Saberes docentes

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Saberes docentes
19 a 21 de julho de 2006
Saberes docentes
Da teoria à prática, da ação à reflexão
Logomarca: Opusmultipla — Comunicação Integrada S.A.
Capa: Gilberto Soares dos Santos
Planejamento gráfico: Gilberto Soares dos Santos
Análise lingüística: Bernadete Monteiro
João Daniel Bervique
Yara Wojslaw Pereira Dias
Revisão: Tatiane Valéria R. de Carvalho
Diagramação: Marline Meurer
Impressão: Gráfica Dom Bosco
Tiragem: 1 300 exemplares
“As informações contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos respectivos autores”.
II CONGRESSO DE EDUCAÇÃO
DOM BOSCO
19 a 21 de julho de 2006
SABERES DOCENTES
DA TEORIA À PRÁTICA, DA AÇÃO À REFLEXÃO
II CONGRESSO DE EDUCAÇÃO
DOM BOSCO
19 a 21 de julho de 2006
SABERES DOCENTES
DA TEORIA À PRÁTICA, DA AÇÃO À REFLEXÃO
Comissão Organizadora
Anneliese Alcoba Ruiz
Cristiane Sliva
Laurilea Mafra de Souza Galdi
Luciane Lipmann
Maria Lúcia Castellano
Marineide Look Azevedo
Marta Helena Terra
Patricia Silva
Samira Dib
Silvana P. Vaz
Comissão de Programação e Avaliação Científica
Nair Lobo Pacheco
Rosane de Mello Santo Nicola
Samira Dib
Comissão de Comunicação
Edson José de Oliveira Santos
Polyana Burko Krelling
Sumário
Apresentação
9
I
Diversidades de ações sociais e de representações: diversidade de
gêneros e em gêneros — Angela Paiva Dionísio
11
II
Aspectos semânticos e discursivos no texto jornalístico — Sandra Batista
da Costa
31
III
Reflexibilidade: alternativas de intervenção na prática pedagógica — Joana
Paulin Romanowski 47
IV
Projetos, currículo e aprendizagem na Educação Básica e Superior — Marcos
Cordiolli
55
V
Planejando e analisando as atividades didáticas em sala de aula —
Marielda Ferreira Pryjma 81
VI
O relevante papel do professor no ensino de Matemática — Ângela
Ferreira Pires da Trindade
89
VII
Qualidade de vida, subjetividade e interação — Fernanda Pires Bertuol 95
VIII
Gestão de pessoas: formação de uma equipe bem-sucedida — Marilda
Corbelini 103
Apresentação
Os professores são os criadores da sua atividade profissional,
mas também são criações de seu local de trabalho.
Hargreaves (2002)
O Colégio Dom Bosco, reunindo as unidades Ahú, Batel e Mercês, tem
promovido, nos últimos anos, seminários de Educação, objetivando viabilizar
aos gestores, professores e equipe administrativa da instituição, programas de
formação continuada, proporcionando aperfeiçoamento educacional.
Os eventos se ampliaram, adquirindo caráter de Congresso em 2005 e,
neste ano, consolida-se como o II Congresso de Educação Dom Bosco, intitulado SABERES DOCENTES — da teoria à prática, da ação à reflexão.
Este livro é resultado do esforço conjugado de profissionais de educação
que, em parceria com o Colégio e o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em
Educação (CPDE) da Editora Dom Bosco, socializam experiências de docência
e gestão na Educação Básica e no Ensino Superior, por meio desta publicação
e de sua participação no evento sediado na unidade Batel, no período de 19 a
21 de julho de 2006.
A temática geral da práxis pedagógica desdobra-se em três eixos: letramento e gêneros textuais; planejamento, metodologia de ensino-aprendizagem e reflexão sobre a ação docente; e gestão de pessoas.
No eixo letramento e gêneros textuais, expõe-se o conhecimento dinâmico da língua, fornecendo aos docentes das diversas áreas e fases de ensino
básico um aperfeiçoamento de sua educação lingüística, para que tenham instrumental científico em sua atuação profissional, uma vez que suas práticas
são de natureza sociocomunicativa e contribuem no letramento dos alunos. No eixo planejamento, metodologia e reflexão sobre a ação docente,
estabelece-se uma espiral com pontos convergentes e divergentes, tal qual o
percurso da sociedade contemporânea, admitindo novas visões e novas estruturas sociais, discutindo princípios da vida cidadã que perpassam a ciência, a
tecnologia e a pluralidade cultural, imbricados na organização do trabalho docente, nas atividades didáticas e na atitude reflexiva desse profissional.
Finalmente, no eixo de gestão de pessoas, compartilham-se as inquietações da atual sociedade, vivendo num paradoxal processo de gestão de vida
pessoal e profissional, entre o individual e o coletivo, o público e o privado,
a qualidade de vida das organizações sociais e a deterioração da dimensão
humana.
Agradecemos de modo especial aos autores que prontamente nos enviaram seus textos inéditos, em tempo hábil para a publicação. Todo esse movimento representa a gestão integrada de diversas ações desenvolvidas dentro
e fora da escola, pois a docência na educação básica não pode ocorrer isolada.
Não só os professores e a equipe administrativa estão envolvidos na execução
da proposta pedagógica, mas também os alunos, as famílias e as comunidades
leiga e científica.
Antônio Nóvoa, em conferência intitulada “Avaliação das escolas e
dos professores”, no 4o Congresso Internacional de Avaliação, em São Paulo
(12/7/2006), declarou a extrema necessidade de que a escola lute por sua
credibilidade na sociedade, cuide de sua imagem pública, pois uma grande
desconfiança paira sobre ela advinda das demais instituições nesta sociedade
do conhecimento.
Esse alerta tem relação direta com iniciativas como a produção deste
livro, que significa o registro, a permanência de um tempo de reflexão e formação continuada de profissionais da educação. Por meio dele, materializamse discursos de diferentes áreas de conhecimento, buscando contribuir para o
processo de reflexão coletiva sobre o trabalho docente.
Curitiba, 19 de julho de 2006.
Rosane de Mello Santo Nicola,
Comissão de Programação e Avaliação Científica
do II Congresso de Educação Dom Bosco e
Coordenadora Científica do
Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Educação
10
I
Diversidades de ações sociais e
de representações: diversidade de
gêneros e em gêneros
Angela Paiva Dionísio1
Introdução
Parece-me essencial começar este texto esclarecendo que toda a discussão se dará em torno de dois conceitos básicos, que são gêneros textuais e letramento. Devido à própria amplidão de tais conceitos, devo antecipar que priorizei
alguns aspectos para sistematizar minha exposição. Estes aspectos são:
1. Distinção entre tipo textual, gênero textual e domínio discursivo;
2. Concepção de gênero textual como ação sociorretórica;
3. A relação gêneros textuais, intertextualidade e letramento;
4. Diversidade na forma de representar, diversidade de letramentos. Na
realidade, multiletramento!
5. Lendo mais sobre o tema.
1. Distinção entre tipo textual, gênero textual e domínio
discursivo
A distinção entre os três termos tipo textual, gênero textual, e domínio
discursivo se justifica essencialmente por razões didáticas para o professor,
mas não deve consistir numa preocupação basilar a ser tratada nas salas de
Professora da Universidade Federal de Pernambuco (Recife), com Pós-doutorado pela Universidade da Califórnia
(EUA) e Doutorado pela UFPE.
1
11
aula do ensino fundamental e médio. Seguindo Marcuschi (2002:22-25), os
tipos textuais são designações teóricas dos tipos: narrativo, argumentativo,
descritivo, injuntivo, explicativo e dialogal, que se caracterizam como (i)
“constructos teóricos definidos por propriedades lingüísticas intrínsecas”, (ii)
“seqüências lingüísticas ou seqüências de enunciados no interior dos gêneros e
não são textos empíricos”, bem como apresentam uma nomeação que “abrange
um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais,
sintáticos, relações lógicas, tempo verbal”. Por sua vez, os gêneros podem ser
definidos, como (i) “realizações lingüísticas concretas definidas por propriedades
sociocomunicativas”, (ii) “textos empiricamente realizados cumprindo funções
em situações comunicativas”, cuja “nomeação abrange um conjunto aberto e
praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composição e função”, como, por exemplo, parecer médico, laudo
técnico, palestra, telefonema, sermão, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, notícia jornalística, horóscopo, piada, conferência, e-mail, batepapo por computador, etc. Já o termo domínio discursivo se refere às instâncias
discursivas (discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, discurso
educacional, etc.) dos gêneros, ou seja, sinaliza a origem discursiva deles, “já
que os gêneros são institucionalmente marcados. Um domínio constitui práticas
discursivas dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros que às
vezes lhe são próprios como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas” (Marcuschi, 2002:22-25).
Vejamos a título de ilustração o texto (1).
Você não quer contar esta história para seus filhos, quer?
(1)
12
Trata-se de uma propaganda do Greenpeace que focaliza a luta pela preservação do meio ambiente, pela não-poluição dos rios, por exemplo. A história
de um patinho que era feio, por ser o único patinho negro da ninhada, faz parte
do elenco das histórias que ouvimos na infância e contamos aos nossos filhos:
O Patinho Feio, conto de Hans Christian Andersen. A retomada dessa história na
propaganda se dá predominantemente pela imagem, com destaque para a camada de óleo que cobre a penugem da ave. Notem-se também as manchas de
óleo no rio e nas pegadas do patinho. A estrutura “Você não quer contar esta
história para seus filhos, quer?” que se dirige diretamente ao leitor, associada
às relações intertextuais sugeridas funcionam como recursos argumentativos.
Enfim, o texto (01) é do tipo argumentativo, o gênero textual é uma propaganda, e o domínio discursivo é o publicitário.
2. Concepção de gênero textual como ação sociorretórica
A noção de gênero como ação sociorretórica tem por base a escola
americana, influenciada por Bakhtin, mas com forte contribuição de antropólogos, sociólogos e etnógrafos, que se preocupam com a organização social
e as relações de poder que os gêneros encapsulam. Carolyn Miller e Charles
Bazerman são dois grandes representantes dessa escola. Para Miller (1994),
gêneros textuais são ações tipificadas que os indivíduos realizam em respostas
a situações também tipificadas socialmente. Por sua vez, Bazerman (2005:23)
salienta que “os fatos sociais consistem em ações sociais significativamente
realizadas pela linguagem, ou atos de fala. Esses atos são realizados através de
formas textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros, que
estão relacionados a outros textos e gêneros que ocorrem em circunstâncias
relacionadas”.
Vejamos a situação-exemplo apresentada por Bazerman.
Quando invocamos um gênero, tal como um editorial de jornal, estamos
invocando não apenas um modelo de um tema oportuno, palavras avaliativas e
emocionais, e recomendações políticas. Estamos invocando o papel do jornalismo
e do comentário na política contemporânea, o poder cívico e econômico de determinado jornal, a reputação pública dos seus jornalistas e a influência de seus
leitores. Estamos invocando eventos nos quais participam muitos jogadores, uma
topologia que evolui com o tempo e um habilidoso senso de timing necessário
para o sucesso de qualquer editorial. Estamos invocando os padrões de crítica e
de bom gosto dentro de uma comunidade, as atitudes correntes com respeito a
figuras políticas e os temas mais polêmicos do momento. É nesse ambiente complexo que o editorial tem que agir (Bazerman, 2006).
Gêneros são, portanto, concebidos como tipos de enunciados que estão
associados a um tipo de situação retórica, ou seja, “com os tipos de atividades
que as pessoas dizem, fazem e pensam como partes dos enunciados” (Bazerman, 2006).
13
Como “os gêneros são espaços familiares aonde vamos para criar uma
ação comunicativa inteligível uns com os outros e são os guias que nós usamos
para explorar o não-familiar” (Bazerman, 2006), o escritor pode jogar com
uma variedade de formas em diferentes situações sociais e com diferentes
objetivos. Os avanços tecnológicos têm colaborado e muito para esse jogo de
experimentação de arranjos no processamento textual. Podemos afirmar com
segurança que a maior liberdade na manipulação dos gêneros textuais tem
relação direta com a audiência e com o meio físico que transmite o gênero.
Basta pensarmos, por exemplo, nas charges animadas, nos infográficos ou nos
diagramas em movimento.
Essa noção de padrão não-familiar de apresentação dos gêneros textuais
deve constituir um aspecto de fundamental interesse para os professores de
todas as linguagens, uma vez que o padrão inesperado de disposição gráfica
provoca diferentes reações nos leitores, desde fascinação até rejeição. Dionisio (2006:138), com o intuito de observar os movimentos oculares de leitores
no processamento de gêneros com diferentes graus de informatividade visual,
conceito que é retomado ao longo deste artigo, realizou uma pesquisa com 10
leitores (3 crianças, entre 7 e 10 anos; 2 adolescentes, 18 anos; e 5 adultos,
entre 21 e 55 anos, dentre eles, 3 professores de língua portuguesa), na qual foi
constatado que os adolescentes e os adultos tendem a rejeitar textos que têm
uma orientação de escrita diferente do Mundo Ocidental, como, por exemplo, o
trecho Paradas Desastrosas do texto Como Funciona o Pit Stop de Fórmula 1?,
extraído da seção Perguntas dos Leitores, da revista Superinteressante (2).
Localizado no canto direito, na parte debaixo, da segunda página, o trecho Paradas Desastrosas está escrito em linhas diagonais, progressivamente inclinadas
de cima para baixo. “Eu achei um pouco desorganizado. As informações em “Parada Desastrosas” são difíceis de ler, porque ele não está na posição vertical”,
“Eu não gostei do lugar das “Paradas Desastrosas”. Parece que não havia mais
espaço, então ele (o jornalista) jogou lá. Foi necessário eu quebrar o pescoço
para ler. Isso não estimula a leitura”, são alguns dos depoimentos colhidos.
As alterações no processo de construção dos gêneros provocam, conseqüentemente, uma mudança também na forma de ler os textos. O dinamismo
da imagem do filme passou para a charge virtual, para um pôster interativo; a
disposição do texto na página oscila entre os moldes ocidentais e orientais de
escrita. Esses são alguns exemplos que deixam transparecer a necessidade
de revisão do conceito de leitura e de suas estratégias que utilizamos em nossas aulas. Conseqüentemente, se os gêneros se materializam em formas de
representação multimodal (linguagem alfabética, disposição gráfica na página
ou na tela, cores, figuras geométricas, etc.) que se integram na construção
do sentido, o conceito de letramento também precisa ir além do meramente
alfabético. Precisamos falar em multiletramento! Um exemplo? Basta uma visita ao site http://revistaescola.abril.uol.com.br/especiais/posteres para uma
14
(2)
15
breve demonstração da visualidade da escrita com fins didáticos. O pôster “A
Formação da Cárie” lido aqui neste artigo e lido diretamente na tela de um
computador, no site acima indicado, requer estratégias de leituras distintas,
exige o domínio técnico de uso dos suportes envolvidos, além do conhecimento
do complexo, mas fantástico, conjunto de linguagens e formas de representação do conhecimento. Como desafio, convido o meu leitor a ler este pôster
também na versão infográfico animado.
(3)
3. A relação gêneros textuais, intertextualidade e letramento
Ao processarmos um texto verbal ou pictorial, sempre recorremos a outros textos, fazendo referência, por exemplo, ao seu conteúdo, ao seu estilo, à
sua forma estrutural, com os mais variados propósitos discursivos. Compactuando com Bazerman (2006) ao afirmar que “nossa originalidade e nossa habilidade
como escritores advêm das novas maneiras como juntamos essas palavras para
se adequarem às situações específicas, às nossas necessidades e aos nossos
propósitos específicos”, saliento a importância de se investigar como se manifesta a intertextualidade entre gêneros verbais e pictoriais em materiais didáticos
de diferentes áreas de conhecimentos para o ensino fundamental e médio.
A intertextualidade, portanto, deve se configurar como um dos grandes
temas de interesse dos professores de todas as disciplinas, nas situações de leitura e de escrita, em que se queira perceber como os alunos se apropriam das
várias fontes de pesquisa e as transpõem para a produção de seus textos. Cabe
aos professores de todas as áreas preocupar-se com a atividade de análise de
16
intertextualidade. Com isso, amplia-se o campo de investigação das relações
intertextuais, rompendo-se as fronteiras do texto literário e das paredes das
salas de aula de língua portuguesa. Como assegura Bazerman (2004:84), “nós
criamos os nossos textos a partir do oceano de textos anteriores que estão à
nossa volta e do oceano de linguagem em que vivemos. E compreendemos os
textos dos outros dentro desse mesmo oceano”.
Numa rápida consulta a alguns manuais didáticos, observamos diferentes usos do princípio da intertextualidade tanto na construção dos capítulos em
si como na construção dos exercícios de verificação de aprendizagem. Vejamos
alguns casos.
No exemplo (4), para introduzir o conceito de estatística são utilizados
fragmentos de uma matéria jornalística que demonstram os indicadores sociais
do Brasil nos anos 90 em forma de gráficos. Louvável é a atitude de trazer
para o texto didático vozes de outras instâncias sociais, porém observa-se que
não há uma só menção aos gráficos ali apresentados. Apenas uma referência
é feita à manchete do jornal, numa estrutura pouco esclarecedora. A intertextualidade aqui com o IBGE e com a Folha de S. Paulo parece ter meramente
um cunho figurativo, se o professor não tomar para si a tarefa de explorar tais
vozes.
Já em (5), na seção Atividades, o exercício 3 recorre a uma notícia publicada na revista Época sobre o derramamento de óleo, que serve de base
para a construção de um problema matemático. Diferentemente da situação
anterior, o intertexto aqui estabelece uma função discursiva com a disciplina e
com o conteúdo explicitada na proposição da tarefa.
Uma outra situação discursiva encontrada que apresento para reflexão
consiste nos casos de materiais didáticos que selecionam alguns termos dos
enunciados dos exercícios e apresentam um intertexto sobre eles, na maioria
das vezes, escrito pelo próprio autor do livro, como se verifica em (6). A justificativa apresentada pelos manuais se sustenta no favorecimento da interdisciplinaridade.
Em tais casos, geralmente, o texto original não é do autor do livro; no
exemplo em análise, uma questão de vestibular da PUC—SP, o termo MAPA é
destacado pelo autor do LD com um link para dois blocos de textos, visualmente salientes na página sobre o tema Cartografia. Cerca de 50% da página é
ocupada por tais informações. Será que tal intertexto realmente está, quanto à
localidade, coerente? Será que a informação sobre o curso de cartografia, dada
no início da primeiro oração do problema proposto, não desviará a atenção do
aluno do assunto em si?
17
(4)
18
(5)
(6)
19
Intertextualidade entre imagens
Um outro aspecto interessante quanto à intertextualidade reside no fato de
esse recurso não se constituir uma particularidade do texto verbal. Arbex (2000)
sugere que “nos mesmos termos que o conceito de intertextualidade, ou seja,
como processo de produtividade de uma imagem que se constrói como absorção
ou transformação de outras imagens”, deve-se usar o termo intericonicidade. A
relação entre o texto-fonte (telas originais) e a releitura (telas produzidas por
Maurício de Sousa, por exemplo) é de intericonicidade explícita, uma vez que
as telas recriadas e as originais aparecem lado a lado nas diversas situações
em que é apresentada a incursão do famoso quadrinista nas artes plásticas,
seja na exposição que percorreu todo o Brasil, dirigida ao grande público; nas
páginas do livro ou na tela do computador (CD), mídias em que foram publicadas esses novos quadros. Importante lembrar que ler com proficiência requer
também imergir nas relações intertextuais.
Vaz, Mozdzenski e Silva (2004:05), em Da Obra-Prima ao Pastiche:
Intertextualidade e Intericonicidade nos “Quadrões”, de Maurício de
Sousa, consideram essa relação estabelecida entre as telas de Maurício de
Sousa e as obras-primas uma pastichização. Pastiche é
uma prática de imitação que se distingue da subversão paródica por seu objetivo
lúdico, mas não militante. (...) o pastichador deixa indícios do objetivo pragmático de seu enunciado por uma indicação no paratexto ou dando um caráter
caricatural aos conteúdos ou às marcas estilísticas (Charaudeau e Mainguenau,
2004:371).
Em outras palavras, o pastiche deixa claro para o leitor que se trata de
uma brincadeira com o texto-fonte, marcando o novo texto com pistas que
conduzem a essa compreensão. A reprodução do fundo da Mona Lisa em Mônica Lisa é uma dessas marcas.
(7)
(7)
20
É importante que não se veja a pastichização realizada por Maurício de
Sousa como uma dessacralização das obras-primas, mas como uma ampliação
das relações discursivas na linguagem visual, assegurando também a conversa
entre textos visuais. No caso dos Quadrões, parece-me constituir uma boa trilha em direção às obras-primas da pintura.
Propaganda, infográfico, gráfico, notícia, exercício escolar, tela de pintura, verbete foram alguns dos gêneros textuais que já utilizei com intertexto
nesse gênero que construo: artigo científico. Há, portanto, uma variedade de
gêneros que se entrecruzam e tecem um outro gênero. Todo o processo de
construção exige de mim, como autora, e de você, como leitor, uma competência metagenérica, na terminologia de Koch (2006). Revelam também muitas
de nossas experiências sociais mediadas por textos, ou seja, nossas práticas
de letramento.
Letramento é um processo social que permeia nossas rotinas diárias (da
embalagem do xampu que usamos no banho ao levantar, às caixas de cereal e de
leite do café da manhã ou ao display do celular, daí os sms1 que recebemos durante todo o dia). Tudo está encravado de documentos e práticas de letramento.
4. Diversidade na forma de representar, diversidade de
letramentos. Na realidade, multiletramento!
Neste artigo, vou brevemente tratar da visualidade de textos escritos.
O discurso científico, geralmente, comporta, no interior de sua escrita, textos
visuais, fórmulas matemáticas, por exemplo. Tais textos não funcionam como
mera ilustração, mas sim, no mínimo, como complementos do texto verbal.
Não são raros os casos em que os textos visuais são responsáveis pela sistematização de informações não-contidas no texto escrito ou pelo menos superficialmente mencionadas no texto escrito.
Rowley-Jolivet (2002:22) salienta que o “fato de as ciências terem, ao longo dos tempos, desenvolvido seus próprios e específicos modos visuais de concepção e comunicação indica claramente a inabilidade de os modos lingüísticos
sozinhos satisfazerem plenamente as necessidades cognitivas e comunicativas
das ciências”. Dessa forma, letramento científico significa familiaridade com
fatos e concepções científicos básicos, bem como habilidade para ler e escrever
representações complexas de descobertas científicas. Na representação dessas
concepções e desses fatos, a noção de contínuo da informatividade visual dos
textos, de Berhardt (2004), é de extrema relevância, uma vez que gêneros
visualmente informativos, como diagramas, tabelas, gráficos, desenhos anatômicos, mapas, entre outros, levam em consideração no seu processamento
várias estratégias de controle retórico. Em outras palavras, pode-se falar na
existência de um contínuo informativo visual dos gêneros textuais escritos, que
vai do menos visualmente informativo ao mais visualmente informativo.
1
Short message service — serviço de mensagens curtas (disponível pelo celular)
21
Gráfico 1: Contínuo da informatividade visual da escrita proposto por Berhardt
Textos
visualmente
pouco
informativos
+ verbal
– verbal
– visual
+ visual
Textos
visualmente
muito
informativos
Analisando notícias científicas, Spinks (2001:160) ressalta que gráficos
e fotografias podem “influenciar decisões sobre onde e quanto proeminentemente as histórias científicas se tornam. (...) Também o uso de gráficos bem
elaborados e dinâmicos pode assegurar que a ciência atinja as manchetes”.
Dionísio (2005:194) destaca que a edição de janeiro de 1997 da Superinteressante traz o tema cosméticos como assunto de capa. “Por não ser um
tópico tradicionalmente considerado científico, para manter o perfil da revista
de abordar cientificamente as matérias apresentadas e para cumprir com a função jornalística de divulgação imediata dos fatos, o tom de cientificidade é dado
na montagem da capa tanto no plano verbal (manchete, lide) como no pictorial
(fotografia e gráfico). Na manchete nominal — Cosméticos Científicos — e no
lide — Agora a beleza virou assunto de cientistas — o qualificador científicos e
o verbo indicador de estado permanente virar atestam o novo status do tema:
de tópico inerentemente ligado à beleza, a assunto feminino, cosméticos, foi
inserido no âmbito das pesquisas científicas, uma vez que as autoridades sociais responsáveis por tais pesquisas,
ou seja, os cientistas, ao estudarem
o tema, atribuem-lhe novo enfoque
e, conseqüentemente, novo valor
social. A imagem se compõe de uma
fotografia, um close de uma mulher,
à qual se sobrepõem imagens científicas — ilustrações científicas — que
demonstram, por meio de desenhos
das células que simbolizam uma visão
microscópica da ação dos novos cosméticos na pele. O vocabulário visual,
no interior do gráfico, indica as partes
do corpo humano (células e pele) e a
ação das cápsulas e dos filtros solares,
como agentes de rejuvenescimento e
de proteção da pele. O novo nessa
matéria de capa, isto é, a abordagem
científica do tema fica evidente verbal
(8)
e visualmente.”
22
Nascimento (2006:9) em pesquisa realizada comigo no projeto “Multimodalidade Discursiva: Orquestrando Palavras e Imagens”, desenvolvido no Nelfe (Núcleo
de Estudos Lingüísticos da Fala e Escrita — UFPE), analisou gêneros predominantemente visuais em livros didáticos de ciências exatas (Matemática, Física e Química)
e biológicas (Biologia) e seus usos na sala de aula. Segundo o autor, “muitos alunos
têm bastantes dificuldades ao tentar entender um gráfico ou diagrama, pois essas
representações não fazem parte do seu cotidiano. Os professores equivocam-se ao
pensar que, só porque as compreendem, os alunos também lêem com rapidez
tais imagens técnicas. Sabe-se que tal leitura não é tão simples assim, visto
que os diagramas e outras ilustrações técnicas projetam seu conteúdo através
de uma série de convenções gráficas especializadas. As convenções são inúmeras e variam de uma disciplina para outra, por isso se fazer necessário o
letramento visual. Depende, então, dos docentes que os alunos desenvolvam a
capacidade de entender e interpretar corretamente as representações técnicas
e científicas. Lowe (2001) ainda sugere que o ensino dessas habilidades deve
ter início desde a pré-escola, instruindo as crianças a realizar desenhos simples
e, paulatinamente, chegar à imagem técnica. Não é aconselhável dar já pronta
a representação especializada ao estudante. O letramento visual é um componente essencial na educação científica e tecnológica de hoje.”
Wysoki (2004) afirma que a imagem de um texto constitui um forte
indício para identificação do gênero textual. Tal afirmação se torna facilmente
verificável em textos com maior observância das normas padronizadas, mas,
com as facilidades de manipulação gráfica em computadores, atreladas ao espírito criativo dos produtores textuais, muitas vezes a imagem visual do texto
não garante de imediato a identificação do gênero. Vejamos um exemplo em
que a utilização do recurso da infografia despista o leitor.
(9)
23
Minha primeira reação ao me deparar com essas duas páginas no interior
da Superinteressante (dez. 2000) foi uma mistura de encantamento e curiosidade. Encantamento pela beleza visual do que naquele momento me parecia
a fotografia de uma estante repleta de livros usados (veja que, como leitora
não-especialista em Comunicação, achei que seria uma fotografia! O gênero
textual para mim, à primeira vista, era uma fotografia!). Curiosidade, porque
bem sei que, se “aquilo” fosse uma fotografia, teria um propósito comunicativo
maior ali, pois a fotografia como texto começava e terminava naquelas páginas
duplas. Não estava associada a nenhum outro texto. Então, certamente, não
seria uma mera fotografia. Após essa leitura de mera identificação do visual,
resolvi ler o verbal, ou seja, fui ao início do texto, que se encontra no dorso do
primeiro livro, à esquerda da estante, na primeira prateleira, com a seguinte
indagação: que gênero textual estará emoldurado nessa estante?
A leitura do dorso do primeiro livro me situou em relação ao que seria
aquele texto: uma “estante de conhecimentos” que contém a história da História das Idéias, como afirma o título. A íntima relação entre os textos visual
e verbal se consagra já no sobretítulo: Biblioteca Básica. As imagens dos
livros aqui se fundem como ilustrações das obras dos pensadores da história
da humanidade e como espaço físico para a escrita do texto do jornalista. A
palavra não é simplesmente posta numa folha de papel, mas sim sob a imagem
de dorsos de livros.
A escrita está centralizada, exigindo uma
leitura de cima para baixo.
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O texto verbal está hospedado no dorso dos livros, alinhados diacronimamente na estante. Assim, proceder à leitura consiste em ler os dorsos. Naquele momento, deparei-me como outra exigência proveniente da disposição
gráfica do texto: para continuar a leitura precisaria mudar a posição da revista,
porque a posição da escrita não é mais a convencional no mundo ocidental, isto
é, da esquerda para a direita em linhas horizontais.
A escrita está no dorso dos livros, exigindo uma leitura da coluna / estante da direita
para a esquerda.
A leitura desse texto requer uma postura diferente: o leitor deverá lê-lo, a
partir do segundo dorso, de cima para baixo e da coluna / estante da direita para
a coluna / estante da esquerda, como predomina na escrita do mundo oriental.
Posso sistematizar as orientações de leitura desse texto em quatro etapas:
a) Direcionamento da leitura global do texto: horizontalmente, da esquerda para a direita;
b) Direcionamento da leitura do texto verbal, primeiro dorso: verticalmente, de cima para baixo;
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c) Direcionamento da leitura do texto verbal, demais dorsos: verticalmente, de cima para baixo e da esquerda para a direita;
d) Direcionamento da leitura do texto verbal e visual entre as prateleiras: de cima para baixo e da direita para a esquerda.
Para melhor visualização, vou tomar um fragmento do texto em estudo
nas duas posições: na vertical, posição original, e na horizontal, posição escolhida para leitura. Interessante verificar que, após inverter a posição da revista, a
leitura dos dorsos, a partir do segundo, enquadra-se na norma-padrão de escrita
nas sociedades ocidentais. A forma de disposição da escrita se altera, mas o
leitor busca, através do manuseio do suporte do texto, adequar a disposição
gráfica ao seu método original de ler.
Interessante também observar como se dá a ocupação do espaço
consagrado para indicação de autor e título nos dorsos dos livros, os quais,
numa comparação grosseira, equivaleriam a blocos de parágrafos. No espaço
do autor, isto é, na parte inferior do dorso, estão localizados (i) os grandes
pensadores, ou seja, os próprios autores, como, por exemplo, Platão, e (ii) as
escolas filosóficas, como em PRÉ-SOCRÁTICOS. Já no espaço consagrado ao
título, estão inseridas as informações sobre (i) as contribuições dos grandes
pensadores, quando estes já ocupam visualmente o lugar destinado aos autores, (ii) as características de determinada escola e a citação dos representantes
das escolas filosóficas, quando estas se encontram no espaço normalmente
destinado aos autores. Merece que se destaque ainda a utilização dos dorsos
26
em cor preta para separar, diacronicamente, as idéias filosóficas no decorrer
dos séculos, desde VI–IV a.C. até os SÉCULOS XX–XXI.
27
Do ponto de vista lingüístico-textual, parece-me interessante observar
como a disposição gráfica interage com a progressão informacional, ou seja,
como se estabelecem as relações entre os segmentos textuais. Há o aproveitamento do espaço, tradicionalmente destinado à identificação do autor, no dorso
do livro, para situar o início dos enunciados que constituem o texto verbal, responsáveis pela explicitação da evolução histórica das idéias da humanidade.
O termo ARISTÓTELES funciona, visualmente, como identificação do
autor do livro e, sintaticamente, como sujeito da estrutura lingüística “FOI
DISCÍPULO DE PLATÃO, MAS NÃO CONCORDAVA COM A EXISTÊNCIA DE UM
MUNDO SUPERIOR, VOLTANDO SUA ATENÇÃO PARA A REALIDADE SENSÍVEL
E PARA AS CIÊNCIAS DA NATUREZA”. Há, portanto, uma progressão linear
temática e visual.
Como afirma Lemke (2000:269), multiletramentos e gêneros multimodais podem ser ensinados, mas é necessário que “professores e alunos estejam
plenamente conscientes da existência de tais aspectos: o que eles são, para
que eles são usados, que recursos empregam, como eles podem ser integrados um ao outro, como eles são tipicamente formatados, quais seus valores e
limitações”. De forma bastante incisiva, Kress e Van Leeuwen (1996:15) asseveram que em “termos de letramento visual da nova mídia, a escola produz
iletrados”.
5. Lendo mais sobre o tema
Como os temas abordados neste artigo nem de longe se esgostaram,
vou finalizar com uma sugestão de leituras que possibilitam, a meu ver, a continuação dessa conversa. Por onde recomeçar a conversa é uma decisão de cada
leitor. Se quiser variar na língua, também é possível.
— BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005.
— ______. Gênero, agência e escrita. São Paulo: Cortez, 2006. (a sair em
agosto)
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— HANDA, C. Visual rhetoric in a digital world: a critical sourcebook. New York:
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— KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros textuais
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28
— KLEIMAN, A. (Org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado de
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— KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender. São Paulo: Contexto, 2006.
— KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. New York: Routledge, 1996.
— MARCUSCHI, L. A.; DIONISIO. A. (Orgs.). Fala e escrita. Belo Horizonte: Autêntica.
— MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros teorias,
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Programa de pós-graduação em Letras, 2004. (mimeo)
Recife, julho de 2006.
30
II
Aspectos semânticos e discursivos
no texto jornalístico
Sandra Batista da Costa1
Introdução
Neste trabalho, temos por objetivo mostrar que algumas noções semânticas2 e discursivas podem ser abordadas no ensino fundamental e médio a fim
de que se amplie a prática reflexiva sobre o funcionamento de procedimentos
que atuam na constituição do sentido do texto. A compreensão desses recursos é essencial, porquanto constituem competências lingüísticas e discursivas
fundamentais para formar sujeitos leitores e autores de textos. Analisaremos
dois recursos semânticos: a pressuposição e o acarretamento, mas também
recorreremos à noção de formação discursiva e memória discursiva para indicar o efeito de sentido decorrente do processo discursivo.
Desde a década de 70, o enfoque no ensino de língua vem alterando-se
sensivelmente. Observamos, cada vez mais, um afastamento de uma relação
pedagógica mecânica com a língua em direção a um trabalho reflexivo sobre
a linguagem. Essa transformação desencadeou outras: a reelaboração de
propostas curriculares, de materiais didáticos e a atualização permanente dos
educadores. Entre tantas outras mudanças, destacamos a crescente preocupação com a transposição didática de pressupostos que, embora sejam objeto de
pesquisas acadêmicas, não penetram ainda no ensino fundamental e médio.
1
Doutoranda em Lingüística (UNICAMP), Mestre em Lingüística (UFPR), professora do curso de Letras da PUC-PR.
Duas obras de Rodolfo Ilari procuram estender a semântica para a sala de aula: Introdução à semântica: brincando
com a gramática e Introdução ao estudo do léxico: brincando com as palavras. A primeira aborda a construção do
sentido especificamente da sintaxe e a outra enfoca as palavras.
2
31
Para que o professor de língua materna possa efetivar o que se tem denominado reflexão lingüística, ele precisa assimilar aspectos teóricos bem como saber
aplicá-los. Colocamo-nos aqui diante do desafio de fazer que algumas noções
semânticas e discursivas sejam objeto de reflexão, assim como transpostas,
após algumas adequações, para a sala de aula.
Os recursos semânticos
A atualização do sentido de alguns enunciados decorre geralmente de
elementos que estão implícitos nos textos, ou seja, informações que, embora
não tenham sido enunciadas explicitamente, podem ser inferidas pelo leitor
por meio de um raciocínio que parte da própria sentença. A pressuposição
e o acarretamento são recursos semânticos que caracterizam esse trabalho
lingüístico.
Para constituir o sentido dos enunciados, o leitor recorre intuitivamente
aos conteúdos implícitos, embora não tenha, muitas vezes, a consciência dos
recursos lingüísticos que acessa. O papel do professor é fazer que o aluno
perceba esses recursos e compreenda o funcionamento à constituição do sentido.
Frege, filósofo alemão que viveu no final do século XIX, observou que
há um tipo de conteúdo que se pressupõe de certas sentenças3, ainda que elas
sejam negadas, colocadas em forma interrogativa ou mesmo na forma condicional. Se um promotor, por exemplo, encarregado de provar que um réu é culpado,
indaga-lhe:
(1) — Você parou de vender cocaína?4
O advogado de defesa pode alegar que a pergunta está induzindo o
cliente a assumir uma culpa, pois, caso o réu responda “sim” ou “não”, compromete-se, isto é, há a pressuposição de que ele vendia cocaína. A sentença
(1) pressupõe:
(2) Você vendia cocaína.
Se foi possível pressupor a sentença (2), é porque (1) sugere que o conteúdo pressuposto em (2) seja verdadeiro. Mesmo que o enunciado seja negado,
o pressuposto não se altera. Vejamos a sentença que segue:
(3) Você não parou de vender cocaína.
Ainda que a sentença (1) passe para a forma negativa, o pressuposto
(2) permanece. Por conseguinte, uma informação é pressuposta quando ela se
mantém, mesmo que neguemos a sentença que a veicula.
Algumas sentenças apresentam recursos que desencadeiam a pressuposição, por exemplo, verbos de mudança de
estado: deixar, começar, parar; verbos implicativos: conseguir, esquecer. Para maiores informações consultar MOURA, Heronides; MELO, Maurílio de. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e pragmática.
Florianópolis: Insular, 1999; CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte:
UFMG, 2005.
3
Exemplo tirado de OLIVEIRA, Roberta Pires de. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas, SP: Mercado
de Letras, 2001, p. 84.
4
32
Selecionamos duas notícias para caracterizar os conteúdos pressupostos.
Extinta a pena de morte
Manila — A presidente das Filipinas, Gloria Macapagal Arroyo, assinou ontem
uma lei extinguindo a pena de morte no país. Foi o primeiro ato da presidente após sair do
hospital em que foi internada na quinta-feira com problemas intestinais.
A lei, adotada por unanimidade no início do mês pelo Senado, substitui a pena
de morte pela prisão perpétua. Para a presidente, a mudança “marca o fim de uma era de
justiça vingativa”.
A lei comuta de maneira automática as condenações à morte de cerca de 1.200
presos. Sete execuções aconteceram no país entre 1999 e 2000.
Só faltava a assinatura de Arroyo para as Filipinas se unirem ao grupo de três nações da
região da Ásia — Austrália, Nova Zelândia e Timor Leste — onde não existe a pena capital.
A presidente enfrentou uma forte oposição de setores da sociedade filipina favoráveis à pena de morte.
Gazeta do povo, 25 de junho de 2006.
Pode-se pressupor da primeira sentença do texto:
a) Uma mulher ocupa a presidência das Filipinas.
b) Nas Filipinas há leis.
c) Umas das funções do presidente é assinar leis.
d) Nas Filipinas havia a pena de morte.
Para checar os pressupostos faremos um dos testes, o da negação:
A presidente das Filipinas, Gloria Macapagal Arroyo, não assinou ontem
uma lei extinguindo a pena de morte no país.
Mesmo que a lei não tivesse sido assinada, infere-se os conteúdos pressupostos em a, b, c e d.
Vejamos a segunda notícia:
Imposto
R$ 1 mil
é o novo valor que o PCC cobra de pedágio dos criminosos em liberdade que roubam e
traficam drogas no estado de São Paulo. O dinheiro é usado para manter mordomias dos
líderes da facção.
6
bandidos foram mortos porque não quitaram a mensalidade com o grupo.
Gazeta do Povo, 9 de julho de 2006.
É possível pressupor a partir do conteúdo posto que:
a) o PCC exige que criminosos paguem tarifas ao grupo.
b) o valor da tarifa é atualizado.
c) os líderes da facção desfrutam de mordomias.
33
d) há criminosos que não pagam suas dívidas.
e) alguns bandidos foram mortos.
f) as taxas devem ser pagas mensalmente.
Para checar os pressupostos, recorreremos, mais uma vez, ao teste da
negação:
R$ 1 mil não é o novo valor que o PCC cobra de pedágio dos criminosos
em liberdade que roubam e traficam drogas no estado de São Paulo.
O dinheiro não é usado para manter mordomias dos líderes da facção.
Seis bandidos não foram mortos porque não quitaram a mensalidade
com o grupo.
Ainda que as sentenças destacadas acima sejam negadas, os pressupostos a, b, c, d, e devem ser conservados.
Um outro procedimento de inferência é o acarretamento. Esse recurso
semântico decorre de uma relação entre sentenças. Toda vez que a verdade de
uma sentença (a) implica a verdade da sentença (b) ocorre acarretamento5.
Se dissermos que:
(4) A Itália ganhou a Copa.
Podemos concluir que:
(5) A Itália participou da Copa.
Mas algo diferente se processa nos exemplos a seguir:
(6) Hoje o sol está brilhando6.
Não acarreta:
(7) Hoje está quente.
Ter sol não é condição para estar quente.
Recorremos à chamada a seguir para analisar casos de acarretamento.
Brasileiro volta à Terra
A nave Soyuz TMA-7 com o astronauta Marcos César Pontes, primeiro brasileiro
a ir ao espaço, pousou ontem, às 20h48, perto de Akralyk, no Cazaquistão. A nave russa foi
desacoplada da Estação Espacial Internacional às 17h28. Pontes ficou dez dias em órbita.
A missão custou ao Brasil US$10 milhões. Pontes retornou com o russo Valery
Tocarev e o norte-americano William McArthur, que estavam há seis meses no espaço.
Eles foram levados a Moscou, onde ficarão sob cuidados médicos. Pontes deve se recuperar
em oito dias.
Folha de São Paulo, 9 de abril de 2006.
Procuramos sintetizar a noção de acarretamento. Para maiores detalhes ler CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: UFMG, 2005 e CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas, SP:
UNICAMP; Londrina, PR: EDUEL, 2003.
5
6
Esse exemplo foi retirado de Cançado (2005).
34
A partir do texto, são possíveis os seguintes acarretamentos:
a) Um brasileiro foi para o espaço.
b) Antes de Marcos Pontes, nenhum brasileiro tinha ido ao espaço.
c) A nave pousou na Ásia.
d) Pontes ficou 10 dias distante do planeta Terra.
e) O Brasil pagou pela viagem de Marcos Pontes.
f) Valery Tocarev e William McArthur ficaram seis meses longe da Terra.
g) Pontes volta à Terra em companhia de um russo e de um americano.
Mas há inferências que não são possíveis:
a) A nave brasileira levou Marcos Pontes para o espaço.
b) A nave pousou na Rússia.
c) O Brasil pagou à Rússia US$ 10 milhões.
d) O Brasil tem deixado de investir em Educação para gastar com viagens ao espaço.
e) Pontes foi para o espaço em companhia de Valery Tocarev e William
McArthur.
A leitura é uma atividade que requer um trabalho de reflexão acerca de
procedimentos de constituição do sentido. Saber ler é apropriar-se de recursos
que compõem a nossa competência textual. O leitor proficiente deve, pois, ser
capaz de efetuar uma série de operações, entre elas perceber, por meio da
inferência, informações implícitas.
O trabalho com a leitura envolve o ensino de várias habilidades lingüísticas. KLEIMAN (2004) cita algumas dessas capacidades: “apreender o tema e a
estrutura global do texto, para inferir o tom, a intenção e atitude do autor, para
reconstruir relações lógicas e temporais, bem como para realizar atividades de
apropriação da voz do autor, resumindo, recontando, respondendo perguntas
sobre o texto”.
Destacamos nesse trabalho a capacidade específica de inferir. O ensino
dessa habilidade deve desenvolver no aluno a capacidade para usar seu conhecimento de regras gramaticais implícitas, ou seja, procedimentos sintáticos
e semânticos inerentes ao funcionamento da língua, esses recursos não têm
a ver com as regras normativas. Quem tem competências à constituição do
sentido do texto deve ser um bom leitor ou, talvez, seja um bom leitor por ter
esse conjunto de habilidades.
A seguir, apresentaremos alguns elementos que indicam o efeito de sentido. Ao apontar esse efeito, não vamos descrever o significado, mas indicar os
sentidos possíveis.
35
Os elementos discursivos
Analisaremos o deslocamento de sentido que decorre no processo contra-argumentativo. Para tanto, recorreremos a dois conceitos que são considerados pela Análise do Discurso (AD) como constitutivos do sentido: a formação
discursiva e a memória discursiva.
Tomaremos como objeto de análise dois artigos publicados na Folha de
São Paulo no mês de março deste ano: “Carta ao MST”, elaborada pelo senador Eduardo Suplicy, e a resposta de Plínio Arruda Sampaio na “Carta aberta
ao senador Eduardo Suplicy”.
Buscaremos expor por meio da análise que a reformulação do discurso
do outro demarca a fronteira entre formações discursivas (FDs). Em outras
palavras, tanto Suplicy quanto Sampaio, no processo argumentativo, deixam
marcas do espaço ideológico de onde enunciam.
Na segunda semana de março deste ano, algumas militantes do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina destruíram mudas de
eucalipto e instalações do laboratório do centro de pesquisa da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul. O protesto foi uma resposta à destruição da aldeia
indígena dos guaranis, no Espírito Santo, pelos tratores da Aracruz; e também
um manifesto contra o agronegócio que prejudica a biodiversidade.
O fato teve uma grande repercussão na imprensa. O senador Eduardo
Suplicy posicionou-se sobre o acontecimento em carta publicado no jornal Folha
de São Paulo. Na semana seguinte, o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio
assume uma atitude responsiva e elabora uma réplica à carta do senador.
O acontecimento discursivo relatado produziu “dizeres” cujo sentido se
constitui por condições históricas de produção e também pela compreensão
das posições ideológicas com as quais os enunciadores se identificam, bem
como a relação que estabelecem com outros discursos.
Para PECHÊUX e FUCHS (1975), a produção do sentido se dá quando o
enunciado é concebido dentro de uma FD, definida pelos autores como “o que
pode e deve ser dito a partir de uma posição dada”. Um mesmo enunciado pode
produzir diferentes efeitos de sentido de acordo com a FD em que é concebido.
Com efeito, uma formulação discursiva pode sempre se tornar outra se for inserida em outro texto, ou seja, em outra FD.
O espaço aberto à réplica, seja a carta do senador ou do ex-deputado
federal, promove o aparecimento do interdiscurso, uma vez que se incorporam
dizeres de outras FDs a fim de redefini-los, negá-los, mas também permite
retomar elementos próprios à FD com o intuito de organizá-los, provocar o
desaparecimento, o esquecimento, assim como a denegação.
A noção de memória discursiva diz respeito à ocorrência histórica de
enunciados regulados por aparelhos ideológicos. A existência de uma memória
discursiva remete à reformulação, à retomada de discursos. Embora essas formulações já tenham sido ditas, ainda estão por se repetir.
36
Todo o trabalho de negociação do dizer é regulado por elementos ideológicos. Por conseguinte, a memória discursiva permite, de acordo com a conjuntura, a retomada, a repetição, a refutação e o apagamento de elementos
discursivos.
Mostraremos que Suplicy retoma pressupostos dos pacifistas Martin
Luther King e Mahatma Gandhi para estabelecer relações com ações do MST.
Quer com essa estratégia argumentativa defender que as lutas pacifistas são
mais adequadas e contam com apoio da população. Selecionamos primeiramente alguns trechos da “Carta ao MST”, elaborada por Suplicy, para mostrar
como o senador caracteriza a forma de ação do MST.
(1) Acredito que o MST consegue obter mais apoio do povo brasileiro para sua
causa sempre que utiliza meios pacíficos, não-violentos, e de respeito aos
seres humanos e ao que tiver sido construído honestamente por outros.
(2) O MST tem sido muitas vezes criativo. Assim, granjeou forte apoio do
povo para a justa causa da reforma agrária quando, por exemplo, organizou
as marchas para Brasília em memória das vítimas do massacre de Eldorado do
Carajás ou em memória da irmã Dorothy Stang, morta no ano passado pelos
interesses do latifúndio.
Forma de ação do MST
Pacífica
Não-violenta
Respeitosa
Criativa
Seguem trechos que caracterizam a forma de ação dos pacifistas Luther
King e Gandhi:
(3) Foi então que Martin Luther King Jr. conclamou seus compatriotas a seguir os
exemplos históricos de Mahatma Gandhi e outros, que realizaram movimentos
assertivos não-violentos para alcançar objetivos importantes e difíceis, como
o da independência da Índia, em 1947.
(4) Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura
e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa luta no plano alto da dignidade e
da disciplina. Nós não podemos deixar nosso protesto criativo degenerar
em violência física.
Forma de ação de Martin Luther King e
Mahatma Gandhi
Movimentos assertivos
Não-violentos
Criativos
37
O pronunciamento pacifista de Luther King é trazido, na forma do discurso citado, para o interior da FD onde o MST é inserido, o que significa dizer que
há elementos pré-construídos, produzidos em um exterior, que são trazidos
para o interior de uma FD. Promove-se, pois, um deslocamento de fronteiras da
FD, porquanto se aproxima o movimento pacifista de Luther King e de Gandhi
do MST.
A negação é um outro recurso utilizado para demarcar fronteiras discursivas. Ao enunciar que o “... o MST [...] utiliza meios pacíficos, não-violentos...”,
o enunciador leva o interlocutor a pressupor que deve haver ações violentas. Por
meio da denegação, mostra-se a identificação do sujeito enunciador com uma
FD, ou seja, rejeita-se a violência, demarcando o espaço da não-violência.
Na constituição do processo enunciativo, os sujeitos selecionam elementos que lhes são autorizados. Por outro lado, há elementos que são rejeitados,
ocultados pelo sujeito.
PÊCHEUX e FUCHS (1975) denominam o efeito da ocultação de esquecimento no 2. Esse é um processo de enunciação cujo funcionamento é da ordem
do pré-consciente e do consciente, o sujeito indica o que quer dizer. “Constatase, com efeito, que o sujeito pode penetrar conscientemente na zona do no 2 e
que ele o faz em realidade constantemente por um retorno de seu discurso sobre
si, uma antecipação de seu efeito, e pela consideração da defasagem que aí
introduz o discurso do outro”7. Ao dizer que a forma de ação do MST é pacífica,
criativa, respeitosa e não-violenta, o sujeito indica que há algo que não deve ser
dito: a destruição das mudas de eucalipto foi uma ação violenta.
O discurso tem uma memória, é constituído por um trabalho de reformulação e repetição discursiva. Há elementos que convêm dizer, retomar, contudo
há os que não convêm dizer em virtude de uma dada conjuntura política. O
MST e o PT, partido do senador Eduardo Suplicy, estiveram muitas vezes do
mesmo lado em embates políticos, por conta disso foram considerados por
muitos como única entidade política.
O ex-deputado Plínio Arruda Sampaio apresenta duas objeções à carta
do senador. A primeira está destacada a seguir:
(5) A primeira é a invocação das ações de Gandhi e Martin Luther King Jr. como
exemplos de ações não violentas que o MST deveria seguir. No entanto, a ação
das mulheres do MST, na Aracruz, se enquadra perfeitamente na tradição das lutas desses dois mártires dos oprimidos. O que elas praticaram
foi um ato de desobediência civil — ação que desafia a lei, a medida ou a
omissão injustas sem incitar agressão a pessoas.
PÊCHEUX, M.; FUCHS. A propósito da análise automática do discurso, atualização e perspectivas (1975). In: GADET, Françoise; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. Campinas, SP:
UNICAMP, 1990, p.177.
7
38
Seguem argumentos que justificam a objeção apresentada pelo ex-deputado:
(6) Em seus respectivos contextos, os atos de desobediência civil comandados por esses dois grandes líderes foram considerados inaceitáveis e
escandalizaram as pessoas sérias, honestas, cumpridoras das leis.
(7) A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas,
mas, sim, às pessoas. Repare bem no próprio texto transcrito na sua carta
aberta: Luther King diz que o protesto “não pode degenerar em violência física”.
Não há menção a causar prejuízos ao capital.
(8) Violência física não houve no ato das mulheres. Houve a destruição de
mudas destinadas a implantar a monocultura florestal no Rio Grande do
Sul. Sem falar nos danos que esse tipo de agricultura causa ao meio ambiente, é
preciso que todos saibam que se trata de uma forma de agricultura extremamente nociva à pequena agricultura.
Forma de ação de Martin Luther King,
Mahatma Gandhi e das Mulheres do MST
Lutas dos mártires oprimidos
Ato de desobediência civil
↓
Escandaliza
Não há violência contra pessoas
Sampaio compatibiliza as ações do Luther King e Gandhi com as das Mulheres do MST, mas faz isso para mostrar que são atos de desobediência civil. Observamos o processo de deslocamento de sentido, porquanto as ações não-violentas
deixam de ser somente um ato pacifista e passam a ser um ato político.
Sampaio apresenta um segundo contra-argumento com relação ao texto
de Suplicy:
(9) Minha segunda objeção a sua carta aberta se refere à falta de uma outra carta aberta: aquela que teria de ser enviada à Aracruz, reclamando da
destruição da aldeia indígena dos guaranis no estado do Espírito Santo
e falando sobre a ameaça que representa atualmente a monocultura da celulose
para os pequenos agricultores.
(10) Essa forma de violência, sim, se volta contra a existência física das
pessoas, na medida em que destrói o ambiente em que essas pequenas
unidades familiares podem sobreviver. No entanto, isso se faz daquela forma
disfarçada, asséptica, que o capitalismo usa para dar uma aparência de racionalidade à destruição dos grupos humanos que perturbam o “progresso” — o outro
nome da sua fome insaciável de lucro e de acumulação de capital.
39
A partir da carta de Plínio, tecemos um contraponto entre a ação praticada pela Aracruz e a pelas militantes.
Destruição da aldeia
Destruição das mudas
Violência
Desobediência civil
Forma disfarçada
Desafia a lei
Agride pessoas
Não agride pessoas
Destrói o meio ambiente
Escandaliza
Busca o lucro, o progresso
Causa prejuízo ao capitalismo
Ao retomar o discurso do senador, o ex-deputado desloca o sentido da
ação violenta. Aproxima os atos de Luther King e Gandhi das ações das mulheres do MST. A luta de ambos é denominada “desobediência civil”, pois desafiam
as leis, mas não agridem pessoas. Já a destruição da aldeia dos guaranis é compreendida como atitude violenta, atinge pessoas. A violência praticada contra os
índios é legitimada pelo capitalismo em nome do progresso, enquanto a desobediência civil não é legitimada pelo poder do capital, pois inibe o progresso.
Para analisarmos o deslocamento de sentido, que parte do discurso da
violência à desobediência civil, foi necessário percorrer uma rede de formulações discursivas. Buscamos caracterizar a retomada do discurso pacifista,
como um discurso pré-construído, a fim de demarcar o espaço da FD do MST
feita pelo senador Suplicy. Vimos que, embora Plínio Arruda Sampaio invoque,
também, as ações de Luther King e Mahatma Gandhi, elas são trazidas para
que se reconfigure a fronteira da FD do MST, isto é, esse não é um movimento
pacífico, mas sim político. A ressignificação da violência é vista do prisma da desobediência civil, por conseguinte se reconfigura o acontecimento discursivo.
Para os autores das cartas, o episódio da destruição das mudas caracteriza acontecimentos diferentes, pois desencadeiam efeitos de sentidos distintos.
Conclusão
Procuramos no decorrer desse trabalho transpor alguns conceitos que
circulam no universo acadêmico para o âmbito do ensino fundamental e médio
a fim de estabelecer uma ponte entre ensino e pesquisa.
Supomos que algumas noções semânticas e discursivas sirvam de ferramentas interessantes à leitura de textos, porquanto contam com elementoschave, que podem abrir o texto, isto é, indicam as possibilidades de constituição do sentido.
A pressuposição e o acarretamento levam aos implícitos, o que está nas
entrelinhas do texto. Já as noções de formação discursiva e a memória discursiva podem indicar o que está além das linhas do texto, pois um discurso não
está inserido num só texto, seu sentido está disperso por muitos textos.
40
Como o discurso não trabalha a transmissão de informação, não definimos o sentido com precisão. Consideramos que ele se constitui no jogo
discursivo, no embate entre os efeitos de sentido que emanam dos processos
discursivos.
Referências
CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas, SP: UNICAMP; Londrina, PR: EDUEL,
2003.
GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. Campinas, SP: UNICAMP, 1990.
ILARI, R. Introdução à semântica: brincando com a gramática. São Paulo:
Contexto, 2001.
______. Introdução ao estudo do léxico: brincando com as palavras. São
Paulo: Contexto, 2002.
MOURA, H.; MELO, M. Significação e contexto: uma introdução a questões
de semântica e pragmática. Florianópolis: Insular, 1999.
OLIVEIRA, R. P. de. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2001.
SAMPAIO, P. de A. Carta aberta ao senador Eduardo Suplicy. Folha de São
Paulo, São Paulo, 24 mar. 2006.
SUPLICY, E. M. Carta ao MST. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 mar. 2006.
41
Anexos
TENDÊNCIAS / DEBATES
Carta ao MST
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY
Meu caro João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra):
Com o sentimento de quem tem sido solidário ao MST desde a sua
fundação, como amigo da causa da reforma agrária e da realização de
maior justiça em nosso país, gostaria de externar minha sincera opinião
sobre os últimos acontecimentos em Porto Alegre (RS). Acredito que o MST
consegue obter muito mais apoio do povo brasileiro para sua causa sempre
que utiliza meios pacíficos, não-violentos, e de respeito aos seres humanos
e ao que tiver sido construído honestamente por outros.
Acredito que o MST obtém muito mais apoio do povo brasileiro
para sua causa sempre que utiliza meios pacíficos, não-violentos,
Falo isso por causa do episódio ocorrido na semana passada, quando
as companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina destruíram as mudas de eucaliptos e as instalações do laboratório da
Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul.
Bem sei que elas desejavam protestar contra um modelo de agronegócio que o MST tem criticado, uma vez que florestas homogêneas de
eucaliptos para a produção de celulose podem prejudicar a biodiversidade.
Também sei que essa atitude foi uma reação à destruição da aldeia indígena dos guaranis por tratores da Aracruz no Espírito Santo, ou seja, agiram
em solidariedade aos índios guaranis.
Reitero, entretanto, a recomendação que fiz quando, convidado pelo
MST, em 10 de julho de 1999, administrei uma aula na Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas) para mais de mil jovens — de quase todos os Estados
brasileiros — pertencentes ao movimento.
Dei de presente àqueles jovens a tradução que eu mesmo fiz de uma
das mais belas orações da história da humanidade: “Eu tenho um sonho”, de
Martin Luther King Jr., feita em 28 de agosto de 1963, em Washington, no dia
em que foram comemorados os cem anos da abolição da escravidão nos EUA.
Naquela época, Luther King Jr. se preocupava com a necessidade premente da aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei dos Direitos Iguais de
Votação. Em muitos Estados do Sul dos EUA, não era permitido aos negros
freqüentar os mesmos hotéis, restaurantes, escolas e banheiros ou usar os
42
mesmos ônibus e calçadas que os brancos. Os negros nem sequer eram
considerados cidadãos americanos, pois, em diversos Estados, não tinham
o direito de votar, o que gerou movimentos de revolta, quebra-quebras e
incêndios em inúmeras cidades.
Foi então que Martin Luther King Jr. conclamou seus compatriotas
a seguirem os exemplos históricos de Mahatma Gandhi e outros, que realizaram movimentos assertivos não-violentos para alcançar objetivos importantes e difíceis, como o da independência da Índia, em 1947. Naquele
dia, perante mais de 200 mil pessoas, disse Martin Luther King Jr.: “Esse
não é o tempo de nos darmos ao luxo de nos acalmarmos ou de tomar a
droga tranqüilizadora do gradualismo. Agora é a hora de tornar reais as
promessas da democracia (...) agora é o momento de fazer da justiça uma
realidade para todas as crianças de Deus. Seria fatal para a nação não perceber a urgência do momento”.
E, adiante, disse: “Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa
luta no plano alto da dignidade e da disciplina. Nós não podemos deixar
nosso protesto criativo degenerar em violência física. Todas às vezes — e
a cada vez —, precisamos alcançar as alturas majestosas de confrontar a
força física com a força da alma”.
Pouco tempo depois desse discurso, o Congresso norte-americano
aprovou — e o presidente Lyndon Johnson sancionou — as Leis dos Direitos
Civis e dos Direitos Iguais de Votação.
O MST tem sido muitas vezes criativo. Assim, granjeou forte apoio
do povo para a justa causa da reforma agrária — quando, por exemplo,
organizou as marchas para Brasília em memória das vítimas do massacre
de Eldorado do Carajás ou em memória da irmã Dorothy Stang, morta no
ano passado pelos interesses do latifúndio.
Para mostrar sua solidariedade aos índios guaranis, tenho a convicção
de que as mulheres da Via Campesina poderiam — e podem ainda — escolher
uma forma pacífica, criativa, utilizando muito mais a força da alma do que a
força física. De outra forma, daremos razão aos que, em pleno século XXI,
preferem utilizar os instrumentos bélicos em vez dos instrumentos civilizatórios do bom senso e da inteligência.
Eduardo Matarazzo Suplicy, 64, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), professor da EAESP–FGV, é senador da República pelo PT–SP. É autor do livro
“Renda de Cidadania — A Saída é pela Porta” (Cortez Editora e Fundação Perseu Abramo).
FOLHA DE SÃO PAULO, 17 de março de 2006.
43
Carta aberta ao senador Eduardo Suplicy
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO
Meu caro Eduardo Suplicy: Temos uma longa amizade e um longo
companheirismo político. Não me esqueço — e aproveito para agradecer
publicamente — do corajoso apoio que você deu a minha candidatura a
presidente do PT, numa hora em que isso iria lhe custar — como está custando agora — dificuldades com a oligarquia dirigente do partido.
A desobediência civil é gesto extremo para despertar uma sociedade anestesiada,
incapaz de ouvir os clamores do povo
Por isso mesmo sei que você receberá estas palavras como uma
contribuição sincera de um velho companheiro.
Levanto duas objeções à carta aberta que você enviou ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), publicada neste mesmo espaço na última sexta-feira, a propósito da destruição de mudas de espécies
florestais em um centro de pesquisas da Aracruz, no Rio Grande do Sul. A
primeira é a invocação das ações de Gandhi e Martin Luther King Jr. como
exemplos de ações não-violentas que o MST deveria seguir. No entanto, a
ação das mulheres do MST, na Aracruz, se enquadra perfeitamente na tradição das lutas desses dois mártires dos oprimidos. O que elas praticaram
foi um ato de desobediência civil — uma ação que desafia a lei, a medida
ou a omissão injustas sem incitar agressão a pessoas.
Em seus respectivos contextos, os atos de desobediência civil comandados por esses dois grandes líderes foram considerados inaceitáveis
e escandalizaram as pessoas sérias, honestas, cumpridoras das leis. Ora,
o objetivo das ações de desobediência civil é precisamente este: desassossegar consciências tranqüilas, como um meio de fazê-las ver a responsabilidade que têm na manutenção de situações inaceitáveis, porém admitidas
como normais e corretas. Trata-se de um gesto extremo para despertar sociedades anestesiadas, incapazes de ouvir os clamores do povo. Vejamos,
por exemplo, em que deu a marcha pacífica que os sem-terra realizaram
em Brasília, no ano passado, a fim de pedir, de forma respeitosa e ordeira,
a reforma agrária. Que resposta obtiveram do governo? Que solidariedade
receberam da sociedade? Que noticiário deram os jornais?
A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas,
mas, sim, às pessoas. Repare bem no próprio texto transcrito na sua carta
aberta: Luther King diz que o protesto “não pode degenerar em violência física”. Não há menção a causar prejuízos ao capital. Por acaso, o boicote do sal
e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionista no Sul dos Estados
44
Unidos e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo deixaram de causar enormes prejuízos materiais aos capitalistas?
Violência física não houve no ato das mulheres. Houve a destruição
de mudas destinadas a implantar a monocultura florestal no Rio Grande
do Sul. Sem falar nos danos que esse tipo de agricultura causa ao meio
ambiente, é preciso que todos saibam que se trata de uma forma de agricultura extremamente nociva à pequena agricultura. Poucos sabiam disso.
Agora, com a cobertura que a imprensa deu ao episódio, todos ficaram sabendo. Nisso consiste a desobediência civil. É selvagem porque a realidade
é selvagem. Minha segunda objeção a sua carta aberta se refere à falta de
uma outra carta aberta: aquela que teria de ser enviada à Aracruz, reclamando da destruição da aldeia indígena dos guaranis no Estado do Espírito
Santo e falando sobre a ameaça que representa atualmente a monocultura
da celulose para os pequenos agricultores.
Essa forma de violência, sim, se volta contra a existência física das
pessoas, na medida em que destrói o ambiente em que essas pequenas
unidades familiares podem sobreviver. No entanto, isso se faz daquela forma disfarçada, asséptica, que o capitalismo usa para dar uma aparência
de racionalidade à destruição dos grupos humanos que perturbam o “progresso” o outro nome da sua fome insaciável de lucro e de acumulação de
capital. Prezado Eduardo, o MST vive uma hora dificílima, porque o governo
depositário de suas esperanças não tem coragem de realizar a reforma
agrária nem de enfrentar as forças políticas que tentam criminalizá-lo,
como estamos vendo com a CPI da Terra.
Sei o quanto você já fez pelo movimento e sei também o apreço e
o respeito que os sem-terra têm por você. Seu artigo, contudo, embora
obviamente contra sua vontade, fornece munição aos adversários. Peço
que o reconsidere e que venha somar conosco na defesa incondicional dos
legítimos interesses dos trabalhadores rurais sem terra.
Por que não enviar uma carta aberta ao governo, a fim de exigir a
publicação dos índices atualizados de produtividade da terra? Isso permitiria acelerar a reforma. Caso a reforma fosse acelerada — você o sabe
tão bem quanto eu —, as pacíficas e extraordinárias mulheres do MST não
seriam compelidas — como estão sendo — a realizar gestos extremos a
fim de chamar a atenção da sociedade para o drama que vivem há muito
tempo.
Plínio Arruda Sampaio, 75, advogado, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do “Correio da Cidadania”. Foi deputado federal pelo PT–SP (1985–91) e
consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
FOLHA DE SÃO PAULO, 24 de março de 2006.
45
46
III
Reflexibilidade: alternativas de
intervenção na prática pedagógica
Joana Paulin Romanowski1
Este texto constitui-se em uma contribuição ao debate das possibilidades da reflexão para a proposição de alternativas para a prática pedagógica.
Focaliza a reflexão como uma das possibilidades de análise dos problemas da
prática e, a partir dessa análise, a construção de possíveis alternativas de intervenção nessa prática.
Estudos sobre práticas reflexivas realizadas por professores direcionam
a organização deste texto. Desse modo, primeiro se focalizam essas pesquisas,
especialmente as realizadas em nosso meio, tais como as de Martins (1993,
2000); Romanowski, Wachowicz e Martins (2005); Pimenta (2005); Souza
(2005). O exame das pesquisas realizadas tem por finalidade verificar quais
são os problemas relevantes da prática, indicados pelos professores, e compreender os processos reflexivos que norteiam essas pesquisas. Destaca-se que
as pesquisas sobre a prática pedagógica dos professores, iniciadas em 1982
com o movimento Didática em Questão, ampliam-se a partir dos anos de 1990,
pela valorização dos saberes da prática docente. O movimento Didática em
Questão colocou em cheque a perspectiva da racionalidade técnica na prática
e na formação dos professores2. Finalizam o texto indicações e delineamentos
Doutora em Educação (USP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná e Consultora Pedagógica da Faculdade Internacional de Curitiba.
1
2
Sobre este movimento consultar Martins (1998).
47
das possibilidades de desenvolvimento de programa institucional para realização de reflexão sobre a prática pedagógica, construído coletivamente na direção de indicativos de alternativas de melhoria dessa prática.
Práticas reflexivas dos professores
A pesquisa realizada por Souza (2005) com professores do Ensino Superior baseia-se em entrevistas que focalizaram o que os professores realizam
e como refletem sobre sua prática docente. Destaca-se que os professores
dizem refletir sobre sua prática constantemente. Esse processo ocorre antes
das aulas, no sentido de sistematizar, ainda que não sejam registrados, quais
temas serão trabalhados em aula e quais atividades serão propostas para os
alunos. Indicam também a realização da reflexão em aula quando algum fato
não previsto ocorre e exige algum encaminhamento. E fazem reflexão após a
aula, muitas vezes imediatamente ao término da atividade, no caminho para
casa. Relatam os professores que esses exames sobre a ação experienciada
contribuem para buscar novas alternativas para a melhoria dessa prática.
Evidencia-se na pesquisa de Souza (2005) que o foco das preocupações
dos professores diferencia-se ao longo da carreira. Professores iniciantes têm
preocupação mais intensa com os conteúdos a serem ensinados e com as técnicas de ensino a serem utilizadas durante as aulas; professores mais experientes intensificam suas reflexões para a aprendizagem dos alunos. Destacase que tanto os professores iniciantes como os experientes são interessados
em seus alunos e procuram conhecê-los, saber sua escolarização anterior, seus
interesses. No entanto, os professores mais experientes localizam as dificuldades de aprendizagem dos alunos e procuram fazer algo para minorá-las.
Na pesquisa realizada por Romanowski et al (2005), foram analisadas
monografias desenvolvidas por professores da educação básica para identificar
as preocupações desses professores de Ensino Fundamental. Os problemas
focalizados pelos professores nas monografias voltam-se para dificuldades e
distúrbios de aprendizagem dos alunos; práticas de inclusão de portadores de
necessidades especiais; questões de afetividade, de ludicidade e de disciplina
escolar. A subjetividade do aluno tem sua importância ressaltada pela freqüência
desses temas, que parecem indicar as categorias pelas quais é possível captar
e analisar as representações que os professores de Ensino Fundamental fazem
de seu trabalho profissional.
O estudo monográfico é feito mediante indicação de tema, problema de
pesquisa e objeto de estudo, ou seja, antecede a realização do estudo o projeto de pesquisa, que é analisado e orientado por professores do referido curso.
Durante o estudo monográfico, também é realizada orientação por professores
do curso. Depois de concluído o estudo, realiza-se defesa junto a uma banca
composta por dois professores do curso. Cabe destacar que a maioria das monografias constitui-se de pesquisa bibliográfica relacionada ao tema proposto pelo
48
cursista, que chamaremos professor-aluno. O levantamento dessas temáticas
aponta para preocupações como dificuldades e distúrbios de aprendizagem,
inclusão, ludicidade, metodologias e conteúdos curriculares e disciplina escolar,
em maior número. Em menor número, alfabetização, avaliação, afetividade, interdisciplinaridade, questões de aprendizagem da leitura, projeto pedagógico,
carreira e profissionalização docente, e estudo sobre a formação do professor.
Destacam-se os pedagogos escolares, que vêm indicando como tema de estudo a gestão escolar.
Para a sistematização das monografias, evidencia-se que os alunos-professores tomam como ponto de partida os problemas da prática docente, mas
o estudo é sistematizado a partir do referencial teórico do tema selecionado.
Os autores consultados geralmente são os indicados nas referências dos programas das disciplinas do curso. Além disso, observa-se consulta às páginas
da internet.
A organização da monografia toma por base a teoria, na perspectiva conceitual, para dizer o que é o fenômeno observado e escolher o objeto de estudo
monográfico. O texto constitui-se de um arrolado de definições dos diferentes
autores consultados. Nas considerações finais, há indicações do que foi compreendido e direcionado aos conceitos, como, por exemplo: “Esta monografia
permitiu compreender o que são as dificuldades dos alunos, ampliando nosso
conhecimento sobre o tema”. A inclusão de proposições para intervenção foi
observada em poucos estudos. Quer dizer: os estudos monográficos que se poderiam constituir em indicativos de alternativas para a prática pedagógica configuram-se na perspectiva da busca de modelos teóricos sobre os problemas
da prática. Estudos que incluem sugestões de atividades expressam-nas como
desvinculadas da fundamentação desenvolvida no referencial de estudo.
Nas monografias analisadas, percebe-se que a exigência do curso está
em jogo, bem mais do que a possibilidade de intervenção na prática pedagógica do professor. Denota-se essa preocupação pela fundamentação direcionada
à ênfase no aspecto formal do estudo e não no aprofundamento do questionamento das problemáticas da prática, anunciadas na introdução.
As pesquisas de Pimenta (2005) apontam implicações da organização
pedagógico-administrativa das escolas na atividade docente. Quer dizer: o
modo como a escola organiza as atividades pedagógicas, as exigências e solicitações institucionais constituem interferentes no modo como o professor
organiza sua prática de ensino. Além disso, os conhecimentos disponibilizados
na sociedade contemporânea somam-se nos processos de organização da prática docente.
Os estudos de Pimenta indicam que os professores não têm o hábito de
registrar sistematicamente acontecimentos vivenciados durante suas aulas.
Nenhum dos participantes havia realizado gravação ou filmagem de suas aulas
49
antes de participar da pesquisa. Segundo a autora, os professores, ao participarem de programas de pesquisa-ação, passam a realizar esse registro. A
inserção nesses programas provoca o desenvolvimento da reflexão para compreender os “porquês” de atitudes e decisões realizadas em aula. Ao realizar a
reflexão sobre a prática, a sala de aula transforma-se num espaço investigativo,
favorecendo a análise crítica e permitindo tomar consciência das ações e suas
implicações, bem como constituir o saber docente. Ao realizar a pesquisa-ação,
o professor estabelece um método de registro e análise de suas aulas, percebendo limites e avanços de sua própria prática.
Esse processo, segundo Pimenta (2005), permite ao professor a possibilidade de compreender sua condição de trabalhador e os limites de seu trabalho, mas amplia a compreensão do compromisso e da identidade profissional
e de seu significado.
Salienta-se que em pesquisas anteriores Martins (1993) destaca as implicações da organização pedagógica no processo de ensino e aprendizagem.
Nas palavras da autora, “a escola educa mais pela forma como organiza o processo de ensino do que pelos conteúdos ideológicos que veicula através desse
processo, isto é, o que se experimenta na prática tem muito mais significado e
é mais duradouro do que o que se ouve no nível de discurso” (MARTINS, 1993,
p. 24).
Na perspectiva crítica, segundo Martins (1993), o processo de reflexão
assume as categorias da dialética como direcionadoras da análise da prática.
O processo está em assumir a teoria como expressão da prática, tomando a
prática como ponto de partida. Importa explicitar as implicações das ações dos
professores no enfrentamento dos problemas do cotidiano frente às contradições sociais, quer dizer, compreender os determinantes da ação docente. A
prática contextualiza-se historicamente e está em movimento pela permanente
relação estabelecida entre sujeitos, grupos, classes sociais e condições de realização do trabalho.
Num primeiro momento, procura-se caracterizar e problematizar a prática pedagógica, em grupos, descrever como ela é e não como deveria ser. A
partir dessa caracterização da prática dos participantes, procura-se descrever
em termos de totalidade. A prática é uma síntese de múltiplas determinações.
O segundo é o momento da análise. Consiste no debate, na discussão e
na procura no referencial teórico de indicativos que contribuam para o processo
de explicitação daquela prática. Os professores, eles mesmos, coletivamente,
procuram compreender os determinantes da prática.
No terceiro momento a busca dos determinantes acentua-se. Os professores constroem a contextualização histórica, social e política e, a partir
dessa explicitação, apontam indicativos para propor alternativas àquela prática. Nesse processo, a contribuição de um professor-coordenador pode ajudar
50
na sistematização dos momentos e na indicação de referências, mas ele não
aponta alternativas e explicações. É mediador do processo, propicia condições
para o debate. Trata-se de um processo coletivo de análise crítica da prática,
com vistas à teoria, a partir da explicitação da prática (MARTINS, 1993).
Essas pesquisas indicam que a sistematização programada, contínua e
coletiva, na perspectiva de comprometimento institucional e com a intervenção
de programas de pesquisa do tipo pesquisa-ação, proporciona maior envolvimento e possibilidade de indicações de alternativas para a melhoria da prática
pedagógica do que os processos individualizados, ainda que esses processos
individualizados resultem em produções teóricas.
Implicações dos processos reflexivos na prática docente
As observações de Souza (2005) e Pimenta (2005) indicam a pouca sistematização realizada pelos professores nas reflexões espontâneas e individualizadas, embora constituam um processo que contribui na prática docente.
Sobre esse modo de pensar reflexivo, Dewey (1959, p. 13) refere-se
como “a espécie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o
assunto e dar-lhe considerações séria e consecutiva”.
Segundo esse autor, durante todo o dia, mesmo dormindo, pensamos,
mas de modo desordenado. São idéias que nos passam pela cabeça caoticamente, são imagens e recordações soltas e mesmo idealizações e crenças.
Quando efetivamente realizamos a reflexão, há um encadeamento lógico e
objetivo entre as idéias, em que elevamos à consciência as experiências e
crenças para examiná-las. Uma idéia é encadeada em outra e fazem sentido
entre si, além da busca de explicação dos motivos e bases que lhes originam.
Esse modo de pensar, que advém da observação e percepção de um fato,
constituindo-se em operações, “é problematizado a partir de duas situações:
a primeira é um estado de dúvida, de perplexidade, impondo uma solução; a
segunda é um estado de procura, investigação, que esclareça a perplexidade”
(LIMA, 2000, p. 73).
Segundo Martins (1998), o método de Dewey fundamenta-se em cinco
momentos: a) uma necessidade sentida definida num problema; b) a análise
desse problema; c) a verificação das alternativas de solução; d) a realização
da experimentação para exame do problema; e) a sistematização desses resultados de modo científico. A experiência vivenciada é o ponto de partida e ao
mesmo tempo a possibilidade de reelaboração.3
Na realização dos processos reflexivos ocorre o desenvolvimento de
habilidades empíricas, analíticas, estratégicas e avaliativas. As empíricas consistem na capacidade de diagnosticar e registrar dados, para posterior análise.
Esses dados constituem fatos básicos, experiências, descrições das medidas e
3
Aprofundamento a respeito de implicações críticas a esse processo podem ser consultadas em Lima (2000).
51
atitudes empregadas durante as aulas. As habilidades estratégicas implicam
agir de acordo com a situação, pensar durante e sobre a ação. Nesse caso,
o professor, ao verificar que uma atividade proposta aos alunos não está sendo
realizada corretamente, imediatamente precisa realizar os ajustes necessários. As
habilidades analíticas são as direcionadas, com capacidade de relacionar a prática
e a teoria já existente, inferindo explicações possíveis aos meios utilizados com
os fins pretendidos. Trata-se de esforço para examinar e categorizar os dados
levantados para inferir as explicações possíveis e a elaboração da teoria a partir
da prática. As habilidades avaliativas direcionam a elaboração de julgamentos da
importância dos resultados obtidos concomitantes ao processo de análise.
Cabe destacar que os processos reflexivos exigem atitudes e disposição.
Entre as atitudes identificadas por diversos autores estão: mentalidade aberta, responsabilidade e entusiasmo. Nesse modelo a prática é o eixo central,
o ponto de partida da reflexão. A clássica separação entre teoria e prática é
substituída por uma relação permanente entre elas.
Segundo Libâneo (2002), as formas de reflexão podem ser por:
1. Introspecção, que é interiorizada e realizada por meio de análises
de biografias da vida de professores, em que cada professor reflete
sobre sua história de vida, sua profissão e sua prática. Os diários de
classe podem ser utilizados como material de reflexão.
2. Exame realizado após a ação docente, em que o professor examina
sua ação prática individualmente ou em grupo; cada professor relata
sua prática, seus diários e gravações das aulas para serem discutidos.
3. Indagação, que procura desvendar as situações que não podem
ser inferidas pelo relato das ações. Nesse caso as aulas podem ser
gravadas em vídeo, ou outro professor assiste às aulas e registra as
situações para depois serem analisadas.
4. Processo crítico coletivo de explicitação e proposição de alternativas para
a prática, a partir de uma rigorosa análise de seus determinantes.
Cabe ainda, destacar que as tendências dos processos reflexivos incorporam a perspectiva crítica, entendendo os professores como intelectuais críticos,
pesquisadores. A crítica inclui a compreensão da educação em seu contexto
amplo e incorpora uma reflexibilidade de cunho político em oposição às posturas neoliberais. A concepção crítica pressupõe o desenvolvimento de uma reflexão que
realiza o distanciamento da prática para vê-la, entendê-la, avaliá-la, explicitá-la
em seus determinantes sociohistóricos, em oposição à concepção neoliberal, que
se direciona para uma racionalidade instrumental. A perspectiva crítica entende
a atividade como necessidade de sobrevivência, de reação, de resistência. O
professor em sala de aula necessariamente terá uma ação — a consciência sobre
essa ação é que a qualifica para além dela — que permite perceber seu significado, no conjunto das relações sociais.
52
Referências
DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o
processo educativo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
LIBÂNEO, J. C. Reflexibilidade e formação de professores: outra oscilação do
pensamento pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Orgs.).
Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo:
Cortez, 2002.
LIMA, M. A. C. Escola nova, pragmatismo deweyano e formação de professores:
algumas (des)considerações. In: Diálogo educacional. Curitiba: PUC—PR, v. 4.
n. 10, set./dez. 2000.
MARTINS, P. L. O. Didática: um aprendizado crítico dentro da própria prática.
In: Revista Ande, v. 12, n. 19, 1993.
______. A didática e as contradições da prática. Campinas: Papirus,
1998.
PIMENTA, S. G. Pesquisa-ação crítico colaborativa: construindo seu significado
a partir de experiências com a formação docente. In: Educação e pesquisa.
São Paulo: USP, v. 31, n. 3, set./dez. 2005.
ROMANOWSKI, J. P.; WACHOWICZ, L. A.; MARTINS, P. L. O. As preocupações dos professores do ensino fundamental sobre o seu trabalho. In: Anais
Congresso Internacional Educação e Trabalho. Portugal, Universidade de
Aveiro, 2005.
SOUZA, G. M. R. de; Professor reflexivo no ensino superior: intervenção
na prática pedagógica. 2005. 148 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
53
54
IV
Projetos, Currículo e
Aprendizagem na Educação Básica
e Superior
1
Marcos Cordiolli2
O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais
eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Sua autonomia se
funda na responsabilidade que vai sendo assumida.
Paulo Freire
A cultura é uma noite escura em que dormem as revoluções de há pouco,
invisíveis, encerradas nas práticas, mas pirilampos, e por vezes grandes pássaros
noturnos, atravessam-na, aparecimentos e criações que delineiam a chance de
um outro dia.
Michel de Certeau
Parte deste ensaio foi apresentado no III Seminário Internacional de Educação — 2002, nas edições de São Paulo, Belo Horizonte e Uberlândia. A versão deste ensaio, publicada anteriormente, foi dedicada a Vivian e Viviane
Barletta e Andréia Bini; e às alunas do terceiro ano de Pedagogia do UnicenP (Curitiba, PR), em 2002. De todas
vale a lembrança e apreço pela forma como interagiram e se dispuseram a buscar, com autonomia, os caminhos do
conhecimento, numa bela demonstração de que uma outra educação é possível.
1
Mestre em Educação (PUC-SP) e graduado em História (UFPR); professor da graduação do curso de Pedagogia
(UniBrasil).
2
55
A educação brasileira vive importante fase de busca de caminhos alternativos. Um sem-número de possibilidades para organização curricular do
trabalho pedagógico é apresentada, debatida e experimentada em situações
distintas, em diversas instituições escolares de todas as partes do Brasil. A
organização do trabalho pedagógico na forma de projetos é uma dessas possibilidades, mas está entre aquelas mais enfatizadas e admiradas pelos educadores. Neste ensaio, tentei sistematizar algumas experiências que conheci,
acompanhei e que apresento em forma de teoria — que não pretendo absoluta, nem tampouco excludente ou contraposta à de outros autores. Espero contribuir na busca de respostas a necessidades pedagógicas que se apresentam
no cotidiano das instituições escolares.
Inicialmente procurei recuperar, brevemente, a concepção da proposição
de projetos como forma de organização do trabalho pedagógico e apresentar
algumas das principais vertentes da educação brasileira contemporânea. Num
segundo momento me dispus a examinar práticas de projetos que tenho visto
nas instituições escolares. Num terceiro momento busco elementos que seriam
referências para definição de projeto como uma das formas de organização do
trabalho pedagógico. Por último procurei teorizar sobre o impacto dos projetos
na forma de organizar o currículo e os conteúdos nas instituições escolares.
Não pretendo em hipótese alguma constituir tribunal para qualificar projetos
ou determinar aqueles que seriam ou não dignos dessa nomenclatura, mas
considerar elementos que proporcionem práticas de aprendizagem, (a) fundadas na colaboratividade e compartilhamento; (b) problematizadas a partir das
demandas dos estudantes e suas comunidades; (c) organizadas como trabalho
coletivo que possam superar as fragmentações dos saberes e dos processos
de constituição do conhecimento, seja na forma de disciplinas, de séries ou de
pré-requisitos; e (d) propiciar situações para a formação do caráter em processo de interação. Esses elementos, acredito, são fundamentais para constituir a
educação na qual os estudantes sejam efetivamente sujeitos, em instituições
escolares que respeitem sua condição de criança, adolescente, jovens e adultos, permitindo-lhes a realização de experiências humanistas e democráticas
no sentido da constituição da autonomia.
...
Projeto, na tradição pedagógica, revestiu-se do sentido de desenvolvimento de processos envolvendo várias pessoas, desdobrando-se em diversas
etapas e requerendo momentos de planejamento e avaliação3. As teorias da
administração têm desenvolvido metodologias e ferramentas de projetos para
aplicação em gestão empresarial, enquanto instituições escolares empreendem
Talvez a melhor definição seja a de Lück (2003) que associa projeto com planejamento-ação, para situações que
demandem “(...) um processo de análise, decisão e planejamento ágil e versátil, que possibilite concentrar e canalizar esforços, apropriar e disponibilizar recursos adequados, objetivar e clarificar idéias e propósitos, direcionar e
concentrar energia, a partir de uma compreensão clara e objetiva da situação, do seu contexto e do que se pretende,
associada ao processo de tomada de decisão e visão de empreendimento orientador da ação” (p. 10).
3
56
esforços para construir projetos educacionais4, nos quais consigam expressar
sua identidade pedagógica e orientar a ação coletiva dos diversos agentes envolvidos no processo escolar. A referência mais corrente ao termo projeto é o da
palavra latina projectu, uma das conjugações do verbo projicere, com o sentido
de atirar-se para frente5, reforçando, portanto, a idéia de ação, de desenvolvimento e de processo.
Os esforços para alterar as formas tradicionais de organização curricular
e do trabalho pedagógico, que tradicionalmente está centrado no professor e
na forma expositiva de conteúdos, fomentaram a idéia de associar projetos
aos processos de ensino e aprendizagem, gestando as práticas pedagógicas
nomeadas genericamente de “projetos de trabalho”, “trabalho por projetos”,
“metodologia de projetos”, “projetos de ensino-aprendizagem” e “pedagogia
de projetos”. Projetos, embora com experiências tão amplas e diversificadas, é
uma das escolhas num campo mais amplo que incluiria, entre outras, os temas
geradores; ações inter, trans e multidisciplinares; práticas contextualizadoras;
construções de núcleos de complexidade; desenvolvimento de competência;
elaboração de mapas conceituais. O trabalho em sala de aula pode ser organizado por uma dessas formas e pela combinação de duas ou mais delas (Cordiolli, 2002). Portanto vamos tomar, no presente ensaio, projetos como uma
das formas de organização do trabalho pedagógico.
1. Situando a problemática
Os projetos, como forma de organização do trabalho pedagógico, têm
longa trajetória na tradição pedagógica, tendo as primeiras elaborações ocorrido ainda no final do século XIX e encontrado expressão mais elaborada na
obra do educador John Dewey, na década de 1920. No Brasil, os projetos foram
propostos na década de 1930 por Lourenço Filho6 e Anísio Teixeira, importantes
interlocutores de Dewey no país.
Apesar de, a cada década, novos autores retomarem os projetos e acrescentarem novas e importantes contribuições, no Brasil, no entanto, apesar de
importantes e variadas experiências, o debate em torno do tema é precário e,
por vezes, tratado como novidade.
Esse tema foi reintroduzido no debate pedagógico brasileiro na década
de 1990, incluindo-se entre as vertentes principais de modelos de organização
curricular e do trabalho pedagógico que, então, questionavam o modelo diretivista7 da educação brasileira. Na prática, não se constituiu numa “pedagogia
4
Geralmente denominados de projetos políticos pedagógicos.
Almeida afirma que “(...) projeto, quando desenvolvido para além da fase do plano” não seria uma formulação adequada para o vocábulo em português, mas realizada em função da transposição de project do inglês (Ver: ALMEIDA,
Napoleão Mendes. Dicionário de questões de vernácula. 3 ed. São Paulo: Ática, 1996. p. 443).
5
6
Ver, em particular, o capítulo sobre projetos em Lourenço Filho (1952).
Por modelo diretivista estamos compreendendo a forma de organização curricular e do trabalho pedagógico na
qual a seleção de conteúdos, os procedimentos didáticos e de avaliação são elaborados previamente à realização das
aulas, cabendo ao professor/a conduzir os ritmos, processos e seleção de tema das aulas.
7
57
de projeto”, mas se instituiu como uma das formas de organização do trabalho
pedagógico, sendo incorporado por diferentes concepções pedagógicas — desde aquelas fundadas num individualismo meritocrático8, por construtivismos
vários, passando seguramente por todos aqueles que desejavam que a educação se deslocasse do foco do ensino para o da aprendizagem e, em particular,
daqueles que desejavam que o educando se colocasse na condição de protagonista de seu processo de constituição do conhecimento.
No Brasil, algumas vertentes construtivistas e sociointeracionistas, procurando caminhos para que os educandos assumissem postura mais ativa na
constituição do conhecimento, adotaram, em alguma medida, formas de projetos que alteravam o ordenamento prévio de conteúdos e respeitavam ritmos
distintos de aprendizagem. A pedagogia freiriana, nesse mesmo período, ampliou seu espaço na educação escolar, em particular com a implementação de
temas geradores, o que impulsionou diversas experiências com a organização
do trabalho pedagógico na forma de projetos9. Também nesse mesmo processo, diversas administrações populares implementaram as propostas de ciclos
de formação em redes municipais de ensino, num movimento conhecido como
Escola Cidadã, com a redefinição dos marcos pedagógicos da escola pública, e
em diversas dessas administrações também houve a implementação de experiências pedagógicas orientadas por projetos.
É importante constatar a presença, no Brasil, de importantes experiências do método denominado Problem Based Learning (PBL), também conhecido
por Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), principalmente na educação
superior. Nesse método, as propostas curriculares são organizadas a partir de
linha articuladora de módulos temáticos que se desdobram em problemas a
serem examinados, pesquisados e resolvidos pelos alunos em grupos e sob
tutoria dos professores. No PBL/ABP compete ao aluno organizar o seu tempo,
desenvolver métodos próprios de estudo e empreender esforço nas situações
de aprendizagem e de busca de informações.
Por último, ainda é importante constatar que as propostas de utilização
das mídias interativas assim como as práticas de Educação a Distância (EaD)
criaram entrelaçamento de metodologias de aprendizagem colaborativas, geralmente com a organização do trabalho pedagógico por meio de projetos.
Dentre as referências teóricas, seguramente a principal fonte de consulta
sobre o tema nas escolas de educação básica foi a obra de Fernando Hernandez
que tem a produção teórica inspirada em experiências escolares da Espanha.
São denominados de pedagogia ou concepção meritocrática aquelas que acreditam que o sucesso na aprendizagem
depende exclusivamente dos esforços do educando, sendo que a promoção seria resultado de seus méritos.
8
Um importante marco deste processo é a obra “Contribuições da interdisciplinaridade para a ciência, a escola e o
movimento sindical” (Nogueira, 1995).
9
58
2. O modelo pedagógico brasileiro e os projetos
O modelo pedagógico brasileiro está organizado para o atendimentopadrão de grupos numerosos e heterogêneos de estudantes, pois é possível:
(a) unificar e homogeneizar as práticas educativas e os materiais escolares;
(b) uniformizar a linguagem escolar; (c) ordenar as seqüências de conteúdos; e (d) padronizar os instrumentos de avaliação, promoção e certificação
de estudantes (Sampaio, 1997, cf. p. 63). A lógica desse formato pedagógico
é articulada pela proposta curricular baseada na segmentação das disciplinas,
dos processos de ensino e modelação das práticas escolares dos estudantes,
regulando os padrões de conduta, linguagem e pensamento. As mudanças na
sociedade e na cultura humana fizeram com que os resultados pedagógicos
desse modelo fossem cada vez mais reduzidos e questionáveis, mas ele continuou a ser reproduzido nas instituições escolares por tradição. Atualmente,
poucas propostas curriculares justificam com fundamentos claros e objetivos
o ordenamento dos conteúdos e as formas de avaliar a aquisição destes pelos
estudantes10.
A forma expositiva parece ainda ser predominante entre os educadores,
principalmente a partir do quinto ano do Ensino Fundamental. Apesar de muito
criticada pelos educadores, essa forma é mantida, geralmente sob alegações:
(a) do suposto baixo comprometimento dos educandos com a aprendizagem;
(b) das turmas numerosas; e (c) da extensão da jornada de trabalho dos
educadores, que reduzem o tempo de preparação e avaliação de atividades
diversificadas. As aulas, portanto, são preparadas e ministradas para educandos abstratos e padronizados, formuladas num discurso único e homogêneo,
estabelecendo a dissociação entre ensino e aprendizagem, num processo em
que o educador, supostamente, exerce sua tarefa de ensino e em que caberia
ao educando a responsabilidade e os esforços para a aprendizagem...
No modelo pedagógico denominado tradicional, encontramos, no entanto, experiências e proposições da organização do trabalho pedagógico na
forma de projetos, que se constituem num conjunto de atividades planejadas
minuciosamente e a priori. Portanto projeto, nessa concepção, seria o processo
organizado a partir de objetivos e temas prefixados, que se desdobrariam em
atividades, previamente justificadas e preparadas com a diversidade de tecnologias e recursos didáticos necessários e, geralmente, ordenadas em cronogramas fixos. A ênfase, portanto, está no planejamento prévio da organização do
trabalho pedagógico, sendo que a rigor não se constatam grandes mudanças
nos processos de ensino e aprendizagem, mas apenas na forma de planejá-los
e executá-los.
Uma parte das proposições desse modelo pedagógico incorporou diversos aspectos das teorias empresariais de Gestão por Projetos, que, numa
Argumentos como os de “ordem natural dos conteúdos” ou “da forma como está presente na maioria dos materiais
escolares” são freqüentemente manifestos por educadores/as que defendem e praticam esse modelo pedagógico.
10
59
visão matricial, define os objetivos e, a partir destes, determina as pessoas
responsáveis e os recursos necessários para executar as tarefas. A forma de
organização é semelhante à dos cases — ferramentas utilizadas nos programas
de gestão de recursos humanos e qualidade no mundo do trabalho11. Essas
tendências, no entanto, efetivamente mantêm o modelo pedagógico mesmo
com a inclusão de dispositivos pedagógicos diversificados.
Há, porém, outro bloco de tendências pedagógicas, das quais trata o presente, constituído pelas proposições de educadores que procuram: (a) romper
com a linearidade de planejamento e desenvolvimento de conteúdos, comumente definidos a priori; (b) buscar a superação da fragmentação de saberes
em disciplinas, da formação atomizada de professores e das grades temporais
fixas (de aulas semanais, avaliações bimestrais ou trimestrais e sistemas de
promoção anuais); (c) contextualizar, problematizar e criticar efetivamente os
temas em estudo; (d) desenvolver instrumentos de avaliação processuais e superar as ferramentas tradicionais de avaliação centrados apenas em resultados
do ensino; (e) promover situações de aprendizagem interativas, contrapondoas à hegemonia das formas expositivas de saberes nas aulas; (f) conquistar o
envolvimento efetivo dos educandos no processo pedagógico e na constituição
de aprendizagens significativas, como alternativa ao modelo enciclopedista
de aquisição passiva de saberes (formalizados em informações e conceitos) e
procedimentos isolados e sem vínculo concreto com as práticas culturais dos
estudantes; (g) estimular procedimentos de pesquisa como forma de superar
o uso passivo da tecnologia da informação e a oferta reduzida de materiais
pedagógicos flexíveis e interativos; (h) “desformalizar” e desburocratizar os
procedimentos pedagógicos e administrativos das instituições escolares. Enfim, procuram a superação da pedagogia decorrente do modelo fordista de
organização do trabalho e da produção capitalista de mercadorias e serviços.
Estas proposições também levam a constatar que os objetivos da atividade escolar, em suas diversas formas, não podem ser reduzidos a conteúdos
e métodos a serem apreendidos pelos educandos, mas, como aponta Giroux,
expressam o processo de introdução de determinado modo de vida (Moreira,
1995). Para Silva (1995), as instituições escolares funcionam para “(...) organizar as experiências de conhecimento de crianças e jovens, com o objetivo de
produzir determinada identidade” (Silva, 1995, p. 184).
Podemos ainda constatar que
(...) as narrativas contidas no currículo corporificam noções particulares
sobre conhecimento, sobre formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais, explícita ou implicitamente. Elas dizem qual conhecimento
é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o
As proposições desses projetos ganharam um novo impulso a partir da década de 1980 por influência da adoção
das “técnicas e metodologia de gestão por projetos” adotadas nas empresas, que derivam das concepções de administração da Escola de Relações Humanas (Vermelho, 1998) integrada ao modelo de regulação capitalista conhecido
como Toyotismo ou ainda como Empresa Integrada e Flexível (Harvey, 1985).
11
60
são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom
e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais
não o são (Silva, 1995, p. 4).
Assim, o conteúdo dos currículos e do trabalho pedagógico envolve os
bens culturais da humanidade, forma saberes (entre estes os acadêmicos e os
populares) e trata das diversas manifestações de arte, valores, padrões de conduta e experiência de sentimentos. A escola, no entanto, reconhece oficialmente como conteúdo apenas o que está inscrito no currículo oficial (aquele que é
formalizado e por isso denominado, também, de currículo legal ou explícito).
O currículo em ação reúne todas as práticas e ocorrências pedagógicas, com
as tentativas, os sucessos e os erros nos processos de aplicação do currículo
formal. No cotidiano escolar, é fácil constatar a existência de currículos ocultos
compostos por conteúdos incluídos pelo professor por sua própria conta, às
vezes até de forma clandestina, omitindo-os dos registros escolares. Incluemse aqui, também, as experiências vividas no espaço da escola pelo aluno, que
implicam a regulação de comportamento e promoção de capacidades (Forquin,
1993). Também podem ser identificados currículos invisíveis, compostos por
práticas culturais na escola, mas que não são explícitos nem aos olhos dos próprios professores (Moura, 2003), como aquelas de ressignificação de valores,
referendando ou deslegitimando determinadas condutas (como, por exemplo,
o reforço de condutas racistas, sexistas, elitistas, etc.; a domesticação de emoções, a sublimação de desejos, a regulação das situações e as possibilidades de
afeto). Essas diferentes dimensões comporiam o currículo concreto, resultante
de diferentes formas de planejamento e organização do trabalho pedagógico.
Essas proposições implicam superar, pelo menos, duas tradições importantes na educação brasileira: (a) a da linearidade na forma de expor temas
de estudo, sistemas de conceitos e domínio de procedimentos e (b) do caráter
eminentemente expositivo de conteúdos pelos educadores e/ou materiais didáticos. E compreender as práticas pedagógicas como processos de aprendizagem e de interação formativa entre professores e alunos e de alunos com
alunos, que visam tanto ao aprimoramento intelectual, como à formação do
caráter e à experiência de sentimentos dos e pelos educandos no espaço escolar (Cordiolli, 2001b).
Os meios, as condições, as ferramentas e os instrumentos pedagógicos
podem ser e o são configurados de maneiras distintas nas diferentes experiências de organização do trabalho pedagógico na forma de projetos. Mas,
a principal busca (e conquista) parece ser a constituição de formas de lidar
efetivamente com a diversidade cultural, de estágios diferenciados de domínio de saberes, com distintos interesses, necessidades, ritmos e processos
de aprendizagem. Isso implica na alteração da relação entre educadores e
educandos, para que estes ocupem a posição de protagonistas dos processos
de aprendizagem e o educador a de organizador de situações pedagógicas nas
quais ocorram esses processos.
61
3. Os projetos mobilizadores e compartilhados
Podemos agrupar os projetos como forma de organizar o trabalho pedagógico em dois tipos básicos: os mobilizadores e os compartilhados. Os projetos mobilizadores, aqui definidos como sendo aqueles cujos temas e objetivos
são propostos pela instituição escolar e/ou educador e implementados em conjunto com os educandos. Esses tipos de projeto são denominados projetos de
ensino por Hernandez (1998).
O segundo grupo, denominado de projetos compartilhados, porque seus
processos devem ser construídos a partir de problemáticas e questões apresentadas pelos estudantes e mediadas pela instituição escolar — educador. A
esses Hernandez (1998) propõe a denominação projetos de aprendizagem.
Os projetos mais eficazes na perspectiva da aprendizagem, na opinião
de Hernandez (com a qual concordo), seriam os compartilhados, mas, creio ser
importante reconhecer que a implementação dessa forma de organização do trabalho pedagógico — tanto por parte de educadores como de educandos12 — requer o aprendizado coletivo, assim como romper com elementos da cultura
escolar que depõem contra essa proposição. Penso que os projetos devem ser
experienciados por educadores e educandos, buscando mensurar adequadamente suas necessidades, constituindo assim as mediações necessárias no
ritmo possível e nas condições concretas. Também é importante reconhecer
a necessidade de educadores poderem efetivar projetos em parte — e não na
totalidade — de seus cursos, utilizando-os, portanto, como recurso didático.
Assim como é possível optar por projetos mobilizadores e compartilhados para
momentos e temas diferentes do mesmo processo de aprendizagem.
Nessa perspectiva, proponho que os projetos sejam tomados como possibilidade, e não como imposição, podendo ser desenvolvidos com combinações variadas para atender às necessidades dos estudantes e dos educadores,
assim como para possibilitar diferentes articulações com os temas geradores,
práticas de inter, trans e multidisciplinaridade e estabelecer procedimentos de
problematização e contextualização.
Os projetos podem ser variados e implementados em toda a educação
básica e superior. Por exemplo, uma instituição escolar com oferta de Educação
Infantil ao Ensino Médio pode estar desenvolvendo um projeto com todos os alunos, sob o tema reciclagem e aproveitamento adequado de papel, no qual cada
turma ocuparia um espaço de tempo mensal para a realização de tarefas específicas a elas delegadas. Em outros projetos simultâneos, as turmas de Educação
Infantil poderiam ser chamadas a organizar uma horta comunitária, utilizada para
realizar estudos sobre plantas; nos anos iniciais do Ensino Fundamental (1a a 4a
séries ou 1o e 2o ciclos) se poderia examinar o consumo de gêneros alimentícios
industrializados e sua implicação sobre a saúde humana; nos anos finais do
E mesmo alteração nas formas de regulação educacional, assim como reconhecimento e legitimação desta forma
de organização curricular e do trabalho pedagógico pela sociedade e pelos pais em particular.
12
62
Ensino Fundamental (5a a 8a série ou 3o e 4o ciclos), outro projeto poderia ser
organizado com temas ligados à sexualidade; no Ensino Médio, pode-se constituir um projeto para problematizar as relações entre profissão e mercado de
trabalho. Assim, diferentes projetos com objetivos distintos poderiam coexistir
no mesmo período, articulando interesses e temáticas variadas.
Essas iniciativas podem ser simultâneas a outros projetos decorrentes
das necessidades de aprendizagem de cada disciplina ou turma. Assim, as
turmas do primeiro ano do Ensino Médio poderiam estudar as diferentes formas de cálculos do sistema de crédito; as turmas dos anos iniciais do Ensino
Fundamental podem desenvolver projetos utilizando jogos para aprendizagem
da geometria. O professor de Ciências do sétimo ano do Ensino Fundamental
poderia propor a identificação de elementos químicos em rochas e plantas, recolhidos no espaço físico da instituição escolar ou do bairro. Enfim, os temas de
projetos podem ser amplos e variados, ser realizados por uma ou mais turmas
e, ainda, contar com a contribuição de um ou mais educadores, adotar temas
do currículo formal ou de fora dele. Vários projetos podem estar intercalados,
envolvendo uma ou mais turmas, integrando diversas disciplinas, envolvendo
diferentes professores. São muitas as possibilidades de organização de projetos e maiores ainda as combinações entre eles.
Seria possível transpor esse modelo, resguardando as devidas proporções para a educação superior; por exemplo, podendo implementar projetos
em educação ambiental e desenvolvimento de procedimentos acadêmicos para
todos os estudantes da instituição, combinados a projetos por setores, cursos
e turmas. Os projetos relacionados, neste exemplo, promovem tanto processos
de aprendizagem como de formação interativa, respeitando questões próprias
às respectivas faixas etárias e/ou aos cursos da educação superior.
4. Elementos para uma identidade dos projetos
A identificação de alguns elementos e fundamentos para a definição de
um campo dos projetos na organização do trabalho pedagógico é importante
para a construção da identidade desse procedimento didático. As duas definições primeiras seriam as de que projetos (a) não se manifestam apenas no
planejamento detalhado de aulas e (b) nem tampouco numa seqüência de
conteúdo previamente ordenada. Para definir o campo de projetos estamos
propondo os seguintes eixos: (a) compartilhamento; (b) ação coletiva e práticas colaborativas; (c) aprendizagem com pesquisa e diversidade de fontes;
(d) produção de sínteses distintas: a forma, a linguagem e o conteúdo da
produção docente; e (e) a socialização dos resultados com retorno à comunidade. Esses eixos correspondem a uma estrutura básica para a realização
de projetos que, dentre as várias vertentes, recomendamos a proposição de
Vasconcelos13 (2002): “definição do(s) tema(s)-problema, constituição dos
13
Para um aprofundamento desta estrutura recomendamos a leitura de Vasconcelos (2001).
63
grupos de trabalho, planejamento do trabalho, trabalho de campo, pesquisa
e teorização, produção de registros, apresentação, globalização e avaliação”
(Vasconcelos, 2002, p. 161).
4.1. O compartilhamento
O compartilhar se constitui no conjunto de práticas de planejamento,
ações e decisões coletivas, que implicam processo de interação com responsabilidade e companheirismo, de maneira que os envolvidos se sintam parte do
todo, possuam identidade com o coletivo e com o processo.
Nesse sentido, o compartilhamento significa o envolvimento dos educandos com os processos de organização das atividades pedagógicas, que se
justificam pelas descobertas peculiares (Hernandez, 1998), únicas e pessoais,
estabelecendo dinâmicas de tempo próprias e processos adequados para cada
situação de aprendizagem. Desse modo, seria possível organizar as atividades escolares a partir de questões e problemáticas formuladas pelos próprios
educandos, que constituiriam espaços de aprendizagem mais significativa e
socialmente mais importante. O trabalho compartilhado possibilita o estabelecimento de relações entre educadores e estudantes, o que permite reorientar
os projetos em seu fazer-se, podendo alterar suas atividades, sua orientação
e mesmo sua programação. Assim, compartilhar é também promover a gestão
coletiva dos processos de aprendizagem.
Nessa perspectiva, por exemplo, o objetivo de projeto, inicialmente
centrado no funcionamento do aparelho digestivo, pode ser deslocado para o
consumo de produtos saudáveis, caso isso capitalize mais o interesse dos alunos. A programação inicial para três meses pode ser ampliada, caso a turma
mantenha a empolgação e o interesse, podendo, por outro lado, ser o tempo
reduzido e até abortado, caso ocorra a produção significativa do envolvimento antes do prazo prefixado para a sua realização. Um outro projeto, como a
previsão inicial de elaboração de um jornal para a instituição escolar, pode ser
convertido em site da internet ou vice-versa. Portanto, temas e atividades podem ser reorientados durante os processos de desenvolvimento dos projetos,
para atender aos interesses e às necessidades dos alunos.
Uma instituição escolar adotou o tema Olimpíadas de Sidney que, evidentemente, foi escolhido em função da grande pressão da mídia, particularmente a televisiva. Os estudantes (e, creio, os educadores também) “embarcaram na onda”, mas com os resultados negativos dos atletas brasileiros na
competição, os alunos começaram a se desmotivar, mas os educadores se
sentiam obrigados a continuar “carregando aquele cadáver”. Muito transtorno
poderia ter sido evitado, caso os educadores discutissem abertamente a situação do projeto com os educandos. Isso poderia inclusive servir para determinar
melhor os critérios de escolha de novos temas.
64
Um curso de Ciências Contábeis implementou diversos projetos a partir
do tema Ponto de equilíbrio entre receitas e despesas, mas saturou os educandos que, depois de certo tempo, não agüentavam mais tocar no tema. Embora os educadores considerassem o tema como importante, era necessária a
percepção de que há momentos de interesse e empolgação assim como os de
refluxo e esgotamento.
4.2. A ação coletiva e as práticas colaborativas
A ação coletiva com práticas colaborativas parece ser questão central
na organização do trabalho pedagógico na forma de projetos, mas não aquela
atividade em que a turma se divide em equipes, o educador determina tarefas para cada grupo, as quais são fatiadas entre os membros da equipe para
depois ser costuradas sem integração ou interação14. Não é a essas atividades
coletivas que nos referimos, mas a outra forma, na qual os grupos sejam organizados, considerando pelo menos as possibilidades que se seguem.
Na primeira, consideram-se para a formação dos grupos os educandos
com potencialidades e dificuldades distintas, quanto a procedimentos escolares
e domínio de saberes; nesse caso, a ação colaborativa permite o processo de
aprendizagem em grupo. Um estudante, por exemplo, que possua boa capacidade de exposição oral, mas cuja produção de escrita seja insuficiente, pode
aprender com os colegas ao presenciar o tratamento escrito coletivo resultante
da sua verbalização sobre o tema. Também é possível que o estudante com
dificuldade em expor idéias na forma oral possa verificar suas limitações (e
perceber a possibilidade de superá-las) ao redigir as falas de colegas. Assim,
alunos com domínio de procedimentos distintos ou saberes diferentes podem
se ensinar e aprender mutuamente.
Numa segunda, as equipes podem reunir os estudantes com potencialidades e dificuldades semelhantes. Por exemplo, educandos tímidos ou com
dificuldades em exposição oral podem ser reunidos numa mesma equipe para
que colaborativamente se disponham a buscar soluções possíveis, a partir da
convergência do que cada aluno já sabe (ou consegue fazer) e do esforço coletivo para superar as necessidades. Pois não há ninguém que não saiba nada,
mas, sim, há aqueles que sabem menos e os que sabem pouco; ainda assim,
todos eles sabem algo de forma diferente. Reunindo o conhecimento específico
de cada estudante, somando-os ao esforço colaborativo, o grupo saberá encontrar caminhos e com isso realizar processos efetivos de aprendizagem sobre
os temas em estudo.
Numa terceira, as equipes podem reunir alunos que desejam investigar
a mesma abordagem ou trabalhar com as mesmas fontes, em relação ao tema
Um caso comum é do estudo de um texto, que geralmente é dividido e os/as alunos/as não lêem os trechos
anteriores ou posteriores à parte que lhes cabe, mesmo que iniciem com uma separação de sílaba... É a chamada
pedagogia Frankstein, do recorte e cola, do corte e costura, do recolhe e junta, no qual a soma das partes não
produz uma síntese e, às vezes, nem sentido.
14
65
investigado. Nesta situação, alunos que pertencem a diferentes grupos de relacionamento interno, nos quais se dividem as turmas escolares, podem vir a
se interessar pelos mesmos temas, trazendo as contribuições de seus saberes
peculiares e visões particulares de mundo.
As práticas escolares atuais, geralmente restringem as atividades coletivas, minimizando-as como processos avaliativos, com medo de que “uns sejam
levados nas costas por outros”, pois “um estudante que não participou de maneira adequada do grupo recebe a mesma nota”. O educador ou instituição escolar que se recuse ou limite as atividades coletivas, temendo perder o controle
e os mecanismos de vigilância sobre os educandos, repete os pressupostos da
pedagogia tradicional e conservadora fundada em princípios (a) meritocráticos, em que apenas os supostamente bons, eficientes e esforçados deveriam
chegar ao final dos cursos; (b) individualistas, pois dificultam a aprendizagem
coletiva, mantendo os pressupostos de que cada aluno seria responsável por si
e, por conseqüência, não construiria princípios de responsabilidade e cooperação coletivas; e (c) concorrencialistas, pois estimulam, mesmo indiretamente,
que educandos se comparem e se posicionem diante do olhar do educadoravaliador, através de processos classificatórios que hierarquizam as turmas em
função dos resultados de ensino e não dos processos de aprendizagem.
Nessas atividades, os educandos têm a possibilidade de redefinir o padrão de relacionamento entre eles; de trabalhar em equipe; de organizar processos de estudo, de pesquisa, de reflexão e de produção coletiva. Os temas
de estudo podem propiciar tanto o desenvolvimento de procedimentos tecnológicos como metodológicos. Também constituem espaços formativos de valores
e condutas, como os de respeito mútuo, solidariedade, de diálogo, de justiça e
de experiência: as de emoções, como as frustrações, de conquistas, de desejos
e de afetos (Cordiolli, 2001 e 2001 b).
Pode-se possibilitar aos educandos, ao vivenciarem experiências de socialização e interação, no contexto da relação individualidade-coletividade, se
reconhecerem como sujeitos de processos coletivos. Os estudantes precisam
de oportunidades, pedagogicamente organizadas, para constituir sua autonomia, para assumir suas responsabilidades e se posicionar perante o coletivo.
Assim, “(...) o educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto
mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Sua autonomia se funda na responsabilidade que vai sendo assumida” (Freire,1996, p. 13).
Há várias teorias que fundamentam a ação pedagógica de trabalho coletivo,
como as das assembléias de turma (ver Aquino, 2003) e comunidade de investigação (Sharp & Splitter, 1999).
Ferraz, no relato de uma experiência no Ensino Médio, observou que
a falta de organização e de responsabilidade para com os trabalhos escolares é
geral, ocorrendo em todas as disciplinas. Por isso, a mudança de comportamento
66
dos alunos, ao longo de três anos de aplicação do Projeto Ambiente em Foco, permite indicar que o exemplo de organização e responsabilidade é capaz de alterar
uma postura inadequada (Ferraz, 2002, p. 69).
Enfim, o trabalho coletivo e a aprendizagem colaborativa são também a
base para a formação humanista, democrática, cidadã, como pressuposto para
a constituição da autonomia. Nessa perspectiva, é fundamental possibilitar
diversos tipos de ações colaborativas em diferentes níveis, tais como entre os
colegas de equipe, com outros colegas da turma e a interlocução com outros
interessados pelo tema, utilizando desde o correio convencional até as possibilidades da internet como e-mails, salas de bate-papo e grupos de discussão.
A educação superior manifesta o desconforto com as atividades em grupo, uma vez que, geralmente, as equipes de trabalho são constituídas nos primeiros meses de cursos e se mantêm com pouca alteração quase até a formatura. Os educandos criam vícios como o da divisão prévia de tarefas (há os que
lêem os textos, os que redigem e os apresentam) e, por vezes, até constituem
consórcio nos quais partes das equipes se responsabilizem por atividades de
diferentes disciplinas. De certa forma, apenas parte dos educandos produzem
as atividades e ainda assim de forma fragmentada. Isso gera desconfiança por
parte de educadores que temem que educandos recebam notas “sem méritos”
e que outros se sintam injustiçados por ter “carregado colegas sem méritos”
na atividade.
As proposições apresentadas neste ensaio implicam reconhecer que a
questão principal é ética: a instituição que compactua com isso reforça diferentes formas de deformação de valores. Mas, por outro lado, isso é responsabilidade de educadores que não permitem espaços para o trabalho coletivo, pois
avaliam apenas os produto (os textos escritos ou apresentações orais), sem
acompanhar os processos nos quais os diversos educandos interagem. Ele — o
educador como propiciador de situações de aprendizagem e interação — pode
intervir constituindo as equipes e formulando atividades que remetam a formas
coletivas de estudo e aprendizagem.
Também é necessário estimular e permitir aos educandos o desenvolvimento de métodos de estudo que utilizem adequadamente os recursos disponíveis. E que, coletivamente, identifiquem os objetivos de estudo, promovam a
problematização, a crítica e a contextualização, em ações metacognitivas e na
perspectiva metadisciplinar. A organização do trabalho coletivo também implica
dividir adequadamente as tarefas e buscar a integração com coerência dos dados coletados, como base para a formulação de sínteses significativas.
4.3. A aprendizagem com pesquisa e a diversidade de fontes
A aprendizagem com pesquisa e a diversidade de fontes são elementos
fundamentais na organização do trabalho pedagógico na forma de projetos. Mas,
assim como as atividades escolares coletivas, também estão desacreditadas por
67
parcela de educadores e instituições, pois às vezes se apresentam resultados
ruins como cópias de livros15 ou compra de atividades prontas. Mas a superficialidade e fragilidade parecem também estar presente em grande parte das
pesquisas realizadas com algum grau de seriedade pelos estudantes.
Alguns professores afirmam, com base em experiências desse tipo, que
os estudantes não estariam interessados nessa forma de atividade ou não saberiam produzi-las. Por outro lado, todos conhecemos experiências ou depoimentos que afirmam que a aprendizagem com pesquisa, quando realizada com
sucesso, estimula e mobiliza os estudantes com resultados surpreendentes.
As instituições escolares, em particular os professores, devem estimular
os alunos com o compartilhamento de temas, envolvendo-se com as problemáticas, identificando-se com as necessidades e possibilidades de aprendizagem
do tema em estudo.
Mas a falta de estímulo dos estudantes, muitas vezes, também decorre
de temas pouco instigantes (que podem até o ser para o professor, mas não
se constituem em tal aos olhos dos alunos), de objetivos maldelineados e de
procedimentos obscuros. Pesquisar é antes de tudo a disposição de caminhar
por saberes, por disciplinas, por especialidades e também por distintas formas
de disponibilização de dados. Porém a pesquisa também pode assumir o levantamento de dados na produção de novos saberes, como elemento central dos
processos escolares. Assim, partimos do pressuposto de que não basta apenas
diversificar autores ou a bibliografia sugerida; se faz importante ir mais além,
a ponto de compartilhar saberes acessados em diferentes locais ou produzidos
a partir de investigação de fontes disponíveis e explicitar contrates entre distintas linguagens e interlocutores.
Isso implica três ações distintas: (a) a realização de pesquisa em fontes
disponíveis; (b) a coleta de depoimentos de familiares, pessoas da comunidade, personalidades locais, profissionais e especialistas em diversas áreas; (c)
o acesso e a análise das mídias disponíveis. Essas ações devem ser articuladas
ao acesso, contraste e diálogo com os saberes reconhecidos e sancionados
pelas instituições escolares.
A realização de pesquisa em fontes disponíveis implica ação de investigação — com instrumentos adequados de pesquisa e tratamento de dados — de
comunidades e da natureza para os estudantes da educação básica. Diferentes
comunidades, empresas e profissionais de um ramo da economia, de uma
mesma profissão, objeto de determinada área do conhecimento podem se
constituir em temas de pesquisas para os estudantes da educação superior e
do ensino profissionalizante de nível técnico (EPNT).
O que gestou uma verdadeira indústria de confecção de trabalhos, algumas delas com propagandas explícitas em
algumas escolas e campi. A situação se agravou nos últimos anos, em função da proliferação de sites na Internet
que disponibilizam textos prontos para as diferentes disciplinas e etapas escolares, em particular na Educação
Superior.
15
68
Na educação básica, as atividades de levantamento de dados sobre a
comunidade e as famílias podem reunir dados sobre aspectos da vida da comunidade — como a procedência geográfica das famílias, hábitos alimentares,
fontes de renda, modos de lazer, etc. — em projetos que sucedem por vários
anos, assumidos por diferentes gerações de alunos, produzindo seqüências
históricas de dados ricos e originais. Esses dados também podem vir a ser examinados e confrontados por novos levantamentos e por diferentes formas de
crítica, construindo referências para a contextualização da realidade dos alunos
e das comunidades no entorno da instituição escolar.
Na educação superior e no ensino profissionalizante, a aprendizagem
com pesquisa pode se constituir em atividade sistemática e permanente, articulada e articulando diversas disciplinas em diferentes anos, para compor base
de dados produzida com instrumentos acadêmicos de investigação empírica,
e ampliada constantemente pelas gerações de estudantes que se sucedem.
Essas bases de dados servem tanto como matéria-prima para os processos de
aprendizagem mais contextualizados e problematizadores, como para a produção de pesquisas e artigos acadêmicos dos docentes. Nos cursos da área de
saúde, por exemplo, os dados podem compor o perfil de grupos populacionais,
comportando diferentes investigações de estudantes e docentes dos vários
cursos. Nos cursos de Ciências Sociais Aplicadas, atividades diversificadas podem ser realizadas, por exemplo, com banco de dados levantados com pesquisas em microempresas de um mesmo ramo de atividade econômica, etc.
A coleta de depoimentos de familiares, pessoas da comunidade, personalidades locais, profissionais e especialistas em diversas áreas é distinta
das pesquisas descritas no item anterior, pois não requerem a utilização de
instrumentos rigorosos de pesquisa e tratamento de dados. Mas se constituem
em questionários de entrevistas promovidos por alunos com os pais e as pessoas do seu círculo de convívio, sobre os mais diversos temas. Assim como os
professores, as turmas e as equipes podem convidar familiares, pessoas da
comunidade, personalidades locais, profissionais e especialistas em diversas
áreas para prestar depoimentos ou debater os temas em estudo. A função
dessas atividades, além de ampliar a variedade de opinião e de saberes sobre
os temas em estudo, é o de permitir a manifestação de vozes e exposição de
saberes e valores que não são disponibilizados na escola.
O acesso e a análise das mídias disponíveis implicam verificar sua diversidade e tipologias. Poderíamos classificar as mídias, em função das necessidades pedagógicas, em diretivas e interativas. As mídias diretivas são de emissão
magnética, sejam abertas ou pagas (os canais de televisão e as estações de
rádios); as impressas em meio gráfico (os jornais, os livros, os folhetos e as
revistas); as impressas em meio magnético (discos de vinil, audiocassete, videocassete, CD, DVD, CDV, CD-ROM e cartuchos de jogos eletrônicos); os expositores de peças de propaganda (como os cartazes e outdoors); e os sites de
69
informação disponíveis na internet. O grupo das mídias interativas é composto
por telefone; programas com participação dos assistentes em rádio e televisão; sistemas de vídeo e teleconferência; e sistemas da internet como canais
de bate-papo, listas de discussão, grupos de e-mail, homepages interativas e
programas de comunicação instantânea. Nessa perspectiva os educandos podem pesquisar um mesmo tema, utilizando diferentes tipos de mídia como a
leitura de jornais, revistas e livros didáticos; análise de programas de rádio e
TV; visita a sites da internet; exame de folhetos e outdoors, etc.
A utilização pedagógica da mídia requer a compreensão longitudinal e
latitudinal dos temas nos diversos tipos de mídia. Na perspectiva longitudinal,
um tema pode ser examinado em diferentes tipos de mídia — jornais, revistas,
telejornais, sites acadêmicos; e na latitudinal, o tema pode ser examinado
num mesmo tipo de mídia, mas de mantenedores diferentes — em telejornais
de vários canais ou revistas de diferentes editoras, por exemplo. Os exames
por contraste das diversas fontes se constituem num importante processo
cognitivo que possibilita a percepção das diferenças na forma de disponibilizar
informações e saberes, despertando para a produção de análises críticas das
mídias, sobre seus fundamentos, estratégias discursivas, intencionalidade,
mantenedores, informações disponibilizadas, etc.
O acesso, contraste e diálogo com os saberes reconhecidos e sancionados pelas instituições escolares implicam redimensionar a função do professor,
pois este não precisa ser a única fonte de informação e saberes e de escolha de
materiais didáticos. No entanto, se fazem necessárias a preparação de instrumentos de pesquisas e a preparação dos estudantes na seleção das fontes utilizadas. A proliferação de sites e de publicações impressas permite a circulação
de toda sorte de texto: com conteúdos paradisciplinares produzidos sem o rigor ou com instrumentos inadequados, com reducionismos, com fundamentos
impróprios, com compilações, traduções e referências indevidas, etc.
O professor, nesse processo, além de ser o propiciador de situações de
aprendizagem, funciona como o balizador das fontes de pesquisas e pólo crítico
de seus conteúdos. Cabe aos professores e às instituições escolares organizar
conjuntos referenciais de materiais pedagógicos, como livros didáticos e paradidáticos, publicações de divulgação científica e sites educacionais especializados que funcionem como balizas para os estudantes. No entanto os materiais
selecionados pela escola não podem ser os únicos utilizados pelos alunos nem
ser o sancionador formal das pesquisas e tampouco o silenciador de vozes que
expressem opiniões, saberes e valores, mas se constituir contraponto pedagógico e possibilitar a organização de referenciais de contraste e checagem para
as ações de pesquisas.
70
4.4. A produção de sínteses distintas: a forma, a linguagem e o
conteúdo da produção docente
Os processos de aprendizagem dos estudantes ocorrem em diferentes
momentos, como os de acessar saberes diversos, interagir com discursos
variados, promover reflexões e debates com várias pessoas e em situação
distintas. Portanto o processo de sistematização e reelaboração cobra posturas
ativas dos educandos. Mas a nossa tradição escolar está permeada por práticas de educandos cujas atividades se reduzem, geralmente, à produção e à
reprodução de textos didáticos ou de discursos dos educadores. A produção
escrita de nossos alunos, comumente, constitui-se de processos formais e burocráticos, negando parte da vitalidade dos processos educativos. Mesmo em
situações escolares mais abertas e flexíveis, os estudantes, geralmente, escrevem tendo como interlocutor apenas o educador, por isso é preciso estimular
a diversidade de formas de produção estudantil como parte dos processos de
constituição do conhecimento, superando o formalismo das atividades escolares e vinculando-as a situações concretas da vida humana. Nesse sentido, nos
processos de aprendizagem, é importante organizar os saberes em diferentes
formas discursivas, variando os interlocutores, os meios e os temas, mas é
fundamental que essa produção seja avaliada pelo crivo da eficiência discursiva, do rigor, da precisão e da coerência de conceitos, pela fidelidade às fontes
e pela qualidade dos argumentos, das críticas e das generalizações.
As sínteses podem expressar resultados diferentes, pois grupos de educandos podem: (a) atingir o mesmo objetivo partindo de subtemas diferentes;
(b) atingir o mesmo objetivo, mas chegando a pontos de vista distintos e até
contraditórios; e (c) atingir objetivos específicos distintos, mas que se complementam no mesmo objetivo geral.
Os caminhos para atingir esse objetivo também são amplos e variados.
Neste texto, pretendo apontar alguns dos que considero mais significativos.
O primeiro bloco pode ser a organização de resultados de projetos em
formas discursivas diferentes, tais como: (a) na forma de boletins para públicos definidos, tais como, grupo de amigos, moradores de um mesmo bairro,
freqüentadores de determinados espaços, como centros de comércio, cinemas,
feiras, igrejas, etc.; (b) na forma de jornal, que pode ser distribuído pelos educandos ou, então, organizado como mural para ser afixado nos locais desejados
pela turma, como salas de aula, pátios, paradas de ônibus, igrejas, pontos comerciais, etc.; (c) na forma de cartazes, que também podem ser afixados em
espaços públicos; (d) na forma de textos escolares, que podem ser distribuídos
para outras turmas, inclusive de que estão em estágios anteriores, como, por
exemplo, educandos do Ensino Médio podem produzir textos didáticos sobre
temas diversos para os colegas dos anos iniciais do Ensino Fundamental; (e) na
forma de cartas, que podem ser trocadas via e-mail ou correio convencional com
amigos, parentes e, até mesmo, com turmas de outras instituições escolares de
71
regiões diferentes do país e do mundo; também podemos introduzir entre os
estudantes de instituições que tenham recursos tecnológicos; (f) a produção
para a internet de materiais sobre o tema estudado, organizando homepages16,
e a participação de canais de bate-papo, listas de discussão, grupos de e-mail,
etc., que tratem do tema estudado; (h) a produção de vídeos e áudios, similares a programas de rádio e TV (hoje diversas instituições escolares já dispõem
de equipamentos necessários para a produção dessas mídias).
O segundo bloco, que desejo ressaltar, refere-se à linguagem, pois cada
uma das formas enunciadas anteriormente requer linguagens distintas, produzidas de formas específicas e articuladas com os respectivos interlocutores.
Portanto podemos apontar, pelo menos, as seguintes linguagens requeridas
pelas formas já enunciadas: (a) linguagem escolar, tanto para trabalhos formais voltados aos educadores como a educandos de outras turmas e instituições; (b) para diferentes interlocutores de convívio pessoal como colegas
maiores ou menores, familiares, vizinhos, etc.; (c) para mídias distintas como
a jornalística, de propaganda (para cartazes), de sites da internet; e (d) para
atividades formais como cartas reivindicatórias endereçadas a autoridades,
comunidades, etc.
4.5. A socialização dos resultados com retorno à comunidade
Os projetos compartilhados, tanto por suas práticas como pelos resultados, podem e devem extrapolar as turmas, incluindo outros grupos da mesma
ou de outra instituição escolar e as comunidades ou segmentos específicos da
sociedade, por isso é fundamental que os resultados sejam disponibilizados em
sites, jornais, cartazes, folhetos, áudios, vídeos, etc.
Por outro lado, as turmas podem intervir diretamente para transformar situações de sua realidade, seja propondo formas de intervenção dos
estudantes, seja organizando canais de reflexão com as comunidades. No
primeiro caso, os materiais de divulgação de resultados e sínteses, propostos
anteriormente neste ensaio, tais como, cartazes, jornais, folhetos e sites, são
contribuições importantes. O problema é que nem sempre esse material é
disponibilizado para as comunidades, ficando restrito à sala de aula e quando
muito à instituição escolar.
Numa segunda perspectiva, os estudantes podem ser mobilizados para
promover ações que tenham por objetivo solucionar os problemas levantados,
como, por exemplo, propondo a organização de patrulhas para caçar focos
de mosquitos da dengue; de brigadas para orientar pais e vizinhos a calcular
corretamente juros, multas e similares; de grupos de trabalho para encontrar
solução para a depredação de ambientes e poluição de rios; de publicações de
A viabilidade das homepages pode variar, mas é importante constatar que várias instituições têm os seus próprios
sites, diversos portais especializados possibilitam disponibilizar a produção estudantil e também há uma série de
provedores que oferecem espaços de hospedagem gratuitos. O problema seria basicamente de disponibilidade de
tecnologia como os computadores e domínio dos procedimentos de produção de homepages.
16
72
livretos com a história dos bairros, com brincadeiras de outras épocas, com
orientações nutricionais; de palestras para a comunidade (em igrejas, associações comunitárias, sindicatos, escolas, etc.).
Assim, estudantes do Ensino Médio ou do curso de Direito, por exemplo,
podem elaborar manuais ou sites na internet sobre os direitos do consumidor;
os de Ciências Contábeis e de Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental podem promover atividades de organização das finanças familiares ou
sobre procedimentos do sistema de crédito no comércio. Estudantes dos cursos
de Administração, Desenho Industrial e Informática podem produzir softwares
gratuitos para pequenas e médias empresas ou ONGs. Enfim, detendo saberes sobre um tema e conhecendo alguns procedimentos decorrentes deles, os
educandos podem produzir diferentes formas de ação junto aos colegas da
instituição escolar e às suas comunidades.
Essas atividades permitem que as produções de saberes por educandos
se voltem para a realidade concreta, possibilitando a mediação necessária entre o teorizar e o agir. Mas também requerem que o professor construa com
os alunos espaços para a busca das respostas e satisfação das necessidades
despertadas nesses processos de aprendizagem.
5. O impacto da forma de projetos e do trabalho pedagógico
na organização curricular
Refletir sobre a organização do trabalho pedagógico na forma de projetos
implica perceber que ela pode ampliar horizontes da educação, como também
pode mantê-los nos marcos regulatórios atuais. Como Popkewitz (1995) nos
alerta, as formas de organizar o conhecimento como currículo “(...) corporificam
formas particulares de agir, sentir, falar e «ver» o mundo e o «eu»” (p. 175).
Nesse sentido, gostaria de problematizar algumas questões diretamente implicadas nas escolhas promovidas no processo da organização curricular e do
trabalho pedagógico.
1. O modelo de organização do trabalho pedagógico na forma de projetos tende a se deslocar da ênfase no ensino para a ênfase na aprendizagem,
pelo reconhecimento que o ato de “(...) ensinar não é «transmitir conhecimento», mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção”
(Freire, 1996, p. 24-25). Isso implica priorização das relações horizontais entre
educandos, pressupondo que dispõem dos mesmos códigos de comunicação e
compartilham interesses e necessidades, o que permitiria que diferentes maneiras de aprendizagem se interconectassem em sua diversidade de interesses, necessidades, ritmos e processos.
Os educandos, nesse processo, passam a compartilhar os conhecimentos
constituídos, permitindo o dialogo entre diferentes grupos e percepções culturais, de maneira que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina
ao aprender” (Freire, 1996, p. 25). Isso pode possibilitar práticas dialógicas
73
fundadas no estágio de desenvolvimento humano dos educandos e no compartilhamento de seus códigos culturais comuns. As práticas dialógicas e a aprendizagem colaborativa poderiam contribuir na superação dos instrumentos segregacionistas, promovido pelas diversidades sociais e culturais (sejam elas de
ordem de geração, de formação escolar, de status social, de orientação sexual,
religiosa e política e de toda teia de discriminação e segregação), existentes
entre educadores e educandos.
Os instrumentos e procedimentos utilizados, nessa situação, são aqueles
que possibilitariam aos educandos a condição de protagonistas no processo de
constituição do conhecimento, e o educador passaria à condição de organizador de situações de aprendizagem e interação humana.
2. A instituição escolar pode se constituir em espaço de mediação entre
saberes. De um lado estão os saberes reconhecidos como importantes pelas
instituições escolares, em particular os classificados como científicos, estruturados em modelos formais e estabelecidos por processos que respeitem regras de
procedimentos de produção pelas corporações acadêmicas. Do outro lado estão
os saberes dos educandos, nas formas organizadas em seus meios e códigos culturais e aqueles acessados nas diversas mídias que tenham em disponibilidade.
Essa perspectiva não representa o abandono de conteúdos clássicos e/ou
considerados importantes como temem muitos educadores, mas representaria
a ruptura com a supremacia deles nos processos escolares. Romperia também
com as maneiras formalistas, estáticas e inflexíveis como esses saberes são
tratados na instituição escolar. Essas mudanças na forma de abordagem dos saberes possibilitariam o diálogo entre os saberes já constituídos pelos educandos
e aqueles propostos pela instituição escolar, que seriam acessados conforme as
necessidades e situações de aprendizagem, determinadas pelos ritmos e processos coletivos de educandos. O que seguramente ocorreria seria a ruptura
no ordenamento linear e predeterminado dos saberes da maioria das propostas
curriculares e práticas pedagógicas diretivas. Isso implica sejam os currículos
organizados em objetivos e não apenas no arrolamento de saberes escolares.
Os educandos, mesmo os de pouca idade, já trazem saberes: alguns de
origem mítica, outros fundados em crenças familiares, outros sistematizados
pelos códigos culturais dos seus respectivos meios (o que muitas vezes destoa
na forma e nas concepções valorizadas pela instituição escolar), e há ainda
aqueles que foram acessados em algum ponto da teia composta pelas diferentes mídias. Esses saberes são produtores de sentido de suas vidas, mas são,
geralmente, desconhecidos ou desqualificados pelas instituições escolares e,
por conseqüência, desprezados por elas. Os saberes dos educandos, muitas
vezes, convivem com os saberes escolares, como se habitassem campos distintos, pois a instituição escolar tem dificuldade em dialogar com eles.
O que efetivamente os educandos praticam na instituição escolar é o
dialogo entre o que já sabem com os novos saberes que estão acessando.
74
Dessa forma, o processo escolar, em parte das vezes, não constitui «saberes
novos», mas passa-se a «saber de outra forma». A prática dialógica efetiva
pressupõe reconhecer que ninguém sabe tudo e que o que se sabe não se
aprende de uma só vez. O conhecimento constitui-se por retomadas, por novas
problematizações, por ampliações em processos permanentes de maturação
do conhecimento.
Os saberes dos educandos, sendo cotejados com outros saberes (apresentados pelas instituições escolares ou acessados por meio de pesquisa),
promoveriam processos de ressignificação, com (a) a revisão de saberes já
conhecidos, (b) a produção de novos saberes, (c) a apreensão de saberes importantes (mas ainda desconhecidos pelos educandos) e (e) o conhecimento
de outra forma daquilo que já era conhecido.
Esse processo, para alcançar os objetivos pretendidos, precisa estar
vinculado às necessidades e aos interesses dos educando, cabendo à instituição escolar, e ao educador em particular, estimular, provocar e criar situações
de aprendizagem impulsionadas pelo reconhecimento das necessidades dos
educandos. Num segundo momento, é fundamental construir o desejo pelo
conhecimento que transcende as necessidades imediatas do presente, que não
se constrói pela coerção, mas por estímulos que respeitem interesses, necessidades, ritmos e processos de cada indivíduo. Os saberes e a arte compõem
experiências que dão sentido à vida, associados ao prazer.
Nessa perspectiva os educandos passariam a protagonizar o processo e
organizar os conteúdos disponibilizados nas instituições escolares. Aos professores cabe buscar o equilíbrio entre “não-diretividade” e disponibilização dos
bens culturais.
Na educação superior e no ensino profissionalizante de nível técnico
(EPNT), por sua vez, o educando é tencionado a dominar conjuntos de saberes
e procedimentos que compõem perfis delimitados pelas tendências conjunturais do mercado de trabalho. Portanto é importante que as instituições escolares e o educador articulem essas demandas de forma aberta, numa visão
efetiva de qualificação profissional, no sentido de que o educando compreenda
os fundamentos e processos de sua área de atuação profissional. Para isso, se
faz necessário romper modelos rigidamente disciplinares e fragmentados que
visam fundamentalmente à acumulação de técnicas de trabalho.
3. A implementação dos projetos (como outras formas não-diretivas)
implica mudanças significativas nas relações de poder no interior das instituições escolares, em particular dos processos de avaliação e dos padrões de disciplina, que se constituem nos dois principais processos de regulação docente.
Altera também as instâncias de definição e o que é definido como válido, o que
deve ser produzido, qual e de quem é o saber a ser estudado, assim como “(…)
produz e reproduz diferentes momentos, regras e práticas particulares” (Gore,
1995, p. 14).
75
Moreira (1995) aponta, a partir de Giroux, a escola “(...) como uma arena
política e cultural na qual formas de experiências e subjetividades são contestadas, mas também ativamente produzidas, o que o torna poderoso agente da luta
a favor da transformação de condições de dominação e opressão” (p. 9).
A alteração na forma como os currículos é elaborado e o trabalho pedagógico organizado permite criar as possibilidades de que os educandos possam
constituir-se em protagonistas da constituição do seu conhecimento, implicando também que eles passem a influir de forma decisiva nos instrumentos
regulatórios da vida escolar e da produção de cultura e identidade, pois
(...) aquilo que está no currículo não é apenas informação — a organização
do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e «ver» o
mundo e o «eu» (Popkewitz, 1995, p. 175).
A tradição curricular oficial no Brasil sempre privilegiou os saberes,
sendo poucas e recentes as iniciativas de rompê-la. Uma das mudanças pode
ser constatada nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para Ensino Fundamental, que no Art. 3o inciso IV dispõem que a “(...) base comum nacional
e sua parte diversificada (das propostas curriculares) deverão integrar-se em
torno do paradigma curricular, que vise a estabelecer a relação entre a educação fundamental e a (a) vida cidadã através da articulação entre vários dos
seus aspectos17 (...) e (b) as áreas de conhecimento18 (...)” (Brasil, 1998). Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para Ensino Fundamental articularam esses dois grupos de objetivos propondo blocos de conteúdos para as áreas
do conhecimento e os temas transversais para tratar dos aspectos da vida cidadã. Esse modelo curricular é importante constar, pois representa alterações na
tradição brasileira ao propor um programa de formação de valores e condutas
num mesmo plano que as áreas do conhecimento, em que pesem as críticas,
tanto no formato como nos conteúdos dessas propostas (Cordiolli, 2001).
Mas, ainda assim, os projetos pedagógicos e as propostas curriculares
não tratam explicitamente da formação de valores e condutas, que são apresentadas de maneira genérica como a disposição ou intenção das instituições
escolares de “preparação para a cidadania”, de “formação de valores humanistas ou cristãos”, “visão crítica do mundo”, etc. As práticas pedagógicas para
a formação do caráter se dão a partir da ação individual dos educadores sem
capacitação específica e, geralmente, destituídas de fundamentação teórica.
Essas ações normalmente se expressam em práticas idealistas, mas educadores expressam a intenção da formação dos valores com os quais se identificam
As DCNs para o Ensino Fundamental indicam como aspectos da vida cidadã os seguintes: (a) a saúde; (b) a sexualidade; (c) a vida familiar e social; (d) o meio ambiente; (e) o trabalho; (f) a ciência e a tecnologia; (g) a cultura; e
(h) as linguagens.
17
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para o Ensino Fundamental definem as seguintes áreas do conhecimento: (a) Língua Portuguesa; (b) Língua Materna, para populações indígenas e migrantes; (c) Matemática; (d)
Ciências; (e) Geografia; (f) História; (g) Língua Estrangeira (a partir do quinto ano); (h) Educação Artística; (i)
Educação Física; e (j) Educação Religiosa, na forma do art. 33 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
18
76
ou que são propostos pelas instituições escolares, mas não concebem articulações pedagógicas específicas para atingir esse objetivo. Assim, os alunos são
submetidos à regulação moral e aos processos de produção de sentidos sobre
os quais não são consultados.
Os estudos e estudiosos brasileiros se ocupam pouco desse tema. No
entanto, alguns colegas vêm propondo a essência de currículos invisíveis de
regulação moral (Moura, 2003), que não estariam explicitados nem seriam percebidos pelos próprios educadores. Esse currículo seguramente está fundado
nas concepções majoritárias de nossa sociedade, reproduzindo os pressupostos
fundamentais de nossa cultura, sem promover a reflexão e a crítica sobre eles.
Esse debate coloca no “(...) centro do mapa — educacional e curricular — uma
política de identidade” (Silva, 1995, p. 186).
A organização do trabalho pedagógico na forma de projetos pode abrir a
possibilidade de recolocar o educando na condição de protagonista e refletir sobre
a regulação moral de seu ambiente cultural, de sua história de vida e suas histórias
pessoais. Porém Silva afirma que não se trata de promover a inversão, supostamente priorizando uma cultura dominada em detrimento de outra dominante, mas
(...) trata-se, ao contrário, de encarar as culturas dos grupos dominados
de uma forma antropológica, como uma manifestação e expressão de formas de
organizar a vida social que existem ao lado de outras, igualmente válidas. Nessa
perspectiva, não se trata de «partir da cultura dominada», mas de interrogá-la,
questioná-la, historiá-la, da mesma forma que se deve fazer com a cultura dominante. Não é uma questão de superá-la, para entrar em outra, mas de colocar
questões que revelem sua história que produziu as presentes identidades sociais e
as colocou em relação subordinada na configuração social (Silva, 1995, p. 197).
Nessa situação, educandos e educadores passam a construir propostas
pedagógicas que redimensionam as relações de poder e de regulação moral
nas instituições escolares.
6. Um processo de transição e algumas considerações finais
A educação brasileira parece estar “contaminada pela febre do novo” e da
renovação, e os educadores e as coordenações parecem ter pressa em “fazer e
acontecer”. Mas nenhum processo de mudança educacional efetiva — em direção
a uma educação mais aberta e menos diretiva — vai ser alcançado pela imposição,
pois mesmo a adesão formal dos educadores às proposições das direções não
garante os esforços plenos para a sua implementação, e esta vai seguramente se
defrontar com resistências de todo tipo. É importante reconhecer que
(...) a cultura de um estabelecimento escolar é ativamente construída
pelos atores, mesmo que essa construção permaneça, em grande parte, inconsciente. Trata-se, afinal, de um processo dinâmico e evolutivo de um processo de
aprendizagem (Gather Thurler, 2001, p. 90).
77
A cultura escolar, ainda segundo Gather Thurler,
(...) estabiliza-se como um conjunto de regras do jogo que organiza a cooperação, a comunicação, as relações de poder, a divisão do trabalho, os modos de
decisão, as maneiras de agir e interagir, a relação com o tempo, a abertura para
fora, o estatuto da diferença e da divergência (Gather Thurler, 2001, p. 90).
As instituições escolares, ao pretenderem organizar o trabalho pedagógico, a partir da interação e da aprendizagem colaborativa, vêem-se diante da
necessidade de que as relações entre os membros das equipes pedagógicas se
constituam a partir dessa mesma perspectiva. Assim, é importante destacar
dentre os elementos arrolados por Gather Thuler, citados anteriormente, o
“estatuto da diferença e da divergência” que possa garantir a cada professor a
possibilidade de começar do patamar em que se sinta seguro e de organizar os
processos e ritmos de trabalho em função de suas condições. Para isso é importante não definir regras ou modelos rígidos, mas apostar nas aprendizagens
coletivas e situações de interação docente na implementação de projetos.
Há, no entanto, elementos da cultura escolar e curricular brasileira que
precisam ser dimensionados adequadamente.
A primeira é a nossa forte tradição disciplinar. O problema é bastante
forte nos anos finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e na educação
superior, nas quais a instituições escolares dividem as atividades pedagógicas
em disciplinas, que são ministradas por professores especialistas. Mas, nas
etapas na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em que
a maioria das instituições escolares mantém a unidocência, a capacitação de
educadores, as propostas curriculares, os sistemas de avaliação e a contabilização de carga horária se fazem a partir de uma grade disciplinar.
Essa situação se constitui numa dificuldade significativa na implementação de projetos, mas penso que é possível encontrar soluções a partir de experiências concretas, vinculadas à cultura escolar de cada instituição. Os projetos
podem nascer inicialmente restritos às práticas de turmas isoladas, talvez até
na forma de projetos propostos e depois criar as possibilidades para os compartilhados. As coordenações pedagógicas podem propor algumas experiências-piloto, cujos resultados podem ser analisados e compartilhados por todos.
Os projetos, às vezes, podem surgir do acaso, de situações surgidas na sala de
aula ou de conversas informais com os colegas na sala dos educadores.
Os projetos também podem nascer como pequenas experiências e ampliando o seu alcance a partir de balanço dos resultados e da aprendizagem
com a prática. Enfim, temos diversas situações, e nenhuma regra impositiva a
priori, como sempre diz Ana Bergaman: “faça sempre da forma que você acha
correto, depois se disponha a refletir, organizar, estudar, procurando sempre
melhorar, que você seguramente chega lá”.
78
A atividade pedagógica implica sempre fazer escolhas, e estas nem sempre são simples. Mas penso que os caminhos para a organização curricular e
o trabalho pedagógico permitem diversas perspectivas que, se não são tomadas de maneira dogmática, podem articular formas diferentes como projetos,
temas geradores, contextualização, problematização, constituição de mapas
conceituais e ações inter, trans e multidisciplinares (também não-formalizadas
previamente). Penso que a experiência de diferentes caminhos pode permitir,
como já afirmei, questionar o que se faz por tradição e ampliar os limites de
nossas possibilidades. A organização do trabalho pedagógico na forma de projetos permite, pelo menos em princípio, questionar as grades de tempos, de
grupos e de saberes na sua essência, rearticulando-os aos processos de construção / emancipação dos sujeitos. A ação dos educadores não seria, penso
eu, a de apontar, a partir da posição de adulto19, os melhores caminhos para
os educandos, mas de propiciar espaços para que eles construam o próprio
caminho.
É preciso também o esforço coletivo para alterar alguns cânones da
cultura escolar brasileira. Logo a importância de: (a) combater a regulação padronizadora e o nivelamento dos educandos através das atividades de seleção,
promoção e avaliação; (b) combater a segmentação dos processos de aprendizagem em disciplinas, etapas e modalidades, assim como romper com a linearidade de currículos e sistemáticas de avaliação; e (c) combater o formalismo e
a burocracia, com regulação extremada dos tempos e espaços escolares.
...
Que este ensaio seja uma pequena contribuição para os que fazem e
para os que desejem fazer, pois os nossos estudantes merecem formas de
organização do trabalho pedagógico que lhes permitam olhar de frente para
a vida como complexa, mas grávida de possibilidades, que se constrói com
autonomia e ação cidadã. A organização do trabalho pedagógico na forma de
projetos, penso eu, seria uma contribuição decisiva, embora não suficiente,
para atingir esse objetivo.
Na Educação Superior e no Ensino Profissionalizante de Nível Técnico (EPNT) seria a relação entre o profissional
e/ou experiente diante do formando ou pouco experiente.
19
79
Referências
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VERMELHO, S. C. A subjetividade do trabalhador no contexto da produção integrada e flexível. São Paulo: PUC, 1997. (Dissertação de mestrado).
80
V
Planejando e analisando as
atividades didáticas em sala de aula
Marielda Ferreira Pryjma1
Escrever um texto para contribuir com a prática docente dos professores
da Educação Básica foi solicitado, pela equipe organizadora do Congresso de
Educação, para sistematizar algumas temáticas vistas, presenciadas, assistidas durante o transcorrer do evento.
Como vivenciei por muitos anos o cotidiano da Educação Básica, fiquei preocupada em retomar questões que pudessem, de fato, colaborar com o dia-a-dia
escolar. Passei várias horas relembrando a rotina do colégio e tentei selecionar
assuntos que conversávamos, problemas que enfrentávamos, sugestões de ações
que encontrávamos para superar e melhorar a prática pedagógica. Espero que
este texto possibilite reflexões sobre o processo de ensino. Tomei a liberdade de
escrever o texto em primeira pessoa, porque tive a sensação que, assim, poderíamos estar conversando, como nos “velhos tempos” da rotina escolar.
Todos nós sofremos as conseqüências advindas da crise ocorrida na década de 80 nos países industrializados. O grande desafio escolar passou a ser o
atendimento de uma nova lógica: os saberes escolares propostos não atendiam
mais os saberes necessários para as novas funções técnicas, sociais e econômicas, isto é, os saberes não correspondiam mais aos saberes solicitados pelo
mercado de trabalho (Tardif, p. 45).
1
Doutoranda em Educação (USP) e mestre em Educação (UFPR); professora da Faculdade Dom Bosco e da UNICEMP.
81
E a nossa profissão? De um momento para outro, o meio escolar começou todo um processo de revitalização, transformação e, por que não dizer,
modernização. Contudo, nós, os docentes, sentimo-nos, neste contexto, totalmente perdidos em relação aos rumos a seguir.
No Brasil, essa situação se agravou em função do andamento das
políticas voltadas para a educação pública. Essa crise gerou uma migração,
significativa, dos alunos para o ensino privado. A educação passou a ser o
caminho para o ingresso profissional nas atividades desejadas e reconhecidas
socialmente, para uma população maior que em outros momentos históricos
(a profissão nem sempre esteve atrelada à educação formal). Sob essa ótica,
o reconhecimento profissional, que deveria ser adquirido a partir dos conhecimentos escolares, passou a ser uma nova ordem social vigente, tornando os
saberes escolares distantes desse mercado.
O modelo capitalista, em que o consumo predomina, apesar de ser uma
constatação frustrante, definiu os rumos dos conteúdos e saberes escolares.
Paulatinamente, a escola deixou de ser um lugar de formação do indivíduo para
se transformar numa formação de cunho mercadológico.
De alunos, passamos a ter clientes, consumidores. Nossa prática docente precisou ser adequada para instrumentalizar os educandos. Sob outro olhar,
está a comunidade escolar, também clientes, cobrando, exigindo e solicitando
da escola um atendimentos a funções e atribuições que nem sempre eram tarefas dela. A aparência, conseqüência dessa nova lógica de consumo, envolveu
o cotidiano escolar, redirecionando o trabalho docente para outras atividades
que apresentassem “resultados” (festas, eventos), com vistas a manter o educando na escola.
Nesse contexto, reinicia, sistematicamente, o processo de desvalorização dos professores e, por conseqüência, dos saberes escolares (a profissão
docente tem um histórico que vale um aprofundamento teórico). O docente e
a escola passaram a ser vistos como “ultrapassados”, com conteúdos escolares
desnecessários para o futuro do aluno e os saberes tornaram-se saberes-instrumento, saberes-meio, um capital de informações mais ou menos úteis para
o futuro do discente (Tardif, 2002, p.48).
Obviamente, o trabalho docente, como o da maioria dos profissionais da
educação, passou a sujeitar-se às solicitações sociais e do mercado de trabalho
em nome do “bom atendimento” às novas exigências. Aqui se concretiza a desvalorização do professor como profissional: que estaria cumprindo seu papel ao
informar ou transmitir o que seria considerado “útil” pelos novos consumidores.
Concomitantemente a essa situação surgiu o acesso, quase em massa, aos
computadores, e era comum ouvir que seríamos substituídos por eles.
A maioria de nós, educadores, vivenciamos essa situação. Atualmente
tenho total autonomia para confessar: tive a nítida impressão, nesse momento,
82
que teria escolhido a profissão errada e que teria que aprender a desempenhar
um outro “ofício”, porque o magistério não teria futuro algum. Além dessa
situação profissional, tínhamos os “fantasmas” que assombravam as escolas
privadas: a manutenção dos alunos-clientes para a manutenção dos nossos
empregos.
A valorização da categoria docente está, vagarosamente, se processando. Os alunos formados a partir do que foi relatado, chegaram ao ensino
superior e ao mercado de trabalho. Uma nova crise surgiu: este novo profissional “não sabe pensar”, “não tem iniciativa”, “não consegue utilizar os conteúdos aprendidos nos bancos escolares para solucionar as questões surgidas
no cotidiano de trabalho. Novamente os olhares se voltam para a escola e
surge a percepção de que a educação poderia suprir tal deficiência. Aparece,
novamente, a figura do professor, necessária para alcançar os novos objetivos.
Neste contexto, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB
9394/96) emerge solicitando, formalmente, o resgate da formação integral do
indivíduo.
Apesar da lei, a cultura do “cliente” permaneceu na sociedade e mudar
este quadro tem gerado, por parte dos educadores, grande dedicação, empenho e profissionalização.
Chegamos aonde, a meu ver, está a fragilidade do processo e a razão de
estarmos discutindo o papel do professor em relação ao ensino e à aprendizagem. O que estou fazendo de errado? Por que meus alunos aparentam tanta
desmotivação? Que caminhos poderei seguir? Como me tornar um bom profissional? Que aspectos melhorariam a minha prática docente?
É possível perceber que existe, num contexto nacional, um descontentamento, um senso de fracasso, um sentimento de impotência por parte do
professorado. No outro lado existem os alunos, desmotivados, envolvidos com
todas as tecnologias que surgem dia-a-dia, obrigados a ir para a escola. O que
está acontecendo? O que tem gerado essa falta de sintonia? Será que a nossa
missão é algo “impossível”?
Calma! Esse contexto foi apresentado para que possamos nos situar e
entender que a condição que permeia o trabalho docente não é algo isolado, ela
está histórica e socialmente situada. O cerne da questão está em compreender
esse processo, posicionar-se e reagir para transformar, definitivamente, a educação. Aqui o ditado “uma andorinha não faz verão” não se aplica, ocorre justamente o contrário: se cada um fizer a sua parte, o todo terá sua melhoria.
Para formar integralmente o indivíduo, o professor deve lançar um novo
olhar sobre sua profissão. Aqui está a principal decisão a ser tomada: você quer,
verdadeiramente, seguir esta caminhada? Se a sua resposta for sim, prepare-se
para dar o primeiro passo: não basta somente dominar o conteúdo específico da
sua disciplina ou área do conhecimento, agora o papel do professor necessita
83
uma nova configuração. Na verdade, esta situação, a profissionalização do professor, acompanhou uma tendência mundial que propôs a qualificação de todas
as áreas profissionais, como uma condição básica para acompanhar as inovações tecnológicas, superar os desafios sociais, solucionar as crises de violência,
entre outros fatores. Então, não se sinta “cobrado” profissionalmente, sinta-se
orgulhoso em fazer parte de uma equipe que está considerando essencial o
desenvolvimento e aprimoramento do profissional da educação para a melhoria
do país como um todo.
Para formar um aluno crítico e autônomo, é fundamental um professor
crítico e autônomo. Professor Demo afirma que a aprendizagem dos alunos é
proporcional à aprendizagem dos professores. Para que a aprendizagem se
efetive é necessário que esse processo seja bom para os dois lados: aluno e
professor (Demo, 2000, p.42).
Os docentes rumam para uma autonomia profissional, esta é a expectativa do meio educacional. Contudo, o que separa o professor da tão sonhada
autonomia é, justamente, a ausência de teoria. Explicando melhor: em sua formação inicial (graduação) o docente teve uma grande ênfase na área específica
de conhecimento escolhido (língua, matemática, história, geografia, ciências
biológicas, química, física, artes, música, educação física, etc.). A formação
para atuar enquanto docente não teve a mesma prioridade (exceto para quem
se formou para atuar na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental), desencadeando essa ausência de autonomia. Além disso, a “forma”
como os temas relacionados à docência eram trabalhados, cerceavam toda a
criatividade do futuro professor (Nóvoa, 1994).
O professor é um profissional do conhecimento e não combina com ele
a busca por soluções temporárias para os seus problemas enfrentados no cotidiano escolar. Por muito tempo a “profissionalização” dos professores esteve
atrelada a modelos de aulas, exemplos de procedimentos, “receitas prontas”
para complementar a sua formação. Esse professor buscava nesta “pseudo”
profissionalização a solução para todas as angústias.
Porém, o enfrentamento da realidade escolar, as desigualdades sociais e
a dinâmica da realidade social se configuravam das mais diversas formas. Para
que nós possamos enfrentar tantos desafios, precisamos considerar nossas condições reais de atuação para podermos construir a nossa história profissional.
Retornemos um pouco o texto e resgatemos a questão da desvalorização
do professor. Ele, como profissional, é criticado pela atuação em diferentes instâncias e a crítica a sua atuação acaba se configurando como crítica à pessoa
do professor. Separemos os fatos: o indivíduo e o que atua como docente. O
indivíduo, a pessoa que exerce optar pela carreira docente já tem suficientes
problemas para superar em sua vida.
84
Enquanto profissional ele precisa retomar alguns aspectos que permeiam
sua atuação. Por isso, as críticas ao trabalho do professor não são infundadas
e cabe aqui melhor explicação. Ele precisa retomar a condição de intelectual
perante a sociedade, carece elucidar seu pensamento crítico, reconstruir sua
função social, sublimar as dificuldades e dar novo sentido para sua profissão.
A carreira docente só existe se existir o aluno, isto implica numa relação ambígua, essencial e vamos considerar aluno e professor peças-chave neste processo, um necessita do outro para existir.
Para resolver seus problemas, o docente e o aluno precisam saber problematizar (problematizar algo é muito mais complexo que resolver um problema isolado). Sabe-se que nem tudo tem solução, e o segredo na resolução
dos problemas é administrá-los com inteligência para entender a realidade de
forma sistêmica (Demo, 2002, p.48).
Educar para o desenvolvimento integral do indivíduo é levá-lo a perceber
que os problemas da vida são infinitos, mas as soluções não. Saber problematizar, “desproblematizar”, pensar criticamente fazem parte do processo de
aprendizagem inteligente que busca saber administrar esses problemas. Nessa
aprendizagem, aluno e professor devem almejar construir novas conexões, novos padrões, novas interpretações para o conhecimento buscando aprofundar
essa aprendizagem.
Em alguns momentos o professor precisará “desaprender”, reconstruir
os conhecimentos existentes em prol da superação de limites e desafios. Isso
significa afirmar que a aprendizagem é parceira da dúvida, do questionamento:
conhecimento solucionará problemas; conhecimento desenvolve conhecimento; dúvidas desencadeiam soluções; soluções geram novos problemas. A dinâmica escolar envolve diferentes condições, saberes, soluções, complexidades.
Para o reconhecimento profissional, o professor precisa ter conhecimento específico de sua área e conhecimento da ação docente. O seu saber só é
posto em prática, em evidência, quando se manifesta a partir das relações com
o outro (aluno), com o coletivo (turma).
O conhecimento do professor se constrói num processo longo e progressivo. Saber é “essencialmente social e é, ao mesmo tempo, o saber dos atores
individuais que o possuem e o incorporam à sua prática profissional para a ela
adaptá-lo e para transformá-lo” (Tardif, 2002, p.15).
Os saberes do professor são múltiplos e começam na sua experiência
escolar enquanto aluno e essa situação é muito marcante, sendo relembrada
frequentemente em seu dia-a-dia, ora por repetir as ações de seus professores, ora por negá-las. Ensinar é um processo de aprendizagem que o professor
dominará paralelamente para a realização do seu trabalho. A sua carreira é
construída e marcada pelo saber profissional.
85
Para construir a nossa carreira, cabe considerarmos alguns aspectos
que estruturam a nossa prática educativa. Todos os saberes e/ou conteúdos
curriculares são informações externas, temas pesquisados e produzidos em
outras instâncias, fora da educação básica. O professor não os controla, não os
produz, e o cuidado que se deve ter é evitar uma relação alienada com esses
saberes. Os saberes docentes precisam ser construídos pelo professor de uma
base teórica (relações interpessoais, didática, metodologias de ensino, processos de avaliação, teorias de ensino, filosofia, sociologia, legislação educacional)
para buscar sua profissionalização. Isso significa afirmar que para ser “bom
professor”, “bom profissional”, é necessário o domínio, compreensão, construção, atualização de duas situações: o saber específico da sua área de atuação
e o saber docente.
A partir dessas considerações, afirmar que aprender, durante o processo
de ensinar, é muito mais significativo do que o fato de saber propriamente o
conteúdo escolar.
“Ser um eterno aprendiz” (parte da letra da música “O que é o que é”
de Gonzaguinha) é a essência da profissionalização docente. Tardif é enfático
ao afirmar que:
Quanto menos utilizável no trabalho é um saber, menos valor profissional
parece ter. Nessa ótica, os saberes oriundos da experiência de trabalho cotidiano
parecem constituir o alicerce da prática e da competência profissionais, pois essa
experiência é, para o professor, a condição para aquisição e produção de seus
próprios saberes profissionais. A experiência de trabalho é, portanto, apenas um
espaço onde o professor aplica saberes, sendo ela mesma saber do trabalho sobre
saberes, em suma: reflexividade, retomada, reprodução, reiteração daquilo que
se sabe naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir sua própria prática profissional (Tardif, 2002, p. 21).
Construir sua carreira profissional não pode ter um tom de pesar. Ser
professor é uma grande oportunidade que temos para contribuir com a melhoria e transformação social. Isso não é uma utopia, é um valor profissional que
acompanha a carreira de muitos educadores: acreditamos no magistério, gostamos de superar desafios, buscamos ajuda sempre que necessário, discutimos
nossas angústias e, creiam, compartilhamos nossas falhas.
Gostaria que soubessem que na minha área de pesquisa, formação de
professores, encontro situações muito similares, em grupos diferentes. Os
professores, de modo geral, querem acertar, adorariam ter reconhecimento
profissional, gostariam de trocar experiências (é importante encontrar no outro o apoio de que precisam), dividem frustrações e erros. Não quero expor a
fragilidade da categoria, minha intenção é que percebam que muito dos nossos
problemas educacionais poderiam ser solucionados por nós mesmos, com a
ajuda teórica de outros docentes.
86
Enfrentar problemas é uma situação corriqueira no dia-a-dia da sala
de aula. Solucioná-los de forma adequada é onde está o grande desafio, mas
acreditem, praticamente todas ou quase todas as situações adversas vividas
em sala de aula, já foram objetos de estudo. Então, vamos aos livros: lê-los,
discuti-los, entendê-los e buscar na experiência do outro a solução para o
nosso problema. Na minha solução pode estar a solução para o problema do
outro professor. É assim que ocorrem as pesquisas na área de educação: uma
experiência relatada e analisada teoricamente é o ponto de partida para uma
nova investigação, pesquisa bibliográfica e assim, sucessivamente.
Sinto que, muitas vezes, o professor não acredita em si mesmo, na sua
atuação, que ela poderia ser considerada “inovadora”, que atenderia aos anseios sociais e que possibilitariam a melhoria da prática educativa. Se esse professor tivesse o hábito de acompanhar as novas produções do conhecimento na
área educacional, poderia despertar nele o espírito investigativo, possibilitando
construir sua carreira profissional sobre novos alicerces. Isso é que chamamos
de autonomia: o domínio do conteúdo associado ao domínio do processo de
ensino e aprendizagem que darão ao professor liberdade para criar, alterar e
transformar, de fato, a educação.
Eu não sei se você já teve a oportunidade de ouvir a música “Tente outra vez”, do Raul Seixas. Possivelmente já a tenha ouvido. Entretanto, se você
estiver precisando de uma “injeção de ânimo” e ouvi-la num momento em que
possa perceber a profundidade de sua letra, refletir sobre sua mensagem, com
certeza a entenderá de uma forma diferente das outras vezes que a ouviu,
como se fosse algo especial, único, escrito para você.
Para pensar em sua carreira docente: o que faria se pudesse começá-la
novamente com a experiência atual? Teria mais paciência? Mudaria sua postura?
Relevaria alguns acontecimentos? Agiria diferente? Seria um melhor profissional?
Valls (1996) indica procedimentos de ensino para os conteúdos escolares, mas toda a sua solicitação está em redescobrir o significado e o sentido do
conjunto das atividades escolares propostas aos alunos). Zabala (1999, 2000)
parte do mesmo pressuposto, todo o currículo escolar deve ser adequado à
compreensão e ao sentido do aprendizado.
Compartilhar com os nossos pares o cotidiano escolar é outro caminho
simples. Garcia elaborou um programa para professores iniciantes, no intuito de
contribuir com o desenvolvimento desses profissionais. Para ele, um professor
de apoio é essencial, isto é, “um professor com experiência que apóia o novo
professor e o ajuda a compreender a cultura da escola. O professor de apoio ou
professor mentor desempenha um papel de grande importância, pois é a pessoa
que ajuda e dá orientações ao professor principiante (Garcia, 2002. p. 124).
A partir da experiência apresentada é possível utilizarmos a sua idéia para
dar um novo sentido ao papel do professor: ser um docente de apoio ou mentor,
87
não precisaria se restringir ao início da carreira, isso poderia ser uma condição
permanente, coletiva, dialógica e criativa. Isso é essencial, cada turma tem uma
característica própria e o planejamento diário deve considerar esse pressuposto.
Retomando as questões propostas inicialmente, proponho que o corpo
docente busque, em sua experiência profissional, uma nova alternativa de atuação, compartilhando essas situações com seus colegas e tendo como pano de
fundo, constantemente, a teoria que fundamenta a educação.
Quando ouço essa música renovo minhas perspectivas. Ela não é uma
música nova, mas a cada situação, contexto, experiência, necessidade, ela se
torna totalmente original para mim, é como se a minha vida e a minha profissão
pudessem ser revitalizadas. A originalidade, para mim, está aí, no “novo” olhar
que despendo para algo “velho”, para uma letra de música já conhecida, por
exemplo. Na nova sensação, que permito ter a cada revitalização, tenho novas
esperanças, expectativas, credibilidade, confiança ou, quem sabe, ilusão de que
estaria contribuindo significativamente para a educação do meu país. Ser original, um bom professor, é ter um novo olhar sobre a nossa atuação profissional, é
reescrever nossa trajetória, é uma releitura das experiências que já vivemos.
Inovar na educação pode ser uma atitude que está próxima de nós: a transmissão dos conhecimentos por si só não tem valor algum, mas tornar esse conhecimento útil, contextualizado, histórica e socialmente situado, poderá dar sentido
à formação e ao desenvolvimento intelectual do educando. Parece uma atitude
simples? Pois, de fato, é e a sabedoria traz em sua essência a simplicidade.
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ZABALA, A. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas
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88
VI
O relevante papel do professor no
ensino de Matemática
Ângela Ferreira Pires da Trindade1
Se perguntarmos aos professores por que a matemática deve ser ensinada nas escola, certamente teremos como resposta o fato de que a matemática está presente em tudo na vida, ou porque desenvolve o raciocínio. Se,
porém, perguntarmos a esses mesmos professores sobre as dificuldades que
enfrentam ao ensinar matemática, ou mesmo da antipatia de muitos alunos
por essa área do conhecimento, ouviremos que a matemática está distante da
realidade, ou que é muito abstrata, ou ainda que não serve para nada a maioria
dos conteúdos de matemática ensinados na escola.
Esses possíveis posicionamentos, tão contraditórios e que têm afligido
grandemente esses profissionais da educação, podem ser comprovados através de inúmeras pesquisas feitas dentro do contexto escolar, tanto no Brasil
como fora dele.
Observando esses mesmos professores e analisando a sua concepção de
matemática, notamos que são basicamente duas as visões que os professores
têm da matemática.
a) Visão formalista: Consiste em estruturar o assunto a ser estudado
seqüencialmente, ou seja, primeiro se definem os conceitos básicos;
em seguida, novos conceitos são definidos a partir dos básicos; e,
Mestranda em Educação (UFPR), professora do Colégio Dom Bosco e dos Cursos de Pedagogia e Administração da
Faculdade Presidente Kennedy (PR).
1
89
posteriormente, novas proposições são descobertas e justificadas a
partir dos conceitos já definidos. Um exemplo simples seria a idéia
de que para dividir é necessário saber multiplicar e subtrair, ou seja,
uma seqüência de pré-requisitos. Sabemos, no entanto, que as idéias
envolvidas nas operações não dependem umas das outras. A própria
Matemática não evoluiu de forma linear e logicamente organizada.
Desenvolveu-se com movimentos de idas e vindas, com rupturas de
paradigmas e seguindo caminhos diferentes em cada civilização. Fazse necessária essa colocação por ser uma preocupação que angustia
muito os professores e os aprisiona, impedindo assim maior leveza e
aproveitamento das situações que ocorrem em sala de aula ou fora
dela. Quando se propõe aproveitar situações, não é no sentido de
improviso, tal como um ator que age em função de um argumento ou
da trama, mas de liberdade e criatividade no exercício de sua ação.
b) Visão platônica: Esta visão está centrada na idéia de que a Matemática é assunto para mentes sobre-humanas, gênios, extra-terrestres,
que somente pessoas com poderes especiais são capazes de criá-la
e desenvolvê-la. Essa visão leva muitos a crerem que a Matemática
não tem história, não é construção humana, e que apenas tem relação com a própria matemática. Essa postura é evidente quando o
professor justifica a necessidade de aprender determinado conteúdo
colocando-o como pré-requisito para a série seguinte. Parece mostrar
que a Matemática se desenvolve atendendo às solicitações da própria
ciência, sem que haja qualquer ligação com a prática.
A escola, embora não seja a única instância de transmissão do conhecimento científico, é por excelência a instituição incumbida disso. A posse desses
conhecimentos historicamente acumulados proporciona outras formas de ver e
compreender o mundo, abrindo possibilidades de mudanças na ação cotidiana
das pessoas.
Cabe à escola proporcionar a reflexão a respeito da colaboração que a
Matemática tem a oferecer com vistas à formação da cidadania, desenvolvendo metodologias que enfatizem a construção de estratégias, a comprovação e
justificação de resultados, a criatividade, a iniciativa pessoal, o trabalho coletivo e a autonomia resultante da confiança na própria capacidade de enfrentar
desafios.
A missão dos educadores é preparar as novas gerações para o mundo
em que terão que viver. Isso quer dizer proporcionar-lhes o ensino necessário
para adquirirem as destrezas e habilidades que vão necessitar para seu desempenho, com comodidade e eficiência, no seio da sociedade que enfrentarão ao
concluir sua escolaridade. Além de todos esses fatores citados, que parecem
ser conquistas a longo prazo, não podemos perder de vista o fato de que as
crianças, sem domínio da matemática, ficarão desconfortáveis não apenas na
90
escola, mas em grande parte de suas atividades cotidianas: quando compartilham bens com seus amigos, planejam gastar sua mesada, discutem sobre velocidade e distância, viajam e têm que lidar com moedas diferentes e quando,
finalmente, começam a entender o mundo do dinheiro. Para isso, a escola deve
estar em contínuo estado de alerta para adaptar seu ensino.
O mais intrigante, no entanto, é o fato de que os pais e professores que
têm consciência da utilidade da matemática em todos os âmbitos da vida — o
trabalho, o acadêmico, o esportivo, o artístico — não têm conseguido transmitir às crianças essa utilidade da matemática que alguns deles percebem
claramente.
É especialmente surpreendente o que acontece com algumas crianças
que, embora não tenham tomado consciência dessa utilização extra-escolar
da matemática, têm experiências muito ricas nesse sentido. Cabe ao professor
fazer um esforço para que as crianças descubram, desde o princípio, que a
utilidade da matemática ultrapassa os muros da escola.
Além do valor utilitário da Matemática como ferramenta que serve para
a atuação diária e para muitas atividades específicas de quase todas as atividades laborais, não podemos nos esquecer que a matemática tem um valor
formativo, que ajuda a estruturar todo o pensamento e a agilizar o raciocínio
dedutivo. O ensino da Matemática deve ser um constante equilíbrio entre a
matemática formativa e a informativa, ou seja, podemos “formar informando”
ou “informar formando”.
O cientista matemático não comunica os resultados de suas pesquisas
tal como obteve, mas reorganiza, atribui-lhes uma forma mais geral possível,
descontextualizada e fora de um contexto temporal. Ao professor cabe o trabalho inverso, ou seja, uma recontextualização do saber: procura situações que
dêem sentido aos conhecimentos a serem ensinados.
O papel do professor passa a ter duas faces que parecem contraditórias,
pois primeiramente faz viver o conhecimento, que ele seja produzido por parte
dos alunos como resposta a uma situação familiar, e depois deve transformar
essa “resposta razoável” em objeto cultural. O professor é muitas vezes tentado a pular essas etapas e ir direto ao saber como objeto cultural, deixando
a cargo do aluno a apropriação do saber, que acontecerá como este conseguir
fazê-lo.
O maior desafio e mais difícil papel do professor, ao ensinar matemática,
é o de dar um sentido aos conhecimentos e, sobretudo, reconhecê-los. Muito difundida é a idéia de que os conhecimentos podem ser ensinados, mas a
compreensão e o significado são responsabilidade dos alunos. Isso se deve ao
fato de que é possível institucionalizar o conhecimento, e aparentemente não
se pode fazer o mesmo com o sentido.
91
Para desempenhar seu papel de mediador entre o conhecimento matemático e o aluno, o professor precisa ter um sólido conhecimento dos conceitos
e procedimentos dessa área, e a concepção da Matemática não como uma ciência de verdades infalíveis e imutáveis, mas sempre aberta à incorporação de
novos conhecimentos. Só assim terá flexibilidade e sensibilidade para discutir
e promover discussões sobre as diferentes maneiras de se construir o conhecimento matemático, e para compreender as diferentes formas de pensamento
e estratégias utilizadas pelos alunos. Reconhecemos que não é uma tarefa fácil
e que não existem receitas mágicas a serem seguidas.
Piaget, em um dos poucos artigos que aborda a Educação Matemática,
discute três princípios gerais que devem ser discutidos:
a) A compreensão real de uma noção ou teoria implica na re-invenção
dessa teoria pelo sujeito. O papel do professor é o de organizar situações que provoquem curiosidade e busca de solução por parte da
criança.
b) Em todos os níveis, a criança é sempre mais capaz de fazer e compreender na ação do que na verbalização dos princípios nos quais se
baseiam suas ações. Discussões com os colegas e professores favorecem a verbalização e a conscientização.
c) As representações ou modelos matemáticos devem corresponder à
lógica da criança e a formalização não precisa se dar imediatamente,
mas posteriormente, como sistematização das noções adquiridas.
Não é apenas o uso de material concreto, mas sim o significado da situação, as ações da criança e sua reflexão que contribuirão para apreensão dos
conceitos matemáticos. O ensino de regras destituídas de significado pode ser
a causa das dificuldades que muitas crianças encontram ao tentar utilizar os
algoritmos, enquanto que outras crianças os utilizam porque mecanizaram e os
exercícios nos quais estão inseridos muitas vezes fornecem pistas sobre quais
algoritmos devem ser utilizados.
O primeiro trabalho da professora na escola é criar situações bastante interessantes, envolventes, que permitam desenvolver ações físicas ou mentais
e refletir sobre essas ações, descobrindo as propriedades lógico-matemáticas
subjacentes a essa ação. Não basta, porém, criar situações, utilizar materiais
concretos ou jogos e deixar que as crianças passem por essas atividades como
se fossem rituais. Cabe ao professor participar o tempo todo das atividades,
dando pistas, conduzindo as crianças às descobertas, explorando os diferentes
aspectos das situações que podem constituir problemas interessantes que permitam ao aluno fazer novas descobertas.
Da mesma forma, o professor pode produzir novas compreensões e conseqüentemente novos conhecimentos sobre o processo de ensinar e aprender matemática através da criação de um espaço colaborativo onde as crianças tenham
92
oportunidade de discutir coletivamente suas ações através de momentos distintos de reflexão:
a) Antes da ação: momento em que os professores discutem seus encaminhamentos e propostas de atividades.
b) Durante a ação: são as reflexões produzidas pelos professores durante a realização das aulas; é o momento em que se discutem as
dificuldades encontradas, os dilemas.
c) Após a ação: momento em que se discutem e avaliam os procedimentos, os avanços, além de projetar novas ações para as aulas
seguintes.
Esse processo colaborativo pode ser chamado de pesquisa-ação, pois
embora cada professor tenha a sua própria prática todos colaboram com reflexões, análises e sugestões, tanto para a investigação quanto para o desenvolvimento do trabalho pedagógico do outro.
Esses momentos de reflexão, em que o professor avalia a sua própria
prática, são de suma importância para que haja mudança de postura e atitudes
quando necessário, pois o papel fundamental do professor de matemática de
qualquer nível é o de educador e seu foco é promover uma educação pela matemática, não perdendo de vista a relação professor-aluno-aprendizagem.
Embora tanto os matemáticos como os educadores matemáticos tenham em comum a matemática, olham para esse campo do saber de forma
distinta. Diferentemente do matemático, que tende a conceber a matemática
como um fim em si mesmo, preocupado em produzir, por meio de processos
hipotético-dedutivos, novos conhecimentos e métodos que possibilitem o desenvolvimento da matemática pura e aplicada, o educador matemático realiza
seus estudos tendo como perspectiva o desenvolvimento de conhecimentos
matemáticos e práticas pedagógicas que contribuam para uma formação mais
integral, humana e crítica do aluno e do professor, colocando a matemática a
serviço da educação.
93
Referências
ALENCAR, E. S. Novas concepções da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1995.
FIORENTINI, D. Por trás da porta, que matemática acontece? Campinas:
Gráfica FE/Unicamp, 2001.
_____; LORENZATO, S. Investigação em educação matemática: percursos
teóricos e metodológicos. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. (Coleção
Formação de Professores).
NUNES, T.; BRYANT, P. Crianças fazendo matemática. Tradução de: Sandra
Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
Parâmetros Curriculares Nacionais. Matemática. Secretaria de Educação
Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
PARRA, C.; SAIZ, I. et. al. Didática da matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
REVISTA DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA. N. 27, 1o quadrimestre de 1995.
ZUNINO, D. L. de. A matemática na escola: aqui e agora. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995.
94
VII
Qualidade de vida, subjetividade e
interação
Fernanda Pires Bertuol1
Qualidade de Vida deve ser objeto de preocupação no tempo de trabalho e
de não-trabalho, pois, caso contrário, teremos um tempo de não-trabalho apenas
compensando a falta de qualidade do tempo de trabalho, numa função de mera
reposição de energias perdidas ou desperdiçadas.
Moreira, 2001
Subjetividade e cultura
A cultura, fomentada pela sociedade ao longo dos acontecimentos históricos, conduz a própria sociedade a uma visão de mundo, bem influente no
estilo de vida das pessoas, o qual se apresenta caótico, ao nos reportarmos:
à relação consumista do homem com o meio ambiente; ao que representa o
tempo na vida das pessoas; às exigências e ao significado do trabalho; à falta
de alternativas de lazer e à má administração do tempo livre; aos conflitos
de relacionamento intra e interpessoal; aos problemas de saúde, geralmente,
psicossomáticos; à dificuldade de solucionar problemas e administrar conflitos;
Mestranda em Educação na PUC-PR, especialista em Modalidades de Intervenção no Processo de Aprendizagem
(PUC—PR), administradora responsável pela empresa Movimento Temático: Educação para a Qualidade de Vida
Ltda., sediada em Curitiba (PR).
1
95
ao fácil acesso à informação em contraposição à dificuldade de aprender e de,
principalmente, aplicar o conhecimento; e à falta de motivação, criatividade,
interesse e iniciativa no que refere às atividades cotidianas.
Na luta pela vida, o homem busca tanto assegurar sua existência, no
aspecto mais natural, quanto satisfazer suas necessidades e desejos. Porém o
que permite apreender a relação do homem existente com sua existência são
sua objetividade e intencionalidade na interação com o meio e consigo mesmo,
ao passo que pertence, ou seja, se torna existente à existência, na luta consciente pela vida, e não somente na luta pela existência (Levinás, 1998).
A subjetividade humana é construída na interação do homem com o
mundo, segundo sua percepção de si mesmo nas situações de aprendizagem.
Como “toda situação tem uma significação imediatamente perceptível, a
partir da qual se esboça um plano de ação, um projeto, um pensamento determinante em relação a ela” (Fonseca, 1998, p. 200), a subjetividade encontrase imersa nos condicionamentos dos meios.
Ao mesmo tempo, se constrói a subjetividade na interação do sujeito com
o mundo e constrói o mundo. Ela se expressa e manifesta pelos sentidos do
corpo, os quais realizam a comunicação do indivíduo com o mundo e nos quais a
linguagem imprime seu papel fundamental: o movimento intencional que permite ao homem pertencer a dado tempo e espaço, tornando-se sujeito histórico.
Tavares (2003, p. 110) afirma que:
a experiência de subjetividade introduz a experiência de objetividade. A primeira
imagem procede do corpo. As imagens do mundo se formam de modificações no
corpo que podem ser, assim, decodificadas em imagens. Partindo da diferenciação do que são imagens do ‘eu’ e do ‘não-eu’, teremos consolidados a representação interna acurada do corpo e o senso de identidade. Torna-se possível um
espaço temporal entre o impulso e a ação, possível graças ao desenvolvimento da
consciência e do pensamento.
A subjetividade realiza-se na objetividade e realiza a objetividade. Ela
contém duas dimensões inter-relacionadas, cuja comunicação mobiliza atitudes, sentimentos, pensamentos e posturas, que se desdobram e influenciam
no mundo, definindo este ou aquele sujeito, tal como é e pode ser percebido.
No entanto o cenário da subjetividade é composto de todos os aspectos relacionados anteriormente que, atualmente, se apresentam caóticos.
Contexto da qualidade de vida e educadores nesse contexto
A subjetividade está condicionada aos hábitos e é determinante da rotina, porque consolida a perspectiva pessoal de mundo e, assim, a própria
qualidade de vida.
96
É por isso que tanto a qualidade de vida quanto a sua concepção diferem
de uma pessoa para outra.
Qualidade de vida não é sinônimo de saúde. Ela abrange a saúde. Seu
conceito não abarca somente o bem-estar biopsicossocial, mas a prática do
ser; prática desdobrada em posturas, atitudes, atividades, hábitos e costumes,
relativos a uma determinada fase de desenvolvimento humano.
Qualidade de vida é a cultura, adotada ou construída por uma pessoa,
que orienta sua prática de ser em relação à sua saúde. Boa qualidade de vida
para uma pessoa adulta é verificada pelo maior grau de proximidade entre o
bem-estar biopsicossocial e a prática consciente do ser saudável, pois, nessa
fase, é sua a responsabilidade pelo próprio bem-estar.
Um dos maiores agravantes para a qualidade de vida do adulto é o trabalho, pela forma como é realizado e por suas condições, quando expressas na
escassez de recursos materiais e humanos, na sobrecarga e na fragmentação
de tarefas, nas relações interpessoais superficiais durante sua realização, na
baixa remuneração, na falta de incentivo e reconhecimento a quem o realiza e
no excesso de exigências e cobranças.
Esses agravantes são muito comuns em algumas profissões, dentre elas
as de licenciatura.
Os professores, apesar da autonomia característica da sua atuação individual em sala de aula, deparam-se com obstáculos colocados por seu trabalho
que, como todos os outros, ao acontecer na sociedade moderna, limita suas
ações, submetendo sua formação humana à informação e à reprodução: o corpo
é “domesticado” para a execução do trabalho, refletindo dificuldades de atuação
e intervenção educativas, conforme a demanda social, ou seja, de acordo com
as necessidades dos alunos, os objetivos da educação e os propósitos da própria instituição de ensino onde trabalha.
O trabalho em educação, quando nas condições relacionadas, torna-se
um agravante para a qualidade de vida do professor, ao passo que sua representação e significação têm fundamental função na construção da identidade
profissional, que se transpõe à pessoal e, conseqüentemente, à personalidade,
pois o sujeito se humaniza no momento que se relaciona com o mundo, mediante seu próprio corpo, onde, utilizando a expressão de Merleau-Ponty, reina
uma intencionalidade operante.
Em razão de o produto da educação não ser material e sim forte contribuinte à formação humana, é que as exigências à prática pedagógica diferem de
outras profissões, principalmente pela autonomia essencial à ação do professor
97
(Pimenta, 1999). O que, por um lado, valoriza o profissional docente pela sua
prática social, por outro lhe exige habilidades diversas e, muitas vezes, lhe
toma energia no ‘tempo-espaço’ de não-trabalho.
Assim, para Zuin (1997, p.196-197):
o trabalho (sem deixar de ser entendido como processo de autogeração humana e processo objetivo de existência da espécie) continua ocupando o lugar de
figura central da teoria educacional dialética. Mas interpretá-lo como condição e
realização do ser humano exige a associação da teoria do trabalho a uma teoria
do indivíduo e do sujeito. Isso significa que o trabalho (prática social) deve deixar
de ser uma condição determinante e unilateral e passar a ser estudado como um
problema de uma dialética de objeto e sujeito. Por outro lado, a formação tornase indissociável do sujeito. Discutir como um se estabelece exige a presença da
outra, e vice-versa.
A qualidade de vida dos educadores é reflexo da qualidade de sua interação nos ambientes pessoal e profissional e reflete diretamente nessa qualidade. Esse fator recíproco denota a relevância da preocupação e do investimento
das instituições de educação com a qualidade de vida dos seus profissionais.
Qualidade das interações para a qualidade de vida
As dimensões individual e social são o universo da subjetividade humana, com base na qual se concebe a qualidade de vida. No entanto, nesse universo, são visualizadas e questionadas algumas barreiras significativas para a
conquista da boa qualidade de vida. Barreiras significativas porque se trata de
problemas e conflitos na base da qualidade de vida: na qualidade das relações
intra e interpessoal.
Para discutir ou resolver tais questões, tendo em vista a iniciativa de
reconstrução das condutas pessoal e profissional para uma vida saudável e
produtiva, é primordial a emersão visual de mundo da rotina, ou seja, o desapego ao hábito de realizar atividades de determinadas formas e não de outras,
mediante diferentes perspectivas de percepção de si, do meio e das situações
de conflito, mediadas pelo pensamento complexo, partindo para a vivência de
construção de novas propostas de ação e interação frente aos problemas tidos
como barreiras à qualidade de vida.
O educador, primeiramente, ao entender-se como ser complexo e ao
dedicar ‘tempo-espaço’ para seu autodesenvolvimento, torna-se apto a mediar,
comunicar, perceber o contexto, entender a diversidade, relacionar e interagir,
contando com recursos primordialmente próprios na estruturação de processos
favoráveis à aprendizagem significativa, tanto sua quanto de seus alunos.
98
Esses recursos próprios são as condições pessoais para a vida e o trabalho; são as condições construídas pela cultura pessoal, que designa hábitos,
costumes, crenças, atitudes, posturas e atividades, ou seja, são aspectos da
sua qualidade de vida que, por sua vez, vão interagir com aspectos da qualidade de vida dos outros.
No entanto a qualidade das interações consigo mesmo, com os outros
ou com os objetos do conhecimento designa a qualidade de vida e é designada
pela qualidade de vida, numa constante dialética da vida, a qual sempre parte
de cada pessoa para o mundo, gerando sentimentos de realização ou insatisfação.
O autoconhecimento, exercitado de forma a contextualizar interesses, necessidades e desejos pessoais, é o primeiro passo para identificar na
subjetividade tanto os objetivos de vida quanto o potencial individual para
conquistá-los.
O segundo passo é alimentar um paradigma qualitativo, por meio de
uma postura que combine reflexão e ação, gerando a motivação das capacidades de valorizar e administrar o que foi identificado; e essa valorização
compete à filosofia pessoal, construída e trabalhada espontaneamente, e não a
receitas que ditem passo-a-passo atitudes predefinidas e detalhadas por outras
pessoas.
O terceiro passo é a administração daquilo que nos é importante, mediante o planejamento e a realização de atividades favoráveis ao desenvolvimento dos nossos objetivos de vida, fomentados em conjunto à
reavaliação de questões prementes e atuais, como a relação entre o homem e o
meio ambiente, o fator tempo na vida humana, as exigências e o significado do
trabalho, a administração do tempo livre, as relações interpessoais, a saúde como
bem-estar biopsicossocial, as dimensões dos diversos tipos de problema para soluções adequadas, a motivação e a criatividade nas atividades cotidianas.
Uma qualidade de vida satisfatória não pode ser adquirida em locais ou
situações específicas; ela é uma construção consciente do sujeito que aproveita a qualidade das interações, ou seja, que se autoconhece, que valoriza e administra socialmente os aspectos de sua vida e que toma decisões conscientes,
seguidas de iniciativas éticas.
Conclusão
A qualidade de vida requer a compreensão complexa da vida que vivemos intensamente, e não, simplesmente, da vida que temos ou levamos quase
como espectadores. Deve ser o exercício automotivado da aprendizagem aplicada à emancipação humana, em que o conhecimento das coisas mais simples
é transposto para situações complexas, tendo como princípio a ética e designando um estilo de vida saudável.
99
“... A complexidade é concebida como uma reforma profunda do pensamento, uma tomada de posição epistemológica que, em si mesma, é desígnio
e método educativos” (Morin, 2003, p. 557).
A melhoria da qualidade de vida começa com o conhecimento sobre
seus aspectos e se realiza com o saber, fundamental à prática consciente do
ser saudável. A melhoria da qualidade de vida dos professores requer propostas específicas para o trabalho do assunto junto aos professores, partindo do
interesse das instituições de ensino em utilizar o tempo e o espaço de trabalho
voltados à reconstrução de práticas pessoais e profissionais ineficazes, já que
ambas interagem e se transformam mutuamente.
No próprio instante que me dedico aos meus projetos, a minhas ocupações, a meus amigos, a minhas recordações, posso fechar os olhos, estirar-me,
escutar meu sangue que pulsa nos ouvidos, fundir-me a um prazer ou a uma
dor, encerrar-me nesta vida anônima que submete minha vida pessoal. Mas
justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que
me abre ao mundo e nele me põe em situação. O movimento da existência em
direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao mundo pode recomeçar,
assim como um rio degela (Merleau-Ponty, 1999, p. 227-228).
Referências
ARENDT, H. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
CASTRO, A. P. de. Motivação: como desenvolver e utilizar esta energia. Rio de
Janeiro: Campus, 1998.
DAVEL, E.; VERGARA, S. C. (Orgs.). Gestão de pessoas e subjetividade.
São Paulo: Atlas, 2001.
DEMO, P. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não-linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2002.
FONSECA, V. da. Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese. 2. ed.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1989.
LÉVINAS, E. Da existência ao existente. Campinas: Papirus, 1998.
LORIGGIO, A. De onde vêm os problemas: método para um diagnóstico
eficaz. São Paulo: Negócio, 2002.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
100
MOREIRA, W. W. Qualidade de vida: complexidade e educação. Campinas:
Papirus, 2001.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8. ed. São
Paulo: Cortez / Brasília: Unesco, 2003.
MOSCOVICI, F. Desenvolvimento interpessoal. 13. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2003.
PIMENTA, S. G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São
Paulo: Cortez, 1999.
SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
TAVARES, M. da C. F. Imagem corporal: conceito e desenvolvimento. Barueri: Manole, 2003.
VÀZQUEZ, A. S. Ética. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
101
102
VIII
Gestão de pessoas: formação de
uma equipe bem sucedida
Marilda Corbelini1
Novos tempos, velhos desafios
Os desafios presentes no novo milênio trazem a cena profundas mudanças para o cotidiano da gestão das organizações.
No meio das turbulências de valores, da instabilidade e imprevisibilidade
dos fatos, a tradicional questão se apresenta, mas cada vez mais emergente,
importante e necessária de se enfrentar:
Quais as competências ou, mais precisamente, que capacidades, conhecimentos, aptidões e experiências são necessários para lidar com pessoas, de
forma construtiva, de maneira que as diferenças possam ser administradas e
equacionadas em uma relação de interdependência?
De acordo com Peter Drucker2,em seu livro Desafios Gerenciais para
o Século XXI, o autogerenciamento constitui uma competência fundamental
para avaliar posicionamentos, decisões, visão de mundo, possibilitando conhecer a si mesmo em um contexto em que a consciência da interdependência,
de trabalho em equipe são condições para definir nossa inclusão no mundo da
vida pessoal e profissional.
Doutora em Serviço Social, consultora para programas de gestão de pessoas nas organizações e professora dos cursos de pós-graduação (FAE / CDE, FGV, IBMEC). Coordenadora do Programa de Projetos Comunitários da PUC-PR.
1
2
DRUCKER, Peter. Desafios gerenciais para o século XXI.
103
No cotidiano da vida profissional, no mundo do trabalho globalizado,
verificamos a ausência de participação, colaboração e relacionamentos éticos,
saudáveis e gratificantes. As empresas, necessariamente, terão de investir na
gestão da consciência de si e do outro, na capacidade de administrar conflitos,
diferenças de interesses, buscando uma forma construtiva e cooperativa de
relacionamento.
Velhos desafios, já denunciados por Karl Manheim em 19303, “se o desequilíbrio no desenvolvimento total é perigoso para o individuo, a nível da
sociedade poderá levar, mais cedo ou mais tarde, à catástrofe”.
Nessas turbulências, constantemente reevidenciadas, estão presentes as
contradições das transformações do desenvolvimento tecnológico, a qualidade
de vida das organizações sociais e a deteriorização da dimensão humana.
Nossos conflitos e problemas são de desacordos, antagonismos sociais,
frustrações sociais e não de condições materiais de vida e equipamentos concretos das organizações4.
O radicalismo e o antagonismo continuam presentes nos cenários empresariais, como marca histórica dos desentendimentos dos conflitos entre capital e trabalho, atrasando o processo de inovação, qualidade e competitividade
organizacional. De acordo com Kerridje5, citado por Jensem, as doenças organizacionais (complexidade, caos, confusão, conflito e custos) limitam a sintonia
das tarefas, distorcendo a qualidade das ações organizacionais e impedindo a
consecução dos processos de mudança social.
Novos tempos e o resultado através das pessoas
Toda e qualquer empresa (não importa seu tempo de existência, sua estrutura e finalidade) tem um grande desafio neste milênio: lidar com a extrema
agressividade e pressão de mercado, com a competitividade, emergência de
capacidade de renovação e, principalmente, enfrentar o desafio de atrair e reter,
internamente, profissionais comprometidos, parceiros que compartilhem objetivos, expectativas, valores pessoais e organizacionais, comunicando e administrando suas diferenças de natureza pessoal, interpessoal, intergrupal e coletiva.
Em qualquer organização, independente de sua natureza, tamanho ou
ramo de atividade, o comportamento individual e coletivo é fruto de experiências
e idiossincrasias pessoais, dos processos interativos que ocorrem na situação
de trabalho, das características da cultura organizacional e dos papéis / funções
que cada um representa no contexto da empresa. São as pessoas, através de
suas ações, relacionamentos e formas de participação, que transformam essa
entidade abstrata, a empresa, em um organismo vivo, atuante e com características próprias, capaz de interagir com o meio ambiente.
3
MANHEIN, Karl. Man and Society in an age of reconstruction. New York.
4
RIESMAN, D. A multidão solitária. S. P. 1971.
5
JENSEN, B. O desafio da simplicidade. HSM Management, no 9, 1998.
104
Dentro de uma organização, um dos sistemas mais importantes é o grupo de trabalho, contudo, pelas contingências não só externas como observamos, mas principalmente internas, não é fácil trabalhar nesse coletivo. Por que
então continuamos a insistir em discutir a relevância do trabalho em equipe e
a alta da sinergia por ela produzida?
A razão mais importante talvez seja a de que poucas tarefas podem
ser feitas individualmente. Na medida em que as organizações se tornam
mais complexas do ponto de vista tecnológico, é preciso mais do que energia,
conhecimento, habilidades e o tempo de uma única pessoa para realizar as
tarefas. É importante referenciar, no mundo do trabalho em qualquer complexidade, o uso mais sistemático e o aproveitamento dos diferentes talentos e
habilidade das pessoas.
Entretanto, encontramos, na maioria das organizações, a ausência de
efetividade no trabalho grupal. Vale a pena pensar, caso você pertença a alguns
desses grupos, como está ocorrendo esta relação. Outros questionamentos
também merecem ser feitos: como se organizaram? Você se sente útil dentro
deles? Você confia nas pessoas? Os objetivos estão bem claros? Há comprometimento? Enfim, você sente que faz parte desse grupo de pessoas? Você é
feliz?
A proposta de construção e manutenção de equipes dos autores Sibbet /
Drexler6 interessa a quem quer compreender o funcionamento dos grupos de
trabalho e melhorar o autoconhecimento / autogerenciamento, como também
aprimorar a habilidade de obter o que se deseja dos grupos dos quais se participa.
Liderança de equipes: um modelo (Sibbet / Drexler)
O que é uma equipe?
É um conjunto de pessoas interdependentes, trabalhando em direção a
um objetivo comum.
Mais especificamente:
— Eles têm uma razão ou propósito para trabalharem juntos.
— Eles precisam da experiência uns dos outros, assim como da habilidade e do compromisso mútuo para atingirem objetivos. Esta é a sua
interdependência.
— Eles acreditam que trabalhar em uma equipe leva a resultados mais
eficazes do que trabalhar sozinho.
— Eles contam com um contexto organizacional mais amplo.
6
SIBBET; DREXLER, Alan. Team Building. NTL/Ed, Washington USA, 1990.
105
Trabalho em equipe: os sete estágios
Os elementos que compõem este modelo são interdependentes: a progressão do primeiro ao sétimo estágio não é cronológica. Todas as situações
representadas no modelo estão em constante acontecimento, ainda que a sobreexcelência de uma sobre a outra, em um certo momento, varie de equipe
para equipe. A progressão pelos estágios acontece, de maneira geral, de forma
dependente da resolução dos tópicos concernentes aos últimos estágios. Esta
dependência não é absoluta, pode acontecer, para uma dada equipe, que o
processo seja bem-sucedido, ainda que exclua a realização de um ou mais estágios. Em geral, entretanto, a resolução de um estágio faz que seja preferível
resolver o outro estágio sucessivo.
O nível de resolução para qualquer uma das questões descritas no modelo varia na maioria das equipes em dois aspectos. Primeiramente, as diferenças usualmente ocorrem na maneira individual de cada um dos membros
resolver suas questões. Em muitas equipes, entretanto, os membros partilham
uma idéia de como o grupo está lidando com um dado conjunto de questões,
isto é, todos percebem uma espécie de “centro de gravidade”. Em segundo
lugar, o nível de resolução de um dado conjunto de questões varia, conforme o
momento, para a maioria das equipes. Conclusões que tenham sido acertadas
podem ser rediscutidas em função de um querer da equipe ou das circunstâncias. O mau funcionamento de uma área pode ter efeitos irreversíveis em
outras.
O modelo simplifica esta realidade. Para facilitar a discussão, debateremos cada estágio separadamente.
Estágio de construção de trabalho em equipes
1. ORIENTAÇÃO: Eu pertenço a este lugar? Eu quero estar aqui?
Quando as equipes estão em construção, os componentes estão tentando imaginar POR QUE estão ali, se seu potencial será aproveitado
e se os outros vão aceitá-los. As pessoas sempre precisam de algum
tipo de resposta para poderem prosseguir.
2. CONSTRUINDO CONFIANÇA: Quem é você? O que você espera de
mim?
Em seguida, as pessoas querem saber COM QUEM vão trabalhar, suas
expectativas, agendas e competências. A informação adequada ajuda
a construir confiança e um livre intercâmbio entre os membros da
equipe.
3. CLARIFICANDO OBJETIVOS / PAPÉIS: O que a equipe deve fazer?
106
O trabalho de equipe começa a acontecer mais concretamente com a
clarificação dos objetivos da equipe, bem como do papel de cada membro. Termos e definições vêm à discussão: QUAIS são as prioridades?
4. TOMADA DE DECISÃO E COPROMISSO: Para onde?
Em certo momento, as discussões precisam ser encerradas e as
decisões devem ser tomadas sobre COMO os recursos, o tempo, o
pessoal de apoio, todas as contingências, a nível de suporte, serão
administradas.
Estágios de manutenção do trabalho em equipes
5. IMPLEMENTAÇÃO: Como as coisas são feitas?
As equipes ganham impulso quando começam a seqüenciar o trabalho e se concentrar em QUEM faz o QUE, QUANDO e ONDE na ação.
Controles sobre o tempo e a organização dominam esse estágio.
6. ALTO DESEMPENHO: Sinergia!
Quando a metodologia é assimilada, uma equipe pode começar a
mudar seus objetivos e responder de forma flexível (A equipe pode,
então, exclamar “UAU!”).
7. RENOVAÇÃO: Questionar a continuidade
As equipes são dinâmicas. As pessoas ficam cansadas, há mudanças
de membros. As pessoas imaginam “POR QUE continuar”. É hora de
colher os resultados do que foi ensinado e preparar-se para um novo
ciclo de ação.
107
DESENVOLVIMENTO DE EQUIPES
ESTÁGIOS DE SUSTENTAÇÃO
ESTÁGIOS DE CRIAÇÃO
NÃO
RESOLVIDO
* Incerteza
* Medo
1.
ORIENTAÇÃO:
POR QUE
ESTOU AQUI?
RESOLVIDO
* Determinação
* Companheirismo
RESOLVIDO
* Reconhecimento
* Domínio das
mudanças
* Poder duradouro
NÃO
RESOLVIDO
* Precaução
* Falta de
confiança
2.
CONSTRUINDO
CONFIANÇA:
QUEM SÃO
VOCÊS?
3.
CLARIFICAÇÃO
DOS
OBJETIVOS: O
QUE ESTAMOS
FAZENDO?
6.
ALTO
DESEMPENHO
UAU!
NÃO
RESOLVIDO
* Desarmonia
RESOLVIDO
* Clareza de objetivos
* Papéis identificados
NÃO
RESOLVIDO
* Conflito
* Prazos Perdidos
* Desmotivação
5.
IMPLEMENTAÇÃO
4.
NÃO RESOLVIDO
RESOLVIDO
COMPROMISSO:
* Dependência
* Visão partilhada
COMO
* Decisões
FAREMOS?
108
NÃO
RESOLVIDO
* Frustração
* Esfacelamento
do grupo
RESOLVIDO
* Estima mútua
* Interação espontânea
RESOLVIDO
* Sinergia
* Comunicação
* Equipes
NÃO
RESOLVIDO
* Apatia
* Competição
irrelevante
7.
RENOVAÇÃO:
POR QUE
CONTINUAR?
RESOLVIDO
* Processo claro
* Execução
disciplinada
Anotações
109
Anotações
110
Anotações
111
SERIEDADE | COMPETÊNCIA | CONSCIÊNCIA | DEDICAÇÃO