ney matogrosso alexandre delijaicov zaha hadid
Transcrição
ney matogrosso alexandre delijaicov zaha hadid
Revista do Itaú Personnalité no 19 | julho de 2012 | Ano 5 PERSONNALITÉ ney matogrosso ney matogrosso | alexandre delijaicov | zaha hadid | inácio neves “Tudo que a vida me oferecer de agradável eu vou desfrutar” Alexandre delijaicov zaha hadid inácio neves exemplar distribuído nas agências personnalité EDITORIAL O que faz a vida de cada um ser de uma maneira é a experiência acumulada com a passagem dos anos. Nas diversas bifurcações que surgem no caminho, a decisão do rumo a ser tomado implica a escolha de situações que vamos encarar em nosso cotidiano – momentos ponderáveis e imponderáveis. Compartilhar a experiência vivida pelos personagens reunidos nesta edição provoca um fascínio por nos depararmos com tamanha diversidade de histórias, lembranças e reflexões. Conseguimos entrevistar Zaha Hadid, arquiteta nascida no Iraque, a primeira mulher a ser premiada pelo Pritzker, o Oscar da arquitetura. Mais do que falar sobre suas obras de destaque e da admiração de Niemeyer por seu trabalho, jogamos luz na história de sua família, nas preferências pessoais, nas cidades que mais lhe tocam o coração – enfim, quem é Zaha Hadid. Não menos especial é a entrevista com Ney Matogrosso, que nos recebeu em casa para fazer um retrospecto de suas experiências em 70 anos de vida. Das revelações no bate-papo ao ensaio fotográfico, Ney mostrou na prática por que é um dos nomes mais admirados da MPB. Entre nossos personagens, João Emanuel Carneiro, no alto de seus 42 anos, explica as referências de Avenida Brasil (40 milhões de telespectadores) e dá detalhes de sua rotina, como nadar no Copacabana Palace e assistir aos capítulos da novela com uma máquina do Ibope ao lado. O mineiro Inácio Neves, por sua vez, idealizador do Cinema no Rio, já levou a grande tela para o deleite de 200 mil pessoas, que nunca haviam passado por essa experiência, às margens do rio São Francisco. Original também é a ideia do especial a ser exibido no Canal Brasil: cantoras atuais interpretando clássicos do passado, como Mallu Magalhães dando voz a Elizeth Cardoso. Não perca ainda a reportagem que traz soluções urbanísticas para São Paulo a partir da revitalização dos rios que cortam a cidade. Utopia? Não para o arquiteto Alexandre Delijaicov. Ele tem a fórmula para transformar a vida na metrópole em uma experiência muito mais saudável para todos nós. Um abraço e boa leitura, André Sapoznik Itaú Personnalité croquis da arquiteta zaha hadid, uma das quatro personagens principais desta edição Colaboradores expediente Marcos López e David Torras trabalham juntos em Barcelona há mais de 20 anos na seção esportiva do El Periódico de Catalunya. A dupla assina artigo sobre Pep Guardiola, técnico que deixou o Barça após revolucionar o futebol. “Foi um prazer contar para o país do futebol por que Guardiola é mais do que um símbolo”, diz Marcos. Pupila de Samuel Wainer, a jornalista Maria Lucia Rangel foi editora de cultura da Rede Globo e diretora do programa Mudando de conversa, no Canal Brasil. Nesta edição, entrevistou João Emanuel Carneiro, autor da novela Avenida Brasil. “João é inteligente, rápido e crítico. Adora o que faz, daí fazer bem-feito.” de cima para baixo: arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal “Foi uma entrevista genial”, diz Pedro Alexandre Sanches. O jornalista paranaense assina o bate-papo com Ney Matogrosso. Um dos mais importantes críticos musicais do país, Pedro acumula passagens por Folha de S.Paulo e Carta Capital. É colunista do portal Yahoo e autor de livros sobre o Tropicalismo e a Jovem Guarda. De cima para baixo: arquivo pessoal / Arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal Há sete anos, Zoran Luci trocou a Sérvia por Bijeljina (Bósnia) para estudar arte e dedicarse à ilustração. Aos 30 anos, coleciona clientes como o Financial Times, a British Royal Mail e a Fly Emirates. Nesta edição, ilustra o texto sobre Guardiola. “Ele é um filho de Barcelona e tem muito a provar fora de sua zona de conforto.” Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretora de Criação Adjunta Micheline Alves Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba Diretor de Núcleo Tato Coutinho Diretora de Desenvolvimento de Negócios Adriana Naves Diretor Financeiro Renato B. Zuccari Diretor de Redação Décio Galina Projeto Gráfico e Direção de Arte Elizabeth Slamek Editora de Arte Kiki Tohmé Produtor Executivo Alex Bezerra Assistente de Produção Bruna Serrano Editora Executiva de Conteúdo Digital Eliana Castro Moderador da Fan Page Luiz Henrique Brandão Repórter do Site Fernanda D’Angelo Departamento Comercial Publicidade Diretor de Publicidade Heitor Pontes Diretor de Planejamento e Marketing Publicitário Rogério Rocha Assistente Comercial da Diretoria Bruna Ortega Gerente de Publicidade Mercado Segmentos Claudia Atala Coordenadora Comercial e Atendimento Vanessa Soares Assistente de Mkt Publicitário e Arte Renata Vieira Assistente Comercial Nathalia Rodrigues Gerentes de Contas Flavia Marangoni, Karina Dutra, Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Executivos de Contas Marcelo Milani, Thais Meneghello, Vivian Viviani e Gabriela Llovet Gerente de Contas On-line Marco Guidi Assistente Comercial On-line Sharon Ajzental Tráfego Comercial Leticia Nobre Para Anunciar publicidade@trip. com.br Representantes Internacional Fernando Mariano fmar@ multimediausa.com Argentina Roberto Rajmilevich [email protected]. net BA Romário Júnior DF Alaor Machado MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz Pesquisador Fernando de Almeida Assistente de Biblioteconomia Daniel de Andrade Estagiárias Daniela Almeida e Renata Rodrigues Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtores Gráficos Mariana Pinheiro e Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação) – Adriana Rinaldi, Janaína Mello e Márcia Costa Projetos Especiais e Eventos Diretora Ana Paula Wheba Assistentes Pedro Toledo e Mariana Beulke Editora de Arte Camila Fank Comercial Trade e Circulação Diretora Daniela Basile Analista de Trade Renata Vilar Assistente de Trade Fábio Pinheiro Gerente de Circulação Adriano Birello Assistentes de Circulação Aline Trida e Vanessa Marchetti Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletrônicas de Custom Publishing Beto Macedo Editora de Arte Débora Andreucci Negócios Diretor de Negócios Jan Cabral Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcelo de Vídeo Coordenação Ana Rosa Sardenberg Videomakers Vinicius Nora e Marco Paolielo Editor de Vídeo Pitzan Oliveira Produtora Camila Nunez Estagiário Ivanildo Ferreira Colaboraram nesta edição Edmundo Clairefont (edição), David Torras, Denis Russo, Egeu Laus, Leticia de Castro, Luis Patriani, Marcos López, Marcus Preto, Maria Lucia Rangel, Suzana Camargo, Pedro Alexandre Sanches, Rosane Queiroz e Vivian Sotocórno (texto), Beti Niemeyer, Beto Brant, Chris Valias, Felipe Gombossy, Fernando Martinho, Jacques Delacroix, Marcelo Correa e Nelson Mello (fotos) Ju Russo e Zoran Luci (ilustração) Kika Pereira de Sousa e Drica Cruz (produção) Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Ligia Benavente e Mariana Couto de Arruda Colaboradores Marcello Barcelos, Maria Pestana e Mariana Salles – DPZ Propaganda Capa Ney Matogrosso fotografado por Marcelo Correa Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité. Endereço para Correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767, 05414-012, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] www.tripeditora.com.br A Trip Editora, consciente das questões ambientais e sociais, utiliza papéis Suzano com certificado FSC (Forest Stewardship Council) para impressão deste material. A Certificação FSC garante que uma matéria-prima florestal provenha de um manejo considerado social, ambiental e economicamente adequado. Impresso na Gráfica Log&Print – Certificada na Cadeia de Custódia – FSC Colaboradores Veja e Dufry World estão entre os títulos para os quais Leticia de Castro já colaborou. Aos 35 anos, sete deles na Folha de S.Paulo, Leca assina perfil da iraquiana Zaha Hadid enquanto curte a gravidez do primeiro filho. “A negociação para a entrevista durou mais de um mês, com direito a plantão no hotel onde ela estava.” Denis Russo, 39 anos, tem no currículo uma década como diretor de redação da Superinteressante. O jornalista e escritor já passou um ano como pesquisador convidado da Universidade de Stanford, na Califórnia. Aqui, mergulha nas ideias de Alexandre Delijaicov. “Estou convencido de que a visão dele é a salvação de São Paulo.” Há dez anos, a artista plástica Juliana Russo divide seu tempo entre criações autorais e ilustrações inspiradas no cenário urbano. Com trabalhos publicados na revista espanhola Rojo e na francesa Étapes, a paulistana ilustrou para esta edição a reportagem sobre Delijaicov. “Aprendi muito com essa matéria.” Paulistano da Pompeia, Marcus Preto é repórter da Folha de S.Paulo e curador do site Música de Bolso. Atualmente se dedica à biografia de Tom Zé. Nesta edição, assina a reportagem sobre cantoras que interpretam nomes consagrados do passado. “A ideia era escrever sobre a relação de cada uma com as homenageadas. Mas elas disseram coisas tão íntimas que viraram depoimentos.” sumário 10 Cá entre nós Música, viagem, gastronomia e filmes – dicas de quem sabe viver bem 15 Prestígio MORAES PAI, MORAES FILHO O cantor Moraes Moreira relembra os primeiros passos do filho Davi no palco, quando o menino dava canjas com o cavaquinho em seus shows 16 DESCONSTRUINDO ZAHA 16 54 72 A vida e a obra de Zaha Hadid, a maior arquiteta da atualidade, em entrevista exclusiva: “Sou iraquiana, vivo na Inglaterra, não tenho um lugar particular. Estar deslocado é libertador” 24 POR QUE PAROU? Pep Guardiola entrou para o Barcelona aos 13 anos, foi gandula, jogador, ídolo. Aos 41, esgotado, deixa o clube como o técnico que 32 CASA NA ÁRVORE O sucesso na publicidade já não dizia nada para o francês Alain Laurens. Ele decidiu, então, criar uma empresa para construir cabanas a 10 metros do chão 40 CINEMA MARGINAL O mineiro Inácio Neves percorre o São Francisco levando filmes nacionais a comunidades ribeirinhas. “Ele traz alegria com o cinema. A TV é só desgraça”, diz Manoel dos Santos, 73 anos 48 O PAPEL DA CANA Dono de uma coleção de 2.700 rótulos de cachaça, o designer e pesquisador Egeu Laus fez uma seleção para a Revista Personnalité: “Eles engarrafam a beleza e a riqueza da cultura brasileira” 40 fernando martinho / marcelo correa / Felipe Gombossy / marcelo correa reinventou o jeito de jogar futebol 54 RIOS DE OPORTUNIDADE 72 PALAVRA DE NEY Como a equipe do arquiteto Alexandre Delijaicov pretende fazer “Ué, não estão querendo saber da minha vida? Então, vou falar dos rios de São Paulo a solução para o trânsito, a poluição, o a verdade.” Aos 70 anos, Ney Matogrosso abre sua cobertura no saneamento público e a habitação da metrópole Leblon para receber a Revista Personnalité 62 eleito pelo povo 82 ELAS POR ELAS Aos 42 anos, João Emanuel Carneiro escreve a novela Avenida Brasil. Nina Becker, Mallu Magalhães, Lurdez da Luz e Luisa Maita “A TV tem uma coisa muito legal, que é o voto direto. Você só ocupa criam pequenas biografias sentimentais de Dolores Duran, um lugar se for eleito pelo povo”, diz o jovem autor Elizeth Cardoso, Nara Leão e Elis Regina 90 Primeira Pessoa O cineasta Beto Brant produziu três fotos que o representam e preferiu não se alongar com explicações: “Sou da imagem – ela fala mais do que palavras” cá entre nós cá entre nós viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências | Por Rosane Queiroz _ Marin Alsop, maestrina o filme da minha vida _objetos de desejo André Diniz, galerista Um clássico dos anos 50, estrelado por Marlon Brando, e uma obra-prima de Charles Chaplin regem o gosto cinematográfico da regente da Osesp A galeria virtual Urban Arts ganhou um espaço físico nos Jardins. Ali, André Diniz ocupa a mesa cercada por obras dos seus artistas preferidos A nova-iorquina Marin Alsop, 55 anos, é a mais importante maestrina da atualidade. O carimbo foi confirmado em 2005, quando recebeu o prestigiado prêmio MacArthur Fellowship por “contribuições espetaculares à criatividade”. Em março, Marin assumiu a batuta da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), a principal do país. Formada em violino, a regente é pop a ponto de ter sido convidada pela Apple para criar um podcast gratuito no iTunes, o Clueless About Classical. Trama fatal Em Sindicato de ladrões (1954), drama dirigido por Elia Kazan, Terry Malloy (Marlon Brando) é um boxeador decadente usado por sindicalistas para atrair à morte um jovem trabalhador do cais do porto. O filme venceu oito Oscars, incluindo melhor filme, diretor e ator. Superpop “Este calendário foi um presente da ilustradora Nice Lopes. Gostei tanto que deixei aí.” Viva México! “A paulistana Saramelo é aficionada pela Frida Kahlo. Este quadro é de uma série independente e ficou bacana neste canto.” Mil cores “A escala de pantone fica à disposição para ajudar o cliente a escolher a cor da moldura. Ultimamente as cores mais pedidas são vermelho, lilás e preto.” Como dois e dois “Tenho sempre por perto uma máquina para calcular o preço das obras. Para mim, basta ter as funções principais.” 10 Abstração “Esta obra é do paulistano Marcelo Massis. Suas telas estão sempre em destaque. Costumo brincar que ele é o nosso Jackson Pollock – pintor americano, ícone do expressionismo abstrato.” nelson mello Rei “O peruano Cherman é um artista de street art que gosta de brincar com fotos de pessoas em serigrafias. Ele brinca com personagens como Roberto Carlos, Albert Einstein e Salvador Dalí.” divulgação / EVERETT COLLECTION/KEYSTOCK / Latinstock Album / Latinstock Album / EVERETT COLLECTION/GRUPO KEYSTONE O Chaplin favorito Luzes da cidade (1931), dirigido e estrelado por Charles Chaplin, conta a história de um vagabundo que se apaixona por uma florista cega (Virginia Cherrill) e se passa por rico para conquistar a moça. A comédia encanta Marin Alsop. “Já vi este filme muitas vezes”, diz. “Nunca deixo de me surpreender. A cada vez percebo novas sutilezas.” A trilha favorita Carlitos compositor A regente destaca as músicas que embalam o clássico do cinema mudo. “A trilha sonora foi composta pelo próprio Chaplin”, conta. “Ele escreveu, produziu, musicou, dirigiu, estrelou e distribuiu seus próprios filmes!” Aluna de Leonard Bernstein (1918-1990), Marin destaca a trilha sonora de Sindicato de ladrões, composta por seu tutor, como um de seus momentos favoritos no cinema. “Este filme trouxe nova vida a Nova York. Percebi o quanto a música pode capturar e motivar uma narrativa”, diz. 11 cá entre nós cá entre nós _trilha sonora Marcelo Jeneci, músico _ DANIELLE DAHOUI, chef Água na Boca Um dos destaques do cenário musical brasileiro, Jeneci escolhe nove músicas que sintetizam sua história de referências fundamentais À frente do Ruella Caffé & Bistrô, a restauratrice é uma pesquisadora de sabores: sua culinária mistura ingredientes asiáticos a receitas da região da Provença por Fernanda D’Angelo Desde que estreou com o álbum Feito pra acabar, em 2010, o cantor, compositor e multi-instrumentista já emprestou seu talento para artistas como Marcelo Camelo, Vanessa da Mata, Arnaldo Antunes e Leonardo. O ecletismo é evidente quando ele aponta suas canções favoritas. 9 PAVLOVA DE FRAMBOESA 7 Ingredientes do suspiro (12 porções de 35 g cada) 200 g de claras 5 ml de essência de amêndoas 400 g de açúcar 2 1 6 3 5 4 4. “Wave”, Tom Jobim Aos 13, deparei com a obra de Tom. “Wave”, “Dindi”, “Modinha”, “Chovendo na roseira” e tantas outras canções começaram a fazer parte da minha vida, trazendo uma vontade de me dedicar seriamente à música. 5. Tema do filme Titanic, James Horner Hahaha! Momento brega! Foi a música que embalou o drama e as delícias do meu primeiro romance. Choraaaaaava quando a ouvia ao cruzar o oceano pela primeira vez a trabalho. Devia ter uns 17 anos. 6. “De onde vem a calma”, Marcelo Camelo Marcou a chegada do Los Hermanos para mim. Comecei a intuir um caminho à minha frente e até comprei uma guitarra. Acho que tinha 25. 12 7. “Não tenho medo da morte”, Gilberto Gil Aos 27, já no processo de composição do Feito pra acabar, ouvi esta música primorosa do Gil. Percebi que o que queria fazer na vida era perseguir de maneira simples e profunda os versos e as melodias que sintetizam os sentimentos inevitáveis. 8. “Feito pra Acabar”, Marcelo Jeneci, Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves Desculpem por citar uma música minha... É que esta não pode ser ignorada. Além do significado da convivência com Zé Wisnik e Paulo Neves, é a canção que dá nome ao meu “primeiro capítulo”. 9. “Rotina”, Roberto Carlos Hoje, depois de ter conhecido pessoalmente Roberto Carlos, montei um show em sua homenagem. E descobri esta faixa linda. Muito do que persigo na música surgiu na infância e vem se unindo a novas descobertas. Pelo jeito, Roberto e Erasmo continuarão amarrando muito bem a minha história. O Ruella Caffé & Bistrô faz parte do Menu Personnalité: www.itaupersonnalite.com.br/ experiencia > Gastronomia > Experiências Exclusivas > Menu Personnalité nelson mello 2. “Carruagens de fogo”, Vangelis Quando a ouço, sinto sinestesia. Me lembra o cheiro da casa onde nasci. Eu tocava esta canção na entrada das noivas durante os casamentos realizados na igreja onde minha mãe me levava. Devia ter uns 7 ou 8 anos. 3. “O portão”, Roberto Carlos Ainda com 7 ou 8, meus avós paternos voltaram ao agreste pernambucano. Esta música, como tantas de Roberto, alimentavam a saudade e o amor na nossa casa. 8 divulgação/Daryan Dornelles / reprodução 1. “Linha do horizonte”, Azimüth Meu pai adorava esta música do trio carioca formado nos anos 1970. Foi a primeira melodia que aprendi a tocar. Eu tinha 5 anos. Danielle Dahoui, 43 anos, nasceu em Recife e cresceu no Rio de Janeiro. Aos 22 anos, foi a Paris estudar fotografia de cinema. O trabalho de ajudante de cozinha, porém, despertou os seus olhos para a gastronomia. Na volta, decidiu abrir em São Paulo o bistrô Ruella. No ano passado, ampliou os negócios e inaugurou o Ruella Caffé & Bistrô, em Pinheiros. O cardápio traz receitas autorais inspiradas na Ásia e na Provença. O confit de pato ao molho roisin e o salmão ao molho missô são duas de suas marcas. Ruella Caffé & Bistrô R. Vupabussu, 199. Tel.: (11) 3097-9257 1. O QUE DÁ ÁGUA NA BOCA? A lasanha da minha avó e cassoulet [espécie de feijoada francesa com favas brancas e carne de pato]. 2. SEU TEMPERO ESSENCIAL. Gengibre: o ingrediente está em nosso chá, em alguns pratos salgados e sobremesas. 3. O QUE A COZINHA ENSINA PARA A VIDA? Foco, organização, amor à profissão e capricho. 4. TRÊS RESTAURANTES PREDILETOS NA FRANÇA. O L’Atelier de Joël Robuchon [com unidades em Mônaco e Paris]. Outro de que gosto é o Les Cocottes [em Paris, nas cercanias da Torre Eiffel], com seus pratos servidos em minicaçarolas. Na Île de Saint Louis, tem o L’Ilot Vache. O nome quer dizer “a ilha da vaca”, animal que inspirou a decoração do local: bistrô baratinho e com pratos deliciosos. 5. O QUE GOSTA DE COMER NO INVERNO? Receitas quentes que tragam conforto: risoto e sopas, além de doces, é claro. 6. SEU DOCE PREDILETO. Brigadeiro e bolo de cenoura da vovó. 7. UMA CULINÁRIA DESCOMPLICADA É... Perfeita! A minha culinária é prática, mas não deixa de ganhar no sabor e na qualidade. 13 Modo de preparo Misturar as claras e o açúcar em fogo baixo. Bater até ficar firme. Acrescentar a essência e mexer. Em um saco de confeitar, com o bico perlê médio, fazer as pavlovas em formato redondo sobre assadeira forrada com silpat. Levar ao forno a 100 oC com a porta entreaberta até que desgrudem do silpat, mas ainda estejam branquinhos. Calda de frutas vermelhas 125 g de morango 125 g de framboesa 125 g de amora 75 g de mirtilo 75 g de açúcar 40 ml de conhaque Castanhas-de-caju Modo de preparo Derreter o açúcar até virar caramelo. Acrescentar 500 ml de água e misturar até o caramelo dissolver. Incluir as frutas inteiras e levar ao fogo médio. Mexer até o ponto de calda. Finalizar com conhaque. Para montar a receita: coloque no centro do prato a pavlova aberta. Rechear com chantilly, sorvete de framboesa e decorar em volta com a calda e castanhas-de-caju salgadas. Prestígio | Moraes Moreira cá entre nós Por Rosane Queiroz _sonhos J. R. Duran, fotógrafo Viajante experimentado, Duran usa a mesma mala há 22 anos. Fã da África, destaca a Eritreia e mira o Iêmen como próximo destino Eritreia, 2010 jornada inesquecível “O período em que vivi em Nova York [1989 a 1994], fotografando para revistas do mundo todo, foi dos mais ricos em termos de viagens. Posso dizer que arrumei a mala 120 vezes em dois anos. Nos últimos tempos, duas jornadas inesquecíveis ao nordeste africano: em 2005, para a Etiópia, que gerou o livro Cadernos etíopes [Cosac Naify]; e, em 2010, para Eritreia. Fui lá para seguir os rastros de Corto Maltese e de seu criador, Hugo Pratt [1927-1995], dois de meus personagens favoritos de ficção e da realidade. Foram momentos intensos, arriscados, que marcaram minha retina para sempre.” _ Moraes pai, Moraes filho “Viajo com a mesma Prada, dessas de nylon, há 22 anos. Já fui para a África, para o frio, para a praia, para o mundo todo, e ela continua resistindo. Levo o mínimo nas viagens. Tenho pouquíssima roupa: quatro calças – duas para o verão, duas para o inverno. Compro quase nada, mas peças de qualidade. Não me desfaço das roupas: elas é que vão se desfazendo de mim!” Iêmen próxima parada “Em uma loja de Asmara, capital da Eritreia, encontrei um catálogo que listava tarifas a serem pagas em uma viagem pelo Iêmen [país berço da família de Bin Laden]. Ali, estavam incluídos até os valores para contratar escolta armada... O Iêmen me encanta por ser um desses lugares em que a fronteira entre passado e presente está diluída de tal forma que nunca se sabe em que século você está. Até hoje guardo esse catálogo sobre a minha mesa do escritório.” 14 arquivo pessoal _ A inseparável mala arquivo pessoal j. r. duran / iêmen: caio vilela / zeca de sousa Moraes Moreira relembra os primeiros passos do filho Davi no palco, quando o menino dava canjas com cavaquinho em seus shows A parceria musical da foto acima é uma das mais longevas e íntimas da MPB. Ela dura mais de 30 anos e acaba de ganhar um novo capítulo com o disco A revolta dos ritmos. O primeiro álbum de inéditas de Moraes Moreira em sete anos conta com guitarras, cavaquinho e arranjos de seu filho Davi Moraes. “Com 7 anos, o Davi subiu ao palco do antigo teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, imitando os músicos”, conta Moreira. “Pouco tempo depois, ele passou a fazer parte dos meus shows, tocando cavaquinho em alguns números.” O baiano de Ituaçu não lembra exatamente onde a foto acima foi feita. Mas elege o retrato pela “emoção de proporcionar a meu filho as condições para que desenvolvesse sua aptidão”. Davi Moraes nasceu em plena atividade dos Novos Baianos, em 1973, quando a banda morava em seu famoso sítio em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro – o mítico Cantinho do Vovô, onde os músicos criaram uma comunidade alternativa, em pleno regime militar. “Ainda bebê, quando estava chorando, colocávamos Davi perto de onde aconteciam os ensaios da banda”, diz Moreira. “Ele ficava tranquilo, até dormia. Percebi ali que o menino gostava de música.” Hoje, aos 39 anos, é um dos guitarristas e arranjadores mais disputados por artistas do primeiro time. Tocou com Caetano Veloso, Bebel Gilberto, Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Vanessa 15 da Mata, Marisa Monte e Ivete Sangalo (com as duas últimas, foi casado). O disco em família traz 13 canções. A ideia inicial era montar um repertório só de sambas. “Aí entrei na viagem de que os outros ritmos começariam a reclamar”, diz Moraes Moreira, prestes a completar 65 anos. A inspiração deu na letra: “Eu quis fazer um disco só de samba/ Mas o baião ficou tão enciumado/ E foi aí que eu disse assim, caramba/ Como é que eu resolvo esse babado?”. O baiano resolveu com variedade. O CD oferece frevo, rojão, caboclinho, xote, bossa nova, bolero e valsa. “O sucesso dessa parceria é o grande amor e a amizade que rola entre nós”, diz Moraes pai, com a bênção de Moraes filho. Por Leticia de Castro Foto Marcelo Correa (DES) CONSTRUINDO ZAHA A vida e a obra de Zaha Hadid, a maior arquiteta da atualidade, em entrevista exclusiva: “Sou iraquiana, vivo na Inglaterra, não tenho um lugar particular. Estar deslocado é uma experiência libertadora” Ao lado, Foto feita pela missão Mars reconnaissance orbiter em agosto de 2008 mostra a cratera hale, no sul de marte; ramon de paula, na nasa, em washington Personnalité H Zaha hadid “me apaixonei por istambul. você nunca sabe o que esperar na próxima esquina” á 20 anos, uma iraquiana apareceu no escritório do arquiteto Oscar Niemeyer, no Rio. Trazia um encadernado com imagens de seus iniciantes trabalhos. Passaram horas conversando. Ao final, quando a mulher se despediu, Niemeyer, observando o livro, comentou com um colega no escritório: “Muito interessante o trabalho dela... Mas não entendi se é escultora, se é do ramo da moda ou se é arquiteta”. A iraquiana em questão é hoje a cultuada arquiteta Zaha Hadid, 61 anos. O episódio ilustra muito bem o tipo de estranhamento que suas criações provocam. O esquisito e multiforme Centro Aquático de Londres, que abrigará disputas por medalhas nos Jogos Olímpicos, tem a sua assinatura. Nascida em 1950, em Bagdá, Zaha é discípula do holandês Rem Koolhaas, seu ex-professor na Architectural Association, em Londres, e tido como um dos homens mais importantes do mundo pela revista Time. Herdeira da tradição estética das vanguardas russas, ela desenvolve um estilo conceitual e abstrato. Usa materiais como aço, concreto e vidro para criar formas futuristas e assimétricas, com linhas fluidas e espaços integrados. São construções que embaralham os limites entre arquitetura e artes plásticas. A ousadia, aliada ao alto custo de execução, relegou os projetos ao papel por muito tempo: nos primeiros 15 anos de vida, seu escritório ganhou prêmios, mas executou poucas ideias. Foi a partir dos anos 90, com o uso das novas tecnologias de computação, que a sorte mudou. Esses recursos tornaram possível a realização de muitas de suas ideias. Zaha virou definitivamente o jogo em 2004, quando se tornou a primeira mulher a receber o prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura dado pelo conjunto da obra. Hoje, sua empresa, fundada em 1979, tem mais de 300 funcionários, 34 obras assinadas ao redor do mundo e mais 41 em fase de projeto ou construção. Se em sua primeira visita à capital fluminense, 20 anos atrás, a iraquiana passou incólume, este ano a situação foi bem diferente. Ela retornou à cidade em março, para participar do congresso Arq.Futuro. Chegou com status de celebridade: Centro Aquático Olímpico Londres, Inglaterra (2011) A senhora disse que o fato de ser iraquiana e mulher influenciou muito o seu trabalho. Como? Sou árabe, mas não fui educada de forma tradicional. Nesse sentido, não sou uma mulher comum. Sou iraquiana, vivo em Londres. Não tenho um lugar particular e acho que pessoas em situações como essa precisam se reinventar ou inventar seu próprio mundo. Estar deslocado é uma experiência libertadora e criativa. Também sou mulher, o que geralmente representa enormes obstáculos na vida profissional, principalmente no Reino Unido. Você não pode imaginar a enorme resistência que tive – e ainda tenho – de encarar simplesmente por ser árabe. Hoje você vê com mais frequência arquitetas estabelecidas e respeitadas. Isso não significa que seja fácil. Na prática, sigo sentindo alguma resistência, mas isso mantém o meu foco. As pessoas não me dizem “sim” o tempo todo. Ainda é uma luta. falou para plateias lotadas, distribuiu autógrafos e tirou fotos com admiradores. Atendeu os fãs com gentileza e um terno sorriso – que desaparecia no exato minuto em que o interlocutor virava as costas. Não circulou desacompanhada. Zaha trouxe dois assessores e o sócio, Patrik Schumacher, que a escoltaram em reuniões com o prefeito Eduardo Paes e uma construtora – eles negociam uma obra da arquiteta para o Rio. O sucesso trouxe fama, contratos, mas não trouxe unanimidade – algo bem parecido com o que acontece com Niemeyer, que desenhou a cidade mais feia ou a mais interessante do mundo, a depender dos olhos que miram Brasília. “Ela tem a sua importância, mas acho que faz um trabalho um tanto aleatório, muito dependente da computação”, diz o arquiteto Guilherme Wisnik. “O fato de ser uma mulher que conquistou tanto espaço é, por si só, fundamental. Abriu espaço para uma nova geração de arquitetas”, afirma Ciro Pirondi, que trabalhou no escritório de Niemeyer. Já a crítica americana Karen Stein defende que Zaha ajudou a redefinir a arquitetura contemporânea. “Como seus mestres russos, seu trabalho não aceita restrições e rejeita convenções em prol das possibilidades das técnicas contemporâneas”, diz. “Para ela, o espaço nunca é estático, é algo que se move através das formas fixas e planas, de dentro para fora.” A seguir, trechos da entrevista com Zaha Hadid. A geometria fluida da água em movimento inspirou o Alguns artigos se referem à senhora como “uma diva”, “uma pessoa difícil”. Como se sente? Acho incrivelmente frustrante, mas não me importo. Todas as coisas negativas de que fui chamada, tento encarar de uma forma positiva. O mundo profissional é muito difícil para as mulheres. Se um homem impõe suas opiniões, ele é tido como poderoso. Quando uma mulher defende seu ponto de vista nos negócios, é considerada “difícil”, “diva”. Riverside Museum Glasgow, Escócia (2011) desenho do Centro Aquático de Londres. O teto se pro- À beira do rio Clyde, a obra guarda peças que contam jeta como se fosse uma onda, envolvendo o conjunto de a história do transporte e da tecnologia na urbe e faz a piscinas. Planejado a partir de um eixo ortogonal perpen- ligação entre o canal fluvial e a cidade, por isso é aberta dicular à ponte Stratford City, tem capacidade para 2.500 nas duas extremidades. O telhado irregular assume formas espectadores, mas durante os Jogos Olímpicos duas ar- pontudas e retas na fachada, e o interior é cheio de curvas quibancadas em extensões laterais vão abrir espaço para que facilitam o trânsito e a observação do acervo. 18 no alto, mars phoenix (2008), missão que analisou amostras do solo e ar; ramon com a phoenix; na página ao lado, o jipe curiosity que deve pousar em marte em agosto; foto feita por câmera da mars odyssey (2001) divulgação/huffon+crow photographers Michael Steele/Getty Images mais 17.500 visitantes. 19 Personnalité Zaha hadid Edifício central da Fábrica da BMW Leipzig, Alemanha (2005) A senhora não se casou nem teve filhos. A carreira sempre foi uma prioridade na sua vida? Nunca tomei a decisão de priorizar um aspecto da minha vida. Arquitetura é uma profissão difícil. Todo arquiteto com quem falo, não importa quão bem-sucedido, mulher ou homem, concorda. Não é fácil. Exige foco constante, comprometimento e colaboração. Não temos o luxo de trabalhar com uma rotina. Com projetos em locais tão distantes quanto China, Europa, África e Estados Unidos, trabalho em diferentes fusos horários. Mas fiz o possível para não negligenciar amigos e família. Acredito no trabalho árduo, ele dá confiança a você. Trabalhar sob pressão pode oferecer ótimos resultados, mas é preciso cuidado para não desprezar a vida pessoal. O que gosta de fazer quando não está trabalhando? Relaxo ouvindo música. Gosto de assistir a espetáculos de A orientação da companhia era que o projeto facilitasse dança contemporânea. Adoraria dar uma grande pausa no trabalho, mas o pessoal no escritório não deixa. Eles sempre encontram algo para me dizer ao telefone, geralmente às duas da manhã... Também amo moda. Sempre admirei designers que se arriscam a reinterpretar tecidos e proporções. Sigo os japoneses Issey Miyake e Yohji Yamamoto. A moda traduz o espírito do dia, do momento, como a música, a arte e a literatura. a comunicação entre executivos e trabalhadores da fábrica. Zaha criou um prédio com três espaços principais, onde os automóveis são produzidos. Do amplo átrio, é possível ver todos os ambientes de trabalho, que não possuem separação integrados. Os carros em fase de acabamento passam em esteiras transportadoras em frente às mesas de escritório. E quem são os seus artistas favoritos? Algum deles influenciou o seu trabalho? Essa é uma pergunta interessante porque me interesso pela forma como o movimento afeta a arquitetura. Como em um filme, vemos o mundo de perspectivas diferentes, nunca de um único ponto de vista. Nossa percepção não é fixa. Essa movimentação pelo espaço é muito importante para todas as Vitra Fire Station Weil am Rheim, Alemanha (1993) Primeiro grande projeto executado pelo escritório de Zaha, a construção serviu de sede do corpo de bombeiros da Vitras, fábrica de móveis assinados por designers. Longo e estreito, o prédio de concreto armado é composto de Lois & Richard Rosenthal Center camadas de paredes inclinadas e angulosas, que criam um for Contemporary Art Cincinnati, EUA (2005) espaço dinâmico. A ideia, segundo a arquiteta, era exprimir O museu não possui acervo permanente, mas promove a tensão do estado de alarme inerente ao ofício do bom- construções, principalmente a de prédios públicos e culturais, porque tem a ver com ação, tempo e relacionamentos que se dão ali. Os trabalhos de Ridley Scott, Pedro Almodóvar e Steve McQueen [o diretor de Shame] exploram isso. [Os artistas plásticos] Anish Kapoor e Richard Serra são intuitivos e provocativos, sempre relevantes. exposições itinerantes de arte contemporânea, instalações e performances. Por isso, o projeto privilegia espaços adaptáveis e mutáveis. Aqui, a integração de interior e exterior, tão cara ao ideal modernista de arquitetura, está presente: no térreo, a calçada avança para dentro do lobby, formando uma espécie de “tapete urbano”, convidando beiro. Hoje, o espaço abriga um museu. Quais são as memórias de sua infância no Iraque? Já faz mais de 40 anos que não vivo no mundo árabe. Mas nunca vou me esquecer das professoras que ensinavam ciências na escola de freiras que frequentei. Elas eram todas universitárias, e o nível das aulas era incrível. A diretora, que era freira, foi uma espécie de pioneira em educação feminina naquela parte do mundo. Éramos todas garotas de diferentes religiões. Não tínhamos ideia do que isso significava. Também foram marcantes os piqueniques que fazia com minha família nas antigas cidades sumérias [ao logo do rio Eufrates, onde hoje está a fronteira do Iraque com a Síria]. Eu via árvores e rios que estavam lá havia 10 mil anos. Aquilo me passava uma sensação reconfortante de eternidade. Havia uma fluidez entre a terra, a água e a natureza que incorporava os prédios e as pessoas. Acho que estou sempre tentando capturar essa fluidez em um contexto urbano arquitetônico. 20 divulgação/werner huthmadres / divulgação/helene binet divulgação/paul warchol / divulgação/roland halbe quem anda na rua a visitar o museu. A senhora tem uma cidade favorita? Não consigo escolher só uma. Um dos lugares que mais gosto de visitar é Istambul, pela mistura de Ocidente e Oriente. Me apaixonei pela complexidade da cidade, você nunca sabe o que esperar na próxima esquina. Ela tem ricas camadas, é cheia de tesouros inesperados. E tudo isso em uma belíssima paisagem cortada pelo estreito do Bósforo. Londres sempre encorajou e acolheu a experimentação. A cidade inspira projetos imprevisíveis de arquitetura, arte, design e moda. Com seu ritmo e energia, o Rio é absolutamente de tirar o fôlego. A cidade é abençoada com sua topografia lindíssima. Em nenhum outro lugar do mundo a ideia de “selva urbana” é tão natural. E, como todos os brasileiros, a generosidade e a simpatia dos cariocas é muito acolhedora. 21 Personnalité Zaha hadid Guanghzou Opera House Guanghzou, China (2010) Construída no Zhujiang Boulevard, no centro cultural da cidade, à beira do rio Pearl, a obra tem dois edifícios com formatos irregulares e arredondados, que lembram as pedras nas margens do rio. No primeiro e maior está o teatro com 1.800 lugares; no segundo, um auditório para 400 pessoas e salas de ensaio. Na concorrência para escolher o projeto, Zaha venceu seu antigo professor e mentor Rem Koolhaas. Maxxi Roma, Itália (2009) Primeiro museu italiano dedicado à arte contemporânea, está localizado no bairro residencial de Flaminio, em meio aos prédios antigos da cidade. Sem fachada, frente ou fundos, é feito de concreto, ferro e vidro. Os três pavimentos são compostos de ambientes múltiplos, divididos por paredes que se cruzam. “Por fora, me agride um pouco por destoar muito da paisagem do entorno. Mas o interior tem uma força gráfica, uma qualidade espacial, que é sedutora ênfase na arquitetura. Acho que as ideias de mudança e liberdade foram fundamentais para o meu desenvolvimento como arquiteta. Meu pai acreditava na criação de um futuro melhor para o Iraque, com melhores relações com o resto do mundo. Em Bagdá, arquitetos modernistas como Frank Lloyd Wright [1867-1959] e Gio Ponti [1891-1979] desenhavam prédios. 22 divulgação/bernard touillon divulgação/huffon+crow photographers e muito interessante”, diz o arquiteto Ciro Pirondi. Seu pai foi um político importante no Iraque. Que tipo de influência ele teve na sua vida? Eu era muito próxima dos meus pais. Me deram uma criação moderna, secular. Meu pai estudou na London School of Economics num momento incrível de mudanças sociais. Quando voltou ao Iraque, antes que eu nascesse, havia o chamado grupo de Beirute, cujos integrantes formaram a base do que seria o Partido Democrático iraquiano. Meu pai fez parte disso. A senhora se envolve com a política atualmente? Me interesso pelo assunto. Construções para moradia, educação e saúde são muito importantes, têm um enorme impacto na vida das pessoas. O projeto da Evelyn Grace Academy [escola de ensino médio no bairro de Brixton, em Londres, cujo projeto é assinado por Zaha] tem sido muito recompensador. Está sendo construído em uma área decadente do sul da cidade, com as mais altas taxas de crimes violentos e relacionados a gangues na Europa ocidental. A escola oferece ensino de alta qualidade. Não é apropriado, nos dias de hoje, não ter consciência social. E como era o clima em Bagdá nessa época? Como em vários lugares do mundo em desenvolvimento, havia uma crença inabalável no progresso, um grande otimismo. Os anos 60 foram um momento de construção da nação, com 23 Por Marcos Lopez e David Torras, de Barcelona Ilustrações Zoran Lucić por que parou? Pep Guardiola entrou para o Barcelona aos 13 anos, foi gandula, jogador, ídolo. Aos 41, esgotado, deixa o clube como o técnico que reinventou o jeito de jogar futebol “D esafivelo o cinto porque ele está muito apertado para mim. Mas para vocês não. Deixo-os em boas mãos.” Com essa mensagem, Pep Guardiola abandonou o Camp Nou rendido a seus pés. Era uma imagem poucas vezes vista, um arrepio percorrendo a arquibancada. Avós, pais, filhos, netos, alguns engolindo as lágrimas e outros chorando intensamente. Todos ali dizendo adeus ao responsável por havê-los feito viver alguns dos melhores anos de suas vidas. “Se você me diz adeus, quero que o dia seja limpo, que nenhum pássaro rompa a harmonia de seu canto. Que tenha sorte e encontre o que lhe faltou comigo”, cantava em catalão boa parte das mais de 90 mil pessoas, enquanto o técnico do Barcelona andava pelo campo, com seus jogadores, Messi, Xavi, Iniesta, Daniel Alves e genial elenco, todos vivendo a cena a poucos metros. O calendário indicava: 5 de maio de 2012. O fim de uma era. Quatro anos atrás, Guardiola viveu essa mesma cena com uma diferença de tom. Era uma chance de sorrir, de dizer “olá”, a volta de um não tão velho ídolo. Era a noite da apresentação de Pep como novo técnico da equipe principal do Barcelona. Diante de seus torcedores, um Guardiola de 37 anos pedia ao público que se preparasse. “Afivelem os cintos. Vamos nos divertir muito.” Nessa data, encerrava-se o ciclo do holandês Frank Rijkaard, o treinador que de 2003 a 2008 fez de Ronaldinho Gaúcho o maior craque do mundo. Para Guardiola, era um retorno a uma história que sempre contou com um empurrão de Johan Cruyff. Aos 13 anos, Pep, um menino do interior da Catalunha, entrava para o clube para participar das categorias de base. Foi gandula, disputou amistosos e torneios até que, em 1990, com 19 anos, quase de um dia para o outro, Cruyff transformou aquele 25 jovem desajeitado e com acne em uma das peças-chave de seu dream team. Deu-lhe a camisa número 4 e a função de cérebro da equipe que contou com Romário, Stoichkov e Laudrup. Seu período como volante o tornou ícone, uma lenda, e lhe incrustou na alma um DNA de futebol ofensivo. Guardiola tornava-se um fundamentalista do cruyffismo. Uma década depois, quando se aposentou dos gramados em 2006, depois de uma passagem pelo futebol árabe e mexicano, Pep já era mais cruyffista do que Cruyff. Sua meta era retornar como técnico e formar um escrete com toque e domínio de bola quase total, uma esquadra que assumiria riscos imensos para entregar ao torcedor um espetáculo de gols e títulos. De volta a Barcelona, Pep conseguiu um emprego como treinador da filial do Barcelona da terceira divisão. Reencontrou-se, então, com o antigo mestre. _ Uma vida no Barcelona 2001 Em 28 anos de trajetória, Pep foi gandula, protegido de Cruyff, craque e o maior treinador do clube 1984 Com 13 anos, chega ao Barcelona e mora em La Masia, o centro categorias de base ao lado do Camp Nou 2008 1990 de treinamentos das 1986 O presidente do clube, Joan Laporta, O técnico Cruyff convoca Pep para Como jogador, despede-se do estrear na equipe principal aos 19 anos Aos 15, atua como gandula no Camp e, em seguida, vive a era gloriosa do Nou durante uma semifinal da Copa da dream team ao lado de Romário Barcelona aos 30 anos, depois de ter ganhado seis campeonatos seguindo os conselhos de Cruyff, convida Pep, aos 37 anos, para se tornar treinador do time principal 2012 Guardiola deixa o clube com 41 anos, depois de ganhar 14 títulos, entre eles duas Ligas dos Campeões, dois Mundiais de Clubes e três Campeonatos Espanhóis: “Me sinto esvaziado, preciso voltar a me preencher”, disse espanhóis e uma Copa da Europa Europa (a atual Liga dos Campeões), entre Barcelona e Gotemburgo 26 trata-se de ganhar pagando um único preço: ser fiel ao estilo. “Persistiremos, persistiremos, persistiremos”, disse o técnico naquele primeiro dia. Seu time não deixou de fazer isso. Pep, mais do que ninguém. A FILOSOFIA DE STEVE JOBS Convencido de não ter a genialidade de seu mestre, Cruyff, e admirador de figuras perfeccionistas como Tiger Woods (o golfe é uma de suas grandes paixões), Guardiola exerceu seu trabalho com uma obsessão quase doentia. Durante esses quatro anos, depois de deixar seus três filhos na escola, era possível ver sua Land Rover branca estacionada na Cidade Esportiva do Barça. Ali, ele instalara sua base, num simples cômodo que dividia com seu ajudante, Tito Vilanova (alçado por Pep a novo técnico do Barcelona). Nesse local, as janelas oferecem uma panorâmica dos divulgação / JOSEP LAGO Getty/Images / Latinstock Marc Atkins/Corbis ram a viagem mais inesquecível da sua história. Nunca um treinador havia tido uma estreia tão esmagadora. Em sua primeira temporada, em 2008-2009, o catalão conquistou praticamente tudo: a Liga Espanhola, a Liga dos Campeões, o Mundial de Clubes, a Supercopa Espanhola e a Copa do Rei. No total, foram 14 títulos – três ligas, duas Champions, dois Mundiais de Clubes –, além de “passeios”, como a goleada de 6 a 2 sobre o Real Madrid no Santiago Bernabéu, a casa do time merengue. Os rastros do Barça de Guardiola ultrapassaram o campo de jogo e entraram no terreno dos valores, da reivindicação de um estilo, de uma filosofia, de uma maneira de entender o futebol na qual o fim não justifica os meios. É justamente o contrário. Os meios estão acima do fim. Não se trata de ganhar a qualquer custo; divulgação/ricard fadrique / EFE/EPA Diante da crise que ameaçava o reinado de Ronaldinho e Rijkaard, Cruyff articulou a subida galopante de Guardiola. Pep passava à frente de outro grande candidato, pelo qual, naquele momento, muitos culés (os torcedores do Barça) estavam dispostos a aceitar e vender a alma em troca de sair da maré decadente. José Mourinho, hoje comandante do Real Madrid e inimigo público número um do barcelonismo, esteve até o último instante fazendo o “bem me quer, malme-quer” com a margarida que nascia nas entranhas enegrecidas do Camp Nou. Por alguns meses, a diretoria e os catalães dividiram-se. Por fim, decidiuse pela recomendação de Cruyff. Mourinho é hoje o diabo; e Pep, o anjo que levou o Barça ao paraíso. Guardiola cumpriu sua palavra. Desde que os culés apertaram os cintos, vive- campos de treinamento. Diariamente, entrando de manhã e saindo à noite, assistia a vídeos, revisava relatórios dos técnicos, falava com os preparadores físicos e com os jogadores, numa rotina que se tornava cada vez mais longa até que lhe parecesse uma eternidade insuportável. Na sua mesa, junto a um Mac que ele mesmo comprou e que carrega sempre consigo, foram sendo amontoados livros, muitos deles nunca abertos. Há de todos os tipos. Romance, ensaio, poesia. Biografias... A de Steve Jobs, por exemplo. Foi nessa época que um amigo envioulhe o vídeo de um discurso do antigo CEO da Apple na Universidade de Stanford. Pep devorou-o emocionado e destacou passagens que, no dia de sua despedida do Camp Nou, ganharam um sentido especial: “Se hoje fosse o último dia de minha vida, gostaria de fazer o que vou fazer hoje?”, perguntava Jobs. “Se a resposta for ‘não’ muitos dias seguidos, sei que preciso mudar algo. O tempo que vocês têm é limitado, então, não o desperdicem vivendo a vida de alguém diferente. Não deixem que o barulho das opiniões dos demais abafe sua voz interior. E o mais importante: tenham coragem de seguir seu coração e sua intuição. De alguma maneira, eles já sabem o que alguém realmente quer ser. Todo o resto é secundário.” O final do discurso ficou gravado na pele de Pep Guardiola: “Continuem famintos, continuem loucos”. Um lema que repetiu mais de uma vez a seus jogadores no vestiário. Aí estava o segredo: no desejo, na ilusão, nesse ponto de loucura necessário para seguir adiante sem olhar para trás. “Continuem famintos, continuem loucos.” Assim foi o Barcelona de Pep. Uma fera com fome, maluca para ganhar. 27 pep repetia a seus jogadores o lema de steve jobs: “continuem famintos e loucos” _ A construção de Lionel Messi Ainda em Pequim, no verão de 2008, com a me- Continua sendo baixinho. Joga como em dalha de ouro em seu peito, Leo Messi dirigiu-se Rosário. “Nunca penso em dribles, no que vou a alguns jornalistas de Barcelona. Quase não fazer, aprendi tudo na rua. Jogo igual a quando falou com a imprensa de seu país, que insinua- era criança”, diz. Em março passado, marcou seu ra que ele não queria ir aos Jogos Olímpicos gol 234 em 314 partidas, superando o recorde defender a seleção. Mas esqueceram que Messi de César Rodrigues (232 gols em 348 confron- continua sendo um garoto nascido em Rosário. tos). Aos 24 anos, marcou 50 gols na Liga e 73 Com a diferença de que vive circunstancialmen- nesta temporada (feitos jamais conseguidos). O te em Barcelona desde os 13 anos. Seu coração desafio, no entanto, começa agora para Messi. continua ali, onde não houve dinheiro e ajuda Uma vida sem Guardiola. _ Ronaldinho e o resgate do Barça Em dezembro passado, uma comoção tomou para administrar os hormônios de crescimento de assalto o Brasil. No Japão, pela TV, viu-se dos quais seu minúsculo corpo necessitava o Barça de Guardiola construir um inesquecí- quando criança. Por isso, e só por isso, o jovem vel monumento ao futebol. Diante dos olhos Lionel pegou o avião, deixou sua cidade e fixou- do mundo e, sobretudo, diante da surpresa se na Europa com a família. de muitos brasileiros, que pareciam orbitar Assim, naquele dia, com o ouro olímpico outro planeta até então, o time espanhol brilhando, tímido como sempre foi, Messi quis massacrou o Santos de Neymar e Ganso. A enviar uma mensagem a Guardiola: “Gostaria de conquista do Mundial de Clubes por 4 a 0 foi dizer ao professor obrigado, muito obrigado”. uma surra que despertou o país do futebol Foi Guardiola quem lhe deu permissão para ir para uma estranha realidade: a arte não vivia aos Jogos, apesar de o Barcelona estar jogando mais neste ponto da América do Sul. a vida em uma prévia da Liga dos Campeões Ao final do jogo, quando se sentou diante diante do Wisla de Cracóvia. O técnico, ou o dos jornalistas, Guardiola foi iluminador. Pep “professor”, como é chamado por Messi, enten- ouviu a pergunta de um jornalista brasileiro: deu que era melhor a felicidade de um jovem “Como vocês podem jogar assim?”. E outro re- que precisava provar seu amor pelo país do que pórter lhe secundou: “De onde é que você tirou o interesse coletivo, sabendo que nessa decisão a inspiração?”. E, então, Guardiola levantou a construiria uma relação de cumplicidade. voz. Berrou, na verdade. Porque cada vez que Já no primeiro dia em que se encontraram, está rouco é sinal de que a partida foi extraordi- houve uma conversa transcendente: “Pep me nária. Eles jogam, ele fica sem voz. “E você me disse: ‘Comigo, você marcará três ou quatro pergunta isso?”, respondeu. “Pois isso é o que diola não é compreendido sem o Brasil. Foi o legado brasileiro era imprescindível e se gols por partida’. Pela forma como me faz jogar o Brasil fazia há anos, durante toda a vida. Isso Ronaldinho, chegado de Paris, quem levou a misturava às raízes de La Masia, a fábrica e pela posição em que me coloca no campo, foi o que escutei meus pais e meus avós sempre alegria ao Camp Nou, no verão de 2003, para de talentos, o centro de treinamentos que Guardiola me deu tudo”, conta o argentino. me contarem. Tirei isso de vocês!” O futebol bra- resgatar um clube que estava mergulhado respira uma alma brasileira. “Sinto muito, não há outro jogador como sileiro, um esquecido futebol brasileiro, inspirara na mais absoluta depressão. Sem o gaúcho Leo. O trono pertence a Messi e somente ele Guardiola. “No final, tudo é mais simples do que Ronaldinho, não teria existido Messi. Como Valentí disfarçou-se do melhor Brasil jamais decidirá quando deixá-lo”, afirma Guardiola, or- parece: entendemos o jogo por meio do passe aconteceu antes com Cruyff, que resgatou visto. “Não sonho em ser um jogador do gulhoso por haver participado da eclosão de um e o que tentamos é passar a bola o mais rápido Romário da fria Holanda (1994) para culmi- Barça, mas gostaria que me deixassem jogar menino pequeno (chamavam-no de A Pulga). possível”, contou. nar no dream team, onde jogava Guardiola, uma partida com eles. São muito bons”, dis- Ali, em Yokohama, o Barça do filho de Messi hoje é um gigante. Conquistou três “Foi um dia histórico, pela primeira vez de- enquanto Ronaldo, o fenômeno, pousou se Paulo Henrique Ganso. “Hoje aprendemos Bolas de Ouro consecutivas, 19 títulos com o mos um banho nos brasileiros”, afirmou Cruyff. sua nave espacial no Camp Nou (1996) para a jogar bola. Eles nos deram uma aula de Barça (cinco Ligas, três Champions, dois Mun- Um, Pep, no Japão; o outro, Johan, em Barcelo- brindar um futebol galáctico de um atacante futebol”, afirmou Neymar. Não houve dú- diais de Clubes...) e ultrapassou os limites do na. O discípulo e o mestre unidos como sempre. sideral. E, por fim, Rivaldo (1997), melhor vidas. Não foi o Barça que jogou no Japão. futebol contemporâneo. E o Brasil, a fonte de tudo. O Barça de Guar- do mundo, que surgiu para demonstrar que Nem o Santos. Jogou o Brasil. 28 Guardiola, o Steve Jobs do futebol, um revolucionário criado na ideologia cruyffista do jogo ofensivo, afinou seu estilo realizando uma peregrinação que diz muito sobre sua obsessão pela bola. Pouco depois de abandonar os gramados, em julho de 2006, Pep frequentou uma escola de técnicos em Madri. Lá, estudou regras, estratégias e diplomou-se treinador. Ainda insatisfeito, em outubro partiu em uma viagem de iniciação. E assim acabou em Buenos Aires, sentado diante de César Luis Menotti, comandante do título mundial argentino de 1978. Depois, visitou Marcelo “El Loco” Bielsa. Dois de seus gurus. Guardiola atravessou o Atlântico ao lado de seu amigo, o escritor e diretor de cinema David Trueba. E é impossível não lamentar que Trueba não tenha registrado essa turnê com sua câmera. Com Menotti, a conversa durou sete horas; com Bielsa, 11, em um churrasco que se prolongou até a madrugada. Onze horas! Futebol, futebol e mais futebol... Três fanáticos dando voltas em seu mundo redondo, o mundo em que gostariam de viver sempre. Mas neste planeta nem tudo gira ao redor da bola. Desgastado pela rotina, pela pressão extracampo, Pep passou a sentir que seu cinto o apertava cada vez mais. Até que um dia começou a lhe faltar o ar. Imagine a energia necessária para manter por longos quatro anos uma equipe fiel ao lema vital do “continuem famintos, sejam loucos”. Além disso, outros esforços, pequenos e grandes problemas internos do clube, coletivas de imprensa em que é obrigado a sempre ser brilhante, criativo, generoso, em catalão, em castelhano, em inglês, em “De onde veio a ideia de jogar assim? Ora, de vocês!”, disse pep a jornalistas brasileiros italiano e, sobretudo, na guerra permanente com o endiabrado José Mourinho, incansável em seu afã de tirá-lo do sério, de provocá-lo. Esse pacote todo minou as forças de Pep. Assim, Guardiola decidiu deixar esse escritório com vista para a essência do Barça, para a grama que formou Messi e Xavi, para esses campos onde crescem meninos como aquele Josep Guardiola i Sala, o garoto nascido em Santpedor que chegou aqui, a La Masia, assustado. Um garoto que chorava à noite com saudades da família. Um menino do interior da Catalunha que diziam ser muito pequeno e franzino para chegar a jogar no Camp Nou, sem saberem que seu grande tesouro não estava em suas pernas, mas em sua cabeça. Como Steve Jobs, Pep teve fome. E foi um pouco louco. o futuro de guardiola é ser pep Ele não sabe aonde irá. Ou não quer dizer. Se pudesse, desapareceria imediatamente, amassado pela fama, cons- 30 trangido pela dimensão da obra que construiu. Pep busca recuperar algo que perdeu quando menino. Filho de Valentí, um pedreiro de Santpedor, pequeno município situado no coração da Catalunha, próximo a Montserrat, Josep busca ser simplesmente Pep. Nem Guardiola. Nem o mito. Nem o símbolo. Nem o revolucionário que transformou o futebol. Ser Pep, apenas isso. Mas, quando a bola voltar na próxima temporada, em agosto, ele irá. Talvez para a Inglaterra. Talvez aos Estados Unidos. Pouco importa o país. O que ele anda buscando é recuperar o anonimato. Algo tão simples, mas tão complexo. Quase uma utopia. “Vocês verão pouco os meus cabelos por aqui. O pouco cabelo que tenho, né?”, disse com um sorriso, enquanto não podia evitar olhar para si mesmo. Ali em cima, onde cresce seu escasso cabelo, que já não é o mesmo, está retratado o desgaste de Guardiola. Não é unicamente um desgaste físico (mudaram notavelmente a figura e a imagem do técnico em quatro anos), mas mental. Por isso, Pep, e não Guardiola, precisa descobrir os prazeres mais cotidianos. Fugir de um escritório, passar uma manhã jogando golfe, sentar-se em um teatro londrino ou nova-iorquino e aproveitar, explorar novas gastronomias (é um apaixonado pela tradicional comida catalã: pão com tomate, carne na brasa, devorador de caracóis). Por fim, Pep Guardiola quer acompanhar, ao lado da esposa, Cristina, o crescimento de seus três filhos: Marius, 11, Maria, 9, e Valentina, nascida justamente há quatro anos. Por Suzana Camargo casa na árvore O sucesso na publicidade já não dizia nada para o francês Alain Laurens. Decidiu, então, criar uma empresa para construir casas a 10 metros do chão O árvore. “Eu era muito feliz, estava realizado na minha carreira, fazia coisas interessantes”, conta Alain. “Mas queria ter uma segunda vida. Queria começar um negócio novo, do zero.” O francês decidiu construir uma cabana na árvore da casa de campo que tinha na região da Provença. “Gostei e imaginei que, se eu queria ter uma casa na árvore, outros poderiam ter o mesmo desejo. Seis meses depois de deixar meu emprego na Lintas, fundei a minha companhia.” La Cabane Perchée (a casa da árvore) é hoje a mais famosa empresa da Europa para esse tipo de construção. A sede fica no vilarejo de Saint-Saturnin-lès-Apt (sul da França). divulgação francês Alain Laurens estudou ciências políticas, bandeou-se para a publicidade e, durante 30 anos, trabalhou na área. Começou como redator, foi diretor de criação. Nos últimos dez anos, atingiu a presidência da agência Lintas Paris. Sucesso da publicidade. Chegava ao topo. Um dia, em 1999, aos 52 anos, olhou para cima e não viu coisa alguma. Parecia não haver mais para onde subir. Foi quando se lembrou da história de Cosme Chuvisco de Rondó, personagem de O barão das árvores, de Italo Calvino: garoto de 12 anos, de família rica e rígidas normas de etiqueta, tem ataque de fúria durante o jantar, grita com os pais e foge em direção aos galhos de uma 32 33 A suíte projetada para o hotel la piantata (itália) está entre os trabalhos prediletos de alain laurens divulgação/jacques delacroix / Sipa Photos/Newscom Glow Images as cabanas se encaixam no tronco com uma cinta que pode ser ajusatada 34 No ateliê trabalham 12 pessoas: marceneiros, eletricistas, encanadores, além do designer e aquarelista Daniel Dufour, responsável pela concepção e desenho das casas. Fecha o time o mestre carpinteiro e diretor do estúdio, Ghislain André. Alain Laurens coordena a parte financeira, faz a interface com clientes e é o relações-públicas. No início, a construção das cabanas gerou publicidade espontânea. “Tivemos uma cobertura massiva da imprensa francesa”, diz Alain. A exposição na mídia atraiu clientes. “Recebemos telefonemas de interessados e o negócio deslanchou rápido.” Em 2000, foram 15 projetos. Ano passado, esse número dobrou. Em 12 anos, La Cabane Perchée fabricou cerca de 350 casas. O custo varia entre 20 mil e 120 mil euros. As cabanas criadas pela equipe francesa podem ser vistas em propriedades na França, Bélgica, Dinamarca, Itália, Espanha, Portugal, Suíça, Estados Unidos e Rússia. O diretor de La Cabane Perchée calcula que atualmente 60% dos clientes da empresa são privados. Os outros 40% são corporativos, principalmente hotéis que transformam as cabanas em suítes de luxo. Assim que o cliente demonstra interesse em ter uma cabana, a equipe de Laurens analisa a árvore em que a construção será colocada: altura, circunferência, idade. As espécies mais apropriadas são carvalhos e pinheiros. E, quanto mais antigas, melhor. O ideal é que a casa fique a uma altura entre 8 e 14 metros do solo. Depois que Daniel Dufour finaliza o projeto e o cliente o aprova, é preciso seguir os mesmos trâmites legais da construção de uma residência normal, erguida no solo. Enfim, chega a hora de construir as peças no ateliê em SaintSaturnin-lès-Apt. A madeira utilizada é o cedro vermelho. Importada do Canadá, essa espécie é bastante sólida, en- tretanto leve, e não apodrece, resistindo a pragas e condições climáticas. Uma casinha infantil leva pouco mais de três semanas para ficar pronta; já as com mais de um aposento ou sofisticadas requerem dois meses e meio de trabalho. Nenhum prego sequer é colocado no tronco ou galhos. O sistema criado pela equipe francesa faz com que a cabana se encaixe nos galhos, com uma cinta colocada em volta do tronco, que pode ser ajustada. As árvores continuam crescendo de forma natural. “A cada dia precisamos desenvolver uma nova técnica, tudo depende de onde estamos trabalhando no momento”, diz Alain. “64, com cabeça de 22” O sonho de Alain surgiu ainda criança e, um pouco por causa disso, o trabalho realizado em La Cabane Perchée precisou ser inventado. “O que fazemos é diferente de tudo. Quando comecei o negócio não sabia nada sobre ele”, conta. No início, ele precisou encontrar um carpinteiro que tivesse afinidade com esse tipo de arquitetura. Buscou profissionais em escolas especializadas, até que recebeu o contato de Ghislain André, um compagnon charpentier. A nominação em francês é dada para os mestres carpinteiros e tem origem nos construtores das catedrais europeias na Idade Medieval. Outro cuidado foi com a imagem da empresa. O site está disponível em sete línguas e há representantes na Escandinávia, Rússia, Austrália e Estados Unidos. Por todas essas razões, o produto que a companhia francesa oferece não é barato. Quando são construídas fora da França, ao custo do projeto e da montagem é adicionado o valor do transporte e da viagem da equipe. “Construímos os sonhos dos clientes, mas focamos em qualidade, e isso torna o produto caro.” na página ao lado, casa construída pela la cabane perchée em sologne, na frança, com a técnica de sustentação que fixa a residência sem a necessidade de perfurar os galhos com pregos; acima, alain laurens, fundador da empresa 35 _ Livro reúne as 50 criações mais emblemáticas Questionado sobre qual criação é a mais bonita, Alain Laurens afirma que sempre é a mais recente. Apesar de não falar abertamente quais cabanas foram as mais marcantes, em 2006 o francês revelou de maneira sutil suas preferidas. A suíte projetada para o hotel La Piantata, na Itália, estava entre elas. Naquele ano, o criador da La Cabane Perchée escreveu o livro Vivons Perchés (vivendo nas alturas, em tradução livre). A obra mescla o texto, escrito pelo próprio Alain, com fotografias das 50 criações mais originais da empresa. Em 2008 foi lançada uma nova edição, Tree house living, com fotos de projetos mais atuais. Em parceria com o designer francês Ambroise Maggiar, o ateliê produziu uma cabana com estilo futurista. Chamada de Cyclope House, tem 3,5 metros de altura e é sustentada por duas longas pernas. Duas unidades já foram encomendas. O projeto inclui o design interno e móveis. Preço: 84 a 91 mil euros. _ Cabanas ficam sobre campos de lavanda e o mar temporada precisa ser feita com um ano de antecedência. Atualmente, Alain Laurens divide seu tempo entre Paris e Provença. No alto de um velho pínus, uma espécie de pinheiro, no quintal da casa na capital francesa, ainda repousa a primeira cabana concebida pela La Cabane Perchée. É uma pequena construção, de 6 metros quadrados. Os filhos adultos de Laurens brincaram lá quando crianças e agora é a vez de os netos aproveitarem o legado do avô. “Ela é linda”, diz orgulhoso. “Fiquei muito emocionado quando a vi pela primeira vez. Tinha dúvidas se seria possível realizar meu sonho e mais ainda se encontraria pessoas que estivessem dispostas a compartilhá-lo.” Laurens encontrou. “Tenho 64 anos, mas minha cabeça ainda tem 22”, diz o homem que remoçou ao chegar ao topo de sua carreira, olhar para cima e ver... uma árvore. Vários estabelecimentos, principalmente na Itália e na região francesa da Provença, encomendaram casas à La Cabane Perchée. O château de Valmer, em SaintTropez, tem duas suítes nas árvores: uma para casais e outra para famílias. A mais romântica tem vista para o mar e, abaixo do imenso carvalho onde foi construída, estendem-se quilômetros de vinhedos. O hotel La Piantata fica em uma paisagem idílica na região de Arlena di Castro, entre Siena e Roma. Quase por acaso a fazenda da família Stucchi virou um refinado hotel. Após trabalhar 30 anos como diretor da Cacharel, uma das mais famosas casas de moda italianas, Renzo Stucchi conheceu Alain Laurens em uma viagem. Do encontro surgiram as lembranças de brincadeiras junto ao pai perto de um damasqueiro – e os planos para a cabana no Piantata. A suíte Bleue está na árvore que talvez seja a mais antiga do país: um carvalho com idade entre 600 e 700 anos. O serviço na cabana de 44 metros quadrados, que inclui champanhe e café da manhã, é servido com a ajuda de uma polia. Da varanda pode-se 36 divulgação/jacques delacroix / divulgação / divulgação ver o mar lilás da plantação de lavanda. divulgação a empresa construiu 350 casas, com custo de 20 a 120 mil euros cada uma E quem são as pessoas que encomendam as cabanas? A maioria, homens. Boa parte deles, com saudade da infância. “Quando encontro meus clientes pela primeira vez eles sempre se lembram de quando faziam cabanas no quarto ou embaixo da cama”, diz Laurens. Entretanto, as cabanas que no passado eram sinônimo de refúgio e solitude infantil, hoje se tornaram o lugar perfeito para ler, ouvir música, sonhar, namorar. Ou ainda, simplesmente, passar um final de semana em meio à natureza. “Nossa primeira casa na árvore, a suíte Bleue, foi uma enorme surpresa e sucesso”, conta o italiano Renzo Stucchi, proprietário do hotel-fazenda La Piantata, localizado a pouco mais de uma hora de Roma. Erguido junto a um centenário carvalho de 23 metros de altura, o quarto tem vista para campos de lavanda. Uma reserva para a cabana durante a alta à esquerda, suíte do hotel la piantata; no alto, casa construída em deauville (frança); acima, interior do hotel francês a pignata, na córsega, e café servido no la piantata 37 Zaha Hadid pergunta: A vida ribeirinha melhorou? Inácio Neves responde: Em 2004, quando iniciei o projeto Cinema no Rio, a maioria das cidades às margens do rio São Francisco não tinha saneamento básico ou asfalto. Até encontrar verduras para as refeições era difícil. Hoje, melhorou. Mas falta muito. Inclusive medidas para salvar o Velho Chico. 38 39 Por Luís Patriani Fotos Fernando Martinho cinema marginal O mineiro Inácio Neves percorre o São Francisco com o projeto que leva filmes nacionais a comunidades que nunca tiveram tal experiência. “Amo o Inácio. Ele traz alegria com o cinema. Não vejo TV porque é só desgraça”, diz Manoel dos Santos, 73 anos Inácio neves navega pelo rio são francisco na embarcação luminar, com equipe de 18 pessoas e uma tela inflável 40 Personnalité J anuária, norte de Minas Gerais. O sol nasce e abre a cortina de nuvens em mais um fim de semana quente e com pouco para fazer na pacata cidade à beira do rio São Francisco. O roteiro deste sábado de maio, assim como o calor que brota do chão, é o mesmo de sempre. Enquanto meninos desafiam o tédio com mergulhos acrobáticos feitos das barrancas erodidas do Velho Chico, senhoras debruçadas sobre as janelas de suas casas observam o vazio melancólico das ruas de paralelepípedo. De repente, o anúncio vindo de um alto-falante ecoa em cima de uma Kombi. Quebra o silêncio e a monótona rotina do lugar: “Imperdível! Venha assistir ao cinema no rio São Francisco! Transmissão em telão inflável! Hoje à noite, na praça dos Pescadores, às 19 horas! Traga toda a família!”. Um pouco antes, um caminhão e carros de apoio chegam à praça. Por fim, um barco atraca e desembarca a trupe itinerante liderada pelo mineiro Inácio Neves, 55 januária, no norte de minas gerais, se prepara para receber o projeto cinema no rio. na página ao lado, inácio e a embarcação luminar cruzando o são francisco anos. Produtores espalham cadeiras pelo local. Técnicos montam projetor, telão e sistema de áudio. Um carrinho de pipoca é estacionado. À diferença do que acontecia no filme Bye Bye Brasil, tudo funciona como um mecanismo treinado, profissional. Não há o traço mambembe dos personagens filmados em 1979 por Cacá Diegues. Ali, José Wilker e Betty Faria sobreviviam cruzando a Amazônia e levando circo a povoados que não tinham televisão. Aqui, Inácio Neves carrega outro tipo de bagagem: o desejo de transformar o cenário cultural de comunidades ribeirinhas ao longo de um trecho de 400 quilômetros do rio que, com seus 2.830 quilômetros de extensão, cruza Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Ao lado de uma equipe de 18 pessoas, Inácio promove exibições de longas e curtas nacionais, além de oferecer oficinas de fotografia e gravar documentários sobre as 42 Inácio Neves em sete anos, o projeto cinema no rio já levou mais de 200 mil pessoas para a frente da grande tela tradições de cada cidade. A cena que agita a pacata Januária seria um delírio provocado pelas altas temperaturas do semiárido, não fosse uma realidade que nos últimos sete anos levou mais de 200 mil pessoas ao cinema pela primeira vez. Numa fatia do Brasil carente de políticas culturais, o Cinema no Rio é uma miragem palpável. O Fitzcarraldo do São Francisco O criador do projeto é um atleticano formado em administração de empresas. Casado com uma psicanalista, pai de dois filhos adolescentes, foi um radialista com faro de sucesso. Na extinta Gerais FM, em Belo Horizonte, onde nasceu, tocou em primeira mão canções de bandas como Skank e Pato Fu. É um sujeito simpático, expansivo, cativante. Um desbravador. Inácio Neves é o sonhador com a saudável mania de concretizar suas sandices. “Quando encarei o projeto, em 2004, fiz um teste pra provar que o telão inflável 43 Personnalité Inácio Neves “os filmes que exibimos nesses lugares são para recuperar a autoestima da população” funcionava perfeitamente”, conta. “As pessoas olhavam e me diziam que era loucura. Que nunca iria conseguir.” Vaguinho, projetista da equipe, surge com uma definição mais precisa dessa face obstinada: “O Inácio é o Fitzcarraldo do São Francisco”. A referência aponta para o filme do alemão Werner Herzog em que o personagem-título contraria conselhos, navega por rios e se embrenha na floresta para construir uma casa de ópera na Amazônia. Num fim de tarde de maio, sentado na proa da embarcação Luminar, Inácio sintetiza o conceito da expedição antes de se dirigir à sessão de sábado em Januária, a décima cidade num total de 13, em 18 dias de viagem: “Os filmes que exibimos são o elo pra criar uma aliança com as pessoas, pra resgatar a cultura desses lugares. E como a gente faz isso? Recuperando a autoestima da população”. Na praça central, que já se encontra lotada, as pessoas conversam animadas. Enquanto isso, o hiperativo Inácio se desdobra em várias funções. Verifica cada passo da operação com a produção, articula encontros com lideranças comunitárias e acompanha o registro em vídeo dos depoimentos de moradores sobre a experiência de ver um longa-metragem na tela grande pela primeira vez. Caso da professora Juliana Lopes, 35, e de seu filho Pedro Vitor, 9. Na visita inaugural da missão a Januária, em 2010, os dois não se interessaram. Agora, deram uma chance. E se encantaram com o filme Uma professora muito maluquinha, adaptação do livro de Ziraldo. Em seguida, fecharam a sessão dupla assistindo ao documentário O mineiro e o queijo, de Helvécio Ratton. “Adorei! Achei rico”, conta Juliana, ao lado de Pedro, que está esfuziante. “Quero abrir um cinema para levar as pessoas e poder assistir filmes sempre que eu quiser”, diz o menino, enquanto não larga o saquinho de pipoca. No dia seguinte, de manhã bem cedo, a equipe de Inácio arruma a parafernália e se divide entre o barco, o caminhão e os carros. A caravana parte em direção à vizinha Itacarambi. Ali, quem se mostra exultante por debutar diante da telona é seu Manoel dos Santos Alves, 73 anos. Verá O palhaço, produção dirigida e estrelada por Selton Mello. Coincidentemente, seu Manoel é conhecido na cidade como o palhaço Pontaria. “Eu amo o Inácio. Ele traz alegria com o cinema. Não é como a TV. TV eu não vejo, só passa desgraça. Vocês vieram aqui com esses filmes e me deram pelo menos mais dez anos de vida”, diz seu Manoel, que tem 36 filhos e 40 e tantos netos (“não lembro o número exato”). _ Embarcações históricas seguem no Velho Chico Canoa de Tolda Luzitânia Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2010, a Luzitânia, que tem como característica duas velas ao longo de sua envergadura de madeira, é um dos três últimos exemplares das canoas de tolda no Nordeste brasileiro. A embarcação teve grande importância econômica no transporte de mercadorias na região do Baixo São Francisco na época do cangaço e volta a navegar este ano fazendo a antiga rota de 208 quilômetros entre a sertaneja Piranhas, em Alagoas, e a foz do São Francisco, no Atlântico. Benjamim Guimarães No auge do comércio fluvial no São Francisco, na década de 1950, o vapor Benjamim Guimarães era mais um entre as inúmeras embarcações movidas a lenha que faziam os 1.370 quilômetros do trajeto entre Pirapora (MG) e Juazeiro (BA). Construído em 1913, nos Estados Unidos, o barco começou sua história navegando pelo rio Mississipi e é o único modelo de grande porte do gênero em atividade no mundo. Em 1985, foi tombado pelo Patrimônio Histórico e faz atualmente o roteiro turístico de 165 quilômetros entre Pirapora e São Romão, no norte de Minas Gerais, numa viagem que dura três dias. Barco Luminar O Luminar foi construído em 1964 e, antes de servir de casa e meio de transporte à equipe do projeto Cinema no Rio, funcionou por mais de duas décadas como barco hospital e odontológico, parando nas comunidades ribeirinhas no norte de Minas Gerais. 44 45 Personnalité delas”, conta Inácio. “Insistimos para que se apresentassem na abertura da sessão. Sucesso. Vimos gente da comunidade participando, dançando. Tudo isso acabou registrado. Esse grupo se encheu de orgulho, de confiança. Tanto que chegou a fazer apresentações em festivais em Brasília.” Assim como a família do palhaço Pontaria, a ambição de Inácio não para de crescer. Em 2005, um ano depois de aprovar o Cinema no Rio, orçado em R$ 300 mil pelas leis de incentivo fiscal e que hoje conta com o patrocínio da Oi e da Petrobras, ele deu mais uma vez trela a sua imaginação e tratou de correr atrás para botá-la em prática. A ideia: promover sessões em cidades ao longo de ferrovias, como a estrada de ferro Carajás, a estrada de ferro Vitória-Minas e a ferrovia Centro-Atlântica. Em 2005, o Cinema nos Trilhos, uma parceria com a Fundação Vale, nasceu. A principal meta dessas expedições comandadas por Inácio é a exibição gratuita de produções nacionais com a premissa de que os temas projetados na tela tenham relação com a vida das populações. Um desdobramento surgiu com a produção dos documentários locais, feitos com a ajuda de antropólogos. Nesta edição do Cinema no Rio, foram registrados 13 filmes que mostram o acervo cultural da cidade e de seus habitantes. Um exemplo: a tradição do batuque, uma dança de origem africana dedicada ao ritual da procriação, em que homens dão umbigadas nas mulheres, renasceu após a passagem do projeto, na edição de 2006, na cidade de Ponto Chique. “As pessoas que praticavam o batuque diziam que a população da cidade não gostava equipe ajusta bandeira na proa do luminar. na próxima etapa do projeto inácio planeja construir uma embarcação maior, com capacidade para até 100 pessoas Inácio Neves As travessias da equipe de Inácio Neves pelo rio deixam preciosas heranças nas cidades. Em Palmeirinha, a 575 quilômetros de Belo Horizonte, os antropólogos da equipe descobriram que os moradores do povoado reuniam tradições culturais e estruturas sociais de uma comunidade quilombola. Só que eles não sabiam disso. O mundo havia passado, eles não. Estancados numa comunidade sem esgoto e desprovidos até de telefone, levavam uma vida franciscana. A partir da aproximação de Inácio com o líder comunitário Agmar Lima, o cenário de ignorância e pobreza começou a mudar. “Ganhei consciência”, conta Agmar. “Fui atrás da certificação das terras. Isso abriu a possibilidade de uma série de financiamentos para a construção de casas, cisternas e de um telecentro na escola municipal.” Na pequena São Romão, 128 quilômetros mais ao sul, a sessão deste ano guardou uma surpresa exclusiva. Pela 46 divulgação / reprodução / reprodução / divulgação Vapor Iluminado: R$ 14 milhões _ O São Francisco como fonte inspiradora primeira vez, o filme Girimunho, premiado nos festivais de Veneza, Nantes e Havana, foi apresentado na cidade onde os diretores Helvécio Marins e Clarissa Campolina conheceram as protagonistas, dona Bastu e Maria do Boi. A dupla de velhinhas acompanhou a exibição na primeira fila, com olhos curiosos, enquanto seus vizinhos riam e aplaudiam. “O Cinema no Rio me colocou próximo dessas pessoas. Inácio e eu fizemos uma amizade grande com dona Bastu. Depois disso, voltei para fazer entrevistas e ouvir mais histórias. Foi quando nasceu o roteiro”, afirma Helvécio. “Esse é o projeto itinerante mais bonito do mundo.” A sétima edição do Cinema no Rio se aproxima do fim na cidade de Matias Cardoso, quase na divisa com a Bahia. Ali, Inácio Neves, já bastante exaurido pela maratona de 18 dias e 430 quilômetros percorridos, começa a imaginar seu ano que vem. Uma imaginação que pretende ampliar o alcance do empreendimento. E que tomará forma num barco de 55 metros de comprimento por 16 de largura, com capacidade para abrigar cem pessoas, além de sala multimídia, auditório, tratamento de esgoto e vaga para dois carros. “Eu tenho esse projeto chamado Vapor Iluminado. É uma parceria com a companhia de dança Grupo Corpo”, diz. A missão, conta, é seguir exibindo filmes em cidadezinhas do interior e ensinar crianças com oficinas de musicalização, iluminação e sonorização. “Mas eu gostaria de expandir o conceito trazendo entidades da indústria, como o Sebrae, para capacitar, profissionalizar a população.” O sonho de Inácio começa na construção de um veículo que comporte essas ideias todas, substituindo o pequeno Luminar, que acomoda 28 pessoas. O projeto da planta do novo barco esbarra agora na captação dos recursos. O custo será de R$ 14 milhões. “Tive a ideia do projeto”, diz Inácio Neves. “Mas quero que as pessoas se apropriem dele... Quando eu morrer, não quero que ele se vá comigo.” Ronaldo Fraga O estilista mineiro, inspirado pelas histórias de pescaria no São Francisco contadas por seu pai, montou em 2011 uma exposição com instalações costuradas entre a moda e a cultura ribeirinha. O projeto contou com Maria Bethânia declamando o poema “Águas e mágoas do rio São Francisco”, de Carlos Drummond de Andrade. Matizes Dumont Liderada pela matriarca Antônia Diniz, a família Dumont, de Pirapora (MG), desenvolveu uma técnica diferente do bordado tradicional. Linhas de seda, lã e algodão, misturadas no mesmo pano, pontos sobrepostos, uma anarquia de linhas e agulhas. Desde 1989, seus trabalhos coloridos e delicados estampam capas de livros de Ziraldo (Menino do rio Doce, Cia. das Letrinhas), Rubem Alves (A menina, a gaiola e a bicicleta, Cia. das Letrinhas), Jorge Amado (A bola e o goleiro, Record) e Manoel de Barros (Exercícios de ser criança, Salamandra). Grande Sertão: Veredas Foi na Barra do Guaicuí, no encontro do rio das Velhas com o São Francisco, em Minas Gerais, que o personagem Riobaldo declarou seu amor por Diadorim, cena-chave no romance de Guimarães Rosa lançado em 1956. Luthier de São Francisco Na cidade de São Francisco, o projeto Folia, Foliões e seus Instrumentos Musicais trabalha com a preservação da tradição no norte de Minas de fabricação artesanal de violas, rabecas e reco-recos, usados na festa de Folia dos Reis. 47 Por Edmundo Clairefont o papel da cana Dono de uma coleção de 2.700 rótulos de cachaça, o designer e pesquisador Egeu Laus fez uma seleção especial para a Revista Personnalité: “Eles engarrafam a beleza e a riqueza da cultura popular brasileira” malandro, de Chico Buarque). Um tempo depois, a dupla entregou a Leonardo a estampa: uma morena sorridente que, sob um fundo amarelíssimo e num esforço à Marilyn Monroe, tenta evitar o levitar de sua saia por um vendaval. A brincadeira impulsionou Egeu a cultivar uma mania. “Já faz uns 15 anos que coleciono rótulos de cachaça antigos, boa parte das décadas de 1940 a 1960”, diz. “Meu acervo conta com 700 itens em papel mais uns 2 mil em arquivos digitais.” “Universo inescapável” Parte desse material rendeu uma exposição no Instituto Tomie Ohtake (SP) em 2011. Egeu defende que o estudo desses rótulos é uma maneira sem igual de entender a cultura popular e a trajetória do design brasileiro. “Não existe nada parecido à cachaça. Nenhuma bebida do mundo entre os trabalhos do designer egeu laus, está o rótulo da cachaça mineira vendaval, que faz menção à clássica cena de marilyn monroe tentando domar o vestido 48 se compara a essa diversidade. O destilado nacional é produzido em todos os cantos do país. Para um designer gráfico, é um universo riquíssimo, inescapável.” Existem no Brasil 40 mil produtores de aguardente e 4 mil marcas. Juntos, eles despejam no mercado 1,5 bilhão de litros ao ano. A meca da branquinha verdeamarela fica em Salinas, cidade de 39 mil habitantes no norte de Minas, a 650 quilômetros de Belo Horizonte. Com mais de 50 marcas, todas destiladas em regime artesanal, em alambiques de cobre (na produção industrial, utiliza-se colunas de aço inox), o município se tornou referência para a produção da pinga caseirinha. A pedido da Revista Personnalité, Egeu fez uma seleção para estampar as páginas a seguir. “Esses rótulos engarrafam a beleza e a riqueza da cultura popular brasileira.” arquivo pessoal egeu laus N o currículo do designer Egeu Laus, 61 anos, constam os seguintes clientes: Paul McCartney, João Gilberto, Pixinguinha, Zé Keti, Renato Russo, Luiz Melodia e... a cachaça Vendaval. Criador, nos últimos 30 anos, de capas de LPs e CDs de um time pesado da música, o catarinense guarda em seu acervo um lugar especial para o rótulo da aguardente mineira. Essa história, conta Egeu, começou com um convite informal do amigo Leonardo Braga, dono do restaurante Casa da Feijoada, ponto tradicional da boemia de Ipanema. O empresário pretendia trazer aos cariocas a caninha artesanal produzida em uma fazenda em Visconde do Rio Branco, no sul de Minas – e convocou o designer para conceber a marca. Egeu dividiu a tarefa com o ilustrador paraibano Romero Cavalcanti (o desenhista do cartaz original da Ópera do A cachaça existe há mais de quatro séculos. Uma das primeiras a utilizar rótulo colorido e modernizado foi a Caramelo, fundada em Minas Gerais em 1886. A partir dos anos 1930, as marcas apostavam em garotas com traços de atrizes de Hollywood (A Rainha) e paisagens regionais (a fazenda da Sertaneja). Gírias batizavam pingas como Chirifa da Rampa e Coragem. A aguardente mineira Mulatinha ganhou versão ainda comercializada em Paraty (RJ) 49 No início do século 20, a cachaça era vendida como um tônico que abria o apetite (Alegria do Povo) ou que “acalmava” (Confôrto). A Branca de Neve plagiava o pôster da animação de Walt Disney lançada em 1937. Menos de dez anos após sua morte em 1938, a mulher de Lampião era homenageada pela mineira Maria Bonita. A Boasinha representava a sensualização feminina que chegaria aos atuais comerciais de cerveja na TV. A fazenda onde era fabricada inspirou o rótulo da Dominante Mercês, cidade do sul de Minas Gerais, é um dos mais antigos polos da aguardente do início do século 20, produzindo caninhas como A Rainha e Creoula. Festas populares, como o Carnaval carioca (Bôa Vida), e esportes que chegavam ao Brasil, como o boxe (Caneca Grande), ilustravam os rótulos da época. Já a caninha Harmonia retratava o símbolo da cachaça artesanal: o tonel feito de madeiras como ipê, jequitibá e bálsamo 50 51 Inácio Neves pergunta: O que fazer para mudar o caos urbano? Alexandre Delijaicov responde: A primeira atitude para mudar pode começar já: caminhar e pedalar pela cidade, para mudar nossa relação com ela. A base dessa transformação é aprendermos a nos colocarmos no lugar do outro – e a vida vista da calçada ou da bicicleta permite isso. O passo seguinte é o pensamento crítico, tanto do ponto de vista da reflexão individual quanto do da crítica coletiva articulada. Precisamos aprender a pensar de um jeito diferente, que pode ser definido por quatro pilares: humanista, social, público e coletivo. E o passo seguinte é começarmos a agir e a transformar a cidade. Se seguirmos esses passos, tudo pode ser mudado. Absolutamente tudo. 52 53 Por Denis Russo Ilustrações Juliana Russo Como a equipe do arquiteto Alexandre Delijaicov pretende fazer dos rios de São Paulo a solução para o trânsito, a poluição, o saneamento público e a habitação da metrópole Personnalité S de Delija, como ele é conhecido na faculdade, é construir um canal de 17 quilômetros que emende as duas pernas do “Y” de rios que atravessam São Paulo – o Tietê, que vem do oeste e se bifurca formando o Pinheiros, que por sua vez deságua na fétida represa Billings. O canal ligaria a Billings ao Tietê, fechando um círculo. Essa rota seria o Anel Hidroviário, pelo qual a cidade transportaria terra, lixo e aquela massa suja que as dragas tiram do fundo dos rios, poupando as ruas de cerca de 6 mil caminhões por dia. Para que os barcos possam circular ao redor do anel inteiro, 20 eclusas terão que ser construídas – eclusas são elevadores navais, que permitem que os barcos subam e desçam por dentro de um poço que enche e esvazia. A equipe de Delija, batizada de Grupo Metrópole Fluvial, estima que o projeto leve 28 anos para ficar pronto e custe algo como R$ 3 bilhões, pouco mais de R$ 100 milhões por ano. “Esse valor não é nada”, diz ele. “Estamos falando do estado e da cidade de São Paulo, que têm o segundo e o terceiro maiores orçamentos públicos do Brasil, atrás apenas do governo federal. E haveria mais 14 municípios cortados pelo anel para dividir a conta com São Paulo, entre eles outros grandes orçamentos, como Osasco, Guarulhos e São Bernardo. É muito barato.” Para ter uma noção, o estádio paulista para a Copa do Mundo, gerido pelo Corinthians, sairá por no mínimo R$ 1 bilhão. Estamos à beira de uma lagoa, deitados sobre uma toalha de piquenique. Na água, barcos elétricos silenciosamente trafegam para lá e para cá. Há muitas embarcações de carga, mas há também algumas que levam passageiros para o aeroporto, para estações de trem ou metrô, para o centro. A faixa gramada e arborizada à beira da água tem 15 metros de largura, dos quais dez são planejados para se ficar: equipados com sombra abundante, áreas de lazer e mesas de piquenique. Os 5 metros restantes são vias para passar – mas não vias de carro, que irão circular mais longe da orla. Só transitarão por ali veículos lentos e silenciosos, como bondes, skates e bicicletas. Depois da faixa, a 15 metros da água, há os prédios, todos com no máximo seis andares, sendo o térreo ocupado por agradáveis pontos comerciais – cafés com mesinhas na grama, mercados, cinemas. O ano é 2040. Estamos às margens do rio Tietê, no pedaço da cidade que hoje é conhecido como Jardim Pantanal – por causa das enchentes anuais. É esse o futuro imaginado pelo projeto Metrópole Fluvial, desenhado por um time da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, sob a liderança de Alexandre Delijaicov, um professor paulistano de 50 anos, aparência tranquila, que todos os dias vai trabalhar e volta para casa montado numa bicicleta azul de 18 marchas. A premissa central do projeto 56 felipe gombossy o projeto permitirá que barcos liguem o aeroporto de guarulhos ao estádio da copa do mundo e você conhece São Paulo, você conhece esta cena: a avenida Marginal parada, com todas as suas 14 pistas apinhadas de carros e caminhões. Espremido entre as pistas, o rio se move lento e gosmento como uma fedida lesma marrom. No meio desse corredor de água, contrastando com a superlotação motorizada em suas margens, não há ninguém. Nenhum movimento, nenhum barco, com exceção das dragas, dia e noite, retirando sedimentos sólidos que a chuva varreu da cidade ou que vieram de esgotos clandestinos. Diariamente essas dragas coletam 5 mil toneladas de matéria nojenta, que então é colocada em centenas de caminhões. Aí os caminhões vão circular nas Marginais, hiperlotando aquilo que já estava superlotado. Os caminhões levam os detritos para os aterros sanitários. Mas, como os sedimentos estão cheios de metais pesados, venenosos, aquele solo acaba condenado. Os aterros não param de crescer, enquanto falta espaço para morar e áreas imensas ficam mais e mais degradadas. É assim que São Paulo (não) funciona. fazer o trabalho e subcontrataram a FAU, porque ficaram sabendo que tinha alguém lá que entendia de hidrovias”, diz Tércio. Foi assim que se deu uma raridade no país: o governo, que gasta tanto em construção e tão pouco em ensino, acabou contratando sua própria universidade para resolver um problema. Não deixa de ser um jeito de investir em educação. “Quero deixar claro que eu não me comprometo nem com esse custo nem com esse prazo”, avisa o engenheiro naval Casemiro Tércio, diretor do departamento hidroviário do governo de São Paulo. “Me comprometo, sim, a realizar a primeira fase do projeto, que será concluída em 2014.” A etapa inicial é simples: consiste em construir uma única eclusa, na Penha, e aumentar em 14 quilômetros o trecho navegável do Tietê na capital. Com isso será possível escoar os sedimentos de barco, em vez de caminhão. “Quem sabe não conseguimos oferecer barcos de passageiros para conectar o aeroporto de Guarulhos à zona leste, a tempo para a Copa?” Ele diz que prometer mais que isso seria vender ilusão. Como Delija, Tércio costuma se mover de bicicleta pela cidade. “Pedalo muito na ciclovia do rio Pinheiros, conheço bem aquele odor maravilhoso...” Ele trabalhou na Secretaria do Meio Ambiente no governo Serra, quando se começou a pensar no potencial dos rios para desatravancar, despoluir e desenvolver São Paulo. Foi aí que o governo abriu uma licitação para planejar um anel hidroviário para a região metropolitana. Como quase sempre acontece com licitações públicas no Brasil, quem ganhou foi uma empresa boa em ganhar licitações, mas não necessariamente em planejar coisas com inteligência. “Eles não tiveram competência para Delija tinha certa fama de doido quando foi trabalhar na FAU, em 2000. Ele foi uma das primeiras contratações depois de décadas de desinvestimento estatal na universidade, sem concursos para novos professores. Suas ideias e atitudes soavam bonitas, mas meio descoladas da realidade, a começar pela insistência em andar de bicicleta numa das cidades com menor taxa de ciclovias por habitante do mundo (são 150 quilômetros para 11 milhões de pessoas. Em Nova York, são 400 quilômetros para 8 milhões). Entre 1991 e 2003, Delija gastou todas as suas férias viajando ao lado de hidrovias pelo planeta. Financiado pelo próprio bolso, percorreu 70 mil quilômetros de canais na Escandinávia, Rússia, França, Inglaterra, Bélgica e Holanda. Visitava as eclusas, fotografava as barragens, conversava com as pessoas, jantava nos barcos, pesquisava a economia dos lugares. 57 alexandre delijaicov e a ciclovia do rio PINHEIROS AO FUNDO: AOS 50 ANOS, O URBANISTA SE LOCOMOVE APENAS DE BICIcLETA e viajou pelo mundo em busca de ideias para o hidroanel _ São Paulo f luvial Projeto prevê a recuperação de rios com a criação de um anel hidroviário para transporte de cargas e passageiros O projeto prevê que o Anhembi, um grande complexo municipal de feiras e exposições, passe também a abrigar uma marina. O lugar seria ocupado por barcos turísticos e uma das pistas da Mais de cem portos serão Marginal do Pinheiros passaria construídos ao longo do anel. a ser subterrânea O “transporto” receberá lixo e entulho de caminhões e embarcará tudo em barcos de carga. Esses complexos também abrigarão mercados de pulga e feiras de produtos orgânicos Em regiões onde há ocupações irregulares será construído um canal de 17 quilômetros ligando a Billings ao Tiête. Ao longo do trajeto, serão levantados bairros com trânsito de baixa velocidade e espaços de lazer. Eclusas serão instaladas para os barcos trilharem pelos rios – portos-fábrica que receberão lixo e entulho embarcados em outros portos – onde serão embarcados lixo e entulho trazidos por caminhões – portos menores para cidadãos comuns levarem seu lixo reciclável – portos localizados perto das estações de tratamento de esgoto para embarcar o lodo – portos fixos ou flutuantes que receberão os sedimentos de dragagem tirados do fundo dos rios – o projeto prevê a construção de mais três centrais de abastecimento, além da Ceagesp, para distribuir a comida ao longo do rio Um dos três “triportos” onde haverá – com 170 quilômetros, ligará a represa Billings aos rios Tietê e Pinheiros – rodovia de 177 quilômetros, prevista para ser terminada em 2014 – estrada de ferro com 58 inauguração planejada para 2014 uma “linha de desmontagem”, que reciclará lixo, entulho e lodo, transformando-os em matéria-prima para a indústria, a construção civil e a agricultura, além de produzir energia Personnalité “gastamos todas as nossas chances de errar”, diz o engenheiro carlos padovezi Com o Grupo Metrópole Fluvial, formado por alunos de graduação e pós, muitos deles também ciclistas urbanos, criou um plano incrivelmente complexo, que prevê a construção de mais de cem portos para abastecer os barcos com lixo e outros resíduos. Se o projeto for colocado em prática, o que exigirá o engajamento de pelo menos oito governadores consecutivos, cada um desses portos abrigará programas de educação ambiental, feirinhas de produtos orgânicos e postos de coleta de lixo reciclável. Os barcos apanharão os resíduos nos portos e levarão tudo para três imensos portos-fábricas, os “triportos”, que serão construídos nos três pontos do Anel Hidroviário onde ele cruza com outros dois anéis: o Rodoviário e o Ferroviário, ambos em construção. Cada triporto será equipado com máquinas que trituram e derretem vidro, compactam e fundem metal, processam plástico, picotam papel, moem entulho para fazer brita e agregados, desfiam roupas para tecê-las de novo. Haverá também tanques com bactérias para decompor matéria orgânica, produzindo solo para agricultura e gases que gerarão energia para manter as operações. Tudo o que estiver contaminado por metais pesados ou outros venenos será compactado para fazer materiais para construção. A nova São Paulo será erguida reaproveitando lodo e lixo. “Nossa meta é aterro zero”, diz o arquiteto. Metade dos 170 quilômetros de extensão do Anel Hidroviário, inclusive o novo canal de 17 quilômetros que ligará a Billings ao Tietê, atingirá lugares ocupados de maneira precária, com indústrias e casas irregulares. É nessas áreas que Delijaicov propõe construir novos bairros e lagoas cercadas de parques que terão o rio como eixo estruturador. A prioridade será assentar os atuais moradores, mas esses espaços irão misturar moradias populares com prédios de alto padrão, comércio e indústria verde, para que empregados morem perto de patrões, funcionários morem perto do trabalho, produção fique perto do consumo, o que diminuirá as necessidades de deslocamento e, com isso, o trânsito. A interligação de todos os cursos d’água criará um sistema de vasos comunicantes, permitindo que a cidade ALEXANDRE delijaicov _ As etapas A equipe do Grupo Metrópole Fluvial estima que o projeto leve 28 anos para ficar pronto e custe em torno de R$ 3 bilhões, pouco mais de R$ 100 milhões por ano 2014 2018 Construção da eclusa que permitirá a rota Aeroporto de Guarulhos-Estádio da Copa 2022 Último triporto é construído, além de outras cem instalações para reciclagem de resíduos 2018 Primeiro triporto concluído para o tratamento de lixo e entulho 2040 Canal de 17 km é finalizado, fechando o Anel Hidroviário; criação de bairros com novos espaços de lazer combata enchentes despejando água limpa nas represas. “Será a retomada do olhar para a água, e a reconstrução do espaço será consequência”, diz Fernanda Cavallaro, uma das pesquisadoras do grupo. Para resumir: de uma tacada só, São Paulo tem a chance de resolver o trânsito, ressuscitar a indústria da região metropolitana e a agricultura do cinturão verde, sanear seus rios, acabar com as enchentes, racionalizar seu sistema de coleta de lixo, criar mais alternativas de transporte público, produzir milhões de toneladas de matéria-prima, criar moradias, economizar uma fortuna e se tornar uma metrópole fluvial, agradável, capaz de atrair turistas. quais as gavetas das universidades brasileiras estão cheias. Ele se diz otimista. “Ao longo da história, gastamos todas as nossas possibilidades de errar. Agora seremos obrigados a buscar soluções que nos resgatem, caso contrário São Paulo será inviável”, diz. O compromisso com o projeto virá do desespero. Questiono então se o prazo de 28 anos e o orçamento de R$ 3 bilhões lhe parecem realistas. “Certamente iremos rever datas e custos após cada etapa concluída, mas me parecem números razoáveis.” É o departamento hidroviário de Tércio que vai pagar a conta da primeira fase. “Depois, nas gestões dos próximos governadores, a ideia é que o custo seja dividido entre várias secretarias, já que o impacto da obra se refletirá em muitos aspectos da vida da região metropolitana.” Tércio duvida que as cidades vão ajudar a rachar a fatura. “Não acredito em Papai Noel”, diz. Ele acha muito difícil envolver prefeitos de partidos diferentes num projeto comum, mesmo que a obra ao final economize bilhões em saúde, transporte e saneamento e estimule a economia de todas as cidades. “Esse não pode ser um projeto de governo, mas sim um projeto de estado, que dure mais que uma gestão”, afirma Delija. Não só isso. “Tem que ser um projeto de todos nós: uma construção conjunta da sociedade.” Ou será que vamos continuar preferindo viver em Marginais paradas, à beira de canais de esgoto a céu aberto? “Meu trabalho é pegar essas ideias maravilhosas e colocar os pés no chão”, diz o engenheiro naval Carlos Padovezi, do Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), que assim como a FAU fica localizado no campus da USP, às margens do rio Pinheiros. O IPT foi contratado em maio pelo departamento hidroviário de Tércio para detalhar e orçar a primeira fase do projeto, aquela que termina em 2014 com uma eclusa construída e, quem sabe, barcos de passageiros para atender os turistas da Copa do Mundo. Pergunto a Padovezi se ele acredita que esse projeto vai mesmo virar realidade, ou vai ser mais uma ideia brilhante da academia jamais encampada pela gestão pública, das 60 Na região hoje apelidada de Jardim Pantanal, por causa das enchentes constantes, o plano é construir represas que ajudariam a limpar a água e, ao redor delas, uma série de bairros com prédios baixos, comércios no térreo, diversidade social e muito espaço para lazer 61 Por Maria Lucia Rangel, do Rio de Janeiro retrato Beti Niemeyer aos 42 anos, joão emanuel carneiro escreve a brasil. “a tv tem legal, reto. lugar se for e diz o mais jovem autor do horário nobre da globo pelo eleito novela avenida uma coisa muito que é o voto divocê só ocupa um leito pelo povo”, povo A história da mulher abandonada num lixão quando criança vem tirando o fôlego dos telespectadores e de João Emanuel Carneiro. Para cada capítulo da novela das 21 horas da TV Globo, o autor de Avenida Brasil escreve 19 laudas, num trabalho de domingo a domingo que lhe consome 12 horas por dia. A recompensa é o sucesso. “Ele é o melhor autor de televisão atualmente”, afirma o diretor Daniel Filho. “Fiz essa leviandade de levá-lo para a TV e perdi o roteirista de cinema... Ele faz parte das coisas boas que dei para a TV e das ruins que fiz para o cinema.” João Emanuel Carneiro, 42 anos, começou a escrever profissionalmente ainda adolescente. Aos 16 anos, roteirizava gibis de Menino Maluquinho e Pererê para o cartunista Ziraldo. Aos 19, migrou para o cinema. Dirigiu o curta Zero a zero, premiado, em 1992, nos festivais de Gramado, Brasília e do Rio. Depois dessa lista de troféus foi chamado para participar do roteiro de Central do Brasil (1998). Na sequência, emendou trabalhos em importantes produções nacionais. Corroteirizou, entre outros, Castelo Rá-Tim-Bum (1999), Cronicamente inviável (2000), Deus é brasileiro (2003) e Redentor (2004). O talento para contar histórias que atraíam o olhar do público levou-o à TV. Daniel Filho convocou João para colaborar com a autora Maria Adelaide Amaral na minissérie A muralha (2000). Um ano depois, repetiu a parceria em Os Maias. Seu grande salto na televisão aconteceria em 2004, quando, sob a supervisão de Silvio de Abreu, redigiu “o difícil de trabalhar com ele é que, enquanto a nossa cabeça está a 30, a dele está a 80”, diz antonia pellegrino o fenômeno Da cor do pecado. A novela das 19 horas alcançou audiências que rivalizavam com folhetins das 21 horas, a faixa nobre. Sua trama bateu recordes na década passada, com média geral de 43 pontos no Ibope e pico de 58 (o patamar normal do horário não passava de 30 pontos). A proeza foi grande a ponto de a Globo reunir grupos de espectadores para tentar descobrir a fórmula do sucesso. A conclusão do estudo: “João Emanuel sabe explorar relações afetivas e familiares”. Em 2008, assinou a autoria de A favorita. DRUMMOND e joão cabral NA SALA Filho único da antropóloga, poetisa e crítica de arte Lélia Coelho Frota, falecida em 2010, João Emanuel Carneiro é culto. Ainda menino, frequentaram sua casa os poetas Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Leu cedo Henry James e Guima- 64 rães Rosa. Sutilmente, ele demonstra essa bagagem na tela. Seus personagens aparecem folheando obras de Kafka, um dos seus escritores favoritos, além de Flaubert e Machado de Assis. É também um profissional que marca os colegas pelo ritmo agitado e pela musculatura cerebral. A escritora Antonia Pellegrino trabalhou com João nas novelas Da cor do pecado e Cobras e lagartos (2006). Conta ter ficado “impressionadíssima” com a capacidade do amigo de imaginar uma trama no longo prazo: “O difícil de trabalhar com ele é que, enquanto a nossa cabeça está a 30, a dele está a 80, lá na frente. É um talento espantoso”. A vida de João Emanuel Carneiro segue esse ritmo. É uma novela acelerada. Avenida Brasil termina em outubro, mas Carneiro espera fechar todo o texto em agosto. Com isso, ele diz, vai poder voltar a beber cerveja em botecos e subir a serra de Petrópolis, onde constrói uma casa desenhada pelo arquiteto Miguel Pinto Guimarães. Atualmente, vive entre dois apartamentos. Um em Ipanema e outro em Copacabana, alugado recentemente e que serve de escritório. Ali, João Emanuel convive com o estresse de assistir à novela diariamente ao lado de um medidor do Ibope. É um vício. E, embora seja o primeiro a admitir que isso lhe faz mal ao coração, não consegue largar. Um pouco como os mais de 40 milhões de brasileiros que todos os dias acompanham as tramas de Avenida Brasil. Revista Personnalité conversou com João Emanuel Carneiro em seu apartamento em Ipanema. o autor da novela das nove, em copacabana, onde trabalha de domingo a domingo: “é uma rotina enlouquecedora” 65 Quais são as principais lembranças da sua infância? Muitas delas são com a minha mãe, que me criou, com quem viajei desde pequeno e que me levou para conhecer museus do mundo inteiro. Outra coisa que guardo na memória sou eu sozinho, no quarto de brinquedos. Filho único e com uma mãe que mudava muito de cidade, era difícil fazer amigos. Nasci no Rio de Janeiro, mas aos 3 anos estava em Portugal. Com 6, na França e, aos 8, em Petrópolis, na serra fluminense. Uma vida bem nômade. Durante a adolescência fiquei um bom tempo no Rio porque minha mãe foi presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Quando criança, pensava em ser o que na vida adulta? Motorista de caminhão ou guarda de trânsito... Depois pensei em ser papa. Não sou religioso, mas gostei daquela imponência que acompanhou João Paulo II em sua visita ao Brasil [em 1980]. Com 16, 17 anos, fazia roteiro para o gibi do Menino Maluquinho. Depois fiz letras na PUC. Como aconteceu esse encontro com o Ziraldo? Cheguei ao Ziraldo por meio de alguém que conhecia alguém na empresa dele... Fui até lá propor umas histórias, gostaram e logo fizeram um pequeno almanaque com coisas que escrevi. Sua mãe foi uma grande intelectual. Seus padrinhos eram os pintores Milton Dacosta e Maria Leontina. Você gostava de viver nessa roda? Gostava, gostava... Eu era a criança no meio dos adultos, um pouco o acompanhante da minha mãe, frequentando a casa dos meus padrinhos, recebendo Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Burle Marx. Minha mãe gostava que eu recebesse com ela. De certa forma, era o maridinho que estava ali. Para mim era fácil enturmar com esse grupo, mas meu desejo era enturmar com os garotos da pelada. Era difícil me sociabilizar. Não convivi com pessoas da minha idade. Fui filho e neto único morando numa casa grande em Santa Teresa [bairro no centro do Rio de Janeiro]. _ A carreira nas telas Cinema Diretor e roteirista: Zero a zero (1991) e Pão de Açúcar (1994) Roteirista: Central do Brasil (1998), O primeiro dia (1998), Orfeu (1999), Castelo Rá-Tim-Bum (1999), Bem-vindos ao paraíso (1999), Cronicamente inviável (2000), A partilha (2001), O filho predileto (2001), Um crime nobre (2001), Seja o que Deus quiser! (2002), Deus é brasileiro (2003), Cristina quer casar tv globo/divulgação / tv globo/divulgação/ gianne carvalho / tv globo/divulgação Minisséries: A muralha (2000), Os Maias (2001), ambas corroteirizando com Maria Adelaide Amaral, e A cura (2010), em parceria com Marcos Bernstein. Novelas: Desejos de mulher (2002, 19h, com Euclydes Marinho), Da cor do pecado (2004, 19h, sob a supervisão de Silvio de Abreu), Cobras e lagartos (2006, 19h, a primeira como autor principal), A favorita (2008, 20h, estreia no horário nobre), Cama de gato (2009, 18h, supervisionando o texto de Duca Rachid e Thelma Guedes) e Avenida Brasil (2012, 21h). 66 de cima para baixo, jorginho (Cauã Reymond) e nilo (José de abreu) em avenida brasil; Bárbara (Giovanna antonelli) e tony (guilherme weber) em da cor do pecado (2004); foguinho (lázaro ramos) e shirley (elisângela) em cobras e lagartos tv globo/divulgação/fabrício mota (2003), A dona da história (2004) e Redentor (2004). TELEVISÃO “Quando criança pensava em ser motorista de caminhão, guarda de trânsito ou papa” Como você chegou ao cinema? O Zero a zero foi uma experiência incrível. Eu não conhecia ninguém no meio, só o [fotógrafo de cinema] Mário Carneiro, amigo de minha mãe. Mostrei o roteiro, ele adorou e me estimulou a levar o projeto adiante. Fiz o filme com o dinheiacima, Flora (patrícia pillar), a vilã de a favorita (2008) 67 televisão. Como escritor, ali você é muito mais senhor da situação do que como escritor de cinema, em que é um empregado. Na televisão eu não sou dono de nada, mas o escritor tem muito mais importância no processo. Não gosto de ser empregado de ninguém, de me sentir empregado. Não gosto. E o roteirista de cinema é um empregado do diretor. Você pensa em voltar a fazer alguma coisa para cinema? Não penso em nada. Estou muito cansado! É tão exaustivo fazer novela, é tão desumano! Escrevo com colaboradores, mas concentro muito o trabalho. Como está sua vida agora? Minha rotina, de domingo a domingo, é a seguinte: acordo às 11 horas, escrevo, nado no Copacabana Palace, volto a escrever até as nove da noite, assisto à novela, fico um tempinho sem trabalhar... [risos]. Aí, retorno ao computador e escrevo até as três da manhã. É enlouquecedor. ro de um carrinho – um Fiat – que vendi. Minha mãe ajudou um pouco. Custou US$ 3 mil e recuperei todo o dinheiro. É a história de duas pessoas conversando na praia, um garotão e uma garotona. Mas não mostra a cara dos dois, só partes do corpo. É a bunda dela falando com a bunda dele, é muito engraçado e uma experiência muito fácil de ser feita. Foi só filmar partes dos corpos e colocar a voz em off. Ganhou o prêmio de melhor curta dos festivais de Gramado, Brasília e do Rio. Nessa época eu achava que iria ser diretor de cinema. O convite para ser um dos roteiristas de Central do Brasil surgiu por joão emanuel deixa o copacabana palace depois de sua dose diária de natação conta desses prêmios? Vários diretores assistiram ao filme durante esses festivais. Os roteiros de cinema que fiz são mesmo consequência desse curta. Na década de 90, fiz 16 roteiros para longas-metragens. O primeiro foi Central do Brasil, um filme importante pra mim, escrito em parceria com Marcos Bernstein. Fiz também a assistência de direção. E como foi a passagem para a televisão? Daniel Filho é o culpado. Em 1999, ele me levou para fazer a minissérie A muralha, com Maria Adelaide Amaral. Descobri de cara que preferia fazer 68 Você é o autor mais jovem deste horário. É devido aos seus sucessos anteriores? Acho que sim. A televisão tem uma coisa muito legal, que é o voto direto. Você só ocupa um lugar se for eleito pelo povo. Você tem liberdade para escrever o que quiser? Tenho liberdade sim. Sempre fiz as histórias que quis. Se não fizer o que gosto, não vai sair nada que preste. Mas, invadindo a casa de 40 milhões de pessoas diariamente, tenho que ter certo senso crítico, um pudor, de não escrever coisas que possam ser ofensivas. Não posso entrar com palavrão na casa de uma pessoa de 90 anos. Como é sua pesquisa para criar personagens? Uma novela tem 180 horas de ficção. Então, você usa tudo que viveu, viu, imaginou e leu. A novela nasce de um personagem que chama outro. Tem o que chamo de paciente zero, no caso atual a menina que quer se vingar, a Nina [Débora Falabella]. Ela quer se vingar de quem? Da ex-madrasta. As duas são as pacientes zero. Gosto muito de histórias de vingança. Queria fazer uma heroína de folhetim que não fosse uma sofredora, mas uma menina que fosse à luta e fizesse coisas condenáveis por uma grande causa. Essa é a ideia central de Avenida Brasil. As novelas com pessoas na sala de jantar e suas copeiras são uma imagem do século passado. A elite perdeu um pouco a capacidade de seduzir o público. Como foi pesquisar o subúrbio? Esteve lá? Fui sim. Mas o subúrbio da novela, na minha cabeça, é todo do Nelson Rodrigues. Fui até lá com pesquisadores da Globo e conheci muito a elite do subúrbio, donos de motel, donos de shopping, de fábricas de gelo. Queria entender como é o rico do subúrbio. O dono de motel, por exemplo. O motel é uma indústria em decadência, ainda mais no subúrbio, tão liberado sexualmente. Geralmente seu dono é também dono de um posto de gasolina. O casal passa um período no motel e tem direito a uma troca de óleo... Não usei na novela porque as pessoas hoje se resolvem em casa, não precisam de motel. O fato de estar escrevendo sobre um mundo que não é o seu é mais fácil para imaginar, inventar? Talvez seja mais fácil. O bairro da novela, Divino, é um lugar fabulado, um universo totalmente ficcional, sem droga nem violência. É meio Disneylândia. “Escrevo em silêncio. Gosto de jazz, de ficar sozinho, tomar um uísque e ouvir tecno” Você acha que uma novela precisa conter crítica social? Crítica social eu não diria, mas precisa estar antenada. A novela tem que ter uma atualidade para ser boa. Você segue a audiência? Tenho uma máquina para medir o Ibope em casa. Assisto aos capítulos com ela. Um vício maluco que faz mal ao coração. Em Avenida Brasil, o Tufão apareceu lendo A metamorfose, do Kafka. É um dos seus livros preferidos? É. A metamorfose é um deles. E todos os do Henry James; Grande sertão, do Guimarães Rosa; tudo da Isak Dinesen [pseudônimo da dinamarquesa Karen Blixen], que até tem a ver com a novela... A festa de Babette [conto escrito por Blixen e publicado no Brasil pela Cosac Naify na coletânea Anedotas do destino] 69 tem a ver com a Nina. Gosto muito de romance policial, Dashiell Hammett [autor de O falcão maltês], Patricia Highsmith [de O talentoso Ripley]. Você escreve ouvindo música? Escrevo em silêncio. Gosto de jazz. Também gosto de ficar sozinho, tomar um uísque e ouvir tecno. Gosto de música eletrônica, de dançar. Há muito tempo não vou a boate, mas dou excelentes festas de dança aqui em casa. O que gosta de ver na TV? Adoro seriado americano, Mad men, Lost, Desperate housewives. Os bons escritores de ficção e os bons roteiristas americanos foram para a televisão. E cinema? Quais são seus diretores preferidos? E que roteiro gostaria de ter escrito? Polanski, Woody Allen, Fellini e Ingmar Bergman. Gostaria de ter escrito Meia noite em Paris [de Woody Allen]. E autores de novela? Gosto muito de Gilberto Braga, Glória Perez e Silvio de Abreu, que foi meu orientador na primeira novela. Mas acho que aprendi a escrever diálogos de televisão com o Gilberto Braga, assistindo às suas novelas. Você está construindo uma casa em Petrópolis... Estou adorando construir uma casa em Petrópolis. É diferente de qualquer outra casa. Fica pronta em outubro, no final da novela. Morei ali quando era moleque de rua e vou resgatar aquela época. Estou feliz com o sucesso da novela, mas é uma batalha tão grande que não vou fazer mais nada quando terminar. Quero voltar a sair à noite, jantar, tomar cerveja em bar e cuidar de duas meninas ótimas, Mimina e Rosinha, minhas cadelas. Alexandre Delijaicov pergunta: Quais são seus lugares secos e molhados preferidos na cidade? Ney Matogrosso responde: Os restaurantes da cidade, só. Em São Paulo, eu gosto de comer fora. 70 71 Por Pedro Alexandre Sanches, do Rio de Janeiro Fotos Marcelo Correa ney Palavra de “Ué, não estão querendo saber da minha vida? Então, vou falar a verdade.” Aos 70 anos, Ney Matogrosso abre sua cobertura no Leblon para receber a Revista Personnalité Personnalité ney matogrosso “O Você tem falado cada vez mais, com um prazer mais aparente. Isso me interessa mais do que aparecer cantando na televisão. Quero me comunicar via palavra. Sinto essa necessidade, prefiro ir para a TV falar do que cantar. “chico buarque se expressa com suas letras. eu não tenho essa capacidade. tentei, mas sou muito crítico” E você fala com mais liberdade, coisas surpreendentes. São surpreendentes porque são verdades, fazem parte da minha vida. Hoje em dia talvez tenha mais segurança para tocar em determinados assuntos. Ué, não estão querendo saber sobre a minha vida? Então, vou falar a verdade sobre a minha vida. Nunca fiz média, e as pessoas sempre reagiram bem, mesmo no tempo em que havia censura. Havia uma reação muito positiva às poucas coisas que conseguiam passar. Quando sou claro, explícito, vejo que há uma mudança na maneira de as pessoas me encararem. Em vez de torcerem o nariz, as pessoas falam comigo na rua. Quando me perguntavam se eu era gay, dizia que gostava de mulher também. Era pior, não aceitavam. A gente tinha que ser uma coisa ou outra. A única conversa que meu pai teve comigo a esse respeito foi quando notou um movimento de mulher na minha vida. Ele me disse: “Isso que você está fazendo é errado, você tem que se definir”. Tenho que definir o quê? Eu não sou indefinido. Estou aqui vivendo. 74 de cima para baixo, ney aos 4 anos; aos 13 com o irmão gray, três anos mais novo: inspirados em james dean; na década de 1960, em brasília, quando trabalhava no setor de anatomia patológica de um hospital arquivo pessoal gato preto cruzou a estrada/ passou por debaixo da escada/ e lá no fundo azul, na noite da floresta/ a lua iluminou a dança, a roda, a festa”, cantava Ney Matogrosso, aos 31 anos, em “O vira”. Ele não sabia então que, quando fosse um homem de 70 anos, teria Nego, um gato peludo, entre angorá e vira-lata, preto, de olhos amarelos, passeando pelos espaços amplos de seu apartamento no Leblon, Rio de Janeiro, com vista aberta para o oceano, a cidade, a lagoa e a montanha. Nego está na sala quando Ney me recebe para uma tarde inteira de conversa. O animal acompanha o movimento e desaparece em seguida. Muita água rolou na baía de Guanabara de 1973 para cá. Ney é diferente e ao mesmo tempo igual ao personagem de figurino indígena, andrógino, mascarado, agressivo e sedutor que celebrizou como homem de frente do grupo Secos & Molhados. É igual e ao mesmo tempo diferente do homem de voz aguda que chegou para se manifestar na canção “Fala” (1973): “Eu não sei dizer nada por dizer/ então eu escuto/ (...) eu só vou falar na hora de falar/ então eu escuto”. Tudo que a vida me oferecer de agradável eu vou desfrutar. A mídia achava que eu estava inventando, e os gays diziam que isso não existia. Então, sou uma invenção, uma quimera, não existo. 1970) e trabalhava no setor de anatomia patológica de um hospital. O encontro, porém, se deu na Tijuca, quando Ney passava férias no Rio. Ele já cantava – e Luhli era a única pessoa que sabia disso. Chico Buarque, nome muito importante para você, segue o caminho oposto: fala cada vez menos. Sim, mas ele compõe. Ele se expressa de outra maneira, que eu adoraria poder. A necessidade de expressão dele é suprida via letras, e eu não tenho essa capacidade. Tentei, mas sou muito crítico. Fiz duas músicas, gravei no disco Bugre [1986], mas nunca cantei em show, por excesso de crítica. Nesse momento ainda não existia o Secos & Molhados? Não existia nada. Eu já era hippie, fazia meus artesanatos no quintal de terra da casa deles [Luhli e Luiz Fernando Borges da Fonseca, fotógrafo de imagens e capas de discos mitológicas de Ney como a de Água do céu - Pássaro (1975)], em Santa Teresa. Foi Luhli quem me apresentou ao João Ricardo. Ele estava montando um trio vocal e não queria uma mulher, mas não achava um homem de voz aguda. Veio ao Rio para me conhecer, e eu fui para São Paulo, onde o Secos & Molhados estourou. Em outubro de 2011, entrevistei a dupla musical formada pelas cantoras e compositoras Luhli (coautora de “O vira” e “Fala”) e Lucina. Elas tiveram importância crucial na carreira solo de Ney, que interpretou suas “Pedra de rio” (1975), “Bandolero” (1978), “Napoleão”, “Coração aprisionado” (ambas de 1980), “Eta nós” (1984), todas ícones de masculinidade, feminilidade e identidade. Ney conheceu primeiro Luhli, por uma amiga comum, quando ele ainda morava em Brasília (até o início dos anos Como foi a criação de seu figurino? Sabia que estava criando uma imagem que não era de gente, de homem, de mulher. Era homem, mulher, bicho, inseto, índio. Eu botava antenas na testa, bicos e asas de pássaros. Minha intenção era transitar pela fábula, ser qualquer coisa, eu queria que cada um me visse da maneira que 75 Personnalité ney matogrosso “eu não sou indefinido. estou aqui vivendo. tudo que a vida me oferecer de agradável eu vou desfrutar” quisesse. Hoje em dia, quando assisto a cenas antigas, não sei como dançava daquele jeito. Não era uma dança, era um contorcionismo, pescoço pra um lado, ombro pro outro, perna pro outro, tudo contorcido. Era ali dançando que eu achava que parecia inseto. Era intuitivo, não era de escola. Era uma loucura, eu me largava. arquivo pessoal Era uma elegância ou algo desengonçado, jovem, que você usava a seu favor? Era todo quebrado, mas tinha um desenho. Não era perdido, não. E tinha a juventude mesmo, ali eu ainda tinha 30 anos, fogosíssimo. 76 Você andava de tamancos nessa época. Isso insultava as pessoas? Em São Paulo, não tinha dinheiro para comprar sapato. Então, comprei um tamanco de 2 cruzeiros. Eu era artesão, fiz uma parte de couro em cima, fechada, como todo mundo depois usou. Era inverno, queria proteger meus pés. Não achava andrógino, porque quando era criança todos os portugueses usavam tamancos em seus bares e mercearias. Mas as pessoas Na página ao lado, ney na cobertura do leblon; acima, ele dá entrevista nos tempos dos Secos & Molhados. “só usei macacão em 1973 e 74”; à direita, com figurino do disco bandido (1976) 77 Personnalité ney matogrosso “era homem, mulher, bicho, inseto, índio. minha intenção era transitar pela fábula” me xingavam por isso. Da mesma maneira, me xingaram nas ruas da Lapa na primeira vez que fui à casa da Luhli de camiseta regata. Calor de 43 graus no Rio, eu de regata, todo mundo me xingando. Que gente estúpida é essa? Deviam estar todos de camiseta regata. Você elaborou esses episódios todos para transformar a performance no Secos & Molhados? Claro. Não era ingênuo. Mas era isso, mostrar o ombro e o braço? Nada podia. Hoje os mais machos usam sandálias Havaianas, e eu fui expulso da casa da minha tia porque cheguei lá de Havaianas. “Saia daqui e nunca mais me volte com seus pés de fora.” E eu achando que tinham libertado nossos pés. Sempre fui uma pessoa diferente, porque admitia que era diferente e que cada um é diferente. Ney interrompe a entrevista para a sessão de fotos. Quando volta, traz uma caixa de fotos antigas. Ele as mostra com júbilo. Lembra o dia da temporada do show O homem de Neanderthal, em 1975, quando usou uma queixada de burro para lacerar uma melancia. Cantava “desperta, América do Sul!”. “Todo mundo pulou no meu pé pra pegar melancia. Virou um happening. Foi o dia em que meu pai viu o show”, conta e ri. O artista possui uma macaca de estimação de 25 anos. Ela vive numa grande gaiola, num canto da sala, com vista para o mar. Guincha, incomodada com os flashes que reproduzem as fotos de seu acervo. Ele conversa com a macaca, a acalma. A equipe de produção se vai, ele não dá sinal de desejo de encerrar a entrevista. Permaneço. _ Dos 34 discos, só dois são com Secos & Molhados Ney de Souza Pereira nasceu em 1o de agosto de 1941 em Bela Vista, cidadezinha sul-mato-grossense que faz fronteira com o Paraguai. Viveu em Recife, Salvador, Campo Grande, Brasília e São Paulo até se estabelecer no Rio de Janeiro. Filho de um militar e de uma dona de casa, foi soldado, enfermeiro, hippie, ator, pintor, artesão e cantor amador. Aos 32 anos, convidado pelo produtor João Ricardo, assume os vocais do grupo Secos & Molhados. O disco de estreia do trio, lançado em 1973, marca o nascimento da persona Em que você acredita? Acredito no invisível, no que a gente não vê. Ney Matogrosso. Permaneceu no conjunto até 1974, participando de apenas dois álbuns. Inicia a carreira solo, interpretando artistas que vão de Gilberto Gil e Chico Buarque a Rita Lee, Raul Seixas, E como é o invisível? Todas as possibilidades do além. Reencarnação, vida em outros planetas, manifestações de vida em toda a natureza, seres que para nós são invisíveis. Tudo existe. Cartola, Pedro Luís e a Parede, Tom Jobim e Villa-Lobos. Ao todo, lançou 34 discos, entre os mais importantes, figuram Bandido (de 1976 e que traz seu primeiro sucesso longe da banda, “Bandido corazón”, composto por Rita lee) e Ney Matogrosso (1981, com a faixa “Homem com H”). Nos bastidores, atuou como diretor, Qual a sua relação com drogas hoje? Nenhuma. Usei todas as disponíveis, mas não era tudo ao mesmo tempo, nem nunca dependi. Sempre foi para o autoconhecimento. Como vou depender de daime se quando tomava o copo eu suava gelado de medo? coreógrafo e iluminador de espetáculos de Nelson Gonçalves, Cazuza, Mart’nália, Nana Caymmi e Simone. Paralelamente, atuou em filmes como Sonho de valsa (1987), Luz nas trevas (2009) e Gosto de fel (2011). Neste ano, por conta da celebração de seu 70o aniversário, foi tema do documentário Olho nu, dirigido por Joel Pizzini. 78 79 Personnalité ney matogrosso _ Lembranças do amigo O jornalista Valdir Zwetsch, amigo de Ney há 30 anos, recorda a visita do cantor em 1976 Ney não é bem um ser humano. Pertence a uma natureza que mescla os reinos animal, vegetal e espiritual. Em 1976, eu e minha então companheira o hospedamos alguns dias em nossa casa, em Florianópolis. Ney acordava cedo, ia para a praia, sumia. Sempre só. De longe, ouvíamos os vocalises que fazia na areia, entre as pedras, só de sunga. Praticamente invisível, só voz. Foi quando escrevi uma ficção – a gênese dos Matogrosso, espécie da qual ele é o primeiro e último exemplar. Fruto da cruza amorosa de um incerto bicho com uma flor amazônica. Um ser quase invisível – mas exuberante num palco. Pense na história da cultura brasileira. Tem outro Matogrosso antes? Virá, será, outro depois? Como homem e como artista, é o cara das ambiguidades e dos paradoxos. Gosta disso, porque é da natureza dele. Como gosta de não ser compositor, mas apenas intérprete – porque essa limitação permite a ele a mais ilimitada liberdade: “Des- 80 valdir zwetsch E Mato Grosso? Minha relação com o Mato Grosso foi mais na adolescência, quando ia passar férias na fazenda. Mas agora tudo mudou. O que era a fazenda do meu avô, uma só, agora são dez. Surgi de um Centro-Oeste desconhecido, de um enigma. Só se sabia que lá existiam florestas e índios, não era ainda o paraíso da soja. O paraíso da soja vai ser a derrota do estado, porque vai acontecer um cataclismo ali. As florestas que conheci não existem mais, o cerrado que conheci não existe mais. Isso não fica impune, a natureza não permite. arquivo pessoal Quais são suas primeiras lembranças? Minha primeira lembrança não é do lugar em que nasci, é da Bahia. Tinha 3 anos, meu pai foi para a Aeronáutica, moramos em Recife, depois em Salvador. Veio a Segunda Guerra Mundial, meu pai foi para a Itália. Carregava aviões, não ficava na frente de batalha, mas é traumático, acho que ninguém que vai para a guerra volta são. Enquanto isso nós ficamos na Bahia, morávamos em Amaralina, lembro de uns jabutis gigantes em que eu sentava, eles ficavam andando comigo. Na minha cabeça aquilo já era uma viagem, sem saber o que era droga. da esquerda para direita, os integrantes do Secos & Molhados (1973): Ney, Gerson Conrad e João Ricardo (em pé); E após o fim do grupo, por volta de 1975, época do disco água do céu – pássaro fruto tudo de maravilhoso que a música me oferece, “as florestas que conheci não existem mais. Isso não fica impune. a natureza não permite” No final da entrevista, com a tarde caindo, direciono a conversa para a origem de tudo. Seu passado. Ney Matogrosso nasceu em 1941, em Bela Vista, atual Mato Grosso do Sul, perto da fronteira com o Paraguai. Seu pai era militar. Apesar de morar há décadas no Rio, Ney representa, como intérprete, uma música brasileira que vem do interior, das entranhas, fora do eixo da música litorânea e/ou metropolitana muitas vezes apegada à fórmula mista de samba, bossa nova, rock’n’roll, MPB. sem me prender a estilo, a gênero, a nada!”. Assim. Desprendido, despregado, desbragado. Matogrosso. A natureza explode pela janela de Ney. O céu e o mar do Leblon, no entardecer, começam a mudar de cor. Ele a princípio não percebe que o sol, indo embora, tinge o mar de cor-de-rosa. Como na letra de Luhli e João Ricardo para “O vira”, bailam corujas e pirilampos entre os sacis e as fadas, lá no fundo azul e rosa. Ele fala de discos voadores. Na hora de ir embora, Nego, o gato preto, ressurge algo desconfiado, algo curioso. Embora invisível, a sensação é a de que ele esteve por perto o tempo todo. 81 nesta página, fotos feitas pelo amigo valdir, em florianópolis (1976) Por Marcus Preto “Ela era independente e fazia o que queria” ELAS POR ELAS 82 “Dolores Duran foi uma raladora do Brasil. Começou a cantar quando criança e, já nessa época, sustentava a família. Depois, dividiu a mesa de bar, de igual para igual, com alguns dos maiores compositores da MPB em uma época em que moças direitas deveriam ficar em casa depois das dez da noite. Na década de 50, quando o papel das cantoras no rádio parecia ser destinado à interpretação, ela era compositora. Tinha parcerias com ninguém menos do que Tom Jobim. Todos a admiravam. Até Ella Fitzgerald era sua fã! Gravou grandes clássicos americanos e latinos, foi exímia intérprete de boleros e sambas-canção, mas também circulou por entre os burburinhos da bossa nova. Uma vez, quando eu tinha uns 16 anos, ouvi o pai de uma amiga tocar uma música da Dolores no violão. Chamavase ‘O negócio é amar’. Aquilo me impressionou. Aprendi o instrumento quando o produtor musical Almir Chediak (1950-2003) lançou vários songbooks, alguns com repertório da bossa nova. Num desses livros, tinha essa música. Era uma das mais difíceis. Me dediquei a tirá-la até saber de cor. Depois disso, quis saber mais sobre Dolores, ouvir, pesquisar, porque – achei curioso – no livro só havia compositores homens. Ela era a única mulher. Para o programa, escolhi um bolero bem rasgado, ‘Solidão’, daqueles de cabaré enfumaçado, denso, como foi a vida dela. Depois, pensei que seria legal mostrar o seu lado bem-humorado. Gravei ‘Manias’, que nem é de sua autoria, mas a gravação dela é um clássico. Me identifico com a Dolores. Por causa do violão que aprendi com suas músicas, por causa da bossa nova mesclada com outras coisas, porque gosto da carga emocional que imprimia nas letras, não sem senso de humor. E porque ela não era uma mulher ‘mulherzinha’. Ela era independente. Fazia o que queria.” Dolores Duran Canta para Você Dançar Nº 1 (1957) e Dolores Duran chris valias/divulgação / reprodução A pedido da Revista Personnalité, Nina Becker, Mallu Magalhães, Lurdez da Luz e Luisa Maita criaram pequenas biografias sentimentais de Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Nara Leão e Elis Regina. Em setembro, o Canal Brasil exibe especial em que as cantoras da nova geração interpretam os ícones da MPB Dolores Duran (Rio de Janeiro, 19301959) por Nina Becker Canta para Você Dançar Nº 2 (1958) “Tudo que ela sabia fazer está ali. A tristeza, a alegria, a graça, a técnica impecável e um repertório maravilhoso.” 83 83 “Ela era uma artista incrível e, quando queria, catártica” Elis Regina (Porto Alegre, 1945-1982) por Luisa Maita “Eu nasci três meses depois da morte da Elis, em janeiro de 1982. E, ainda que não tenha conseguido entender precisamente em que parte, sei que ela é uma figura muito importante na minha formação em geral. Sempre fui atraída pela possibilidade de expressão em cima do palco. Nisso, a Elis Regina foi a maior. Tecnicamente, era uma artista incrível. Mas, quando queria, ia além, ficava tomada por uma interpretação catártica. No começo da minha carreira, eu cantava muitas coisas dela, como o samba ‘É com esse que eu vou’, do Pedro Caetano, e também as canções do clássico Elis e Tom (1974). Quando surgiu o convite para o Cantoras do Brasil, relembrei esses tempos de ‘É com esse que eu vou’ e cantei, pela primeira vez, ‘Querelas do Brasil’ (Maurício Tapajós/Aldir Blanc). Existe um fator muito emocional na voz da Elis, do Milton Nascimento, da Nana Caymmi. Isso me pegou profundamente quando eu era nova. Como tenho uma grande paixão pela obra do Milton, também me interesso pelas gravações que Elis fez das canções dele – ‘Morro velho’, ‘Cais’, ‘Menino’, ‘O que foi feito de Vera’, várias obras-primas. Ela sempre foi a predileta do Milton. Ele costuma dizer que, desde que a conheceu, escreve suas músicas para a voz de Elis. Diz que ainda é assim, mesmo agora que ela já não está mais por aqui para cantá-las.” chris valias/divulgação / reprodução “Sempre fui atraída pela possibilidade de expressão em cima do palco. Nisso, a Elis Regina foi a maior” Montreux Jazz Festival (1982) “Gosto muito da versão que ela fez ali para ‘Na baixa do sapateiro’. Um exemplo de interpretação.” Nara Leão (Vitória, 1942-1989) por Lurdez da Luz “O jeito de cantar da Nara Leão influenciou grande parte das novas cantoras da música brasileira – até mais do que elas possam imaginar. Existe mais de Nara no que ficou instituído como MPB do que de cantoras da Era do Rádio, ou até mesmo do que de Elis Regina. Seu estilo era mais doce, sem maneirismos. Percebi que ela é mais do que um ícone da bossa nova. Era alguém que transitava por tudo que existia na nossa música popular, por compositores de diferentes gerações e diferentes formações. Na verdade, eu não tinha nenhuma relação afetiva com a Nara até mer- gulhar na sua obra para esse programa. Nunca tinha ouvido um disco inteiro. O lance de esse repertório ter passado batido pelos meus ouvidos por tantos anos tem a ver com a bossa nova. Eu não dava a mínima pra esse tipo de música. Ouvia Tom Jobim, mas ele está bem além de alguma definição. Gostava do Vinicius de Moraes, principalmente com o Baden Powell, mas eles não são exatamente bossa-novistas. E a Nara ficou diretamente associada ao movimento. Quando recebi o convite, pensei primeiro em outros nomes. Mas já tinham sido escolhidos ou os que sugeri eram undergrounds demais, como Dora Lopes [1922-1983, cantora carioca descoberta por Ary Barroso e compositora da marchinha ‘Pó de mico’]. O produtor Mauricio Tagliari, diretor 86 musical do programa, me sugeriu a Nara. Não aceitei na hora. Tive medo de não dar conta. Mas passei a noite ouvindo – o site oficial dela me ajudou muito. Tem a discografia completa para escutar. Eu me apaixonei naquela madrugada. Antes de ouvir sua obra, não sabia que tinha afinidades com ela. Mas agora vejo um lance. Ela sofisticava uma linguagem popular. Por exemplo: criava um arranjo jazzístico para um samba do Zé Keti. Acho que, esteticamente, eu faço algo parecido: trago uma sofisticação para o rap desde o instrumental até as referências e o vocabulário. Fora tudo isso, acho lindo o lance de ela cantar sem simular timbres. Usa, enfim, uma voz natural. Eu rimo assim também.” Nara Pede Passagem (1966) “é meu favorito pela escolha de repertório. Tem todos os grandes: Elton Medeiros, Baden Powell e Vinicius de Moraes, Jards Macalé, Paulinho da Viola e Noel Rosa. A versão de ‘Ole olá’ é lindíssima. E porque é o mais chris valias/divulgação / reprodução “Ela é mais do que um ícone da bossa nova” samba mesmo. Tem os arranjos de corda e coisa e tal, mas tem batuque. Daí, me pega.” 87 89 _ Discurso de Nina Becker em show dá origem à ideia “Ao ver a imagem de elizeth cardoso desejei ser aquela mulher” 88 chris valias/divulgação / reprodução “Ela era a perfeita mistura de doçura e intensidade” amor demais, lançado em 1958, trouxe os dois primeiros registros do violão revoluElizeth Cardoso (Rio de Janeiro, 1920cionário de João Gilberto. 1990) por Mallu Magalhães Só fui descobrir isso tudo agora, organizando o repertório para o Can“Hoje em dia, eu vivo no Rio. Mas, quan- toras do Brasil. Escolhi ‘Manhã de Cardo morava em São Paulo, costumava ir naval’ e ‘Demais’. Antes, eu tinha muito a um restaurante. Lá, tinha esse atenpouco contato com a música da Divina, dente, um homem doce e sorridente. Ele como ela era chamada por colegas e repetia sempre sobre o quão maravilhosa fãs. Agora, eu me identifico imensae suprema era essa tal de Elizeth Cardo- mente com a luz que transparece dessa so. Aquele encanto dele ao compartilhar pessoa. Ao ouvir sua voz, desejei cansuas emoções com os outros me encanta- tar como ela. Ao ver sua imagem, deseva, me deixava curiosa. Quando vi a pos- jei ser aquela mulher.” sibilidade de mergulhar e vestir aquela diva, não pude evitar. É difícil medir uma contribuição tão Canção do basal quanto a que a Elizeth Cardoso deu Amor Demais (1958) à cultura brasileira. Sua voz, seus discos, “Acho um pouco sua vida... Ela era a perfeita mistura de difícil fugir deste doçura, intensidade e sofrimento. É, ao clássico. Músicas mesmo tempo, a dor e a alegria de viver. É de Tom Jobim, sentir tudo bem fundo no coração. Elizeth estava no âmago da criação da letras de Vinicius de Moraes e o violão de bossa nova. Além de um repertório mara- João Gilberto. Parecia o âmago da bossa vilhoso composto pela dupla Tom Jobim e nova. Sem predeterminação ou pretensão. Vinicius de Moraes, seu álbum Canção do Eles eram, de fato, aquilo: geniais.” Cantoras do Brasil nasceu em um show de Nina Becker. Em cena, antes de interpretar “Estrada do Sol”, ela fez uma breve análise da importância que Dolores Duran teve para a linha evolutiva da música popular brasileira. A desenvoltura impressionou as jornalistas Mercedes Tristão e Simone Esmanhotto, além da produtora Mariana Rolim. O trio, então, convocou a diretora Simone Elias para levar esse encontro de épocas à TV. “Queríamos um panorama das cantoras da nova geração e das cantoras que fizeram história”, diz a diretora. “Todas elas escolheram suas divas.” Além de Nina, Mallu, Luisa e Lurdez, o elenco conta com Roberta Sá (Carmen Miranda), Camila Pitanga (Maysa), Blubell (Sylvia Telles), Gaby Amarantos (Clementina de Jesus), Lulina (Miriam Batucada e Ademilde Fonseca), Mariana Aydar (Clara Nunes), Tulipa Ruiz (Dalva de Oliveira), Tiê (Celly Campello) e Andreia Dias (Aracy de Almeida). Cada uma interpreta duas músicas e fala sobre sua relação com a homenageada. No Canal Brasil, a partir de setembro. primeira pessoa | beto brant Por Rosane Queiroz _ Tripé de proteção O cineasta Beto Brant produziu três fotos que o representam e preferiu não se alongar com explicações: “Sou da imagem – ela fala mais do que palavras” 2 1 1. Brujo Ojo de Dios cajita guarda chamanvenado sagrado agila fenomeno espejo sagrado vela magica blanca de suerte (artista: Julio Ortiz Valenzuela); 2. Pacha Papa: “Luzes, Portais do mistério, Guardiões – Para abrir caminhos”, define brant; 3. São Jorge 3 90 91