Metodismo e educação missionária no Brasil

Transcrição

Metodismo e educação missionária no Brasil
ARTIGOS
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Metodismo e educação missionária
no Brasil: uma jornada em busca
das fontes orais*
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Methodism and missionary education
in Brazil: a journey in search
of oral sources
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Zuleica de Castro Coimbra Mesquita
Doutora em Educação - UNIMEP/SP
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Uniterms: missionary work; vocation; education; Brazil
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Unitermos: trabalho
missionário; vocação;
educação; Brasil
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The history of Methodism and Protestantism in Brazil is reconstructed by
reading the most significant excerpts of
missionary testimonies collected in an
investigation carried out jointly by Emory
& Henry College, UNIMEP and
COGEIME. The difficulties with the Portuguese language, as well as normal adaptation problems in different cultures,
are covered in this article, where an attempt was made to be faithful to the original form of speech of those interviewed.
The subject of missionary vocation, the
role of missionary wives, and missionary
activities in formal education and social
work are also covered.
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A história do metodismo e do
protestantismo no Brasil é reconstituída
através da leitura dos trechos mais
significativos dos depoimentos de
missionários coletados para uma pesquisa
desenvolvida em parceria entre Emory &
Henry College, UNIMEP e COGEIME.
As dificuldades com a língua portuguesa,
assim como os problemas naturais de
adaptação em culturas diferentes são
retratados nesse texto, em que se procurou
ser fiel à forma original das falas dos
entrevistados. São abordados os temas da
vocação missionária, do papel da esposa
do missionário e de sua atuação na
educação formal e em trabalhos sociais.
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*Projeto desenvolvido em parceria: Emory & Henry College – UNIMEP – COGEIME
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Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
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O
Visão geral do trabalho
missionário
A história oral
complementa outras fontes
históricas
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Vocação missionária
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O recrutamento de obreiros para a missão metodista no Brasil acontecia
freqüentemente através da propaganda pessoal de outros missionários que
já viviam no Brasil. Durante os períodos de “furlough”, licenças que a Junta
de Missões em Nova York concedia aos missionários, estes visitavam igrejas
nos Estados Unidos, onde falavam sobre a missão brasileira. Estes contatos,
não raro, despertavam vocações para o trabalho missionário no Brasil:
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Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
texto que ora apresentamos é o resultado de uma pesquisa nas fontes
orais da história da missão metodista no Brasil. Essa pesquisa foi feita
durante os meses de abril e maio de 1998, nos Estados Unidos, onde foram
entrevistadas vinte e seis pessoas, entre missionários e missionárias aposentados ou seus parentes mais próximos (no caso dos missionários já falecidos).
O resultado desse trabalho foi um texto com cerca de 350 páginas de
transcrição. A partir da colheita dessa documentação histórica e da riqueza
que ela representa para a história do metodismo e do protestantismo no
Brasil, sentimos a necessidade de divulgá-la, tornando-a acessível aos pesquisadores e demais pessoas interessadas no assunto.
Nosso objetivo nesse texto não é o de fazer reflexões teóricas sobre a
missão metodista no Brasil, mas o de tornar público os trechos mais significativos das entrevistas, organizando-os em subtemas que consideramos os
mais interessantes. Nosso trabalho foi, portanto, o de selecionar e organizar
“as falas”, dando uma certa unidade aos discursos de modo que o leitor
tenha uma visão geral do trabalho missionário e ao mesmo tempo perceba
as “múltiplas visões” características da diversidade humana, da riqueza dos
pontos de vista sob os quais cada missionário encarou a missão e foi influenciado por ela.
Sabemos que a seleção e organização dos textos já constitui um ato subjetivo, mas entendemos que nenhum trabalho de pesquisa é inteiramente
objetivo. Ele sempre carrega em si a marca do sujeito. Selecionar e organizar representa ler os textos sob uma ótica pessoal (escolha – censura). Entretanto, evitaremos aqui reflexões ou comentários valorativos, oferecendo
ao leitor a oportunidade de “ouvir a voz” dos entrevistados.
É bom lembrar que a história oral complementa outras fontes históricas, preenche lacunas, vazios onde a documentação oficial é omissa. Não
deve ser utilizada como fonte única e precisa ser cruzada com outras vias de
informação. Entretanto, isto não torna as fontes orais menos preciosas para
o pesquisador.
Nem todos os entrevistados trabalharam em instituições de ensino, mas
informalmente todos foram educadores na medida em que transmitiram
conhecimentos e práticas culturais de sua própria formação às congregações e comunidades onde atuaram.
“Vocês não querem ir
conosco para o Brasil?”
“Quase que imediatamente
falamos: Bem, por que não?
“Chegou em nossa comunidade (na Carolina do Norte) um casal de missionários
no Brasil, era o Bill Andrews e sua esposa Peggy. Nos visitaram e conversamos
sobre o nosso interesse. Eles perguntaram: ‘Vocês não querem ir conosco para o
Brasil?’ Quase imediatamente falamos: bem, por que não?” (Bill Bigham)
Também pela influência de outros, Parke Renshaw fez sua escolha:
“Em meus anos de Seminário, 1946 – 1949, minha esposa e eu sentimos que
tínhamos o chamado para ir como missionários para algum país e, como as
circunstâncias da época sempre afetam esses julgamentos (havia um casal da
China de quem ficamos bons amigos), achamos que nossa carreira seria como
missionários na China. Como todo mundo sabe, em 1948 os comunistas tomaram conta da China e acabou-se, então, o sonho de poder ir para lá. Neste
mesmo intervalo, o casal Sady e Ruth Machado tinha chegado ao Seminário
e nós éramos bons amigos. Eu já conhecia o Dr. Oscar Machado e outros
brasileiros que também nos cativaram como um bom lugar para irmos trabalhar”. (Parke Renshaw)
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Houve ainda a “vocação missionária herdada”. Muitos filhos e filhas de
missionários e, em alguns casos netos, acabaram tornando-se missionários.
Mac McCoy afirma:
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“A família Buyers, a família Betts, a família Smith, a família Clay (três
gerações de Clay), eu não sei de outro país onde a gente tenha mais relações
com a Igreja Nacional. Em nenhum outro país temos um número tão grande
de segunda e terceira gerações de missionários como no Brasil”. (L. Mac McCoy)
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Will Rogers coleciona histórias pitorescas a respeito das primeiras experiências e contatos com os brasileiros:
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“Quando nós chegamos a Quaraí (Rio Grande do Sul, 1940)... eu desci do
trem, um homem me puxou e me abraçou. Aí, ele me virou para um outro
homem. Este homem bateu nas minhas costas e me abraçou. Aí me viraram
para um outro homem, depois para outro e mais outro... Os dois primeiros
anos foram difíceis porque eu não sabia português. Agnes me ensinou uma
oração em português, eu decorei e quando eu visitava os membros eu sempre
fazia a mesma oração...” (Will Rogers)
Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
“Agora é hora de
aprender a saborear esse
café”
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“...nós finalmente chegamos. Tivemos tempo de jantar no Bennett. Depois
do jantar teve o cafezinho. Eu disse: ‘Agora é hora de aprender a saborear
esse café, Cyrus quer que eu goste do café’. Eu provei o café, era muito forte.
Estavam todos em volta, esperando para ver o que eu achava do café. Eu
provei e pensei: ‘Como vou conseguir tomar isso?’ Para mim, tinha gosto do
pior remédio... Pensei que a melhor forma de resolver aquilo era beber de
uma vez. Segurar o fôlego e beber... Eu fiz isso e passei tão mal...” (Marshlea
Dawsey)
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As dificuldades com a língua portuguesa, hábitos diferentes e o choque
cultural são lembranças vivas até hoje na memória dos missionários. Marshlea
Dawsey se lembra de seu primeiro “cafézinho” em terras brasileiras e ri ao
contar:
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Dificuldades de adaptação
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Engraçado mesmo, conta Jeannette Wofford, era a conversa de imigrante japonês com missionário americano na feira, em Lins (SP).
“Quando nós chegamos em Lins, os japoneses velhos não falavam português,
não aprenderam. Na feira eles falavam só um pouquinho e falavam errado. Eles
falavam ‘rabonete’ e eu aprendi dessa forma. Eu gostei muito dessa palavra porque eu podia lembrar que era quase igual a ‘sabonete’. Depois que meus filhos
cresceram me contaram que não era ‘rabonete’...era rabanete”. (Jeanette Wofford)
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Ainda sobre as dificuldades com o aprendizado da língua portuguesa,
Will Rogers conta bem humorado:
“Eu pegava um sermão
antigo e o traduzia para o
português na segundafeira. (...)
O resto da semana eu
passava tentando decorar”
“Eu adoro pregar, mas quando fui para o Brasil, perdi toda a minha alegria
em pregar. Eu nunca fora bom com línguas e eu tinha que pregar em português. Foi terrível. Eu não tinha tempo de preparar um novo sermão. Eu pegava
um sermão antigo e o traduzia para o português na segunda-feira. Na terçafeira Agnes o corrigia para mim. O resto da semana eu passava tentando
decorar. Quando chegava domingo eu já estava enjoado do meu próprio sermão... eu tinha cada palavra que eu iria falar escrita da primeira até o
Amém final. Fiquei tão feliz quando soube que Lúcio Trindade, um seminarista, viria a Quaraí. Ele disse que pregaria para mim. Aquela semana foi a
melhor que tive em Quaraí. Dormi depois do almoço, fiz visitas... tive uma
semana maravilhosa. Ele chegou na segunda-feira. Eu o abracei e pensei:
‘Que privilégio recebê-lo. Não precisarei preparar o sermão.’ Foi uma semana
maravilhosa. Uma das mais repousantes que tive em Quaraí. Quando chegou o domingo de manhã, ele dirigiu a Escola Dominical. Eu só precisei sorrir
e abraçar as pessoas. No domingo à noite, o saguão estava cheio. As pessoas
se encostavam nas paredes, elas estavam por toda parte. Lúcio Trindade estava à direita e eu estava à esquerda... me virei então, sorri e disse: “Agora nós
teremos o prazer de ouvir nosso irmão Lúcio Trindade’. Eu não disse isso. Eu
li isso. Agnes escrevera cada palavra para mim. Ele continuou sentado e
disse: ‘Estou doente’. Eu disse ‘o que’? Então ele repetiu em inglês: ‘I’m sick’
(estou doente). Pensei comigo mesmo: ‘sua doença não chega aos pés da minha!’ Ele realmente estava doente. Dois homens da Igreja o carregaram para
fora... o levaram para a casa pastoral. Eu me debrucei no púlpito e olhei para
a congregação. Acho que nos olhamos durante 4 ou 5 minutos. Pensei: ‘Eles
não vão para casa. Eles estão esperando que eu faça a pregação’. Nunca
estive tão assustado em um púlpito como naquele dia. Eles continuavam olhando para mim e eu olhando para eles. No meio daquela situação pedi a José
Cândido Demétrio para orar. Nunca vou esquecer a oração dele: ‘Deus, ajude
Lúcio Trindade para que ele possa melhorar e se fortalecer, para que possa
estar junto de nós novamente, louvando ao Senhor’ . Depois ele começou a
orar por mim. Eu precisava de oração! ‘Deus ajude nosso pastor. Mande a ele
uma mensagem, lhe dê coragem e habilidade para nos falar, Senhor. Tome
conta dele, Senhor’. Enquanto ele orava, eu ganhava forças. Lembrei-me de
um texto. Sem nenhuma palavra escrita, pela primeira vez na minha vida,
eu preguei em português sem nenhuma anotação”. (Will Rogers)
Precariedade nos primeiros anos
A vida dos missionários metodistas nos primeiros anos deste século
foi bastante dura. Muitos deles se fixaram no interior do país, buscando
alargar as fronteiras do protestantismo em áreas onde os recursos eram
muito limitados e as vias de transporte, precárias ou inexistentes. O Bispo Cyrus Dawsey, segundo o relato de sua filha Sarah, foi um desses pioneiros. O Noroeste do estado de São Paulo, no início do século, foi seu
campo de trabalho.
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“Lembro-me bem da
casinha de barro onde eles
moravam”
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“Eu nasci em 1915, meus pais devem ter ido para Birigüi em 1917... Lembrome bem da casinha de barro onde eles moravam. Meu pai era alto e nos colocava
em cima da casa. O chão era batido... Birigüi era mato e me lembro dos papagaios, dos periquitos, dos macacos... A mata, eu achava uma coisa linda. Mr.
Clark, um inglês, deu o terreno para o meu pai construir essa casa de barro...
Esse mesmo senhor deu a propriedade na qual foi estabelecido o Colégio Noroeste
bem como a propriedade para a construção da primeira escola pública em Birigüi...
Me lembro quando Mr. Clark comprou o primeiro carro... nós ouvimos um barulho tremendo e de repente nós vimos essa máquina... Me lembro que me agarrava às saias da minha mãe. Todos nós corremos para perto dela... Ele disse que ia
nos levar para passear de carro. Naquele tempo só tinha carro de boi, nada
mais. Nós não queríamos entrar dentro daquele carro. Fazia barulho demais.
Mas minha mãe nos convenceu e fizemos o primeiro passeio de carro. Jimmy
Clark estava guiando o carro. Ele tinha que descer de vez em quando, com um
machado para cortar os tocos do caminho... O trem passava uma vez por mês e
mais tarde começou a vir uma vez por semana – era a linha de trem Noroeste. Eu
tenho loucura por trens, porque me dá muita recordação boa. “Maria Fumaça”,
aquelas brasas à noite, esperando a vinda de meu pai.... Essas são coisas do
passado, mas experiências que a gente jamais pode esquecer...” (Sarah Dawsey)
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Will Rogers e Agnes Dawsey Rogers também falaram sobre as dificuldades
dos primeiros anos do trabalho missionário deles no Rio Grande do Sul nos
anos 40:
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“Gotejava pela casa
toda, mas, finalmente,
encontramos um lugar no
quarto que não molhava a
cam”
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Muitas vezes a casa dos missionários servia de pouso para os que vinham
da roça para a cidade e, não raro, servia de hospital para os doentes. As
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Casa dos missionários: abrigo para todos
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“Nós achamos então uma pequena casa para alugar. Não tínhamos móveis...
então emprestamos uma cama... emprestamos também uma mesinha e duas cadeiras. Will trouxe uma panela... Ali estávamos nós, então, com quase nada. O que
se deve fazer numa situação dessas é comprar ossos ao invés de carne. Fazemos
uma sopa. Mas claro que também não tínhamos fogão. Havia um pequeno barracão atrás da casa... fizemos então uma fogueira e colocamos nosso pote ali. Achamos alguns legumes, a maioria batatas. Fizemos sopa de almoço e no jantar...
Gotejava pela casa toda, mas, finalmente, encontramos um lugar no quarto que
não molhava a cama...” (Agnes Dawsey Rogers)
narrativas mencionam com freqüência estes fatos. Cyrus Dawsey se lembra
das muitas vezes em que seu pai (o Bispo Dawsey) e sua mãe hospedaram
em casa os necessitados.
“Outra coisa de que me
lembro de Birigüi é dos
leprosos. Naquele tempo
eles andavam em bando, a
cavalo”
“Outra coisa de que me lembro de Birigüi é dos leprosos. Naquele tempo eles
andavam em bando, a cavalo. Isso era comum. Nós, crianças, tínhamos muito
medo deles porque diziam que se um leproso conseguisse passar a doença para
sete pessoas ele seria curado. Eles vinham a cavalo até à frente do portão de
nossa casa. Os meus pais eram gentis, amáveis, bons e misericordiosos com
aqueles leprosos. Davam roupas, comida e medicamentos para eles. Eram homens, mulheres, jovens e crianças também. Geralmente o grupo era de 15 a
20 leprosos. Às vezes, minha mãe deixava eles tomarem banho no nosso chuveiro. Claro que depois ela limpava a casa toda com soda cáustica. A bondade dos meus pais me impressionou e ficou comigo para o resto da vida(...).
Eles nunca fizeram distinção entre as pessoas. Lembro também que as pessoas
do sítio vinham doentes – tanto em Birigüi como em Marília – e não tinham
onde ficar e não tinham dinheiro para ficar em pensionatos. Então os meus
pais recebiam essa gente em nossa casa. Eles dormiam lá e às vezes ficavam
uma semana ou duas e às vezes até um mês. Meus pais cuidavam deles...”
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“Acho que não me
lembro de nenhuma vez em
que não tivesse alguém que
não era da família se
hospedando em casa”
“Uma das lembranças mais remotas que eu tenho de Vitória (Espírito Santo),
além do fato de que a nossa casa era a Igreja, é que sempre havia pessoas se
hospedando em nossa casa. As nossas portas eram abertas. Acho que não me
lembro de nenhuma vez em que não tivesse alguém que não era da família se
hospedando em casa por um dia, uma semana e até por meses. As pessoas
vinham se operar em Vitória e ficavam em nossa casa; se vinham dar à luz,
também ficavam em nossa casa... a nossa casa era o abrigo para as pessoas
que precisavam de ajuda e um lugar para ficar. Essas pessoas sabiam que
poderiam contar com a nossa casa...” (Linda Clay Scherl)
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As filhas do casal Helena e Charles Clay contam também experiências
semelhantes:
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O missionário era uma
espécie de curinga
O campo de trabalho do missionário metodista foi também bastante variado. De certa forma, poderíamos dizer que o missionário foi uma espécie
de “curinga”, podendo atuar em diferentes posições e assumindo funções
variadas. Mac McCoy conta seu envolvimento em diversos setores da vida da
Igreja:
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Diversidade do trabalho do missionário
“A minha responsabilidade era mesmo a de receber e distribuir o dinheiro da Junta de Missões (em Nova Iorque) para os missionários, para as
Igrejas e para as regiões mensalmente no Brasil. Também ajudava a
interpretar as posições da Junta para a Igreja no Brasil e vice versa...
mas eu sou pastor metodista e logo comecei a acumular outras responsabilidades também; por exemplo, na Escola de Línguas em Campinas,
onde os novos missionários estudavam. Comecei a servir no Conselho
Superior daquela escola, onde, durante alguns anos, fui presidente...
Quando se formou no Brasil o Departamento Geral de Previdência dos
Pastores Metodistas, eu servi nos primeiros anos como presidente do
Conselho daquele grupo e ajudei a firmar os regulamentos, diretrizes e
os critérios para investimentos... O Reitor Afonso Romano me procurou
dizendo que havia falta de professores na Faculdade de Teologia em alguns cursos para algumas disciplinas importantes e me pediu para ensinar naquele semestre Propedêutica Teológica e eu aceitei...” (Mac
McCoy)
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Preocupação educacional
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“Queria fazer um
trabalho missionário no
campo educacional ...
resolvi escolher o Brasil”
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“Eu estava querendo trabalhar em uma escola metodista em qualquer país do
mundo. Queria fazer um trabalho missionário no campo educacional... resolvi escolher o Brasil. Fomos para o Brasil chegando em agosto de 1951. Em um
ano na escola de línguas em Campinas, nós estávamos, eu não digo prontos,
mas considerados aptos para começar o trabalho em Lins. Chegando lá, eu
não tinha uma idéia muito clara do que ia fazer e nem o Colégio tinha um
plano para mim... queriam um missionário, alguém para fazer o trabalho de
educação cristã e dirigir as atividades cristãs no Colégio, dando aulas no
Ginásio... de Bíblia e Educação Cristã. Trabalhei no internato com atividades especiais e comemorações. Com isso, abriram-se as portas para mais trabalhos entre os professores, na área de orientação pedagógica, ajudando os professores nos seus recursos e nas suas aulas”. (Warren Wofford)
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Além do missionário pastor, os missionários leigos ocuparam muitos espaços no trabalho metodista no Brasil atuando na educação formal nas instituições de ensino da Igreja e no campo do trabalho social. Vejamos o relato de W. Wofford:
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“Eu cheguei ao Brasil
em 1953...eu era
agrônomo”
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“Eu cheguei ao Brasil em 1953. Não era pastor naquela época. Eu era
agrônomo. Fui enviado para Lins, onde existe o Instituto Americano de
Lins e havia propriedades agrícolas, ligadas ao Instituto. A minha tarefa
principal, no começo, era a de administrar essas propriedades. Eu tentei
também introduzir ali novas idéias quanto à agricultura... Depois de Lins,
fui eleito Secretário Geral de Ação Social da Igreja Metodista. Isto se deu
porque o Secretário anterior, que também era missionário, Robert Wisdom,
me convidara para planejar e executar uma série de seminários em cada
região eclesiástica para pastores da área rural. Como meu método era científico, eu arranjei agrônomos brasileiros, pescadores, enfermeiros e outros e, juntos, nós fizemos uma série de seminários para dar ao pastor
rural o que ele necessitava para reproduzir idéias novas, mas simples:
melhores sementes, seleção de galinhas, vacinação de gado, melhoramento
de pastagens...” (Robert Davis)
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Os missionários participaram também de projetos de ação social voltados para a educação nas áreas rurais. Robert Davis fala de suas experiências:
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O ensino teológico ocupou grande parte da mão de obra missionária. A
Faculdade de Teologia, desde os tempos do Granbery em Juiz de Fora (MG),
necessitou da ajuda docente dos missionários por causa da escassez de pessoas preparadas para essa tarefa.
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“No fim do ano então me foi comunicado o convite da Faculdade de Teologia
para fazer parte de seu programa na área de “Pastoral”. Regressamos ao Brasil para morar na Faculdade...” (Bill Bigham)
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“Fui consultado pelo então presidente da Junta de Missões, bispo Arthur Moore,
a respeito da possibilidade de lecionar em outro país. Descobri que precisavam
de alguém que desse aula de Teologia no Brasil. Foi assim que eu cheguei ao
Brasil”. (William Hinson)
“Suas mensagens
corajosas começaram a
incomodar pessoas ligadas
à ditadura militar”
Outro aspecto interessante na ação missionária dos metodistas norteamericanos diz respeito à visão político-ideológica que está presente, muitas
vezes, nos depoimentos. Ao contrário do que se supõe, vários missioná- rios
foram bastante simpáticos aos movimentos sociais ligados aos grupos de esquerda nos anos sessenta. Alguns chegaram a participar ativamente desses
movimentos ou, pelo menos, deram retaguarda para aqueles que neles se
envolveram mais seriamente.
Nancy Schisler Tims relata a atuação pastoral de seu irmão William
Richard Schisler (Dico) nos tempos do regime militar:
Robert Davis relembra também os dias difíceis da ditadura militar e como
ele esteve envolvido com os acontecimentos da época.
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“Dico sempre teve uma preocupação muito grande com o ministério social da
Igreja. Embora politicamente houvesse forte opressão aos direitos civis, com
cassações, prisões e torturas, Dico sentia que não podia deixar de pregar sobre
os princípios cristãos de amor, paz e justiça dentro do contexto da vida real.
Evidentemente, suas mensagens corajosas começaram a incomodar pessoas
ligadas à ditadura militar. Quando no auge da opressão Dico recusou-se a
participar de um culto ecumênico por ocasião da semana da pátria, foi chamado ao quartel para se justificar(...). Certa noite, recebeu a visita de um
policial conhecido. Veio avisá-lo que o nome dele estava na lista do DOPS e
sugeriu que ele tivesse cautela. Evidentemente, o padre da Catedral recebera a
mesma informação e fez questão de oferecer total apoio ao Dico como também
de garantir a solidariedade da Igreja Católica, caso alguma coisa lhe acontecesse”. (Nancy Schisler Tims)
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Postura político-ideológica
“Foi depois do AI-5 que aumentou a repressão aos universitários, principalmente. Foram épocas difíceis. A Junta de Ação Social era o único lugar que
os alunos universitários confiavam que podiam fazer contato(...). Eu tinha
telefone e recebia muitos telefonemas. Eu estava certo que meu telefone estava ‘grampeado’. Aí eu dizia que ‘fulano estava no hospital’. Isso queria
dizer que ele estava na prisão. Recebemos documentos de dentro da prisão,
pessoas escrevendo sobre as torturas que aconteciam lá. Um dia, o Rev. João
Paraíba recebeu um documento desses. Nós andávamos na rua com isso. De
medo resolvemos jogá-lo no esgoto para não corrermos o risco de ser revistados pela Polícia Militar. Fui procurado por um repórter da revista “Look”.
Queriam fazer uma reportagem sobre a tortura e os problemas com os prisioneiros políticos no Brasil. O repórter nos visitou e pediu para nós mandarmos algum material para ele. Eu levei o depoimento de um prisioneiro para
casa, fiz um buraco no quintal e o enterrei. O meu filho de dez anos sempre
brincava no quintal e um dia, quando eu estava tendo a visita de um
pastor bastante conservador, meu filho entrou na sala e falou: ‘papai, olha
o que eu achei no quintal’. Eu disfarcei para não levantar suspeitas. No
final nós colocamos diversos documentos deste tipo num envelope e falamos:
‘o que vamos fazer?’. Aí a Francis Bowden ouviu a conversa e disse. “Eu
vou levar!”. Então ela foi ao Correio Central de São Paulo, ficou na fila
com o documento, colocou-o no correio e o pacote chegou aos EUA. Eles
fizeram o artigo”. (Robert Davis)
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Segundo a visão de Bill Bigham, professor na Faculdade de Teologia nos
anos sessenta:
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Dois pontos do depoimento de Mac McCoy, missionário no Brasil nos
anos cinqüenta e depois Secretário da Junta de Missões em Nova York, demonstram que o conservadorismo político, por vezes, partia das Igrejas Nacionais na América Latina e não da Junta de Missões ou dos Missionários.
Vejamos trecho da entrevista de Mc Coy:
“Uma vez, depois do assassinato de Allende, nos reunimos com o Conselho de
Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
“Perdemos uma geração
de jovens da Igreja que se
sentiram abandonados e
até traídos...”
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“A liderança da Igreja abandonou a sua responsabilidade. Se comprometeu
com um governo que estava realmente atacando alguns dos problemas econômicos difíceis. A época da ditadura militar foi uma época até certo ponto de progresso econômico, mas o que aconteceu ao povo nesse período, não sei se um dia
vamos saber o resultado de tanto sofrimento. Perdemos uma geração de jovens
da Igreja que se sentiram abandonados e até traídos... Uma jovem do Campo
Belo (bairro de São Paulo) veio à Igreja...ela me disse: ‘nós temos um problema,
muita gente está desaparecendo nas prisões militares e estamos sabendo que um
sacerdote dominicano, que é jornalista, vai ser preso. O nome dele saiu na lista
e o estão procurando. Nós precisamos de um lugar onde ele possa se esconder até
conseguir uma maneira de sair de São Paulo’. Esse sacerdote veio para a nossa
casa. Disse que estava procurando um lugar para ficar alguns dias e apresentou seus documentos. Disse que o nome dele era Beto. Ficamos sabendo que ele
era o Frei Beto e que já o conhecíamos através do Rev. João Paraíba e outros que
estavam trabalhando, principalmente em São Paulo, com os ‘Dominicanos’.
Eu já tinha ido ao Mosteiro Dominicano para reuniões, principalmente buscando uma maneira de ajudar regiões onde os problemas sociais eram mais
graves. Não me lembrava de Frei Beto, mas ele nos reconheceu e ficou conosco
algumas semanas até conseguir sair de São Paulo”. (Bill Bigham)
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“Um bispo da Igreja do
Chile disse: ... que pena
que eu não tinha uma
metralhadora para ir à
rua e também derrubar
esses comunistas”
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líderes da Igreja Metodista no Chile. Um bispo da Igreja do Chile disse: ‘Quando
derrubaram Allende, que pena que eu não tinha uma metralhadora para ir à
rua e também derrubar esses comunistas’. Então, nos reunimos por três ou
quatro dias e ouvimos eles dizerem quase que ‘graças a Deus que nos livraram
do comunismo’. Francamente, nós tivemos que dizer que nós víamos o regime
militar como fascista. Aqueles jovens, que não tinham outro veículo senão o
socialismo cristão, estavam sendo apoiados por nós’. (Mac McCoy)
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“E Brady se levantou
em Santiago e pediu
desculpas pelo governo dos
Estados Unidos, por ter
participado na queda de
Allende”
“Brady Tyson, professor de Política e Direito da América Latina em
Washington D.C., na Escola de Serviço Internacional, foi para o Brasil para
ser pastor dos universitários em 1965-66. Ele entrou um pouco arrogante entre
os universitários, mas acadêmico. Então ele fez algumas declarações públicas a
respeito do regime militar. Eu acompanhei o seu relacionamento com os universitários. Eu visitei Brady mais que uma vez. Então o Presidente do Colégio dos
Bispos (do Brasil) telefonou para Nova Iorque e disse: ‘McCoy, estamos telefonando para pedir que você tire o Brady do Brasil’. Eu disse que não tinha
motivos para suspender o trabalho missionário do Brady. Talvez eu não tivesse
feito ou dito assim, mas estava convencido de que nada que Brady tinha feito ia
além da ética cristã. Então, ele disse: ‘Mas ele já se tornou uma complicação
criando problemas’. Eu lhe respondi: ‘Então você mande-o embora do Brasil,
porque estou vendo que você tem motivos para não querer Brady no Brasil, eu
não tenho motivos, eu não quero que a História diga que a Junta de Missões
tirou Brady do Brasil, mas se a Igreja brasileira quer que ele saia...’ E foi assim,
pediram que ele saísse e ele saiu(...).
Quando Carter era presidente dos EUA, nomeou Andrew Young como representante e delegado junto às Nações Unidas. Ele era um dos colaboradores de
Martin Luther King Jr. Quando chegamos aqui, ele era prefeito de Atlanta
(Geórgia). Andy Young tomou Brady Tyson como seu assessor para a América Latina. Andy e Brady eram amigos pessoais e tinham idéias em comum.
Andy, então, mandou Brady Tyson para Santiago, no Chile, representar as
Nações Unidas. E Brady se levantou em Santiago e pediu desculpas pelo
governo dos Estados Unidos, por ter participado na queda de Allende. Bem,
Brady não tinha autoridade para dizer aquilo e Andy Young nada pôde fazer
senão mandá-lo de volta à Universidade. Eu apoiava Brady. A CIA ajudou
a derrubar Allende, não há dúvida. Então, ele voltou a seu lugar como professor de Política e Direito da América Latina na Escola Diplomática Internacional”. (Mac McCoy)
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Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
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Outra declaração importante feita por McCoy demonstra também a
posição da liderança da Igreja no Brasil, durante o período militar:
Outros missionários, cujo trabalho não assumiu declaradamente nenhuma postura político ideológica, têm relatos extremamente interessantes que
demonstram que, vivendo na América Latina, tornava-se impossível não se
confrontar em algum momento com a ideologia política e ser obrigado a
refletir sobre ela. Agnes e Will Rogers contam como seus caminhos se cruzaram com o de um famoso líder comunista brasileiro:
“Ele era um pacifista,
além de marxista”
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“O Dr. Francisco Julião era um advogado que quando viu as terríveis condições
em que vivia o povo do nordeste do Brasil, não tendo sequer um lugar para
enterrar seus mortos, decidiu se tornar líder dessa gente; o líder dos camponeses do
Brasil. Ele assustava o governo, por isso foi preso(...). Julião estava (exilado) no
México, lecionando lá. A escola ficava perto de Cuernavaca. Quando ouvimos
falar nele, imaginávamos que fosse um homem muito alto. Encontramos um
homem muito pequeno e humilde... Ele nos convidou para tomar café em sua
casa... Nós tomamos café e conversamos sobre o Brasil, porque ele sabia que amávamos o país dele e nós sabíamos que ele também amava o Brasil. Eu lhe disse:
‘Mas Dr. Julião, o senhor é um cristão e deveria afirmar isso!’. Ele disse: ‘Não, eu
não tenho coragem suficiente para ser cristão. Por essa razão, sou marxista. Eu
estou aqui há sete anos. Mas eu sou como Jacó, o meu amor pelo Brasil é tão
grande que se eu tiver que ficar aqui mais sete anos, não vai ser nada’. Ele tinha
grandes ideais para o Brasil e ele era marxista. Ele foi convidado para falar em
grandes universidades dos EUA, mas ele não aceitou. Ele dizia: ‘Comunismo... se
você precisa colocar uma pessoa contra a parede e atirar para provar a sua teoria,
então você não tem uma teoria’. Acho que ele era um pacifista além de marxista.
Ele foi um dos grandes homens que conhecemos. O Dr. Julião estava dando um
curso (no México) sobre o movimento dos trabalhadores no Brasil(...). Ele estava
tão longe do Brasil, mas ele disse: ‘Essa é a maneira que eu posso servir o Brasil’.
Desde então, eu me tornei mais tolerante. Quando me lembro de alguns líderes eu
penso: ‘Eles são tão terríveis por pensarem assim’, mas eu penso em seguida: ‘Não,
talvez eles achem que essa é a melhor maneira de ajudar. O Dr. Julião me ajudou
a pensar assim”. (Will Rogers)
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Embora muitos missionários tenham vivenciado esse confronto entre a
fé e os problemas sociais, o que necessariamente conduz à reflexão políticoideológica, poucos conseguiram teorizar a questão com tanta clareza como
McCoy:
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A participação das esposas de missionários
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Que papel desempenhavam na missão as esposas de missionários? Elas
eram também missionárias? Fizemos essas perguntas a Mac McCoy.
Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
“Existe um confronto
entre a fé cristã e os
problemas sociais”
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“Existem muitos metodistas americanos que ainda hoje pensam que em todo
lugar se vive como os americanos. Eles não sabem o que é o chamado Terceiro
Mundo. Não entendem como as experiências da vida influenciam a sua própria fé cristã. De fato, nem chegam a compreender como suas experiências na
sociedade do sul (dos EUA) têm influenciado sua própria fé. Em todos os
países existe um confronto entre a fé cristã e os problemas sociais(...). Um dos
altos dirigentes da Junta de Missões, muito meu amigo, que se relacionou com
a Ásia, como eu com a América Latina, uma manhã tomou café comigo e com
nosso superior que disse: ‘As pessoas da América Latina não tem nada a
ganhar com o marxismo. Eu tenho a fé cristã, não preciso do marxismo’. E
nós dissemos a ele: ‘Você diz isso aqui, tomando café com dois pastores brancos, já de idade e americanos. Seria melhor se você fosse à América Central e à
América do Sul, tomar café e escutar...” (Mac McCoy)
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“A Junta (de Missões em Nova York) dizia que, embora a esposa de missionário nunca tivesse uma nomeação específica, ela era missionária e precisava de
preparo como qualquer missionário. Só nos últimos anos e nas últimas gerações é que a Igreja começou a dar nomeações específicas...” (Mac McCoy)
“A esposa de missionário era missionária e
precisava de preparo
específico”
Os depoimentos das entrevistadas demonstram que as esposas de missionários foram bastante ativas, participando não só das atividades da Igreja, mas,
também, em obras sociais nas comunidades onde viveram. Nancy Schisler, filha
de Francis Schisler e William Richard Schisler, que trabalhou como missionário
no Rio Grande do Sul entre 1921-57, conta sobre sua mãe:
“No Instituto Educacional (Passo Fundo-RS), como no Colégio União
(Uruguaiana-RS), Dª. Francis assumiu a supervisão do setor de alimentação e
saúde, zelando pelo bem estar dos alunos como se fossem seus filhos(...). Não
bastava porém a alimentação variada. Dª. Francis descobriu que era necessário
ensinar aos alunos a importância de se consumi-la. Nisso contava com o exemplo dos alunos vindos das colônias alemãs, que, pela manhã, se serviam com
gosto do mingau, do chocolate quente ou café com leite. Pouco a pouco, aqueles
que só aceitavam café preto e pão com manteiga entraram no mesmo ritmo.
Assim também no consumo de verduras e legumes com bons resultados na saúde
e crescimento dos alunos. Dª. Francis (...) procurou movimentar as mulheres
passofundenses na busca de soluções para os sérios problemas enfrentados pelas
famílias empobrecidas. Encontrou apoio no médico sanitarista da prefeitura,
Dr. Armando Vasconcelos, que fundou o SAMI – Serviço de Assistência à Maternidade e Infância, tendo Dª Francis como a primeira presidente. Isso, em
1942, era um programa inédito. Dª Francis conseguiu desafiar um bom número de mulheres de diferentes camadas sociais a trabalhar como voluntárias na
confecção de enxovais para recém-nascidos, distribuição de leite, roupas e cobertores tão necessários nos gélidos invernos gaúchos. Ministravam, ainda, aulas
de crochê, tricô e outras habilidades manuais que ajudassem a aumentar a
renda familiar, idéia totalmente nova na época(...). Os resultados foi o decréscimo nos números de mortes de parturientes, de recém-nascidos e de crianças na
primeira infância...” (Nancy Schisler Tims)
“Eu li todos os livros que pude sobre nutrição e como lidar com a dependência de
drogas e álcool através de uma boa nutrição... Uma coisa que eu usei muito foi
o levedo de cerveja porque tem muito complexo B... eu comprava nas casas de
alimentos naturais... e só usava farinha integral...” (June Megill)
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June Megill trabalhou com seu marido George Megill na organização e
direção de um Centro para recuperação de dependentes químicos em
Teresópolis-RJ (1987-90). Ela conta os métodos utilizados para o tratamento
dos jovens.
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Marshlea Dawsey relata seu trabalho entre as mulheres no Brasil (19521979) buscando fazê-las recuperar a auto estima e se fazer respeitar como
cidadãs do mesmo nível dos homens.
“No meu íntimo, achei que Deus estava me chamando para ajudar as mulheres a saberem que não são cidadãs de segunda classe... 75% dos membros da
Igreja eram mulheres. Deveriam ter lugares de liderança. Elas eram bem preparadas, algumas já eram professoras, mas na Igreja não lhes davam lugar
para servir como eu acho que deveriam...” (Marshlea Dawsey)
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Jessie McCoy, formada em enfermagem prestou trabalhos voluntários
na comunidade de Rudge Ramos, São Bernardo do Campo - SP, na década
de cinqüenta:
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“Eu era enfermeira, mas não tínhamos missões médicas, então, fiz minha
própria missão. Eu trabalhei com as mulheres na Igreja. Ajudava as novas
mães a dar o primeiro banho em seus bebês, fazia curativos e vestia os doentes.
Aplicava injeções para não precisarem pagar na farmácia... Uma vez uns
jovens vieram me chamar dizendo que a mãe deles (a quem costumava visitar) precisava de mim e eu fui. Ela estava morrendo e morreu enquanto eu
estava lá. Eu ajudei a limpar seu corpo e arrumá-la...” (Jessie Mc Coy)
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Podemos perceber que também as missionárias sem nomeações específicas, porque eram esposas de missionários, exerceram, cada uma à sua maneira, a função de educadoras, em diversos setores da comunidade onde se
fixou o trabalho missionário.
Por último, gostaríamos de assinalar o fato de que o trabalho missionário
não foi uma via de mão única, onde a Igreja brasileira somente recebeu da
Igreja-mãe. Os relacionamentos humanos são muito mais complexos do que
se pode imaginar. O contato dos missionários com a realidade brasileira acabou modificando a visão de mundo e de cristianismo dos missionários norteamericanos. Isso transparece em depoimentos como o de Bigham:
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“As igrejas estavam começando a sentir a necessidade de estar na rua ajudando os
seus vizinhos. Não somente falando sobre a nossa fé, mas vivendo a fé na luta que
essas famílias estavam enfrentando todos os dias. Eu aprendi a ser pastor na minha
primeira nomeação em Jundiaí. Creio que eu cresci e me desenvolvi mais do que
possivelmente qualquer outra pessoa de nossa Igreja. Eu não podia ser o pastor de
uma Igreja que nossa cidade estava necessitando sem aprender”. (Bill Bigham)
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NOTA: Mantivemos a “fala” dos entrevistados na sua forma original, respeitando o estilo
do discurso de cada um e tentando dar à transcrição o mesmo ritmo da linguagem falada. O
texto integral de todos os depoimentos colhidos pode ser consultado no CEPEME – Centro de
Pesquisas da Educação Metodista. UNIMEP – Campus Taquaral.
DEPOIMENTOS:
Bill Bigham, Cyrus Dawsey, Elisabeth Durant, Ella Jean Davis, Frances Burns, George Megill,
Grace Smith, George Schisler, Helena Clay, Hobin Clay, June Megill, Jessie McCoy, Jeannette
Wofford, Linda Clay, L. Mac McCoy, Martha Bigham, Marshlea Dawsey, Nancy Schisler Tims, Parke
Renshaw, Robert Davis, Sarah Dawsey, Will Rogers, Wilbur Smith, Warren Wofford, William Hinson
Revista do Cogeime nº 15 Dezembro / 99
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Os depoimentos colhidos neste projeto de história oral demonstram que
os missionários não apenas ensinaram, mas também aprenderam, numa
relação de troca, de simbiose entre missão e campo missionário.