ney matogrosso alexandre delijaicov zaha hadid

Transcrição

ney matogrosso alexandre delijaicov zaha hadid
Revista do Itaú Personnalité no 19 | julho de 2012 | Ano 5
PERSONNALITÉ
ney matogrosso
ney matogrosso | alexandre delijaicov | zaha hadid | inácio neves
“Tudo que a vida me oferecer
de agradável eu vou desfrutar”
Alexandre delijaicov
zaha hadid
inácio neves
exemplar distribuído nas
agências personnalité
EDITORIAL
O
que faz a vida de cada um ser de uma maneira é a experiência acumulada com a passagem dos anos. Nas diversas bifurcações que surgem no caminho, a decisão do rumo a
ser tomado implica a escolha de situações que vamos encarar
em nosso cotidiano – momentos ponderáveis e imponderáveis.
Compartilhar a experiência vivida pelos personagens reunidos
nesta edição provoca um fascínio por nos depararmos com tamanha diversidade de histórias, lembranças e reflexões.
Conseguimos entrevistar Zaha Hadid, arquiteta nascida
no Iraque, a primeira mulher a ser premiada pelo Pritzker, o
Oscar da arquitetura. Mais do que falar sobre suas obras de
destaque e da admiração de Niemeyer por seu trabalho, jogamos luz na história de sua família, nas preferências pessoais,
nas cidades que mais lhe tocam o coração – enfim, quem é
Zaha Hadid. Não menos especial é a entrevista com Ney Matogrosso, que nos recebeu em casa para fazer um retrospecto
de suas experiências em 70 anos de vida. Das revelações no
bate-papo ao ensaio fotográfico, Ney mostrou na prática por
que é um dos nomes mais admirados da MPB.
Entre nossos personagens, João Emanuel Carneiro, no alto
de seus 42 anos, explica as referências de Avenida Brasil (40
milhões de telespectadores) e dá detalhes de sua rotina, como
nadar no Copacabana Palace e assistir aos capítulos da novela
com uma máquina do Ibope ao lado. O mineiro Inácio Neves,
por sua vez, idealizador do Cinema no Rio, já levou a grande
tela para o deleite de 200 mil pessoas, que nunca haviam passado por essa experiência, às margens do rio São Francisco.
Original também é a ideia do especial a ser exibido no Canal
Brasil: cantoras atuais interpretando clássicos do passado, como
Mallu Magalhães dando voz a Elizeth Cardoso. Não perca ainda
a reportagem que traz soluções urbanísticas para São Paulo a
partir da revitalização dos rios que cortam a cidade. Utopia?
Não para o arquiteto Alexandre Delijaicov. Ele tem a fórmula
para transformar a vida na metrópole em uma experiência muito mais saudável para todos nós.
Um abraço e boa leitura,
André Sapoznik
Itaú Personnalité
croquis da arquiteta zaha hadid, uma das quatro
personagens principais desta edição
Colaboradores
expediente
Marcos López e David Torras trabalham
juntos em Barcelona há mais de 20 anos na seção
esportiva do El Periódico de Catalunya. A dupla
assina artigo sobre Pep Guardiola, técnico que
deixou o Barça após revolucionar o futebol. “Foi
um prazer contar para o país do futebol por que
Guardiola é mais do que um símbolo”, diz Marcos.
Pupila de Samuel Wainer, a jornalista Maria
Lucia Rangel foi editora de cultura da
Rede Globo e diretora do programa Mudando
de conversa, no Canal Brasil. Nesta edição,
entrevistou João Emanuel Carneiro, autor da
novela Avenida Brasil. “João é inteligente, rápido e
crítico. Adora o que faz, daí fazer bem-feito.”
de cima para baixo: arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal
“Foi uma entrevista genial”, diz Pedro
Alexandre Sanches. O jornalista paranaense
assina o bate-papo com Ney Matogrosso. Um dos
mais importantes críticos musicais do país, Pedro
acumula passagens por Folha de S.Paulo e Carta
Capital. É colunista do portal Yahoo e autor de
livros sobre o Tropicalismo e a Jovem Guarda.
De cima para baixo: arquivo pessoal / Arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal
Há sete anos, Zoran Luci trocou a Sérvia por
Bijeljina (Bósnia) para estudar arte e dedicarse à ilustração. Aos 30 anos, coleciona clientes
como o Financial Times, a British Royal Mail e a
Fly Emirates. Nesta edição, ilustra o texto sobre
Guardiola. “Ele é um filho de Barcelona e tem
muito a provar fora de sua zona de conforto.”
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretora
de Criação Adjunta Micheline Alves Diretora de Publicidade e
Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais
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de Vídeo Coordenação Ana Rosa Sardenberg Videomakers Vinicius
Nora e Marco Paolielo Editor de Vídeo Pitzan Oliveira Produtora
Camila Nunez Estagiário Ivanildo Ferreira Colaboraram nesta
edição Edmundo Clairefont (edição), David Torras, Denis Russo,
Egeu Laus, Leticia de Castro, Luis Patriani, Marcos López, Marcus
Preto, Maria Lucia Rangel, Suzana Camargo, Pedro Alexandre
Sanches, Rosane Queiroz e Vivian Sotocórno (texto), Beti Niemeyer,
Beto Brant, Chris Valias, Felipe Gombossy, Fernando Martinho,
Jacques Delacroix, Marcelo Correa e Nelson Mello (fotos) Ju Russo
e Zoran Luci (ilustração) Kika Pereira de Sousa e Drica Cruz
(produção) Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando
Chacon, André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg,
Ligia Benavente e Mariana Couto de Arruda Colaboradores Marcello
Barcelos, Maria Pestana e Mariana Salles – DPZ Propaganda
Capa Ney Matogrosso fotografado por Marcelo Correa
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora e
Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité. Endereço para
Correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767, 05414-012,
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utiliza papéis Suzano com certificado FSC
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matéria-prima florestal provenha de
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ambiental e economicamente
adequado. Impresso na Gráfica
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Colaboradores
Veja e Dufry World estão entre os títulos para os
quais Leticia de Castro já colaborou. Aos 35
anos, sete deles na Folha de S.Paulo, Leca assina
perfil da iraquiana Zaha Hadid enquanto curte a
gravidez do primeiro filho. “A negociação para a
entrevista durou mais de um mês, com direito a
plantão no hotel onde ela estava.”
Denis Russo, 39 anos, tem no currículo
uma década como diretor de redação da
Superinteressante. O jornalista e escritor já
passou um ano como pesquisador convidado da
Universidade de Stanford, na Califórnia. Aqui,
mergulha nas ideias de Alexandre Delijaicov.
“Estou convencido de que a visão dele é a
salvação de São Paulo.”
Há dez anos, a artista plástica Juliana Russo
divide seu tempo entre criações autorais e
ilustrações inspiradas no cenário urbano. Com
trabalhos publicados na revista espanhola Rojo e
na francesa Étapes, a paulistana ilustrou para esta
edição a reportagem sobre Delijaicov. “Aprendi
muito com essa matéria.”
Paulistano da Pompeia, Marcus Preto é repórter
da Folha de S.Paulo e curador do site Música de
Bolso. Atualmente se dedica à biografia de Tom Zé.
Nesta edição, assina a reportagem sobre cantoras
que interpretam nomes consagrados do passado.
“A ideia era escrever sobre a relação de cada uma
com as homenageadas. Mas elas disseram coisas
tão íntimas que viraram depoimentos.”
sumário
10 Cá entre nós
Música, viagem, gastronomia e filmes –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
MORAES PAI, MORAES FILHO
O cantor Moraes Moreira relembra os primeiros passos
do filho Davi no palco, quando o menino dava canjas
com o cavaquinho em seus shows
16 DESCONSTRUINDO ZAHA
16
54
72
A vida e a obra de Zaha Hadid, a maior arquiteta da atualidade,
em entrevista exclusiva: “Sou iraquiana, vivo na Inglaterra, não
tenho um lugar particular. Estar deslocado é libertador”
24 POR QUE PAROU?
Pep Guardiola entrou para o Barcelona aos 13 anos, foi gandula,
jogador, ídolo. Aos 41, esgotado, deixa o clube como o técnico que
32 CASA NA ÁRVORE
O sucesso na publicidade já não dizia nada para o francês Alain
Laurens. Ele decidiu, então, criar uma empresa para construir cabanas a 10 metros do chão
40 CINEMA MARGINAL
O mineiro Inácio Neves percorre o São Francisco levando filmes
nacionais a comunidades ribeirinhas. “Ele traz alegria com o
cinema. A TV é só desgraça”, diz Manoel dos Santos, 73 anos
48 O PAPEL DA CANA
Dono de uma coleção de 2.700 rótulos de cachaça, o designer e
pesquisador Egeu Laus fez uma seleção para a Revista Personnalité:
“Eles engarrafam a beleza e a riqueza da cultura brasileira”
40
fernando martinho / marcelo correa / Felipe Gombossy / marcelo correa
reinventou o jeito de jogar futebol
54 RIOS DE OPORTUNIDADE
72 PALAVRA DE NEY
Como a equipe do arquiteto Alexandre Delijaicov pretende fazer
“Ué, não estão querendo saber da minha vida? Então, vou falar
dos rios de São Paulo a solução para o trânsito, a poluição, o
a verdade.” Aos 70 anos, Ney Matogrosso abre sua cobertura no
saneamento público e a habitação da metrópole
Leblon para receber a Revista Personnalité
62 eleito pelo povo
82 ELAS POR ELAS
Aos 42 anos, João Emanuel Carneiro escreve a novela Avenida Brasil.
Nina Becker, Mallu Magalhães, Lurdez da Luz e Luisa Maita
“A TV tem uma coisa muito legal, que é o voto direto. Você só ocupa
criam pequenas biografias sentimentais de Dolores Duran,
um lugar se for eleito pelo povo”, diz o jovem autor
Elizeth Cardoso, Nara Leão e Elis Regina
90 Primeira Pessoa
O cineasta Beto Brant produziu três fotos que o representam e
preferiu não se alongar com explicações: “Sou da imagem – ela fala
mais do que palavras”
cá entre nós
cá entre nós
viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências | Por Rosane Queiroz
_
Marin Alsop, maestrina
o filme da minha vida
_objetos de desejo
André Diniz, galerista
Um clássico dos anos 50, estrelado por Marlon Brando, e uma obra-prima
de Charles Chaplin regem o gosto cinematográfico da regente da Osesp
A galeria virtual Urban Arts ganhou um espaço físico nos Jardins.
Ali, André Diniz ocupa a mesa cercada por obras dos seus artistas preferidos
A nova-iorquina Marin Alsop, 55 anos, é a mais importante maestrina da atualidade.
O carimbo foi confirmado em 2005, quando recebeu o prestigiado prêmio MacArthur
Fellowship por “contribuições espetaculares à criatividade”. Em março, Marin assumiu
a batuta da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), a principal do país.
Formada em violino, a regente é pop a ponto de ter sido convidada pela Apple para
criar um podcast gratuito no iTunes, o Clueless About Classical.
Trama fatal
Em Sindicato de ladrões (1954), drama
dirigido por Elia Kazan, Terry Malloy
(Marlon Brando) é um boxeador
decadente usado por sindicalistas para
atrair à morte um jovem trabalhador do
cais do porto. O filme venceu oito Oscars,
incluindo melhor filme, diretor e ator.
Superpop
“Este calendário foi um
presente da ilustradora
Nice Lopes. Gostei
tanto que deixei aí.”
Viva México!
“A paulistana Saramelo é
aficionada pela Frida Kahlo.
Este quadro é de uma
série independente e ficou
bacana neste canto.”
Mil cores
“A escala de pantone fica
à disposição para ajudar
o cliente a escolher a cor
da moldura. Ultimamente
as cores mais pedidas são
vermelho, lilás e preto.”
Como dois e dois
“Tenho sempre por perto
uma máquina para calcular
o preço das obras.
Para mim, basta ter as
funções principais.”
10
Abstração
“Esta obra é do paulistano
Marcelo Massis. Suas telas
estão sempre em destaque.
Costumo brincar que ele é
o nosso Jackson Pollock –
pintor americano, ícone do
expressionismo abstrato.”
nelson mello
Rei
“O peruano Cherman é
um artista de street art
que gosta de brincar
com fotos de pessoas
em serigrafias. Ele brinca
com personagens como
Roberto Carlos, Albert
Einstein e Salvador Dalí.”
divulgação / EVERETT COLLECTION/KEYSTOCK / Latinstock Album / Latinstock Album / EVERETT COLLECTION/GRUPO KEYSTONE
O Chaplin favorito
Luzes da cidade (1931), dirigido
e estrelado por Charles
Chaplin, conta a história de um
vagabundo que se apaixona
por uma florista cega (Virginia
Cherrill) e se passa por rico para
conquistar a moça. A comédia
encanta Marin Alsop. “Já vi este
filme muitas vezes”, diz. “Nunca
deixo de me surpreender. A cada
vez percebo novas sutilezas.”
A trilha favorita
Carlitos compositor
A regente destaca as músicas que embalam o clássico do cinema mudo. “A
trilha sonora foi composta pelo próprio
Chaplin”, conta. “Ele escreveu, produziu,
musicou, dirigiu, estrelou e distribuiu
seus próprios filmes!”
Aluna de Leonard Bernstein
(1918-1990), Marin destaca
a trilha sonora de Sindicato
de ladrões, composta por
seu tutor, como um de seus
momentos favoritos no cinema.
“Este filme trouxe nova vida a
Nova York. Percebi o quanto
a música pode capturar e
motivar uma narrativa”, diz.
11
cá entre nós
cá entre nós
_trilha sonora
Marcelo Jeneci, músico
_
DANIELLE DAHOUI, chef
Água na Boca
Um dos destaques do cenário musical brasileiro, Jeneci escolhe nove
músicas que sintetizam sua história de referências fundamentais
À frente do Ruella Caffé & Bistrô, a restauratrice é uma pesquisadora de sabores:
sua culinária mistura ingredientes asiáticos a receitas da região da Provença
por Fernanda D’Angelo
Desde que estreou com o álbum Feito pra acabar, em 2010, o cantor,
compositor e multi-instrumentista já emprestou seu talento para artistas
como Marcelo Camelo, Vanessa da Mata, Arnaldo Antunes e Leonardo.
O ecletismo é evidente quando ele aponta suas canções favoritas.
9
PAVLOVA DE FRAMBOESA
7
Ingredientes do suspiro
(12 porções de 35 g cada)
200 g de claras
5 ml de essência de amêndoas
400 g de açúcar
2
1
6
3
5
4
4. “Wave”, Tom Jobim
Aos 13, deparei com a obra
de Tom. “Wave”, “Dindi”,
“Modinha”, “Chovendo na
roseira” e tantas outras
canções começaram a fazer
parte da minha vida, trazendo
uma vontade de me dedicar
seriamente à música.
5. Tema do filme Titanic,
James Horner
Hahaha! Momento brega!
Foi a música que embalou
o drama e as delícias do
meu primeiro romance.
Choraaaaaava quando a
ouvia ao cruzar o oceano pela
primeira vez a trabalho. Devia
ter uns 17 anos.
6. “De onde vem a calma”,
Marcelo Camelo
Marcou a chegada do Los
Hermanos para mim. Comecei
a intuir um caminho à minha
frente e até comprei uma
guitarra. Acho que tinha 25.
12
7. “Não tenho medo da
morte”, Gilberto Gil
Aos 27, já no processo de
composição do Feito pra
acabar, ouvi esta música
primorosa do Gil. Percebi que
o que queria fazer na vida era
perseguir de maneira simples
e profunda os versos e as
melodias que sintetizam os
sentimentos inevitáveis.
8. “Feito pra Acabar”,
Marcelo Jeneci, Zé Miguel
Wisnik e Paulo Neves
Desculpem por citar uma
música minha... É que esta
não pode ser ignorada. Além
do significado da convivência
com Zé Wisnik e Paulo Neves,
é a canção que dá nome ao
meu “primeiro capítulo”.
9. “Rotina”, Roberto
Carlos
Hoje, depois de ter conhecido
pessoalmente Roberto Carlos,
montei um show em sua
homenagem. E descobri esta
faixa linda. Muito do que
persigo na música surgiu na
infância e vem se unindo a
novas descobertas. Pelo jeito,
Roberto e Erasmo continuarão
amarrando muito bem a
minha história.
O Ruella Caffé & Bistrô faz
parte do Menu Personnalité:
www.itaupersonnalite.com.br/
experiencia > Gastronomia >
Experiências Exclusivas > Menu
Personnalité
nelson mello
2. “Carruagens de fogo”,
Vangelis
Quando a ouço, sinto
sinestesia. Me lembra o cheiro
da casa onde nasci. Eu tocava
esta canção na entrada das
noivas durante os casamentos
realizados na igreja onde
minha mãe me levava. Devia
ter uns 7 ou 8 anos.
3. “O portão”, Roberto
Carlos
Ainda com 7 ou 8, meus avós
paternos voltaram ao agreste
pernambucano. Esta música,
como tantas de Roberto,
alimentavam a saudade e o
amor na nossa casa.
8
divulgação/Daryan Dornelles / reprodução
1. “Linha do horizonte”,
Azimüth
Meu pai adorava esta música
do trio carioca formado nos
anos 1970. Foi a primeira
melodia que aprendi a tocar.
Eu tinha 5 anos.
Danielle Dahoui, 43 anos, nasceu em
Recife e cresceu no Rio de Janeiro.
Aos 22 anos, foi a Paris estudar
fotografia de cinema. O trabalho de
ajudante de cozinha, porém, despertou
os seus olhos para a gastronomia. Na
volta, decidiu abrir em São Paulo o
bistrô Ruella. No ano passado, ampliou
os negócios e inaugurou o Ruella Caffé
& Bistrô, em Pinheiros. O cardápio
traz receitas autorais inspiradas na
Ásia e na Provença. O confit de pato
ao molho roisin e o salmão ao molho
missô são duas de suas marcas.
Ruella Caffé & Bistrô
R. Vupabussu, 199.
Tel.: (11) 3097-9257
1. O QUE DÁ ÁGUA NA BOCA? A lasanha da minha avó e cassoulet
[espécie de feijoada francesa com favas brancas e carne de pato].
2. SEU TEMPERO ESSENCIAL. Gengibre: o ingrediente está em
nosso chá, em alguns pratos salgados e sobremesas.
3. O QUE A COZINHA ENSINA PARA A VIDA? Foco, organização,
amor à profissão e capricho.
4. TRÊS RESTAURANTES PREDILETOS NA FRANÇA. O L’Atelier
de Joël Robuchon [com unidades em Mônaco e Paris]. Outro de que
gosto é o Les Cocottes [em Paris, nas cercanias da Torre Eiffel], com
seus pratos servidos em minicaçarolas. Na Île de Saint Louis, tem o
L’Ilot Vache. O nome quer dizer “a ilha da vaca”, animal que inspirou a
decoração do local: bistrô baratinho e com pratos deliciosos.
5. O QUE GOSTA DE COMER NO INVERNO? Receitas quentes
que tragam conforto: risoto e sopas, além de doces, é claro.
6. SEU DOCE PREDILETO. Brigadeiro e bolo de cenoura da vovó.
7. UMA CULINÁRIA DESCOMPLICADA É... Perfeita! A minha
culinária é prática, mas não deixa de ganhar no sabor e na qualidade.
13
Modo de preparo
Misturar as claras e o açúcar em
fogo baixo. Bater até ficar firme.
Acrescentar a essência e mexer. Em
um saco de confeitar, com o bico
perlê médio, fazer as pavlovas em
formato redondo sobre assadeira
forrada com silpat. Levar ao forno
a 100 oC com a porta entreaberta
até que desgrudem do silpat, mas
ainda estejam branquinhos.
Calda de frutas vermelhas
125 g de morango
125 g de framboesa
125 g de amora
75 g de mirtilo
75 g de açúcar
40 ml de conhaque
Castanhas-de-caju
Modo de preparo
Derreter o açúcar até virar
caramelo. Acrescentar 500 ml de
água e misturar até o caramelo
dissolver. Incluir as frutas inteiras
e levar ao fogo médio. Mexer até
o ponto de calda. Finalizar com
conhaque. Para montar a receita:
coloque no centro do prato a
pavlova aberta. Rechear com
chantilly, sorvete de framboesa e
decorar em volta com a calda e
castanhas-de-caju salgadas.
Prestígio | Moraes Moreira
cá entre nós
Por Rosane Queiroz
_sonhos
J. R. Duran, fotógrafo
Viajante experimentado, Duran usa a mesma mala há 22 anos. Fã da
África, destaca a Eritreia e mira o Iêmen como próximo destino
Eritreia, 2010
jornada inesquecível
“O período em que vivi em Nova York [1989 a
1994], fotografando para revistas do mundo todo,
foi dos mais ricos em termos de viagens. Posso
dizer que arrumei a mala 120 vezes em dois anos.
Nos últimos tempos, duas jornadas inesquecíveis
ao nordeste africano: em 2005, para a Etiópia,
que gerou o livro Cadernos etíopes [Cosac Naify];
e, em 2010, para Eritreia. Fui lá para seguir os
rastros de Corto Maltese e de seu criador, Hugo
Pratt [1927-1995], dois de meus personagens
favoritos de ficção e da realidade. Foram
momentos intensos, arriscados, que marcaram
minha retina para sempre.”
_
Moraes pai, Moraes filho
“Viajo com a mesma Prada, dessas de
nylon, há 22 anos. Já fui para a África, para
o frio, para a praia, para o mundo todo, e
ela continua resistindo. Levo o mínimo nas
viagens. Tenho pouquíssima roupa: quatro
calças – duas para o verão, duas para o
inverno. Compro quase nada, mas peças de
qualidade. Não me desfaço das roupas: elas é
que vão se desfazendo de mim!”
Iêmen
próxima parada
“Em uma loja de Asmara, capital da Eritreia, encontrei um catálogo
que listava tarifas a serem pagas em uma viagem pelo Iêmen [país
berço da família de Bin Laden]. Ali, estavam incluídos até os valores
para contratar escolta armada... O Iêmen me encanta por ser um
desses lugares em que a fronteira entre passado e presente está
diluída de tal forma que nunca se sabe em que século você está. Até
hoje guardo esse catálogo sobre a minha mesa do escritório.”
14
arquivo pessoal
_
A inseparável mala
arquivo pessoal j. r. duran / iêmen: caio vilela / zeca de sousa
Moraes Moreira relembra os primeiros passos do filho Davi no
palco, quando o menino dava canjas com cavaquinho em seus shows
A parceria musical da foto acima é uma
das mais longevas e íntimas da MPB. Ela
dura mais de 30 anos e acaba de ganhar
um novo capítulo com o disco A revolta
dos ritmos. O primeiro álbum de inéditas
de Moraes Moreira em sete anos conta
com guitarras, cavaquinho e arranjos
de seu filho Davi Moraes. “Com 7 anos,
o Davi subiu ao palco do antigo teatro
Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, imitando os músicos”, conta Moreira. “Pouco
tempo depois, ele passou a fazer parte
dos meus shows, tocando cavaquinho em
alguns números.” O baiano de Ituaçu não
lembra exatamente onde a foto acima foi
feita. Mas elege o retrato pela “emoção
de proporcionar a meu filho as condições
para que desenvolvesse sua aptidão”.
Davi Moraes nasceu em plena atividade dos Novos Baianos, em 1973,
quando a banda morava em seu famoso
sítio em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro – o mítico Cantinho do Vovô, onde
os músicos criaram uma comunidade
alternativa, em pleno regime militar.
“Ainda bebê, quando estava chorando, colocávamos Davi perto de onde
aconteciam os ensaios da banda”, diz
Moreira. “Ele ficava tranquilo, até dormia. Percebi ali que o menino gostava
de música.”
Hoje, aos 39 anos, é um dos guitarristas e arranjadores mais disputados por
artistas do primeiro time. Tocou com
Caetano Veloso, Bebel Gilberto, Adriana
Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Vanessa
15
da Mata, Marisa Monte e Ivete Sangalo
(com as duas últimas, foi casado).
O disco em família traz 13 canções.
A ideia inicial era montar um repertório só de sambas. “Aí entrei na viagem
de que os outros ritmos começariam a
reclamar”, diz Moraes Moreira, prestes
a completar 65 anos. A inspiração deu
na letra: “Eu quis fazer um disco só de
samba/ Mas o baião ficou tão enciumado/ E foi aí que eu disse assim, caramba/ Como é que eu resolvo esse babado?”. O baiano resolveu com variedade.
O CD oferece frevo, rojão, caboclinho,
xote, bossa nova, bolero e valsa. “O sucesso dessa parceria é o grande amor e
a amizade que rola entre nós”, diz Moraes pai, com a bênção de Moraes filho.
Por Leticia de Castro Foto Marcelo Correa
(DES)
CONSTRUINDO
ZAHA
A vida e a obra
de Zaha Hadid,
a maior arquiteta
da atualidade, em
entrevista exclusiva:
“Sou iraquiana, vivo na
Inglaterra, não tenho
um lugar particular.
Estar deslocado é
uma experiência
libertadora”
Ao lado, Foto feita pela missão Mars reconnaissance orbiter
em agosto de 2008 mostra a cratera hale, no sul de marte;
ramon de paula, na nasa, em washington
Personnalité
H
Zaha hadid
“me apaixonei por
istambul. você
nunca sabe o
que esperar na
próxima esquina”
á 20 anos, uma iraquiana apareceu no escritório
do arquiteto Oscar Niemeyer, no Rio. Trazia um
encadernado com imagens de seus iniciantes trabalhos.
Passaram horas conversando. Ao final, quando a mulher
se despediu, Niemeyer, observando o livro, comentou com
um colega no escritório: “Muito interessante o trabalho
dela... Mas não entendi se é escultora, se é do ramo da
moda ou se é arquiteta”.
A iraquiana em questão é hoje a cultuada arquiteta
Zaha Hadid, 61 anos. O episódio ilustra muito bem o tipo
de estranhamento que suas criações provocam. O esquisito
e multiforme Centro Aquático de Londres, que abrigará
disputas por medalhas nos Jogos Olímpicos, tem a sua
assinatura. Nascida em 1950, em Bagdá, Zaha é discípula do
holandês Rem Koolhaas, seu ex-professor na Architectural
Association, em Londres, e tido como um dos homens
mais importantes do mundo pela revista Time. Herdeira
da tradição estética das vanguardas russas, ela desenvolve
um estilo conceitual e abstrato. Usa materiais como aço,
concreto e vidro para criar formas futuristas e assimétricas,
com linhas fluidas e espaços integrados. São construções que
embaralham os limites entre arquitetura e artes plásticas. A
ousadia, aliada ao alto custo de execução, relegou os projetos
ao papel por muito tempo: nos primeiros 15 anos de vida, seu
escritório ganhou prêmios, mas executou poucas ideias.
Foi a partir dos anos 90, com o uso das novas tecnologias
de computação, que a sorte mudou. Esses recursos tornaram
possível a realização de muitas de suas ideias. Zaha virou
definitivamente o jogo em 2004, quando se tornou a primeira
mulher a receber o prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura
dado pelo conjunto da obra. Hoje, sua empresa, fundada em
1979, tem mais de 300 funcionários, 34 obras assinadas ao
redor do mundo e mais 41 em fase de projeto ou construção.
Se em sua primeira visita à capital fluminense, 20 anos atrás,
a iraquiana passou incólume, este ano a situação foi bem
diferente. Ela retornou à cidade em março, para participar
do congresso Arq.Futuro. Chegou com status de celebridade:
Centro Aquático Olímpico Londres, Inglaterra (2011)
A senhora disse que o fato de ser iraquiana e mulher
influenciou muito o seu trabalho. Como?
Sou árabe, mas não fui educada de forma tradicional.
Nesse sentido, não sou uma mulher comum. Sou
iraquiana, vivo em Londres. Não tenho um lugar particular
e acho que pessoas em situações como essa precisam
se reinventar ou inventar seu próprio mundo. Estar
deslocado é uma experiência libertadora e criativa.
Também sou mulher, o que geralmente representa
enormes obstáculos na vida profissional, principalmente
no Reino Unido. Você não pode imaginar a enorme
resistência que tive – e ainda tenho – de encarar
simplesmente por ser árabe. Hoje você vê com mais
frequência arquitetas estabelecidas e respeitadas. Isso não
significa que seja fácil. Na prática, sigo sentindo alguma
resistência, mas isso mantém o meu foco. As pessoas não
me dizem “sim” o tempo todo. Ainda é uma luta.
falou para plateias lotadas, distribuiu autógrafos e tirou
fotos com admiradores. Atendeu os fãs com gentileza e um
terno sorriso – que desaparecia no exato minuto em que o
interlocutor virava as costas. Não circulou desacompanhada.
Zaha trouxe dois assessores e o sócio, Patrik Schumacher, que
a escoltaram em reuniões com o prefeito Eduardo Paes e uma
construtora – eles negociam uma obra da arquiteta para o Rio.
O sucesso trouxe fama, contratos, mas não trouxe
unanimidade – algo bem parecido com o que acontece
com Niemeyer, que desenhou a cidade mais feia ou a mais
interessante do mundo, a depender dos olhos que miram
Brasília. “Ela tem a sua importância, mas acho que faz
um trabalho um tanto aleatório, muito dependente da
computação”, diz o arquiteto Guilherme Wisnik. “O fato
de ser uma mulher que conquistou tanto espaço é, por si
só, fundamental. Abriu espaço para uma nova geração de
arquitetas”, afirma Ciro Pirondi, que trabalhou no escritório
de Niemeyer. Já a crítica americana Karen Stein defende
que Zaha ajudou a redefinir a arquitetura contemporânea.
“Como seus mestres russos, seu trabalho não aceita restrições
e rejeita convenções em prol das possibilidades das técnicas
contemporâneas”, diz. “Para ela, o espaço nunca é estático, é
algo que se move através das formas fixas e planas, de dentro
para fora.” A seguir, trechos da entrevista com Zaha Hadid.
A geometria fluida da água em movimento inspirou o
Alguns artigos se referem à senhora como “uma diva”,
“uma pessoa difícil”. Como se sente?
Acho incrivelmente frustrante, mas não me importo. Todas
as coisas negativas de que fui chamada, tento encarar de
uma forma positiva. O mundo profissional é muito difícil
para as mulheres. Se um homem impõe suas opiniões, ele é
tido como poderoso. Quando uma mulher defende seu ponto de vista nos negócios, é considerada “difícil”, “diva”.
Riverside Museum Glasgow, Escócia (2011)
desenho do Centro Aquático de Londres. O teto se pro-
À beira do rio Clyde, a obra guarda peças que contam
jeta como se fosse uma onda, envolvendo o conjunto de
a história do transporte e da tecnologia na urbe e faz a
piscinas. Planejado a partir de um eixo ortogonal perpen-
ligação entre o canal fluvial e a cidade, por isso é aberta
dicular à ponte Stratford City, tem capacidade para 2.500
nas duas extremidades. O telhado irregular assume formas
espectadores, mas durante os Jogos Olímpicos duas ar-
pontudas e retas na fachada, e o interior é cheio de curvas
quibancadas em extensões laterais vão abrir espaço para
que facilitam o trânsito e a observação do acervo.
18
no alto, mars phoenix (2008), missão que analisou amostras
do solo e ar; ramon com a phoenix; na página ao lado, o jipe
curiosity que deve pousar em marte em agosto; foto feita por
câmera da mars odyssey (2001)
divulgação/huffon+crow photographers
Michael Steele/Getty Images
mais 17.500 visitantes.
19
Personnalité
Zaha hadid
Edifício central da Fábrica da BMW
Leipzig, Alemanha (2005)
A senhora não se casou nem teve filhos. A carreira sempre foi uma prioridade na sua vida?
Nunca tomei a decisão de priorizar um aspecto da minha vida.
Arquitetura é uma profissão difícil. Todo arquiteto com quem
falo, não importa quão bem-sucedido, mulher ou homem,
concorda. Não é fácil. Exige foco constante, comprometimento
e colaboração. Não temos o luxo de trabalhar com uma rotina.
Com projetos em locais tão distantes quanto China, Europa,
África e Estados Unidos, trabalho em diferentes fusos horários. Mas fiz o possível para não negligenciar amigos e família.
Acredito no trabalho árduo, ele dá confiança a você. Trabalhar
sob pressão pode oferecer ótimos resultados, mas é preciso
cuidado para não desprezar a vida pessoal.
O que gosta de fazer quando não está trabalhando?
Relaxo ouvindo música. Gosto de assistir a espetáculos de
A orientação da companhia era que o projeto facilitasse
dança contemporânea. Adoraria dar uma grande pausa no
trabalho, mas o pessoal no escritório não deixa. Eles sempre encontram algo para me dizer ao telefone, geralmente
às duas da manhã... Também amo moda. Sempre admirei
designers que se arriscam a reinterpretar tecidos e proporções. Sigo os japoneses Issey Miyake e Yohji Yamamoto. A moda traduz o espírito do dia, do momento, como a
música, a arte e a literatura.
a comunicação entre executivos e trabalhadores da fábrica. Zaha criou um prédio com três espaços principais,
onde os automóveis são produzidos. Do amplo átrio, é
possível ver todos os ambientes de trabalho, que não
possuem separação integrados. Os carros em fase de
acabamento passam em esteiras transportadoras em
frente às mesas de escritório.
E quem são os seus artistas favoritos? Algum deles
influenciou o seu trabalho?
Essa é uma pergunta interessante porque me interesso pela
forma como o movimento afeta a arquitetura. Como em um
filme, vemos o mundo de perspectivas diferentes, nunca de
um único ponto de vista. Nossa percepção não é fixa. Essa
movimentação pelo espaço é muito importante para todas as
Vitra Fire Station Weil am Rheim, Alemanha (1993)
Primeiro grande projeto executado pelo escritório de Zaha,
a construção serviu de sede do corpo de bombeiros da
Vitras, fábrica de móveis assinados por designers. Longo
e estreito, o prédio de concreto armado é composto de
Lois & Richard Rosenthal Center
camadas de paredes inclinadas e angulosas, que criam um
for Contemporary Art Cincinnati, EUA (2005)
espaço dinâmico. A ideia, segundo a arquiteta, era exprimir
O museu não possui acervo permanente, mas promove
a tensão do estado de alarme inerente ao ofício do bom-
construções, principalmente a de prédios públicos e culturais,
porque tem a ver com ação, tempo e relacionamentos que se
dão ali. Os trabalhos de Ridley Scott, Pedro Almodóvar e Steve
McQueen [o diretor de Shame] exploram isso. [Os artistas
plásticos] Anish Kapoor e Richard Serra são intuitivos e provocativos, sempre relevantes.
exposições itinerantes de arte contemporânea, instalações
e performances. Por isso, o projeto privilegia espaços
adaptáveis e mutáveis. Aqui, a integração de interior e
exterior, tão cara ao ideal modernista de arquitetura, está
presente: no térreo, a calçada avança para dentro do lobby,
formando uma espécie de “tapete urbano”, convidando
beiro. Hoje, o espaço abriga um museu.
Quais são as memórias de sua infância no Iraque?
Já faz mais de 40 anos que não vivo no mundo árabe. Mas
nunca vou me esquecer das professoras que ensinavam
ciências na escola de freiras que frequentei. Elas eram todas
universitárias, e o nível das aulas era incrível. A diretora, que
era freira, foi uma espécie de pioneira em educação feminina
naquela parte do mundo. Éramos todas garotas de diferentes
religiões. Não tínhamos ideia do que isso significava. Também
foram marcantes os piqueniques que fazia com minha família
nas antigas cidades sumérias [ao logo do rio Eufrates, onde hoje
está a fronteira do Iraque com a Síria]. Eu via árvores e rios que
estavam lá havia 10 mil anos. Aquilo me passava uma sensação
reconfortante de eternidade. Havia uma fluidez entre a terra,
a água e a natureza que incorporava os prédios e as pessoas.
Acho que estou sempre tentando capturar essa fluidez em um
contexto urbano arquitetônico.
20
divulgação/werner huthmadres / divulgação/helene binet
divulgação/paul warchol / divulgação/roland halbe
quem anda na rua a visitar o museu.
A senhora tem uma cidade favorita?
Não consigo escolher só uma. Um dos lugares que mais gosto
de visitar é Istambul, pela mistura de Ocidente e Oriente. Me
apaixonei pela complexidade da cidade, você nunca sabe o
que esperar na próxima esquina. Ela tem ricas camadas, é
cheia de tesouros inesperados. E tudo isso em uma belíssima
paisagem cortada pelo estreito do Bósforo. Londres sempre
encorajou e acolheu a experimentação. A cidade inspira
projetos imprevisíveis de arquitetura, arte, design e moda.
Com seu ritmo e energia, o Rio é absolutamente de tirar o
fôlego. A cidade é abençoada com sua topografia lindíssima.
Em nenhum outro lugar do mundo a ideia de “selva urbana”
é tão natural. E, como todos os brasileiros, a generosidade e a
simpatia dos cariocas é muito acolhedora.
21
Personnalité
Zaha hadid
Guanghzou Opera House Guanghzou, China (2010)
Construída no Zhujiang Boulevard, no centro cultural da
cidade, à beira do rio Pearl, a obra tem dois edifícios com
formatos irregulares e arredondados, que lembram as
pedras nas margens do rio. No primeiro e maior está o
teatro com 1.800 lugares; no segundo, um auditório para
400 pessoas e salas de ensaio. Na concorrência para
escolher o projeto, Zaha venceu seu antigo professor e
mentor Rem Koolhaas.
Maxxi Roma, Itália (2009)
Primeiro museu italiano dedicado à arte contemporânea,
está localizado no bairro residencial de Flaminio, em meio
aos prédios antigos da cidade. Sem fachada, frente ou
fundos, é feito de concreto, ferro e vidro. Os três pavimentos são compostos de ambientes múltiplos, divididos por
paredes que se cruzam. “Por fora, me agride um pouco por
destoar muito da paisagem do entorno. Mas o interior tem
uma força gráfica, uma qualidade espacial, que é sedutora
ênfase na arquitetura. Acho que as ideias de mudança e liberdade foram fundamentais para o meu desenvolvimento como
arquiteta. Meu pai acreditava na criação de um futuro melhor
para o Iraque, com melhores relações com o resto do mundo.
Em Bagdá, arquitetos modernistas como Frank Lloyd Wright
[1867-1959] e Gio Ponti [1891-1979] desenhavam prédios.
22
divulgação/bernard touillon
divulgação/huffon+crow photographers
e muito interessante”, diz o arquiteto Ciro Pirondi.
Seu pai foi um político importante no Iraque. Que tipo de
influência ele teve na sua vida?
Eu era muito próxima dos meus pais. Me deram uma criação
moderna, secular. Meu pai estudou na London School of Economics num momento incrível de mudanças sociais. Quando
voltou ao Iraque, antes que eu nascesse, havia o chamado grupo de Beirute, cujos integrantes formaram a base do que seria o
Partido Democrático iraquiano. Meu pai fez parte disso.
A senhora se envolve com a política atualmente?
Me interesso pelo assunto. Construções para moradia, educação e saúde são muito importantes, têm um enorme impacto
na vida das pessoas. O projeto da Evelyn Grace Academy
[escola de ensino médio no bairro de Brixton, em Londres, cujo
projeto é assinado por Zaha] tem sido muito recompensador.
Está sendo construído em uma área decadente do sul da
cidade, com as mais altas taxas de crimes violentos e relacionados a gangues na Europa ocidental. A escola oferece ensino
de alta qualidade. Não é apropriado, nos dias de hoje, não ter
consciência social.
E como era o clima em Bagdá nessa época?
Como em vários lugares do mundo em desenvolvimento, havia
uma crença inabalável no progresso, um grande otimismo.
Os anos 60 foram um momento de construção da nação, com
23
Por Marcos Lopez e David Torras, de Barcelona Ilustrações Zoran Lucić
por que
parou?
Pep Guardiola entrou para o Barcelona aos 13 anos, foi gandula,
jogador, ídolo. Aos 41, esgotado, deixa o clube como o técnico
que reinventou o jeito de jogar futebol
“D
esafivelo o cinto porque ele está
muito apertado para mim. Mas
para vocês não. Deixo-os em boas mãos.”
Com essa mensagem, Pep Guardiola
abandonou o Camp Nou rendido a seus
pés. Era uma imagem poucas vezes vista,
um arrepio percorrendo a arquibancada.
Avós, pais, filhos, netos, alguns engolindo
as lágrimas e outros chorando intensamente. Todos ali dizendo adeus ao responsável por havê-los feito viver alguns
dos melhores anos de suas vidas.
“Se você me diz adeus, quero que o
dia seja limpo, que nenhum pássaro rompa a harmonia de seu canto. Que tenha
sorte e encontre o que lhe faltou comigo”,
cantava em catalão boa parte das mais
de 90 mil pessoas, enquanto o técnico do
Barcelona andava pelo campo, com seus
jogadores, Messi, Xavi, Iniesta, Daniel Alves e genial elenco, todos vivendo a cena
a poucos metros. O calendário indicava: 5
de maio de 2012. O fim de uma era.
Quatro anos atrás, Guardiola viveu
essa mesma cena com uma diferença de
tom. Era uma chance de sorrir, de dizer
“olá”, a volta de um não tão velho ídolo.
Era a noite da apresentação de Pep como
novo técnico da equipe principal do Barcelona. Diante de seus torcedores, um
Guardiola de 37 anos pedia ao público
que se preparasse. “Afivelem os cintos.
Vamos nos divertir muito.”
Nessa data, encerrava-se o ciclo do
holandês Frank Rijkaard, o treinador
que de 2003 a 2008 fez de Ronaldinho
Gaúcho o maior craque do mundo.
Para Guardiola, era um retorno a uma
história que sempre contou com um
empurrão de Johan Cruyff. Aos 13 anos,
Pep, um menino do interior da Catalunha, entrava para o clube para participar
das categorias de base. Foi gandula,
disputou amistosos e torneios até que,
em 1990, com 19 anos, quase de um dia
para o outro, Cruyff transformou aquele
25
jovem desajeitado e com acne em uma
das peças-chave de seu dream team.
Deu-lhe a camisa número 4 e a função
de cérebro da equipe que contou com
Romário, Stoichkov e Laudrup. Seu período como volante o tornou ícone, uma
lenda, e lhe incrustou na alma um DNA
de futebol ofensivo.
Guardiola tornava-se um fundamentalista do cruyffismo. Uma década depois,
quando se aposentou dos gramados em
2006, depois de uma passagem pelo futebol árabe e mexicano, Pep já era mais
cruyffista do que Cruyff. Sua meta era
retornar como técnico e formar um escrete com toque e domínio de bola quase
total, uma esquadra que assumiria riscos
imensos para entregar ao torcedor um
espetáculo de gols e títulos.
De volta a Barcelona, Pep conseguiu
um emprego como treinador da filial
do Barcelona da terceira divisão. Reencontrou-se, então, com o antigo mestre.
_
Uma vida
no Barcelona
2001
Em 28 anos de trajetória, Pep foi gandula, protegido
de Cruyff, craque e o maior treinador do clube
1984
Com 13 anos, chega
ao Barcelona e mora
em La Masia, o centro
categorias de base ao
lado do Camp Nou
2008
1990
de treinamentos das
1986
O presidente do clube, Joan Laporta,
O técnico Cruyff convoca Pep para
Como jogador, despede-se do
estrear na equipe principal aos 19 anos
Aos 15, atua como gandula no Camp
e, em seguida, vive a era gloriosa do
Nou durante uma semifinal da Copa da
dream team ao lado de Romário
Barcelona aos 30 anos, depois de
ter ganhado seis campeonatos
seguindo os conselhos de Cruyff,
convida Pep, aos 37 anos, para se
tornar treinador do time principal
2012
Guardiola deixa o clube com 41 anos,
depois de ganhar 14 títulos, entre
eles duas Ligas dos Campeões, dois
Mundiais de Clubes e três Campeonatos
Espanhóis: “Me sinto esvaziado, preciso
voltar a me preencher”, disse
espanhóis e uma Copa da Europa
Europa (a atual Liga dos Campeões),
entre Barcelona e Gotemburgo
26
trata-se de ganhar pagando um único preço: ser fiel ao estilo. “Persistiremos, persistiremos, persistiremos”, disse o técnico
naquele primeiro dia. Seu time não deixou
de fazer isso. Pep, mais do que ninguém.
A FILOSOFIA DE STEVE JOBS
Convencido de não ter a genialidade de
seu mestre, Cruyff, e admirador de figuras
perfeccionistas como Tiger Woods (o golfe é uma de suas grandes paixões), Guardiola exerceu seu trabalho com uma obsessão quase doentia. Durante esses quatro anos, depois de deixar seus três filhos
na escola, era possível ver sua Land Rover
branca estacionada na Cidade Esportiva
do Barça. Ali, ele instalara sua base, num
simples cômodo que dividia com seu
ajudante, Tito Vilanova (alçado por Pep a
novo técnico do Barcelona). Nesse local,
as janelas oferecem uma panorâmica dos
divulgação / JOSEP LAGO Getty/Images / Latinstock Marc Atkins/Corbis
ram a viagem mais inesquecível da sua
história. Nunca um treinador havia tido
uma estreia tão esmagadora. Em sua
primeira temporada, em 2008-2009, o
catalão conquistou praticamente tudo:
a Liga Espanhola, a Liga dos Campeões, o Mundial de Clubes, a Supercopa
Espanhola e a Copa do Rei. No total,
foram 14 títulos – três ligas, duas Champions, dois Mundiais de Clubes –, além
de “passeios”, como a goleada de 6 a 2
sobre o Real Madrid no Santiago Bernabéu, a casa do time merengue.
Os rastros do Barça de Guardiola ultrapassaram o campo de jogo e entraram
no terreno dos valores, da reivindicação
de um estilo, de uma filosofia, de uma
maneira de entender o futebol na qual o
fim não justifica os meios. É justamente
o contrário. Os meios estão acima do fim.
Não se trata de ganhar a qualquer custo;
divulgação/ricard fadrique / EFE/EPA
Diante da crise que ameaçava o reinado
de Ronaldinho e Rijkaard, Cruyff articulou a subida galopante de Guardiola.
Pep passava à frente de outro grande
candidato, pelo qual, naquele momento,
muitos culés (os torcedores do Barça)
estavam dispostos a aceitar e vender a
alma em troca de sair da maré decadente. José Mourinho, hoje comandante do
Real Madrid e inimigo público número
um do barcelonismo, esteve até o último
instante fazendo o “bem me quer, malme-quer” com a margarida que nascia
nas entranhas enegrecidas do Camp
Nou. Por alguns meses, a diretoria e os
catalães dividiram-se. Por fim, decidiuse pela recomendação de Cruyff. Mourinho é hoje o diabo; e Pep, o anjo que
levou o Barça ao paraíso.
Guardiola cumpriu sua palavra. Desde
que os culés apertaram os cintos, vive-
campos de treinamento. Diariamente, entrando de manhã e saindo à noite, assistia
a vídeos, revisava relatórios dos técnicos,
falava com os preparadores físicos e com
os jogadores, numa rotina que se tornava
cada vez mais longa até que lhe parecesse
uma eternidade insuportável.
Na sua mesa, junto a um Mac que ele
mesmo comprou e que carrega sempre
consigo, foram sendo amontoados livros,
muitos deles nunca abertos. Há de todos
os tipos. Romance, ensaio, poesia. Biografias... A de Steve Jobs, por exemplo.
Foi nessa época que um amigo envioulhe o vídeo de um discurso do antigo CEO
da Apple na Universidade de Stanford.
Pep devorou-o emocionado e destacou
passagens que, no dia de sua despedida do
Camp Nou, ganharam um sentido especial: “Se hoje fosse o último dia de minha
vida, gostaria de fazer o que vou fazer
hoje?”, perguntava Jobs. “Se a resposta for
‘não’ muitos dias seguidos, sei que preciso
mudar algo. O tempo que vocês têm é limitado, então, não o desperdicem vivendo a
vida de alguém diferente. Não deixem que
o barulho das opiniões dos demais abafe
sua voz interior. E o mais importante:
tenham coragem de seguir seu coração e
sua intuição. De alguma maneira, eles já
sabem o que alguém realmente quer ser.
Todo o resto é secundário.” O final do discurso ficou gravado na pele de Pep Guardiola: “Continuem famintos, continuem
loucos”. Um lema que repetiu mais de
uma vez a seus jogadores no vestiário.
Aí estava o segredo: no desejo, na ilusão, nesse ponto de loucura necessário
para seguir adiante sem olhar para trás.
“Continuem famintos, continuem loucos.”
Assim foi o Barcelona de Pep. Uma fera
com fome, maluca para ganhar.
27
pep repetia
a seus
jogadores
o lema de
steve jobs:
“continuem
famintos e
loucos”
_
A construção
de Lionel Messi
Ainda em Pequim, no verão de 2008, com a me-
Continua sendo baixinho. Joga como em
dalha de ouro em seu peito, Leo Messi dirigiu-se
Rosário. “Nunca penso em dribles, no que vou
a alguns jornalistas de Barcelona. Quase não
fazer, aprendi tudo na rua. Jogo igual a quando
falou com a imprensa de seu país, que insinua-
era criança”, diz. Em março passado, marcou seu
ra que ele não queria ir aos Jogos Olímpicos
gol 234 em 314 partidas, superando o recorde
defender a seleção. Mas esqueceram que Messi
de César Rodrigues (232 gols em 348 confron-
continua sendo um garoto nascido em Rosário.
tos). Aos 24 anos, marcou 50 gols na Liga e 73
Com a diferença de que vive circunstancialmen-
nesta temporada (feitos jamais conseguidos). O
te em Barcelona desde os 13 anos. Seu coração
desafio, no entanto, começa agora para Messi.
continua ali, onde não houve dinheiro e ajuda
Uma vida sem Guardiola.
_
Ronaldinho e o
resgate do Barça
Em dezembro passado, uma comoção tomou
para administrar os hormônios de crescimento
de assalto o Brasil. No Japão, pela TV, viu-se
dos quais seu minúsculo corpo necessitava
o Barça de Guardiola construir um inesquecí-
quando criança. Por isso, e só por isso, o jovem
vel monumento ao futebol. Diante dos olhos
Lionel pegou o avião, deixou sua cidade e fixou-
do mundo e, sobretudo, diante da surpresa
se na Europa com a família.
de muitos brasileiros, que pareciam orbitar
Assim, naquele dia, com o ouro olímpico
outro planeta até então, o time espanhol
brilhando, tímido como sempre foi, Messi quis
massacrou o Santos de Neymar e Ganso. A
enviar uma mensagem a Guardiola: “Gostaria de
conquista do Mundial de Clubes por 4 a 0 foi
dizer ao professor obrigado, muito obrigado”.
uma surra que despertou o país do futebol
Foi Guardiola quem lhe deu permissão para ir
para uma estranha realidade: a arte não vivia
aos Jogos, apesar de o Barcelona estar jogando
mais neste ponto da América do Sul.
a vida em uma prévia da Liga dos Campeões
Ao final do jogo, quando se sentou diante
diante do Wisla de Cracóvia. O técnico, ou o
dos jornalistas, Guardiola foi iluminador. Pep
“professor”, como é chamado por Messi, enten-
ouviu a pergunta de um jornalista brasileiro:
deu que era melhor a felicidade de um jovem
“Como vocês podem jogar assim?”. E outro re-
que precisava provar seu amor pelo país do que
pórter lhe secundou: “De onde é que você tirou
o interesse coletivo, sabendo que nessa decisão
a inspiração?”. E, então, Guardiola levantou a
construiria uma relação de cumplicidade.
voz. Berrou, na verdade. Porque cada vez que
Já no primeiro dia em que se encontraram,
está rouco é sinal de que a partida foi extraordi-
houve uma conversa transcendente: “Pep me
nária. Eles jogam, ele fica sem voz. “E você me
disse: ‘Comigo, você marcará três ou quatro
pergunta isso?”, respondeu. “Pois isso é o que
diola não é compreendido sem o Brasil. Foi
o legado brasileiro era imprescindível e se
gols por partida’. Pela forma como me faz jogar
o Brasil fazia há anos, durante toda a vida. Isso
Ronaldinho, chegado de Paris, quem levou a
misturava às raízes de La Masia, a fábrica
e pela posição em que me coloca no campo,
foi o que escutei meus pais e meus avós sempre
alegria ao Camp Nou, no verão de 2003, para
de talentos, o centro de treinamentos que
Guardiola me deu tudo”, conta o argentino.
me contarem. Tirei isso de vocês!” O futebol bra-
resgatar um clube que estava mergulhado
respira uma alma brasileira.
“Sinto muito, não há outro jogador como
sileiro, um esquecido futebol brasileiro, inspirara
na mais absoluta depressão. Sem o gaúcho
Leo. O trono pertence a Messi e somente ele
Guardiola. “No final, tudo é mais simples do que
Ronaldinho, não teria existido Messi. Como
Valentí disfarçou-se do melhor Brasil jamais
decidirá quando deixá-lo”, afirma Guardiola, or-
parece: entendemos o jogo por meio do passe
aconteceu antes com Cruyff, que resgatou
visto. “Não sonho em ser um jogador do
gulhoso por haver participado da eclosão de um
e o que tentamos é passar a bola o mais rápido
Romário da fria Holanda (1994) para culmi-
Barça, mas gostaria que me deixassem jogar
menino pequeno (chamavam-no de A Pulga).
possível”, contou.
nar no dream team, onde jogava Guardiola,
uma partida com eles. São muito bons”, dis-
Ali, em Yokohama, o Barça do filho de
Messi hoje é um gigante. Conquistou três
“Foi um dia histórico, pela primeira vez de-
enquanto Ronaldo, o fenômeno, pousou
se Paulo Henrique Ganso. “Hoje aprendemos
Bolas de Ouro consecutivas, 19 títulos com o
mos um banho nos brasileiros”, afirmou Cruyff.
sua nave espacial no Camp Nou (1996) para
a jogar bola. Eles nos deram uma aula de
Barça (cinco Ligas, três Champions, dois Mun-
Um, Pep, no Japão; o outro, Johan, em Barcelo-
brindar um futebol galáctico de um atacante
futebol”, afirmou Neymar. Não houve dú-
diais de Clubes...) e ultrapassou os limites do
na. O discípulo e o mestre unidos como sempre.
sideral. E, por fim, Rivaldo (1997), melhor
vidas. Não foi o Barça que jogou no Japão.
futebol contemporâneo.
E o Brasil, a fonte de tudo. O Barça de Guar-
do mundo, que surgiu para demonstrar que
Nem o Santos. Jogou o Brasil.
28
Guardiola, o Steve Jobs do futebol,
um revolucionário criado na ideologia
cruyffista do jogo ofensivo, afinou seu estilo realizando uma peregrinação que diz
muito sobre sua obsessão pela bola. Pouco
depois de abandonar os gramados, em
julho de 2006, Pep frequentou uma escola
de técnicos em Madri. Lá, estudou regras,
estratégias e diplomou-se treinador.
Ainda insatisfeito, em outubro partiu
em uma viagem de iniciação. E assim
acabou em Buenos Aires, sentado diante
de César Luis Menotti, comandante do
título mundial argentino de 1978. Depois, visitou Marcelo “El Loco” Bielsa.
Dois de seus gurus. Guardiola atravessou
o Atlântico ao lado de seu amigo, o escritor e diretor de cinema David Trueba. E
é impossível não lamentar que Trueba
não tenha registrado essa turnê com sua
câmera. Com Menotti, a conversa durou
sete horas; com Bielsa, 11, em um churrasco que se prolongou até a madrugada.
Onze horas! Futebol, futebol e mais futebol... Três fanáticos dando voltas em
seu mundo redondo, o mundo em que
gostariam de viver sempre.
Mas neste planeta nem tudo gira ao
redor da bola. Desgastado pela rotina,
pela pressão extracampo, Pep passou
a sentir que seu cinto o apertava cada
vez mais. Até que um dia começou a lhe
faltar o ar. Imagine a energia necessária
para manter por longos quatro anos uma
equipe fiel ao lema vital do “continuem
famintos, sejam loucos”. Além disso,
outros esforços, pequenos e grandes
problemas internos do clube, coletivas
de imprensa em que é obrigado a sempre ser brilhante, criativo, generoso, em
catalão, em castelhano, em inglês, em
“De onde
veio a ideia
de jogar
assim? Ora,
de vocês!”,
disse pep a
jornalistas
brasileiros
italiano e, sobretudo, na guerra permanente com o endiabrado José Mourinho, incansável em seu afã de tirá-lo do
sério, de provocá-lo. Esse pacote todo
minou as forças de Pep.
Assim, Guardiola decidiu deixar
esse escritório com vista para a essência do Barça, para a grama que formou
Messi e Xavi, para esses campos onde
crescem meninos como aquele Josep
Guardiola i Sala, o garoto nascido em
Santpedor que chegou aqui, a La Masia, assustado. Um garoto que chorava
à noite com saudades da família. Um
menino do interior da Catalunha que
diziam ser muito pequeno e franzino
para chegar a jogar no Camp Nou, sem
saberem que seu grande tesouro não
estava em suas pernas, mas em sua cabeça. Como Steve Jobs, Pep teve fome.
E foi um pouco louco.
o futuro de guardiola é ser pep
Ele não sabe aonde irá. Ou não quer
dizer. Se pudesse, desapareceria imediatamente, amassado pela fama, cons-
30
trangido pela dimensão da obra que
construiu. Pep busca recuperar algo que
perdeu quando menino. Filho de Valentí, um pedreiro de Santpedor, pequeno
município situado no coração da Catalunha, próximo a Montserrat, Josep busca
ser simplesmente Pep. Nem Guardiola.
Nem o mito. Nem o símbolo. Nem o revolucionário que transformou o futebol.
Ser Pep, apenas isso.
Mas, quando a bola voltar na próxima temporada, em agosto, ele irá.
Talvez para a Inglaterra. Talvez aos
Estados Unidos. Pouco importa o país.
O que ele anda buscando é recuperar o
anonimato. Algo tão simples, mas tão
complexo. Quase uma utopia.
“Vocês verão pouco os meus cabelos
por aqui. O pouco cabelo que tenho,
né?”, disse com um sorriso, enquanto
não podia evitar olhar para si mesmo.
Ali em cima, onde cresce seu escasso
cabelo, que já não é o mesmo, está retratado o desgaste de Guardiola.
Não é unicamente um desgaste físico (mudaram notavelmente a figura e a
imagem do técnico em quatro anos), mas
mental. Por isso, Pep, e não Guardiola,
precisa descobrir os prazeres mais cotidianos. Fugir de um escritório, passar
uma manhã jogando golfe, sentar-se em
um teatro londrino ou nova-iorquino e
aproveitar, explorar novas gastronomias
(é um apaixonado pela tradicional comida catalã: pão com tomate, carne na
brasa, devorador de caracóis).
Por fim, Pep Guardiola quer acompanhar, ao lado da esposa, Cristina, o crescimento de seus três filhos: Marius, 11,
Maria, 9, e Valentina, nascida justamente
há quatro anos.
Por Suzana Camargo
casa
na árvore
O sucesso na publicidade já não dizia nada para o
francês Alain Laurens. Decidiu, então, criar uma
empresa para construir casas a 10 metros do chão
O
árvore. “Eu era muito feliz, estava realizado na minha carreira, fazia coisas interessantes”, conta Alain. “Mas queria ter
uma segunda vida. Queria começar um
negócio novo, do zero.” O francês decidiu
construir uma cabana na árvore da casa
de campo que tinha na região da Provença. “Gostei e imaginei que, se eu queria
ter uma casa na árvore, outros poderiam
ter o mesmo desejo. Seis meses depois de
deixar meu emprego na Lintas, fundei a
minha companhia.”
La Cabane Perchée (a casa da árvore)
é hoje a mais famosa empresa da Europa
para esse tipo de construção. A sede fica
no vilarejo de Saint-Saturnin-lès-Apt
(sul da França).
divulgação
francês Alain Laurens estudou
ciências políticas, bandeou-se para
a publicidade e, durante 30 anos, trabalhou na área. Começou como redator, foi
diretor de criação. Nos últimos dez anos,
atingiu a presidência da agência Lintas
Paris. Sucesso da publicidade. Chegava
ao topo. Um dia, em 1999, aos 52 anos,
olhou para cima e não viu coisa alguma.
Parecia não haver mais para onde subir.
Foi quando se lembrou da história de
Cosme Chuvisco de Rondó, personagem
de O barão das árvores, de Italo Calvino:
garoto de 12 anos, de família rica e rígidas normas de etiqueta, tem ataque de
fúria durante o jantar, grita com os pais
e foge em direção aos galhos de uma
32
33
A suíte projetada para o hotel la piantata (itália) está
entre os trabalhos prediletos de alain laurens
divulgação/jacques delacroix / Sipa Photos/Newscom Glow Images
as cabanas
se encaixam
no tronco
com uma
cinta que
pode ser
ajusatada
34
No ateliê trabalham 12 pessoas: marceneiros, eletricistas, encanadores, além
do designer e aquarelista Daniel Dufour,
responsável pela concepção e desenho
das casas. Fecha o time o mestre carpinteiro e diretor do estúdio, Ghislain
André. Alain Laurens coordena a parte
financeira, faz a interface com clientes e
é o relações-públicas. No início, a construção das cabanas gerou publicidade espontânea. “Tivemos uma cobertura massiva da imprensa francesa”, diz Alain. A
exposição na mídia atraiu clientes. “Recebemos telefonemas de interessados e
o negócio deslanchou rápido.” Em 2000,
foram 15 projetos. Ano passado, esse
número dobrou. Em 12 anos, La Cabane
Perchée fabricou cerca de 350 casas. O
custo varia entre 20 mil e 120 mil euros.
As cabanas criadas pela equipe francesa podem ser vistas em propriedades
na França, Bélgica, Dinamarca, Itália,
Espanha, Portugal, Suíça, Estados Unidos
e Rússia. O diretor de La Cabane Perchée
calcula que atualmente 60% dos clientes
da empresa são privados. Os outros 40%
são corporativos, principalmente hotéis
que transformam as cabanas em suítes
de luxo. Assim que o cliente demonstra
interesse em ter uma cabana, a equipe de
Laurens analisa a árvore em que a construção será colocada: altura, circunferência, idade. As espécies mais apropriadas
são carvalhos e pinheiros. E, quanto mais
antigas, melhor. O ideal é que a casa fique
a uma altura entre 8 e 14 metros do solo.
Depois que Daniel Dufour finaliza
o projeto e o cliente o aprova, é preciso
seguir os mesmos trâmites legais da
construção de uma residência normal,
erguida no solo. Enfim, chega a hora de
construir as peças no ateliê em SaintSaturnin-lès-Apt. A madeira utilizada
é o cedro vermelho. Importada do Canadá, essa espécie é bastante sólida, en-
tretanto leve, e não apodrece, resistindo
a pragas e condições climáticas. Uma
casinha infantil leva pouco mais de três
semanas para ficar pronta; já as com
mais de um aposento ou sofisticadas requerem dois meses e meio de trabalho.
Nenhum prego sequer é colocado no
tronco ou galhos. O sistema criado pela
equipe francesa faz com que a cabana
se encaixe nos galhos, com uma cinta
colocada em volta do tronco, que pode
ser ajustada. As árvores continuam
crescendo de forma natural. “A cada
dia precisamos desenvolver uma nova
técnica, tudo depende de onde estamos
trabalhando no momento”, diz Alain.
“64, com cabeça de 22”
O sonho de Alain surgiu ainda criança
e, um pouco por causa disso, o trabalho
realizado em La Cabane Perchée precisou ser inventado. “O que fazemos é
diferente de tudo. Quando comecei o
negócio não sabia nada sobre ele”, conta.
No início, ele precisou encontrar um carpinteiro que tivesse afinidade com esse
tipo de arquitetura. Buscou profissionais
em escolas especializadas, até que recebeu o contato de Ghislain André, um
compagnon charpentier. A nominação em
francês é dada para os mestres carpinteiros e tem origem nos construtores das
catedrais europeias na Idade Medieval.
Outro cuidado foi com a imagem da
empresa. O site está disponível em sete
línguas e há representantes na Escandinávia, Rússia, Austrália e Estados Unidos.
Por todas essas razões, o produto que a
companhia francesa oferece não é barato.
Quando são construídas fora da França,
ao custo do projeto e da montagem é adicionado o valor do transporte e da viagem da equipe. “Construímos os sonhos
dos clientes, mas focamos em qualidade,
e isso torna o produto caro.”
na página ao lado, casa construída pela la cabane perchée
em sologne, na frança, com a técnica de sustentação que fixa
a residência sem a necessidade de perfurar os galhos com pregos;
acima, alain laurens, fundador da empresa
35
_
Livro reúne as
50 criações mais
emblemáticas
Questionado sobre qual criação é a
mais bonita, Alain Laurens afirma que
sempre é a mais recente. Apesar de
não falar abertamente quais cabanas
foram as mais marcantes, em 2006 o
francês revelou de maneira sutil suas
preferidas. A suíte projetada para o
hotel La Piantata, na Itália, estava entre
elas. Naquele ano, o criador da La Cabane Perchée escreveu o livro Vivons
Perchés (vivendo nas alturas, em tradução livre). A obra mescla o texto, escrito pelo próprio Alain, com fotografias
das 50 criações mais originais da empresa. Em 2008 foi lançada uma nova
edição, Tree house living, com fotos de
projetos mais atuais. Em parceria com
o designer francês Ambroise Maggiar, o
ateliê produziu uma cabana com estilo
futurista. Chamada de Cyclope House,
tem 3,5 metros de altura e é sustentada
por duas longas pernas. Duas unidades
já foram encomendas. O projeto inclui
o design interno e móveis. Preço: 84 a
91 mil euros.
_
Cabanas ficam
sobre campos de
lavanda e o mar
temporada precisa ser feita com um ano
de antecedência.
Atualmente, Alain Laurens divide
seu tempo entre Paris e Provença. No
alto de um velho pínus, uma espécie de
pinheiro, no quintal da casa na capital
francesa, ainda repousa a primeira
cabana concebida pela La Cabane Perchée. É uma pequena construção, de 6
metros quadrados. Os filhos adultos de
Laurens brincaram lá quando crianças
e agora é a vez de os netos aproveitarem o legado do avô. “Ela é linda”, diz
orgulhoso. “Fiquei muito emocionado
quando a vi pela primeira vez. Tinha
dúvidas se seria possível realizar meu
sonho e mais ainda se encontraria
pessoas que estivessem dispostas a
compartilhá-lo.” Laurens encontrou.
“Tenho 64 anos, mas minha cabeça ainda tem 22”, diz o homem que remoçou
ao chegar ao topo de sua carreira, olhar
para cima e ver... uma árvore.
Vários estabelecimentos, principalmente
na Itália e na região francesa da Provença, encomendaram casas à La Cabane
Perchée. O château de Valmer, em SaintTropez, tem duas suítes nas árvores: uma
para casais e outra para famílias. A mais
romântica tem vista para o mar e, abaixo
do imenso carvalho onde foi construída,
estendem-se quilômetros de vinhedos.
O hotel La Piantata fica em uma paisagem idílica na região de Arlena di Castro,
entre Siena e Roma. Quase por acaso
a fazenda da família Stucchi virou um
refinado hotel. Após trabalhar 30 anos
como diretor da Cacharel, uma das mais
famosas casas de moda italianas, Renzo
Stucchi conheceu Alain Laurens em uma
viagem. Do encontro surgiram as lembranças de brincadeiras junto ao pai perto de um damasqueiro – e os planos para
a cabana no Piantata. A suíte Bleue está
na árvore que talvez seja a mais antiga
do país: um carvalho com idade entre
600 e 700 anos. O serviço na cabana de
44 metros quadrados, que inclui champanhe e café da manhã, é servido com a
ajuda de uma polia. Da varanda pode-se
36
divulgação/jacques delacroix / divulgação / divulgação
ver o mar lilás da plantação de lavanda.
divulgação
a empresa
construiu
350 casas,
com
custo de
20 a 120
mil euros
cada uma
E quem são as pessoas que encomendam as cabanas? A maioria, homens. Boa parte deles, com saudade
da infância. “Quando encontro meus
clientes pela primeira vez eles sempre
se lembram de quando faziam cabanas
no quarto ou embaixo da cama”, diz
Laurens. Entretanto, as cabanas que
no passado eram sinônimo de refúgio
e solitude infantil, hoje se tornaram o
lugar perfeito para ler, ouvir música,
sonhar, namorar. Ou ainda, simplesmente, passar um final de semana
em meio à natureza. “Nossa primeira
casa na árvore, a suíte Bleue, foi uma
enorme surpresa e sucesso”, conta o
italiano Renzo Stucchi, proprietário do
hotel-fazenda La Piantata, localizado a
pouco mais de uma hora de Roma. Erguido junto a um centenário carvalho
de 23 metros de altura, o quarto tem
vista para campos de lavanda. Uma
reserva para a cabana durante a alta
à esquerda, suíte do hotel la piantata; no alto, casa construída
em deauville (frança); acima, interior do hotel francês a
pignata, na córsega, e café servido no la piantata
37
Zaha Hadid pergunta:
A vida
ribeirinha melhorou?
Inácio Neves responde:
Em 2004, quando iniciei o projeto Cinema no Rio,
a maioria das cidades às margens do rio São Francisco
não tinha saneamento básico ou asfalto. Até encontrar
verduras para as refeições era difícil. Hoje, melhorou. Mas
falta muito. Inclusive medidas para salvar o Velho Chico.
38
39
Por Luís Patriani
Fotos Fernando Martinho
cinema
marginal
O mineiro Inácio Neves
percorre o São Francisco
com o projeto que leva filmes
nacionais a comunidades que
nunca tiveram tal experiência.
“Amo o Inácio. Ele traz alegria
com o cinema. Não vejo TV
porque é só desgraça”, diz
Manoel dos Santos, 73 anos
Inácio neves navega pelo rio são francisco na embarcação
luminar, com equipe de 18 pessoas e uma tela inflável
40
Personnalité
J
anuária, norte de Minas Gerais. O sol nasce e abre a
cortina de nuvens em mais um fim de semana quente e
com pouco para fazer na pacata cidade à beira do rio São
Francisco. O roteiro deste sábado de maio, assim como o
calor que brota do chão, é o mesmo de sempre. Enquanto
meninos desafiam o tédio com mergulhos acrobáticos feitos
das barrancas erodidas do Velho Chico, senhoras debruçadas
sobre as janelas de suas casas observam o vazio melancólico
das ruas de paralelepípedo. De repente, o anúncio vindo
de um alto-falante ecoa em cima de uma Kombi. Quebra o
silêncio e a monótona rotina do lugar: “Imperdível! Venha
assistir ao cinema no rio São Francisco! Transmissão em
telão inflável! Hoje à noite, na praça dos Pescadores, às 19
horas! Traga toda a família!”.
Um pouco antes, um caminhão e carros de apoio
chegam à praça. Por fim, um barco atraca e desembarca
a trupe itinerante liderada pelo mineiro Inácio Neves, 55
januária, no norte de minas gerais, se prepara para receber o
projeto cinema no rio. na página ao lado, inácio e a embarcação
luminar cruzando o são francisco
anos. Produtores espalham cadeiras pelo local. Técnicos
montam projetor, telão e sistema de áudio. Um carrinho de
pipoca é estacionado.
À diferença do que acontecia no filme Bye Bye Brasil,
tudo funciona como um mecanismo treinado, profissional.
Não há o traço mambembe dos personagens filmados
em 1979 por Cacá Diegues. Ali, José Wilker e Betty Faria
sobreviviam cruzando a Amazônia e levando circo a
povoados que não tinham televisão. Aqui, Inácio Neves
carrega outro tipo de bagagem: o desejo de transformar
o cenário cultural de comunidades ribeirinhas ao longo
de um trecho de 400 quilômetros do rio que, com seus
2.830 quilômetros de extensão, cruza Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Sergipe e Alagoas.
Ao lado de uma equipe de 18 pessoas, Inácio promove
exibições de longas e curtas nacionais, além de oferecer
oficinas de fotografia e gravar documentários sobre as
42
Inácio Neves
em sete anos,
o projeto
cinema no
rio já levou
mais de 200 mil
pessoas para
a frente da
grande tela
tradições de cada cidade. A cena que agita a pacata Januária
seria um delírio provocado pelas altas temperaturas do
semiárido, não fosse uma realidade que nos últimos sete
anos levou mais de 200 mil pessoas ao cinema pela primeira
vez. Numa fatia do Brasil carente de políticas culturais, o
Cinema no Rio é uma miragem palpável.
O Fitzcarraldo do São Francisco
O criador do projeto é um atleticano formado em
administração de empresas. Casado com uma psicanalista,
pai de dois filhos adolescentes, foi um radialista com faro
de sucesso. Na extinta Gerais FM, em Belo Horizonte, onde
nasceu, tocou em primeira mão canções de bandas como
Skank e Pato Fu. É um sujeito simpático, expansivo, cativante.
Um desbravador. Inácio Neves é o sonhador com a saudável
mania de concretizar suas sandices. “Quando encarei o
projeto, em 2004, fiz um teste pra provar que o telão inflável
43
Personnalité
Inácio Neves
“os filmes que
exibimos nesses
lugares são
para recuperar
a autoestima da
população”
funcionava perfeitamente”, conta. “As pessoas olhavam e me
diziam que era loucura. Que nunca iria conseguir.”
Vaguinho, projetista da equipe, surge com uma definição
mais precisa dessa face obstinada: “O Inácio é o Fitzcarraldo
do São Francisco”. A referência aponta para o filme do alemão
Werner Herzog em que o personagem-título contraria
conselhos, navega por rios e se embrenha na floresta para
construir uma casa de ópera na Amazônia.
Num fim de tarde de maio, sentado na proa da embarcação
Luminar, Inácio sintetiza o conceito da expedição antes de se
dirigir à sessão de sábado em Januária, a décima cidade num
total de 13, em 18 dias de viagem: “Os filmes que exibimos
são o elo pra criar uma aliança com as pessoas, pra resgatar a
cultura desses lugares. E como a gente faz isso? Recuperando
a autoestima da população”.
Na praça central, que já se encontra lotada, as pessoas
conversam animadas. Enquanto isso, o hiperativo Inácio
se desdobra em várias funções. Verifica cada passo da
operação com a produção, articula encontros com lideranças
comunitárias e acompanha o registro em vídeo dos
depoimentos de moradores sobre a experiência de ver um
longa-metragem na tela grande pela primeira vez.
Caso da professora Juliana Lopes, 35, e de seu filho Pedro
Vitor, 9. Na visita inaugural da missão a Januária, em 2010,
os dois não se interessaram. Agora, deram uma chance. E se
encantaram com o filme Uma professora muito maluquinha,
adaptação do livro de Ziraldo. Em seguida, fecharam a sessão
dupla assistindo ao documentário O mineiro e o queijo, de
Helvécio Ratton. “Adorei! Achei rico”, conta Juliana, ao lado
de Pedro, que está esfuziante. “Quero abrir um cinema para
levar as pessoas e poder assistir filmes sempre que eu quiser”,
diz o menino, enquanto não larga o saquinho de pipoca.
No dia seguinte, de manhã bem cedo, a equipe de Inácio
arruma a parafernália e se divide entre o barco, o caminhão e
os carros. A caravana parte em direção à vizinha Itacarambi.
Ali, quem se mostra exultante por debutar diante da
telona é seu Manoel dos Santos Alves, 73 anos. Verá O
palhaço, produção dirigida e estrelada por Selton Mello.
Coincidentemente, seu Manoel é conhecido na cidade como
o palhaço Pontaria. “Eu amo o Inácio. Ele traz alegria com o
cinema. Não é como a TV. TV eu não vejo, só passa desgraça.
Vocês vieram aqui com esses filmes e me deram pelo menos
mais dez anos de vida”, diz seu Manoel, que tem 36 filhos e 40
e tantos netos (“não lembro o número exato”).
_
Embarcações históricas
seguem no Velho Chico
Canoa de Tolda Luzitânia
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2010, a Luzitânia, que tem como
característica duas velas ao longo de sua envergadura
de madeira, é um dos três últimos exemplares das canoas de tolda no Nordeste brasileiro. A embarcação
teve grande importância econômica no transporte de
mercadorias na região do Baixo São Francisco na época
do cangaço e volta a navegar este ano fazendo a antiga
rota de 208 quilômetros entre a sertaneja Piranhas, em
Alagoas, e a foz do São Francisco, no Atlântico.
Benjamim Guimarães
No auge do comércio fluvial no São Francisco, na década
de 1950, o vapor Benjamim Guimarães era mais um entre
as inúmeras embarcações movidas a lenha que faziam
os 1.370 quilômetros do trajeto entre Pirapora (MG) e
Juazeiro (BA). Construído em 1913, nos Estados Unidos, o
barco começou sua história navegando pelo rio Mississipi
e é o único modelo de grande porte do gênero em atividade no mundo. Em 1985, foi tombado pelo Patrimônio
Histórico e faz atualmente o roteiro turístico de 165 quilômetros entre Pirapora e São Romão, no norte de Minas
Gerais, numa viagem que dura três dias.
Barco Luminar
O Luminar foi construído em 1964 e, antes de servir de
casa e meio de transporte à equipe do projeto Cinema
no Rio, funcionou por mais de duas décadas como barco
hospital e odontológico, parando nas comunidades ribeirinhas no norte de Minas Gerais.
44
45
Personnalité
delas”, conta Inácio. “Insistimos para que se apresentassem
na abertura da sessão. Sucesso. Vimos gente da comunidade
participando, dançando. Tudo isso acabou registrado. Esse
grupo se encheu de orgulho, de confiança. Tanto que chegou
a fazer apresentações em festivais em Brasília.”
Assim como a família do palhaço Pontaria, a ambição
de Inácio não para de crescer. Em 2005, um ano depois de
aprovar o Cinema no Rio, orçado em R$ 300 mil pelas leis de
incentivo fiscal e que hoje conta com o patrocínio da Oi e
da Petrobras, ele deu mais uma vez trela a sua imaginação
e tratou de correr atrás para botá-la em prática. A ideia:
promover sessões em cidades ao longo de ferrovias, como a
estrada de ferro Carajás, a estrada de ferro Vitória-Minas e
a ferrovia Centro-Atlântica. Em 2005, o Cinema nos Trilhos,
uma parceria com a Fundação Vale, nasceu.
A principal meta dessas expedições comandadas por
Inácio é a exibição gratuita de produções nacionais com
a premissa de que os temas projetados na tela tenham
relação com a vida das populações. Um desdobramento
surgiu com a produção dos documentários locais, feitos com
a ajuda de antropólogos. Nesta edição do Cinema no Rio,
foram registrados 13 filmes que mostram o acervo cultural
da cidade e de seus habitantes. Um exemplo: a tradição do
batuque, uma dança de origem africana dedicada ao ritual
da procriação, em que homens dão umbigadas nas mulheres,
renasceu após a passagem do projeto, na edição de 2006,
na cidade de Ponto Chique. “As pessoas que praticavam
o batuque diziam que a população da cidade não gostava
equipe ajusta bandeira na proa do luminar. na próxima etapa
do projeto inácio planeja construir uma embarcação maior,
com capacidade para até 100 pessoas
Inácio Neves
As travessias da equipe de Inácio Neves pelo rio deixam
preciosas heranças nas cidades. Em Palmeirinha, a 575
quilômetros de Belo Horizonte, os antropólogos da equipe
descobriram que os moradores do povoado reuniam
tradições culturais e estruturas sociais de uma comunidade
quilombola. Só que eles não sabiam disso. O mundo havia
passado, eles não. Estancados numa comunidade sem esgoto
e desprovidos até de telefone, levavam uma vida franciscana.
A partir da aproximação de Inácio com o líder comunitário
Agmar Lima, o cenário de ignorância e pobreza começou
a mudar. “Ganhei consciência”, conta Agmar. “Fui atrás da
certificação das terras. Isso abriu a possibilidade de uma série
de financiamentos para a construção de casas, cisternas e de
um telecentro na escola municipal.”
Na pequena São Romão, 128 quilômetros mais ao sul,
a sessão deste ano guardou uma surpresa exclusiva. Pela
46
divulgação / reprodução / reprodução / divulgação
Vapor Iluminado: R$ 14 milhões
_
O São Francisco como
fonte inspiradora
primeira vez, o filme Girimunho, premiado nos festivais de
Veneza, Nantes e Havana, foi apresentado na cidade onde os
diretores Helvécio Marins e Clarissa Campolina conheceram
as protagonistas, dona Bastu e Maria do Boi. A dupla de
velhinhas acompanhou a exibição na primeira
fila, com olhos curiosos, enquanto seus vizinhos
riam e aplaudiam. “O Cinema no Rio me
colocou próximo dessas pessoas. Inácio e eu
fizemos uma amizade grande com dona Bastu.
Depois disso, voltei para fazer entrevistas
e ouvir mais histórias. Foi quando nasceu o
roteiro”, afirma Helvécio. “Esse é o projeto
itinerante mais bonito do mundo.”
A sétima edição do Cinema no Rio se
aproxima do fim na cidade de Matias
Cardoso, quase na divisa com a Bahia. Ali,
Inácio Neves, já bastante exaurido pela
maratona de 18 dias e 430 quilômetros
percorridos, começa a imaginar seu ano
que vem. Uma imaginação que pretende
ampliar o alcance do empreendimento.
E que tomará forma num barco de
55 metros de comprimento por 16 de
largura, com capacidade para abrigar
cem pessoas, além de sala multimídia,
auditório, tratamento de esgoto e vaga
para dois carros. “Eu tenho esse projeto
chamado Vapor Iluminado. É uma parceria com a
companhia de dança Grupo Corpo”, diz. A missão,
conta, é seguir exibindo filmes em cidadezinhas
do interior e ensinar crianças com oficinas de
musicalização, iluminação e sonorização. “Mas eu
gostaria de expandir o conceito trazendo entidades
da indústria, como o Sebrae, para capacitar,
profissionalizar a população.”
O sonho de Inácio começa na construção
de um veículo que comporte essas ideias todas,
substituindo o pequeno Luminar, que acomoda
28 pessoas. O projeto da planta do novo barco
esbarra agora na captação dos recursos. O
custo será de R$ 14 milhões. “Tive a ideia do
projeto”, diz Inácio Neves. “Mas quero que
as pessoas se apropriem dele... Quando eu
morrer, não quero que ele se vá comigo.”
Ronaldo Fraga
O estilista mineiro, inspirado pelas histórias
de pescaria no São Francisco contadas por
seu pai, montou em 2011 uma exposição
com instalações costuradas entre a moda e
a cultura ribeirinha. O projeto contou com
Maria Bethânia declamando o poema “Águas
e mágoas do rio São Francisco”, de Carlos
Drummond de Andrade.
Matizes Dumont
Liderada pela matriarca Antônia Diniz, a família Dumont, de Pirapora (MG), desenvolveu
uma técnica diferente do bordado tradicional.
Linhas de seda, lã e algodão, misturadas
no mesmo pano, pontos sobrepostos, uma
anarquia de linhas e agulhas. Desde 1989,
seus trabalhos coloridos e delicados estampam capas de livros de Ziraldo (Menino do
rio Doce, Cia. das Letrinhas), Rubem Alves
(A menina, a gaiola e a bicicleta, Cia. das
Letrinhas), Jorge Amado (A bola e o goleiro,
Record) e Manoel de Barros (Exercícios de ser
criança, Salamandra).
Grande Sertão: Veredas
Foi na Barra do Guaicuí, no encontro do rio
das Velhas com o São Francisco, em Minas
Gerais, que o personagem Riobaldo declarou
seu amor por Diadorim, cena-chave no romance de Guimarães Rosa lançado em 1956.
Luthier de São Francisco
Na cidade de São Francisco, o projeto Folia,
Foliões e seus Instrumentos Musicais trabalha com a preservação da tradição no norte
de Minas de fabricação artesanal de violas,
rabecas e reco-recos, usados na festa de
Folia dos Reis.
47
Por Edmundo Clairefont
o papel
da cana
Dono de uma coleção de 2.700 rótulos de cachaça, o
designer e pesquisador Egeu Laus fez uma seleção
especial para a Revista Personnalité: “Eles engarrafam a
beleza e a riqueza da cultura popular brasileira”
malandro, de Chico Buarque). Um tempo
depois, a dupla entregou a Leonardo a estampa: uma morena sorridente que, sob
um fundo amarelíssimo e num esforço à
Marilyn Monroe, tenta evitar o levitar de
sua saia por um vendaval. A brincadeira
impulsionou Egeu a cultivar uma mania.
“Já faz uns 15 anos que coleciono rótulos
de cachaça antigos, boa parte das décadas de 1940 a 1960”, diz. “Meu acervo
conta com 700 itens em papel mais uns 2
mil em arquivos digitais.”
“Universo inescapável”
Parte desse material rendeu uma exposição no Instituto Tomie Ohtake (SP) em
2011. Egeu defende que o estudo desses
rótulos é uma maneira sem igual de entender a cultura popular e a trajetória do
design brasileiro. “Não existe nada parecido à cachaça. Nenhuma bebida do mundo
entre os trabalhos do designer egeu laus, está o rótulo
da cachaça mineira vendaval, que faz menção à clássica
cena de marilyn monroe tentando domar o vestido
48
se compara a essa diversidade. O destilado
nacional é produzido em todos os cantos
do país. Para um designer gráfico, é um
universo riquíssimo, inescapável.”
Existem no Brasil 40 mil produtores
de aguardente e 4 mil marcas. Juntos, eles
despejam no mercado 1,5 bilhão de litros
ao ano. A meca da branquinha verdeamarela fica em Salinas, cidade de 39 mil
habitantes no norte de Minas, a 650 quilômetros de Belo Horizonte. Com mais
de 50 marcas, todas destiladas em regime
artesanal, em alambiques de cobre (na
produção industrial, utiliza-se colunas de
aço inox), o município se tornou referência para a produção da pinga caseirinha.
A pedido da Revista Personnalité,
Egeu fez uma seleção para estampar as
páginas a seguir. “Esses rótulos engarrafam a beleza e a riqueza da cultura
popular brasileira.”
arquivo pessoal egeu laus
N
o currículo do designer Egeu Laus,
61 anos, constam os seguintes clientes: Paul McCartney, João Gilberto, Pixinguinha, Zé Keti, Renato Russo, Luiz Melodia e... a cachaça Vendaval. Criador, nos
últimos 30 anos, de capas de LPs e CDs de
um time pesado da música, o catarinense
guarda em seu acervo um lugar especial
para o rótulo da aguardente mineira.
Essa história, conta Egeu, começou
com um convite informal do amigo Leonardo Braga, dono do restaurante Casa da
Feijoada, ponto tradicional da boemia de
Ipanema. O empresário pretendia trazer
aos cariocas a caninha artesanal produzida em uma fazenda em Visconde do Rio
Branco, no sul de Minas – e convocou o
designer para conceber a marca.
Egeu dividiu a tarefa com o ilustrador
paraibano Romero Cavalcanti (o desenhista do cartaz original da Ópera do
A cachaça existe há mais de quatro séculos. Uma das primeiras a
utilizar rótulo colorido e modernizado foi a Caramelo, fundada em
Minas Gerais em 1886. A partir
dos anos 1930, as marcas apostavam em garotas com traços de
atrizes de Hollywood (A Rainha)
e paisagens regionais (a fazenda
da Sertaneja). Gírias batizavam
pingas como Chirifa da Rampa e
Coragem. A aguardente mineira
Mulatinha ganhou versão ainda
comercializada em Paraty (RJ)
49
No início do século 20, a cachaça era vendida como um tônico
que abria o apetite (Alegria do
Povo) ou que “acalmava” (Confôrto). A Branca de Neve plagiava o pôster da animação de Walt
Disney lançada em 1937. Menos
de dez anos após sua morte em
1938, a mulher de Lampião era
homenageada pela mineira Maria Bonita. A Boasinha representava a sensualização feminina
que chegaria aos atuais comerciais de cerveja na TV. A fazenda
onde era fabricada inspirou o
rótulo da Dominante
Mercês, cidade do sul de Minas Gerais, é um dos mais antigos
polos da aguardente do início do século 20, produzindo caninhas como A Rainha e Creoula. Festas populares, como o Carnaval carioca (Bôa Vida), e esportes que chegavam ao Brasil,
como o boxe (Caneca Grande), ilustravam os rótulos da época.
Já a caninha Harmonia retratava o símbolo da cachaça artesanal: o tonel feito de madeiras como ipê, jequitibá e bálsamo
50
51
Inácio Neves pergunta:
O que fazer
para mudar
o caos
urbano?
Alexandre Delijaicov responde:
A primeira atitude para mudar pode começar já: caminhar e pedalar pela
cidade, para mudar nossa relação com ela. A base dessa transformação
é aprendermos a nos colocarmos no lugar do outro – e a vida vista da
calçada ou da bicicleta permite isso. O passo seguinte é o pensamento
crítico, tanto do ponto de vista da reflexão individual quanto do da crítica
coletiva articulada. Precisamos aprender a pensar de um jeito diferente,
que pode ser definido por quatro pilares: humanista, social, público e
coletivo. E o passo seguinte é começarmos a agir e a transformar a cidade.
Se seguirmos esses passos, tudo pode ser mudado. Absolutamente tudo.
52
53
Por Denis Russo Ilustrações Juliana Russo
Como a equipe do arquiteto
Alexandre Delijaicov pretende fazer
dos rios de São Paulo a solução para
o trânsito, a poluição, o saneamento
público e a habitação da metrópole
Personnalité
S
de Delija, como ele é conhecido na faculdade, é construir
um canal de 17 quilômetros que emende as duas pernas do
“Y” de rios que atravessam São Paulo – o Tietê, que vem do
oeste e se bifurca formando o Pinheiros, que por sua vez
deságua na fétida represa Billings. O canal ligaria a Billings
ao Tietê, fechando um círculo.
Essa rota seria o Anel Hidroviário, pelo qual a cidade
transportaria terra, lixo e aquela massa suja que as dragas
tiram do fundo dos rios, poupando as ruas de cerca de 6 mil
caminhões por dia. Para que os barcos possam circular ao
redor do anel inteiro, 20 eclusas terão que ser construídas –
eclusas são elevadores navais, que permitem que os barcos
subam e desçam por dentro de um poço que enche e esvazia.
A equipe de Delija, batizada de Grupo Metrópole Fluvial, estima que o projeto leve 28 anos para ficar pronto
e custe algo como R$ 3 bilhões, pouco mais de R$ 100
milhões por ano. “Esse valor não é nada”, diz ele. “Estamos falando do estado e da cidade de São Paulo, que têm
o segundo e o terceiro maiores orçamentos públicos do
Brasil, atrás apenas do governo federal. E haveria mais 14
municípios cortados pelo anel para dividir a conta com São
Paulo, entre eles outros grandes orçamentos, como Osasco,
Guarulhos e São Bernardo. É muito barato.” Para ter uma
noção, o estádio paulista para a Copa do Mundo, gerido
pelo Corinthians, sairá por no mínimo R$ 1 bilhão.
Estamos à beira de uma lagoa, deitados sobre uma toalha
de piquenique. Na água, barcos elétricos silenciosamente
trafegam para lá e para cá. Há muitas embarcações de carga, mas há também algumas que levam passageiros para o
aeroporto, para estações de trem ou metrô, para o centro.
A faixa gramada e arborizada à beira da água tem 15 metros de largura, dos quais dez são planejados para se ficar:
equipados com sombra abundante, áreas de lazer e mesas
de piquenique. Os 5 metros restantes são vias para passar –
mas não vias de carro, que irão circular mais longe da orla.
Só transitarão por ali veículos lentos e silenciosos, como
bondes, skates e bicicletas. Depois da faixa, a 15 metros da
água, há os prédios, todos com no máximo seis andares,
sendo o térreo ocupado por agradáveis pontos comerciais –
cafés com mesinhas na grama, mercados, cinemas.
O ano é 2040. Estamos às margens do rio Tietê, no
pedaço da cidade que hoje é conhecido como Jardim Pantanal – por causa das enchentes anuais. É esse o futuro
imaginado pelo projeto Metrópole Fluvial, desenhado
por um time da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
(FAU) da USP, sob a liderança de Alexandre Delijaicov, um
professor paulistano de 50 anos, aparência tranquila, que
todos os dias vai trabalhar e volta para casa montado numa
bicicleta azul de 18 marchas. A premissa central do projeto
56
felipe gombossy
o projeto
permitirá que
barcos liguem
o aeroporto
de guarulhos
ao estádio
da copa do
mundo
e você conhece São Paulo, você conhece esta cena: a
avenida Marginal parada, com todas as suas 14 pistas
apinhadas de carros e caminhões. Espremido entre as pistas,
o rio se move lento e gosmento como uma fedida lesma marrom. No meio desse corredor de água, contrastando com a
superlotação motorizada em suas margens, não há ninguém.
Nenhum movimento, nenhum barco, com exceção das dragas, dia e noite, retirando sedimentos sólidos que a chuva
varreu da cidade ou que vieram de esgotos clandestinos.
Diariamente essas dragas coletam 5 mil toneladas de matéria
nojenta, que então é colocada em centenas de caminhões. Aí
os caminhões vão circular nas Marginais, hiperlotando aquilo que já estava superlotado.
Os caminhões levam os detritos para os aterros sanitários. Mas, como os sedimentos estão cheios de metais pesados, venenosos, aquele solo acaba condenado. Os aterros não
param de crescer, enquanto falta espaço para morar e áreas
imensas ficam mais e mais degradadas.
É assim que São Paulo (não) funciona.
fazer o trabalho e subcontrataram a FAU, porque ficaram
sabendo que tinha alguém lá que entendia de hidrovias”,
diz Tércio. Foi assim que se deu uma raridade no país: o
governo, que gasta tanto em construção e tão pouco em
ensino, acabou contratando sua própria universidade
para resolver um problema. Não deixa de ser um jeito de
investir em educação.
“Quero deixar claro que eu não me comprometo nem
com esse custo nem com esse prazo”, avisa o engenheiro
naval Casemiro Tércio, diretor do departamento hidroviário do governo de São Paulo. “Me comprometo, sim,
a realizar a primeira fase do projeto, que será concluída
em 2014.” A etapa inicial é simples: consiste em construir
uma única eclusa, na Penha, e aumentar em 14 quilômetros o trecho navegável do Tietê na capital. Com isso
será possível escoar os sedimentos de barco, em vez de
caminhão. “Quem sabe não conseguimos oferecer barcos
de passageiros para conectar o aeroporto de Guarulhos à
zona leste, a tempo para a Copa?” Ele diz que prometer
mais que isso seria vender ilusão.
Como Delija, Tércio costuma se mover de bicicleta
pela cidade. “Pedalo muito na ciclovia do rio Pinheiros,
conheço bem aquele odor maravilhoso...” Ele trabalhou na
Secretaria do Meio Ambiente no governo Serra, quando se
começou a pensar no potencial dos rios para desatravancar,
despoluir e desenvolver São Paulo. Foi aí que o governo
abriu uma licitação para planejar um anel hidroviário para
a região metropolitana.
Como quase sempre acontece com licitações públicas
no Brasil, quem ganhou foi uma empresa boa em ganhar
licitações, mas não necessariamente em planejar coisas
com inteligência. “Eles não tiveram competência para
Delija tinha certa fama de doido quando foi trabalhar na
FAU, em 2000. Ele foi uma das primeiras contratações
depois de décadas de desinvestimento estatal na universidade, sem concursos para novos professores. Suas ideias e
atitudes soavam bonitas, mas meio descoladas da realidade, a começar pela insistência em andar de bicicleta numa
das cidades com menor taxa de ciclovias por habitante do
mundo (são 150 quilômetros para 11 milhões de pessoas.
Em Nova York, são 400 quilômetros para 8 milhões).
Entre 1991 e 2003, Delija gastou todas as suas férias
viajando ao lado de hidrovias pelo planeta. Financiado
pelo próprio bolso, percorreu 70 mil quilômetros de canais na Escandinávia, Rússia, França, Inglaterra, Bélgica
e Holanda. Visitava as eclusas, fotografava as barragens,
conversava com as pessoas, jantava nos barcos, pesquisava a economia dos lugares.
57
alexandre delijaicov e a ciclovia do rio PINHEIROS AO FUNDO:
AOS 50 ANOS, O URBANISTA SE LOCOMOVE APENAS DE BICIcLETA e
viajou pelo mundo em busca de ideias para o hidroanel
_
São Paulo f luvial
Projeto prevê a recuperação de rios com a criação de um
anel hidroviário para transporte de cargas e passageiros
O projeto prevê que o Anhembi,
um grande complexo municipal
de feiras e exposições, passe
também a abrigar uma marina.
O lugar seria ocupado por barcos
turísticos e uma das pistas da
Mais de cem portos serão
Marginal do Pinheiros passaria
construídos ao longo do anel.
a ser subterrânea
O “transporto” receberá lixo
e entulho de caminhões e
embarcará tudo em barcos de
carga. Esses complexos também
abrigarão mercados de pulga e
feiras de produtos orgânicos
Em regiões onde há ocupações
irregulares será construído um canal
de 17 quilômetros ligando a Billings
ao Tiête. Ao longo do trajeto, serão
levantados bairros com trânsito de
baixa velocidade e espaços de lazer.
Eclusas serão instaladas para os
barcos trilharem pelos rios
– portos-fábrica que receberão
lixo e entulho embarcados em outros portos
– onde serão embarcados
lixo e entulho trazidos por caminhões
– portos menores para
cidadãos comuns levarem seu lixo reciclável
– portos localizados perto
das estações de tratamento de esgoto para
embarcar o lodo
– portos fixos ou flutuantes
que receberão os sedimentos de dragagem
tirados do fundo dos rios
– o projeto prevê a construção
de mais três centrais de abastecimento,
além da Ceagesp, para distribuir
a comida ao longo do rio
Um dos três “triportos” onde haverá
– com 170
quilômetros, ligará a represa Billings
aos rios Tietê e Pinheiros
– rodovia de 177 quilômetros,
prevista para ser terminada em 2014
– estrada de ferro com
58
inauguração
planejada para 2014
uma “linha de desmontagem”,
que reciclará lixo, entulho e lodo,
transformando-os em matéria-prima
para a indústria, a construção civil e a
agricultura, além de produzir energia
Personnalité
“gastamos
todas as nossas
chances de
errar”, diz o
engenheiro
carlos padovezi
Com o Grupo Metrópole Fluvial, formado por alunos
de graduação e pós, muitos deles também ciclistas urbanos,
criou um plano incrivelmente complexo, que prevê a construção de mais de cem portos para abastecer os barcos com
lixo e outros resíduos. Se o projeto for colocado em prática,
o que exigirá o engajamento de pelo menos oito governadores consecutivos, cada um desses portos abrigará programas
de educação ambiental, feirinhas de produtos orgânicos e
postos de coleta de lixo reciclável.
Os barcos apanharão os resíduos nos portos e levarão
tudo para três imensos portos-fábricas, os “triportos”, que
serão construídos nos três pontos do Anel Hidroviário onde
ele cruza com outros dois anéis: o Rodoviário e o Ferroviário, ambos em construção.
Cada triporto será equipado com máquinas que trituram
e derretem vidro, compactam e fundem metal, processam
plástico, picotam papel, moem entulho para fazer brita e
agregados, desfiam roupas para tecê-las de novo. Haverá
também tanques com bactérias para decompor matéria
orgânica, produzindo solo para agricultura e gases que gerarão energia para manter as operações. Tudo o que estiver
contaminado por metais pesados ou outros venenos será
compactado para fazer materiais para construção. A nova
São Paulo será erguida reaproveitando lodo e lixo. “Nossa
meta é aterro zero”, diz o arquiteto.
Metade dos 170 quilômetros de extensão do Anel Hidroviário, inclusive o novo canal de 17 quilômetros que ligará a
Billings ao Tietê, atingirá lugares ocupados de maneira precária, com indústrias e casas irregulares. É nessas áreas que Delijaicov propõe construir novos bairros e lagoas cercadas de
parques que terão o rio como eixo estruturador. A prioridade
será assentar os atuais moradores, mas esses espaços irão
misturar moradias populares com prédios de alto padrão, comércio e indústria verde, para que empregados morem perto
de patrões, funcionários morem perto do trabalho, produção
fique perto do consumo, o que diminuirá as necessidades de
deslocamento e, com isso, o trânsito.
A interligação de todos os cursos d’água criará um
sistema de vasos comunicantes, permitindo que a cidade
ALEXANDRE delijaicov
_
As etapas
A equipe do Grupo Metrópole
Fluvial estima que o projeto leve
28 anos para ficar pronto e custe
em torno de R$ 3 bilhões, pouco
mais de R$ 100 milhões por ano
2014
2018
Construção da eclusa que
permitirá a rota Aeroporto de
Guarulhos-Estádio da Copa
2022
Último triporto é construído,
além de outras cem instalações
para reciclagem de resíduos
2018
Primeiro triporto
concluído para
o tratamento de
lixo e entulho
2040
Canal de 17 km é finalizado,
fechando o Anel Hidroviário;
criação de bairros com
novos espaços de lazer
combata enchentes despejando água limpa nas represas.
“Será a retomada do olhar para a água, e a reconstrução do
espaço será consequência”, diz Fernanda Cavallaro, uma
das pesquisadoras do grupo.
Para resumir: de uma tacada só, São Paulo tem a chance
de resolver o trânsito, ressuscitar a indústria da região metropolitana e a agricultura do cinturão verde, sanear seus
rios, acabar com as enchentes, racionalizar seu sistema de
coleta de lixo, criar mais alternativas de transporte público, produzir milhões de toneladas de matéria-prima, criar
moradias, economizar uma fortuna e se tornar uma metrópole fluvial, agradável, capaz de atrair turistas.
quais as gavetas das universidades brasileiras estão cheias.
Ele se diz otimista. “Ao longo da história, gastamos todas
as nossas possibilidades de errar. Agora seremos obrigados
a buscar soluções que nos resgatem, caso contrário São
Paulo será inviável”, diz. O compromisso com o projeto
virá do desespero.
Questiono então se o prazo de 28 anos e o orçamento
de R$ 3 bilhões lhe parecem realistas. “Certamente iremos
rever datas e custos após cada etapa concluída, mas me
parecem números razoáveis.” É o departamento hidroviário de Tércio que vai pagar a conta da primeira fase.
“Depois, nas gestões dos próximos governadores, a ideia
é que o custo seja dividido entre várias secretarias, já que
o impacto da obra se refletirá em muitos aspectos da vida
da região metropolitana.” Tércio duvida que as cidades vão
ajudar a rachar a fatura. “Não acredito em Papai Noel”,
diz. Ele acha muito difícil envolver prefeitos de partidos
diferentes num projeto comum, mesmo que a obra ao final
economize bilhões em saúde, transporte e saneamento e
estimule a economia de todas as cidades.
“Esse não pode ser um projeto de governo, mas sim um
projeto de estado, que dure mais que uma gestão”, afirma
Delija. Não só isso. “Tem que ser um projeto de todos nós:
uma construção conjunta da sociedade.” Ou será que vamos continuar preferindo viver em Marginais paradas, à
beira de canais de esgoto a céu aberto?
“Meu trabalho é pegar essas ideias maravilhosas e colocar
os pés no chão”, diz o engenheiro naval Carlos Padovezi, do
Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), que assim como a
FAU fica localizado no campus da USP, às margens do rio
Pinheiros. O IPT foi contratado em maio pelo departamento
hidroviário de Tércio para detalhar e orçar a primeira fase
do projeto, aquela que termina em 2014 com uma eclusa
construída e, quem sabe, barcos de passageiros para atender
os turistas da Copa do Mundo.
Pergunto a Padovezi se ele acredita que esse projeto vai
mesmo virar realidade, ou vai ser mais uma ideia brilhante
da academia jamais encampada pela gestão pública, das
60
Na região hoje apelidada de Jardim Pantanal, por causa das enchentes
constantes, o plano é construir represas que ajudariam a limpar
a água e, ao redor delas, uma série de bairros com prédios baixos,
comércios no térreo, diversidade social e muito espaço para lazer
61
Por Maria Lucia Rangel, do Rio de Janeiro retrato Beti Niemeyer
aos 42 anos, joão emanuel carneiro escreve a
brasil. “a tv tem
legal,
reto.
lugar se for e
diz o mais jovem
autor do horário
nobre da globo
pelo
eleito
novela avenida
uma coisa muito
que é o voto divocê só ocupa um
leito pelo povo”,
povo
A
história da mulher abandonada
num lixão quando criança vem
tirando o fôlego dos telespectadores e
de João Emanuel Carneiro. Para cada
capítulo da novela das 21 horas da TV
Globo, o autor de Avenida Brasil escreve 19 laudas, num trabalho de domingo
a domingo que lhe consome 12 horas
por dia. A recompensa é o sucesso. “Ele
é o melhor autor de televisão atualmente”, afirma o diretor Daniel Filho.
“Fiz essa leviandade de levá-lo para a
TV e perdi o roteirista de cinema... Ele
faz parte das coisas boas que dei para a
TV e das ruins que fiz para o cinema.”
João Emanuel Carneiro, 42 anos,
começou a escrever profissionalmente
ainda adolescente. Aos 16 anos, roteirizava gibis de Menino Maluquinho e
Pererê para o cartunista Ziraldo. Aos 19,
migrou para o cinema. Dirigiu o curta
Zero a zero, premiado, em 1992, nos festivais de Gramado, Brasília e do Rio. Depois dessa lista de troféus foi chamado
para participar do roteiro de Central do
Brasil (1998). Na sequência, emendou
trabalhos em importantes produções
nacionais. Corroteirizou, entre outros,
Castelo Rá-Tim-Bum (1999), Cronicamente inviável (2000), Deus é brasileiro
(2003) e Redentor (2004).
O talento para contar histórias que
atraíam o olhar do público levou-o à
TV. Daniel Filho convocou João para
colaborar com a autora Maria Adelaide
Amaral na minissérie A muralha (2000).
Um ano depois, repetiu a parceria em
Os Maias. Seu grande salto na televisão
aconteceria em 2004, quando, sob a
supervisão de Silvio de Abreu, redigiu
“o difícil de
trabalhar
com ele
é que,
enquanto
a nossa
cabeça está
a 30, a dele
está a 80”,
diz antonia
pellegrino
o fenômeno Da cor do pecado. A novela
das 19 horas alcançou audiências que
rivalizavam com folhetins das 21 horas,
a faixa nobre. Sua trama bateu recordes
na década passada, com média geral de
43 pontos no Ibope e pico de 58 (o patamar normal do horário não passava de
30 pontos). A proeza foi grande a ponto
de a Globo reunir grupos de espectadores para tentar descobrir a fórmula do
sucesso. A conclusão do estudo: “João
Emanuel sabe explorar relações afetivas
e familiares”. Em 2008, assinou a autoria de A favorita.
DRUMMOND e joão cabral NA SALA
Filho único da antropóloga, poetisa e
crítica de arte Lélia Coelho Frota, falecida em 2010, João Emanuel Carneiro
é culto. Ainda menino, frequentaram
sua casa os poetas Carlos Drummond
de Andrade e João Cabral de Melo
Neto. Leu cedo Henry James e Guima-
64
rães Rosa. Sutilmente, ele demonstra
essa bagagem na tela. Seus personagens aparecem folheando obras de
Kafka, um dos seus escritores favoritos, além de Flaubert e Machado de
Assis. É também um profissional que
marca os colegas pelo ritmo agitado e
pela musculatura cerebral. A escritora
Antonia Pellegrino trabalhou com João
nas novelas Da cor do pecado e Cobras
e lagartos (2006). Conta ter ficado “impressionadíssima” com a capacidade
do amigo de imaginar uma trama no
longo prazo: “O difícil de trabalhar
com ele é que, enquanto a nossa cabeça
está a 30, a dele está a 80, lá na frente.
É um talento espantoso”. A vida de
João Emanuel Carneiro segue esse ritmo. É uma novela acelerada.
Avenida Brasil termina em outubro,
mas Carneiro espera fechar todo o texto
em agosto. Com isso, ele diz, vai poder
voltar a beber cerveja em botecos e subir a serra de Petrópolis, onde constrói
uma casa desenhada pelo arquiteto Miguel Pinto Guimarães. Atualmente, vive
entre dois apartamentos. Um em Ipanema e outro em Copacabana, alugado
recentemente e que serve de escritório.
Ali, João Emanuel convive com o
estresse de assistir à novela diariamente ao lado de um medidor do Ibope. É
um vício. E, embora seja o primeiro a
admitir que isso lhe faz mal ao coração,
não consegue largar. Um pouco como os
mais de 40 milhões de brasileiros que
todos os dias acompanham as tramas
de Avenida Brasil. Revista Personnalité
conversou com João Emanuel Carneiro
em seu apartamento em Ipanema.
o autor da novela das nove, em copacabana, onde trabalha
de domingo a domingo: “é uma rotina enlouquecedora”
65
Quais são as principais lembranças
da sua infância?
Muitas delas são com a minha mãe,
que me criou, com quem viajei desde
pequeno e que me levou para conhecer museus do mundo inteiro. Outra
coisa que guardo na memória sou eu
sozinho, no quarto de brinquedos. Filho único e com uma mãe que mudava
muito de cidade, era difícil fazer amigos. Nasci no Rio de Janeiro, mas aos
3 anos estava em Portugal. Com 6, na
França e, aos 8, em Petrópolis, na serra
fluminense. Uma vida bem nômade.
Durante a adolescência fiquei um bom
tempo no Rio porque minha mãe foi
presidente do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional.
Quando criança, pensava em ser o
que na vida adulta?
Motorista de caminhão ou guarda de
trânsito... Depois pensei em ser papa.
Não sou religioso, mas gostei daquela
imponência que acompanhou João
Paulo II em sua visita ao Brasil [em
1980]. Com 16, 17 anos, fazia roteiro
para o gibi do Menino Maluquinho.
Depois fiz letras na PUC.
Como aconteceu esse encontro com
o Ziraldo?
Cheguei ao Ziraldo por meio de alguém que conhecia alguém na empresa
dele... Fui até lá propor umas histórias,
gostaram e logo fizeram um pequeno
almanaque com coisas que escrevi.
Sua mãe foi uma grande intelectual.
Seus padrinhos eram os pintores
Milton Dacosta e Maria Leontina.
Você gostava de viver nessa roda?
Gostava, gostava... Eu era a criança no
meio dos adultos, um pouco o acompanhante da minha mãe, frequentando
a casa dos meus padrinhos, recebendo
Carlos Drummond de Andrade, João
Cabral de Melo Neto, Burle Marx. Minha
mãe gostava que eu recebesse com ela.
De certa forma, era o maridinho que estava ali. Para mim era fácil enturmar com
esse grupo, mas meu desejo era enturmar
com os garotos da pelada. Era difícil me
sociabilizar. Não convivi com pessoas da
minha idade. Fui filho e neto único morando numa casa grande em Santa Teresa
[bairro no centro do Rio de Janeiro].
_
A carreira nas telas
Cinema
Diretor e roteirista: Zero a zero (1991) e Pão de Açúcar (1994)
Roteirista: Central do Brasil (1998), O primeiro dia (1998), Orfeu (1999), Castelo Rá-Tim-Bum (1999), Bem-vindos ao paraíso
(1999), Cronicamente inviável (2000), A partilha (2001), O
filho predileto (2001), Um crime nobre (2001), Seja o que Deus
quiser! (2002), Deus é brasileiro (2003), Cristina quer casar
tv globo/divulgação / tv globo/divulgação/
gianne carvalho / tv globo/divulgação
Minisséries: A muralha (2000), Os Maias (2001), ambas corroteirizando com Maria Adelaide Amaral, e A cura (2010), em
parceria com Marcos Bernstein.
Novelas: Desejos de mulher (2002, 19h, com Euclydes Marinho), Da cor do pecado (2004, 19h, sob a supervisão de Silvio
de Abreu), Cobras e lagartos (2006, 19h, a primeira como autor
principal), A favorita (2008, 20h, estreia no horário nobre),
Cama de gato (2009, 18h, supervisionando o texto de Duca
Rachid e Thelma Guedes) e Avenida Brasil (2012, 21h).
66
de cima para baixo, jorginho (Cauã Reymond) e nilo (José de
abreu) em avenida brasil; Bárbara (Giovanna antonelli) e
tony (guilherme weber) em da cor do pecado (2004); foguinho
(lázaro ramos) e shirley (elisângela) em cobras e lagartos
tv globo/divulgação/fabrício mota
(2003), A dona da história (2004) e Redentor (2004).
TELEVISÃO
“Quando
criança
pensava
em ser
motorista
de caminhão,
guarda
de trânsito
ou papa”
Como você chegou ao cinema?
O Zero a zero foi uma experiência incrível. Eu não conhecia ninguém no meio,
só o [fotógrafo de cinema] Mário Carneiro, amigo de minha mãe. Mostrei o roteiro, ele adorou e me estimulou a levar o
projeto adiante. Fiz o filme com o dinheiacima, Flora (patrícia pillar), a vilã de a favorita (2008)
67
televisão. Como escritor, ali você é
muito mais senhor da situação do que
como escritor de cinema, em que é um
empregado. Na televisão eu não sou
dono de nada, mas o escritor tem muito mais importância no processo. Não
gosto de ser empregado de ninguém,
de me sentir empregado. Não gosto. E
o roteirista de cinema é um empregado
do diretor.
Você pensa em voltar a fazer alguma
coisa para cinema?
Não penso em nada. Estou muito cansado! É tão exaustivo fazer novela, é
tão desumano! Escrevo com colaboradores, mas concentro muito o trabalho.
Como está sua vida agora?
Minha rotina, de domingo a domingo,
é a seguinte: acordo às 11 horas, escrevo, nado no Copacabana Palace, volto
a escrever até as nove da noite, assisto
à novela, fico um tempinho sem trabalhar... [risos]. Aí, retorno ao computador e escrevo até as três da manhã. É
enlouquecedor.
ro de um carrinho – um Fiat – que vendi.
Minha mãe ajudou um pouco. Custou
US$ 3 mil e recuperei todo o dinheiro. É
a história de duas pessoas conversando
na praia, um garotão e uma garotona.
Mas não mostra a cara dos dois, só partes
do corpo. É a bunda dela falando com
a bunda dele, é muito engraçado e uma
experiência muito fácil de ser feita. Foi
só filmar partes dos corpos e colocar a
voz em off. Ganhou o prêmio de melhor
curta dos festivais de Gramado, Brasília
e do Rio. Nessa época eu achava que iria
ser diretor de cinema.
O convite para ser um dos roteiristas de Central do Brasil surgiu por
joão emanuel deixa o copacabana palace depois
de sua dose diária de natação
conta desses prêmios?
Vários diretores assistiram ao filme
durante esses festivais. Os roteiros
de cinema que fiz são mesmo consequência desse curta. Na década de 90,
fiz 16 roteiros para longas-metragens.
O primeiro foi Central do Brasil, um
filme importante pra mim, escrito em
parceria com Marcos Bernstein. Fiz
também a assistência de direção.
E como foi a passagem para a televisão?
Daniel Filho é o culpado. Em 1999, ele
me levou para fazer a minissérie A
muralha, com Maria Adelaide Amaral.
Descobri de cara que preferia fazer
68
Você é o autor mais jovem deste
horário. É devido aos seus sucessos
anteriores?
Acho que sim. A televisão tem uma
coisa muito legal, que é o voto direto.
Você só ocupa um lugar se for eleito
pelo povo.
Você tem liberdade para escrever o
que quiser?
Tenho liberdade sim. Sempre fiz as histórias que quis. Se não fizer o que gosto,
não vai sair nada que preste. Mas, invadindo a casa de 40 milhões de pessoas
diariamente, tenho que ter certo senso
crítico, um pudor, de não escrever coisas que possam ser ofensivas. Não posso
entrar com palavrão na casa de uma
pessoa de 90 anos.
Como é sua pesquisa para criar personagens?
Uma novela tem 180 horas de ficção.
Então, você usa tudo que viveu, viu, imaginou e leu. A novela nasce de um personagem que chama outro. Tem o que chamo de paciente zero, no caso atual a menina que quer se vingar, a Nina [Débora
Falabella]. Ela quer se vingar de quem?
Da ex-madrasta. As duas são as pacientes
zero. Gosto muito de histórias de vingança. Queria fazer uma heroína de folhetim
que não fosse uma sofredora, mas uma
menina que fosse à luta e fizesse coisas
condenáveis por uma grande causa. Essa
é a ideia central de Avenida Brasil. As
novelas com pessoas na sala de jantar e
suas copeiras são uma imagem do século
passado. A elite perdeu um pouco a capacidade de seduzir o público.
Como foi pesquisar o subúrbio? Esteve lá?
Fui sim. Mas o subúrbio da novela, na
minha cabeça, é todo do Nelson Rodrigues. Fui até lá com pesquisadores da
Globo e conheci muito a elite do subúrbio, donos de motel, donos de shopping, de fábricas de gelo. Queria entender como é o rico do subúrbio. O dono
de motel, por exemplo. O motel é uma
indústria em decadência, ainda mais
no subúrbio, tão liberado sexualmente.
Geralmente seu dono é também dono
de um posto de gasolina. O casal passa
um período no motel e tem direito a
uma troca de óleo... Não usei na novela
porque as pessoas hoje se resolvem em
casa, não precisam de motel.
O fato de estar escrevendo sobre um
mundo que não é o seu é mais fácil
para imaginar, inventar?
Talvez seja mais fácil. O bairro da novela, Divino, é um lugar fabulado, um
universo totalmente ficcional, sem droga nem violência. É meio Disneylândia.
“Escrevo
em silêncio.
Gosto
de jazz,
de ficar
sozinho,
tomar um
uísque
e ouvir
tecno”
Você acha que uma novela precisa
conter crítica social?
Crítica social eu não diria, mas precisa
estar antenada. A novela tem que ter
uma atualidade para ser boa.
Você segue a audiência?
Tenho uma máquina para medir o Ibope
em casa. Assisto aos capítulos com ela.
Um vício maluco que faz mal ao coração.
Em Avenida Brasil, o Tufão apareceu lendo A metamorfose, do Kafka.
É um dos seus livros preferidos?
É. A metamorfose é um deles. E todos
os do Henry James; Grande sertão, do
Guimarães Rosa; tudo da Isak Dinesen
[pseudônimo da dinamarquesa Karen
Blixen], que até tem a ver com a novela... A festa de Babette [conto escrito por
Blixen e publicado no Brasil pela Cosac
Naify na coletânea Anedotas do destino]
69
tem a ver com a Nina. Gosto muito de
romance policial, Dashiell Hammett
[autor de O falcão maltês], Patricia
Highsmith [de O talentoso Ripley].
Você escreve ouvindo música?
Escrevo em silêncio. Gosto de jazz. Também gosto de ficar sozinho, tomar um
uísque e ouvir tecno. Gosto de música
eletrônica, de dançar. Há muito tempo
não vou a boate, mas dou excelentes festas de dança aqui em casa.
O que gosta de ver na TV?
Adoro seriado americano, Mad men, Lost,
Desperate housewives. Os bons escritores
de ficção e os bons roteiristas americanos
foram para a televisão.
E cinema? Quais são seus diretores
preferidos? E que roteiro gostaria de
ter escrito?
Polanski, Woody Allen, Fellini e Ingmar
Bergman. Gostaria de ter escrito Meia
noite em Paris [de Woody Allen].
E autores de novela?
Gosto muito de Gilberto Braga, Glória
Perez e Silvio de Abreu, que foi meu
orientador na primeira novela. Mas
acho que aprendi a escrever diálogos
de televisão com o Gilberto Braga, assistindo às suas novelas.
Você está construindo uma casa em
Petrópolis...
Estou adorando construir uma casa em
Petrópolis. É diferente de qualquer outra
casa. Fica pronta em outubro, no final da
novela. Morei ali quando era moleque
de rua e vou resgatar aquela época. Estou feliz com o sucesso da novela, mas
é uma batalha tão grande que não vou
fazer mais nada quando terminar. Quero
voltar a sair à noite, jantar, tomar cerveja
em bar e cuidar de duas meninas ótimas,
Mimina e Rosinha, minhas cadelas.
Alexandre Delijaicov pergunta:
Quais são
seus
lugares
secos e
molhados preferidos
na cidade?
Ney Matogrosso responde:
Os restaurantes da cidade, só. Em São Paulo, eu gosto de comer fora.
70
71
Por Pedro Alexandre Sanches, do Rio de Janeiro Fotos Marcelo Correa
ney
Palavra de
“Ué, não estão querendo saber da minha vida?
Então, vou falar a verdade.” Aos 70 anos,
Ney Matogrosso abre sua cobertura no Leblon
para receber a Revista Personnalité
Personnalité
ney matogrosso
“O
Você tem falado cada vez mais, com um prazer mais
aparente.
Isso me interessa mais do que aparecer cantando na
televisão. Quero me comunicar via palavra. Sinto essa
necessidade, prefiro ir para a TV falar do que cantar.
“chico
buarque se
expressa
com suas
letras. eu não
tenho essa
capacidade.
tentei, mas sou
muito crítico”
E você fala com mais liberdade, coisas surpreendentes.
São surpreendentes porque são verdades, fazem parte da
minha vida. Hoje em dia talvez tenha mais segurança para
tocar em determinados assuntos. Ué, não estão querendo
saber sobre a minha vida? Então, vou falar a verdade
sobre a minha vida. Nunca fiz média, e as pessoas sempre
reagiram bem, mesmo no tempo em que havia censura.
Havia uma reação muito positiva às poucas coisas que
conseguiam passar. Quando sou claro, explícito, vejo que há
uma mudança na maneira de as pessoas me encararem. Em
vez de torcerem o nariz, as pessoas falam comigo na rua.
Quando me perguntavam se eu era gay, dizia que gostava de
mulher também. Era pior, não aceitavam. A gente tinha que
ser uma coisa ou outra. A única conversa que meu pai teve
comigo a esse respeito foi quando notou um movimento
de mulher na minha vida. Ele me disse: “Isso que você
está fazendo é errado, você tem que se definir”. Tenho que
definir o quê? Eu não sou indefinido. Estou aqui vivendo.
74
de cima para baixo, ney aos 4 anos; aos 13 com o irmão gray,
três anos mais novo: inspirados em james dean; na década de
1960, em brasília, quando trabalhava no setor de anatomia
patológica de um hospital
arquivo pessoal
gato preto cruzou a estrada/ passou por debaixo da
escada/ e lá no fundo azul, na noite da floresta/ a lua
iluminou a dança, a roda, a festa”, cantava Ney Matogrosso,
aos 31 anos, em “O vira”. Ele não sabia então que, quando
fosse um homem de 70 anos, teria Nego, um gato peludo,
entre angorá e vira-lata, preto, de olhos amarelos, passeando
pelos espaços amplos de seu apartamento no Leblon, Rio de
Janeiro, com vista aberta para o oceano, a cidade, a lagoa e a
montanha. Nego está na sala quando Ney me recebe para uma
tarde inteira de conversa. O animal acompanha o movimento
e desaparece em seguida.
Muita água rolou na baía de Guanabara de 1973 para cá.
Ney é diferente e ao mesmo tempo igual ao personagem de
figurino indígena, andrógino, mascarado, agressivo e sedutor
que celebrizou como homem de frente do grupo Secos &
Molhados. É igual e ao mesmo tempo diferente do homem
de voz aguda que chegou para se manifestar na canção “Fala”
(1973): “Eu não sei dizer nada por dizer/ então eu escuto/ (...)
eu só vou falar na hora de falar/ então eu escuto”.
Tudo que a vida me oferecer de agradável eu vou desfrutar.
A mídia achava que eu estava inventando, e os gays diziam
que isso não existia. Então, sou uma invenção, uma
quimera, não existo.
1970) e trabalhava no setor de anatomia patológica de um
hospital. O encontro, porém, se deu na Tijuca, quando Ney
passava férias no Rio. Ele já cantava – e Luhli era a única
pessoa que sabia disso.
Chico Buarque, nome muito importante para você,
segue o caminho oposto: fala cada vez menos.
Sim, mas ele compõe. Ele se expressa de outra maneira, que
eu adoraria poder. A necessidade de expressão dele é suprida
via letras, e eu não tenho essa capacidade. Tentei, mas sou
muito crítico. Fiz duas músicas, gravei no disco Bugre [1986],
mas nunca cantei em show, por excesso de crítica.
Nesse momento ainda não existia o Secos & Molhados?
Não existia nada. Eu já era hippie, fazia meus artesanatos
no quintal de terra da casa deles [Luhli e Luiz Fernando
Borges da Fonseca, fotógrafo de imagens e capas de discos
mitológicas de Ney como a de Água do céu - Pássaro (1975)],
em Santa Teresa. Foi Luhli quem me apresentou ao João
Ricardo. Ele estava montando um trio vocal e não queria
uma mulher, mas não achava um homem de voz aguda.
Veio ao Rio para me conhecer, e eu fui para São Paulo, onde
o Secos & Molhados estourou.
Em outubro de 2011, entrevistei a dupla musical
formada pelas cantoras e compositoras Luhli (coautora
de “O vira” e “Fala”) e Lucina. Elas tiveram importância
crucial na carreira solo de Ney, que interpretou suas “Pedra
de rio” (1975), “Bandolero” (1978), “Napoleão”, “Coração
aprisionado” (ambas de 1980), “Eta nós” (1984), todas
ícones de masculinidade, feminilidade e identidade.
Ney conheceu primeiro Luhli, por uma amiga comum,
quando ele ainda morava em Brasília (até o início dos anos
Como foi a criação de seu figurino?
Sabia que estava criando uma imagem que não era de gente,
de homem, de mulher. Era homem, mulher, bicho, inseto,
índio. Eu botava antenas na testa, bicos e asas de pássaros.
Minha intenção era transitar pela fábula, ser qualquer
coisa, eu queria que cada um me visse da maneira que
75
Personnalité
ney matogrosso
“eu não sou
indefinido.
estou aqui
vivendo. tudo
que a vida me
oferecer de
agradável
eu vou
desfrutar”
quisesse. Hoje em dia, quando assisto a cenas antigas, não
sei como dançava daquele jeito. Não era uma dança, era um
contorcionismo, pescoço pra um lado, ombro pro outro,
perna pro outro, tudo contorcido. Era ali dançando que eu
achava que parecia inseto. Era intuitivo, não era de escola.
Era uma loucura, eu me largava.
arquivo pessoal
Era uma elegância ou algo desengonçado, jovem, que
você usava a seu favor?
Era todo quebrado, mas tinha um desenho. Não era
perdido, não. E tinha a juventude mesmo, ali eu ainda
tinha 30 anos, fogosíssimo.
76
Você andava de tamancos nessa época. Isso insultava
as pessoas?
Em São Paulo, não tinha dinheiro para comprar sapato. Então,
comprei um tamanco de 2 cruzeiros. Eu era artesão, fiz uma
parte de couro em cima, fechada, como todo mundo depois
usou. Era inverno, queria proteger meus pés. Não achava
andrógino, porque quando era criança todos os portugueses
usavam tamancos em seus bares e mercearias. Mas as pessoas
Na página ao lado, ney na cobertura do leblon; acima, ele dá
entrevista nos tempos dos Secos & Molhados. “só usei macacão
em 1973 e 74”; à direita, com figurino do disco bandido (1976)
77
Personnalité
ney matogrosso
“era homem,
mulher,
bicho, inseto,
índio. minha
intenção era
transitar
pela fábula”
me xingavam por isso. Da mesma maneira, me xingaram
nas ruas da Lapa na primeira vez que fui à casa da Luhli de
camiseta regata. Calor de 43 graus no Rio, eu de regata, todo
mundo me xingando. Que gente estúpida é essa? Deviam estar
todos de camiseta regata.
Você elaborou esses episódios todos para transformar a
performance no Secos & Molhados?
Claro. Não era ingênuo. Mas era isso, mostrar o ombro e o
braço? Nada podia. Hoje os mais machos usam sandálias
Havaianas, e eu fui expulso da casa da minha tia porque
cheguei lá de Havaianas. “Saia daqui e nunca mais me volte
com seus pés de fora.” E eu achando que tinham libertado
nossos pés. Sempre fui uma pessoa diferente, porque
admitia que era diferente e que cada um é diferente.
Ney interrompe a entrevista para a sessão de fotos.
Quando volta, traz uma caixa de fotos antigas. Ele as mostra
com júbilo. Lembra o dia da temporada do show O homem
de Neanderthal, em 1975, quando usou uma queixada
de burro para lacerar uma melancia. Cantava “desperta,
América do Sul!”. “Todo mundo pulou no meu pé pra pegar
melancia. Virou um happening. Foi o dia em que meu pai
viu o show”, conta e ri.
O artista possui uma macaca de estimação de 25 anos.
Ela vive numa grande gaiola, num canto da sala, com vista
para o mar. Guincha, incomodada com os flashes que
reproduzem as fotos de seu acervo. Ele conversa com a
macaca, a acalma. A equipe de produção se vai, ele não dá
sinal de desejo de encerrar a entrevista. Permaneço.
_
Dos 34 discos, só dois
são com Secos & Molhados
Ney de Souza Pereira nasceu em 1o de agosto de 1941 em Bela
Vista, cidadezinha sul-mato-grossense que faz fronteira com o
Paraguai. Viveu em Recife, Salvador, Campo Grande, Brasília e São
Paulo até se estabelecer no Rio de Janeiro. Filho de um militar e de
uma dona de casa, foi soldado, enfermeiro, hippie, ator, pintor, artesão e cantor amador. Aos 32 anos, convidado pelo produtor João
Ricardo, assume os vocais do grupo Secos & Molhados. O disco de
estreia do trio, lançado em 1973, marca o nascimento da persona
Em que você acredita?
Acredito no invisível, no que a gente não vê.
Ney Matogrosso. Permaneceu no conjunto até 1974, participando
de apenas dois álbuns. Inicia a carreira solo, interpretando artistas
que vão de Gilberto Gil e Chico Buarque a Rita Lee, Raul Seixas,
E como é o invisível?
Todas as possibilidades do além. Reencarnação, vida em
outros planetas, manifestações de vida em toda a natureza,
seres que para nós são invisíveis. Tudo existe.
Cartola, Pedro Luís e a Parede, Tom Jobim e Villa-Lobos. Ao todo,
lançou 34 discos, entre os mais importantes, figuram Bandido (de
1976 e que traz seu primeiro sucesso longe da banda, “Bandido
corazón”, composto por Rita lee) e Ney Matogrosso (1981, com
a faixa “Homem com H”). Nos bastidores, atuou como diretor,
Qual a sua relação com drogas hoje?
Nenhuma. Usei todas as disponíveis, mas não era tudo
ao mesmo tempo, nem nunca dependi. Sempre foi para
o autoconhecimento. Como vou depender de daime se
quando tomava o copo eu suava gelado de medo?
coreógrafo e iluminador de espetáculos de Nelson Gonçalves, Cazuza, Mart’nália, Nana Caymmi e Simone. Paralelamente, atuou em
filmes como Sonho de valsa (1987), Luz nas trevas (2009) e Gosto
de fel (2011). Neste ano, por conta da celebração de seu 70o aniversário, foi tema do documentário Olho nu, dirigido por Joel Pizzini.
78
79
Personnalité
ney matogrosso
_
Lembranças do amigo
O jornalista Valdir Zwetsch, amigo de Ney há
30 anos, recorda a visita do cantor em 1976
Ney não é bem um ser humano. Pertence a uma natureza que mescla os reinos animal, vegetal e espiritual.
Em 1976, eu e minha então companheira o hospedamos alguns dias em nossa casa, em Florianópolis.
Ney acordava cedo, ia para a praia, sumia. Sempre só.
De longe, ouvíamos os vocalises que fazia na areia,
entre as pedras, só de sunga. Praticamente invisível,
só voz. Foi quando escrevi uma ficção – a gênese dos
Matogrosso, espécie da qual ele é o primeiro e último
exemplar. Fruto da cruza amorosa de um incerto bicho com uma flor amazônica. Um ser quase invisível
– mas exuberante num palco. Pense na história da
cultura brasileira. Tem outro Matogrosso antes? Virá,
será, outro depois? Como homem e como artista, é o
cara das ambiguidades e dos paradoxos. Gosta disso,
porque é da natureza dele. Como gosta de não ser
compositor, mas apenas intérprete – porque essa limitação permite a ele a mais ilimitada liberdade: “Des-
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valdir zwetsch
E Mato Grosso?
Minha relação com o Mato Grosso foi mais na adolescência,
quando ia passar férias na fazenda. Mas agora tudo mudou.
O que era a fazenda do meu avô, uma só, agora são dez.
Surgi de um Centro-Oeste desconhecido, de um enigma. Só
se sabia que lá existiam florestas e índios, não era ainda o
paraíso da soja. O paraíso da soja vai ser a derrota do estado,
porque vai acontecer um cataclismo ali. As florestas que
conheci não existem mais, o cerrado que conheci não existe
mais. Isso não fica impune, a natureza não permite.
arquivo pessoal
Quais são suas primeiras lembranças?
Minha primeira lembrança não é do lugar em que nasci, é da
Bahia. Tinha 3 anos, meu pai foi para a Aeronáutica, moramos
em Recife, depois em Salvador. Veio a Segunda Guerra Mundial, meu pai foi para a Itália. Carregava aviões, não ficava na
frente de batalha, mas é traumático, acho que ninguém que vai
para a guerra volta são. Enquanto isso nós ficamos na Bahia,
morávamos em Amaralina, lembro de uns jabutis gigantes em
que eu sentava, eles ficavam andando comigo. Na minha cabeça aquilo já era uma viagem, sem saber o que era droga.
da esquerda para direita, os integrantes do Secos & Molhados
(1973): Ney, Gerson Conrad e João Ricardo (em pé); E após o fim do
grupo, por volta de 1975, época do disco água do céu – pássaro
fruto tudo de maravilhoso que a música me oferece,
“as florestas
que conheci
não existem
mais. Isso não
fica impune.
a natureza
não permite”
No final da entrevista, com a tarde caindo, direciono a
conversa para a origem de tudo. Seu passado. Ney Matogrosso nasceu em 1941, em Bela Vista, atual Mato Grosso do
Sul, perto da fronteira com o Paraguai. Seu pai era militar.
Apesar de morar há décadas no Rio, Ney representa, como
intérprete, uma música brasileira que vem do interior, das
entranhas, fora do eixo da música litorânea e/ou metropolitana muitas vezes apegada à fórmula mista de samba, bossa
nova, rock’n’roll, MPB.
sem me prender a estilo, a gênero, a nada!”. Assim.
Desprendido, despregado, desbragado. Matogrosso.
A natureza explode pela janela de Ney. O céu e o mar
do Leblon, no entardecer, começam a mudar de cor. Ele a
princípio não percebe que o sol, indo embora, tinge o mar de
cor-de-rosa. Como na letra de Luhli e João Ricardo para “O
vira”, bailam corujas e pirilampos entre os sacis e as fadas,
lá no fundo azul e rosa. Ele fala de discos voadores. Na hora
de ir embora, Nego, o gato preto, ressurge algo desconfiado,
algo curioso. Embora invisível, a sensação é a de que ele
esteve por perto o tempo todo.
81
nesta página, fotos feitas pelo amigo valdir, em florianópolis (1976)
Por Marcus Preto
“Ela era independente
e fazia o que queria”
ELAS
POR
ELAS
82
“Dolores Duran foi uma raladora do
Brasil. Começou a cantar quando criança e, já nessa época, sustentava a família.
Depois, dividiu a mesa de bar, de igual
para igual, com alguns dos maiores compositores da MPB em uma época em que
moças direitas deveriam ficar em casa
depois das dez da noite. Na década de
50, quando o papel das cantoras no rádio
parecia ser destinado à interpretação,
ela era compositora. Tinha parcerias
com ninguém menos do que Tom Jobim.
Todos a admiravam. Até Ella Fitzgerald
era sua fã! Gravou grandes clássicos
americanos e latinos, foi exímia intérprete de boleros e sambas-canção, mas
também circulou por entre os burburinhos da bossa nova.
Uma vez, quando eu tinha uns 16
anos, ouvi o pai de uma amiga tocar uma
música da Dolores no violão. Chamavase ‘O negócio é amar’. Aquilo me impressionou. Aprendi o instrumento quando
o produtor musical Almir Chediak
(1950-2003) lançou vários songbooks,
alguns com repertório da bossa nova.
Num desses livros, tinha essa música.
Era uma das mais difíceis. Me dediquei
a tirá-la até saber de cor. Depois disso,
quis saber mais sobre Dolores, ouvir,
pesquisar, porque – achei curioso – no
livro só havia compositores homens. Ela
era a única mulher.
Para o programa, escolhi um bolero bem rasgado, ‘Solidão’, daqueles de
cabaré enfumaçado, denso, como foi a
vida dela. Depois, pensei que seria legal
mostrar o seu lado bem-humorado. Gravei ‘Manias’, que nem é de sua autoria,
mas a gravação dela é um clássico. Me
identifico com a Dolores. Por causa do
violão que aprendi com suas músicas,
por causa da bossa nova mesclada com
outras coisas, porque gosto da carga
emocional que imprimia nas letras, não
sem senso de humor. E porque ela não
era uma mulher ‘mulherzinha’. Ela era
independente. Fazia o que queria.”
Dolores Duran
Canta para Você
Dançar Nº 1 (1957)
e Dolores Duran
chris valias/divulgação / reprodução
A pedido da Revista Personnalité, Nina Becker,
Mallu Magalhães, Lurdez da Luz e Luisa Maita
criaram pequenas biografias sentimentais de
Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Nara Leão e
Elis Regina. Em setembro, o Canal Brasil exibe
especial em que as cantoras da nova geração
interpretam os ícones da MPB
Dolores Duran (Rio de Janeiro, 19301959) por Nina Becker
Canta para Você
Dançar Nº 2 (1958)
“Tudo que ela sabia
fazer está ali. A tristeza, a alegria, a graça, a
técnica impecável e um repertório maravilhoso.”
83
83
“Ela era uma artista incrível
e, quando queria, catártica”
Elis Regina (Porto Alegre, 1945-1982)
por Luisa Maita
“Eu nasci três meses depois da morte da
Elis, em janeiro de 1982. E, ainda que não
tenha conseguido entender precisamente
em que parte, sei que ela é uma figura
muito importante na minha formação
em geral. Sempre fui atraída pela possibilidade de expressão em cima do palco.
Nisso, a Elis Regina foi a maior. Tecnicamente, era uma artista incrível. Mas,
quando queria, ia além, ficava tomada
por uma interpretação catártica. No começo da minha carreira, eu cantava muitas coisas dela, como o samba ‘É com esse
que eu vou’, do Pedro Caetano, e também
as canções do clássico Elis e Tom (1974).
Quando surgiu o convite para o Cantoras
do Brasil, relembrei esses tempos de ‘É
com esse que eu vou’ e cantei, pela primeira vez, ‘Querelas do Brasil’ (Maurício
Tapajós/Aldir Blanc).
Existe um fator muito emocional na
voz da Elis, do Milton Nascimento, da
Nana Caymmi. Isso me pegou profundamente quando eu era nova. Como tenho
uma grande paixão pela obra do Milton,
também me interesso pelas gravações
que Elis fez das canções dele – ‘Morro
velho’, ‘Cais’, ‘Menino’, ‘O que foi feito de
Vera’, várias obras-primas. Ela sempre foi
a predileta do Milton. Ele costuma dizer
que, desde que a conheceu, escreve suas
músicas para a voz de Elis. Diz que ainda
é assim, mesmo agora que ela já não está
mais por aqui para cantá-las.”
chris valias/divulgação / reprodução
“Sempre fui
atraída pela
possibilidade
de expressão
em cima do
palco. Nisso,
a Elis Regina
foi a maior”
Montreux Jazz
Festival (1982)
“Gosto muito da
versão que ela fez ali
para ‘Na baixa do sapateiro’. Um exemplo
de interpretação.”
Nara Leão (Vitória, 1942-1989)
por Lurdez da Luz
“O jeito de cantar da Nara Leão influenciou grande parte das novas cantoras da
música brasileira – até mais do que elas
possam imaginar. Existe mais de Nara
no que ficou instituído como MPB do
que de cantoras da Era do Rádio, ou até
mesmo do que de Elis Regina. Seu estilo
era mais doce, sem maneirismos.
Percebi que ela é mais do que um
ícone da bossa nova. Era alguém que
transitava por tudo que existia na nossa
música popular, por compositores de
diferentes gerações e diferentes formações. Na verdade, eu não tinha nenhuma relação afetiva com a Nara até mer-
gulhar na sua obra para esse programa.
Nunca tinha ouvido um disco inteiro.
O lance de esse repertório ter passado batido pelos meus ouvidos por tantos
anos tem a ver com a bossa nova. Eu não
dava a mínima pra esse tipo de música.
Ouvia Tom Jobim, mas ele está bem
além de alguma definição. Gostava do
Vinicius de Moraes, principalmente com
o Baden Powell, mas eles não são exatamente bossa-novistas. E a Nara ficou
diretamente associada ao movimento.
Quando recebi o convite, pensei
primeiro em outros nomes. Mas já
tinham sido escolhidos ou os que sugeri eram undergrounds demais, como
Dora Lopes [1922-1983, cantora carioca
descoberta por Ary Barroso e compositora da marchinha ‘Pó de mico’]. O
produtor Mauricio Tagliari, diretor
86
musical do programa, me sugeriu
a Nara. Não aceitei na hora. Tive
medo de não dar conta. Mas passei
a noite ouvindo – o site oficial dela
me ajudou muito. Tem a discografia
completa para escutar. Eu me apaixonei naquela madrugada.
Antes de ouvir sua obra, não sabia
que tinha afinidades com ela. Mas
agora vejo um lance. Ela sofisticava
uma linguagem popular. Por exemplo: criava um arranjo jazzístico para
um samba do Zé Keti. Acho que,
esteticamente, eu faço algo parecido:
trago uma sofisticação para o rap
desde o instrumental até as referências e o vocabulário. Fora tudo isso,
acho lindo o lance de ela cantar sem
simular timbres. Usa, enfim, uma voz
natural. Eu rimo assim também.”
Nara Pede
Passagem (1966)
“é meu favorito
pela escolha de
repertório. Tem
todos os grandes:
Elton Medeiros,
Baden Powell e Vinicius de Moraes, Jards Macalé, Paulinho da Viola e Noel Rosa. A versão
de ‘Ole olá’ é lindíssima. E porque é o mais
chris valias/divulgação / reprodução
“Ela é mais do que um
ícone da bossa nova”
samba mesmo. Tem os arranjos de corda e
coisa e tal, mas tem batuque. Daí, me pega.”
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89
_
Discurso de Nina
Becker em show
dá origem à ideia
“Ao ver a
imagem de
elizeth
cardoso
desejei ser
aquela
mulher”
88
chris valias/divulgação / reprodução
“Ela era a perfeita mistura de
doçura e intensidade”
amor demais, lançado em 1958, trouxe os
dois primeiros registros do violão revoluElizeth Cardoso (Rio de Janeiro, 1920cionário de João Gilberto.
1990) por Mallu Magalhães
Só fui descobrir isso tudo agora,
organizando o repertório para o Can“Hoje em dia, eu vivo no Rio. Mas, quan- toras do Brasil. Escolhi ‘Manhã de Cardo morava em São Paulo, costumava ir
naval’ e ‘Demais’. Antes, eu tinha muito
a um restaurante. Lá, tinha esse atenpouco contato com a música da Divina,
dente, um homem doce e sorridente. Ele como ela era chamada por colegas e
repetia sempre sobre o quão maravilhosa fãs. Agora, eu me identifico imensae suprema era essa tal de Elizeth Cardo- mente com a luz que transparece dessa
so. Aquele encanto dele ao compartilhar pessoa. Ao ouvir sua voz, desejei cansuas emoções com os outros me encanta- tar como ela. Ao ver sua imagem, deseva, me deixava curiosa. Quando vi a pos- jei ser aquela mulher.”
sibilidade de mergulhar e vestir aquela
diva, não pude evitar.
É difícil medir uma contribuição tão
Canção do
basal quanto a que a Elizeth Cardoso deu
Amor Demais
(1958)
à cultura brasileira. Sua voz, seus discos,
“Acho um pouco
sua vida... Ela era a perfeita mistura de
difícil fugir deste
doçura, intensidade e sofrimento. É, ao
clássico. Músicas
mesmo tempo, a dor e a alegria de viver. É
de Tom Jobim,
sentir tudo bem fundo no coração.
Elizeth estava no âmago da criação da letras de Vinicius de Moraes e o violão de
bossa nova. Além de um repertório mara- João Gilberto. Parecia o âmago da bossa
vilhoso composto pela dupla Tom Jobim e nova. Sem predeterminação ou pretensão.
Vinicius de Moraes, seu álbum Canção do Eles eram, de fato, aquilo: geniais.”
Cantoras do Brasil nasceu em um show
de Nina Becker. Em cena, antes de
interpretar “Estrada do Sol”, ela fez
uma breve análise da importância que
Dolores Duran teve para a linha evolutiva da música popular brasileira. A desenvoltura impressionou as jornalistas
Mercedes Tristão e Simone Esmanhotto, além da produtora Mariana Rolim.
O trio, então, convocou a diretora
Simone Elias para levar esse encontro
de épocas à TV. “Queríamos um panorama das cantoras da nova geração
e das cantoras que fizeram história”,
diz a diretora. “Todas elas escolheram
suas divas.” Além de Nina, Mallu, Luisa
e Lurdez, o elenco conta com Roberta
Sá (Carmen Miranda), Camila Pitanga
(Maysa), Blubell (Sylvia Telles), Gaby
Amarantos (Clementina de Jesus), Lulina (Miriam Batucada e Ademilde Fonseca), Mariana Aydar (Clara Nunes),
Tulipa Ruiz (Dalva de Oliveira), Tiê
(Celly Campello) e Andreia Dias (Aracy
de Almeida). Cada uma interpreta
duas músicas e fala sobre sua relação
com a homenageada. No Canal Brasil,
a partir de setembro.
primeira pessoa | beto brant
Por Rosane Queiroz
_
Tripé de proteção
O cineasta Beto Brant produziu três fotos que o
representam e preferiu não se alongar com explicações:
“Sou da imagem – ela fala mais do que palavras”
2
1
1. Brujo Ojo de Dios cajita guarda chamanvenado sagrado agila
fenomeno espejo sagrado vela magica blanca de suerte (artista:
Julio Ortiz Valenzuela); 2. Pacha Papa: “Luzes, Portais do mistério,
Guardiões – Para abrir caminhos”, define brant; 3. São Jorge
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