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Cicero Galeno Lopes
Literatura Brasileira
Comentada
3 volumes
Edição eletrônica: Marcelo Spalding Peres
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Volume 1
Sumário
Barroco-Maneirismo, Arcadismo, Romantismo
INTRODUÇÃO / 4
LITERATURA: reflexões conceituais / 5
Capítulo 1
BARROCO-MANEIRISMO / 10
Bento Teixeira / 12
Prosopopeia (excertos) / 13
Gregório de Matos / 16
A cidade da Bahia / 16
À cidade da Bahia / 17
Sergipe d'el-rei / 17
Aos caramurus da Bahia / 17
A Maria dos Povos, sua futura esposa / 18
A Dona Ângela / 18
A Jesus Cristo Nosso Senhor / 19
Sobre uma estátua encontrada / 19
A um passarinho / 19
A vaidade / 20
À inconstância das cousas do mundo / 20
Capítulo 2
ARCADISMO / 23
Tomás Antônio Gonzaga / 24
Marília de Dirceu (liras 1 e 14 da 1a parte; liras 15 e 32 da 2a parte) / 25
Cartas chilenas (excerto da Carta 1a) / 33
Basílio da Gama / 34
O Uraguai (excertos) / 36
Capítulo 3
ROMANTISMO / 46
Gonçalves Dias / 48
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Canção do exílio / 48
O canto do piaga / 51
Ainda uma vez – Adeus / 54
Joaquim Manuel de Macedo / 58
A moreninha (excerto) / 58
Caldre e Fião / 60
O corsário (excerto do sexto quadro) / 61
Álvares de Azevedo / 63
Se eu morresse amanhã / 63
Lembrança de morrer / 64
Casimiro de Abreu / 66
A valsa / 66
Minh’alma é triste / 70
Meus oito anos / 73
Fagundes Varela / 75
Cântico do Calvário / 75
Junqueira Freire / 81
Desejo (Hora do delírio) / 81
Rita Barém de Melo / 82
O soldado no Paraguai / 83
José de Alencar / 85
O guarani (cap. 4) / 85
Iracema (cap. 1 e 33) / 91
A pata da gazela (cap. 18) / 94
Alfredo de Taunay / 99
Inocência (excerto) / 99
Bernardo Guimarães / 103
O seminarista (excerto) / 104
Castro Alves / 108
Adormecida / 108
O navio negreiro (Tragédia no mar) / 110
Prometeu / 118
Mocidade e morte / 119
Manuel Antônio de Almeida / 121
Memórias de um sargento de milícias (cap. 2 e 48) / 122
Bibliografia crítico-teórica / 131
Córpus antológico / 132
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Introdução
Literatura brasileira comentada foi escrito originalmente como apostila, em
atenção aos estudantes do curso de Letras, que sugeriram a transposição das
aulas de Literatura Brasileira a texto escrito. Destina-se, portanto, ao estudo da
Literatura Brasileira em nível superior. É compatível igualmente ao ensino médio.
Pode ser tratado como obra de consulta e leitura também a outros interessados
em nossa literatura-arte.
A sequência histórica foi elaborada a partir de escolas literárias, período e
estilos de época. Depois de introduções teórico-históricas, os autores são
apresentados. Para cada autor foram selecionados um ou mais textos. Os textos
selecionados mereceram comentários específicos e muitas vezes interrelacionados. A seleção dos textos procurou desenhar panorama representativo
e caraterizador da sequência histórica da literatura-arte produzida no Brasil.
Em razão do objetivo de aplicabilidade docente-discente, Literatura
brasileira comentada é composto de três volumes. No v. 1, são estudados textos
que se enquadram no Barroco-Maneirismo (1601-1768), no Arcadismo (17681836) e no Romantismo (1836-1881). No v. 2, aparecem textos que constituem
o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo (1881-1893), o Simbolismo (1893-1902)
e o Pré-modernismo (1902-1922). No terceiro volume, os textos selecionados
integram o Modernismo (1922-1945) e o Pós-Modernismo (1945/1950-).
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Literatura: reflexões conceituais
Estas reflexões têm o objetivo de tangenciar aspetos conceituais que
envolvam a concepção de literatura. Em resumo, objetivam examinar em que
consiste e para que serve a literatura, enquanto disciplina escolar. Em
consequência, procuram auscultar os motivos que nos levam a estudá-la. O
núcleo original da preocupação se localiza nas exposições, discussões, análises,
crítica e teorização da literatura nas aulas de graduação e pós-graduação de
Letras, pesquisa e discussões nos encontros docente-discentes e profissionais.
Agora servem também de introdução aos estudos deste Literatura brasileira
comentada.
Pelo que se pode observar, pelo menos duas preocupações básicas
costumam assaltar o estudioso iniciante, quando o assunto é Literatura. A
primeira constitui a pergunta do ser da literatura: que vem a ser literatura. A
segunda é a questão da finalidade: para que serve a literatura e ou por que
estudá-la.
Muitos rumos se abrem à tentativa teórica da explicitação da questão do
ser da literatura, i. é, das concepções de literatura. A opção deste trabalho é pela
forma como se pode ver coerentemente hoje a literatura, sem, contudo, descurar
de sua existência e permanente presença histórica. Vale dizer: olhar para a
literatura sincronicamente, mas sem lhe desconsiderar o desenvolvimento. É
esse, portanto, nosso caminho inicial.
A palavra literatura provém de littĕra (letra, em latim). Assim, a palavra
literatura aponta ao texto escrito. Antes da escrita e mesmo paralelamente a ela,
a expressão foi (e é, ainda nalguns casos) oral. Nesse caso, tem-se oralitura.
Literatura pode ser concebida como reflexão sobre o mundo, segundo
ensina Schüler (A poesia no Rio Grande do Sul, 1987). A literatura é forma de
reflexão que tem caraterísticas particulares próprias, que precisam ser
analisadas, à medida que as reflexões e justificativas vão sendo examinadas. As
caraterísticas particulares próprias à literatura é que a distinguem das demais
formas de expressão e de comunicação. Sobre elas, portanto, igualmente, deve
recair a atenção dos que se dedicam a estudá-la.
Para a construção do texto literário como para a leitura dele, a reflexão
sobre o mundo, que a literatura propicia, dá-se a partir da observação do mundo.
Essa observação caminha de aspetos simples do mundo aos mais complexos.
A densidade do texto e a habilidade leitora são capazes de transitar da superfície
à profundidade e a surpreendentes descobertas. São essas descobertas que
fazem o primeiro fascínio do texto literário. Por meio delas, abre-se o mundo
mais iluminado. A segunda marca fundamental é a forma, i. é, o discurso que o
texto é capaz de tecer. O discurso literário se constrói a partir de sempre novas
reelaborações sobre recortes das línguas, ou seja, as linguagens caraterísticas
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das diversas culturas. Daí a dificuldade de se falar em criação, pelo menos em
sentido absoluto.
Uma evidência dessa limitação é a preexistência da língua e das
linguagens possíveis, dentre as quais (e a partir delas) o discurso é elaborado.
Outra é a primordialidade do mundo frente às línguas. O mundo, quer como
universo concreto-sensorial, quer como universo imaginário legado e recebido,
antecede os esforços da expressão e da comunicação. Esse mundo é, também
ele, reconstituído pela percepção e pelas reflexões do autor e do leitor do texto,
sobre ele e a partir dele.
A literatura é uma forma de conhecimento do mundo que deve ser
examinada principalmente a partir de caraterísticas particulares. Compõem
essas caraterísticas, entre outras, a imaginação pessoal e o imaginário social. A
imaginação funciona como órgão perscrutador. A imaginação se desenvolve no
produtor do texto e no leitor. O texto irrompe do mundo sob a luz do discurso
composto em cada texto, cuja leitura aguça a reflexão do leitor. O texto propõe
imaginativamente as questões. O leitor, seletivamente, aceita, refuta, completa,
registra e reelabora as propostas. De fato, reescreve texto. O texto se mantém
como espécie de matriz reflexiva e artística, i. é, ilumina caminhos, que o leitor
escolhe, segue ou não. O imaginário se constitui de toda a tradição cultural, que
é constantemente refeita e reorganizada pela palavra, a partir da experiência e
da cogitação. O mais importante de cada um de nós, além do corpo, que é
central, é feito de imaginário. Há quem sacrifique o corpo em favor de valores
culturais, ou seja, imaginários, não corpóreos. Os valores sagrados, p. ex., se
radicam no imaginário. A alegoria e a simbologia impregnam os mitos, as
histórias primordiais. Esses valores vão sendo internalizados e cultuados às
vezes até com a dedicação devota e da entrega. Todas as culturas se identificam
entre si no imaginário, mesmo quando haja deslocamentos e distanciamentos
geográficos e até temporais. Entidades religiosas e vultos históricos, p. ex., são
frequentemente modificados no estereótipo, nas caraterísticas intrínsecas e nos
poderes, processo que tem sido nomeado sincretismo. É amostragem da força
dos imaginários das diversas culturas. Esse fenômeno ocorre analogamente
com as obras de arte, por conseguinte, com a literatura.
O texto literário procede de observação do mundo concreto-sensorial. O
texto desperta e reelabora sentidos para o mundo. O mundo, em última instância,
é o referente principal do texto. Os sentidos do texto se definem e esclarecem
no mundo. O procedimento dialético da leitura, entre texto e mundo, vai-se
transformando em dialógico, i. é, na conversa em mesmo nível, entre leitor e
texto. O mundo, representado também pelo leitor, passa a falar sobre o objeto
do texto (ideário e estilo). De fato, em se tratando de arte, o objeto do texto é
também o próprio texto, para além do ideário e da proposta ideológica. É como
se entende a correlação entre texto e contexto que, como explica Jobim, no
capítulo História da literatura (Palavras da crítica, 1992), interagem de tal forma,
que “contexto se transforma em texto” e vice-versa. O mundo do produtor do
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texto fala ao mundo do leitor. Ambas as leituras do mundo dialogam, centradas
no objeto texto, na acima exposta dual constituição do texto literário. O resultado
são novos sentidos e ou sentidos renovados, modificados, reelaborados,
reatualizados constantemente. Vale dizer: são sentidos constantemente
ressemantizados. Se fosse possível supor ausência de relações implícitas e
explícitas com o mundo, o texto perderia as referências e se esvaziaria de
sentido. Não teríamos, sob essa suposição, conexões de sentido entre texto e
mundo. O texto perderia, nesse caso, o que chamamos de sentido. A fratura
levaria à desconsideração de valor do texto, ou o leitor passa a considerar-se
inferior ao texto, o que, em literatura, nunca deve acontecer.
O texto literário é tecido pela palavra. A palavra é a matéria-prima do texto,
seja ele escrito, seja ele oral. Como há várias concepções de texto, cabe
esclarecer a concepção aqui considerada. Texto, como aqui está concebido, é a
intermediação entre o observador (leitor, ouvinte) e o mundo. O mundo tecido de
palavras do texto remete necessariamente ao mundo concreto-sensorial e sobre
ele estabelece suas observações. Autor e leitor terão pontos de identificação, i.
é, de comunicação, e pontos divergentes, i. é, de ressemantização e
reelaboração do leitor. As palavras, ademais, dão sentido ao mundo e às coisas
do mundo. Identificam, relacionam e organizam as coisas do mundo. As coisas
do mundo adquirem relações compreensíveis quando são nomeadas. Novas
relações adquirirão as coisas, sempre, ao serem renomeadas, se
ressemantizadas. A nominação é a expressão da existência, na linguagem, e o
é, pois, na forma de conhecimento humano. Todo conhecimento humano é,
antes de ser assimilado, linguagem: no princípio era o verbo. As coisas
preexistentes no mundo passam a relacionar-se entre si, com sentido, diante da
nossa compreensão, a partir da nomeação. Donaldo Schüler (aulas de pósgraduação, UFRGS, 1991) se pergunta: “O que não foi dito existe?”
O bloco textual é uma unidade bifronte. A bifrontalidade nem sempre é fácil
de ser observada. As duas faces do bloco são o ideário e o estilo, como já foi
comentado anteriormente. No ideário vai-se encontrar a ideologia predominante
no texto. O ideário, portanto, tampouco aparece unificado. O ideário está
espalhado em concepções postas em discussão, que podem ser, às vezes,
núcleos temáticos. Do ideário (e das concepções) emergem ideias
predominantemente defendidas ao longo do texto. Essas ideias, em conjunto,
podem ser tomadas como a proposta ideológica textual. Para cada intenção,
liminar ou subliminarmente posta, só há uma forma possível de dizê-la. Noutras
palavras: o discurso se especifica de tal maneira, que se torna impossível alterálo, sob pena de modificar e deformar a proposta ideológica. Do mesmo modo,
torna-se impossível tratar de determinada cultura usando a língua e linguagens
de outra, porque a forma é, em arte, a própria mensagem, integra-a
indelevelmente. Em arte, a forma é intrínseca à mensagem. Bem notória disso é
a condição melódica na música: qualquer alteração do arranjo das notas provoca
outra peça musical. É possível identificar a bifrontalidade do texto literário, mas
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não é possível arbitrariamente separar as duas faces do bloco, porque deixaria
de existir a condição literária (literaride) do texto.
Neste ponto da discussão, emerge a velha questão da divisão forma-fundo.
O texto literário constitui, enquanto literário, em razão do estilo em que está
vazado, unidade expressivo-comunicativa necessária e total. Seus elementos
constitutivos estruturais são como os dois lados da folha de papel. É impossível
separá-los. Se mexermos no estilo, necessariamente alteraremos o ideário.
Dessa maneira, ideário e estilo constituem a bifrontalidade do texto literário. Se,
forçadamente, os separarmos, estaremos tomando atitude irreparável para a
integralidade e para a compreensão do texto, que o descarateriza; de fato, o
desfigura como texto literário. Em moldes míticos, isso pode ser concebido na
alegoria no mito hindu do deus hermafrodita primitivo. Tem as duas potências: o
princípio feminino e o princípio masculino. Inicialmente na forma primitiva de
monobloco, ambas potências se mantinham. Foram, porém, as duas potências
depois separadas. Eis que ficamos todos, para sempre, separados da outra parte
(transformados em caras-metades). Esse rompimento provocou a permanente e
perene tendência à situação anterior, i. é, à união permanente e perene entre as
potências masculina e feminina. Trata-se, noutras palavras, da questão da
completude, da plenitude.
A questão da plenitude leva também à reflexão acerca da irredutibilidade
do texto literário. O texto literário não pode ser reduzido. Se o for, seja em que
dimensão for, deixa de ser o texto; passa a ser outro. Essa é a base temática de
Jorge Luís Borges na reflexão a respeito da escritura literária, em Pierre Menar,
autor do Quixote.
O texto literário é também insuperável. Vale dizer: um texto novo não
supera outro(s) anterior(es), porque a diferença e não a superação é apanágio
da literatura e da vida. Podemos ler Homero, Camões, Machado de Assis, Lopes
Neto, Donaldo Schüler, num mesmo tempo. Isso não implica conflito de
superposição ou superação. A diferença é marca preponderante no mundo e nas
artes.
Estas reflexões vêm definindo a literatura como forma de arte. Arte é o quê?
Imaginemos a circunstância de alguém que instrui uma criança a não fazer arte.
A criança desobedece e faz arte. Arte, então, está marcada pela desobediência,
pela diferença relativamente à ordem. Noutras palavras, como também pensa
Schüler (aulas), a arte é subversiva, i. é, a literatura é subversiva. Subverter é
verter de baixo, de dentro, fazer brotar do interior; revolver de baixo para cima;
também significa modificar profundamente, transformar, desestabilizar,
revolucionar. A literatura é, pois, também subversiva no sentido político, i. é, não
se comporta de acordo com os estados políticos (sociais, culturais). O próprio
fato de que há cânones literários e literatura de ótima qualidade fora deles
estabelece com evidência a questão de que a palavra literária não é unificada
nem quanto ao sentido nem quanto à forma. Por isso falamos em literatura
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marginal, dissidente, fora-de-escola, emergente e outras formas de expressar as
diferenças. Daí decorre a possibilidade de se falar em literatura brasileira,
peruana, gaúcha, rio-platense etc.
Outro ângulo sob o qual podemos olhar a questão é pelo conjunto da
diversidade que comporta a história da literatura. O Maneirismo é um pouco
diferente do Barroquismo. O Romantismo é um pouco diferente do Arcadismo e
assim em diante. Há afastamentos e aproximações aos alinhamentos escolares.
Alguma predominância estilístico-temática estabelece precariamente a
classificação. Um texto predominantemente romântico será um texto
enquadrado no Romantismo. Apesar disso, não significa que não possa ter
marcas de outras concepções ideológico-estilísticas. Nada é puro nem perfeito
nem completo. Daí podermos propor o critério da predominância na classificação
dos textos. Esse critério carrega, já intrinsecamente também, a concepção de
que o estilo é preponderante no texto literário, porque vários textos podem
discutir mesmos temas, como o amor, a liberdade, p. ex. O que faz deles
literatura é a força caraterizadora da forma da composição. A forma estilística é
o que alguns denominam estética.
Outras marcas definidoras do texto literário são a irrepetibilidade, a
ilimitabilidade, a liberdade, a plurissignificação, a transgressão, a opacidade, a
incompletude. A literatura pode ainda ser entendida (e explicada) como metáfora
e como metonímia do mundo.
O texto literário, pela liberdade de opção temática e de construção
estilística, procura sempre novos caminhos, construídos pela reelaboração
ideológico-estilística. A irrepetibilidade está também relacionada à condição
inovadora, inventiva da arte. Ao texto literário não há limites de buscas, de
experiências, de realizações, nem do ponto de vista temático nem do ponto de
vista estilístico. O texto considerado literário está marcado pela plurissignificação
e pela opacidade. Por isso se fala, em literatura (e nas artes em geral) em
interpretação. Interpretar é pôr-se o observador (leitor) entre o texto e o mundo
e fazer opções. A interpretação, no entanto, não vai tão longe, a ponto, p. ex., de
desdizer, contradizer ou alterar profundamente o sentido do que está dito. O
sentido transgressor de que o texto literário está impregnado constrói seu caráter
renovador e subversivo, que também a peculiariza.
Porto Alegre, outono de 2015.
Prof Cicero G Lopes
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Capítulo 1
Fonte da Missão jesuíta-guarani de São Miguel Arcanjo, no atual município de São Miguel das
Missões, RS.
BARROCO-MANEIRISMO (1601-1768)
A tradição crítica da literatura brasileira definiu o Barroco-Maneirismo como
a primeira manifestação literária escolar no Brasil. A composição nominal
barroco-maneirismo aqui empregada quer dizer da simultaneidade do
barroquismo e do maneirismo como procedimentos ideológico-estilísticos no
período cronológico, em que esses estilos são considerados predominantes na
produção poética brasileira. Considera-se aqui brasileira a produção conhecida
e veiculada na Colônia, ainda que precariamente, como é possível entender,
dadas as condições para isso nos séculos 17 e 18. Nem territorial, nem
conceitual, nem socialmente a colônia lusitana pode ser imaginada como
entendemos o país em que atualmente vivemos.
O Barroquismo (substantivo originário da forma espanhola barrueco, com
o sentido de trabalhos ornamentais feitos de barro) define-se, na literatura, como
trabalho elaborativo textual esmerado. Contempla formas figuradas na
significação, na sintaxe e no pensamento. Entre as figuras de sintaxe, a antítese
e suas subclassificações se evidenciam com bastante frequência. Isso se deve,
pelo menos em grande parte, aos conflitos existenciais da época. Começava-se
a sair do domínio asfixiante do poder religioso decorrente dos teocentrismos
sucessivos. Também era objetivo construir formas facilmente diferenciáveis
relativamente ao que se denominavam textos do Classicismo, sisudos e
geralmente conservadores de recursos artísticos imperativos, em vigor desde a
Antiguidade. O Barroquismo se manteve vivo especialmente em virtude da ação
intelectual do jesuitismo, como recurso contrarreformista.
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O Maneirismo é substantivo derivado da forma italiana maniera, i. é, jeito,
forma. O Maneirismo, portanto, como o Barroquismo, é estilo de grande trabalho
formal, jeitoso. Por mais motivos que o Barroquismo, o Maneirismo precisava
enlear a frase para dissipar prováveis motivos de perseguições por parte dos
tribunais da Inquisição.
Como o texto literário é forma de arte, o estilo é fundamental na
identificação dele, no estudo e na classificação teórico-técnica sobre ele. A
ideologia é a segunda face do texto artístico-literário. No caso do BarrocoManeirismo, as formas estilísticas básicas foram consideradas acima. A
ideologia de suporte da escola foi o Humanismo. O ideário, como se vai poder
constatar na leitura dos textos, é variado.
Nem sempre é possível diferenciar com clareza marcas estilísticas do
Maneirismo num texto, relativamente ao Barroquismo. Trata-se de estilos
semelhantes. O Maneirismo, contudo, foi a forma diferencial, no período
cronológico em questão, com que a Reforma protestante agiu ideologicamente
frente à reação barroca, i. é, frente à atuação dos jesuítas, cuja ação tentava
recuperar os prejuízos católicos infligidos pela atitude reformista de Lutero. O
Maneirismo propiciou o aparecimento de obras capitais durante o período
histórico do Renascimento europeu. Esse estilo possibilitou que autores
misturassem formas clássicas decadentes (como figuras mitológicas e seus
significados) a novas formas de origem cristã. Por isso é possível lerem-se
poemas, p. ex., em que aparecem forças mitológicas e entidades religiosas em
convivência.
Como colônia, o Brasil foi caudatário dos procedimentos literários das
metrópoles, em função dessa mesma condição colonial. Os dois autores cujos
textos utilizamos nesta antologia têm relação tanto com a vida na colônia quanto
com a da metrópole. Bento Teixeira, pelo que se pôde apurar, é nascido
português. Gregório de Matos tem ascendência portuguesa e estudou e viveu
boa parte da vida em Portugal. Apesar disso, os textos considerados barrocomaneiristas que vamos ler referem-se às pessoas, à terra e às coisas do Brasil.
No caso de Gregório de Matos, há exercícios bem mais apurados de construção
de formas próprias diferenciadas das praticadas em Portugal e na Espanha,
onde o Barroquismo foi, por questões de origem e outros, muito forte.
O Barroco-Maneirismo produziu, pelos autores aqui estudados, apenas
versos. O elogio à coragem, à importância das navegações portuguesas e à
propriedade da Nova Lusitânia para desenvolvê-las, além de reflexões sobre
virtudes e defeitos humanos, são elementos ideológicos apensos ao
Humanismo, fundamento ideológico da escola barroco-maneirista, presentes no
poema narrativo Prosopopeia. Os poemas (na maioria sonetos) de Gregório de
Matos desenvolvem várias linhas temático-estilísticas: o lirismo amoroso
marcado pela sensualidade e pela efemeridade; a sátira social e individual ao
poder, à hipocrisia, às arbitrariedades etc; o misticismo que vige entre a piedade
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e a cobrança; a reflexão poético-filosófica que desenvolve questões como a
efemeridade da vida e das coisas do mundo, preservação da natureza, valores
humanos.
Além de Bento Teixeira e Gregório de Matos têm merecido estudos, na
escola barroco-maneirista brasileira, Ambrósio Fernandes Brandão (Diálogo das
grandezas do Brasil), Antônio Vieira (sermões e cartas), Manuel Botelho de
Oliveira (Música do Parnaso).
BENTO TEIXEIRA Pinto
Bento Teixeira nasceu no Porto em 1545 (?) e faleceu em Lisboa em 1601
(?).
Emigrou com a família para a Bahia, em cujo seminário se matriculou.
Tendo-se revelado israelita, o que consistia problema sério na perspetiva da
Inquisição, moveu-se para Pernambuco. Novamente acusado pela Inquisição,
compôs e dedicou ao governador de Pernambuco, Jorge de Albuquerque
Coelho, o poema Prosopopeia, que apareceu em Lisboa em 1601. Viveu como
professor de gramática, latim e aritmética.
O poema Prosopopeia tem sido considerado pela crítica a primeira
expressão da literatura brasileira.
O excerto transcrito a seguir procura demonstrar formas estilísticas e
ideário do poema e desse momento histórico-literário. Marca-se o poema pela
caraterística fusão, que ocorreu na literatura do Brasil da época, entre
barroquismo e maneirismo, como estilos.
Gravura obtida da edição Melhoramentos-INL de 1977.
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Prosopopeia
I
Cantem poetas o poder romano,
Submetendo nações ao jugo duro;
O mantuano pinte o rei troiano,
Descendo à confusão do reino escuro;
Que eu canto um Albuquerque soberano,
Da fé, da cara pátria firme muro,
Cujo valor e ser, que o céu lhe inspira,
Pode estancar a lácia e grega lira.
II
As délficas irmãs chamar não quero,
Que tal invocação é vão estudo;
Aquele chamo só, de quem espero
A vida que se espera em fim de tudo.
Ele fará meu verso tão sincero,
Quanto fora sem ele tosco e rudo,
Que per rezão negar não deve o menos
Quem deu o mais a míseros terrenos.
XIX
Em o meio desta obra alpestre e dura,
Uma boca rompeu o mar inchado,
Que, na língua dos bárbaros escura,
Paranambuco de todos é chamado:
De Paraná, que é mar; puca, rotura,
Feita com fúria desse mar salgado,
Que, sem no derivar cometer míngua,
Cova do mar se chama em nossa língua.
XLI
Uma cousa me faz dificuldade
E o espírito profético me cansa,
A qual é ter no vulgo autoridade
Só aquilo a que sua força alcança.
Mas, se é um caso raro, ou novidade
Das que, de tempo em tempo, o tempo lança,
Tal crédito lhe dão, que me lastima
Ver a verdade o pouco que se estima.
LXIV
De que servem proezas e façanhas,
E tentar o rigor da sorte dura?
14
Que aproveita correr terras estranhas,
Pois faz um torpe fim a fama escura?
Que mais torpe que ver umas entranhas
Humanas dar a humanos sepultura,
Cousa que a natureza e lei impede,
E escassamente às feras só concede.
XCIV
Aqui deu [fim] a tudo, e brevemente
Entra no carro [de] cristal lustroso;
Após dele a demais cerúlea gente
Cortando a veia vai do reino aquoso.
Eu, que a tal espetáculo presente
Estive, quis em verso numeroso
Escrevê-lo por ver que assim convinha
Pera mais perfeição da musa minha.
Comentários ao poema Prosopopeia
Considerado pela crítica em geral iniciador da literatura brasileira,
Prosopopeia aparece datado de 1601. Coloca-se o poema de Teixeira, portanto,
como igualmente inaugurador do Barroco-Maneirismo. Entroncado a Os lusíadas
de Camões, o poema se estampa em oitava rima. Para ele confluem todas as
consequências desse fato. Além disso, trabalha compositivamente sobre
concepções mais maneiristas que barrocas. Isso se verifica por exemplo no fato
de a prosopopeia nele presente se referir à fala de Proteu, figura antiga míticodivina de origem grega. Proteu é deus grego do mar. As mitologias antigas se
impõem no Maneirismo, ou, pelo menos, dividem o texto com entidades
religiosas, que dominam os textos barrocos. O mar, portanto, fala a respeito da
impossibilidade de travar o avanço lusitano. O que tem o poema de brasileiro, se
isso for possível dizer, em virtude das condições da população leitora aqui
presente (no Brasil de então) e em virtude do que o poema oferece, se verifica
nas alusões, descrições e valorização do ambiente da Nova Lusitânia, que é
como o poema se refere à terra de que Portugal recém se apossara.
Ainda do ponto de vista ideológico, o poema está preso aos encômios que
faz ao também português Jorge de Albuquerque Coelho e à condição da “língua
dos bárbaros escura”. É escura, porque ininteligível aos falantes do idioma do
poder, nessa situação, o português. Claro está que bárbaros são os ameríndios
com quem conviviam os portugueses. Bárbaros são os estrangeiros, os que não
dominam a língua da metrópole, a língua do poder. Focaliza a nova terra como
fortuna lusitana, mas a vê como dádiva do “céu”.
Estruturalmente, Prosopopeia se constitui das partes então indispensáveis
à narrativa épica: proposição, invocação, oferecimento, narração e epílogo. O
poema que cronologicamente o antecede no desenvolvimento da literatura
brasileira, como um dos precursores dela, que focaliza menos o Brasil de então
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(seja aceito dizer) é Dos feitos de Mem de Sá, de autoria de José de Anchieta.
Esse poema manipula a língua mais tradicional do poder e então língua oficial
da igreja católica, o latim. O centro temático, como o diz o título, são os “feitos”
de Mem de Sá, no território que hoje conhecemos como Rio de Janeiro. A
epopeia brasileira por excelência ainda esperaria por Basílio da Gama, na escola
que sucedeu à barroco-maneirista.
Cabe ressaltar as reflexões que faz o poema a respeito de alguns valores
morais. Vale também por nos ajudar a compreender a situação da produção
literária da época, subjugada ainda ao poder católico, representado pelos
tribunais da Inquisição, que autorizou a edição do poema, em território
português, sob os auspícios da coroa, que exclusivamente podia exercer esse
direito.
A primeira e a segunda estrofes representam, no excerto aqui utilizado,
respetivamente a proposição e a invocação. De mistura com figuras da mitologia
antiga, aparece a invocação a Deus, o primeiro recurso que talvez tenha
colaborado na autorização dada ao poema para ser editado. A estrofe dezenove
é descritiva e explica o nome paranambuco, o Pernambuco que conhecemos
hoje. De fato, a descrição se refere ao “recife de paranambuco”. As estrofes
quarenta e um e quarenta e quatro dão tom moralista e reflexivo ao poema, sobre
o que já foi comentado acima. No epílogo, representado pela estrofe 94, narra a
retirada das figuras celestes do mar. Aí se encerra o poema.
Por todas essas razões é que parte da crítica nacional reluta em aceitar o
poema como efetivamente iniciador da literatura brasileira. Como a literatura e a
arte em geral se categorizam nas diferenciações, é possível aceitar o poema
como literatura, especialmente se forem levadas em conta as caraterísticas de
época, representadas pelos cânones da escola literária então vigente, presa aos
ditames ideológico-estilísticos da metrópole, que não aceitaria outra coisa. A
segunda questão é mais problemática: ser esse texto literatura brasileira, já que
para isso deve o texto estabelecer-se como construção de um conjunto cultural
de nação política e ou cultural. A questão se assenta noutra questão: havia
efetivamente o Brasil na qualidade de nação política? A pluralidade cultural aqui
existente, representada por grande e impreciso número de nações autótones,
fica garantida ou, pelo menos, ressalvada no desenrolar do poema como
narrativa, como forma estilística peculiar e como representação ideológica? Essa
era a nação cultural brasileira; a parcela populacional branca, alfabetizada,
europeia ou de origem europeia era representativa do que atualmente
entendemos como o Brasil de então?
16
GREGÓRIO DE MATOS Guerra
Gregório de Matos nasceu em Salvador (BA), em 1633. Frequentou o
Colégio da Companhia de Jesus. Estudou em Coimbra. Aí se diplomou em
Direito (1661) e ingressou na magistratura, carreira que interrompeu para voltar
ao Brasil. Em 1680 retornou a Portugal. Aí se casou. Nessa altura de sua vida,
já teria feito conhecer seu talento de repentista e zombeteiro. No ano seguinte,
retornou à Bahia. Casou pela segunda vez. Passou a advogar e tomou hábitos
(religiosos) menores. Levou vida boêmia e deu livre vazão a seu estilo satírico.
Em razão disso, exilou-se em Angola. Regressou em 1695 para Recife. Aí
faleceu um ano depois (1696).
Exclusivamente poeta, Gregório de Matos apenas teria publicado em vida
um que outro poema. Consta, no entanto, que era reconhecido publicamente,
porque seus poemas eram veiculados e recitados, transmitidos de pessoa a
pessoa. Por essas razões, a totalidade da obra dele se manteve inédita até a
segunda década do século 20, quando Afrânio Peixoto a reuniu em seis volumes
publicados no Rio de Janeiro pela Academia Brasileira de Letras, entre 1923 e
1933, sob o título de Obras.
Do ponto de vista crítico, a obra de Gregório de Matos pode ser estudada,
de acordo com suas conformações estilísticas, como poemas lírico-amorosos
(de cunho geralmente sensual), poemas filosóficos, poemas satíricos, poemas
místicos.
Gregório de Matos é o autor barroco-maneirista brasileiro que tem obtido
maior reconhecimento nacional, pelo menos a partir da segunda década do
século 20, quando seus poemas ganharam edição formal. Como não se
conhecem todos os títulos originais dos poemas de Gregório, nem sempre
coincidem nas nominações. Às vezes, se usam os primeiros versos dos poemas,
ou fragmentos deles, como títulos.
A cidade da Bahia
A cada canto um grande conselheiro
Que nos quer governar cabana e vinha.
Não sabem governar sua cozinha
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
Para a levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
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Trazidos pelos pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam, muito pobres,
Eis aqui a cidade da Bahia.
À cidade da Bahia
Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado,
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz brichote.
Oh, se quisera Deus, que, de repente,
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
Sergipe d’el-rei
Três dúzias de casebres remendados,
Seis becos de mentastros entupidos,
Quinze soldados rotos e despidos,
Doze porcos na praça bem criados.
Dois conventos, seis frades, três letrados,
Um juiz com bigodes, sem ouvidos,
Três presos de piolhos carcomidos,
Por comer dois meirinhos esfaimados.
Damas com sapatos de baeta,
Palmilha de tamanco como frade,
Saia de chita, cinta de raqueta.
O feijão, que só faz ventosidade,
Farinha de pipoca, pão que greta,
De Sergipe d’el-rei esta é a cidade.
Aos caramurus da Bahia
Um calção de pindoba, a meia zorra,
Camisa de urucu, mantéu de arara,
18
Em lugar de cotó, arco e taquara,
Penacho de guarás em vez de gorra.
Furado o beiço, sem temer que morra
O pai, que lho envasou c’uma titara,
Sendo a mãe a que a pedra lhe aplicara
Por reprimir-lhe o sangue que não corra.
Alarve sem razão, bruto sem fé,
Sem mais leis que as do gosto, quando erra.
De paiaiá tornou-se abaité.
Não sei onde acabou ou em que guerra:
Só sei que deste Adão de massapé
Procedem os fidalgos desta terra.
A Maria dos Povos, sua futura esposa
Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca, o sol e o dia:
Enquanto, com gentil descortesia,
O ar, que fresco Adônis te enamora,
Te espalha a rica trança voadora
Da madeixa que mais primor te envia:
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo troca e a toda ligeireza
E imprime a cada flor uma pisada.
Oh não aguardes que a madura idade
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
A dona Ângela
Não vi em minha vida a formosura:
Ouvia falar nela cada dia;
E ouvida, me incitava e me movia
A querer ver tão bela arquitetura.
Ontem a vi, por minha desventura,
Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma mulher, que em Anjo se mentia,
De um Sol que se trajava em criatura.
Me matem (disse então vendo abrasar-me)
Se esta a causa não é, que encarecer-me
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Sabia o mundo, e tanto exagerar-me!
Olhos meus (disse mais por defender-me)
Se a beleza hei de ver para matar-me,
Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me.
A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa Alta Piedade me despido:
Antes, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada;
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Sobre uma estátua encontrada
O todo sem a parte não é todo;
A parte com o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo sem a parte,
Não se diga que é parte sendo o todo.
Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo, cada parte
Em qualquer parte sempre fica todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
O todo fica estando em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas desse todo.
A um passarinho
Contente, alegre, ufano passarinho
Que enche o bosque todo de harmonia,
Me está dizendo a tua melodia,
20
Que é maior tua voz que o teu corpinho.
Como da pequenez desse biquinho
Sai tamanho tropel de vozeria?
Como cantas, se és flor de Alexandria?
Como cheiras, se és pássaro de arminho?
Simples cantas e incauto garganteias,
Sem ver que estás chamando o homicida,
Que te segue por passos de garganta!
Não cantes mais, que a morte lisonjeias;
Esconde a voz e esconderás a vida,
Que em ti não se vê mais que a voz que canta.
A vaidade
É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.
É planta que, de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.
É nau enfim que, em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa
Galhardias aposta com presteza.
Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa,
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?
À inconstância das cousas do mundo
Nasce o Sol; e não dura mais que um dia:
Depois da luz, se segue a noite escura:
Em tristes sombras morre a formosura;
Em contínuas tristezas, a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se tão formosa a luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falta a firmeza;
Na formosura, não se dê constância:
E na alegria, sinta-se tristeza.
21
Começa o mundo, enfim, pela ignorância;
Pois tem qualquer dos bens, por natureza,
A firmeza somente na inconstância.
Comentários aos poemas de Gregório de Matos
No primeiro soneto, A cidade da Bahia, apresentam-se algumas marcas
muito conhecidas do estilo gregoriano. Fundamenta-se na ironia, forma
subversiva de trabalhar semanticamente o poema: o contexto do poema permite
que se leiam significados inversos aos que estão grafados. Assim, p. ex., “grande
conselheiro” quer dizer o contrário; o procedimento é análogo, ainda, em “e
podem governar o mundo inteiro!”. A metonímia é a segunda marca presente
destacável. Ela possibilita ao leitor, p. ex., ler em “cabana e vinha” concepções
semânticas de casa e trabalho. A sátira aparece com evidência no penúltimo
verso, em que, embora a forma são (do verbo ser) esteja elíptica, é patente a
sentença subentendida – os ricos furtam.
Quanto aos aspetos formais, é um soneto tradicional de versos
decassílabos com dois apoios rítmicos centrais e cesura após a sexta sílaba
poética. O esquema rímico é abba nos quartetos e cde nos tercetos.
O segundo soneto, nominado À cidade da Bahia, em virtude da ausência
de títulos originais nos poemas, em geral, do autor. Nesse poema, Gregório
reflete sobre a condição da exploração colonial dos portugueses sobre o Brasil
de então. Hoje não nos parece muito distante essa posição reflexiva, com a
diferença de que hoje são outros os exploradores.
A sátira é mordente no terceiro soneto, denominado Sergipe d’el rei. Não
só o ataque é frontal, como é desmoralizante e parcialmente hilariante.
Aos caramurus da Bahia é um dos mais destacados poemas satíricos
gregorianos, especialmente em virtude do vocabulário empregado, o que faz
realçar as cores da diferença discursivo-literária em relação ao que se praticava
em Portugal e na Espanha, literaturas às quais nosso Barroco-Maneirismo
esteve ligado. As imagens da presença física, do vestuário, do botoque, da
estrutura íntima não perfilam com beleza os remanescentes índios, como eram
por alguns vistos, na época.
A Maria dos Povos estabelece, sob o ponto de vista ideológico, excelente
amostragem da concepção de amor vigente no pensamento barroco-maneirista.
Neste caso, trata-se de forma mais maneirista que barroca, em virtude da
consagração da efemeridade da vida sem outra esperança. Valores
transcendentes desaparecem sob a observação da carnalidade atraente,
marcada pela efemeridade: “[...] o tempo troca e a toda ligeireza / E imprime a
cada flor uma pisada”. A beleza (“flor”) será transformada (trocada), sem
salvação, em terra, cinza, pó, sombra, nada. Mostra-se angustiante a gradação
concebida no último verso do poema.
22
A construção antitética – As sombras e a formosura – parece definir-se
como expressão nítida do Maneirismo, tratado poeticamente no Brasil. A visão
do mundo está entre a dificuldade e a facilidade do prazer carnal. O poema
deixa-se também marcar pela aparente hilaridade, que de fato se revela
chocante e triste.
A Dona Ângela é soneto barroco. Fixa-se na ideia teocêntrica ainda
remanescente do período ideológico anterior, mas ainda por vezes observável.
Entre o prazer carnal e a defesa contra o mal do pecado, encarnado nas
mulheres, o poema, considerado ideologicamente, opta pelo sacrifício físico
(“olhos, cegueis”) e a preservação da proximidade com as esperanças de
transcendência (“do que eu perder-me”).
Poema carateristicamente barroco, A Jesus Cristo Nosso Senhor configura
visão de época dominante. Jesus Cristo é Deus, sem qualquer discussão, e cada
um deve zelar por si próprio pela redenção depois da morte. É a época marcada
pelo tempo em flecha: tudo tem início e fim, menos a eternidade que cada um
deve assegurar com Ele, pela redenção. Jesus Cristo-Homem prometeu isso. O
poema parte disso e condena-o a garantir sua palavra de salvação, ou
descumprirá a palavra empenhada junto à humanidade: “não queirais, Pastor
Divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória”. “Eu sou [...] a ovelha
desgarrada”: vale dizer: tenho prioridade entre outros que estão ou se julgam
salvos. Ou, ainda, toda ovelha desgarrada precisa de especial proteção do
pastor. Esse é, enfim, um poema paradigmaticamente místico, na obra de
Gregório de Matos.
Sobre uma estátua encontrada ou O todo sem a parte não é todo, como
também é conhecido esse soneto, marca-se pelo exercício do barroquismo
cultista, em que o virtuosismo de linguagem aparece como prioritário,
absorvente, definindo o poema como todo. É interessante também observar que
o poema defende a ideia, vigente igualmente na Pós-modernidade, de que a
simples soma das partes não constitui o todo. O todo ultrapassa a soma das
partes. Vale dizer: é necessário ter o todo, para a compreensão das partes e
vice-versa e que nada pode ser entendido na superfície.
23
Capítulo 2
Pastoral de outono, de François Boucher (1703-1770).
ARCADISMO (1768-1836)
Denomina-se Arcádia uma região da Grécia, de vida simples, de pastores
e agricultores. Com tais caraterísticas, o império romano não se interessou pela
região, da qual não seria possível obter o que os impérios desejam: mais
riquezas e mais poder. Desse modo, a Arcádia pôde manter seus costumes e
valores tradicionalmente simples. Desde a Antiguidade, o nome e o símbolo
foram usados como utopia de vida idílica, marcada pela simplicidade, ambiente
feliz, de consagração do amor. Foi a partir disso que jovens da segunda metade
do século 18 e da primeira do 19 entenderam que Arcádia seria interessante
nome para usar em suas associações que reuniam escritores, cientistas,
pensadores. No Brasil, chamaram-se elas, p. ex., Arcádia Ultramarina e Arcádia
dos Esquecidos. Em consequência disso, a escola literária que se seguiu ao
Barroco-Maneirismo foi chamada de Arcadismo.
O Arcadismo constitui a segunda escola literária brasileira, conforme a
tradição crítica do país. A ideologia que sustenta essa escola é o Iluminismo. O
Iluminismo pode ser entendido como detalhamento do Humanismo, que
sustentou o Barroco-Maneirismo. O Iluminismo valoriza especialmente a (luz da)
razão e o conhecimento. Haja vista a célebre frase do francês Descartes (“penso,
24
logo existo”), que foi ideologicamente central nalguns momentos históricoideológicos.
Na literatura arcádica brasileira, contudo, nem sempre essa proposta
ideológica escolar é evidente. Às vezes, nem existe. Parte da produção literária
do Arcadismo brasileiro tem sido denominada pré-romântica. O conjunto de
textos arcádicos que tem sido classificado assim tende ao sentimentalismo, i. é,
por vezes contempla o sentimento como valor central. Por essa razão não parece
discrepante pensar que o Humanismo tem fases. Desse modo, pode-se entender
o Humanismo, o Iluminismo e o Liberalismo (do Romantismo) como formas de
expressão humanista, em sentido geral.
Como a literatura é arte, e arte é forma, acima dos posicionamentos
ideológicos caraterizadores das escolas está a forma, o estilo. O Arcadismo se
marca no Brasil pela construção de poemas líricos e épicos. Em geral são versos
que se notabilizam pela simplificação de recursos estilísticos, relativamente ao
Barroco-Maneirismo. Tendem a valorizar relacionamentos amorosos e questões
políticas centrais aos interesses brasileiros, como a independência do Brasil com
relação a Portugal e a integralização do território então considerado como
brasileiro.
Os autores cujas contribuições aparecem nesta antologia são Tomás
Antônio Gonzaga e Basílio da Gama. Além deles, outros são igualmente
considerados hábeis artistas da palavra arcádica. Tradicionalmente são citados
como árcades líricos Cláudio Manuel da Costa (com obra reunida em Obras
poéticas), considerado o iniciador do estilo arcádico nacional e por isso se mostra
ainda barroco no início; Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Glaura); Inácio José
de Alvarenga Peixoto (obra postumamente reunida); Domingos Caldas Barbosa
(Viola de Lereno). A produção épica, além da de Basílio da Gama (O Uraguai),
foi composta por Cláudio Manuel da Costa (Vila Rica) e José de Santa Rita Durão
(Caramuru).
Tomás Antônio GONZAGA
Gonzaga nasceu na cidade do Porto, Portugal, em 1744, filho de mãe
portuguesa e pai brasileiro. Após ter passado parte da infância no Brasil, retornou
a Portugal (Coimbra), onde se graduou em Direito.
Envolveu-se com a Revolução de Minas, conhecida nacionalmente como
Inconfidência Mineira. Em virtude disso, foi preso e levado ao Rio de Janeiro. Aí
permaneceu até 1792, quando teve a pena comutada em degredo. Seguiu
degredado para Moçambique, onde se casou. Morreu em Moçambique em 1810.
Notabilizou-se o relacionamento amoroso que manteve, em Ouro Preto,
com Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão. Consta que a figura de Maria
25
Doroteia definiu os contornos de sua obra mais conhecida: Marília de Dirceu.
Embora não se trate de poemas confessionais, Marília e Dirceu são nomes
árcades da amada e do poeta, como era costume na literatura da época. A obra
abarca amplo painel desse relacionamento: esperanças, sofrimentos,
frustrações.
Marília de Dirceu está dividida em três partes: na primeira, leem-se a
esperança e o encanto da promissora vida de amor; na segunda, sobressai a
dúvida de chegar a realizá-la; na terceira, aparecem poemas variados que não
têm relação (pelo menos direta) com o episódio existencial citado.
Cartas chilenas é a obra de Gonzaga menos estudada, mas nem por isso
deixa de ser representativa. Cartas chilenas são poemas políticos, em que é
criticada a administração lusitana em Minas Gerais. Esses poemas parecem
caraterizar a forma de publicidade que os jovens utilizaram na época para
conscientização pública em favor da independência nacional, frustrada pela
traição do coronel Silvério dos Reis.
Marília de Dirceu
Lira I (da primeira parte)
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, de expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte:
Dos anos inda não está cortado;
Os pastores que habitam este monte
Respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste
Nem canto letra, que não seja minha.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Mas tendo tantos dotes de ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Depois que o teu afeto me segura
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Que queres do que tenho ser Senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte e prado;
Porém, gentil pastora, o teu agrado
Vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do sol em vão se atreve;
Papoila ou rosa delicada e fina
Te cobre as faces, que são da cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o céu, gentil pastora,
Para glória de Amor igual tesouro!
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Leve-me a sementeira muito embora
O rio, sobre os campos levantado;
Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta:
Para viver feliz, Marília, basta
Que os olhos movas e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Irás a divertir-te na floresta
Sustentada, Marília, no meu braço;
Aqui descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço;
Enquanto a luta jogam os pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Depois que nos ferir a mão da Morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte
De consumir os dous a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
27
Lerão estas palavras os pastores:
“Quem quiser ser feliz nos seus amores
Siga os exemplos, que nos deram estes”.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Comentários à Lira I
A palavra lira utilizada para intitular os poemas carrega o sentido primário,
i. é, do instrumento musical ao som do qual se cantavam poemas (líricos). Daí a
razão de os poemas serem denominados liras. Na primeira estrofe da Lira I da
primeira parte de Marília de Dirceu já se tem a estrutura técnica do poema: são
estrofes de oito versos decassílabos, com rimas finais cruzadas e uma paralela
(sexto e sétimo versos). Cada estrofe tem anexo um estribilho composto de dois
versos hexassílabos.
A primeira palavra (eu) da primeira e da segunda estrofes indica outra
tendência desse e de outros poemas do livro: índice de subjetivismo (que viria a
ser especialmente marcante no Romantismo). A terceira e a quinta estrofes
estabelecem a questão básica do poema: o ter e o ser só terão sentido se a
amada estiver junto. Na quarta e na sexta estrofes os verbos e os pronomes se
relacionam quase todos ao tu da amada. Em consequência, a última estrofe fala
de nós. Do ponto de vista ideológico, o amor é o valor central do poema, a ponto
de o casal (nós) passar a ser exemplo de como os casais devem ser para serem
felizes.
Cabe lembrar que o Arcadismo valorizou o bucolismo, em geral idealizado.
Essa proposta ideológica justifica a situação pastoril do lirismo que contextualiza
os poemas. São exemplos disso, nesta antologia, as liras I e XV de Marília de
Dirceu. A Lira XIV exemplifica parcialmente também essa tendência. A
conjunção das escolhas estilísticas com as propostas ideológicas redundou na
simplicidade dos textos, que, também nesse aspeto, faz divergir a construção
textual dos árcades relativamente aos barroco-maneiristas.
Lira XIV (da primeira parte)
Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do céu brilhante,
Já foi pastor de gado.
A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;
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Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte:
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo e lhe arranca os frios ossos
Ferro do torto arado.
Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim, façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que, frouxo,
A grata posse de seu bem difere,
A si, Marília, a si próprio rouba,
A si próprio fere.
Ornemos nossas testas com as flores
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que passa,
Também, Marília, morre.
Com os anos, Marília, o gosto falta,
E se entorpece o corpo já cansado;
Triste, o velho cordeiro está deitado,
E o leve filho sempre alegre salta.
A mesma formosura
É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Mal chega a longa idade.
Que havemos d’esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças,
E ao semblante a graça.
29
Comentários à Lira XIV
Nessa lira, a estrutura rímica externa é diferente da anterior. Os dois versos
hexassílabos não aparecem em forma de estribilho; estão integrados às estrofes.
A proposta ideológica se altera substancialmente entre a Lira XIV e a Lira
I. Não mais se fala do amor e da felicidade que viriam, mas de que “a sorte deste
mundo é mal segura”, i. é, as coisas mudam. O que mais preocupa é o tempo,
que velozmente transforma e extingue. Nada é seguro. Se o amor não se fizer
agora, quando se fará?
Lira XXXII (da segunda parte)
Se o vasto mar se encapela
E na rocha em flor rebenta,
Grossa nau, que não tem leme,
Em vão sustentar-se intenta;
Até que naufraga e corre
À discrição da tormenta.
Quem não tem uma Beleza,
Em que ponha o seu cuidado,
Se o céu se cobre de nuvens
E se assopra o vento irado,
Não tem forças que resistam
Ao impulso do seu fado.
Nesta sombria masmorra,
Onde, Marília, vivo,
Encosto na mão o rosto,
Fico às vezes pensativo.
Ah! que imagens tão funestas
Me finge o pesar ativo!
Parece que vejo a honra,
Marília, toda enlutada;
A face de um pai, rugosa,
Num mar de prantos banhada;
Os amigos macilentos,
E a família consternada.
Quero voltar os meus olhos
Para outro diverso lado;
Vejo numa grande praça
Um teatro levantado;
Vejo as cruzes, vejo os potros,
Vejo o alfanje afiado.
Um frio suor me cobre,
Lassam-se os membros, suspiro;
Busco alívio às minhas ânsias,
Não o descubro, deliro.
Já, meu Bem, já me parece
30
Que nas mãos da morte expiro.
Vem-me então ao pensamento
A tua testa nevada,
Os teus meigos, vivos olhos,
A tua face rosada,
Os teus dentes cristalinos,
A tua boca engraçada.
Qual, Marília, a estrela d’alva,
Que a negra noite afugenta;
Qual o sol, que a névoa espalha,
Apenas a terra aquenta;
Ou qual Íris, que o céu limpa,
Quando se vê na tormenta:
Assim, Marília, desterro
Triste ilusão e demência;
Faz de novo o seu ofício
A razão e a prudência;
E firmo esperanças doces,
S’abre a cândida inocência.
Restauro as forças perdidas,
Sobe a viva cor ao rosto,
Gira o sangue pela veia
E bate o pulso composto.
Vê, Marília, o quanto pode
Contra os males teu rosto!
Comentários à Lira XXXII
É interessante observar que a primeira estrofe dessa lira começa por
conjunção condicional. Fala de nau sem leme, que por isso naufraga. Falta-lhe
um porto seguro. Na “tormenta” da vida, na situação em que o poeta se encontra
no momento, a condição lírica ainda vê a mulher amada como a salvação. A
“masmorra” e o que espera o condenado (o próprio, cuja voz lírica se ouve) o
afligem. A única maneira de manter esperança é pensar na mulher amada.
Por esses motivos sobrevêm as dúvidas a respeito da realização do amor.
As dificuldades existenciais sobressaem e dificultam a realização das
esperanças.
Lira XV (da segunda parte)
Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro,
Fui honrado pastor da tua aldeia:
Vestia finas lãs e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-se o casal e o manso gado,
Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
31
Para ter que te dar é que eu queria
De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Ainda muito mais que um grande trono.
Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.
Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava, apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te ao menos compassivo o rosto.
Propunha-me dormir no teu regaço
As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoilas na floresta.
Julgou o justo Céu que não convinha
Que a tanto grau subisse a glória minha.
Ah! minha bela, se a Fortuna volta,
Se o bem, que já perdi, alcanço e provo,
Por essas brancas mãos, por essas faces,
Te juro renascer um homem novo,
Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
Amar no céu a Jove e a ti na terra!
Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei dos poucos do meu ganho,
E dentro em pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que as afague, Marília, ou só que as veja.
Se não tivermos lãs e peles finas,
Podem mui bem cobrir as carnes nossas
As peles dos cordeiros mal curtidas,
E os panos feitos com as lãs mais grossas,
Mas ao menos será o teu vestido
Por mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Nós iremos pescar na quente sesta
Com canas e com cestos os peixinhos;
Nós iremos caçar nas manhãs frias
Com a vara envisgada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
32
Reputa o varão sábio, honesto e santo.
Nas noites de serão nos sentaremos
C’os filhos, se os tivermos, à fogueira:
Entre as falsas histórias, que contares,
Lhes contarás a minha, verdadeira:
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
Ainda o rosto banharei de pranto.
Quando passarmos juntos pela rua,
Nos mostrarão c’o dedo os mais pastores,
Dizendo uns para os outros: Olha os nossos
Exemplos da desgraça e sãos amores.
Contentes viveremos dessa sorte,
Até que chegue a um dos dois a morte.
Comentários à Lira XV (da segunda parte)
Bastaria comparar o primeiro verso da Lira XV da segunda parte de Marília
de Dirceu com o primeiro verso da Lira I da primeira parte: “Eu, Marília, não sou
algum vaqueiro” e “Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro” para penetrar na
condição do poema. A forma verbal “sou” se transformou em “fui”, i. é, o olhar
lírico passou do presente ao passado. A situação se repete nas três estrofes
subsequentes. Para conferir isso, seria suficiente retirar uma forma verbal do
primeiro verso de cada uma dessas estrofes: “queria”, “causava”, "propunha”. A
partir da quinta estrofe a situação muda, porque a perspetiva é, então, a
possibilidade de a felicidade voltar – “se a Fortuna volta”. Assim, sempre
relacionada ao primeiro poema do livro, a Lira XV se conclui deixando os
amantes que constituem o casal como “exemplos de desgraça e sãos amores”.
Os dois últimos versos da última estrofe da Lira I preveem: “Quem quiser ser feliz
nos seus amores / Siga os exemplos que nos deram esses”.
Seja ainda permitido examinarem-se aspetos técnicos facilmente
detetáveis distintivos entre a Lira I da primeira parte de Marília de Dirceu e a Lira
XV da segunda parte. As estrofes da Lira XV são sextilhas; não oitavas, como
as da Lira I. Na Lira XV, não há estribilho. O esquema rímico do último poema
analisado é assimétrico: as rimas finais às vezes são continuadas, às vezes
paralelas, às vezes cruzadas, e há versos brancos.
Desse modo, talvez tenha sido possível demonstrar as diferenças técnicas
e ideológicas mais evidentes entre poemas da primeira e da segunda partes da
mais lida das obras de Gonzaga.
33
Cartas chilenas
Carta 1a
Também, prezado Amigo, também gosto
De estar amadornado, mal ouvindo
Das águas despenhadas brando estrondo;
E vendo ao mesmo tempo as vãs quimeras,
Que então me pintam os ligeiros sonhos.
Mas, Doroteu, não sintas, que te acorde;
Não falta tempo, em que do sono gozes;
Então verás Leões com pés de pato;
Verás voarem Tigres e Camelos,
Verás parirem homens, e nadarem
Os roliços penedos sobre as ondas.
Porém, que têm que ver esses delírios
C'os sucessos reais, que vou contar-te?
Acorda, Doroteu, acorda, acorda;
Critilo, o teu Critilo é quem te chama:
Levanta o corpo das macias penas;
Ouvirás, Doroteu, sucessos novos,
Estranhos casos, que jamais pintaram
Na ideia do doente, ou de quem dorme
Agudas febres, desvairados sonhos.
Não és tu, Doroteu, aquele mesmo,
Que pedes que te diga se é verdade
O que se conta dos barbados monos,
Que à mesa trazem os fumantes pratos?
Não desejas saber se há grandes peixes
Que, abraçando os navios com as longas
Robustas barbatanas, os suspendem,
Inda que o vento, que d'alheta sopra,
Lhes inche os soltos, desrizados panos?
Não queres que te informe dos costumes
Dos incultos gentios? Não perguntas
Se entre eles há nações, que os beiços furam?
E outras, que matam com piedade falsa
Os pais, que afrouxam ao poder dos anos?
Pois se queres ouvir notícias velhas,
Dispersas por imensos alfarrábios,
Escuta a história de um moderno Chefe,
Que acaba de reger a nossa Chile,
Ilustre imitador a Sancho Pança.
E quem dissera, Amigo, que podia
Gerar segundo Sancho a nossa Espanha!
34
Comentários às Cartas chilenas
A obra é constituída de poemas (cartas) ideologicamente vinculados à
publicidade de ideias iluministas de intuitos libertários, já, portanto, respingadas
de ideias liberalistas, cujo predomínio se estruturará com o Romantismo, que
então se aproximava. As cartas fazem parte da preparação da Revolução de
Minas, conhecida na nossa história como Inconfidência Mineira. Embora
originalmente anônimas, têm sido atribuídas a Gonzaga. As cartas são
chamadas chilenas, porque (elas mesmas) dizem terem sido compostas no Chile
(por Critilo) e enviadas à Espanha (a Doroteu). O que propugnam, de fato, é o
ataque às vezes frontal (o que os torna satíricos), às vezes subliminar (o que os
torna irônicos) ao poder mantido por Portugal em Minas Gerais, o que equivale
a dizer, por extensão, no Brasil.
O excerto transcrito chama o companheiro, i. é, quem possa ser acordado
do sono perigoso da inconsciência, para a necessidade de combater “um
moderno Chefe [...] / Ilustre imitador a Sancho Pança”.
José BASÍLIO DA GAMA
Basílio da Gama nasceu em São José do Rio das Mortes, atual Tiradentes
(MG), em 1741. Em 1769 concluiu e publicou em Lisboa O Uraguai, seu poema
mais importante. Faleceu em Lisboa em 1795.
O poema O Uraguai representa grande avanço técnico para a literatura
brasileira da época. Na obra, podem-se ler as ansiedades do pensamento
brasileiro que levaram à Inconfidência. O poema trata de tema jamais antes
focalizado nas letras nacionais: a prepotência dominadora dos ocupadorescolonizadores ibéricos, portugueses e espanhóis, contra os índios da nação
guarani. Aldeados em comunidades então denominadas reduções, organizadas
por padres jesuítas, desenvolveram significativa cultura organizacional, social e
artística. Como os religiosos denominavam missões suas atividades de
evangelização, foi com esse nome que ficaram conhecidas as aldeias. Com o
objetivo de demonstrar a importância desses sítios, a Unesco tombou as ruínas
das chamadas Missões jesuítico-guaraníticas como patrimônios da humanidade,
em territórios brasileiro e argentino (atuais). Por interesses de posse de terras,
escravização de ameríndios, domínio político e econômico, Portugal e Espanha
formaram dois exércitos unificados e marcharam contra as reduções
35
implantadas à margem esquerda do rio Uruguai. Essa, aliás, é a razão do título
do poema. Esses exércitos sustentavam-se politicamente no Tratado de Madri,
assinado entre as duas potências marítimo-militares da época. Essa atitude de
extremada violência já indicava a decadência política desses países.
Ainda ideologicamente, o poema tem alta relevância, em virtude de ter
assumido tendência de valorização humanista relativamente aos ameríndios, na
qualidade de seres humanos dignos de consideração. Os grandes heróis não
são, no poema, europeus, apesar de textualmente aparecer em destaque a
presença de Gomes Freire de Andrade, chefe militar português, comandante
geral da investida contra as Missões. Heróis plenos são, de fato, personagens
da terra: os índios Cacambo, Lindoia, Sepé, Nhenguiru, por exemplo.
O poema granjeou reconhecimento público e oficial ao autor. Com a
aparente demonstração de apoio à política pombalina no Brasil, Basílio da Gama
obteve uma série de êxitos sociais: recebeu carta de fidalguia e nobreza e
publicou mais um poema, Quitúbia (1791). O poema Quitúbia deixa ver que o
poeta não conseguiu levá-lo a cabo, especialmente considerado o trabalho que
executou na obra máxima que compôs.
Do ponto de vista estilístico, Basílio da Gama ofereceu impactante
demonstração de inventividade e de aperfeiçoamentos técnicos. É épico, porém
sem marcas tradicionais da epopeia praticada em língua portuguesa. O poema
não foi construído em estrofes camonianas, como então era a tendência. São
versos têm rimas assimétricas e sonorizações expressivas e sugestivas. A breve
extensão do poema igualmente aponta à libertação dos cânones então vigentes.
O Uraguai tem sido, por parte da crítica, considerado parcialmente préromântico, em razão das às vezes evidentes e às vezes subliminares simpatia e
valorização dos ameríndios, demonstradas nos versos do poema. No Brasil, o
índio foi emblema da pátria, durante o Romantismo.
36
O Uraguai
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilheria.
Musa, honremos o Herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!
E vós, por quem o Maranhão pendura
Rotas cadeias e grilhões pesados,
Herói e irmão de heróis, saudosa e triste,
Se ao longe a vossa América vos lembra,
Protegei os meus versos. Possa entanto
Acostumar ao voo as novas asas
Em que um dia vos leve. Desta sorte,
Medrosa deixa o ninho a vez primeira
Águia, que depois foge à humilde terra
E vai ver de mais perto no ar vazio
O espaço azul, onde não chega o raio.
Já dos olhos o véu tinha rasgado
A enganada Madri, e ao Novo Mundo,
Da vontade do rei, núncio severo,
Aportava Catâneo: e ao grande Andrade
Avisa que tem prontos os socorros
E que em breve saía ao campo armado.
Não podia marchar por um deserto
O nosso general, sem que chegassem
As conduções, que há muito espera.
[...]
Diz-lhe que está vizinho e traz consigo,
Prontos para o caminho e para a guerra,
Os fogosos cavalos e os robustos
E tardos bois que hão de sofrer o jugo
No pesado exercício das carretas.
Não tem mais que esperar, e sem demora
Responde ao castelhano que partia,
E lhe determinou lugar e tempo
Para unir os socorros ao seu campo.
[...]
Atrás dos forçosíssimos cavalos,
Quentes sonoros eixos vão gemendo
37
Co peso da funesta artiheria.
Vinha logo de guardas rodeado
– Fonte de crimes – militar tesouro,
Por quem deixa no rego o curvo arado
O lavrador, que não conhece a glória;
E, vendendo a vil preço o sangue e a vida,
Move, e nem sabe por que move, a guerra.
[...]
Entrara
Sem mostras nem sinal de cortesia
Sepé no pavilhão. Porém Cacambo
Fez, ao seu modo, cortesia estranha,
E começou: – Ó general famoso,
Tu tens à vista quanta gente bebe
Do soberbo Uraguai à esquerda margem.
Bem que os nossos avôs fossem despojo
Da perfídia de Europa, e daqui mesmo
Cos não vingados ossos dos parentes
Se vejam branquejar ao longe os vales,
Eu, desarmado e só, buscar-te venho.
Tanto espero por ti. E enquanto as armas
Dão lugar à razão, senhor, vejamos
Se se pode salvar a vida e o sangue
De tantos desgraçados. Muito tempo
Pode ainda tardar-vos o recurso
Com o largo oceano de permeio,
Em que os suspiros dos vexados povos
Perdem o alento. O dilatar-se a entrega
Está nas nossas mãos, até que um dia
Informados os reis nos restituam
A doce antiga paz. Se o rei de Espanha
Ao teu rei quer dar terras com mão larga
Que lhe dê Buenos Aires e Correntes
E outras, que tem por estes vastos climas;
Porém não pode dar-lhe os nossos povos.
E inda no caso que pudesse dá-los,
Eu não sei se o teu rei sabe o que troca,
Porém tenho receio que o não saiba.
Eu já vi a Colônia portuguesa
Na tenra idade dos primeiros anos,
Quando meu velho pai cos nossos arcos
Às sitiadoras tropas castelhanas
Deu socorro e mediu convosco as armas.
E quererão deixar os portugueses
38
A praça, que avassala e que domina
O gigante das águas, e com ela
Toda a navegação do largo rio,
Que parece que pôs a natureza
Para servir-vos de limite e raia?
Será; mas não o creio. E depois disso,
As campinas que vês e a nossa terra
– Sem o nosso suor e os nossos braços –
De que serve ao teu rei? Aqui não temos
Nem altas minas, nem caudalosos
Rios de areias de ouro. Essa riqueza
Que cobre os templos dos benditos padres,
Fruto da sua indústria e do comércio
Da folha e peles, é riqueza sua.
Com o arbítrio dos corpos e das almas
O céu lha deu em sorte. A nós somente
Nos toca arar e cultivar a terra,
Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
Pobres choupanas e algodões tecidos
E os arcos e as setas e as vistosas penas
São as nossas fantásticas riquezas.
Muito suor e pouco ou nenhum fasto.
Volta, senhor, não passes adiante.
Que mais queres de nós? Não nos obrigues
A resistir-te em campo aberto. Pode
Custar-te muito sangue o dar um passo.
Não queiras ver se cortam nossas frechas.
Vê que o nome dos reis não nos assusta.
O teu está mui longe; e nós, os índios,
Não temos outro rei mais do que os padres.
Acabou de falar; e assim respondeu
O ilustre general: – Ó alma grande,
Digna de combater por melhor causa.
Vê que te enganam: risca da memória
Vãs, funestas imagens, que alimentam
Envelhecidos, mal fundados ódios.
Por mim te fala o rei: ouve-me, atende
E verás uma vez nua a verdade.
Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres
Era viver errantes e dispersos,
Sem companheiros, sem amigos, sempre
Com as armas na mão em dura guerra,
Ter por justiça a força e pelos bosques
39
Viver do acaso, eu julgo que inda fora
Melhor a escravidão que a liberdade,
Mas nem a escravidão, nem a miséria
Quer o benigno rei que o fruto seja
Da sua proteção. Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os padres – como vós, vassalos –
É império tirânico, que usurpam.
Nem são senhores, nem vós sois escravos.
O rei é vosso pai: quer-vos felizes.
Sois livres, como eu sou; e sereis livres,
Não sendo aqui, em outra qualquer parte.
Mas deveis entregar-nos estas terras.
Ao bem público cede o bem privado.
O sossego da Europa assim o pede.
Assim manda o rei. Vós sois rebeldes,
Se não obedeceis; mas os rebeldes,
Eu sei que não sois vós – são os bons padres,
Que vos dizem a todos que sois livres,
E se servem de vós como de escravos.
Armados de orações vos põem no campo
Contra o fero trovão da artilheria,
Que os muros arrebata; e se contentam
De ver de longe a guerra: sacrificam,
Avarentos do seu, o vosso sangue.
Eu quero à vossa vista despojá-los
Do tirano domínio destes climas,
De que a vossa inocência os fez senhores.
Dizem-vos que não tendes rei? Cacique,
E o juramento de fidelidade?
Porque está longe, julgas que não pode
Castigar-vos a vós e castigá-los?
Generoso inimigo, é tudo engano.
Os reis estão na Europa, mas adverte
Que estes braços, que vês, são os seus braços.
Dentro de pouco tempo um meu aceno
Vai cobrir este monte e essas campinas
De semivivos palpitantes corpos
De míseros mortais, que inda não sabem
Por que causa o seu sangue vai agora
Lavar a terra e recolher-se em lagos.
Não me chames cruel: enquanto é tempo,
Pensa e resolve – e, pela mão tomando
Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade
40
Intenta seduzi-lo por brandura.
E o índio, um pouco pensativo, o braço
E a mão retira; e, suspirando, disse:
Gentes de Europa, nunca vos trouxera
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde
Estendeu entre nós a natureza
Todo esse plano espaço imenso de águas.
Prosseguia talvez; mas o interrompe
Sepé, que entra no meio e diz: – Cacambo
Fez mais do que devia; e todos sabem
Que estas terras, que pisas, o céu livres
Deu aos nossos avôs; nós também livres
As recebemos dos antepassados.
Livres as hão de herdar os nossos filhos.
Desconhecemos, detestamos jugo
Que não seja o do céu, por mão dos padres.
As frechas partirão nossas contendas
Dentro de pouco tempo; e o vosso mundo,
Se nele um resto houver de humanidade,
Julgará entre nós: se defendemos
– Tu a injustiça, e nós, o Deus e a Pátria.
Enfim, quereis a guerra e tereis a guerra.
[...]
Não faltava,
Para se dar princípio à estranha festa,
Mais que Lindoia. Há muito lhe preparam
Todas de brancas penas revestidas
Festões de flores as gentis donzelas.
Cansados de esperar, ao seu retiro
Vão muitos impacientes a buscá-la.
Esses de crespa Tanajura aprendem
Que entrara no jardim triste e chorosa,
Sem consentir que alguém a acompanhasse.
Um frio susto corre pelas veias
De Caitutu, que deixa os seus no campo;
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca coa vista e teme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota e interna
Parte do antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Esse lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
41
Para morrer a mísera Lindoia.
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente e lhe passeia e cinge
Pescoço e braços e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim, sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la e temem
Que desperte assustada e irrite o monstro
E fuja e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora,
Dobrou as pontas do arco e quis três vezes
Soltar o tiro e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindoia e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo coa ligeira cauda
O irado monstro e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste e verte, envolto
Em negro sangue, o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindoia
O desgraçado irmão, que, ao despertá-la,
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte, e muda aquela língua
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime e a voluntária morte
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
42
Um não-sei-quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece,
Tanto era bela no seu rosto a morte!
Indiferente, admira o caso acerbo
Da estranha novidade ali trazido
O duro Balda; e os índios, que se achavam,
Corre coa vista e os ânimos observa.
[...]
Fez proezas Sepé naquele dia.
Conhecido de todos, no perigo
Mostrava descoberto o rosto e o peito,
Forçando os seus co exemplo e coas palavras.
Já tinha despejado a aljava toda,
E destro em atirar, e irado e forte
Quantas setas da mão voar fazia
Tantas na nossa gente ensanguentava.
Setas de novo agora recebia,
Para dar outra vez princípio à guerra.
Quando o ilustre espanhol que governava
Montevidéu, alegre, airoso e pronto,
As rédeas volta ao rápido cavalo
E, por cima de mortos e feridos
Que lutavam coa morte, o índio afronta.
Sepé, que o viu, tinha tomado a lança
E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço
A despediu. Por entre o braço e o corpo
Ao ligeiro espanhol o ferro passa:
Rompe, sem fazer dano, a terra dura
E treme fora muito tempo a hástea.
Mas de um golpe a Sepé na testa e peito
Fere o governador, e as rédeas corta
Ao cavalo feroz. Foge o cavalo
E leva involuntário e ardendo em ira
Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse
Que regada de sangue aos pés cedia
A terra, ou que pusesse as mãos em falso,
Rodou sobre si mesmo, e na caída
Lançou longe a Sepé. – Rende-te, ou morre!
Grita o governador; e o tape altivo,
Sem responder, encurva o arco, e a seta
Despede, e nela lhe prepara a morte.
Enganou-se esta vez. A seta um pouco
Declina, e açouta o rosto a leve pluma.
Não quis deixar o vencimento incerto
43
Por mais tempo o espanhol e arrebatado
Com pistola lhe fez tiro aos peitos.
Era pequeno o espaço, e fez o tiro
No corpo desarmado estrago horrendo.
Viam-se dentro pelas rotas costas
Palpitar as entranhas. Quis três vezes
Levantar-se do chão: caiu três vezes,
E os olhos já nadando em fria morte
Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.
[...]
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos
Embora um dia a escura noite eterna.
Tu vive e goza a luz serena e pura.
Vai aos bosques de Arcádia – e não receies
Chegar desconhecido àquela areia.
Ali de fresco entre as sombrias murtas
Urna triste a Mireo não todo encerra.
Leva de estranho céu, sobre ela espalha
Coa peregrina mão bárbaras flores.
Comentários aos excertos do poema O Uraguai
Dada a extensão do excerto, a análise será feita por sequências. As
sequências transcritas se limitam nos sinais de supressão. Estão transcritas,
portanto, seis sequências.
A primeira estabelece a proposição (caraterística dos poemas narrativos). 1
No caso d’O Uraguai, a proposição vem antecedida por breve descrição do
campo de batalha, em que “ondeiam cadáveres despidos” (porque são de
índios). É portanto esse o tema da narrativa. Aí surge o primeiro rompimento com
a epopeia tradicional feito internamente, no poema. Invoca a musa, e
imediatamente a invocação se mistura ao oferecimento e ao pedido de proteção
(também tradicional na epopeia) ao poder estabelecido, para que o poema possa
vir a lume. Localiza, portanto, o cenário da narrativa: um campo de batalha no
território que ele denomina Uraguai (região à margem esquerda do rio Uruguai),
onde se localizaram as Missões jesuítico-guaraníticas no atual território brasileiro
(RS), cuja destruição por portugueses e espanhóis e dramas internos da
população ameríndia o poema narra e analisa. Apresenta já dois personagens
centrais do poema, formalmente considerados (v. comentário que antecede o
excerto): Andrade, o comandante português, e Catâneo, o espanhol. A narração,
aí iniciada, faz o leitor perceber o encontro entre os dois chefes brancos.
1
As epopeias se compõem tradicionalmente de cinco partes: proposição, invocação, oferecimento,
narração, epílogo.
44
Na segunda sequência, “nosso general” (Andrade) determina o local do
encontro das tropas portuguesas com as espanholas.
Na terceira, podem-se perceber a perícia descritiva e os lances de
concepção ideológica que o poema habilmente constrói.
A quarta sequência narra o encontro de Cacambo e Sepé, líderes guaranis,
com Andrade. Nessa sequência, Cacambo demonstra habilidade de expressão,
um tanto marcada por sinais do Iluminismo, mas destoa dele em função da
aceitação do poder “dos padres”. A bela investida de Cacambo passa então a
ser respondida por Andrade, que mostra determinação de executar a tarefa que
lhe foi encomendada. Na última parte dessa sequência aparece Sepé, que,
diferentemente de Cacambo, se mostra decidido a oferecer resistência
guerreira.2 Isso aparentemente o coloca em situação menos racional, i. é,
afastado das concepções iluministas; vale dizer: aproxima-o da imagem do
incivilizado.
A quinta sequência é a parte mais conhecida e elogiada do poema. Temse-lhe dado título particular: A morte de Lindoia. Lindoia, noiva de Cacambo,
procura uma serpente para utilizá-la como meio de suicídio, porque, com
Cacambo morto por traiçoeira morte, ela seria obrigada a casar-se com outra
pessoa, que encarnava interesses dos religiosos.
A seguir, breve análise das razões disso. Cacambo, que se mostra
contrário à guerra, opõe-se, por esse motivo, ao interesse dos jesuítas, de
acordo com a narrativa. Com isso, Cacambo se constrói, enquanto personagem,
como ideologicamente partidário das ideias iluminista-pombalinas. Lembremos
que Pombal expulsou os jesuítas do território do Brasil. Cacambo, portanto, é um
líder inoportuno aos interesses dos jesuítas. Por isso, é assassinado por decisão
do padre Balda. Balda tem um filho chamado Baldeta. Com Cacambo morto,
Lindoia é forçada a casar-se com Baldeta. Ela, porém, prefere a morte: por isso
“era bela no seu rosto a morte”.
Sob o ponto de vista ideológico, o episódio da morte da índia Lindoia é
profundamente importante.
Havia, no Brasil, então, quem discutisse a condição indígena: homem ou
meio-homem, i. é, homem-animal, aquele em quem a alma (no conceito
religioso) está ausente. Dessa forma, poderia ser escravizado. Era polêmica de
época, que ameaçava poderes. O amor, um sentimento, leva Lindoia à decisão
fatal. Noutras palavras: o maior valor concebido por ela era o amor. Ora, o amor
é um sentimento pessoal, exclusivo. Em consequência disso, Lindoia, ou seja,
os ameríndios não são animais, mas pessoas dotadas de sentimentos nobres.
Esse fato, entre outras tendências do Arcadismo brasileiro, tem sido apontado
como prenunciador do Romantismo. Os árcades procuravam ideologicamente o
2
Sepé Tiaraju é conhecido no Rio Grande do Sul como o primeiro guardião da terra, herói da formação de
valores nativos.
45
nativismo, ou seja, valorização das coisas da terra natal. Eis por que, p. ex.,
Basílio da Gama, entre outras motivações, escolheu personagens ameríndios a
enaltecer, embora, por força da circunstância de poder na época, não deixou de
promover alguns nomes portugueses e espanhóis.
A morte de Lindoia tem sido lido por alguns como lírico no poema épico.
Essa prática não destoa, contudo, da tradição. N’Os lusíadas, é igualmente
destacado o episódio da morte de Inês de Castro e da vingança do príncipe que
a amava.
A sexta sequência é o epílogo do poema. Nele o poeta vaticina
positivamente sobre o poema que se conclui. Destacam-se os dois versos finais,
em que pede “flores” levadas por “mãos bárbaras”. Vale dizer: dá-se identificação
entre as novidades técnica e temática do poema e os costumes e atitudes dos
bárbaros, i. é, dos ameríndios, representados pelos personagens da nação
guarani da margem esquerda do rio Uruguai. Isso representa o esforço e a
consciência da diferença, com que o poema sugere outra literatura, não mais a
até então conhecida e enaltecida, a lusitana; por extensão, a europeia.
Vale lembrar que bárbaro, de acordo com o étimo grego (bárbaros), diz do
indivíduo ou comunidade cultural que não fala a língua do poder, o estrangeiro,
com relação a quem fala (em nome do poder). Nesse caso, parece aludir à
literatura cultivada até então, fora do Brasil, ou fora da América, como se
costumava então mais frequentemente dizer. Esse uso foi muito frequente entre
nossos românticos (Gonçalves Dias e Alencar subnominavam poemas e
romances que produziam como “poesia americana” e “romance americano”).
Essa noção antitética de língua culta versus língua bárbara já pôde ser
observada, neste estudo, na leitura do poema Prosopopeia, na passagem em
que é explicada a origem do substantivo Pernambuco: “língua dos bárbaros
escura” – aparece escrito. Os bárbaros são os povos que os lusitanos
encontraram aqui. A língua é “escura”, porque é desconhecida dos recémchegados e porque ela não carrega o estigma do poder reconhecido nos reinos
possessores.
Breve exame técnico pode mostrar também outras caraterísticas
interessantes no poema. Tomados os cinco primeiros versos, por exemplo, sob
o ponto de vista do metro e do ritmo, têm-se versos decassílabos, com icto
central na quarta sílaba poética. Embora tenha o poema sido visto por alguns
estudiosos como construído em versos brancos, isso não parece exato. Nesses
cinco versos, há rimas internas entre os versos 1 e 4; 3 e 5. Outras rimas menos
evidentes são, por exemplo, as que ocorrem entre o icto central do primeiro verso
e os finais dos versos 3 e 5; entre o icto central do segundo verso e os finais do
primeiro e do quarto. O que se pode seguramente dizer, em consequência dessa
observação, é que o poema está cuidadosamente sonorizado.
46
Capítulo 3
A Liberdade conduzindo o povo, por Eugène Delacroix (1798-1863).
ROMANTISMO (1836-1881)
Comecemos pela palavra romantismo. Romantismo radica na palavra
roma, que nomeia a atual capital da Itália. Roma era a zona politicamente central
do Lácio (Latium, em latim). A partir dessa região, os latinos moveram suas
incursões guerreiro-imperialistas. Levavam sua língua, o latim, cuja forma falada
é denominada latim vulgar (do povo geral, por oposição ao clássico, escrito, do
poder). Na Península Ibérica, foram dominando tribo a tribo. O latim vulgar era
cada vez modificado, em contato com os falares dos povos militar e politicamente
anexados. Esses falares foram chamados de romances ou romanços, i. é, falares
(porque não eram línguas escritas), cuja base era o idioma de Roma.
O século 19 foi buscar nos romances ou romanços, que eram falares do
povo comum, a nominação que lhes interessava, para designar a tendência
antiaristocrática que o Romantismo deveria ter. A ideologia que sustentou o
Romantismo foi o Liberalismo, que teve profundo e amplo papel modificador. É
resultado do pensamento romântico-liberal a destituição do poder das
aristocracias e a constituição das repúblicas modernas. Os românticos, portanto,
se autoimputaram a condição de proximidade ao povo comum. Daí também a
proposta ideológica e técnica da literatura romântica ser libertária, vale dizer,
estar marcada pela ideia da liberdade temática e técnica. Os românticos
valorizaram a liberdade em todas suas dimensões. Duas dessas dimensões
ficaram bem marcadas até nossos dias. A primeira é a liberdade de escolha do
par amoroso. Os românticos tornaram definitiva a escolha pessoal, baseada em
simpatia, desejo, admiração, encantamento, amor etc, que o indivíduo faz de
quem o acompanhará por toda vida ou parte dela. É isso que leva as pessoas
ainda hoje a designarem como romântica a pessoa ou atitude que demonstre
47
valorização do sentimento amoroso. Essa atitude pessoal, baseada no
sentimento, veio superar, como valor social, a concepção aristocrática do
casamento por outros interesses, como os políticos, econômicos, ou seja, veio
banir a decisão de outrem sobre a vida individual. A escolha do par pelos pais,
portanto, passou a ser combatida pelos românticos, e isso foi uma das forças
coletivas que o Romantismo desenvolveu a seu favor. A segunda é a liberdade
cultural. As culturas devem ser autótones, pensavam os românticos. Ainda que
os românticos, no mundo, tenham partido de experiências internacionais, o que
passa a valer, segundo eles, são expressões culturais caraterísticas, como a dos
índios, a dos gaúchos, a dos sertanejos, a dos negros, p. ex.
A concepção romântica de povo, em oposição à aristocracia ou burguesia,
contribui à valorização e tematização dos oprimidos sociais. A isso converge
igualmente a escolha de categorias sociais subalternas ou pouco conhecidas. O
caso das mulheres, que foram em geral muito focalizadas, é especial: elas foram
contempladas com a cooptação romântica ao cristianismo: isso fez delas às
vezes um tanto divinizadas, em aproximação à figura religiosa da mãe de J.
Cristo. Isso explica a preferência às virgens; no casamento, a maternidade lhes
devolvia a aura de sacralização.
Há outros itens consideráveis nessa proposta, como o da liberdade política.
Os atuais países latino-americanos, p. ex., começaram a constituir-se a partir
dessas ideias libertárias. Não menor foi o efeito dessas ideias libertárias sobre
movimentos revolucionários internos, como a Revolução Farroupilha, no Brasil.
Também a juventude da época romântica via a natureza como elemento de
libertação das regras sociais, das imposições e dos compromissos. Diziam os
poetas que é possível falar com Deus na natureza: Deus fala na e pela natureza.
Esse fato corroborava a ideia, que também mantinham, de que o indivíduo é
supremamente importante. O indivíduo é, de fato, uma recriação romântica, na
medida em que a preocupação básica de cada um – por isso praticavam essa
ideia os poetas, p. ex. – era dizer o que vai dentro de si próprio. Expor a
individualidade representou ato de libertação. Assim, pois, era possível
desconsiderar regras formais de construção textual. Eu é pronome muito usado,
porque, com ele, o poema pode dizer da intimidade, sem refrear-se nem
constranger-se. Essa supervalorização do indivíduo também era aplicada contra
etiquetas sociais. Nesse sentido, os românticos foram os primeiros hippies.
O Romantismo, no Brasil, foi muito prolífico. Produziu fértil diversidade de
poemas, romances, novelas e contos. Poemas e romances foram
predominantes. Poemas como Canção do exílio de Gonçalves Dias, Meus oito
anos de Casimiro de Abreu e O navio negreiro de Castro Alves ajudaram a
construir a consciência cultural brasileira. A produção poética do romantismo
brasileiro tem sido dividida em três estilos de época. Os primeiros têm sido
chamados de iniciadores, nacionalistas-indianistas, entre os quais talvez o mais
conhecido seja o maranhense Gonçalves Dias. Os segundos na sequência são
48
os ultrarromânticos, entre os quais se nomeia o fluminense Casimiro de Abreu.
Os últimos são os condoreiros, entre os quais se destaca o baiano Castro Alves.
A prosa romântica brasileira é constituída quase totalmente por romances.
Foi com o Romantismo que começou a nascer o romance brasileiro. Joaquim de
Macedo com A Moreninha, Caldre e Fião com O corsário, José de Alencar com
O guarani, p. ex., além de vários outros, colaboraram decisivamente para a
formação e o desenvolvimento da prosa romanesca brasileira.
Antônio GONÇALVES DIAS
Gonçalves Dias nasceu em 1823, nos arredores de Caxias (MA). Em 1838
partiu para Coimbra, a fim de estudar Direito. Durante o curso, escreveu seus
primeiros versos e participou do grupo de poetas medievistas que se reunia em
torno de O trovador. Formado, em 1844 regressou ao Maranhão. Aí conheceu
Ana Amélia Ferreira do Vale. Parece ter sido ela o centro reflexivo do poema
Ainda uma vez – adeus! Em 1846, mudou-se para o Rio de Janeiro. Aí se dedicou
ao magistério (professor de Latim e História do Brasil no Colégio Pedro II); ao
jornalismo (redator da revista Guanabara) e à elaboração de sua obra poética,
teatral, etnográfica e historiográfica, a última das quais relacionada com as várias
missões de estudos que lhe foram destinadas, aqui e no estrangeiro. Faleceu ao
regressar da Europa, em naufrágio, já próximo da terra natal, em 1864.
Publicou Primeiros cantos (1846); Segundos cantos e Sextilhas de Frei
Antão (1848); Últimos cantos (1851); Novos cantos e Os timbiras (1857);
Dicionário da língua tupi (1858). Para o teatro, produziu Patkul e Beatriz de Cenci
(1843); Leonor de Mendonça (1846). Foram editadas suas Obras póstumas, em
6 volumes, organizadas por Antônio Henriques Leal (1868-1869).
Tem sido considerado primeiro poeta autenticamente brasileiro, na
sensibilidade, na temática e na técnica. É das mais altas vozes de nosso lirismo.
Considera-se que a obra de Gonçalves Dias representa a contribuição mais
expressiva da primeira fase da poesia romântica brasileira, a dos indianistas
nacionalistas. Poemas como Canção do exílio, que haveria de ser reescrito
dialogicamente por vários outros poetas nacionais, a começar, ainda durante o
Romantismo, são composições que ajudaram e ajudam a construir a concepção
nacional ao Brasil.
Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam
49
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida, mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro eu cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Comentários ao poema Canção do exílio
Canção do exílio saiu em Primeiros cantos (1846). O poema representa a
real instauração das condições do poema romântico brasileiro no estilo de época
conhecido como nacionalista e nacionalista-indianista. Claro está que se marca
como nacionalista. Não há nele recursos técnicos ou semânticos que o possam
indicar como indianista. Pode-se dizer, ainda, como introdução ao estudo desse
poema, que marcou de tal maneira a cultura literária nacional, que produziu
várias outras canções do exílio, ainda que nem sempre com o mesmo título.
Além da de Casimiro de Abreu (Exílio), ainda no Romantismo, são bem
conhecidas a de Oswald de Andrade (Canto de regresso à pátria), no
Modernismo, e a de Chico Buarque (Sabiá), no Pós-modernismo.
O contato ótico inicial com o poema o mostra em cinco estrofes, das quais
três são quadras e duas são sextilhas. Tanto quadras como sextilhas são formas
estróficas que sugerem aproximação a formas populares em versos. Isso abona
a busca romântica pela expressão oral, ligada às tradições culturais populares.
A mesma coisa se pode dizer a respeito da assimetria entre as estrofes: quadras
e sextilhas. As quadras (notadamente as heptassílabas) e as sextilhas têm
tradição também ibérica. Na Idade Média, a quadra e a sextilha estiveram
bastante presentes na construção poético-lírica e poético-narrativa na Península
Ibérica.
50
No exame fônico, as quadras são heptassílabas isométricas, com rimas
internas e externas. Os ictos estão em 3 e 7, com exceção do terceiro verso da
primeira (2 e 7). Idêntica organização se encontra nas sextilhas, que, como as
quadras, contêm uma alteração (segundo verso da primeira). Essa aparente
discrepância tampouco é falha. Essa escolha se justifica pelo mesmo motivo da
opção por quadras e sextilhas. Cabe ainda ressaltar que, a partir do que os títulos
do livro e do poema sugerem, é um poema para ser cantado: são cantos e
canção. A proposta mais uma vez se adequa à condição ideológico-estilística
romântica, como escola fundada na ideologia liberal pós-iluminista. O
Romantismo coerentemente buscou se aproximar das formas libertadoras que o
vinculassem ao jeito de expressões ligadas às populações também sem livros.
Vale dizer: a canção pode ser texto de expressão-comunicação que prescinde
do livro; a canção pode ser veiculada também apenas oralmente. Isso agradou
especialmente aos poetas românticos, que viram nela o afastamento das
convenções sociais aristocráticas, como inicialmente foi o livro. O Romantismo
combateu-as.
Na leitura semântica, destacam-se as repetições, como maneira de facilitar
a apreensão oral e ressaltar a simplicidade, também fundamento estilístico entre
os românticos, que a partilharam com os árcades. Marcadamente se destacam
igualmente os termos palmeiras e sabiá, tanto por suas forças evocativas, como
valorizadoras da natureza tomada como refúgio de beleza e paz. Ambas
sugerem a pátria do cantor, nesse caso, o Brasil.
Palmeiras parece contrapor-se ao carvalho europeu. A Europa
hegemônica, dominadora da América na condição de ex-metrópole recente
como território político-econômico e como produtora cultural, precisava ser
combatida. Os europeus, então, orgulhosos do seu carvalho, tiveram de
confrontar-se com a simbologia da palmeira. A palmeira parece simbolizar a
beleza, a elegância, a altivez e a resistência, uma vez que não se tem notícia de
que alguma palmeira viva tenha algum dia sido abatida por ventos. Não passe
despercebido, ainda, o fato de a palmeira ter múltiplas raízes de aparência frágil,
mas de extrema flexibilidade e resistência pela conjunção da união de forças que
essas raízes representam.
Sabiá registra força análoga, mas, pelo que vários sinais indicam, ainda
mais forte e representativo. O sabiá simboliza o encanto da América diante da
Europa, enquanto ave canora, em contraposição ao rouxinol europeu. Reforça
ainda a ideia subjacente no poema de valorização da voz, da palavra, enfim. A
palavra sabiá mereceu do poeta a maiúscula inicial, como forma de concentrar
valor de expressividade e sugestividade. Interessante é observar que, em 2003,
o sabiá passou a ser oficialmente a ave-símbolo do Brasil.
A marca do nacionalismo gonçalvino nesse poema se expressa pelas
nomeações da natureza do Brasil, como definidora do paraíso natural, por
oposição à devastada natureza europeia. Mesmo à noite, sem a força do sol
51
americano, o pensar é mais prazeroso sob as estrelas vistas, nas várzeas e nos
bosques da pátria natal. Não sem motivo foi que Osório Duque Estrada, ao
compor o poema que viria a ser a letra do hino nacional brasileiro, incluiu os dois
últimos versos da segunda quadra de Canção do exílio de Gonçalves Dias.
O canto do piaga
I
Ó guerreiros da taba sagrada,
Ó guerreiros da tribo tupi,
Falam deuses nos cantos do piaga,
Ó guerreiros, meus cantos ouvi.
Esta noite era a lua já morta
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.
Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! Que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!
Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.
O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro, ossos, carnes, tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.
Era feio, medonho, tremendo,
Ó guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam deuses nos cantos do piaga,
Ó guerreiros, meus cantos ouvi!
II
Por que dormes, ó piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.
Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar?
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?
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Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem vergar-se e gemer?
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?
E tu dormes, ó piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!
Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá:
Manitôs já fugiram da taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.
Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!
Negro monstro o sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando lá vão.
Oh! quem foi das entranhas das águas
O marinho arcabouço arrancar?
Vossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... o que vem cá buscar?
Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.
Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
53
Mesmo o piaga inda escravo há de ser!
Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.
Vossos deuses, ó piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da taba,
Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!
Comentários ao poema O canto do piaga
O poema está estruturado em três partes, indicadas por algarismos
romanos. Na primeira aparecem seis estrofes; na segunda, cinco; na terceira,
nove.
As estrofes são quadras eneassilábicas, com três ictos por verso. O ritmo
que os versos conseguem expressar sugere ação, movimento incessante,
durante todo o desenvolvimento do poema.
As rimas externas são cruzadas, mas não ocorrem em todos os versos. Há
contudo constantes sonorizações. Frequentemente, ocorrem também rimas
internas entre versos.
Na primeira parte do poema, a voz do piaga conjura os homens para
ouvirem o relato de acontecimentos estranhos e assustadores, que remetem a
um sonho dele. Nesse sonho, porém, quem fala é um ser sobrenatural, que na
segunda parte é denominado Visão.
Na segunda parte, a voz do piaga procura reproduzir a mensagem dessa
Visão. Ela mostra sinais, que são presságios, de terríveis acontecimentos que
estão na iminência de ocorrer.
Na terceira parte, o poema, que já se apresenta nas duas anteriores de
modo elaborado, em expressividade vibrante, cresce mais ainda. Desse modo,
o poema vai-se coroando como, talvez, a maior conquista poética do primeiro
estilo de época do Romantismo, no Brasil. É possível dizer isso, em virtude do
lugar de fala da voz poética. O ponto de visão parte do índio, da cultura dele. É
a voz do outro. É por essa razão que a descrição do navio dos que vêm para
destruir a cultura e a vida dos índios (personificados nos tupi) é feita com
recursos sígnicos dessa cultura. Por razões evidentes, não poderia, claro, utilizar
também a língua da nação ameríndia focalizada no poema.
54
Ainda uma vez – Adeus!
Enfim te vejo! enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado,
A não lembrar-me de ti!
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte,
Em terra estranha, entre gente
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
Louco, aflito, a saciar-me
D’agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esp’rança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!
Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!
55
Nenhuma voz me diriges!..
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
Oh! se lutei!... mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?
Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t’esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T’esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu quinhão de dor!
Que me enganei, ora o vejo:
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito e, no entanto,
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!
Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
“Ela é feliz (me dizia)
“Seu descanso é obra minha”
Negou-me a sorte mesquinha...
Perdoa, que me enganei!
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
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De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde para?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
Enganei-me!... – Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra,
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera
Mártir quis ser, cuidei qu’era...
E um louco fui, nada mais!
Louco, julguei adornar-me
Com palmas d’alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co’o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
‘Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera...
E eu! Eu fui que a não quis!
És doutro agora, e p’ra sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!
Dói-te de mim, que t’imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
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Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E, se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
Adeus qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
Lerás porém algum dia
Meus versos, d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade,
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, de compaixão.
Comentários ao poema Ainda uma vez – Adeus!
Ainda uma vez – Adeus! tem sido lido como completa expressão do amor
entre um homem e uma mulher concebido pelos românticos brasileiros da
primeira fase. O amor do casal é obra de Deus, que faz o destino: “Deus ab
eterno a fizera, / No meu caminho a pusera”; “Vivi; pois Deus me guardava / Para
este lugar e hora!” O desencontro desse destino gera sofrimento, infelicidade. O
“erro” foi não ter enfrentado os impedimentos à realização do amor: “Será um
crime ante Deus”. A palavra Deus aparece quatro vezes no poema, remarcando
a relação entre o amor humano e o divino. O casamento é “pra sempre”, porque
é obra de Deus, o que elimina a esperança. A compensação pode ser a
“compaixão” pelo sofrimento; ela serve, porque permite ao menos a permanência
de uma relação entre ambos.
A posição masculina é de sujeição diante da mulher amada: “enfim posso,
/ Curvado a teus pés, dizer-te”; “Dói-te de mim, que t’imploro / Perdão, a teus pés
curvado”; “este pranto dolorido / Deixar correr a teus pés”. A espiritualização do
amor é também decorrente dessa sujeição, da proximidade da presença divina
e da aproximação entre os ideários românticos e cristãos.
58
Joaquim Manuel de MACEDO
Macedo nasceu em 1820, em São João do Itaboraí (RJ). Faleceu em 1882,
no Rio de Janeiro (RJ). Formou-se em Medicina pela Faculdade do Rio de
Janeiro em 1844. No mesmo ano, publicou A moreninha, que atingiu grande êxito
e determinou o rumo que o escritor seguiria até o fim da vida. Dedicou-se ao
jornalismo, à política (deputado estadual e geral em várias legislaturas), ao
magistério (professor de História e Geografia no Colégio Pedro II). Seu prestígio
de ficcionista romântico só foi superado pelo de José de Alencar. Sua obra
divide-se entre romances, poemas, peças de teatro e crônicas. Algumas de suas
obras: A moreninha (1844), O moço loiro (1845), O forasteiro (1855), O culto do
dever (1865), A luneta mágica (1869), A namoradeira (1870), Um noivo e duas
noivas (1871), A baronesa do amor (1876) – romances; O primo da Califórnia
(1858), O novo Otelo (1863), Lusbela (1863) – teatro; A nebulosa (1857) –
poema.
A moreninha
(excerto do capítulo 22)
A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do domingo, no rochedo da
gruta, e tendo, debalde, esperado o seu estudante até alto dia, voltou para a
casa arrufada. No almoço não houve prato que não acusasse de mal temperado:
faltava-lhe o tempero do amor; o chá não se podia tomar, o dia estava frio de
enregelar, toda gente de sua casa a olhava com maus olhos, e seu próprio irmão
tinha um defeito imperdoável: era estudante, pertencia a uma classe, cujos
membros eram, sem exceção, sem exceção nenhuma (bradava ela lindamente
enraivecida) falsos, maus, mentirosos e até... feios. À tarde sentiu-se
incomodada. Retirou-se, não ceou e não dormiu.
Tudo neste mundo é mais ou menos compensado, e o amor não podia
deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um nadazinho tira motivos para o
prazer de dias inteiros, que de uma flor já murcha engendra o mais vivo
contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus tais, que nem mesmo a
sorte grande os causaria, que por uma cartinha de cinco linhas põe os lábios de
um pobre amante em inflamação aguda com o estalar de tantos beijos, se não
produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas cólicas, outras,
amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído de canelas etc.,
seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de
ser competidora do céu.
Um exemplo dessa regra está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! vai
passando uma semana de ciúmes e amarguras; acordando-se ao primeiro trinar
do canário, ela busca o rochedo e, com os olhos embebidos no mar, canta muitas
59
vezes a balada de Ahy, repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por
principiar assim:
Eu tenho quinze anos
E sou morena e linda.
E quando o sol começa a fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o
dia inteiro no fundo do seu gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode
consolá-la, porque, conhecendo já a causa da tristeza da querida neta, teme vêla fugir vermelha de pejo, se não fingir com finura ignorar o estado de seu
coração.
O dia de sexta-feira trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A Srª D.
Ana recebeu cartas que a tornaram talvez menos triste, mas, sem dúvida, muito
pensativa. A presença da linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que
se prolongaram até à tarde do dia seguinte, em que um velho e particular amigo
de sua família veio da corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas
conferenciando a sós.
Esse homem despediu-se, enfim, da Srª D. Ana, deixando-a cheia de
prazer; e, no momento em que saltava dentro do seu batel, vendo a interessante
Moreninha que tristemente passeava à borda do mar, saudou-a com esta
simples palavra, apontando para o céu:
– Esperança!
D. Carolina levantou a cabeça e viu que já o batel cortava as ondas, mas,
como para compreender a tão animador cumprimento, ela por sua vez apontou
também para o céu e, pondo a outra mão no lugar do coração, disse: – Esperarei.
Comentários à obra A moreninha
O enredo de A moreninha está centralizado num caso de amor entre dois
jovens da burguesia do Rio de Janeiro. Carolina, a Moreninha, representa o ideal
feminino propugnado pelos românticos brasileiros. Augusto é estudante de
Medicina e está descrente do amor. Tem uma promessa de casamento desde a
infância: uma menina que conheceu na praia e nunca mais viu. Não se trata de
promessa dos pais deles, mas uma situação armada pelo destino, que ambos
aprovaram. Essa é a razão de seu desinteresse por compromissos amorosos
sérios. O desenrolar do enredo descobre que Moreninha era aquela menina da
praia e da promessa. A paixão que os enlaça leva o personagem a escrever essa
mesma história, a história desse amor.
O excerto trata dos sinais de amor que se desencadeiam em Carolina.
Ideologicamente, o romance prende-se a ações da juventude burguesa
fluminense, no século 19. A morenice de Carolina investe sobre o emblema da
beleza americana, como diziam os românticos. (O adjetivo americano/a não
tinha, então, único dono, como hoje. Queria expressar a condição de alguém ou
algo originário das Américas.) Por oposição à loirice emblemática das heroínas
60
europeias, nada mais americano do que dispor de uma personagem central
morena, com todos os demais predicados interessantes para cumprir esse
desígnio nacionalista da prosa romântica brasileira e dar título à narrativa.
Sob o ponto de vista estilístico, o romance tem recebido da crítica boas
referências, a ponto de ter sido indicado como o efetivo início da prosa
romanesca brasileira. Apesar disso, é possível identificar algumas falhas de
exposição, caraterísticas de processo de formação, no caso, do romance
nacional. Para ter-se uma ideia a respeito, basta considerar o excerto transcrito
e observar-lhe o segundo parágrafo. No segundo período sintático desse
parágrafo, o pronome ele, que se refere ao substantivo amor do período
imediatamente anterior, não encontra seu verbo. Pelo menos nos exemplares
verificados, de mais de uma edição, não foi possível encontrar a forma
sintaticamente completa desse período. Como é a sintaxe que constrói os
significados, essas falhas constituem manchas de só palavras, ou seja, de vazios
semânticos ou simplesmente de obscuridade.
José Antônio do Vale CALDRE E FIÃO
Caldre e Fião nasceu e morreu em Porto Alegre (1821-1876). Formou-se
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e exerceu aí a profissão e
atividades de professor e jornalista. Fundou o jornal O filantropo, no qual atuou
de 1849 a 1851. Defendia a substituição do trabalho escravo pelo livre, o que lhe
valeu perseguições e campanha contra o jornal. De retorno a Porto Alegre, além
de ter mantido as atividades que exercera no Rio de Janeiro, foi eleito deputado
à Assembleia Provincial em várias legislaturas. Escreveu romances, poemas,
peças para teatro e ensaios sobre medicina homeopática. Ficou também
conhecido em virtude de ter atuado na Sociedade Partenon Literário, instituída
em 1868, da qual foi presidente e colaborador na Revista mensal (da
agremiação).
São conhecidos dele dois romances: A divina pastora (1847) e O corsário
(1849).
O verdadeiro nome do romancista não inclui o nome pelo qual é
principalmente conhecido, Caldre e Fião. Esse acréscimo ao nome original
acabou sendo sua forma de referência. (No bairro Partenon, em Porto Alegre, a
rua que o homenageia é conhecida apenas como Caldre e Fião. O bairro
Partenon deve o nome à Sociedade Partenon Literário, entre cujos integrantes
se encontrava Caldre e Fião.) É bem possível que o nome artístico tenha sido
iniciativa para despistar perseguidores, especialmente por causa da atuação que
desenvolveu em prol da libertação dos escravos negros. (Por razões
61
semelhantes, Manuel Antônio de Almeida assinava matérias jornalísticas sob
vários nomes.)
O corsário
(excerto do Sexto quadro)
Eram quatro moços vestidos à gaúcha: eles traziam chapéus arredondados
de abas largas; trajavam chilipás com franjas; coletes vermelhos com botões
amarelos, chales de cachemira velhos amarrados à cintura, excetuando um
deles que cingia uma linda e bordada guaiaca; e traziam ainda grandes e
pesadas chilenas de prata; estavam armados à rio-grandense, com espada,
duas pistolas, uma faca, uma carabina e o laço e as bolas, que estavam seguras
aos tentos dos cavalos; seus aspectos eram guerreiros; em seu todo
apresentavam uma lhana franqueza e alegria bem pronunciada. Três dentre eles
tinham cabelos ruivos em cabeleiras pendentes sobre os ombros, exceto o que
cingia a guaiaca, que tinha cabelos castanhos também da mesma forma
dispostos.
– Manoel da Cunha, disse um moço ao que cingia a guaiaca, este dia não
está muito bom para pesquisarmos o sujeito. Por Deus! que se o pilhasse fazialhe a cabeça em astilhas com os copos de ferradura da minha espada!
– Nós procuraremos por aqui perto uma pousada e pasto para os nossos
cavalos: tu, Anselmo, por amor da tua Bibi, não nos desampares um só instante!
– Eu, disse o que lhe tinham dirigido a palavra; como hei de deixar-te?
Somos inseparáveis, e parece-me que não há poder da terra nem do céu que
nos possa desligar jamais! É a ti que devo a posse da Bibi, da minha bela e
encantadora esposa!... Para que me lembraste, Manoel da Cunha, de uma
semelhante cousa?!... Ah, demônio, que, se não fosse a amizade que nos liga,
eu disparava! e já me raspava campo fora, que nem um fuá matreiro, para casa
de meu sogro, a ouvir o que diz aquela que enlaçou o meu coração e amansoume de modo que fiquei um tambeiro de conta!
– Então? que digo eu? Queres disparar e deixar-nos!
– Mas eu já sei que hei de levar-te à cola... não te havia deixar aqui nestas
areias, disse Anselmo.
– Este Anselmo é um pobre louco!... disse um dos outros dous; é capaz de
morrer pelas mulheres com a língua de fora!... nunca vi maior pateta!
– Cala-te, Fernão; disse Anselmo; tu não entendes o que são as simpatias
do coração. Além das charqueadas de teu pai, nada mais tens visto, nasceste e
te criaste sobre os arreios do cavalo sem contudo saíres um só dia do recinto da
tua estância e queres deste modo julgar a vida e os atos dos outros.
– Fernão Lopo nunca saiu da sua estância, é verdade; a sua vida tem-se
passado na charqueada de seu pai; mas a sua razão é de homem que pensa.
62
– Em quanto a isso, disse o quarto, não digas mais uma palavra: dizia
minha avó que elogio em boca própria é como selim em cima de burro matreiro;
entendes, Fernão? Eu estimo-te como um bom rapaz; mas não quero que tenhas
tanta presunção!...
Comentários à obra O corsário
O corsário foi editado originalmente (1849-1851?) como folhetim. Depois
(1851?), apareceu em livro, em dois tomos. Como aconteceu com A divina
pastora, o romance desapareceu. Há quem credite o desaparecimento aos
inimigos ideológicos do romancista. A divina pastora é o caso mais curioso. Era
conhecida a existência dele, por informação de Guilhermino Cesar, que
descobriu referência à primeira edição, em jornal do Rio de Janeiro, da época.
Muitos pesquisadores se empenharam em descobrir-lhe o destino. Por força do
acaso, ou da lei das probabilidades, um livreiro adquiriu uma caixa de livros
usados no Uruguai. Nele foi encontrado o primeiro exemplar conhecido por nós
do Divina pastora, primeiro romance de Caldre e Fião.
A segunda edição que o romance teve (1992) também contribuiu para a
(pequena) divulgação do romance. Essa edição foi feita por empresa jornalística,
que o distribuiu como cortesia.
O enredo do romance cujo excerto foi lido acima, O corsário, tematiza a
estrutura moral dos homens que construíram a nação (na acepção romântica)
dos gaúchos. Os episódios são contemporâneos da Revolução Farroupilha
(1835-1845), movimento político-guerreiro gaúcho movido contra o império
brasileiro. O italiano Vanzini é o corsário. A má conformação moral desse
personagem (estrangeiro) se confronta com a boa força moral dos homens
locais. Vanzini, náufrago, dá à praia de Tramandaí. Acaba por vilipendiar a jovem
que o retirara desacordado da praia e que se apaixonara por ele. Ele tenta trair
também o líder do movimento guerreiro sul-rio-grandense, Bento Gonçalves da
Silva.
É interessante observar que Alencar iria construir o personagem
maniqueistamente mau de O guarani (1857), à semelhança do de Caldre e Fião.
Assim como Vanzini, Loredano é italiano. Assim como Vanzini, Loredano é
lascivo. Assim como Vanzini, Loredano é traiçoeiro. Caldre e Fião trabalhou
sobre subliminar noção de nação de gaúchos, no Rio Grande do Sul. Alencar
construiu um Brasil indianista, entre o Ceará e o Rio de Janeiro. Essa terra era
para ser lusitana e ameríndia; essa foi a idealização da origem nacional que o
autor cearense preconizou.
Ainda que com estilo nem sempre de fluidez desejável para texto literário,
nem por isso se podem negar a Caldre e Fião os fatos de ter sido o pioneiro na
construção do romance gaúcho e um dos primeiros construtores do romance
brasileiro. O estilo de Macedo, entre outros, no seu romance mais conhecido, A
moreninha, também se ressente por vezes dessa marca estilística. Ressalte-se
63
ainda, a favor de O corsário e de seu autor, a constatação de ter sido nesse
romance que pela primeira vez aparece descrita a figura do gaúcho, na literatura
brasileira.
Manuel Antônio ÁLVARES DE AZEVEDO
Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo em 1831 e morreu no Rio de
Janeiro em 1852. Pertenceu à chamada de segunda geração romântica
brasileira, cuja poesia se caracterizou pelo ultrarromantismo. Álvares de
Azevedo utilizou-se também, algumas vezes, do humorismo. O humorismo se
configura no uso da ironia e da hilaridade em alguns dos seus poemas. A maioria
de suas obras foi publicada postumamente. Eis algumas delas: Lira dos vinte
anos (único livro editado em vida do poeta), Poesias diversas, Poema do Frade,
O conde Lopo, Estudos literários, Cartas, Discursos, o livro de contos A noite na
taverna. Tem sido apontado frequentemente pela crítica como a mais
representativa voz poética do ultrarromantismo brasileiro.
Se eu morresse amanhã!
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
Comentários ao poema Se eu morresse amanhã
No poema Se eu morresse amanhã, podem-se ler tendências
ultrarromânticas caraterísticas de Álvares de Azevedo. Surge certa ambivalência
entre o desejo de morrer e o chamamento dos jovens à vida, nas suas
esperanças. “A dor da vida que devora / A ânsia de glória” é o que justificaria a
64
valorização da morte. Evidencia-se também certo apego ao ventre feminino,
origem da vida, já que “minha triste irmã” e “minha mãe” é que compensariam o
desamparo na iminência da morte.
Lembrança de morrer
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.
Nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro,
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro.
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noite de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e da esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
65
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado
E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!
Comentários ao poema Lembrança de morrer
As duas primeiras estrofes do poema expõem a concepção subjetivista da
nulidade do valor da vida que se manifesta numa pessoa, diante da beleza
representada pela natureza. A unidade parece não ser, aí, o indivíduo, mas o
conjunto da vida da natureza. Primeiro, não vale a pena derramar “nenhuma
lágrima”; segundo, a alegria está fora da pessoa: está nas manifestações de vida
da natureza, como, p. ex., nas flores. A morte da pessoa não merece a morte
das flores. Vale ainda considerar que a concepção de vida que aparece na
abertura do poema é a mesma entendida religiosamente: a vida é o enlace do
“espírito” à “dor vivente”, em que a “dor vivente” é o fato de estar vivo. As duas
estrofes subsequentes expõem, por comparações, a alegria de deixar a vida.
Nas duas seguintes, quinta e sexta estrofes, transparece o desencanto que
representa o afastamento das pessoas queridas, cuja nomeação começa por “ti,
ó minha mãe”.
Na sétima e na oitava estrofes, lê-se alusão à mulher impossível,
caraterística do ultrarromantismo: “a virgem que sonhei”. Não se lê a virgem com
quem sonhei. Essa seria uma pessoa. Trata-se da “virgem que sonhei”, i. é, a
jovem virgem idealizada, que não encontra correspondência no mundo concretosensorial. Por isso, ela “nunca aos lábios me encostou a face linda”: de fato, ela
não tem face tangível nenhuma. Esse é quase sempre o motivo central do
desencanto da vida nos poemas de Lira dos vinte anos. Ela foi, contudo, quem
deu “flores” ao “pálido poeta”.
A estrofe seguinte é ideologicamente central no poema. Nela está expresso
o desejo alcandorado: a transfiguração da virgem sonhada na imagem da morte.
A morte é a “minha virgem dos errantes sonhos”, “filha do céu!”: “vou amar
contigo!”
As três estrofes finais expressam desejos para depois da morte.
66
O título – Lembrança de morrer – faz referência ao que pode lembrar
(pensar, esperar, desejar) quem precisa morrer, nessa concepção da poesia
romântica do mal-do-século.
CASIMIRO José Marques de ABREU
Casimiro de Abreu nasceu em 1839, em Barra de São João (RJ), e morreu
em 1860, em Nova Friburgo (RJ). Seus poemas são marcados pela simplicidade
técnica e por temas filtrados pela saudade. Sua obra mais estudada é o livro de
poemas Primaveras. Antes da televisão, as mães costumavam recitar para os
filhos pequenos alguns dos poemas de Casimiro, especialmente Meus oito anos.
Assim, parte da obra do poeta marcou a formação cultural da juventude em
diversas regiões brasileiras.
A valsa
Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranquila,
Serena,
Sem pena
De mim!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
67
Que sintas!...
– Não negues,
Não mintas...
– Eu vi!...
Valsavas:
Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro,
Não eu!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
– Não negues,
Não mintas...
– Eu vi!...
Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
68
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
– Não negues,
Não mintas...
– Eu vi!...
Calado,
Sozinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos
Nem prantos,
Nem voz!
69
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
– Não negues,
Não mintas...
– Eu vi!...
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida
No chão!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
– Não negues,
Não mintas...
– Eu vi!...
70
Comentários ao poema A valsa
A valsa é ritmada em dois toques fracos e um forte. O poema tem apenas
duas sílabas poéticas, uma átona, outra tônica, e apenas um icto em cada verso.
Isso determina que o leitor não busque a identificação rítmica com a valsa, mas
com a dança ou com os dançantes da valsa. “As galas / Das salas” determinam
a situação dos bailarinos. O poema então está fundamentado na ação da dança:
os pés dos dançantes determinam a ritmação do poema. O par observado, do
qual ela é o foco da observação, está dançando. Nesse ritmo o poema
estabelece a relação entre o sujeito lírico e o objeto da observação. Daí “As dores
/ De amores”. Os versos “O colo / Que é meu” evidenciam a expetativa do
observador e os “zelos” que disso advêm. O sujeito lírico sente-se preterido,
atraiçoado, por isso “– Não negues, / Não mintas, / – Eu vi”.
Minh’alma é triste
I
Minh’alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
– Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei por quê – mas minh’alma é triste!
II
Minh’alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.
71
Se passa um bote com as velas soltas,
Minh’alma o segue n’amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.
Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh’alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Boia nas águas de gentil lagoa!
E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minh’alma em notas de chorosa endeixa
Lamenta os sonhos que já tive outrora.
Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
– Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos – a minh’alma é triste!
III
Minh’alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!
E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh’alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!
Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.
Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laço
Ambos choramos mas num só gemido!
Dizem que há gozos no viver d’amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– Eu vejo o mundo na estação das flores...
Tudo sorri – mas a minh’alma é triste!
IV
Minh’alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
72
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!
A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
– Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.
De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s’reia
Que em doce canto me atraiu na infância.
Ai! loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp’ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
– Pombo selvagem, quis voar contente...
– Feriu-me a bala no bater das asas!
Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores – a minh’alma é triste!
Comentários ao poema Minh’alma é triste
O poema se compõe de quatro partes, como a sugerir as quatro estações
do ano: o tempo todo minha alma é triste. Vale dizer: em qualquer tempo, no
íntimo, sou triste. A tristeza, o tédio da vida, a negação das alegrias são marcas
sintomáticas do ultrarromantismo. Dizer o tempo todo é como dizer em qualquer
situação. Daí a incondicionalidade da tristeza, do tédio pela vida. Por essas
razões ideológico-estilísticas, Minh’alma é triste é exemplo elucidador das
construções poéticas desse estilo de época da poesia romântica brasileira.
Na primeira parte, através de comparações (alma vs rola, endecha, criança
triste), o poema expressa várias ideias de tristeza. Na segunda, a comparação
se faz com a “voz do sino” fúnebre, com “hino” de igreja, com uma folha
(arrancada do galho) e depois novamente com a rola. Na terceira parte, a “alma”
é comparada com uma “flor que morre”, uma flor triste, solitária. Também na
terceira parte, surge um desabafo poético, em que se narra a perda do amor, por
forças alheias. Contrariamente ao mundo que ri (“Tudo ri”), a alma é triste: a voz
lírica sublinha constantemente, desde a primeira parte, essa caraterística do
momento ultrarromântico da nossa poesia. Na quarta parte, a comparação se
faz com o “grito agudo / Das arapongas no sertão deserto”; como o marinheiro
sobre o mar que assusta. Surpreende aqui o leitor a metaforização do mar com
o mundo e do navegador com quem vive. Aliás, é bom considerar que as
comparações não eliminam as metáforas, que vão construindo breves alegorias,
que tecem a grande alegoria do poema. Nessa parte, há fluente sequência
73
metafórica. O poema se encerra, portanto, carregado de metáforas,
diferentemente do começo, em que predominam as comparações.
Meus oito anos
Oh! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
74
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às ave-marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Comentários ao poema Meus oito anos
Poema exemplar da poética de Casimiro de Abreu, Meus oito anos é peça
de lirismo marcado pela simplicidade e pela inocência (“Respira a alma
inocência, / Como perfumes, a flor”). A inocência foi durante o Romantismo valor
exponencial. Não só o texto propriamente dito é simples, como a motivação é
toda do lar: pode ser sentido o lugar de fala, o ambiente de casa. As três
primeiras estrofes estão construídas com verbos no presente, o que reforça o
princípio da inocência de que as coisas são (no agora do poema). Com
evidência, isso pode ser confirmado nos quatro últimos versos da segunda
estrofe: “O mar é – lago sereno, / O céu – um manto azulado, / O mundo – um
sonho dourado, A vida – um hino d’amor!” O verbo aqui é o mesmo: primeiro
expresso; depois, elítico.
A partir da quarta estrofe, os verbos aparecem no pretérito, numa sugestão
de que o mundo assim idealizado foi, já mesmo no presente do poema: a
inocência acabou, quer em si mesma, quer na percepção da voz lírica do poema.
Em resumo, o poema considera elementos de valor a infância, o passado,
a natureza, a inocência, a família, a oração, todos na perspetiva da lembrança
ou, se se quiser, da saudade, como parte da crítica tem considerado o olhar lírico
de Primaveras.
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Luís Nicolau FAGUNDES VARELA
Fagundes Varela nasceu em 1841 em Rio Claro (RJ) e faleceu em 1875
em Niterói (RJ). Estudou em São Paulo e foi, por algum tempo, colega de Castro
Alves na Faculdade de Direito de Recife. Teve vida coerente com a proposta
poética que susteve. Obras: Noturnas e O estandarte auriverde (1863), Vozes
da América (1864), Cantos e fantasias (1865), Cantos meridionais e Cantos do
ermo e da cidade (1869), Anchieta ou o evangelho nas selvas (1875), Cantos
religiosos (1878), Diário de Lázaro (1880), A fundação de Piratininga, Ponto
negro, O demônio do jogo. Tematicamente, Varela priorizou o retiro junto à
natureza, o misticismo, o olhar sobre a América.
Cântico do Calvário
À memória de Meu Filho, morto a 11 de dezembro de 1863.
Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. – Eras a estrela
Que entre névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, – a inspiração, – a pátria,
O porvir de teu pai! – Ah! no entanto,
Pomba, – varou-te a flecha do destino!
Astro, – engoliu-te o temporal do norte!
Teto, caíste! – Crença, já não vives!
Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!
Correi! Um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos fez brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, – gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! – Sede benditas!
Oh! filho de minh’alma! Última rosa
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Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr do sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!
Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo!
Pouco tenho de andar! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! O lago escuro
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!...
Oh! Quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa n’água o lenho do barqueiro!
Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte!
Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
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Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel?... E tudo embalde!
A vida parecia ardente e douda
Agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda n’alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave;
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor... ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta!
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!
O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhe as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra!
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
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Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!
Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor infeliz lançaste à vida.
Arco-íris do amor! Luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonias! – O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!
Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais, – nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
E eu dizia comigo: – teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, – mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!... Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!
Ai! doudo sonho!... Uma estação passou-se,
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensanguentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!...
Ouço o tanger monótono dos sinos,
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E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!
Escuto em meio de confusas vozes,
Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, – sinto o aroma
Do incenso das igrejas, – ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da Terra!... E choro embalde.
Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
No vulto solitário de uma estrela,
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh’alma.
Comentários ao poema Cântico do Calvário
O poema Cântico do Calvário representa bem várias tendências da
produção poética de Fagundes Varela. O título, por exemplo, expressa e sugere,
o que Fagundes Varela geralmente fez bem.
Expressa, no sentido de ir buscar do íntimo sentimentos e reflexões às
vezes espontâneas e imediatas, às vezes demonstrando espontaneidade, mas
sempre com pouco ou muito trabalho discursivo. Há esforço constante de o
poema expressar subliminarmente derramamento, prioritário sobre a realização.
Sugere traços místicos (Fagundes Varela poetizou fartamente o misticismo)
como no poema em questão, tanto como relação místico-cristã, quanto como
simbologia cristã do sofrimento.
O poema abre por sequência metafórica que vai constituindo alegorias,
algumas bem conhecidas: “Eras na vida a pomba predileta / Que sobre um mar
de angústias conduzia / O ramo da esperança.” Essa pomba é a do mito bíblico
do dilúvio: sobre o mar de angústias (sofrimentos do mundo) leva o ramo da
esperança. “– Eras a estrela / Que entre as névoas do inverno cintilava /
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Apontando o caminho ao pegureiro”: A metáfora da estrela aponta ao etéreo, à
luz permanente (símbolo de Deus), à distância inatingível. É o farol que guia o
viajante. “Eras a messe de um dourado estio. / Eras o idílio de um amor sublime.
/ Eras a glória, a inspiração, a pátria, / O porvir de teu pai!”. O filho era colheita,
arrimo, glória, inspiração, pátria, porvir – todos se mostram semas de esperança
e segurança, que se desfizeram na morte. As metáforas continuam: “Pomba –
varou-te a flecha do destino! / Astro – engoliu-te o temporal do norte! / Teto,
caíste! – Crença, já não vives!”
De todos os índices, no entanto, a estrela é o que permanece, como se lê
na conclusão do poema: “Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, / No vulto
solitário de uma estrela, / E são teus raios que meu estro aquecem!” Ela é o
caminho para a subida ao encontro do filho morto, por isso é “lágrima da noite”:
“Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! / Brilha e fulgura no azulado manto,
/ Mas não te arrojes, lágrima da noite, / Nas ondas nebulosas do ocidente!” A
estrela, a luz, a imagem do filho constituem o ponto referencial que há de
permanecer para lhe possibilitar a elevação espiritual: “Brilha e fulgura! Quando
a morte fria / Sobre mim sacudir o pó das asas, / Escada de Jacó serão teus
raios / Por onde asinha subirá minh’alma”.
É notável como a voz lírica se funde na do próprio texto, nesses poemas
parcialmente confessionais. Seja por isso permitido dizer que o subjetivismo
ultrarromântico às vezes chega ao máximo, a ponto de configurar um quase
amálgama entre mundo concreto-sensorial e o lírico.
Cabe ainda destacar “o pássaro-rei do Novo Mundo” (sétima estrofe). Ele
é o condor, que haveria de virar símbolo da América, como a enxergaram os
românticos, especialmente na terceira fase poética. Essa é a razão do nome que
a destaca – condoreirismo. Vale dizer: já no ultrarromantismo começava-se a
vaticinar a transformação da América como um todo, de colonizada em
soberana.
O poema Cântico do Calvário exemplifica portanto várias tendências da
produção poética de Fagundes Varela, como a expressão do indivíduo sofrido
num mundo que se pode compreender em vista da redenção cristã, a
sugestividade do poema gerado meio espontaneamente no berço do gênio, a
valorização de símbolos de espiritualidade. Espontaneidade foi força buscada
pelos românticos em geral, a fim de mais claramente expor o indivíduo (o
indivisível ou inigualável) que há em cada um. Gênio foi também concepção
romântica para a força íntima do indivíduo, que é capaz, à sombra de Deus, criar
espontaneamente.
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Luís José JUNQUEIRA FREIRE
Junqueira Freire nasceu em Salvador (BA) em 1832 e faleceu na mesma
cidade, em 1855. Com Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes
Varela forma a quadríade mais conhecida do ultrarromantismo brasileiro.
Sua primeira obra foi Autobiografia (1854), em que o poeta, na forma do
sujeito lírico dos textos, se dilata em senso agudo de autoanálise. Ao mesmo
tempo, cuidou da impressão de uma coletânea de versos, a que deu o nome de
Inspirações do claustro, impressa na Bahia pouco antes de morrer, aos 23 anos,
motivada por moléstia cardíaca de que sofria desde a infância.
Desejo (Hora do delírio)
Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;
Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior, que a mente finge,
A mente ali respira;
Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que se pisa:
Se é de fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;
Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;
Se é verdade esse quadro, imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos;
Eu – que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afeição mais terna
Às penas mais incríveis;
Eu – que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
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Surgido vencedor;
Eu – que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer p’ra sempre,
Entrar por fim no inferno!
Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento invencível:
Desses que achá-los na existência toda
Jamais será possível!
Eu quero ver se encontro alguns suplícios,
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
Chora por fim, – que és homem!
Que, de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!
Comentários ao poema Desejo
Junqueira Freire representa, entre os poetas do ultrarromantismo brasileiro,
a voz mais contundente. A voz lírica do poema não oscila entre o desejo de ficar
e partir. Expõe claramente seu desejo, às vezes de forma ardente, de despedirse do mundo. A força dos poemas de Junqueira Freire, que ultrapassam as
investidas dos moços dessa geração romântica, parece vir da descrença.
O lirismo que o constitui demonstra insistente desafio à crença em
entidades criadas para castigar. Entende o mundo já como espaço existencial
de sofrimento e se diz, em Desejo, vitorioso sobre esse mundo. A esperança que
acalenta é de “vencer o inferno”.
RITA BARÉM de Melo
Nasceu em Porto Alegre em 1840 e faleceu em Rio Grande, em 1868, aos
28 anos. Estreou aos dezesseis anos no semanário O Guaíba (1856-1858),
editado sob os auspícios da Sociedade Partenon Literário, utilizando o
pseudônimo Juriti. A escritora despontou como integrante da primeira geração
romântica no Rio Grande do Sul, correspondente tematicamente ao
ultrarromantismo ou segundo estilo de época do Romantismo brasileiro. há
poemas, como o que a seguir se lerá, que apontam a preocupações sociais
referente às camadas sociais, que viria à baila com o condoreirismo. Nesse
sentido, antecede a produção castralvina, considerando que Os escravos saiu
em 1876. Sua obra, Sorrisos e prantos (1868), reúne poemas escritos entre 1854
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e 1867, dos quais a maioria é datada de 1856. Além dos franceses Lamartine,
A. Dumas e Victor Hugo, observam-se em sua obra leituras de poetas
portugueses, Camões, Garret, Herculano e outros. Foi leitora perspicaz também
de seus contemporâneos brasileiros, como Álvares de Azevedo, Gonçalves
Dias, Casimiro de Abreu, além do gaúcho Félix da Cunha.
O soldado no Paraguai
Esta guerra não se acaba
Ai! de ti, pobre soldado!
Pra ti o pior bocado,
De glória o menor quinhão.
Nas partes oficiais
– Seja dito de passagem –
Pois não te falta coragem
Para – especial – menção.
Mas somos tantos os bravos,
Para falar a verdade,
Nós, braços da liberdade,
Soldados de coração.
Que prêmios se no-los dessem
De quantos mister seria?!
E teriam mais valia
Que as nossas feridas? Não!
Nesta lida sem descanso
Vou cantando a sorte dura:
Esta guerra quanto dura
A sorver sangue e dinheiro!
Canto: fumega o churrasco
Passam belas argentinas,
É milhafre d’esterlinas
Aquele riso matreiro.
Mas eu c’o a minha morena
Em dia de soldo pago,
À viola bebo um trago
E a saudade assim mitigo.
Saudade sim! Pois não pungem
Nas horas de desalento
As garras desse tormento
Distante do lar amigo?
Mas soe a hora da luta,
E o soldado que chorava,
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Mostrará na lide brava
Que o leão se faz herói!
Então nem pai, nem esposa,
Nem filhos nem mãe relembra,
Só a vingança me lembra
Que ofendida a pátria foi!
Corrientes ficou rica...
Ouro inglês aqui é mato,
Tem enchido tanto rato
Que já temos ratões de ouro!
Lá na terra oriental
Ouro fino é como terra:
Viva a pátria! viva a guerra!
Viva o brasíleo tesouro!
Tira o pobre aos filhos tenros
Uma fatia de pão
Para ajudar a Nação
A encher as bolsas de... ouro,
Mas os grandes, certamente,
Também dão belo quinhão!
O pobre dá sangue e pão...
O rico?... Viva o tesouro!
Rio Grande, 8 de dezembro de 1867.
Comentários ao poema O soldado no Paraguai
Embora a predominância temático-estilística do livro Sorrisos e prantos seja
de conformação ultrarromântica, como foi o ultrarromantismo no Brasil, o poema
selecionado para comentário foi o Soldado no Paraguai. É que esse poema se
carateriza por expressiva consciência ideológico-política sobre episódio
polarizante da época: a Guerra do Paraguai. A forma como o poema examina a
questão destoa do que em geral foi feito na época. Não se lê nada de exposição
de heroísmos de chefes poderosos; nada de júbilo por vitórias mirabolantes;
tampouco se esquecem – principalmente – o sofrimento nem a ganância que
acompanham as guerras. Mais: a perspetiva é do indivíduo insignificante perdido
na multidão numérica sob resoluções dos agrupamentos sociais no poder.
Cabe outrossim destacar a simplicidade discursiva (vocabulário, sintaxe,
rimas e estrofes). Ideologicamente o poema se aproxima dos condoreiros;
estilisticamente se afasta deles. Estilisticamente se aproxima de alguns poetas
ultrarromânticos brasileiros; ideologicamente se afasta deles. O poema se
conclui pelo grito de revolta contra as desonestidades praticadas pelos “grandes”
contra o erário e pela delação contra os conluios sociais que acarretam
sofrimentos e empobrecimentos dos pequenos.
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JOSÉ Martiniano de ALENCAR
José de Alencar (1829-1877), político, jornalista, advogado e escritor
brasileiro, nasceu em Mecejana (CE). Formou-se em Direito e foi jornalista no
Rio de Janeiro. Faleceu no Rio de Janeiro. Sua vasta obra romanesca costuma
ser dividida em três conjuntos: (1º) romances urbanos: Cinco minutos (1860), A
viuvinha (1860), Lucíola (1862), Diva (1864), A pata da gazela (1870), Sonhos
d’ouro (1872), Senhora (1875) e Encarnação (1877); (2º) romances históricos: O
guarani (1870), Iracema (1865), As minas de prata (1862), Alfarrábios (1873), A
guerra dos mascates (1873) e Ubirajara (1874); (3º) romances regionalistas: O
gaúcho (1870), O tronco do ipê (1871), Til (1872), O sertanejo (1876). Apesar de
essa divisão ser discutível – alguns romances classificados como históricos
soem ser igualmente classificados como indianistas – ela auxilia no estudo da
obra do mais renomado romancista romântico brasileiro.
Alencar criou literatura de base nacionalista e defensora de valores morais
a favor dos quais sempre propugnou. Conseguiu captar e reelaborar em
romances e dramas aspetos do sentir e do pensar de muitos brasileiros. A
gigantesca meta que se propôs na construção da obra romanesca que nos legou
foi elaborar grande painel do Brasil, desde as origens – do contato dos
portugueses com os ameríndios – até as primeiras construções étnico-culturais
brasileiras. São exemplos desse esforço O guarani, Iracema, A guerra dos
mascates, Ubirajara, O gaúcho, O tronco de ipê, O sertanejo.
O guarani
(capítulo 4 – Caçada)
Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, aí se passava uma cena
curiosa.
Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores,
encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da
idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará,
apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até
ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco
selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com
reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes
com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante;
a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto
pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência.
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Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do lado
esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham
roçar com as pontas negras o pescoço flexível.
Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa,
ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno,
mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão
direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo
forcado de pau enegrecido pelo fogo.
Perto dele estava atirada ao chão uma clavina tauxiada, uma pequena
bolsa de couro que devia conter munições, e uma rica faca flamenga, cujo uso
foi depois proibido em Portugal e no Brasil.
Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que
se elevava a vinte passos de distância, e se agitava imperceptivelmente.
Ali por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso
negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois
raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de
rocha, ferida pela luz do sol.
Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de
árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto
gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda e movia a cabeça monstruosa, como
procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie
de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas e mostrava a linha
de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam
deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.
O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia
um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do
homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava
um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se
mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se e
ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira.
Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o
pelo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.
O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e
apertava o forcado, endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar
os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.
Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas
ele era, intimando os cavaleiros que continuassem a sua marcha.
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Como, porém, o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a
pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência,
e exclamou apontando para o tigre e levando a mão ao peito:
– É meu!... meu só!
Estas palavras foram ditas em português, com uma pronúncia doce e
sonora, mas em tom de energia e resolução. O italiano riu.
– Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa
amiga?... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo; ela
vo-lo agradecerá.
Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a
ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, como para exprimir que, se
ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os cavaleiros compreenderam
o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque
direto, não fizeram a menor demonstração ofensiva.
Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio
deixasse um só instante com os olhos o inimigo.
A um sinal de Álvaro de Sá, os cavaleiros prosseguiram a sua marcha e
entranharam-se de novo na floresta.
O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o pelo eriçado, não
ousara investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes; mas
apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da mata, soltou um novo
rugido de alegria e contentamento.
Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como se uma árvore
houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; de um pulo
tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário uma distância de
trinta palmos.
O selvagem compreendeu imediatamente a razão disso: a onça, com os
seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue, tinha visto os cavalos e
desdenhava o homem, fraca presa para saciá-la.
Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou na cinta
uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço e esticou a corda do
grande arco, que excedia de um terço à sua altura.
Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado por um bramido da fera; a
pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda,
açoitando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior.
O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos
outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente.
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Era uma luta de morte a que ia se travar; o índio o sabia, e esperou
tranquilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento
de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava satisfeito.
Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas
armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem,
consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.
O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze
passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e
atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.
Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas de trás, com o corpo direito,
as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe
a jugular.
A velocidade deste salto monstruoso foi tal, que, no mesmo instante em
que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já
a fera tocava o chão com as patas.
Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.
Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava
na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos
magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda
mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do
peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo e vacilou.
Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar
o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o
ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao
chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde
alcançá-lo com as garras.
Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas
pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a
fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.
Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão
uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão
debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em
muitas voltas.
Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e
passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o
mesmo às pernas e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a
onça não pudesse abrir a boca.
Feito isso, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de
água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da
fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este
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tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e
agilidade do tigre seriam impotentes.
Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata, e
adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pelo vermelho e afogueado.
O índio saltou sobre o arco e abateu-a daí a alguns passos no meio da
carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a
flecha e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e
fumegante.
Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça, e o sabor do sangue
que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis
soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado.
O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a
atavam de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas
retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até
os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e
retorcidas, que são a sua arma mais terrível.
Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo, quebrou na
mata dois galhos secos de biribá, e roçando rapidamente um contra o outro, tirou
fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.
Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou
com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias
no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as mãos, o rosto e
os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.
Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro,
e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada
por onde tinha seguido a cavalgata.
Momentos depois, no lugar desta cena já deserto, entreabriu-se uma moita
espessa e surdiu um índio completamente nu, ornado apenas com uma trofa de
penas amarelas.
Lançou ao redor um olhar espantado, examinou cautelosamente o fogo que
ardia ainda e os restos da caça; deitou-se encostando o ouvido em terra e assim
ficou algum tempo.
Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta, na mesma direção que
o outro tomara pouco tempo antes.
Comentários ao capítulo Caçada do romance O guarani
A escolha desse capítulo para estudo tem várias finalidades. A primeira é
mostrar a técnica de construção do capítulo caraterístico do folhetim. É a razão
que fez com que o “índio completamente nu” aparecesse após a saída de Peri
do centro da cena. Como se pôde observar, Peri está vestido. Esse aspeto tem
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descrição razoavelmente detalhada. O fato de estar vestido organiza um
conjunto de signos que o identificam com a vestimenta dos brancos. Isso lhe dá
sinais de civilização, de que o outro carece. O índio nu observa, escuta, ou seja,
lê a situação e – é o que texto sugere – segue os passos do outro. Nesse
momento, o capítulo se encerra. O leitor vai supostamente querer saber o que
aconteceu. Por isso vai se abrir outro capítulo, no próximo capítulo do folhetim.
Essa técnica é mantida até nossos dias no que se tem chamado de folhetim
eletrônico, as telenovelas.
A segunda finalidade é examinar a presença do personagem prototípico, o
índio brasileiro que o Romantismo construiu e a valorização das culturas originais
e peculiares. A beleza física e a coragem dele procuram aproximar dos
habitantes nativos do Brasil valores que os conquistadores-colonizadores
valorizavam. Assim é também porque o índio é “rei das florestas”. Os europeus
não conseguiam, então, conceber o mundo sem a presença, ainda que falseada,
do rei, como guia da organização política. Antes do Romantismo não havia
nações; havia reinos. A concepção de indivíduo que os românticos elaboraram
permitiu tanto a livre exposição de formas pessoais e íntimas de expressar e
comunicar, como a construção político-social das nações e das repúblicas.
Nações são individuações sociais étnico-culturais. Assim como cada indivíduo
pessoal é especial e único, assim especiais e únicos são os grupos
socioculturais, as nações.
A terceira é mostrar a sucinta e implícita justificativa do narrador a respeito
do nome do guarani – Peri. Peri significa junco selvagem, forma vegetal elegante,
de grande resistência às intempéries, como o vento e a correnteza. O junco
flexível dobra, mas não quebra; passadas as violências da natureza, ele
recupera sua posição vertical e bela.
A quarta é demonstrar o jogo maniqueísta na construção dos personagens.
Nesta pequena análise, interessam-nos o “italiano” e o índio guarani de nome
Peri, a partir do qual se compõe o título do romance. Como em Iracema, em O
guarani a narrativa procura estabelecer o mito (a fala do princípio) sobre a
geração dos brasileiros. Os brasileiros devem provir das relações em todos os
sentidos dos portugueses e dos índios bons. O índio nu não é bom.
Maniqueistamente falando, se não for bom, é mau. Loredano, o italiano, carrega
semas do mal, na ótica romântica: é estrangeiro (nem lusitano nem brasileiro), é
apóstata, maneja armas de fogo e só com elas se sente seguro; além disso,
demonstra-se, ao longo da narrativa, traiçoeiro e concupiscente. Por raciocínio
análogo, se não é bom, Loredano é mau. Vale dizer: é o mal da civilização, como
o índio nu é o mal da floresta. O índio deve ser originalmente bom, é filho da
natureza como Deus a criou, a natureza boa que produz o homem puro, tese
caraterística do Romantismo. Esse é o denominado mito do bom selvagem,
pensamento oriundo do Liberalismo de origem francesa; mais precisamente, da
construção ideológica rousseauniana.
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Loredano se socorre da arma de fogo para enfrentar as forças da natureza.
Peri usa os recursos que lhe permitiriam aprisionar a onça, porque a queria viva.
Se quisesse, tê-la-ia matado, porque tinha também, jogada no chão, uma
clavina. Por desprezar a cultura nativa do Brasil, Loredano ironiza Peri, ao referirse a ele como “dom cacique”. Dom é forma que os europeus (ibéricos) usavam
para designar os fidalgos. Corrosivo se mostra ao dizer que era um “direito
original” de Peri o de enfrentar a onça: subliminarmente imprime relação entre
irracionais. Essas faltas cometidas condenam definitivamente o personagem ao
mal, irreversivelmente. Essa relação entre a falta do estrangeiro e o pecado da
perdição eterna é igualmente coerente com a posição ideológica de grande parte
dos textos românticos, uma vez que o Romantismo se manteve aderente quase
sempre a princípios do Cristianismo.
Iracema (1881), por José Maria de Medeiros (1849-1925).
Iracema
(capítulo 1)
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas
frondes da carnaúba;
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol
nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o
barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
Aonde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao
fresco terral a grande vela?
Aonde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do
oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em
fora.
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Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano: uma
criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos,
filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o
marulho das vagas:
– Iracema !
O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra
fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau,
onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.
Nesse momento o lábio arranca d'alma um agro sorriso.
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da
noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava
nos palmares.
Refresca o vento.
O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas e desaparece no
horizonte. Abre-se a imensidade dos mares; e a borrasca enverga, como o
condor, as foscas asas sobre o abismo.
Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas, e te
poje nalguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas auras: e para ti jaspeie
a bonança mares de leite!
Enquanto vogas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas
areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa.
Iracema
(capítulo 33)
O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do
Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a
terra onde repousava sua amiga e senhora.
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra pátria. Havia aí a
predestinação de uma raça?
Poti levantava a taba de seus guerreiros na margem do rio e esperava o
irmão que lhe prometera voltar. Todas as manhãs subia ao morro das areias e
volvia os olhos ao mar, para ver se branqueava ao longe a vela amiga.
Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e são
agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias,
em seu coração derramou-se um fogo, que o requeimou: era o fogo das
recordações que ardiam como a centelha sob as cinzas.
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Só aplacou essa chama quando ele tocou a terra, onde dormia sua esposa;
porque nesse instante seu coração transudou, como o tronco do jataí nos
ardentes calores, e orvalhou sua tristeza de lágrimas abundantes.
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar
com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de
negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.
Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele
que nada mais o separasse de seu irmão branco. Deviam ter ambos um só deus,
como tinham um só coração.
Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a
quem ia servir, e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama
cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele primeiro viu a luz.
A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou.
Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado
ressoou nos vales onde rugia o maracá.
Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu
amigo branco; Camarão erguera a taba de seus guerreiros nas margens da
Mecejana.
Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros
brancos, Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o
feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia.
Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde
fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.
Muitas vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar
no peito a agra saudade.
A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso
nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra.
Comentários aos capítulos 1 e 33 de Iracema
As primeiras observações que o leitor é levado a fazer, ao iniciar a leitura
do primeiro capítulo do romance Iracema, são o vocabulário, marcado por
neologismos (considerada a língua portuguesa então usual) advindos do
emprego de formas de falares ameríndios brasileiros; a sintaxe, que empresta
ao discurso literário peculiaridades que acabam por caraterizar o romance todo;
a pontuação especial usada: há parágrafos que terminam por ponto-e-vírgula,
sinal de pontuação tradicionalmente inadequado a essa finalidade; o ritmo, que
sinaliza a relação constante entre prosa e verso, ou limites frágeis entre as duas
formas lítero-expressivas. Esse conjunto de quatro itens constrói o discurso
literário de Iracema, ao longo do romance. Embora haja outros romances
chamados igualmente de indianistas, do mesmo autor, nenhum é como Iracema.
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O primeiro capítulo introduz a narração com vocativo aos “verdes mares
bravios da minha terra”. Uma jangada que leva “três entes” que partem das
praias do Brasil em demanda da Europa. O sofrimento marca a aparência de
Martim, o herói lusitano, em decorrência da morte da amada, Iracema, cuja
história ainda o leitor não leu.
O último capítulo de Iracema dá conta do retorno dos viajantes descritos no
primeiro. Vêm agora acompanhados de outros portugueses para construir a
primeira cidade brasileira. A narrativa define também opções do novo povo,
como a religião e a paz. A ausência de Iracema continua a ser sentida. Estampase nesse capítulo, ainda, um aforismo que marca concepção da transformação
do mundo.
A pata da gazela
(capítulo 18)
Laura e Amélia eram primas e amigas de infância; havia entre elas apenas
a diferença de dezoito meses.
Desde a idade de três ou quatro anos, isto é, desde que deixou as faixas,
Laura usou sempre de roupas compridas. Isso causava reparo a todos que viam
a menina trajada como uma senhora. Muitos achavam extravagante e ridículo o
capricho e censuravam a mãe.
Esta ouvia as censuras de suas amigas, assim como os motejos estranhos,
e calava-se; mas não alterava o vestuário da menina. A ternura e piedade
materna lhe davam a paciência necessária para arrostar com as zombarias do
mundo.
Laura tinha um aleijão; nascera com os pés disformes. Para mais agravar
o desgosto dos pais, essa monstruosidade vinha ligada a uma beleza angélica.
A senhora avaliou do infortúnio de sua filha, e preparou-se para todos os
sacrifícios. Consultas foram dirigidas aos melhores médicos da Europa; chegou
a empreender uma viagem para tentar os recursos da ciência; foram todos
ineficazes.
Desenganada afinal, dedicou-se a esconder a desgraça de sua filha, a fim
de que ela não fosse obrigada a envergonhar-se na sociedade. Durante muito
tempo Laura não teve outra criada, além de sua mãe. À custa de esforços
constantes, de uma vigilância incessante de cada dia e cada hora, conseguiu a
senhora manter esse segredo de família, do qual dependia a felicidade da filha.
Atingindo a idade de oito anos, a menina com o instinto de mulher,
compreendera seu infortúnio: e desde então descansou a mãe daquele cuidado
incessante. Ficando moça casou-se, e seu marido que amava estremecidamente
morreu ignorando o segredo.
Com bastante mágoa sua, Amélia surpreendeu o segredo da prima e
amiga.
A filha de Sales tinha dois pezinhos de fada, breves, arqueados, com uns
dedos que pareciam botões de rosa. O desgosto e vexame que isso causava à
moça, ninguém o imagina. Ela supunha-se aleijada; apesar de seus 18 anos,
seus pés eram de menina.
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Assim o mesmo cuidado com que Laura escondia a sua monstruosidade,
punha ela em ocultar essa graça e prenda da natureza. Naquele tempo não se
tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrário, o tom era
arrastar desdenhosamente pelo chão a longa fímbria do vestido.
Um dia que Laura passou em sua casa, Amélia teve curiosidade de
comparar seu pezinho com o da prima, para saber se a diferença era excessiva.
Enquanto a outra endireitava o penteado no toucador, realizou ela seu intento.
Avalie-se da vergonha e aflição de Laura; o desespero de Amélia foi maior
ainda. Não perdoava a si mesma o ter causado tão grande pesar à prima, a quem
ela queria muito bem. Para mitigar essa dor profunda, Laura esqueceu a sua.
Desde então as duas amigas se consolavam mutuamente. Laura admirava
o pezinho de Amélia; esta, ou sinceramente, ou para atenuar a mágoa da prima,
chegava a invejar o seu infortúnio.
Aborrecida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse, Amélia
tinha descoberto por acaso o sapateiro da Rua Sete de Setembro. Conhecendo
a habilidade do Matos, pensou que ele pudesse disfarçar o defeito da prima. Não
se enganou; o artista realizara a obra-prima de paciência, que Leopoldo tivera
ocasião de apreciar por um acaso.
Amélia fez a Laura o sacrifício de expor-se para não comprometer o
segredo da amiga. O sapateiro não a conhecia, nunca a tinha visto, recebia as
encomendas por intermédio de um criado que pagava à vista. Fácil foi portanto
iludi-lo.
Na ocasião em que duas primas esperavam de carro na Rua da Quitanda,
o lacaio vinha da casa do sapateiro, o qual vexado com a pressa, esquecera as
recomendações de fechar bem o embrulho.
As pretensões de Horácio vieram pouco depois a arrefecer a amizade das
duas primas; já não se viam tão a miúdo; mas não obstante Amélia continuou a
prestar a Laura o mesmo serviço, e essa, coagida pela necessidade, foi obrigada
a aceitá-lo.
Iam as coisas por esse teor, quando houve o baile do Azevedo.
Depois da primeira quadrilha, Amélia foi ao toucador. Era este em uma sala
que dava para o jardim. Aproximando-se de uma janela entreaberta, obscurecida
pela sombra do cortinado da cama, viu a moça os dois amigos no momento em
que eles vieram sentar-se no banco, justamente colocado por baixo da janela.
A casa era abarracada. Amélia, encostada no portal da janela, descobria
os dois cavalheiros por entre a folhagem, e ouvia distintamente suas palavras.
Aí, imóvel, mas agitada por comoções diversas, escutou ela a história do
pé e a história do sorriso. Já os dois amigos tinham afastado, e a moça
permanecia no mesmo lugar, como extática.
A narração de Horácio, e as observações que fizera Leopoldo a esse
respeito, revelaram à moça uma coisa que já anteriormente se havia
apresentado, embora indistinta, vaga e confusa a seu espírito.
O que Horácio amava nela não era mais do que uma forma, um capricho,
um sonho de sua imaginação enferma. Ela compreendeu essa aberração dos
sentidos em um homem gasto para o amor e saciado de prazeres. A mulher era
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para o leão uma coisa comum e vulgar, incapaz de produzir-lhe emoções fortes.
Tinha-as admirado, de todos os tipos e de todos os caracteres. Seu coração
exausto precisava de alguma coisa nova, original e extravagante.
Amélia compreendeu isto, não por uma análise, que seu espírito casto não
poderia fazer, mas por uma intuição d’alma.
Quando de novo encontrou Horácio no baile, suas maneiras não podiam
que se não ressentissem do estado de seu coração. Tratou o leão secamente;
mas logo tornou-se amável; ocorreu-lhe uma ideia; quis pôr à prova o amor do
noivo, antes de confiar-lhe seu destino.
Foi na sua alcova, durante a insônia, que ela recordou-se da história de
Leopoldo, e comparou seu amor ao de Horácio. Repassando na mente as
palavras comovidas do primeiro, pensando naquele afeito tão desprendido das
misérias humanas, tão d’alma, Amélia sentia-se como purificada dos desejos do
sedutor.
Esse amor puro e imaterial era um batismo para seu coração virgem.
A moça conheceu que o engano de Leopoldo provinha de uma ilusão da
vista, no momento de entrar no carro com Laura; ilusão confirmada pela
presença do lacaio na loja de sapateiro. Chegou a estimar esse incidente que
pôs em relevo a alma nobre e generosa do mancebo.
Acudiu-lhe à lembrança sua primeira conversa em casa de D. Clementina.
As palavras que então lhe pareceram ininteligíveis, tinham agora um sentido.
Compreendia toda a sublimidade do coração que dizia com uma profunda
convicção:
– Sinto-me capaz de amar o horrível, sinto-me capaz de nutrir uma dessas
paixões mártires, de amar o anjo ainda mesmo encarnado no aleijão.
– Esse me ama realmente, a mim e não à sua fantasia! murmurou a moça
com tristeza.
No dia seguinte, depois de uma noite de insônia, preparou-se para receber
Horácio e submetê-lo à prova. O Matos conservava um par das antigas botinas
de Laura, o qual lhe fora para modelo. Mandou Amélia buscá-lo; e encheu-o de
algodão para acomodar nessa enormidade o seu mimoso pezinho.
O bordado do bastidor foi expressamente inventado. Procurando uma letra
para indicar a pessoa a quem destinava o pretendido presente, insensivelmente
traçou um L. Era a inicial de Laura, que lhe acudira à mente, ou era lembrança
de Leopoldo, que lhe esvoaçava ainda na imaginação? Foi uma e outra coisa.
Serviu-se do pretexto da amiga para evocar o nome do homem, que tão
profundamente a amava.
Depois da cena que teve lugar na tarde do jantar, Amélia arrependeu-se.
Receava ter-se excedido; bastava-lhe matar a ilusão do mancebo, não devia ter
excitado o horror. Mas o afeto de Leopoldo a tornara exigente; ela queria ser
amada por Horácio da mesma forma, com aquela sublime abnegação.
Durante alguns dias, alimentou a esperança de conservar a afeição do
noivo, e regozijava-se com a ideia da surpresa que lhe guardava.
A ausência do leão foi desenganando de dia em dia. Travou-se então uma
luta em seu espírito.
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Devia esquecer o homem que não amava nela senão uma fantasia?
O tom de Horácio na última noite a irritou. Seu amor-próprio indignou-se
com o menoscabo do moço e súbita revelação de sua alma lhe advertiu que esse
casamento causaria sua desgraça.
No dia seguinte ao do rompimento, Amélia foi, como havia dito na véspera,
à casa de D. Clementina. Era a primeira vez que tornava a ver Leopoldo depois
do baile.
Estiveram juntos alguns momentos. Como de costume Leopoldo falou, e a
moça embebeu-se daquelas palavras apaixonadas como de um eflúvio suave.
Em um momento de pausa, disse Amélia:
– O senhor passou por nossa casa na terça-feira?
– É verdade. Por que pergunta?
– Eu estava no jardim. Vi-o quando passava; cuidei que ia entrar.
– Não me animava.
– Por quê?... Mamãe já lhe ofereceu nossa casa.
– Tenho receio de ser importuno.
– Pouco saímos agora; à exceção das noites que passamos aqui, estamos
sempre sós; mamãe lendo, e eu tocando ou fazendo algum trabalho de lã.
– E ninguém mais? perguntou Leopoldo, fitando na moça um olhar
interrogador.
– Ninguém! respondeu Amélia em tom grave.
Leopoldo ficou suspenso, buscando compreender o pensamento da moça.
Era mágoa do bem perdido, ou temor do mal frustrado, que assim lhe anuviara
a fisionomia? Mas o sorriso prazenteiro iluminou o semblante da moça:
– Sabe? Naquela noite do baile, me contaram uma história muito
interessante, disse ela.
– Não se pode saber?
– O senhor pode. Foi a história de um sorriso, disse Amélia sublinhando a
palavra com um gesto faceiro.
– Quem lhe contou? Foi ele?
– Foi o senhor.
– Eu?
– O senhor mesmo. Já não se lembra?
– Quer gracejar?
– O senhor estava no jardim conversando com seu amigo, e eu na janela
do toucador. Leopoldo adivinhou.
– Então ouviu tudo?
– Tudo!...
– E... perdoou-me?
98
– Não; não tinha de quê, mas...
E seus belos olhos límpidos repousaram no semblante do moço.
– Mas compreendi!
Nesse momento D. Leonor chamou Amélia.
Comentários à obra A pata da gazela
Em A pata da gazela, o maniqueísmo dos personagens românticos se
expõe com meridiana clareza. As cargas semânticas dos antivalores recaem
sobre Horácio; Leopoldo recebe as de valores positivos. Horácio é o
mundano, o materialista, o que concebe valor em sinais eróticos. Está-lhe
portanto reservada a derrota diante do personagem opositivo relativamente
ao amor de Amélia. Amélia se sacrifica e é igualmente compensada.
O discurso flui bem, em tom um tanto juvenil, perfeitamente adequado,
aliás, ao enredo da narrativa.
O centro do interesse é o relacionamento amoroso de dois casais jovens.
A humildade, a perseverança e alguma sagacidade são as qualidades com
que contam os personagens centrais, que levam a simpatia do narrador, para
conquistar o melhor desenlace à trama.
Pode-se perceber íntima relação entre a história da Gata Borralheira e a
de A pata da gazela. O primeiro motivo parece ser uma das temáticas que
cortam o texto: o erotismo. O pé feminino deteve (e detém) certo atrativo
erótico. Basta ver a importância que adquiriram os sapatos de saltos altos no
vestuário feminino e a própria história da Cinderela. O erotismo do encontro
do corpo nu com o vestuário parece nascer nos locais onde a vestimenta se
corta. No momento histórico do Romantismo, o pé feminino foi zona de
mostra-esconde. Despontou por isso como curiosidade e, mais tarde, como
símbolo do corpo e da corporeidade, conforme se constata no texto em
estudo.
Atente-se ao fato de que, em A pata da gazela, tudo começa com o
acesso das moças (personagens) a uma carruagem, o que lhes força a
mostrar a zona erotizada do corpo.
Marca erótica igualmente carrega o título. Pata (porque de gazela) é
metáfora de pé. Gazela é espécie de antílope, carne preferida de leões. Pelo
Dicionário escolar da língua portuguesa (MEC-Fename, 1956), gazela é também
“mulher nova e elegante, altiva”. Leão é metáfora do caçador urbano, instintivo
e desprovido de bons sentimentos.
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ALFREDO D’Escragnolle TAUNAY
Taunay, também conhecido como visconde de Taunay, nasceu no Rio de
Janeiro, em 1843, e faleceu na mesma cidade, em 1899. Foi bacharel em
Ciências Físicas e Matemáticas, engenheiro-geógrafo, militar (participou da
Guerra do Paraguai), professor (História, Línguas, Mineralogia, Geologia e
Botânica, na Escola Militar), político (senador por SC e presidente da Província
de SC e PR); dedicou-se à música, à pintura, ao jornalismo e à crítica. Embora
filho de franceses, soube ser um escritor essencialmente brasileiro. Iniciou-se
nas Letras com o romance A mocidade de Trajano (1871), sob o pseudônimo de
Sílvio Dinarte. No mesmo ano, publicou em francês suas impressões acerca dum
episódio decisivo da Guerra do Paraguai, A retirada de Laguna. Sua principal
obra é Inocência, de 1872.
Inocência
(excerto do capítulo 6)
Depois das explicações dadas ao seu hóspede, sentiu-se o mineiro mais
despreocupado.
– Então, ele disse, se quiser, vamos já ver a nossa doentinha.
– Com muito gosto, concordou Cirino.
E saindo da sala, acompanhou Pereira, que o fez passar por duas cercas
e rodear a casa toda, antes de tomar a porta do fundo, fronteira a magnífico
laranjal, naquela ocasião todo pontuado das brancas e olorosas flores.
– Neste lugar, disse o mineiro apontando para o pomar, todos os dias se
juntam tamanhos bandos de graúnas, que é um barulho dos meus pecados.
Nocência gosta muito disso e vem sempre coser debaixo do arvoredo. É uma
menina esquisita...
Parando no limiar da porta, continuou com expansão:
– Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e
perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha
defunta avó. Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?...
Que ideia!... Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa...
Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com
toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de
diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens...
Fiquei meio tonto. E se o Sr. visse os modos que tem com os bichinhos?!...
Parece que está falando com eles e que os entende... Uma bicharia, em
chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco...
Se fosse agora a contar-lhe histórias dessa rapariga, seria um não acabar
nunca... Entremos, que é melhor...
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Quando Cirino penetrou no quarto da filha do mineiro, era quase noite, de
maneira que, no primeiro olhar que atirou ao redor de si, só pôde lobrigar, além
de diversos trastes de formas antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no
interior; altas e largas, feitas de tiras de couro engradadas. Estava encostada a
um canto, e nela havia uma pessoa deitada.
Mandara Pereira acender uma vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram-se
ambos do leito da enferma que, achegando ao corpo e puxando para debaixo do
queixo uma coberta de algodão de Minas, se encolheu toda, e voltou-se para os
que entravam.
– Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira, que vem curar-te de vez.
– Boas-noites, dona, saudou Cirino.
Tímida voz murmurou uma resposta, ao passo que o jovem, no seu papel
de médico, se sentava num escabelo junto à cama e tomava o pulso à doente.
Caía então luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte do colo e
da cabeça, coberta por um lenço vermelho atado por trás da nuca.
Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de beleza
deslumbrante.
Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade,
realçado pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os
cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem
sombras nas mimosas faces.
Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo
admiravelmente torneado.
Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a
camisinha de crivo que vestia, deixando nu um colo de fascinadora alvura, em
que ressaltava um ou outro sinal de nascença.
Razões de sobra tinha, pois, o pretenso facultativo para sentir a mão fria e
um tanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tão gentil cliente.
– Então? perguntou o pai.
– Febre nenhuma, respondeu Cirino, cujos olhos fitavam com mal
disfarçada surpresa as feições de Inocência.
– E que temos que fazer?
– Dar-lhe hoje mesmo um suador de folhas de laranjeira da terra a ver se
transpira bastante e, quando for meia-noite, acordar-me para vir administrar uma
boa dose de sulfato.
Levantara a doente os olhos e os cravara em Cirino, para seguir com
atenção as prescrições que lhe deviam restituir a saúde.
101
– Não tem fome nenhuma, observou o pai; há quase três dias que só vive
de beberagens. É uma ardência contínua; isto até nem parecem maleitas.
– Tanto melhor, replicou o moço; amanhã verá que a febre lhe sai do corpo,
e daqui a uma semana sua filha está de pé com certeza. Sou eu que lhe afianço.
– Fale o doutor pela boca de um anjo, disse Pereira com alegria.
– Hão de as cores voltar logo, continuou Cirino.
Ligeiramente enrubesceu Inocência e descansou a cabeça no travesseiro.
– Por que amarrou esse lenço? perguntou em seguida o moço.
– Por nada, respondeu ela com acanhamento.
– Sente dor de cabeça?
– Nhor-não.
– Tire-o, pois: convém não chamar o sangue; solte, pelo contrário, os
cabelos.
Inocência obedeceu e descobriu uma espessa cabeleira, negra como o
âmago da cabiúna e que em liberdade devia cair até abaixo da cintura. Estava
enrolado em bastas tranças, que davam duas voltas inteiras ao redor do
cocoruto.
– É preciso, continuou Cirino, ter de dia o quarto arejado e pôr a cama na
linha do nascente ao poente.
– Amanhã de manhãzinha hei de virá-la, disse o mineiro.
– Bom, por hoje então, ou melhor, agora mesmo, o suador. Fechem tudo,
e que a dona sue bem. À meia-noite, mais ou menos, virei aqui dar-lhe a
mezinha. Sossegue o seu espírito e reze duas Ave-Marias para que a quina faça
logo efeito.
– Nhor-sim, balbuciou a enferma.
– Não lhe dói a luz nos olhos? perguntou Cirino, achegando-lhe um
momento a vela ao rosto.
– Pouco... – um nadinha.
– Isso é bom sinal. Creio que não há de ser nada. E, levantando-se,
despediu-se:
– Até logo, sinhá-moça.
Depois do que, convidou Pereira a sair.
Este acenou para alguém que estava num canto do quarto e na sombra.
– Ó Tico, disse ele, venha cá... Levantou-se, a este chamado, um anão
muito entanguido, embora perfeitamente proporcionado em todos os seus
membros. Tinha o rosto sulcado de rugas, como se já fora entrado em anos; mas
102
os olhinhos vivos e a negrejante guedelha mostravam idade pouco adiantada.
Suas perninhas um tanto arqueadas terminavam em pés largos e chatos que,
sem grave desarranjo na conformação, poderiam pertencer a qualquer
palmípede.
Trajava comprida blusa parda sobre calças que, por haverem pertencido a
quem quer que fosse muito mais alto, formavam embaixo volumosa rodilha,
apesar de estarem dobradas. À cabeça, trazia um chapéu de palha de carandá
sem copa, de maneira que a melena lhe aparecia toda arrepiada e erguida em
torcidas e emaranhadas grenhas.
– Oh! exclamou Cirino ao ver entrar no círculo de luz tão estranha figura,
isto deveras é um tico da gente.
– Não anarquize o meu Tonico, protestou sorrindo-se Pereira. Ele é
pequeno... mas bom. Não é, meu nanico?
O homúnculo riu-se, ou melhor, fez uma careta mostrando dentinhos alvos
e agudos, ao passo que deitava para Cirino olhar inquisitor e altivo.
– O Sr. vê, doutor, continuou Pereira, esta criaturinha de Cristo ouve
perfeitamente tudo quanto se lhe diz e logo compreende. Não pode falar... isto
é, sempre pode dizer uma palavra ou outra, mas muito a custo e quase a estourar
de raiva e de canseira. Quando se mete a querer explicar qualquer coisa, é um
barulho dos seiscentos, uma gritaria dos meus pecados, onde aparece uma voz
aqui, outra acolá, mais cristãzinhas no meio da barafunda.
– É que não lhe cortaram a língua, observou Cirino.
– Não tinha nada que cortar, replicou Pereira. De nascença é o defeito e
não pode ser remediado. Mas isto é um diabrete, que cruza este sertão de cabo
a rabo, a todas horas do dia e da noite. Não é verdade, Tico?
O anão abanou a cabeça, olhando com orgulho para Cirino.
– Mas é filho aqui da casa? perguntou este.
– Nhor-não; tem mãe à beira do rio Sucuriú, daqui a quarenta léguas, e
envereda de lá para cá num instante, vindo a pousar pelas casas, que todas o
recebem com gosto, porque é bichinho que não faz mal a ninguém. Aqui fica
duas, três e mais semanas e depois dispara como um mateiro para a casa da
mãe. É uma espécie de cachorro de Nocência. Não é, Tico?
Fez o mudo sinal que sim e apontou com ar risonho para o lado da moça.
Pereira, depois de todas aquelas explicações que o anão parecia ouvir com
satisfação, disse, voltando-se para este, ou melhor, abaixando-se em cima da
sua cabeça:
– Agora, meu filho, vai ao curral grande e apanha para mim uma mãozada
de folhas de laranjeira da terra... daquele pé grande que encosta na tronqueira.
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Mostrou o homúnculo com expressivo gesto que entendera e saiu correndo.
Ia Cirino deixar o quarto, não sem ter olhado com demora para o lugar onde
estava deitada a enferma, quando Pereira o chamou:
– Ó doutor, Nocência quer beber uma pouca de água... Fará mal?
– Aqui não há limões-doces? Indagou o moço.
– É um nunca acabar... e dos melhores.
– Pois então faça sua filha chupar uns gomos.
Pereira, depois de ter paternalmente arranjado e dispostos os cobertores
ao redor do corpo da menina, acompanhou Cirino que, parado à porta da saída,
estava mirando as primeiras estrelas da noite.
Comentários à obra Inocência
O texto vai buscar no interior mineiro o ambiente natural e social que vai
compô-lo. Como em vários outros romances românticos, o tema é a defesa do
respeito aos sentimentos individuais. Essa posição ideológica foi marcante em
todo o movimento romântico. Tomou importância nuclear no Romantismo,
porque se funda na própria ideologia predominante da escola, o Liberalismo
(originário do adjetivo latino liber, livre).
O comprometimento prévio do casamento de Inocência com Chicão impede
a felicidade da protagonista com Cirino. O nome da protagonista e o título do
romance apontam à sua condição. A inocência era valor social e foi princípio
defendido por muitos romances românticos brasileiros, em personagens
femininos. É o caso, p. ex., de Ceci (O guarani), de Carolina (A moreninha), de
Adélia (A divina pastora), entre outros.
BERNARDO Joaquim da Silva GUIMARÃES
Nasceu em 1825, em Ouro Preto (MG). Faleceu na mesma cidade, em
1884. Formou-se em 1852 na Academia de Direito de São Paulo. Exerceu o
cargo de juiz em Catalão, por duas vezes. Praticou jornalismo no Rio de
Janeiro. Em 1867, fixou-se em Ouro Preto, onde se casou e passou a lecionar
Retórica e Poética. Em 1873, foi nomeado professor de Latim e Francês em
Queluz. Nesse tempo, ia publicando sua obra numerosa e firmando reputação
de um dos mais populares romancistas da época.
Algumas de suas obras: O seminarista (1872), A escrava Isaura (1875),
Rosaura, a enjeitada (1883).
104
O seminarista
(excerto do capítulo 10)
Mas Eugênio já era um guapo mocetão de dezesseis a dezessete anos, e
Margarida, com os seus quatorze, já era uma moça feita em toda a plenitude e
esplendor de seu rápido desenvolvimento. Umbelina bem via que já não ficava
bem deixar a sós por muito tempo e entregues a si mesmos como no tempo da
meninice aquelas duas criaturas que se queriam tanto, e portanto não lhes
permitia mais que vagassem sozinhos pelos campos como outrora, longe de
suas vistas. Fazia muito bem; mas, não obstante, a tia Umbelina, toda atarefada
como sempre andava, não podia deixar de proporcionar-lhes muitas ocasiões de
se acharem a sós em ocasiões de que sabiam aproveitar-se muito bem para se
afagarem. Esses afagos porém não passavam de uns prolongados apertos de
mão, de algum abraço dado assim em ar de brinquedo e sem intenção amorosa,
ou de um desses olhares mudos, longos e repassados de ternura, que em si
resumem todo um poema de amor. Bem vontade tinham eles de se beijarem,
mas tolhia-os um acanhamento virginal, esse pudor nativo, que é como o
orvalho, que só na aurora esmalta o cálix das flores, e os desejos morreram-lhes
dentro da alma, e os beijos apenas lhes estremeciam na ponta dos lábios, como
tenros passarinhos batendo as asas implumes à beira do ninho, ansiando, mas
nunca ousando desprender o voo pelo espaço.
Quanto mais viva se tornava a afeição de Eugênio por Margarida, maior era
a repugnância, que ia tomando pelo estado eclesiástico.
Não se pode imaginar com que desgosto todos os domingos envergava a
roupeta colegial e a sobrepeliz para ir ajudar na vila a missa conventual ao
vigário. Mas esse era o gosto, essa era a ordem de seus pais, que sentiam
indizível prazer em apresentar ao público o seu lindo padrezinho em botão, e
não cabiam na pele de contentes, quando o viam funcionando no altar com
aquela sisudez e gravidade de um verdadeiro sacerdote.
Quando, ao fazer algumas das evoluções do seu mister, Eugênio voltavase para o público, e encontrava entre a turba das mulheres os grandes e luzentes
olhos de Margarida fitos sobre ele, perturbava-se, ficava enfiado e corava como
uma papoula; vinha-lhe à ideia a história da mula-sem-cabeça, e esta lembrança
lhe causava a mais desagradável e horripilante impressão.
A assídua frequência de Eugênio em casa de Margarida já ia dando muito
nos olhos, e tornando-se por demais comprometedora não deixava de causar
desgostos e inquietação a seus pais.
– Menino – dizia a senhora Antunes a seu filho, talvez já pela trigésima vez
–, isto não vai bem. Não paras um momento perto de tua mãe e de teu pai, e não
sais da casa da comadre Umbelina!... olha que tens de ser padre e um padre,
que não quer senão estar perto das moças... não sei o que lhe diga... isso não
te fica bem.
105
– Ora, mamãe!... pois que tem lá isso?... desde criança que estou
acostumado a brincar com a Margarida! pois se eu tivesse uma irmã mais moça,
não podia brincar com ela?...
– Ora, faça-se de tolo!... como está inocente o meu filho!... então porque
brincaste com ela em criança, podes brincar agora, e mesmo depois de padre
poderás brincar ainda, como no tempo em que andavas em fraldas de camisa;
não é assim?... Ah! minha mãe?... também eu... a falar a verdade... Eugênio
suspirou e não teve ânimo de prosseguir.
– Também eu o quê, meu filho?... acaba.
– Não tenho vontade nenhuma... Eugênio empacou outra vez.
– Vontade nenhuma de quê?... desemperra essa língua; fala; não tenhas
susto.
– Minha mãe não fica zangada?
– Eu, não, meu filho; fala o que tens no coração; se for alguma asneira, me
entrará por um ouvido e sairá pelo outro. De que é que não tem vontade
nenhuma?...
– De ser padre, minha mãe...
Há muito tempo que Eugênio desejava, mas não tinha ânimo de fazer
aquela confissão, que lhe dava um nó na garganta, e lhe pesava como um
rochedo sobre o coração, sentiu-se aliviado alijando-o sobre sua mãe.
– Deveres, meu filho?... exclamou a mãe com surpresa – que me dizes?
isso é de agora, pois sempre te percebi muita inclinação para padre... Que te
dizia eu?... a tal minha afilhada está te virando a cabecinha... logo vi... não são
senão elas, que te andam metendo essas caraminholas na cabeça...
– Elas nunca me disseram nada, minha mãe, por Deus!... elas até gostam
tanto de me ver de batina ajudando à missa na vila!... a tia Umbelina até já me
prometeu uma sobrepeliz e uma volta bordada para quando eu disser missa
nova. Eu mesmo é que não tenho inclinação nenhuma...
– Não digas tal, menino!... interrompeu a mãe com azedume. Seja como
for, é preciso que não vás mais tão a miúdo àquela casa. Isso não te fica bem.
A Margarida já está ficando moça, e tu não és nenhum criançola; as tuas
repetidas visitas podem dar que falar da pobre da menina.
– Mas, mamãe; nós nunca saímos de perto da tia Umbelina.
– Não importa. Demais depois que a Margarida está ficando moça, ali é
casa de muito ajuntamento, e eu não te quero ver metido no meio de gentalha...
– Mas, minha mãe, quando lá há gente demais, eu sempre me venho
embora.
106
– Nada! nada!... isto não pode continuar assim, pode-te acontecer alguma.
Se teimas em continuar a não sair lá da casa da comadre Umbelina, falo com
teu pai para te mandar já para o seminário, mesmo antes de se acabarem as
férias, e não voltas de lá senão depois de ordenado.
Com esta tremenda cominação de Eugênio ficou acabrunhado. As últimas
palavras de sua mãe caíram como rochedos sobre o seu coração, e o
esmagaram. A ideia de voltar ao seminário e de separar-se de Margarida era a
nuvem sinistra e carregada, que há muito ensombrava um canto do seu risonho
e límpido céu de amor, e que ameaçava envolvê-lo todo em lúgubre e eterna
escuridão.
Triste, mudo e amuado, Eugênio retirou-se, e foi encerrar-se em seu quarto
donde não saiu mais todo esse dia.
Como os conselhos e exprobrações do padre diretor no seminário, as
repreensões e ameaças maternas vieram dar maior vulto à paixão do moço,
tornando ainda mais desejado o objeto amado. É essa a inalterável e eterna lei
do coração humano.
Se o padre diretor ao chamar o estudante ao seu quarto lhe tivesse dito
simplesmente: – Menino, tens no coração uma afeição mundana, que não pode
compadecer-se com o estado a que te destinas, e que é preciso que combatas.
Mas se acaso não puderes banir do teu coração esse afeto, que pode ser puro
e legítimo, podes continuar a estudar, porém não para o estado eclesiástico – se
tivesse procedido assim, o padre teria talvez conseguido melhor o seu intento.
Deixando ampla liberdade de expansão aos sentimentos do menino, teria talvez
facilitado ao seu neófito a vitória sobre si mesmo.
A torrente represada acaba por despedaçar diques e arrojar-se mais furiosa
no seu leito natural. Desde que Eugênio viu interpor-se entre ele e Margarida um
anátema tremendo, que como um abismo os separava, perturbou-se para
sempre a severidade da sua alma, e esse afeto que votava à companheira de
sua infância, posto que a princípio abafado temporariamente pelo manto de gelo
de um factício e austero ascetismo, e agora de fresco rudemente contrariado por
sua mãe, ia fatalmente transformar-se na mais ardente, profunda e impetuosa
paixão.
Se por seu lado também a senhora Antunes, que devia conhecer melhor
do que ninguém o coração de seu filho, sem deixar-lhe a rédea solta a todos os
caprichos e desvarios da imaginação, procurasse com mais brandura
encaminhá-lo ao fim que desejava, sem contrariar de frente as mais caras
afeições de seu coração, talvez o tivesse conseguido, ou pelo menos evitaria a
longa e dolorosa luta que iria dilacerar o coração de seu filho sem outro resultado
mais do que um infortúnio certo e irremediável.
A mãe de Eugênio era fanática e supersticiosa. A aventura da cobra
enleando-se no corpo de Margarida, que nunca lhe saía da lembrança, lhe
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incomodara sempre o espírito. Agora refletindo sobre a cega e ardente afeição
que a menina ia inspirando cada vez mais a seu filho, entrou a nutrir as mais
tristes e sombrias apreensões, e acabou por convencer-se que não era senão o
demônio, que em figura de cobra viera lançar no seio da menina o germe da
tentação para seduzir seu filho, desviá-lo da sua santa vocação, e arrastá-lo ao
caminho da perdição. Daí aquela severidade e rigor que lhe não eram usuais, e
que só por um tão poderoso motivo podia ser impelida.
A boa senhora não considerava que o germe da tentação já Margarida,
como toda moça bonita, o tinha nos olhos, e por mais tremendos que fossem os
anátemas que fulminasse para preservar o novo Adão das seduções da
serpente, mais lhe acenderia o desejo de provar do pomo vedado.
O que, portanto, não lhe era permitido fazer francamente e à luz do sol,
procurou Eugênio fazê-lo furtivamente e à sombra do manto silencioso e discreto
da noite, cujos véus propícios ocultaram mais de uma entrevista, em que os
ardentes afetos dos dois amantes se expandiram muito mais à vontade sem
testemunhas nem constrangimento de espécie alguma. Romeu, iludindo a
vigilância materna, nas horas mortas da noite, quando o julgavam tranquilamente
adormecido, abria de mansinho a janela do seu quarto, saltava ao terreiro, e
veloz e sutil como um silfo noturno, atravessando os vales silenciosos corria
pressuroso para junto da sua Julieta.
Os dois amantes, pondo de parte toda a reserva e timidez, deram livre
expansão aos seus afetos, e pela primeira vez falaram sem rebuço de amor, de
casamento, de felicidade futura nos braços um do outro, e os beijos, aqueles
beijos, que à luz do sol apenas esvoaçavam tímidos à flor dos lábios e morriam
no limbo dos desejos, soltaram o voo, encontraram-se através das grades, e
imprimiram-se férvidos e trementes nos lábios de um e outro amante.
As meigas falas que ali se ciciaram em segredo, os arrulhos estremecidos,
os suspiros abafados, que ali se exalaram, a noite e a solidão os receberam em
seu seio segredoso, e os dispersaram nos ares de envolta com o sussurro da
folhagem.
Comentários ao romance O seminarista
Eugênio e Margarida compõem o casal do sofrimento de amor. A razão do
sofrimento é a intromissão de outrem na vida individual. Vale dizer: a concepção
libertária do Romantismo, fundada na ideologia da escola literária, o Liberalismo,
se confronta com o poder exacerbado dos que se imiscuem nas decisões
pessoais. Isso significa impedir a livre escolha dos corações, que, por essa
lógica, têm suas razões, as quais devem ser respeitadas. A inocência e a livre
inclinação pessoal constroem, de acordo com o que se lê, o que se costuma
designar como destino, que precisa ser soberano. É ele que decide a felicidade
ou a infelicidade, a realização ou irrealização pessoais dos personagens. Assim
deve ser também no mundo, de acordo com o Romantismo, porque o texto se
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origina do mundo circunstante e para ele se dirige. A leitura do texto só tem
sentido na relação com o mundo que o constitui. Assim como o autor lê o mundo
para compor o texto, o leitor lê o texto em íntima e indissociável relação com o
mundo. Tanto o autor como o leitor são os sujeitos do texto: um na elaboração;
outro, na reelaboração dele. Assim é o texto literário.
“A mãe de Eugênio era fanática e supersticiosa”: isso, entre outras várias
condições, esclarece ideologicamente a proposta textual. O texto reclama, pois,
além da valorização dos sentimentos, boa dose de reflexão, de abertura e
aceitação das diferenças. Esse item ideológico acolhe com perfeição a proposta
romântica da consideração às individualidades. Não deixa porém de contemplar
também indícios do que o Realismo valorizaria, mais adiante: qualquer fanatismo
desmerece o homem, porque lhe sequestra a liberdade e lhe usurpa a razão.
Antônio Frederico de CASTRO ALVES
Castro Alves nasceu na fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba,
perto da vila de Curralinho, hoje cidade Castro Alves, na Bahia, em 1847, e
morreu em Salvador, em 1871. Por volta de 1853, ao mudar-se com a família
para a capital, estudou no colégio de Abílio César Borges, onde foi colega de Rui
Barbosa. Demonstrava vocação apaixonada e precoce para a poesia. Aos
dezesseis anos foi para Recife estudar Direito. Depois, em São Paulo, cursou o
3º ano da Faculdade de Direito.
Em 1868, numa caçada, feriu-se com um tiro de espingarda no pé direito.
Foi conduzido para o Rio de Janeiro e teve o pé amputado. Daí passou a
caminhar apoiado numa bengala e utilizando um pé de borracha. Como já a
tuberculose o afligia, teve seus males agravados pelo acidente. Em 1870
retornou à Bahia, onde publicou Espumas flutuantes, único livro seu que viu
impresso. Escreveu poesia lírica e poesia de caráter social, principalmente a
favor da abolição da escravatura. Desenvolveu, como prógono, o estilo de época
condoreiro, da denominada terceira geração romântica brasileira.
Obras de Castro Alves: Espumas flutuantes (1870), Os escravos e A
cachoeira de Paulo Afonso (1876) e o drama Gonzaga ou a revolução de Minas
(1876). Vozes d’África, O navio negreiro e Prometeu são exemplos significativos
do condoreirismo castralvino.
Adormecida
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
109
‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos, entravam pela sala,
E de leve, oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos – beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago,
Mesmo em sonhos, a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijá-la... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P’ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
------Eu, fitando essa cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
Virgem! – tu és a flor da minha vida!...
(São Paulo, novembro de 1868.)
Comentários ao poema Adormecida
Adormecida integra o único livro publicado em vida pelo autor: Espumas
flutuantes. No Prólogo do livro fica-se sabendo que o poeta voltava de São Paulo
para a terra natal, de (navio a) vapor, abatido pela doença. Debruçado na
amurada do navio, contemplou as espumas flutuantes que o navio deixava sobre
o mar e que logo se desfaziam. Pensou que sua obra poética assim também
seria, por isso o título do livro.
Adormecida contempla o elogio à imagem feminina. A imagem feminina
que aí aparece não é a que se tinha visto na primeira geração poética romântica
(indianismo-nacionalismo), como a que construiu Gonçalves Dias em Ainda uma
vez – Adeus, p. ex. Tampouco coincide com a imagem feminina proposta pelos
ultrarromânticos, a idealizadamente incorpórea, às vezes imprecisa. A imagem
feminina no poema em estudo tem carnalidade, e dela aparecem sinais eróticos.
A identidade dela com as coisas lindas da natureza é a única idealização que o
poema mantém.
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O navio negreiro (Tragédia no mar)
1ª
‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar – dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
‘Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias
– Constelações do líquido tesouro...
‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? Qual é o oceano?...
‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas...
De onde vem?... aonde vai?... Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!...
Embaixo – o mar... em cima – o firmamento...
E no mar e no céu – a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! Ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! Esperai! deixai que eu beba
Essa selvagem, livre poesia...
Orquestra – é o mar que ruge pela proa,
E o vento que nas cordas assobia...
...............................................................
111
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar – doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu, que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me essas asas...
2ª
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?...
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! Que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
Às vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
– Terra de amor e traição –
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso
Junto às lavas do Vulcão!
O Inglês – marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou, –
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.
O Francês – predestinado –
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir...
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
112
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
... Nautas de todas as plagas!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu...
3ª
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo eu aí... que quadro d’amarguras!
É canto funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! Que horror!
4ª
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
...........................................................
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra
113
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre densos nevoeiros:
“Vibrai rijo chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
5ª
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto esse borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
Quem são esses desgraçados
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz,
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Ontem simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razão...
114
São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael...
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram – crianças lindas,
Viveram – moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
... Adeus! ó choça do monte!...
... Adeus! palmeiras da fonte!... ...
Adeus! amores... adeus!...
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão...
Hoje... porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm’lo de maldade
Não são livres p’ra morrer...
Prende-os a mesma corrente
– Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
115
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
6ª
E existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da Liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga
Como íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!
Comentários ao poema O navio negreiro
O poema O navio negreiro integra a obra Os escravos, a qual tem atraído
a maior atenção da crítica que estuda a produção poética de Castro Alves. Os
denominados navios negreiros eram as embarcações de transporte de pessoas
escravizadas oriundas da África.
O poema é composto de seis partes.
116
Na primeira parte, podem-se identificar pelo menos três sequências de
quadras decassílabas. Na primeira delas, composta pelas quatro primeiras
estrofes, o poema focaliza um navio navegando mar a fora. Na segunda,
composta pelas seis estrofes seguintes, expressa-se a vontade de saber de onde
vem e aonde vai, quem o navega, por que se desloca tão apressadamente. Na
terceira sequência, identificada na última estrofe (da primeira parte), a voz
poética mostra insatisfação por não poder conhecer de que barco se trata e pede
auxílio ao albatroz, para que identifique o que até esse momento do poema não
foi possível esclarecer.
A segunda parte é constituída de quatro décimas heptassílabas. Essas
estrofes delineiam as possibilidades da origem desse barco e dos marinheiros
que nele viajam.
A terceira parte tem apenas uma estrofe de seis versos dodecassílabos.
Nessa altura é possível observar que a construção técnica dos versos, como a
extensão métrica com que são compostos, atende a efeitos de expressividade
planejados. Nessa estrofe, com o auxílio do albatroz, a voz poética se mostra
chocada com o que pode ver no navio, que na primeira parte aparecia coroado
de belezas. A sugestão aponta à diferença entre os dons da natureza (obra de
Deus) e as más ações humanas.
Na quarta parte do poema, Castro Alves constrói surpreendentes
momentos poéticos, tanto do ponto de vista formal como do ponto de vista
ideológico. Aliás, a correlação entre esses elementos elabora precisamente o
que denominamos texto literário por excelência. Constituem-na seis estrofes
heterométricas (versos deca e hexassílabos). Essa técnica, entre outros efeitos
de ordem rítmica, provoca maior atenção do leitor à leitura. Já no primeiro verso
da primeira estrofe, o adjetivo dantesco leva a leitura ao âmbito propriamente
condoreiro do vocabulário castralvino, no poema. A seguir, a presença constante
de vocábulos com o fonema erre mantém a estrofe sob sugestividade que reforça
o que está explicitamente dito: “Tinir de ferros... estalar do açoite... [...] /
Horrendos a dançar...”. São “horrendos a dançar” não por outro motivo, senão
porque essa é uma dança sob chicotes. É contudo na segunda estrofe que a
quarta parte do poema se solidifica especialmente. Destaquemos os três
primeiros versos: “Negras mulheres, suspendendo às tetas / Magras crianças,
cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães”. Nos versos iniciais, a
anteposição dos adjetivos “negras” e “magras” concentra força semântica e
expressiva. As “negras mulheres suspendendo às tetas” são, pois, vistas mais
como negras e menos como mulheres. Isso permite que seja escrito “tetas” para
designar os seios das escravas. Tetas são próprias de animais mamíferos
fêmeos. É precisamente nessa passagem que a sugestividade semântica se
consubstancia de maneira marcante. Essas mulheres, que, antes de serem
mulheres propriamente, são vistas como animais, só podem mesmo ser
concebidas portando tetas. Como já não têm leite para alimentar os filhos, eles
lhes sugam sangue, que é o que lhes resta. Esse é outro momento de
117
interessante perspicácia poético-ideológica, porque sugar o sangue é expressão
que se usa em português para dizer algo como exploração profunda, até as
últimas consequências. Nessa quarta parte, portanto, o poema explora os
horrores do navio negreiro, que foi então possível poeticamente observar.
A quinta parte se dedica a saber quem são essas pessoas assim tratadas.
Como o albatroz se cala, a o poema apela à musa (a palavra aparece com inicial
maiúscula), i. é, à poesia, à literatura, à inteligência, à razão e todas as
adjacências semânticas que a metonímia pode aí expressar. Na primeira e na
nona (última) estrofes, a apóstrofe é para o ser de maior grandeza que o ser
humano pôde conceber: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor
Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus?!” É também
interessante observar que o poeta concebe um “Deus dos desgraçados”, i. é, um
Deus diferente do Deus dos cheios de graça, dos afortunados, dos felizes. Aí
igualmente a sugestividade semântica carrega perguntas: É a infelicidade
esquecimento de Deus? A desgraça é (também) obra de Deus? Como pode
Deus admitir a injustiça, a “irrisão”? – como se lê na penúltima estrofe dessa
quinta parte?
Como agora sabemos quem são as pessoas desgraçadas, resta desvendar
quem é responsável pelo navio. Isso se lê na sexta (derradeira) parte, composta
de três oitavas decassílabas. Ao conhecer a bandeira que o navio leva, a
expressão poética pede tempo para acreditar no que vê e apela à musa:
“Silêncio!... Musa! chora, chora tanto, / Que o pavilhão se lave no teu pranto”.
Suja a bandeira com o que pratica e esconde, só a literatura poderá limpá-la, i.
é, resgatar o crime, agir contra o que ficou constatado. A segunda estrofe diz de
que bandeira se trata: “Auriverde pendão da minha terra, / Que a brisa do Brasil
beija e balança”. O segundo verso chama a atenção para a marcante aliteração,
em que a sequência de bilabiais sugere simultaneamente o beijo e o estalo da
bandeira sobre si mesma, batida pelo vento (“brisa”). O poema se encerra com
dois pedidos aos “heróis do Novo Mundo”, Andrada e Colombo: ao primeiro,
porque ajudou a criar a bandeira do Brasil, que desfaça o que fez; ao segundo,
porque a ele se tem atribuído o descobrimento do caminho marítimo para as
Américas, que o interrompa. Propõe com isso que melhor teria sido não existirem
a bandeira, i. é, o país, nem a ligação marítima das Américas com outros
continentes, do que terem servido para o tráfico escravista.
Neste ponto da análise, é interessante retornar parcialmente ao conceito
anteriormente. A literatura, na forma como o poema O navio negreiro a entende,
coincide com o que ficou dito (Literatura: reflexões conceituais). A arte literária é
reflexão sobre o mundo e age sobre ele. Dignifica o homem. Retira-lhe marcas
de brutalidade. Concede-lhe refinamento de pensar e de sentir.
118
Prometeu
Inda arrogante e forte, o olhar no sol cravado
Sublime no sofrer, vencido – não domado
Na última agonia arqueja Prometeu.
O Cáucaso é seu cepo; é seu sudário o céu,
Como um braço de algoz, que em sangueira se nutre,
Revolve-lhe as entranhas o pescoço do abutre.
P’ras iras lhe sustar, corta o raio a amplidão
E em correntes de luz prende, amarra o Titão.
Agonia sublime!... E ninguém nesta hora
Consola aquela dor, naquela angústia chora.
Ai! por cúmulo de horror!... o Oriente golfa a luz.
No Olimpo brinca Amor por entre os seios nus.
De tirso em punho o bando das lúbricas bacantes
Correm montanha e val em danças delirantes.
E ao gigante caído... a terra e o céu (rivais!...)
Prantos lascivos dão, suor de bacanais.
............................................................................
............................................................................
Mas não! Quando arquejante em hórrido granito
Se estorce Prometeu, gigantesco precito,
Vós, Nereidas gentis, meigas filhas do mar!
O oceano lhe trazeis, p’ra em prantos derramar...
Povo! povo infeliz! Povo, mártir eterno,
Tu és do cativeiro o Prometeu moderno...
Enlaça-te no poste a cadeia das Leis,
O pescoço do abutre é o cetro dos maus reis.
Para tais dimensões, p’ra músculos tão grandes,
Era pequeno o Cáucaso... amarram-te nos Andes.
E enquanto tu, Titão, sangrento arcas aí,
O século da luz olha... caminha... ri...
Mas não! mártir divino, Encélado tombado!
Junto ao calvário teu, por todos desprezado,
A musa do poeta irá – filha do mar –
O oceano de sua alma... em cantos derramar...
Comentários ao poema Prometeu
Prometeu, Castro Alves exercita poeticamente a transferência do mito
grego (Prometeu) à situação especificamente sul-americana. A América do
Sul está aí presente metonimicamente no substantivo Andes.
O poema está construído em duas partes, separadas por duas linhas
pontilhadas. Na primeira parte, o poema focaliza o mito grego antigo.
119
Prometeu é o titã, filho de Zeus, que furta o fogo do Olimpo e o entrega aos
homens. Noutras palavras, Prometeu é o símbolo humano da ação, da
transformação do mundo para o bem da humanidade. Como castigo, o deuspai condena o filho ao acorrentamento perpétuo a um poste de pedra, numa
ilha, no Cáucaso. Um abutre lhe come continuamente o fígado, e o fígado
cresce continuamente. Esse é o destino dos heróis, i. é, daqueles que não
aceitam a obediência por ela mesma, dos que não se contentam que outros
lhes decidam a existência. Esses hão de continuamente sofrer os tormentos
que lhes infligem os poderes constituídos, quando se sentem ameaçados.
Na segunda parte, o mito antigo é transposto ao Novo Mundo. A América
(do Sul) aparece citada em Andes, nome da maior cordilheira do continente.
A escolha desse nome marca também o estilo condoreiro, referência explícita
ou implícita a grandezas representativas utilizada como léxico. Os Andes são
também o hábita do condor, ave que dá nome ao estilo de época pontificado
por Castro Alves. O condor foi citado anteriormente por Varela, que inaugurou,
pois, a escolha do símbolo. Prometeu aqui é o “Povo! povo infeliz! Povo, mártir
eterno, / Tu és do cativeiro o Prometeu moderno...”. Essa concepção é
também inovadora. O povo – que para os românticos significou a população
sem poder nem prestígio – é cativo. As leis e os maus governantes são as
correntes que o aprisionam e o abutre que lhe come as entranhas. Nesses
termos, explicita poeticamente os sofrimentos da América dos pobres nos do
mito grego.
Mocidade e morte
Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh'alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
– Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.
Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero
boiar à tona das espumas.
Vem! – formosa mulher – camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh'alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...
120
E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: – impossível!
Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! – brada-me o talento n'alma
E o eco ao longe me repete: – avante! –
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após – um nome do universo n'alma,
Um nome escrito no Panteão da história.
E a mesma voz repete funerária: –
Teu Panteão – a pedra mortuária!
Morrer – é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado – escutar dobres de sino,
– Voz da morte, que a morte lhe lamenta –
Ai! morrer – é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher – no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.
Ver tudo findo... só na lousa um nome,
Que o viandante a perpassar consome.
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada
Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu'inda mesmo florido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo – que vaga sobre o chão da morte,
Morto – entre os vivos a vagar na Terra.
Do sepulcro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me: maldito!
E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita..
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida – novo Tântalo –
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda hebraica,
O estilete de Deus quebra-me a taça.
É que até minha sombra é inexorável,
121
Morrer! morrer! soluça-me implacável.
Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro – a terra,
Por glória – nada, por amor – a campa.
Adeus... arrasta-me uma voz sombria,
Já me foge a razão na noite fria!...
Comentários ao poema Mocidade e morte
Em Mocidade e morte, lê-se a dialética da vida e da morte na perspetiva do
terceiro estilo de época da poesia romântica brasileira. Diferentemente da
proposta ultrarromântica, em Castro Alves se pode ler o brilho da vida, mas
obscurecido pela morte iminente. A voz da vida é sempre secundada pela da
morte. O lamento da mocidade que morre é o fato de não ter podido gozar do
“pomo dourado”, do “vinho do viver”. A presença feminina se transforma em
aspiração da vida, na própria noção de “viver, beber perfumes”. Essa concepção
se adequa ao que foi possível estudar relativamente ao primeiro poema deste
poeta baiano, aqui analisado, Adormecida.
Personagens lendários, míticos, emblemáticos da cultura tradicional
aparecem no poema, como parte da fatalidade que desfaz as esperanças da
vida.
Manuel Antônio de ALMEIDA
Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1830 e morreu
em naufrágio, perto de Macaé (RJ) em 1861. Formou-se em Medicina em 1855,
mas não exerceu a profissão. Foi funcionário público (Tipografia Nacional e
Ministério da Fazenda). Foi jornalista e tradutor. O romance Memórias de um
sargento de milícias, publicado originalmente em folhetins, em dois volumes, que
saíram nos anos de 1854 e 1855, lhe garantiu o nome literário. Há quem diga
que foi o primeiro romance de costumes publicado no Brasil.
Há sinais de que Machado de Assis tem dívida técnica relativamente ao
romance Memórias de um sargento de milícias, tanto na estrutura narrativa,
quanto na constituição de alguns personagens, especialmente em Memórias
póstumas de Brás Cubas. Foi através de Almeida que Machado de Assis iniciou
na imprensa.
122
Memórias de um sargento de milícias
(capítulo 2 – Primeiros infortúnios)
Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e
batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos.
Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino não desmentiu
aquilo que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança com um
choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a
quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais.
Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo
que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do
Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance,
tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro
tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele
a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos
ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além
de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava;
trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava,
que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das
palmadas.
Assim chegou aos sete anos.
Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a
arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão,
porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo
concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás
tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e
enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se,
parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais
novidade.
Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em
casa, para tratar de negócios do ofício, sempre em horas desencontradas: porém
isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro
vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de
Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser
esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente
a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.
À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se
costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um
banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os
punhos cerrados.
– Grandessíssima!...
123
E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer
com todo o corpo.
A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das
que se receavam com qualquer coisa.
– Tira-te lá, ó Leonardo!
– Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca
a socos...
– Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da
traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos
sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr,
a chorar e a gritar:
– Ai... ai... acuda, Sr. compadre... Sr. compadre!...
Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e
não podia largá-lo. Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas.
Encolheu-se a choramingar em um canto.
O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio:
enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, aquele ocupava-se
tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar,
e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos.
Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do
que seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno.
Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma
meia volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos atirando-o
sentado a quatro braças de distância.
– És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te
acabe a casta.
O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente
a boca quando foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou
pela porta fora, e em três pulos estava dentro da loja do padrinho, e atracandose-lhe às pernas. O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do
freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos: com o choque que sofreu
a bacia inclinou-se, e o freguês recebeu um batismo de água de sabão.
– Ora, mestre, esta não está má!...
– Senhor, balbuciou este... a culpa é deste endiabrado... O que é que tens,
menino?
O pequeno nada disse, dirigiu apenas os olhos espantados para defronte,
apontando com a mão trêmula nessa direção.
124
O compadre olhou também, aplicou a atenção, e ouviu então os soluços da
Maria.
– Hã! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora aí está!...
E desculpando-se com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se
passava.
Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor
que suspeitara a verdade.
Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das
casas, era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda
hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo
hábito.
Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do
ofício, o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de
Leonardo, as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do
capitão do navio. Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava
de suceder.
Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair
deixara cerrada, e entrou. Dirigiu-se ao Leonardo, que se conservava ainda em
posição hostil.
– Ó compadre, disse, você perdeu o juízo?...
– Não foi o juízo, disse o Leonardo em tom dramático, foi a honra!...
A Maria, vendo-se protegida pela presença do compadre, cobrou ânimo, e
altanando-se disse em tom de zombaria:
– Honra!... honra de meirinho... ora!
O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco,
borbotou de novo com este insulto, que não ofendia só um homem, porém uma
classe inteira! Injúrias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das
mãos e da boca de Leonardo. O compadre, que se interpusera, levou alguns por
descuido; afastou-se, pois, a distância conveniente, murmurando despeitado por
ver frustrados seus esforços de conciliador:
– Honra de meirinho é como fidelidade de saloia.
Enfim serenou a tormenta: a Maria sentou-se a um canto a chorar e a
maldizer a hora em que nascera, o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo,
a pisadela, o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo, e tudo mais
que a dor dos murros lhe trazia à cabeça.
O Leonardo, depois de um pouco de calma, teve um momento de
exasperação; avermelharam-se-lhe os olhos e as faces, cerrou os dentes, meteu
as mãos nos bolsos do calção, inchou as bochechas e pôs-se a balançar
125
violentamente a perna direita. Depois, como tomando uma resolução extrema,
juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara, enterrou
atravessado na cabeça o chapéu armado, agarrou na bengala, e saiu batendo
com a rótula e exclamando:
– Vá-se tudo com os diabos!...
– Vai... vai... exclamou a Maria já de novo em segurança, pondo as mãos
nas cadeiras, que o caso não há de ficar assim... pôr-me as mãos!... ora... vou
com isto à justiça!...
– Comadre...
– Nada, não atendo, compadre... vou com isto à justiça, e apesar de ser ele
um meirinhaço muito velhaco, há de se haver comigo.
– É melhor não se meter nisto, comadre... sempre são negócios com a
justiça... o compadre é seu oficial, e ela há de punir pelos seus.
As ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o
despeito, e portanto com mais quatro razões do compadre cedeu, e foi restituída
a paz em casa. Houve então larga conferência entre os dois, no fim da qual o
compadre saiu dizendo:
– Ele há de voltar... aquilo é gênio... há de passar... e se não... o dito está
dito; fico com o pequeno.
A Maria mostrou-se satisfeita. Tinha ela suas resoluções tomadas, ou
anteriormente ou naquela ocasião, e por isso na conferência que referimos
tratara de engordar o compadre e arrancar-lhe a promessa de que no caso de
algum desarranjo tomaria a si e cuidaria do filho. Esse desarranjo ela figurara e
o compadre acreditara que só partiria de Leonardo; porém o leitor vai ver que o
pobre homem era condescendente, e que a Maria tinha razão quando falara
ironicamente em honra de meirinho.
Toda esta cena que acabamos de descrever passou-se de manhã. À
tardinha o Leonardo entrou pela loja do compadre, aflito e triste. O pequeno
estremeceu no banco em que se achava sentado, lembrando-se do passeio
aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã. O compadre adiantouse e disse-lhe com um sorriso conciliador:
– O passado passado; vamos... ela está arrependida... doidices de
rapariga... mas não há de fazer outra...
O Leonardo não respondeu; pôs-se a passear pela loja com as mãos
cruzadas para trás e por baixo das abas da casaca; porém pelo seu semblante
via-se que ele estimara as palavras do compadre, e que seria o primeiro a
pronunciá-las se ele não o precedesse.
– Vamos até lá, disse o compadre, e acabe-se tudo! Coitada!... ela ficou
muito chorosa.
126
– Vamos, disse o Leonardo...
Chegando à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha
tomado a resolução de não entrar; mas o que ele queria eram algumas súplicas
do compadre, que pudessem ser ouvidas pela Maria; a fim de fazê-la acreditar
que se ele voltava era arrastado, e não por sua vontade. O compadre percebeu
isto, e satisfez o pensamento de Leonardo dizendo:
– Entre, homem... basta de criançadas... o passado passado.
Entraram. A sala estava vazia; o Leonardo sentou-se junto de uma mesa,
descansou o rosto numa das mãos, conservando sempre o chapéu armado
atravessado na cabeça, o que lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico.
– Comadre, disse em voz alta o agente da conciliação, tudo está acabado;
venha cá... Ninguém respondeu.
– Há de estar aí a chorar metida em algum canto, tornou o compadre.
E começou a procurar por toda a casa.
Não era esta mui grande; em pouco percorreu-a toda, e ficou tomado do
mais cruel desapontamento por não encontrar a Maria. Voltou portanto à sala
entre consternado e espantado.
O Leonardo, supondo que ele tinha achado a Maria, e que sem dúvida a
trazia pela mão contrita e humilhada, quis fazer-se de bom: ergueu-se, meteu as
mãos nos bolsos, e pôs-se de costas para o lugar donde vinha o compadre.
– Ó compadre, disse este aproximando-se...
– Nada, atalhou o Leonardo sem voltar-se... o dito por não dito...mudei de
resolução!...
– Olhe, homem...
– Nada, nada... está tudo acabado...
O Leonardo, dizendo isto, ia dando sempre as costas ao compadre, quando
se lhe queria pôr de frente.
– Homem... escute... olhe que a comadre...
– Não quero saber dela... está tudo acabado; e já disse...
– Foi-se embora... homem... foi-se embora, gritou o compadre
impacientado.
O Leonardo foi fulminado por estas palavras; voltou-se então todo trêmulo.
Não vendo a Maria desatou a chorar.
– Pois bem, disse entre soluços, está tudo acabado... adeus compadre!
– Mas olhe que o pequeno... atalhou este.
O Leonardo nada respondeu, e saiu precipitadamente.
127
O compadre compreendeu tudo: viu que o Leonardo abandonava o filho,
uma vez que a mãe o tinha abandonado, e fez um gesto como quem queria dizer:
Está bom, já agora... vá; ficaremos com uma carga às costas.
Ao outro dia sabia-se por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha
fugido para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite.
– Ah! disse o compadre com um sorriso maligno, ao saber da notícia, foram
saudades da terra!...
Memórias de um sargento de milícias
(capítulo 48 – Conclusão feliz)
A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo, e
acompanhou-as à missa do sétimo dia. O Leonardo compareceu também nessa
ocasião e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício.
Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera
ao Leonardo não caíra no chão a D. Maria, assim como também lhe não
escaparam muitos outros fatos consecutivos a esse.
O caso é que não lhe parecia extravagante certa ideia que lhe andava na
mente.
Muitas vezes, ao cair de ave-maria, quando a boa da velha se sentava a
rezar na sua banquinha em um canto da sala, entre um padre-nosso e uma avemaria do seu bendito rosário vinha-lhe à ideia casar de novo a fresca viuvinha,
que corria o risco de ficar de um momento para outro desamparada num mundo
em que maridos, como José Manuel, não são difíceis de aparecer,
especialmente a uma viuvinha apatacada.
Ao mesmo tempo que lhe vinha esta ideia lembrava-se do Leonardo, que
amara a sua sobrinha no tempo da criançada, e que era, apesar de extravagante,
um bom moço, não de todo desarranjado, graças à benevolência do padrinho
barbeiro.
Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a esse
respeito; mas como era coisa que constava de verba testamentária, D. Maria
nada via de mais fácil do que propor uma demanda, cujo resultado não seria
duvidoso.
Havia porém no meio de tudo uma circunstância que lhe desconsertava os
planos. O Leonardo era soldado. Ora, soldado, naquele tempo, era coisa de
meter medo.
Quando D. Maria chegava a este ponto de suas meditações, abandonavaas, e continuava o seu rosário.
A comadre fazia quase exatamente os mesmos cálculos por sua parte, e
também só esta única dificuldade se antolhava à realização de seus planos.
Enquanto estas duas pensavam, os outros dois obravam.
128
Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; e quem quiser ver
coisa de andar depressa é ver namoro de viúva.
Na primeira ocasião Leonardo quis recorrer a uma nova declaração;
Luisinha porém fez o processo sumário, aceitando a declaração de há tantos
anos.
Sem que os vissem, viam-se os dois muitas vezes, e dispunham seus
negócios.
Infelizmente ocorria-lhes a mesma dificuldade: um sargento de linha não
podia casar. Havia talvez um meio muito simples de tudo remediar. Antes de
tudo, porém, os dois amavam-se sinceramente; e a ideia de uma união ilegítima
lhes repugnava.
O amor os inspirava bem.
Esse meio de que falamos, essa caricatura da família, então muito em
moda, é seguramente uma das coisas que produziu o triste estado moral da
nossa sociedade.
Só essa dificuldade demorava os dois. Entretanto o Leonardo achou um dia
o salvatério, e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava: podia ficar
ele sendo soldado e casar, dando baixa na tropa de linha, e passando-se no
mesmo posto para as milícias.
A dificuldade, porém, estava ainda em arranjar-se essa baixa e essa
passagem: Luisinha encarregou-se de vencer esse embaraço.
Um dia em que estava sua tia a rezar no seu rosário, justamente num
daqueles intervalos de padre-nosso a ave-maria de que acima falamos, Luisinha
chegou a ela, e comunicou-lhe com confiança tudo que havia, fazendo preceder
sua narração da seguinte declaração, que cortava a questão pela raiz:
– Para lhe obedecer e fazer-lhe o gosto casei-me uma vez, e não fui feliz;
quero ver agora se acerto melhor, fazendo por mim mesma nova escolha.
Em breve, porém, conheceu que fora inútil sua precaução, porque D. Maria
confessou que de há muito ruminava aquele mesmo plano.
Combinaram-se pois as duas.
A bondade do major inspirava-lhes muita confiança, e lembraram-se por
isso de recorrer a ele de novo.
Foram ter com Maria-Regalada, que mesmo na véspera lhes tinha
mandado dar parte que se mudara da Prainha, e oferecia-lhes sua nova morada.
A comadre, de tudo inteirada, fez parte da comissão.
Quando entraram em casa de Maria-Regalada, a primeira pessoa que lhes
apareceu foi o major Vidigal, e, o que é mais, o major Vidigal, em hábitos
menores, de rodaque e tamancos.
129
– Ah! disse a comadre em tom malicioso, apenas apareceu a MariaRegalada, pelo que vejo isto por aqui vai bem...
– Não se lembra, respondeu Maria-Regalada, daquele segredo com que
obtive o perdão do moço? Pois era isto!...
A Maria-Regalada tinha por muito tempo resistido aos desejos ardentes que
nutria o major de que ela viesse definitivamente morar em sua companhia. Não
atribuímos esta resistência senão a capricho, para não fazermos mau juízo de
ninguém; o caso é que o major punha naquilo o maior empenho; teria lá suas
razões.
O segredo que a Maria-Regalada dissera ao ouvido do major no dia em que
fora, acompanhada por D. Maria e a comadre, pedir pelo Leonardo, foi a
promessa de que, se fosse servida, cumpriria o gosto do major.
Está pois explicada a benevolência deste para com o Leonardo, que fora
ao ponto de, não só disfarçar e obter perdão de todas as suas faltas, como de
alcançar-lhe aquele rápido acesso de posto.
Fica também explicada a presença do major em casa da Maria-Regalada.
Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o
pedido muito justo, em consequência do fim que se tinha em vista. Com a sua
influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis:
um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de sargento de
milícias.
Além disto recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual
o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se
achava religiosamente intacto.
Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de
sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a
família em peso.
Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D.
Maria, a do Leonardo-Pataca e uma enfiada de acontecimentos tristes que
pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto-final.
Comentários aos capítulos 2 e 48 de Memórias de um sargento de milícias
O capítulo 2 representa a abertura da intriga propriamente dita. Começa a
despontar o protagonista, Leonardo (filho). Começam a aparecer certos
estigmas de nascimento e de educação, prenúncios já da forma realistanaturalista que se vislumbram na literatura brasileira. A concentração da
narrativa sobre personagens da pequena-burguesia também aponta à mudança
de pontos de vista ideológicos nos textos.
Paralelamente aos episódicos hilariantes, que se desenrolam com
frequência durante a narrativa, desenvolve-se a relação sentimental entre
130
Leonardo e Luisinha. Esse elo fica rompido temporariamente por causa do
casamento de Luisinha com Manuel José, que, no entanto, falece
prematuramente.
Como atesta o capítulo 43, Luisinha, desimpedida para o casamento, em
virtude da viuvez, casa-se com Leonardo. Assim se configuram outras
tendências que afastam o texto de Memórias de um sargento de milícias da
proposta romântica propriamente dita. O alcandorado desígnio ideológico da
virgindade como valor fundamental para a felicidade no casamento começa a
ruir. Uma viúva é, então, a personagem feminina central do enlace sentimental.
Também a pseudoelevação do herói, por interseção de mulheres e pela ação
interesseira e arbitrária de personagem um tanto grotesco, como Vidigal, desfere
golpe mortal aos heróis românticos até então valorizados.
Cabe ainda lembrar que, como os itens anteriormente comentados a partir
dos parâmetros românticos, a conquista de bens econômicos também pode ser
contada de maneira diversa à da transmissão por herança, já que Leonardo não
consegue sua segurança econômica dessa maneira tradicional. A transmissão
da herança foi durante muito tempo a maneira de assegurar riqueza e poder às
famílias ditas aristocráticas. Ainda que a proposta romântica se tenha posto
contra a aristocracia, especialmente na questão da escolha do par amoroso (os
românticos bateram-se pela livre escolha dos amantes), noutros pontos não
houve oposição radical.
Permanece coerentemente, para a finalização do enredo em Memórias de
um sargento de milícias, a centralidade das relações dominadas pelos
sentimentos, valores fundamentais da vida e da literatura românticas: Vidigal
aceita liberar Leonardo das perseguições e concede-lhe o título de sargento de
milícias, para que tenha sustentação financeira para o casamento e limpe a
reputação, que vinha sendo mantida um tanto manchada, durante o desenrolar
do enredo. Segundo a narrativa, ser sargento de milícias assegurava igualmente
a tranquilidade de não ser chamado para a guerra, caso guerra viesse a ocorrer,
considerando que, de qualquer modo, Leonardo passa a ser militar. A segurança
e a acomodação podem ter, portanto, tendo em vista a narrativa, formas
incomumente consideradas como viáveis.
131
Bibliografia crítico-teórica e de referência
AMORA, Antônio S. O Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1967.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CASTELLO, José A. Manifestações literárias da era colonial. São Paulo: Cultrix,
1967.
CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Globo, 1956.
GONZAGA, Sérgius. Literatura brasileira.10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1993.
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Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1987.
LUFT, Celso P. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira. Porto Alegre:
Globo, 1979.
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_. A literatura brasileira através dos textos. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1987.
MOISÉS, M.; PAES, J. P. (org.). Pequeno dicionário de literatura brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1987.
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_. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.
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ZILBERMAN, R.; MOREIRA, M. E.; ASSIS BRASIL, L. A. de. (org.). Pequeno
dicionário de literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Novo Século,
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132
Córpus antológico
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_. Iracema (1865). Porto Alegre: L&PM, 1997.
_. O guarani (1857). São Paulo: Martin Claret, 2004.
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias (1854). Ed.
crítica por Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
1978.
ALVES, A. F. de Castro. Espumas flutuantes (1870). Poesias completas. Rio de
Janeiro: Tecnoprint, [s.d.].
_. Os escravos (1883). Poesias completas. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s.d.].
AZEVEDO, M. A. Álvares de. Lira dos vinte anos (1853). Ed. preparada por Lúcia
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CALDRE E FIÃO, J. A. do Vale. O corsário (1849). Porto Alegre: Movimento :
IEL, 1979.
DIAS, A. Gonçalves. Primeiros cantos (1846). Poesias completas. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
FREIRE, Luís Junqueira. Inspirações do claustro (1855). Poesias completas. Rio
de Janeiro: Z. Valverde, 1944.
GAMA, Basílio da. O Uraguai (1869). Obras poéticas de Basílio da Gama. Ensaio
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_. Marília de Dirceu. 24. ed. São Paulo: Martins, 1996.
GUIMARÃES, Bernardo. O seminarista (1872). São Paulo: Martin Claret, 2004.
MACEDO, Joaquim M. de. A moreninha (1844). São Paulo: Martin Claret, 2004.
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Melhoramentos; Brasília: INL, 1977.
_. Obras de Gregório de Matos. Org. por A. Coutinho. Rio de Janeiro: ABL, 19231933.
MELO, Rita Barém de. Sorrisos e prantos (1868). Florianópolis: Mulheres; Porto
Alegre: Movimento, 1998.
TAUNAY, Visconde [Alfredo] de. Inocência (1872). São Paulo: Martin Claret,
2002.
TEIXEIRA [PINTO], Bento. Prosopopeia (1601). São Paulo: Melhoramentos,
1977.
VARELA, [Luís Nicolau] Fagundes. Obras completas. 3 v. Rio de Janeiro: Z.
Valverde, 1943.
---oo0oo---
133
Volume 2
Sumário
Realismo-Naturalismo-Parnasianismo, Simbolismo, Prémodernismo
Capítulo 4
REALISMO-NATURALISMO-PARNASIANISMO / 136
Machado de Assis / 138
Memórias póstumas de Brás Cubas (capítulos) / 139
Dom Casmurro (capítulos) / 146
Missa do galo / 151
Círculo vicioso / 157
Aluísio de Azevedo / 158
O cortiço (excerto) / 158
Raul Pompeia / 162
O Ateneu (excerto) / 163
Adolfo Caminha / 169
Bom-crioulo (excerto) / 169
Raimundo Correia / 171
Mal secreto / 171
As pombas / 172
Anoitecer / 172
Olavo Bilac / 173
Profissão de fé / 173
Língua portuguesa / 176
Júlio Salusse / 177
Os cisnes / 177
Vicente de Carvalho / 177
Velho tema / 177
Luiz Araújo Filho / 178
Recordações gaúchas (excerto) / 172
134
Capítulo 5
SIMBOLISMO / 183
Cruz e Souza / 185
Antífona / 185
Lésbia / 186
Cárcere das almas / 186
Livre / 187
Monja / 187
Alphonsus de Guimaraens / 188
A catedral / 188
Pulchra ut luna / 189
Eduardo Guimaraens / 189
Canto ao velho minuano / 189
Capítulo 6
PRÉ-MODERNISMO / 192
Augusto dos Anjos / 193
Vencedor / 193
Versos íntimos / 194
Barcarola / 194
Alceu Wamosy / 197
A revolta do corvo / 197
Por quê? / 197
Oferta / 198
Duas almas / 198
Lopes Neto / 201
[Introdução aos Contos gauchescos] / 201
Trezentas onças / 203
A salamanca do Jarau / 209
Monteiro Lobato / 233
Negrinha / 233
Lima Barreto / 240
Triste fim de Policarpo Quaresma (excerto) / 240
Amaro Juvenal [Ramiro Barcelos] / 246
Antônio Chimango (excerto) / 246
Alcides Maya / 250
Ruínas vivas (excerto) / 251
135
Bibliografia crítico-teórica e de referência / 255
Córpus antológico / 256
136
Capítulo 4
Caipira picando fumo
A mendiga
Saudade
Obras de Almeida Júnior (1893, 1899, 1899)
REALISMO-NATURALISMO-PARNASIANISMO (1881 – 1893)
O Realismo sucede ao Romantismo. Marcou-se como escola literária, cuja
ideologia de suporte é o Positivismo. O Positivismo tem conexão propositiva com
o Iluminismo. Ideologicamente, o Realismo mantém a utopia de que é possível
ao homem conhecer objetivamente a realidade. A realidade considerada é a que
se deixa observar pelos sentidos e pela dedução. Noutras palavras: crê-se, à
época, que as coisas têm única dimensão e que, tomadas como objetos do
conhecimento, podem ser conhecidas pelo ser humano. A noção de única
dimensão das coisas, a que aqui se alude, na perspetiva realista, revela que as
coisas são efetivamente o que os sentidos demonstram que aparentam ser. Para
os realistas, o processo do conhecimento põe o objeto a ser conhecido fora da
dimensão do sujeito. Essa é a marca de objetividade dos realistas. Sujeito e
objeto não interagem. Essa concepção tem diversas consequências
consideráveis. Uma delas é a oposição que essa proposta faz à dos românticos.
Costuma-se dizer que os românticos são subjetivistas. Significa isso dizer que o
sujeito do texto (autor e leitor, à sua vez) é primordial; que a partir dele as
pessoas e as coisas do mundo têm tais ou quais valores. Os realistas
preconizam, pois, posição oposta, ou seja, o sujeito (que vê, observa, examina)
não interfere na concepção do que seja o objeto para o sujeito. O objeto tem,
portanto, dimensão própria, independente do sujeito que o observa. Do ponto de
vista estilístico, isso acarreta a desconsideração do sujeito do texto. Essa soma
de entendimentos constrói um paradoxo técnico-literário. Autor e leitor se limitam
no texto, considerando-se que limitar significa tanto separar quanto aproximar.
137
O autor lê o mundo, reflete sobre ele e o literaturiza. O leitor lê o texto, mas tem
como referência o mundo. Se o mundo é realmente o texto, é negada ao leitor a
interpretação. A interpretação pressupõe diálogo com o texto, com todas as
consequências desse fato: o texto não é o mundo, mas uma interpretação que o
autor faz dele. Do modo análogo, o leitor interpreta o mundo de acordo com suas
condições (culturais, sociais, experienciais etc). O texto, por conseguinte,
depende, pelo menos parcialmente, também do leitor. O objeto, portanto,
depende do sujeito.
É aconselhável, outrossim, não confundir realidade com real. O real, que é
central em qualquer arte, é central na literatura. O real é a conjunção de
realidade, imaginário e imaginação. O real assume valor preponderante
relativamente à realidade, porque a realidade é destrutível.
A escola realista tem três estilos de época: o próprio Realismo, o
Naturalismo e o Parnasianismo. O realismo brasileiro consiste, quase
integralmente, segundo se observa no estudo da crítica do Brasil, na obra
machadiana. Ordem e o progresso, lema positivista que se lê na nossa bandeira,
não aparece com clareza na obra machadiana considerada realista. Nosso
realismo demonstra-se, na leitura da obra de Machado de Assis, produção
literária psicologista e de demolição de costumes e do ambiente social
focalizado, o do Rio de Janeiro, a corte, pelo menos simbólica.
O naturalismo, no Brasil, segue tendências internacionais. Focaliza casos
grotescos da vida humana. Explora temas até então reprimidos, como
prostituição, homossexualismo, consequências do celibato religioso, avareza,
semidemência... Os ambientes constituem em geral recortes de coletividades,
como favelas, marinheiros embarcados, internatos escolares, grupos humanos
de atividades iguais ou semelhantes.
O Parnasianismo também tende à dimensão universalizante. Preocupa-se
com a construção de temas inindividualizados. Em geral, os poemas
parnasianos geralmente ou são descritivos ou tematizam condições adversas da
vida humana, o que tem atraído a tendência da crítica de classificá-lo como
pessimista. Nesse item, não discrepa da obra narrativa realista machadiana, que
muitas vezes é vista também desse modo.
O cientificismo marcou a escola, especialmente na prosa, em decorrência
da proposta positivista. O estilo de construção de temas realistas está bem
marcado pela psicologia e pela psicanálise, recém-instalada. O estilo de
construção de temas naturalistas carateriza-se pelo desenvolvimento das
noções de hereditariedade biológica e de predomínio do meio ambiente sobre a
formação psicossomática dos grupos sociais e consequências expressivas, em
coerência com meio e personagens. A defesa do purismo linguístico, de fato
insustentável, definiu grande parte da produção parnasiana.
138
O discurso literário realista mantém-se conetado a formas legitimadas da
língua, embora demonstre criatividade ao aplicá-las. O discurso naturalista
incursiona por formas populares, em coerência com a maioria dos personagens.
O parnasiano é cuidado, restritivo e às vezes formalista. O formalismo
parnasiano desencadeou a noção de que a obra parnasiana tende à arte pela
arte. Isso, em parte pelo menos, desvinculou a produção poética parnasiana dos
meios populares brasileiros.
Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS
Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 1839 e morreu na mesma
cidade em 1908. Foi jornalista, contista, cronista, romancista, poeta, crítico e
teatrólogo. Era filho de operários. Cedo perdeu a mãe. Foi criado no morro do
Livramento. Desenvolveu, desde menino, atividades de sobrevivência. Sem
meios para cursos regulares, estudou como pôde. O emprego de aprendiz de
tipógrafo na Imprensa Nacional lhe abriu o meio editorial fluminense da época e
a amizade de Manuel Antônio de Almeida. Nessa época, começou a escrever os
primeiros versos, alguns dos quais foram publicados no jornal A marmota. Em
1860, foi convidado por Quintino Bocaiúva a colaborar no Diário do Rio de
Janeiro.
Casou-se com Carolina Augusta Xavier de Novais. Não tiveram filhos.
Machado de Assis é considerado um dos maiores talentos literários
brasileiros de todos os tempos. Suas obras são repassadas de fino humor
irônico, compostas em estilo elaborado. A estreia de seu nome deu-se em Queda
que as mulheres têm pelos tolos (1861). Embora o texto apareça como tradução,
parte da crítica informa que se trata de autoria. Depois disso, publicou várias
peças teatrais. Em 1864, apareceu o livro de poemas Crisálidas. Em 1870,
publicou Falenas (poemas) e Contos fluminenses. A partir daí, o público e a
crítica consagraram seus méritos de escritor.
Machado de Assis foi fundador da Academia Brasileira de Letras e seu
primeiro presidente. Ocupou a Cadeira n. 23, cujo patrono é José de Alencar,
que também foi amigo dele.
Obra: Além de Crisálidas e Falenas, publicou Americanas (1875) e
Ocidentais (em Poesias completas, 1901) – poemas. Contos fluminenses (1870);
Histórias da meia-noite (1873); Papéis avulsos (1882); Histórias sem data
(1884); Várias histórias (1896) – contos. Ressurreição (1872); A mão e a luva
(1874); Helena (1876); Iaiá Garcia (1878); Memórias póstumas de Brás Cubas
(1881); Quincas Borba (1891); Dom Casmurro (1899); Esaú e Jacó (1904);
Memorial de Aires (1908) – romances. O caminho da porta e O protocolo (1863);
Quase ministro (1864); Os deuses de casaca (1866); Uma ode a Anacreonte
139
(1870); O pote de rapé (1878); Antes da missa (1878); Tu, só tu, puro amor
(1881); Não consultes médico (1896); Lição de botânica (1906) – teatro. Páginas
recolhidas (1899); Relíquias da casa velha (1906); Outras relíquias (1910) –
crônicas. Crítica (1910); A semana (1914); Novas relíquias (1932) – crítica em
edições póstumas. Casa velha (1944), novela editada postumamente.
Memórias póstumas de Brás Cubas
Ao leitor
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem
leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente
consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem
cinquenta, nem vinte, e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de
um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta
da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce
que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo
que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da
estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da
opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio
é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos
coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas
Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente
extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é
tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te
com um piparote, e adeus.
Comentários a Ao leitor
Ao leitor consiste no que hoje chamaríamos de introdução, ou seja, um
texto que introduz o leitor no tipo de obra que vem a seguir. Tem a finalidade de
explicar procedimentos, para melhor abordagem do texto maior. Segundo se lê
acima, procura ser um prólogo. Prólogo equivale a prefácio: pequeno texto de
apresentação de obras, com explicação sobre temáticas trabalhadas, objetivos
e ou sobre o autor.
Pelo prólogo, o leitor já se pergunta se o realismo do texto coincide mesmo
com a proposta de uma escola literária que pressupõe a possibilidade de
apreensão do mundo como se mostra em aparência, porque o pseudoautor (e
narrador) é um morto. Imediatamente, o texto demonstra que está marcado por
ironia e algo de humor.
140
Em “[...] a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance
[...]” e “[...] a gente frívola não achará nele o seu romance usual [...]”, há bastante
que ler. A primeira sentença afirma que a maioria das pessoas padece de
seriedade que lhe impede de admitir que nem tudo é como parece. Os graves,
pelo que se lê, torcem o nariz para a arte, no caso, para a literatura, dita no
substantivo romance. Tangencia, portanto, aquela ideia um tanto vulgar de que
o que não aconteceu no mundo concreto-sensorial não é coisa séria. De acordo
com o texto, a segunda grande coluna de opinião é composta de frívolos. Para
esses, romances (leia-se narrativas) sem episódios atraentes pontificados por
heróis admiráveis não são bem recebidos. Trata-se mais ou menos do que
ocorre atualmente com algumas telenovelas, filmes e livros transformados em
empreendimentos prioritariamente lucrativos.
Com a afirmação de que “o melhor prólogo é o que contém menos coisas,
ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado”, o texto, ao tempo em que diz
que prólogos são suprimíveis, sugere que prólogos não devem explicar a obra a
que se referem e devem ser breves. Caso haja o prólogo, ironiza que não precisa
ser claro nem inteligível. Surpreendentemente ou não, é o que grande parte da
crítica, inclusive certa crítica de origem universitária faz hoje.
Depois, o prólogo trata do “[...] processo extraordinário [...]”, incomum,
empregado na construção do romance. Demonstra, portanto, preocupação
metanarrativa, como também ocorre atualmente, na escola denominada pósmodernista.
No último período, “a obra em si mesma é tudo [...]” representa
posicionamento crítico decisivo. É uma lição que, se aceita, pode orientar leitores
e professores. Literatura se faz na leitura do texto literário. Discussões críticas
auxiliam leitores e autores, mas não são a literatura propriamente dita. História
da literatura auxilia na compreensão da cultura em geral, mas tampouco substitui
a leitura dos textos.
O menino é pai do homem (cap. 11)
Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como
crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com
certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância. Um
poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isso é verdade, vejamos alguns
lineamentos do menino.
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e
verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo,
arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a
cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que
estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao
tacho, e, não satisfeito com a travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é
que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um
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moleque da casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão,
recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com
uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele
obedecia –algumas vezes gemendo –, mas obedecia sem dizer palavra, ou,
quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!”
Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar
pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras
muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer
que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me
em grande admiração; e, se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o
por simples formalidade: em particular dava-me beijos.
Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar
a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e
algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes
os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras.
Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a
atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um
padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinavame a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que,
mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra
perdia o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã, antes
do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim
como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma
grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara,
e exclamava a rir: Ah! brejeiro! Ah! brejeiro!
Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco
cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa – caseira, apesar
de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O
marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu
a minha educação, que, se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa,
incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos
ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino e mais afeição
do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um
sistema inteiramente superior ao sistema usado; e, por esse modo, sem
confundir o irmão, iludia-se a si próprio.
De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda um exemplo
estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João,
era um homem de língua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze
anos entrou a admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas de
obscenidade ou imundície. Não me respeitava a adolescência, como não
respeitava a batina do irmão; com a diferença que este fugia logo que ele
enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender
142
nada, a princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhe graça. No fim de certo
tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim, dava-me doces,
levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas
vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com
as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de
perguntas e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro
ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçarlhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas
sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e
redarguindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com
esta palavra:
– Cruz, diabo!... Esse sinhô João é o diabo!
Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais
dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um
espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o
lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões.
Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do
que uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não
estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou
expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas
cantadas, sabia melhor o número e caso das cortesias que se deviam ao
oficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a
maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso
na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas
virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir,
de as impor aos outros.
Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferenciava-se grandemente
dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dois anos. Outros
parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma
vida comum, mas intermitente, com grandes claros de separação. O que importa
é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada – vulgaridade de
caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade,
domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta
flor.
A casinha (cap. 67)
Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara o
Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas cor-de-rosa.
Entendi, abri-a, e tirei este bilhete:
“Meu B...
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Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos
veremos mais. Adeus; esqueça-se da infeliz
V...a.”
Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa
de Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o
que se passara com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara
muito, no teatro, na noite anterior, a propósito da minha ausência do camarote
do Lobo Neves; tinha comentado as minhas relações em casa; em suma, éramos
objeto de suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer.
– O melhor é fugirmos, insinuei.
– Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.
Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz
de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só
lhe deixava uma. Talvez senti alguma coisa semelhante a despeito; mas as
comoções daqueles dois dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá
lá; arranjemos a casinha.
Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um recanto de
Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janelas na frente e duas
de cada lado, – todas com venezianas cor de tijolo, – trepadeira nos cantos,
jardim na frente; mistério e solidão. Um brinco!
Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em
cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira
fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria facilmente o resto.
Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de
posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a
consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas de outro, das
cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos
constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes,
o chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu
inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; – dali para
dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente
nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesa, sem olheiros, sem escutas, –
um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, – a
unidade moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias.
O senão do livro (cap. 71)
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho
que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo
sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho,
cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo,
144
porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o
livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, estilo regular e fluente,
e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda,
andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e
caem.
E caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer
outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de
saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir,
também não deixa olhos para chorar... Heis de cair.
A história de Dona Plácida (cap. 74)
Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência
de Dona Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a
achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a
sua história. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia
doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei
o que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou
dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois,
deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dois anos,
e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces,
que era seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três
ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês.
Com isto iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.
– Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria
casado; mas ninguém queria casar comigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais
delicado que os outros, Dona Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de
o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A
mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessidade; mortificava
a filha para que tomasse um dos maridos de empréstimo e de ocasião que lha
pediam. E bradava:
– Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias de
pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento.
Ora esta! Moços tão bons como Policarpo da venda, coitado... esperas algum
fidalgo, não é?
Dona Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio.
Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas
que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e queria ser casada. Não queria
também que a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao
fogão, e os olhos ao candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu,
perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha estava
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com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser
namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. Dona Plácida vivia com
imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras. A
gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava
para colher marido ou outra coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos;
a mãe chegou a receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
– Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me
só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no
mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a família
de Iaiá: boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá
muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada, costurando. Saí quanto Iaiá
casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas
mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas
de agulhas. – Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se
cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um
medo de acabar na rua, pedindo esmola...
Ao soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio. Depois, como se
tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao amante
de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia
de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da
sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim.
Comentários aos excertos de Memórias póstumas de Brás Cubas
Em O menino é pai do homem, o texto analisa a educação familiar e o meio
como formador da personalidade. Parece que, por trás de tudo, está o aviso de
que o memorando (por ele mesmo) não abrigará sentimentos de amor a quem
quer que seja. A ironia, que se manifesta aqui e ali, se transmuta em sarcasmo
no último período. Em A casinha, lê-se a organização de relações amorosas
paralelas, em ambiente burguês. Não deixa de haver também uns pontos de
ridículos algo hilariantes. Sobretudo, examina-se aí o egoísmo. Em O senão do
livro, o narrador, como faz com frequência, interrompe a narrativa sequenciada
para comentar a forma constitutiva da narrativa do texto. Apresenta-se aí ao leitor
a contraditória condição da soberba. O capítulo 74, A história de dona Plácida,
provavelmente seja um dos trechos que o leitor atento não esquecerá facilmente.
Para mostrar as desigualdades, em que sobressaem o sacrifício existencial de
uns em contraposição à comodidade hipócrita de outros, o capítulo narra a doída
dependência de dona Plácida a qualquer compromisso que lhe supra as
necessidades que a ameaçam. Em contracena, Brás não vê outra coisa que seus
botins: não tem horizontes, não pretende reformar pontos de vista, recusa
reflexões.
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Essas são, em pequena porção, algumas das memórias do “defunto autor”,
como o narrador se autoclassifica no capítulo 1. Sem compromisso, sequer de
coerência, com o mundo dos vivos, não encontra dificuldades em usar a crua
sinceridade, que a escola literária permitiu ao texto.
Dom Casmurro
Do título (cap. 1)
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem
da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.
Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e
acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não
fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado,
fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a
leitura e metesse os versos no bolso.
– Continue, disse eu acordando.
– Já acabei, murmurou ele.
– São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do
gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e
acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus
hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por
isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça,
chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar
com você”. – “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da
Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns
quinze dias comigo”. – “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do
teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá,
dou-lhe cama; só não lhe dou moça”.
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe
dão, mas no que lhe pôs vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio
por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também
não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim
do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe
guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a
obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
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As leis são belas (cap. 26)
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia –
uma ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha
os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:
– É tarde, disse ele; mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei
falar a sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar: trabalharei com alma. Deveras,
não quer ser padre? As leis são belas, meu querido... Pode ir a São Paulo, a
Pernambuco, ou ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora.
Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só
comigo; fale também a seu tio.
– Hei de falar.
– Pegue-se também com Deus, – com Deus e a Virgem Santíssima,
concluiu apontando para o céu.
O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros
negros faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água,
e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu,
nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu
interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me:
– Deus fará o que o senhor quiser.
– Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o
passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra
coisa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são
belas, sem desfazer da teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica
é a mais santa... Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo
para alguma universidade e, ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir
juntos: veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, espanhol,
italiano, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo;
ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e
cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para o outro... Oh! As leis
são belíssimas!
– Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário.
– Pedir, peço, mas pedir não é alcançar: Anjo de meu coração, se vontade
de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! você não
imagina o que é a Europa; oh! a Europa...
Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à
Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio
Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com essa
possibilidade de ir comigo e lá ficar durante a eternidade de meus estudos.
– Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
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Olhos de ressaca (cap. 32)
Tudo era matéria às curiosidade de Capitu. Caso houve, porém, no qual
não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que
contarei no outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do
ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D.
Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
– Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe
pregar um susto.
Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não
fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um
mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre
as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, verdade é que, apenas
entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta
pergunta:
– Há alguma coisa?
– Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue
para a lição. Como passou a noite?
– Eu bem. José Dias ainda não falou?
– Parece que não.
– Mas então quando fala?
– Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo
de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará na
matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
– Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso
alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei
se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que
você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é
atendido; se, porém... É um inferno isso! Você teime com ele,
Bentinho.
– Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
– Você jura?
– Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles,
“olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era
oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar
assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que
era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura
eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe
149
deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para
mirá-los de mais perto, com os meus olhos longos, constantes,
enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos,
crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para
dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de
dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos
de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam
não sei que fluído misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro,
como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado,
agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos
espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que
saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me
e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu
terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas;
nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e
dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a
soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim
também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos
aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao
divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar
que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos
de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe – para dizer alguma coisa – que
era capaz de os pentear, se quisesse.
– Você?
– Eu mesmo.
– Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
– Se embaraçar, você desembaraça depois.
– Vamos ver.
O penteado (cap. 33)
Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos
cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as
últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não
esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da
mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
– Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”, disse-me rindo. Continuei a
alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para
compor as duas tranças. Nas as fiz logo, nem assim depressa, como podem
supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo
150
tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às
vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos
roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação
era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os
quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da
Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me
apresentaram depois; mas desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos,
tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável
de vezes. Se isso vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca
penteastes uma jovem pequena, nunca puseste as mãos adolescentes na jovem
cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco,
falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis,
risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve
todas as potências cristãs e pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde estava
a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço da fita
enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra
alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
– Pronto!
– Estará bom?
– Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais
que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto
que me foi preciso acudir com as mãos para ampará-la; o espaldar da cadeira
era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de
uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar
tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta
razão a moveu.
– Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro,
até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até a
parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles
me clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada;
ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem
ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras
cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com
dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença
dos sexos.
151
Comentários aos capítulos de Dom Casmurro
No capítulo 1, o narrador, Dom Casmurro, informo ao leitor o motivo do
título do romance. Não cogita sequer em explicar por que o preferiu, uma vez
que, no último capítulo, se refere à narrativa como História dos subúrbios, apesar
de dizer que “[...] se não tiver outro até o fim do livro, vai esse mesmo”. Não fecha
o ciclo do romance, como não se fecha o ciclo da vida que pretendeu. Já longe
da juventude, não consegue conceber ou valorizar o mundo juvenil. Também se
pode ver aí o desencontro humano, na imagem do moço romântico em mundo
que desconsidera o eu do outro. “Tudo por estar [Dom Casmurro] cochilando!”
No último período do capítulo, ainda sobra espaço para fustigar as escolas
literárias que formam epígonos, em vez de inventivos.
Em As leis são belas, a narrativa analisa a ação e a reação provocadas
pelas conveniências, como já fizera em Memórias póstumas de Brás Cubas, mas
aqui de maneira diferente. Há intenções geridas por interessas, mas não há
decisões. Desse modo, ficam examinados os carateres dos personagens
envolvidos.
No capítulo 32, Olhos de ressaca, começa-se a aprofundar o exame da
alma feminina, no romance. O objeto é Capitu, e o examinador é Bentinho, então
vistos ambos por Dom Casmurro. Capitu já demonstra-se resoluta, planejadora,
firme. A par disso, narra-se a (um tanto) desajeitada aproximação física de dois
adolescentes.
N’O penteado, o recurso estilístico básico é a ironia. A partir de
experiências que o leitor quase certamente tem (o referente do texto é o mundo),
o texto desenvolve a precocidade da menina e a dependência de Bentinho.
Certamente, não é gratuito o fato de levarem os nomes que levam. O capítulo
deixa o leitor observar que o narrador-personagem sugere que Capitu, porque
era pobre, tinha outros interesses em relação a ele. Fica implícito também que,
como Bentinho, não se poderia ter dado conta disso. São raciocínios que
fundamentam as acusações contra Capitu, que ele faz durante a narrativa.
Missa do galo
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos
anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com
um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordálo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora
casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher,
Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para
o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela
casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações,
alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas
escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos
152
quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro e, mais de uma
vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse
consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à
socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais
tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia
amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez
por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça;
mas, afinal, resignara-se, acostumara-se e acabou achando que era muito
direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe a santa, e fazia jus ao título, tão facilmente
suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento
moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No
capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as
aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e
passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos
uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia
odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou
1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para
ver a missa do galo na Corte. A família recolheu-se à hora do costume; eu metime na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e
sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o
escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
– Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe
de Conceição.
– Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três mosqueteiros, velha tradução creio do
Jornal do comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala e, à luz de
um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao
cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava
completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que
costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem
dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio
acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à
de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de
Conceição.
– Ainda não foi? perguntou ela.
– Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
– Que paciência!
153
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um
roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão
romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi
sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe
perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com
presteza:
– Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que
acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação,
porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem
advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para
me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
– Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
– Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E
esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se
assustasse quando me viu.
– Quando ouvi os passos, estranhei; mas a senhora apareceu logo.
– Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
– Justamente: é muito bonito.
– Gosta de romances?
– Gosto.
– Já leu A Moreninha?
– Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
– Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que
romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a
cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meiocerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços,
para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim
alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre
eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem
desviar de mim os grandes olhos espertos.
– Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E logo alto:
– D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
– Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem
tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
154
– Já tenho feito isso.
– Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia
hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
– Que velha o quê, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra, que a fez sorrir. De costume tinha os gestos
demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente,
passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a
porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, davame uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar,
como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta
como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina
ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante
mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao
espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que
nunca ouvira missa do galo na Corte e não queria perdê-la.
– É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
– Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a
semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem
Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da
mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as
mangas caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e
menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto
também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi
grande. As veias eram tão azuis, que, apesar da pouca claridade, podia contálas do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro.
Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade e de outras
coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por
quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e verlhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram
bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao
rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
– Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as
nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido;
cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes,
ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou
de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé.
Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela
gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que
eram pretas. Conceição disse baixinho:
155
– Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora,
coitada, tão cedo não pegava no sono.
– Eu também sou assim.
– O quê? perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra.
Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
– Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra
vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e
nada.
– Foi o que lhe aconteceu hoje.
– Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou
das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito,
porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos e
afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A
conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora
nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela
inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra.
De quando em quando, reprimia-me:
– Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via
dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem
fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes,
creio que deu por mim embebido na sua pessoa e lembra-me que os tornou a
fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite que
me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das
que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática,
ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito
a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro e
obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu,
como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira,
onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima
do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
– Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar
outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio desse
homem. Um representava Cleópatra; não me recordo o assunto do outro, mas
eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
– São bonitos, disse eu.
156
– Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia
duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de
barbeiro.
– De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
– Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e
namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras
bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu
penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu
tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é
de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde
e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o
que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à
minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de
menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de
passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção.
Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das
canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram
nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da
mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos e entrou a olhar à toa
para as paredes.
– Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse
consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono
magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e
não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela e
arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era
aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição.
A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo - não posso dizer quanto - inteiramente
calados. O rumor único e escasso era um roer de camundongo no gabinete, que
me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo.
Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na
janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: Missa do galo! missa do galo!
– Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que
ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas;
adeus.
– Já serão horas? perguntei.
– Naturalmente.
157
– Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
– Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro,
pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para
a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez
entre mim e o padre; fique isso à conta dos meus dezessete anos. Na manhã
seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem
excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural,
benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo AnoBom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o
escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas
nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente
juramentado do marido.
Comentários ao conto Missa do galo
Missa do galo é outro exemplo de narrativa realista. Tematiza o retorno ao
passado pessoal, em que o narrador procura entender relações passadas. Sem
episódios fulgurantes sem mesmo ação notável, o conto se detém em reflexões
do personagem-narrador. Embora deixe notar certa hipocrisia (o fato de ter
entendido posteriormente a intenção de Conceição), o narrador guia o leitor no
conjunto narrativo de discurso sedutor e subliminar proposta sedutora, na
temática.
Círculo vicioso
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
“Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fonte amada e bela”...
Mas a lua fitando o sol com azedume:
“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
“Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”
Comentários ao poema Círculo vicioso
O poema comparece com o objetivo principal de expor o parnasianismo de
Machado de Assis. Embora seja carateristicamente um soneto, a construção
158
rímica vai além do que tradicionalmente se requer para essa forma poemática: o
poema mantém nos tercetos as rimas externas iniciadas nos quartetos.
Tematicamente, o poema reflete sobre a insatisfação humana, utilizando
elementos da natureza e cósmicos.
ALUÍSIO Tancredo Gonçalves de AZEVEDO
Aluísio de Azevedo nasceu em São Luís (MA) em 1857. Estudou de Artes
no Rio de Janeiro. Colaborou com caricaturas e poemas em jornais e revistas.
Seu primeiro romance, Uma lágrima de mulher (1880), em estilo romântico, lhe
rendeu leitores e posição crítica positiva. Como diplomata esteve na Espanha,
Japão, Uruguai, Inglaterra, Itália, Paraguai e Argentina. Faleceu em 1913 em
Buenos Aires.
Um ano depois do romance de estreia, saiu O mulato (1881), em que o
autor tenta analisar a posição do mestiço na sociedade maranhense da época.
Tentou lançar em São Luís um periódico anticlerical intitulado O pensador
(1881). A reações hostis fizeram com que voltasse definitivamente para o Rio de
Janeiro. Além de O mulato, os romances que o consagraram perante a crítica e
o público foram Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890), considerado sua
obra-prima.
Outros romances: A condessa de Vésper (1902), inicialmente em folhetim,
sob o título Memórias de um condenado (1882); Girândola de amores (1900),
inicialmente em folhetim (1882), como Mistério da Tijuca; Filomena Borges
(1884); O homem (1887); O Coruja (1895), inicialmente em rodapé de jornal
(1889); O esqueleto (mistérios da casa de Bragança) (1890), sob o pseudônimo
de Victor Leal; A mortalha de Alzira (1893); O livro de uma sogra (1895), além
dos contos de Demônios (1890).
O cortiço
(cap. 1)
João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um
vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna
nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara
nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em
pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro,
como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação
ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava
resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em
cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha.
A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua
159
vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente de Juiz
de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia
fretes na cidade.
Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem
afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de
fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha
de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem,
depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu
morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.
João Romão mostrou grande interesse por essa desgraça, fez-se até
participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a
lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras.
Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida e amofinações e dificuldades. “Seu
senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter
de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” Segredou-lhe
então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro
que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por
gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.
Daí por diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela
produzia, e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se
encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma
conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer
coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu
João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas
quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em
letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher,
que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e
qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer
negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João
Romão.
Quando deram fé, estavam amigados.
Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em
meter-se de novo com um português, porque, como toda cafuza, Bertoleza não
queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça
superior à sua.
João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos
de terreno ao lado esquerdo da venda e levantou uma casinha de duas portas,
dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à
quitanda, e a do fundo, para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de
160
Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com
maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado
de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau
feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua
competente coberta de retalhos de chita.
O vendeiro nunca tivera tanta mobília.
– Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você
vai ficar forra; eu entro com o que falta.
Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma
folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.
– Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela
ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer é
só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte
mil-réis à peste do cego!
– Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o
jornal, exigia o que era seu!
– Seu ou não seu, acabou-se! É vida nova!
Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto,
e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta
de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele
entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade,
representava despesa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida.
O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou
sim foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do
amigo.
– O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de
si para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra peras!
Não obstante, só ficou tranquilo de todo daí a três meses, quando lhe
constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a
qualquer dos filhos do morto; mas, por esses, nada havia que recear: dois
pândegos de marca maior que, empolgada a legítima, cuidariam de tudo, menos
de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela
parte. “Ora! Bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto
tempo!”
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de
caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro
da madrugada estava na faina de todos os dias, aviando o café para os
fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira
que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa,
cozinhava, vendia ao balcão na taverna quando o amigo andava ocupado lá por
161
fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços e à noite
passava-se para a porta da venda e, defronte de um fogareiro de barro, fritava
fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de
tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. O demônio da mulher ainda
encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem,
que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo mês de alguns
pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado.
João Romão não saía nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo
que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa
econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da
aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao
fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir
três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa
construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra;
pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtava à pedreira do
fundo, da mesma forma que subtraíam o material das casas em obra que havia
por ali perto.
Esses furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do
melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se
mostrava muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o dia quais
as obras em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele rente,
mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o meio
da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor. Depois,
um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcateia ao
lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido
voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez.
Nada lhe escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de
pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros.
O fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas,
foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro
conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à
proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de
moradores.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo
nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes
que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos
pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos
furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias
despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga
162
como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da
bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à
porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça.
Pôs lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e
paralelepípedos e então principiou a ganhar em grosso, tão grosso que, dentro
de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas
casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente
em plano enxuto e magnífico para construir.
[...]
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e
lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva,
uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e
multiplicar-se como larvas no esterco.
Comentários ao capítulo 1 de O cortiço.
A crítica em geral considera O cortiço romance naturalista exemplar na
literatura brasileira. Manias, taras e vícios se tramam nos caminhos dos
personagens. Com temática focada no concreto-sensorial escolhidamente abjeto
e repugnante, a trama põe em relevo o personagem João Romão, capaz de
qualquer atitude na busca de conveniências pessoais, sem qualquer sinal de
sentimento e sem arrependimentos (de que fala o poema Ode ao burguês de
Mário de Andrade (Modernismo). Ao lado dele, aparece Bertoleza, a servil e
traída, usada impiedosamente pelo companheiro.
Pelo primeiro capítulo, é possível ter noção da estirpe humana do cortiço,
ou favela, como é costume nomear atualmente. Pela descrição do ambiente
físico, carateristicamente no último parágrafo transcrito acima, pode-se entender
já as condições de atuação dos personagens e figurantes. É a lógica naturalista
do predomínio do meio ambiente sobre o indivíduo, ou seja, a comunidade tal,
em tal ambiente, produto desse ambiente, são como “larvas no esterco”.
RAUL d’Ávila POMPEIA
Raul Pompeia nasceu em Angra dos Reis (RJ), em 1863. Após os anos de
internato no Colégio Abílio, cujas experiências utilizaria mais tarde para compor
O Ateneu (1888), estudou no Colégio Pedro II e na Faculdade de Direito, ocasião
em que acolheu os ideais republicanos e abolicionistas. Completou o curso de
Direito em Recife em 1885. Em 1892, travou duelo com Olavo Bilac. Suicidou-se
em 1895.
Fora numerosos contos e crônicas esparsos, publicou as seguintes obras:
Uma tragédia no Amazonas (1880), Microscópicos (1881), As joias da coroa
(1882), O Ateneu (1888), Canções sem metro (1900).
163
O Ateneu
(excerto do cap. 1)
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem
para a luta”. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me
despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de
carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora,
tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício
sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à
impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na
influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade
hipócrita, dos felizes tempos; como se houvesse perseguido outrora e não
viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que
nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação
dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas
perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças,
a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro
mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a
mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Frequentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do
Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai,
distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às nove
horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e bocejava
até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos que o
colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de
não sei quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com
manteiga. Essa recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou
dos meses de externato; com a lembrança de alguns companheiros – um que
gostava de fazer rir à aula, espécie interessante de mono louro, arrepiado,
vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que
tinha; outro adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco,
engomadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por
botões de madrepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa,
um palavrão cercado de terror no estabelecimento, que os partistas
denunciavam às mestras por duas iniciais como em monograma.
Lecionou-me depois um professor em domicílio.
Apesar desse ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da
verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações da
nova fase. O internato! Destacada do conchego placentário da dieta caseira,
vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade. Amarguei por
164
antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos,
antigos já! Os meus queridos pelotões de chumbo! Espécie de museu militar, de
todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados,
em proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma
ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em
desordenado aperto, massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro
definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava
por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente,
resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Força
era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago,
no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas
a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à
sombra dos tinhorões, na transparência adamantina da água...
Mas um movimento animou-se, primeiro estímulo sério da vaidade:
distanciava-me da comunhão da família, como um homem! Ia por minha conta
empenhar a luta dos merecimentos; e a confiança nas próprias forças sobrava.
Quando me disseram que estava a escolha feita da casa de educação que me
devia receber, a notícia veio a achar-me em armas para a conquista audaciosa
do desconhecido.
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa,
molhando-me de lágrimas os cabelos, e eu parti.
Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido
reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o
estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes
que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu desde
muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em conta a
simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios.
O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de
Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram
boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da
cidade, a pedidos, à sustância, atochando a imprensa dos lugarejos, caixões,
sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com o ofegante e
esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais
caixões de volumosos cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas
em toda parte com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o
nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos
esfaimados de alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não procuravam
eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea,
irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do
espírito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um benemérito. Não
admira que em dias de gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepção
165
da coroa, o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de
pedraria, opulentando a nobreza de todos os honoríficos berloques.
Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só
as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu!
Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de
um rei – o autocrata excelso do silabários; a pausa hierática do andar deixava
sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o
progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos
supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes – era
a educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a
orelha, lembrava a lisura das consciências limpas – era a educação moral. A
própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura
dizia dele: aqui está um grande homem... não veem os côvados de Golias?!...
Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes, volutas maciças de fios alvos,
torneadas a capricho, cobrindo os lábios, fecho de prata sobre o silêncio de ouro,
que tão belamente impunha como o retraimento fecundo de seu espírito, teremos
esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um
personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo
dessa enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua. Como
tardasse a estátua, Aristarco interinamente satisfazia-se com a afluência dos
estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu
significavam a fina flor da mocidade brasileira.
A irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do
país, que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha
ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso de honra com
a posteridade doméstica mandar, dentre seus jovens, um, dois, três
representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu.
Fiados nessa seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar
melhores famílias as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes mesmo e
sorrindo do estardalhaço da fama, lá mandavam os filhos. Assim entrei eu.
A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de encerramento
de trabalhos.
Transformara-se em anfiteatro uma das salas da frente do edifício,
exatamente a que servia de capela; paredes estucadas de suntuosos relevos, e
o teto aprofundado em largo medalhão, de magistral pintura, onde uma aberta
de céu azul despenhava aos cachos deliciosos anjinhos, ostentando
atrevimentos róseos de carne, agitando os minúsculos pés e as mãozinhas,
desatando fitas de gaze no ar. Desarmado o oratório, construíram-se bancadas
circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alunos ocupavam a
arquibancada. Como a maior concorrência preferia sempre a exibição dos
exercícios ginásticos, solenizada dias depois do encerramento das aulas, a
acomodação deixada aos circunstantes era pouco espaçosa; e o público, pais e
166
correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se esperava, tinha que
transbordar da sala de festa para a imediata. Dessa antessala, trepado a uma
cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me informações. Diante da
arquibancada, ostentava-se uma mesa de grosso pano verde e borlas de ouro.
Lá estava o diretor, o ministro do Império, a comissão dos prêmios. Eu via e
ouvia. Houve uma alocução comovente de Aristarco; houve discursos de alunos
e mestres; houve cantos, poesias declamadas em diversas línguas. O
espetáculo comunicava-me certo prazer respeitoso. O diretor, ao lado do
ministro, de acanhado físico, fazia-o incivilmente desaparecer na brutalidade de
um contraste escandaloso. Em grande tênue dos dias graves, sentava-se,
elevado no seu orgulho como em um trono. A bela farda negra dos alunos, de
botões dourados, infundia-me a consideração tímida de um militarismo brilhante,
aparelhado para as campanhas da ciência e do bem. A letra dos cantos, em coro
dos falsetes indisciplinados da puberdade; os discursos, visados pelo diretor,
pançudos da sisudez, na boca irreverente da primeira idade, como um Cendrillon
mal feito da burguesia conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos
rodantes de manivela, ou exagerados, voz cava e caretas de tragédia fora de
tempo, eu recebia tudo convincentemente, como o texto da bíblia do dever; e as
banalidades profundamente lançadas como as sábias máximas do ensino
redentor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos do estudo, mestres à
frente, na investida heroica do obscurantismo, agarrando pelos cabelos,
derribando, calcando aos pés a Ignorância e o Vício, misérrimos trambolhos,
consternados e esperneantes.
Um discurso principalmente impressionou-me. À direita da comissão dos
prêmios, ficava a tribuna dos oradores. Galgou-a firme, tesinho, o Venâncio,
professor do colégio, a quarenta mil-réis por matéria, mas importante, sabendo
falar grosso, o timbre de independência, mestiço de bronze, pequenino e tenaz,
que havia de varar carreira mais tarde. O discurso foi o confronto chapa dos
torneios medievais com o moderno certame das armas da inteligência; depois,
uma preleção pedagógica, tacheada de flores de retórica a martelo; e a apologia
da vida de colégio, seguindo-se à exaltação do mestre em geral e a exaltação,
em particular, de Aristarco e do Ateneu. “O mestre, perorou Venâncio, é o
prolongamento do amor paterno, é o complemento da ternura das mães, o guia
zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa que vai às conquistas do saber
e da moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sagrada profissão, o seu
auxílio ampara-nos como a Providência na terra; escolta-nos assíduo como um
anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro.
Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o espírito (sorites de
sensação), e o espírito é a força que o impele, o impulso que triunfa, o triunfo
que nobilita, o enobrecimento que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o louro
do guerreiro, o carvalho do artista, a palma do crente! A família é o amor no lar,
o estado é a segurança civil; o mestre, com o amor forte que ensina e corrige,
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prepara-nos para a segurança íntima inapreciável da vontade. Acima de
Aristarco – Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus – Aristarco”.
Um último gesto espaçoso, como um jamegão no vácuo, arrematou o repto
de eloquência.
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem,
como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da
antessala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico aberto para o jardim,
graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior. Flanqueando a
majestosa porta dessa escada, havia dois quadros de alto relevo: à direita, uma
alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus
como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica – psicologia
pura do trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência.
Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me
estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria o colégio,
tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de um templo,
dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!
Por ocasião da festa da ginástica, voltei ao colégio.
O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo ao chegar aos morros.
As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática debruçavam
sobre o edifício um crepúsculo de melancolia, resistente ao próprio Sol a pino
dos meios-dias de novembro. Essa melancolia era um plágio ao detestável pavor
monacal de outra casa de educação, o negro Caraça de Minas. Aristarco davase palmas dessa tristeza aérea – a atmosfera moral da meditação e do estudo,
definia, escolhida a dedo para maior luxo da casa, como um apêndice mínimo
da arquitetura.
No dia da festa de educação física, como rezava o programa (programa de
arromba, porque o secretário do diretor tinha o talento dos programas) não
percebi a sensação de ermo tão acentuada em sítios montanhosos, que havia
de notar depois. As galas do momento faziam sorrir a paisagem. O arvoredo do
imenso jardim, entretecido a cores por mil bandeiras, brilhava ao sol vivo com o
esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em meio da ramagem, fingiam
flores colossais, numa caricatura extravagante de primavera; os galhos
frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma
uberdade carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu pai
prendia-me solidamente o pulso, que me não extraviasse.
Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para respirar. Adiante
de mim, um sujeito mais próximo fez-me rir; levava de fora a fralda da camisa...
Mas não era fralda; verifiquei que era o lenço. Do chão subia um cheiro forte de
canela pisada; através das árvores, com intervalos, passavam rajadas de
música, como uma tempestade de filarmônicas.
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Um último aperto mais rijo, estalando-me as costelas, espremeu-me, por
um estreito corte de muro, para o espaço livre.
Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes,
contentes no espaço, com o pitoresco dos tons energéticos cantando vivo sobre
a harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os lados apinhava-se
o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com
cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras, fulgindo os vestuários,
em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a mão
enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco de
nuvens que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e
sussurravam bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra
pelo campo de relva.
Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos
distinguia-se um movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! Disse-me meu
pai; vão desfilar por diante da princesa”. A princesa imperial, Regente nessa
época, achava-se à direita em gracioso palanque de sarrafos.
Comentários ao romance O Ateneu
O Ateneu tem sido entendido pela crítica, em geral, como romance
exemplar do impressionismo, no Brasil. Disponibiliza ao leitor amplo ideário, em
que, pelo menos, duas ideologias podem ser identificadas. A primeira é proposta
de revisão da educação no país. A bem da verdade, porém, a proposta não se
dirige apenas à educação, mas às formas sociais de agir. Chega a dizer que
essa educação é apenas um braço do monstro. No fim do romance, um dos
estudantes, Américo (observe-se o nome dele), põe fogo n’ O Ateneu. Trata-se
de evidente sugestão revolucionária: para termos boa educação, teremos que
arrasar a que temos e começar de novo. Dentro dela, o anátema mais indignado
volta-se contra a instituição do internato.
Ao longo da trama, evidencia-se igualmente a tese psicológica do prejuízo,
às vezes irreversível, à intimidade dos internos, em contato próximo constante e
único com outros estudantes do mesmo sexo.
O estilo da narrativa é particularmente vibrante na fluência do discurso e
nas minúcias do que cada observador faz do entorno concreto-sensorial e da
conjunção social. Nesse âmbito é que as impressões são preponderantes. São
elas que definem as veracidades e as revoltas, produzem os transtornos e os
traumas psíquicos. O autor soube apanhar caraterísticas definidoras
principalmente das deficiências, mas também de algumas qualidades dos tipos
humanos que atuam no romance. Argúcia de observação e precisão descritiva
de aspetos físicos e psicológicos possibilitaram-lhe transpor ao texto em poucas
palavras o retrato de personagens focalizados. Por isso, alguns o qualificam
como exílio miniaturista.
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Por se tratar de romance naturalista, não fica destoante falar em retrato da
concretude. Por esse mesmo motivo, é coerente aludir à tese de que o meio é
superior (forjador) do indivíduo. Dá para perceber esse como ponto de
distanciamento da visão de indivíduo que tinham os românticos.
O Ateneu, tomado no romance a partir da existência concreta da escola, é
experiência traumatizante ao narrador, Sérgio, que contava apenas onze anos,
quando ingressou ali, pela mão do próprio pai.
A grosseira e ou maldosa confusão entre personagem (mesmo que seja o
narrador), que nesse caso narra em primeira pessoa, montou ambiência pública
conflitiva na vida do autor, que o levou ao suicídio, aos trinta e dois anos de
idade.
ADOLFO Ferreira CAMINHA
Adolfo Caminha nasceu em 1867 na cidade de Aracati (CE). Em 1893
publicou A normalista, romance em que traçou um quadro pessimista da vida
urbana, "esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas". Viajou aos
Estados Unidos; das observações da viagem resultou No país dos ianques
(1894). No ano seguinte, provocou escândalo, mas firmou sua reputação literária
ao escrever Bom-crioulo, obra na qual aborda a questão do homossexualismo
masculino. Colaborou também com a imprensa carioca (Gazeta de notícias e
Jornal do Comércio). Já doente, lançou o último romance, Tentação (1896).
Morreu no Rio de Janeiro em 1897.
Bom-crioulo
(excerto do capítulo 1)
Com efeito, Bom-Crioulo não era somente um homem robusto, uma dessas
organizações privilegiadas que trazem no corpo a sobranceira resistência do
bronze e que esmagam com o peso dos músculos.
A força nervosa era nele uma qualidade intrínseca sobrepujando todas as
outras qualidades fisiológicas, emprestando-lhe movimentos extraordinários,
invencíveis mesmo, de um acrobatismo imprevisto e raro.
Esse dom precioso e natural desenvolvera-se-lhe à força de um exercício
continuado que o tornara conhecido em terra, nos conflitos com soldados e
catraieiros, e a bordo, quando entrava embriagado.
Porque Bom-Crioulo de longe em longe sorvia o seu gole de aguardente,
chegando mesmo a se chafurdar em bebedeiras que o obrigavam a toda sorte
de loucuras.
Armava-se de navalha, ia para o cais, todo transfigurado, os olhos
dardejando fogo, o boné de um lado, a camisa aberta num desleixo de louco, e
então era um risco, uma temeridade alguém aproximar-se dele. O negro parecia
170
uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da
praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão...
Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda gente sabia que era o BomCrioulo às voltas com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria
enchendo a praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme,
formavam-se partidos a favor da polícia e da marinha... uma coisa indescritível!
O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto-mar, a bordo da corveta, era
outro, muito outro: Bom-Crioulo esmurrara desapiedadamente um segundaclasse, porque esse ousara, “sem o seu consentimento”, maltratar o grumete
Aleixo, um belo marinheirito de olhos azuis, muito querido por todos e de quem
diziam-se coisas.
Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente
manso, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência
alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado castigo. –
Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os
outros, mas, que diabo! estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era
homem... Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar
inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país
de ouro... Estava satisfeitíssimo!
A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um
hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das
vezes que apanhara de chibata...
– Uma! cantou a mesma voz. – Duas!... três!...
Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão e, nu da cintura pra cima,
numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas
negras reluzentes, um sulco profundo e liso de alto a baixo no dorso, nem sequer
gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.
Entretanto, já iam cinquenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido,
nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente
naquele costão negro as marcas de junco, umas sobre outras, entrecruzando-se
como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos
os sentidos.
De repente, porém, Bom-Crioulo teve um estremecimento e soergueu um
braço: a chibata vibrava em cheio sobre os rins, empolgando o baixo-ventre. Fora
um golpe medonho, arremessado com uma força extraordinária.
Por sua vez, Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver,
afinal, triunfar a rijeza do seu pulso.
Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios
de interesse, a cada golpe.
– Cento e cinquenta!
171
Só então houve quem visse um ponto vermelho, uma gota rubra deslizar
no espinhaço negro do marinheiro e logo esse ponto vermelho se transformar
numa fita de sangue.
Nesse momento o oficial, ponteirando o óculo de alcance, procurava
reconhecer uma sombra quase invisível que parecia flutuar muito longe, nos
confins do horizonte: era, talvez, a fumaça dalgum transatlântico...
– Basta! impôs o comandante.
Estava terminado o castigo. Ia recomeçar a faina.
Comentários à obra Bom-crioulo
Bom-crioulo narra naturalistamente, como tema principal, a história de
relacionamento homossexual masculino. Como em outras obras naturalistas, o
enredo focaliza duas criaturas num ambiente maior, coletivizado por outros
personagens. O papel ideológico do romance, no âmbito do naturalismo
brasileiro, foi explorar assunto escamoteado e inseri-lo em ambientes marginais
à sociedade leitora. Trabalha também a relação entre estereótipos e ações
desenvolvidas pelos personagens construídos. Na época, a preocupação com
essa relação (estereótipo x tipo social) estava em debate. A fundamentação
estilística deu forma literária à temática, então, de difícil abordagem, mesmo na
arte.
RAIMUNDO da Mota de Azevedo CORREIA
Raimundo Correia (1860-1911) nasceu a bordo de navio, na costa de São
Luís (MA). Forma com Olavo Bilac e Alberto de Oliveira a chamada tríade
parnasiana. Estudou Direito em São Paulo e foi magistrado em vários Estados
brasileiros.
A crítica tem destacado três fases na poesia de Raimundo Correia: Fase
romântica: nela se percebem relações poéticas com obras de Casimiro de Abreu
e Fagundes Varela, representada por Primeiros sonhos (1879); fase parnasiana
propriamente dita: representada pelas obras Sinfonias (1883) e Versos e versões
(1887), marcada pelo pessimismo originário de contradições existenciais
humanas e por reflexões de cunho moral e social; fase pré-simbolista: nela, o
pessimismo diante da condição humana busca refúgio na metafísica e na
religião, enquanto a linguagem apresenta pesquisas em musicalidade e
sinestesia.
Mal secreto
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
172
O coração, no resto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
As pombas
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações, onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
Anoitecer
Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...
Delineiam-se, além da serrania,
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...
Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra, à proporção que a luz recua...
A natureza apática esmaece...
173
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.
OLAVO Brás Martins dos Guimarães BILAC
Olavo Bilac nasceu em 1865, no Rio de Janeiro, e faleceu em 1918 no
mesmo Estado. Cursou Medicina e Direito. Abandonou a advocacia para
dedicar-se exclusivamente à literatura. Ao registrar-se a revolta da Armada, o
governo Floriano Peixoto considerou-o comprometido e mandou encerrá-lo.
Colaborou em vários jornais e revistas. Exerceu o cargo de Secretário do
Congresso de Pan-americano em Buenos Aires, Inspetor da Instrução Pública e
Membro do Conselho Superior do Departamento Federal. Foi um dos principais
poetas parnasianos do Brasil. Sua consagração definitiva foi obtida com a obra
Poesias (1888). Escreveu muito, nunca se descuidando da forma. Algumas de
suas obras: Via Láctea, Sarças de fogo, Crônicas e novelas. O livro Tarde foi
publicado postumamente (1919).
Profissão de fé
Le poète est ciseleur,
Le ciseleur est poète.
Vitor Hugo
Não quero o Zeus Capitolino,
Hercúleo e belo,
Talhar no mármore divino
Com o camartelo.
Que outro – não eu! – a pedra corte
Para, brutal,
Erguer de Atene o altivo porte
Descomunal.
Mais que esse vulto extraordinário,
Que assombra a vista,
Seduz-me um leve relicário
De fino artista.
Invejo o ouvires quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de um flor.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.
174
Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre cinzel.
Corre; desenha, enfeita a imagem,
A ideia veste:
Cinge-lhe o corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.
Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:
E que o lavor do verso, acaso,
Por tão sutil,
Possa o lavor lembrar de um vaso
De Becerril.
E horas sem conta passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo,
O pensamento.
Porque o escrever – tanta perícia,
Tanto requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena Forma!
Deusa! A onda vil, que se avoluma
De um torvo mar,
Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma
Deixa-a rolar!
Blasfemo, em grita surda e horrendo
Ímpeto, o bando
Venha dos bárbaros crescendo,
Vociferando...
175
Deixa-o: que venha e uivando passe
– Bando feroz!
Não se te mude a cor da face
E o tom da voz!
Olha-os somente, armada e pronta,
Radiante e bela:
E, ao braço o escudo, a raiva afronta
Dessa procela!
Este que à frente vem, e o todo
Possui minaz
De um vândalo ou de um visigodo,
Cruel e audaz;
Este, que, de entre os mais, o vulto
Ferrenho alteia,
E, em jacto, expele o amargo insulto
Que te enlameia;
É em vão que as forças cansa, e à luta
Se atira; é em vão
Que brande no ar a maça bruta
À bruta mão.
Não morrerás, Deusa sublime!
Do trono egrégio
Assistirás intata ao crime
Do sacrilégio.
E, se morreres por ventura,
Possa eu morrer
Contigo, e a mesma noite escura
Nos envolver!
Ah! ver por terra, profanada,
A ara partida;
E a Arte imortal aos pés calçada,
Prostituída!...
Ver derribar do eterno sólio
O Belo, e o som
Ouvir da queda do Acropólio,
Do Partenon!...
Sem sacerdote, a Crença morta
Sentir, e o susto
Ver, e o extermínio, entrando a porta
Do templo augusto!...
176
Ver esta língua, que cultivo,
Sem ouropéis,
Mirrada ao hálito nocivo
Dos infiéis!...
Não! Morra tudo que me é caro,
Fique eu sozinho!
Que não encontre um só amparo
Em meu caminho!
Que a minha dor nem a um amigo
Inspire dó...
Mas, ah! que eu fique contigo,
Contigo só!
Vive! que eu viverei servindo
Teu culto, e, obscuro,
Tuas custódias esculpindo
No ouro mais puro.
Celebrarei o teu ofício
No altar: porém,
Se inda é pequeno o sacrifício,
Morra eu também!
Caia eu também, sem esperança,
Porém tranquilo,
Inda, ao cair, vibrando a lança,
Em prol do Estilo!
Língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arroio da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
177
JÚLIO Mário SALUSSE
Nasceu em Bom Jardim (RJ), em 1872, e faleceu em Niterói (RJ), em 1948.
JS tem sido chamado de o último parnasiano. Foi bacharel em Direito e trabalhou
no Ministério Público Fluminense. Obras: Nevrose azul (1894) e Sombras (1901).
Seu soneto Os cisnes é um dos mais célebres da poesia brasileira. Foi um poeta
de técnica marcante. Desilusão, mágoa, êxtase, solidão, paixão cortam a obra
dele.
Os cisnes
A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós, constantemente,
Um lago azul, sem ondas, sem espumas.
Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vogamos, indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia, um cisne morrerá por certo:
Quando chegar esse momento incerto
No lago, onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne...
VICENTE Augusto de CARVALHO
Vicente de Carvalho nasceu em Santos (SP), em 1866, e morreu em São
Paulo, em 1924. Revelou desde cedo sua marcante inclinação literária, sem no
entanto deixar de exercer muitas outras atividades, como escrever para teatro e
ditar medidas sobre a economia cafeeira. Foi Ministro do Tribunal de Justiça do
Estado de são Paulo, em Santos. Obras: Ardentias (1885), Relicário (1888),
Rosa, rosa de amor (1902), Poemas e canções (1908), Verso e prosa (1909) e
Páginas soltas (1911).
Velho tema
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
178
Nem é mais a existência resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe sim; mas nós não a alcançamos,
Porque está sempre apenas onde a pomos,
E nunca a pomos onde nós estamos.
LUIZ ARAÚJO FILHO
Luiz Araújo Filho (LAF) nasceu em Pelotas (RS), em 1845, e faleceu em
Alegrete (RS), em 1918. Foi domador de cavalos, professor, jornalista, advogado
e desempenhou atividades público-administrativas. Como produtor de literatura,
deixou a novela Recordações gaúchas (1897 ou 1898, em Alegrete). A edição
usada para transcrição do excerto a seguir foi a de 1905, saída em Pelotas.
Recordações gaúchas
(excerto do capítulo 11)
Quase uma hora durou a sumanta, e, quando se desataram os homens,
mal podiam tranquear e assim mesmo foram tirados campo fora a laçaços e os
largaram. – Com esse vareio, disse o capitão Claro, não hão de querer carchear
a mais ninguém. – Quem sabe, disse o coronel, essa gente há de pertencer a
alguma maloca e pode voltar com companheiros para tirar vingança. Eu sou de
parecer que devíamos ir pousar na estância; já é tarde, mas tínhamos tempo de
chegar com a lua.
Essa opinião foi aceita por uns poucos que tinham acompanhado o coronel,
quando se tratou da morte dos homens, mas nisso levantou-se um chamado
João Vivaldo, e, como era guapetão reconhecido, disse que quem fosse homem
e quisesse acompanhá-lo que se acusasse, porque ele estava disposto a não
sair de onde estava e convidou o capitão de quem era amigo. Esse o
acompanhou e, com ele, muitos companheiros. Os outros naturalmente, pra não
passarem por maulas, ficaram também.
179
Quando cerrou a noite, o coronel meteu para dentro de casão o seu cavalo,
que era um parelheiro, dizendo que era cavalo de trato, que o sereno podia fazerlhe mal e outras coisas.
– Era soldado velho, disse J. de Borba, e devia ter ficado com a pulga na
orelha, depois da sova dos pátrias. E os outros não coicearam no cabresto com
isso de ele recolher o cavalo?
– Não sei, mas ele era mui respeitado, e ninguém disse nada, segundo ele
mesmo me contou depois.
A noite passaram sem novidade, e todos amanheceram mui satisfeitos.
Mas, pouco depois de nascer o sol, avistaram quatro ou cinco ginetes que se
aproximavam, aqui por estes lados, e logo em seguida, outros, assim foram
chegando quatro, cinco, daqui, dois, três, dali, e cercaram por longe a casa.
Uma pacotilha como dez a doze, onde vinha um oficial, chegaram em casa
e apearam-se, cortando logo os maneadores e soltando os cavalos que estavam
à soga.
A isso a nossa gente se entrincheirou na casa, porque logo conheceu, pela
fala e pelos modos, que aqueles deviam ser da mesma maloca dos dois que
tinham apanhado na véspera.
O oficial, que parecia o chefe, chegou à porta e ordenou, com rompante,
que saíssem para fora.
De dentro, diversos lhe gritaram que entrasse, se era capaz.
Ele mostrou que era atrevido, porque em seguida desembainhou uma
adaga e atropelou a porta, seguido de mais companheiros, porque então todos
já tinham arrodeado a casa.
Mas, no tempo de ele pisar no portal, o capitão meteu-lhe a pistola e o
derrubou atravessado na porta.
Alguns quiseram entrar a um tempo, mas caíram logo três ou quatro dos
mais valentes, e os outros redemoinharam e se abriram.
Cerrou aí o tiroteio, de dentro pra fora e de fora pra dentro.
Dois dos atacantes cerraram as esporas nos cavalos e, chegando à beira
da casa, quiseram prender-lhe fogo, mas aí mesmo ficaram, porque de dentro
os rebentaram a bala.
A tudo isso já o sol ia alto, e dos nossos não tinha morrido ninguém, nem
sido ferido, mas a munição ia escasseando, e só se desfechava algum tiro mui
seguro, porque a nossa gente não estava armada para um caso daqueles:
muitos traziam pistolas, mas não eram todos, e esses mesmos com seis ou oito
cartuchos cada um, e os mais eram espada ou facão.
180
Os inimigos, vendo que estavam perdendo gente sem vantagem, fizeram
cerco por longe, a vinte ou trinta varas, e começaram a arrodear os nossos a
trote e a galope, atirando pedras enroladas em panos acesos contra o rancho,
que era de capim.
Tanto atiraram até que acendeu labareda, e a quincha começou a arder.
Nesse ponto o compadre Giloca fez uma pequena pausa... suspirou...
sacudiu a cabeça e sorveu com frenesi três ou quatro goles seguidos de mate.
– Ah! Amigo... aí é que foi a desgraça, continuou ele. A nossa gente saiu
toda em peso, tocada pelo fogo, formada... não faltava ninguém...
Foi então que se viu que os inimigos eram três a quatro vezes mais do que
nós, e vinham armados de lanças, tercerolas, pistolas e espadas. – Ao mato, e
ninguém se assuste, gritou o capitão Claro. – Aqui está o vosso comandante
velho, gritou o coronel Bica, e vamos mostrar que ainda não perdemos o costume
de pelear.
Todos puxaram pelas armas que traziam: espadas, adagas, facões e
boleadeiras. Armas de fogo já não tinham nenhuma munição.
Era quase meio-dia.
O mato ficava a umas quinze quadras... se pudessem chegar até lá
estavam salvos... mas Deus não quis...
O coronel Bica, montando o cavalo, em pelo, colocou-se à frente dos
companheiros e romperam a marcha, formados em pelotão, em direção ao mato,
abandonando o seu infeliz reduto, onde o fogo os acossava, e não era mais
possível permanecer.
Logo, porém, os inimigos deram uma carga, e seis dos nossos caíram
feridos, entre eles o capitão Claro, que teve uma perna quebrada. Esses foram
ultimados a lança, dando o capitão bastante trabalho, porque era destro e,
mesmo sentado, defendia-se valorosamente com a espada.
Os outros avançavam, apressando a marcha a rumo do mato, mas sempre
arrodeados e apertados pelos pátrias, já não tiveram mais alce, de modo que
companheiro ferido, que meio se atrasava, era logo morto e despilchado, porque
nós andávamos bem de recursos, e os inimigos andavam mui escassos, e
aproveitaram a volteada para se rebuscarem.
Assim foi que pelo meio do caminho já não restavam mais que uns dez ou
doze, e o coronel Bica, vendo que tudo estava perdido, atropelou e rompeu a fila
dos inimigos, que vinham como pau-a-pique. Logo de sopetão, derrubou dois ou
três com a espada, e, enquanto os outros meio titubearam na retintiva, ele
cortou-se, mas lhe saíram perto, errando-lhe muitos tiros, até que perto do mato,
como meia quadra, bolearam-lhe o cavalo. O animal correu um pouco boleado,
mas logo arrastou os quartos e rodou. Ele saiu correndo com a espada na mão
e ganhou o mato, onde os inimigos não o perseguiram mais.
181
Essa tarde passou escondido, porém, quando anoiteceu, saiu à beira do
campo e costeou o mato, por dentro do espinilhal; atravessou banhados, bibocas
e socavões, e, quando foi de madrugada, bateu na estância, que fica como duas
léguas daqui, arroio a cima, lá onde passamos.
Aí contou tudo; ele não estava ferido, mas vinha mui extraviado e cansado,
descalço e meio nu, porque a roupa tinha ficado aos nacos nas japecangas e
taquarais, que há muito por aqui.
De manhã saímos com muitos vizinhos e viemos em procura dos nossos
companheiros que já maliciávamos que estivessem mortos.
Nesse tempo por aqui só havia este posto, e essa estrada passava daqui a
mais de légua, no passo do Cardoso, lá em cima.
Muito antes de chegar, avistamos já o bando de caranchos que, tendo
descoberto os cadáveres estivados sanga abaixo, começavam a estraçalharlhes as carnes e de longe nos serviam de guia.
Aí estavam 29 dos nossos companheiros, todos completamente nus,
degolados e cobertos de feridas.
Todo dia levamos a enterrá-los.
Depois soubemos por vizinhos que os próprios inimigos declararam que
nunca tinham visto homens tão valentes; que todos, até o último, brigaram até
morrer.
Os três, que ficamos, tomamos cada qual o nosso rumo, desguaritados e
tristes por esse mundo.
[...]
O compadre Giloca calou-se, e J. de Borba deu ordem de encilhar,
seguindo logo depois a comitiva a sua interrompida viagem.
Ao montar a cavalo, o compadre Giloca olhou por derradeira vez para o
canhadão, como que se despedindo com a vista do lugar onde jaziam seus
antigos companheiros.
– Parece que foi ontem; cada vez que chego aqui se me afigura que estou
vendo meus companheiros, e entretanto já vai pra 15 anos... nunca hei de
esquecer.
Seguiram silenciosamente juntos ainda por meia hora e, finalmente, numa
bifurcação da estrada, apartaram-se cada qual para suas residências, que perto
ficavam.
Comentários ao capítulo 11 de Recordações gaúchas
A novela de Luís Araújo Filho deve ter sido ponto referencial à prosa
empreendida por João Simões Lopes Neto, que a seguir se estudará. A narrativa
182
começa com travessão dialogal, em conversa do tipo uma-traz-outra, marca das
charlas de galpão, à beira do fogo, na roda do mate.
Histórias especiais, principalmente fora de centros urbanos, quase sempre
nascem de viagens, em que outros mundos são atrações e curiosidades. Desse
modo nasce a narrativa de Recordações gaúchas: são tropeiros em viagem que
trançam os relatos.
No caso presente, o âmago do argumento é a fala de galpão ou, mais
precisamente, neste caso, do fogo de chão. O discurso é a linha de orientação
das histórias. Através dele, os personagens, entre eles o narrador, se identificam,
explanam a vida que levam, dão-se a conhecer, vivem histórias como aventuras
vivas. O excerto transcrito mostra isso. Mostra também os inícios continentinos,
como se dizia do Rio Grande do Sul, antigo Continente do Rio Grande. Foi terra
de contendas, cultura viril e agreste, em que se valorizava a coragem e a
hombridade, o domínio sobre os animais xucros e o companheirismo. O
desassombro diante da incerteza era marca de honra dos guascas, dos
vaqueanos, dos tapejaras, dos gaudérios, mais tarde chamados todos de
gaúchos. A tal ponto o patronímico foi recebido como honroso, que não demorou
para que todo o povo natural ou apenas habitante do Rio Grande do Sul fosse
chamado de gaúcho.
183
Capítulo 5
Obras de Gustave Moreau (1826-1898).
SIMBOLISMO (1893 – 1902)
O Simbolismo, como o nome sugere, produziu literatura baseada na
utilização de símbolos. Em consequência, a literatura simbolista é
exclusivamente constituída de poemas. O símbolo, para comunicar seu
significado, exige conhecimentos da cultura que o alimenta. Em poemas, o
símbolo pode ser criado e ou desenvolvido, para cada caso, em cada poema, o
que exige, normalmente, perspicácia e instrumentação teórica do leitor. O
poema, desse modo, gera aura de mistério, que tem sido apontado pela crítica
como elemento basilar da poética simbolista. A objetividade, exigida pelo texto
em prosa, como construção de personagem e exposição narrativa de episódios,
p. ex.,desfaz a aura de mistério necessária ao poema simbolista.
A ideologia de sustentação do Simbolismo é o Intuitivismo. O Intuitivismo
decorre principalmente do pensamento do filósofo Bergson. Constitui doutrina
segundo a qual todo conhecimento tem base na intuição. O Intuitivismo valoriza
a intuição, em contraposição à proposta positivista, de valorização do que os
realistas denominavam realidade objetiva. A intuição é forma de conhecimento
não perfeitamente demonstrável, de foro íntimo, pessoal. Isso permitiu que os
estudiosos tenham definido a literatura simbolista como subjetiva. Haja vista o
que acima ficou exposto a respeito da utilização de símbolos. Também pode ser
vista como arte subjetivista, em função do ambiente misterioso que muitas vezes
ronda os poemas.
A proposta simbolista, portanto, afasta-se do Realismo e aproxima-se, o
quanto isso é possível entre escolas literárias, do Romantismo. Enquanto vigia
o Simbolismo, formas parnasianas subsistiam no que se convencionou
184
denominar neoparnasianismo. Muitos poetas, como o a seguir citado Wamosy,
começaram neoparnasianos e depois aderiram ao Simbolismo.
Tornou-se usual, entre os simbolistas, a utilização de palavras que sugiram
e ou expressem brancuras, espiritualidade, misticismo, religiosidade,
sonoridade, musicalidade. Brancuras em geral funcionam como simbólicas da
imaterialidade humana, do que não aparece no mundo da realidade concretosensorial, em contraposição à proposta realista. A sugestão e ou expressão de
espiritualidade traduz-se em palavras como alma, espírito, e pela desvalorização
da materialidade, especialmente em seu caráter de transitoriedade. A
religiosidade, que às vezes se confunde com a espiritualidade no poema, é
expressa em citações de objetos de ofícios religiosos e na aceitação da fé, como
solução à vida. Misticismo tem o mesmo radical de mistério; como as religiões
trabalham implicitamente com mistérios, essa marca se estabelece bem na
proposta literária do Simbolismo. Sonoridade e musicalidade são construídas
sobre uma das marcas mais caraterísticas da poesia simbolista: a especial
valorização do vocábulo sobre a palavra, ou seja, do significante sobre o
significado. Noutras palavras: a elaboração do poema privilegia efeitos sonoros
das palavras sobre o significado que elas costumeiramente têm na língua. Criase, assim, uma linguagem poética simbolista ou, noutras palavras, o estilo
discursivo simbolista.
Em Oferta, poema de Alceu Wamosy, se pode observar isso com bastante
evidência. (Wamosy está estudado (a seguir) como pré-modernista, por motivos
que a seu tempo se verão.)
Esses versos, que eu fiz à glória de tua alma,
têm a sonoridade esquisita de um bronze
e a clara limpidez de um cibório de prata.
Possuem do teu gesto encantador o ritmo,
e, nos símbolos seus, anda o mesmo mistério
que te aparta do mundo e apenas te revela
para o amor do meu culto – esplendor do meu sonho.
Ó toda pulcra Urna divina, Urna de carne
onde a Beleza dorme, harmoniosa e radiante,
recebe este Missal da minha adoração.
Nesse poema, podem-se identificar algumas tendências marcantes da arte
dos simbolistas na construção dos versos. Como se pode também observar, a
própria grafia da palavra pode ser simbólica ou sugestiva: letras maiúsculas
podem sugerir significados subliminares.
No Brasil, o Simbolismo constituiu-se escola literária um tanto marginal.
Floresceu em ambientes urbanos periféricos, não desfrutou de prestígio público
e, de acordo com a crítica, pontificou apenas durante nove anos. Rigorosamente,
185
pontificou não corresponde exatamente ao que ocorreu, como anteriormente
ficou dito.
João da CRUZ E SOUZA
Cruz e Souza nasceu (filho de escravos) em Desterro, a Florianópolis (SC)
de hoje, em 1861. Morreu em Sítio (MG), em 1898, aonde tinha ida a tratamento
de saúde. É conhecido como o Cisne Negro da literatura brasileira. Questionou
preconceitos e outros problemas sociais em sua participação política. Tem sido
considerado nosso mais completo poeta simbolista. O início oficial do movimento
simbolista no Brasil tem sido apontado como estabelecido com a publicação de
Missal e de Broquéis (1893), de sua autoria. Além de ter iniciado (oficialmente)
o simbolismo brasileiro, consolidou o movimento através da qualificação técnica
e da decisão temática da obra que compôs.
Obras: Missal (poema em prosa), Broquéis, Tropos e fantasias, Faróis,
Últimos sonetos e O caminho da glória.
Antífona
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos,
Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem,
186
E as emoções, todas castidades
Da alma do verso pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas áureas correntezas...
Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
Lésbia
Cróton selvagem, tinhorão lascivo,
Planta mortal, carnívora, sangrenta,
Da tua carne báquica rebenta
A vermelha explosão de um sangue vivo.
Nesse lábio mordente e convulsivo,
Ri, ri risadas de expressão violenta
O Amor, trágico e triste, e passa, lenta,
A morte, o espasmo gélido, aflitivo...
Lésbia nervosa, fascinante e doente,
Cruel e demoníaca serpente
Das flamejantes atrações do gozo.
Dos teus seios acídulos, amargos,
Fluem capros aromas e os letargos,
Os ópios de um luar tuberculoso...
Cárcere das almas
Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
187
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço, olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
Tudo se veste de uma igual grandeza,
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo Espaço da Pureza.
Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas
Da Dor no calabouço atroz, funéreo!
Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do Mistério?!
Livre
Livre! Ser livre da matéria escrava,
Arrancar os grilhões que nos flagelam
E livre penetrar nos Dons que selam
A alma e lhe emprestam toda a etérea lava.
Livre da humana, da terrestre lava
Dos corações daninhos que regelam,
Quando os nossos sentidos se rebelam
Contra a Infâmia bifronte que deprava.
Livre! bem livre para andar mais puro,
Mais junto à Natureza e mais seguro
Do seu Amor, de todas as justiças.
Livre! para sentir a Natureza,
Para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.
Monja
Ó Lua, Lua triste, amargurada,
Fantasma de brancuras vaporosas,
A tua nívea luz ciliciada
Faz murchecer e congelar as rosas.
Nas floridas searas ondulosas,
Cuja folhagem brilha fosforeada,
Passam sombras angélicas, nivosas,
Lua, monja da cela constelada.
Filtros dormentes dão aos lagos quietos,
Ao mar, ao campo, os sonhos mais secretos,
188
Que vão pelo ar, noctâmbulos, pairando...
Então, ó Monja branca dos espaços,
Parece que abres para mim os braços,
Fria, de joelhos, trêmula, rezando...
ALPHONSUS de GUIMARAENS
Alphonsus de Guimaraens é o nome literário de Afonso Henrique da Costa
Guimarães. Ele nasceu em Ouro Preto (MG), em 1870, e faleceu em Mariana
(MG), em 1921. Formou-se pelo curso de Ciências Jurídicas na Faculdade de
Direito de São Paulo. Foi nomeado promotor de Conceição do Serro e, mais
tarde, juiz na cidade de Mariana. Construiu sua obra nos parâmetros do
Simbolismo.
Obras: Dona Mística (1899), Câmara ardente (1899), Septenário das dores
de Nossa Senhora (1899), Kiryale (1902), Pauvre Lyre (1921), Pastoral aos
crentes do amor e da morte (1923).
A catedral
Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz no céu risonho,
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.
189
E o sino chora em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.
E o sino geme em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
Pulchra ut luna
Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que, embora na terra, do céu vieste?
Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.
EDUARDO Gaspar da Costa GUIMARÃES
Assinava a produção literária como Eduardo Guimaraens. Nasceu em Porto
Alegre em 1892; faleceu no Rio de Janeiro em 1928. Colaborou em vários
periódicos da capital gaúcha. Entre 1912 e 1916 viveu no Rio de Janeiro, onde
igualmente atuou na imprensa. Traduziu poemas e peças de teatro. Sua poesia
dialoga com poetas simbolistas, especialmente europeus.
Obras: Caminho da vida (1908); A divina quimera (1916).
Canto do velho minuano
Sutil, sutílimo, um tanto lento,
logo subindo, como se a voz
de alguém vibrasse na altura do vento
190
do Pampa, se ergue, chama por nós!
Terrível, uiva! Mas, nessa grita,
que de hinos claros! E desvairada,
por sobre as cousas se precipita,
sopra, sibila, silva a lufada!
Quase torrente que se encapela,
serpeia, aéreo mar, o tufão,
mais cheio de ondas do que a procela
que a pique os barcos põe, de roldão!
Assim, o vento da minha terra,
em vindo o inverno que os campos tala,
solta o seu forte brado de guerra!
Tinem espadas e há trons de bala...
Todo o passado! Todo! Ora, os que amam
– poetas! – a alma do seu país
sentem-na, em ritmos que se derramam
pelo ar das noites, cantar, feliz,
no imenso vento, que o Pampa atroa
e gela, e grosso de rebeldias,
águia suprema, sem pausas, voa
três longas noites, três longos dias.
Porque nos giros do seu insano
desregramento, do seu furor,
sempre saudável, o Minuano
é também uma força de amor!
Seca as chuvadas, áspero e frio,
e aclara a abóboda azul-celeste
– Quebram violas ao desafio... –
o meteoro que vem do Oeste!
Desfaz as nuvens, que o raio encerra.
Limpa os céus, funde-os como metais...
(Divinas tardes da minha terra!
Céus dos crepúsculos sem iguais!)
Quando entra às frinchas de cada porta,
faz-se acalanto com que adormecem
– se acaso acordam, por noite morta –
os bebês frágeis que as mães aquecem!
Na solitude dos campos, à hora
cheia de graça do anoitecer,
tu retransmites espaço em fora
o som dos sinos, que ensina a crer!
E ao mesmo tempo, rural e urbano,
que retemperas o corpo e a alma,
nos estimulas, ó Minuano,
com os acenos da melhor palma!
191
Quis, no meu canto, se é que ele encerra
um eco apenas do teu – ou não,
louvar-te, ó vento da minha terra!
Fôlego largo do meu torrão!
192
Capítulo 6
Quadro de Trípoli Gaudenzi sobre os episódios de Canudos.
PRÉ-MODERNISMO (1902 – 1922)
Para iniciar o estudo do Pré-modernismo, é necessário admitir que essa é
uma nominação imprecisa. Ainda há outra dificuldade: como ainda não
estudamos o Modernismo, precisamos procurar conceber o Pré-modernismo na
carência dessas bases conceituais.
A tradição crítica brasileira tem dito que o Pré-modernismo é o único
período literário da nossa literatura. Por período literário entende-se um espaço
de tempo em que os textos da literatura carecem de uma (única) ideologia
predominante. Vale dizer: o procedimento de produção literária é eclético: os
textos desenvolvem ideários independentes e ou diferentes, e os estilos
tampouco procuram aproximar-se uns dos outros. O ecletismo é marcado pela
diversidade. Assim, pois, a variedade estilístico-ideológica é o que sinaliza
teoricamente, de modo marcante, a produção literária do que denominamos Prémodernismo.
Por não se identificar com qualquer unidade ideológica (única) nem os
textos produzidos manterem aproximações estilísticas, o período pré-modernista
não deve ser considerado escola literária, que precisa desses requisitos para
constituir-se como tal. Tampouco deve ser aceito como estilo de época, porque
não pontifica um, mas vários coexistem. Estilos de época são produções
identificadas por certas marcas estilísticas no interior duma escola. Mantém-se,
pois, a concepção de período literário para o Pré-modernismo.
O período pré-modernista começa em 1902 com a produção de dois
romances: Os sertões de Euclides da Cunha, e Canaã, de J. A. Graça Aranha.
Há no fato da publicação desses romances algo a considerar de maneira
193
especial. É que o Simbolismo, entre outras marcas, se caraterizou pelo
subjetivismo marcante, i. é, pela centralidade da expressão no sujeito, quer seja
ele o autor, quer seja o leitor do texto. A objetividade necessária para elaborar
personagens da narração do romance já desconfigura a possibilidade técnicoestilística simbolista que, por isso, se restringiu à produção de poemas. A
concretização de episódios narrativos também impede a manutenção da aura
simbolista.
Escolheram-se para este capítulo autores que tenham sido significativos
dessa diversidade pré-modernista, que tenham desenvolvido estilos marcantes
e ideários diversificados entre si, como Lopes Neto, Monteiro Lobato, Lima
Barreto, Alcides Maya (na prosa); Augusto dos Anjos, Alceu Wamosy, Ramiro
Barcelos (na poesia).
AUGUSTO de Carvalho Rodrigues dos ANJOS
Augusto dos Anjos tem sido considerado um dos mais singulares poetas
do país. Nasceu em Pau D'Arco (PB) em 1884 e faleceu em 1919 em Leopoldina
(MG), aos 29 anos de idade. Escreveu um único livro, Eu. O livro parece
manifestar certo sentimento trágico da vida. Utiliza vocabulário geralmente de
tendências naturalistas e às vezes com marcas simbolistas. Já aí se evidencia
(pelo menos aparentemente) contradição teórica. Augusto dos Anjos parece
enquadrar-se com maior clareza no Pré-modernismo, que, como já foi
comentado acima, não chegou a constituir escola literária e caracterizou-se pela
convivência de várias tendências.
Vencedor
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração – estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas,
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem.
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
194
Versos íntimos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro da tua última quimera.
Somente a ingratidão – essa pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Barcarola
Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e, pelo mar,
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.
Espalham-se os esplendores
Do Céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.
Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror,
Como globos estrelados.
Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.
Vem uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
– Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...
Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
195
Se um cai, outro se ergue e sonha.
Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.
Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.
A Lua – globo de louça –
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!
Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.
Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.
É com um réquiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo!
“Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
Viageiro da extrema-unção,
Sonhador do último sonho!
Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
Há de cercar-te essa glória!
Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte!”
– E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
196
Sem que o poeta pressentisse!
Vista de um luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!
Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e, pelo mar,
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!
Comentários aos poemas de Augusto dos Anjos
Em Vencedor, leem-se reflexões a respeito da importância do poder da
força e das organizações sociais que constituem oposição ao “coração do poeta”,
esse, sim, indomável. Vale dizer: coração aponta para o sentimento, a
intimidade, a determinação. Por metonímia, alonga-se o sentido também para
algo como valores intelectuais, que se contrapõem aos que inicialmente são
apresentados no soneto. Mais ou menos como diz o ditado popular, mais vale a
pena do sábio do que a espada do guerreiro.
Em Versos íntimos, Augusto dos Anjos volta a pautar o texto pela forma do
soneto tradicional. Do ponto de vista do ideário, contudo, utiliza recursos da
língua que lhe possibilitam explorar o gosto naturalista pelo cientificismo e por
expressões chocantes. Desse modo, delineia-se a busca de forma e tema, no
período literário que está sendo analisado. A busca da forma se demonstra pela
utilização de fôrma poética tradicional retomada no Parnasianismo (1883-1902),
o soneto, mas lança mão de recursos a que o Naturalismo (1881-1902) recorreu.
Desse modo, parece também desenhar-se o que foi possível pensar como Prémodernismo.
Apesar disso, ensaiam-se alguns recursos simbolistas, como sonorização,
vocabulário incomum e musicalidade. Essa conformação técnica, por
conseguinte, demonstra reutilização de várias conformações estilísticoideológicas, para construção de novas formas estilísticas, no sentido exato da
busca e da variedade, como convém, segundo a teorização aqui sustentada,
para o período pré-modernista.
Dos três poemas selecionados, talvez Barcarola seja o de maior
complexidade técnica e temática. Nesse poema, o poeta não opta pela forma
fixa. Faz uso da simplicidade da quadra heptassílaba, com dois ictos por verso.
O recurso estrutural é agora mais próximo do Romantismo e do Modernismo do
que do Parnasianismo e do Simbolismo.
É possível identificar em Barcarola marcas românticas e simbolistas. Nele
se vislumbram, p. ex., entroncamentos com Gonçalves Dias, Castro Alves,
Álvares de Azevedo; com Cruz e Sousa. O poema trata da vida, através da velha
197
alegoria da viagem (a existência) pelas ondas (problemas) do mar (o espaço
existencial disponível). Tal viagem tem Destino marcado: ninguém foge disso.
Nesse sentido, o poema investe nas concepções realista-naturalista-parnasiana
e simbolista.
ALCEU de Freitas WAMOSY
Wamosy nasceu em Uruguaiana (RS) em 1894. Foi jornalista na cidade
natal e em Alegrete (RS). Viveu também em Santana do Livramento (RS).
Frequentou a companhia de outros intelectuais da época, em Porto Alegre, onde
esteve por breve tempo. Faleceu em Livramento, dez dias depois de ter sido
baleado em combate da luta armada de 1923.
Obra: Flâmulas (20 sonetos de estreia), composto pelo próprio poeta, nas
oficinas do jornal (1913); Na terra virgem (1914) e Coroa de sonhos (1925). Há
notícias da existência de poema ou poemas em prosa com o título Jardim das
estátuas tristes, até hoje sem ter sido localizado nem editado. A prosa está
reunida em Prosa de Alceu Wamosy (1967).
A revolta do corvo
Negro, petrificado e frio como um mito
De Buda, a passear o olhar de lado a lado,
Ele deixou-se ali ficar, sob o infinito
Peso de sua tortura – estranho torturado...
E lançando, talvez, à bruma do passado,
Seu profundo olhar, sereno, de proscrito
Atirou para o alto e negro céu calado
A blasfêmia audaciosa e rubra do seu grito!
E o céu, que não escuta e que é marmóreo e torvo,
Riu, talvez, para si, da pequenez do corvo
E afivelou de novo a máscara de aço.
E o corvo, alçando o voo, embriagado e tonto,
Subiu... cortou a névoa... a bruma... e como um ponto
Negro, sumiu-se além, na escuridão do espaço...
Por quê?
Se tu és tão bom, Senhor – se o teu poder é tanto,
Que terra e mar e céus, tudo tu tens na mão;
Se os que vivem sofrendo achar consolo vão,
Nas dobras imortais do teu paterno manto;
198
Se não és, simplesmente, a simples ilusão
Dos que os olhos já têm, secos de chorar tanto;
Se apagas toda a dor e enxugas todo o pranto
Que a desdita acumula em nosso coração;
Se és o supremo bem; se és o gozo supremo
Daqueles a quem punge um mal negro e profundo,
E a quem abate e prostra um sofrimento extremo;
Dize por que é, Senhor! Dize, Senhor, por que é
Que ainda andam a gemer, nas solidões do mundo,
Bocas que não têm pão – almas que não têm fé?!
Oferta
Esses versos, que eu fiz à glória de tua alma,
têm a sonoridade esquisita de um bronze
e a clara limpidez de um cibório de prata.
Possuem do teu gesto encantador o ritmo,
e, nos símbolos seus, anda o mesmo mistério
que te aparta do mundo e apenas te revela
para o amor do meu culto – esplendor do meu sonho.
Ó toda pulcra Urna divina, Urna de carne
onde a Beleza dorme, harmoniosa e radiante,
recebe este Missal da minha adoração.
Duas almas
Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...
A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.
E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!
Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...
199
Comentários aos poemas de Alceu Wamosy
A revolta do corvo integrou a edição original de Flâmulas (vinte sonetos de
estreia), composto integralmente por ele: não apenas lhe foi o autor, como
igualmente o imprimiu e distribuiu. O poema é um soneto de forma tradicional,
versos dodecassílabos com dois ictos cada. Misturam-se no texto marcas
parnasianas e antissimbolistas, como convém ao que denominamos de
produção pré-modernista. É possível contudo constatar predominância de
marcas parnasianas, o que facilita a concepção do que também se tem chamado
de neoparnasianismo. Essa produção toda cabe, como se viu anteriormente, no
período pré-modernista, dadas as caraterísticas que demonstra.
É possível identificar-se o antissimbolismo, p. ex., na imagem do corvo,
“negro, petrificado e frio como um mito / De Buda” que “atirou [...] para o negro
céu calado / A blasfêmia audaciosa e rubra do seu grito”. O corvo, por fim, “cortou
a névoa... a bruma...”. Nessas passagens poéticas se evidenciam sinais que
contrariam a proposta simbolista: o corvo, símbolo valorizado no poema, é negro;
lança-se contra o céu também negro e calado, i. é, ignoto, inescrutável e que
não responde aos anseios humanos. O céu não aparece como uma esperança,
mas máscara de aço, fechado e ameaçador. A revolta tem tons de vingança: o
corvo negro perfura e vence a névoa e a bruma, símbolos exaustivamente
utilizados pelos simbolistas, para expressar e valorizar imaterialidade e
espiritualidade. O espaço é também escuro. Nele não se nomeia o sol nem a lua.
Luminosidade, outra preocupação estilística dos simbolistas, tampouco
comparece no poema.
Por quê? está composto em formas análogas ao poema anteriormente
analisado. Ambos têm caraterísticas que se aproximam.
Por quê?, contudo, é mais explícito que A revolta do corvo. O que primeiro
chama a atenção é a utilização do substantivo Senhor, com inicial maiúscula. O
primeiro contato com essa palavra faz quiçá o leitor pensar num poema místico,
poema quem sabe simbolista. O que se lê no entanto revela o contrário. O poema
põe em dúvida a existência de um ser superior completo, que se preocupe com
os humanos, como se pai fosse deles. Onde está a justiça para a humanidade,
questiona o poema, se há os que sofrem por não terem fé e ou outros por não
terem alimentos. É digno de nota, ainda, o fato de o poema falar primeiro em
pão, só depois em fé, em sugestiva e subliminar escala de valores. De qualquer
modo, segundo se lê no soneto, ambas as carências produzem infelicidade.
Oferta já é poema com outra configuração estilístico-ideológica. O poema
tem apenas dez versos, em estrofes de 3 e 4 versos. O poema é metapoético, i.
é, está fundado na concepção (agora) simbolista do fazer poético. Valoriza, p.
ex., versos, glória, alma, sonoridade, bronze, clara limpidez, cibório de prata,
gesto, ritmo, símbolos, mistério, amor, culto, sonho, missal, adoração. Foi
possível encontrar, em dez versos dodecassílabos, dezessete substantivos e um
adjetivo que expressam e sugerem imaterialidade, espiritualidade, religiosidade,
200
misticismo. Adiante ainda será possível destacar outros momentos importantes
desse trabalho, que expõe de forma inequívoca a adesão formal e ideológico do
poema à proposta simbolista. É esclarecedor igualmente dizer que Oferta abre
o último livro do poeta, Coroa de sonhos. Na análise de Duas almas será possível
retornar a essa questão e tentar eliminar alguns equívocos frequentes de análise
da obra de Wamosy.
A expressão “mistério / que te aparta do mundo” segue a sequência de
semas de valorização da imaterialidade, de outro mundo melhor. O amor que
dedica à amada é um culto e é esplendor do sonho que alimenta. O adjetivo
latino pulcra liga a escolha vocabular, do mesmo modo, ao incomum, a que os
simbolistas procuraram sempre relacionar o vocabulário e secundariamente a
semântica, no sentido de ampliar e aprofundar a sensação de mistério e fuga do
cotidiano limitador. (Lembremos que Alphonus de Guimaraens tem um soneto
intitulado Pulcra ut luna.) Concebe a mulher amada como urna divina e como
urna de carne, i. é, guarda a pureza e a vida, mas o sentido de imaterialidade
antecede o de carnalidade. Mais: a palavra “Urna” está grafada, como “Beleza”
(2o verso da mesma estrofe), com inicial maiúscula; vale dizer: essas palavras
devem ser lidas como substantivos próprios, ou como símbolos primordiais do
poema. Além disso, urna, com inicial maiúscula, sugere, do ponto de vista ótico,
imagem que pode ser entendida com algo de erótico. Por fim, o substantivo
missal também está grafado com inicial maiúscula, sobrecarregando de valor
poético-ideológico o sentimento religioso, tão grato ao Simbolismo.
Como conclusão parcial, pode-se ainda dizer que o poema Oferta,
dedicado à noiva, é um texto propositivo e de adesão ao Simbolismo galharda e
sofridamente vivenciado pelo admirado Cruz e Sousa, com quem, aliás, não
seria desmedido relacionar o primeiro poema de Wamosy presente nesta
antologia, embora sem possibilidade de justificativa ideológica.
Duas almas é o poema que chamou atenção especial sobre o poeta e sua
obra. É o poema que está gravado em bronze, sob a herma do poeta, na praça
central de sua cidade natal. É o poema que tem sido enfeixado nas antologias
nacionais que incluem Wamosy entre os poetas representativos da nossa
literatura. Essa talvez seja a primeira razão de o autor ter sido quase sempre
considerado simplesmente simbolista, ainda que de última hora. A outra talvez
seja a falta de acesso à obra completa.
O título aponta para a espiritualização ou imaterialização do amor. O soneto
tem forma tradicional. Ideologicamente, não se define com precisão, o que
também o conduz ao conjunto dos textos carateristicamente simbolistas. As
auras de mistério e de imprecisão aliadas ao expressivo e sugestivo trabalho
verbo-fônico, incluída a musicalidade, definem o soneto como aderente à poética
simbolista. Os jogos bipolares marcam o texto e reafirmam o universo onírico
das duas almas.
201
Para demonstração do trabalho de construção simbolista do soneto,
destaco o segundo verso do primeiro terceto. No texto, “sem fim” é
semanticamente equivalente a “imensa”, e “deserta” o é a “nua”. Na observação
dos significados, portanto, há quatro informações para duas significações. Esses
pleonasmos estão menos fundados no que dizem e mais no que sugerem. O
trabalho com significantes é, na poética simbolista, mais importante que o
trabalho com significados. A sonoridade, a musicalidade, a sugestividade são de
fato constituintes fundamentais dos textos no estilo simbolista. Por essa razão,
a repetição dos significados não diminui o poema; ao contrário, a sugestividade
fônica, baseada nas vogais, faz brotarem nuanças musicais e sensações visuais
de afastamento.
João SIMÕES LOPES NETO
Lopes Neto nasceu em 1865, na estância da família, interior de Pelotas.
Aos 11 anos, foi para a cidade. Aos 13, matriculou-se no Colégio Abílio, no Rio
de Janeiro. Abandonou os estudos quatro anos mais tarde e regressou à cidade
natal. Viajou a Uruguaiana em companhia do pai, que administrava uma das
propriedades da família. Começou a escrever em 1888, no jornal A pátria, de
Pelotas. Criou a Sociedade Anônima Vidraria Pelotense. Em 1892, estreou no
Diário popular. Montou, como incorporador, a Companhia Destilação Pelotense.
Publicou em 1893, no Correio mercantil, em 15 capítulos, sob o
pseudônimo de Serafim Bemol, um folhetim chamado A mandinga. Escreveu
peças teatrais em única autoria e em parcerias, que foram encenadas em
Pelotas. Continuou com atividade jornalística. A peça Viúva Pitorra foi editada
pela Livraria Comercial. Em 1906, começou a publicar a Coleção brasiliana, de
divulgação da história nacional, através de postais confeccionados em Pelotas.
No mesmo ano, tornou-se professor da Academia de Comércio do Clube
Caixeiral e divulgou pelo Correio mercantil o conto de base lendária O Negrinho
do Pastoreio. Suas principais obras apareceram mais tarde: Cancioneiro guasca
(1910), Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913).
Faleceu em 1916, na cidade natal.
Contos gauchescos
[Introdução]
Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano.
– Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a
ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da
Lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no
soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do
202
Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas
grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa
Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas
temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas
paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos
caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus...
– Saudei a graciosa Santa Maria, fagueira e tranquila na encosta da serra,
emergindo do verde-negro da montanha copada o casario, branco, como um
fantástico algodoal em explosão de casulos.
– Subi aos extremos de Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa
Vermelha, retrovim para a merencória Soledade, flor do deserto, alma risonha
no silêncio dos ecos do mundo; cortei um formigueiro humano na zona colonial.
– Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes,
estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da
uberdade, da hospitalidade.
– Vi a colmeia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as
manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das
auroras, de pássaros e crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes
olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na
retina até mesmo o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e
consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para
que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os
homens dos nossos tempos heroicos, pela integração da Pátria comum, agora
abençoada na paz.
E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da
confiança, sucedeu que foi meu constante guia e segundo o benquisto tapejara
Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes,
vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu aprumo de furriel farroupilha, que foi,
de Bento Gonçalves, e de marinheiro improvisado, em que deu baixa, ferido, de
Tamandaré.
Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo para o
machado e para o raio, e abrigando dentro do tronco cernoso enxames de
abelhas, nos galhos ninhos de pombas...
Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o
guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade,
precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara
nitidez brilhando através da imaginosa e encantadora loquacidade servida e
floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
E, do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos
fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que
atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas ao
203
singelo entendimento; do pelo-a-pelo com os homens, das erosões da morte e
das eclosões da vida, entre o Blau – moço militar – e o Blau – velho, paisano -,
ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia – que
de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende ao sol, para
arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca.
Querido digno velho!
Saudoso Blau!
Patrício, escuta-o.
Comentários à apresentação de Blau Nunes
A página introdutória dos Contos gauchescos não tem título. Ela é de fato
apresentação do personagem e narrador Blau Nunes. Marca também o território
do discurso e dos episódios que ele prolata a partir do primeiro conto do livro,
Trezentas onças. Esse é seu lugar de fala. Por isso lhe vai ser possível
desconsiderar preceitos gramaticais de origem lusitana. Apesar disso, as
grandes contribuições de Lopes Neto para a renovação do discurso literário
brasileiro só aparecem a partir do primeiro conto. Nesses textos é que a
elaboração discursiva conquista a condição de grande literatura.
O personagem Blau foi construído como protótipo. Nos seus limites se lê a
formação moral do homem gaúcho do pampa. Está no discurso de Blau contido
o universo pessoal e social desse homem, a que se tem acesso pela formulação
de sua escala de valores.
Trezentas onças
– Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a
guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por
me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
– Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que
está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a
cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca
rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a
lombeira… e fui-me à água que nem capincho!
Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas
vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para
um bom nado.
E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei.
Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda,
obra assim de braça e meia de sol.
204
– Ah!…esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino,
um cusco mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para
acompanhar-me, e depois de sair da porteira, nem por nada fazia cara-volta, a
não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da
carona, na cabeceira dos arreios.
Por sinal que uma noite...
Mas isto é outra cousa; vamos ao caso.
Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na
estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e
troteava um pouco sobre o rastro; – parecia que o bichinho estava me
chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco
recomeçar.
– Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada
da estância, ao tempo que dava as – boas-tardes! – ao dono da casa, aguentei
um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!
Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de
gados que ia levantar.
E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos
tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro...
Eu era mui pobre – e ainda hoje, é como vancê sabe... ; estava
começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de
contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...
Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:
– Então, patrício? está doente?
– Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma
desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...
– A la fresca!...
– É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar
agora de mim!...
– É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, homem!
Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo
lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e
tornava a latir...
Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o
lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e,
em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma
ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que
205
deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça
azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.
Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a
meia rédea, antes que outros andantes passassem.
Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrinho pegou a retouçar, numa
alegria, ganindo – Deus me perdoe! – que até parecia fala!
E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.
Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por
diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos
todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre
me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.
Amaguei o corpo e penicando de esporas, toquei a galope largo.
O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.
A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a
perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente,
manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite;
à direita, o sol, muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens
de beiradas luminosas.
Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero; uma que outra perdiz,
sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto
da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a
brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como
numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.
O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de
banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da
polvadeira rasteira que as patas do flete levantavam.
E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio
num pajonal; depois o lusco-fusco; depois, cerrou a noite escura; depois, no céu,
só estrelas... só estrelas...
O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho.
Bem por cima da minha cabeça as Três-Marias tão bonitas, tão vivas, tão
alinhadas, pareciam me acompanhar... lembrei-me dos meus filhinhos, que as
estavam vendo, talvez; lembrei-me da minha mãe, de meu pai, que também as
viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias,
as Três-Marias. – Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida rindo...; Deus o
conserve!… sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o
coração pena!...
206
– Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas...,
devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um
tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira
da estrada, como um pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga daria
com ele!...
Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro,
passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:
Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!...
Mas que cantar, podia eu!...
O zaino respirou forte e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o
bagual tinha reconhecido o lugar, estava no passo.
Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.
Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito...
que medo, não, que não entra em peito de gaúcho.
Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vaga-lumes
retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os
galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as
mãos por todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada!... nada!...
Então, senti frio dentro da alma… o meu patrão ia dizer que eu o havia
roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão,
ladrão, é que era!...
E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para
não sofrer a vergonha daquela suposição.
É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!
Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido
o cano, grosso e frio, carregado de bala...
– Ah! patrício! Deus existe!...
No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo
na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a
mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao
mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco
de pau!...
– Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no
luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos
arredarem de mim a má tenção...
207
O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo
lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...
Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...;
pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num
descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...
E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um
baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.
E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa,
tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como
explicar o sucedido comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era
vender o campito, a ponta de gado manso – tirando umas leiteiras para as
crianças e a junta dos jaguanés lavradores – vender a tropilha dos colorados…
e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia
de se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de
família... isso, não!
E d’espacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu, o zaino
escarceou, mastigando o freio.
Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei,
aliviado.
O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.
Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu
logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do
potreiro outros relinchos vieram.
Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se reboleou,
com ganas.
Então fui para dentro: na porta dei o “Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite!
e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos
paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo.
Em cima da mesa, a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma
jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as
trezentas onças, dentro.
– Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi de
susto?...
E houve uma risada grande de gente boa.
Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o guaipeva,
arrolhadito aos meus pés...
208
Comentários ao conto Trezentas onças
À narrativa se antepõe um travessão. Esse travessão, que a rigor poderia
ser dispensado, está aí anunciando a fala do personagem. Como já sabemos,
trata-se de narrador-personagem. Blau fala. A onipresença de Blau nos contos
e nas lendas lhe dá condição de fala única e de testemunha das ações e
reflexões contidas nos relatos.
Ao longo dos episódios que vai narrando, vai sendo construída a figura do
gaúcho. O universo cósmico que habita está exposto nas referências ao
ambiente físico, aos animais e ao imaginário.
Por meio de recurso impressionista, o narrador, nos cinco parágrafos em
que descreve o anoitecer, enquanto Blau volta em busca do dinheiro extraviado,
o que ocorre no exterior ocorre de modo análogo no interior do narradorpersonagem. Esse recurso marca a interação ou quase-unicidade cósmica entre
o ser humano e seu ambiente. Podem-se destacar ainda recursos estilísticosugestivos, como o polissíndeto habilmente elaborado no parágrafo a seguir
transcrito: “Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se
na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e
troteava um pouco sobre o rastro; – parecia que o bichinho estava me
chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco
recomeçar”.
A palavra patrício, cuidadosamente escolhida, reforça a condição da
unificação da pátria, após a Revolução Farroupilha. A palavra gaúcho só aparece
mais adiante, quando já a escala de valores da figura está parcialmente
montada. Essa deve ser, aliás, a razão principal da presença do adjetivo
gauchescos no título. A palavra gaúcho manteve durante algum tempo
adjacências semânticas pejorativas. Os gaúchos, mestiços autótones, foram
tidos pelos proprietários de origem portuguesa e espanhola como ladrões. Assim
foram considerados, porque viviam do gado bovino e utilizavam os eqüinos, que
não tinham dono e que viviam livremente nos campos. Os que detinham títulos
de propriedade precisavam também de mão-de-obra. Os gaúchos eram
cavaleiros desinteressados, porque, como seus ascendentes ameríndios, não
tinham noção de propriedade particular, como a conhecemos, nem conheciam
a moeda. Por esse motivo, constituíam mão-de-obra ideal. Eram tidos também
como vagabundos, porque determinavam sua sobrevivência de acordo com a
disponibilidade que a natureza oferecia. A apropriação da força de trabalho
deles, portanto, se justificava por ambas razões, de acordo com o caraterístico
eurocentralismo branco. Devem ter sido essas, pelo menos, duas razões de o
título não estampar o adjetivo gaúchos, mas gauchescos, porque, a rigor,
podem-se citar outras.
O conto parece destacar alguns valores constitutivos da figura do gaúcho.
Entre eles, aparecem a honestidade, a gentileza, a coragem.
209
Imagem disponibilizada na internete em A salamanca do Jarau. (Sem informação de autoria no saite.)
A salamanca do Jarau
I
Era um dia...
um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que
só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais, estava
conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia andava
campeando um boi barroso.
E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o
alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as
carquejas – a carqueja é sinal de campo bom –, por isso o campeiro às vezes
alçava-se nos estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava mais a vista
em torno; mas o boi barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia
campeando, campeando...
Campeando e cantando:
Meu bonito boi barroso,
Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia,
Foi logo reconhecido.
Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei – aperta, gente,
Que o meu boi se vai embora!
No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou.
Dei de rédea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!
Nos tentos levava um laço
De vinte e cinco rodilhas,
Pra laçar o boi barroso
210
Lá no alto das coxilhas!
Mas no mato carrasquento
Onde o boi 'stava embretado,
Não quis usar o meu laço,
Pra não vê-lo retalhado.
E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré,
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré.
E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga.
E mandei fazer um laço
Do couro de capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse à meia-cara.
Este era um laço de sorte,
Pois quebrou do boi a balda...
................................................
................................................
No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso das suas
cousas.
No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou – cara a cara! – com
o Caipora num campestre da serra grande, pra lá, muito longe, no Botucaraí...
A lua ia recém-saindo...; e foi à boquinha da noite...
Hora de agouro, pois então!
Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando
cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do
contrário o lanhava...
Domador destorcido e parador, que por só pabulagem gostava de paletear,
ainda era domador, agora; mas, quando gineteava mais folheiro, às vezes, num
redepente, era volteado...
De mão feliz para plantar, que lhe não chochava semente, nem muda de
raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia
apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia...;
e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava fruta,
era mixe e era azeda...
211
E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o
gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando, sem topar co'o boi
barroso.
De repente, na volta duma reboleira, bem na beirada dum boqueirão
sofrenou o tostado...: ali em frente, quieto e manso, estava um vulto, de face
tristonha e mui branca.
Aquele vulto de face branca... aquela face tristonha!...
Já ouvira falar dele, sim, não uma nem duas, mas muitas vezes...; e de
homens que o procuravam, de todas as pintas, vindos de longe, num propósito,
para endrôminas de encantamentos..., conversas que se falavam baixinho, como
num medo; pro caso, os que podiam contar não contavam, porque uns,
desandavam apatetados e vagavam por aí, sem dizer cousa com cousa, e outros
calavam-se muito bem calados, talvez por juramento dado...
Aquele vulto era o santão da salamanca do cerro.
Blau Nunes sofrenou o cavalo. Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era
tarde para recuar: um homem é para outro homem!...
E como era ele quem chegava, ele é que tinha de louvar; saudou:
– Laus Sus-Cris!...
– Para sempre, amém! – disse o outro, e logo ajuntou: – O boi barroso vai
trepando cerro acima, vai trepando... Ele anda cumprindo o seu fadário...
Blau Nunes pasmou do adivinho; mas repostou:
– Vou no rastro!...
– Está enredado...
– Sou tapejara, sei tudo, palmo a palmo, até à boca preta da furna do
cerro...
– Tu, tu, paisano, sabes a entrada da salamanca?...
– É lá?... Então, sei, sei! A salamanca do cerro do Jarau!... Desde a minha
avó charrua, que ouvi falar!...
– O que contava a tua avó?
– A mãe da minha mãe dizia assim:
II
– Na terra dos espanhóis, do outro lado do mar, havia uma cidade chamada
Salamanca, onde viveram os mouros, os mouros que eram mestres nas artes de
magia; e era numa furna escura que eles guardavam o condão mágico, por
causa da luz branca do sol, que diz que desmancha a força da bruxaria...
O condão estava no regaço duma fada velha, que era uma princesa moça,
encantada, e bonita, bonita como só ela!...
212
Num mês de quaresma, os mouros escarneceram muito do jejum dos
batizados, e logo perderam uma batalha muito pelejada; e vencidos foram
obrigados a ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita... e a baterem nos peitos,
pedindo perdão...
Então, depois, alguns, fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar
nestas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas, gomas
cheirosas... riquezas para levantar de novo o seu poder e alçar de novo a MeiaLua sobre a Estrela de Belém...
E para segurança das suas tranças trouxeram escondida a fada velha, que
era a sua formosa princesa moça.
E devia ter mesmo muita força o condão, porque nem os navios se
afundaram, nem os frades de bordo desconfiaram, nem os próprios santos que
vinham, não sentiram...
Nem admira, porque o condão das mouras encantadas sempre aplastou a
alma dos frades e não se importa com os santos do altar, porque esses são só
imagens...
Assim bateram nas praias da gente pampiana os tais mouros e mais outros
espanhóis renegados. E como eles eram, todos, de alma condenada, mal
puseram pé em terra, logo na meia-noite da primeira sexta-feira foram visitados
pelo mesmo Diabo deles, que neste lado do mundo era chamado de Anhangápitã e mui respeitado. Então, mouros e renegados disseram ao que vinham; e
Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas
e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o
peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas
mãos sempre abertas e fazedoras.
Por isso Anhangá-pitã folgou, porque assim minava para o peito dos
inocentes as maldades encobertas que aqueles chegados traziam... e pois,
escutando o que eles ambicionavam para vencer a Cruz com a força do
Crescente, o maldoso pegou do condão mágico – que navegara em navio bento
e entre frades rezadores e santos milagrosos –, esfregou-o no suor do seu corpo
e virou-o em pedra transparente; e lançando o bafo queimante do seu peito sobre
a fada moura, demudou-a em teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou
então no novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era o condão, aquele.
E como já era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do dia,
do sol vermelho que ia querendo romper dos confins por sobre o mar, por isso a
cabeça de pedra transparente ficou vermelha como brasa e tão brilhante que
olhos de gente vivente não podiam parar nela, ficando encandeados, quase
cegos!
E desfez-se a companhia até o dia da peleja da nova batalha. E chamaram
– salamanca – à furna desse encontro; e o nome ficou pras furnas todas, em
lembrança da cidade dos mestres mágicos.
213
Levantou-se um ventarrão de tormenta, e Anhangá-pitã, trazendo num
bocó a teiniaguá, montou nele, de salto, e veio correndo sobre a correnteza do
Uruguai, por léguas e léguas, até as suas nascentes, entre serranias macotas.
Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira ensinou-lhe
a vaqueanagem de todas as furnas recamadas de tesouros escondidos...
escondidos pelos cauílas, perdidos para os medrosos e achadios de valentes...
E a mais desses, muitos outros tesouros que a terra esconde e que só os olhos
dos zaoris podem vispar...
Então Anhangá-pitã, cansado, pegou num cochilo pesado, esperando o
cardume das desgraças novas, que deviam pegar pra sempre...
Só não tomou tenência que a teiniaguá era mulher...
Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe,
e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros, que, esses viram!
E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da cabeça, deu um safanão no
cinto, aprumando o facão... foi parando o gesto e ficou-se olhando, sem mira,
para muito longe, para onde a vista não chegava mas onde o sonho acordado
que havia nos seus olhos chegava de sobra e ainda passava... ainda passava
porque o sonho não tem lindeiros nem tapumes...
Falou então o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia. E disse
assim:
III
– É certo: não tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Ouve, paisano.
No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com
uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa...
A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela entraram
soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas
nele entrou a doçura que tanto amarga, do pecado...
A minha boca, provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que
requeima, dos beijos da tentadora...
Mas, é que assim era o fado... tempo e homem virão para me libertar,
quebrando o encantamento que me amarra; duzentos anos hão de findar; eu
esperarei, no entanto, vivendo na minha tristeza seca, tristeza de arrependido
que não chora...
Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão...
Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da
igreja de São Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem
acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem
balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito; e bem tocar a
214
santos, na quina do altar, dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as
palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas e
dobrar a finados... eu era o sacristão.
Um dia, na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras, sesteando;
nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem choro de crianças:
tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que
tremia, peneirada, no ar parado, sem uma viração.
Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no
corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro de fumaça piedosa.
E saí sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado...
Todo povo sesteava, por isso ninguém viu.
A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual
como uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo, dentro da terra, é que
estaria o braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as
traíras e pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos
barulhentos daquelas águas...
Eu vi, vi o milagre de ferver toda aquela lagoa... ferver, sem fogo que se
visse!
A mão direita, pelo costume, andou para fazer o pelo-sinal... e parou,
pesada como chumbo; quis rezar um credo, e a lembrança dele recuou; e voltar,
correr e mostrar o Santíssimo... e tanger o sino em dobre... e chamar o padre
superior, tudo para esconjurar aquela obra do inferno... e nada fiz... nada fiz, sem
força de vontade, nada fiz... nada fiz, sem governo no corpo!...
Eu fui andando, como levado, para de mais perto ver, e não perder de ver
o espantoso...
Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a água fumegante continuou
retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma mortandade dos viventes
que morrem sem gritar...
Era no fim de um lançante comprido, estrada batida e limpa, de todos os
dias as mulheres irem para a lavagem: e quando eu estava na beira da água,
vendo o que estava vendo, então rompeu dela um clarão, maior que o da luz a
pino do dia, clarão vermelho, como dum sol morrente, e que luzia desde o fundão
da lagoa e varava a água barrenta...
E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e sem
ameaça veio andando para mim a sempre escapada maravilha..., maravilha que
os que nunca viram juravam sempre ser – verdade – e que eu, que estava vendo,
ainda jurava ser – mentira!
Era a teiniaguá, de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha
ouvido ao padre superior a história contada dum encontradiço que quase cegou
de teimar em agarrá-la.
215
Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando o perigo; mas a teiniaguá
veio-se me chegando, deixando no chão duro rastro d'água que escorria e logo
secava, do seu corpinho verde de lagartixa engraçada e buliçosa...
Lembrei-me – como quem olha dentro duma cerração –, lembrei-me do que
corria na voz da gente sobre o entanguimento que traspassa o nosso corpo na
hora do encantamento: é como o azeite fino num couro ressequido...
Mas não perdi de todo a retentiva: pois que da água saía, é que na água
viveria. Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi quando agarrei dela e
enchi-a na lagoa, ainda escaldando, e frenteei a teiniaguá que, da vereda que
levava, entreparou-se, tremente, firmando nas patinhas da frente a cabeça
cristalina, como curiosa, faiscando...
De olhos apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de
cegueira, assentei no chão a guampa e, preparando o bote, num repente, entre
susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela!
Neste passo senti o coração como que martelar-me no peito e a cabeça
sonando como um sino de catedral...
Corri para o meu quarto, na casa-grande dos santos padres. Entrei pelo
cemitério, por detrás da igreja e, desatinado, derrubei cruzes, pisoteei ramos,
calquei sepultura!...
Todo povo sesteava; por isso ninguém viu.
Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando.
Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse a teiniaguá
ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma , e o
Imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula...
Nos livros que eu lia esses todos eram os mais ricos que se conhecia.
E eu, agora!...
E não pensei mais dentro da minha cabeça, não; era uma cousa nova e
esquisita: eu via, com os meus olhos, os pensamentos diante deles, como se
fossem cousas que se pudesse tantear com as mãos...
E foram se escancarando portas de castelos e palácios, onde eu entrava e
saía, subia e descia escadarias largas, chegava às janelas, arredava reposteiros,
deitava-me camas grandes, de pés torneados, esbarrava-me em trastes que
nunca tinha visto e servia-me em baixelas estranhas, que eu não sabia para o
que prestavam...
E foram se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde no
azul das distâncias e ainda lindando com outras estâncias, que também eram
minhas, e todas cheias de gadaria, rebanhos e manadas...
216
E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos como mato
virgem...
E atulhava de planta colhida – milho, feijão, mandioca – os meus paióis.
E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meus palácios,
amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes de barras de prata; dependuradas
na galhação de cem cabeças de servos, tinha bolsas de couro e de veludo,
atochadas de diamantes, brancos como gotas d'água filtrada em pedra, que
meus escravos – saídos mil, chegados dez –, tinham ido catar nas profundas do
sertão, muito pra lá de uma cachoeira grande, em meia-lua, chamada de Iguaçu,
muito pra lá doutra cachoeira grande, de sete saltos, chamada de Iguaíra...
Tudo isso eu media e pesava e contava, até cair de cansaço; e mal que
respirava um descanso, de novamente, de novamente pegava a contar, a pesar,
a medir...
Tudo isso eu podia ter – e tinha, de meu, tinha! – porque era o dono da
teiniaguá, que estava presa dentro da guampa, fechada na canastra forrada de
couro cru, tauxiada de cobre, dobradiças de bronze!...
Aqui ouvi o sino da torre badalando para a oração da meia-tarde...
Pela primeira vez não fui eu que; seria um dos padres, na minha falta.
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
Voltei a mim. Lembrei-me de que o animalzinho precisava alimento.
Tranquei portas e janelas e saí para buscar um porongo de mel de
lexiguana, por ser o mais fino.
E fui; melei; e voltei.
Abri sutil a porta e tornei a fechá-la ficando no escuro.
E quando descerrei a janela e andei para a canastra a tirar a guampa e
libertar a teiniaguá para comer o mel, quando ia fazer isso, os pés se me
enraizaram, os sentidos do rosto se ariscaram, e o coração mermou no
compassar o sangue!...
Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça!...
Que disse:
IV
– Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre
um mar que os meus nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã transformou-me em
teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam o – carbúnculo – e temem e
desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do
mundo...
217
Muitos têm me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu lhes
hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos, relampejando
desdenhosa o lume vermelho da minha cabeça transparente...
Tu não; tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me
bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento.
Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na guampa
e irás andando e me levarás onde eu te encaminhar, e serás senhor do muito,
do mais, do tudo!...
A teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também princesa
moura...
Sou jovem... sou formosa... o meu corpo é rijo e não tocado!...
E estava escrito que tu serias o meu par.
Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não esconjurar... Se não,
serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue
de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será
vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por
via dessas!...
Se a cruz do teu rosário não me esconjurar...
Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos
infiéis...
E foi se adelgaçando no silêncio a cadência embalante da fala induzidora...
A cruz do meu rosário...
Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na primeira... e
quando tenteei a última... e que entre as duas os meus dedos, formigando,
deram com a Cruz do Salvador... fui levantando o Crucificado... bem em frente
da bruxa, em salvatério... na altura do seu coração... na altura de sua garganta...
da sua boca... na altura dos...
E aí parou, porque olhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil vidas de
homem outros se não viram!...
Parou... e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se
aparta do bagaço, como o aroma sai da flor que vai apodrecendo...
Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva,
ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os améns, e
todo me estorcegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente
ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem pecados
eram, comparados com os meus...
Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo
sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado de
palmas e resplendores: e trouxe-o, transbordante, transbordando...
De boca para boca, por lábios incendiados a passamos...
E embebedados caímos, abraçados.
Sol nado, despertei; estava cercado pelos santos padres.
218
Eu, descomposto; no chão, o copo, entornado; sobre o oratório,
desdobrada, uma charpa de seda lavrada de bordaduras exóticas, onde
sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma estrela... E acharam
na canastra a guampa e no porongo o mel... e até no ar farejaram cheiro
mulherengo... Nem tanto era preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro.
Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas
e cabelos repuxados. Dentro das paredes do segredo não havia gritos nem
palavras grossas: os padres remordiam a minha alma, prometendo o inferno
eterno e espremiam o meu arquejo decifrando uma confissão..., mas a minha
boca não falou... não falou por senha firme de vontade, que não me palpitava
confessar quem era ela e que era linda...
E raivado entre dois amargos desesperos não atinava sair deles: se das
riquezas, que eu queria só pra mim, se do seu amor, que eu não queria que fosse
senão meu, inteiro e todo!
Mas por senha da vontade a boca não falou.
Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado
fui por ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura,
falsa, sedutora e feiticeira.
No adro e no largo da igreja, o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando
a morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma.
O sino começou dobrando a finados. Trouxeram-me em braços, entre
alabardas e lanças, e um cortejo moveu-se compassando a gente d'armas, os
santos padres, o carrasco e o povaréu.
Dobrando a finados... dobrando a finados...
Era por mim.
V
E quando, sem mais esperança nos homens nem no socorro do céu, chorei
uma lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer floreteou
uma réstia de saudade do seu cativo e soberano amor..., como em rocha dura
serpenteia às vezes um fio de ouro alastrado e firme, como uma raiz que não
quer morrer!...
E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito, subiu aos olhos
feita em lágrimas e ponteou para algum rumo, ao encontro doutra saudade
rastreada sem engano...; parece, porque nesse momento um ventarrão estourou
sobre as águas da lagoa, e a terra tremeu, sacudida, tanto, de as árvores
desprenderem os seus frutos, de os animais estaquearem-se, medrosos, e dos
homens caírem de coc’ras, aguentando as armas, outros, de bruços, tateando o
chão...
E nas correntezas sem corpo, da ventania, redemoinhavam em chusma
vozes guaranis, esbravejando se soltasse o padecente...
Para trás do cortejo, desfiando o som entre as poeiras grossas e folhas
secas levantadas, continuava o sino dobrando a finados... dobrando a finados!...
219
Os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a
minha alma; em roda, boquejando, chinas, piás, índios velhos, soldados de
couraça e lança, e o alcaide, vestido de samarra amarela com dois leões
vermelhos e a coroa d'el-rei brilhando em canutilho de ouro...
A lágrima do adeus ficou suspensa, como uma cortina que embacia o claro
ver: e o palmital da lagoa, o boleado das coxilhas, o recorte da serra, tudo isso,
que era grande e sozinho, cada um enchia e sobrava para os olhos limpos dum
homem, tudo isso eu enxergava junto, empastalhado e pouco, espelhando-se na
lágrima suspensa, que se encrespava e adelgaçava, fazendo franjas entre as
pestanas balançantes dos meus olhos de condenado sem perdão.
A menos de braça, estava o carrasco atento no garrote!
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o
corpo bonito, lindo, belo, da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da
cabeça encantada da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor,
tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros se não viram!...
E por certo por essa força que nos ligava sem ser vista, como naquele dia
em que o povo sesteava e também nada viu... por força dessa força, quanto mais
os padres e alguazis ordenavam que eu morresse, mais pelo meu livramento
forcejava o irado peito da encantada, não sei se de amor perdida pelo homem,
se de orgulho perverso do perjuro, se da esperança de um dia ser humana...
O fogo dos borralhos foi-se alteando em labaredas e saindo pela quincha
dos ranchos, sem queimá-los..., as crianças de peito soltaram palavras feitas,
como gente grande... e bandadas de urubus apareceram e começaram a
contradançar tão baixo, que se lhes ouvia o esfregar das penas contra o vento...,
a contradançar, afiados para uma carniça que ainda não havia, porém que havia
de haver...
Mas os santos padres alinharam-se na sombra do Santíssimo e borrifaram
de água benta o povo amedrontado; e seguiram, como num propósito,
encomendando a minha alma; o alcaide levantou o pendão real, e o carrasco
varejou-me sobre o garrote, infâmia de minha morte, por ter tido amores com
mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira.
Rolou, então, sobre o vento e nele foi a lágrima do adeus, que a saudade
destilara.
Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca ouvido, tão dilatado e
monstruoso...: e rasgou-se cerce em um sangão medonho, entre largo e fundo...
e lá no abismo, na caixa por onde ia já correndo, em borbotão, a água lamenta
sujando as barrancas novas, lá, eu vi e todos viram a teiniaguá de cabeça de
pedra transparente, fogachando luminosa como nunca, a teiniaguá correr,
estrombando os barrocais, até rasgar, até romper, arruir a boca do sangão na
alta barranca do Uruguai, onde a correnteza em marcha despencou-se,
espadanando em espumarada escura, como cauda de chuvas tormentosas!...
220
A gente levantou pro céu um vozear de lástimas e choros e gemidos.
– Que a Missão de São Tomé ia perecer... e desabar a igreja... a terra
expulsar os mortos do cemitério... que as crianças inocentes iam perder a graça
do batismo... e as mães secar o leite... e as roças, o plantio, os homens, a
coragem...
Depois um grande silêncio balançou no ar, como esperando...
Mas um milagre se fez: o Santíssimo, de si próprio, perpassou a altura das
cousas e, lá em cima, cortou no ar turvado a Cruz Bendita!... O padre superior
tremeu como em terçã e tartamudo e trôpego marchou para o povoado; os
acólitos seguiram, e o alcaide, os soldados, o carrasco e a indiada toda
desandou, como em procissão emparvados, num assombro, e sem ter mais do
que tremer, porque ventos, fogo, urubus e estrondos se humilharam, fenecendo,
dominados!...
Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar e mesmos ferros posto.
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que
iam minguando, em retirada... mas também ouvindo com os ouvidos do
pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu rosto viam a
consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do
pensamento viam a tentação do riso mimoso de teiniaguá; o nariz do meu rosto
tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as santidades... mas
o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a teiniaguá
tanto gostava; a língua da minha boca estava seca, de agonia, dura, de terror,
amarga, de doença... mas a língua do pensamento saboreava os beijos de
teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido
ao nascer do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me
prendiam por braços e pernas... mas o tato do pensamento roçava sôfrego pelo
corpo da encantada, torneado e rijo, que se encolhia em ânsias, arrepiado com
um lombo de jaguar no cio, que se estendia planchado como um corpo de
cascavel em fúria...
E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia eu chegando à barranca do
Uruguai; tanto como as gentes, lá, iam acabando as orações para alcançar a
clemência divina, ia eu começando o meu fadário, todo dado à teiniaguá, que
me enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de
mulher, que vale mais que destino de homem!...
Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo,
sem peso de remorsos na alma, passei o rio pelo lado do nascente. A teiniaguá
fechou os tesouros da outra banda, e juntos fizemos então caminho para o cerro
do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos
outros lugares.
Para a memória do dia tão espantoso, lá ficou o sangão rasgado na baixada
da cidade de Santo Tomé, desde o tempo antigo das Missões.
221
VI
Faz duzentos anos que aqui estou: aprendi sabedorias árabes e tenho
tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é um peso
entre o mandar e o ser mandado...
Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...
Passeio no palácio maravilhoso, dentro deste cerro do Jarau, ando sem
parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso torrões de ouro em pó, que
se desfazem como terra fofa; o areão dos jardins, que calco, enjoado, é todo feito
de pedras verdes e amarelas e escarlates, azuis, rosadas, violetas... e quando a
encantada passa todas incendeiam-se num íris de cores rebrilhantes, como se
cada uma fosse uma brasa viva faiscando sem a mais leve cinza...; há poços
largos que estão atulhados de dobrões e de onças e peças de joias e armaduras,
tudo ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo cunhado com
os troféus dos senhores reis de Portugal e de Castela e Aragão.
E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre
os homens, como quando era como eles e como eles gemia necessidades e
cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dia de maldades e sempre
aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía...
O encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens
de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a sorte nesta salamanca
que eu tornei famosa, do Jarau.
Muitos têm vindo... e têm saído piorados, para lá longe irem morrer do medo
aqui pegado, ou andarem pelos povoados assustando as gentes, loucos, ou
pelos campos fazendo vida com os bichos brutos...
Poucos toparam a parada... ah!... mas esses que toparam tiveram o que
pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada, não desmente o que eu
prometo, nem retoma o que dá!
E todos os que chegam deixam um resgate de si próprios para o nosso
livramento um dia...
Mas todos que vieram são altaneiros e vieram arrastados pela ânsia da
cobiça ou dos vícios ou dos ódios: tu foste o único que veio sem pensar e o único
que me saudou como filho de Deus...
Foste o primeiro até agora; quando terceira saudação de cristão bafejar
estas alturas, o encantamento cessará, porque eu estou arrependido... e, como
Pedro Apóstolo que três vezes negou Cristo foi perdoado, eu estou arrependido
e serei perdoado.
Está escrito que a salvação há de vir assim; e por bem de mim, quando
cessar o meu cessará também o encantamento de teiniaguá: e quando isso se
der a salamanca desaparecerá, e todas as riquezas, todas as pedras finas, todas
as peças cunhadas, todos os sortilégios, todos os filtros para amar por força...
222
para matar... para vencer... tudo, tudo, tudo se virará uma fumaça que há de sair
pelo cabeço roto do cerro, espalhada nas rosas do ventos pela rosa dos
tesouros...
Tu me saudaste – o primeiro, tu! – saudaste-me como cristão.
Pois bem: alma forte e coração sereno!... quem isso tem entra na
salamanca, toca o condão mágico e escolhe do quanto quer...
Alma forte e coração sereno! A furna escura está lá: entra! Entra! Lá dentro
sopra um vento quente que apaga qualquer torcida de candeia... e tramado nele
corre outro vento frio, frio... que corta como serrilha de geada.
Não há ninguém lá dentro... mas bem que se escuta voz de gente, vozes
que falam... falam, mas não se entende o que dizem, porque são línguas
atoradas que falam, são os escravos da princesa moura, os espíritos da
teiniaguá... Não há ninguém... não se vê ninguém: mas há mãos que batem,
como convidando, no ombro do que entra firme, e que empurram, como ainda
ameaçando, o que recua com medo...
Alma forte e coração sereno! Se entrares assim, se te portares lá dentro
assim, podes então querer e serás servido!
Mas, governa o pensamento e segura a língua: o pensamento dos homens
é que os levanta acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha...
Alma forte, coração sereno!... Vai!
Blau, o guasca, apeou-se; maneou o flete e por de seguro ainda pelo
cabresto prendeu-o a um galho de cambuim que verga sem quebrar-se; rodou
as esporas para o peito do pé; aprumou de bom jeito o facão; santiguou-se e
seguiu...
Calado fez; calado entrou.
O sacristão levantou-se, e o seu corpo desfez-se em sombra na sombra da
reboleira.
O silêncio que então se desdobrou era como o voo parado das corujas:
metia medo...
VII
Blau Nunes foi andando.
Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por causa da
enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo era tudo escuro...
Andou mais, num corredor dumas braças; mais, ainda; sete corredores
nasciam desse.
Blau Nunes foi andando.
Enveredou por um deles; fez voltas e contravoltas, subiu, desceu. Sempre
escuro. Sempre silêncio.
223
Mãos de gente, sem gente que ele visse, batiam-lhe no ombro.
Numa cruzada de carreiros sentiu ruído de ferros que se chocavam, tinir de
muitas espadas, seu conhecido.
Por então o escuro ia já mudado num luzir de vaga-lume.
Grupos de sombras com feitio de homens peleavam de morte; nem pragas
nem fuzilar d'olhos raivosos, porém furiosos eram os golpes que elas iam
talhando umas nas outras, no silêncio.
Blau teve um relance de parada, mas atentou logo no dizer do vulto de face
branca e tristonha – Alma forte coração sereno...
E meteu o peito por entre o espinheiro das espadas, sentiu o corte delas, o
fino das pontas, o redondo dos copos... mas passou, sem nem olhar aos lados,
num entono, escutando porém choros e gemidos dos peleadores.
Mãos mais leves bateram-lhe no ombro, como carinhosas e satisfeitas.
Outro mais ruído nenhum ouvia ele no ar quieto da furna que o rangido dos
cabrestilhos das suas esporas.
Blau Nunes foi andando.
Andando numa luz macia, que não dava sombra. Enredada como os
caminhos dum cupim era a furna, dando corredores sem conta, a todos os
rumos; e ao desembocar do em que vinha, justo num cotovelo dele, saltaram-lhe
aos quatro lados jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente, patas
levantadas mostrando as unhas, a cola mosqueando, numa fúria...
E ele meteu o peito e passou, sentindo as cerdas duras das feras roçaremlhe o corpo; passou sem pressa nem vagar, escutando os urros que para trás
iam ficando e morrendo sem eco...
As mãos, de braços que ele não via, em corpos que não sentia, mas que,
certo, o ladeavam, as mãos iam-lhe sempre afagando os ombros, sem bem o
empurrar, mas atirando-o para adiante... adiante...
A luz ia na mesma, cor da de vaga-lume, esverdeada e amarela...
Blau Nunes foi andando.
Agora era um lançante e ao fim dele parou num redondel topetado de
ossamentas de criaturas. Esqueletos, de pé, encostados uns nos outros, muitos
derreados, como numa preguiça: pelo chão caídas, partes deles, despencadas;
caveiras soltas, dentes branqueando, tampos de cabeças, buracos de olhos;
pernas e pés em passo de dança, alcatras e costelas meneando-se num vagar
compassado, outras em saracoteio...
Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da
cruz...; porém ruído – alma forte, coração sereno! – meteu o peito e passou
entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas juntas bolorentas.
As mãos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra vez os ombros...
Blau Nunes foi andando.
O chão ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem aumentar a
respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de passar por uma como a
224
porta dele, e aí dentro era um jogo de línguas de fogo, vermelho e forte, como
atiçado com a lenha de nhanduvai; e repuxos d'água, saídos das paredes,
batiam nele e referviam, chiando, fazendo vapor; um ventarrão rondava ali
dentro, enovelando águas e fogos, que era uma temeridade cortar aquele
turbilhão...
Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormaço das labaredas.
As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer –
muito bem!
Blau Nunes foi andando.
Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no silêncio
como que um peso de arrobas; a claridade mortiça, porém, já se lhe assentara
nos olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e caminho, um corpo
enroscado, sarapintado e grosso, batendo no chão uns chocalhos, grandes
como ovos de téu-téu.
Era a boicininga, guarda desta passagem, que levantava a cabeça
flechosa, lanceando o ar com a língua de cabelos, preta, firmando no vivente a
escama dos olhos, luzindo, preto, como botões de veludo...
Das duas presas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de
sobreano, pingava uma goma escura, que era a peçonha sobrante por um muito
jejum de mortandade, lá fora...
A boicininga – a cascavel amaldiçoada – toda se meneava, chocalhando
os guizos, como por aviso, fueirando o ar com a língua, como por prova...
Uma serenada de suor minou na testa do paisano... porém ele meteu o
peito e passou, vendo, sem olhar, a boicininga altear-se e descair, chata e
tremente... e passou, ouvindo o chocalho da que não perdoa, o sibildo da que
não esquece...
E logo então, que era este o quinto passo de valentia que vencera sem
temer - de alma forte e coração sereno - logo então as mãos voantes anediaramlhe o cabelo, palmearam-lhe mais chegadas os ombros.
Blau Nunes foi andando.
Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce
que ele não conhecia; em toda volta árvores enfloradas e estadeando frutos;
passarinhada de penas vivas e cantoria alegre; veadinhos mansos; capororocas
e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e listando a meio o campestre,
brotado duma roça coberta de samambaias, um olho-d’água, que saía em toalha
e logo corria em riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areão solto,
palhetado de malacachetas brancas, como uma farinha de prata...
E logo uma ronda de moças – cada qual que mais cativa! –, uma ronda
alegre saiu dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo, a ele Blau, gaúcho pobre,
que só mulheres de anáguas resvalonas conhecia...
Vestiam-se umas em frouxo trançado de flores, outras de fios de contas,
outras na própria cabeleira solta...; estas chegavam-lhe à boca caramujos
estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando entre vidros frios,
como de geada; dançavam outras num requebro marcado como por música...
225
outras lá acenavam-lhe para a lindeza dos seus corpos, atirando no chão
esteiras macias, num convite aberto e ardiloso...
Porém ele meteu o peito e passou, com as fontes golpeando, por motivo
do ar malicioso que o seu bofe respirava...
Blau Nunes foi andando.
Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anões, cambaios
e cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em piruetas e mesuras,
fandangueiros e volantins, pulando como aranhões, armando lutas, fazendo
caretas impossíveis para rostos da gente...
Porém o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar de
riso no canto dos olhos...
E com este, que era o último, contou os sete passos das provas.
E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e branca,
que, certo, lhe andara nas pisadas, de companheiro – sem corpo – e sem nunca
lhe valer nos apuros do caminho; e tomou-lhe a mão.
E Blau Nunes foi seguindo.
Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia um
socavão reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores
como as do arco-íris, estava uma velha, muito velha, carquincha e curvada, e
como tremendo de caduca.
E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava e tangia e atava
em nós que se desfaziam, laçadas que se deslaçavam e torcidas que se
destorciam, ficando sempre linheira.
– Cunhã, disse o vulto, o paisano quer!
– Tu vieste; tu chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha.
E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas, e levantou a
varinha para o ar: logo o condão coriscou por sobre ela uma chuva de raios, mais
que como num temporal desfeito das nuvens carregadas cairia. E disse:
– Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe!
Para ganhar a parada em qualquer jogo... de naipes, que as mãos ajeitam, de
dados, que a sorte revira, de cavalos, que se cotejam, do osso, que se sopesa,
da rifa... queres?
– Não! – disse Blau, e todo o seu parecer foi se mudando num semblante
como de sonâmbulo, que vê o que os outros não veem... como os gatos, que
acompanham com os olhos cousas que passam no ar e ninguém vê...
– Para tocar a viola e cantar... amarrando nas cordas dela o coração das
mulheres que te escutarem... e que hão de sonhar contigo e ao teu chamado
irão – obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras –, deitar-se
entregues ao dispor de teus beijos, ao apertar dos teus braços, ao resfolegar dos
teus desejos... queres?
– Não! – respondeu a boca, por mandado só do ouvido...
– Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim poderes
curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que aborreceres;...
226
e saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucuras, para tirar a fome, relaxar
o sangue, e gretar a pele e espumar os ossos...; ou para ligar apartados, achar
cousas perdidas, descobrir invejas...; queres?
– Não!
– Para não errar o golpe – de tiro, lança ou faca – em teu inimigo, mesmo
no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou prevenido, mais forte
que tu ou astucioso...; queres?
– Não!
– Para seres mandão no teu distrito e que todos te obedeçam sem
resmungos...; seres língua com os estrangeiros e que todos te entendam...;
queres?
– Não!
– Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo pelo...; queres?
– Não!
– Para fazeres pintura em tela, versos harmoniosos, novelas de
sofrimentos, autos de chocarrice, músicas de consolar, lavores no ouro, figuras
no mármore, queres?
– Não!
– Pois que em sete poderes te não fartas, nada te darei, porque do que te
foi prometido nada quiseste. Vai-te!
Blau nem se moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou no
que queria dizer e não podia e que era assim:
– Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És tudo o que
eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim,
superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!...
Mas uma escuridão fechada, como nem noite a mais escura dá parelha,
caiu sobre o silêncio que se fez, e uma força torceu o paisano.
Blau Nunes arrastou um passo e outro e o terceiro; e desandou caminho; e
quando ele andara em voltas e contravoltas, em subidas e descidas, tanto em
direitura foi bater na boca na furna por onde ele havia entrado, sem engano.
E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as mesmas restingas, ao longe
os mesmos descampados mosqueados de pontas de gado, a um lado o
encordoado das coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro prateado,
que era água do arroio.
Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir e de responder; dormido,
não tinha, nem susto lhe tirara o entendimento.
E pensou que tendo tido oferta de muito não lograra nada por querer tudo...;
e num arranco de raiva cega decidiu outra investida.
Voltou-se para entrar de novo... mas bateu co'o peito na parede dura do
cerro. Terra maciça, mato cerrado, capins, limos... e nenhuma fresta, nem
brecha, nem buraco, nem furna, caverna, toca por onde escorresse um corpinho
de guri, quando mais passasse porte de homem!...
227
Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e montou; e ao dar de rédea
apareceu-lhe pelo lado de laçar o sacristão, o vulto de face branca e tristonha,
que tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo:
– Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste, mas não
soubeste governar o pensamento nem segurar a língua!... Não te direi se bem
fizeste ou mal. Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente,
que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ela te dará
tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma e uma e nunca mais que
uma por vez; guarda-a em lembrança de mim!
E o corpo do sacristão encantado desfez-se em sombra na sombra da
reboleira...
Blau Nunes meteu na guaiaca a onça furada e deu de rédea.
O sol tinha cambado, e o cerro do Jarau já fazia sombra comprida sobre os
bamburrais e restingas que lhe formavam assento.
VIII
Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira no chão
tendo por porta um couro, Blau rumeou para uma venda grande que sortia aquele
vizindário, mesmo a troco de courama, cerda ou algum tambeiro; e, como vinha
de garganta seca e cabeça atordoada, mandou botar uma bebida.
Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa, e
o câmbio que veio, tanto, que pasmou, olhando para ele, de tão desacostumado
que andava de ver dinheiro tanto, que chamasse seu...
E de dedos engatanhados socou-o todo para dentro da guaiaca, sentindolhe o peso e o sonido afogado.
Calado, montou de novo, retirando-se.
No caminho foi pensando nas todas as cousas que carecia e que iria
comprar. Entre aperos e armas e roupas, um lenço grande e umas botas, outro
cavalo, umas esporas e embelecos que pretendia, andava tudo por uma mão
cheia de cruzados; e a si próprio perguntava se aquela onça encantada, dada
para indez, teria mesmo o condão de entropilhar outras muitas tantas como as
que precisava, e mais ainda, outras que o seu desejo fosse despencado?!...
Chegou ao posto e, como homem avisado, não falou do que fizera durante
o dia, apenas do boi barroso, que campeou e não achou; e, no seguinte, logo
cedo saiu a empeçar a prova do prometido.
Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma
adaga de cabo e bainha com anéis de prata; e mais umas esporas e um
rebenque de argolão.
Toda a compra passava de três onças.
E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer
o carrinho, piscando os olhos, a respiração atropelada, todo ele numa
228
desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau remendado começou a
gargantear e guaiaca... e caiu-lhe na mão uma onça... e outra... e outra... e
outra!... As quatro, que por agora eram tão de jeito!...
Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas, porém
sim de uma em uma, as quatro, de cada vez só uma...
Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas, como homem avisado, não
falou do acontecido.
No outro dia seguia outro rumo, para outro negociante mais forte e de
prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e,
muito em ordem, foi encomendando o aparte das cousas, tendo cuidado em não
querer nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no caso de falhar a onça,
recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não sendo obrigado a pagar
estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados pra
menos.
E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a
gargantear a guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma onça... e segunda...
outra... e quarta, mais outra, e sexta... e assim de uma em uma, as quinze
necessárias!
O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão as moedas
conforme vinham elas minando da mão do pagador e, quando estavam todas
disse, entre risonho e desconfiado:
– Cuê-pucha!... cada onça das suas parece que um pinhão, que é preciso
descascar à unha!...
No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e
ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à sua vontade, e, como facilitou o preço,
fechou-se o trato.
Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada, iam fazendo mover-se os
animais; no apinhado de todas, Blau marcava a cabeça que mais lhe agradava
pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; como um sovéu fino, de armada
pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o bagual escolhido; se ainda,
sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o então, como seu, para o potreiro
do piquete.
Olho de campeiro, não errou vez alguma a escolha, e trinta cavalos, a flor,
foram apartados, custando quarenta e cinco onças.
E enquanto a tropa verdeava e bebia, os tratistas foram para a sombra
duma figueira que havia na beira da estrada.
Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiando,
começou a gargantear a guaiaca... e foi logo aparando, onça por onça, uma,
duas, três, seis, dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta, quarenta e cinco!...
229
O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, não se conteve e
disse:
– Amigo! As suas onças parecem talas de jerivá, que só cai uma de cada
vez!...
Depois desses três dias de prova Blau acreditou na onça encantada.
Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeças,
aquerenciado.
O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento.
Aí o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar
onça por onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!...
Cansou-lhe o braço, cansou-lhe o corpo, não falhava golpe, mas tinha de
ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo...
O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou,
sesteou; e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando
onça trás onça!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.
Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se por ele,
gaúcho despilchado de ontem, pobre, que só tinha de seu as chilcas, afrontar os
abonados, assim, do pé, para a mão... E também era falado o seu esquisito modo
de pagar – que pagava sempre, valha a verdade – só de onça por onça, uma
depois de outra e nunca, nunca ao menos duas, acolheradas!...
Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para ver
como aquilo era; e para todos era o mesmo mistério...
Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas de onça em
onça, como tala de jerivá, que só cai uma de cada vez... como pinhão de serra,
que só se descasca de um em um!...
Mistério para Blau, muito rico... muito rico... Mas todo o dinheiro que ele
recebia, que entrava das vendas feitas, todo o dinheiro que lhe pagavam a ele,
todo desaparecia, guardado na arca de ferro, desaparecia como desfeito em ar...
Muito rico... muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram para
gastar no que lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas começam
a pingar; mas nenhuma das que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se, como
água em tijolo quente...
IX
Então começou a correr um boquejo de ouvido para ouvido... e era que ele
tinha parte com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito, porque todos com
quem tratava e recebiam as suas onças, todos entravam, ao depois, a fazer
230
maus negócios e todos perdiam em prejuízos exatamente a quantia igual à de
suas mãos recebida.
Ele comprava e pagava à vista, é certo, o vendedor contava e recebia, é
certo... mas o negócio empreendido com esse valor era de prejuízo garantido.
Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido, que ele guardava e
rondava, sumia-se como vento, e não era roubado nem perdido; era sumido, por
si mesmo...
O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era mandinga
arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita... e que
lá é que se jogava a alma contra a sorte...
E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros,
mais sorros, pra lá tocavam-se ao escurecer, outros, atrevidaços, iam à meianoite, outros ainda ao primeiro cantar dos galos...
E como nesse carreio de precatados cada um fazia por ir de mais
escondido, sucedeu que como sombras se pechavam entre as sombras das
reboleiras, sem atinar co'a salamanca, ou sem topete para, na escuridão,
quebrar aquele silêncio, chamado o santão, num grito alto...
No entanto Blau começou a ser tratado de longe, como um chimarrão
rabioso...
Já não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava,
rodeado dos cachorros, que uivavam às vezes um, às vezes todos...
A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes
nada compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam
campo para não pararem nos seus galpões...
Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de
isolamento, que o ralava e esmorecia...
Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada sentiu aos dois lados barulho
nos bamburrais e nas restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado
xucro que disparava e não fez caso; foi trepando. Mas não era, não, gado xucro
espantado, nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era gente, gente que se
escondia uns dos outros e dele...
Assim chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada, e como
chegou, deu de cara com um vulto de face branca e tristonha, o sacristão
encantado, o santão.
Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou,
como da outra:
– Laus Sus-Cris!
– Para sempre, amém! – respondeu o vulto.
231
Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe aos pés a onça de ouro, dizendo:
– Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza dessa onça, que não
se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha
e separa o dono dos outros donos de onças!... Adeus! Fica-te com Deus,
sacristão!
– Seja Deus louvado! – disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos postas,
como numa reza. Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com
ele quebraste o encantamento!... Graças! Graças! Graças!...
E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava o
Nome Santo, nesse mesmo instante ouviu-se um imenso estouro, que retumbou
naquelas vinte léguas em redor, o cerro de Jarau tremeu de alto a baixo, até às
suas raízes, nas profundas da terra, e logo, em cima, no chapéu do espigão,
apareceu, cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se uma língua de fogo,
alta como um pinheiro, apagou-se, e começou a sair fumaça negra, em rolos
grandes, que o vento ia tocando para longe, por cima do encordoado das
coxilhas, sem rumo feito, porque a fumaceira inchava-se e desparramava-se no
ar, dando voltas e contravoltas, torcendo-se, enroscando-se, em altos e baixos,
num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e se desmancha
como água passada em regador...
Era a queima dos tesouros da Salamanca, como dissera o sacristão.
Sobre as caídas do Cerro levantou-se um vozerio e tropel: eram os maulas
que andavam rastreando a furna encantada e que agora fugiam, desguaritados,
como filhotes de perdiz...
X
Para os olhos de Blau, o cerro ficou como de vidro transparente, e então
viu ele o que lá dentro se passava: os brigões, os jaguares, os esqueletos, os
anões, as lindas moças, a boicininga, tudo, torcido e enovelado, amontoado,
revolvido, corcoveava dentro das labaredas vermelhas que subiam e apagavamse dentro dos corredores, cada vez mais carregados de fumaça... e urros, gritos,
tinidos, silbidos, gemidos, tudo se confundia no tronar da voz maior que
estrondeava no cabeço empenachado do cerro.
Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a
teiniaguá, na princesa moura... a moura numa tapuia formosa...; e logo o vulto
de face branca e tristonha tornou à figura do sacristão de Santo Tomé, o
sacristão, por sua vez, num guasca desempenado...
E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das outras
aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de lugar distante, aquele par, juntado
e tangido pelo Destino, que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos
dadas como namorados, deu costas ao seu desterro e foi descendo a pendente
do coxilhão, até à várzea limpa, plana e verde, serena e amornada de sol claro,
232
toda bordada de boninas amarelas, de bibis roxas, de malmequeres brancos,
como uma cancha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de
alegria, a caminho do repouso!...
Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre seu peito uma cruz
larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e d'espacito foi
baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como se dentro
dele cantasse o passarinho verde...
E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria
em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em
paz a sua vida!...
Assim acabou a salamanca do cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos,
que tantos se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas
principiaram.
Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais visto. Dizem que,
desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem tenência que a
teiniaguá era mulher...
Comentários ao conto de base lendária A salamanca do Jarau
Por lendas se entendem narrativas oriundas da cultura popular. As lendas
nascem dialogicamente de múltiplas vozes, muitas vezes em espaços
geográficos diversos e em situações históricas diferentes. Elas têm fundamentos
verídicos e geralmente incluem episódios misteriosos. É comum igualmente que
contenham elementos míticos. O texto comentado agora, pelas razões antes
expostas e pelos fatos de ter autor definido, ter sido composto sobre o papel,
captado da oralidade, com narrador ficcional, composto com requintes de arte
narrativa planejada, não precisa ser classificado necessariamente como lenda,
mas como conto de base (ou fundamentação) lendária.
No título se expõem elementos fundamentais que encaminham à leitura do
texto. A palavra salamanca se origina de forma de saudação árabe. Salamaleque
(cumprimento em que há reverência a quem se cumprimenta) tem a mesma
origem. Termo e significado chegaram à nossa língua pelo espanhol. Designa
cova de rio, furna de barranca de rio, gruta natural. Designa também mistério,
algo que não se explica com simplicidade ou não se esclarece na racionalidade
comum. No caso do texto comentado agora, os dois significados são possíveis
e coerentes.
O motivo pelo qual a palavra salamanca passou a designar significados
relacionados a mistério se explica pelo fato de os árabes terem dominado a
Península Ibérica por setecentos anos. Deixaram lá muitas marcas culturais. Um
dos domínios árabes era a alquimia (depois, química). Esses procedimentos
alquímicos eram guardados em segredo. Como eram reservados, o termo ligou
233
semanticamente esses segredos a mistérios, que se executavam em locais
incertos, retirados da convivência social, como as furnas.
O título, portanto, além de outros significados possíveis, diz algo como os
mistérios da furna do Jarau, que se pode ampliar, depois de lido o texto, para
respostas mítico-lendárias; p. ex.: explicação de como este povo [os gaúchos]
chegou aqui? qual é a sua formação?
A construção estilística do texto o coloca em condição privilegiada, mesmo
na obra de Lopes Neto, que se carateriza por destacado trabalho artístico. Assim
também, os lances de sabedoria perpassam a narrativa e condicionam ampliada
extensão cultural ao leitor. Eis por que – um dos motivos – é texto para ser lido
atentamente.
José Bento MONTEIRO LOBATO
Monteiro Lobato é o mais bem reputado escritor de textos para a infância
do Brasil. Nasceu em 1882, em Taubaté (SP), e faleceu em 1948, na capital
paulista. Quando estudante, participou do grupo O Cenáculo. Nessa época,
escreveu crônicas e artigos irreverentes. Em 1907 foi para Areias como promotor
público. Casou-se, teve três filhos. Em 1918 lançou, com êxito, seu primeiro livro
de contos, Urupês. Fundou a Editora Monteiro Lobato & Cia, melhorou a
qualidade gráfica vigente no Brasil, lançou autores inéditos e faliu. Em 1920
lançou A menina do nariz arrebitado, com desenhos e capa de Voltolino, obra
que foi adotada em escolas. Conseguiu edição numericamente recorde de
50.000 exemplares. Fundou a Cia Editora Nacional. Viveu também em Buenos
Aires, como exilado, por ter sido simpatizante comunista. Traduziu muito e teve
suas obras traduzidas e transformadas para outras linguagens de grande
alcance popular. Marca sua obra para a infância o título Sítio do Pica-pau
Amarelo, que a televisão popularizou e que atualmente aparece na entrada da
fazenda que lhe pertenceu, em Taubaté.
Negrinha
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha
escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os
pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre
escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos
padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu.
Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali
bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo.
234
Uma virtuosa senhora em suma – “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio
da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva.
Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não
suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste
criança, gritava logo nervosa:
– Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da
criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do
quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
– Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou
frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha – magra, atrofiada, com os olhos eternamente
assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a
pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação
ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora
risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos
de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punhaa na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
– Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
– Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo
corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas – um cuco tão
engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a
bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um
instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar
trancinhas sem fim.
Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de
carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto
gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo – não
tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em
que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e
Negrinha viu-se logo apelidada assim – por sinal que achou linda a palavra.
Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um
gostinho só na vida – nem esse de personalizar a peste...
235
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele
os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne
exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce
para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se
descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a
careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da
escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir
cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo – essa
indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! Qualquer
coisinha: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma
novena de relho porque disse: Como é ruim a sinhá!...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a
gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente
derivativo:
– Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade.
Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente.
Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de
dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho,
com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A
esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma –
divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para doer fino nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha
um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo.
Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha – coisa de
rir – um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não
sofreou a revolta – atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os
dias.
– Peste? Espere aí! Você vai ver quem é peste – e foi contar o caso à
patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara
iluminou-se.
– Eu curo ela! – disse, e desentalando do trono as banhas foi para a
cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
– Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta,
gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus
olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto,
236
aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto,
a boa senhora chamou:
– Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
– Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então,
com uma colher, tirou da água pulando o ovo e zás! na boca da pequena. E antes
que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse.
Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos
chegaram a perceber aquilo. Depois:
– Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o
vigário que chegava.
– Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela
pobre órfã, filha da Cesária – mas que trabalheira me dá!
– A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora – murmurou
o padre.
– Sim, mas cansa...
– Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
– Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas
suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de
plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como
dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos
novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada
para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime
brincar? Estaria tudo mudado – e findo o seu inferno – e aberto o céu? No enlevo
da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela
alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão
no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar,
pestinha! Não se enxerga”?
237
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral –
sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos – a triste criança
encorujou-se no cantinho de sempre.
– Quem é, titia? – perguntou uma das meninas, curiosa.
– Quem há de ser? – disse a tia, num suspiro de vítima. – Uma caridade
minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas
brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.
– Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! – refletiu com suas lágrimas,
no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o
cuco.
Chegaram as malas e logo:
– Meus brinquedos! – reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca
imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma
criancinha de cabelos amarelos... que falava mamã... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer
sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
– É feita?... – perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a
providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o
ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado
encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
– Nunca viu boneca?
– Boneca? – repetiu Negrinha. – Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
– Como é boba! – disseram. – E você como se chama?
– Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da
bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
– Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que
ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito,
como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com
assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... Era como
se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse
238
vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa,
já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim,
apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e
tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal
bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance
pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E
incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do
mundo – estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
– Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas
não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na
princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a
natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca –
preparatório –, e o momento dos filhos – definitivo. Depois disso, está extinta a
mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma
alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que
desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de
ente humano. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia impossível viver a
vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi – e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a
casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra,
inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada
nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a
expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos,
cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu
doloroso inferno, envenenara-a.
239
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda
boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir.
Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.
Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de
bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos
remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça – abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida,
confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez
o cuco lhe apareceu de boca aberta. Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de
terceira – uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica,
na memória das meninas ricas.
– “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
– “Como era boa para um cocre!...”
Comentários ao conto Negrinha
Em geral, os teóricos do conto consideram o diálogo textual elemento muito
positivo desse tipo de narrativa. Negrinha é um conhecido e elogiado conto
brasileiro. Alguns contos como esse têm colocado Lobato ao lado dos mais
renomados contistas brasileiros, como Machado de Assis e Lopes Neto.
Negrinha, como outros textos do autor, começam a resgatar dignidades,
através da construção de personagens representativos de camadas
desprestigiadas da população. Da maneira como isso ocorreu na literatura
brasileira, é possível considerar que essa é uma das boas contribuições do Prémodernismo. O Modernismo ampliaria e aprofundaria isso. O conto em questão,
ao tempo em que olha para a figura da desamparada personagem, procura
também prospectar como o olhar dela teria visto o mundo.
Do ponto de vista estilístico, encontram-se elementos naturalistas, realistas
e românticos no texto. Como elementos naturalistas, podem-se citar, p. ex.,
aspetos chocantes de personagens, o anticlericalismo, a contundência. Como
elementos realistas, aparece o delineamento psicológico, às vezes até
escancarado, dos personagens. Como elementos românticos, é possível serem
citados, p. ex., a utilização da figura dos anjos como simbólica da beleza e da
240
pureza e o toque sentimental do conto. Essa confluência de estilos é caraterística
dos textos pré-modernistas, como se sabe.
Afonso Henriques de LIMA BARRETO
Nasceu no Rio de janeiro, em 1881. Estudante na Escola Politécnica, em
1902, colaborou em jornais acadêmicos. Com doença do pai, em 1903, Lima
Barreto foi obrigado a deixar a faculdade para sustentar a família. Ingressou
como amanuense na Secretaria da Guerra. Em 1905 passou a trabalhar como
jornalista profissional. Em 1907, fundou a revista Floreal. Em 1909, apareceu em
Lisboa o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado pelo
editor M. Teixeira. Em 1911, o romance Triste fim de Policarpo Quaresma
começa a ser editado em folhetins. Em 1912, Lima Barreto publicou, além de
relatos folhetinescos, a sátira Numa e a ninfa. Em 1916, foi internado para
tratamento de saúde. Em 1917, passou a atuar na imprensa anarquista. Em
1918, por ter sido considerado inválido para o serviço público, foi aposentado.
Em 1922, morreu em casa, de colapso cardíaco.
Triste fim de Policarpo Quaresma
(excerto do capítulo 1, Patriotas, da 3ª parte)
O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava. Uma
chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador, e a sua atenção
convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao ouvido de Floriano,
cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O marechal quase não falava: movia
com a cabeça ou pronunciava um monossílabo, coisa que Quaresma percebia
pela articulação dos lábios.
Começaram a sair. Apertavam a mão do ditador, e um deles, mais jovial,
mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão mole, bateu-lhe no
ombro com intimidade, e disse alto e com ênfase:
– Energia, marechal!
Aquilo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo cerimonial
da República, que ninguém, nem o próprio Floriano, teve a mínima surpresa; ao
contrário, alguns até sorriam alegres por ver o califa, o cã, o emir, transmitir um
pouco do que tinha de sagrado ao subalterno desabusado. Não se foram todos
imediatamente. Um deles demorou-se mais a segredar coisas à suprema
autoridade do país. Era um cadete da Escola Militar, com a sua farda azulturquesa, talim e sabre de praça de pré.
Os cadetes da Escola Militar formavam a falange sagrada.
241
Tinham todos os privilégios e todos os direitos; precediam ministros nas
entrevistas com o ditador e abusavam dessa situação de esteio do Sila, para
oprimir e vexar a cidade inteira.
Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências, e uma
religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a autoridade,
especialmente Floriano e vagamente a República, em artigo de fé, em feitiço, em
ídolo mexicano, em cujo altar todas as violências e crimes eram oblatas dignas
e oferendas úteis para a sua satisfação e eternidade.
O cadete lá estava...
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar
em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador
Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum
aos seus caprichos, às suas franquezas e vontades, nem nas leis, nem nos
costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a
que se agarrava uma grande mosca, os traços flácidos e grosseiros; não havia
nem o desenho do queixo ou o olhar que fosse próprio, que revelasse algum
dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de
tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso
– parecia não ter nervos.
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a
inteligência e o temperamento. Essas coisas não vogam, disse ele de si para si.
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e
desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e
conhecedor das necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie
de Luís XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma
ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano
uma qualidade predominante: tibieza de ânimo e, no seu temperamento, muita
preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça
mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma
insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou,
tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.
Quando diretor do arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar
o expediente respectivo; e, durante o tempo em que foi ministro da Guerra,
passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que legou ao
seu substituto um trabalho avultadíssimo.
Quem conhece a atividade papeleira de Colbert, de um Napoleão, de um
Filipe II, de um Guilherme I, da Alemanha, em geral todos os grandes homens
de Estado, não compreende o descaso florianesco pela expedição de ordens,
explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas. Certamente
242
necessárias deviam ser tais transmissões para que o seu senso superior se
fizesse sentir e influísse na marcha das coisas governamentais e administrativas.
Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus
misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas
encruzilhadas dos talvezes, que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação
nacionais, mendigas de heróis e grandes homens.
Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto
de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro
extraordinário.
Toda gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de
governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da fortaleza de
Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o com medo que as
pessoas indicadas como instigadoras não fizessem outra sedição e, não
contente com isto, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas.
Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão,
que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha com eles
as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu nome servisse de
lábaro para uma vasta série de crimes de toda espécie.
Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atmosfera de má vontade
Napoleão assumiu o comando do exército da Itália. Augereau, que o chamava
general de rua, disse a alguém, após lhe ter falado: “O homem meteu-me medo”;
e o corso estava senhor do exército, sem batidelas no ombro, sem delegar tácita
ou explicitamente a sua autoridade a subalternos irresponsáveis.
De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro mostra
bem a incerteza, a vacilação de vontade de um homem que dispunha daqueles
extraordinários recursos que estavam às suas ordens.
Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus
movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado,
alguma coisa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da
civilização.
Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas
propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria morrer sem
deixar à família as suas propriedades agrícolas desoneradas do peso da dívidas.
Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava repousava
nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse
jogo com pau de dois bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos
lugares que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à presidência da República. A
hipoteca do Brejão e do Duarte foi o seu nariz de Cleópatra...
A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo lar
deram em resultado esse homem-talvez que, refratado nas necessidades
243
mentais e sociais do homem do tempo, foi transformado em estadista, em
Richelieu, e pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor,
obtendo vidas, dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo.
Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o amparam, que o animaram, que
o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido ajudante general
do Império, senador, ministro, isto é, após se ter fabricado à vista de todos e
cristalizado a lenda na mente de todos.
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia,
nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal,
castiga-se. Levada a coisa ao grande, portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter
opiniões contrárias às suas, e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém,
prisão e morte. Não há dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em
circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas, e a sopa é
pouca: põe-se mais água.
Demais, a educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa
concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua
perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza
com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.
Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens
honestos e sinceros do tempo foram tomados pelo entusiasmo contagioso que
Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino reservava
àquela figura plácida e triste; na reforma radical que ele ia levar ao organismo
aniquilado da pátria, que o major se habituara a crer a mais rica do mundo,
embora, de uns tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos.
Decerto, ele não negaria tais esperanças, e a sua ação poderosa havia de
se fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, levandolhes estradas, segurança, proteção aos fracos, assegurando o trabalho e
promovendo a riqueza.
Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu
companheiro de espera, desde que o marechal lhe falou familiarmente, começou
a considerar aquele homem pequenino, taciturno, de pince-nez e foi-se
chegando, se aproximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quase como
um terrível segredo.
– Eles vão ver o cabloco... O major há muito que o conhece?
Respondeu-lhe o major, e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o
presidente, porém, ficara só, e Quaresma avançou.
– Então, Quaresma? fez Floriano.
– Venho oferecer a Vossa Excelência os meus fracos préstimos.
244
O presidente considerou um instante aquela pequenez de homem, sorriu
com dificuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu por aí a
força de sua popularidade e se não a razão boa de sua causa.
– Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o arsenal.
Floriano tinha essa capacidade de guardar fisionomias, nomes, empregos,
situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma coisa de asiático; era
cruel e paternal ao mesmo tempo.
Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a ocasião para lhe falar em
leis agrárias, medidas tendentes a desafogar e dar novas bases à nossa vida
agrícola. O marechal ouviu-o distraído, com uma dobra de aborrecimento no
canto dos lábios.
– Trazia a Vossa Excelência até este memorial...
O presidente teve um gesto de mau humor, um quase não me amole e
disse com preguiça a Quaresma:
– Deixa aí...
Depositou o manuscrito sobre a mesa, e logo o ditador dirigiu-se ao
interlocutor de ainda agora:
– O que há, Bustamante? E o batalhão vai?
O homem aproximou-se mais, um tanto amedrontado:
– Vai bem, marechal. Precisamos de um quartel!... Se Vossa Excelência
desse ordem...
– É exato. Fala ao Rufino em meu nome que ele pode arranjar... Ou antes:
leva-lhe este bilhete.
Rasgou um pedaço de uma das primeiras páginas do manuscrito de
Quaresma e, assim mesmo, sobre aquela ponta de papel, a lápis azul, escreveu
algumas palavras ao seu ministro da guerra. Ao acabar é que deu com a
desconsideração:
– Ora! Quaresma! rasguei o teu escrito... Não faz mal... Era a parte de cima,
não tinha nada escrito.
O major confirmou, e o presidente, em seguida, voltando-se para
Bustamente:
– Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres?
– Eu! fez Quaresma estupidamente.
– Bem. Vocês lá se entendem.
Os dois se despediram do presidente e desceram vagarosamente as
escadas do Itamarati. Até à rua nada disseram um ao outro. Quaresma vinha um
pouco frio. O dia estava claro e quente; o movimento da cidade parecia não ter
245
sofrido alteração apreciável. Havia a mesma agitação de bondes, carros e
carroças; mas nas fisionomias, um terror, um espanto, alguma coisa de tremendo
ameaçava todos e parecia estar suspenso no ar.
Comentários ao excerto do capítulo 1, Patriotas, da 3a parte de Triste fim
de Policarpo Quaresma
As conexões entre Lima Barreto e Machado de Assis vão além de terem
sido romancistas e contistas, de terem vivido no Rio de Janeiro e de terem
atenção à vida urbana da cidade que por muitos anos centralizou o poder político
do país. A ironia é também recurso que se encontra nos textos produzidos por
ambos. Em Lima Barreto, geralmente menos sutil que em Machado de Assis,
mas nem por isso menos eficaz.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto focaliza a questão do
poder, personalizado em Floriano Peixoto e nos círculos militares fluminenses.
Desenvolve o assunto a partir de noções de patriotismo, variáveis e efêmeras,
ao sabor de interesses pessoais e corporativos dos próprios círculos do poder
político-militar. Toca, portanto, em assuntos que impõem dificuldades ao escritor,
especialmente quando os fatos sobre os quais as reflexões incidem são
cronologicamente próximos. Conhecemos o caso exemplar de Caldre e Fião,
durante o Romantismo.
No caso de Triste fim de Policarpo Quaresma, o romancista constrói o
personagem que empresta nome ao título, como exemplo de patriotismo singelo,
mas sincero. As circunstâncias que modelam o personagem possibilitam que
sejam mostradas situações, em que o leitor identifica com precisão a gama de
traições que o poder instituído inflige sobre o homem honesto e às vezes
ingênuo. Desprevenido das arapucas do poder, dos interesses corporativos, do
desprezo pela vida e pelos sentimentos de pessoas fiéis a seu amor à pátria,
esse homem, personalizado em Policarpo Quaresma, percebe tarde demais os
engodos a que foi submetido. As boas intenções não são valorizadas nem o
trabalho é recompensado. O povo é feito marginal aos processos do poder
efetivo.
Há quem veja quixotismo nas atitudes de Quaresma. Se o há, deve ser
entendido no idealismo, no que se denomina pureza, que caraterizam o
personagem. Algo disso se pode também detectar em Bentinho de Dom
Casmurro. A loucura que se pode ver no personagem de Lima Barreto é a que
alguns veem em todos que têm ideias próprias, que não se deixam guiar por
opiniões correntes, que se desviam do senso comum e que põem em prático o
que entendem como o melhor a fazer pelo bem de todos.
246
AMARO JUVENAL
Amaro Juvenal é pseudônimo de Ramiro Fortes de Barcelos. Ramiro
Barcelos nasceu em Cachoeira do Sul (RS), em 1851 e faleceu em Porto Alegre
em 1919. Adotou o pseudônimo Amaro Juvenal para a publicação de seus textos
nos jornais A federação e O novo mundo. Com esse pseudônimo assinou o
poema narrativo Antônio Chimango: poemeto campestre (1915), em que expõe
satiricamente a condição do Rio Grande do Sul sob o governo de Borges de
Medeiros. Foi Antônio Chimango a obra que perenizou o autor nas letras
brasileiras. Foi escritor, pecuarista, médico e político. Foi secretário da fazenda
do Rio Grande do Sul e embaixador do Brasil no Uruguai.
Primeira ronda
(excerto)
Para les contar a vida
Saco da mala o bandônio,
A vida de um tal Antônio
Chimango – por sobrenome,
Magro como lobisome,
Mesquinho como o demônio.
Nos cerros de Caçapava
Foi que viu a luz do dia,
À hora d'Ave Maria,
De uma tarde meio suja;
Logo cantou a coruja
Em honra de quem nascia.
Veio ao mundo tão flaquito,
Tão esmirrado e chochinho
Que, ao finado seu padrinho,
Disse espantada a comadre:
“Virgem do céu, Santo Padre!
Isto é gente ou passarinho?”
247
“Você parteira e não sabe?
Isto logo se descobre:
Terneiro de campo pobre
Não tem quartos nem papada.
É produção desgraçada,
Que não vale nem um cobre.”
“Coitadinho, está tremendo,
Sente frio o perereca.”
“Qual sente frio, isto é seca,
Meta o guri na gamela,
Dê-le uns tirões na canela,
Pra que não fique guaipeca.”
Saiu roxinho de frio,
Ansim meio encarangado,
Como um pintinho pesteado
Sai debaixo da goteira;
E o embrulhou a parteira
Nuns paninhos de riscado.
C'um naco de marmelada,
Que tirou de uma caixeta,
Arranjou-lhe uma chupeta
Que l'entrouxou pela boca;
E, escondidinho na touca,
Chupou, fazendo careta.
Co'aquele doce nos queixos
Acudiu logo o mosquedo:
Foi aprendendo bem cedo
Que, quem tem doce pra dar,
Fica logo popular,
Todo mundo o aponta o dedo.
Inda aos três anos mamava
E só dizia: – teteia,
Numa magreza mui feia,
Quase como a se sumir,
Pra dar um passo ou subir
Era só por mão alheia.
Mesmo ansim tão fanadinho,
Pescoço cheio de figas,
Levado por mãos amigas
E a bênção dos seus padrinhos,
Foi crescendo aos bocadinhos,
248
Cheio de manha e lombrigas.
Então, por aqueles tempos,
Já faz disso um ror de anos,
Uma tropa de ciganos
Acampou-se muito a gosto,
Ali por perto do posto,
Num toldo feito de panos.
Logo na manhã seguinte,
Uma mulher grande e forte,
Porém, mais feia que a morte,
Num passinho de carancho,
Veio entrando pelo rancho
Diz-que pra tirar a sorte.
Principiou a cigana
Exigindo um candieiro,
Um pelego de carneiro
E uma guampa d'água fria;
Mas, o que ela mais pedia
É que le dessem dinheiro.
Queimava lá do pelego,
Assoprava na fumaça,
E, ansim, co'aquela trapaça
E seus ares de maluca,
Armava a sua urupuca,
Nada fazia de graça:
Às meninas les dizia
Coisas de seus namorados,
Às velhas de seus pecados,
Cometidos noutras eras,
No bamborral das taperas,
Ou no fundo dos cercados.
Chegada a vez do Chimango,
Deu uma mãozinha com medo;
E ela ansim, meio em segredo,
Numa língua atravessada,
Dando uma grande risada,
Disse, apontando c'o dedo:
“Vira-bosta é preguiçoso,
Mas velhaco passarinho;
Pra não fazer o seu ninho
Se apossa do ninho alheio;
249
Este há de, segundo creio,
Seguir o mesmo caminho.
Cobra é bicho traiçoeiro,
Guaraxaim, disfarçado,
Quando se sente pegado,
Deita e se finge de morto;
Matreiro é o novilho torto,
Que se esconde no banhado.
A erva de passarinho
É praga mui conhecida
E tão mal-agradecida
Às arves em que se nutre,
Que, mais feroz que um abutre,
Mata as que le dão a vida.
O pescador se aproveita
Da minhoca, bicho à-toa,
Também muita gente boa
Se serve da mão canhota,
De um couro se faz pelota,
Quando não se tem canoa.
Ninguém se fie, portanto,
Neste tambeiro mansinho;
E o digo porque adivinho
E percebo muito bem
Na linha torta que tem
Perto do dedo minguinho.
Este, pois, que aqui se vê
C'um jeitinho de raposa,
Parece um Mané de Sousa,
Mas, isto é só na aparência;
Inda há de ter excelência,
Inda há de ser grande cousa.”
Ansim falou a cigana
E toda a gente se ria
Das bobages que dizia
Sobre a sorte do miúdo;
Amigos, aquilo tudo
Tinha de ser algum dia.
250
Comentários ao poema Antônio Chimango
Antônio Chimango tem tido constante atenção da crítica do Rio Grande do
Sul. Entre esses estudos se destacam os de Augusto Meyer, de Maria Helena
Martins e de Donaldo Schüler. Focaliza não apenas as truculências do poder
discricionário. Nesse sentido, do ponto de vista temático, aproxima-se de Triste
fim de Policarpo Quaresma. Paralelamente à questão que move o poema, a
questão dos regimes autocráticos, a temática se amplia à vida da população
geral. Também nesse sentido não está distante da proposta de Lima Barreto, no
romance comentado anteriormente. Acresce Antônio Chimango a peculiaridade
da vida do campo, no pampa gaúcho. Em consequência dessa opção técnicoestilística, o poema trabalha com discurso e sintaxe caraterísticos. Só dessa
maneira pôde captar e expressar artisticamente a cultura em que se funda.
Assim, há duas vozes vigentes no poema de Amaro Juvenal: uma de
conformação ideológico-satírica e outra de caraterização cultural do homem do
campo sul-rio-grandense. Lautério é dono da voz que fica, que traz o leitor à
recepção da totalidade do universo proposto no poema.
O poema é dividido em cinco cantos, que, em Amaro Juvenal, se chamam
de rondas. Rondas são, entre os tropeiros do pampa, as vigias que se fazem de
cuidado ao gado, nos descansos das tropas. Nesses momentos de suspensão
da marcha e descanso de parte dos tropeiros, é que Lautério, com auxílio de seu
“bandônio”, canta as sequências narrativas.
O poema se mostra judicativo, à semelhança de outros textos, como Martim
Fierro e Santos Vega, entre os gaúchos platinos, p. ex., e como Blau Nunes, em
Batendo orelha de Lopes Neto, entre os gaúchos brasileiros.
ALCIDES Castilho MAYA
Alcides Maya nasceu em São Gabriel (RS) em 1878. Foi advogado e
jornalista. Viveu na terra natal, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Publicou
Ruínas vivas (romance, 1910); Tapera (contos, 1911); Alma bárbara (contos,
1922). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1944. A obra de Maya foi construída em
discurso que marca a presença de recurso expressivos simbolistas e
naturalistas.
Em Ruínas vivas, o amor à minúcia, a preocupação de desenhar
a frase com exatidão torturada, de modo que espose a realidade em
todos os contornos, sem a omissão do menor acidente, dão muitas
vezes a impressão de uma falta de perspectiva no conjunto, e a sua
prosa míope obriga o leitor a aguçar a atenção período a período,
página a página, com prejuízo da leitura corrida. Cada capítulo
assume a importância de um todo, não há nada secundário; o
251
desenho finíssimo das nervuras mal deixa ver as folhas, ao passo que
as folhas encobrem as árvores, e as árvores por sua vez escondem a
floresta (Augusto Meyer).
Excerto do capítulo 4 do Primeiro livro de Ruínas vivas
Era uma noite de lua: as estrelas descoravam, numa cintilação argêntea
mais remota sobre o azul etéreo; diminuía de furta-cores o bruxuleio das lucíolas:
a quietude dos campos aumentara, como se derivasse do firmamento pérvio;
envolvia o espaço uma doçura infinita, misto de silêncio, de translucidez, de
olvido; e o astro já se denunciava, através de cúmulos, por uma leve claridade
velutínea. Só o Estaqueador ainda avultava sombrio, com a sua mataria em
estorço nas planícies, agigantada nas coxilhas, perdendo-se indecisa no
horizonte: o mais surgia calmo, claro, aeriforme; e, ao apontar o luar,
diademando as nuvens e difluindo no solo os seus raios mornos, rasgou-se, no
encantamento luminoso, uma dessas noites pampianas indescritíveis, em que a
asperidade campestre se esvai em opalescência e o espírito se difunde lânguido
nas lhamas de prata das superfícies desertas. O plenilúnio dealbava, em geladas
plagas ermas, as chapadas e os coles; as rochas ganhavam aparências
gigânteas, milenárias; cá e lá, ora perto, ora longe, águas deslizavam cristalinas,
em filetes, ou fulgiam derramadas, límpidas, dormentes, entre arbúsculos; o luar
refletia-se tranquilo na placa rútila das lagoas; os arroios, fluindo leves,
melancolizavam o ar a sons velados; ouvia-se as vezes um quebro mais nítido,
de linfa em despenho nalgum lançante; faúlhas corriam, ligeiras, as vaporações
esparsas, alvadias; e, à tênue cerração imponderável, fosforeada, que
diamantizava o ambiente, oscilavam para os confins da campanha, sublineadas
em neblinas alvas, formas notâmbulas, dilúcidas. Eram, na bruma sutílima,
como sombras flutuantes, passageiras; eram como brilhos intensos e fugazes
nos clarões serenos: ou de libélulas que empanassem um segundo, às miríades,
com a gaze transparente das asas, o tremeluzir das esferas, ou de lampírios
acatassolando, breves, a solidão dos planos, ou de nuvens finíssimas a coarem
veloces nos seus flocos gélidos a radiação lunar. A terra configurava-se num
delineamento simples, vagamente apainelada; a intervalos, vegetais lucidavamse, frágeis e ondulando à brisa fresca, ou densos e imobilizados na modorra
hipnoticadas plantas sob a carícia trêmula dos reflexos; as ramas e as folharias,
bulindo, projetavam no chão figuras monstruosas, de aracnídeos colossais,
assustados e presos, esmagados ao meio, sob o peso dos troncos; e nas
extensões varzinas, imersas numa doce neblina transluzente, mudos e
esfíngicos na sua atitude letárgica, vultos de animais, em grupos circulares, aos
renques, solitários, pareciam maiores, mais fortes e talhados em pedra...
Excerto do capítulo 4 do Terceiro livro de Ruínas vivas
Iam carnear. A rês, vaquilhona osca de uns dois anos, boa de carnes,
comprada ao Bento, já estava presa pelas aspas; escolheram o Jango para
252
matá-la; porém os cinchadores não conseguiam esticar convenientemente os
laços, e a cena, complicada pelos acidentes do terreno, ia além da expectativa,
impacientando a todos, gulosos de carne fresca a chiar ao fogo.
Embolada, a cabeça gacha, de um lado, a língua pêndula, a babar-se em
longos fios prateados, ela berrava escornando desajeitadamente o ar. Jango
Souza, que a rodeava, de mangas arregaçadas e de faca em punho, a bainha
de couro preto tenteado a bater contra o tirador de vaqueta, reluzente ao sol a
folha bem afiada, tinha no rosto, não obstante o hábito, um ligeiro ríctus
desmentindo-lhe a fleugma. E não se ajeitava, adiantando-se, retrocedendo,
passando por debaixo das tranças do couro, indo a ferir e fugindo, à espera de
momento oportuno para bem golpear. A uma ordem sua, um dos laçadores
passou a trama ao tronco de uma árvore; o outro paleteou o cavalo: as duas
cordas vibraram, tensas, no espaço, e a novilha parou, firmando as patas na
grama revolta. Decorreu um instante de suprema imobilidade e apenas leves
frêmitos percorriam os laços, animando-os de ondulações serpentinas. Queda,
a terneira deu azo a que se lhe conchegasse o gaúcho, desgarronando-a, seguro
à ponta da cola. Um dos cavalos, arisco, desviando-se, suxou o laço e a osca,
apoiada na perna sã, de pelo desenrugado sobre a giba, à arqueadura da
espinha, atirou uma violenta marrada, e só depois do cavaleiro dominar a besta
foi possível a sangria. Mas, se o homem medira com certeza o jarrete, errou no
golpe ao pescoço: ferida, a vaca ainda se manteve em pé, balouçando os cornos
entre os laços remitidos e tentando escoucear com a perna retalhada, cujos
músculos vãmente retesava; e só ao tirão seco de um dos ginetes abateu,
escabujando, num jorro de sangue borbulhante. Devia-se renovar o corte;
preparava-se já para fazê-lo Jango Souza; porém Miguelito, que despira, num
ápice, o casaco, achegou-se com surpresa de todos, pois não o conheciam,
curvou-se sobre o corpo estertorante e, friamente, suavemente, afundou-lhe o
facão no sangradouro, torcendo-o para tassalhar o músculo cardíaco. Era
decisivo, esse: à dor, convulsou-se a vítima num sobressalto de morte,
encolhendo-se toda, com um mugido soluçado, num respiro ortopnéico de ar. As
bordas sangrentas do talho, unindo-se, apertaram a lâmina cravada, cujo cabo
repuxou a mão trigueira que o premava com os dedos recurvos, como grampos.
Arrancada a folha enrojecida, gotejante, saiu cingindo nas cartilagens
espadeladas, de onde, mais grosso, aos coágulos, solfejou um resto de cruor.
Limpou-a Miguelito passando-a algumas vezes no couro arrepiado: luzia-lhe
cerrada, por entre os lábios entreabertos, a dentadura forte, muito alva; e saíralhe à cara o gozo íntimo, inconscientemente feroz, algo de sensualidade
profunda, ancestral e sinistra. A novilha, entretanto, agonizava, extinta a
consciência num último impulso baldado de fuga espavorida. Sacudiu-a o
derradeiro arquejo; inteiriçou-se, rígida; a língua, de lixa, esbranquiçada, caiu
mais, para fora, endureceu de um lado e os olhos foram-se embaciando aos
poucos, refletindo na retina, como em uma guache minúscula, o espetáculo da
planície com os salsos próximos e a figurilha do matador, inclinado, o braço
253
estendido, a suster a arma, em que os raios de luz morrediça do ocaso deixavam
agora, vez por outra, postremos revérberos. Um cachorro lambia docemente, às
costelas, o sangue colado à pele, e, sobre a sangueira que empapava as ervas,
o leitão de um dos carreteiros fuçava cheio de voracidade, coinchando. Foi além,
avizinhou-se, introduziu o focinho, de cerdas úmidas de grúmulos rubros, na
golada hiante, bafejando-a, arreganhando-a, remorado a princípio, numa carícia
de gula mansa, depois rapidamente, a grunhir, sôfrego, às cabeçadas.
Espantaram-no para tirarem o couro. Os tecidos, quentes, riscados, fundo, pelas
facas, estremeciam ainda, meio vivos; fêveras crispavam-se; havia
repuxamentos demorados de músculos, remexer, contrações de nervos...
Uma irradiação postreira incendiava de todo cabo, no poente, as nuvens
amontoadas; era mais terreno, atmosfera acima, atmosfera abaixo, o girar dos
corvos contornando a carretama; adensava-se, da parte do arroio, o muro de
sombra das árvores, de ramaria fundida na mesma soturna massa, impenetrável
ao esguardo; e, à aproximação da treva, subia de ponto no acampamento o
resfôlego de prazer da gente solta. Na praça formada pelos carros, acendera-se
uma fogueira; negros, caboclos, homens brancos apertavam-se ao redor,
atraídos pelos assados; manuseavam-se espetos; o bucho da rês, arrojado aos
cães, exalava um cheiro acre de ervas esmoídas; e continuamente ressoava,
entre risos, o lique-lique seco, áspero e frio das lâminas das facas passadas com
rapidez nas chairas de aço.
Comentários aos excertos de Ruínas vivas
Os dois excertos transcritos procuram prioritariamente demonstrar o toque
de artífice que o estilo de Maya revela. No primeiro caso, a sugestividade de
contornos simbolistas e sensações de cunho impressionista delineiam o trecho.
No segundo, coexistem vocabulário e sonoridade relacionados às elaborações
textuais simbolistas com a força de recursos de origem naturalista.
Marcado pela confluência de tendências românticas, realistas, simbolistas
e do estilo de época naturalista, o estilo que se observa nos excertos consagra
sua inclusão no período pré-modernista. Esse fenômeno pode igualmente ser
constatado nos textos que integram o período. A produção literária de Lobato,
de Lopes Neto, de Augusto dos Anjos, para citar apenas nomes largamente
reconhecidos, se estriba nessas combinações. É natural, contudo, que, para
cada texto e ou autor, seja possível identificarem-se algumas predominâncias. É
exatamente o caso da sobressaliência dos toques simbolistas de sonoridade e
sugestividade do primeiro excerto transcrito de Ruínas vivas, ainda que se
evidencie, no todo, focalização descritiva. No segundo texto, o naturalismo ecoa
sob a forma um pouco simbolista e um pouco romântica. De maneira
semelhante, isso é observável nos textos dos autores anteriormente citados,
aqui reproduzidos.
254
Como demonstra o exame da produção pré-modernista, o período literário
se notabiliza pela busca de formas e de temas caraterizadores das identidades
culturais das coletividades. Por esses meios, expressam-se as diversas
maneiras de ser do Brasil. Observa-se que esse esforço já foi exercido pelos
românticos brasileiros. Uma diferença destacável entre os recursos ideológicoestilísticos postos em prática pelos românticos e os praticados pelos prémodernistas é a maneira própria, mais localista do que individualista
(caraterística poético romântica), em que os textos pré-modernistas se vazam.
Precisamente essa diversidade, oriunda de formas próprias das diferentes
coletividades culturais e da ausência de unidade ideológica, é que fundamenta
a concepção de período literário para o Pré-modernismo, comparativamente ao
que se concebe como escola literária.
255
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---oo0oo---
257
Volume 3
Sumário
Modernismo e Pós-modernismo
Capítulo 7
MODERNISMO / 261
Manuel Bandeira / 263
Poética / 263
Nova poética / 265
O bicho / 266
O pardalzinho / 267
Mário de Andrade / 267
Ode ao burguês / 268
Agora eu quero cantar / 270
Macunaíma / 275
Vinícius de Moraes / 283
Soneto de fidelidade / 284
O operário em construção / 284
Drummond de Andrade / 290
Mãos dadas / 290
O novo homem / 290
Graciliano Ramos / 293
Vidas secas / 294
Cyro Martins / 300
Porteira fechada / 300
Estrada nova / 305
Jorge Amado / 314
Gabriela, cravo e canela / 314
Dyonélio Machado / 318
Os ratos / 319
Érico Veríssimo / 327
Olhai os lírios do campo / 328
O Continente / 331
Cyro dos Anjos / 337
Abdias / 337
258
Mário Quintana / 340
Os poemas / 341
Cartaz para uma feira do livro / 341
Capítulo 8
PÓS-MODERNISMO / 342
João Cabral de Melo Neto / 345
Catar feijão / 345
Graciliano Ramos: / 346
Morte e vida severina: Auto de natal pernambucano / 347
João Guimarães Rosa / 352
Grande sertão: veredas (excerto) / 352
Clarice Lispector / 359
A hora da estrela (excerto) / 359
Vanguardas poéticas / 362
Décio Pignatari / 362
Terra / 363
Ronaldo Azeredo / 363
Velocidade / 363
Manoel de Barros / 365
Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada / 365
Terceiro dia / 365
Mundo pequeno / 366
Ferreira Gullar / 368
Dentro da noite veloz / 368
Notícia da morte de Alberto da Silva / 375
Armindo Trevisan / 378
Oração por uma criança / 379
O lixeiro / 379
Prado Veppo / 384
Poema do plantão do hospital / 384
Cristo Homem / 385
Resolução / 385
O dia da caça / 386
O perdão / 386
A cadeira / 387
Os bonecos / 387
Apparicio Silva Rillo / 387
259
Pago vago / 387
Chico Buarque / 389
Pedro Pedreiro / 389
A televisão / 391
Soneto / 392
Moacyr Scliar / 393
O carnaval dos animais (conto Os leões) / 393
L. A. de Assis Brasil / 395
A prole do corvo (excerto) / 395
Manhã transfigurada (excerto) / 400
Donaldo Schüler / 405
O tatu (capítulo O monarca das coxilhas) / 405
João Antônio / 410
Leão-de-chácara (conto Zona) / 410
Sinval Medina / 414
Memorial de Santa Cruz (excerto) / 414
Tratado da altura das estrelas (excerto) / 420
Rubem Fonseca / 423
A grande arte (excerto) / 423
Patricia Bins / 429
Pele nua do espelho (excerto) / 429
Carlos Nejar / 431
Canga / 432
Affonso Romano de Sant’Anna / 433
Certeza / 433
Que país é este? / 434
Cavalcanti Proença / 437
Manuscrito holandês / 437
Heraclides Santa Helena / 443
Onze braças de campo e algumas sobras (conto homônimo) / 443
José Clemente Pozenato / 448
O quatrilho (excerto) / 448
João Ubaldo Ribeiro / 453
Livro de histórias (excerto do conto Já podeis da pátria filhos) / 453
Darcy Ribeiro / 455
Maíra (excerto) / 456
Tabajara Ruas / 460
Os varões assinalados (excerto) / 460
260
Charles Kiefer / 464
Quem faz gemer a terra (excerto) / 464
Bibliografia crítico-teórica / 466
Córpus antológico / 467
261
Capítulo 7
Composição montada para esta obra: Anúncio da SAM; figura feminina de Encontro (Lasar Segall); M.
Bandeira; Memórias sentimentais de João Miramar; Oswald de Andrade; Abaporu (Tarsila do Amaral);
sobre o Manifesto Pau-brasil; Antropofagia (Tarsila do Amaral); Monumento às Bandeiras (Victor
Brecheret).
MODERNISMO (1922-1945)
Para iniciar esta breve teorização introdutória sobre o Moderismo, cabe
distinguir semanticamente os substantivos modernismo e modernidade. Ambos
provêm de modus hodiernus, i. é, modos (maneiras) hodiernos. A expressão
modus hodiernus formou moderno, e o adjetivo (moderno) provocou a existência
dos substantivos cujos significados estamos tentando elucidar.
Moderno, portanto, se refere ao que ocorre na atualidade de quem fala. O
adjetivo é utilizado já há pelo menos seiscentos anos. Modernidade, como a
palavra diz, se refere à Idade Moderna. De acordo com concepção tradicional da
História, a humanidade teria quatro fases de desenvolvimento histórico: Préhistória, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna ou Modernidade. O sufixo ismo (usado para formar substantivos que nomeiam escolas, sistemas, crenças,
conformações, origens) junto ao radical (modern-) passou a denotar a primeira
escola literária nascida no século 20, no Brasil.
O Modernismo brasileiro se desenvolveu a partir da chamada de Semana
da Arte Moderna de São Paulo (13, 15, 17 de fevereiro de 1922). Desse episódio,
que virou movimento, participaram, entre vários outros, p. ex., Mário de Andrade
e Oswald de Andrade, pela literatura; Heitor Villa-Lobos, pela música; Victor
262
Brecheret, pela escultura; Di Cavalcanti (Emiliano Augusto Cavalcanti de
Albuquerque Melo), pela pintura.
O Modernismo, como escola literária, teve, segundo a crítica brasileira,
duas fases ou dois estilos de época. A primeira, de 1922 a 1930, marcou-se pela
combatividade a favor da libertação dos produtores de textos e dos próprios
textos das formas mais ou menos rígidas que especialmente o Parnasianismo e
o Simbolismo tinham estabelecido. Os participantes dessa proposta chamaramse genericamente de futuristas, porque se recusavam a produzir literatura sob
os parâmetros tradicionais. Consideravam-se, pois, avançados, como se
supusessem no futuro e se futuro fosse mais avançado que atualidade. (Nessa
particularidade nocional, revela-se concepção positivista (ideologia do RealismoNaturalismo-Parnasianismo), o que, de algum modo, aponta a certa
incoerência.) A tendência mais frequente na produção poética engajada nesse
movimento foi a contrariedade às formas consagradas do estatuto literário e do
estatuto linguístico. Tudo que apontasse ao passado era chamado de
passadismo, e os representantes dessas formas literárias, de passadistas. Por
isso, essa primeira fase costuma ser denominada destrutiva.
A primeira fase modernista brasileira produziu especialmente poemas. Os
poemas produzidos então desenvolveram temáticas preocupadas com novos
estilos e assuntos sociais. Nas focalizações estilísticas, propuseram-se e
discutiram-se as novas formas literárias a serem implantadas. Nas temáticas
sociais, a preocupação com as desigualdades foi frequentemente abordada,
especialmente quanto à condição operária. São dessa fase, p. ex., Poética de
Manuel Bandeira e Agora eu quero cantar de Mário de Andrade, um em cada
temática antes comentada. Essa primeira fase produziu também prosa, mas em
quantidade bem menor. Em prosa, são dessa primeira fase Amar, verbo
intransitivo (1927) e Macunaíma (1928), ambos de Mário de Andrade, por
exemplo.
Em seguida, os futuristas passaram a chamar-se de modernistas, que
acabou sendo a forma mais conhecida para designá-los. A segunda fase,
também conhecida como construtiva (ou reconstrutiva), teve desdobramentos. A
produção poética seguiu dois caminhos. Por um, deu-se a consolidação da
poesia modernista. Noutro, a produção manteve-se conservadora, em temas
urbanos e rurais. Nalguns casos, ensaiou retornos a propostas estilísticas
estabelecidas anteriormente. Na prosa, a segunda fase marcou-se
especialmente pela construção do romance de trinta. O romance de trinta é uma
sequência de produção romanesca que se tem denominado igualmente romance
neorrealista brasileiro. Embora a denominação seja romance de trinta, essa
sequência começou em 1928, com A bagaceira de José Américo de Almeida, e
terminou em 1954, com Estrada nova de Cyro Martins.
O romance de trinta trabalhou sobre duas temáticas gerais. A temática
agrária discutiu a situação de sertanejos, caipiras, gaúchos, denominados em
263
geral peões, e a questão fundiária propriamente dita no Brasil. Marcaram o
romance de trinta de temática agrária Graciliano Ramos, no Nordeste, e Cyro
Martins no Sul. O outro veio do romance de trinta foi psicológico. Esse veio
mostra relação com o romance realista machadiano. Cyro dos Anjos é um dos
representantes renomados do romance de trinta de temática psicológica.
A ideologia de sustentação do Modernismo é o Marxismo, como se pode
constatar com evidência nos poemas Ode ao burguês de Mário de Andrade e
Operário em construção de Vinícius de Moraes e no romance de trinta, mais
abertamente, p. ex., em Seara vermelha (Jorge Amado) e Estrada nova (Cyro
Martins).
Primeira fase modernista (1922-1930)3
MANUEL Carneiro de Souza BANDEIRA Filho
Manuel Bandeira nasceu em Recife (PE), em 1886. Faleceu em 1968, no
Rio de Janeiro. Matriculou-se na Escola Politécnica, em São Paulo, pretendendo
tornar-se arquiteto. Estudou também, à noite, desenho e pintura no Liceu de
Artes e Ofícios. Seu primeiro emprego foi na Estrada de Ferro Sorocabana. Após
isso, descobriu-se doente e foi para cidades menores, a fim de recuperar-se.
Colaborou em diversas revistas, jornais e folhetins. Lecionou no Colégio Pedro
II e na Faculdade Nacional de Filosofia.
Sua obra é constituída de poesia, prosa e tradução. Eis alguns livros de
poemas: Carnaval (1919), Libertinagem (1930), Poesias completas (1940) e
Estrela da tarde (1960).
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
[protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
3
Há autores cuja obra dificilmente pode ser enquadrada numa única fase. Por questão de esclarecimento
didático, contudo, usam-se dois critérios para esse enquadramento: o da representatividade da produção e
o da predominância técnico-temática.
264
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante
[exemplar
com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
(Libertinagem, 1930)
Comentários ao poema Poética
O termo poética, como substantivo, integra o vocabulário crítico-teórico da
literatura, com o sentido de estudo do verso e da poesia em geral. Mais
precisamente, aponta a estudo do ser da poesia e das formas de construir
versos, i. é, poemas.
Foi Aristóteles (384-322 a. C.) quem nos legou a primeira Poética, i. é, os
primeiros estudos sobre a literatura de que se tem notícia no Ocidente. A palavra
poética (do grego, poiticós) pode ser tomada como faculdade ou talento poético;
a partir do verbo poetize (poetar), pode significar inventar, propor, compor.
Depois do de Aristóteles, outros trabalhos foram produzidos e publicados,
a partir do dele. Bandeira também partiu dessa tradição. Há bastantes
diferenças, porém, entre esses textos anteriores e o do poeta recifense.
O poeta brasileiro escreveu sua poética em versos e simultaneamente a
aplicou no próprio poema que a constitui. Esse é diferencial de valor, porque,
segundo a tradição, os textos literários se sequenciam exatamente por
diferenciação e não por superação, i. é, um não anula outro da sequência,
porque não o supera, mas todos se mantêm em igualdade de condições (pela
diferença) perante o leitor, a quem cabe a decisão de lê-los, comentá-los,
analisá-los e criticá-los.
O poema Poética é constituído de dezenove versos assimétricos. A
assimetria bem marcada revela adesão do poema às propostas modernistas de
1922. Mais que simples adesão, esse poema se mostra nuclear na construção
da proposta modernista brasileira. A assimetria evidente propicia amostragem
265
das concepções estilísticas modernistas. Contrariamente ao que até então se
praticava na poesia, os versos dos modernistas foram negadores (na própria
forma que os consubstancia) das propostas estilísticas de escolas literárias que
os antecederam. Assim, ao discurso expandido sucede a contenção e busca
máxima de expressividade; à simetria, possibilitada pelas regras métricas e
rímicas, sucede a (pelo menos) aparente despreocupação formal simétrica e
tradicionalmente organizada. As estrofes do poema também são assimétricas, e
a pontuação tradicional fica dispensada.
Alguns versos são tão longos, que não cabem na linha do papel; outros são
tão breves que são constituídos de única palavra (nesse caso, com duas sílabas
poéticas). Com isso, o metro do poema fica abertamente irregular.
O texto é sucinto: evita muitos verbos, adjetivos, advérbios.
Vamos considerar a terceira estrofe para verificar-lhe a constituição
sintática das orações.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
O primeiro verso revela a utilização de maneira oral-popular de dizer. É
forma usual nas inscrições em muros e paredes, como publicidade política
principalmente. Supõe a elipse, p. ex., de quero que venham abaixo (que
deixem de existir, que não sejam valorizados) os puristas, i. é, os parnasianos
da língua. A tradição passadista passa a ser o centro do ataque dos futuristas.
Os três versos subsequentes pressupõem a elipse de quero, proponho.
No primeiro deles, está expressa a adesão à utilização do que a gramática
normativa tradicional denominou barbarismo, i. é, palavras que deveriam ser
desprezadas, por terem origem estranha à língua portuguesa. O segundo pede
o uso de formas sintáticas diferentes das estabelecidas pelas normatizações a
respeito. O terceiro prevê a construção de versos sem marcação métrica;
portanto, sem construção de ritmo fundada na metrificação. As três propostas
incluídas nessa estrofe estão contempladas ao longo do desenvolvimento do
próprio poema.
Não se suponha com isso que todas as normas passam a ser abolidas. O
próprio poema propõe sua própria poética, ou seja, normas à construção de
poemas modernistas.
Nova poética
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há marca suja da vida.
Vai um sujeito,
266
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem
[engomada, e na primeira esquina passa um caminhão,
[salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho
Mas esse fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens
[cem por cento e as amadas que envelheceram sem
[maldade.
(Belo Belo, 1948)
Comentários ao poema Nova poética
Nova poética constitui nova visão da poética do Modernismo, i. é, estabelece
alguma revisão das concepções expressas no poema Poética.
A teoria do “poeta sórdido” é a proposta da literatura como reflexão sobre o
mundo, especialmente no que ele tem de sujo, aspetos da vida que não
conhecem idealização. Naturalmente, essa visão já andou pelas teorizações e
pelos textos da literatura antes do Modernismo, mas aqui tem caraterísticas um
tanto peculiares, pelo menos no que para a literatura é fundamental: o estilo, a
forma. Apesar da sordidez, que se possa observar, “a poesia [a literatura] é
também orvalho”, i. é, pureza, simplicidade, sensação de paz.
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Belo Belo, 1948)
Comentários ao poema O bicho
O bicho é constituído de quatro estrofes, das quais três se mostram simétricas
quanto ao número de versos. São contudo heterométricas e heterorrítmicas. A
quarta quebra esse aspeto simétrico do poema.
Esse é exemplo de texto poético cujo centro propositivo é ideológico, i. é, tem
uma ideologia destacável, para além de sua constituição técnica. Isso é o que o
267
diferencia, sob esse prisma, dos dois anteriores, cuja proposta básica está
vinculada a aspetos formais, i. é, estilísticos da literatura. Do ponto de vista
ideológico, O bicho é evidente em si mesmo. À maneira de soneto, o último verso
resolve abruptamente a preocupação ideológica do poema.
Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!
Petrópolis, 10/3/1943.
Comentários ao poema Pardalzinho
O poema Pardalzinho é ideológica e tecnicamente uniestrófico. A única
estrofe (física) é reforçada por versos que parecem apertados nas linhas, fazem
um retângulo fechado: expressa-se assim a essencialidade da liberdade às aves.
Constitui, portanto, pleonasmo, já que as palavras dizem exatamente isso.
Observação: O poema Trem de ferro, de Manuel Bandeira, foi musicado por Tom Jobim
(Antônio Carlos Jobim). Pode ser acompanhado na internete.
MÁRIO Raul Morais de ANDRADE
Nascido em São Paulo no ano de 1893, Mário de Andrade começou sua
carreira artística dedicando-se à música. Formou-se em música no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, no qual mais tarde foi
professor de História da Música. Seu contato com a literatura começou também
cedo, através de críticas de arte que escrevia para jornais e revistas.
Em 1917 saiu seu primeiro livro, sob o pseudônimo de Mário Sobral: Há
uma gota de sangue em cada poema. Na condição de participante da Semana
de Arte Moderna em 1922, Mário de Andrade se revelou líder.
Publicou Pauliceia desvairada (1922), o primeiro livro de poemas do nosso
Modernismo. A obra marca, portanto, o início da escola no Brasil. Lecionou por
algum tempo na Universidade do Distrito Federal (de então) e exerceu vários
cargos públicos ligados à cultura. Foi importante pesquisador do folclore
brasileiro (que incorporou em algumas de suas obras). Teve participação
importante nas principais revistas de caráter modernista: Klaxon, Estética, Terra
268
roxa e outras terras. Há várias edições das obras completas de Mário de
Andrade.
Faleceu em 1945, na sua São Paulo natal, vítima de ataque cardíaco.
Ode ao burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes joões! Os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam francês
e tocam os Printemps com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
269
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
(Pauliceia desvairada)
Comentários ao poema Ode ao burguês
Diferentemente do tratamento analítico dispensado aos poemas de
Bandeira, relativamente ao poema Ode ao burguês a análise estará
principalmente ligada à proposta ideológica. Isso não significa contudo que os
aspetos formais modernistas não estejam contemplados nestes comentários.
Considere-se inicialmente o título, depois de ter sido lido o poema inteiro.
Ode (do grego, odi) é uma espécie de poema para ser cantado.
Tradicionalmente, é um poema encomiástico. Nessa espécie estão, p. ex., os
hinos. Como se percebe, no poema de Mário de Andrade aqui analisado não
ocorre exatamente isso; ao contrário: é um texto satírico, sarcástico e irônico
contra a figura do burguês, que começava então a surgir poderosa na Pauliceia
do autor. Desse modo, pode-se concluir que a ode de Mário de Andrade é de
fato uma antiode: uma ode ao contrário.
Se for lido o título como seria pronunciado no Brasil, de modo geral, se
ouviria algo como odiaoburguês, ou, mais claramente, ódio ao burguês. Essa
leitura se mostra coerente com o texto do poema, no qual a palavra ódio é
repetida diversas vezes.
A presença do burguês como figura de malhação é explicável pelo fato de
a ideologia que sustentou o Modernismo, o Marxismo, estar chegando ao Brasil.
Para essa ideologia, o burguês é o vilão, porque foi a partir da atuação da
burguesia em busca do lucro sobre o trabalho alheio que a ideologia engelianomarxista foi construída. Assim – parece – se explica o título.
As duas primeiras estrofes centram-se na ideia de insulto ao burguês, em
razão do apego dele ao dinheiro. Há referências também às formas físicas dele,
adquiridas em razão dos costumes que mantém. A estrofe alude igualmente a
preocupações com ascendência e aos cuidados para não perder o que possui.
A terceira estrofe volta a esses temas, mas acrescenta a insensibilidade:
segundo a estrofe, o burguês, preocupado com questões econômico-financeiras
não percebe a vida. A quarta retoma alguns pontos já referidos e acrescenta
preocupação com a aparência. A quinta consolida a temática do ódio, que já foi
comentada quando se tratou do título. Nela estão incluídas importantes
referências para o estudo da base ideológica do movimento Modernista: a voz
poética determina o que fazer com o burguês: “De mãos nas costas! Marco eu o
compasso! Eia! / Dois a dois! Primeira posição! Marcha! / Todos para a Central
270
do meu rancor inebriante! / Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! / Morte
ao burguês de giolhos [...]”. O poema, portanto, nessa altura sugere e ou prevê
a execução do burguês. A palavra “Central”, com inicial maiúscula, aponta ao
agrupamento classista dos trabalhadores a partir da vitória da revolução
bolchevista soviética (1917). A expressão “ódio vermelho” é também
extremamente sugestiva. A última estrofe (no último verso) declara a saída de
cena do burguês (mais ou menos como se enxotam cães) e ensaia um
impropério.
Essa aparente fúria contra a burguesia parece coerente, dada a
sustentação ideológica do Modernismo. Mostra-se igualmente coerente, se for
observada a sequência das grandes revoluções ideológicas da humanidade:
primeiro, no centro estiveram os deuses; depois, os cleros; depois, as
aristocracias; depois a burguesia; depois o proletariado. Vale dizer: o que se
chamou de revolução do proletariado precisava assumir o poder (ou o lugar no
poder) da burguesia, que o tomara da aristocracia.
Agora eu quero cantar
Agora eu quero cantar
Uma história muito triste
Que nunca ninguém cantou,
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou.
Não houve acalanto. Apenas
Um guincho fraco no quarto
Alugado. O pai falou,
Enquanto a mãe se limpava:
– É Pedro. E Pedro ficou.
Ela tinha o que fazer,
Ele inda mais, e outro nome
Ali ninguém procurou,
Não pensaram em Alcibíades,
Floriscópio, Ciro, Adrasto,
Que de tempo pra inventar!
– É Pedro. E Pedro ficou.
Pedrinho engatinhou logo
Mas muito tarde falou;
Ninguém falava com ele,
Quando chorava era surra
E aprendeu a emudecer.
Falou tarde, brincou pouco,
Em breve a mãe ajudou.
Nesse trabalho insuspeito
Passou o dia, e nem bem
A noite escura chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o prostrou.
271
Por trás do quarto alugado
Tinha uma serra muito alta
Que Pedro nunca notou,
Mas num dia desses, não
Se sabe por que, Pedrinho
Para a serra se voltou:
– Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou.
Sineta que fere ouvido
Vida nova anunciou;
Que medo ficar sozinho,
Sem pai, mesmo longínquo, sem
Mãe, mesmo ralhando, tanta
Piazada, ele sem ninguém...
Pedro foi para um cantinho,
Escondeu o olho e chorou.
Mas depois foi divertido,
Aliás prazer misturado,
Feito de comparação.
O menino roupa-nova
Pegava tudo o que a mestra
Dizia, ele não pegou!
Porque!... Mas depois de muito
Custo, a coisa melhorou.
Ele gostava era da
História natural, os
Bichos, as plantas, os pássaros,
Tudo entrava fácil na
Cabecinha mal penteada,
Tudo Pedro decorou.
Havia de saber tudo!
Se dedicar! descobrir!
Mas já estava bem grandinho
E o pai da escola o tirou.
Ah que dia desgraçado!
E quando a noite chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o prostrou.
Por trás da escola de Pedro
Tinha uma serra bem alta
Que o menino nunca olhou;
Logo no dia seguinte
Quando a oficina parou,
Machucado, sujo, exausto,
Pedrinho a escola rondou.
E eis que de repente, não
Se sabe por que, Pedrinho
Para a serra se voltou:
272
– Havia de ter por certo
Outra vida bem mais linda
Por trás da serra! pensou.
Vida que foi de trabalho,
Vida que o dia espalhou,
Adeus, bela natureza,
Adeus, bichos, adeus, flores,
Tudo o rapaz, obrigado
Pela oficina, largou.
Perdeu alguns dentes e antes,
Pouco antes de fazer quinze
Anos, na boca da máquina
Um dedo Pedro deixou.
Mas depois de mês e pico
Ao trabalho ele voltou,
E quando em frente da máquina,
Pensam que teve ódio? Não!
Pedro sentiu alegria!
A máquina era ele! A máquina
Era o que a vida lhe dava!
E Pedro tudo perdoou.
Foi pensando, foi pensando,
E pensou que mais pensou,
Teve uma ideia, veio outra,
Andou falando sozinho,
Não dormiu, fez experiência,
E um ano depois, num grito,
Louca alegria de amor,
A máquina aperfeiçoou.
O patrão veio amigável
E Pedro galardoou,
Pôs ele noutro trabalho,
Subiu um pouco o ordenado:
– Aperfeiçoe esta máquina,
Caro Pedro! e se afastou.
Era um cacareco de
Máquina! e lá, bem na frente,
Bela, puxa vida! bela,
A primeira namorada
De Pedro, nas mãos dum outro,
Bela, mais bela que nunca,
Se mexendo trabalhou
O dia inteiro. Nem bem
A noite negra chegou,
O rapaz desiludido
Um sono bruto prostrou.
Por trás da fábrica havia
Uma serra bem mais baixa
Que Pedro nunca enxergou,
273
Porém no dia seguinte
Chegando pra trabalhar,
Não se sabe por que, Pedro
Para a serra se voltou:
– Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou.
Oh, segunda namorada,
Flor de abril! cabelo crespo,
Mão de princesa, corpinho
De vaca nova... Era vaca.
Aquele riso que faz
Que ri nunca me enganou...
Caiu nos braços de quem?
Caiu nos braços de todos,
Caiu na vida e acabou.
Com a terceira namorada,
Na primeira roupa preta,
Pedro de preto casou.
E logo vieram os filhos,
Vieram doenças... Veio a vida
Que tudo, tudo aplainou.
Nada de horrível, não pensem,
Nenhuma desgraça ilustre
Nem dores maravilhosas,
Dessas que orgulham a gente,
Fazendo cegos vaidosos,
Tísicos excepcionais,
Ou formando Aleijadinhos,
Beethovens e heróis assim:
Pedro apenas trabalhou.
Ganhou mais, foi subindinho,
Um pão de terra comprou.
Um pão apenas, três quartos
E cozinha, num subúrbio
Que tudo dificultou.
Menos tempo, mais despesa,
Terra fraca, alguma pera,
Emprego lá na cidade,
Escola pra filho, ofício
Pra filho, um, num choque de
Trem, inválido ficou.
– Sono! único bem da vida!...
Foi essa frase sem força,
Sem História Natural,
Sem máquina, sem patente
De invenção, que por derradeiro
Pedro na vida inventou.
E quando remoendo a frase,
274
A noite preta chegou,
Pedro, Pedrinho, José,
Francisco, e nunca Alcibíades,
Um sono bruto anulou.
Por trás da morada nova
Não tinha serra nenhuma,
Nem morro tinha, era um plano
Devastado e sem valor,
Mas um dia desses, sempre
Igual ao que ontem passou,
Pedro, João, Manduca, não
Se sabe por que, Antônio,
Para o plano se voltou:
– Talvez houvesse, quem sabe,
Uma vida bem mais calma
Além do plano, pensou.
Havia, Pedro, era a morte,
Era a noite mais escura,
Era o grande sono imenso;
Havia, desgraçado, havia
Sim, burro, idiota, besta,
Havia sim, animal,
Bicho, escravo sem história,
Só da história natural!...
Por trás do túmulo dele
Tinha outro túmulo... Igual.
Comentários ao poema Agora eu quero cantar
Esse é um poema originalmente sem título. Por isso se usa o primeiro verso
do poema à guisa de título. É também plausível denominá-lo Pedro, porque o
símbolo metonímico central do poema é Pedro.
Parece relevante observar que o poema fala em “cantar” e não contar “a
história de Pedro”. O cantar escolhido faz lembrar os cantos de Gonçalves Dias.
O canto – e não o poema – é a maneira mais simples de atingir a população
comum. Durante e após a leitura é possível se observar essa tendência de
focalização do povo comum e utilização de linguagem adequada.
A proposta ideológica se aproxima da desenvolvida no poema anterior. O
foco é a desigualdade das condições de vida dos trabalhadores relativamente às
das camadas sociais que detêm o capital. Isso carateriza claramente a ideologia
sustentadora do Modernismo. Ressalte-se a questão levantada a respeito da
História e da História Natural frente ao escravo sem história e ao homem
histórico. O Marxismo vem sendo estudado a partir da denominação (posterior a
Marx e Engels) de materialismo história. Por essa teoria, em cada época histórica
há grupos opressores e grupos oprimidos. No capitalismo, por exemplo, o capital
oprime o trabalho. O modo de mudar essa situação seria pela revolução, ou seja,
275
rebelião das classes oprimidas. Por isso a História passa a ser tão importante.
Quanto à História Natural, era a denominação que se utilizava para designar
várias ciências, como a Biologia e suas subdivisões.
Macunaíma
(excerto do capítulo 9, Carta pras icamiabas)
Ás mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas.
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta
missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor,
com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a
maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes – não sois conhecidas
por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós,
se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim
sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates de
erudição porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais
conspícuas, tocadas por essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga.
Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos
conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos pois,
imediato, ao relato dos nossos feitos por cá.
Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais
temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano
translato, perdíamos a muiraquitã, que outrém grafara muraquitã, e, alguns
doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo
muraquéitã, não sorrias! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar às
vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido por aqui. Por estas
paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas,
boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que alguns desses termos são
neologismos absurdos – bagaço nefando com que os desleixos e petimetres
conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos
“sub tegmine fagi”, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que
vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não
buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem
dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o
vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos
ponto de honra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os
ouvidos latinos do vosso Imperador, é desconhecida dos guerreiros, e de todos
em geral que por estas partes respiram. Apenas alguns “sujeitos de importância
em virtude e letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Souza,
citado pelo doutor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projetam as suas
276
luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, originárias da Ásia, e não de vossos
dedos, violentos no polir.
Estávamos ainda abatido por termos perdido a nossa muiraquitã, em forma
de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado
por algum libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo Freud
(lede Froide), se nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele
soubemos que o talismã perdido estava nas dilectas mãos do doutor Venceslau
Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente
florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco. E como o doutor demorasse na
ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em busca do
velocino roubado. As nossas relações atuais com o doutor Venceslau são as
mais lisonjeiras possíveis; e sem dúvida mui para breve recebereis a grata nova
de que hemos reavido o talismã; e por ela vos pediremos alvíçaras.
Porque, súbditas diletas, é incontestável que Nós, Imperator vosso, nos
achamos em precária condição. O tesouro que daí trouxemos, foi-nos de mister
convertê-lo na moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há dificultado
o mantenimento, devido às oscilações do câmbio e à baixa do cacau.
Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a paulada, nem brincam
por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados
de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de
lagostas. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça
polida e sobrosada, feita a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e
cauda de ramígeros, de muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto
num prato de porcelana de Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a
bordeisjar água de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra.
Comentários ao excerto do capítulo 9 de Macunaíma
Carta pras icamiabas é o capítulo da rapsódia que, segundo Mário de
Andrade em carta a Manuel Bandeira, mais lhe agradava. A tônica do capítulo é
a questão da língua portuguesa relativamente às linguagens verbais brasileiras.
O capítulo está pautado pela ironia.
Macunaíma, originário da floresta, se encontra em São Paulo. Como está
precisando de dinheiro, escreve às icamiabas, pedindo ajuda, quase socorro.
Perturbado pelas mudanças que vai descobrindo entre sua cultura de origem e
a paulistana, perde a alma, como haveria mais tarde de escrever Darcy Ribeiro,
alegorizando situação análoga enfrentada pelo personagem Isaías no romance
Maíra (1977). Macunaíma olha a pauliceia desvairada com olhos de quem vem
do interior do Brasil. Tem dificuldade de reconhecer naquela vida – mas
especialmente naquela fala – sua própria terra e ambiente cultural. Timbra
sublinhadamente a questão da imitação de formas estranhas ao Brasil, ou seja,
da falsa língua e da falsa cultura nacionais, estranhas ao que é próprio daqui, a
277
quem fala. Eis aí o ridículo que é sublinhado pelo capítulo. De resto, toda a
narrativa da rapsódia pauta essa questão.
Macunaíma
(capítulo 12, Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens)
No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite
inteira e sonhado com navio.
– Isso é viagem por mar, falou a dona da pensão.
Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logo Jiguê na máquina
telefone pra insultar a mãe de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra telefonista
avisou que não secundavam. Macunaíma achou aquilo esquisito e quis se
levantar pra ir saber o que era. Porém, sentia um calorão coçado no corpo todo
e uma moleza de água. Murmurou:
– Ai... que preguiça...
Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens. Quando os manos
vieram saber o que era, era sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento
curandeiro em Beberibe que curava com alma de índio e água de pote. Bento
deu uma aguinha e fez reza cantada. Numa semana o herói já estava
descascando. Então se levantou e foi saber o que tinha sucedido pro gigante.
Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinho contou que Piaimã
com toda a família fora na Europa descansar da sova. Macunaíma perdeu todo
o requebrado e se contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado e voltou
macambúzio pra pensão. Maanape e Jiguê encontraram o herói na porta da rua
e perguntaram pra ele:
– Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados?
Então Macunaíma contou o sucedido e principiou chorando. Os manos
ficaram bem tristes de ver o herói assim e levaram ele visitar o Leprosário de
Guapira, porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não teve graça
nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam
desesperados. Tiraram uma porção enorme de tabaco dum cornimboque
imitando cabeça de tucano e espirraram bem. Então puderam pensamentear.
– Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando galo, o
gigante é que não havia de esperar, foi-se. Agora aguente a massada!
Nisto Jiguê bateu na cabeça e exclamou:
– Achei!
Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na
Europa também, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos
do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro
imaginou, imaginou e concluiu:
– Tem coisa milhor.
278
– Pois então desembuche!
– Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do governo e vai
sozinho.
– Mas pra que tanta complicação si a gente possui dinheiro à beça e os
manos podem me ajudar na Europa!
– Você tem cada uma que até parece duas! Poder a gente pode sim porém
mano seguindo com arame do governo não é milhor? É. Pois então!
Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa:
– Achei!
Os manos levaram um susto.
– Que foi!
– Pois então finjo de pintor que é mais bonito!
Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe
luvas e ficou parecido com pintor.
No outro dia pra esperar a nomeação matou tempo fazendo pinturas.
Assim: agarrou num romance de Eça de Queirós e foi na Cantareira passear.
Então passou perto dele um cotruco andarengo muito marupiara porque possuía
folhinha de picapau. Macunaíma deitado de bruços divertia-se amassando os
tacurus das formigas tapipitingas. O tequeteque saudou:
– Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Trabalhando,
não?
– Quem não trabuca não manduca.
– É mesmo. Bom, té-loguinho.
E passou. Légua e meia adiante topou com um micura e lembrou de
trabucar também um bocado. Pegou no gambazinho, fez ele engolir dez pratas
de dois milréis e voltou com o bicho debaixo do braço. Chegando perto de
Macunaíma, mascateou:
– Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Si você quer te
vendo meu micura.
– Que que eu vou fazer com um bicho tão pichento! Macunaíma secundou
botando a mão no nariz.
– Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só prata que
sai! Vendo barato pra você!
– Deixa de conversa, turco! Onde que se viu micura assim!
Então o tequeteque apertou a barriga do gambá e o bicho desistiu das dez
pratinhas.
279
– Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando a gente fica
riquíssimo! Barato pra você!
– Quanto que custa?
– Quatrocentos contos.
– Não posso comprar, só tenho trinta.
– Pois então pra ficar freguês deixo por trinta contos pra você!
Macunaíma desabotoou as calças e por debaixo da camisa tirou o cinto que
carregava dinheiro. Porém só tinha a letra de quarenta contos e seis fichas do
Cassino de Copacabana. Deu a letra e teve vergonha de receber o troco. Até
inda deu as fichas de inhapa e agradeceu a bondade do tequeteque.
Nem bem o mascate sovertera entre as sapupiras guarubas e parinaris do
mato que já o micura quis fazer necessidade outra feita. O herói arredondou o
bolso aparando e a porcaria caiu toda ali. Então Macunaíma percebeu o logro e
abriu numa gritaria desgraçada, caminho da pensão. Virando uma esquina
encontrou o José Prequeté e gritou pra ele:
– Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café!
José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãe do herói porém este não fez
caso não, deu uma grande gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que
ia indo pra casa zangado e pegou na gritaria outra vez.
Os manos inda não tinham voltado da maloca do governo e a patroa veio
no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram. Depois de brincarem o herói
pegou no choro. Quando os manos chegaram toda a gente se sarapantou porque
eles tinham cinco metros de altura. Não vê que o governo estava com mil vezes
mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma
ser nomeado era mas só no dia de São Nunca. Ficava muito longe. O invento
tinha favado e os manos ficaram compridos por causa do desaponto. Quando
enxergaram o mano chorando, se assustaram bem e quiseram saber a causa. E
como esqueceram o desaponto voltaram pro tamanho de dantes, Maanape já
velhinho e Jiguê na força do homem. O herói fazia:
– Ihihih! Tequeteque me embromou! Ihihih! Comprei micura dele, quarenta
contos me custou!
Então os irmãos se descabelaram. Agora não era possível mais irem na
Europa não, porque possuíam só a noite e o dia. Levaram na prantina enquanto
o herói esfregava o ólio de andiroba no corpo pros mosquitos não amolarem e
adormecia bem.
No outro dia amanheceu fazendo um calorão temível e Macunaíma suava
que mais suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do governo. Quis
sair pra espairecer porém aquela roupa tanta aumentando o calor... Teve mais
280
raiva. Teve raiva por demais e maliciou que ia ficar com a butecaiana que é
doença de raiva. Então exclamou:
– Ara! Ande eu quente, ria-se a gente!
Tirou as calças pra refrescar e pisou em cima. A raiva se acalmou no
sufragante e até que muito satisfeito Macunaíma falou pros manos:
– Paciência, manos! Não! Não vou na Europa não. Sou americano e meu
lugar é na América. A civilização europeia de certo esculhamba a inteireza do
nosso caráter.
Durante uma semana os três vararam o Brasil todo pelas restingas de areia
marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs, abertões,
corredeiras carrascos carrascões e chavascais, coroas de vazante boqueirões
mangas e fundões que eram ninhos de geada, espraiados pancadas pedrais
funis bocainas barroqueiras rasouras, todos esses lugares, campeando nas
ruínas dos conventos e na base dos cruzeiros pra ver si não achavam alguma
panela com dinheiro enterrado. Não acharam nada.
– Paciência, manos! Macunaíma repetiu macambúzio. Jogamos no bicho!
E foi na praça Antônio Prado meditar sobre a injustiça dos homens. Ficou
lá encostado num plátano muito bem. Todos os comerciantes e aquele
despropósito de máquinas passavam rentinho do herói grugunzando sobre a
injustiça dos homens. Macunaíma já estava disposto a mudar o dístico pra:
“Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são” quando escutou um
“Ihihih!” chorando atrás. Virou e viu no chão um tico-tico e um chupim.
O tico-tico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum
lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar de
comer pra ele. Fazia raiva. O tico-tiquinho imaginava que o chupinzão era filhote
dele mas não era. Então voava, arranjava um decumê por aí que botava no bico
do chupinzão. Chupinzão engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih!
Mamãe... telo decumê!... telo decumê!...” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava
azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhémnhenhenhém azucrinando ele atrás, diz-que “Telo decumê!... telo decumê!...”
não podia com o amor sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichinho uma
quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão
engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava
meditando na injustiça dos homens e teve um amargor imenso da injustiça do
chupinzão. Era porque Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram
gente feito nós... Então o herói pegou num porrete e matou o ticotiquinho.
Foi-se embora. Depois que andou légua e meia sentiu calor e lembrou de
beber pinga pra refrescar. Trazia sempre num bolso do paletó uma garrafinha de
pinga presa ao puíto por uma corrente de prata. Desarrolhou e chupitou de
manso. Eis sinão quando escutou atrás um “Ihihih!” chorando. Virou
sarapantado. Era o chupinzão.
281
– Ihihih! Papai... telo decumê!... telo decumê!... lá na língua dele.
Macunaíma ficou com ódio. Abriu o bolso onde estava guardado aquilo do
micura e falou:
– Pois coma então!
Chupinzão pulou na beira do bolso e comeu tudo sem saber. Foi
engordando, virou num pássaro preto bem grande e voou pros matos gritando
“Afinca! Afinca!”. É o Pai do Vira!
Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adiante estava um macaco
mono comendo coquinho baguaçu. Pegava no coquinho, botava no vão das
pernas junto com uma pedra, apertava e juque! a fruta quebrava. Macunaíma
veio e esgurejou com a boca cheia d’água. Falou:
– Bom-dia, meu tio, como lhe vai?
– Assim assim, sobrinho.
– Em casa todos bons?
– Na mesma.
E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquizilou
assanhado:
– Não me olhe de banda que não sou quitanda, não me olhe de lado que
não sou melado!
– Mas o que você está fazendo aí, tio!
O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada e secundou:
– Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer.
– Vá mentir na praia!
– Uai, sobrinho, si tu não dá crédito então pra que pergunta!
Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou:
– É gostoso é?
O mono estalou a língua:
– Chi! Prove só!
Quebrou escondido outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus
deu pra Macunaíma comer. Macunaíma gostou bem.
– É bom mesmo, tio! Tem mais?
– Agora se acabou mas si o meu era gostoso que fará os vossos! Come
eles, sobrinho!
O herói teve medo:
– Não dói não?
282
– Qual, si até é agradável!...
O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono rindo por dentro inda
falou pra ele:
– Você tem mesmo coragem, sobrinho?
– Boni-t-ó-tó macacheira mocotó! O herói exclamou empafioso. Firmou bem
o paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto. O macaco mono caçoou
assim:
– Pois, meus cuidados, não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas!
Estás vendo o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit!
Então calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada
que refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação. Logo se formou
um poder de correições de formigas guajuguajus e murupetecas pro corpo morto.
O advogado Fulano atraído pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou
a carteira do cadáver porém só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o
defunto pra pensão, fez. Carregou Macunaíma nas costas e foi andando. Porém
o defunto pesava por demais e o advogado viu que não podia com o peso. Então
arreou o cadáver e deu uma coça de vara nele. O defunto ficou levianinho e o
advogado Fulano pôde levá-lo pra pensão.
Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois
descobriu o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu emprestado pra
patroa dois cocos-da-bahia, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus
amassados e assoprou fumaça de cachimbo no defunto herói. Macunaíma foi se
erguendo muito desmerecido. Deram guaraná pra ele e daí a pouco matava
sozinho as formigas que inda o mordiam. Estava tremendo muito porque por
causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou a garrafinha
do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena pra
Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena
tinha dado mesmo. E assim eles viveram com os palpites do mano mais velho.
Maanape era feiticeiro.
Comentários ao capítulo 12 de Macunaíma
No cap. 12, são narrados vários pequenos episódios. Esses episódios não
demonstram muita conexão entre si. A relação maior entre eles é a presença do
personagem Macunaíma e o discurso que os constrói. A hilaridade também lhes
é comum.
O mais intrigante parece ser o episódio do tico-tico e do chupinzão. O
chupinzão é o explorador desbordado, e o tico-tico, o que o sustenta. Por que
então matar o tico-tico, que é o que faz Macunaíma? A resposta radica na
ideologia do Modernismo. Permanecer servindo permanentemente quem nos
suga e desgraça não é atitude digna de um herói modernista. Veja-se que no
poema Agora eu quero cantar, em circunstância análoga, a de Pedro, lê-se:
283
“Havia, desgraçado, havia / Sim, burro, idiota, besta, / Havia sim, animal, / Bicho,
escravo sem história, / Só da história natural!... / Por trás do túmulo dele / Tinha
outro túmulo... Igual.” A história de Pedro, como se leu, é história de submissão.
Mais claro: o poema propõe a inaceitação da dominação do capital sobre o
trabalho e sugere o levante social. É possível fazer-se analogia desse poema
com o Cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves. No poema romântico, subjaz
a sugestão segundo a qual a aceitação pacífica da escravidão por parte dos
escravos jamais alteraria a situação. O que se lê em Agora eu quero cantar vai
ser possível examinar também em Operário em construção de Vinicius de
Morais, na segunda fase modernista. As marcas ideológicas identificáveis em
Agora eu quero cantar e em Operário em construção apontam à ideologia que
sustentou o Modernismo brasileiro. Tudo isso está conetado à atitude
aparentemente estranha de matar o tico-tico, e não o vira-vira, que não constrói
o próprio ninho, mas se aproveita do dos outros.
Provavelmente, a conclusão mais interessante a ser obtida da leitura de
Macunaíma é a atenção que o autor dispensou ao discurso elaborado no texto.
Por discurso aqui se entende a especial e única organização da linguagem
literária em determinado texto, a partir das possibilidades oferecidas pela língua.
A extensão do título da rapsódia, o herói sem nem um caráter, é coerente com a
proposta discursiva. O discurso em Macunaíma constitui generoso esforço de
hibridação de falas e formas do Brasil, única maneira – parece – que Mário de
Andrade vislumbrou para a construção da literatura brasileira, sem
predominância de nenhum caráter cultural sobre os demais. Só dessa maneira
– parece sugerir Mário de Andrade – haveria uma literatura que se poderia
chamar de brasileira.
Segunda fase modernista (1930–1945)
Marcus VINÍCIUS de MORAES
Vinícius de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1913 e aí faleceu em
1980. Em 1933 publicou seu primeiro livro de poemas, O caminho para a
distância.
A obra poética de Vinícius de Moraes é dividida habitualmente em duas
fases: uma de sentido místico, lírico e político, e outra mais sensual e de
linguagem mais simples, que ele usou também nas composições musicais. Em
1954 iniciou-se como teatrólogo, com Orfeu da Conceição, que mais tarde virou
filme, Orfeu do carnaval. Poesia completa e prosa (1998) reúne a produção
literária de Vinícius de Moraes.
Como diplomata, morou nos Estados Unidos, França e Uruguai. Após a
promulgação do AI-5 (Ato Institucional n. 5), em 1968, editado pelo poder
284
ditatorial militar, o poeta foi aposentado compulsoriamente da carreira
diplomática. A partir de então passou a se dedicar à música popular.
Soneto de fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive,
Quem sabe a solidão, fim de quem ama,
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama,
Mas que seja infinito enquanto dure.
Comentários ao poema Soneto de fidelidade
Soneto de fidelidade tem versos decassílabos de caraterísticas tradicionais
dessa espécie de poema, salvo breves licenças nas posições do esquema rímico
(como se pode constatar nas rimas finais dos tercetos).
Sob o ponto de vista ideológico, o poema reflete sobre concepção
existencialista da vida: a vida deve ser vivida enquanto vida presente e usufruto.
Por esse caminho foi sendo criada a poesia lírico-amorosa desse momento. A
chamada de música popular brasileira dessa época carregava toques
penumbristas, cuja redenção é a vida presente, como se poderá constatar
também em Mãos dadas de Drummond de Andrade.
A esperança e a utopia continuaram a marcar o Modernismo na segunda
fase. Na segunda fase, a manifestação social da literatura, especialmente em
prosa, tende à denúncia das desigualdades e das más condições de trabalho
dos operários rurais e urbanos.
O operário em construção
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo,
285
Que a casa de um homem
É um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente,
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela,
Banco, enxerga, caldeirão,
Vidro, parede, janela,
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem fazia
286
Ele, um humilde operário,
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção,
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão.
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
287
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão. –
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– “Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado,
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado,
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão.
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
288
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário,
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou–lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-a a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos,
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão,
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário,
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
289
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu em seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Comentários ao poema Operário em construção
O operário em construção desenvolve a temática da relação capitaltrabalho. Faz isso, porém, de maneira um tanto diferente das usadas nos textos
anteriores. A reflexão desenvolvida pelo poema está centrada na ideia da
conscientização político-deológica dos operários, i. é, das pessoas subalternas,
sem prestígio nem poder, na sociedade. A consciência da condição, ou o
reconhecimento da real situação, é que poderá desencadear mudanças, a partir
de atitudes, na linha de Agora eu quero cantar, de Mário de Andrade. Os grupos
sociais sem acesso aos benefícios do trabalho que especialmente esses
mesmos grupos produzem é o mote fundamental das reflexões críticoideológicas dessa literatura.
Construção, no texto em estudo, significa construção, fabricação de alguma
coisa. Significa também, principalmente, a construção da consciência de classe
entre o operariado, de modo que, a partir dessa conscientização, seja possível
construir a luta de classes, o aperfeiçoamento, o justiçamento social.
290
Carlos DRUMMOND de ANDRADE
Drummond de Andrade nasceu em 1902 em Itabira (MG) e faleceu em
1987, no Rio de Janeiro. Criou-se em fazenda. Estudou em Itabira, Friburgo e
Belo Horizonte; diplomou-se em Farmácia; lecionou Geografia; exerceu o
jornalismo e ocupou cargos públicos desde 1929. A partir de 1933 residiu no Rio.
Trabalhou no Ministério da Educação e no Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Fundou A revista, em 1925, em que expôs a missão que entendia
caber ao escritor.
Algumas obras dele: A rosa do povo (1945), Viola de bolso (1952), 50
poemas escolhidos pelo autor (1956), Boitempo & A falta que ama (1968) – livros
de poemas; Confissões de Minas (1944), Cadeira de balanço (1966), Os dias
lindos (1977) – prosa.
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da
janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
homens presentes,
a vida presente.
Comentários ao poema Mãos dadas
Semelhantemente ao Soneto de fidelidade, Mãos dadas procura refletir
sobre a circunstância do mundo plausível presente. Não o seduzem o passado
nem o futuro. Tampouco interessam mecanismos sublimação, misticismo e fuga.
A esperança, unida à solidariedade, possibilita, segundo o poema, que a
humanidade caminhe de “mãos dadas”.
O novo homem
O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
291
como no antigório.
Rirá como gente
beberá cerveja
deliciadamente,
caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como for
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com sorriso maroto:
“Nove meses, eu?
Nem nove minutos.”
Quem já concebeu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
292
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio,
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
293
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.
Comentários ao poema O novo homem
Bandeira falou em quintanares para referir-se a certo tipo de textos
compostos por Mário Quintana. Consideram-se em geral os quintanares frasespoemas: breves, simples e de grande intensidade significativa. Por exemplo: “Os
verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem”. Quintana
intitulou esse microtexto Para um portal de biblioteca.
A crítica chamou de versiprosa o estilo de certo tipo de textos produzidos
por Drummond de Andrade. Como o nome pretende dizer, trata-se de textos
simples, rápidos, no limite da oralidade, construídos em versos, geralmente para
serem publicados em jornais. Marcam-se também como crônicas jornalísticas, i.
é, tematizam fatos, fenômenos, constatações do dia-a-dia. Assim é que se
poderia introduzir a leitura de Novo homem.
Com a iminência do advento da fecundação humana in vitro, na época,
surgiram surpresa e preocupação. Parece que o destino do homem tende ao
perigo, a modificações extraordinariamente sérias, a ponto de, como se constata
na leitura do poema, descaraterizar o próprio ser humano. O novo homem
“acabou com o Homem” diz o penúltimo verso. Observe-se que no primeiro verso
o substantivo “homem” aparece grafado com inicial minúscula; no penúltimo, em
referência à espécie humana, com inicial maiúscula. “Bem feito” é o que se lê no
último verso. A leitura, portanto, tem duas possibilidades justificadas: O novo
homem acabou com o homem (que era) bem feito, i. e, gerado e gestado como
deve ser uma pessoa; o incessante afã humano de buscas de novidades, sejam
quais forem, levou-o a autodestruir-se – “bem feito” pra ele, que não se comporta
como homem: faltam-lhe resignação, autorreconhecimento de limites e
humildade.
GRACILIANO RAMOS de Oliveira
Graciliano Ramos nasceu em 1892 na cidade de Quebrângulo, no sertão
alagoano. Viveu em Viçosa e Palmeira dos Índios, Maceió (AL), Buíque (PE) e
Rio de Janeiro. Trabalhou como jornalista. Em 1933 foi publicado Caetés, sua
estreia, em composição desde 1925. No ano seguinte, publicou São Bernardo.
Em março de 1936, acusado de conspiração no levante comunista de 1935, foi
preso em Maceió e enviado a Recife e daí ao Rio de Janeiro, com outros 115
presos. O país estava sob a ditadura de Vargas e do coronel Filinto Müller.
Depois de libertado, passou a trabalhar em jornais do Rio de Janeiro.
294
Recebeu o prêmio Literatura Infantil, do Ministério da Educação, com A
terra dos meninos pelados. Em 1938, publicou Vidas secas; em 1944, Histórias
de Alexandre.
Em abril de 1952, viajou à Tchecoslováquia e à Rússia, onde teve alguns
de seus romances traduzidos. Visitou também a França e Portugal. Viajou depois
a Buenos Aires, em busca de tratamento médico. Faleceu no Rio de Janeiro em
1953. Nesse ano foi publicado Memórias do cárcere, cujo capítulo final não
chegou a ser escrito.
Vidas secas
(capítulo Fabiano)
Fabiano curou no rasto a bicheira da novilha
raposa. Levava no aió um frasco de creolina e, se
houvesse achado o animal, teria feito o curativo
ordinário. Não o encontrou, mas supôs distinguir as
pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos
no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria
para o curral, que a oração era forte.
Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência tranquila e
marchou para casa. Chegou à beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na
lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos
que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça
inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda.
Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e
outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas,
afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto
hereditário.
Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e
branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas
alpercatas, balançava.
A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na
catinga a novilha raposa.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado,
com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo
de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos
tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos
sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou
as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com
palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.
– Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
295
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam
admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas
um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os
olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas, como viviam em terra alheia,
cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos
e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse
percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
– Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.
Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo,
fumando o seu cigarro de palha.
– Um bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns
dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com
ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera
os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito
que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o e entregara-lhe as marcas de ferro.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um
bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as
quipás, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como
as catingueiras e as baraúnas. Ele, sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra
Baleia estavam agarrados à terra.
Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro
derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados.
Parecia um macaco.
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele
era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um
vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, de hóspede. Sim
senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral,
ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe
as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:
– Você é um bicho, Baleia.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros
quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se
com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica
e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia
296
para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas
relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos –
exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras
compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão,
mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano
parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não
percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito
curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que não era da
conta dele, como iria acabar? Repeliu-o, vexado:
– Esses capetas têm ideias...
Não completou o pensamento, mas achou que aquilo estava errado. Tentou
recordar o seu tempo de infância, viu-se miúdo, enfezado, a camisinha encardida
e rota, acompanhando o pai no serviço do campo, interrogando-se debalde.
Chamou os filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessá-los. Bateu
palmas:
– Ecô! ecô!
A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e quipás, farejando a
novilha raposa. Depois de alguns segundos voltou desanimada, triste, o rabo
murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos
meninos. Era bom eles saberem que deviam proceder assim.
Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou à ladeira que
levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua
vida houvesse aparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar
aquela perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao gado.
Felizmente a novilha estava curada com reza. Se morresse, não seria por culpa
dele.
– Ecô! ecô!
Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças
divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano destoldou. Aquilo é que
estava certo. Baleia não podia achar a novilha num banco de macambira, mas
era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercício fácil – bater
palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra
tornou a voltar, a língua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do
grupo, satisfeito com a lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que
não fora ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho medonho.
Agora queria entender-se com sinha Vitória a respeito da educação dos
pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa,
regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote
vazio e regressando com o pote cheio; deixava os filhos soltos no barreiro,
297
enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis.
Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não
tinha.
– Está aí.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais e nunca ficaria
satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais
arrasado era o seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais.
Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: – “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para
que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho
aos outros.” Pois viera a seca, e o pobre velho, tão bom e tão lido, perdera tudo,
andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como
ele não podia aguentar verão puxado.
Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da
bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pé
aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu Tomás
respondia tocando na beira do chapéu de palha, virava-se para um lado e para
outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com remendos
vermelhos.
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis,
truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente
que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de
jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado
ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele.
Ah! Quem disse que não obedeciam?
Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava
sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar
tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha
o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as
descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e
prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava
tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem
tinha dúvida?
Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos
esperasse. Ao ser contratado, recebera um cavalo de fábrica, perneiras, gibão,
guarda-peito e sapatões de couro, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o
substituísse.
Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da
bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era
298
doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia
o patrão os botaria para fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam
meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem de
baixo de um pau.
Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse,
não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido
assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer,
sucedera o mesmo – anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava
em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando
para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas – ela se
avizinhando a galope, com vontade de matá-lo.
Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu-se. Não queria
morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante
como seu Tomás da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava
brigar com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria
morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia
sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem.
– Um homem, Fabiano.
Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente
não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos
brancos, quase uma rês na fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo.
Passara dias sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estômago. Viveria
muitos anos, viveria um século. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um
touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e
ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar
mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser
duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira.
Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do
estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito...
Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás
da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos
poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de
comportar-se como gente da laia deles.
Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou
atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois.
299
As alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia
trotava arquejando, a boca aberta.
Àquela hora sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada junto à trempe,
a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu
vontade de comer. Depois da comida, falaria com sinha Vitória a respeito da
educação dos meninos.
Comentários ao capítulo Fabiano de Vidas secas
Vidas secas constitui experiência inovadora no romance brasileiro. Mesmo
para o romance de trinta, que tentou revigorar a forma realista de romance, mas
às vezes com técnicas românticas incluídas, Vidas secas representa variada
gama de inovações.
Sob o ponto de vista estrutural, os capítulos estão centrados em
personagens e episódios. Os personagens fazem a conexão entre os capítulos,
que se fecham semelhantemente a contos.
Central no capítulo em estudo parece ser a reflexão do personagem
Fabiano. Fabiano, como se constata, não é o narrador, mas é sob sua
perspectiva que a narrativa flui. Fabiano reflete em voz alta: “– Fabiano, você é
um homem”. Em seguida, envergonha-se do que dissera e reconsidera: “– Um
bicho, Fabiano”. Adiante, quando Baleia lhe lambe as mãos, Fabiano diz para
ela: “Você é um bicho, Baleia”. Vendo-se mais na condição de Baleia do que na
de seu Tomás da bolandeira, Fabiano considera-se mais bicho que homem. O
fato de Baleia lhe lamber as mãos, imediatamente antes de ele dizer que ela é
um bicho, remete à condição social que o aflige: sua dependência ao patrão, sua
subjugação ao soldado amarelo, ao fiscal de impostos da prefeitura, todos
injustos, arbitrários e violentos. Mais adiante, ainda nesse capítulo, ele admite
sua condição de homem, fundado na esperança de mudar seu rumo de vida. É
o anúncio subliminar da utopia da igualdade social que se fez novamente forte,
no romance de trinta.
Vidas secas pode ser lido, com coerência, como o romance que discute,
entre outros assuntos, a situação limiar entre a condição da vida e da
sobrevivência. Trabalha, portanto, sobre a temática já encontrada em Agora eu
quero cantar e outros textos da época. Pode-se examinar isso em Vidas secas,
tanto do ponto de vista da sobrevivência da condição de homem num ambiente
hostil, como foi feito anteriormente, quanto da sobrevivência da vida individual
das pessoas, nesse tipo de ambiente. Por essa razão se justificam, p. ex., a
ausência de nomes próprios nos filhos do casal, que são indicados apenas como
o “menino mais novo” e o “menino mais velho”. Fabiano, em situação de
desespero, chega mesmo a admitir morte prematura do mais velho, para que
não atrapalhasse a viagem a pé da família pelo sertão estorricado, porque o
menino estava exausto e não mais conseguia caminhar.
300
Baleia, que é uma cadela, tem nome (estranho nome, aliás, para vivente
do sertão nordestino brasileiro): lembra pujança, poder e mar. Contrariamente,
os meninos, apesar da condição humana, não os têm. Eis aí a questão que
esclarece a leitura dos limiares, acima discutida. Baleia caça e come restos,
ossos. Os meninos não ajudam na subsistência; diferentemente de Baleia,
apenas consomem. Não seria essa uma forte razão de eles não terem a distinção
do nome próprio, em situação subumana, em que a sobrevivência é central?
CYRO dos Santos MARTINS
Cyro Martins nasceu em Quaraí (RS), município limítrofe com Artigas
(Uruguai), na fronteira sudoeste, na Campanha gaúcha, em 1908. Faleceu em
1995 em Porto Alegre (RS). Formou-se em Medicina em Porto Alegre e
especializou-se em Psicanálise em Buenos Aires. A produção intelectual do
autor é constituída de ficção (romances e contos) e ensaios nas áreas da
psiquiatria, da psicanálise e da crítica literária. Tem obras traduzidas para o
espanhol e para o alemão.
Do conjunto da obra do autor, é especialmente conhecida a trilogia do
gaúcho a pé. A trilogia é formada pelos romances Sem rumo (1937), Porteira
fechada (1944) e Estrada nova (1954) e trata da condição social do homem do
campo do Rio Grande do Sul, no século 20. Cyro Martins tem sido considerado
o mais autêntico autor do romance de trinta sobre assuntos campeiros no Rio
Grande do Sul.
Outras obras de Cyro Martins: Campo fora (1934); O príncipe da vila (1982);
O professor (1988) – ficção; A criação artística e a psicanálise (1970), Escritores
gaúchos (1976), O mundo em que vivemos (1983) e Páginas soltas (1994) –
ensaios.
Em Porto Alegre têm sede o Instituto Cyro Martins, centro de psiquiatria e
psicoterapia, e o CelpCyro, Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise,
homenagens e extensões do trabalho literário e profissional do autor.
Porteira fechada
(excerto do capítulo 2)
João Guedes, um dos assíduos frequentadores do boliche do capitão,
mudara-se da campanha havia três anos. Três anos de pobreza na cidade
bastaram para o degradar. Ao morrer, não tinha vintém nos bolsos e fazia dois
meses que saíra da cadeia, onde estivera preso por roubo de ovelha.
A história da sua desgraça se confunde com a da maioria dos que povoam
a aldeia de Boa Ventura, uma cidadezinha distante, triste e precocemente
envelhecida, situada nos confins da fronteira do Brasil com o Uruguai.
301
Essa história começou numa manhã, no tempo em que João Guedes ainda
era morador da campanha.
Levantara, como de costume, ao clarear do dia. Logo ao pisar fora da porta,
foi festejado pelo Amigo, um cusquinho malhado, já velhusco e trôpego, mas se
conservando ladino e de confiança. Ao contato da aragem fina, estirou os braços
e bocejou, estralando as juntas, num espreguiçamento que foi uma desajeitada
e agreste saudação à aurora. Depois agradou o companheiro de madrugadas.
– Buenas, Amigo!
O cãozinho pôs-se de pé sobre as patas traseiras, esfregando a cola na
terra, as mãozinhas dobradas, os olhos miúdos apertados, franzindo o focinho e
ganindo como num choro, mas de alegria. Retribuindo tamanha festa, Guedes
palmeou-lhe a cabeça e se deixou lamber, antes de seguir o caminho que tinha
em mira na direção da pipa. Esta, a pipa de arrastar água, era um barril de vinho
nacional, reatado com arame sobre uma forquilha de açoita-cavalo. Ao chegar
lá, agarrou a vasilha, uma lata de compota de abacaxi, permanentemente
emborcada sobre o saco dobrado que tapava a boca do barril. Encheu em
seguida a bacia de folha amassada que vazava e que, fazia tempos, se mantinha
tembleque em cima dum lavatório de três pernas, enferrujado, enclenque e
amarrado ao tronco dum cinamomo para que os bichos não o derrubassem.
Meteu as mãos n’água e lavou a cara, terminando por passar as palmas
molhadas, de diante para trás, no cabelo crescido e duro. Depois, enxaguou a
boca e cuspiu longe o jorro, que caiu em esguicho, fazendo um barulhinho
esparramado de grão atirado ao terreiro, logrando as galinhas.
Sem demora, dirigiu-se para o galpão, um galpãozinho de três paredes,
aberto para o Norte. Agachou-se no lugar do fogo, chegou as pontas dos tições
apagados da véspera e amontoou entre eles umas palhas secas de milho.
Lascou um fósforo e esperou com um prazer primitivo a labareda que não
demorou a se erguer, lambendo com fome o picumã da chaleira.
Abancado num cepo, enquanto aguardava o chiado para principiar o mate,
Guedes espichou frouxamente a perna esquerda, meteu a mão no bolso e tirou
os avios de fumar. Sem pressa, picou o amarelinho, esfregou-o na palma da
mão, sovou a palha, enrolou o crioulo e o prendeu numa brasa solita, que se
gastava à toa no borralho.
O Amigo se postara em frente, na sua atitude habitual de “mirante” que às
vezes se distrai e pega no sono.
Guedes planejava capinar nesse dia o eito de batata doce, ameaçado de
invasão pelo ervaçal. E também, antes que o inverno embrabecesse, barrear o
rancho, pelo menos as paredes que davam para o Sul.
Enfim, ocupação não faltava. Mas felizmente ainda se achava com forças
para qualquer trabalho, por pesado que fosse.
302
Quando chupava o quarto mate e o sol vinha nascendo, apareceu a Maria
José. Logo atrás surgiram o Lelo, a Tita e a Isabel, ambas mais velhas que o
rapaz, que não passava dos doze anos. Tinham ficado na cama as duas
menores, Picucha e Aurora.
Depois de estarem todos reunidos durante alguns momentos, Maria José
mandou o filho manguear as vacas mansas, enquanto ela tomava uns mates
com o marido. Lelo se mexeu sem vontade, fazendo beiço, mas foi. Estava
habituado ao ar livre e ao sereno nos pés descalços. Não gostava, porém,
daquele serviço, que constituía uma das suas obrigações diárias: botar vaca de
manhã e de tarde. Andar à toa pelo campo, a cavalo ou a pé mesmo, isso, sim,
o divertia.
A mãe o seguia com olhar vigilante, enquanto o pai, de cabeça baixa,
chupando a bomba, trazia para entre os joelhos a Picucha, a menorzinha de
todas, que recém viera lá de dentro.
Nisto, a Tita falou: – Lá apontou um.
Atenderam todos na direção que o dedo da menina mostrara. Guedes se
levantou. E depois de observação demorada, declarou não conhecer o que vinha
vindo e acrescentou ainda que lhe parecia não ser gente de por ali. A esta voz,
Maria José e as filhas se retiraram. O gaúcho botou fora um pouco de erva e
encilhou o mate para esperar o forasteiro. Como dava tempo, pegou a vassoura
de guanxuma e deu uma varrida rápida, por alto, em redor do fogo, amontoando
o cisco num canto. Feito isso, pôs-se a olhar de novo, imaginando quem seria.
Chapéu... não soube explicar como era o chapéu, casaco de couro, botas
lustrosas, cavalo gordo... Não, era debalde, não conhecia. Não era dali o sujeito.
Só depois que o homem chegou na frente da casa foi que ele viu que se
tratava do seu Júlio Bica e não escondeu a satisfação de revê-lo, depois de uma
ponchada de anos, pois o fazendeiro pouco parava na estância, vivendo mais na
cidade ultimamente.
– Coisa das filhas, que estão se parando moças. São elas que me puxam
pra lá – explicou Júlio Bica , sem necessidade, só para se mostrar agradável.
Apesar da insistência de Guedes, o fazendeiro não quis passar para a
salinha do rancho, preferindo ficar ali mesmo, no galpão. Não era homem de
cerimônia, em qualquer parte estava bem, principalmente perto do fogo.
– Se le agrada...
Guedes ofereceu-lhe um mochinho de três pés, baixo, acomodando-se ele
no cepo de cortiça. Em seguida apanhou a cuia e recomeçou a cevar o
chimarrão, bastante intrigado com a presença do outro em sua casa, apesar de
serem lindeiros.
Júlio Bica era dos fazendeiros mais fortes do município e homem muito
falado. Vinha se expandindo assombrosamente nos últimos tempos, a ponto de
303
dobrar a extensão de campo em pouco mais de dois anos. Sendo moço e
ambicioso, imaginava-se aonde poderia chegar se continuasse nesse tranco.
Chuparam uns mates em silêncio. Guedes não achava o que dizer, e o
outro aguardava um “a propósito”. Finalmente, entesando o peito no conforto do
casaco de couro e com um ar de broma de quem quer usar de franqueza sem
constranger, o fazendeiro tocou em cheio no assunto.
– Então, já sabe que lhe botei pra fora daqui?
Guedes aturdiu-se com a nova, ficando a bolapé na conversa. De tantos
anos que morava ali, quase se esquecera que aquele pedacinho de campo não
lhe pertencia, que ele não passava dum simples arrendatário. Por isso, custou a
vir à tona e, quando veio, foi para dizer:
– Puxa, que sogaço!
Júlio Bica, que se calara, espreitando o efeito das suas palavras, fez uma
pergunta condescendente, em tom de admiração:
– Mas o seu Bento não lhe avisou nada?
– Faz muitos dias que não vejo ele. Acredito mesmo que não esteja em
casa, que ande para a cidade.
O estancieiro sabia perfeitamente que o outro ignorava tudo, pois o negócio
fora fechado dois dias antes, em Boa Ventura. Entretanto, diante do
desapontamento de Guedes, deixou-se tomar de um vago sentimento de
remorso e de pena, meio arrependido do arranco inicial. Mas esse estado durou
pouco. Em seguida reagiu contra a própria fraqueza: “Que diabo, negócio é
negócio!” Bobagens, sentimentalismos não abalariam em nada o seu plano:
forçar o arrendatário a desocupar o campo o quanto antes.
Guedes ainda manifestou estranheza pelo fato de seu Bento, um homem
sério, ter realizado um negócio daqueles sem lhe avisar de nada, sendo ele seu
arrendatário.
O fazendeiro assumiu ares circunspectos para responder, vagueando o
olhar no ambiente acanhado do galpãozinho. Ao que se dizia, o homem andava
mal e decerto por isso não quis perder a pechincha. Guedes que visse bem,
aquele era um campo de segunda, e ele dera dezoito contos a quadra. Sim, o
Bento fizera um negocião, não restava dúvida. Era opinião geral. Tinha até medo
de estar passando por bobo
Comentários ao excerto do capítulo 2 de Porteira fechada
Composta de três romances, a trilogia ou o ciclo do gaúcho a pé constitui
momento decisivo do romance de trinta no Rio Grande do Sul. O termo ciclo tem
sido preferencialmente usado, no caso da obra de Cyro Martins, a exemplo do
ciclo da seca (O quinze, Vidas secas, Gabriela, cravo e canela e outros) e do
ciclo da cana-de-açúcar (A bagaceira, Menino de engenho, Usina e outros).
304
Porteira fechada é o segundo romance do ciclo (depois de
Sem rumo e antes de Estrada nova). Empregando recursos diletos
ao romance de trinta, o discurso procura focalizar a fala na forma
mais comum e caraterística de determinado meio cultural. A
sequência dos capítulos está na ordem tradicional de causa-efeito.
A proposta ideológica predominantemente defendida é a discussão
da condição de abandono do homem comum da campanha
gaúcha, as injustiças sociais que sofre, pobre e desprotegido.
Há mesmo, em alguns momentos, certa tendência a retratos instantâneos,
apanágio do Naturalismo. Como a concepção que perpassa esta antologia não
acolhe a noção de literatura como retrato, mas como reflexão sobre o mundo,
essa tendência do romance de trinta aponta a aproximação com o estilo
naturalista.
No chamado de romance de trinta justapõem-se ou se amalgamam formas
realista-naturalistas e até formas românticas. Por essa razão, o romance de trinta
é também conhecido como romance neorrealista brasileiro. O pequeno trecho
lido narra o momento em que o gaúcho, que não é proprietário, mas arrendatário
de pequena extensão de campo, é informado de que a terra que usa para
trabalhar acaba de trocar de proprietário. É o novo proprietário que lhe vem dar
a notícia. A caraterização dos personagens vai evidenciando suas tendências e
intuitos. Separam-se maniqueistamente o personagem do bem do personagem
do mal. O mal está no lado de quem é proprietário poderoso, quase sempre, o
que estabelece alguma semelhança com alguns textos do Romantismo.
O romance põe algum relevo também na avaliação da concepção de êxodo
rural, mais comum nos meios de comunicação. Os fazendeiros apenas vão para
a cidade; os pobres promovem o êxodo. O êxodo aqui, porém, aparece
provocado pela ganância dos latifundiários. A partida de Guedes para a periferia
da cidade, com cinco filhos e mulher, já sinaliza o fim degradante e ou trágico
que espera os personagens.
Porteira fechada
(capítulo 22)
A tarde desse dia, nos campos, caiu serena, sem um frêmito. O sol
descambava devagar, refletindo-se nas sanguinhas cheias, cantantes, irisando
as espumas de sapo, reluzindo nos capinzais crescidos, nos fios do aramado,
na chapa das lagoas. Pendia sobre a campanha uma claridade tênue de céu
lavado. Os animais saíam para os altos a sorver o frescor das pastagens úmidas.
Perdizes assobiavam contentes entre as moitas. Bandos de avestruzes
vagavam, catando bichinhos à flor da terra.
Longe de Boa Ventura, lá no fundo duma estância, numa invernada de dez
quadras de sesmaria, lotada de bois, defrontavam-se três taperas: a do Bentinho,
a do João Guedes e a da Gertrudes. Sobravam algumas árvores, algumas
305
pedras e os sinais de moradia humana no chão. Nada mais. Os bois gostavam
de lamber aquela terra.
Aquilo agora era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de
campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava
um pala endomingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra.
Mas que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já
com caídas para o inverno, não havia campo que se lhe igualasse. Seiscentos
novilhos pastavam folgadamente entre as altas cercas de sete fios de madeirama
de lei que a tapavam.
O sol entrou sem grandes esplendores. A noitinha caiu suavemente.
Que paz naqueles campos!
Comentários ao capítulo 22 de Porteira fechada
Esse é o fim do romance. As taperas marcam o afastamento dos antigos
moradores, expulsos pelo latifúndio. É uma forma de ver a relação opositiva
capital-trabalho. A sustentação ideológica é pois coerente com a escola.
“Que paz naqueles campos!” A paz que sobrevém é a da ausência da vida:
“Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa
porta de toca, não tremulava um pala endomingado, não chiava uma carreta, os
arados não rompiam a terra”. São cinco orações, cujos cinco verbos estão
acompanhados de advérbios de negação. O derradeiro período do texto,
portanto, recorre à ironia, para alcançar os objetivos estilístico e ideológicos do
romance.
Estrada nova
(capítulo 30)
Depois que o Dr. Serafim, o delegado, os brigadianos, Lobo e Demenciano
foram embora, a vida na Estância Velha tentava recobrar sua rotina, ainda
bastante abalada. Os mensuais saíram pra o campo, para uma percorrida por
perto. O capataz os mandara encilhar os cavalos e sair, só pra que não ficassem
sebeando no galpão, com o sol alto. O peão caseiro foi cortar lenha no picadeiro.
O chofer, sim, esse privilegiado sesteava na garagem. E o cachorro velho
caduco, o outrora temido Carranca, modorrava no mormaço do galpão aberto.
Miguel, pelo visto, não saíra, porque o seu cavalo lá estava embaixo dum
cinamomo. Ele não andaria longe, provavelmente pelas mangueiras, provando
a firmeza dos moirões e verificando se as cordas das cercas estavam bem
puxadas.
Lá dentro, no pátio fechado, as mulheres entregavam-se às lidas
costumeiras, um pouco mais quietas que nos outros dias.
Teodoro encerrara-se na salinha do oitão, de cara feia, os dedos ocupados
em fazer palitos com o seu canivete muito afiado, um atrás do outro, o coração
oprimido por pressentimentos vagos. A sobra duma tristeza flutuava no ar
306
parado. Algo ruíra. O seu feudo? Não que houvesse ruído lá fora, com estrondo.
Muito pior, no seu íntimo, silenciosamente.
Para Anastácia, o velho estava apenas emburrado. Era mais um burro,
entre os tantos da tropilha. E ela já sabia de anos, esses burros se amansavam
sozinhos. O melhor era deixá-los que se empanturrassem nas touceiras de
capim-limão das fúrias caladas do Coronel.
Para Dona Almerinda... Bem, ela, uma pessoa plácida, rezadeira, confiante
e temente a Deus... Ela sentia que aquele rebuliço todo provocara um transtorno
no Teodoro. Onde iriam parar as coisas, por ora não atinava. Estava com
cuidados por ele.
Mas seriam simples burros, os tradicionais, familiares a todos da casa, o
sentimento que o oprimia ante a constatação de que se criara uma situação
constrangedora, capaz de alterar definitivamente a sua vida, dando por terra com
os últimos resquícios do seu prestígio distrital e da sua fama de homem bom?
Complicações de família, assim, imediatas, não as tinha, embora... Bem, os
filhos, criados, casados, ricos, despreocupados do ganho diário, gozavam a
fortuna longe. Só de vez em quando se lembravam deles, os velhos.
Casualmente havia poucos dias, uma raridade!, recebera uma carta do Ataliba,
o mais velho, contando-lhe as maravilhas e peripécias da viagem que fizera de
automóvel de Porto Alegre a São Paulo. Tudo narrado num tom brincalhão,
leviano, de quem já está com o mundo no papo. Não concordava em absoluto
com o caminho de esbanjamento por onde enveredara aquele rapaz, criado na
moleza e na abundância. Alentado pelas suas fracassadas ambições
caudilhescas, pensara fazer dele, aproveitando-lhe a estampa e a simpatia à
primeira vista, um advogado, um político, um deputado, mas o tiro lhe saíra pela
culatra. E Ataliba, como o outro, o Aluísio, não passavam hoje de homens fúteis,
criançolas irresponsáveis. E quem sabe ainda, porque o mundo dá tantas voltas,
se um dia não iriam botar fora a fortuna herdada e acabar por aí nomais, como
uns pobres diabos? Conhecia exemplos... Pensariam que ele era eterno? Para
ele, o seu mundo, o mundo em que criara os filhos, já estava se alterando,
deteriorando-se, no sentido de não oferecer mais aquela segurança de futuro
tranquilo, de antigamente. Seria legítimo esse pensar ou matutava assim porque
estava triste? Qualquer voz secreta lhe dizia que, daqui por diante, para os da
geração dos seus filhos, seria preciso aligeirar o passo para não tropeçar.
Uma flecha de sol morrente pousou no retrato do Coronel Januário. De
cada vez que isso acontecia, era levado a olhar para trás, ao arrepio da estrada
da sua vida, tendo pena de si mesmo às vezes, com orgulho, outras.
Teodoro contemplou demoradamente a fisionomia do cunhado,
analisando-lhe os traços. Não era de agora a consciência que possuía de que
os intentos acariciados na mocidade de igualá-lo e substituí-lo haviam
malogrado. Durante muito tempo atribuíra esse fracasso, desculpando-se
intimamente, à falta de certos atributos físicos, o timbre convincente da fala, a
307
penetração do olhar que parecia bandear as almas sem ferir, a barba, tão bem
casada com o aprumo do porte, até o jeito dele divisar longe a cavalo do alto
duma coxilha, tudo enfim que fazia duma grandeza natural e impunha à primeira
vista a figura de Januário. À medida que corriam os anos, a velhice chegava e
as esperanças minguavam, iam-se acentuando suas dessemelhanças com o
modelo. E não só no corpo, também no moral. Reconhecia agora, mordendo o
beiço amargurado, que nunca tivera a coragem, o desprendimento, o
cavalheirismo, o tino político e a convicção de propósitos que distinguiam a
personalidade do cunhado. Na verdade, enriquecera mais que Januário, era
dono de maior extensão de campo, tinha mais gado, mais dinheiro disponível
nos bancos, porém o sonho caudilhesco de chefia política fora só desandando
com o tempo. Em 23 perdera uma oportunidade única, por vacilação, por falta
de astúcia e por medo, valha a verdade. Entretanto, apesar desses contratempos
anteriores, com a fortuna que acumulara, era pra ninguém lhe pisar no poncho
ali no distrito, talvez no município. Para isso, porém, necessitava dispor de gente,
ser homem de círculo. Consolava-o, no entanto, a certeza de que o seu caso
não era isolado, pois sabia, isso se comentava, que nenhum grande fazendeiro
da fronteira contava mais com um eleitorado apreciável. Todos, sem sobrar um
pra remédio, haviam cavado o vazio em torno de si. Era o castigo da ambição
desmedida, reconhecia desapontado. Tinham corrido os agregados, o vizindário
miúdo, reduzido o número de peães, não se importando mesmo com a sorte dos
pobres. Claro, de vez em quando um gesto bonzão. Mas isso não chegava. Não
é que a gente tenha ficado muito pior que os de dantes. Puxa, no seu tempo de
guri e de mocito ouviu contar cada história de judiaria de estancieiro! Não haveria
de ser de graça que corria mundo, na boca do povo, aquele causo bonito-triste
do Negrinho do Pastoreio, a mentira-verdade mais verdadeira que ele já
conheceu. Pois bem, taí, recebiam agora a paga do que fizeram. Daí, quem
sabe, seria bem assim? Fizeram e não fizeram, os tempos fizeram... Os tempos
fazem tanta coisa! Hoje, por exemplo, os campeiros antigos, como o Janguta e
os seus descendentes que já mal conheceram cavalo, andam estropeando os
pés nos pedregulhos das cidades. E nós, fazendeiros, que já não temos muito o
que fazer a cavalo, andamos de auto. Também vamos indo ou já estamos por
lá. Engraçado, até parece que a campanha, aquela campanha linda e livre de se
camperear de antigamente, assim que se demudava, foi enjoando os Jangutas
e os seus Teodoros e tocando com eles rumo à cidade. O remédio agora era
aguentar na fibra aquele baita tirão, legítimo tirão de atrás. E irem morrer no
povo, juntos, acolherados por um fadário igual-desigual, os Jangutas e os seus
Teodoros, como peixe fora d’água, como ressaca de arroio, que apodrece sem
nenhum proveito em cima dos barrancos. Mas o mundo velho não para. E entre
o décimo oitavo palito e o décimo nono, foi completando o seu pensamento: é
verdade que, de vez em quando, apeia (o mundo) para compor os arreios... E
também às vezes, no bom da galopeada, a cincha corre pras virilhas, o pingo
corcoveia, e o ginete que se agarre com força no santo-antônio!
308
O coronel largou o canivete e os palitos, mirou mais uns instantes o retrato
de Januário, sorriu, fez uma careta. Parecia estar fazendo pouco de alguém.
Dele mesmo? Do cunhado e chefe? Não, o mundo, o mundo grande, o mundo
que ele ouvia pelo rádio, esse não iria parar, a não ser para dois dedos de prosa.
E em seguida, de novo, continuaria a bater estrada, descendo canhadas,
subindo coxilhas, varando a nado arroios cheios. Simplesmente porque o mundo
não podia parar. O que mudava eram os sistemas de vida. O seu já era bem
diferente daquele do tempo do coronel Januário. E dali pra frente, que seria o
sistema imperante nos dias dos seus filhos... Bem, lhe cortava a alma
prosseguir... Aqueles rapazes, se não se precatassem, e pelo visto não iriam se
precatar, de repente cairiam de bunda no chão e deslizariam lançante abaixo.
Teodoro pôs-se de pé, pesado, doído, deu alguns passos indecisos pela
sala em penumbra, depois abriu a porta, recebeu na cara a aragem da tardinha,
e, numa súbita resolução, esquecido momentaneamente da longa charla com
seus adentros, gritou forte para fora:
– Miguel!
O capataz respondeu logo, como se estivesse postado desde horas em
ponto estratégico, à espera daquele chamado.
– E o Janguta e a mulher e a filha?
– Já se foram.
– Como?
– A pé.
– A pé? Então, você me deixa alguém sair a pé da minha estância?
– Quando vi, patrão, eles já iam longe, mal se enxergando os vultos. O que
chamou a atenção foi o grito dos quero-queros. Saíram fugidos.
– E pra completar, mais esta!
Atrás do galpão, o negrinho da cozinheira não estava brincando de estância
e, se o fazendeiro o surpreendesse naquele momento, não desconfiaria que ele
não sonhava em ser um dia seu igual, dono de léguas de campo e milhares de
cabeças. Ele estava brincando, mas era de polícia. Prendera um comunista e
judiava dele para que confessasse a quem tinha matado e roubado ou a quem
planejava matar e roubar. Já lhe havia dado muitos coronhaços na cabeça, posto
de braços estendidos, estaqueado dois palmos acima do chão, atirado num
lagoão fundo com uma corda no pescoço, numa madrugada fria e, como o sujeito
teimava em manter-se calado, ameaçava capá-lo. Inocências vingativas de
criança!... Durante o dia, a conversa no galpão fora só isso. O Lobo, então, se
esparramou contando proezas de crueldade. O negrinho ouviu tudo aquilo
atento, meio se escondendo, fulo, sem fôlego, num susto só, e ficou depois o
resto do dia imaginando o outro lado das coisas...
309
Manuel, um mensual novato, vinha a trotezinho rumo às casas, tocando por
diante uma vaca com terneiro abichado. Saíra pra o campo, sem que o capataz
o mandasse, de propósito, para pensar. Voltava decidido a pedir arreglo de
contas. Ficara amedrontado com o que vira e ouvira na fazenda aquele dia. Não
ia dizer pra ninguém o motivo de ir embora, pra não dar na vista, e se mandaria
sorrateiro na madrugada seguinte, a pé, porque nem cavalo tinha.
Manuel nunca saíra daquelas imediações. Era cria de por ali nomais.
Nascera, piá, atrás “daquele” cerro, um pouco adiante do finado umbu da
Estância Velha. Tinha dezenove anos, não servira ainda no exército e talvez nem
viesse a servir, porque não era registrado. Não conhecia letra, não conhecia
mulher, não conhecia outros pagos. Seus pés nunca viram botas.
O índio vago, que se escondia naquela aparência de songamonga,
acordara de repente. Manuel resolvera correr mundo... Pra onde e por onde? Pra
bem longe, por esses cafundós do deus-dará! Quem sabe se pelo município de
Alegrete?!...
Teodoro, durante a vagarosa caminhada que empreendera ao redor do
estabelecimento para arejar a cabeça, depois de muito perguntar-se coisas a si
mesmo, tomara uma resolução grave. Ia fazer como a maioria dos fazendeiros
– se mandar de muda para a cidade e só viria ali de vez em quando, de visita,
por dois ou três dias. Miguel conhecia muito bem o seu sistema e cuidaria da
fazenda com capricho. E as safras seriam boas. Pelo menos enquanto o seu
sistema vigorasse.
De volta, parou um momento na porta da frente, olhando o poente, mais
calado que antes. Que saudade do seu umbu! Em seguida, dando as costas para
os tormentos e sentindo-se mais firme nos estribos, entrou. Logo avistou Dona
Almerinda sentada na cadeira de balanço, no pátio lajeado, tomando mate doce
servido por Anastácia. Os ponteiros do relógio de Dona Almerinda estavam
parados! Seria oportuno comunicar-lhe naquela hora sua decisão? Ela parecia
calma, o pensamento longe, decerto nos filhos, uns ingratos. Por que não deixála aninhada na sua quietude, depois de tantas tormentas, umas sobre as outras?
Sua presença, embora de semblante sereno, cortou a espontaneidade das
duas mulheres. Almerinda olhou pra ele com uma expressão condoída.
Anastácia afastou-se, indo recostar-se na parede da cozinha.
– Me dá um copo d’água, Anastácia! – disse Teodoro, com uma maciez que
não lhe era comum. Ao mesmo tempo pensava: garantido que o diabo da china
já havia de estar farejando o que lhe passava pela cabeça. Aquilo era um
azougue.
– Grácias, estava bem fresca.
Anastácia branqueou os olhos com espanto. Ué, o que estaria para
acontecer, santo Deus? Não tinha lembrança de lhe ouvir um muito obrigado,
por mais que ela lhe servisse com o melhor jeito do mundo.
310
Teodoro percorria comovidamente, também sentado na sua cadeira de
balanço, com a sensação de estar abrindo os olhos, o pátio grande e limpo, a
parreira carregada de uvas verdes, prometendo... as copadas altas dos
cinamomos e entre os ramos, perseguindo-se e chilreando, os últimos
passarinhos contentes antes do anoitecer. A madressilva do portãozinho, tão
decorativa e perfumosa! E do outro lado da tela, as galinhas que se recolhiam
ao poleiro, encerrando a jornada. Era uma vergonha, mas, pelo menos para ele
mesmo, não devia calar o sentimento. Estava com vontade de chorar. Chorar
por conta da mudança, da saudade que iria sentir da sua casa, daqueles
descampados, do seu umbu, dos seus cavalos, alguns envelhecendo junto com
ele... Do seu prestígio perdido e, sobretudo, da sua fama de homem bom que se
fora águas abaixo!
Um gato manhoso lhe pulou no colo. Dona Almerinda e Anastácia
pasmaram ao vê-lo acariciar, lacrimoso, o dorso fremente do bichano.
Janguta, a mulher e a filha caminhavam dês das quatro da tarde e ainda se
encontravam distantes da última divisa do Coronel Teodoro. Iam agora
enterrando os pés nas cinzas do campo queimado.
– Horre, desgraçado!
– Bem feito, animal!
– Que pena que não queimasse o resto!
A mancha negra, vista a pé, impressionava muito mais. Dava medo, pela
imensidão. A invernada de luxo do Coronel transformara-se num deserto, sequer
um ruído de bicho entre macegas. Nenhum cavalo, nenhuma rês, nenhuma
avestruz naquela terra queimada, nenhum dorminhoco gingando naquele voo de
se desmanchar no ar saturado de cinza.
Eles pestanejavam, esfregavam as vistas, tapavam o nariz, apuravam os
passos, que rendiam pouco. O chapadão não tinha fim. Janguta, de fôlego curto,
sentia a canseira aumentar. Era como se estivesse se afogando num mar de
cinzas. As mulheres, mais fortes, se adiantavam.
Viam o sol morrer, na tarde muito calma, num esbanjo de cores que era um
mistério.
De repente, Janguta ergueu a cabeça, encorajado por uma lembrança.
Recordara-se de Ricardo, das suas conversas, das ideias que tinha, sobretudo
da sua esperança. Quando viriam os homens dos quais ele falava com tanta
crença? Aqueles homens que, como dizia Ricardo, pensavam “na gente” e que
um dia viriam pela “estrada nova”, a galope, alvissareiros, cortando os campos
verdes, acordando os pagos, anunciando uma fartura de verão chuvoso,
enriquecendo de alegria o coração dos pobres!
311
Comentários aos romances da trilogia do gaúcho a pé
Estrada nova aparece como a culminância da sequência dos romances do
ciclo do gaúcho a pé. Os títulos tomados em sequência são especialmente
eloquentes. Sem rumo reflete sobre os indivíduos perdidos no pampa, a pobreza,
a perseguição, a desesperança. Porteira fechada sugere o vislumbre de uma
solução, mas a entrada está vedada. Estrada nova claramente expõe a
alternativa ao desamparo: um novo sistema político, nova distribuição de
poderes, passados inclusive pelo arrasamento do até então existente (o fogo na
invernada), o que sugere, portanto, modificações profundas.
Os recursos de estilo com os quais foi construído Estrada nova apresentam
novidades, comparativamente a outras obras do mesmo autor. Percebem-se
liberdades de narração, especialmente no discurso, que possibilitam expressão
adequada de sentimentos internalizados. Destaca-se o delineamento de
condições de recepção também adequadas à concepção ética, social e do
imaginário do ambiente social em que a narrativa atua. O discurso central do
narrador está pautado em formas da língua de prestígio, mas se percebem
variadas concessões vocabulares, semânticas e sintáticas, que demonstram,
também nesse âmbito, variações estilísticas positivas.
Ideologicamente, contudo, Estrada nova pontifica entre a produção do
romance de trinta. Se Vidas secas fosse tomado, p. ex., como parâmetro de
comparação, dada sua quase unanimidade crítica positiva no Brasil, seria
possível constatar a vantagem da proposta ideológica do romance gaúcho sobre
o alagoano. Os personagens de Vidas secas, depois de todos os sofrimentos,
partem para a cidade, na expetativa de consolidarem sua condição humana. A
esperança flui, de fato, como alternativa aos filhos. Deixam para trás os
problemas do sertão que os atormentaram e afugentaram: o problema, no
entanto, persiste e continuará a desgraçar as famílias que a de Fabiano alegoriza
no romance de Graciliano Ramos. Em Estrada nova, aparece proposta concreta
de mudança; não de fuga do problema evidenciado, resumida na mudança de
lugar geográfico (do sertão à cidade) dos personagens. A proposta de Estrada
nova se funda na ideologia política que conforma a narrativa, a mesma que
sustenta o Modernismo, como escola literária.
Uma análise com mais detalhes do capítulo forneceria, p. ex., estas outras
reflexões possíveis.
312
A alusão ao “causo bonito-triste do Negrinho do Pastoreio” instiga a
reflexão sobre a lenda gaúcha do menino escravo, levado à morte por ter perdido
uma carreira cuja aposta fora alta, feita por dois fazendeiros. Vale dizer: há quem
explore até à morte pessoas sem guarida nem esperanças. Não custa lembrar
que o Negrinho não tem nome próprio nem padrinhos, ou seja, identidade nem
a quem recorrer de seus infortúnios.
Outra digressão sobre a qual importa refletir é aquela em que o narrador se
refere ao destino dos personagens masculinos que pontificam as representações
dos proprietários e dos peões, que, sem mais condições de atuar na Campanha,
“acolherados por um fadário igual-desigual, os Jangutas e os seus Teodoros” se
encurralam na cidade, como se a cidade fosse a antecâmara do fim definitivo. A
cidade não é, portanto, a salvação que Fabiano e a família esperam.
“Você me deixa alguém sair a pé da minha estância?” – eis a grande
indignação do coronel Teodoro, algo quase inacreditável e inaceitável na
tradição cultural do pampa. Homens do campo transformados em gaúchos a pé
é sinal terrível de degradação, a que só se chega no fim das expetativas. Nessa
atitude falta, de um lado, a metade do homem da Campanha, o cavalo. De outro,
faltam a solidariedade e a hospitalidade, pontos éticos referenciais da cultura
desses homens. Eis aí o nascimento literário do gaúcho a pé. O gaúcho a pé
representa, pois, a morte do centauro, que na América se estabeleceu de
maneira exemplar, não talvez na figura do homem-cavalo, mas na do homem-acavalo.
O fazendeiro, ao falar, usa o pronome “me” (“Você me deixa alguém sair a
pé da minha estância”), que, do ponto de vista sintático formal, parece
desnecessário. Além disso, a construção sintática configurar redundância com
“minha”). O caso é que, na situação presente, o me coloca Teodoro na condição
de faltante, de transgressor da ética que honorabiliza os homens da Campanha
gaúcha. O outro pronome “(minha”) reforça a noção de poder, então em
decadência.
Considere-se agora o excerto transcrito imediatamente a seguir:
Atrás do galpão, o negrinho da cozinheira não estava brincando
de estância e, se o fazendeiro o surpreendesse naquele momento,
não desconfiaria que ele não sonhava em ser um dia seu igual, dono
de léguas de campo e milhares de cabeças. Ele estava brincando,
mas era de polícia. Prendera um comunista e judiava dele para que
confessasse a quem tinha matado e roubado ou a quem planejava
matar e roubar. Já lhe havia dado muitos coronhaços na cabeça,
posto de braços estendidos, estaqueado dois palmos acima do chão,
atirado num lagoão fundo com uma corda no pescoço, numa
madrugada fria e, como o sujeito teimava em manter-se calado,
ameaçava capá-lo. Inocências vingativas de criança!...
313
No excerto em questão, faz-se mister observar especialmente o fato de que
“o negrinho” brincava “atrás do galpão”. O galpão já é ambiente e lugar de
secundários hierárquicos na estância. O menino brinca atrás do galpão, um tanto
às escondidas. De que brincava? Não brincava de fazendeiro; brincava “de
polícia”. Por que brincava de polícia? As histórias que vinha ultimamente ouvindo
no galpão tratavam de perseguições e maus-tratos a comunistas, que de fato
eram suposições e figurações imaginárias dos detentores do poder,
aterrorizados com a ideia de perder bens. Na inocência da criança, essas
atitudes eram dignas de um homem, e os meninos que convivem quase
exclusivamente com adultos desejam fazer-se homens nas brincadeiras. Desse
modo, o que se ressalta são prepotência e arbitrariedade sobre os
desamparados.
O incêndio na invernada, embora a narrativa ressalve que ocorreu por
inadvertência, lembra outros incêndios, como o do prédio do Ateneu, no romance
homônimo de Raul Pompeia. A necessidade da revolução provoca o
arrasamento, para que a reconstrução seja realmente nova.
A mensagem ideológica final, condensadora, portanto, da proposta
ideológica do romance (e dos romances do ciclo do gaúcho a pé), faz referência
clara à “estrada nova”, o caminho novo, a solução político-social modificadora da
condição, em que se encontravam os desamparados da Campanha: o
socialismo é o fogo de chão com roda de mate, em que se esperam aquecer os
jangutas e os ricardos da Campanha do Rio Grande do Sul.
Quando viriam os homens dos quais ele falava com tanta
crença? Aqueles homens que, como dizia Ricardo, pensavam na
gente e que um dia viriam pela estrada nova, a galope, alvissareiros,
cortando os campos verdes, acordando os pagos, anunciando uma
fartura de verão chuvoso, enriquecendo de alegria o coração dos
pobres! [No original, “na gente” e “estrada nova” aparecem entre
aspas.]
A gente (de “na gente”) nomeia os injustiçados, ofendidos, humilhados. A
estrada nova é a nova sequência histórico-política. O papel desses homens
(“aqueles homens”) é “acordar os pagos”, que estão dormidos, não se estão
dando conta do que podem e devem fazer. É também papel deles anunciar a
“fartura de verão chuvoso”, que todos esperam e desejam.
Eis portanto a proposta clara do ideário de Estrada nova, diferente da de
Vidas secas, p. ex., que inicialmente, para clarificar reflexões, foi tomado como
parâmetro para o comentários sobre Estrada nova.
314
JORGE Leal AMADO de Faria
Jorge Amado nasceu em 1912 em Itabuna (BA) e faleceu em 2001 em
Salvador (BA). De sua vivência no interior da Bahia, escreveu as obras Cacau
(1933) e Suor (1934). Formou-se em Direito. Nessa época, começou a colaborar
em jornais. Apresentado por Raquel de Queirós (O quinze), aproximou-se de
grupos de esquerda. Passou a sofrer perseguições políticas. Por isso mudou-se
para a Argentina. Passou pelo Uruguai, por outros países da América Latina,
pelos Estados Unidos e por alguns países da Europa Oriental. Seus livros
começaram a ser traduzidos para várias línguas. No retorno ao Brasil, foi eleito
deputado estadual, mas foi cassado em razão de o Partido Comunista ter sido
posto fora da lei.
Alguns romances dele: Mar morto (1936); Capitães da areia (1937); Seara
vermelha (1946); Os subterrâneos da liberdade (1954); Gabriela, cravo e canela
(1958); Os pastores da noite (1964).
Gabriela, cravo e canela
(excerto do capítulo 3, Gabriela com pássaro preso)
– Oh! que beleza! – musicou Gabriela vendo o sofrê.
Nacib depositou a gaiola numa cadeira, o pássaro se batia contra as
grades.
– Pra você... Pra lhe fazer companhia.
Ele se havia sentado, Gabriela acomodou-se no chão a seus pés. Tomoulhe da mão grande peluda. Beijou-lhe a palma naquele gesto que recordava a
Nacib, nem mesmo sabia por que, a terra de seus pais, as montanhas da Síria.
Depois encostou a cabeça em seus joelhos, ele passou-lhe a mão nos cabelos.
O pássaro sossegara, soltou seu trinado.
– Dois presentes de uma vez... Moço tão bom!
– Dois?
– O passarinho e, mais bom ainda, ter vindo trazer. Todo dia o moço só
chega de noite...
E ia perdê-la... “Cada mulher, por mais fiel, tinha seu limite”, Nhô-Galo
queria dizer seu preço. Refletiu-se-lhe a amargura no rosto de Gabriela, que
levantara os olhos ao falar, constatou:
– Seu Nacib anda triste... Era assim não... Era faceiro, risonho, agora anda
triste. Por que, seu Nacib?
Que lhe podia dizer? Que não sabia como guardá-la, como prendê-la a si
para sempre? Aproveitou para falar nas idas diárias ao bar.
– Tenho uma coisa para lhe falar.
– Pois fale, meu dono...
– Não estou gostando de uma coisa, está me preocupando.
315
Ela assustou–se:
– A comida tá ruim? A roupa mal lavada?
– Não é nada disso. É outra coisa.
– E o que é?
– Tuas idas ao bar. Não gosto, não me agradam...
Arregalaram-se os olhos de Gabriela:
– Vou pra ajudar, pra comida não esfriar. Por isso que vou.
– Eu sei. Mas os outros não sabem...
– Já sei. Não pensei não... Fica feio eu no bar, não é? Os outros não
gostam, uma cozinheira no bar... Não pensei não.
Oportunista, respondeu:
– É isso mesmo. Alguns não se importam mas outros reclamam.
Tristes os olhos de Gabriela. O sofrê rompia o peito, canto de rasgar o
coração. Tão tristes os olhos de Gabriela:
– Que mal eu fazia?
Por que fazê-la sofrer, por que não dizer a verdade, contar-lhe de seus
ciúmes, gritar-lhe seu amor, chamá-la Bié como tinha vontade, como a chamava
em seu pensamento?
– Faço assim a partir de amanhã: entro pelos fundos só pra servir a comida.
Não ando na sala nem do lado de fora.
E por que não? Assim não a deixava de ver ao meio-dia, de tê-la junto a si,
de tocar-lhe a mão, a perna, o seio. E sua presença semiescondida não valeria
como resposta negativa às ofertas tentadoras, às palavras melosas?
– Você gosta de ir?
Fez que sim com a cabeça. Era sua livre hora de passeio, como gostava!
De atravessar sob o sol, a marmita na mão. De andar entre as mesas, de ouvir
as palavras, de sentir os olhos carregados de intenções. Dos velhos não. Das
propostas de casa montada feias por coronéis, disso não. De sentir-se mirada,
festejada, desejada. Era como uma preparação para a noite, deixava-a como
que envolta numa aura de desejo, e nos braços de Nacib ela revia os moços
bonitos: seu Tonico, seu Josué, seu Ari, seu Epaminondas, caixeiro de loja. Teria
sido algum deles o autor do fuxico? Pensava que não. Um daqueles velhos feios,
com certeza, danado por ela não lhe dar atenção.
– Está bem, então pode ir. Mas não vai mais servir, fica sentada atrás do
balcão.
Teria os olhares pelo menos, os sorrisos, algum haveria de vir ao balcão
lhe falar.
– Vou voltar... – anunciou Nacib.
– Tão cedo...
– Nem podia ter vindo...
316
Os braços de Gabriela cingiram-lhe as pernas, prendendo-o. Nunca a tivera
de dia, fora sempre de noite. Queria levantar-se, ela o retinha, calada e
agradecida.
– Vem cá... Aqui mesmo...
Arrastou-a consigo. Era a primeira vez que ia possuí-la em seu quarto de
dormir, em seu leito, como se ela fosse sua mulher e não sua cozinheira. Quando
lhe arrancou o vestido de chita e o corpo nu rolou convidativo na cama, enxutas
nádegas, duros seios, quando ela tomou sua cabeça e beijou-lhe os olhos, ele
lhe perguntou e era a primeira vez que o fazia:
– Me diga uma coisa: tu me quer bem?
Ela riu no canto do pássaro, era um trinado só:
– Moço bonito... Gosto é demais...
Estava sentida, aquela história das idas ao bar. Por que fazê-la sofrer, não
lhe dizer a verdade?
– Ninguém reclamou tuas idas no bar. Sou eu que não quero. Vivo triste é
por isso. Todo mundo te fala, dizem besteira, pegam tua mão, só faltam de
agarrar ali mesmo, te derrubar no chão...
Ela riu, achando engraçado:
– Importa não... Não ligo pra eles...
– Não liga mesmo?
Gabriela o puxou para si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié...
E em sua língua de amor, que era de árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em
diante és Bié e essa é tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de
cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos
pássaros. Te chamas Bié...”
– Bié é nome de gringa? Me chame Bié, fale mais nessa língua... Gosto de
ouvir.
Quando Nacib partiu, ela sentou-se ante a gaiola. Seu Nacib era bom,
pensava ela, tinha ciúmes. Riu, enfiando o dedo por entre as grades, o pássaro
assustado a fugir. Tinha ciúmes, que engraçado... Ela não tinha, se ele sentisse
vontade podia ir com outra. No princípio fora assim, ela sabia. Deitava com ela
e com as demais. Não se importava. Podia ir com outra. Não pra ficar, só pra
dormir. Seu Nacib tinha ciúmes, era engraçado. Que pedaço tirava se Josué lhe
tocava na mão? Se seu Tonico, beleza de moço, tão sério na vista de seu Nacib,
nas suas costas tentava beijar-lhe o cangote? Se seu Epaminondas pedia um
encontro, se seu Ari lhe dava bombons, pegava em seu queixo? Com todos eles
dormia cada noite, com eles e com os de antes também, menos seu tio, nos
braços de seu Nacib. Ora com um, ora com outro, as mais das vezes com o
menino Bebinho e com seu Tonico. Era tão bom, bastava pensar.
Tão bom ir ao bar, passar entre os homens. A vida era boa, bastava viver.
Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar as goiabas, comer manga espada,
pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço dormir. Com
outro moço sonhar.
317
Bié gostava do nome. Seu Nacib, tão grande, quem ia dizer? Mesmo na
hora, falava língua de gringo, tinha ciúmes... Que engraçado! Não queria ofendêlo, era homem tão bom! Tomaria cuidado, não queria magoá-lo. Só que não
podia ficar sem sair de casa, sem ir à janela, sem andar na rua. De boca fechada,
de riso apagado. Sem ouvir voz de homem, a respiração ofegante, o clarão dos
seus olhos. “Peça não, seu Nacib, não posso fazer”.
O pássaro se batia contra as grades, há quantos dias estaria preso? Muitos
não eram com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Quem se acostuma
com viver preso? Gostava de bichos, tomava-lhes amizade. Gatos, cachorros,
mesmo galinhas. Tivera um papagaio na roça, sabia falar. Morrera de fome,
antes do tio. Passarinho preso em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena. Só
não dissera pra não ofender seu Nacib. Pensara lhe dar um presente, companhia
pra casa, sofrê cantador. Canto tão triste, seu Nacib tão triste! Não queria
ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria magoá-lo, diria que o pássaro tinha
fugido.
Foi pro quintal, abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato dormia. Voou o
sofrê, num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre!
Gabriela sorriu. O gato acordou.
Comentários ao excerto de Gabriela com pássaro preso, 3o capítulo de
Gabriela, cravo e canela
No excerto do capítulo, pode-se ler uma metáfora narrativa. Armava-se
prisão para Gabriela, em virtude dos zelos de Nacib por ela, porque começava a
amá-la. Nacib lhe oferece uma beleza viva que canta, mas presa. Oferece-lhe
amor, que nesse oferecimento (o presente) fica implícito. Gaiola está para
casamento, assim como sofrê (o pássaro) está para Gabriela. Nacib a presenteia
com um pássaro engaiolado. Gabriela liberta o pássaro, porque não suporta
aprisionamentos. Quando o pássaro voa e canta, já livre, o gato, que dormia, se
acorda. O gato, caçador de aves, passa a simbolizar os potenciais predadores
da liberdade que costumavam frequentar o bar do Nacib.
A sempre presente ideia de liberdade que o texto de Gabriela, cravo e
canela maneja pode ser tomada como o núcleo ideológico do romance. De fato,
o romance em estudo já tem sido considerado ponto referencial da temática da
liberdade na obra de Jorge Amado.
A liberdade que o romance Gabriela, cravo e canela propõe como
alternativa à realização pessoal dos indivíduos vai ser, a partir dele, elemento
também central de romances de edições cronologicamente subsequentes. É o
caso, p. ex., de Os pastores da noite. Antes de Gabriela, cravo e canela, contudo,
a ideia de liberdade que se lia preponderantemente nos romances de Jorge
Amado se refere à liberdade política. Mais precisamente, a discussão ideológica
geralmente se dá precisamente na expressão da necessidade de conquistar a
liberdade política. A liberdade política precisa ser conquistada, ainda que precise
sê-lo pelas armas. Em Gabriela, cravo e canela, convivem de fato as duas
propostas, mas parece preponderar a da liberdade individual. É por isso que
parte da crítica atribui aos romances de Jorge Amado íntima relação com a
318
proposta de liberdade propugnada pela literatura romântica. Por essa razão
pode-se igualmente dizer que a obra romanesca do autor tem vínculos com o
romantismo literário.
O romance Gabriela, cravo e canela não se restringe a narrar episódios de
uma história de amor. Gabriela, cravo e canela é um dos romances do ciclo da
seca do romance de trinta. Romance de trinta é uma categoria de prosa literária
brasileira. O romance de trinta é também dito romance neorrealista, por suas
configurações estilístico-ideológicas. O neorrealismo como estilo de época do
Modernismo se alicerça ideologicamente no Marxismo. No caso específico, o
romance de trinta focaliza especialmente a situação do homem rural brasileiro
preso a estrutura fundiária injusta, que condena não apenas o homem do interior,
mas o próprio país à pobreza, ao subdesenvolvimento, à submissão. Do ponto
de visto estilístico, o romance neorrealista é preponderantemente vinculado ao
estilo realista-naturalista. Apesar disso, como foi possível observar em Gabriela,
cravo e canela (e como se verá em Érico Veríssimo), o romantismo também se
presentifica no romance neorrealista. As concepções liberais do Romantismo se
mostram tanto na construção de personagens na qualidade de indivíduos
especiais e únicos (Grabriela, p. ex.), como na proposta da ideia de liberdade
defendida nesses romances.
Gabriela, cravo e canela de fato procura elaborar painel reflexivo a respeito
da construção da república brasileira, nos seus primeiros momentos,
adequadamente à sua contingência epocal. O jovem (personagem Mundinho
Falcão) com titulação de ensino superior chega a Ilhéus, cidade dominada por
sistema político caduco, o coronelismo. Enquanto, portanto, os velhos coronéis
do cacau representam o passado esclerosado, o jovem recém-chegado passa a
representar o futuro, a modernidade. É nessa questão que o romance tem seu
fulcro ideológico-político. São bases ideológicas sociais e são também políticas.
DYONÉLIO Tubino MACHADO
Dyonélio Machado nasceu em Quaraí, na fronteira brasileiro-uruguaia, na
Campanha gaúcha, em 1895, e faleceu em Porto Alegre, em 1985.
Dyonélio dava aulas a meninos de classes anteriores à sua, para que ele e
seu irmão pudessem estudar sem pagar a matrícula da escola. Com 12 anos,
trabalhava como servente no semanário O Quaraí, o que possibilitou começar a
entrosar-se com a intelectualidade local. Em Quaraí, fundou, em 1911, o jornal
O martelo. Em 1921, participou, em Porto Alegre, do lançamento do jornal A
informação. Os primeiros anos da década de 20 foram marcantes para Dyonélio.
Fundou jornais, casou-se, ingressou na Faculdade de Medicina, publicou seu
primeiro livro – Política contemporânea – e tornou-se pai. De 1924 a 1929,
319
dedicou-se ao estudo da medicina, em Porto Alegre. Depois disso, partiu para o
Rio de Janeiro, onde se especializou em Psiquiatria. De lá retornou em 1932.
Desde 1927, quando publicou, às suas custas, o livro de contos Um pobre
homem, vinha-se dedicando à ficção, mas foi com o romance Os ratos (1935)
que se tornou amplamente.
Os ratos
(capítulo 2)
O Fraga não viu nada, naturalmente. Lá está ele na porta da casa, do outro
lado da rua. Parece que tem os olhos nele. Cumprimentar? Não cumprimentar?
O que o incomoda é que ele lhe vai responder o cumprimento com uma
saudação entusiasta, saudação manhã-cedo.
Dá a impressão, o Fraga, de ter uma vida bem arrumada. O padeiro, o
leiteiro, quando voltam, depois de feita a distribuição, ficam algum tempo ainda
conversando com ele. O mês já vai em meio, e ele interrompe a palestra, chama
a mulher: “– Não seria bom pagar esse homem hoje?” “– Não tem pressa, seu
Fraga: ele aí está guardado...”
O bonde já se acha no fim da linha. No fim da linha, duas ou três quadras
dali, é um amontoado de carroças de leiteiro e de carretas de lenha na frente
dum armazém. Os leiteiros e os lenheiros tomam cachaça naturalmente. O seu
leiteiro tem um ar de decisão e de insolência, encostado ao balcão, falando com
os outros, gesticulando; depois sai... é o risco de um dorso vestido de camiseta
muito justa cortando o ar... Pega as rédeas e abala, furioso...
O bonde mexeu-se! Das portas, num e noutro ponto, despegam-se os
homens, abanam para trás, vão-se pôr nos postes brancos. Da casa contígua à
sua sai um rapaz de uns vinte anos, o ar comedido. Cumprimenta a Naziazeno,
um cumprimento sério, sem intimidade, enquanto a mulher por trás das vidraças
parece que os observa.
Naziazeno veio até ao meio da rua (o bonde já se aproxima). Se olha para
sua frente, o Fraga é capaz de falar-lhe: acham-se muito perto. Ele terá de fazerlhe uma cara de riso, o ar despreocupado. Depois, ao meio-dia, à sua volta, a
mulher já soube pelas crianças, contou tudo ao marido, ele é capaz de ficar com
uns beiços moles de espanto...
O moço seu vizinho, que espera o bonde quase a seu lado, relanceia-lhe
às vezes um pequeno olhar. Sempre Naziazeno se integrou muito com esse
rapaz silencioso com cara de quem não vê e não compreende. Só muito tempo
depois foi que soube que ele é empregado de escritório da Importadora.
Talvez ele não compreenda aquilo. Talvez não saiba o que imaginar. São
tão diferentes... Ele nunca briga com a mulher, nunca levanta a voz... Talvez não
compreenda... Naziazeno se sente mais a gosto. Passa-lhe pela cabeça que vai
assumir uma atitude de cínico, e isso um pouco o perturba. Mas quando o rapaz
o fita de novo (ele já o fez várias vezes com regularidade naqueles poucos
320
momentos), ele se firma naquela ideia, diante do seu olhar sereno e vazio, e
ergue um pouco a cabeça, embebe-a no ar fresco da manhã.
Ele teme dar com os olhos no outro seu vizinho, o dos fundos. É um
amanuense da Prefeitura, tem mulher e filhos, anda sempre barbado. Quando
Naziazeno foi morar ali, logo soube da fama que acompanha esse sujeito: “– Não
paga ninguém!” Se ele agora aparecesse ali, lá viriam aqueles dois olhos,
sabidos, de verruma, olhos devassadores...
Os melhores lugares do bonde estão ocupados. “– Apesar de tão cedo! É
estranho...” Senta-se à extremidade dum dos bancos dos lados, no fundo.
O bonde leva uma outra gente. Não a que ele está acostumado a ver, às
nove ou dez horas, a sua hora. “– Melhor, melhor.” Essa falta de conhecidos
apazigua-o. “– A não ser que o amanuense...” Com efeito, o amanuense da
Prefeitura é madrugador, tem galos, todas as exterioridades dum sujeito
ordenado como o Fraga. “– Não paga ninguém.”
O amanuense na certa que infunde o seu receio. Nunca se ouviu uma
altercação no seu pátio. Ele, decerto, franze a cara, diz duas ou três coisas com
ar de honestidade que incomoda, e é tudo. O outro bem sabe o valor daquilo,
mas não discute mais, anulado numa atitude parecida com a do respeito... É só
na carroça que o padeiro, que o leiteiro fazem os valentes, esbravejando,
açoitando o burro. Mas o amanuense já está outra vez dando milho ao galo, a
mulher perto, ainda indignada.
Como são diferentes!
Ele torce a cabeça, olha para fora. A cor da luz do sol é diversa de manhã,
de tarde, à tardinha. Neste momento é doirada, e as sombras são azuis.
Agora, todos os dias, vai levantar àquela hora. Chegar cedo à repartição.
Lá há de estar outra vez o Horácio conversando passadas, passeios, casos de
cavalos, de sujeitos de outros lugares... O encanto que tem essa vida, que ele já
supunha extinta, e que o Horácio e o Clementino, simples serventes, ainda
conhecem...
Restabeleceram o condutor. Vai para algum tempo. Mas ele não esquece
o fato, tão importante achou. O condutor aproxima-se. É bonachão. Aos que
estão recostados na janelinha, modorrando ainda, sonhando com a paisagem
em disparada, ele os desperta fazendo tilintar os níqueis na concha da mão,
como uma velha matrona sacudindo milho para chamar as galinhas. O
passageiro sobressalta-se, leva a mão atarantada ao bolso do colete, sob o olhar
risonho do empregado...
Naziazeno mete também a mão no bolso dos níqueis. São dez tostões: uma
garrafa, dois vidros de trezentos gramas (álcool) e dois menores (das
poçõezinhas).
Parece incrível que na sua casa só havia uma garrafa vazia!
321
Ele guardava aqueles vidros de trezentos gramas. Sem propósito definido...
Colecionismo... Essa palavra ele já a ouviu numa conversa entre médicos... Que
representará em medicina?... Mas é certo, ele guardava esses vidros grandes,
brancos, simpáticos. Nunca lhe ocorrera vendê-los, trocá-los por alguns níqueis:
isso foi expediente da mulher. Nem eles lhe lembravam essa grande coisa: o
combate, afinal vencido, que foi a doença do garotinho. A diarreia (de se sujar
até quinze vezes “nas vinte e quatro horas” – expressão do médico)... a magreza
e a debilidade... os olhos caídos, tristes, profundos, de apertar a garganta da
gente... E, por fim, aquela palavra terrível! terrível!
– Mas ele está atacado de MENINGITE, doutor?!...
– Não. Ainda não...
– Mas o senhor tem receio então...
– Nesses casos de desidratação, de desnutrição violenta, é sempre de
recear...
– Faça tudo, doutor! Faça o que puder pra salvar o meu filho... O senhor
não se arrependerá, doutor! Esteja certo!... O senhor ganhará o que seu trabalho
vale...
Depois o menino foi pouco a pouco ganhando forças, ganhando carne,
ganhando... E o pai mais terno com o filho do que nunca... Mais feliz do que
nunca...
– Tu ainda não pagaste o doutor, Naziazeno...
– “Não paga ninguém.”
O bonde continua a sua marcha, parando aqui e ali, entrando pessoas,
saindo algumas, e uma dança de lugares quando uma ou outra sai.
Já Naziazeno tem um companheiro de banco, à sua esquerda, porque à
direita se acha um dos espaldares em que ele se apoia. À sua frente, o outro
banco, igual ao seu, está se enchendo também. Um soldado, de pé, as pernas
abertas, ampara-se, mais para o fundo, numa das colunas. Toda essa gente se
enxerga, se observa. Alguns conversam.
O bonde a esta hora sempre vai cheio. Eu me admiro de ainda haver lugar.
– Que horas serão?
– Sete e meia passadas.
– Vou com atraso.
– A que horas você entra?
– Faltando um quarto pras oito.
Têm o tipo de empregados de balcão. Naziazeno mesmo parece já ter visto
aquelas caras. Talvez no próprio bonde, quando voltam ao meio-dia.
322
– Que é que você leva aí? – diz um deles, e aponta com os olhos pra um
certo objeto que o outro com a mão diligencia por introduzir melhor no bolso de
trás da calça.
Naziazeno também olha e sente um mal-estar vago e indefinível, quando o
outro esclarece:
– Leite. É o meu almoço.
– “Como é que um homem pode se contentar apenas com um vidro de leite
ao meio-dia?” – pensa Naziazeno. O olhar do leiteiro ameaçando-o, insultandoo, e que ele sustenta mal, aparece com nitidez na face atrigueirada, sobre o
pescoço forte que emerge da camiseta muito justa...
– E de manhã, que é que você toma?
– Churrasqueio.
Naziazeno observou o indivíduo: ele tem o mesmo ar de pessoa de fora,
de gente da campanha. A pele é trigueira, cheia de rugas. Parece homem de
quarenta anos. Tem o cabelo todo preto e liso, como de índio.
Certamente não mora na linha do bonde. Habita uma pequena chacrinha,
onde possui a sua criação. Tudo é relativa fartura lá. Dinheiro não há de ter,
dinheiro: mas tem a despensa cheia. A casa produz galinhas, um que outro
porco, frutas etc.
Aquela cara também inspira respeito, aquela cara de olhar moroso, que
traduz uma compreensão lenta e firme. Naziazeno tem medo que lhe leiam na
cara essa compreensão de tudo, essa inteligência das coisas, miserável e
aviltante, que tem, por exemplo, o Duque. – Ele na frente do seu leiteiro parece
que possui a cara do Duque, o olhar como que lhe fica evasivo, ele parece que
está mentindo em cada palavra verdadeira e angustiante que profere...
Passam carroças de padeiro e de leiteiro, algumas à disparada, meio
pendidas para trás, a figura curva do carroceiro açoitando o animal. A carroça
que ele tem dentro como se justapõe a essas que por ali transitam: é sempre o
mesmo quadro – um rapagão mal-encarado fustigando o burro, possesso...
Naziazeno está cansado. O olhar que, de longe em longe, quando
desperta, lança ao seu redor há de ter esse cansaço, porque sempre respondem
a esse olhar com um olhar de curiosidade.
Os amigos, no banco fronteiro, conversam:
– Ouvi dizer que o bétin do domingo não saiu.
– Quem disse? Saiu sim.
Naziazeno quanta esperança já depositara no betting... Aos sábados era
certo munir-se de sua cautela. Tinha um companheiro, o Alcides. Às vezes,
quando a crise apertava, faziam sociedade. Um dia tinham tido um susto: faltava
323
conferir apenas um páreo, o primeiro do jogo. Alcides começara por longe, pelo
último: Macau! Tinha acertado um! E se dá?... Um turbilhão enche-lhe a cabeça.
Vamos ver! Vamos ver! O outro! – o outro também, a égua Singapura, o grande
azar do penúltimo páreo, o seu azar! Alcides levanta-se da mesa. Tem medo de
prosseguir, medo mesmo de acertar. Quase desejava ter já errado, acabado aí
essa ilusão torturante. Ele ainda se encaminha em direção ao grande quadro
negro pregado numa das paredes do café, o passo vago, como num sonho. Mas
logo se reincorpora, decidido: e foge dali, não quer saber mais nada, quer
ocultar-se, e é assim que encontra o amigo.
Esse susto foi memorável.
Não saiu o do outro domingo.
Pequena pausa.
– O bolo então estava grande.
Naziazeno entrara em bettings que chegaram a render oito ou dez contos.
Bons bettings...
– 5:735$000.
– “O movimento está diminuindo” – observa mentalmente Naziazeno.
– Tiraram muitos?
– Cinco: um conto e tanto per capita.
Nova pausa.
– Você esteve lá?
– Não: não aguento aquela xaropada.
Naziazeno, porém, está no prado. É uma tarde comprida. Cheia de pausas,
de ócios, de intervalos. Uma pontinha de enxaqueca. De quando em quando, a
lufada dos cavalos. O entusiasmo, que cresce muito, depois se atenua, até cair
noutra pausa, noutro intervalo, seguido doutra lufada...
– Eu só gosto de carreira em cancha reta.
Muito mais divertido.
Ele se recorda bem e, depois, o Horácio e o Clementino falam muito nessas
carreiras. Sempre saem brigas. O Horácio conheceu um sujeito muito esperto,
que armava botequim numa barraca ao lado da cancha. A barraca, bebidas,
copos iam numa carroça, puxada por um cavalinho de pelo pelado aqui e ali.
Depois das corridas principais, atam-se carreiras menores. O sujeito sempre
achava quem quisesse correr com seu matungo de pelo pelado. Quantas
corresse, quantas ganhava: o espertalhão disfarçara em matungo puxador de
carroça um parelheiro...
324
Essa história agora lhe causou um mal-estar. Ele mesmo não vê bem a
figura do cavalinho, confundida com a dum burro em disparada. Sente uma
amargura doída dentro de si, na altura do peito e do estômago, uma espécie de
ânsia e de náusea. E outra vez a figura superior e inquietante do leiteiro... e as
palavras da mulher, a metralharem tranquilamente os seus ouvidos: – “Porque
tu não viste então o jeito dele quando te declarou: Lhe dou mais um dia!”
Também a sua mulher com os outros é tímida, tímida demais. Fosse a
mulher do amanuense, queria ver se as coisas não marchariam doutro modo.
Ela se encolhe ao primeiro revés. Foi esse ar da ingenuidade, de fraqueza que
o tentou, bem se recorda. E como não havia de se recordar, se é ainda esse
mesmo ar de fraqueza, de pudor, de coisa oculta e interior que alimenta o amor,
a voluptuosidade? Mas é um mal na vida prática. Ele precisava dum ser forte a
seu lado. Toda a sua decisão se dilui quando vê junto de si, como nessa manhã,
a mulher atarantar-se, perder-se, empalidecer. É o primeiro julgamento que ele
recebe; a primeira censura aos seus atos, os quais começam, pois, por lhe
parecerem irregulares, ilícitos. Sentir-se-ia fortificado, ou ao menos justificado,
se visse a seu lado a mulher do amanuense franzindo a cara ao leiteiro, pedindolhe pra repetir o que houvesse dito, perguntando-lhe o que é que estaria
porventura pensando deles. A sua mulher encolhida e apavorada é uma
confissão pública de miséria humilhada, sem dignidade – da sua miséria.
O bonde, que deslizava numa corrida vertiginosa, para de súbito, travado
com força. Há um meio tumulto dentro do veículo, com os passageiros lançados
para a frente, os bancos desarticulando-se. Ouve-se a voz ralhada do
motorneiro, praguejando para fora, para alguém que ainda se encontra na frente
do carro. Alguns passageiros já estão levantados, curiosos. Naziazeno espicha
o pescoço com atenção quase indiferente e chega a ver o casal de garotos,
causa daquilo, ele e ela, pequeninos, presos pela mão, os olhos apavorados,
escapando do perigo com um ar de confusão estúpida.
– É um perigo essas crianças...
– Os pais é que mereciam...
– Querem perder as pernas – comenta o motorneiro, meio voltando-se para
os passageiros, a voz ainda alterada, o bonde já em marcha. – Aqui nesta cidade
se conhece facilmente os moradores das linhas de bondes: – os que têm mais
pernas, têm uma...
Risos.
Naziazeno mal percebe o que diz o motorneiro. Há um estribilho dentro do
seu crânio: “Lhe dou mais um dia! tenho certeza”... Quase ritmado: “Lhe dou
mais um dia! tenho certeza”... É que ele está-se fatigando, nem resta dúvida. A
sua cabeça mesmo vem-se enchendo confusamente de coisas estranhas, como
num meio sonho, de figuras geométricas, de linhas em triângulo, em que há
sempre um ponto doloroso de convergência... Tudo vai ter esse ponto...
325
Verdadeira obsessão. O sinal de campainha do interior do bonde leva-o à
repartição, à campainha do diretor repreensivo, e deste – ao leiteiro! Passa-se
um momento de intervalo. Ouve-se depois uma palavra trivial; e é nova ligação
angustiosa: o sapato traz o sapato desemparceirado da mulher (o outro pé o
sapateiro não quer soltar) e o todo reconstitui outra vez – o leiteiro! Decorre um
certo tempo, longo talvez, em que a sua cabeça se vê riscada tumultuariamente
das linhas mais inquietantes: o jardim que os seus olhos afloram e mal enxergam
na disparada do bonde faz um traço com um plano antigo e ingênuo dum jardim
para o filho, para o filho, “o pobre do nosso filho que não tem onde brincar”, “que
não pode ficar, Naziazeno, não pode ficar sem...” O leiteiro!... o leiteiro! Há, por
vezes, um alívio. É só a existência vaga e dolorosa duma coisa que ele sabe que
existe, como uma vasa, depositada no fundo da consciência, mas que não
distingue bem, nem quer distinguir... um sofrimento confuso e indistinto pois...
Logo, porém, cortam-se outra vez linhas nítidas, associações triangulares bem
definidas.
Dorso redondo de passageiro descendo do bonde – traço claro de dorso
riscando o ar na escadinha: o leiteiro!
A placa (a conhecida placa) no consultório do entroncamento – “Tu ainda
não pagaste o doutor, Naziazeno” – o leiteiro!
Ideia de desembarcar no mercado, imagem do Duque rondando o café – o
leiteiro... leiteiro...
As linhas unem os pontos, como num quadro negro de colégio: “Liguemos
os pontos a e a linha... os pontos a e a-linha ao ponto o...”
Naziazeno suspira cansado.
E a sua volta para casa?... meio se interroga, numa espécie de névoa de
reflexão.
(Para a casa – “Lhe dou mais um dia!” – mais um dia... um dia!...)
Comentários ao capítulo 2 de Os ratos
A leitura do capítulo 2 possibilita ao leitor uma boa amostragem do
tratamento narrativo que Dyonélio Machado deu ao texto de Os ratos. As ações
episódicas andam lentamente, mas a vida interior dos personagens anda
vertiginosamente, geralmente num constante ir ao passado, a instantâneos
memorizados, e voltar ao presente plausível da evolução narrativa. O sofrimento
de Naziazeno, pelo que se pode ver na leitura do cap. 2, deriva especialmente
disso. As breves descrições de natureza, de ambientes físicos e de personagens,
quase sempre com sinais impressionistas, transportam o clima da narrativa para
o presente do narrado. Nessa circunstância, o leitor volta também ao presente
da leitura.
De tudo o que se disse e do que se poderia continuar a dizer, parece claro
que o texto se fundamenta na análise psicológica dos personagens,
326
especialmente os personagens mais destacados na narrativa. Os ratos, portanto,
a esse respeito, brota do veio estilístico-narrativo do romance realista brasileiro,
vale dizer, do romance machadiano. Como já foi comentado, o romance de trinta
(séc. 20) se organizou a partir do realismo-naturalismo (séc. 19). Como
reelaboração do Realismo, tomou o caminho do que a crítica costuma denominar
análise psicológica. Como reelaboração do Naturalismo, procurou discutir
principalmente questões de cunho social, geralmente a respeito das relações
entre administração pública e população e entre capital e trabalho, no meio rural.
Como romancistas que marcaram suas participações no romance de trinta
oriundo do primeiro veio citado acima (o Realismo), é indispensável lembrar de
Graciliano Ramos (São Bernardo, Infância, Angústia), de Cyro dos Anjos (O
amanuense Belmiro e Abdias), além, naturalmente, de Os ratos de Dyonélio
Machado. A contribuição ao romance de trinta de veio predominantemente
naturalista é também marcante. Construíram-na, entre outros, Cyro Martins
(Sem rumo, Porteira fechada, Estrada nova), Graciliano Ramos (Vidas secas,
São Bernardo), Jorge Amado (Cacau, Seara vermelha, Gabriela, cravo e
canela).
Os ratos
(excerto do capítulo 27)
Um rufar – um pequeno rufar – por sobre a esfera do chiado, no forro...
Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção. O pequeno rufar –
um dedilhar leve – perde-se para um dos cantos do forro...
Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto
amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto, no chão, o
guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas...
São os ratos!... Vai escutar com atenção, a respiração meio parada. Hão
de ser muitos: há várias fontes daquele guinchinho, e de quando em quando, no
forro, em vários pontos, o rufar...
A casa está cheia de ratos...
Espera ouvir um barulho de ratos nas panelas, nos pratos, lá na cozinha.
O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio, e os ratos...
Há um roer ali perto... Que é que estarão comendo? É um roer que começa
baixinho, vai aumentando, aumentando... Às vezes para, de súbito. Foi um
estalo. Assustou o rato. Ele suspende-se... Mas lá vem outra vez o roer, que
começa surdo e vem aumentando, crescendo, absorvendo...
Na cozinha, um barulho, um barulho de tampa, de tampa de alumínio que
cai. O filho ali na caminha tem um prisco. Mas não acorda.
São os ratos na cozinha.
Os ratos vão roer – já roeram! – todo o dinheiro!...
327
Comentários ao excerto do capítulo 27 de Os ratos
O destaque do pequeno fragmento do cap. 27 tem a finalidade especial de
tentar apontar a dois itens ainda não comentados na tessitura do romance.
O primeiro item diz respeito ao aspeto tensionista empregado no estudo
psicológico do personagem Naziazeno, considerado nestes breves comentários.
Esse estudo vai-se desenvolvendo a partir da percepção de Naziazeno a
respeito da inarredabilidade da solução que precisa ser encontrada, antes da
suspensão da entrega de leite, anunciada pelo leiteiro. O aspeto um tanto
ameaçador do leiteiro ajuda no tecido narrativo tensivo, mas seria insuficiente
para construí-lo sozinho. O leiteiro, afinal, é um homem pobre, que trabalha sem
descanso em labuta insalubre e em horários impróprios. Dever para esse homem
é mais opressivo intimamente do que simplesmente dever ou do que ficar sem o
leite, mas todas essas situações se acumulam para criar o ambiente de tensão.
Os ratos, por conseguinte, vai-se delineando como romance de trinta de temática
psicológica, no veio da literatura de análise psicológica, eclodida no Brasil a partir
do realismo machadiano. Nessa linha de composição aparecem também outros
romances, como já foi exposto quando era estudado o cap. 2 de Os ratos.
O segundo item se refere ao título do romance. Depois da tensão, instalase o pânico no personagem. Pode-se perceber isso com bastante clareza no
último período sintático transcrito – “Os ratos vão roer – já roeram! – todo o
dinheiro!...” Os ratos, portanto, foram produzidos pela profunda tensão. É tão
rápida a conclusão psicológica do personagem, no sono-sonho, que não tem
sequer tempo de manter a preocupação de que os ratos vão roer o dinheiro; eles
já o roeram, i. é, ocorreu o que Naziazeno tanto temia. Como Naziazeno –
especialmente ele – e a esposa mantinham-se em tensão em virtude da condição
financeiro-econômica, o título aponta igualmente a quem rói o dinheiro deles.
Vale dizer: longe, mas indistintamente, pairam imagens de outras formas de
viver, sem o pânico da situação de “cada vez mais mês no fim do dinheiro”, como
escreveu Millôr Fernandes em Liberdade, liberdade. O título, portanto, aponta
também ao problema do salário ou dos vencimentos insuficientes, roídos por
quem paga insuficientemente e por quem cobra exageradamente.
ÉRICO Lopes VERÍSSIMO
Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta (RS), em 1905. Faleceu em Porto
Alegre, em 1975. Exerceu várias atividades: ajudante de comércio, bancário,
proprietário de farmácia, radialista, tradutor, editor, escritor. A biblioteca paterna
lhe deu oportunidade de, bem cedo, tomar contato com boas obras literárias. Foi
leitor assíduo. Conheceu Augusto Meyer, pesquisador, crítico e poeta
modernista, que o encaminhou ao jornalismo literário.
328
Estreou com Fantoches (1932), contos. Em 1933, publicou seu primeiro
romance, Clarissa. Tornou-se conhecido no exterior, especialmente nos Estados
Unidos e em Portugal. Visitou também outros países, em que colheu material
que resultou em livros, como México (1952) e Israel em abril (1969). Suas obras
foram editadas em várias línguas. Dois de seus romances são continuamente
reeditados: Olhai os lírios do campo (1938) e O Continente (1949) (de O tempo
e o vento). Érico Veríssimo e Jorge Amado foram os primeiros escritores a viver
da literatura no Brasil.
Olhai os lírios do campo
(excerto do capítulo 9)
O jardineiro da casa os esperava ao portão e fê-los entrar pela porta dos
fundos. A mulher que se cortara estava deitada numa cama, o sangue lhe
brotava do pulso, escorria-lhe pela mão, pingava-lhe dos dedos numa bacia de
ágata. Ela balia como um cordeiro doente, muito pálida, revirando os olhos dum
lado para outro. Haviam-lhe amarrado um pano com força, pouco acima do talho.
– Eu morro – gemia ela – ai, eu morro...
Em poucos minutos o curativo estava terminado, Eugênio enxugava as
mãos que acabava de lavar, e dava instruções à cozinheira, uma preta gorda e
lustrosa. Falava com voz firme, num tom pouco paternal. Olhava para o auditório
– a cozinheira, a mulatinha camareira e o velho jardineiro – e a certeza de sua
superioridade lhe dava um certo repouso, uma sensação agradável de
segurança. Surpreendeu-se a usar termos técnicos, pensou em Olívia, imaginoua ali a seu lado a ouvi-lo e corou.
– Então não tem mais perigo? – perguntou a preta, com voz untuosa.
– Façam o que eu disse e tudo correrá bem. Se houver novidade, me
telefonem.
Mal terminara estas palavras notou ali no quarto uma presença estranha
que nos primeiros instantes se manifestou por uma vaga mancha escarlate e
uma onda de perfume. Voltou a cabeça. Uma moça loura se achava parada junto
da porta, metida num roupão escarlate. Eugênio ficou conturbado, balbuciou um
cumprimento e de imediato se sentiu rebaixado ao nível de criados. A moça
contemplava-o com indiferença. Seus olhos revelavam uma curiosidade fria.
Parece artificial – achou ele. O sol dava-lhe aos cabelos cor de palha um brilho
metálico. E ali estava ela muito tesa, como numa pose estudada. Colorida...
irritantemente colorida contra a porta esmaltada de branco. Capa de revista –
refletiu ele. E revista fútil.
O silêncio foi curto. Eugênio o quebrou:
– Tudo em ordem – disse para a desconhecida. – A moça está fora de
perigo.
329
Forçou um sorriso. A jovem do roupão escarlate continuava a contemplá-lo
sem falar, e ele teve a impressão de que as próprias palavras lhe voltaram contra
o rosto, como uma bofetada. O seu constrangimento aumentou. Já não sabia
que fazer com as mãos. Vestiu o casaco, desajeitadamente.
– Ponha fora esse lençol sujo de sangue! – ordenou a mulher loura à
mulatinha. – Jogue-o no lixo ou queime... mas leve isso depressa! – Contraiu o
rosto numa careta de nojo. Depois de examinar Eugênio da cabeça aos pés com
ar de divertida curiosidade, disse-lhe seca: – O senhor... venha comigo.
Fez meia volta e enveredou pelo corredor. Depois dum segundo de
hesitação, ele a seguiu. Passou ambas as mãos pelos cabelos, arrumou a
gravata. Ouviu a voz do enfermeiro:
– Vou esperar no carro, doutor!
Atravessaram o corredor claro. Eugênio seguia a mancha escarlate. O
cachorrinho atrás da dona, – pensou. Aborreceu-a e aborreceu-se a si mesmo.
Não havia de lamber-lhe as mãos; talvez chegasse até a mordê-las... se não lhe
faltasse coragem. Mas, que diabo quereria com ele aquela fêmea?
Chegaram a um salão sombrio e fresco, vasto living-room cuja decoração
ia do marrom profundo ao bege-claro. Por alguns instantes Eugênio esqueceu a
moça. Olhou o sofá e as poltronas fofas de aspecto confortável, os quadros das
paredes (cujo desenho ele não distinguia bem, mas adivinhava modernos e
estranhos), a estante de livros com lombadas atraentes, o vasto tapete peludo...
Respirou fundo. Se conforto tinha um cheiro especial, ele o estava aspirando
agora: um cheiro adocicado e pulverulento que vinha da madeira lustrada, dos
estofos finos, da cera do soalho.
A moça voltou-se e mostrou-lhe uma poltrona.
– Sente-se.
Como se eu fosse um criado... – pensou ele. É uma ordem.
Lançou para ela um olhar meio hostil. Mas sentou-se. Mergulhou fundo na
poltrona com uma abandonada sensação de bem-estar. Por alguns segundos
deixou-se embalar por aquela impressão de conforto e macio repouso. Deu,
porém, com os olhos da desconhecida postos nele com fixidez. Desagradável
ser analisado daquela forma! E não era direito que ele se achasse em posição
tão descuidada, tão à vontade, como se estivesse em casa... Sentou-se mais na
ponta da poltrona, empertigando o corpo. A jovem do roupão escarlate inclinouse sobre a pequena mesa redonda e abriu a cigarreira.
– Fuma? – perguntou, aproximando de Eugênio a caixa prateada.
– Não – mentiu ele. – Muito obrigado.
Fumar só lhe podia aumentar o embaraço.
330
Ela acendeu um cigarro, soltou uma baforada e continuou a contemplar
Eugênio com os olhos indecifráveis. O embaraço dele aumentava. Tinha a
impressão de que formigas de fogo lhe passeavam pelo corpo,
desagradavelmente. Devo estar vermelho como um tomate – pensou. Desviou
os olhos. Via agora na outra extremidade no salão uma lareira de ladrilhos cuja
cor combinava com a dos estofos e dos tapetes. Em cima do parapeito da
chaminé jazia uma estatueta preta... uma mulher nua, parecia, ou atleta... ou
seria um negro?...
Quando tornou a olhar para a moça, viu-a séria, com uma ruga de reflexão
na testa.
– Qual é a sua opinião sobre Freud? – perguntou ela de repente.
A pergunta lhe escapou dos lábios junto com uma baforada de fumaça, mas
suas palavras não tinham a natureza vaporosa do fumo. Eram sólidas,
agressivas, bateram com violência no peito de Eugênio, deixando-o um instante
sem respiração. Ela o contemplava com ar irônico. Havia uma indescritível
malícia em seus olhos cor de mel queimado. Eugênio remexeu-se na cadeira e
gaguejou:
– Que é que penso de Freud? Bom... eu... – riu amarelo. – Essa sua
pergunta... – tirou o lenço do bolso e passou-o pelo rosto, que agora sentia úmido
de suor.
Ela continuava a sorrir com um canto da boca.
– Será que nunca ouviu falar em Freud? O senhor não é médico?
Sim, sou médico. Mas a senhorita compreende... a pergunta foi tão
inesperada... Enfim a minha especialidade não é...
Calou-se, sentira que devia estar com cara de idiota. A pequena mangava
com ele, divertia-se à sua custa, devia ser dessas meninas ricas, mimadas e
literatas, que gostam de falar em Freud e na questão sexual só para mostrarem
que são modernas e que não têm preconceitos. E ele se prestava à ridícula
brincadeira! Devia ter percebido a coisa antes e ido embora. Sentiu desejos de
dizer barbaridades, nem que fossem vestidas de termos científicos. No entanto
se mantinha num silêncio embaraçado, dançando na cadeira.
– Mas acha estranha a minha pergunta? Não sei por quê... Preferia que eu
lhe perguntasse sua opinião sobre o Prof. Piccard? Ou sobre o câmbio?
Eugênio ergueu-se.
Comentários ao excerto do capítulo 9 de Olhai os lírios do campo
O excerto narra o primeiro encontro entre Eugênio e Eunice, que se casam
por interesses que elidem as atrações normais que aproximam os jovens e
tradicionalmente promovem os casamentos. Eugênio é médico, formado sob
inúmeros sacrifícios da família, que é pobre. Eunice é rica e autossuficiente e o
331
despreza. Eugênio conhece Olívia com quem vive grande amor e com quem tem
uma filha, Anamaria. Olívia parte e leva a filha. Deixa Eugênio livre para viver a
vida que escolheu. O casamento fracassa. Olívia morre. Eugênio recupera a vida
com Anamaria.
Olhai os lírios do campo é um romance exitoso como raros do ponto de
vista editorial. Do ponto de vista literário, tem estrutura muito conhecida, desde
o Romantismo. O enredo é simplista e exagera no sentimentalismo. As reflexões
são em geral superficiais e tratam do que já foi tratado. Quanto ao discurso, é
exemplar o trecho lido: nada se percebe de positivamente extraordinário. A
organização sintática das orações nem sempre pode ser justificada como arranjo
estilístico de resultados positivos.
Que modernismo é esse de Olhai os lírios do campo e que romance de
trinta é esse? – talvez pergunte o leitor. A centralização das ações em
personagens dos círculos sociais burgueses e pequeno-burgueses indica mais
uma vez recursos românticos resgatados. Enquanto, p. ex., Jorge Amado
mostra-se preocupado com os trabalhadores das lavouras de cacau, com as
transformações político-sociais emergentes no Brasil e com certo doutrinarismo
marxista; enquanto Cyro Martins procura levar ao romance a necessidade de se
conheceram posicionamentos ideológico-políticos socializantes, o romance em
questão pede uma olhada aos lírios do campo, que não fiam nem colhem,
segundo a proposta bíblica que a personagem Olívia procura representar.
Romance de trinta? Modernismo? Como classificar esse romance? Podese considerá-lo romance de trinta pelo critério de enquadramento cronológico.
Pode-se igualmente entendê-lo assim, já que condensa algo de realismo
(psicologia dos personagens), algo de romantismo narrativo (amores
contrariados – pela condição social), busca de realização no casamento, mas
sem a predestinação que os românticos lhe deram. Finalmente, no misticismo
da personagem Olívia e sua doação à felicidade do homem que ama, deixandoo livre a que realize o que deseja, sem ela.
O Continente
(excerto do capítulo A teiniaguá)
Por muito tempo Aguinaldo recusara vestir-se como os gaúchos da
Província. Conservara a indumentária de couro dos vaqueiros do Nordeste – o
que lhe valera muitas vezes a desconfiança e a má vontade dos continentinos –
e mesmo agora que decidira abandoná-la em favor da bombacha, do pala e do
poncho, conservava ainda o chapéu de sertanejo, de abas viradas para cima, o
que, como dizia o Dr. Nepomuceno, lhe dava uns ares napoleônicos. Aguinaldo
amava o dinheiro, mas não era sovina. Gostava de pagar “comes e bebes” para
os amigos, vivia ajudando os necessitados, e era generoso com os seus
agregados, peões e comissionados. Quando pela primeira vez aparecera em
Santa Fé, no ano em que fora assinada a paz entre farroupilhas e legalistas,
causara a pior das impressões. Chegara escoteiro, montado num cavalo magro
332
e manco, e fazendo questão de mostrar a toda gente que tinha as guaiacas
atestadas de moedas de ouro. Começaram então a murmurar na vila que
Aguinaldo havia descoberto uma salamanca lá para as bandas de São Borja.
“Salamanca? Lorotas!” – retrucavam outros. – “Isso é dinheiro de contrabando.
Conheço pelo cheiro.” E um dia, numa roda de bisca na casa do Alvarenga, o P e
Otero comentou: “Seja como for, não deve ser dinheiro limpo.” Mas os que
precisavam de crédito para seus negócios não se preocuparam com averiguar a
origem dos patacões, cruzados e onças de Aguinaldo Silva, quando este se
aboletou num rancho nos arredores de Santa Fé e começou a emprestar dinheiro
a juro alto. Quando sabia que um lavrador ou criador estava em dificuldades
financeiras, procurava-o, blandicioso, e oferecia-lhe um empréstimo, pedindo
como garantia terras ou gado num valor que em geral correspondia ao dobro ou
ao triplo do capital emprestado. Se o homem era bem sucedido nos negócios, lá
voltava o dinheirinho para a bolsa do Aguinaldo, acrescido dos gordos juros. Mas
se a dívida se vencia e o devedor não estava em condições de liquidá-la,
Aguinaldo, sem desmanchar dos lábios o sorriso amigo, sem a menor dureza na
voz cantante, executava a hipoteca. Foi assim que com o passar dos anos, em
que fez também muitas tropas e vendeu-as a charqueadores, Aguinaldo se
apossou de várias propriedades de Santa Fé – inclusive da de Pedro Terra – e
multiplicou sua fortuna de tal forma, que já se dizia estar ele tão rico de campos,
gados e moeda sonante quanto o próprio Bento Amaral.
Muito religioso, Aguinaldo ia à missa todos os domingos e fazia donativos
à Igreja. O Pe Otero gostava de ouvi-lo contar histórias do sertão de Pernambuco
em torno de cangaceiros, cabras valentes, lutas de família e casas assombradas,
ficava admirado de ver como aquele caboclo analfabeto sabia narrar com
fluência e colorido, com um sabor até literário.
Também dava muito na vista em Santa Fé o apego que Aguinaldo Silva
tinha por dois filhos do lugar: Bolívar Cambará e Florêncio Terra. Conversando
certa ocasião com o Pe. Otero, Aguinaldo lhe dissera:
– Esses dois meninos são mesmo que filhos meus. Vosmecê sabe, seu
vigário, perdi toda minha gente. Da minha família só me sobrou uma neta, a
Luzia, que está estudando num colégio na Corte. Quero que ela tenha o que eu
não tive e o que os pais dela não tiveram. Tudo de bom e do melhor.
E um dia quando o vigário e Aguinaldo se encontravam na praça, debaixo
da figueira, conversando e olhando para o sobrado, enquanto trabalhadores lhe
caiavam a fachada, o Pe Otero perguntou:
– Ainda que mal pergunte, amigo, não acha que o Sobrado é um pouco
grandote pra uma família tão pequena? Vosmecê não disse que só tinha uma
neta?
333
– Disse. Mas acontece que um dia Luzia vai casar e ter filhos. E os filhos
da Luzia vão casar também e ter família. Quero reunir toda a cambada no
Sobrado...
Ficou um instante pensativo, olhando para a casa. Depois acocorou-se à
maneira dos sertanejos e começou a picar fumo. E assim nessa posição, com
uma palha de milho atrás da orelha, contou ao padre que um dia, quando
menino, vira uma cena que nunca mais lhe saíra da memória: um senhor de
engenho cofiando as barbas brancas e sorrindo à cabeceira duma mesa
comprida a que estavam sentados, comendo, rindo e conversando, os vinte e
tantos membros de sua família – filhos, filhas, genros, noras, netos... Desde esse
momento Aguinaldo decidira trabalhar como um burro para um dia ter também
casa e família grande, com mesa farta e alegre.
– Mas Deus não quis que eu visse minha família reunida – murmurou ele,
enrolando o cigarro. – Foi matando todos, um por um...
Ergueu os olhos para o vigário, ficou a contemplá-lo por alguns segundos
e depois murmurou:
– Nunca fui ao confessionário, padre, mas vou lhe contar aqui um segredo
que nunca contei a ninguém. – Riu. – Não sei por que estou lhe dizendo isso,
mas de repente me deu vontade...
Calou-se por um instante, seus olhos se perderam na direção dos campos.
Depois, baixinho, num cicio, olhando furtivamente para os lados, contou:
– A Luzia não é minha neta de verdade. Peguei ela num asilo, quando ainda
de colo. Era órfã de pai e mãe. Mas criei a menina como se fosse minha neta.
Um homem não pode viver sem ninguém de seu, pode, padre?
O vigário sacudiu a cabeça negativamente. E o nortista acrescentou:
– Ela não sabe da verdade. Pensa que é minha neta mesmo.
O Pe Otero ficou um instante pensativo e depois disse:
– Não desanime, seu Aguinaldo. Vosmecê está ainda forte e, se a Luzia
casar, o Sobrado pode estar cheio de crianças dentro de poucos anos.
– Se eu viver até lá.
– Há de viver, sim, se Deus quiser.
Aguinaldo fechou um olho, ficou um instante como que dormindo na
pontaria e finalmente perguntou:
– Mas será que o Velho quer mesmo?
Dessa conversa resultou um novo donativo gordo para a Igreja. O vigário o
recebeu sorrindo e a refletir assim: Esse caboclo pensa que pode comprar a
dinheiro favores de Deus. Mas bendisse os cruzados do pernambucano, pois
334
precisava deles para custear um puxado que ia fazer na casa paroquial e para
comprar uns castiçais novos para o altar-mor.
Quando Luzia deixou o colégio e mudou-se para Santa Fé, onde passou a
ser a “senhora do Sobrado”, todos acharam que, mais do que ninguém, ela
merecia o título. E durante muito tempo a neta de Aguinaldo Silva foi o assunto
predileto das conversas da vila. As mulheres reparavam nos seus vestidos, nos
seus penteados, no seus “modos de cidade”, mas, bisonhas, não tinham
coragem de se aproximar da recém-chegada, tomadas duma grande timidez e
duma sensação de inferioridade. Em muitas esse acanhamento se transformava
em hostilidade; noutras tomava a forma de maledicência. Luzia era rica, era
bonita, tocava cítara – instrumento que pouca gente ou ninguém ali na vila jamais
ouvira – sabia recitar versos, tinha bela caligrafia e lia até livros. Os que achavam
que Santa Fé não podia dar-se o luxo de ter um sobrado como o de Aguinaldo,
agora acrescentavam que a vila também “não comportava” uma moça como
Luzia. Para alguns severos pais de família tudo aquilo que a forasteira era e tinha
constituía uma extravagância ostensiva que os deixava até meio afrontados. E
quando viam Luzia metida nos seus vestidos de renda, de cintura muito fina e
saia rodada; quando aspiravam o perfume que emanava dela, não podiam fugir
à impressão de que a neta do pernambucano era uma “mulher perdida” e
portanto um exemplo perigoso para as moças do lugar. Por outro lado, o passado
escuro de Aguinaldo não contribuía em nada para melhorar a situação da moça.
Aqueles homens, dum realismo rude, olhavam para o Sobrado e para seus
moradores como para intrusos e acabavam dizendo: “Isso não vai dar certo.”
Os rapazes da vila, conquanto se sentissem atraídos por Luzia, concluíam
quase todos que ela não era o tipo que desejavam para esposa. A moça
causava-lhes um vago medo que eles não sabiam explicar com clareza, mas que
em geral resumiam para si mesmos numa frase: “Não nasci pra corno.” No
entanto, desde o momento em que a rapariga chegara, Bolívar Cambará e
Florêncio Terra ficaram fascinados por ela, cercaram-na de atenções e não
perdiam pretexto para visitar o Sobrado. Faziam isso, porém, de maneira
diferente. Bolívar não escondia seus sentimentos: mostrava-se como era –
sôfrego, apaixonado, explosivo. Florêncio, entretanto, mantinha-se reservado,
silencioso, mas duma fidelidade canina: portava-se, em suma, como um
cachorro triste que – temendo ou sabendo não ser querido pela dona – limitavase a ficar de longe a contemplá-la com olhos cálidos e compridos, cheio dum
amor dedicado, mas que não tem coragem de se exprimir.
Aguinaldo percebera tudo desde a primeira hora e observava, deliciado, a
maneira como a neta tratava os dois rapazes, mangando com ambos, dando a
um e outro esperanças que ela própria se encarregava de desmanchar dias ou
horas depois com um gesto, uma palavra ou um encolher de ombros.
335
Como era natural, a história se espalhou depressa pela vila: Bolívar e
Florêncio, primos-irmãos e amigos de infância, estavam apaixonados por Luzia
Silva. Qual dos dois a moça iria escolher?
– Escolhe o Florêncio – dizia um – porque é o preferido do Velho.
– Não. O preferido do Aguinaldo é o Bolívar – afirmava outro.
– Mas, no fim das contas, qual é o preferido da moça?
– Decerto os dois! – maliciava um terceiro. – Ela tem olhos de mulher falsa.
– Mas não pode casar com os dois...
– Ué... Casa com um e depois fica amásia do outro. Gente de cidade grande
não tem vergonha na cara.
Um dia alguém disse:
– O Florêncio e o Bolívar vão acabar brigando. É uma pena. Primosirmãos... cresceram juntos como unha e carne. Agora vem essa bruaca
estrangeira...
– Mas ela não é estrangeira. Nasceu em Pernambuco.
– Sei lá! Não sendo continentino para mim é estrangeiro.
Em princípios de 1853, quando os santa-fezenses ainda comentavam o
almanaque do Dr. Nepomuceno, espalhou-se por toda a vila a notícia de que
Luzia Silva ia contratar casamento com Bolívar Cambará.
Comentários ao excerto do capítulo A teiniaguá d’O Continente
Teiniaguá é figura mítica do Rio Grande do Sul. Ela tem que ver com
salamanca, que também aparece no excerto. Teiniaguá é substantivo formado
de teiú (do guarani, tipo de lagarto pequeno), e aguaíca (rapariga pecadora).
Uma princesa moura faz pacto com Anhangá-pitã (do guarani, diabo vermelho)
e recebe dele corpo de lagartixa e cabeça luminescente. Tem também o poder
de retomar a forma humana, de jovem linda e tentadora. Certo sacristão de uma
Missão jesuíta-guarani aprisiona a lagartixa, porque tinha ouvido falar nos
poderes dela, que os repassaria a quem a dominasse. Apaixona-se pela moça e
é condenado à morte pelos padres. Teiniaguá o salva, mas o casal precisa exilarse numa furna (salamanca) no morro do Jarau, que daí será libertado duzentos
anos depois pelo gaúcho Blau Nunes. Salamanca também significa mistério,
poderes extraordinários.
Luzia é o nome da personagem de Érico Veríssimo. Esse nome aponta à
ideia de brilho e de luz, i. é, destaque, pensamento, reflexão, marcas obtidas da
Teiniaguá. Daí o cognome (Teiniaguá) que Luzia recebe e daí o título dessa parte
do romance O Continente. (Continente remete ao primeiro nome do Rio Grande
do Sul: Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul.)
336
O mito da Teiniaguá percorre vários significados, mas, na discussão a
respeito do trecho em questão, é necessário pensar em poderes misteriosos.
Nas adjacências desses poderes, o que mais importa aqui é o poder ventral
feminino, ligado ao da preservação e da reprodução. Esse poder é subjugador.
Especialmente, no caso da construção da imagem do gaúcho, mítica ou não,
representa o poder de fixação do homem. O gaúcho é o gaudério, o andante, o
andarilho, o índio vago, aquele em quem a marca da liberdade do deslocamento
e da ação é intrinsecamente ligada à própria existência e à razão de existir.
Numa sociedade de cultura viril como a gaúcha, Teiniaguá é, além de poderosa,
ameaçadora. Essa relação é possível de ser feita a partir do que ficou comentado
acerca da Teiniaguá e do termo salamanca. A relação, de fato, está feita no texto
d’O Continente, acima lido.
A integração definitiva do Rio Grande do Sul ao Brasil ocorreu já no fim da
primeira metade do século 19, pelo tratado de paz entre o império e os
revolucionários farroupilhas (1945). O Rio Grande do Sul faz fronteira em duas
faces territoriais com populações de língua espanhola, com as quais mantém
várias caraterísticas identitárias, e apenas numa com o resto do Brasil. A quarta
face é litorânea. A partir dessa observação, não é difícil entender por que Luzia
é “estrangeira” na cidade ficcional de Santa Fé, onde se passam os episódios e
reflexões que lemos no trecho destacado.
Analogamente ao que foi possível escrever a respeito de Olhai os lírios do
campo, em O Continente (e n’O tempo e o vento, como todo) não são
abundantes qualidades específicas do que se tem entendido como romance de
trinta. O tempo e o vento é reelaborador de mitos; portanto se contrapõe à
palavra demolidora do romance de trinta e do próprio Modernismo. Inobstante,
estilisticamente, o romance se reconhece em formas narrativas do Realismo
narrativo. Isso não elimina a possibilidade de se verem no romance de trinta ou
neorrealista brasileiro também proposituras utópicas, o que aliás carateriza as
ideologias, e as ideologias são estruturadoras das escolas literárias. O retorno
ao passado, porém, para se encontrarem nele soluções míticas, não parece
constituir apanágio corriqueiro do romance dessa época. Essas observações
finais, todavia, não podem depor contra O Continente, obra exponencial do
monumental O tempo e o vento. A trilogia com esse título narra miticamente a
formação do Rio Grande do Sul, pelo menos, sob os aspetos social, psicológico,
histórico, econômico, etnológico e político, como nenhum o fez anteriormente.
É notória também, ao examinar-se a obra inteira de Érico Veríssimo, a linha
de fronteira que O tempo e o vento marcou: antes dele, os romances do autor
focavam vidas pequeno-burguesas, cercadas de circunstâncias pessoalistas;
depois dele, a focalização narrativa do romancista se amplia ao mundo das
contingências humanas, em sentido bem mais amplo.
337
CYRO Versiani dos ANJOS
Cyro dos Anjos foi jornalista, professor, cronista, romancista, ensaísta e
memorialista. Nasceu em Montes Claros (MG) em 1906 e faleceu no Rio de
Janeiro, em 1994. Em 1923, mudou-se para Belo Horizonte, a fim de estudar
humanidades e Direito, em que se formou. Durante os anos de estudante
universitário, trabalhou como funcionário público e jornalista. Obteve
reconhecimentos pelos romances Abdias (1945), Explorações no tempo (1963)
e A menina do sobrado (1979).
Outras obras do autor: O amanuense Belmiro (1937) e Montanha (1956) –
romances; A criação literária (1954) – ensaio; Poemas coronários (1964). O
amanuense Belmiro foi traduzido para o inglês e o francês.
Abdias
(excerto do capítulo 4, Gabriela)
Por que esconder a verdade a mim mesmo? Já não tenho dúvida acerca
do sentimento que nutro por Gabriela. Só os fracos procuram iludir-se,
dissimulando a realidade perante a própria consciência.
Não sou fraco. Posso dar aparência disso, por me deixar levar facilmente,
em determinadas circunstâncias. Mas, de fato, só transijo quando não há, em
causa, um interesse fundamental. Sei que não me faltam vontade e ânimo, pois
sempre procurei a verdade e nunca temi enfrentá-la.
Amo Gabriela, eis o que se passa comigo. Há uma semana que não a vejo,
e nada supre a falta que ela me faz. Dirão que é ridículo, além de desonesto e
absurdo. Será o que quiserem, mas, à margem de tudo isso, é algo que tem a
grandeza da verdade e que não me envergonho de confessar.
Perguntarão como pôde acontecer que um homem prudente como eu
caísse em semelhante estultícia. Não sou amoral, e tudo, entretanto, me parece
agora perfeitamente razoável: quero Gabriela, como quereria uma flor, uma
borboleta, um pássaro. Não são todos alegrias do homem? Todos são belos e
filhos da natureza.
Bem sinto que há, em nosso coração, uma lei moral, mas o que esta lei me
prescreve é que não cause dano a ninguém. Não estou causando mal a
ninguém. Carlota não sofrerá com isso, pois jamais saberá. Nem este sentimento
é qualquer coisa que possa molestar Gabriela: existe comigo e só para mim.
Acho-me tranquilo, convicto de que nada vai haver de extraordinário. Não
tenho capacidade para dramas. Possuo um terrível bom-senso, e o bom-senso
nunca dramatiza as coisas.
338
É verdade que não sermos capazes de dramas já constitui, por si só, um
drama. Para os que o são, um lance épico tudo resolve. Nós outros roemos
ingloriamente a nossa dor, burocratizamos o nosso sofrimento.
Estou certo, porém, de que não hei de sofrer em demasia. Sou medíocre
em tudo.
Por que não reprimir este sentimento? Talvez com um pequeno esforço
ainda pudesse extirpá-lo, se é que não tem raízes mais profundas do que
suponho.
Valeria a pena, entretanto? Se não vou ferir a ninguém, por que me hei de
privar da agradável emoção que me traz o convívio de Gabriela? Por que cortar
esse último contato com a vida e com a poesia?
O amor é uma forma de loucura e, como a loucura, tem alternativas: agravase subitamente hoje, amanhã se atenua sem sabermos por quê.
No estado em que ontem me achava, teria sido capaz de pôr fogo a uma
cidade, só para ver Gabriela.
Mau... Começo a usar da linguagem hiperbólica dos namorados. Há nisso,
sem dúvida, espantoso exagero. Por certo, eu não atearia fogo nem a um monte
de alfafa. Seria mais exato se dissesse que, tendo passado já sete dias sem a
ver, se acentuara vivamente em mim o desejo de estar outra vez com ela, beberlhe o olhar e o sorriso, sentir-lhe o timbre da voz ou a graça dos gestos.
Suponhamos que a presença, a simples presença, da pessoa amada
constitua para o nosso espírito um alimento tão necessário como o são, para o
corpo, as proteínas ou os hidratos de carbono. Quando se esgota a provisão do
organismo, é forçoso renová-la. Como um hipoglicêmico em crise de açúcar,
senti-me deprimido, angustiado, por falta de Gabriela, de que eu me
aprovisionara.
Eis aí a explicação, em termos prosaicos, do meu estado de espírito ontem.
Que me desculpem os que preferem o estilo sublime. O demônio da análise, que
me acompanha, compraz-se em despoetizar as coisas.
O certo é que passei a manhã toda a excogitar um pretexto para ir à casa
de Gabriela, de modo que não causasse estranheza aos seus. Como um
criminoso que não foi descoberto é, contudo, tomado pelo medo e imagina ser
objeto das suspeitas de todos, já me pus a ver em cada palavra uma alusão e a
emprestar sentido a coisas que não o têm. Assim, do fato de haver Glória
perguntado por Carlota, da última vez em que estive na sua casa, concluí,
arbitrariamente, que já me olham, ali, com desconfianças.
Tal pergunta – que deve ter sido feita por simples deferência, como entendi
naquele dia – pareceu-me ontem, à luz de agitados pensamentos, corresponder
à seguinte reflexão: “Este homem faria melhor se estivesse com sua mulher e
339
seus filhos, em vez de estar procurando a companhia de moças. Sua amizade
não convém a Gabriela”...
Também me veio à memória outro fato a que eu não havia dado
importância, na ocasião, e que passou a significar, a meus olhos, que Carlota
suspeitava de meus sentimentos por Gabriela. Aludindo, por certo, à excursão à
Serra do Cipó, Carlota falara-me há dias, ao encomendar-me uma gravação de
Monpou (Jeunes filles au jardin), que conhecera pelo rádio e desejava ouvir mais
atentamente na eletrola que adquirimos:
– Você, que agora vive às voltas com mocinhas, vai gostar muito. Dá a
impressão de uma aquarela de Marie Laurencin...
A comparação da aquarela com a música afigurou-se-me curiosa, por ter
Monpou dado às suas jeunes filles, no plano musical, a mesma fluidez,
transparência, quase imaterialidade das figuras de Laurencin – mas eu sabia que
Carlota estava longe de querer comunicar-me qualquer emoção estética que a
gravação lhe houvesse despertado. O que fazia era vingar-se do passeio à
Serra, recordando-me ironicamente palavras que escrevi há tempos na Revista
de Minas sobre pintura contemporânea, algo pretensiosas, cuja lembrança me
desgostava.
Tudo isso, dizia eu, me vinha ontem à cabeça, nela incutindo infundados
temores. Várias vezes, ao encontrar-me só no meu gabinete do Arquivo
Histórico, tomei o receptor do telefone e comecei a girar o disco mágico, que
poderia dar-me a cristalina voz de Gabriela. Antes, porém, de se consumar a
ligação, eu desligava o aparelho, nervoso, trêmulo, agitado. Quando conseguia
vencer, pelo raciocínio, o receio de que a família soubesse do meu segredo e
meu telefonema pudesse chocá-la, o dragão amarelo do ridículo inibia-me com
o seu riso escancarado: “Que lhe vais dizer, idiota? Não achas que tua
assiduidade já deve parecer enfadonha a essa moça? Ou quem sabe pretendes
fazer-lhe uma declaração de amor? Isso nem mesmo ofenderia a família, que te
julgaria louco. Apenas se descartariam de ti, como de um importuno. Que
humilhação, hein, professor?”
Por fim, irritado comigo mesmo, decidido a reagir contra aquela franqueza,
que era perturbar-me tanto por causa de um telefonema a uma jovem, liguei
resolutamente o aparelho. O pretexto seria o do costume – o inquérito do Centro
– embora inabilmente eu já houvesse dito a Gabriela que só começaríamos a
trabalhar depois dos exames. Não consegui fixar pormenores para o plano da
conversa, confiando em poder improvisá-lo. Por sorte minha, a situação
simplificou-se bastante, com a circunstância de haver a própria Gabriela
atendido o telefone.
Falei de modo confuso e hesitante, em contraste com o tom claro e seguro
de Gabriela. Como é senhora de si! Foi muito expansiva ao cumprimentar-me e,
logo que lhe perguntei se já havia escolhido as companheiras para o nosso
340
trabalho, respondeu que não cuidara disso, em vista do que eu tinha dito, mas
que era o de menos. Fá-lo-ia em dois tempos.
Repeti-lhe que, de fato, o trabalho não se realizaria antes dos exames, mas
que eu me lembrara de lhe telefonar porque acabara de estar com o Roberto
Mendonça. Ele se prontificara a entrar em ação, quando quiséssemos. Essa
desculpa, arranjada por inspiração de momento, não foi das mais brilhantes,
porque Gabriela já se havia esquecido do nome do rapaz, e tive de dar
explicações.
Depois, Gabriela acrescentou:
– Estou mais adiantada do que o senhor supõe. Tenho alguma coisa
interessante para lhe mostrar, se quiser ter o incômodo de vir aqui em casa.
Consegui reprimir minha efusão, agradecendo-lhe com aparente
serenidade convite que tanto me alvoroçava, e combinei ir aquela noite mesmo.
Comentários ao excerto do capítulo Gabriela de Abdias
Abdias, professor de escola normal que assume o magistério não
exatamente por decisão prévia, se deixa atrair pela estudante Gabriela. Abdias
é casado com Carlota e tem com ela três filhos ainda pequenos.
A análise que Abdias, personagem-narrador, faz de si e de sua situação
está marcada pelo psicologismo que carateriza o romance de trinta de veio
psicológico. A crença na captação da verdade, o amor extemporâneo e
irrealizável, a crença em que é capaz de guardar só para si o sentimento que o
assola apontam a certo personalismo ingênuo. A constatação e a verbalização
da própria mediocridade dá às reflexões de Abdias cunho interessante de
seriedade, o que equilibra a construção do personagem e o faz crível e
verossímil. As idealizações são montadas e imediatamente desmontadas.
Assim, o tecido textual adequa-se às formulações realistas, o que consagra o
estilo do romance como efetivamente neorrealista.
MÁRIO de Miranda QUINTANA
Mário Quintana nasceu em Alegrete (RS) em 1906. Viveu a maior parte da
vida e terminou seus dias em Porto Alegre (1994). Foi poeta e tradutor. Integrou
o grupo da Livraria do Globo, na época editora e livraria de renome nacional,
localizada em Porto Alegre. É dos únicos escritores brasileiros a ter edição
(póstuma) bilíngue português-chinês (Mario Quintana – Antologia poética, 2007).
É dos autores brasileiros
Poetou sob vários signos estilísticos, ou seja, é possível observar fases ao
longo de sua produção poética.
341
Algumas obras que nos legou: Espelho mágico (1951), A rua dos cataventos (1940), Prosa e verso (1978), Antologia poética (1966), Lili inventa o
mundo (1983), Poesia completa (2005).
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Comentários a Os poemas
O poema em análise traz pelo menos duas marcas de origem: algo de
simbolista e algo de modernista. Do Simbolismo, carrega a suavidade de versos
harmonizados por certa musicalidade; do Modernismo, a liberdade de fazer
brotar da simplicidade técnica o núcleo temático que expõe. Percebe-se nele
certa proximidade ao estilo de Manuel Bandeira (O pardalzinho, p. ex.) e ao de
Prado Veppo (Pós-modernismo).
Como fundamento ideológico, trabalha a teoria (da leitura) da literatura: o
leitor dialoga com o texto, completa-o sob próprios critérios, parcialmente o
assimila e ou o recusa. Sob esse aspecto, aproxima-se doutros poemas
brasileiros, como Profissão de fé (Bilac), Antífona (Cruz e Sousa), Oferta
(Wamosy), Mundo pequeno e Retrato quase apagado em que se pode ver
perfeitamente nada (Manoel de Barros). O espetro do poema metaforiza a
natureza no interior do ser humano.
Eis que o leitor percebe que ele, leitor, é coautor e que entre autor e leitor
efetivamente se elabora o poema. Entre eles, não há mais nem menos, mas
participantes das mesmas descobertas de significados e significantes, que
apontam ao mundo concreto-sensorial e o reconstroem no tecido de palavras.
Nem sempre o diálogo ou a suavidade se podem surpreender nos
quintanares (formas caraterísticas certos textos breve do Quintana). Nesses
poemas-frases, o diálogo pode mudar-se em confronto, e a suavidade, em geral
inexiste, como, p. ex., em Cartaz para uma feira do livro: “Os verdadeiros
analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem”.
342
Capítulo 8
PÓS-MODERNISMO (1945/1950-)
Na trilha das reflexões sobre a nominação do Modernismo e de sua
sequência histórica, estamos agora diante da questão do Pós-modernismo.
Analogamente à discussão entre Modernidade e Modernismo, refletiremos sobre
Pós-modernidade e Pós-modernismo.
A Pós-modernidade consistiria, ao aceitar-lhe a existência, nova (e atual)
idade histórica da sociedade humana. A marca essencial dessa configuração
histórica seria a perda das noções de utopia, como elas foram elaboradas,
parcialmente mantidas e exaltadas, durante a Modernidade. Além das
transformações sociopolíticas e geográfico-históricas em várias regiões do
planeta, foi época de proposições e experimentações de utopias diversas. O
Neo-humanismo eleva-se a categoria de fonte ideológica, o que renova e
transfigura a ideologia do Modernismo. Ainda recém-chegados a tais noções e
possíveis conceitos, torna-se prudente não expandir outras especulações
teóricas.
A espiral (veja-se a ilustração de abertura das reflexões sobre o Prémodernismo) expressa algumas ideias coerentemente solidárias, entre Pósmodernidade e Pós-modernismo. Fixamos nosso estudo, a partir deste
momento, no que objetivamente nos propusemos: o Pré-modernismo. A máxima
norteadora de que nada é, tudo está sendo define carateres ideológicos e
artísticos deste momento. Há um ponto de partida único: o núcleo do espiral. À
medida que passam pelo tempo, as proposituras e os fatos continuam sendo o
que foram, mas já modificados. Essas noções não são novas, mas retomadas.
343
As coisas passam e não passam, no tempo. O presente tem sempre algo no e
do passado, como o futuro se fará do presente.
No que concerne à literatura e, pois, à arte em geral, esse inabsoluto pode
ser demonstrado. Sejam exemplos as tradicionais escolas literárias que vimos
estudando. Nessa perspetiva, o Barroco-Maneirismo não é a escola que o
antecedeu (fora do Brasil), mas tem algo dela. O Arcadismo não é nem o
Barroco-Maneirismo, que o antecede imediatamente, nem o Romantismo que o
segue, mas não deixa de ter, na circunscrição e constituição dos textos que o
constituem, alguma coisa dessas escolas. O Romantismo não é a mesma coisa
que o Arcadismo nem que o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo que o
sequencia, mas não está livre de abrigar certas marcas dessas escolas. Assim
adiante. Será essa, por conseguinte, nova forma possível de se representarem
as escolas, período e estilos de época ou manifestações livres da nossa
literatura, como a literatura fora-de-escola e outras possíveis – a espiral
evolutiva.
A discussão do Pós-modernismo (e da Pós-modernidade), apesar de tudo
isso, não afasta a pressuposição doutra questão básica inicial: itens
questionáveis, cujas existências mesmas podem ser postas em dúvida. Trata-se
exatamente de se duvidar da existência efetiva de uma idade histórica pósmoderna e da escola literária pós-modernista.
Ao redor do Modernismo aparentemente gravitam o Pré-modernismo e o
Pós-modernismo. O período pré-modernista recebeu esse nome especialmente
por dois motivos: porque antecede imediatamente o Modernismo e porque
alguns textos produzidos nesse momento literário fundamentaram as
experiências que os modernistas, especialmente na primeira fase,
desenvolveram. Por ser período e não escola em razão de lhe faltarem ideologia
própria e estilos convergentes (como foi proposto no estudo do Prémodernismo), a constituição escolar mais próxima e assemelhada lhe dá
nomenclatura. O Pré-modernismo alicerçou com conquistas estilísticas as
propostas dos modernistas brasileiros.
Os modernistas partiram dessas ousadias para exercícios do que
consideraram avanços. Um exemplo é o discurso de Macunaíma, em que várias
experiências se verificam, da negação do formalismo discursivo ao amálgama
de vários falares brasileiros. As formas discursivas pré-modernistas de Lopes
Neto, nos Contos gauchescos e nas Lendas do Sul, p. ex., estiveram presentes
na construção vocabular, semântica e sintática da rapsódia.
Parece que seja sustentável dizer, pois, que o Pré e o Pós-modernismo
mantêm relações próximas com o Modernismo. Como o Modernismo claramente
constituiu escola, com ideologia sustentadora e estilos circunscritos, tem servido
para nomear seus antecedente e consequente. Vamos procurar sustentar a ideia
do Pós-modernismo como agrupamento escolar de produção de textos literários
brasileiros.
344
Na concepção do Pós-modernismo como escola, é possível admitir o Neohumanismo como sustentação ideológica. Por Neo-humanismo podem-se
entender noções de ideologia derivadas do Humanismo e estruturadas sobre a
valorização não do homem em sentido genérico, nem do homem como rei do
universo, nem do homem iluminado por revelações ou pela luz da razão, nem do
homem prototípico, mas do homem comum, integrante das coletividades sem
prestígio, dos grupos humanos relegados a posições secundárias e de
sustentáculo das atividades proeminentes e dominantes, mas de vários modos
marginalizado e ou olvidado.
O Pós-modernismo tem como data referencial de início 1945. Esse ano
marca o fim da chamada de segunda grande guerra. A partir do conflito armado
e suas consequências, uma época histórica se desfigurou e extinguiu-se.
Articula-se vagarosamente nova era social, a Pós-modernidade. O desejo de
novas formas de vida e de instauração de valores renovados desencadeou
também novas concepções de arte.
Há quem defenda o início pós-modernista brasileiro na década de 1960.
Por motivo de fundamentação já parcialmente exposta e da que seguir vai
formulada, procuraremos manter o ano de 1945, como inicial do Pósmodernismo também entre nós, apesar de manter-se como questão, ou seja,
ponto em discussão.
No Pós-modernismo brasileiro, é comum serem considerados três estilos
de época. De 1945 a 1960, pretende-se ver o esteticismo. O esteticismo se
carateriza pela revalorização da forma, especialmente no trabalho
vocossemântico e na construção de sutilezas expressivas. Algo que lembra o
procedimento parnasiano, mas é diferente dele. Provavelmente uma tentativa de
reembelezamento formal do mundo decaído. De 1960 a 1980 predomina o
expansionismo. O expansionismo se marca pela busca da expressão em várias
direções, de várias maneiras, relativamente aos procedimentos estilísticos e aos
ideários. Trata-se, pois, de estilo eclético. Assemelha-se, portanto, ao que foi
praticado durante o Pré-modernismo, mas doutra maneira. É o momento das
vanguardas da poesia figurativa e dos festivais de música que se desenvolveram
pelo interior do Brasil. Dá-se nesse momento também o aguçamento do niilismo,
ainda que em pequena escala. É momento brasileiro marcado por regime
político-governamental de exceção, com imposição de censura às
manifestações da arte e do pensamento. De 1980 a 2000, para se manterem
datas referenciais, a tendência predominante é o revisionismo. O revisionismo
constitui releitura da história, em que se invertem posições quanto a valores:
valores tradicionais são contestados e transformados em antivalores, e valores
antes considerados negativos recebem consideração positiva. É a prosa que
especialmente instaura essa proposta, nas duas décadas finais do século 20.
Tem, como se pode notar, vestígios do modernismo destrutivo, mas não é o
modernismo da primeira fase. Também como durante a primeira fase
modernista, valoriza-se (às vezes extremadamente) a tecnologia.
345
Diferentemente do Modernismo, parece cair sobre o Brasil certa perda de rumo
construtivo da nacionalidade.
JOÃO CABRAL de Melo Neto
João Cabral nasceu em Recife (PE) em 1920 e faleceu no Rio de Janeiro,
em 1999. Foi na Associação Comercial de Pernambuco, em 1937, que obteve
seu primeiro emprego, tendo depois trabalhado no Departamento de Estatística
do Estado. Foi cônsul brasileiro em Barcelona e em Londres. Viu sua obra
reconhecida, em vida.
Algumas de suas obras são O engenheiro (1945), O cão sem plumas
(1950), Morte e vida severina (1965), A educação pela pedra (1966), Poesias
completas (1968).
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água de alguidar,
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
(Educação pelo pedra)
Comentários ao poema Catar feijão
O poema Catar feijão constrói vários segmentos semânticos, que
interessam a estes comentários. O título aponta a atividade cotidiana e trivial.
Essa busca de aproximação ao cotidiano é marca que os pós-modernistas
receberam dos modernistas e a mantiveram; nalguns casos, aprofundaram-na.
A apresentação da mancha, a imagem do poema sobre o papel, o identifica em
dois blocos de imagens geométricas quase idênticas. O poema inteiro se
compõe de duas estrofes de oito versos dodecassílabos cada uma. Nos quatro
primeiros versos de cada estrofe, discorre-se a respeito do ato de catar feijão,
346
ou, como dizemos no Sul, escolher feijão. Nos quatro versos finais de cada
estrofe, fala-se do escrever. Desse modo, o poema se arma em analogias entre
o escolher feijão e o escrever. Nessa operação construtiva, os elementos
semânticos se entrelaçam de maneira a sustentar o tecido poético.
Segundo o poema, se é verdade que uma “pedra” ou grão “indigesto”,
“imastigável, de quebrar dente” é um perigo, algo que pode pôr a perder o
esforço da escolha, com o escrever a situação é diferente. No caso da
composição (escrita) do poema “a pedra dá à frase seu grão mais vivo”, “obstrui
a leitura fluviante, flutual”. Dessa maneira concebido, o texto tangencia também
a questão da leitura. Catar feijão, portanto, direciona sua reflexão à poética pósmodernista, incluída nela a importância da leitura, como ação interativa de
reconstrução textual.
Graciliano Ramos:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
***
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
***
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
***
347
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
(Serial)
Comentários ao poema Graciliano Ramos:
A exemplo do anteriormente comentado, este é um poema rigorosamente
planejado e construído. O título merece a primeira observação. Graciliano
Ramos: se propõe refletir não sobre Graciliano Ramos, mas sobre o estilo de
Graciliano Ramos; por isso, a necessidade de manter os dois-pontos. Os doispontos dizem que o romancista Graciliano Ramos vai falar, ou seja, vai-se
apresentar no estilo narrativo dele. Daí por que cada conjunto de duas quadras
se abre com anúncio de explicitações da fala de Graciliano: “Falo somente com
o que falo:”; “Falo somente do que falo:”; “Falo somente por quem falo:”; “Falo
somente para quem falo:”.
Embora o poema em questão não trate de estilo de poema (mas de estilo
de prosa), é, sob certa perspetiva, outro metapoema, porque o estilo que constrói
se identifica com o estilo enaltecido. É, com clareza, um poema, pelo menos,
metadiscursivo: um metatexto.
Morte e vida severina (Auto de natal pernambucano)
(excertos)
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
– O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
348
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
349
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE
SABERÁ
– Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como a senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
– Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
– E ainda se me permite
que lhe volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
– É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
– E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
– De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
– E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim neste lugar?
– Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
350
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita; recebe-se
na hora mesma de semear.
ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO
MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO.
– Essa cova em que estás
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
– É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
– Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
– É uma cova grande,
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
– É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
– É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas à terra dada
não se abre a boca.
– Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
351
e terás enfim tua roça.
– Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
– Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
– Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
– Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
– Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
– Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
– Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste e ninguém cobiça.
– Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
– Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
– Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
– Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
Comentários a Morte e vida severina
Morte e vida severina é um dos trabalhos mais conhecidos do autor. Tratase de um texto dramático em versos. Daí, a extensão de título – auto de natal
pernambucano. Vale dizer: trata-se de um auto que se refere a um nascimento
ao jeito pernambucano.
Severina pelo nome e severina pela natureza, assim é a vida dos
sertanejos. O adjetivo “severina” está posposto aos substantivos e no singular.
Ainda assim se refere aos modos de morrer e de viver do sertão semiárido. É
possível escolher essa leitura, em função, p. ex., da cena do enterro do lavrador,
352
a que Severino assiste, num dos momentos mais marcantes do texto. Também
é possível encontrar outro momento de discordância sintática formal. O primeiro
foi no poema Catar feijão (2o verso da 1a estrofe): “Joga-se os grãos na água de
alguidar”. Isso permite considerar a discordância nominal do título de Morte e
vida severina analogamente à discordância verbal no caso do Catar feijão.
Os excertos transcritos possibilitam, pelo menos, visão parcial da peça. No
primeiro, Severino (o retirante) se apresenta. No segundo, conversa com uma
senhora, na freguesia onde chega, durante a caminhada. No terceiro, assiste ao
enterro de um trabalhador de eito. Não é possível, contudo, ler nesses excertos
a conclusão ou a ideia conclusiva do auto: entre a morte, que o persegue e o
desestimula para a vida, e a vida, representada pelo nascimento de uma criança,
valorizado pelas palavras de Seu José Mestre Carpina, a opção final é pela vida,
pelas expetativas e pelo desfrute da vida, pelo que ela possa ter de geratriz de
esperanças.
João GUIMARÃES ROSA
Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) em 1908. Estudou diversas
línguas. Com 16 anos, matriculou-se na Faculdade de Medicina da UMG e
formou-se em 1930. Mudou-se para o interior de Itaúna (MG), para exercer a
profissão. Trabalhou para a embaixada brasileira em Hamburgo e Bogotá.
Introduziu inovações no estilo romanesco brasileiro, algo como Lopes Neto tinha
feito, durante o Pré-modernismo, a respeito do conto.
Foi autor de contos, novelas e romance. Contos: Sagarana (1946),
Primeiras estórias (1962), Tutameia (1967), Estas estórias (1969), Ave, palavra
(1970). Novelas: Corpo de baile (1956). Romance: Grande sertão: veredas
(1956). Faleceu em 1967, no Rio de Janeiro
Grande sertão: veredas
(excertos dos primeiros parágrafos e os dois últimos)
– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus
esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto.
Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me
chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser –
se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo
que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito
pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo
prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas
armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro
de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois,
então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem
que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles
dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto
353
e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão
se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus,
arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas,
hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens
de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de
grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais
são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou
pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.
Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio,
desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vôte! não... Quem muito se
evita se convive. Sentença num Aristides – o que existe no buritizal primeiro
desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita –
todo mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então
a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: – “Eu já vou!
Eu já vou!...” – que é o capiroto, o que-diga... E um Jisé Simpilício – quem
qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso
obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se
empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta
pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar...
Superstição. Jisé Simpilício e Aristides mesmo estão se engordando, de assim
não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época,
tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé.
Um Moço de fora teria aparecido e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a
cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava...
porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe –
sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se
anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Háde, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta,
em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas o senhor entenda: o tal moço, se
há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o rio pelas nascentes, será a mesma
coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante
viagem de uns três meses... Então? Que-diga? Doideira. A fantasiação. E o
respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço é que é mesmo um querer
invocar que ele forme forma, com as presenças!
Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a
Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que
grassa nos Santos-Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz
seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de
paramenta, com uma vara de maria-preta na mão – proseou que ia adjutorar o
padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dosBois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é
como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que
354
revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas
piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto.
Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. Mas
ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixa
lá, que – em endemoinhamento ou com encosto – o senhor mesmo deverá de
ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi,
que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo,
Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles,
punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou amansador de
cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete já é por alguma
competência entrante do demônio. Será não? Será?
De primeiro, eu fazia e mexia e pensar não pensava. Não possuía os
prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro,
não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos
dessossegos, estou de range-rede. E me inventei neste gosto, de especular
ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias.
O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água
se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o
barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem
ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que
não tem diabo nenhum. Nenhum! é o que digo. O senhor aprova? Me declare
tudo, franco, é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso por
estúrdio que me vejam é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas,
não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não?
Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela
– já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso.
Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver,
então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo
regula seu estado preto nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas
crianças, eu digo. Pois não é ditado: "menino trem do diabo"? E nos usos, nas
plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio-doredemoinho.
Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças.
Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e
com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come
comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez?
A mandioca-doce pode de repente virar azangada, motivos não sei; às vezes se
diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas de manaíbas,
vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E ora veja:
a outra, a mandioca-brava também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo,
de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiura
de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco
355
gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja
comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já
representam a precisão de talhar, para adiante, rasgar e estraçalhar a bico,
parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de
pedras, horrorosas, venenosas que estragam mortal a água, se estão jazendo
em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo
– que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o
caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos
é o razoável sofrer. E a alegria de amor, compadre meu Quelemém diz. Família.
Deveras? É e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo
mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai e é
bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto. Vi
muitas nuvens.
Mas, em verdade, filho também abranda. Olhe: um chamado Aleixo,
residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores
ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um
açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes,
ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas,
elas se acostumaram a se assim das locas para papar, semelhavam ser peixes
ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá
passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, neste
aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois,
empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão.
Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor
dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado de se
matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de
sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então,
sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à
rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo
e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho
de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma
menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas
mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser
bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o
feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus
quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi e me
deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo
aqueles meninozinhos tinham?!
Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo,
noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da
massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que
acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois,
356
também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se
a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a
encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do
inimigo. Mire e veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais
seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos
bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome
moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho,
essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é:
pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das
espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou
criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada
dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna
dela. O que esse menino babeja vendo é sangrarem galinha ou esfaquear porco.
– "Eu gosto de matar..." uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um
susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor
vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e
mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu
nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois
limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica
gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de
ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos
peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater,
de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão –
como regulam as sovas em horas certas, confortáveis, até chamam gente para
ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não
chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre
meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha
sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no
breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e
penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo,
neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que
há.
Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as
pessoas – como por que foi tanto que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí
todos esbarram. Compadre meu Quelemém, também. Sou só um sertanejo,
nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é
de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu
esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória.
Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações,
regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com
capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me
achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula
Régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro,
357
despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um amigo Vito Soziano, se assina
desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divinas matérias,
todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo,
virtudes e exemplos – missionário esperto engambelando os índios, ou São
Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral.
Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo. Minha
mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muito reza. Ela é uma abençoável.
Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de
consciência, que, sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritos me protegem.
Ipe! Com gosto... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas
nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei em mim, forro,
sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo! Diverjo de todo mundo... Eu quase
que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo:
para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma ideia
ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! Olhe: o que devia
de haver era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas,
fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que
não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam
tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!
Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma
coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e
sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum
se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de
emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios
bons... De sorte que carece de escolher: ou a gente se tece de viver no safado
comum, ou cuida só de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe
de jagunços; para outras coisas não fui parido. Mas minha velhice já principiou,
errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como quem diz: nas escorvas. Ahã.
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-mundo é louco. O
senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de
religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No
geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não
perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só,
para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a
certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de
Cardeque. Mas, quando posso, vou no Mindubin, onde um Matias é crente,
metodista: a gente se de acusa pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos
belos deles. Tudo me aquieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.
Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me
aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O
que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço,
executado. Eu? – não tresmalho! [...]
358
E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua
vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras.
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro.
Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O rio de São
Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé,
enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não
existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos.
Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano.
Travessia.
Comentários aos excertos de Grande sertão: veredas
Grande sertão: veredas é um romance de longo curso sobre a necessidade
de falar para compreender a circunstância das pessoas no mundo. A condição
da fala, concebida no lugar de fala pelo homem local, e as caraterísticas do
discurso dão ao romance condição de excepcionalidade na história do romance
brasileiro. Não se trata, porém, de inovações absolutas, que isso não existe.
Trata-se de fato de atenta observação do mundo cultural de onde emerge o
narrador, Riobaldo. Riobaldo aprendeu a falar com Blau Nunes, personagem e
narrador dos contos de Lopes Neto, em Contos gauchescos (1912) e Lendas do
Sul (1913). Claro fique, no entanto, que as falas se assemelham nos
fundamentos, mas se diferenciam nas respetivas realizações, já que Riobaldo
fala do mundo do sertão mineiro; Blau Nunes, do universo das coxilhas sul-riograndenses. São discursos com várias inserções de grande dimensão poética.
Riobaldo também aprendeu com Blau que o mundo urbano é ensimesmado
e vota às vezes profundo desprezo pelos universos rurais. As falas que
integralizem a consciência dos mundos rurais assombram os urbanos. Deixamnos boquiabertos e calados. Mostram-lhes a ignorância que cultivam sobre seus
irmãos dos interiores e das periferias. Essas falas forçam as linhas de margem,
e as desigualdades cedem espaço à reflexão sem preconceitos. Esse é o
segredo da força das falas de Blau Nunes e de Riobaldo.
Riobaldo, a exemplo de Dom Casmurro (de Dom Casmurro), Paulo Honório
(de São Bernardo), Brasil (de Memorial de Santa Cruz), entre muitos outros,
reflete sobre as coisas do mundo, enquanto narra sua própria vida, como a pode
lembrar, com o objetivo de entendê-las e dar sentido à existência.
O que aqui se lê de Grande sertão são os doze parágrafos iniciais e os dois
finais. Neles não se pode ter visão da questão talvez mais crucial da narrativa,
que é a dificuldade (às vezes, a impossibilidade) de o ser humano perceber seus
momentos decisivos. Trata-se dos encontros de Riobaldo com Reinaldo e das
impressões e pensamentos que provocam, que o constrangem. Apesar de terem
ocorrido mais de uma vez, não desvendam o mistério. Só bem mais tarde,
quando já é impossível, Riobaldo descobre que Reinaldo é de fato Diadorim e
que o sentimento, portanto, tinha sido força da natureza para a vida, que ficou
359
recalcado, em virtude das “muitas nuvens”, que nos impedem de ver. Só no ato
da fala, no fim dela, é que pode ver as “auroras” e se vê pronto para a “travessia”
desta para outra.
CLARICE LISPECTOR
Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia, em 1925. Com dois
meses de idade, veio com a família para o Brasil. Em 1937, passou a viver no
Rio de Janeiro, onde cursou o secundário e iniciou o curso de Direito. Estudante
ainda, escreveu seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado
em 1944. Acompanhou o marido em viagens à Itália, à Suíça e aos Estados
Unidos. Retornou ao Rio de Janeiro na década de 1950. Faleceu em 1977.
Alguns títulos de obras suas: Laços de família (1972), Água-viva (1973), A
hora da estrela (1977).
A hora da estrela
(excertos)
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.
Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se
antes da pré-pré-história já havia monstros apocalípticos? Se esta história não
existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou
eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre
um contato interior e inexplicável. A minha vida, a mais verdadeira, é
irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique.
Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro
pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em
plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e
estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de
felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas
que andam por aí aos montes.
Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão
gradual – há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É a
visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que
estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que
justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso
registrar os fatos antecedentes.
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo
com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante
de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de
geleia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada – que
cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não
360
tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa
mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que
nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o
sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em
menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem
vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais
do que imaginam e estão fingindo de sonsos.
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado
a usar as palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre
arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles,
é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e
inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra
os meus hábitos uma história com começo, meio e gran finale seguido de silêncio
e de chuva caindo.
[...]
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu
material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que
se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa
palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar
termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e
verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra
é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da
moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a
jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples
para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente – mas
sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humildade – limitome a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.
Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem
nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano
primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra
por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça
ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não
aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e
redonda do amado chefe a palavra designar de modo como em língua falada
diria: desiguinar.
Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim, que sou meu
desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco, pois descobri que tenho
um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma
pessoa?
361
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir
vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia
estatelada e em cheio no chão. É que “quem sou eu” provoca necessidade. E
como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.
A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na
rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. [...]
Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra?
Mas que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é
uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos
mandou inventar.
Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim
às vezes a forma é que faz conteúdo.
Comentários ao excerto de A hora da estrela
O excerto focaliza reflexões do narrador, Rodrigo S. M., acerca da
construção do texto literário e acerca da personagem central, Macabéa. É ao
redor dessa personagem que o enredo do romance se desenvolve. Macabéa é
uma jovem alagoana que escolhe o Rio de Janeiro para morar. Essa decisão
acaba por matá-la antes da morte. Por isso o Rio de Janeiro é uma “cidade toda
feita contra ela”.
A hora da estrela é um breve romance brotado do veio psicologista da prosa
brasileira. Em Clarice Lispector e alguns outros autores, especialmente autoras,
a produção psicologista, que toca em aspectos indizíveis, inexplicáveis dos
procedimentos humanos íntimos, tem sido denominada intimista. A constante
reflexão sobre a maneira da produção do texto, que o próprio texto literário
assume, tem sido denominada metanarratividade. Também a metanarratividade
não é componente original do primeiro estilo de época do Pós-modernismo. Com
jeito um pouco diferente, mas a preocupação com a construção e a recepção do
texto literário se encontra também em romances machadianos, como Memórias
póstumas de Brás Cubas. No caso de Memórias, a alusão a questões de
construção e recepção do texto literário é frequente e começa no início do
romance. Antes do primeiro capítulo, na página intitulada Ao leitor, já se leem
referências a respeito, como “o processo extraordinário que empreguei na
composição destas Memórias”, nas palavras do narrador. Como todos sabemos,
a prosa psicologista brasileira é tributária da obra machadiana.
362
Vanguardas poéticas (dos anos 50-60 do século 20)
Como outros movimentos culturais e artísticos, o Pós-modernismo teve as
suas vanguardas (concretismo, neoconcretismo, poesia práxis). Entre as
vanguardas pós-modernistas, tem-se especialmente destacado o movimento
concretista. O concretismo foi movimento de produção poética. Em resumo, o
concretismo reivindicava o abandono da discursividade e, por consequência, do
verso. O poema deveria ser concreto em si mesmo. No desamparo da
musicalidade do verso tradicional, a imagem do texto sobre o papel deveria
manter a temática, resumida numa palavra-chave. Os poemas concretos se
originaram de longa tradição, mas esteve vinculado à forma como a
comunicação televisiva se processa. Soava constantemente, na época, a frase
de Marshall McLuhan, para quem “o meio é a mensagem”. A poesia começava,
pois, a experimentar a linguagem imagética da televisão, cujas ondas se
processam verticalmente. Outra aproximação é com a pressa. Talvez seja
melhor dizer, com o imediatismo. A imagem dispensa o processo tradicional de
leitura, pelo menos em parte. Os poemas, portanto, também se fazem sintéticos.
Geralmente não têm título. Costumava-se denominar esse tipo de produção,
também, poesia não-linear e poesia não-verbal.
Não se suponha, contudo, que poemas icônicos sejam invenção desse
estilo. Formas de compor e ler poemas nessa época é que são as marcas que a
registram como vanguardista no Pós-modernismo.
A seguir são transcritos dois poemas concretos, para experiência de leitura.
DÉCIO PIGNATARI
Décio Pignatari nasceu em Jundiaí (SP) em 1927. Estudou na capital do
Estado e em 1951 formou-se em Direito. Após temporada na Europa, retornou
ao Brasil e passou a trabalhar como publicitário e professor. Seu primeiro livro
de poemas, O carrossel (1950), reúne trabalhos de imagens semânticas. Pouco
depois, com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e alguns pintores, lançou
o Movimento Concretista e se dedicou à poesia concreta, que rompeu com o
verso e a subjetividade lírica. Esteve presente na primeira antologia Noigandres
(1952); editou o livro-poema Life (1957); Poesia pois é poesia (1977). Participou
de obras coletivas sobre literatura, como Teoria da poesia (1965) com Augusto
e Haroldo de Campos.
São obras dele: eomul2ieaeaO (1968); Contracomunicação (1970);
Semiótica e literatura (1974); Comunicação poética (1977) e Signagem da
televisão (1984).
363
ra terra ter
rat erra ter
rate rra ter
rater ra ter
raterr a ter
raterra terr
araterra ter
raraterra te
rraraterra t
erraraterra
terraraterra
(1956)
RONALDO Pinto de AZEREDO
Ronaldo de Azeredo nasceu no Rio de Janeiro em 1937 e faleceu em São
Paulo em 2006. Publicou seus primeiros poemas na Noigandres 3. A evolução
de sua poesia é muito curiosa e a que mais dificuldades apresenta para
reprodução. Seus últimos trabalhos (principalmente aqueles editados ao longo
dos anos 70, em tiragens mínimas) são irreproduzíveis: poemas em pano,
poemas-mapa, poemas-desenho, poemas-partitura, poemas-quebra-cabeça.
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(1957)
Comentários aos poemas figurativos
No caso do primeiro poema, a palavra-chave é terra. Ela aparece inteira ou
parcialmente em todos os versos. Semanticamente, o poema traz a temática da
terra como espaço de onde os homens precisam tirar sustento. Também trata da
questão da posse e da propriedade da terra. Quem a lavra (“ara”) não a possui
(“é rara te”).
A imagem ótica do poema sobre o papel sugere um trecho de terra lavrada,
em que se podem distinguir valos de escoamento e encanteiramento para a
364
semeadura. Leitura em voz alta mostrará também a sugestividade dos fonemas
erre, que aproximam o resultado sonoro do barulho dos motores (dos tratores).
O segundo poema está centrado no tema da velocidade, por isso é essa
sua palavra-chave. O poema traça um retângulo sobre o papel. O retângulo
traçado está composto por dois triângulos isósceles. À esquerda e ao alto, o
triângulo é constituído apenas da letra vê, cuja sonorização sugere o ruído de
algo que se movimenta no ar: é, pois, a sugestão sonora da velocidade. No outro
triângulo, à direita e embaixo, as letras impressas compõem a palavra-chave. Os
alinhamentos transversais, compostos sempre de uma mesma letra, ao lado das
figuras geométricas perfeitas, sugerem a precisão da tecnologia, que capacita
alguns objetos ao movimento e à velocidade.
365
MANOEL Wenceslau Leite de BARROS
Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT) à beira do Rio Cuiabá, em 1916.
Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou por algum tempo. Faleceu em
Campo Grande (MS), em 2014. Foi poeta, fazendeiro e advogado. A obra dele
tem sido reconhecida por leitores, professores, e críticos nacionais.
Eis algumas de suas obras: Poemas concebidos sem pecado (1937);
Compêndio para uso dos pássaros (1960); Gramática expositiva do chão (1966);
Livro de pré-coisas (1985); O guardador de águas (1989); O livro das ignorãças
(1993); Livro sobre nada (1996); O fazedor de amanhecer (2001); Obra completa
(2010).
O primeiro livro escrito por ele está perdido para o público. Foi sequestrado
por um policial. O livro foi preso no lugar do autor, porque Manoel de Barros fora
procurado por ter escrito frase de apoio ao Comunismo numa estátua de rua, no
Rio de Janeiro, onde estudava na época. Ele tinha 18 anos de idade. Intitulavase Nossa Senhora de Minha Escuridão. Era 1934.
Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada
4ª parte de O guardador de águas - quinto poema
Escrever nem uma coisa
Nem outra –
A fim de dizer todas –
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.
Terceiro dia
Os deslimites da palavra – 2ª parte de O livro das ignorãças
Terceira parte do primeiro poema
Passa um galho de pau movido a borboletas:
Com elas celebro meu órgão de ver.
Inclino a fala para uma oração.
Tem um cheiro de malva esta manhã.
Hão de nascer tomilhos em meus sinos.
(Existe um tom de mim no anteceder?)
Não tenho mecanismo para santo.
Palavra que eu uso me inclui nela.
Este horizonte usa um tom de paz.
Aqui a aranha não denigre o orvalho.
366
Mundo pequeno
(3ª parte de O livro das ignorãças)
Sétimo poema
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases,
mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos na frase é muito
saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.
Comentários aos poemas de Manoel de Barros
No primeiro poema lê-se referência à construção e à recepção do texto
poético. A referência ao texto poético dá-se por três vias: o fato de ser um poema;
a negação da necessidade de “dizer” algo com certa clareza, como ocorre na
prosa (1a estrofe); a alusão direta ao procedimento da elaboração poética
centrada no substantivo “poeta” (2 o verso, 2a estrofe). Não explicar (ou
“desexplicar” ou deixar o leitor interpretar) aponta ao caráter sintético,
antidiscursivo do poema, que o distingue, também por isso, do texto em prosa.
Sugere igualmente o encontro dialógico entre texto e leitor. A analogia
estabelecida é com “escurecer” (falta de clareza), que “acende os vagalumes”, i.
é, acende as luzes do leitor. A multíplice iluminação traz beleza ao texto. A
iluminação se coneta à polissemia, uma das marcas fundamentais do texto
literário.
Em outro poema Manoel de Barros escreveu mais ou menos isso – “Há
certas frases que se iluminam pelo opaco” (igualmente de O livro das ignorãças).
O segundo poema pertence à segunda parte (Os deslimites da palavra), do
mesmo livro, e intitula-se Terceiro dia. A extensão do título do poema já aponta
ao rumo temático do texto: “os deslimites da palavra”. O trecho sugere a
sequência da criação. Por isso o título é “terceiro dia”. Fala das obras da
367
natureza. Destaca a coexistência do belo tradicional da lírica (simbolizado pelo
“orvalho”) unido ao tradicionalmente considerado feio, repelente e apoético. Por
isso “aqui a aranha não denigre o orvalho”. Saber ver ao olhar, saber unir e
conetar, eis as possibilidades de construir relações de beleza, parece dizer o
texto. Sobre a simbologia do orvalho, pode-se ver Nova poética, de Manuel
Bandeira (Modernismo).
O terceiro poema considera a questão da língua e do uso da língua, ou a
relação entre acerto e erro, quando se trata de matéria linguística (a palavra) no
âmbito da literatura. “Saber errar bem o seu idioma” é a chave da questão.
Subverter o código para que diga mais, para que rompa a banalização que o diaa-dia impõe aos recursos expressivos e sugestivos da língua na configuração do
poema, eis a maneira de ultrapassar o corriqueiro. Trata-se, portanto, de um dos
ângulos de constituição da poesia.
Como se pode perceber, são textos metapoéticos. Se houve alguns
anteriores que puderam ser enquadrados no esteticismo, os poemas de Manoel
de Barros não parecem enquadrar-se no mesmo estilo de época. Flui nesses
textos, mais que a formalização esteticista, a preocupação com encontrar formas
para expressar o que se vê, o que não se evidencia em Melo Neto, p. ex. A
fluidez das frases é mais facilmente perceptível; em Melo Neto mostra-se a
afirmação de certeza artesanal. Há certo embalo despreocupado nos poemas de
Barros, ausente em Melo Neto. A literatura de Barros parece mostrar-se mais
claramente em buscar ou reencontrar caminhos. De modo semelhante, o ideário
está constituído ou centrado nas descobertas das coisas simples, que
esclarecem e deslumbram, a começar pela natureza. Por esses motivos, parece
mais coerente falar em participação (de Barros) na fase expansionista do Pósmodernismo.
Cabe esclarecer a dificuldade que a concepção do expansionismo traz à
teorização. Ocorre que expansionismo (1960-1980) diz apenas de momento em
que os autores demonstram, nos textos, certa angústia da exposição à censura.
Por isso mesmo se pode falar a partir dos autores e não propriamente dos textos.
Por expansionismo não se entende exatamente um estilo, mas um período
estilístico e a busca de formas e temas. Essa busca se constitui na diversidade
dos textos, no ecletismo das propostas, na tentativa ora de despistar, ora de
reagir às mesmices que nalguns momentos costumam se abater sobre a
produção. Haja vista que foi nessa época que começaram a aparecer os festivais
de música no interior e em capitais do Brasil. É como disse um dos idealizadores
dum desses festivais: “Precisávamos construir o palco em que pudéssemos
cantar do nosso jeito”, sem submissões a modismos, a estrangeirismos, a
cartilhas formais e ideológicas.
368
FERREIRA GULLAR
Ferreira Gullar é o pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Nasceu em São
Luís (MA), em 1930. No Rio de Janeiro, colaborou em jornais e revistas, como
poeta e como crítico de arte. Fez parte dos movimentos concretista e
neoconcretista. Em 1961, considerando o novo movimento esgotado, dedicouse à cultura popular. Reelaborou sua experiência poética com textos de cordel.
Obra: Dentro da noite veloz (1975); Poema sujo (1976); Antologia poética
(1977). Cultura posta em questão (1964); Vanguarda e subdesenvolvimento ensaio. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (1966), com Oduvaldo
Viana Filho – teatro.
Dentro da noite veloz
I
Na quebrada do Yuro
eram 13 horas 30
(em São Paulo
era mais tarde; em Paris anoitecera;
na Ásia o sono era seda)
Na quebrada
do rio Yuro
a claridade da hora
mostrava seu fundo escuro:
as águas limpas batiam
sem passado e sem futuro.
Estalo de mato, pio
de ave, brisa
nas folhas
era silêncio o barulho
a paisagem
(que se move)
está imóvel, se move
dentro de si
(igual que uma máquina de lavar
lavando
sob o céu boliviano, a paisagem
com suas polias e correntes
de ar)
Na quebrada do Yuro
não era hora nenhuma
só pedras plantas e águas
369
II
Não era hora nenhuma
até que um tiro
explode em pássaros
e animais
até que passos
vozes na água rosto nas folhas
peito ofegando
a clorofila
penetra o sangue humano
e a história
se move
a paisagem
como um trem
começa a andar
Na quebrada do Yuro eram 13 horas e 30
III
Ernesto Che Guevara
teu fim está perto
não basta estar certo
pra vencer a batalha
Ernesto Che Guevara
entrega-te à prisão
não basta ter razão
pra não morrer de bala
Ernesto Che Guevara
não estejas iludido
a bala entra em teu corpo
como em qualquer bandido
Ernesto Che Guevara
por que lutas ainda?
a batalha está finda
antes que o dia acabe
Ernesto Che Guevara
é chegada a tua hora
e o povo ignora
se por ele lutavas
IV
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora
é mais intenso, o inimigo avança
370
e fecha o cerco.
Os guerrilheiros
em grupos pequenos divididos
aguentam
a luta, protegem a retirada
dos companheiros feridos.
No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam
lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um
[golpe.
Uma família festeja bodas de prata num trem que se
aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
ou baixa.
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio,
Ñato
castigam o avanço
dos rangers.
Urbano tomba,
Eustáquio,
Che Guevara sustenta
o fogo, uma rajada o atinge, atira
novamente, solve-se-lhe
o joelho, no espanto
os companheiros voltam
para apanhá-lo. É tarde. Fogem.
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos
mortos.
V
Não está morto, só ferido.
Num helicóptero ianque
é levado para Higuera
onde a morte o espera
Não morrerá das feridas
ganhas no combate
mas de mão assassina
371
que o abate
Não morrerá das feridas
ganhas a céu aberto
mas de um golpe escondido
ao nascer do dia
Assim o levam pra morte
(sujo de terra e de sangue)
subjugado no bojo
de um helicóptero ianque
É o seu último voo
sobre a América Latina
sob o fulgor das estrelas
que nada sabem dos homens
que nada sabem do sonho,
da esperança, da alegria,
da luta surda do homem
pela flor de cada dia
É o seu último voo
sobre a choupana de homens
que não sabem o que se passa
naquela noite de outubro
quem passa sobre seu teto
dentro daquele barulho
quem é levado pra morte
naquela noite noturna
VI
A noite é mais veloz nos trópicos
(com seus
na vertigem das folhas na explosão
monturos)
das águas sujas
surdas
nos pantanais
é mais veloz sob a pele da
treva, na
conspiração de azuis
e vermelhos pulsando
como vaginas frutos bocas
vegetais
(confundidos nos sonhos)
ou
ramo florido feito um relâmpago
parado sobre uma cisterna d’água
372
no escuro
É mais funda
a noite no sono
do homem na sua carne
de coca
e de fome
e dentro do pote uma caneca
da lata velha de ervilha
da Armour Company
A noite é mais veloz nos trópicos
com seus monturos
e cassinos de jogo
entre as pernas das putas
o assalto
a mão armada
aberta em sangue a vida
É mais veloz
(e mais demorada)
nos cárceres
a noite latino-americana
entre interrogatórios
e torturas
(lá fora as violetas)
e mais violenta (a noite)
na cona da ditadura
Sob a pele da treva, os frutos
crescem
conspira o açúcar
(de boca para baixo) debaixo
das pedras, debaixo
da palavra escrita no muro
ABAIX
e inacabada
Ó Tlalhuicole
as vozes soterradas da platina
Das plumas que ondularam já não resta
mais que lembrança
no vento
Mas é o dia (com
seus monturos)
pulsando
dentro do chão
373
como um pulso
apesar da South American Gold and
Platinum
é a língua do dia
no azinhavre
Golpeábamos en tanto los muros de adobe
y era nuestra herencia una red de agujeros
é a língua do homem
sob a noite
no leprosário de San Pablo
nas ruínas de Thiauanaco
nas galerias de chumbo e silicose
da Cerro de Pasco Corporation
Hemos comido grama salitrosa
piedras de adobe lagartijas ratones
tierra em polvo y gusanos
até que o dia
(de dentro dos monturos) irrompa
com seu bastão de turquesa
VII
Súbito vimos ao mundo
e nos chamamos Ernesto
Súbito vimos ao mundo
e estamos
na América Latina
Mas a vida onde está?
nos perguntamos
Nas tavernas?
nas eternas
tardes tardas?
nas favelas
onde a história fede a merda?
no cinema?
na fêmea caverna dos sonhos
e de urina?
ou na ingrata
faina do poema?
(a vida
que se esvai
no estuário do Prata)
Serei cantor
serei poeta?
374
Responde o cobre (da Anaconda Cooper):
Serás assaltante
e proxeneta
policial jagunço alcagueta
Serei pederasta e homicida?
serei viciado?
Responde o ferro (de Betlhem Steel):
Serás ministro de Estado
e suicida
Serei dentista?
talvez quem sabe oftalmologista?
otorrinolaringologista?
Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):
serás médico aborteiro
que dá mais dinheiro
Serei uma merda
quero ser uma merda
Quero de fato viver.
Mas onde está essa imunda
vida – mesmo imunda?
No hospício?
num santo
ofício?
no orifício
da bunda?
Devo mudar o mundo,
a República? A vida
terei de plantá-la
como um estandarte
em praça pública?
VIII
A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro, da boca
mas
quando for tempo
375
E é tempo todo tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão.
Comentários ao poema Dentro da noite veloz
Dentro da noite veloz é uma ode a Che Guevara. O poema está composto
em oito partes. A estrofação é irregular ao longo do poema. O ritmo às vezes
está marcado, como na 3a e na 5a partes, em que as estrofes são quadras; às
vezes os versos obedecem a sequência gráfica que se afasta das formas
tradicionais, o que era usual na época.
O poema se dedica a analisar a condição da população latino-americana,
um pouco como se pode supor que Che Guevara a via. A grande expectativa é
que “a vida muda” “para sempre”, “lentamente” ou “velozmente”, mas há o tempo
que se instala entre cada etapa. As mudanças às vezes surpreendem, “como a
água [que muda] em folhas”, na natureza, e como “o sonho [que muda] em luz
elétrica” na atividade do homem. A esperança se resguarda, porque “a vida muda
o morto em multidão”, ou seja, a figura lembrada no poema há de ressuscitar na
multidão que a utopia há de construir.
Notícia da morte de Alberto da Silva
(poema dramático para muitas vozes)
Eis aqui o morto
chegado a bom porto
Eis aqui o morto
como um rei deposto
Eis aqui o morto
com seu terno curto
Eis aqui o morto
com seu corpo duro
Eis aqui o morto
enfim no seguro
II
De barba feita, cabelo penteado
jamais esteve tão bem arrumado
De camisa nova, gravata borboleta
parece até que vai para uma festa
376
No rosto calmo, um leve sorriso
nem parece aquele mais-morto-que-vivo
Imóvel e rijo assim como o vês
parece que nunca esteve tão feliz
III
Morava no Méier desde menino
seu grande sonho era tocar violino
Fez o curso primário numa escola pública
quanto ao secundário resta muita dúvida
Aos treze anos já estava empregado
num escritório da rua do Senado
Quando o pai morreu criou os irmãos
sempre foi um homem de bom coração
Começou contínuo e acabou funcionário
sempre eficiente e cumpridor do horário
Gostou de Nezinha, de cabelos longos,
que um dia sumiu com um tal de Raimundo
Gostou de Esmeralda uma de olhos pretos
ela nunca soube desse amor secreto
Endoidou de fato por Laura Marlene
que dormiu com todos menos com ele
Casou com Luísa, que morava longe,
não tinha olhos pretos nem cabelos longos
Apesar de tudo, foi bom pai de família
sua casa tinha uma boa mobília
Conversava pouco mas foi bom marido
comprou televisão e um rádio transístor
Não foi carinhoso com a mulher e a filha
mas deixou para elas um seguro de vida
Morreu de repente ao chegar em casa
ainda com o terno puído que usava
Não saiu notícia em jornal algum
foi apenas a morte de um homem comum
E porque ninguém noticiou o fato
fazemos aqui este breve relato
IV
Não foi nada demais, claro, o que aconteceu:
377
apenas um homem, igual aos outros, que morreu
Que nos importa agora se quando menino
o seu grande sonho foi tocar violino?
Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?
Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?
Que nos importa agora se algum dia ele quis
conhecer Nova Iorque, Londres ou Paris?
Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?
Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda
V
Mas é preciso dizer que foi como um fio
d’água que não chegou a ser rio
Refletiu no seu curso o laranjal dourado
sem que nada desse ouro lhe fosse dado
Refletiu na sua pele o céu azul de outubro
e as esplendentes ruínas do crepúsculo
E agora, quando se vai perder no mar
imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:
toda palavra dita, toda palavra ouvida,
todo riso adiado ou esperança escondida
toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido
o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma
VI
Mas no fim do relato é preciso dizer
que esse morto não teve tempo de viver
Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado
378
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram
VII
Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto
Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente
Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade
Comentários ao poema Notícia da morte de Alberto da Silva
A extensão do título (poema para muitas vozes) revela a proposta de um
poema para ser recitado. Ideologicamente, o poema reflete a respeito da
condição do homem comum da cidade. Sem reivindicar, sem ser sujeito de sua
história, Alberto da Silva se aproxima de Pedro de Agora eu quero cantar, de
Mário de Andrade (Modernismo). Tudo acontece sobre ele; ele não faz acontecer
nada. Aproxima-se também da alegoria de A cachoeira de Paulo Afonso de
Castro Alves (Romantismo). A falta de reação ao não-ser leva inexoravelmente
à morte.
Estilisticamente, o poema se fortalece especialmente na quinta parte,
quando ensaia alegoria entre o homem e o rio.
ARMINDO TREVISAN
Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria (RS), em 1933. Graduou-se em
Filosofia e Teologia. Doutorou-se na Suíça, pela Universidade de Friburgo. Foi
professor no Instituto de Artes da UFRGS. É detentor do Prêmio Nacional de
Poesia Gonçalves Dias pelo livro A surpresa de ser (1967).
Outras obras dele: Funilaria no ar (1973); Em pele e osso (1977); O ferreiro
harmonioso (1978); O moinho de Deus (1985); Os olhos da noite (1997); O canto
das criaturas: uma biografia lírica de São Francisco de Assis (1998).
379
Oração por uma criança
Do nada que habita nossos corpos
tiraste Senhor esta flor de carne!
O espírito move-lhe as narinas
invisível motor a bombear
água na montanha. Seu rosto
é um pouco nosso rosto. Sua alma
voa por entre cerejeiras e corvos.
Traz migalhas da escuridão
das primeiras águas sobre as quais
planavas a incubar o mundo.
Oh! Suas pequeninas mãos recendem
ao fogo que ardeu em nosso coração
numa obscura noite de amor.
Repousa agora ao nosso lado
imprevisível como uma flecha.
Concede-lhe o sopro maior
de tua boca. Que a luz
de seus olhos se apague
no abismo de teus olhos.
(O ferreiro harmonioso)
Comentários ao poema Oração por uma criança
O poema em questão aponta Ao principal recurso ideológico do poeta
Armindo Trevisan: o misticismo. O misticismo se revela de maneira patente no
livro do qual foi extraído o poema, O ferreiro harmonioso.
Como os humanos não somos capazes de dominar a condição existencial,
Deus é solicitado. A imprevisibilidade de “uma flecha”, que há na vida humana
recém-nascida, revela todas as fragilidades e incertezas dela. Uma flecha em
repouso pode ser um adorno como pode ser um índice. Se se puser em
movimento, só Deus sabe! A “alma” (do latim, anĭma: sopro, vida), viaja entre
universos conflitantes: “cerejeiras e corvos”. Esse ser que veio “do nada que
habita nossos corpos” está fadado também ao nada. Por isso, o poema-oração
se conclui na súplica maior: que a escuridão dos olhos (quando os olhos já não
tenham luz) deságue (se desfaça) no “abismo” da luz dos olhos de Deus,
intemporais.
O lixeiro
I
O lixeiro
380
por primeiro
lava a alma
da manhã
as mãos lhe brotam
do tronco
é linha reta
de nariz
a nariz
II
A casca vai construindo
a metrópole
o pó deserta
a cristaleira
o trapo se esgueira
pela joia
III
Como quem ceifa o boné
do maquinista
o avental
da florista
o lixeiro encova nas mãos
a obesidade da vida
nele o que sobra
da cobra
não é veneno
é a pele
que a estação não carregou
IV
O lixeiro por dinheiro
escarra
por dinheiro
salta da giba
por dinheiro
também
é lixo
381
V
Mas o dinheiro
do lixeiro
não é lixo
é vingança de bicho
VI
Por dinheiro o lixeiro
sorve piche
em canudinho
engole tinteiro
tira dele a assinatura
de reservista
VII
Em lixo ele pensa
abre o coração
de baixo para cima
foi alfabetizado para ser
cidadão
é no coração
que lhe puseram lixo
VIII
Não que a mão
seja mais nobre
pelo cobre
que martela
pelo excremento
que aperta
não que a mão
seja ex-mão
por afundar no real
onde
o limite é fatal
mas há de ser menos
mão
quando obedecer
a outra mão
382
não se ligar a ela
pelo remo
pela vela
por tudo
que primeiro
foi aboio
IX
A mão do lixeiro
remorso da cidade
edifica uma latrina
sobre a língua
da democracia
X
O lixeiro
que passa
o cão que o precede
sob a luminária
a lata que exibe
caviar
o lixeiro não fala
aprendeu depressa
a se sujar
XI
Macho
o lixeiro
alimenta
o enfeite
seu riso
urina no parágrafo tal
XII
Vai morrer
por ter cumprido o dever
girassol
na anca
do instinto
383
XIII
Lixo de vida
lixo de morte
na sua pétala
um verme
convivemos no tempo
eu no meu reino
ele
na sua caverna
bem haja
quem lhe inventou esse nome
Pedro da Silva
peixe outrora
depois ave
primata
nem isso
Pedro da Silva
por graça de Deus
e dos homens
lixeiro
ex-lixeiro
isso
uma coisa
Pedro da Silva
habitante do Brasil.
(Em pele e osso)
Comentários ao poema O lixeiro
O lixeiro constitui um dos marcantes momentos de elaboração poética de
Armindo Trevisan. A conformação dos versos, das estrofes, o vocabulário, a
sintaxe são elementos que constroem o primeiro impacto. Algo próximo do que
foi visto em Dentro da noite veloz (Ferreira Gullar). A multiplicidade semântica
faz o segundo (porque os significados vão brotando aos poucos). O
questionamento ideológico penetra em questões sobre as quais nem sempre nos
surpreendemos pensando; como, p. ex., o que pode significar democracia. É o
que se lê na nona parte: “A mão do lixeiro / remorso da cidade / edifica uma
latrina / sobre a língua / da democracia”. Essa passagem mostra-se exemplar
das questões que vêm a lume no poema.
384
As desigualdades também encontram contundência no poema. “Lixo de
vida / lixo de morte / na sua pétala / um verme / convivemos no tempo / eu no
meu reino / ele / na sua caverna”. Como constantemente ocorre ao longo da
composição, nessa passagem igualmente a expressividade rítmica se solidifica
sobre a sugestividade ótica da leitura, como, p. ex., o pronome “ele” isolado no
verso que sozinho constitui. As relações entre “meu reino” e “sua caverna”
podem desenvolver amplas reflexões a respeito do relacionamento humano de
sempre.
Luís Guilherme do PRADO VEPPO
Prado Veppo nasceu em Porto Alegre em 1932 e faleceu em Santa Maria
(RS) em 1999. Viveu em Porto Alegre, Uruguaiana, Vacaria e em Santa Maria,
onde se fixou. Dedicou-se à poesia, à medicina psiquiátrica e ao magistério.
São dele Alba, tempo e rosa (1962); O andarilho (1964); Espada de flor
(1975); Passos do vislumbre (1994); Os breves (1995); O girassol azul (1996);
Quarteto in verso (1996); Quarteto in prosa e verso (1998); Cavaleiros da vida e
da morte (1998). A Obra completa foi editada (pela UFSM) em 2002.
A obra do Prado Veppo é principalmente constituída de poemas que tratam
da vida infantil, seus percalços, frustrações, pequenas e grandes tristezas e
alegrias comuns. O que marca estilisticamente a produção poética de Prado
Veppo é a simplicidade, que às vezes o aproxima de Casimiro de Abreu, outras,
de Vinícius de Moraes, mas sempre de modo próprio. O ritmo e o metro
geralmente atendem à melodia da fala cotidiana e às vezes ao embalo da
sugestividade adequada a cada texto.
Poema do plantão do hospital
Estou aqui para as angústias
E devo esperar os desesperos.
A dor me chamará na madrugada
E verei o medo nos olhos
Intumescidos de súplicas.
Estou aqui para marcar-me
De gritos enrouquecidos
E sentir a vida fugir
Das minhas mãos de brinquedo.
Mas eu sei que estou aqui,
Para criar novos abraços
Em mil braços esquecidos
E dar às ruas do mundo
Os seus aviões de papel.
(Alba, tempo e rosa)
385
Comentários ao Poema do plantão de hospital
O Poema do plantão do hospital, como a obra em geral de Prado Veppo, é
composição marcada pela simplicidade e pela atenção à infância; nesse caso,
ao vir ao mundo. Na primeira estrofe, o poema expressa a condição íntima de
quem se prepara a surpresas preocupantes. Na segunda, lê-se a declaração da
impotência humana diante da natureza; mais precisamente diante da morte. Já
surge aí indício do universo infantil na expressão “mãos de brinquedo”. Na
terceira, o poema se abre à esperança: apesar das probabilidades de
sofrimentos, é possível esperar os nascimentos. Com eles, surgirão “novos
abraços”, mesmo “em mil braços esquecidos” de abraçar. Com eles, as “ruas do
mundo” ganham “os seus aviões de papel”.
Cristo Homem
Eu preferiria um Cristo Homem,
Que tivesse nascido do pecado para a vida dos santos.
Eu preferiria um Cristo Homem,
Amigo de Pedro e de João,
Que fosse o maior de todos os Apóstolos.
Um Cristo que não tivesse
O amparo dos anjos no Horto das Oliveiras
E não soubesse da ressurreição.
Um Cristo que fosse bom,
Não por ser Deus,
Mas por ser Cristo.
Eu preferiria um Cristo Homem,
Pois o exemplo daria Cristos ao mundo,
E o mundo daria deuses aos céus.
(Alba, tempo e rosa)
Comentários ao poema Cristo homem
Em Cristo homem, lê-se o Neo-humanismo numa de suas formas: a
valorização das pessoas comuns, as que não podem reivindicar qualquer
privilégio, que não se entendem com direitos especiais, mas como humanos,
simplesmente. Sofrer e morrer devem ter significados bem diferentes, para quem
sabe que são passagens definitivas e para quem hipoteticamente soubesse que
ambas situações são reversíveis e que a felicidade absoluta espera para se
instalar eternamente.
Resolução
Não cantarei mais o passado imperfeito
Dos meus dias.
Só o presente indicativo do caminho...
E o infinito futuro dos homens iguais!
386
Comentários ao poema Resolução
De modo análogo ao que praticaram alguns poetas da segunda fase do
Modernismo, como fez Mário Quintana, p. ex., Prado Veppo eleva frases à
condição de poema. Resolução trabalha (ou brinca) com tempos e modos
verbais e simultaneamente estabelece fundamento ideológico na indignação
diante das desigualdades sociais, preocupação constante do Neo-humanismo,
pelo menos na literatura.
O dia da caça
O alçapão nos prendia
o dia inteiro no pátio.
(O andarilho)
Comentário ao poema O dia da caça
O dia da caça é outro poema-frase e de comunicação imediata, como em
geral conseguem as crianças. O poema procura olhar à alma infantil. O
presumível sentido de maldade representada pelo desejo de aprisionar pássaros
se desfaz pelo real desinteresse pelo tema anunciado no título. Afinal, a
brincadeira prende, de fato, as crianças.
O perdão
Seguido me encontro,
E discuto comigo.
Com duras palavras
Então me castigo.
Me chamo de louco
De eterno covarde.
Me grito de tudo,
Me choro até tarde.
Depois me enterneço,
Me nano, me nino,
Me pego no colo
E adormeço menino.
(Espada de flor)
Comentários ao poema O perdão
O perdão não destoa da temática da infância. A diferença é que, nesse
poema, aparece a conversão do adulto na criança, para que se encontre, em
autoexame de intimidade, ou seja, volte a ser menino. Os versos são
pentassílabos; dois são hexassílabos. Nesse metro, os ictos se ressaltam e
estabelecem ritmo marcado, que sugere o balanço de ninar. O retorno ao sono
do colo (ou do ventre materno) é repouso que faz brotar a criança no adulto. A
simplicidade é de tal maneira marcante, que apenas o trabalho fônico-sugestivo
elaborado pode solicitar repetição da leitura: semanticamente o poema se
esclarece na primeira tentativa. Em voz média, valorizam-se as nuances sonoras
do poema.
387
A cadeira
Para entristecer-se
Já basta o seguinte:
Sentar numa cadeira
E pensar na maioria.
Os bonecos
Os meninos pobres
São bonecos vivos
Que os meninos ricos
Comprarão mais tarde.
(Os breves)
Comentários aos poemas A cadeira e Os bonecos
São dois raros poemas de Prado Veppo, em que a mordaz alusão ao
mundo adulto aparece sem retoques. A preocupação com dizer, em A cadeira,
acabou por preocupar um pouco a poeticidade. “A maioria” parece apontar às
pessoas que seguem apenas o que outros fazem e dizem, sem reflexão própria.
Assim se fazem costumes, às vezes cruéis e às vezes ridículos. Nessas
condições, frequentemente, os valores são sacrificados, ou se pratica inversão
deles. No segundo, a crueldade do sistema social afoga o sentimento
humanitário e igualitário; morre assim o Neo-humanismo. O olhar do poema é
mais uma vez à infância.
Apparício Silva RILLO
Rillo nasceu em Porto Alegre em 1931 e faleceu em São Borja (RS) em
1995. Residiu também em Guaíba (RS) e acompanhou a família em sucessivas
mudanças para outras cidades. Estudou Ciências Econômicas e Contábeis, mas
abandonou os estudos e a cidade (Porto Alegre) para trabalhar como contabilista
num empório comercial em distrito de São Borja. Em 1958, transferiu-se
definitivamente para São Borja.
Entre suas obras estão: Cantigas do tempo velho (1959), Viagem ao tempo
do pai (1981); Pago vago (1981); Os galos cantarão (1992); Um homem
chamado Juca (1994); 50 anos de poesia (2006).
Pago vago
Vago é meu pago.
Este que trago,
cicatriz em mim.
Raiz de minhas íntimas origens,
veio subterrâneo de onde vim.
Vago é meu pago.
388
Este que trago,
em músculos e ossos.
Inteiro como foi porque é memória,
flor de perenidade entre destroços.
Vago é meu pago.
Este que trago,
como sombra e manto.
É meu destino a cruz de sustentá-lo
nos alicerces de vento de meu canto.
(Pago vago)
Comentários ao poema Pago vago
O poema Pago vago abre a coletânea homônima (1981). Embora não seja
o livro mais citado nem mais conhecido do autor, Pago vago representa
provavelmente o momento mais significativo do poeta.
O poema está composto em três estrofes simétricas entre si, quanto ao
número de versos e à estrutura deles. Isso não significa dizer que os versos
sejam isométricos ou isorrítmicos. Não é difícil perceber que não o são.
Os dois versos iniciais das três estrofes funcionam como estribilho, mas de
abertura, com forma anafórica. Com quatro sílabas poéticas cada um, estão
construídos sobre recursos fônicos, como rimas e ritmo marcado. Esses versos
carregam a linha semântica principal do poema: o pago que trago é vago
(impreciso). Pago é o lugar de nascimento, o lugar em que se vive, o torrão que
se ama. O que o texto procura expressar é a imprecisão (a vaguidade) desse
lugar. Pela proposta do poema, o lugar do pago é mais certamente o imaginário.
Na primeira estrofe, o pago “é cicatriz em mim”. Cicatriz é ferimento
cicatrizado, mas do qual restaram marcas. Ferimento sugere sofrimento, dor.
Essa dor está guardada, cicatrizada. O pago é “raiz de minhas íntimas origens,
/ veio subterrâneo de onde vim”. Nele estão cravadas minhas origens; ele
alimenta o tronco, os ramos e as folhas, as pessoas, as famílias, o imaginário e
a imaginação. O pago é “veio subterrâneo de onde vim”, é fonte, cacimba,
nascedouro, de onde também brotei. O substantivo “veio” (conforme a leitura
feita) pode igualmente ser lido como forma verbal de vir. Essa alternativa permite
ler: o pago veio do âmago da terra, das coisas, do mundo, como eu também vim
(do ventre do mundo, da terra, da mãe, da terra-mãe).
A segunda estrofe toma o pago em “músculos e ossos”, i. é, na sua
construção material. Músculos e ossos lembram pessoas e animais, ou seja, o
trabalho, a construção física do que denominamos pago, a terra de cada um.
Como todas as coisas se transformam (aparentemente desaparecem), o pago,
desde as origens, não pode manter-se “inteiro” sempre. O único espaço em que
pode permanecer é na “memória”. Aí, é sempre inteiro, porque a memória somos
nós (cada um e todos) que construímos. Ao redor, o que se vê são ruínas,
389
“destroços”. A memória conserva, faz o pago ser “flor de perenidade” – esse
pago que está no interior (“cicatriz em mim”, 1 a estr.). Ao redor, o que se vê são
ruínas, deterioração, morte; dentro, o pago transformado, perene, perpétuo,
porque pode ser renovado, reelaborado, reconstruído. Por tudo isso, o poema
pode dizer que o pago está “inteiro como foi porque é memória, / flor de
perenidade entre destroços”.
A terceira estrofe justifica enfim por que o pago é (declaradamente) vago.
É que o “trago / como sombra e manto”. Vale dizer: trata-se de existência
imaterial, fugaz e dependente de luz externa (por isso é sombra). Como manto,
é o que aquece, cobre a nudez da carência dessa existência, o pago. Por fim, a
voz poética declara que sua cruz (trabalho, destino, sofrimento, espaço) é
sustentar a existência imaterial do pago. Para sustentá-la conta apenas com a
voz do poema, sustentáculo de tudo que constrói e mantém o pago: sustenta-a
“nos alicerces de vento” da poesia: “É meu destino a cruz de sustentá-lo / nos
alicerces de vento de meu canto. O “vento” pode ser lido como o sopro da voz,
o alento da vida, a própria palavra, ou seja, o poema, a poesia, a literatura, a
arte.
CHICO BUARQUE
Francisco Buarque de Hollanda nasceu (1944) e reside no Rio de Janeiro.
Ingressou na faculdade de Arquitetura, mas não concluiu o curso. A obra dele
inclui poemas, melodias, textos dramáticos e trilhas cinematográficas. É autor
também de prosa (Fazenda modelo, por exemplo). Como compositor fez-se
nacionalmente conhecido a partir de 1966, com A banda. Construiu textos de
intensa poeticidade e musicalidade, entre os quais se podem destacar, por
exemplo, Pedro Pedreiro, Olê olá, A televisão, Roda-viva, Construção, Valsinha,
Com açúcar, com afeto, Passaredo, Cálice, João e Maria, Sabiá. Como
dramaturgo, compôs, na condição de autor único e na de coautor, Roda-viva,
Calabar, Os saltimbancos (infantil), Ópera de malandro. É autor também de
literatura para infância (Chapeuzinho Amarelo).
Pedro pedreiro
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
A gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
390
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande do bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro Pedreiro esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também,
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Que a esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem
391
Que já vem, que já vem, que já vem
Comentários a Pedro Pedreiro
Há razões para a denominação letras, dada aos poemas construídos com
melodia ou musicados, porque a melodia, as sonorizações e as interpretações
completam vários balões em branco do texto poético e criam outros. Por esse
motivo, também, a construção das letras obedece a lógica um pouco diferente
da dos poemas elaborados para serem lidos e ou recitados.
Pedro Pedreiro é uma letra. Na qualidade de letra, tem configuração
caraterística. Exemplos disso são as repetições, as retomadas, a concentração
rítmica. O último verso igualmente marca o texto, pela sugestividade do barulho
caraterístico da locomotiva e das rodas do trem sobre os trilhos, que o
instrumental e a voz podem tornar explícitos.
A televisão
O homem da rua
Fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não
Em casa a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão
No céu a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão
No céu a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Pra mostrar evoluções
O homem da rua
392
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
No céu a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões.
Comentários ao poema (ou letra) A televisão
A televisão, como o texto anterior, é composição musical. Tipifica a reflexão
a respeito da mudança de costumes que se delineava (o texto é de 1967) com a
chegada da televisão. Sugere também a questão do serviço a que vem a
televisão e a serviço de quem se punha. A televisão chegou ao Brasil na década
de 1950, mas se difundiu e solidificou nos anos sessenta, especialmente após a
instalação do golpe militar de 1964. O assédio do capital estrangeiro, com
objetivos econômico-financeiros e ideológicos, começou então a construir
grandes corporações de divulgação.
A televisão revela esse momento. Dividido em três estrofes, o poema tem
em cada uma delas uma etapa dessa mudança de costume. Na primeira, “o
homem da rua”, refém do novo costume, se mantém fiel à vida que deseja, por
isso já fale “só com seus botões”. Na segunda, o “homem da rua” já não se toca
com o “chamego” da lua, mas tenta manter forma própria de expressão, por isso
“samba só com seus botões”. Na terceira, como todos, com o costume
adventício, aderiram à nova forma de solidão, “o homem da rua” “vai ligar os
seus botões”. A lua “encabulada e já minguando [...] vai de volta pros sertões”:
vai mostrar-se a quem a veja e a admire. Noutras palavras, vai aparecer a quem
ainda esteja ligado na natureza, nas coisas que geram aproximação com a vida
natural.
Soneto
Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
393
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono
Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio
Comentários ao Soneto
Eis um dos raros textos do autor em forma tradicional, como o soneto. A
temática, contudo, é bem frequente na produção dele. Em Soneto, a voz lírica
retoma o assombro diante do iminente abandono da vida conquistada ou apenas
vislumbrada.
MOACYR Jaime SCLIAR
Moacyr Scliar nasceu (1937) e faleceu (2011) em Porto Alegre. Formou-se
em Medicina em 1955. Seu primeiro livro publicado foi Histórias de médicos em
formação (1962). Há traduções de seus livros em vários idiomas.
Entre suas obras mais conhecidas estão: O carnaval dos animais (1968); A
guerra do Bom Fim (1972); O exército de um homem só (1973); Mês de cães
danados (1977); O centauro no jardim (1980); A orelha de Van Gogh (1988);
Olho enigmático (1988); A mulher que escreveu a Bíblia (1999).
O carnaval dos animais
(conto Os leões)
Hoje não, mas há anos os leões foram perigo. Milhares, milhões deles
corriam pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos. Houve receio
de que eles chegassem a invadir a Europa e a América. Wright, Friedman,
Mason e outros lançaram sérias advertências a respeito. Foi decidido então
exterminar os temíveis felinos. O que foi feito da maneira que se segue.
A grande massa deles, concentrada perto do Lago Tchad, foi destruída com
uma única bomba atômica de média potência, lançada de um bombardeiro, num
dia de verão. Quando o característico cogumelo se dissipou, constatou-se, por
fotografias, que o núcleo da massa leonina tinha simplesmente se desintegrado.
394
Rodeava-o um setor de cerca de dois quilômetros, composto de postas de carne,
pedaços de osso e jubas sanguinolentas. Na periferia, leões agonizantes.
A operação foi classificada de “satisfatória” pelas autoridades
encarregadas. No entanto, como sempre acontece em empreendimentos dessa
envergadura, os problemas residuais constituíram-se, por sua vez, em fonte de
preocupação. Tal foi o caso dos leões radioativos, que tendo escapado à
explosão, vagueavam pela selva. É verdade que cerca de vinte por cento deles
foram mortos pelos zulus nas duas semanas que se seguiram à explosão. Mas
a proporção de baixas entre os nativos (dois para cada leão) desencorajou
mesmo os peritos mais otimistas.
Tornou-se necessário recorrer a métodos mais elaborados. Para tal criouse um laboratório de treinamento de gazelas, cujo objetivo primário era liberar
os animais do instinto de conservação. Seria fastidioso entrar nos detalhes deste
trabalho, aliás muito elegante; é suficiente dizer que o método utilizado foi o de
Walsh e colaboradores, uma espécie de brain-wash adaptado a animais.
Conseguindo um número apreciável de gazelas automatizadas, foi ministrado às
mesmas uma forte dose de um tóxico de ação lenta. As gazelas procuraram os
leões, deixaram-se matar e comer; as feras, ingerindo a carne envenenada,
vieram a ter morte suave em poucos dias.
A solução parecia ideal; mas havia uma raça de leões (poucos, felizmente)
resistente a esse e a outros poderosos venenos. A tarefa de matá-los foi
entregue a caçadores equipados com armamento sofisticado e ultrassecreto.
Dessa vez, sobrou apenas um exemplar, uma fêmea que foi capturada e
esquartejada perto de Brazzaville. Descobriu-se no útero da leoa um feto viável;
pouco radioativo, o animalzinho foi criado em estufa. Visava-se, com isso, a
preservação da fauna exótica.
Mais tarde o leãozinho foi levado para o Zoo de Londres onde, apesar de
toda a vigilância, foi assassinado por um fanático. A morte da pequena fera foi
saudada com entusiasmo por amplas camadas da população. “Os leões estão
mortos!” – gritava um soldado embriagado. – “Agora seremos felizes!”
No dia seguinte começou a guerra da Coreia.
Comentários ao conto Os leões
O carnaval dos animais (1968), embora seja obra no nascedouro da
produção do autor, continua sendo livro referencial. Com ele se definem
tendências que Scliar, mais ou menos, manteria ao longo da produção que foi
elaborando.
Os leões, por seu turno, é conto paradigmático no livro. Tematiza a
constante violência que assola as ações humanas. Como fica exposto no texto,
a violência assume variadas formas de se constituir e se expor. A partir de pontos
referenciais que grande parte dos leitores conhece por informações da imprensa
em todas suas formas, consolida a verossimilhança tradicional, pontos sobre os
395
quais o conto vai montando seu parâmetro semântico. Elabora, além disso, a
própria verossimilhança, recurso intrínseco ao tipo de texto conhecido como
forma do realismo mágico. A verossimilhança intrínseca se assenta sobre a
significação textual, ou alegórica. Todos os elementos se unem e consolidam o
texto, que dificilmente o leitor vá ler uma única vez, mesmo na primeira ocasião
de contato. O leitor atento sente necessidade de voltar à leitura, para inteirar-se
da técnica que produz o sentido do texto. O próprio enredo passa a ser
fundamental para montar a expressividade semântica da narrativa. É impossível
prescindir dele, porque nele se assentam os elementos significativos.
O livro de contos O carnaval dos animais propicia também reflexões a cerca
da literatura do autor, em relação ao enquadramento técnico-teórico. A obra
mostra-se integrante do Expansionismo. Observe-se a busca de temas e formas
incomuns e subliminar cuidado diante da censura mordaz do sistema político do
momento.
Luiz Antonio de ASSIS BRASIL
Assis Brasil (ou simplesmente Assis) nasceu em Porto Alegre em 1945.
Passou parte da infância em Estrela (RS) e de lá retornou à capital. Estudou
música e integrou a OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre). Formou-se em
Direito. Coordena a Oficina de Criação Literária do Programa de Pós-Graduação
em Letras da PUCRS.
Viajou à Alemanha, como bolsista do Instituto Goethe, e aos Açores, para
estágio de pós-doutoramento. Obteve vários prêmios por sua obra.
Obras: Um quarto de légua em quadro (1976); A prole do corvo (1978);
Bacia das almas (1981); Manhã transfigurada (1982); As virtudes da casa (1985);
O homem amoroso (1986); Cães da província (1987); Videiras de cristal (1990);
Um castelo no pampa, composto de Perversas famílias, Pedra da memória
(1993) e Os senhores do século (1994); Breviário das terras do Brasil (1997); O
pintor de retratos (2001); A margem imóvel do rio (2003).
A prole do corvo
(excerto do capítulo 6)
O contato duro nos lábios o acorda, e empurra bruscamente a mão que
segura a caneca de chifre, esparramando leite morno na barriga. Em volta,
preparam carretas, enchendo-as de sacos, baús, fardos de lona e mantas de
charque. China-gorda grita com um soldado, mandando que seja mais cuidadoso
com as panelas; o soldado ri-se da cozinheira e atira por gosto o panelório dentro
da carreta, o que faz China-gorda gritar feito doida, excomungando o marrano
filho-da-mãe. Soldados do general, apoiados nos canos das armas, apreciam
como ela pega duma vassoura e quer desancá-la na cabeça do outro, que se
defende empunhando a bainha da espada, desfeito em gargalhadas. Ficam na
396
luta até que um sargento do general manda que parem o bulício, se não querem
todos ir a ferros. A mulher diz-lhe para dar ordens mas é a seus soldados, que
ela só recebe ordens de oficial para cima e que as panelas manda ela só.
Chamam Firmino, que vem passando enrolado num poncho; não quer saber de
encrencas de cozinha e diz para darem parte ao furriel, que é o homem mais
certo pra isso.
– Enlouqueceram também lá, diz João Inácio, ainda segurando a caneca.
– E como é o tranglomango? Passou?
– Passou. – Vem, súbita, a lembrança: e o inquérito?
João Inácio joga fora o resto do conteúdo do chifre, branqueando o capim
de leite: deu em nada, José.
– Como, deu em nada?
– Somos inocentes, os graúdos decidiram.
Filhinho apoia-se nos cotovelos, espantado: então não tem importância o
que nós fizemos?
– Não.
– Mas. Mas nós estivemos lá, não foi? Lá em Bagé, o comerciante, a velha,
tudo aquilo.
João Inácio fica um instante em silêncio, vendo China-gorda cortar as
cebolas à beira de uma tina.
– Hoje mesmo estava perguntando isso numa carta para minha mulher.
Pena que a resposta vai demorar tanto.
– Eu vi. Eu vi Cássio cravar o punhal e vi quando fez aquilo na mulher. Eu
ajudei, até.
– Como, ajudou?
– Ajudei, mesmo, não ajudei, mas não fiz nada, fiquei parado, em vez de.
– Sossega, os graúdos já decidiram que não temos culpa.
– Então os graúdos decidem até o que a gente tem que sentir?
– Se sempre foi assim! No início da guerra a gente tinha de ser federalista,
uma coisa que só eles entendiam; depois diziam que a república era melhor e
mandaram a gente ser republicano. Quando menos se esperava, veio isso de
fazer a independência do Império, e aí tivemos que mudar de pensamento de
novo. Quando o Bambá fez a república do Piratini, aí então era para lutar pela
República Rio-grandense. Agora, temos que ter vontade de fazer as pazes com
o inimigo que antes era pra ter raiva. Por isso é que te digo: se te mandaram ser
inocente, é bom que seja, mesmo; amanhã podem mudar de ideia.
– Mas não entendo, se estava tudo contra nós, no inquérito.
397
– Contra nós? Depois do que tu disse pro Major Alexandrino? – João Inácio
encara-o, entre irônico e surpreso.
Uma onda de vergonha formiga o corpo de Filhinho, tem de curvar a
cabeça, para não ver a cara de João Inácio. Olha para o botão de dólmã, cujo
dourado está descascando e que se prende à fazenda por um único fio de linha.
Arranca-o, guarda no bolso.
– Mas o Cássio não contou tudo como foi?
– Não. Disse que ninguém lhe perguntou nada, estavam discutindo entre
eles.
– E os outros, o Acaba-de-querer?
– Os outros? Os outros foram avisados pelo clarim do teu depoimento e
repetiram igualzinho.
– Até o Acaba?
– Pois foi o que mais floreou a história, disse que tivemos de enfrentar uma
fuzilaria que vinha da casa ao lado e que nos perseguiram até aqui.
– E tu?
– Quando chegou a minha vez, concluíram que não precisava mais, que
tudo já estava esclarecido. Dei meia volta e me raspei.
– Mas devia ter dito o que aconteceu! Acho. Penso. Quem sabe?
Ouve um “de fato?” tão marcante e intencional que teme em olhar para o
companheiro. Pega um graveto e quebra-o com raiva, jogando os pedaços para
o ar. China-gorda enxuga os olhos ardidos da cebola e ri, dizendo alto: matando
fantasma, soldado?
Cássio aproxima-se, bravateando com o Acaba-de-querer. O cabo escuta,
risonho, uma conversalhada de fandangos e tiroteios.
A última vez que vieram juntos assim foi para dar a ordem de ir a Bagé e
foi aquilo que aconteceu, não vou falar com eles, não vou, que se danem.
– E o guri que salvou o regimento, como le vai isso? – pergunta Cássio.
– Bem. – Imediatamente arrepende-se de ter falado. Não quer falar, Cássio
não presta, tenho é que ter vontade de matar ele, mas Cássio não tem um jeito
de falar mandando, que não se pode deixar de.
– Pois o nosso valente cabo Leovegildo quer agradecer a mentira que
mudou o destino da guerra. Sim, porque, se nós fôssemos presos, que seria do
pobre general?
A mão pesada e grossa do cabo avança para cumprimentá-lo:
398
– Soldado José, não sei o que vou dizer, de tanto contentamento. Mas
pegamos eles, hein? Bem direitinho no sofragante – pisca o olho empapuçado.
– Até dá pra festejar!
– Lindo! – interrompe Cássio – e festa é comigo! Se é de beber, se bebe! –
Puxa de dentro do capote uma garrafa escura, destampa-a e cheira: da boa! E
o primeiro gole é pra o nosso soldado José Cardoso de Paiva!
– Henriques – diz Filhinho, logo vexado de ter feito a retificação.
– Pois Henriques. Bebe!
Filhinho tem à frente de seu nariz o gargalo, vem de dentro o cheiro morno
de cachaça. O estômago se contrai numa arcada quando vê a manga de Cássio,
ostentando na lã uma débil mancha escura, com sinal de lavado recente.
– O que é? Não quer? Ele não quer, João Inácio.
– Tá enjoado, teve um abatimento faz pouco.
– Se não quer, não posso fazer nada. – Bebe, passa a garrafa para o cabo,
que bebe também e oferece:
– Quer, João Inácio?
– Quero. Faz tempo que.
João Inácio toma alguns goles. Pergunta a Filhinho se não quer um pouco.
– Não costumo, não sei se vai me fazer bem.
– Uma vez é a primeira – reforça Cássio.
Filhinho pega a garrafa e bebe em grandes goles, a bebida arde como fogo
por dentro, inundando a boca e o nariz de um sabor adocicado e cáustico.
– Não quero mais.
Avermelha: um calor sobe pelo pescoço, espraia-se pela cabeça, agita o
sangue. Olha em torno, para as carretas, para China-gorda, para os soldados
que passam carregando caixotes; tudo está diferente, as cores extravasando os
contornos das figuras: o azul do lenço de China-gorda dança no ar e os dentes
brancos da cozinheira vagam pelo rosto, como algodão ao vento. Aperta os
olhos, não consegue segurar no chão as rodas das carretas, que giram para a
direita e para a esquerda, rodopiando doidamente nos eixos. Ao seu redor falam,
percebe, de guerra, de façanhas e de mortes inesperadas. Acaba-de-querer
levanta o dedo, profético; parece um santo da igreja de Aguaclara, um santo
ameaçador, de longas barbas frisadas, segurando em uma das mãos um livro
dourado e na outra um báculo que mais era uma longa vara de marmelo. Com o
pé esmagava um enorme cão negro, o demônio talvez, que, num estertor, abria
a boca mostrando dentes cônicos e pontiagudos.
399
Acaba cospe o chão, assegurando que não é de ir na conversa do Caxias,
um favorecido, que mal-saído dos cueiros já era tenente, isso porque tinha o pai
oficial. Assim até eu, Leovegildo Paim! – arremata.
– Mas o Caxias não tem sido bom? – pergunta Cássio, cobiçando os
tornozelos de Maria-chica, que passa equilibrando uma trouxa na cabeça.
– Ora, quem possui o dinheiro e todas as armas do império nas costas só
pode ser bom, não custa. – E estende a mão: me dá essa garrafa um pouco.
Cássio pede licença, vai conversar com Maria-chica. O cabo quer apoio de
João Inácio: pois tu também não acha?
– O quê? – como despertando.
– Que não dá pra confiar no Caxias?
– Isso quem deve saber é o Bambaqueré.
Acaba-de-querer considera melancolicamente a garrafa. Tem a língua
amortecida: me tomaram quase tudo. Só ficou um pouquinho. Quer?
– Não, já estou fechando os olhos de sono.
– Se ninguém quer, vou terminar com a bandida.
Filhinho acompanha o sobe-desce do pomo-de-adão sob os pelos do
pescoço, segue voo que faz a garrafa até espatifar-se numa pedra. O cabo
levanta-se depois de duas tentativas e troca as pernas em direção à carreta do
charque.
Escurece, e surge entre a névoa uma lua, uma foice pálida e tenebrosa.
Filhinho enrosca-se todo para dormir, põe um pelego nos pés, sente-se boiando
no ar gelado.
Comentário ao excerto de A prole do corvo
A prole do corvo é cronologicamente o segundo romance editado por Assis
Brasil. Um quarto de légua em quadro inaugura a produção do autor e a
sequência de narrativas revisionistas sobre a formação do Rio Grande do Sul.
Em A prole do corvo o tema é a Revolução Farroupilha. A Revolução
Farroupilha é tema recorrente na literatura produzida no Rio Grande do Sul. Há
motivos para isso. Não se trata de entender o episódio histórico como apenas
um movimento armado (cujas razões, aliás, vêm sendo discutidas por literatos,
historiadores, sociólogos, antropólogos, filósofos, professores, entre outros). É
que, por força do tratado de paz com o império brasileiro, o Rio Grande do Sul
acabou por constituir definitivamente unidade federativa integrante do Brasil. A
Revolução Farroupilha está, portanto, no âmago da gênese da formação da
cultura gaúcha no Brasil. Em consequência disso, olhares e questionamentos se
dirigem a ela com tal frequência e interesse, que será difícil encontrar outro ponto
temático de semelhante interesse, no Estado.
400
No excerto transcrito, aparecem personagens marcantes na narrativa:
Cássio, o guerreiro por excelência, inconsciente, ignorante e grosseiro, às vezes
grotesco; China-gorda, uma das acompanhantes-serviçais da tropa; José Inácio,
homem íntegro, que consegue se adaptar às estripulias da guerra; Acaba-dequerer, cabo de guerra obscuro, bronco e sem êxitos; Filhinho, que recebe o foco
da narrativa: é nas adjacências do itinerário que ele perfaz no enredo que o leitor
toma conhecimento dos demais personagens e figurantes. Apesar das
desigualdades e diferenças que os individualizam, são todos filhos da guerra, i.
é, constituem, ao lado de muitos outros, a prole do corvo. De fato, de acordo com
a proposta do romance, ninguém escapa das garras nem das consequências do
desastre da guerra. “Corvo”, no romance, é sinônimo de urubu, abutre, que se
alimenta de cadáveres.
Filhinho é o jovem, filho de estancieiro, que é enviado à guerra por decisão
do pai. O pai, tendo já auxiliado os dois lados beligerantes com cavalos e bois,
vê-se coagido a novo auxílio aos revolucionários. Nessa circunstância é que
sobrevém a decisão, e Filhinho (observe-se o apelido familiar do personagem)
parte com os revolucionários. É desse modo que toma contato com a guerra e
por isso sofre, também ele, as maléficas consequências do conflito sanfrento.
Manhã transfigurada
(excerto do capítulo 4)
Fez-se um silêncio entre ambos. Bernardo sentia ainda muito vivo o gosto
da visita que não há muito os noivos fizeram à casa canônica, o sargento tão
entusiasmado e ela tão calada, a boca aberta, ouvindo como o Padre Ramiro
descrevia a cidade de Roma, fascinando a todos. Olhava-a, por vezes, e via
como era bela, muito branca e elegante, os olhos claros acompanhando as
circunvoluções da mão do padre quando este descrevia a alta cúpula de uma
catedral ou o cimo de um faustoso monumento. Ela piscava seguidamente, as
longas pestanas baixando e subindo na agitação de um pensamento que estava
longe, perdido naquilo que imaginava da cidade eterna. Bernardo não conseguia
mais desprender a atenção de Camila, que passou a olhar as próprias mãos
quando seu noivo iniciou a tratar de assuntos de negócios. Ficara aborrecida,
será? Notou sua expressão apagada, triste, uma vez passado o encanto que lhe
provocou a descrição do padre. Um suspiro escondido. Um inquieto tamborilar
de dedos sobre o braço da cadeira. Um instante em que seus olhos ágeis
viraram-se para ele. Quando foram embora, Bernardo ainda ficou na janela,
vendo-a erguer graciosamente a perna por sobre a sela, montando com decisão,
batendo os calcanhares esporeados nos flancos do cavalo. Padre Ramiro ainda
disse, lá vai uma bela figura de mulher, não lhe parece? Sim, Bernardo
concordara, acrescentando que seria uma boa esposa para o sargento. Na
verdade, naquela mesma noite, penitenciara-se amargamente por ter ousado
desejar aquela mulher. Dona Camila, a prometida consorte de um maioral do
Continente. Decidiu que não participaria do casamento, não queria ver-se de
novo envolvido com aquelas saias fofas, com o rendilhado sobre os ombros, ele
401
que vivia tão tranquilo em seu mundo de processos, pautas, audiências,
mandados e sacristia. Camila era o perigo, o vento forte e rasteiro que poderia
levantar tudo pelos ares. E assim manteve-se, esquecido dela, enchendo suas
noites com os sonhos da imaginação.
E agora estava ali, trêmulo, segurando o papel terrível.
Que vai fazer Vossa Mercê? Perguntou, devolvendo a petição. Padre
Ramiro pensou um pouco. Respondeu: vou atender o pedido do homem, trancar
Dona Camila em casa, até que se deslinde o caso. Bernardo havia perguntado
só para ganhar assunto, pois já conhecia o procedimento de praxe. A prisão era
dos cânones. O padre tinha esse poder. Muitas vezes já fora com o meirinho em
casa de particulares, com ordem e mandado da justiça eclesiástica, prendendo
pessoas em suas próprias casas.
Quero que você me prepare o papel, disse Ramiro, sem olhá-lo.
No entanto Bernardo afastara-se daquele casamento, metendo-se longe,
no campo, entre vacas e bois, procurando não se entregar à melancolia. Mas a
imaginação vinha insinuante, pintando as cenas que fazia por não pensar: a
entrada da noiva na igreja, o sargento em seu uniforme de gala, as pessoas
admirando-se com o arco posto junto ao adro, coroado de flores.
Tudo fizera para esquecê-la, mas eis que se via às voltas novamente com
ela, e o rumor da novidade o punha excitado, querendo e não querendo,
desejando o momento de ir à sua casa e ao mesmo tempo ansiando por não ir,
mandar outro. Mas o temor foi vencido pela ousadia, e chegou a pensar que era
homem bastante para enfrentar a dona, no exato cumprimento de seu dever
legal.
Sentou-se à mesa e escreveu.
O reverendo Padre Ramiro Menezes Guiães, Vigário Encomendado da
Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Campos de Viamão e nela Vigário
da Vara pelo Exmo. e Revmo. Sr. Bispo do Rio de Janeiro D. Frei Antônio do
Desterro. Mando ao Meirinho deste meu juízo que sendo-lhe apresentado este,
em seu cumprimento, vá com o escrivão à casa do Sargento de Ordenanças
Miguel de Azevedo Beirão e lá ordene que sua mulher, Dona Camila Beirão que
de casa não saia enquanto durar a causa de anulação de matrimônio requerida
por seu marido, o sobredito sargento. Dado nesta freguesia de Nossa Senhora
dos Campos de Viamão etc.
Bernardo releu o que escrevera e gostou. Depositou a pena no descanso,
pensando que nunca tivera missão desse quilate. Ele, escrivão do padre, acólito
de missas a soldo de fome, morando de favor na casa canônica, de ofício
humilde portanto, tinha o poder de ir à casa daquela bela mulher e mandar que
não saísse. Fechou os olhos, imaginava prendendo-a em cadeias de ferro, as
mãos atadas a grossas correntes, chorando e implorando que ele a soltasse, e
ele permanecendo de cabeça erguida, sentindo-se submissa, entregue. Iria
402
portanto à casa da dona com o mais altivo olhar e diria que por graça muito
especial não ia botá-la nas cadeias, ia apenas recomendá-la que não saísse do
sobrado sem ordem sua. Desenhava na imaginação como ela lhe agradeceria,
as mãos em súplica, ia talvez beijá-lo na boca, como beijavam as mulheres de
soldo alçado, ela que não era mais virgem. Pelo menos é o que dizia o marido.
Como teria sido aquela noite do casamento, entre os dois? O sargento ultrajado
em sua honra, esbofeteando a mulher no leito, ela nua, em prantos, os cabelos
desgrenhados procurando escapar da ira do marido, que a chamava de puta de
mil-réis, já tinha dormido com outro, quem era? Quem era? O homem saindo do
quarto, a pistola na mão, pronto a dar um fim no infeliz, imprecando os céus por
tanta desgraça ocorrida quando apenas queria dar um lar a uma mulher pobre.
Dando tiros para o céu estrelado, causando reboliço em toda a casa, acordando
os peões, os cachorros, os negros. A alaúza formada em volta da casa, desgraça
acontecida, tragédia. No outro dia, arrumação das malas, ela deveria sair
daquela casa, da estância da Lagoa, onde nunca houvera desolação tão grande,
acachapante. Ela vestindo-se não para retornar à casa dos pais, que o medo
não permitiria, mas para a casa da Vila, rogando ao sargento que fica ali,
ninguém sabendo do ocorrido, jurava por Deus e as chagas de Nosso Senhor
Jesus Cristo que daquele dia em diante ia levar vida honesta e pura,
frequentando todas as rezas e novenas, ele nem era obrigado a visitá-la, podia
até buscar outra mulher, índia ou negra, para desafogar-se. E se tivesse filhos,
ela mesma cuidava, chamando de meu afilhado. O sargento concordando, uma
forma de resguardar a honra sofrida. Depois, a mulher instalada, o ódio, a
ferocidade de quem foi ludibriado, o recurso à causa da anulação, pedida com
todo segredo de justiça, tudo na feição de vingar-se e ainda casar-se de novo,
sair desse percalço como homem vitorioso.
Dobrou o mandado cuidadosamente e o enfiou no bolso. Agora sim, queria
ver aquela mulher e senhora não virgem entrar na intimidade por todos tida como
recatada, ele porém sabendo que ela já se deitara com outro homem antes do
marido. Bernardo inclusive nem precisava ter rodeios, podia falar língua chula e
desabusada, que para Camila seria muito conhecida. Afinal já não se entregara
a qualquer um?
Mandou chamar o meirinho às pressas, tinham de cumprir um mandado do
vigário da vara, coisa importante. O meirinho chegou limpando as mãos, estivera
preso ao arado, mas de que se tratava? Coisa importante, disse-lhe Bernardo,
batendo no bolso, fazendo ouvir um barulho de papel. Sonegou as palavras que
o outro desejava ouvir, disse apenas que iam à casa do Sargento Miguel de
Azevedo Beirão entregar um mandado à sua mulher. O meirinho fez que sim e
sorriu, calado, eram honras de família que estavam em pleito eclesiástico.
Dirigiram-se à casa de Camila, Bernardo cumprimentando com sobranceria as
escassas pessoas, levava um segredo profundo e insondável na algibeira, junto
ao peito.
403
A casa estava totalmente fechada, portas, janelas, tudo. Nenhum rumor de
negra na cozinha. No entanto, todos na Vila enxergaram quando Dona Camila
viera, dias antes, trazida pelo marido, carregada de caixas, e ninguém soube que
tivesse saído desde então. Vai ver que a dona está dormindo, disse o meirinho,
ainda é cedo da manhã. Mas as negras pelo menos deveriam estar acordadas,
retrucou Bernardo, sentindo que se escapava entre seus dedos a oportunidade
de vê-la. Um mundo inteiro de imaginação ruía. Quando já davam volta,
Bernardo com ganas de amassar o papel que portava, ouviram uma voz
cristalina, do andar superior, perguntando quem está aí? Era ela, Bernardo
quase riu de alegria. Mas fez-se sério e disse de que se tratava, tinha de falar
um instante. E tu vai-te embora, falou ao meirinho, deixa que eu mesmo colho a
assinatura no mandado, depois você rubrica. Sim, pois não, concordou o
meirinho, tirando o chapéu com um cumprimento. E rindo: aproveite o que Deus
dá. Vai-te logo, infeliz, Bernardo grunhiu, louco de raiva contra aquele intrometido
que já suspeitava de alguma coisa.
A porta abriu-se um pouco, e a mesma voz mandou que entrasse e ficasse
a gosto. Bernardo ouviu as chinelinhas subirem as escadas, num passinho
rápido, mulher que foge, e isso atiçou sua curiosidade.
Logo estava dentro da casa, na varanda às escuras, onde vislumbrava male-mal os móveis encostados às paredes. Viu correr uma sombra a um canto, um
sentimento horrível de que havia gente espreitando, mas o temor foi breve: era
sua própria figura refletida no grande espelho, o maior que já vira. Tateando,
pressentindo apenas onde estava, achou um sofá de palhinha, sentou-se. Os
olhos acostumando-se, admirou-se do lustre de ferro com dezenas de velas,
mais outro espelho na outra parede, um aparador com tampo de mármore, duas
cadeiras de espaldar alto e braços, tudo coisa do Reino, riqueza sem fim. Um
oratório aberto com um santo dentro e, à frente, um móvel de ajoelhar. Ficou
atento quando ouviu os passos que desciam as escadas, agora não mais passos
de chinelas, mas um ruído mais seco, de botas. Contudo, suave e leve.
Precedeu-a um vago perfume de benjoim.
Estava radiosa, um largo sorriso mostrando dentes brancos e bem
desenhados, imagem única que Bernardo conseguia ver na pouca luz. Não sabia
se beijava a sua mão, afinal não era uma puta? Mas no conceito de todos era
uma senhora, dona. Quis ser oficial, levantou-se apenas estendeu-lhe a mão,
gesto correspondido. Quente e decidida mão, levemente úmida. Vejo que vossa
mercê estava mesmo à vontade, ela disse. E acrescentou: mas aqui há pouca
luz, um instante. Foi até uma janela e abriu-a um pouco, deixando entrar alguma
claridade no aposento. Correu, porém, uma cortina rendada e translúcida, que
espalhou a luz. Bernardo pôde vê-la melhor enquanto ela sentava na cadeira em
frente, uma mesinha entre ambos. Soberba, o rosto sem os artifícios dos pós de
beleza, no frescor de quem acordara há pouco, os cabelos apenas apanhados
por uma fita escarlate, algumas mechas caindo nas têmporas, os olhos líquidos,
os lábios carnudos, o colo suave que se perdia nos peitos apertados no justilho
404
de tafetá, peitos claros, quase à mostra, como costumam as mulheres agora
usar. Os braços estavam totalmente encobertos por mangas de veludo que
findavam em rendas de onde emergiam mãos curtas, riscadas de pequenas
veias azuis. Cruzou as pernas. Eis aí, pensava Bernardo, mulher honesta não
cruza as pernas.
Ela, porém, não parecia estar-se preocupando com isso. Ao contrário,
perguntava airosa notícias do vigário, as próximas novenas que se realizariam,
muito natural e sem afetação. Bernardo improvisava as respostas, e ela sempre
perguntando, um verdadeiro interrogatório, quando ele é que deveria ser o algoz
naquele momento. A mulher tornando-se muito presente, dotada de voz rica, de
riso descuidoso, ela que deveria estar recolhida na mais profunda melancolia e
dor, apenas aguardando que as penitências do pecado caíssem sobre sua
cabeça. Levantou-se, caminhava pela varanda, meneios de corpo que faziam os
seios sacudir com pudins, ah visão. Explicava que as negras todas foram lavar
roupa no açude, mandara que fossem cedinho de manhã. Nada podia oferecer
de cortesia, não se prouvera de mantimentos, há pouco chegada de fora. Mas,
perguntou ela, parando-se frente ao santo, as mãos apoiadas no genuflexório,
mas a que vinha? Foi, certamente foi, uma indagação desinteressada, nem
parecia ser ela a ré em feito de anulação de casamento. Podia até perceber que
ela ria, totalmente senhora de si e, o mais inquietante, com certo ar, um certo
volteio na voz, só audível por quem está atento, ar de quem quase se oferece.
Bernardo sentiu que se avolumara o sexo entre as pernas, o perfume denso de
benjoim o envolvia. Queria conter-se, quase cedia ao desejo de agarrá-la à força
e deitar-se ali mesmo, não se importando com o que pudesse acontecer, uma
loucura.
Trago um mandado do senhor vigário, para que a senhora fique em casa
até que se deslinde o feito proposto pelo sargento contra a senhora, que
pretende ver anulado seu casamento, disse Bernardo num jato, atrapalhando-se
naquelas palavras de estilo, que entretanto eram um escudo contra ela. Sei,
disse a mulher, muito serena, meu marido me acusa de não ser mais virgem
quando casei, e o senhor o que pensa? Bernardo não sabia o que dizer, como,
o que pensava? O atrevimento daquela mulher de soldo alçado interrogando-o
de coisa tão profunda, um descabimento, uma vergonha. E ela parava-se rindo,
de costas para o oratório, as duas portas abertas parecendo duas asas que
saíam de suas espáduas, duas asas azuis pintalgadas de estrelas. Senhora,
disse Bernardo, vim apenas para cumprir meu mandado, e espero me
desempenhar com brevidade, afinal não fica bem estar um homem, mesmo a
serviço da justiça, demorando-se em casa de uma dona.
Comentários ao excerto do capítulo 4 de Manhã transfigurada
Manhã transfigurada é mais um romance sobre a formação do Rio Grande
do Sul. Nesse romance, a temática envolve a formação social. O centro temático
é o casamento e os valores que o envolvem. Camila é personagem central na
405
trama. Com ela se casa o sargento de ordenanças Miguel Beirão. Entram em
cena também Ramiro, o padre, e Bernardo, o sacristão. Camila concentra a
atenção e a atração dos três personagens masculinos.
Dessa maneira, casamento, valores religiosos, amor, atração e convivência
humana em geral são discutidos no romance. Do ponto de vista estilístico, o
romance elabora formas conceituais e discursivas adequadas à participação de
cada um dos quatro personagens que se mostram em evidência. Como já foi
possível ver em A prole do corvo, Manhã transfigurada procura penetrar no que
possa haver de falso nas aparências sociais, especificamente na questão dos
valores. Assim, pois, se enquadram ambos no revisionismo pós-modernista.
DONALDO SCHÜLER
Donaldo Schüler nasceu em Videira (SC), em 1932. Reside em Porto
Alegre desde 1945. É doutor em Letras e livre-docente e detentor de vários
prêmios como literato e como ensaísta. Foi professor da UFRGS, com
passagens por diversas outras universidades nacionais e estrangeiras. Continua
na tarefa de docente e de conferencista sob convite. Os assuntos mais vezes
tratados são Literatura Brasileira, Literatura Grega, Teoria da Literatura e
Filosofia antiga. É dos mais importantes críticos literários brasileiros.
Publicou mais de 30 obras de ficção, tradução, poesia e ensaio, tais como
A mulher afortunada (1982), O Tatu (1983), Chimarrita (1985), Faustino (1987),
Pedro de Malas Artes (1992), Império Caboclo (1994) – ficcionais; Martim Fera
(1984) – poema; A palavra imperfeita (1979), A prosa fraturada (1983), A poesia
no Rio Grande do Sul (1987), Teoria do romance (1989), Narciso errante (1994),
O homem que não sabia jogar (1998), Na conquista do Brasil (2001), Origens do
discurso democrático (2002) – ensaios; Finnicius Revém – tradução.
O Tatu
(capítulo O monarca das coxilhas)
Foram tempos difíceis aqueles. Descer de Sorocaba ao Continente de São
Pedro era arriscado e a viagem não tinha fim. Mas em Ouro Preto trocavam gado
por ouro. Os criadores tinham abandonado os campos. As lavouras estavam
cobertas de macega. Ouro, ninguém pensava em outra coisa. Para gastar em
Lisboa, Londres, Paris e Amsterdã. Definhavam com baús cheios de ouro.
Trocavam boi por ouro. Pagavam índio a peso de ouro.
Foram tempos difíceis aqueles. Os índios não se rendiam. Atiravam,
lutavam, arranhavam, mordiam, fugiam. Abatiam-se dezenas para capturar um,
isto, quando os índios não matavam os agressores.
406
E havia os castelhanos, gente sem lei, nem rei, sem eira, nem beira.
Bandoleiros perdidos nos pampas. Não trabalhavam para ninguém. Tinham feito
do saque um meio de vida.
Muitos dos que desciam de Sorocaba iam ficando. O mar de coxilhas
verdes fascinava. Foram aparecendo ranchos, casas. Viam-se rebanhos de
gado marcado vigiado por cavaleiros armados, muitos, exércitos.
O estancieiro era a ordem, era a lei, era o rei.
Nos campos da minha terra,
sou gaúcho sem patrão;
de cavalo, bem armado,
minha lei é o coração.
Ser monarca da coxilha
foi sempre o meu galardão,
e quando alguém me duvida,
descasco logo o facão.
O Tatu não tinha inclinação para tão luzentes monarquias. Preferia o
ranchinho, o chimarrão, o churrasco assado no braseiro, a prosa estirada, o
sossego. Valente era. E trabalhador.
Eu vi o Tatu montado
no seu cavalo picaço,
de bolas e tirador,
de faca, rebenque e laço.
Mas isto era para as horas de precisão. De seu gosto, passava os dias na
toca, pitando devagarinho, olhando para dentro e para longe.
As horas de sossego foram diminuindo. Gente do monarca gritava, alta
madrugada:
– Sai da toca, Tatu, tem serviço.
Tatu, doma aquela égua; Tatu, providencia lenha; Tatu, vai buscar água na
sanga; Tatu, desapareceu gado. Tatu, faz isso; Tatu, faz aquilo.
O Tatu queria um ranchinho só para si, algumas cabeças de gado, uma
vaca de leite, um cavalo para montar, arreios. Só isto, para que mais? Quando
abriu os olhos, não tinha sobrado nada. Os campos eram do monarca; gado, do
monarca; cavalos, do monarca; rancho em que morava, do monarca.
E tinham trabalhado juntos. Tinham se estabelecido juntos. Lutado juntos.
Foi falar com o estancieiro, seu amigo.
– Tatu, vê bem! Não comes do meu gado? Não bebes leite das minhas
vacas? Não montas os meus cavalos? Não moras no meu rancho? Não te devo
nada, Tatu. O serviço que tu fazes está muito bem pago. Dos outros exijo muito
mais e sem essas regalias.
407
O Tatu é um homem pobre
que não tem nada de seu,
tem uma casaca velha
que o defunto pai lhe deu.
O Tatu sentiu que tinha chegado a hora de partir.
Depois de muito corrido
nos pagos em que nasceu,
o Tatu alçou o ponche
pra outras bandas se moveu.
O Tatu foi encontrado
pras bandas de São Sepé,
mui aflito e muito pobre,
de freio na mão, a pé.
O Tatu subiu a Serra
à força de mocotó,
caminhou cinquenta léguas
pra ver se achava ouro em pó.
Não tinha pressa. Ia devagar. Se via uma casa, chegava. Perguntava se
não tinha um bagual para domar, uns arreios precisando de conserto, alguma
rês bichada. Ajudava, ficava, dormia, comia e se despedia.
Foi andando, foi andando até encontrar gente alta e loira. Aí a lida era outra.
Arado revolvendo a terra. Mato. Vento levantando ondas nos trigais como se
fosse água. Repolho, feijão, milho, arroz, amendoim, batatinha. As casas, um
formigueiro. Saía gente e entrava gente. Quem era o patrão? E tinha? Todos
trabalhando parelho, velho e moço, homem e mulher. O monarca morava onde?
Uma casa igual à outra. De tempos em tempos, outra casa. E a lida era a mesma.
Nada de monarquias. O que queria era isso mesmo: um arado, alguns pés de
feijão, só para o gasto; milho para os cavalos, forragem para as vacas. Trabalho
sossegado. Nada de tropelias.
O Tatu foi-se chegando. Os homens loiros desconfiaram. Mandaram as
mulheres para dentro. Engatilharam as armas.
O Tatu saiu do mato
procurando mantimento,
caiu numa cachorrada
que o levou cortando vento.
– O que é isso, minha gente? Sou homem de paz. Não trago cinturão, nem
arma. Não uso faca nem facão. Carrego esta casaca velha, herança de meu pai.
Sou pobre, mas honesto. E respeitador. Tenho fama de trabalhador. Nunca fiz
mal a ninguém. Lá na minha terra me chamavam de Tatu, porque o meu rancho
408
era o que eu mais apreciava. Quero uma casinha, terrinha para plantar, essas
coisas que vocês têm.
Olharam, conversaram baixo, se coçaram, negacearam. Por fim se
aproximou um de nome Fritz. Mostrou-lhe um mato. Disse que podia derrubar,
preparar a terra e plantar. O trato era à meia. Metade do Tatu, metade dele, dono
do mato. Plantasse, fosse economizando, poupando aqui, poupando ali, um dia
teria o suficiente para comprar a terra. Então tudo era seu. Cuidasse do serviço,
não se metesse em encrenca, nada de bebedeira. Podia ficar rico.
O Tatu derrubou, queimou, lavrou, plantou, colheu, criou.
Devia na bodega: arroz, feijão, charque, café, sal e açúcar. Devia na
ferraria: arado, carroça, machado, enxada, pá. Devia na serraria: tábuas de
quinta para o ranchinho. Devia na olaria: telhas de segunda.
Vendeu milho, feijão, arroz, batatinha. Pagou bodegueiro, ferreiro,
madeireiro, oleiro.
– Não sobrou nada, seu Fritz. Trabalhei duro, o senhor viu. Tudo anda caro.
Pagam pouco. No ano que vem eu pago.
– Não me venha com lorotas, Tatu. O meu é sagrado. Tenho dívidas e
família para sustentar. Me dá o que é meu ou te some antes que eu te mate.
O Tatu me foi à roça,
toda a roça me comeu;
plante roça quem quiser,
que o tatu quero ser eu.
Foram-se os sonhos dourados do Tatu. Saiu cabisbaixo. Foi andando, foi
andando, quando deu acordo de si estava longe. Não era isso que devia fazer?
Deixou tudo, até a casaca velha do defunto pai.
O Tatu foi encontrado
no cerro do Batovi,
roendo as unhas de fome,
ninguém me contou, eu vi.
O Tatu foi encontrado
na serra de Canguçu,
mais triste que um socó
e sujo como urubu.
O Tatu é bicho chato,
Rasteiro, toca no chão;
Inda mais rasteiro fica,
Quando vai roubar feijão.
O Tatu foi andando. Roubando, comendo e apanhando. Dormiu na cadeia
e ao relento. Viajou a pé, de carroça e caminhão. Molhou-se na chuva, adoeceu
409
e passou frio. As estradas iam ficando cada vez mais largas. Começaram a se
cobrir de asfalto. As casas iam escondendo a terra. Era uma juntinho da outra.
E se espichavam até as nuvens. Assim ainda não tinha visto. Nem imaginado.
Foi-se aproximando das margens de um grande rio. Procurava um espaço livre.
Olhou como os outros tinham feito. Juntou tábua velha, lata velha, algumas
folhas de papelão. O suficiente para se entocar. Para que mais? Se queria
espaço, saía a caminhar. Já tinha viajado tanto, visto tanta coisa! Ensinaram-lhe
a catar papel. Dava para a cachaça. Comida se encontrava nas latas de lixo dos
restaurantes. Comia o que comiam os ricos. Era só saber os lugares e chegar à
hora certa.
Uma tarde viu as últimas cores do crepúsculo brincarem no espelho da
água. Sentiu um apertão no peito e começou a sonhar monarquias. Foi à bodega,
pediu um trago:
– Na minha terra, eu fui monarca...
Comentários ao capítulo O monarca das coxilhas de O Tatu
O Tatu é um rimance, espécie literária incomum na produção
contemporânea. A espécie rimance teve origem nas narrativas ibéricas
medievais, compostas em falares românicos. Rimances são narrativas de cunho
popular; nem sempre têm autor ou autores definidos. Em O Tatu, essa espécie
é reconstruída a partir da narrativa versificada popular homônima, integrante do
cancioneiro sul-rio-grandense. A maior parte do texto, contudo, é elaboração do
autor. Essa elaboração inclui quadras, trechos e capítulos em prosa. Esses
aspetos são já especificidades caraterizadoras da obra.
Em O Tatu há capítulos compostos exclusivamente em versos, em versos
e prosa e em prosa. Os capítulos não constituem sequência de causa e efeito, i.
é, os capítulos estão integralmente constituídos neles mesmos. Nesse aspeto, o
rimance lembra a estrutura organizacional narrativa de Vidas secas, mas com
maior liberdade sequencial nos capítulos. Nisso, reconstrói claramente a técnica
da narrativa popular versificada O tatu, a partir da qual o rimance foi elaborado
e deve ser lido.
O discurso em O Tatu, a exemplo dos rimances medievais, é construído
sobre falares orais. Ronda as falas de pessoas simples, de pouca ou nenhuma
escolaridade. Verbaliza problemas com que camadas subalternas da população
convivem diuturnamente. Dialoga com discursos literários e com formas
coloquiais. Incorpora formas e significados das trovas presentes na narrativa
versificada O tatu, que Augusto Meyer entendeu como uma forma de romance
velho (outra maneira de dizer rimance medieval).
O capítulo de O Tatu transcrito nesta antologia pode ser considerado
central à obra e formador da narrativa toda. Pode ser considerado, ainda,
capítulo gerador do rimance: constitui núcleo narrativo que se expande nos
410
demais e traça algo como a estrutura propositiva da obra toda. Parece, mesmo,
resumir o planejamento que o autor supostamente seguiu.
No capítulo, o leitor começa por conhecer a forma como o gaúcho foi por
vezes descrito e apresentado (ainda sob o Romantismo), i. é, como o monarca
das coxilhas. Schüler foi buscar as quadrinhas que aparecem nessa sequência
(heroicizante) em poema recorrente no Cancioneiro guasca e no Cancioneiro
gaúcho, mas com títulos diferentes (O gaúcho e Monarquia, respetivamente). A
segunda sequência já o vai encontrar como gaúcho comum, ainda bem de vida,
conforme demonstra a descrição da figura. Essa quadra foi retirada da narrativa
popular versificada O tatu. Daí em diante, usando algumas quadras transcritas e
outras elaboradas especialmente e trechos em prosa, a figura do tatu vai sendo
apresentada em crescente degradação. Na condição mais inferiorizada
socialmente é que profere a frase final, antecedida de travessão, “– Na minha
terra, eu fui monarca”.
JOÃO ANTÔNIO Ferreira Filho
João Antônio nasceu em São Paulo em 1937. Tinha vinte e três anos
quando, em 1960, viu a casa onde morava com seus familiares arder num
incêndio e, com ela, os originais daquele que seria o seu primeiro livro,
Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). A literatura era a vida dele. Foi por isso
que, dois anos depois, ele se refugiou na cabine 27 da Biblioteca Municipal Mário
de Andrade e o rescreveu novamente. Obteve reconhecimento de público e de
crítica. O livro ganhou inúmeros prêmios. Dentre eles, os Jabuti de revelação de
autor e melhor livro de contos, Prêmio Fábio Prado e o Prêmio Prefeitura
Municipal de São Paulo. O autor faleceu em 1996, no Rio de Janeiro.
Outras obras: Malhação do judas carioca e Leão-de-chácara (1975);
Meninão do caixote (1984); Casa de loucos (1976); Dama do Encantado (1996).
Leão-de-chácara
(excerto do conto Zona)
Essa história do Paulinho duma Perna Torta... eu explico.
Foi dessas besteiras de bordel. Logo depois que arrumei os trapos com
Ivete, ali mesmo no Salão Azul, rua dos Aimorés, 178, aprontei um recacau por
um conhaque vagabundo e um invertido.
A zona ferve de invertidos cheios de nove-horas. Ficam muito à vontade.
Fazem aqui o papel de empregadinhas domésticas fricoteiras, fuxiqueiras e
melindrosas; vivem de lá para cá, levando e trazendo, como sempre insistentes
nos dengues e rebolados. Terríveis, safadinhos, vivos, aflitinhos. Pintam a boca
e os olhos, fazem regime para emagrecer. Querem-se enxutos, apertando-se em
411
panos que não são nem de homem, nem de mulher. Um é Carmem, outro
Margarida, Dolores, Rosana... sei lá.
Mas que ninguém se fie na frescura deles.
O Império, por exemplo. Trabalha a navalha, bate carteira, corre o pé e joga
cacheta. É um acordado no baralho. E se enraivecido fica cabreiro. Que se
cubram, então. Império é ponta firme numa briga. Como poucos malandros. No
entanto, a onda de valente se vai depressinha. Perde a ginga de brigador;
Império volta a rebolar à passagem dos machos, fazendo gritinhos e se
desmunhecando.
Algum nojo, eu sinto. Mas são viradores também, sofrendo sem eira nem
beira. E para final, cada um é cada um.
Bem. Uma tal Jane, empregado do Salão Azul, deu para me namorar. Uma
noite, saí da Boca do Arrudão para fazer não sei o quê no salão. Um braço magro
me puxou.
– Meu modelo, você quer conhaque?
Jane, canalhinha. Sabia até desta minha mania de conhaque. Saracoteou,
gritou lá para a caixa:
– Um conhaque para o meu amor! – me correndo a mão manicurada pelo
rosto.
Veio abespinhada, uns olhos deste tamanho, que metiam medo. Ivete
surgiu no salão. Lembro-me que houve um silêncio sério de gente, e a vitrola
tocava:
“Tava jogando sinuca,
Uma nega maluca me apareceu”.
O seu sapato de salto voou para sua mão e marchou para o invertido. Gente
abriu a roda. Eu, quieto. Ó, meu bom Jesus de Pirapora!
Ia feder.
– Vou te ensinar a cantar meu homem, seu puto mafioso! Chupador!
O tenderepá explodia, quando o otário que saía do quarto com Ivete se veio
chegando e me vomitou uma graça pontuda, zombando com a minha cara.
– Ah, então esse é o cafetãozinho...
Arranquei-me da cadeira.
Um coió daquele que não sabia sequer se havia sido parido ou cagado se
metia a gente, me jogando uma liberdade assim na cara? Estava armando
quizumba? Pois ia ter. Mandei-lhe o conhaque, mandei-me por cima do lixo, o
cabo de aço já na mão.
412
Mas o freguês era de luta e não levei boa vida, não. Pegou-me uma
cadeirada aqui na coxa e olhem – dei sorte. A ripada me vinha no crânio. Bem
no meio.
Dois milicos da Foça Pública se abalaram da rua para o salão. Baixaram
firmes, de supetão. Não querendo prosa fiada, iam largar porrada e prender.
Raspei-me pelos fundos, me grudei a uma janela e balanguei o corpo, ganhando
o telhado.
Tornei à Boca do Arrudão, encabulado, murcho, como um balão furado.
Horas depois, capengando, capiongo e rasgado. Pegara um rabo-de-foguete. A
façanha voou e Laércio já era sabedor. Ria.
Ele quem me chamou pela primeira vez de Paulinho duma Perna Torta.
Depois, só depois, os vadios da turma. Para adular Arrudão, os
vagabundos fizeram o acompanhamento estúpido. (Será que a mãe deles, na
hora de pô-los para fora da barriga, também não ficou com a perna torta?)
– Paulinho duma Perna Torta!
Paulinho duma Perna Torta. Fiquei.
Como outros malandros grandes e pequenos de São Paulo, eu ganhava
um nome de guerra. Que ia se exagerar e virar lenda na boca das curriolas, nas
ocorrências da polícia e na mentirada dos jornais. Como Saracura, como Bola
Preta, Ivinho Americano, Diabo Loiro, Marrom e como tantos outros.
E belisco e mordo, cobiçando e tomando as coisas dos outros, como é do
ensino de Laércio Arrudão.
Tenho abandonado a magrela a um canto. Não namorico mais as
franguinhas direitinhas que trabalham entre o balcão e as prateleiras de tecidos
das lojas da José Paulino, da rua da Graça, da Ribeiro da Silva e da Carmo
Cintra. Faria funcionar uns nove-dez truques a fim de marmelar um otário nos
trocos do balcão – mas só uso uns três, que não falham: meu capital sobe na
Caixa Econômica da Praça da Sé.
Aprendi carteado, faço trapaça, marmelo, sociedade e qualquer negócio.
Tenho vocação. Dou açúcar antes. E deixo o trouxa duro, durinho na mesa. De
pernas pro ar, sem dinheiro e sem destino. Desempregadinho.
Crio nome de piranha. Como os trouxas pela perna, cobiço. Torno a tomar
a verba do alheio. Corro por dentro dos pacatos. Há tipos basbaques, pivetes
ainda, aprendizes principiantes na roda da malandragem, que vêm de longe para
me espiar jogando carteado. Porque atiço os dedos e vou ao jogo alto, não
querendo nem saber se ando certo ou errado. Vou lá. Sou um relógio. Mamo a
grana. Meu nome corre. O diz-que-diz me exagera, começa a me pintar de negro.
Anda por aí que, por uma herança, matei meu pai a tiros... Trouxas!
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O diz-que-diz não está me dizendo nada. Fama não me ilude e não me
estorvando... Interessa é a grana.
Ivete foi a primeira. Mordo agora duas minas na zona. Vou mamando.
Sou de Valquíria também. Lá numa das poucas e caras casas da Ribeiro
da Silva. Mulata, novinha, me dá tudo o que ganha. Era doméstica e foi comigo
que caiu pela primeira vez. Charlei, abusei. Saquei a mina do emprego. Deflorei.
Dormimos uma semana num hotel da Alameda Glete. Preparei aquela criança,
ensinei a lidar com homem na cama.
E meti na vida.
Respeita-me como se eu fosse o sol e me chama de paizinho. Seu corpo
novinho me agrada. Tem isto aqui de pernas. Nua, seus cabelos ficam ainda
mais pretos.
Ivete sabe, está claro. Mas não abre o bico – meu nome de perverso anda
falado. Boquejam por aí que se me tiram do sério eu apago um. Que matei meu
pai a tiros. Durmo com as duas.
Cresço a galope. Aos vinte anos, a crônica policial já me adula. “Perigoso
meliante.” Trouxas... Volta e meia, dão o meu retrato e minúcias. Um desses
tontos dos jornais me comparou, dia desses, a um galã do cinema italiano...
Paulinho duma Perna Torta é respeitado, quase de igual para igual, pelos
três maiores cobras da malandragem baixa de São Paulo – Bola Preta, Diabo
Loiro e Marrom.
Sou um nome. Laércio Arrudão me aprova a conduta. E atiça.
Minha concentração é na zona, mas reviro os quatro cantos da cidade.
Faço um conluio com a curriola de assaltos de Bola Preta. Mão armada,
máquina na mão. Assalto, surrupio carteira, Colt 45, vou gatunando por aí. Cinco
passagens na Delegacia de Furtos. A Captura já farejou atrás de mim. Carrego
cinco processos no lombo, de que o Doutor Aniz Issara cuida a bom preço. Trato
Aniz de você, me impondo – e ele é o maior especialista do crime em São Paulo.
Mas estou fichado apenas como ladrão e assaltante. Rufianismo, vadiagem
e jogo, não.
Comentários ao conto Zona de Leão-de-chácara
Três boas contribuições trouxe João Antônio à produção literária brasileira:
(1) olhar a uma zona social estigmatizada, raramente observada em textos da
literatura, semelhantemente ao que fez Schüler em Pedro de Malas Artes e O
Tatu, mas, nesses casos, noutros sentidos; (1) levantamento e revigoração de
vocabulário e significados em discurso apropriado; (3) transformação desse
caldeamento discursivo-cultural urbano em matéria artística. À medida que a
narrativa avança, os personagens, especialmente os narradores, se desnudam,
e, à medida que se desnudam, crescem como personagens.
414
O vigor do vocabulário e a clareza da exposição, por via da sintaxe
empregada, apesar da condição extraordinária do texto, propiciam experiência
peculiar de leitura. O submundo da marginalidade passa a conviver com a
imaginação do leitor e a integrar o imaginário social fora desse ambiente. Isso
possibilita reflexões sobre causas e efeitos desse tipo de vida, vivência e
compreensão acerca de circunstâncias do desvio social de personagens e, por
consequência, de pessoas, na vida histórica.
SINVAL MEDINA
Sinval Medina nasceu em Porto Alegre em 1943. Formou-se em jornalismo
pela UFRGS. Em 1971, transferiu-se para São Paulo, onde até 1975 integrou o
corpo docente da Escola de Comunicações e Artes da USP. Foi então cassado
pelo governo militar. A partir de então, dedicou-se ao jornalismo, de que se
afastou. Em 1986 foi anistiado e reconduzido à USP.
Algumas de suas obras: Liberdade condicional (1980); Cara, coroa,
coragem (1982); Memorial de Santa Cruz (1983); Antes do vendaval (1988);
Tratado da altura das estrelas (1997); O herdeiro das sombras (2001); A faca e
o mandarim (2004). Tem editado também ficção para leitores infanto-juvenis.
Memorial de Santa Cruz
(excertos)
Cheguei em tempo de escravidão.
Não lembro nem data nem lugar; só sei que passei a existido aqui mesmo
neste Brasil de Deus, e a verdade não é a da certidão do cartório, que essa eu
forjei quando foi preciso: minha certidão de certeza é a vida, é estar vivo e
sofrido, ontem forro, hoje prisioneiro, mas lúcido da ideia, historiando o que fui e
o que vi desde que me dei por gente. O local preciso em que primeiro divisei um
facho de luz, isso daí já é outra conversa: só sei que nasci num cudimundo de
mato desses interiores que não apurei ao certo até hoje. Mesmo depois de
autodidata estudado em idiomas e geografias, e de percorrido pelas estradas do
país inteiro, seja como vagabundo, viajor, marinheiro, capanga, boiadeiro ou
motorista de caminhão-jamanta, não consegui descobrir. Mas pergunto: e a mim
preocupa saber onde? É claro que por vez ou outra bateu curiosidade fininha,
furadeira, daquelas que fica verrumando como ferroada de marimbondo, como
saudade de mulher amada, e então me lancei em buscas e pesquisas sem fim,
eternamente. Procurando meu pé de serra de nascença, muito moço e contente
da vida, meti pau na grana ajuntada no garimpo e ainda contraí dívidas que
nunca tive condições de pagar, na procura do oco de chão em que alumbrei.
Mais de ano nessa lida, só colhi infortúnio, desengano e pista trocada. Mas
então? Na flor da minha mocidade, queria porque queria ver as paragens onde
a luz entrou pela primeira vez nos meus olhos e onde espantei bicharedo miúdo
415
com meus choros de moleque. Sentimentalismos, eu sei: mas quem não os tem?
O que consegui foi torrar muito capital e assumir moléstias graves, que muito
tempo levei para curar, como reumatismo artrítico, opilação, maleita, tifo preto; o
que vi de gente tragada pelo cólera, pela tísica, pela febre amarela nesse mundo
de Deus, virge nossa senhora. Muita gente. Tenho para mim que nesse país é
muito pouco o valor que se dá à vida humana, diferença existindo, para isso de
morrer, entre mosca e homem, é um tantinho assim de tão pequena, um quase
nada. Muita gente pesteada, inflamada, baleada, caída de andaime, furada de
faca, soterrada em vala de construção, amassada em capotamentos, atropelada
em ruas e estradas e até finada de fome, morreu no meu ombro, soltou aqui, ó,
o último suspiro. Nunca vi lugar pra se morrer de morte besta como esse tal de
Brasil. Dá até nojo. Mas vou falando, juntando coisa com coisa, cosendo daqui
e dali, e o que importa, a minha nascença, vai ficando para trás. Será porque,
pergunto, não gosto de lembrar o dia em que vim ao mundo? Quanto mais
assunto, menos atino. Diz que minha mãe foi escrava e meu velho liberto. Ou o
contrário. Não acredito. Quando me dei por achado, e olha que me lembro de
coisas do meu primeiro ano de vida, minha memória sendo demais de boa,
minha mãe era mulata clara e o pai, branco, um tipo até meio alourado, que,
segundo vim a saber mais além, seria filho de fazendeiro, porém bastardo.
Então: vem desse avô torto, fidalgo, meu olho azul. Diz que também na minha
infância eu tive e tinha cabelo cor de palha de milho, tão amarelo que era. Pois
sim, acredito: conheci criança que de ruça virou morena em adulto. Eu, e isso
não me importa nem um pouco, tenho que reconhecer que não é ofensa nem
pecado ou desdouro: sou tisnado. Ou não sou? Mulato do cabelo bom, lábio fino,
nariz afilado, mas a pele, não nega, a herança da minha mãe, ou do velho meu
pai: dos dois, talvez. Mas como eu dizia, naquele tempo tirava-se um homem,
uma família, fora da terra que habitavam assim com quem expulsa um cão ou
mata um porco. Chegava o camarada e dizia, olha, o patrão manda dizer que
quer esse canto de campo, o recado trazido por um próprio, que o dono não
falava com agregado, e lá se ia o infeliz, com mulher e filhos, e ai de quem
desobedecesse, caía um bando em cima, tocava fogo no rancho, arrasava roças,
tropeliava criações, enfim, punham uma vida de trabalho por águas abaixo de
uma hora para outra, num átimo. Minha mãe teve em viagem, em cima de uma
carreta, a família expulsada das terras em que morava. Nasci, portanto, em
momento de desgraça, em noite de tempestade, creio eu. Meu pai contava que
levou todo mundo, Vivina, Tutu, João Bosco, Catileia, Garida e Catirininha, para
baixo de uma grande mangueira, ou figueira, à margem da estrada e ficaram, ele
e os filhos esperando que a minha mãe me tivesse. Acho que em virtude do mau
tempo reinante na hora em que vim ao mundo, até hoje, e isso confesso sem
pejo ou vergonha, até hoje apavoro com o ronco de trovão e barulho de temporal,
e houve época em que, perdão da palavra, me mijava nas calças, mal começava
trovejando. Assim, segundo ficou na minha ideia, vim a furo num caminho
carroçável, estradinha vicinal, em cima de uma carreta, calentado pela junta de
bois, único bem, sobrado da mudança que meu pai conseguiu carregar, em meio
416
a noite de chuvarada, com minha irmandade, uma escadinha, tudo acocrados
debaixo de uma frondosa árvore, tremendo arrupiados do frio que fazia, meu pai,
no desespero de ter família enorme pra dar sustento, talvez desejando, meio
arrependido, que o mais novo rebento nascesse falecido. Foi de madrugadinha,
quando rompeu a aurora e calmou o tempo, eu já saído do ventre materno, mas
gelado e silencioso, que apareceram três viajantes a cavalo, que vinham pelo
caminho guiados por uma estrela de rabo aparecida naquele tempo, aliás eu
próprio tive ocasião de apreciar mais tarde, o tal cometa; pois os três se
achegaram com a manhã e vieram ver o nascente abandonado da quentura do
útero, que tremia de frio, muito roxo, caladinho como para morrer, e os homens
em cavalos muito bem arreados, com selas de couro novo e aperos de prata,
parecendo príncipes, ou reis, pediram licença ao pai para velar o recémchegado. Somos viajantes do destino, e Deus, com sua estrela, nos disse que
uma criança viu a luz no meio dessa noite de tempestade e que precisava de
nós, e assim, se o senhor, que é pai, nos der licença, vamos ajudar para que
saia desse transe e entre de vez na vida, de pé direito e cu pra lua. Seu dito, seu
feito. Meu pai concordou de todo coração, e os homens, com suas mágicas, me
fizeram chorar, abrindo os pulmões, me banharam em óleos perfumosos, me
embrulharam num manto muito cálido e colorido e disseram que à criança, que
era eu, brilhoso e radiante futuro o destino reservava, o que contentou meus
pais, que àquelas alturas e dada minha relutância em aceitar a dádiva, ou a carga
da vida, julgavam o filho perdido para as lides e tenências de homem de carne e
osso, acreditando-me escolhido pelo Senhor para Seu seleto rebanho de anjos.
Mas vivi, sobrevivi, sobrenadei à maré do parto e às águas que caíam naquele
dia que não posso precisar qual seja, nem o mês, nem o ano, e aqui estou para
contar os sucessos desde então até hoje, com todos os pormenores e
minudências da exatidão. Os homens a cavalo, os doutores, meus magos
salvadores, deles nunca mais soube rastro ou notícia, e não foi por falta de
procura. Sumiram no fim de tarde, quando agarraram certeza de que eu era vivo
e forte, e nada deteria o meu arranco vida afora. [...]
Como diz a boca do povo, desgraça pouca é bobagem, e urubu, quando
está de azar, até no pedregulho se atola. Parece que não bastava o pântano de
confusos sentimentos em que me achava metido, e tinha que acontecer coisa
mais pior. Por certo não sei bem onde e como se deu o acontecido, lembrando
apenas que foi na porta de um botequim, eu recozido de bêbado, ele, o
adversário, não menos chumbado e mamado. Estávamos lá dentro, cada qual
num canto do balcão, o cara chegou e disse, paga uma aí, meu. De cornos
azedos como me encontrava, não gostei da intimidade, mas, para não criar
questão, acedi e mandei o português servir. O xará aí parece que não está muito
bom, falou o cara para os que estavam ao lado dele. Encolhi-me no meu canto,
puxando um cigarro do bolso e fingindo que não era comigo. Se esse filho-daputa não largar do meu pé, vou ter que dar um corretivo nele, pensei,
emborcando meu liso da malvada, que desceu queimando. Fiquei naquela: pago
417
a despesa e me arranco, ou mando o portuga tacar mais uma? Se fugisse da
raia, iam dizer que tinha afinado. E sempre fui de dar dedo para não entrar numa
peleia, mas porém dou o braço inteiro para não sair. Entesei e decidi: bom, se
ele altercar vai ter. E comandei outra dose. Para mim também, ripostou o cabra.
E eu: só que não às minhas custas. E ele: olhaí, gente, o nosso amizade aqui
não está a fim de pagar mais uma, o que é que vocês acham? Rilhei os dentes,
resolvido a não aceitar a provocação e só sair no braço em último caso, mas o
nego foi e falou para o portuga, põe outro martelo aí que o companheiro vai
pagar. E eu: se botar é prejuízo, porque já disse que não pago. Nessa altura
começou a juntar gente à volta, pressentindo que o bate-boca poderia degenerar
em conflito. Resolvi acabar com a festa: não bota porra nenhuma que não pago
mais nada para esse sacana, não tenho filho dessa idade. Olhei pela primeira
vez para o sujeito, e era um sarará baixinho e entroncado, de óculos escuros e
um dente de ouro na frente. Ele disse, vai pagar por bem ou por mal, cabra
safado, e veio na minha direção. Quando se aproximou, o pessoal à volta rindo
e esperando que bicho ia dar, meti-lhe a mão na cara que ele saiu pela porta e
foi se esparramar na calçada. Já se levantou com a navalha na mão e veio para
cima: quebrei o copo de banda e tentei dar-lhe um passapé, sem resultado. Ele
veio de novo e consegui segurar a mão que ele empunhava a arma, e atracamos,
rolando pelo chão. O povo à volta açulava, sem fazer menção de apartar. Apesar
de forte, o sarará não resistiu ao meu maior preparo, de sorte que puxa daqui,
puxa dali, vira e mexe, fiquei por cima e prendi os ombros dele com os joelhos,
deixando-o imóvel, as espáduas contra o chão. Daí roubei-lhe a lâmina e,
erguendo-lhe o queixo com a mão esquerda, com a direita passei, de um só
golpe, a navalha na garganta, e de orelha a orelha. Por um instante vi apenas
um risquinho vermelho no lugar do talho, com se fosse um arranhão, mas,
quando ele gritou, o sangue começou a espirar aos borbotões, e o corpo pegou
a tremer como galinha degolada. Compreendi que sangrara o homem para todo
o sempre, pois estrebuchava. Levantei com a camisa toda respingada e saí
andando, o cutelo na mão, sem que ninguém no círculo que se formara em torno
tentasse me deter. A uma certa distância entrei a correr, o porre repentinamente
curado, e rumei para os matos e matagais que limitavam o fim da favela, a
cabeça desanuviada, disposto a sumir para não ser preso em flagrante. Fiquei
homiziado por ali mesmo, indeciso quanto à direção a tomar, e, nesse meio
tempo, com a chegada dos policiais, organizou-se verdadeira caçada humana
em que a presa era justamente a minha pessoa. Ao amanhecer, fui encurralado,
agarrado, jogado dentro de uma viatura e conduzido para a delegacia, onde
fiquei sabendo que o sarará morrera antes de dar entrada no hospital, o que me
configurava como devedor de crime de morte. Levaram-me à presença da
autoridade, onde contei o sucedido sem falsear um único pormenor, deixando
bem claro que não provocara a contenda, e que o liquidara porque era ele ou eu.
Que não costumava andar armado, que era trabalhador, que nunca me
envolvera em questões policiais. E que estava no bar, bebendo e alcoolizado,
por motivo de problemas íntimos que vinha enfrentando nos últimos tempos, e
418
que não invocara com ninguém, conforme podiam testemunhar os presentes à
cena. E que não tinha mais nada a dizer em meu favor; que o que tivesse que
ser que fosse. Era o dia primeiro de abril, e ali, preso, fiquei sabendo que o
governo caíra. Permaneci alguns tempos detido na própria delegacia, em
péssimas condições de higiene e acomodação, comendo uma comida que mais
parecia lavagem de porcos, até que fui transferido para a penitenciária, onde
aguardei julgamento assistido por advogado de ofício, que dinheiro meu não
possuía para contratar um bom defensor. No tribunal do júri nenhuma
testemunha ocular puniu por mim, todos unânimes em declarar que degolara o
morto a frio e covardemente, quando já se achava imobilizado e entregue. O que
não faltava com a verdade, mas também não dizia tudo. Falaram a meu favor
apenas o compadre Cantídio e alguns companheiros de trabalho, para louvar
meu procedimento de homem correto, pacato e cumpridor, o que de pouco
adiantou. Tascaram-me vinte anos no lombo, e foi assim que perdi minha
liberdade e vim parar nesta cadeia imunda; detento 1964, que aqui ninguém me
trata pelo nome de Brasil de Santa Cruz. E recordando vou as passagens da
minha vida, desde a mais remota infância até os dias atuais, trancafiado a sete
chaves e privado de qualquer veleidade humana: uma sina dura, mas que tem
que ser cumprida. Planos para quando sair ainda não possuo; se puder, fujo. Se
não obter escapula, cumpro a pena e ganho a liberdade, devidamente quitado
de um débito que não contraí. Trabalho na carpintaria, jogo meu futebol,
ostentando qualidades de craque do meu time; de vez em quando faço uns
truques de prestidigitador ou malabarista, aprendidos nos meus tempos
circenses, e com isso dou alguma distração aos companheiros. Por bem ou por
mal, os dias vão passando. Mas à noite, no escuro da cela, depois que toca o
recolher, que me bate a pensadeira e fico a cogitar nas arapucas que me armou
o destino. Revejo os sucessos que vivi como num filme, desde o tempo em que
morreu meu pai, e as manas caíram na vida, e aqueles homens assassinaram
minha mãe, e fugi com os manos por rios e pântanos, sem rumo, e minha estada
em companhia de mestre Salustiano Tapajós, e a ida para a capital federal
mordido de cão raivoso, e o namoro com a defunta, o ingresso na marinha, a
sufocação dos fanáticos, onde aliás vim a matar meu próprio irmão, a revolta, a
deserção, o exílio, depois a volta por cima, transformado em lugar-tenente de um
homem de infinitas posses, de quem dei cabo por ciúme, e, perseguido, tive que
me encafuar na selva, onde virei bugre, andando nu e comendo bicho do mato,
gados roubados e frutos silvestres, depois minha liberdade, e a adesão à coluna
revoltosa, o novo exílio, a volta ao país, consagrado como craque de futebol, a
participação na revolução vitoriosa, a renúncia a qualquer cargo ou honraria, a
vida de pescador, a morte de minha noiva, o ingresso no circo, onde me tornei o
primeiro introdutor do globo da morte entre nós, o acidente, a convalescença, a
fase como cabo eleitoral do Leitão, os tempos de transportador rodoviário, a
vinda para São Paulo, as fábricas, a catação de lixo, o romance com a comadre,
o desencanto da vida e, afinal, a degola e morte do sarará num dia primeiro de
abril. Não posso dizer que a prisão me tirou o tesão de viver ou abateu por
419
demais minha pessoa. Como sempre, aos trancos e barrancos vou marchando.
Planos futuros não alimento, mas também não abandonei as esperanças. O
tempo foi feito mesmo para passar, e seu escoamento trabalha em meu favor.
Qualquer hora deixo de ver o sol nascer quadrado, é só questão de espera,
paciência e oportunidade. O importante é que continuo respirando, e não perdi
a confiança em meu braço. Como diz o outro, não está morto quem peleia. Por
ora, são essas as lembranças que me restam. Quando sair da cadeia começo
tudo de novo: aí a gente volta a prosear, que uma boa conversa é a coisa de que
mais gosto na vida.
Comentários aos excertos de Memorial de Santa Cruz
Memorial de Santa Cruz constitui experiência que teve adeptos. O
personagem-narrador está encarcerado e grava sua história diante de alguém
inidentificado. Esse procedimento técnico justifica outro: o fato de a narrativa
conter apenas uma entrada de parágrafo, a inicial. Por essa razão se pode dizer
que se trata de romance de fluxo único. Isso, porém, não significa que se possa
ter dúvida sobre a espécie narrativa: trata-se mesmo de romance (não de
novela). Tampouco se poderia entendê-lo como romance composto apenas do
eixo narrativo, sem subenredos afluentes ou carência de núcleos temáticos. A
própria técnica narrativa impõe ambiguidades essenciais: o indivíduo, construído
sobre o personagem-narrador; a multiplicidade de representações de condições
sociais e simbologias que desempenha; a simbiose entre indivíduo, estrato social
e país, como todo, em alegorias de origem metonímica. O personagem-narrador,
Brasil de Santa Cruz, pertence ao estrato da população de baixo, identificava-se
com o povo sofredor e sem prestígio, habitante do Brasil, e com o próprio país.
Haja vista que o encarceramento do personagem Brasil ocorre no dia primeiro
de abril de 1964, data em que se declarou, historicamente, o último golpe militar
no país. O título do romance confirma a relação entre o personagem-narrador e
o país: Terra de Santa Cruz foi o segundo nome dado ao Brasil. Lembre-se ainda
que o personagem assassinado pelo narrador é um “sarará”, i. é, um mulato. Em
parte do imaginário popular brasileiro, o Brasil é moreno, ou mulato, como se
constata, p. ex., em Aquarela do Brasil, tido por parte da população como texto
representativo do Brasil (ou, de fato, de certo Brasil).
O primeiro excerto mostra o início da narrativa; o segundo, o fim da
exposição do “detento 1964”. O narrador expõe suas experiências, reflexões,
aprendizados, sofrimentos que lhe impuseram e que impôs. No primeiro caso,
foram sofrimentos que lhe foram impingidos pela condição e pelas
circunstâncias; no segundo, impôs sofrimentos, igualmente possibilitados pela
condição e pela circunstância. Restam-lhe, pois, ressacas bem marcadas
desses sofrimentos, exacerbados pela consciência que tem das condições em
que em cada caso se encontra e da circunstância em que exerce as ações nos
episódios que narra.
420
Esse olhar a partir de baixo, a centralidade de personagens representativos
de camadas subalternas, a preocupação discursiva, a reflexão metanarrativa, a
estilização dos recursos da oralidade das camadas de baixa escolaridade ou
sem escolaridade, a presença marcante da ironia, a contraposição às formas de
exercício do poder, a demonstração de consciência de necessidade de
alterações na organização social fazem do texto bom exemplar da literatura que
se produziu na época no Brasil. É possível encontrar em Memorial de Santa Cruz
marcas do revisionismo pós-modernista, de vínculo e de expressão populares
desse estilo de época, além de inovações técnicas anteriormente comentadas.
Tratado da altura das estrelas
(capítulo Vê-se à nora o narrador)
Se me não trai a memória, em algum ponto deste já alongado relato,
historiamos a espantosa viagem da nau Catarineta e da parte que nela tomou
um certo gajeiro por nome João Carvalho, o tal que, nascido de mãe cigana e
pai ismaelita na moiríssima cidade de Granada, teria sido arrastado pelas
correntes do destino ao reino de Portugal, onde viria a tornar-se da carreira do
Brasil um dos mais experimentados pilotos, muito contra vontade sua, é verdade,
pois o que mais almejava em dias de vida era alcançar a opulência dos reinos
da Índia e a riqueza das ilhas do Mar Pacífico, em desconformidade com os
fados, que sempre obraram por transformá-lo em reles prisioneiro da banda
meridiana do Mar Atlântico, exceto numa única e isolada ocasião, em que por
sinal lhe sairia a jornada totalmente pelo torto, mas essa já é outra passagem a
ser contada (se o for) no devido tempo.
A bem da verdade, paciente leitor, tantas são as histórias e tão parco o
engenho deste que se atreve a relatá-las que às vezes, no afã de esclarecer os
fatos, ele (ou seja, eu) acaba (acabo) mais atrapalhando do que ajudando.
Ufa, que longe vai já a conversa e ainda não tratamos do que pretendíamos
no presente item, ou seja, do desembarque do gajeiro João Carvalho em areias
de Portugal após a tormentosa travessia da nau Catarineta por mares nunca
dantes navegados etc.
Ora bem. O primeiro pensamento que lhe vem à mente ao pôr o pé sobre
as pisadas pedras do cais da ribeira de Lisboa é não ter um canto onde repor as
energias que tanto dissipou na trabalhosa viagem, pobre como se encontra, e,
para mais, sozinho com Deus (ou quem sabe com seu tenaz contrairo que é
Satã). Enfim, não vem ao caso.
É certo que, pese o trato feito com o mestre ao engajar-se, concedeu-lhe o
capitão algumas moedas em regozijo pelo sucesso da travessia, o que garantirá
poiso e mesa por uns dias, mas se não quiser virar pobre que nem rato de igreja,
tamanha sua penúria, carece com urgência arrumar-se em nova equipagem e
assim fazer-se ao oceano tão logo lhe permita a sorte, pois, como ensina o
adágio, marinheiro em terra e navio atracado, preguiça no lombo e prejuízo
dobrado.
421
E andando com tais pensamentos em cabeça pelos becos do ponto à cata
de algum catre onde possa despejar-se das fadigas da viagem, eis quando
depara com dois encapuzados que, valendo-se do adiantado da hora (já caiu há
muito a noite, as ruas estão desertas) lançam-se feito cães famintos sobre um
transeunte que, em lentos passos de ancião, segue seu caminho sem reparar no
perigo que o ronda. No primeiro momento, cuida o moço João Carvalho de
esconder-se para não comer, ele próprio, da comida de urso que os assaltantes
estão prestes a servir à vítima. E ali fica, ao abrigo das sombras, decidido a não
meter o bico em ninhal de corvos, enquanto o indefeso salteado brada em
desalentada voz: Aqui del rei! Acuda-me, pelo amor de Deus!
Se lhe perguntassem, não saberia o moço João Carvalho dizer que o bicho
o teria mordido ali naquele átimo. A verdade é que, assomado de incontida fúria
(e contando apenas com a força dos próprios punhos) desembestou-se sobre os
agressores aos socos, cabeçadas, dentadas e pontapés com tamanha valentia
que num zás-trás arrumou com eles a correr pela viela abaixo. Voltou-se então
para o socorro do ancião, que, apesar de trazer um fundo corte de arma branca
sobre a fronte, mostrava-se consciente, tranquilo e em condições de marchar
com as próprias pernas.
Sem delongar razões, digamos que o pobre homem em boa hora acudido
pelo ex-gajeiro da nau Catarineta (e futuro piloto da carreira do Brasil) revelouse ninguém menos do que venerando rabi Abrão Usque, figura principal do
círculo judaico de Lisboa, comerciante, financista, armador de naus e caravelas
do proveitoso trato ultramarino e sócio de sólidos negociantes israelitas de
Amsterdão, que mui grato se mostrou ao moço por havê-lo valido em tão
premente momento.
— Não fosse tua galhardia, meu bom rapaz, e andaria eu, por essas horas,
a prestar contas de meus feitos e mal-feitos no outro mundo, que os sequazes
que me atacaram, mais do que a bolsa, projetavam tirar-me a própria vida.
— Ainda bem que os pusemos a correr, senhor. Tão cedo não voltam a
incomodá-lo, disto estou certo. Mas agora venha, levante-se do chão frio e digame aonde mora, que para mim será uma honra acompanhá-lo até sua casa.
E assim praticando (como se fossem velhos conhecidos), lá se foram pelos
fétidos becos próximos ao porto, àquela hora mais desertos e sinistros do que
os tórridos areais marroquinos há pouco bordejados pela nau Catarineta, como
bem lembra seu jejuno gajeiro. No trajeto, mais loquaz do que seu natural, contou
o moço um pouco de sua história e planos de vida, até que se acharam diante
do portal do rabi, no centro da Judiaria.
– Muito bem, mestre, aqui estará a salvo. Tenha uma boa noite e doravante
muito cuidadinho para não cair de novo na unha de salteadores de ocasião.
O venerando rabi, mirando-o com toda a verdura de que eram capazes os
astutos olhos, disse-lhe mansamente:
– Então, João Carvalho, crês que sou assim tão mal agradecido? Sei que
não tens onde dormir, que vens cheio de fome, que procuras meio de vida, que
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não conheces quase ninguém nesta adversa cidade... Imagina se te vou deixar
assim, ao deus-dará, tão desamparado de tua própria sorte. Sê bem-vindo ao
meu lar, onde de todo o coração te recebo na condição de filho.
Talvez tenha o rabi Abraão Usque pronunciado outras palavras em sua
bênção de acolhida ao moço que o salvara de cobarde ataque num tortuoso beco
de Lisboa. Não nos cabe aqui, porém, escrutá-las. Como também não caberá,
no escopo do presente relato, minudente crônica da vida do gajeiro granadino
João Carvalho nos tempos passados em casa de seu pai adotivo. Basta dizer
que, pela altura, vai o povo judeu mui apremiado pelo Venturoso Dom Manuel,
que por agrado a seus sogros, os mui católicos reis de Espanha Fernando e
Isabel, acabou de decretar o batismo obrigado de quantos em Portugal ousem
professar a vetusta lei mosaica. Está, portanto, o encanecido rabi virado em
cristão-novo quando recebe João Carvalho em seu círculo doméstico, o que, de
resto, nada acrescenta à nossa história.
Importa, isso sim, que o sábio Abraão Usque não medirá esforços para
encaminhar o protegido (que alguns passam a chamar Bernardo Usque) na
senda de profícua carreira como mareante, cuidando de instruí-lo nas artes da
navegação astronômica, medição da altura das estrelas, controle das
declinações da agulha magnética, aproveitamento de ventos e correntes, leitura
de portulanos etc, de sorte a torná-lo (como já ficou aqui comprovado) um dos
mais competentes e respeitados pilotos-estrólicos de Portugal, mormente na
promissora e recém aberta carreira do Mar Atlântico etc.
Termina por aqui (bem menor, portanto, que os anteriores) o presente item,
pese o fato de se não terem esgotado todos os temas que o poderiam compor,
devendo-se tal interrupção à imperiosa necessidade que sente o narrador de
recobrar fôlego e pôr em ordem as ideias. Acrescente-se, em tempo, que datam
dessa remota época os primeiros apontamentos de João Carvalho no inconcluso
livro que o acompanharia pela vida afora, e que ele denomina, com certa
empáfia, Tratado da altura das estrelas. Mas basta de minigâncias e toleimas
desimportantes.
Se, após a intempestiva e talvez dispensável digressão, reunir o leitor
suficiente paciência para seguir avante, oxalá, afinal, a história encontre um norte
e desenrasque-se o rabiscador dessas desconchavadas linhas do sarilho em
que vai metido. Ao contrário do que diz o ditado, quem corre por gosto esbofase tanto ou mais do que fugitivo da milícia. Enfim...
Comentário ao capítulo Vê-se à nora o narrador de Tratado da altura das
estrelas
A contribuição de Sinval Medina à nossa literatura é das mais significativas.
Em Tratado da altura das estrelas, investe vigorosamente sobre reconstrução
discursiva. Desse modo, não apenas trabalha o discurso, como desenvolve a
metanarratividade, jeitos pós-modernos, entre outros, de tessitura textual.
O romance dedica-se também à reconstrução da história e do imaginário
que envolvem os chamados de descobrimentos marítimos do século 16. Por
423
esse caminho, reconstitui não apenas as condições sociais e psicológicas de
época, como centra a perspectiva em personagens que se autoconstroem,
independentemente de aliciamentos históricos. Concebe em geral os
personagens de tal modo, que fornecem ao leitor possibilidades verossímeis
tanto de caldeamentos étnicos e sociais, como de estruturações psicológicas.
Vislumbram-se a partir disso elementos construtivos da psicologia social que em
parte nos carateriza.
Tratado da altura das estrelas leva o leitor a empreender ações e façanhas
ao acompanhar uma viagem de exploração do território que hoje denominamos
América. Para isso, lança mão da mítica Nau Catarineta. As perspectivas da
viagem e dos personagens que atuam na narrativa convergem para uma visão
da Europa, ávida de riquezas, sob concepções eurocêntricas do mundo e
marcadas divisões estruturais na organização social.
No capítulo lido, o narrador reflete sobre as dificuldades que encontra para
levar a cabo a narração que empreende. Entrementes, contudo, tece linhas
narrativas e intercruza caminhos de destinos. Isso representa claramente a
preocupação metanarrativa, que não se resume ao trabalho discursivo.
Marcantes momentos narrativos estão centrados em personagens das periferias
sociais, o que inclui a narrativa no âmbito das obras de vínculo popular (mas
provavelmente não, no âmbito de leituras simplistas). A força revisionista que flui
ideologicamente da narrativa inclui o texto no terceiro estilo de época pósmodernista.
A tarefa do autor mostra-se exemplar, por organizar e executar
planejadamente o desenvolvimento narrativo.
José RUBEM FONSECA
Nasceu em Juiz de Fora (MG) em 1925. Formou-se em Direito. Ao vencer
o II Concurso Nacional de Contos do Paraná, em 1968, projetou-se nos meios
críticos nacionais. Vive no Rio de Janeiro.
Algumas de suas obras: A coleira do cão (1965); O homem de fevereiro ou
março (1973); O caso morel (1973); Feliz ano novo (1975); A grande arte (1983).
A grande arte
(excerto da 2ª parte capítulo 1)
Poucos dias após o casamento, como Vicentina não quisesse ir, o pai
convidou Socorro para acompanhá-lo à inauguração do Teatro Municipal do Rio.
Ia ser mostrada a última novidade teatral de Paris, a peça Le refuge, de Dario
Nicodemus. Socorro, trajando um vestido de mousseline de seda suave, assistiu
à peça no camarote ao lado do pai, portando-se com a elegância recatada das
jeunes filles patrícias. No mês seguinte foi com o pai, novamente, ao Teatro
424
Municipal assistir a uma conferência do escritor Anatole France. Na mesma
ocasião pediu para ler o poeta Luís Delfino, de quem tanto se falava. Quinhentos
sonetos de Delfino, que iam ser editados pela Casa Laemmert, haviam sido
destruídos no incêndio da Companhia Typographica sem que deles houvesse
cópias. O vate não se importara, alegando que quinhentos sonetos não valiam
muita coisa e que tinha mais cinco mil em sua casa na rua Jockey Club. Como
Barros Lima fosse amigo do ilustre poeta, solicitou alguns sonetos inéditos para
leitura de sua filha, e Delfino mandou para a menina, de presente, uma resma
de sonetos do próprio punho. Tendo em vista tudo isso, chegou-se à conclusão
de que Maria do Socorro estaria curada, e os serviços de Barbalho foram
dispensados.
Além da casa em que moravam na rua São Clemente, Barros Lima ao
morrer não possuía bens, calando a boca dos seus inimigos políticos que o
acusavam de ter enriquecido em negociatas com Rio Branco. Laurinda, quando
o pai morreu, vivia em São Paulo, tinha três filhos, um menino de dez anos
chamado Fernando e duas meninas, Maria Augusta e Maria Clara, com nove e
sete anos, respectivamente. Uma governanta inglesa tomava conta das
crianças. Durante a Guerra mundial os negócios da família Prado haviam
prosperado ainda mais. Laurinda passou a ter duas casas, pois comprara um
palacete na rua São Clemente, no Rio, próximo da mãe, a quem visitava no
mínimo uma vez por mês, quando lhe entregava uma generosa quantia em
dinheiro para que ela e a irmã pudessem manter a vida confortável que levavam
quando o pai ainda era vivo. Uma funda mudança ocorrera com Laurinda.
Excluída a gravidez pré-nupcial, ela sempre fora tímida e conformada, mas agora
se transformara numa dinâmica e independente patronnesse das artes, e os
seus salões, tanto na avenida Paulista quanto o de São Clemente, tornaram-se
o centro da sociedade e da intelligentsia da época. O marido, José Priscilio, era
um jogador compulsivo e perdia enormes quantias no pôquer, mas dizia-se que
ele tinha tanto dinheiro que nem o jogo nem os caprichos de sua mulher podiam
dilapidar a fortuna da família.
Maria do Socorro podia agora levar a vida dupla dos seus sonhos. Vestiase de homem e frequentava os bordéis de luxo da rua Taylor. As prostitutas com
quem estabelecia um intenso, ainda restrito, intercâmbio sexual jamais
desconfiaram que ela fosse uma mulher. Os seios muitos pequenos, o corpo
esguio e o cabelo cortado à garçonne, comum então, facilitavam a Maria do
Socorro o seu travestismo. As mulheres apaixonavam-se por aquele rapaz
diferente, de boca sempre perfumada com Odol – “Das Beste für die Zahne” –,
de hábitos sexuais exóticos, que nunca tirava seus trajes formais e mesmo assim
era capaz de criar as mais alucinantes experiências libidinosas. Era aqueles os
salões de Maria do Socorro, onde também se falava de poetas, de Baudelaire,
Rimbaud, Schiller, que Socorro lia no original e depois traduzia. Algumas das
mulheres eram francesas e outras polacas, que sabiam alemão. A favorita de
Socorro, uma jovem polonesa chamada Wanda, também escrevia versos
425
melancólicos recordando sua infância em Cracóvia. Nessas ocasiões, quase
sempre no fim da noite, quando os clientes da casa, senadores, comerciantes,
altos funcionários, figurões da província, já se haviam retirado, as mulheres
vestidas ainda nos belos trajes de gala com que recebiam os visitantes, longos
vestidos décolletés de cetim de seda, tomavam champagne e ouviam atentas o
jovem Mário recitar poemas.
Quando desempenhava publicamente seu papel feminino, Maria do
Socorro procurava se comportar como uma jovem mulher da sociedade da
época, mas, apesar dos seus cuidados, ainda assim era vista com reservas.
Fumava em público cigarros turcos comprados na Tabacaria Londres, dirigia em
alta velocidade pelas ruas da cidade um Pierce-Arrow conversível e montava no
Club Hípico do Rio de Janeiro. As duas irmãs se davam muito bem, mas
começaram a se afastar uma da outra quando da visita ao Brasil do rei Alberto e
da rainha Elizabeth, da Bélgica. A visita era considerada de altíssima importância
política e dizia-se que marcava em definitivo a entrada do Brasil para o rol das
grandes potências. A sociedade estava alvoraçada com a visita do rei, que se
portara tão heroicamente durante a Grande Guerra, cujo fim ocorrera havia
pouco mais de dois anos. O Teatro Municipal e o Monroe foram cravejados com
milhares de lâmpadas. Um calendário de visitas e recepções foi organizado para
os monarcas belgas. Laurinda usou todo seu prestígio a fim de que sua casa
fosse escolhida para local de um dos banquetes oferecidos aos visitantes, que
estavam hospedados no Palácio Guanabara, nas Laranjeiras. Ir ao banquete na
casa de Laurinda passou a ser uma honraria disputada por toda a sociedade
carioca. Convidada pela irmã, Maria do Socorro disse que não iria, pois estava
interessada em conhecer o rei, nem mesmo a rainha. Esse foi o início do
estremecimento das duas. Já antes, ao ser chamada para apreciar a nova
decoração do palacete de São Clemente, Maria do Socorro provocara a ira da
irmã. Laurinda orgulhava-se do seu novo mobiliário. Para Maria do Socorro,
móveis antigos eram coisa de nouveau-riche, e ela fez questão de dizer isso para
a irmã. “O contacto com esses paulistas carcamanos não anda fazendo bem a
você, querida.” O desdém demonstrado pelo convite para a recepção aos reis
belgas azedou de vez o relacionamento das duas. Laurinda, magoada, chegou
a pensar em cortar parte da mesada que dava para sustentar a mãe e a irmã.
Quando, alguns anos mais tarde, ocorreu a torpe tragédia, as duas irmãs não se
falavam.
Manter um salão no Rio e outro em São Paulo era uma grande proeza, não
apenas do ponto de vista dos recursos financeiros e da energia necessários, mas
também quanto à inteligência e sensibilidade requeridas. A rivalidade entre as
duas cidades era muito grande – de um lado a metrópole, capital política e cultura
da nação, do outro a Cidade que Não Podia Parar, onde surgia um novo tipo de
burguesia, com dinheiro e ócio suficientes para estimular ou participar da
Aventura de Criação. Laurinda sabia como enfrentar o problema: mantinha-se
neutra nos salões do Rio, quando mofavam do provincianismo paulista; em São
426
Paulo também não se manifestava quando falavam da indolência decadente dos
cariocas. Ao começar a segunda década do século, a vida social de Laurinda
chegou ao apogeu. Rui Barbosa abandonara a vida política, começava o
desmonte do morro do Castelo e com ele a demolição da parte mais antiga da
cidade (“Queremos avenidas largas e geométricas”): os grandes escultores
Kanto, Correia Lima, Grazianni, Tadey produziam destacados exemplares da
arte funerária, exibidos nos cemitérios de São Francisco Xavier e São João
Batista. Tudo era discutido nos salões de Laurinda. A frase de Alceu Amoroso
Lima, publicada na Revista do Brasil, “o século XX é de São Paulo”, causava
júbilo de um lado e escárnio de outro. A literatura era um dos temas principais.
Falava-se de parnasianismo (mal), imagismo, vorticismo, acmeísmo,
expressionismo,
surrealismo,
dadaísmo,
simbolismo,
romantismo,
suprematismo, modernismo, futurismo (“Vasto mundo, o da literatura!”). Os
jovens poetas iam à casa de Laurinda recitar seus versos – Manuel Bandeira
(“Que pena que ele vá morrer tão cedo, o pobrezinho é tuberculoso, sabia?”),
Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade – e muitos anos
mais tarde, quando a Semana da Arte Moderna de 22, que não despertara muito
interesse, passou a ser encarada como um importante acontecimento cultural,
Laurinda gostava de afirmar que a Semana nascera nos salões de sua mansão
na avenida Paulista. (“Anita, Oswald, Pagu eram habitués.”) A biblioteca da
patronnesse na São Clemente ostentava milhares de livros encadernados, todos
com o ex-líbris feito pelo jovem pintor Di Cavalcanti, um desenho que Laurinda
depois descobriu ser muito parecido com o ex-líbris que o artista fizera para
Ronald de Carvalho. (“Inspirado descaradamente no Beardsley.”)
Então a primeira desgraça. Laurinda entretinha seus convidados com um
concerto da pianista Maria Carreras, num sarau noturno em São Clemente, no
dia do terrível acontecimento. Uma jovem prostituta da rua Taylor assassinara o
amante num dos quartos do lupanar. Quando a polícia chegou ao local (dos
jornais: “A hetaira em prantos abraçava o rapaz que estava deitado na cama,
morto por um disparo de arma de fogo”) verificou que o jovem assassinado por
ciúmes pela tresloucada meretriz polaca era, na verdade, uma moça. E essa
moça era – que horror! A imprensa colaborou, os donos dos jornais eram amigos,
mas a notícia circulou à sorrelfa, de boca em boca, como os boatos e as
verdades vergonhosas, para hipócrita consternação e secreta alegria de todos.
A casa da rua São Clemente foi fechada e durante muito tempo Laurinda
manteve-se afastada do Rio. Vicentina, a contragosto, mudou-se para a casa da
filha em São Paulo. Com a idade, a matriarca engordara muito e no seu rosto
branco leitoso surgiram finas veias azuis que lhe cortavam a pele em todas as
direções, linhas sinuosas como rios num mapa colorido. Vicentina era capaz de
ficar horas nas festas, sentada num canto, toda paramentada e coruscante de
bagues, boucles, colliers e pendentifs, imóvel, sem dizer uma palavra, como se
fosse uma boneca gigante. Quando falava, era de maneira sonolenta e
427
desconexa. A presença da mãe era, para Laurinda, um martírio que suportava
com resignação.
Os anos trinta, com a revolução constitucionalista em São Paulo, a
ascensão dos gaúchos de Vargas e o Estado Novo, não foram propícios para os
negócios dos Prado. Ao vício do jogo, Priscilio acrescentou o da cocaína.
Laurinda, avó duas vezes, não mais era cortejada pelos frequentadores de sua
casa. Tinha saudades das paixões fulminantes que sentira e vivera e relia com
prazer as cartas dos seus antigos amantes, guardadas cuidadosamente num
cofre que mantinha sempre fechado a chave, em seu quarto.
No dia 14 de julho de 1940 aconteceu a segunda tragédia na família.
Priscilio, após passar a noite jogando pôquer, chegou em casa de madrugada,
deitou-se na cama ao lado de Laurinda, que dormia, e deu um tiro na cabeça.
Naquele dia eles faziam trinta e um anos de casados. Também naquele dia Paris
rendia-se o Exército alemão. As figuras da sociedade brasileira, abaladas com a
queda da cidade que representava os ideais de cultura e civilização e para onde,
sazonalmente, iam em busca de alimento para o espírito e para o corpo, não
tiveram ânimo nem mesmo para comentar sobre o assunto tão sedutor, como a
morte escandalosa de um dos seus membros notórios.
José Priscilio Prado estava arruinado e deixou muitas dívidas pessoais que
um dos tios pagou imediatamente. Mas os tios de Priscilio ignoraram os apelos
da mulher perdulária do sobrinho gastador, e Laurinda teve que vender sua
mansão na avenida Paulista e mudar-se para o Rio, para a casa da rua São
Clemente. Seu filho Fernando, que se casara em 1931 com Luíza Montilio, filha
de um conhecido médico homeopata, mudou-se também para o Rio de Janeiro,
onde arranjara emprego modesto na Prefeitura. Maria Augusta Lima Prado, que
estava casada com um francês, Bernard Mitry, que se dizia conde, foi
abandonada pelo marido quando se patenteou a bancarrota da família. Bernard
voltou para a França, sem avisar a mulher. Assim, na casa da rua São Clemente
ficaram Laurinda e Maria Augusta com o filho, Roberto. Também ficou morando
na casa a filha mais moça de Laurinda, que, como se dizia eufemisticamente,
“tinha problemas”. Sofria de acessos de agressividade, atacando as pessoas à
sua volta. Era também comum ela uivar como se fosse um lobo. Vivia
encarcerada no porão do palacete da avenida Paulista e acompanhou a mãe na
mudança para a casa da rua São Clemente, onde também havia um porão, tão
discreto e isolado quanto o outro.
Todos esses fatos e ocorrências foram ampla e minuciosamente
desenvolvidos no livro (quinhentas páginas) Retrato de família, de Basílio
Peralta, publicado em 1949. O livro foi um fracasso de vendagem e de crítica,
não tendo tido sequer uma breve recensão crítica na imprensa. A família Lima
Prado deixara de ser importante. A nova burguesia industrial criara outros clãs
mais poderosos e atraentes. Como houvesse, na época, uma crise de papel, os
milhares de exemplares encalhados de Retratos de família foram vendidos a
428
peso para serem reprocessados. Basílio Peralta morreu de câncer em 1951. O
livro poderia ser considerado uma raridade, se alguém se interessasse por ele.
O que estava catalogado na Biblioteca Nacional havia desaparecido, não se
sabe quando nem como. Um exemplar, pelo menos, ainda existia, em poder de
Thales Lima Prado, neto de Priscilio e d. Laurinda Lima Prado, primo irmão de
Roberto Mitry. O livro e os Cadernos chegaram às minhas mãos na mesma
ocasião. Sem eles eu não conseguiria saber tanto sobre o banqueiro – suas
relações amorosas, suas transações financeiras –, incluindo aí, é claro, o
Escritório Central. Usei suas próprias palavras, muitas vezes, retiradas
diretamente dos Cadernos, procurando preservar os efeitos literários que ele
buscava, afinal Lima Prado se julgava um homem de letras. A esquisita conversa
dele com Zakkai, onde Nariz de Ferro menciona o episódio da vagina dentada,
e o primeiro encontro de Lima Prado com Mônica, em que se revela, para ele, o
fundamento escatófilo do seu desejo, foram mantidos exatamente como se
encontram nos Cadernos.
Comentários ao excerto da 2ª parte do capítulo 1 de A grande arte
O excerto transcrito fornece alguns elementos caraterizadores de
tendências narrativas do romance. Como se percebe, o texto não prima pelo
trabalho discursivo nem estrutural da narrativa, como se tem caraterizado em
geral a produção a partir da segunda metade dos anos quarenta e cinco (séc.
20). Dizer isso não significa afirmar que o texto seja repetitivo nesses aspetos
nem que não demonstre passagens inventivas na produção do discurso nem que
se mantenha apenas em formas já exaustivamente exploradas.
Pontos positivos referenciais do romance parecem centrar-se no
engendramento do enredo, no emprego da ironia e no posicionamento
ideológico, que tende a desmascarar as diferenças sociais entre os que se
encontram no alto e seus antípodas. O enredo desenvolve personagens que se
apresentam e são apresentados em sequências durante as quais os polos do
alto e do submundo se encontram e se conectam. O eixo narrativo segue
igualmente esse procedimento. Vale dizer: há na alta sociedade das grandes
cidades quem mantenha relações de negócios que se sustentam nos
submundos da prostituição, do tráfico, do assassinato a mando. A
representatividade social que as fortunas econômicas propiciam, portanto, é
frágil, escusa e obscura. A ironia do texto se elabora a partir do confronto entre
a forma como o personagem se apresenta e ou é apresentado e como de fato
ele se constitui. Em resumo, o leitor conclui que o personagem é de fato o
contrário ou bem diferente do que aparenta ou de como foi inicialmente
anunciado. Assim também ocorre no eixo narrativo, com relação ao epílogo. Ao
expor a técnica da construção dos personagens e do enredo, fica explícito
também o referencial ideológico do romance: não há distinções claras entre
classes ou condições sociais, com exceção das aparências. O ser humano é
indistinto, em alguns aspetos, de qualquer animal; olhado de bem perto, o ser
humano não demonstra muitas vezes o que se conhece com o nome de
429
dignidade, ou a dignidade pode ser apenas aparência e forma falsa de distinção.
Surgem desse modo elementos ideológico-estilísticos ligados ao Naturalismo.
A tendência narrativa do autor tem sido a de aprofundar o olhar e a
discussão a respeito de episódios ou ideias impactantes. Em A grande arte, p.
ex., brutalidade e insensibilidade com relação à existência do outro, em alguns
episódios, provocam sensação de um mundo de isolamentos (por nem mesmo
oferecerem condição para falar em individualismo). Em relação ao título, não
apenas é possível ler o que o texto especifica, habilidades no manejo de facas,
como igualmente a condição globalizada da vida, em que tudo tem a ver com
tudo. Tudo que se vê se funda no invisível, ou tudo tem algo de indizível ou
inconfessável. Noutras palavras: tudo que brota acima do solo planta raízes bem
abaixo. Os mistérios que surgem como modismos ou formas de dominação
podem ser desvendados da maneira mais corriqueira na vida diuturna.
O êxito editorial da obra de Rubem Fonseca parece ter, de maneira
análoga, relações com a forma tradicional do desenvolvimento discursivo e com
as formas já antes empregadas da estruturação narrativa. Com boa parte da
construção narrativa conhecida, o leitor se concentra no desenvolvimento. Os
desencadeamentos labirínticos tramam a tensão narrativa, o suspense, como se
diz no cinema, que para alguns leitores se mostra prioritário. O mundo, já parcial
ou quase integralmente explorado, reserva poucas surpresas, mas facilita o
domínio do leitor sobre o enredo.
PATRÍCIA Doreen BINS
Além de romancista, Patrícia Bins foi artista plástica, tradutora e jornalista.
Nasceu no Rio de Janeiro (1928), de mãe inglesa e pai húngaro, e estudou nos
Estados Unidos. Faleceu em Porto Alegre, em janeiro de 2008.
Patrícia Bins é autora de obras que compõem, sob vários aspetos, a
condição pós-moderna. Os personagens se marcam por problemas identitários,
por dúvidas severas em questão de valores, por carência de espetativas, por
isolamento mesmo dentro dos pequenos grupos sociais, como a família, p. ex.
Pele nua do espelho (1989) e Caçador de memórias (1995), entre outros textos,
são bons exemplos disso. Integram a produção literária da autora, além desses,
os romances Theodora (1991), Sarah e os anjos (1993) e outros.
Pele nua do espelho
(excerto do capítulo 1)
Parasempreparanuncaparasempresempresempre:
Foi assim que escrevi a frase final do livro que não terminei. Juro, no
entanto, que agora será a memória, a desmemória do amor, de um amor
paranunca, parasempre: a memória não tem fim, por isso nada acaba mesmo
430
que se morra, fica nos escaninhos dos átomos, das moléculas e de vez em
quando surge e paira, nua, exposta, embora difícil de cativar. Este, Emily, parece
pensamento raso, mas foi o que me ocorreu hoje, dia vinte e dois talvez, pela
manhã, ao retornar da caixa dos correios no portão da casa, longe aliás, como
sabes, da morada em si, preciso percorrer o bosque, os túneis verdes, a alameda
de plátanos, os maricás selvagens, os pés de jambo vindos do norte, os hibiscos
encostados ao muro de ambos os lados, a ilha de palmeiras e coqueiros,
vegetação tropical e subtropical que ainda me faz sentir resquícios de vida,
embora desolada ante tantos envelopes endereçados à senhora Antônia Roma.
Convites, a maioria para vernissages, e pilhas de cartões de boas-festas em
julho, por quê? Tua carta continua ausente.
Também não respondi às inúmeras que me mandaste dos tantos lugares
visitados nos últimos anos. Estavas inteira em cada uma delas, a pureza
instalada na caligrafia meio ingênua de colegial. E perguntas, perguntas, querias
saber tudo: a antiga morada e a cidade, o rio tão poluído, o movimento artístico
e como andavam os pintores e poetas, os únicos com quem te afinavas e que
fim (ou princípio?) levaram Angel e Sibylle por exemplo e rugas quem sabe e os
corpos mais gordos pela passagem dos cinquenta, e nossos cães, os gatos
herdados, o herbário, as flores e os cactos, árvores também (conhecias cada
uma delas), objetos, as coleções, caixinhas de ouro, prata, vermeil, madrepérola,
esmalte, ágata, bronze, o ex-voto pintado sobre madeira, telas, santos
esvoaçantes, anjos barrocos, o teu retrato que afinal ficou aqui e as fotos que
nunca tiramos; restaram alguns flashes, posso reconstituí-los se me concentrar,
olhos azuis. Às vezes usava pestanas postiças pintadas com rímel negro para
parecerem ainda maiores e o rosto pálido, branquíssimo, a boca sem cor, ou um
batom vermelho, maçãs salientes, cabelos soltos, loiros, encaracolados, iam até
a cintura mas tinhas certo pudor, eram compostos em coque quando ias às
compras no bairro, amarravas sobre a cabeça lenços transparentes de seda,
moviam-se ao vento enquanto guiavas a contragosto o conversível vermelho, a
tolda arriada, óculos escuros em teus olhos de espanto, esplendor, os homens
te desejando mesmo assim; braços roliços, corpo envolto em brisa e brasa,
vestidos estranhos mal te delineavam as formas exceto os seios firmes sob
algodões marroquinos trazidos por Juan a cada viagem. Flashes, memórias de
tua figura, dos gestos, gostos, restos da voz e da gargalhada quente ou as vozes
que te dominavam quando em transes e dizias ouvir outras vozes, então era
preciso o uísque. Para abafar aquelas pessoas que te surgiam de longe e de
mais perto e que povoavam também os siameses assustados? Me pedias copo
e muito gelo e a garrafa de Vat 69 a teu lado a tarde toda e bebericavas, bebias
até que. Geralmente aos domingos, Felicity em casa com as empregadas, teu
marido velejava da manhã quase à noite, vinha juntar os ossos à tardinha quando
muda o seguias, encolhida, pequena, cambaleante. E nem dizias adeus, nem
ele, tão contidos em sua própria ira. Precisavas que isso acontecesse
periodicamente, acho que era vingança pelo abandono, a ciranda do medo de
431
perder, entendes? Cada um de nós sofria ao sermos bipartidos, multipartidos,
esfacelados em nossa individualidade plural. Interdependência, era isso. Estava
inserto em nossas vidas. E não sabíamos.
Comentários ao excerto do capítulo 1 (Vento) de Pele nua do espelho
O romance Pele nua do espelho tem peculiaridades que devem ser
observadas para aprofundamento de análise. O romance é constituído de cinco
capítulos: Vento, Catavento, Reconto, Reflexo, Carrossel. A sequência, porém,
não gera um crescendo de informações ao leitor, como é comum nas formas
tradicionais de narrar. A narrativa se aprofunda, mas não acrescenta mais do
que é possível a uma pessoa ver dentro de seu contexto existencial, no mundo
concreto-sensorial. A perspectiva do narrador está dentro do mundo ficcional que
passa, gira, se repete, acrescenta, retorna, como o vento, os cataventos, os
recontos, a imagem e a luz refletidas, os carrosséis. O que é narrado pode estar
ocorrendo apenas na suposição ou na imaginação do personagem focado no
momento. O mundo ficcional, como metáfora e como metonímia do mundo
concreto-sensorial, é sobretudo onírico, desejado, percebido, mas não
necessariamente concretizado pelos personagens. Em razão disso, os
personagens atuam como pluralidades individuais, os denominados duplos. Um
episódio narrado, p. ex., em que determinado personagem age, não afirma que
tal coisa tenha de fato ocorrido (no mundo representado), mas pode estar sendo
imaginação do personagem. A diferença, relativamente às narrativas em geral,
é que o texto não esclarece nem às vezes sugere isso: cabe ao leitor detectá-lo.
As simbologias são também abundantes, como, p. ex., os títulos dos
capítulos. A trama de símbolos, principalmente a partir de descrições de objetos,
é expressiva e contribui para a geração do ambiente onírico ou intelectual do
romance. O título do romance alude à imagem do espelho do outro em que cada
um se enxerga, se amplia, se diminui, se compara, se distingue, se identifica.
Essa parece ser a estrutura dos duplos, abundantes no romance. O título pode
igualmente ser entendido como a resposta do espelho, reconhecidamente
eloquente para Narciso e para a Madrasta de A gata borralheira.
O parágrafo-frase que abre o excerto (e o romance) se prolonga no
discurso total da narrativa de várias outras formas. O romance se fecha com
“Quero ser real”, i. é, com a expressão do desejo de não ser apenas reflexo,
prolongamento, distinção, parte, elemento comparativo etc, mas unidade
individual. Como isso seria impossível, a essa busca se resume a utopia dos
tempos pós-modernos, segundo se depreende da leitura.
Luiz CARLOS Verzoni NEJAR
Carlos Nejar é advogado, professor e poeta. Nasceu em Porto Alegre (RS)
em 1939. Estreou na literatura em 1960, com Sélesis, antes de concluir o curso
de Direito, em 1962.
432
Eis alguns dos títulos que publicou: Sélesis (1960); Livro do tempo (1965);
O campeador e o vento (1966); Danações (1969); Canga (1971); Casa dos
arreios (1973); O poço do calabouço (1974); Árvore do mundo (1977); O chapéu
das estações (1978); Os viventes (1979); Um país o coração (1980); Fausto, as
Parcas, Joana das Vozes, Miguel Pampa e Ulisses, poemas dramáticos (1983);
A idade da aurora (1990); Simón Vento Bolívar (1993).
Obra infanto-juvenil: Menino-rio (1985); Era um vento muito branco (1987);
A formiga metafísica (1988).
Canga
Jesualdo Monte, não és homem.
És um burro
carregado de ossos;
as palavras, insetos,
volteiam-te a garupa;
até a carne é hostil
sob a carcaça
e o presságio dos seres
te enternece.
Não te movem as fendas,
nem as urzes,
nem o jogo de vozes,
o repouso das tardes
e as vigas
que desceram ao rio
no teu lombo.
O mundo te apertou com sua cincha
e tudo em ti
transpõe o desespero,
desapegando patas e raízes.
É esta a condição de não ser homem:
dormir, placidamente, sem remorsos,
no curral dos mortos.
É esta a condição de não ser homem:
ruminar o assombro, junto ao feno,
receber o milagre sem transtorno,
seguindo sempre, onde manda o dono.
É esta a condição de não ser homem:
lanhado o casco por chicote lesto,
zurrar, apenas, mastigando o freio.
É esta a condição de não ser homem.
433
Comentários ao poema Canga do livro Canga
No livro Canga nasce Jesualdo Monte, que tem merecido considerações
críticas referentes à sua representatividade. No poema Canga, define-se a
contracondição humana ou “a condição de não ser homem”. Considerada a
época histórica brasileira, de repressão, censura, confusão social e do milagre
brasileiro, “receber o milagre sem transtorno / seguindo sempre, onde manda o
dono” é bastante eloquente. A partir disso, “zurrar, apenas, mastigando o freio”
é consequente.
No poema acima, o vocabulário se reforça pela escolha adequada de
vogais abertas, a que a pronúncia clara propicia sonoridade e aumenta a
impressão poética do texto. Os textos do autor, em geral, são densos, o que evita
as leituras fluviantes e flutuais, como ensinou Cabral de Melo Neto em Catar
feijão.
AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA
É mineiro nascido em 1937. Pagou seus estudos de primário e ginásio
carregando marmitas, trouxas de roupas para lavadeiras, vendendo papel e
balas no cinema. De bicicleta, vendia seus produtos de armazém em armazém;
enquanto esperava ser atendido, lia os livros que conseguia em bibliotecas.
Cursou Letras em Belo Horizonte e trabalhou em bancos e em jornais para
custear os estudos universitários. Em 1962 lançou seu primeiro livro, o ensaio O
desemprego da poesia. É autor de poesia, prosa e ensaio.
Algumas de suas obras: Que país é este? (1980); O lado esquerdo do meu
peito (1991); Epitáfio para o século XX (1997) – poemas; Análise estrutural de
romances brasileiros (1989), Por um novo conceito de literatura brasileira (1977),
Música popular e moderna poesia brasileira (1997) – ensaios; O livro do
seminário (1982), Crônicas mineiras (1984), O livro ao vivo (1995) – prosa.
Certeza
Quero
a certeza, a certeza
da fera
que dispara,
abate a presa
e banqueteia
sobre a relva ou mesa.
A certeza firme,
embora peregrina,
dos que cegamente rezam
montanha acima.
434
A certeza
do carrasco
na guilhotina. A certeza
desabalada
da manada
estourando na campina,
a certeza do mau poeta
com suas rimas.
A certeza
além da lógica formal.
A certeza industrial
que liga e desliga
os conceitos
de bem e mal.
Ao contrário
– vacilante e intranquilo –
sou o caçador cujo gatilho
espanta a caça
antes do tiro,
dançarino de pés mancos
que desaba aos trancos
sobre o palco,
ladrão
que devolve em dobro
o roubo
– antes do assalto.
A certeza, sei, é desumana,
é carapaça, couraça, verniz, mentira, máscara
e incapacidade
– de viver o drama.
Mas, às vezes, gostaria
de ter a estúpida e feliz certeza
do ditador no trono.
A certeza, por certo, causa dano
mas é aspiração confessa
de quem, nietzschiano, se cansa
de ser humano,
– demasiadamente humano.
Que país é este (parte 2)
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
435
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma
branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.
436
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,
o salário que nos come
e nossa sede canina,
a esperança que emparedam
e a nossa fé em ruína,
nada nada congemina:
a placidez desses santos
e nossa dor peregrina,
e nesse mundo às avessas
– a cor da noite é obsclara
e a claridez vespertina.
(Epitáfio do século XX e outros poemas)
Comentários ao poema Certeza
Certeza é um poema que diz com propriedade alguns aspetos do que,
atualmente, se tem considerado o que literatura seja. Trata-se de uma reflexão
sobre o mundo, sobre as coisas, fatos e fenômenos, construída com
caraterísticas especiais, peculiares ao tipo de texto que se denomina literário.
Como tudo é e não é, porque todas as coisas existem em condição
transitória, i. é, apenas estão sendo em suas circunstâncias, entre as quais o
tempo é fator marcante. Por isso, o pedido pela certeza, que de fato só podem
ter as pessoas limitadas a mundos parciais e normalmente arbitrários. A certeza
recorta o mundo e desconsidera o diálogo, porque se origina de voz monológica.
Geralmente atende a interesses muito claros e tem objetivos curtos. Por todas
essas razões, conforme o poema, a certeza não é apanágio de quem leu
Nietzsche.
A primeira estrofe carrega o núcleo ideológico do poema, que vai sendo
desenvolvido ao longo do texto. Segundo o que aí se lê, aparecem no mesmo
nível qualquer fera, seja animal ou homem. Como tudo é e não é ao mesmo
tempo, o homem deve ter em si as duas dimensões. Por isso “abate a presa / e
banqueteia / sobre a relva ou mesa”. Ao perceber que a prática é exitosa no
mundo concreto-sensorial, o poema suspira por não conseguir deixar de ser
humano, ou, como se lê no último verso, “demasiadamente humano”. A (falsa)
aspiração é já, por si só, contraditória, uma vez que o grande horizonte que o
poema descortina é a humanidade de toda a humanidade, ou a humanização de
cada um. Por isso se mostra igualmente forte semanticamente o adjunto
“cegamente” (segunda estrofe), porque essa circunstância significa, entre outras
437
coisas, não enxergar os outros. Esse fenômeno, aliás, é bem comum no mundo
contemporâneo, em que convivem e se dilaceram exacerbados e contraditórios
extremismos.
Comentários ao poema Que país é este? (parte 2)
Em Que país é este?, semelhantemente ao se pôde ver em Certeza, o texto
elabora reflexão à semelhança de uma crônica, em que se traçassem perfis
temporais da história do Brasil. Em Que país é este?¸ diferentemente do poema
anteriormente comentado, trata-se de examinar as condições de vida que
conseguimos construir, com olhar depreciativo ou talvez pessimista, como, aliás,
é caraterístico da fala cotidiana brasileira sobre o país. Elabora, no entanto,
quadro representativo da nossa condição social e política.
Com respeito ao estilo, o poema se funda em ritmo bem marcado, fundado
em versos heptassílabos, com dois ictos por verso. Vale lembrar: o metro hepta
foi fundamental na construção da literatura brasileira e continua sendo, nas
formas de expressão oral em versos. O Romantismo marcou as sete sílabas
poéticas para sempre, na produção literária em versos do Brasil, porque foram
os poetas românticos que marcaram a nacionalidade literária do pais. Isso
ocorreu de tal modo, que é corriqueiro poder-se identificar, p. ex., a Canção do
exílio de Gonçalves Dias e Meus oito anos de Casimiro de Abreu, com os
fundamentos sentimentais da nacionalidade e da vida familiar, respetivamente.
CAVALCANTI PROENÇA
Manuel Cavalcanti Proença se tornou crítico literário renomado. Tratou de
obras como as de Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Augusto dos Anjos.
Priorizou o estudo sobre a força das características fundamentais da literatura
popular, dividida por ele em poesia narrativa, poesia didática e poemas de forma
convencional. Procurou sempre valorizar manifestações da expressão marcadas
por singularidades nacionais.
Obras: Ribeira do São Francisco (1944); Roteiro de Macunaíma (1950);
Uniforme de gala (1953); Ritmo e poesia (1955); Nove anos de praça (1956);
Trilhas no grande sertão (1958); Augusto dos Anjos e outros ensaios (1958);
Literatura popular em verso (1964) José de Alencar na literatura brasileira (1966)
– ensaios; Manuscrito holandês (1960) – romance.
Manuscrito holandês
(capítulo Variantes)
Algumas sagas, que registrei como capítulos, apresentam leves variantes,
sem que, entretanto, os textos mereçam cotejo entre si. Uma, entretanto, por
438
mais acentuada diferença nas versões repetidas por Jurueba, me pareceu
devesse anotar para o devido confronto (H. R.).
XI
As quatro estrelas do pé de nhandu já estavam baixando no topo dum
ingazeiro, quando o céu começou clareando e não demorou muito que a lua
despontasse espelhando o rio.
Então, a sombra do arvoredo se espichou por cima d’água, como luto do
Irovi pela morte das crianças.
No fim do estirão o barranco se abaixava, e tudo era só vargem de capim–
mimoso, com a baía do Curiangu toda empestanada de pensões de pripiri.
Mas o ouvido de Arandu presenciou um burburinho esquisito, como de
pena se roçando, e embicou depressa a proa da igarité para o escuro do
ramanso, nessa hora um veludo preto. Foi tomando chegada de manso, muito
de pé atrás, que quem vai entrar no desconhecido não deve ir de bocó desatado.
O rufe-rufe aumentava se alastrando, e Mitavaí meio que se amedrontou,
mas, ainda assim, deixou o barco descer de bubuia, só aprumando o bico da
proa com as pazadas do jacumã.
No primeiro rebaixo do barranco divulgou a várzea e estremeceu de
espanto. Era uma brancura espumosa de leite fervendo. Se agarrando num
galho de sarã, entreparou a igarité e ficou olhando sem voz.
Todas as garças da redondeza tinham feito ajuri na várzea-grande e não
tinha lugar para mais nenhuma. As de trás queriam se chegar na beira da baía,
mas não se encontrava caminho, tudo trancado de pena branca. E levantavam
o pescoço abanando as asas sem voar e o rufe-rufe de pluma contra pluma
ficava mais forte.
Arandu atou a canoa no sarã, rastejou barranco acima até o oco de um
mulungu e ficou bombeando o mutirão das garças.
Era dia de banho de Tetaci, garça-guaçu, afilhada de Jaci, garça descendo
na hora em que a lua fronteasse o buriti solteiro da várzea e pudesse ver sua
cara refletida na água parada da baía.
Será que ele tinha sido fadado para assistir ao que raros assistiram?
Desgraça pouca é bobagem. O que tem de ser tem muita força e devia ser
para já, pois a lua vinha apertando passo na subida e deixara a grimpa da
restinga de mato, muito abaixo. Entreparou meio indeciso e faiscou mais prata,
enquanto o buriti mexia as folhas, inquieto, sem vento nenhum brisando. Nem o
rufe-rufe se ouvia, as garças paradas feito se fossem capuchos de algodão. E
do alto veio descendo e lumiando uma garça do maior tamanho e fez sereno
pouco na corcova da única pedra que sobressaía na vargem.
439
No mesmo instante, contam, a pele da garça escorregou de ombros abaixo
e ficou uma cunhã muito linda que começou nadando nas águas da baía. Então,
as garças foram dormir sem barulho, e a várzea ficou um ermo, só o barulhinho
dos braços da cunhã chapeando prata.
Depois, o corvo alvo saiu das águas e se deitou na sombra do buriti,
esperando que as lágrimas da noite ficassem maduras para orvalhar o campo.
Arandu sentiu alegre o seu coração e se chegou para as penas, ali mesmo
embaixo da pedra. Foi ver logo a moça. O vento da serra espalhava o cheiro de
cunhã pela várzea, e Mitavaí chegou muito espantado perto dela. O corpo claro,
no verde do mimoso, era ainda mais branco, e ele só fez levantar aquele corpo
e pôr nos ombros, voltando para a igarité, sentindo o macio morno da pele de
Tetaci.
Quando ganhou a igarité, molhou o rosto da moça que já acordou,
perguntando:
– Quem me molhou com água que não é da baía do Curiangu?
– Sou eu, Mitavaí, seu criado, que quero você pra mim.
– Para onde me leva?
– Para minha mulher, que nunca tive uma tão alva.
O rosto de Tetaci ficou triste e os seus olhos de neblina olharam para cima
e falou muito triste muito:
– Seuci, manda alegria da tua boca para alegrar a minha. Lua, goteja por
cima de mim um pouco de sua puçanga para eu ficar mulher.
Então, ela se encolheu na popa tapando a nudez; Mitavaí seguiu remando,
e o vento levava o seu canto longe longe, e os passarinhos acordavam e
cantavam também, e um farrancho de martim-pescador biguá e arapapá vinha
apostando mergulho no rasto da igarité. E era cada mergulho que contando nem
se acredita.
Quando já estava longe do lugar em que a moça falou com Seuci, da lua
caíram ali mesmo as gotas de puçanga que afundaram na água, e os peixes
ficaram prateados até hoje. Mas Tetaci nunca mais que podia ter filho de Mitavaí.
Abicaram a igarité numa ilha, e a moça pediu que esperasse a lua baixar
no céu para ser sua mulher.
Então, na meia sombra, ela foi a uma árvore de breu branco e tirou um
pouco para fazer uma tunaí. Depois que se deitaram, Mitavaí quis que a moça
contasse o seu princípio, e ela falou:
– Sou Tetaci, que me banho, uma vez em cada cinco anos, na baía do
Curiangu. Moro no alto e desço sempre na esperança de esperar que as lágrimas
da noite amadureçam, para que toquem minha pele e a lua venha abrir o meu
440
corpo. Sou mulher no peito e no rosto, porém não tenho caminho da lua e fiz
uma tunaí para mim.
E fechou os olhos de neblina.
Quando acordaram, o sol estava de fora, e Mitavaí avisou a Tetaci que a
sua tunaí não estava mais.
– Com certeza foi o calor do teu corpo que a derreteu. Mas repara agora
na minha barriga e veja como está. Foi o calor do teu corpo que me fez moçar.
Agora morrerei para viverem os nossos filhos.
Arandu não dizia nada, só olhando o corpo branco de Tetaci, com os
quadris de curva de rio. Então ela contou:
– Se você não tivesse remando a igarité, quando falei com a lua, ela teria
mandado puçanga e eu seria mulher.
– Não brinque com essas coisas.
– Você vai me ver na outra lua cheia.
E quando o rosto da lua foi crescendo, os olhos de neblina de Tetaci foram
ficando magoados pela separação.
Sentaram-se na beira do rio, e Mitavaí, com medo, olhava Tetaci, olhava.
– A lindeza de seu amor, Tetaci, me ajudará a enganar meu coração.
Então a lua foi chegando no alto, e a moça o mandou para o outro lado do
rio:
– Volte de manhã. Não fique triste não, que eu torno quando chegar o seu
dia. Guarde um canto no seu coração para mim.
Contam que o corpo de Tetaci se rompeu, porque não podia ter filhos, e de
dentro saíram borboletas brancas, um bando de garças, peixes prateados.
Voando, nadando.
De manhã um tié acordou Mitavaí, que atravessou o rio num vau.
No barranco, falam, encontrou a figura de Tetaci olhando para o rio. Como
tudo que ele queria bem já era pedra, falou sozinho: “Só falta desaparecer eu
também deste mundo.”
Voltou à pedra da várzea, apanhou as penas e se vestiu com elas.
De noite, voou para a cidade. Muitos andam dizendo que virou coruja.
Apêndice
Se o leitor pertence àquele grupo de pessoas que, para tudo, exigem uma
explicação, poderá informar-se, neste apêndice, das peripécias havidas com o
manuscrito de que se originou este livro.
M. C. P.
441
Carta de Bernardo de Claraval
(Publicada no Jornal do Brasil, em meados de 1957, na seção “Quem será o
Editor?”)
Senhor Redator:
Há algum tempo venho desejando escrever, mas uma dúvida, misturada
de timidez, me tem impedido de fazê-lo. Passarei a expor metodicamente,
quanto possível, o caso:
1) O livro para o qual busco editor não é propriamente de minha autoria,
mas é como se fosse. Explico:
Trata-se de um manuscrito latino que deu à praia do litoral paulista, em
circunstâncias algo romanescas, dentro de uma botija de barro, provavelmente
de genebra. Um tio meu obteve de pescadores da região o documento e,
também, apensa ao mesmo tempo, uma carta escrita por Hans Richter, cidadão
holandês de Utrecht, segundo afirma. Na carta, o autor nos dá conta de como e
por que redigiu o manuscrito, oferecendo-o àquele a cujas mãos venha o oceano,
encarnando o destino, confiá-lo.
2) Como aquele, no caso, sou eu, creio haver explicado a declaração de
que me considero autor, além do mais pelo trabalho não pequeno da tradução.
3) Tentarei, agora, resumir a natureza e o assunto do livro, objeto de minha
tradução.
Começarei pelo título que escolhi, de minha lavra. Uma vez que esqueceu
ao autor apô-lo ao manuscrito latino, denominei-o Manuscrito holandês. Explico:
como disse, o idioma em que manuscreveu o cidadão H. Richter foi o Latim, mas,
na carta apensa, em várias oportunidades, cita ele a sua naturalidade, e o
adjetivo batavus aparece com tão insistente frequência, que me senti, às vezes,
no dever de suprimi-lo. Em determinada passagem, que a seguir transcrevo,
achei inspiração para o título. Ei-la:
“Lassi intineribus insulae miseremur codicis batavi, logoenaeque fragilis
quam comittimus pelago truci...”
Ora, uma tradução imediata e sem meditação nos daria, na ordem:
“Cansados dos caminhos da ilha (onde o autor escreveu), nos apiedamos do
manuscrito holandês e da frágil garrafa que confiamos ao oceano cruel.”
Note-se que esta foi a tradução, como dissemos, sem meditação. A
meditação nos dirá que este batavi bem será um nominativo plural, epíteto em
aposição ao nos, oculto, como consuetudinário em Latim. Mas esta coincidência
de flexões casuais que, à primeira vista, nos proporcionou o título, embora não
escoimada de incorreção gramatical, decidiu-nos, afinal, pois nela vimos
oportunidade para homenagear o erudito H. Richter.
442
Não usamos o termo erudito para o autor do manuscrito apenas levados
pelo ritmo fraseológico, mas porque notamos no trecho citado lembranças da
ode III, de Horácio, quando diz:
Illi robur et aes triplex
Circa pectus erat, qui fragilem truci
Commsit pelago ratem.
4) Explicado o título, passemos à natureza e assunto do códice. Trata ele
das sagas de um herói índio – Mitavaí Arandu (em Tupi, aproximadamente,
Menino-Feio, Sábio).
5) As sagas são narradas por um papagaio jurueba que o Sr. H. Richter
teve consigo anos e anos, em uma ilha deserta.
6) Na sequência das sagas o herói apresenta, de início, vivendo na região
sertaneja, e, posteriormente, nas cidades. Há intromissão do sobrenatural e,
também, casos de sincretismo e aculturação, reveladores de contatos mais ou
menos prolongados de culturas de níveis diversos. Ao tradutor que, já agora, se
sente quase autor, pareceu que a matéria não era destituída de interesse e
pitoresco.
Aqui remeto dois excertos do trabalho, os quais escolhi para representação
das duas fases da vida do herói. A primeira, sertanista, e a segunda, urbana.
O prezado redator poderá, das linhas que aqui ficam, extrair o que achar
conveniente, para recomendar o original ao possível editor, se lhe parecer que
nele haja merecimento. Caso contrário, continuarei seu mesmo admirador, pois,
quando lhe solicitei apoio para obtenção de editor, admiti previamente a
serenidade e competência do seu discernimento.
Creia na admiração do patrício que se subscreve
Bernardo de Claraval
Comentários ao capítulo Variantes de Manuscrito holandês
Manuscrito holandês é uma das poucas obras que pode ser incluída, como
Memórias de um sargento de milícias, Macunaíma e O Tatu, entre a produção
da literatura de dissidência, i. é, a literatura fora-de-escola. A literatura de
dissidência supera a concepção escolar, porque se mostra rebelde ao
enquadramento em caraterizações epocais rígidas. A literatura de dissidência
dialoga de modo crítico com a literatura canônica escolar: nisso está seu ponto
central de contribuição, porque, por sua própria caraterística de dissidência, não
tem pretensão de colocar-se no centro.
Manuscrito holandês, examinado pelo ótica do discurso e pela da maneira
de organizar e encadear os episódios da narrativa, se aproxima das experiências
de Mário de Andrade em Macunaíma. Como paródia – a literatura de dissidência
se posiciona como paródia da produção canônica em cada época – o romance
se relaciona com Grande sertão: veredas, saído quatro anos antes. O romance
443
de Guimarães Rosa teve grande êxito de crítica e editorial. O diálogo que
Manuscrito holandês estabelece com ele se carateriza como paródico. O
romance de Proença dialoga também com Macunaíma, no discurso e na atenção
às culturas do interior brasileiro. O próprio fato de a fala que originou a narrativa
ter sido apanhada a partir de relato de um papagaio aproxima ambos textos. O
herói de constituição mágica também os relaciona por aproximação. A ironia e
às vezes a sátira com relação a línguas e formas discursivas estranhas à nossa
cultura, mas que são, apesar disso, empregados, ou por academicismo ou por
imitação vazia, são recursos empregados nos dois textos, com resultados
semelhantes.
Dialoga também com outros romances, mesmo externos à literatura
brasileira, como Dom Quixote, por exemplo. Há episódios que lembram
vivamente trechos do romance de Cervantes. Não deixa de se referir, ainda,
desde o título, ao passado batavo da história colonial brasileira. São, também
esses, recursos que desprendem o texto de filiações rígida dentro da história da
literatura brasileira.
HERACLIDES SANTA HELENA
Nasceu (1919) e faleceu (1988) em Porto Alegre. A profissão que escolheu,
a medicina veterinária, levou-o ao interior do Estado, a Quaraí. Nesse município,
fez-se pecuarista e político, tendo sido prefeito da cidade. Foi exímio contista.
Onze braças de campo e algumas sobras (1982) é a obra literária que o inclui
aqui. Foi estudioso da fauna e da flora do Rio Grande do Sul, com obras
publicadas a respeito.
Onze braças de campo e algumas sobras
(conto Onze braças de campo e algumas sobras)
Avô barão, pai patrão, neto peão.
(Dito popular colhido na zona rural de Caçapava do Sul.)
– Desconfio que a velha desistiu de viver por muito já ter vivido. Dum dia
pro outro empeçou a mermar... mermar, foi mermando e se finando e no fim era
só pele embolsando os ossos. Morreu amontoadinha, magrinha, puro olho e
cotovelo. Ali ficou, naquele catre, mortinha da silva, sem queixa nem ai.
Me lembro que foi depois duns dias de muito calor e vento norte. Pela meiatarde desabou uma manga-de-pedra que esfiapou o cupiar de santa-fé deste
meu rancho. Noite alta, desandou um frio muito frio e pela madrugada a velha
pediu uma vela, e ela mesma se alumiou esperando a morte.
É claro que a gente sofre quando um cristão se vai, mas a pobre da
madrinha estava com noventa e algo mais. E isso puxando pra menos nas
contas. A finada irmã dela, de nome Matilde, morreu de uma doença ruim, com
444
setenta nas costas, e era das mais novas da ninhada. E lá se vão como vinte
anos se não me falha a memória.
O velho marido da minha madrinha era do tempo em que o Cerro do Jarau
era cupim, e quando se finou, deixando a madrinha viúva e só neste mundo, ela
já era mulher de queixo liso e juntas grossas. Um que outro dente. E isso que
não tiveram filhos e eu sempre desconfiei que a madrinha Clotilde era machorra,
porque o velho Lourenço, de nome, meu padrinho, deixou, diz-que, um filho
gaúcho lá pela Serra, numas andanças que fez tropeando mulas pr'aquelas
alturas. Dizem outros que foi na de 23. O que vem ao caso é que o velho se
documentou e se provou.
Morta a madrinha, ainda morna a pobre da cristã, vem a parentalha
insinuando que eu me adonei do que era dela. Não me disseram, mas o diz-quedisse veio ponteando adiante deles.
Eu pergunto: ela não era minha madrinha? Quem cuidou da coitadinha? Eu
respondo: eu! Quem pagou o doutor? Eles, por acaso? Quem aguentou as
caduqueiras da velha? Algum parente? Sempre foram ausentes nos achaques
da finada. Há anos se foram para o povo e nem sabiam se morta ou se viva.
Agora me aparecem alegando parentesco e que são Silva e que são Pereira por
parte de fulano e de beltrano e que isto e que aquilo, pobre da madrinha pra cá,
pobre da madrinha pra lá.
A verdade é outra e o caso é claro como água.
O campinho a velha vendeu logo-logo que o finado padrinho fechou os
olhos. Só reservou onze braças de campo com o rancho e a cacimba em cima,
mais o zaino da montaria do marido dela. A fora meia dúzia de guaxos terneiras,
o mais que pastava no campo era avestruz. Com os minguados sobrantes do
negócio, atendeu o doutor, o inventário e as despesas do enterro. Só o enterro
foi um dinheirão, e isto que o caixão não era grande coisa: uns floreios dourados
de longe em longe. Alegaram que o velho era um homem grande e que morreu
muito inchado, e que não iam meter o Alegrete dentro do Quaraí, que não cabia
e que gastaram um mundo de madeira e de clavos. Desperdício não houve.
Enterro da cruz não se fez até hoje, por culpa do ferreiro que até ontem não
entregou a cruz. Enfim, desperdício não houve.
É verdade que o campinho vendido não era mau e o preço até que não foi
pior pra época e praquela hora de precisão. Também não era uma nesga. Tinha
quase meia quadra de sesmaria. Meio duro, um pouco de mio-mio nos plainos,
barba-de-bode nas ladeiras de cerros, mas fino e bom pra ovelha, tanto na graxa
como na lã.
Ia dando pra pobre viver, pagar os seus remédios, encomendar os seus
jujos, suas meadas de linha. E eu sempre ajudando, alcançando alguns
trocados, até tirando da boca dos meus pra não dizerem que eu criava de arriba
no campinho dela.
445
Empeçaram a dar com a língua nos dentes.
E se eu criasse, não estava bem criado? Ela não era minha madrinha e eu
não era como um filho dela? Quem vestia a pobre, quem agasalhava a vivente
que não tinha ninguém por ela neste mundo? Não sou o herdeiro dos pertences
dela e das contas de emplastro poroso e elixir paregórico que ela deixou no
bolicho do Brandão?
Pois então, não me venham com conversas e chismes.
Vai um dia, me aparecem por aqui. De calça-corrida, os machos; o mulherio
com umas calças de homem, apertadas no traseiro, fumaceando pelos beiços
pintados, se adentrando no meu rancho, mui anchos, como se o que é meu de
meu, de escritura passada em cartório, fosse o fiofó da mãe-joana. E era primo
pra cá, prima pra lá e eu só me fazendo de mocho pra ver se me laçavam pelo
pescoço.
Meio por longe, fazendo rodeios, foram dando a deixa que queriam
churrasquear carne de ovelha. E soslaiavam a guaxa ovelha da Totinha. Eu
quieto, sovelando umas garras de couro. Depois, deram uns suspiros mui
compridos, baixaram os olhos pro chão e “que tinham saudades da finada... e
que queriam uma lembrança, uma lembrancinha que fosse, e que a coitada
sempre foi boa em vida, e que isto e aquilo”.
E dê-lhe suspiro e fungação.
A minha Vicenta, mui boba e sem malícia, vai e traz, da gaveta da cômoda,
uma lenço de seda que a finada defunta usava na cabeça, uma que outra vez,
quanto troteava pro cemitério pra rezar umas rezas, e ofertar umas flores pro
finado marido dela. Um lenço bom, floreado, com algum rasgãozinho o quantoquanto, de certo arruinado da salgadura das lágrimas ou comido das traças, mas
bem fuxicado, a preceito, que a velha no dedal e na agulha era mestra. De mão
canhota e sem óculos.
Não gostaram do lenço. Que “roupa não é lembrança” e seguiram medindo
os trastes com os olhos, tudo agarrando, apalpando, cheirando, reculutando e
avaliando. Então eu, de boa vontade, ofereci um banquinho mocho, da finada
madrinha e parceiro do seu alcatre magro, tanto nas mateadas de mate-doce,
como nos trabalhos de agulha e linha. Um banco bom, feitio do Cardoso que pra
essas coisas tinha gosto e tempo.
Também refugaram e nem disseram por quê. Nem perguntei.
Enjeitado o banquinho, cresceram o olho pra cama da falecida. E já fizeram
olho-de-choro e que tinham uma filha quase moça e que estava mal acomodada
e outras coisas mais que não repito porque até nem botei sentido naquelas
conversas sem fundamento.
Podia regalar a cama? Nela mesma a velha fechou os olhos e, salvo o
cobertor bichará que era do meu padrinho, o resto sempre foi meu, feito dumas
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aduelas de barrica que me deu o Modesto, quando se secou de raiz com bolicho
no Quatepe.
Com a voz de “cama, não!” por ali ficaram dando balanço e fé do tudo; as
figurinhas coladas na parede, o vasinho de vidro verde, a imagem do santo que
devia ter algum valor pra finada madrinha. De certo por algum milagre pedido e
recebido. Ela nunca me contou o acontecido e eu nunca perguntei. Tudo o que
eu sabia é que aquele santo era milagroso, lá pra velha, não pra mim, que uma
vez, na hora da precisão, botei o invido nele... e até ontem. Não levo fé em santo
assim, a pé, de vestido comprido, picana curta na mão, sovaco pelado e
mãozinha pra cima. Fosse o São Jorge, santo campeiro e bem montado, eu
parava patrulha com eles.
Que levassem. Não quiseram. Que não prestava ter em casa santo que
antes era de defunto. Crendices. Tudo que nesta vida é de vivente, hoje, fica
deixado de defunto, amanhã, quando o vivente morrer.
Tudo que ambicionavam falta me fazia. Tudo que eu queria, eles
desejavam. Desdenhando o oferecido, iam rumbeando pro que eles cobiçavam.
Era a cômoda. Aquela com tampo de mármore. Não tiravam os olhos dela
desque a Vicenta remexeu nas gavetas, procurando o lenço. Mármore é coisa
rara e que vem de longe, é escasso, não pode ser dado assim no mais. E mesmo
que não fosse não era de dar. Nela a madrinha guardava os seus trapinhos, uns
retratos amarelecidos e um bico de mamadeira, dos antigos, que eu nunca soube
de quem nem pra quê.
Ofertei o banquinho, o lenço, o santinho e não quiseram. Cresceram o olho
na cômoda com tampo de mármore. Foi pra isso que vieram. Cortei logo: “então
vocês pensam que eu vou trabalhar uma vida inteira, de estrela a estrela,
botando o branco do olho pra dar de comer e de vestir pra madrinha e no fim
repartir o que é meu, que eu ganhei e não roubei?”
Saíram de culatra torcida.
Ainda da cancela do parapeito fizeram cara-volta e perguntaram se a
madrinha tomava mate – Que tomava, respondi. Se tinha cuia e se tinha bomba,
e se era de mil-furos. Não era. A cuia quebrou e a bomba azinhavrou, mesmo
tinha um que outro furinho. Tomaram a estrada.
Que façam como eu se é que querem ajuntar alguma coisa na vida. Me
criei criando em quarenta e cinco braças de campo. Com onze que a madrinha
Clotilde me deixou, fazem cinquenta e seis. Como uma quadra e pico, de
sesmaria, e pastando em cima como cento e oitenta ovelhas de véu, a fora os
cordeiros e mais dezoito vacas, cobertas pelo touro hosco e outras chegadinhas.
Um homem deve viver do seu trabalho e não ser ambicioneiro. Se um dia Deus
quiser que a gente tenha mais, a gente vai ter mais. Ele sabe o que faz. O homem
deve conservar as suas coisas. O muito por ser muito não está livre de mermar
e, com zelo e trabalho, o pouco pode crescer.
447
O meu avô, pai do meu pai, que eu não conheci, quando entregou a alma
ao Criador tinha sessenta quadras de sesmaria. Mas, a velha minha avó era
como rata; pariu, amamentou e criou onze filhos. Faça as contas: sessenta
quadras, onze herdeiros; os advogados comeram duas e uma ponta de gados.
Ficaram cinquenta e oito quadras. Reparta por onze e veja que vem a dar um
pouco mais de cinco quadras de sesmaria pra cada um. Foi o que o velho meu
pai herdou. Puxou ao pai, na parecença e tudo o mais: fez oito filhos e mais eu,
nove. Mais não fez porque a velha vivia atempada e em mãos de doutor. Três
morreram em pequeno e eu nem conheci. Ficaram seis. Quando os velhos se
foram, desta pra melhor, quedamos com uma quadra escassa que vem a dar
pouco mais de quarenta e cinco braças de campo.
Os mais ganosos por plata, de vereda venderam, e saíram por aí: dos
bolichos pras tropeadas, pra mensual de estância, martelando nas esquilas ou
changueando. Afinal se fundiram. Dois estão no Uruguai, diz-que muito bem,
cortando cana numa plantação do governo. Um terceiro é capataz duns Ferreiras
lá pela Uruguaiana. Tancredo, chama-se, conhece? Das irmãs fêmeas, duas
casaram bem. A Picucha, que vem a ser a mais velha, casou com um militar da
Brigada, cabo que é, ou era, mas pra bom já é sargento, por muito cumpridor
que sempre foi e respeitador dos superiores.
A segunda, casou com um homem pobre, mas muito bom. É vivente que
não incomoda ninguém, vive das suas changas no Alegrete, foi mensual duns
Paim, depois tropeou pros Dorneles e entre uma e outra tropeada queima
ladrilhos na várgea do Ibirapuitã, alambra, quincha... enfim, uma alma de Deus.
A mais moça, a Clarinha, a última notícia que tivemos foi por carta vinda de Cimada-Serra, por via da rádio daqui. Não pra mim, que ela sabe que eu não acolhero
uma letra com a outra, mas pra Vicenta. Mandou um retrato bem tirado, colorido,
está bem parecida, bonita como sempre foi e deve ter bom passadio. Vive, diz
na carta, numa casa grande com outras moças da sua amizade. A casa é de
uma tal Dona Marli, ou nome parecido e que é uma segunda mãe pra ela.
Continua solteira como quando se foi, depois que vendeu sua parte de campo
pruns gringos arrozeiros que moram ali, bem ali onde o sol alumeia aquele
açude, e as águas que se esparramam entre as taipas do arrozal.
Me coraçona que a Clarinha se arrumou na vida, porque na tal carta, ela
encomenda umas roupas de baixo que são de sua precisão e, pelo fino e preço
da encomenda, acho que é mulher de posição na vida.
Bem que merece.
Comentários ao conto Onze braças de campo e algumas sobras
O conto Onze braças de campo e algumas sobras marca-se pelo tom da
oralidade dos homens campeiros da Campanha do Rio Grande do Sul. O estilo
se aproxima da tradição narrativa gaúcha desde, pelo menos, Recordações
gaúchas, de Luís Araújo Filho (Realismo). Em semelhante estilo, mais conhecido
448
dos leitores fez-se Lopes Neto, em Contos gauchescos, considerado em geral
como expoente nacional nessa técnica narrativa. A forma da oralidade nessas
narrativas aproxima-as da técnica do causo. Causos são narrativas curtas ou
médias sustentadas por único narrador, que supõe ouvintes. Nascem da
convivência de homens simples, que se recolhem no fim do dia para a roda de
mate. Tratam geralmente de episódios ligados ao trabalho diuturno, de supostas
ocorrências sobrenaturais, de sabedorias da vida prática, de maldades e de
sofrimentos.
O narrador do conto em estudo se destaca por mostrar certo toque de
ingenuidade que se descobre, porém, como conjunto artimanhas, a fim de
manter seus pontos de vista. Esse aparente toque ingênuo revela, sob outro
ângulo, alguma ironia bem construída. O personagem-narrador expõe
argumentos que mantêm o leitor atento, no intuito de descobrir se ele, afinal, é
vítima ou montou cuidadoso plano, com a finalidade de organizar vida
economicamente equilibrada.
José Clemente POZENATO
Pozenato nasceu em São Francisco de Paula (RS), no ano de 1938.
Ordenou-se sacerdote em 1962. Dez anos depois, abandonou a vida religiosa.
Foi professor na Universidade de Caxias do Sul. É autor de ficção, poemas e
ensaios.
Algumas das obras dele: Vária figura (1971), Carta de viagem (1981),
Meridiano (1982) – poemas; O regional e o universal na literatura gaúcha (1974)
– ensaio; O quatrilho (1985), O caso do martelo (1985), O jacaré da lagoa (1991);
O limpador de fogões (1998) – ficção.
O quatrilho
(capítulo 4)
Aurélio Gardone estava na porta, olhando a chuva, quando chegou o
cortejo dos noivos e convidados, escorrendo água das capas e chapéus. Na
frente de todos viu Teresa, acenando alegremente para ele. Sentiu um repuxão
no braço, que no entanto permaneceu colado ao corpo, sem dar resposta. Todos
foram apeando e atando os animais nas árvores e nos cepos da casa, com as
capas estendidas sobre os arreios, porque voltava a chover. Teresa correu para
a porta, onde ele estava, e o abraçou com força:
– Vos recebo por pai – disse ela.
– Te recebo por filha – murmurou Aurélio Gardone.
Teresa se afastou dele um passo, olhou-o sorridente e, num impulso, deulhe dois beijos estalados, um em cada face. E já estava abraçando as moças,
recebendo-as por cunhadas e voando para o quarto, dizendo que ia trocar os
449
sapatos molhados. Aurélio Gardone continuou recebendo os cumprimentos dos
que chegavam, mas o que ainda sentia era a impressão do abraço e dos beijos
de Teresa, seu rosto molhado de chuva, o cheiro de flor. Alguma coisa morta,
bem no fundo dele, parecia dar sinal de vida. Sem se dar conta, ficou esperando
que ela apontasse de novo na porta do quarto. E ela apareceu rindo, arrastando
Ângelo pelo braço. Deixou o marido na sala, entregue às brincadeiras maliciosas
dos homens, e se dirigiu para a cozinha. Aurélio Gardone sentiu um vago ciúme
quando ela passou sem lhe dar atenção. Se a cozinha não estivesse cheia de
mulheres, gostaria de agora ir se enfiar no seu canto, atrás do fogão, e fumar um
cigarro. Assim mesmo chegou até a porta. Dosolina e Bambina pareciam
atrapalhadas, com toda aquela gente espremida dentro de casa, cheirando a
suor e roupas molhadas. Por sorte, tia Gema tomava conta da situação e dava
ordens à esquerda e à direita. Aurélio Gardone achava tia Gema uma mulher
disposta e despachada, mas podia fazer menos espalhafato e menos barulho.
– Fora, fora daqui, aqui mando eu – gritou tia Gema para Teresa, assim
que a viu entrar na cozinha. – Vai cuidar do teu marido. Amanhã e depois não
vai te faltar trabalho. Descansa para hoje de noite.
E Teresa ria, concordava, achava engraçado. Tia Gema berrava:
– Quem não me obedece eu empurro para debaixo da chuva. Quem não
ajuda também não estorva.
E despachava mulheres com louça, pratos de comida, garrafas de vinho.
Teresa retornou à sala, pelo corredor coberto, e de novo não o viu quando
passou. Estava entretida demais com a festa. Aurélio Gardone sentia-se como
um peixe fora da água, em sua própria casa. Pelo seu gosto, não teria havido
festa nenhuma, ao menos não na sua casa. Mas ninguém mais lhe perguntava
a opinião e, mesmo que perguntassem, nada teria respondido. Os negócios da
casa lhe davam incômodo, e ele queria paz. Já não tinha ido à igreja porque
preferia ficar na toca. É verdade que tinha uma boa desculpa: emprestara ao
filho a jaqueta de casimira. Mesmo a desculpa era desnecessária, porque
ninguém iria lhe perguntar por que não tinha ido. Pelo menos isso havia
conseguido: ninguém se importava mais com o que ele fazia ou deixava de fazer.
Como agora. Ninguém vinha falar com ele. Era como se ele não existisse para
os outros.
Tia Gema tomava conta da sala, mandava os homens sentar à mesa, os
noivos à cabeceira. Ela veio arrastá-lo pelo braço, e Aurélio Gardone se deixou
levar até o lado de Ângelo.
– Vem cá, vem cá, senta aqui – gritava ela. – O pai do noivo tem que ficar
aqui. Não tem lugar para todos, vamos fazer duas mesadas. Primi i ómini, os
homens não têm paciência de esperar, depois as mulheres.
Onde estava, Aurélio Gardone não ia poder tomar todo o vinho que
quisesse. O filho, ao lado, estaria medindo cada copo, como se ele fosse criança.
450
Por sorte, sentou a seu lado o compadre Cósimo, firme nos seus quase oitenta
anos e mais firme ainda no vinho. Estava ali um bom parceiro. Não para
conversar. Disso Aurélio Gardone não fazia questão. Mas podiam tomar vinho
juntos. Ângelo não teria coragem de impedir seu padrinho de casamento de
tomar um pouco mais.
– E alora, compare? – falou o velho Cósimo, molhando um pedaço de pão
no vinho. – Agora começa a esvaziar a casa. Foi o primeiro. Vai ver como todos
saem sem a gente nem se dar conta.
Aurélio Gardone respondeu com um resmungo. Que se fossem todos,
pensou, não estava se importando com isso. Compadre Cósimo encheu-lhe o
copo de vinho:
– Beve, compare, che'l vin no fa mal. Hoje é festa.
Aurélio Gardone espiou o filho por baixo das sobrancelhas. A boca lhe ardia
de vontade de beber. Pegou o copo e esvaziou-o de uma vez. Compadre Cósimo
tornou a enchê-lo:
– Bravo, compare. Vamos fazer uma bebedeira nós dois. Femo una ciùca,
e dopo cantemo. Não repara na cara feia do Ângelo, eu sou o padrinho dele e
eu mando nele. E hoje eu mando que nós dois vamos fazer uma bela bebedeira.
Por que é que acha que cheguei aos oitenta anos? E com toda a força de
homem. Se não acredita, pergunta para a minha velha. – Riu, piscando
maliciosamente um olho. – Eu já disse para a Marieta, a minha velha: na minha
hora de morrer quero um bom copo de vinho, tirado da pipa na hora. Se a gente
tem de morrer, ao menos que se morra com gosto.
A conversa do velho Cósimo estava agradando a Aurélio. Mesmo porque
já não era uma conversa com ele e, portanto, não precisava estar dando
resposta. Todos ao redor, Teresa, Ângelo, o pai de Teresa, todos davam atenção
ao velho. Ele se entusiasmava:
– Tu, Teresa, faz o Ângelo tomar vinho. De manhã, de meio-dia, de noite.
Ele precisa de sangue para ter força de homem. Eu sei que ele não gosta muito.
Ei, Ângelo, não faz essa cara.
– Eu devia ter me casado com o senhor – riu Teresa.
– E garanto que não se arrependia – riu o velho Cósimo com vontade. –
Olha – acrescentou, fingindo falar em segredo – se o Ângelo fraquejar esta noite,
o Cósimo está aqui firme.
Teresa deu uma gargalhada: – E a Marieta? Te copa co la mêscola. Te
pega com o pau da polenta.
– Ma che! – fez ele abrindo os braços. – Eu despacho a Marieta. Ei, Ângelo,
não quer fazer uma troca? Te dou ainda uma mula de volta.
451
Aurélio Gardone tornou a esvaziar o copo, enquanto os outros riam.
Falavam todos juntos, as vozes cada vez mais altas. Ele assim se sentia de novo
sozinho, como gostava. Via as travessas de massa e leitão assado se
esvaziando, o vinho baixando nos garrafões, o sol, de repente, entrando pela
janela. No fundo da mesa, um grupo ensaiava cantar, quando tia Gema entrou
na sala adentro, aos berros:
– Fora, fora tùti. Vão se embebedar lá fora. As mulheres de vocês ainda
estão com as tripas roncando. Fora, fora daqui. Os noivos ficam, os noivos ficam,
o que é que estão pensando. Nós, mulheres, também queremos olhar bem os
noivos. Olha que lindos! Parecem dois anjinhos.
Aurélio Gardone levantou-se. Não se sentiu pesado, ao contrário. Bem que
gostaria de levar consigo uma garrafa e continuar bebendo sozinho,
descansando, no paiol. Só de pensar nisso sentiu um alvoroço por dentro.
Aproveitando a confusão, esgueirou-se até a cozinha e arrecadou um garrafão
de vinho e uma caneca. Contornou a casa e, sem ser percebido, refugiou-se no
paiol, entre as palhas de milho. O ruído da festa chegava amortecido. Tirou a
tampa de palha do garrafão e encheu a caneca. Lá fora, vozes, cada vez mais
fortes, cantavam:
Sul ponte di Bassano
Noi ci darêm la mano...
A cabeça leve, Aurélio Gardone viajava. Bassano, Bolzano, Beluno. O frio
de matar, a fome, o medo do senhorio. Os pais tristes, sem comida para dar aos
filhos. O peixinho que ele pegara com barbante no canal e a pequena festa. As
tripas de galinha assadas na chapa, um verdadeiro banquete.
Noi ci darêm la mano
Per un bacin d'amor...
Rosa. A sua Rosa. Lembrava tudo daquele primeiro dia. Debaixo de um
àlbaro sem folhas, ele com vergonha da camisa remendada, e os olhos
brilhantes de Rosa que pareciam derretê-lo por dentro. Ele lhe tomara a mão,
pequena e macia. Parecia-lhe estar segurando um passarinho. E o medo de que
ele de repente voasse. A sua Rosa. Jurou para si mesmo que não a deixaria
viver na miséria, que faria dela uma signora. Por causa desse juramento é que
embarcaram para a América, no dia seguinte ao do casamento. Que sonhos eles
tinham no navio! Uma casa grande, cheia de filhos, muitas vacas no pasto, belas
colheitas de trigo para terem pão no ano inteiro, dinheiro para se vestirem de
seda e casimira, perfumes para Rosa, charutos para ele...
Bela ciavàda. Aurélio Gardone lembra como se fosse hoje. Quando chegou
na colônia que lhe foi destinada, deixando Rosa no barracão dos imigrantes, e
viu a altura das árvores que teria de derrubar para plantar ao menos umas covas
de milho, chorou. Parecia ter ficado sem força. E foi chorando que deu a primeira
452
machadada, e outra, e outra. A primeira árvore caiu, e ele deu um grito de alegria.
Alguns dias depois tinha já erguido um rancho e trouxe a sua Rosa. Ela ria,
saltava sobre os troncos caídos, achava graça dos gritos dos macacos, divertiase em cozinhar a polenta sobre três pedras, debaixo de sol e de chuva. Mas à
noite se agarrava nele. Ainda agora pode sentir as unhas dela cravadas em seu
ombro. E com que alegria comeram o primeiro pão de trigo, duro como uma
pedra, por falta de fermento. Ângelo era então recém-nascido. Rosa fez com que
ele também provasse o pão, como augúrio de que nunca passaria fome.
Esperando já a Dosolina, Rosa o ajudava a rachar as toras de pinheiro para a
sua primeira casa de verdade. Foi então que a pobrezinha esmagou um dedo, e
nunca mais lhe nasceu a unha. Grande signora Aurélio estava fazendo. Ainda
agora vê o sangue e tem que encher de novo a caneca de vinho e esvaziá-la de
um trago. Aurélio Gardone olha as paredes do paiol. São estas as tábuas que
fizeram juntos. Esta foi a casa em que nasceram quase todos os seus filhos. Ali,
onde estava sentado, Rosa o abraçou chorando quando ele lhe trouxe o primeiro
presente de verdade: um corte de chita com flores vermelhas. Como a sua Rosa
ficava linda naquele vestido! Parecia que os olhos e os cabelos dela ficavam
mais pretos, mais brilhantes. As lágrimas correm pelo rosto de Aurélio Gardone.
Parece-lhe que Rosa se aproxima por trás dele, passa-lhe a mão pelos cabelos,
pede-lhe que não chore, que ela está contente, é finalmente uma signora. Se ele
não acredita, olhe então para ver como está vestida, e tem brincos de ouro, e a
unha voltou a nascer. Aurélio Gardone não tem coragem de olhar para trás. Ela
está mentindo para o consolar. Toma outra caneca de vinho e sente que o vinho
lhe escorre pelo peito. A cabeça está pesada, e Teresa está na sua frente,
sorrindo. Dá-lhe dois beijos no rosto. Aurélio Gardone estende a mão para tocar
os cabelos negros de Teresa, uma bela signora. Seus dedos não tocam em
nada, Teresa desaparece, e ele cai pesadamente sobre as palhas.
Acorda com o canto do galo. Não há mais ruído de festa. Levanta-se, o
corpo dolorido, e vai para a cozinha, onde acende o fogo e põe água para
aquecer. No clarão das chamas, localiza a cuia do chimarrão e a erva e se
acomoda no seu canto. Tem muitas coisas ainda a lembrar da sua Rosa.
Comentários ao capítulo 4 de O quatrilho.
O romance O quatrilho representa exitosa participação temática da
colonização italiana na serra gaúcha, no âmbito da arte literária produzida no Rio
Grande do Sul. Costumeiramente, a temática da literatura gaúcha focava o
campo aberto, o gaúcho a cavalo. Sobre a colonização alemã, no estado, já se
conhecia importante contribuição literária, em prosa e verso. Também a crítica,
especialmente pela imprensa, iniciada, no Rio Grande do Sul, por alemães
imigrados, representou as primeiras experiências de que se tem notícia. Ao lado
de outras contribuições, de outras etnias e nacionalidades, essas obras
diversificaram a proposta temática e até a estilística, na literatura produzida no
estado gaúcho.
453
Não apenas de pontos típicos se alimentam o capítulo e o romance
observado. Os personagens, como se percebe no trecho escolhido, têm
personalidades fortes, de teor humano e artístico. O que se leu aqui é o começo
de um casamento. Apesar do início bonito, algo mais forte que o costume e a
necessidade havia de sobrevoar o ambiente narrativo. Dentro dos personagens,
que definitivamente alçam o texto a romance de estrutura caraterística desse tipo
narrativo, brotam e se desenvolvem potências humanas que haverão de unir uns
e desunir outros; alegrar alguns e punir aleatoriamente outros.
JOÃO UBALDO Ribeiro
Nasceu em 1941 em Itaparica (BA). Faleceu no Rio de Janeiro, em 2014.
Foi jornalista e professor. Participou de algumas coletâneas antes de publicar o
primeiro livro, intitulado Setembro não tem sentido, em 1968. Com o segundo
livro, Sargento Getúlio (1971) começou a conquistar renome.
Morou nos EUA, em Portugal e na Alemanha. Participou de adaptações de
textos seus e de terceiros para televisão e cinema. Atualmente assina textos
semanais nos jornais brasileiros.
É autor de obras reconhecidas nacionalmente, como Livro de histórias e
Viva o povo brasileiro. Foi autor de contos, crônicas e romances.
Livro de histórias
(excerto do conto Já podeis da pátria filhos)
Mesmo assim estamos perdendo, e Honorino já vai dando sinal de que não
aguenta mais correr, e na defesa temos grande pressão japonesa, no mesmo
jeito, tudo de bolo. Felizmente, Cremildo já tinha tido permissão do juiz para jogar
sem chuteira, e cada pontapé que ele dava com aqueles cascos que Deus lhe
deu espalhava diversos japoneses e descontrolava o ataque estrangeiro. Poroba
também aprendeu a escorar as bicudas dos americanos. De vez em quando, o
americano acertava a bicuda em cheio, e Poroba calçava e subia com bola e
tudo. Mas escorava, e esse é o heroísmo do atleta brasileiro, porque, depois do
jogo, Poroba passou muito tempo com zumbido nos ouvidos, dos solavancos
que ele levava, toda vez que escorava uma bicuda.
Está se vendo que a situação não era boa, mas podia ser notado que o
japonês do gol estava cada vez mais aporrinhado com as dedadas de Jonga,
inclusive porque Delegado também tirava suas lasquinhas de vez em quando. O
japonês fez diversas caretas e foi piorando depois do gol mais sensacional da
tarde, que foi Digaí, que até agora não tinha pegado na bola. Digaí pegou a bola
solto na ponta esquerda, porque um beque americano foi rebater de primeira e
ela espirrou para o lado, e o americano ficou carrapateado sem entender nada.
Digaí ficou até meio sem graça e começou a dar com o canto do pé na bola,
doido para aparecer alguém para receber o passe, mas – é por isso que eu digo,
454
torcida vale muito – todo mundo começou a gritar “digaí, louro, digaí, louro!” e
Digaí ficou mais do que emputecido. Até hoje eu fico pensando se Digaí, que o
nome cristão é Juvenal mas só a mãe dele chama ele de Juvenal, acha que
aquela gritaria toda vem do goleiro, porque ele parte para cima do goleiro. Quem
já quis segurar um maluco atacado sabe como é para segurar Digaí, precisa um
destacamento de homens dobrados e mesmo assim com uns porretes. Então
seu Digaí faz uma diagonal pelo bico da área e um japonês que cercou ele tomou
uma peitada que até hoje aquele japonês não compreendeu e, quando chega
bem no bico da área, seu Digaí me dá um cacete que quase a bola fica encaixada
no ânglio superior direito da trave do japonês, mas não ficou: bateu no ânglio,
voltou, bateu na cabeça do japonês e entrou e sacudiu o véu da noiva, só que
não tinha véu, mas também não tinha noiva e gol do Brasil! Carlito Bofe, que
estava tomando conta do foguete da vitória, não aguentou e soltou a pamonha,
catapriutabum! Marcador igualado e Digaí abraçadíssimo e perguntando cadê
meu papagaio, cadê o papagaio, me dê meu papagaio. Esqueci de dizer que o
papagaio de Digaí é finado, porque ele enchia a boca de água e barrufava o
papagaio para ele aprender a falar, de sorte que deve ter afogado o bicho numa
certa feita dessas, ou então matado de defluxo.
Mas o empate não serve a quem defende o seu país, mesmo quando ele
empata a gente. Honorino já está botando os bofes pela boca, mesmo porque,
agora, além do americano está um japonês marcando ele. Não pegam, mas
chateiam, inclusive japonês não cansa, todo mundo sabe disso. Mas como
ninguém marcava João Baguinha, que até agora não tinha feito nada a não ser
reclamar do juiz e correr para abraçar quem fazia gol, a redonda acabou
sobrando para ele na intermediária dos gringos e ele aí deu um esticão para
dentro da área, uma coisa linda, que só se acredita que foi João Baguinha porque
se viu. O goleiro deles sai e arma o bote, mas nisso Delegado vem de lá e enfia
o dedo na bunda do japonês e o japonês não quis acordo. Revirou o corpo e deu
uma pezada na cara de Delegado que Delegado nem catou a ficha. Caiu inteiro
no meio da área. Temos aí um pênalti claro, mas o japonês avançou para o juiz
e disse ele mete dedo no meu trazezo, ele mete no meu trazezo, isto seu
Delegado todo estatelado no gramado, com um lado da cara inchado e fazendo
careta com o outro. João Baguinha, que era especialista nisso, veio logo esticar
as pernas de Delegado, mas ele só se levantou quando disseram que iam aplicar
uma injeção e assim mesmo estava meio bambo. Então o juiz botou Delegado
para se perfilar assim com as mãos nas costas e disse seu Delegado, o senhor
dá a sua palavra de honra de esportista? Dou sim senhor, disse Delegado. O
senhor, disse o juiz, dá sua palavra de honra de esportista como não meteu o
dedo no traseiro do goleiro adversário? E Delegado não era besta de dizer que
não dava, senão depois do jogo ele ia ver onde a gente socava a honra de
esportista dele, honra é a da pátria amada que ali a gente está defendendo, eles
levam o metal mas não levam a flâmula. Aí o juiz apontou para a marca do pênalti
e o japonês quase vira um baiacu de tanto inchar as bochechas, sabe-se que o
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japonês e o chinês são povos de maior capacidade de inchar as bochechas. Eu
adentrei o tapete verde, com a finalidade de declarar que o São Lourenço não
aprovava o tumulto e que ou respeitavam o juiz ou eu tirava o time do campo e
considerava o jogo ganho e aí não me responsabilizava pela conduta dos meus
atletas, que era tudo rapazes de sangue quente. Eu sei que acabou Cremildo se
dirigindo para a marca penal e a última coisa que o japonês viu foi o pé de
Cremildo se levantando, porque se tem uma coisa que Cremildo sabe fazer, essa
coisa é dar um porrete fixe, desses que a bola entorta. Tive que dar um esporro
em Carlito Bofe, porque ele já tinha gasto nosso foguete no gol de empate e o
jogo terminando e o time todo se fechando na defesa. Didi aprendeu que, se
batesse os pés na frente do gringo que estava com a bola, o gringo se assustava
pensando que Didi ia dar um chute nele e soltava o esférico. Vitória do Brasil,
ninguém envergonhou a pátria. Muita gente pergunta se, em vez de ganhar no
futebol, não era melhor a gente viver bem, igual aos gringos vivem? Isso
demonstra ignorância, porque se sabe que ao gringo interessa mostrar que a
raça deles é a melhor, por isso que Hitler mandou matar todos os alemães que
não ganharam nas olimpíadas, para não envergonhar a raça. Daí se vê que,
ganhando no futebol, a melhor raça somos nós.
Comentários ao excerto de Já podeis da pátria filhos
O título do conto é tomado do primeiro verso do hino da Independência
(poema de Evaristo da Veiga e música de Dom Pedro I), ou seja, aponta a certo
(estranho) modo cívico de valorizar a pátria independente.
O excerto procura mostrar técnica a fonte temática. O discurso observável
reelabora formas orais urbanas. Mostra a ambiência de superficialidade do
narrador e, pois, dos personagens, dada a circunstância. Sem fundamento
reflexivo, o narrador se faz opiniático e ridículo. Embora talvez o plano da obra
não pretenda isso, é isso que se constata. A explanação foca a narração duma
partida de futebol, envolvida em invenção e parcialidade, olhar de único
observador. Talvez mais importante que tudo seja conclusão a que o texto pode
levar o leitor: os mitos enganadores decolam de ambientes hipoteticamente
insuspeitos para isso, ou o falso se justifica para existir.
A camada social focada é a população urbana de poucos horizontes, o que
certamente não é novidade na literatura brasileira. O estilo e a proposta
ideológica da obra, pelo que ficou anotado, sim, aparecem como importantes
contribuições.
DARCY RIBEIRO
Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros (MG) em 1922 e faleceu em 1997,
em Brasília. Foi antropólogo. Dedicou os primeiros dez anos de vida profissional
ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Nesse
456
período, fundou o Museu do Índio e estabeleceu os princípios ecológicos da
criação do Parque Indígena do Xingu. Escreveu vasta obra etnográfica e de
defesa da causa indígena. Elaborou para a Unesco estudo do impacto da
civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século 20 e colaborou com
a Organização Internacional do Trabalho na preparação de um manual sobre os
povos aborígenes de todo o mundo.
Produziu literatura em Maíra (1976), O mulo (1981), Utopia selvagem
(1982) e Migo (1988) – romances. Culturas e línguas indígenas do Brasil (1957);
Os índios e a civilização (1970); O Brasil como problema (1995) – ensaio.
Maíra
(excerto do capítulo Retorno)
Aqui estou, afinal, em Santa Cruz, esperando para ir adiante, voltando
atrás.
Ó Deus de Roma que não me iluminou
Ó Deus do céu que não me viu
Meu Deus, que invoquei em vão
Meu Deus que recusou a dádiva de mim
Ó Deus, Senhor, todo poderoso
Me dê meu ser perdido no que seria
Me dê a dignidade de uma cara mairum
Me dê a tranquilidade de uma alma mairum.
Só Deus, onipotente, me pode socorrer. Se é que Deus, onisciente, quer
se ocupar de mim ou de quem quer que seja.
Não sou o soldado que regressa vitorioso ou derrotado. Não sou o exilado
que retorna com saudades da raiz. Sou o outro em busca do um. Sou o que
resulto ser, ainda, nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram.
Saí menino, volto homem feito. Mas estou cheio de desgosto com o gosto
de minha boca. Só me consola pensar que a aldeia redonda lá está à minha
espera. Rominha minha... Talvez não esteja no mesmo lugar, mas estará
certamente dentro do grande cerco do Iparanã. A gente de cada clã, dentro de
cada casa, já não será a mesma. Muitos estarão velhos. Alguns haverão morrido
nesses anos e só serão visíveis ao velho aroe. Muitos, nascidos depois, serão
homens e mulheres. Quantos filhos eu tenho de minha irmã? O velho tuxaua
Anacã, meu tio clânico, estará vivo? Quem atará, agora, o nó da vergonha nos
membros dos homens? Estará vivo o velho aroe Remui, meu pai verdadeiro, que
me gerou no ventre de Moitá? Meu velho pai continuará cumprindo a sua sina
de aroe, vendo e conversando com os vivos e com os mortos? Remui, guia
místico de duas comunidades, sacerdote verdadeiro de Maíra-Coraci, o Sol,
como te quero rever. Minhas irmãs e meus irmãos, tantos, da banda jubamarela
do nascente, que será deles? Meus cunhados, meus sogros, meus enteados da
banda azul-ouí, como serão? Quem estará a minha espera para ser a minha
457
mulher? Quem há de levar no ventre para a banda de lá a minha semente de
aroe?
Para eles volto, regresso, no desejo de retornar a um convívio que eu nunca
deveria ter rompido. Com que olhos eles me olharão? Que ao menos seja com
a mesma entranhada ternura com que eu olharei para eles. Vendo, com doçura,
a velhice nos que conheci maduros. Vendo, com gosto, nos meninos de ontem,
os homens feitos de hoje. Vendo, com amor, toda a gente nova que nada sabe
de mim.
Como saí muito menino, mas fornido de ossos e coberto de carnes firmes,
eles buscarão em mim a estatura que houvera tido se não fossem tantas pestes
e asmas desses ásperos invernos romanos. Se não estivesse aí a minha
memória para dizer–me que eu sou eu; se não estivesse aí tanta lembrança me
vinculando ao que fui, eu mesmo não me reconheceria no homem esquálido,
vergado, que volta para a casa. Excetuando a memória que nos ata aos dois,
que temos nós de comum? Meus idos podiam ser de outro. Eu realizo a mais
improvável das minhas possibilidades. Nada tenho com o menino de então, ou
quase nada. Com o homem que eu seria menos ainda. Sou apenas o desejo
ardente de vir a ser um pouco do que poderia ter sido, se não fossem tantos
desencontros.
Meu Deus pai, criador do céu e da terra
Meu Deus filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor
Morto na Cruz, por vontade do Pai, para nos salvar
(Salvar quem se houvera salvo sem o Teu santo sangue)
Meu pobre Anjo das Trevas, servo rebelde do Senhor
Minha Nossa Senhora: útero de Deus.
Meu Deus-Pai, mairum: Maíra-Monan
(Com seu membro imenso crescendo debaixo da
terra, como uma raiz para todas a mulheres)
Meu Deus Filho: Maíra-Coraci, Sol luminoso.
Micura, Teu irmão fétido: gambá sariguê
Mosaingar, homem-mulher, ventre de Deus
Deus Pai, Deus Filho, Arcanjo Decaído
Maria Santíssima, Açucena do Senhor
Maíra-Manon, Maíra-Coraci, Micura
Mosaingar: parida dos gêmeos de Deus
Meu Deus de tantas caras, eu que tanto creio como
descreio, peço a cada um e a todos; rezo e peço humildemente;
Que eu não chegue lá, se não for de Tua vontade
Que eu só chegue lá, se essa é Tua vontade
Mas, se chegar, que eu possa ser um entre todos
Indistinguível. Indiferenciável. Inconfundível
Um índio mairum dentro do povo mairum.
Sei bem que estou variando outra vez, com essas minhas rezas
entreveradas. Dói pensar na dor que elas provocavam no velho padre Ceschiatti,
sempre cheio de horror e de tristeza quando eu lhe repetia uma dessas minhas
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loucas invocações. A mim também me doía com um sentimento fundo de
pecado, de fracasso e de frustração. Hoje, não me importa. Sei, afinal, que hoje
e sempre rezarei assim.
Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim está ele.
Ele sou eu. Eu sou ele, sou nós e assim havemos de viver. O velho confessor
não estará jamais no futuro, esperando por mim, antes da missa para me
esvaziar outra vez de mim. Eu também não estarei jamais tremendo de medo
dessa hora da verdade, da antiga verdade, da verdade dos outros. Agora viverei
com a minha verdade, a minha verdade entreverada. Deus do céu, meu pai e
meu tio. Deus é Deus e Maíra. Maíra é Deus.
Este é meu caminho de volta a Mairum, o povo de Maíra. Lá tenho o meu
posto, o meu lugar. Lá sou um homem da banda do nascente: dos que veem, de
madrugada, o nascer do Sol, sentados no fundo das suas casas. Sou dos que
seguem com respeito o grande rodeio d’Ele pela enormidade do céu. Sou dos
que se sentam juntos, todas as tardes, ali no pátio, do outro lado do baíto, para
ver o pôr do Sol. Sou um Jaguar, do clã que dá os tuxauas, dos que jamais
matam um jaguar-onça, mas que cobram uma pele de onça de cada homem que
queira ser muito homem. Principalmente daquele que queira se deitar com uma
das minhas irmãs, com uma jaguar. Sou o recíproco dos carcarás, que estão do
outro lado da aldeia, atrás do baíto. Da nossa casa é impossível ver a casa deles.
Da casa deles é impossível ver a nossa casa. Mas eles e nós formamos uma
unidade, um verdadeiro nós, aquele nós mais profundo, de quem sabe que não
pode viver nem morrer sem o outro.
Lá, eu, o Avá, sou irmão, o tio, o cunhado, o genro de muitos e muitos
homens, de muitas e muitas mulheres. Com eles viverei, sabendo, só de olhálos, quem é quem, de onde vem, que espera de mim, o que posso e devo fazer
em relação a eles. Andando na aldeia entre as mulheres ou sentado no baíto,
embolado com os outros homens, verei e distinguirei em cada qual sua natureza
de pacu, de tapir, de tracajá, de quati, sabendo só por isso, de cada um, se é
casável ou não comigo ou com os outros, ou se são impedidos, proibidos,
incestuosos. Cada um deles também me reconhecerá como o tuxauarã Avá, da
casa do Jaguar, o uruantãremu que reencarna Uruantã, o antigo tuxaua, irmão
de minha avó Putir que será reencarnado no neto de minha irmã Pinu, que há de
nascer.
Tudo isso vou reviver. Tudo isso que eu me esforcei tanto para que não
morresse dentro de mim, mas que não podia viver, senão na lembrança, agora
vai reviver. Tudo isso, amanhã estará pulsando como a vida lá na aldeia pra mim
e para todos. Lá a verei, a ela, aquela gaviã azul que será minha mulher.
Verei também e quem sabe até conhecerei, na escuridão da noite do pátio,
uma daquelas mirixorãs. Como eu gostaria, hoje, de ter uma daquelas mirixorãs
aqui deitada comigo, me bolinando, surucucando. Elas vêm dos clãs novos, dos
que chegaram mais tarde. Por isso vivem no lado de cima, no espaço que a roda
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da aldeia abriu para eles, sabe-se lá há quantos séculos. São de certa forma
inferiores. Não, talvez não sejam inferiores. Melhor é dizer que são bravos. Ainda
estão sendo amansados. Dizem que eles entraram para o mundo dos Mairuns
como cativos de guerra. Mas sendo gente muito bruta e covarde, não podiam
ser comidos. Foram ficando ali, foram vivendo ali e foram se misturando conosco.
Um dia aprenderam a fazer clãs como os nossos. Depois, não se sabe quando
terá sido, se integraram na aldeia.
Mas a situação dos clãs novos é muito particular. O aroe, dono da fala, que
conversa com os mortos, nunca fala com os mortos deles. É como se eles
morressem definitivamente, aqui na terra, quando morrem. Há uma cerimônia
importante que eles não podem ver. Esperam que termine, acampados na mata.
Só à noite entram na aldeia e ficam por ali para ver o final da cerimônia, mas
andam e olham com discriminação, como se não estivessem presentes. Nós
passamos por eles e não os vemos. Só de manhã eles tomam sua vingança,
vencendo nossos melhores campeões na luta de corpo-a-corpo. Para isso
treinam e retreinam o ano inteiro. São os melhores lutadores.
Mas eu me lembrava era das mirixorãs que saem desses clãs novos. São
escolhidas, entre as meninas mais bonitas, para participarem das cerimônias da
iniciação dos jovens mairuns: dos clãs antigos e se recluem com elas. São duas
ou três para cada geração. Declaradas mirixorãs, não podem nunca tomar
marido. Quando terminam as cerimônias, elas são as mais bonitas, as mais
enfeitadas, porque sua beleza é orgulho de todos os mairuns. Permanecem por
muitos anos com o cabelo da testa crescido até o queixo, que elas jogam para
trás com faceirice. As outras mulheres usam franja.
De fato, são mais mulheres que as mulheres comuns e talvez até mais
mairuns. Não podendo ser tomadas como esposas, ficam como que suspensas
no ar. São mulheres de todos. São mulheres de ninguém. São mulheres de si
mesmas, porque se fazem desejadas de todos os homens. Foder com elas não
provoca ciúme em nenhuma mulher mairuna. Ao contrário, muitas dão ao marido
uma faca ou um adorno dizendo: – Vá buscar Medá que é linda, ela há de ser
carinhosa com você. Talvez uma noite eu cubra Medá. Medá não será mais. Ela
era mais velha que eu, hoje estará velhuscona.
Comentários ao capítulo Retorno do romance Maíra
O romance Maíra obtém o título de nome de deus do povo mairum, etnia
brasileira. A narrativa executa cruzamento de um corpo que perdeu a alma, o
índio Isaías, enviado à Europa a tornar-se religioso: perde a condição de ser
índio, embora, retorne ao espaço da tribo, mas consegue o mesmo com a alma
que lhe fugiu. Cruza-se com ele Alma, moça branca de muitas experiências
humanas. Ela procura a floresta, o recanto mais interno do coração do Brasil. Ela
também quer a alma índia do povo mairum. O hipotético casamento do índio
(Isaías) com a moça urbana não se realiza, porque ambos não mais são o que
foram nem conseguem ser o que pretendem. Já não são inteiros nem naturais.
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Padecem da falta do caráter, do sinete, do que deve estar dentro, mas diluiu-se
no não-ser. Perde-se, pois, a vida de ambos, que o tempo leva.
A experiência estilística também é marcante. Do léxico à sintaxe, da fala
despretensiosa do dia-a-dia às orações e ritos sagrados da tribo mairum, esse
largo espaço cultural se mescla ao idioma oficial, que é de origem europeia,
brasileiro. Antes dessas experiências assaz densas, apenas os românticos
tinham-se dedicado a reconstruir a alma ameríndia do Brasil. Naturalmente,
porém, com outros recursos, certamente bem menores, pelo conhecimento
pequeno que podiam ter poetas e romancistas do século 19. O avião e o barco
equipado levaram estudiosos, entre os quais o autor de Maíra, a regiões
desconhecidas dos brasileiros de origem europeia até pelo menos até meados
do século 20. Desse modo, o índio, essa metonímia imprecisa, começou a ser
foi visto pelos urbanos brasileiros como múltiplo, dono de multíplices culturas.
Do choque provocado por esse conhecimento, ainda que, apesar de tudo,
precário, foi possível a elaboração de obra com as dimensões que o romance
Maíra pode ostentar.
Marcelino TABAJARA Gutierrez RUAS
Nasceu em Uruguaiana (RS) em 1942. Cursou Arquitetura em Porto Alegre.
No início dos anos 70, perseguido pela polícia política, abandonou os estudos e
partiu para o exílio: Chile, Argentina, Dinamarca, São Tomé e Príncipe e
Portugal. Deu início à carreira de romancista com a publicação de A região
submersa em Portugal (1978) e na Dinamarca (1980). Em 1981 retornou ao
Brasil, fixando-se em Florianópolis. Diversificou suas atividades como ficcionista,
tradutor, publicitário, o cineasta e jornalista.
Principais obras dele: O amor de Pedro por João (1982); Os varões
assinalados (1985); Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (1990); Netto
perde sua alma (1995).
Os varões assinalados
(excerto do capítulo 31)
São mil cavaleiros e dois canhões marchando sob o vento e a chuva.
Marcham vergados sobre o pescoço dos cavalos. Os chapéus desabam nas
cabeças, dobrados pela força da água. Os ponchos estão encharcados e pesam.
Colam-se ao corpo dos homens e às ancas dos animais. Avançam
pesadamente. As patas afundam na água, prendem-se ao terreno arenoso, os
animais tropeçam. Avançam sem pausa, escolhendo o caminho entre tremedais
e charcos. Na frente, os estandartes pendem, vergados como os homens. Bento
Gonçalves sufoca a tosse. Tem uma manta enrolada ao pescoço e uma banda
de lã vermelha atada na cabeça. O chapéu está descido até os olhos, sobre a
banda de lã. Ela protege-lhe a nuca do vento. O vento é o minuano. Assobia, faz
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a chuva mudar a direção, torna-a quase horizontal, penetra entre as dobras do
abrigo, enregela o nariz e os dedos dos que não têm luvas – a maioria. Ao lado
direito de Bento Gonçalves vai Crescêncio. Quase não se vê seu rosto de índio
duro, seu bigode negro amarrado nas pontas debaixo do queixo, as
sobrancelhas que se unem num torvelinho escuro acima do nariz, os pequenos
olhos negros que não se espantam nunca e parecem adormecidos. Crescêncio
não tem luvas. Crescêncio nunca usou luvas e devota inconsciente desprezo a
quem as usa, como Bento Gonçalves e os italianos. Logo atrás deles vão
Garibaldi e Rossetti, lado a lado. Garibaldi usa um gorro de pelego de ovelha
que pediu para Anita fazer, sob sua orientação. E também um colete feito por
ela, amarrado na frente por tentos de couro cru. Sobre isso veste um poncho
pesado, com franjas, presente de Teixeira. O poncho é de lã, grosso, sólido,
quente, mas a água contínua e as rajadas de vento que os acometem desde o
dia da partida já o trespassou, e ele sente as costelas enregeladas e os dedos
endurecidos, apesar das luvas de couro. Vai de cabeça baixa, abrigando os
olhos do vento cortante e da água fria. Vê o pasto queimado pelo frio e devastado
pela água, os sulcos das patas dos cavalos que vão na dianteira. Quando ergue
os olhos, apenas vê uma paisagem cinzenta e árida, um céu invisível e uma
vegetação moribunda, descolorida, sem pássaros nem animais, como se o
mundo estivesse acabando, e eles fossem uma raça de retirantes escapando a
um flagelo universal. É impossível fumar, e Bento Gonçalves foi rigoroso quanto
a levar bebidas alcoólicas. Não têm vontade sequer de falar. Rossetti, a seu lado,
também marcha de cabeça baixa, protegendo-se. Rossetti não articulou frase
nenhuma desde que saíram. Garibaldi desconfia de que o metódico Luigi está
guardando as preciosas energias para as duras tarefas que os esperam ao fim
da marcha. Esta marcha é uma das suas obsessões. Ele instigou Domingos,
argumentou com Netto, persuadiu Gonçalves, insistiu com todo o Estado-Maior.
Rossetti marcha com as duas mãos escondidas dentro do poncho, curvado sobre
o cavalo, e de olhos cerrados, permitindo-se ver apenas sombras ao seu redor.
Talvez a única coluna dorsal ereta em todo o contingente seja a de Teixeira. Ele
recuperou um pouco de seu penacho, os ombros voltaram a endurecer-se, o
rosto tomou cores, mas a água impiedosa que cai fez seus bigodes – novamente
encerados – murcharem e colarem-se ao rosto emagrecido. A seu lado, Antunes
da Porciúncula, com uma manta cobrindo o rosto e o chapéu descido sobre os
olhos. Apenas se veem os olhos, semicerrados. Sua parte vulnerável ao frio é o
nariz – esse nariz fino, pontudo de aletas largas, que lhe dá melancólica aura de
profundidade e incita a imaginação das mocinhas a considerá-lo poeta. Antunes
anda sempre anotando num pequeno diário de capa de couro que guarda dentro
do dólmã, num bolso que pediu a sua mulher para costurar. Antunes usa luvas
de lã, inúteis. Estão encharcadas e não impedem que as mãos estejam tão
molhadas como a testa estrelada do cavalo. Às vezes, Antunes olha para os
lados e estremece. A paisagem é escorregadia, nebulosa, vegetal, bicho
cinzento muito grande, invertebrado, sobre o dorso do qual aquele
fantasmagórico grupo de homens cavalga curvado em silêncio, com uma
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vontade estranha, destinados a um sortilégio infernal. A chuva desaba sobre
eles, desaba sobre o lombo recurvo e pantanoso do bicho: Antunes pensa que
ele está se desfazendo, que a paisagem – o bicho lancinante e movediço – está
se desfazendo sob a chuva e o vento, o bicho os obriga – insetos – a caminhar
no dorso que se desfaz; e eles caminham. As patas cansadas dos cavalos
afundam na pele do bicho, enredam-se nos pelos do bicho, encharcam-se no
líquido gelado que segrega da pele do bicho. Mil homens. Não têm nome, com
exceção de seis. Marcham sobre o lombo da paisagem viva que se desfaz e os
engolirá adiante, onde está a cabeça do bicho e suas fauces abertas, a língua
ofegante. Garibaldi cochila. Abre o olho, sentindo coceira na mão. Examina-a.
Dá um grito que faz Rossetti voltar para ele a cabeça. Garibaldi não diz nada.
Rossetti torna a baixar a cabeça. Pensa que ouviu Garibaldi gritar. É impossível
saber. O vento zune. Esse vento só existe aqui. Os continentinos demonstram
um orgulho meio tolo em relação a ele – ao Minuano – como se fosse alguma
vantagem suportar o flagelo. É vento perverso, insidioso, que arremete como
obedecendo impulsos pré-estabelecidos, que investiga a vítima e joga-se sobre
ela como puma, buscando a parte vital. O minuano é vento polar: vem do sul
mais fundo, das geleiras da Patagônia, atravessando as vastidões do pampa
argentino onde não encontra obstáculo algum e vem semeando devastações,
minúsculas mortes, assobiando sua música lúgubre, arrancando lágrimas dos
olhos mais duros, inchando, crescendo, aumentando a força com os lamentos e
gemidos recolhidos no caminho, chegando ao pampa rio-grandense gordo,
pesado, mau. Outras vezes o Minuano é andino: desprende-se das alturas
geladas da cordilheira, desce rodopiando entre avalanches de neve, joga-se
vertiginosamente através de abismos de rocha e penhascos molhados,
arrastando condores e tribos guerreiras, precipita-se feroz, com um uivo mais
agudo, mais humano, mais dolorido e instala-se no pampa e o percorre faminto
e deslizante, fazendo estremecer os rebanhos, tiritar as choupanas, vacilar os
fogos nos galpões, vergar os angicos e cambarás, encrespar-se o lombo das
sangas. O Minuano os acomete. Na tarde cinzenta o Minuano cerca a expedição.
O Minuano a sitia, a torna encolhida, desmoralizada, indefesa. A expedição luta
contra um inimigo invisível, que zomba, que ri, que dá gargalhadas desvairadas
e que não se cansa, não recua, não dá folga, não esgota seus recursos. Um
inimigo que tem aliado poderoso: a chuva ininterrupta desde a partida, a chuva
metódica, nem grossa nem fina, que cai numa harmonia enlouquecedora e que
obedece aos caprichos do Minuano, mudando a direção em arremetidas
inesperadas, vindo de flanco, de frente, vertical, às vezes redemoinhando diante
de seus olhos como alucinação. Rossetti olha as bandeirolas tricolores na ponta
das lanças. Estão em tiras e se agitam para todos os lados, como possuídas.
Eram bandeirolas novas, feitas pelas mulheres dos republicanos, com muito
sacrifício e certo desperdício, já que era mais importante nesse inverno maldito
roupas mais grossas para a tropa. A metade dos mil homens não usa botas.
Enrolam os pés em mantas, em pedaços de pelego, improvisam sapatos de
couro. Alguns, para espanto de Rossetti, não usam nada nos pés e parecem não
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sentir o calamitoso frio que o vento aumenta. Na terceira noite não comeram
nada. Foi servido um caldo quente, água fervida com ossos, que beberam com
sofreguidão, protegendo os pratos de lata da chuva imperturbável. Fizeram alto
de quatro horas. Dois homens não levantaram na hora de partir. Garibaldi
sacudiu-os com energia, mas Crescêncio segurou o braço do italiano. Podia
deixá-los. Estavam mortos. O frio já fizera as primeiras baixas da batalha e
tinham ainda cinco dias pela frente. O destino era o sonho acalentado por
Domingos de Almeida e Rossetti, o ponto luminoso no fim do horrendo caminho
– para Antunes e seus devaneios as fauces sanguinolentas do longo e tortuoso
monstro que palmilhavam com suicida paciência. Rumavam para tomar um porto
do mar. A república continuava estrangulada. O porto de Laguna era miragem
distante. Agora, mil cavaleiros e dois canhões marcham sob vento e chuva para
sitiar, submeter e ocupar São José do Norte. É preciso esse porto: é a vida.
Comentários ao excerto do capítulo 31 de Os varões assinalados
O título do romance descende da estirpe camoniana, em referência ao
poema Os lusíadas. Narra o mais citado movimento revolucionário promovido e
sustentado pelos gaúchos no século 19 (1835-1945): a Revolução Farroupilha,
também conhecido como Guerra dos Farrapos. Apesar de movido contra o
governo central brasileiro, foi por esse movimento, ao ser a paz assinada com o
império, que o Rio Grande do Sul se integrou definitivamente ao Brasil, para
sempre.
Ruas narra o deslocamento de guerreiros, na tentativa de dominar um
porto, já que Porto Alegre e Rio Grande não estavam com os “republicanos” em
luta contra o império do Brasil. O fragmento transcrito mostra homens decididos
no enfrentamento contra a natureza quase insuportável, em território quase
desabitado. Cita nomes tidos como líderes do movimento político-guerreiro.
Expõe origens e inclemências do vento hibernal mais famoso no estado. No
confronto entre o minuano e a natureza humana, só os mais capazes o suportam.
Esses homens calados aparecem no trecho como “angicos e cambarás”, árvores
de madeiras resistentes e troncos fartos. O minuano aparece como uma frente
inimiga, mas, de certo, não é o inimigo que a guerra indigita, porque esse é
constituído de outros homens, que devem ser, parece, de condições análogas.
Resistir, não desistir são as inscrições que o texto carrega na frente do grupo
dos “mil homens” focalizados no excerto.
Os varões assinalados, pelo tema, participa da sequência de narrativas
longas sul-rio-grandenses que tematizam a Revolução Farroupilha.
Antecederam-no, p. ex., A divina pastora (1847) e O corsário (Caldre e Fião,
1849), Farrapo (Rodrigues, 1935), A prole do corvo (Assis Brasil, 1978).
Sucedeu-o, p. ex., A Guerra dos Farrapos (Cheuiche, 2003).
464
CHARLES KIEFER
Charles Kiefer nasceu em Três de Maio (RS), em 1958. Vive em Porto
Alegre. É professor, doutor em Letras e autor de romances, novelas, contos,
poemas e ensaios.
Parte da produção literária dele: Valsa para Bruno Stein (1986), A face do
abismo (1988), Quem faz gemer a terra (1991), O elo perdido (1996) e O
guardião da floresta (1997).
Algumas narrativas dele foram adaptadas ao teatro e ao cinema, como
Quem faz gemer a terra (teatro, 2002) e A valsa de Bruno Stein (cinema, 2007).
Quem faz gemer a terra
(excerto)
Uma história tem começo? A Bíblia sei que tem, mas começa no começo
dos começos. Eu não tenho tanta pretensão, bazófia é pra pascácio, a mim me
basta a história miúda, o rés do chão. O ar alto é pra montanha, eu sou parte da
canhada. Você, no meu lugar, contava o fim no início? O início no fim?
Começava a história com o fio da foice, o baque surdo da lâmina no pescoço do
soldado, a correria dos colonos pela praça, as bombas de gás e as pedradas?
Ou vinha de longe, sestroso, e principiava pelo meu grito, dor de bicho nenhum
conhecida, que eles já nascem plantados sobre as quatro patas, listos pro
caminhar e viver? E então? Vai querer a história reta, redonda, ou em vaivém?
Desde eu-menino sou bom nisso, tido e havido por loroteiro, língua-de-trapo,
mentiroso e outras pechas, só por nunca eu levar o arado pela mesma verga.
Minto? Não, mentir não minto, eu melhoro a verdade, ajeito ela, faço igual o
barbeiro, corto as pontas. Mentira era dizer que matei o soldado sem querer, que
essa minha mão direita levantou a foice sem comando, e outra mentira o alardear
que estava o acontecido em mim planeado, com querência e fanfarrice. Se um
sempre fazia tudo nos rompantes da vontade, a vida era um guerrear sem fim;
se sempre se podia fazer as coisas pensadas, desgraceira não havia. A hora da
raiva é a da cegueira; só o tempo faz a clarez.
Sim, eu levantei a foice, não nego, a foice que eu tinha usado tantas vezes
para fazer roça nova, e o sol bateu no aço, o sol bateu no aço limpo, o sol bateu
no sangue.
“Corre!”, alguém gritou.
E eu corri, desci a lomba e me escondi na prefeitura, com os outros
acampados que estavam escapando da guerra na praça. Os soldados cercaram
o prédio, ameaçavam invadir pra tirar à força os colonos lá de dentro.
Eu me sentei num degrau da escadaria e não consegui segurar os olhos
abertos, apesar da zoeira, do medo e do arrependimento. Na viagem até Porto
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Alegre eu fiquei ouvindo as rodas do ônibus comendo estrada, vendo o caminho
dos satélites e a luz das estrelas no céu, como eu fazia com meu avô, na tapera,
e com o Pedro, depois, na casa nova. Os outros dormiam e eu assuntava sobre
a vida minha de acampado. Ah! Se bastava olhar pra trás e tudo se resolvia!
Lembrei de outra noite indormida, cinco anos antes, a última que eu passei na
casa construída pelo pai, o Pedro e eu depois da morte de meu avô. Lembrei da
tapera, das caçadas, das pescarias, da mania de procurar ouro que deu no fata,
dos terços que a gente rezava. As lembranças vinham de cambulhada, feito linha
de anzol quando se enrola. Nestes três anos, trancado aqui, tive tempo pra botar
ordem em tudo. De primeiro, nem conseguia pensar, olhava pra essa minha mão
direita e chorava: eu tinha matado um homem. Depois, fui calmando. Agora, já
posso falar. Cada vez que conto a minha história, vejo ela melhor. Contar clareia.
E eu, quando conto, me vejo fora de mim: eu não sou eu, sou outro. Gosto do
outro que eu me sou. Quem conta é o outro? Eu me sou no que ele conta?
Comentários ao excerto de Quem faz gemer a terra
O breve romance Quem faz gemer a terra retoma vários aspectos centrais
da literatura produzida no Rio Grande do Sul. A construção do texto e a
constituição dos personagens, apesar da extensão da narrativa, não configuram
texto novelesco, mas romanesco.
O título parece ter sido tomado da primeira estrofe do poema O lunar de
Sepé. O poema foi dado a conhecer no Cancioneiro guasca (1910) de João
Simões Lopes Neto (Pré-modernismo). Esse poema foi coletado da cultura
popular gaúcha. Eis a estrofe: “Eram armas de Castela / Que vinham do mar de
além; / De Portugal também vinham, / Dizendo, por nosso bem; / Mas quem faz
gemer a terra... / Em nome da paz não vem!”
Sepé é o nome de um guarani que combateu os possessores armados na
luta pela posse das terras sul-rio-grandenses. O lunar citado é marca míticosimbólica de poder e liderança.
Quem faz gemer a terra retoma a questão da estrutura fundiária. Vale dizer:
focaliza o veio que foi aprofundado durante a vigência do romance de trinta,
especialmente com Cyro Martins e Ivan Pedro de Martins. O veio temático é
amplo, já que a literatura o tem utilizado de diversas maneias, em várias regiões
geográficas brasileiras. Assim, Quem faz gemer a terra rediscute o problema, a
partir de fato ocorrido em Porto Alegre, durante manifestações de grupos de
sem-terras, em movimento pela reforma agrária.
A técnica empregada por Kiefer no romance em análise tinha já sido
experienciada por Sinval Medina em Memorial de Santa Cruz (1983), que a
introduziu no romance gaúcho. Valeram-se ambos de imaginários relatos de
prisioneiros ao gravador de quem o teria ido ouvir na prisão.
466
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