A psicopatologia psicanalítica de Freud a Lacan

Transcrição

A psicopatologia psicanalítica de Freud a Lacan
Tania Coelho dos Santos
A psicopatologia psicanalítica de Freud a Lacan*
pulsional > revista de psicanálise >
ano XVIII, n. 184, dezembro/2005
artigos > p. 74-82
A psicopatologia psicanalítica explica o sofrimento psíquico pela inadequação do
sujeito à civilização. Freud colocava muita ênfase na coerção abusiva da sociedade
sobre a sexualidade, cujo efeito permanente é o sentimento universal de culpa,
fonte dos obstáculos à cura pela análise. Lacan, ao final do seu ensino, considera
que esse mal radical é também a fonte de uma satisfação pulsional que não serve
aos propósitos da civilização, pois o sintoma é para cada sujeito uma maneira de viver
e ser feliz.
> Palavras-chave: Psicopatologia, recalque da sexualidade, mal-estar na civilização, sintoma
e felicidade
>74
The psychoanalytical psychopathology explains psychic suffering by the unfitness of
the subject in the civilization. Freud stressed the abusive coercion of society towards
sexuality as a major cause that had the effect of the universal guilt, which is an
impediment for the analytical cure. Lacan considered that this radical evil is also the
origin of a “pulsional” satisfaction that does not serve the purpose of the
civilization, because the symptom is for each individual a way to live and be happy.
> Key words: Psychopathology, repression on sexuality, unhappiness in civilization,
sympton and happiness
A dimensão do psicopatológico, no pensamento psicanalítico, ancora-se estreitamente numa posição crítica diante dos obstáculos que a cultura coloca para a felicidade. A
psicopatologia psicanalítica não é ingênua,
e não naturaliza o sofrimento psíquico. Muito cedo, num artigo onde desponta toda a
desconfiança freudiana face à progressiva
tendência da civilização ao recalque, encontramos a tese de que o sofrimento neuróti-
*> Trabalho que resultou das discussões havidas no Grupo de Trabalho Psicopatologia e Psicanálise da
ANPEPP.
artigos
incestuosa não é a razão que impede o sujeito de usufruir do sucesso, obrigando-o a
fracassar? Não seria também esse mesmo
sentimento, a causa que impele ao crime
para obter o castigo? A necessidade inconsciente de punição tem raízes profundas na
vida psíquica tal como retrata o mito do parricídio originário. O sujeito civilizado, se levamos em conta sua dívida para com a
renúncia primordial ao incesto e à agressão,
não foi feito para ser feliz.
Não vamos percorrer toda a teorização de
Lacan acerca do tema da felicidade e do sofrimento psíquico. Penso que Lacan não foi
nada otimista no começo de sua teorização.
O sujeito () se constitui mortificado pelo
significante e, em conseqüência dessa perda de gozo no momento do seu advento, está
condenado a eternizar-se como falta-a-ser.
O gozo perdido é um obstáculo à simbolização embora não seja real. O gozo, no primeiro ensino de Lacan, é apenas uma miragem,
um resíduo imaginário do incesto. O campo
da fala e da linguagem, tal como se desenrolam na experiência analítica, contribuem
para dissolvê-lo. Somente depois do Seminário X 1962/63 (L’Angoisse), Lacan encontra
uma maneira de incluir o gozo – através da
vertente do fantasma (<>a) – na constituição do sujeito. Reconhece nessa época
que o gozo não é apenas uma dimensão ausente do simbólico, mortificada pelo significante (), mas que se articula a um
elemento positivo: o objeto a como mais-degozar. Uma terceira teorização, que convencionamos chamar de último ensino de
Lacan, vai reduzir o fantasma – que é um
misto de significante () e gozo (objeto) – a
um outro misto, a insígnia. A insígnia(S1/a)
é o matema do sujeito reduzido pela análi-
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co advém do excesso de coerções que pesam
sobre a vida sexual do homem civilizado. O
laço entre a “Moral sexual civilizada e a
doença nervosa moderna”, de que falou
Freud em 1908, generalizou-se em “O malestar na civilização” durante os anos 1929/
30. Nesse momento, ele renova toda a potência de sua crítica aos danos causados
pela civilização aos indivíduos avançando a
tese de que há um paradoxo da satisfação
pulsional, Quanto mais renunciamos, mais
renunciamos! A renúncia não é simplesmente a conseqüência malsã da coerção repressiva que pesa sobre a sexualidade. A
renúncia é uma erva daninha pois é, ela
mesma, um modo de satisfação pulsional. As
pulsões de morte avançam na direção desta
modalidade nefasta de satisfação, sempre que
a sexualidade, o erotismo e o desejo recuam.
De certo modo, em seus trabalhos sobre o
caráter, Freud já havia antecipado a problemática de uma satisfação pulsional que,
afastada das vias da satisfação sexual direta, encontra o caminho regressivo da satisfação na identificação. Em “Alguns tipos de
caráter encontrados no trabalho analítico”
(1917[1916]), já contrapõe os indivíduos “que
reivindicam ser tratados como exceção”, aos
“fracassados por causa do sucesso” e aos
“criminosos em conseqüência do sentimento de culpa”. Ele não dispõe ainda do conceito de pulsão de morte, ferramenta
explicativa que vai abrir novos horizontes à
clínica psicanalítica. Cada uma dessas modalidades de caráter, depois de 1920, encontraria seu amparo na malignidade inconsciente
do supereu. Como não reconhecermos no
“desejo de ser tratado como uma exceção” a
inclinação perversa em fazer-se castigar pelo
pai? O sentimento de culpa pela satisfação
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se à pulsão. Para além do efeito mortificante
das identificações, que reduz o gozo ao fantasma, o sujeito identifica-se ao sinthoma. A
insígnia é o matema do sujeito reduzido à
pulsão, que nas palavras de Lacan “é sempre feliz”. Neste momento do seu ensino,
Lacan já não distingue sintoma e caráter. A
última formulação contempla a positivação
dos obstáculos ao término de uma análise,
tal como Freud os formulou. Como afirmamos anteriormente, Freud reduziu a vida
psíquica ao seu osso, o sentimento inconsciente de culpa. O apego ao sintoma, a reação terapêutica negativa, a inacessibilidade
narcísica do paciente, a compulsão à repetição na neurose de destino, o repúdio da
feminilidade são algumas de suas traduções
psíquicas. O último ensino de Lacan retraduz
o freudiano “sentimento inconsciente de
culpa” em “repetição de um mesmo fracasso”. Ele faz do vício a virtude da vida libidinal. Se não há acordo possível entre o
sujeito e a civilização, então, “não há relação sexual”. Logo, haverá necessariamente
sintoma. Coloca toda ênfase na satisfação
que o sujeito retira em repetir a mesma rata,
o mesmo fracasso, em perseverar em seu
sintoma. Se não há felicidade na vida civilizada, deve haver, por isso mesmo, satisfação
pulsional nesse fracasso. O sinthoma é um
problema ou uma solução?
A civilização contemporânea e
sua psicopatologia
O discurso do capitalismo promete
maximizar o gozo útil. Hoje, mal-estar na civilização tornou-se um artigo gerenciado. O
gosto pós-moderno é a mensuração generalizada. Medir, regulamentar, distribuir, homogeneizar todos os gozos. Garantir o prazer
seguro e minimizar o mal-estar. O Outro
contemporâneo calcula o custo/benefício da
promessa global de igualdade e homeostase
social. Aposta no poder dos medicamentos
de última geração e na prevenção psicoterapêutica generalizada. Estamos numa sociedade que gerencia o risco de viver e pensa
poder limitar o mal-estar, maximizando a
saúde mental. Trata-se de uma ampla mudança de regime, no sentido foucaultiano,
desde um estado que “deixa viver ou mata”
para um estado que “deixa morrer e faz viver”. Como adiantam Miller e Milner (2004,
p. 7-30), uma mudança profunda na modalidade de gestão do mal-estar está em curso.
Incluído no campo da saúde mental, campo
que faz parte dos poderes régios do Estado,
tornou-se assunto de saúde pública e seguridade social. Toma-se o mal-estar como problema, como queixa proveniente do social,
e ao homem público, o político, caberá encontrar uma solução. Esse é o paradigma das
relações entre política e sociedade no universo moderno. A solução se apresenta em
termos do paradigma da avaliação, da medida, e do calculável seja quantitativo, seja
qualitativo. São ambos paradigmas matemáticos e seu princípio é a colocação das peças
em apreço numa relação de equivalência. Assim, um problema será substituído pela solução equivalente. Basta, portanto, que haja
avaliação para que tenhamos uma solução.
A equivalência é um hiperparadigma e sua
inspiração é a moeda, isto que permite trocar uma mercadoria por outra. A outra face
desse hiperparadigma é jurídica: o contrato,
do qual os parceiros são supostos equivalerse em potência, e terem ambos alguma coisa a trocar. Lembrem-se de Marx que
desvendou a redução da força de trabalho a
artigos
A lei não diz nada sobre todo um conjunto
de coisas. É uma lei, e não um contrato. Seu
silêncio é uma expressão da autoridade régia do Estado, como garante da liberdade. No
contrato, só conta o que está expressamente estipulado de modo negativo ou positivo.
O que não é expressamente dito não vale.
O silêncio não vale. A lógica é totalmente
diferente. Entre uma democracia fundada
na lei, e outra no contrato, a questão do silêncio regulamentar será totalmente diferente. Quando se procura fazer, como está
em voga hoje, um sistema de equivalências
entre o limitado e o ilimitado, entre a lei e
o contrato, não se sabe mais o que é que
vale: o que é dito ou o que não é dito?
No contrato, o que não é expressamente
permitido, não é permitido de jeito nenhum.
Donde, nos estatutos das associações, o que
se pratica é uma forma mista: o que não é
expressamente proibido, é permitido. Estamos num sistema híbrido, onde não sabemos nunca em que regime estamos, se
devemos interpretar na vertente da lei, ou
na do contrato. Nesse sistema, o contrato
associativo está um pouco para todo lado,
Precisamos de especialistas, os advogados,
fabricantes de regulamentações. Se lhe dizemos que se trata de um contrato, e as funções régias do Estado não têm nada a ver
com isso, ele nos responde: — “Atenção, tenho que levar em conta o bem público, preencha por favor os papéis.” Se lhe dizemos que
se trata do bem nacional, trata-se da lei,
logo, o que não está expressamente interdito é permitido, ele responde: “atenção, uma
expertise científica tem necessidade de todas as informações. Logo, preencha!”. Na
versão antiga, havia as funções régias do
Estado, mas o Estado não se mete senão na
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uma mercadoria que se vende. A importância da sociedade do contrato ultrapassa o
nível jurídico. Sem nos darmos conta, passamos de uma figura à outra da democracia. A
democracia era o lugar geométrico da lei,
mas a lei releva do limitado (do para todos).
A democracia entrou na era do ilimitado
(não-todo). Tornou-se o lugar do contrato,
ou dos contratos, pois a força da forma contratual é que ela pode ser multiplicada de
maneira ilimitada. Se a ideologia do contrato tornou-se o fundamento da democracia
ilimitada, não a democracia clássica, mas a
democracia do futuro, a avaliação e o contrato tornaram-se o modo de fazer avançar
a democracia. O que chamamos agora de Direitos do homem e do Cidadão, não são mais
os da Declaração de 1789. Os direitos de
1789 relevam do limitado, eles fazem limite
às leis. Mas os direitos do homem, na versão
moderna, relevam do ilimitado dos direitos,
dos contratos dos procedimentos de avaliação e da forma problema-solução. Implicam
que há um parceiro que não deve intervir: o
Estado.. A contradição mais profunda é que
quando falamos das funções régias do Estado, a noção de contrato desaparece. A expressão natural da função régia do Estado
democrático é a lei, e a lei não repousa sobre a igualdade dos parceiros, e sim sobre a
voz imperativa que não coloca em pé de
igualdade os parceiros em questão. A lei,
como lembra Miller, supõe o terceiro, enquanto o contrato é um esforço para dar status simbólico ao estádio do espelho. A lei
funciona tanto pelo silêncio quanto pelo que
ela diz. Os regimes liberais, por oposição aos
autoritários, são aqueles em que a lei permite tudo que ela não interdita expressamente. O silêncio da lei é o que a faz funcionar.
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política exterior, na polícia, nos impostos.
Atualmente, reina a transação, conservamos
uma função régia do Estado, mas ela vai se
ocupar de todos os aspectos que fazem a
vida pública moderna. Entre esses elementos, a saúde pública, a saúde mental, e o
mal-estar. Não há mais nenhum limite que
se possa impor à função régia do Estado, em
nome do bem de todos.
É uma coisa que aparece em todas as grandes doutrinas materialistas, supomos um “a
mais” que excede toda forma de contrato,
excede toda absorção pela forma problemasolução. Marx demonstrou a existência desse
excesso com respeito à venda da força de
trabalho no mercado. Ela é supostamente livre (quem o faz, faz porque quer), igualitária (um compra e o outro vende).
Entretanto, há um “a mais” que se chama
mais-valia. Não se trata de um valor “a
mais”, e sim de um “mais de valor”. Um excesso que resiste a toda substituição calculadora. Entre força de trabalho e salário, a
essência do impossível é que há sempre um
objeto que não vai se deixar absorver pela
forma problema-solução. O “a mais” é alguma coisa que não se substituirá de modo
algum. É disso que se trata também no
objeto a de Lacan. O mal-estar é hoje o
nome desse resto insubstituível, tudo pode
ser solucionável menos isso. Os analistas
lacanianos não pensam que isso seja um
problema! O problema é também a solução
do problema. Vivemos com o elemento insolúvel. A solução é a não-solução, o impasse, assumido, consentido. Essa posição é
a essência de uma política lacaniana. Ela
advoga que há uma diferença essencial
entre o Estado que se d e i x a absorver
pelo ilimitado da sociedade, e o Estado
que se inscreve como um todo limitado.
Para prosseguir nesta investigação inaugurada por Lacan, precisamos refletir sobre as
condições éticas tanto da demanda, quanto
do exercício da psicanálise no mundo globalizado. O que fazer, quando o declínio da organização edipiana do laço social, o avanço
do discurso da ciência e de seus aparelhos de
gestão da saúde mental e do mal-estar
(Miller e Milner, 2004), o aprofundamento da
inconsistência do Outro com seus comitês
de ética (Laurent e Miller, 1996-1997), assim
como o esvaziamento de toda palavra oracular (Miller, 2002-2003) nos confronta com
casos de difícil classificação?
O que se apresenta na clínica, nesse tempo
em que o Nome-do-pai e o Estado foram absorvidos pela lógica do ilimitado (do nãotodo) será ainda a neurose, serão novas
doenças da mentalidade hipercontratual,
canalhice pura e simples, ou novos sintomas e novas modalidades de psicose? Como
distinguir uma clínica do sinthoma, da tendência contemporânea ao gozo ilimitado?
A solução continuísta e a
descontinuísta: sinthoma e
sintoma
No campo freudiano, a constatação do declínio da organização edipiana, fruto do avanço do discurso da ciência, produziu uma
hipótese nova: a de uma foraclusão generalizada do Nome-do-pai. O que vamos desenvolver neste trabalho é uma tentativa de
construir um quadro classificatório, comparativo, que nos permita estabelecer diagnósticos diferenciais entre as neuroses/psicoses
modernas e contemporâneas. A idéia central
é a seguinte: o afrouxamento da organização edípica modifica o regime das relações
artigos
e à psicose, ou seja, o que o ser falante
apresenta de mais singular e inclassificável
– em seu esforço de nomeação e de defesa
contra o gozo invasor – sem desprezar, mas
sem nos servir exclusivamente da diferença entre neurose e psicose. A perspectiva
continuísta pode esclarecer porque, em RSI
(1974-1975), Lacan pluraliza os Nomes-do-pai.
Ele nos apresenta a inibição como a patologia do fazer ou do laço social, nomeação do
imaginário e, a angústia, como a patologia da
esperança, nomeação do real. Esse passo
implica colocar os três registros em igualdade de condições. Desta forma, o sintoma e
o delírio, patologias da crença ou do saber,
não são mais os critérios, por excelência, do
diagnóstico de neurose ou de psicose. Precisamos considerar também que a inibição e
a angústia podem ser defesas psicóticas. O
mais importante são as lições que podemos
tirar para o trabalho do analista diante das
doenças da mentalidade e das psicoses ordinárias. A clínica da neurose é hoje habitada por impulsões, compulsões, depressões
inespecíficas, astenias, conversões histéricas ou psicóticas, além de fenômenos psicossomáticos. Muitas vezes não sabemos
distinguir esses quadros de uma psicose não
desencadeada. Como diferenciar eventos de
corpo, de fenômenos de corpo (Miller, 2003).
Como saber quando isso é uma inibição neurótica, ou uma suplência à psicose? Essa dificuldade se acentua porque, quando o
Outro não existe, as psicoses também são
menos delirantes. Quando uma psicose não
é delirante, o corpo, na sua vertente real ou
imaginária vem suprir a carência do simbólico, produzindo uma nomeação. É o caso
das neo-conversões (Georges et al., 1999,
p. 101-43) e dos fenômenos psicossomáticos.
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entre o gozo e a lei ou, se quisermos, entre
o permitido e o proibido. Hoje, Estado e Sociedade se equivalem. Novo regime democrático em que a lei se reduz ao contrato
intersubjetivo, esvaziando-se do que ela
tem de incondicional. O Nome-do-pai, nesse novo regime, está foracluído do simbólico e os contratos sociais tentam inscrevê-lo
por meio de suplências imaginárias. Quando
a foraclusão do Nome-do-pai é generalizada,
é muito mais difícil distinguir as neuroses
das psicoses. O que encontramos na clínica,
no lugar das doenças do grande Outro, isto
é, as neuroses e psicoses clássicas, são as
doenças da mentalidade. Do mesmo modo,
neo-modalidades de psicose – mais ordinárias do que extraordinárias – são a resposta psicótica à rarefação dos representantes
paternos. Chamamos de doenças do Outro,
as neuroses organizadas em torno do complexo de Édipo e as psicoses desencadeadas
pelo encontro com Um pai. O simbólico é o
lugar eletivo das perturbações típicas. Na
modernidade, o sintoma e o delírio são as
respostas do sujeito, neurótico ou psicótico
ao Outro consistente. Chamamos doenças da
mentalidade, as neuroses e psicoses em que
o Outro é inconsistente, não-todo, ilimitado.
O corpo e sua imagem, e não mais a linguagem, são o campo preferencial de eclosão
das perturbações. O gozo hiperlocalizado, e
o gozo deslocalizado, são o modo de apresentação dos novos sintomas neuróticos e
dos fenômenos psicóticos.
Numa cultura em que o Outro tende a ser inconsistente, não-todo, uma clínica continuísta (Georges et al., 1999) vem responder
ao que fazer, como e quando o sintoma é
cada vez menos típico ou coletivo. Valorizamos, desta feita, o que é comum à neurose
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É a partir dessa modalidade de nomeação
que teremos que pensar os neo-desencadeamentos. São muito mais desenlaçamentos e reenlaçamentos do discurso comum
(laço social), do que grandes desencadeamentos à maneira das psicoses extraordinárias. O corpo em sua vertente real (lesões
psicossomáticas), ou imaginária (neoconversões), é o terreno onde se dão os
fenômenos de encadeamento e desencadeamento das neo-psicoses, ou psicoses ordinárias.
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Como tratar o sofrimento,
quando supomos que o sujeito é
sempre feliz?
A conversão é um fato de estrutura e, é idêntica ao desejo se considerada a partir da
causa (o objeto a), e da inscrição corporal da
castração (S1, o significante fálico). Um corpo é efeito da ação do significante mestre
(S1), é uma significação fálica, que anima
todo ser falante. O sintoma histérico é, justamente, a conseqüência da desproporção
entre a causa e o significante do ideal. A
castração do sujeito remete à divisão do Outro, sua impotência ou sacrifício, que coloca
o sujeito a serviço de um ideal. O recalque,
a identificação ao que falta ao Outro, produz
uma perda de gozo, e o reforço da satisfação
pulsional clandestina que prolifera no inconsciente. Quando o Outro não existe, a
identificação não se limita pela castração do
Outro. O uso do corpo, como manifestação
somática do significante, só é interpretável
a partir de sua relação com a marca da castração do Outro. A parte subjetiva depende
dessa relação com o texto como Outro: o
fantasma como resíduo da organização edipiana. O uso do corpo, no sentido de um fa-
zer que não procede de uma interpretação,
nos remete a um Outro como imagem (que
é um saber não limitado pela interpretação),
saber que não é suposto, e sim exposto. A
isso chamamos uma neo-conversão. Ela se
distingue também do fenômeno psicossomático. Este último escapa à regulação fálica por meio de um significante ilegível, escrito no corpo, no lugar de um sintoma. Na
neurose ele reflete um fracasso momentâneo da defesa diante de um evento traumático. Na psicose, pode funcionar como uma
bolha do nome próprio, delimitando um espaço separado do Outro, que lhe permite
existir sem passar pelo Nome-do-pai. A essa
passagem direta do significante ao real do
corpo, chamamos sinthoma. É algo do campo da psicose, mas que generalizamos para
todo ser falante na clínica continuísta. Mesmo assim, a posição do analista, e seu ato,
numa clínica continuísta, não se desvencilham de uma exigência de decidir quanto ao
diagnóstico. Entretanto, não enfatizamos o
déficit: presença ou ausência da metáfora
paterna, porque todo sintoma, pode ser reduzido a um sinthoma, a uma conexão direta do simbólico ao real que não precisa do
imaginário, da função do Nome-do-pai. Tratamos o mal pelo mal. A doença é o próprio
remédio (Coelho dos Santos, 2004). O analista é o parceiro (Coelho dos Santos, 2002)
de uma neo-transferência (Georges et al.,
1999, p. 147-9) – em que o analisando é o
agente (a) e ele analista o (). O papel que
lhe cabe é o de aprendiz de uma modalidade de laço social que o analisando lhe propõe. Somente depois de um árduo aprendizado é que nos arriscamos a agir. Isso nos
desencoraja a sonhar com um ideal de saúde mental! E se não precisamos recuar dian-
veitava pequenas ocasiões para iniciar um
comentário, fazer uma pergunta, contar um
caso. Entre as suas respostas fragmentadas
e lacônicas pude recortar a recorrência da
frase: eu sou gorda! A certeza localizada
neste significante era tão desproporcional à
realidade de fato que tomei essa conexão
como real. Seu suposto excesso de peso era
uma suplência à insuficiência de sua imagem, uma neo-conversão. Tratava-se de um
fenômeno elementar, sinal discreto da carência simbólica. Um dia, medindo bem minhas palavras, eu lhe digo: — “Eu não acho
que você seja gorda, mas isso não tem a
menor importãncia. Se você acha isso, é preciso tomar uma providência. Você precisa de
uma clínica de emagrecimento!”. À surpresa,
seguiu-se um movimento decidido de encontrar uma nutricionista. Ela passou algumas
semanas dificílimas num estabelecimento
para emagrecer. Voltou um pouco mais magra. O que me pareceu uma perda insignificante de peso, representou uma mudança
essencial na relação transferencial. Ela era
agora “mais ou menos gorda (ou magra?)”.
Da extração desse pequeno excesso de seu
corpo, construímos um artifício: a língua do
mais ou menos. Com ela, passamos à regulação de suas relações com os pais, os amigos, os compromissos com os estudos. Essa
língua “dietética” resultava em evitar uma
lógica feroz do tudo ou nada. Uma nova suplência, tornou-se a língua comum: tudo que
é bom, é só “mais ou menos”. Por exemplo:
não se deve faltar às provas quando não se
pode tirar 10. Tirar 7 já é ótimo. Daí à conclusão de que tirar dez não é bom, foi um
passo. Deste modo conseguimos evitar a
ameaça de novos desenlaçamentos em suas
relações com os outros e em seus compro-
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te da psicose, é porque podemos aplicar a
psicanálise à psicoterapia.
Um difícil aprendizado: a língua do mais ou
menos. Quando eu recebi Gabriela, disseram-me que se tratava de uma depressão.
Ela só tinha dezoito anos, já tomava psicofármacos e eu não seria sua primeira “terapeuta”. Eu seria analista? Ela não dizia nada.
Sentada à minha frente, de cabeça baixa,
evitava me olhar e quando muito respondia
às minhas perguntas. Nunca tomava a iniciativa de falar. Uma primeira modificação na
minha posição se impôs a duras penas: quem
falava era eu. Docilmente, eu falava, comentava, perguntava... Tudo que eu consegui saber foi que ela comia muito, dormia sem
parar, faltava às aulas, chorava muito e não
saía sozinha. Impotente em impor limites ao
gozo invasor do corpo. Ela sempre vinha
acompanhada do pai ou do irmão mais velho.
Toda essa atenção que recebia era insuficiente para limitar seu desamparo, sua astenia, sua apatia e uma forte depressão que se
encarnava em sua recusa em falar. Freqüentemente, alguém da família me ligava
dizendo que ela não viria à sessão porque
não conseguiu levantar-se da cama. O tratamento parecia inviável. As faltas prometiam multiplicar-se. Comecei a perceber que
ela não gozava do corpo, mas o reforçava
como uma defesa contra a invasão de gozo.
Outra mudança no enquadre se impôs. A
cada vez que me ligavam de sua casa, eu
pedia que a trouxessem ao consultório. Por
fim, quando ninguém se dispunha à fazê-lo,
eu solicitava que a colocassem num táxi, eu
descia e ia buscá-la na portaria. Com esse
dispositivo eu me oferecia como muro, tentando trocar o reforçamento de seu corpo,
pelo reforçamento de nosso vínculo. Apro-
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artigos
Referências
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FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença
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Standard Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. IV.
>82
LIVRARIA PULSIONAL
Rua Dr. Homem de Mello, 446
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Fones: (11) 3865-8950, 3675-1190, 3672-8345
e-mail: [email protected]
www.pulsional.com.br
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Artigo recebido em março de 2005
Aprovado para publicação em outubro de 2005
www.livrariapulsional.com.br
missos. Os efeitos estabilizadores dessa prática verificam-se na redução da angústia e da
depressão. Contornam a ausência do fantasma neurótico e da significação fálica. Sem o
Nome-do-pai, resta fazer alguma coisa com
esse S1/a real: Gorda!
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