001, p. 142):2
(1)
a. dou-te
b. eles ouviram-te
a’. não te dou
b’. todos eles te ouviram
De acordo com Vigário (2001, p. 142), essas informações sintagmáticas relevantes para a
distribuição dos clíticos pronominais não estão disponíveis no léxico, portanto a sequência
“clítico + verbo” deve ser obtida no pós-léxico.
Esta mobilidade, para o Português Brasileiro (daqui em diante PB), já havia sido atesta por
Câmara Jr. (2007 [1970]). Ao discorrer a respeito da classificação de palavra e morfemas, o
estudioso propõe três classes de palavras: livre, presa e dependente. De acordo com Câmara
Jr. (2007 [1970], p. 69) o “vocábulo formal é a unidade a que se chega, quando não é possível
nova divisão em duas ou mais formas livres. Constará, portanto, de uma forma livre
indivisível (ex.: luz), de duas ou mais formas presas (ex.: im + pre +vis + ível) ou de uma
forma livre e uma ou mais formas presas (ex.: in + feliz).” Como podemos verificar, Câmara
Jr. (2007 [1970]) classifica os afixos como formas presas. O referido autor, sobre a forma
1
Wh questions – pronomes interrogativos do inglês, que, na maioria, se iniciam na escrita pela sequência wh-,
como por exemplo: why (‘por que’), when (‘quando’), what (‘o que’), who (‘quem’), which (‘qual’), where
(‘onde’).
2
Ressaltando que, para o PE, a ênclise é o padrão.
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dependente, afirma que não é uma forma livre, porque não pode funcionar isoladamente como
comunicação suficiente; mas também não é presa, porque podem ocorrer outras formas livres
entre ela a forma livre a que ela se relaciona, ou ela pode mudar de posição em relação à
forma livre a que está ligada. Abaixo temos um exemplo em que Camara Jr. (2007 [1970])
comprava a mobilidade dos clíticos, além disso podemos destacar o não como um elemento
capaz de atrair tais partículas.
(2) A excelente decisão.
Traga-me o seu trabalho.
Não me traga o seu trabalho.
Além dessa evidência, Vigário (2001) apresenta várias regras que diferenciam os pronomes
clíticos dos afixos, dentre elas podemos citar: a) clíticos pronominais são insensíveis às
mudanças de acento; b) não servem de gatilho para a regra de inserção de glide para romper
um hiato; c) regras que se referem à informação morfológica são outro tipo de processos que
diferenciam flexão de cliticização no PE; d) a cliticização não se restringe ao hospedeiro com
características fonológicas específicas; e) clíticos pronominais apresentam autonomia
sintática, podendo ligar-se a qualquer verbo; f) prefixos mais a base formam-se no nível
lexical, enquanto a sequência proclíticos mais hospedeiros forma-se no pós-léxico; g)
proclíticos podem submeter-se à regra de redução, mas prefixos não etc.
A partir dessas e outras evidências, Vigário (2001) constata que os pronomes clíticos,
diferentemente dos afixos, não apresentam evidências de seus status inflexional, mas foi
possível verificar que a combinação verbo e clíticos pronominais não estão disponíveis no
léxico, logo a cliticização pronominal deve ser considerada uma operação pós-lexical
(VIGÁRIO, 2001, p. 167-168). Desse modo, fica claro que os clíticos não devem ser
equiparados aos afixos, uma vez que apresentam várias diferenças como foi apontado.
5. Análise dos dados
A partir da exposição dos diferentes trabalhos na seção anterior, iremos propor uma análise
dos pronomes clíticos que comprove sua distinção em relação aos afixos, a partir de alguns
dos critérios listado por Bisol (2000), Vigário (2001) e Zwicky e Pullum (1983). A partir
desses argumentos iremos comprovar que os pronomes clíticos, no PA, diferentemente dos
afixos, se adjungem à palavra hospedeira, no nível pós-lexical, junto ao grupo clítico,
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diferentemente dos afixos que se adjungem ao seu hospedeiro no nível lexical, formando uma
única palavra fonológica com este .
Conforme podemos observar em (3), (4) e (5), em PA os pronomes clíticos apresentam um
grau de mobilidade que deve ser considerado como forte argumento de distinção entre clíticos
e afixos. Assim como atestado por Vigário (2001) no PE, este argumento corroborará a
questão da prozodização dos pronomes clíticos no nível do pós-lexico.
Em (3), podemos observar que o pronome clítico nos ocorre em posição de próclise em
relação ao verbo erdar. Podemos sugerir que essa posição proclítica pode ser condicionada
pela atração da conjunção poren.3
(3) Poren vos quero contar
próclise – pronome oblíquo dativo / sintagma verbal (quero contar)
(CSM 4)
Já em (4), observamos que o mesmo pronome pode ocorrer em posição de ênclise em relação
ao seu verbo hospedeiro.
(4) E ar quero-vos demostrar
 ênclise – pronome oblíquo dativo / verbo (quero)
(CSM 1)
Finalmente, em (5), temos o mesmo pronome dos exemplos anteriores ocorrendo em posição
de mesóclise em relação ao seu verbo hospedeiro.
(5) e contar-vos-ei end' a gran maravilla.
 mesóclise - pronome oblíquo dativo / verbo (contarei)
(CSM 19)
Assim, atestamos o caráter de mobilidade dos pronomes clíticos, o que não ocorre com os
afixos, pois estes elementos apresentam um lugar de posicionamento específico em relação a
sua palavra hospedeira, no nível lexical, não podendo o mesmo afixo assumir função de
prefixo, sufixo, infixo etc.
Observando os nossos dados, foi possível verificar que os clíticos não possuem um alto grau
de seleção do seu hospedeiro do ponto de vista fonológico, podendo se adjungir a outras
palavras que não o verbo. Estes casos geraram certas dúvidas no trabalho de Amaral (2012),
por isso a referida autora preferiu abordar uma análise do ponto de vista sintático para
3
Amaral (2012) aborda alguns aspectos de elementos que atraem os pronomes clíticos nas CSM.
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padronizar suas análises. Assim, no exemplo (6) o pronome em negrito, do ponto de vista
fonológico, pode estar ligado à posição, mas do ponto de vista sintático está ligado ao verbo.
(6) foi polo matar, per nome Mateus.
(CSM 22)
Em (7), nos deparamos com um caso interessante do “pronome clítico” mio. Esta palavra, na
verdade, é a junção gráfica dos pronomes dativo mi e do acusativo o, fato que nos sugere a
possibilidade de esta junção gráfica ter um apelo fonológico, nos remetendo a uma outra
possibilidade, a de considerar um clítico dependendo de outro clítico como palavra hospedeira
e não de um verbo, como ditam as regras sintáticas.
(7)
Amig', aquesto que tu queres
farei eu mui de coraçon
sobre bon pennor, se mio deres.
(CSM 25)
Assim como verificado por Vigário (2001) no PE, em PA também foi possível constatar o
caso de idiossincrasia fonológica4 na sequência verbo-clítico, estas idiossincrasias ocorrem no
pós-léxico, como veremos a seguir. Como exemplo, temos o verbo dever na primeira pessoa
do plural. Em todas as cem primeiras cantigas este verbo, na referida forma de conjugação,
aparece na forma devemos (independentemente se está como palavra hospedeira de um
pronome clítico, que não seja o la, ou não), mas, quando o pronome clítico la o acompanha,
ele perde a consoante final s.
(8)
(CSM 10)
Devemo-la
muit'
amar
e
servir
(9) Nas mentes senpre tẽer
devemo-las sas feituras
da Virgen, pois receber
as foron as pedras duras.
(CSM 29)
(10) Onde come a Deus lle devemos amor.
(CSM 50)
(11) Por que todos en ela devemos fiar.
(CSM 93)
(12) A creer devemos que todo pecado
Deus pola sa Madr' averá perdõado.
(CSM 65)
4
Apesar de estarmos cientes de o termo idiossincrasia poder assumir um caráter preconceituoso e pejorativo,
queremos deixar claro que o utilizamos apenas com a finalidade de referir a análise dos autores que o adotam e
que são citados neste trabalho.
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Outro argumento favorável que podemos levantar para a distinção dos clíticos e afixos,
contribuindo para a cliticização daqueles, com suas respectivas palavras hospedeiras, junto ao
grupo clítico, é o seu posicionamento mesoclítico. Na mesóclise, assim como afirmam
Zwicky e Halpern (apud Vigário, 2001), os clíticos precedem a flexão verbal de modo-tempo,
número-pessoa.
[...] when a clitic follows a verb inflected for the future or conditional, the clitic is
inserted before what is taken to be a person/number afixex [...], instead of
appearing at the end of the inflected verb. (VIGÁRIO, 2001, p. 140)
Em PA, temos a cliticização dos pronomes clíticos de modo mesoclítico como pode
comprovado nos exemplos abaixo.
(13) Guari-m' est' irmão gaff', e dar-ch-ei grand' aver.»
 mesóclise – pronome oblíquo dativo / verbo (darei)
(CSM 5)
(14) vingar-m-ei daquele malfeitor.»
 mesóclise – pronome reflexivo/ verbo (vingarei)
(CSM 15)
(15) dar-t-ei o que trag', en don,
 mesóclise – pronome oblíquo dativo / verbo (darei)
(CSM 31)
(16) ora oyd' o miragre, | e nos contar-vo-lo-emos.
 mesóclise – pronome oblíquo dativo / verbo (contaremos)
 mesóclise – pronome oblíquo acusativo / verbo (contaremos)
(CSM 8)
(17) El lle respos, com' en jogo: | «Pois vos praz, dizer-vo-l-ei:
 mesóclise – pronome oblíquo dativo / verbo (dizerei)
 mesóclise – pronome oblíquo acusativo / verbo (dizerei)
(CSM 84)
Os exemplos listados acima, além do caráter flexional depois da cliticização, também podem
nos sugerir o argumento, já mencionado neste trabalho, de idiossincrasias fonológicas, pois
temos casos de vogais ou consoantes, sujeitas ao processo de redução e de sândi. Isso somente
corrobora nossa argumentação a favor da consideração do grupo clítico na escala prosódica,
comprovando se status morfossintático de palavra dependente e não de um mero afixo.
Além disso, os exemplos (16) e (17) ainda podem exemplificar um dos critérios propostos por
Zwicky e Pullum (1983, p. 503 -504). Nesses exemplos observamos a adjunção de dois
clíticos a um mesmo hospedeiro, confirmando o que eles propuseram sobre o critério de que
os clíticos podem se ligar a um material que já contém clíticos. Apontamos esse critério a
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partir da observação da estrutura ilustrada no exemplo (18), que mostra o mesmo verbo
contar como hospedeiro do mesmo clítico vos. Provavelmente, a essa estrutura, como
ilustrado em (16), foi adjungido o acusativo lo sem que houvesse algum prejuízo.
(18) e contar-vos-ei end' a gran maravilla.
 mesóclise - pronome oblíquo dativo / verbo (contarei)
(CSM 19)
Finalmente, listaremos o último argumento, exposto neste trabalho, sobre a nossa
consideração a respeito do status prosódico dos clíticos, trata-se dos processos de sândi.
Podemos afirmar que a adjunção dos clíticos a sua palavra hospedeira ocorre no pós-léxico,
uma vez que os pronomes clíticos estão sujeitos às regras de sândi, diferentemente dos afixos
que não estão sujeitos ao sândi, portanto, sua junção a uma base ocorre no nível lexical,
formando uma única palavra fonológica.
Segundo Amaral (2012), os pronomes clíticos presentes nas cem primeiras CSM, por serem
monossílabos tônicos, se mostraram sujeitos a três processos de sândi: elisão, ditongação e
hiato5.
Elisão:
(19) e deron-ll’ algu’; e el punnou de ss’ir (CSM 37)
(20) cruzou-ss’ e passou o mar e foi romeu a Jherusalen (CSM 22)
(21) dizendo-lle: «Venna-ch' or' acorrer (CSM 47)
(22) dizendo: «Se Deus m’ anpar (CSM 57)
(23) como x’ ante violava, │ e a candea pousou6 (CSM 38)
(24) e se t' aqueste pan non refeiro,7 (CSM 56)
(25) de cho pagar bem a um dia8 (CSM 30)
 pronome oblíquo dativo che + pronome oblíquo acusativo o
5
Os casos de ditongação e hiato foram detectados a partir da escanção das sílabas métricas. Verificar Amaral
(2012).
6
Este exemplo além de demonstrar que os pronomes clíticos estão sujeitos às regras de sândi, também mostra
um outro critério já demonstrado neste trabalho, trata-se da possibilidade de os pronomes clíticos se ligarem a
outras palavras que não o verbo do ponto de vista fonológico. Tal argumento é consolidado com submissão à
regra de sândi, uma vez que tal processo não ocorre com o pronome clítico e o verbo, mas com o pronome e uma
preposição.
7
Idem a 6. Nesse caso, a única diferente é que ao invés do processo de sândi ocorrer entre o pronome clítico e
uma preposição como em 6, ocorre entre um pronome clítico oblíquo e um pronome demonstrativo.
8
Nesse caso de elisão que ocorre entre dois pronomes oblíquos, temos a perda da vogal final do primeiro
pronome com a junção gráfica ao pronome que o sucede. Em todos os casos analisados, o primeiro pronome é
sempre oblíquo dativo, enquanto o segundo é acusativo. Nesse caso também podemos sugerir uma idiossincrasia
fonológica, confirmando a junção de um clítico, em um nível pós-lexical, a um elemento que não seja o verbo.
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(26) que por fiança llas metia9 (CSM 55)
 pronome oblíquo dativo lle + pronome oblíquo acusativo as
(27) mas defendeu-llo San Pedro, │e a Deus por el rogou10 (CSM 23)
 pronome oblíquo dativo lle + pronome oblíquo acusativo o
Ditongação:
(28) Deus tio demande, que pod’ e val (CSM 64)
(29) en dar-m’ este fill’ e logo mio toller (CSM 37)
(30) mi ás1/ que2/ co3/mês4/se5/ fe6/zis7/te8/ mal9 (CSM 62)
(31) e es1/t’ or2/gul3/ho4/ que5/ mi ás6/ mos7/tra8/do9 (CSM 63)
Hiato:
(32) de1/la2/, e3/ dis4/se5/-lle6/ que7/ a8/ a9/ma10/va11/ mui12/ de13/ co14/ra15/çon16 (CSM
5; 35)
(33) mas1/ o2/ Em3/pe4/ra5/dor6/, quan7/do8/ o9/ a10/tan11/ mal12/ pa13/ra14/do15/ vyu16,
(CSM 5; 50)
(34) que1/ qual2/quer3/ que4/ o5 /o6/y7/a │tan toste o fillava (CSM 6; 28)
De acordo com a referida autora, o processo de sândi aponta para a independência fonológica
dos clíticos, diferentemente dos afixos, uma vez que, o grupo clítico é o menor domínio de
aplicação das regras de sândi. Os estudos realizados apontam para a atonicidade fonológica
dos clíticos, o que faz com que eles estejam sujeitos aos processos de sândi, característica que
vem comprovar, novamente, a possibilidade de se considerar o grupo clítico um constituinte
prosódico, já que, assim como afirmam Nespor e Vogel (1986, p. 147), um elemento é clítico
se, junto com outra palavra, está sujeito às regras de sândi.
Diante dos casos de sândi verificados, foi possível constatar que os clíticos se mostraram
independentes prosodicamente, uma vez que os pronomes investigados se submeteram às
mesmas regras da palavra fonológica, no caso as regras de sândi. Logo, podemos afirmar que,
embora sejam fonologicamente átonos, pois se submetem a tais regras, os pronomes clíticos
analisados podem apresentar certa independência apontada pelo sândi, pois, assim como
afirmam Nespor e Vogel (1986), o grupo clítico é o menor domínio de aplicação dessas
regras.
Conclusão
9
Idem à nota 8.
Idem à nota 8.
10
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Pode-se dizer, portanto, que o presente trabalho afirma a possibilidade de se considerar o
grupo clítico um domínio prosódico dentro da escala prosódica do PA. Dessa forma,
provamos que os pronomes clíticos no PA, apesar de átonos como os afixos, apresentam
propriedade de palavra lexical, podendo ser classificados como palavra funcional átona,
designação esta sugerida por Bisol (2005). Para tal designação no PA destacamos os seguintes
critérios de diferenciação entre pronome clítico e afixos no PA: a) mobilidade dos pronomes
clíticos; b) não seletividade em relação a palavra hospedeira; c) idiossincrasia fonológica; d)
seu caráter inflexional; e) observamos, também, que, dentre as possibilidades de
prosodização, o PA escolhe aquela na qual o clítico se une diretamente ao grupo clítico, no
nível pós-lexical, em função de, assim como afirmam Nespor e Vogel (1986) e Bisol (1996),
o grupo clítico ser o menor domínio de aplicação das regras de sândi.
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