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 Retratos da civilização e do
progresso argentino nas
fotografias de El chaco
santafesino, 1887
Viviane da Silva Araujo [Doutora pelo Programa de Pós-­‐Graduação em História Social da Cultura Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] ARAUJO, V. S. Retratos da civilização e do progresso argentino nas fotografias de El chaco santafesino, 1887. Revista Anima, Ano 3, nº 4, 2013, p. 4-­‐22. Resumo Quando, em 1887, o fotógrafo Félix Corte produziu as imagens que comporiam o álbum El chaco san-­‐
tafesino, encomendado por Gabriel Carrasco, havia uma forte convicção por parte das autoridades nacionais argentinas de que o país caminhava a passos largos na direção da civilização e do pro-­‐
gresso. Dar visibilidade aos avanços da província de Santa Fe, por meio da fotografia, tinha como van-­‐
tagem em relação a outros modos de documenta-­‐
ção, a credibilidade que a sociedade em geral a atribuía, garantindo-­‐lhe valor não somente como imagem-­‐objeto, artefato criado para representar a realidade, mas como uma espécie de comprovação daquilo que apresentava em sua superfície visível. O presente artigo indaga as noções de civilização e progresso a partir da análise das fotografias veicu-­‐
ladas neste álbum, bem como o uso destas como parte das estratégias políticas e culturais de criação de uma imagem positiva da nação. Palavras-­‐chave: fotografia, província de Santa Fe, prosperidade nacional. Abstract When, in 1887, the photographer Félix Corte pro-­‐
duced the images that would compose the album El chaco santafesino, commissioned by Gabriel Car-­‐
rasco, there was a conviction of national leaders from Argentina that the country was heading towards civilization and progress. Give visibility to the advances of the province of Santa Fe, through photography, had the advantage over other modes of documentation, the credibility that society in general attributed to it, ensuring its value not only for its image-­‐object condition, as an artifact creat-­‐
ed to represent reality, but as a kind of proof of what presented in its visible surface. This paper inquires the notions of civilization and progress from the analysis of the photographs provided on that album, as well as the use of these as part of the cultural and political strategies for creating a positive image of the nation. Keywords: photography, province of Santa Fe, national prosperit. 4 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura Gabriel Carrasco, comissário geral responsável pela realização do primeiro censo de Santa Fe, em 1887, visitou distintas regiões da província a fim de instalar as comissões locais encarregadas do recenseamento da população. Para acompanhá-­‐lo em sua viagem ao norte da província, na região do chaco, entre março e abril daquele ano, Carrasco contratou Félix Corte, um importante fotógrafo profissional de Rosario, que registrou os povoados, as colô-­‐
nias agrícolas, os engenhos, os avanços dos meios de transportes e comunicação na região durante a viagem. Entre as fotografias produzidas naquela ocasião, vinte e sete foram sele-­‐
cionadas para constituir o álbum intitulado El chaco santafesino, editado em Buenos Aires pelos irmãos Samuel e Arturo Boote, responsáveis pela edição de diversos álbuns de vistas e costumes durante o último quartel do século XIX. A confecção do álbum tinha o objetivo de dar visibilidade aos progressos alcançados por Santa Fe, em particular, e pela República Ar-­‐
gentina, em geral. Para elites intelectuais e políticas argentinas que ficaram conhecidas como a Genera-­‐
ción del Ochenta, aquele era um momento decisivo para a consolidação nacional, quando se passava efetivamente a cumprir as metas estabelecidas nas últimas décadas. Entre elas, o programa imigratório, a delimitação das fronteiras nacionais através da conquista militar de territórios antes dominados por povos indígenas e a consolidação do seu papel exportador de produtos agropecuários. Se, por volta de meados do século XIX, o país não dispunha nem de capitais, nem de mão-­‐de-­‐obra suficiente para produzir bens em escala internacional e a inserção do país no mercado capitalista mundial era frágil, a partir de 1880 se efetivava o seu caráter agroexportador. E, após a vitória do governo central sobre a última rebelião pro-­‐
vincial, pôs-­‐se fim ao longo processo de guerras civis e disputas entre Buenos Aires e as de-­‐
mais províncias, que marcaram grande parte do século XIX, consolidando-­‐se enfim, um go-­‐
verno central que veio a oferecer a ordem política necessária para garantir a segurança jurí-­‐
dica, a propriedade privada e o livre movimento de capitais, com os quais vieram os investi-­‐
mentos estrangeiros e os imigrantes (ROCCHI, 2010: p. 19-­‐21). Gabriel Carrasco (1854-­‐1908) nasceu na cidade de Rosario, onde passou quase toda a sua vida, tendo realizado na cidade natal os seus estudos. Exerceu a advocacia, o periodismo e realizou pesquisas estatísticas, geográficas e históricas, especialmente sobre a província de Santa Fe. Em 1890, foi designado prefeito de Rosario, cargo que exerceu até 1891. De 1892 a Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 5 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura 1893, foi ministro provincial de Agricultura, Justiça e Instrução Pública e, neste último ano, também ocupou o cargo de ministro de Fazenda e Obras Públicas de Santa Fe. Como outros expoentes da Generación del Ochenta, Carrasco defendia a ideia de que a civilização se insta-­‐
laria na República Argentina através da entrada massiva de imigrantes, da expansão do co-­‐
mércio e da integração territorial. De acordo com Santiago Sánchez (2008), Carrasco teria estabelecido o ano de 1852, com a queda de Rosas e a abertura da navegação fluvial, como um marco divisório na história da província de Santa Fe. O povoamento, a agricultura, a in-­‐
dústria seriam os sinais da vocação da província, que apenas dependia da liberdade de co-­‐
mércio e navegação para se apresentar em todo o seu esplendor. De acordo com as palavras entusiasmadas do próprio Gabriel Carrasco, o porto provincial, ao final do século XIX, multi-­‐
plicava suas atividades de modo mais acelerado até mesmo do que o porto de Buenos Aires: “hoje, de acordo com os dados que deixamos registrados, conclui-­‐se que o porto de Rosario em apenas trinta anos multiplicou a capacidade de seus navios com o dobro da rapidez do grande porto argentino1” (CARRASCO, 1895: p. 270). A opção pelo norte da província de Santa Fe para a produção do álbum não foi uma escolha feita ao acaso. Dominada, na prática, por populações indígenas, a região do chaco havia se tornado efetivamente parte do território nacional muito recentemente, a partir da chamada Conquista do Deserto, campanha militar empreendida entre 1878 e 1885, a fim de subjugar as populações indígenas, especialmente na patagônia e no chaco, que apresenta-­‐
vam entraves para a consolidação do território nacional argentino. Em 1887, o norte da pro-­‐
víncia era ainda sua área menos povoada, onde as colônias agrícolas e a infra-­‐estrutura de comunicação e transporte eram recentes e incipientes. Ali, contudo, poder-­‐se-­‐ia acompa-­‐
nhar a trajetória do progresso, seu nascimento numa região até então inóspita, ao apresen-­‐
tar os elementos que garantiriam a construção da civilização futura. Desde a invenção da fotografia, o desenvolvimento das atividades fotográficas numa determinada cidade ou região sempre esteve ligado ao desenvolvimento econômico e social alcançados nestes locais. A onda imigratória experimentada pelas principais cidades da pro-­‐
1
Tradução da autora para a passagem “Hoy, según los datos que dejamos consignados, resulta que el puerto de Rosario en sólo treinta años ha multiplicado el tonelaje de sus busques con una rapidez doble que la del gran puerto argentino!” (CARRASCO, 1895: p. 270). Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 6 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura víncia de Santa Fe, a partir da década de 1880, como Rosario, Santa Fe e Esperanza, assim como a proliferação de colônias agrícolas, agora integradas às cidades por meio de linhas férreas, foi, segundo Luis Priamo (2012), o que motivou o aumento do número de fotógrafos profissionais instalados na região, bem como o uso cada vez mais frequente da fotografia como apreensão desse mesmo desenvolvimento. Desse modo, não apenas os estabeleci-­‐
mentos dedicados à produção de retratos se caracterizavam como atividades rentáveis para os fotógrafos, como também as competições por prêmios e medalhas em exposições indus-­‐
triais e agrícolas, a produção de vistas e costumes para comercialização, bem como a incum-­‐
bência de registrar obras públicas, expedições científicas e empreendimentos privados que se tornavam, cada vez mais, parte das demandas para a produção fotográfica. A ferrovia Santa Fe e a División Rosario de la Dirección Nacional de Vías Navegables, que fazia parte do Ministerio de Obras Públicas de la Nación, por exemplo, chegaram a criar departamentos fotográficos fixos, responsáveis pela documentação de suas realizações. A contratação de fotógrafos profissionais com a finalidade de fazer registrar empreen-­‐
dimentos públicos ou privados foi uma prática muito frequente desde a segunda metade do século XIX. Ao acompanhar engenheiros, cientistas e políticos, os fotógrafos atenderam à demanda de que tais iniciativas fossem documentadas, a partir de um meio capaz de pro-­‐
mover seu registro e divulgação da maneira considerada, então, a mais irrefutável de que se dispunha. As fotografias encomendadas por comissões de expedição ao interior do território nacional em países de grandes dimensões como a Argentina, os Estados Unidos e o Brasil foram bastante comuns no século XIX e o registro da expansão dos meios de comunicação entre as regiões e dos progressos obtidos nessas áreas foram temas de diversas fotografias2. Estas deveriam registrar e publicizar as imagens da nação, tornando as marcas do progresso e da civilização visíveis para as demais regiões. O uso da fotografia oferecia como vantagem 2
Embora a realização de retratos fosse o principal ramo de atividade para os fotógrafos profissionais, muitos fotógrafos dividiram seu tempo entre os estúdios de retratos, as paisagens naturais e urbanas e a incumbência de documentar a construção de portos, estradas, ferrovias, pontes e demais obras de infra-­‐estrutura, bem como o registro de exposições rurais e industriais, e acompanhar expedições militares e científicas a territórios ainda pouco explorados. São muitos os exemplos de fotógrafos comissionados para o registro desses tipos de empreendimento na Argentina, pode-­‐se citar, entre outros, o italiano Antonio Pozzo, que em 1879 acompa-­‐
nhou expedições militares da Campanha do Deserto; o português Christiano Junior, que foi fotógrafo da Socie-­‐
dad Rural Argentina na mesma década; o suíço Emilio Halitzky, que registrou as obras realizadas em Buenos Aires pelo prefeito Torcuato de Alvear em 1885; o alemão Augusto Lutsch, que em 1887 fotografou a Feria e Exposición Industrial de Santa Fe por encomenda do governador da província, José Gálvez. Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 7 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura em relação a outros modos de documentação, o valor de autenticidade a que a sociedade em geral a atribuía, o que lhe garantia uma qualificação não somente como imagem-­‐objeto, como um artefato tridimensional criado para representar a realidade, mas como uma espé-­‐
cie de comprovação incontestável daquilo que apresentava em sua superfície visível. A en-­‐
comenda de fotografias de cunho oficial estava profundamente relacionada a esta crença depositada na fotografia como registro fiel de uma dada realidade. No caso aqui analisado, a realidade que deveria ser registrada e publicizada eram os progressos, não apenas materiais, como também morais, da província de Santa Fe. Conheci-­‐
da como a pampa gringa, a província era avaliada como uma espécie de ponto avançado da civilização que tanto se almejava para todo o interior do país. Por isso, para compor o álbum El chaco santafesino, foram priorizadas as imagens do progresso, apresentando igrejas, vias férreas, pontes, máquinas agrícolas, engenhos, trens e embarcações, que representavam o ingresso da civilização e do progresso numa região considerada até então selvagem, especi-­‐
almente a área do chaco, vista como parte do vasto território definido a partir de constru-­‐
ções intelectuais e políticas oitocentistas como o “deserto argentino”. A ferrovia e a natureza selvagem A cena retratada na fotografia a seguir (Figura 1) traz como tema central uma locomo-­‐
tiva que percorre uma linha férrea que atravessa uma vegetação relativamente densa. Pode-­‐
se dizer que o trem é o centro desta fotografia não apenas pelo fato dele ocupar a porção média central da imagem, estendendo-­‐se, em primeiro plano, ao longo de sua horizontali-­‐
dade, mas especialmente por ser ele o ponto através do qual todos os outros objetos da composição se relacionam. Ao funcionar como um centro de equilíbrio (ARNHEIM, 2001: p. 284), todos os outros elementos, de algum modo, recebem a influência e influenciam a lo-­‐
comotiva: os trilhos estão abaixo e são as bases por onde ela desliza; a vegetação a circunda, preenchendo as margens do retângulo, como um tipo de moldura que realça o lugar de sua preponderância no conjunto da imagem. Do mesmo modo, as pessoas retratadas estão so-­‐
bre o trem, embora não metaforicamente acima dele, mas diretamente ligadas ao veículo, no sentido de que sem ele, estas pessoas que aparecem ali, sentadas ou em pé, estariam suspensas no espaço e, portanto, dependem do trem para ter um lugar naquela cena; de Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 8 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura modo que, se elas nem tivessem sido retratadas, o conteúdo principal da fotografia perma-­‐
neceria bastante semelhante: o trem que se locomove numa ferrovia em meio ao chaco san-­‐
tafesino. Figura 1 – “O trem em uma picada aberta na selva” Félix Corte, Santa Fe, Argentina, 1887 – Biblioteca Nacional de la República Argentina Através da análise dos conteúdos propriamente visuais de uma fotografia, como o en-­‐
quadramento, o formato e a dinâmica entre os elementos dispostos na imagem; bem como das cores, do foco, do tamanho e do tipo de veículo escolhido para a exibição da imagem, pode-­‐se dialogar com a sociedade que produziu a fotografia. Afinal, sendo o ato de fotogra-­‐
far uma ação intencional de registrar alguma coisa em meio de um universo de possibilida-­‐
des, observar o que foi fotografado e como foi fotografado permite analisar possíveis rela-­‐
ções entre a imagem e a sociedade tanto num campo propriamente estético, a partir do conteúdo da fotografia, quanto num campo social, ligado ao jogo político e cultural daqueles que produziram a fotografia. Portanto, é preciso observar os elementos que estão visíveis na imagem apresentada, Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 9 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura como também os elementos que lhe são externos, mas que influenciaram tanto a sua pro-­‐
dução quanto a sua recepção. Roland Barthes (1990) adverte que os códigos de conotação em uma fotografia são culturais e, portanto, históricos, e são eles que retiram a fotografia de sua objetividade primeira e permitem tanto que se descreva e interprete uma fotografia, quanto que se utilize dela para a comunicação de significados conotados. Seu exemplo da relação entre pose e cultura elucida tal proposição: Uma fotografia jornalística foi amplamente difundida por ocasião das últimas elei-­‐
ções americanas: o busto do Presidente Kennedy, visto de perfil, olhos voltados pa-­‐
ra o céu, mãos postas. É a própria pose de modelo que sugere a leitura dos signifi-­‐
cados de conotação: juventude, espiritualidade, pureza; a fotografia, evidentemen-­‐
te, só é significante porque nela existe um conteúdo de atitudes estereotipadas que constituem elementos cristalizados de significação (olhos voltados para o céu, mãos postas); uma “gramática histórica” da conotação iconográfica deveria, pois, procurar seu material na pintura, no teatro, nas associações de idéias, nas metáfo-­‐
ras usuais, etc., isto é, precisamente na “cultura” (BARTHES, 1990: p. 16-­‐17). Neste exemplo apresentado por Barthes, o retrato de Kennedy, utilizado com fins de publicidade eleitoral, buscaria chamar a atenção dos observadores para a juventude, a espi-­‐
ritualidade e a pureza do modelo, através de significados culturais associados à sua pose. Também no caso da fotografia da ferrovia santafesina, uma série de noções históricas e cul-­‐
turais compartilhadas, pelo menos por aquelas elites políticas e intelectuais, permitiam que a imagem de um trem em meio à vegetação pudesse ser lida como uma imagem do progres-­‐
so. Na cena retratada, a locomotiva a vapor ocupa o lugar central e a natureza ocupa as margens da composição visual, e o fotógrafo não fez essa opção por acaso. Para a realização da fotografia da locomotiva que cruza o chaco santafesino, encomendada a Félix Corte por Gabriel Carrasco, havia um interesse deliberado de registrar a prosperidade econômica de Santa Fe, e a centralidade da ferrovia enquanto meio de comunicação, de encurtamento de distâncias e de avanço das relações comerciais, poderia passar esta ideia. A máquina, cons-­‐
truto próprio de uma modernidade industrial, do progresso material produzido pelo homem civilizado, ocidental, é preponderante em relação à natureza: o trem “rasga” a selva. Desse modo, podem-­‐se estabelecer conexões entre o que a imagem apresenta e o que ela representa sobre a sociedade que a produziu e para a qual foi produzida. Para tanto, im-­‐
porta observar o jogo entre centro e periferia na composição visual, bem como as expectati-­‐
vas e associações ligadas aos elementos que a cena apresenta. A ferrovia, por exemplo, era Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 10 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura vista como um dos maiores símbolos da civilização e do progresso alcançados pela República Argentina na segunda metade do século XIX. Juan Bautista Alberdi havia defendido, em 1852, em seu Bases y Puntos de Partida para la Organización Política de la República Argen-­‐
tina, que a importância do desenvolvimento das ferrovias ultrapassava a importância de facilitar as redes de comércio e poderia ser entendido como um vetor para a unidade políti-­‐
ca, ao facilitar a comunicação entre as distintas províncias, representando uma vitória contra a natureza selvagem e as distâncias desagregadoras, dificuldades que já na década de 1880 pareciam ser superadas de modo cada vez mais acelerado e notório. Sem a ferrovia não haverá unidade política em países onde a distância torna im-­‐
possível a ação do poder central. Querem que o governo, que os legisladores, que os tribunais da capital litoral legislem e julguem os assuntos das províncias de San Juna e Mendoza, por exemplo? Tragam o litoral até estas regiões pela ferrovia, ou vice-­‐versa; coloquem esses extremos a três dias de distância, pelo menos. Mas ter a metrópole ou capital a 20 dias é pouco menos do que tê-­‐la na Espanha, como quando regia o sistema antigo, que destruímos por esse absurdo especialmente. Assim, pois, a unidade política deve começar pela unidade territorial, e só a ferro-­‐
via pode fazer de dois territórios separados por quinhentas léguas um território 3
único (ALBERDI, 1998: p. 98) . Em relação às fotografias do álbum El chaco santafesino, além do ideário político de progresso, que pode ser tomado como elemento externo que auxilia a compreensão da es-­‐
colha de determinados conteúdos para a composição das imagens, temos ainda um impor-­‐
tante elemento discursivo de conotação: todas as fotografias receberam legendas, pequenos textos que explicam o que estava sendo apresentado, onde e quando, em descrições que eram ao mesmo tempo interpretações das imagens. As legendas colocadas abaixo de todas as fotografias do álbum identificam, primeiramente, que se trata da República Argentina, depois, da província de Santa Fe e, em seguida, da região do Chaco Austral. Logo a seguir, a explicação de que se trata da “viagem do Comissário do Censo Dr. Gabriel Carrasco, para instalar as comissões censitárias, fazer bservações e levantar dados para a obra do Censo em 3
Tradução da autora para a passagem: “Sin el ferrocarril no tendréis unidad política en países donde la distancia hace imposible la acción del poder central. ¿Queréis que el gobierno, que los legisladores, que los tribunales de la capital litoral, legislen y juzguen los asuntos de las provincias de San Juan y Mendoza, por ejemplo? Traed el litoral hasta esos parajes por el ferrocarril, o viceversa; colocad esos extremos a tres días de distancia, por lo menos. Pero tener la metrópoli o capital a 20 días, es poco menos que tenerla en España, como cuando regía el sistema antiguo, que destruimos por ese absurdo especialmente. Así, pues, la unidad política debe empezar por la unidad territorial, y sólo el ferrocarril puede hacer de dos parajes separados por quinientas leguas un paraje único” (ALBERDI, 1998: p. 98). Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 11 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura março e abril de 1887”4. Todas as legendas do álbum se iniciam com essa descrição geral e abaixo dela aparecem os comentários próprios a cada imagem e o seu número de sequência no álbum. Abaixo, à direita, e em letras menores se encontra o nome do autor das fotografi-­‐
as: “vistas tomadas por el Fotógrafo Sr. don F. Corte”. Beneficiando-­‐se da crença existente no caráter de veracidade das fotografias, o texto-­‐
legenda fortalece o significado da imagem, sem parecer traí-­‐la. Numa legenda, “o texto é uma mensagem parasita, destinada a conotar a imagem, isto é, ‘insuflar-­‐lhe’ um ou vários significados segundos” (BARTHES, 1990: p. 20). Com o papel de orientar a leitura da imagem fotográfica, que, dependendo de cada observador, poderia transmitir ideias diferentes da-­‐
quilo que o autor do álbum pretendia, o texto racionaliza a fotografia, fazendo com que o leitor busque o sentido da imagem não apenas nela mesma, como também nas palavras escritas que a acompanha. A respeito da fotografia apresentada acima (Figura 1), o texto específico para aquela imagem expõe: “Colônia Ocampo. O trem em uma picada aberta na selva, no trajeto do po-­‐
voado à madeireira”5. A legenda garante que não reste dúvida de que se trata de uma ima-­‐
gem que exibe o trem adentrando a selva. O trem e a selva funcionam aí como elementos opostos e complementares. Observando o conjunto composto pela imagem e pelo texto-­‐
legenda, o significado desta fotografia se torna claro para os propósitos daquele álbum: tra-­‐
ta-­‐se de demonstrar o estágio de civilização que a província de Santa Fe alcançava então, de narrar suas vitórias em lugares longínquos, de exibir e celebrar sua prosperidade. O elemento ferrovia aparece ainda em outra fotografia de El chaco santafesino. Tal como na fotografia do trem em meio à selva, a imagem do trem parado na estação ferroviá-­‐
ria (Figura 2), também recebe a identificação “Colonia Ocampo”, em referência ao povoado onde foi realizada a tomada. Em seguida, a legenda descreve: “Vista da estação ferroviária. À direita os depósitos e oficinas, à esquerda e ao fundo o forno do engenho e manufaturas”6. 4
Tradução da autora para a passagem “viaje del Comissario general del Censo Dr. Gabriel Carrasco, para insta-­‐
lar las Comisiones censales, hacer observaciones y tomar datos para la obra del Censo en Marzo y Abril de 1887.” 5
Tradução da autora para a passagem “Colonia Ocampo. El tren en una picada abierta en la selva, en el trayecto del pueblo al aserradero”. 6
Tradução da autora para a passagem “Vista de la estación de ferrocarril. A la derecha los depósitos y maestranzas, a la izquierda y el fondo la chimenea del ingenio y los talleres”. Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 12 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura Mas, dessa vez, não parece haver, nem na imagem, nem no texto que a acompanha, uma hierarquia entre os elementos em jogo: o trem, os depósitos e as oficinas ao fundo ocupam todos a mesma linha horizontal sobre a qual aparecem dispostos. E, num espaço de vegeta-­‐
ção escassa, esses elementos indicadores do progresso alcançado pela província são apre-­‐
sentados em equilíbrio. Figura 2 – “Vista da estação ferroviária” Félix Corte, Santa Fe, Argentina, 1887 – Biblioteca Nacional de la República Argentina O lugar da locomotiva e a sua relação com o conteúdo geral da imagem são apresen-­‐
tados, portanto, de modo distinto da fotografia do trem em meio à selva, analisada anteri-­‐
ormente. Nesta segunda fotografia, o trem não tem primazia sobre os outros elementos. O veículo já não é o centro de equilíbrio da imagem, e sim um dos vários componentes que formam a cena de uma região em crescimento – observe que há um edifício à esquerda em obras. Além disso, o trem já não ocupa a área central do retângulo e seu tamanho é bem proporcional ao das oficinas e depósitos registrados na imagem. As pessoas que posam dian-­‐
Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 13 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura te da locomotiva também já não estão presas a ela, mas dispondo dela, e parecem poder locomover-­‐se livremente por aquele amplo espaço horizontal. O carregamento do comboio sugere a ideia de reciprocidade, pois, para que haja o transporte das mercadorias é preciso o trem e, para que o trem seja importante, é preciso dar-­‐lhe uma função. Data de 1866 o início da construção da primeira linha férrea provincial de Santa Fe, que ligava Rosario a Córdoba, obra que foi concluída em 1870. De acordo com Ezequiel Gallo, esta ferrovia não tinha de início o propósito de servir às colônias agrícolas da região, e sim ao comércio direto da cidade de Rosario e as províncias do interior, e foi apenas a partir do grande desenvolvimento rural dos anos de 1880 que as ferrovias intraprovinciais foram de fato ampliadas, o que também influenciou a fundação de novas colônias (GALLO, 1983: p. 232-­‐234). Em 1880, o South American Journal de Londres publicava esta nota a respeito das novas colônias agrícolas na Argentina: As vilas e jardins dos colonos, suas igrejas e escolas, suas hospedagens e cafés, agrupando-­‐se em ambos os lados da ferrovia, o gado... vagando pelos campos, são testemunhas da iniciativa e prosperidade desses estrangeiros, entre os quais se in-­‐
troduzem rapidamente os melhores implementos e maquinário. Porém, mais além das margens de ambos os lados da ferrovia... toda a planície... é ainda totalmente 7
uma paisagem selvagem não reclamada (Apud GALLO, 1983: p. 61). Esta passagem aponta o estabelecimento das colônias agrícolas, com suas vilas, igrejas, escolas, hospedarias e cafés, a ferrovia, a iniciativa dos imigrantes e a introdução de máqui-­‐
nas como os atores da prosperidade no campo. El chaco santafesino segue uma linha de raciocínio bem semelhante. O álbum não foi produzido apenas para apresentar as vistas e costumes de um lugar e de uma época. Analisando-­‐o como parte constitutiva de um deter-­‐
minado discurso de civilização e progresso, é possível afirmar que ele construiu, através das imagens fotográficas e dos textos a elas relacionados, conjuntos de associações que se pre-­‐
tendiam política e simbolicamente relevantes para aquela sociedade. As colônias agrícolas, os caminhos e os limites da civilização Embora exista a possibilidade de observar suas páginas sem necessariamente obede-­‐
7
Tradução da autora para a passagem “Las villas y jardines de los colonos, sus Iglesias y escuelas, sus hosterías y cafés, por todos lados agrupándose a ambos lados del ferrocarril, el ganado... vagando en los campos, son testigos de la iniciativa y prosperidad de estos extranjeros, entre los cuales se introducen rápidamente los mejores implementos y maquinarias. Pero más allá de la franja a ambos lados del ferrocarril... toda la llanura... es enteramente todavía um paisaje selvaje sin reclamar” (Apud GALLO, 1983: p. 61). Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 14 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura cer à ordem que ele sugere, um álbum fotográfico tem o formato de um livro, cujas páginas, postas em sequência, sugerem ao leitor a direção a tomar. Ao editar El chaco santafesino, o autor da encomenda objetivou que as imagens fossem dispostas de modo a explicitar um argumento. Neste, o caminho percorrido foi geográfico: inicia na porção meridional do cha-­‐
co, mais próxima a Rosario, e segue cada vez mais para o norte. Como se tratavam de ima-­‐
gens ligadas à elaboração de um censo, a opção por um itinerário geográfico, que corres-­‐
pondia igualmente ao percurso do maior para o menor grau de desenvolvimento agrícola e industrial da província, era pertinente. Desse modo, o álbum percorre o caminho das colônias agrícolas instaladas na região, criando pequenas séries fotográficas de cada uma delas. Das vinte e sete fotografias que compõem o álbum, vinte e uma fazem referência às colônias de imigrantes localizadas no norte da província. Há seis fotografias que começam com a legenda: “Colonia Florencia”, e dez com “Colonia Ocampo”, as duas mais citadas no álbum. Somente no ano de 1887, quan-­‐
do Carrasco coordenou a realização do referido censo provincial, houve a fundação de vinte e quatro novas colônias agrícolas na província (GALLO, 1983: p. 77). A respeito da importân-­‐
cia do estabelecimento das colônias agrícolas para a civilização da província de Santa Fe, o próprio Gabriel Carrasco escreveu que “o desenvolvimento da agricultura em Santa Fe se-­‐
guiu paralelamente ao de sua colonização” e, portanto, cada “cada colônia era um foco que o expandia ao seu redor. Dela irradiava, como o sol – iluminando: a civilização, também é luz!”8 (CARRASCO, 1895: p. 131) O desenvolvimento das zonas rurais, tal como das áreas urbanas, faziam parte do pro-­‐
jeto de inserção do país no processo histórico ocidental e capitalista, aglutinando os grupos dirigentes e as burguesias locais em torno de uma noção otimista em relação à capacidade transformadora daquilo que se definia como progresso. Defensora do avanço material, da superioridade da raça branca e da infalibilidade da ciência, essa nova ideia de progresso dei-­‐
xava de significar a conquista progressiva da racionalidade, tal como pensada durante o sé-­‐
culo XVIII, para se tornar a contínua conquista da natureza a fim de colocá-­‐la a serviço do 8
Tradução da autora para a passagem “el desarrollo de la agricultura en Santa Fe, ha seguido paralelamente al de su colonización” e, portanto, cada “colonia era un foco que lo expandía en su alrededor. De allí irradiaba, como el sol – alumbrando: la civilización, también es luz!” (CARRASCO, 1895: p. 131). Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 15 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura homem, da produção de bens, da produção de riquezas, da produção de bem-­‐estar, direcio-­‐
nando-­‐se, sobretudo, para o desenvolvimento material. As marcas do avanço material são elementos perseguidos ao longo do álbum, com destaque para a fotografia do interior de um engenho açucareiro (Figura 3) que, diferentemente da maioria das fotografias do álbum, não retratou nenhuma pessoa no conjunto da cena, compondo uma imagem na qual as má-­‐
quinas pareciam quase prescindir do homem. Figura 3 – “Vista do interior do engenho açucareiro Manolo” Félix Corte, Santa Fe, Argentina, 1887 – Biblioteca Nacional de la República Argentina Na maior parte das imagens que registram atividades praticadas nas colônias agrícolas, contudo, havia a presença dos colonos. E não apenas ligados ao trabalho ou a elementos do progresso material, como também no registro das virtudes morais da população que ali se instalava. Nesse sentido, um tema que aparece de modo recorrente no álbum, registrado nas várias colônias visitadas naquela ocasião, foi o tema da religião. A igreja do povoado da Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 16 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura Reconquista (Figura 4), por exemplo, foi retratada por Félix Corte num domingo, dia 20 de março de 1887, repleta de pessoas posando à sua frente. Tratam-­‐se, segundo a legenda, de grupos de alunos das escolas de meninos e de meninas e de guardas: “Igreja da colônia Re-­‐
conquista, na praça principal, domada domingo 20 de março de 1887 – vê-­‐se a frente os alu-­‐
nos das escolas de meninos e de meninas e o corpo policial”9. Com exceção dos três homens que aparecem em primeiro plano, entre eles, o próprio Gabriel Carrasco, e dos guardas atrás, à esquerda, que, por causa dos seus uniformes, são reconhecidos mais facilmente, as outras pessoas retratadas parecem um conjunto coeso de colonos. Dispostas desse modo, as pessoas parecem unidas, e identificadas à prática religiosa. Figura 4 – “Igreja da colônia Reconquista” Félix Corte, Santa Fe, Argentina, 1887 – Biblioteca Nacional de la República Argentina 9
Tradução da autora para a passagem “Iglesia del pueblo Reconquista, en la plaza principal, tomada el domingo 20 de marzo de 1887 -­‐ se ven al frente los alumnos de las escuelas de varones y de niñas y el piquete de Gendarmería”. Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 17 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura A composição da cena é bastante ordenada: de pé, homens, mulheres, meninos e me-­‐
ninas posam alinhados, lado a lado, de frente para a câmera fotográfica, como era costumei-­‐
ro nos retratos de grupos do século XIX, tais como os das famílias abastadas com os seus empregados, dos trabalhadores fabris, de soldados, entre outros. O gesto da pose retirou essas pessoas do seu movimento habitual, caracterizando o ato de posar para a fotografia, ele próprio, um evento. A consciência de que uma fotografia estava sendo produzida naque-­‐
le momento levava os retratados a posar, sob a orientação do fotógrafo que dirige a compo-­‐
sição, recomendando que as pessoas se colocassem desta ou daquela maneira. Dispostas com a rigidez desse tipo de pose, as pessoas parecem ordenadas e disciplinadas. A fotografia as uniformiza e, com a igreja disposta ao fundo, tal disciplina parece ainda mais solene. A igreja, ou melhor, a religião cristã, era vista como um vetor de civilização desde pelo menos os escritos do marquês de Mirabeau, em 1756, quando a noção moderna não jurídica do próprio termo “civilização” teria aparecido pela primeira vez (BENVENISTE, 1974. STARO-­‐
BINSKI, p. 2001). Para Mirabeau, com grande razão os Ministros da Religião têm o primeiro nível hierárquico numa sociedade bem ordenada. A Religião é seguramente o primeiro e mais útil freio da humanidade; é a primeira mola da civilização; anuncia-­‐nos e recorda sem cessar a 10
confraternidade, adoça nosso coração, etc . (Apud BENVENISTE, 1974: p. 211). O tipo de composição adotada na fotografia da igreja de Reconquista parece corrobo-­‐
rar com essa relação entre religião e civilização apresentada por Mirabeau. As ideias de soci-­‐
edade bem ordenada e de confraternidade aparecem no texto como correlatas à ideia de civilização, no sentido de abrandamento dos costumes e de desenvolvimento da polidez. Na fotografia, a proximidade entre as pessoas, os trajes domingueiros e a disciplina da pose também apresentam o grupo como pessoas de bons modos, civilizadas, polidas, com a igreja agregando-­‐as. Tais observações demonstram também que a ideia de civilização apresentada em El Chaco Santafesino não se limitou à expressão dos progressos materiais, e que era car-­‐
regada de sentidos tais como o “abrandamento de costumes, educação dos espíritos, desen-­‐
volvimento da polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento do comércio e da indús-­‐
tria, aquisição das comodidades materiais e do luxo” (STAROBINSKI, 2001: p. 14). 10
Tradução da autora para a passagem “con harta razón los Ministros de la Religión tienen el primer rango en una sociedad bien ordenada. La Religión es sin contradicción el primero y más útil freno de la humanidad; es el primer resorte de la civilización; nos predica y recuerda sin cesar la confraternidad, dulcifica nuestro corazón, etc.” (Apud BENVENISTE, 1974: p. 211). Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 18 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura O limite da civilização é apresentado, não por acaso, na última fotografia do álbum, cu-­‐
ja legenda explicita que aquele seria o último local de população civilizada naquela parte da província: “Colônia Florencia. Vista do forte General Lavalle a três léguas a oeste de Florên-­‐
cia, último ponto avançado nesta parte do chaco com população civilizada. Dentro da pali-­‐
çada do forte existem seis ranchos, nos quais vive a guarnição de 20 homens”11. Segundo tal descrição, a civilização teria chegado somente até aquele ponto do território de Santa Fe e, além daquele limite, poder-­‐se-­‐ia imaginar que estariam as populações indígenas, as terras incultas, o deserto. “Civilização”, afirma Starobinski, “faz parte da família de conceitos a par-­‐
tir dos quais um oposto pode ser nomeado, ou que começam a existir, eles próprios, a fim de se constituir como opostos” (2001: p. 20). A ideia de civilização, portanto, adquire pleno sentido quando pressupõe a noção de barbárie, que lhe complementa, por oposição, o signi-­‐
ficado. Isso porque, ao denominar civilização o processo fundamental da história e ao desig-­‐
nar com esse mesmo conceito o resultado final desse processo, cria-­‐se um termo que con-­‐
trasta com uma condição supostamente anterior. A ideia de civilização aponta para o futuro e, antiteticamente, lança para o passado as noções de selvageria e barbárie. E, mesmo que elementos das duas realidades vistas como opostas coexistissem numa mesma época, a as-­‐
piração era que tal anacronismo chegasse ao fim. O binômio civilização/barbárie, tema de Facundo, obra clássica de Domingo Faustino Sarmiento, de 1845, tornou-­‐se uma importante chave para a interpretação sócio-­‐cultural e para proposições políticas na Argentina ao longo do século XIX.12 Embora representassem, segundo o ideário intelectual e político argentino oitocentis-­‐
ta, parte do horizonte que estaria para além da fronteira da civilização, os indígenas retrata-­‐
dos por Félix Corte não foram apresentados nesta última página de El chaco santafesino. Como o fio condutor do álbum foi geográfico, os únicos índios registrados pelo álbum apare-­‐
ceram algumas páginas antes, num registro feito em San Antonio de Obligado (Figura 5). 11
Tradução da autora para a passagem “Colonia Florencia. Vista del fortín General Lavalle a tres leguas al oeste de Florencia, último punto avanzado en esta parte del chaco con población civilizada. Dentro de la empalizada del fortín hay seis ranchos, en los que vive la guarnición de 20 hombres.” 12
Para Maristella Svampa, a dicotomia “civilização e barbárie” não caracterizou apenas a história cultural e política argentina do século XIX, mas marcou a tradição política do país para muito além daquele período, tor-­‐
nando-­‐se uma espécie de imagem fundacional do imaginário liberal. Ver: SVAMPA, Maristella. “Civilización o Barbarie: de ‘dispositivo de legitimación’ a ‘gran relato’”. Disponível em: http://www.maristellasvampa.net/archivos/ensayo48.pdf. Acesso em 16 de novembro de 2013. Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 19 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura Nesta, um grupo de índios tobas foi retratado com as pessoas sentadas no chão, sob tendas que erguiam para abrigar-­‐se, enquanto olhavam para o fotógrafo, e a legenda indica: “A chusma do acampamento de índios tobas reduzidos da tribo do Cacique Juan Chará. O grupo que está a frente são índias tatuadas com pintura azul no rosto”13. A imagem mostra o regis-­‐
tro da “chusma” daquela tribo, palavra utilizada para designar um grupo não guerreiro, ge-­‐
ralmente formado por mulheres e crianças. Estas pessoas aparecem na fotografia posando sentadas, e são descritas pelo texto-­‐legenda com curiosidade em relação ao costume das mulheres de tatuar-­‐se e pintar o rosto de azul, apresentadas desse modo, tais pessoas pare-­‐
cem mais pitorescas do que perigosas. Ali, suas imagens não correspondem à antiga fama dos índios tobas como grandes obstáculos às pretensões nacionais na região chaquenha. Para além da campanha militar, a civilização e o progresso domesticavam então estes índios através da imagem fotográfica14, ela própria parte dos avanços e discursos científicos mo-­‐
dernos. E, se estes indígenas não faziam parte da Civilização almejada para a província de Santa Fe, em particular, nem para a República Argentina, em geral, tampouco pareciam bar-­‐
reiras capazes de impedir seu avanço. Figura 5 – “A chusma do campamento de índios tobas” Félix Corte, Santa Fe, Argentina, 1887 – Biblioteca Nacional de la República Argentina 13
Tradução da autora para a passagem “La chusma de la toldería de indios tobas reducidos de la tribu del Caci-­‐
que Juan Chará. El grupo que está en primer término es de indias tatuadas con pintura azul en el rostro.” 14
Para uma análise da transformação da imagem do índio do selvagem temido ao personagem pitoresco ver: BEAUGÉ, Gilbert. “A fotografia na Argentina no século XIX”. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. São Pau-­‐
lo: Hucitec/Ed. Senac São Paulo, 2005. Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 20 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura A produção de um álbum fotográfico que expusesse os progressos da província de San-­‐
ta Fe, optando-­‐se especialmente pelo registro da região chaquenha, território de desenvol-­‐
vimento “civilizado” ainda incipiente, tinha como propósito dar visibilidade aos avanços da civilização e do progresso numa região até então considerada selvagem. Mais do que apenas registrar a situação presente do chaco santafesino, tais imagens eram capazes de conectar passado, presente e futuro de modo a apresentar as transformações ocorridas naquele mo-­‐
mento como se fosse um verdadeiro processo de evolução da antiga situação de barbárie para a civilização futura. Por isso, pode-­‐se concluir que a opção do comissário Gabriel Car-­‐
rasco pela produção de um álbum fotográfico que registrasse os melhoramentos na infra-­‐
estrutura de transportes, os engenhos, as manufaturas, as igrejas e o povoamento propicia-­‐
do pelo estabelecimento de colônias agrícolas de imigrantes naquela região era parte de um projeto político e de uma estratégia discursiva da qual a fotografia fazia parte. É possível afirmar que por meio do álbum El chaco santafesino, com suas imagens fotográficas docu-­‐
mentais, tidas como fiéis e indiscutíveis, construía-­‐se simbolicamente visões do progresso, demonstrando a vitória da civilização em ambientes até então associados ao deserto, à sel-­‐
vageria, em um termo, à barbárie. Revista Discente do Programa de Pós-­‐Graduação em História Social Cultura (PUC-­‐Rio) 21 ANIMA Ano III – nº4 – 2013 história, teoria & cultura Referências Bibliográficas ALBERDI, Juan Bautista. Bases y Puntos de Partida para la Organización Política de la Republica Argentina. Buenos Aires: Editorial Ciudad Argentina, 1998. ARNHEIM, Rudolf. O poder do centro: um es-­‐
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