Capitulos vol-02copia.p65

Transcrição

Capitulos vol-02copia.p65
Capítulo XCIV
Valentine
Podemos adivinhar onde Morrel ia tratar de negócios, e qual era o seu
encontro.
Assim, Morrel, deixando Monte Cristo, encaminhou-se lentamente na direção
da casa dos Villefort.
Dizemos lentamente porque Maximilien tinha mais de boa meia hora para
completar os quinhentos passos até o local; contudo, apesar do tempo mais do
que suficiente para cumprir o horário, apressou-se em deixar Monte Cristo para
ficar a sós com os seus pensamentos.
Ele conhecia bem o horário, o momento em que Valentine assistia ao almoço
de Noirtier, e no qual ela estava certa de não ser perturbada neste piedoso dever.
Noirtier e Valentine tinham concedido ao jovem oficial duas visitas por semana,
e ele vinha aproveitar o direito conquistado.
Ele chegou, e Valentine o aguardava. Inquieta, quase desesperada, agarrou a
mão do noivo e o conduziu até junto do seu avô.
Esta inquietação, levada, como dissemos, quase ao desespero, vinha do
escândalo que a aventura de Morcef causara em sociedade; sabia-se (em sociedade
se sabe de tudo) da aventura ocorrida durante o espetáculo na Ópera. Na mansão
dos Villefort, ninguém duvidava que isto desembocaria fatalmente num duelo;
Valentine, com seu instinto de mulher, adivinhara que Morrel seria uma das
testemunhas de Monte Cristo e, conhecedora profunda da coragem do seu noivo,
além da amizade que ele nutria pelo conde, temia que ele não se limitasse a um
papel passivo no duelo.
Compreende-se, portanto, com que avidez os detalhes foram indagados, dados
e recebidos, e Morrel pôde ler uma indizível alegria nos olhos da sua bem amada,
quando ela soube que este terrível assunto tivera um desenlace não menos feliz
do que inesperado.
E agora, disse Valentine, fazendo um sinal com a mão para o noivo sentar-se
ao lado do velho, sentando-se ela também no tamborete onde repousavam seus
pés; e agora, repetiu a jovem, falemos dos nossos assuntos. Você sabe, Maximilien,
meu bom vovô teve a idéia, durante algum tempo, de deixar esta mansão, indo
morar em outro lugar, longe do meu pai.
Sim, certamente, respondeu Morrel, lembro deste projeto, e concordo
plenamente com ele!
Tudo bem! Disse Valentine, concorde novamente, Maximilien, o vovô ainda
quer isso.
Bravo! Aplaudiu o jovem oficial.
E sabe qual a razão, disse Valentine, por que o vovô pretende deixar esta
casa?
Noirtier lançou um olhar negativo para a neta, exigindo silêncio; mas
Valentine não estava fitando o velho nos olhos; seu olhar, seus olhos, seu sorriso,
tudo era dirigido a Maximilien.
Oh! Seja lá qual for a razão do senhor Noirtier, eu a considero ótima, exclamou
Morrel.
Excelente! Disse Valentine: ele acha que o ar deste local não está me fazendo
muito bem.
Com efeito, concordou Morrel; escute, Valentine, o senhor Noirtier bem
pode ter razão, de uns quinze dias para cá eu acho sua saúde alterada.
Sim, um pouco, é verdade, respondeu Valentine; e o meu bom vovô virou
meu médico, e como meu avô conhece tudo, tenho a maior confiança nele.
Mas...enfim, Valentine, é verdade, você está sofrendo? Indagou vivamente o
noivo.
Oh! Meu Deus! Isto não é sofrimento; sinto um mal estar geral, eis tudo;
perdi o apetite, parece que o meu estômago luta para manter qualquer coisa lá
dentro!
Noirtier não perdia uma das palavras da neta.
E que tratamento está seguindo para combater esta doença desconhecida?
Ora! Muito simples, disse a jovem, eu engulo todas as manhãs uma colherada
da poção que trazem para o meu avô; quando digo uma colherada, estou dizendo
que comecei com uma, e agora já tomo quatro. Meu avô diz que é um grande
remédio.
Valentine sorria, porém havia alguma coisa de triste e sofredora em seu sorriso.
Maximilien, bêbado de amor, olhava a jovem em silêncio; ela era muito bela,
mas sua palidez tomara uma tonalidade doentia, seus olhos brilhavam com um
fogo mais ardente do que de costume, e suas mãos, costumeiramente de um branco
nacarado, pareciam mais mãos de cera, com uma tonalidade amarelada.
De Valentine, o jovem homem ergueu os olhos para Noirtier; este considerava
a neta com um olhar de estranha e profunda inteligência, vendo-a absorta em seu
amor; contudo, ele também percorria seu semblante sofrido, tão pouco visível aos
outros, mas que não escapava ao olhar do avô e de Morrel.
Mas...refletiu o oficial, esta poção, que você está tomando quatro colheradas,
não é um medicamento do senhor Noirtier?
Sei que é muito amargo, disse Valentine, tão amargo que depois de toma-lo
nada mais parece ter gosto.
Noirtier fitou sua neta interrogativamente.
Sim, meu bom vovô, respondeu Valentine, é como estou lhe dizendo. Agora
mesmo, antes de vir para cá, bebi um copo de água com açúcar. Ora, deixei a
metade, a água me pareceu completamente amarga.
Noirtier empalideceu, fazendo um sinal com a cabeça que queria falar.
Valentine levantou-se, indo procurar o dicionário.
Noirtier seguia a jovem com um olhar de visível angústia.
E realmente, o sangue subia à cabeça da jovem, seu rosto ficou rosado.
Veja só! Gritou ela, sem perder a alegria, é singular, uma tontura! Será que o
sol bateu nos meus olhos?
Assim falando, Valentine apoiou-se na veneziana da janela.
Não está fazendo sol, respondeu Morrel, ainda mais inquieto com a expressão
do rosto de Noirtier do que com a indisposição da noiva.
Ele correu até ela, segurando-a.
A jovem sorriu.
Tranqüilize-se, meu bom avô, disse ela ao velho; fique calmo, Maximilien,
não é nada; já passou...mas...escutem, não é o ruído de uma carruagem lá no
pátio?
Ela abriu a porta do quarto do velho e correu até a janela do corredor, voltando
precipitadamente.
Sim, disse ela, é a senhora Danglars e sua filha que vieram nos visitar; até
logo, vou lá, porque senão virão me buscar aqui: ou melhor, fique junto do meu
avô, Maximilien, prometo não demorar muito.
Morrel seguiu-a com os olhos, viu-a fechar a porta, escutou-a subir a pequena
escada que conduzia ao mesmo tempo aos aposentos da senhora Villefort e os dela.
Assim que ela saiu, Noirtier fez um sinal para Morrel para pegar o dicionário.
Morrel obedeceu; ensinado por Valentine, ele já se habituara a compreender
o ancião.
Todavia, por mais habituado que estivesse, e como era necessário passar em
revista toda uma parte das vinte e quatro letras do alfabeto para encontrar cada
palavra do dicionário, foi somente após uns dez minutos que o pensamento do
velho foi traduzido em palavras compreensíveis.
"Pegue o jarro de água e o copo que estão no quarto de Valentine".
Morrel tocou imediatamente a sineta, e o criado que substituíra Barrois recebeu
a ordem.
O criado voltou alguns momentos depois.
O jarro e o copo estavam inteiramente vazios.
Noirtier fez um sinal, indicando que queria falar.
"Por que o jarro e o copo estão vazios?" indagou ele ao criado. "Valentine
disse que bebeu a metade de um copo".
A tradução destas perguntas tomou mais dez minutos.
Não sei, respondeu o criado; mas a criada de quarto está no aposento da
senhorita Valentine; pode ter sido ela quem bebeu o resto.
Pergunte a ela, cortou Morrel, vendo a atitude do ancião.
O criado saiu novamente, voltando quase em seguida.
A senhorita Valentine passou pelo seu quarto para ir aos aposentos da senhora
Villefort, explicou ele, e ao passar, como ainda estava com sede, bebeu o resto do
copo; quanto ao jarro, o senhor Edouard o esvaziou, para fazer uma piscina para
os seus passarinhos.
Noirtier ergueu os olhos para o céu, como faz um jogador que lança um golpe
final, decisivo.
Desde este momento, os olhos do velho não deixaram mais a porta,
aguardando.
E realmente, era a senhora Danglars em companhia da filha que Valentine
tinha visto; foram conduzidas para os aposentos da senhora Villefort, que pedira
a ambas para subir; eis a razão de Valentine ter passado pelo seu quarto. Os dois
quartos eram próximos, apenas separados pelo de Edouard.
As duas mulheres entraram no aposento com esta espécie de frieza oficial,
prenunciando uma comunicação.
Entre pessoas do mesmo mundo, uma nuance é logo compreendida. A senhora
Villefort respondeu a esta solenidade com a mesma solenidade.
Neste momento Valentine entrou, e as reverências recomeçaram.
Cara amiga, explicou a baronesa, enquanto as duas jovens amigas trocavam
cumprimentos, venho aqui, com Eugenie, anunciar em primeira mão o casamento
muito próximo de minha filha com o príncipe Cavalcanti.
Danglars mantivera o título de príncipe. O banqueiro arrivista achava que
isto soava melhor do que conde.
Então permitam que eu lhes dê os mais sinceros cumprimentos, respondeu a
senhora Villefort; o príncipe Cavalcanti me parece um jovem muito cheio de
qualidades!
Escute, explicou a baronesa, sorrindo, falando francamente, como amigas,
devo lhe dizer que o príncipe não parece muito ser o que aparenta. Tem um pouco
a esquisitice dos estrangeiros, não consigo compreende-lo muito bem. No entanto,
tem um bom coração, muito espírito, e quanto às conveniências práticas, o senhor
Danglars insiste que é riquíssimo, uma fortuna majestosa, segundo ele.
E depois, disse Eugenie, folheando um álbum da senhora Villefort, acrescente
que a senhora tem uma inclinação muito particular por este jovem homem!
E, interveio a senhora Villefort, nem tenho necessidade de acrescentar que
também compartilha esta inclinação?
Eu? Respondeu Eugenie, com sua fria atitude costumeira, Oh! Nem um pouco;
minha vocação não é a de ficar acorrentada a um lar, ou aos caprichos de um
homem, seja ele quem for. Minha vocação era a de ser artista, e em conseqüência
livre, em meu coração, minha pessoa e meu pensamento.
Eugenie pronunciou estas palavras com um tom tão vibrante e tão firme, que
Valentine enrubesceu. A frágil jovem não conseguia entender esta natureza
vigorosa, que parecia não ter nenhuma timidez feminina.
De qualquer maneira, continuou ela, já que fui destinada ao casamento, por
bem ou por mal, devo agradecer à Providência Divina, que ao menos trouxe o
desprezo do senhor Morcef; sem esta Providência, hoje eu estaria casada com um
homem sem honra.
Isso é verdade, disse a baronesa, com esta estranha simploriedade, que algumas
vezes encontramos nas grandes damas, e que a freqüência a salões da alta sociedade
não as fazem perder; é verdade, sem esta situação horrorosa dos Morcef, minha
filha teria casado com esse Albert; o general insistiu muito, chegou mesmo a vir
em casa, discutiu com meu marido; puxa! Escapamos de boa!
Mas, interveio timidamente Valentine, será que a desonra do pai atingiu
também o filho? O senhor Albert me parece muito inocente quanto aos crimes
cometidos pelo pai.
Perdão, cara amiga, disse a implacável jovem, o senhor Albert parece que
reclamou uma parte da desonra: parece que, depois de ter desafiado o conde de
Monte Cristo na Ópera, hoje pela manhã pediu-lhe desculpas.
Impossível! Exclamou a senhora Villefort.
Ah! Cara amiga, respondeu a senhora Danglars, com o mesmo tom simplório
que já assinalamos, no entanto a coisa é certa: soube através do senhor Debray,
que esteve presente no momento das desculpas.
Valentine também sabia da verdade, mas não disse nada. Intimidada pelo
tom da conversa, ela se embrenhou nos seus pensamentos, voltando ao quarto de
Noirtier, onde o noivo a aguardava.
Mergulhada nesta espécie de contemplação interior, Valentine desde algum
tempo deixara de prestar atenção na conversa; era-lhe mesmo impossível repetir
o que tinha sido dito há alguns minutos atrás. Repentinamente, a mão da senhora
Danglars, apoiando-se no seu braço, tirou-a de seus pensamentos.
O que houve, senhora? Indagou Valentine, estremecendo com o contato dos
dedos da mão da senhora Danglars, como se tivesse levado um choque elétrico.
O que houve, minha querida Valentine, é que você está sofrendo, não é
mesmo? Perguntou a baronesa.
Eu? Respondeu a jovem, passando a mão pela testa ardendo em febre.
Sim, você, olhe-se no espelho; você empalideceu e enrubesceu quatro ou
cinco vezes no espaço de um minuto.
Realmente, exclamou Eugenie, você está muito pálida!
Oh! Não se preocupe, Eugenie! Estou assim há alguns dias.
E por menos escolada na vida em sociedade que fosse, a jovem percebeu que
esta era a oportunidade de escapar. Além disso, a senhora Villefort veio em sua
ajuda.
É melhor você sair, Valentine, disse ela, você está realmente sofrendo, estas
senhoras a perdoarão, com certeza; beba um copo de água pura, isto ajudará.
Valentine abraçou Eugenie, cumprimentou a senhora Danglars e saiu.
Esta pobre criança, lamentou a senhora Villefort, quando Valentine já tinha
saído, ela me inquieta seriamente, e não ficaria espantada se algo de grave
acontecesse com ela.
Neste meio tempo, Valentine, numa espécie de exaltação da qual não se
dava conta, atravessara o quarto de Edouard, sem responder a uma malcriação
qualquer do pirralho, passou pelo seu quarto e alcançou a pequena escada; deu
alguns passos, quase chegando ao topo; ela já escutava a voz de Morrel, quando de
repente uma nuvem passou diante de seus olhos, seu pé direito falseou o degrau,
e, sem forças, rolou para a frente com um baque surdo.
Morrel deu um salto, abriu a porta e encontrou sua noiva deitada na soleira
da porta.
Rápido como um raio, ergueu-a em seus braços e a levou para um sofá.
Valentine reabriu os olhos.
Oh! Como sou desajeitada! Sussurrou ela, com uma febril volubilidade, já
nem sei mais me sustentar! Esqueci dos três últimos degraus!
Está machucada, minha querida? Exclamou Morrel. Oh! Meu Deus! Oh!
Meu Deus!
Valentine olhou em torno de si, e notou o mais puro terror no rosto do seu
avô.
Fique calmo, vovô, disse ela, tentando sorrir, não é nada...não é nada...apenas
estou com a cabeça rodando...
Você ainda está tonta, Valentine, sussurrou Morrel, tome cuidado, eu suplico!
Mas não, mas não! Respondeu Valentine. Tudo já passou; e eu lhes trago uma
notícia nova: em oito dias Eugenie vai se casar, e daqui a três dias vai haver um
enorme banquete de noivado. Todos nós fomos convidados...ao menos foi isso
que eu compreendi.
E quando será nossa vez de nos ocuparmos disto? Perguntou Morrel. Oh!
Valentine, você que consegue tanto com seu avô, bem poderia pedir: agora!
Assim, indagou a jovem, você conta comigo para estimular a lentidão do
meu avô? Refrescar sua memória?
Sim, exclamou Maximilien. Meu Deus! Meu Deus! Ajude-me. Quero que
você seja minha, Valentine, para sempre, e parece que sempre a estou perdendo!
Ora! Retrucou Valentine, com um movimento convulsivo, oh! Na verdade,
Maximilien, você parece muito queixoso para um oficial, um soldado, que, dizem,
nunca conheceu o medo! Ah! Ah! Ah!
E a jovem desatou numa risada estridente e dolorosa, seus braços endureceram
e viraram, sua cabeça tombou sobre o sofá, permanecendo imóvel.
O grito de terror que Noirtier soltou despertou Morrel de seu torpor.
Compreendeu que era necessário chamar por socorro.
O jovem oficial tocou a sineta freneticamente, e o criado e a criada apareceram
simultaneamente.
Valentine estava tão pálida, tão fria, tão inanimada, que, sem escutar o que
lhes era dito, o medo que velava sobre esta mansão maldita tomou conta deles, e
ambos saíram pelo corredor, gritando por socorro.
A senhora Danglars e Eugenie já estavam na porta da mansão, e ainda tiveram
oportunidade de saber a causa de tanto barulho.
Eu bem disse para vocês, exclamou a senhora Villefort, pobre criança!

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