Capitulos vol-02.p65

Transcrição

Capitulos vol-02.p65
Capítulo LX
O testamento
No momento em que Barrois saiu, Noirtier fitou Valentine com um interesse
malicioso, e que anunciava tantas coisas. A jovem compreendeu este olhar, bem
como Villefort, porque seu semblante empalideceu e suas sobrancelhas se
arquearam.
Ele sentou-se numa poltrona, e aguardou.
Noirtier olhava-o com perfeita indiferença; contudo, com o canto do olho,
ordenou a Valentine para não se preocupar, e também permanecer em seus
aposentos.
Três quartos de hora depois, o criado reentrou, seguido pelo notário.
Senhor, disse Villefort, após os primeiros cumprimentos, foi chamado aqui
pelo meu pai, senhor Noirtier, sentado à sua frente; uma paralisia geral impede-o
de utilizar seus membros, bem como sua voz, e somente eu, o parente mais próximo,
consigo, a duras penas, perceber alguns resquícios de seus pensamentos.
Noirtier fez com os olhos, um apelo a Valentine, apelo tão sério e tão
imperativo que ela interrompeu bruscamente:
Eu também, senhor, compreendo tudo o que meu avô quer dizer.
É verdade, acrescentou Barrois, tudo, absolutamente tudo, como eu dizia a
este senhor no caminho.
Permita-me, senhor, e a senhorita também, respondeu o notário, dirigindo-se
a ambos; este é um caso em que o oficial público não pode agir impensadamente,
sem assumir uma responsabilidade perigosa. A primeira necessidade, para que um
ato seja considerado válido, é que o notário esteja perfeitamente convencido de
que interpretou fielmente a vontade daquele que dita. Ora, eu não posso me sentir
seguro quanto à aprovação ou reprovação de um cliente que não fala; e, como o
objeto de seus desejos não pode me ser provado claramente, minha intervenção
seria mais do que inútil, seria ilegalmente exercida.
O notário deu um passo para se retirar. Um imperceptível sorriso de triunfo se
desenhou nos lábios do procurador do rei.
De seu lado, Noirtier olhou Valentine com uma tal expressão de dor, que ela
se colocou no caminho do notário.
Senhor, a linguagem que falo com meu avô talvez não seja algo que se
compreenda facilmente; no entanto, compreendo-o perfeitamente, e sei que posso,
em alguns minutos, fazer com que o senhor também a entenda. O que lhe falta,
senhor, vejamos, o que lhe falta para chegar à perfeita edificação de sua consciência?
O que é necessário para a validade de nossos atos, senhorita, respondeu o
notário, é a certeza da aprovação ou da reprovação. A pessoa pode testar, mesmo
muito doente do corpo, mas é necessário que esteja sã de espírito.
Tudo bem! Senhor, com estes dois sinais, pode ter certeza de que meu avô
está na plenitude de sua inteligência. O senhor Noirtier, privado da voz, privado
dos movimentos, fecha os olhos quando quer dizer sim, e pisca-os diversas vezes
quando quer dizer não. O senhor já sabe o bastante para conversar com ele, tente.
O olhar que o ancião lançou na direção de Valentine estava tão úmido de
ternura e reconhecimento, que até mesmo o notário o compreendeu.
O senhor entendeu e compreendeu o que acaba de dizer a sua neta? Indagou
o notário.
Noirtier fechou docemente os olhos, e os reabriu após alguns segundos.
E o senhor aprova o que ela disse? Isto é, que os sinais indicados por ela são
mesmo aqueles com a ajuda dos quais se faz compreender, bem como seus
pensamentos?
Sim, repetiu o velho.
Foi o senhor que mandou me chamar?
Sim.
Para fazer o seu testamento?
Sim.
E o senhor não quer que eu me retire sem o fazer?
O paralítico piscou os olhos repetidamente.
E então? Agora o senhor compreendeu, indagou a jovem, sua consciência
está tranqüila?
No entanto, antes que o notário pudesse responder, Villefort puxou-o pelo
braço para um canto.
Senhor, disse ele, acredita que um homem possa suportar impunemente um
choque físico tão terrível quanto sofreu o meu pai, sem que seus sentimentos
morais deixassem igualmente de sofrer?
Não é exatamente isto o que me inquieta, senhor, respondeu o notário, eu
apenas me pergunto como conseguiremos adivinhar seus pensamentos, para que
possamos provocar suas respostas.
O senhor bem vê que isto é impossível, insinuou Villefort.
Valentine e o ancião ouviam esta conversa, e Noirtier lançou um olhar tão
firme e tão fixo sobre sua neta, que evidentemente tal olhar merecia uma resposta.
Senhor, interveio ela, não se inquiete sobre este aspecto; por mais difícil que
possa lhe parecer descobrir o pensamento do meu avô, eu o revelarei, de modo a
não deixar a menor dúvida. Estou há mais de seis anos junto do meu avô, e posso
lhe garantir que nem um de seus desejos deixou de ser atendido por mim, jamais
deixou de ser compreendido.
Não, concordou o ancião.
Então vamos tentar, concordou o notário; o senhor aceita que sua neta seja a
intérprete de seus pensamentos?
O paralítico fez um sinal positivo com os olhos.
Tudo bem, vejamos, senhor, o que deseja de mim, e qual o ato que deseja ser
realizado por mim?
Valentine recitou todas as letras do alfabeto, até o T.
Diante desta letra, o eloqüente olhar de Noirtier se deteve.
É a letra T que este senhor indicou, afirmou o notário. Isto é patente!
Espere, disse Valentine, voltando-se para o seu avô, começou a recitar: Ta...Te...
O velho mandou-a parar diante desta sílaba.
Então Valentine pegou o dicionário, e sob o olhar vigilante do notário, folheouo até o Te.
Testamento, apontou o dedo de Valentine, detido pelo olhar de Noirtier.
Testamento, exclamou o notário, a coisa é visível, este senhor quer testar.
Sim, concordou Noirtier, repetidas vezes.
Veja como é maravilhoso, senhor, aceite o fato, disse o notário a Villefort,
estupefato.
Com efeito, replicou ele, e mais maravilhoso ainda seria este testamento;
afinal, as palavras somente serão colocadas no papel através da minha filha. Ora,
Valentine poderá estar interessada demais no testamento, e será uma intérprete
pouco conveniente para esclarecer as obscuras vontades do senhor Noirtier de
Villefort.
Não! Não! Indicou o paralítico.
Como? Exclamou Villefort, Valentine não está interessada no testamento?
Não! Confirmou Noirtier.
Senhor, disse o notário, encantado com esta prova de isenção, e já antevendo
a sensação que causaria em sociedade ao contar o caso, nada me parece mais fácil
agora, e olhe que eu encarava a coisa como impossível: este testamento será
simplesmente um testamento particular, previsto e autorizado por lei, desde que
seja feito perante sete testemunhas, aprovadas pelo testador diante dele, e assinado
pelo notário, sempre diante de todos. Quanto ao tempo, creio que durará apenas
um pouco mais do que um testamento comum, existem fórmulas consagradas, que
sempre são as mesmas; quanto aos detalhes, a maioria será fornecida pelo próprio
estado dos negócios do testador, e pelo senhor, que os gerencia e os conhece. Mas,
para que este ato permaneça como inatacável, procuraremos a mais completa
autenticidade; um dos meus colegas me ajudará, e contra o costume, assistirá ao
ditado. Está satisfeito, senhor? Continuou o notário, dirigindo-se ao ancião.
Sim, respondeu Noirtier, radiante por ter sido compreendido.
O que ele vai fazer? Indagou-se Villefort, para quem a alta posição social
exigia muita discrição, e que, além disso, não conseguia adivinhar a intenção do
seu pai.
Voltou-se para mandar buscar o segundo notário, indicado pelo primeiro;
contudo, Barrois, que tinha entendido muito bem a vontade de seu patrão, já
partira.
Assim, o procurador do rei mandou chamar sua mulher.
Ao fim de um quarto de hora todos estavam reunidos no quarto do paralítico,
e o segundo notário chegara.
Em poucas palavras os notários se colocaram de acordo. Foi lida uma fórmula
de testamento, vaga, banal, depois, para começar a investigação sobre a intenção
do velho, o primeiro notário, voltando-se para ele, indagou:
Como estamos fazendo o seu testamento, senhor, esclareço que será em favor
de alguém, e em prejuízo de outro.
Sim, concordou Noirtier.
O senhor tem idéia de a quanto monta a sua fortuna?
Sim.
Vou nomear diversas quantias, sucessivamente, e o senhor me deterá quando
chegar em uma que se aproxima da sua.
Sim.
Havia neste interrogatório uma espécie de solenidade; jamais a luta da
inteligência contra a matéria fora mais visível; se não era sublime, como poderíamos
dizer, ao menos era um espetáculo curioso.
Fez-se um círculo em torno de Villefort, o segundo notário estava sentado
diante de uma mesa, pronto para redigir; o primeiro notário permaneceu de pé, e
começou o interrogatório:
A sua fortuna ultrapassa trezentos mil francos?
Noirtier permaneceu imóvel.
Quinhentos mil?
A mesma imobilidade.
Seiscentos mil? Setecentos mil? Oitocentos mil? Novecentos mil?
Noirtier fez um sinal positivo.
Então o senhor possui novecentos mil francos?
Sim.
Em imóveis? Perguntou o notário.
Noirtier negou com os olhos.
Em rendas?
Nortier concordou.
Estes papéis estão em seu poder?
Um olhar a Barrois fez com que o velho servidor saísse, voltando alguns
instantes depois, segurando uma pequena caixa.
O senhor permite que eu abra esta caixa? Indagou o primeiro notário.
Mais uma vez o velho concordou.
O homem abriu a caixa e verificou conter novecentos mil francos em papéis
públicos, com renda anual.
O primeiro notário passou ao seu colega, um após o outro, o número de cada
título, e a quantia correspondia, como afirmara Noirtier.
É isto mesmo, espantou-se o notário, é evidente que sua inteligência está
íntegra, em toda sua força!
Depois, voltando-se para o paralítico:
Assim, disse ele, o senhor possui novecentos mil francos de capital, os quais,
da forma como estão aqui, devem lhe render perto de quarenta mil libras por ano?
Sim, afirmou Noirtier.
Oh! Disse a senhora Villefort, isto não tem dúvida; o senhor Noirtier ama
unicamente sua neta, a senhorita Valentine de Villefort; é ela quem cuida dele há
mais de seis anos; pelos seus cuidados, soube cativar a afeição de seu avô, e eu diria
mesmo, sua gratidão; assim, nada mais justo que ela receba o preço do seu
devotamento.
O olhar de Noirtier brilhou, como que demonstrando não ter sido enganado
por esta afirmação maliciosa feita pela senhora Villefort quanto às suas intenções.
E então, é para a senhorita Valentine de Villefort que o senhor quer deixar os
novecentos mil francos? Indagou o notário, acreditando não ser necessário mais
do que isto para concluir o testamento, embora tivesse de aguardar a decisão do
ancião, querendo mesmo fazer constar este assentimento diante de todas as
testemunhas presentes a esta estranha cena.
Valentine dera um passo para trás, e chorava, de cabeça baixa; o velho fitoua por um instante, com uma expressão de profunda ternura, depois, voltando os
olhos para o notário, piscou-os da maneira mais significativa.
Não? Espantou-se o notário, insistindo: não é a senhorita Valentine de Villefort
que o senhor institui como sua legatária universal?
Não! Repetiu Noirtier, não!
Valentine levantou a cabeça; ela estava estupefata, não por ter sido deserdada,
mas por ter provocado o sentimento que de ordinário comanda tais atos.
Contudo, Noirtier olhou-a com uma expressão tão profunda de ternura, que
ela não se conteve:
Oh! Meu bom e querido avô, bem vejo que não é a fortuna que o senhor me
tira, pois fico com o seu coração, verdade?
Oh! Sim! Sim! Certamente, disseram os olhos do paralítico, fechando-os com
uma expressão que não deixava qualquer dúvida quanto aos seus sentimentos.
Obrigado! Obrigado! Murmurou a jovem.
Todavia, esta recusa fizera nascer no coração da senhora Villefort uma
esperança inesperada; ela se aproximou do velho.
Então é para o seu pequeno neto, Edouard de Villefort, que o senhor deixa
sua fortuna, caro sogro?
O piscar de olhos foi terrível; quase exprimia o ódio.
Não, concordou o notário; mas, então, é para o seu filho, aqui presente?
Não! Repetiu o ancião.
Os dois notários entreolharam-se, surpresos; Villefort e sua mulher ficaram
corados, um de ódio, outra de cólera.
Mas, o que aconteceu, meu avô? O senhor não ama mais ninguém? Perguntou
a jovem.
O olhar do velho passeou rapidamente sobre seu filho, sobre sua nora, detendose em Valentine, com uma expressão de enorme ternura.
Tudo bem! Se você me ama, vejamos, vovô, trate de conjugar este amor com
o que está fazendo neste momento. Você me conhece e sabe muito bem que não
disputo a sua fortuna; além disso, já me disseram que sou muito rica, pela parte da
minha mãe, rica até demais; assim, explique-se.
Noirtier fixou o olhar sobre as mãos de Valentine.
Minha mão? Disse ela.
Sim, repetiu Noirtier.
Sua mão! Repetiram as testemunhas.
Ah! Senhores, estão vendo muito bem que tudo é inútil, meu pobre pai está
louco, interveio Villefort.
Oh! Exclamou Valentine, compreendo! É o meu casamento, não é mesmo,
querido vovô?
Sim! Sim! Sim! Repetiu três vezes o paralítico, lançando um brilho forte a
cada vez que erguia as pupilas.
Você não quer que eu case?
Sim.
Mas é um absurdo! Gritou Villefort.
Perdão, senhor, cortou o notário, tudo isto, ao contrário, é muito lógico, e me
parece perfeitamente razoável.
Você não quer que eu me case com Franz d’Epinay? Repetiu Valentine.
Não, exprimiu o ancião, vivamente.
E o senhor deserda sua neta por que ela vai se casar contra a sua vontade?
Sim, repetiu Noirtier.
De maneira que se este casamento não acontecesse ela seria a sua legatária?
Sim.
Um profundo silêncio abateu-se sobre o aposento.
Os dois notários consultavam-se; Valentine, as mãos juntas, olhava seu avô
com uma expressão de grande gratidão; Villefort mordia os lábios, e a senhora
Villefort não conseguia reprimir um sentimento de alegria, o qual, apesar dela,
expandia-se sobre seu rosto.
No entanto, disse Villefort, quebrando o silêncio, parece-me que sou o único
juiz das conveniências em favor desta união. Sou o único mestre da mão de minha
filha, e quero que ela se case com o senhor Franz d’Epinay, e ela o esposará.
Valentine caiu sobre um sofá, chorando copiosamente.
Senhor, disse o notário, dirigindo-se ao velho, o que pretende fazer com sua
fortuna, no caso da senhorita Valentine se casar com o senhor Franz?
O velho permaneceu imóvel.
Contudo, o senhor insiste no testamento?
Sim, concordou Noirtier.
Em favor de alguém da sua família?
Não.
Então em favor dos pobres?
Sim.
Mas, insistiu o notário, o senhor sabe que a lei se opõe a que tire tudo de seus
filhos?
Sim.
Então o senhor deixa a parte indisponível para o seu filho no testamento?
Noirtier permaneceu imóvel.
Com que então pretende dispor de tudo no testamento?
Sim.
Previno-o de que após a sua morte o testamento será contestado.
Não.
Meu pai me conhece, senhor, afirmou Villefort, sabe que sua vontade será
sagrada para mim; além disso, ele sabe muito bem que na minha condição de
procurador do rei jamais eu poderia, moralmente, ir contra os pobres.
O olhar de Noirtier exprimia o seu triunfo.
Então, o que o senhor decide? Indagou notário a Villefort.
Nada, senhor, esta é uma resolução tomada de livre vontade por meu pai, e
sei que meu pai não mudará sua decisão. Assim, eu me resigno. Estes novecentos
mil francos sairão da família e irão enriquecer os hospitais públicos; contudo, eu
não cederei a um capricho de velho, e farei as coisas segundo minha consciência.
Villefort retirou-se do apartamento com sua mulher, deixando seu pai livre
para testar como entendia.
No mesmo dia o testamento realizou-se, as testemunhas presentes assinaram,
foi aprovado pelo velho, fechado em sua presença, e o documento entregue ao
senhor Deschamps, o notário da família.

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