Lei Maria da Penha: comentá

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Lei Maria da Penha: comentá
Lei Maria da Penha
comentada em uma perspectiva
jurídico-feminista
www.lumenjuris.com.br
Editores
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida
Adriano Pilatti
Alexandre Freitas Câmara
Alexandre Morais da Rosa
Augusto Mansur
Aury Lopes Jr.
Bernardo Gonçalves Fernandes
Cezar Roberto Bitencourt
Cristiano Chaves de Farias
Carlos Eduardo Adriano Japiassú
Cláudio Carneiro
Cristiano Rodrigues
Daniel Sarmento
Diego Araujo Campos
Emerson Garcia
Conselho Editorial
Fauzi Hassan Choukr
Felippe Borring Rocha
Firly Nascimento Filho
Frederico Price Grechi
Geraldo L. M. Prado
Gustavo Sénéchal de Goffredo
Helena Elias Pinto
Jean Carlos Fernandes
João Carlos Souto
João Marcelo de Lima Assafim
José dos Santos Carvalho Filho
Lúcio Antônio Chamon Junior
Luigi Bonizzato
Luis Carlos Alcoforado
Manoel Messias Peixinho
Marcellus Polastri Lima
Marco Aurélio Bezerra de Melo
Marcos Chut
Mônica Gusmão
Nelson Rosenvald
Nilo Batista
Paulo de Bessa Antunes
Paulo Rangel
Ricardo Lodi Ribeiro
Rodrigo Klippel
Salo de Carvalho
Sérgio André Rocha
Sidney Guerra
Conselheiro benemérito: Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam)
Conselho Consultivo
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Ricardo Máximo Gomes Ferraz
Sergio Demoro Hamilton
Társis Nametala Sarlo Jorge
Victor Gameiro Drummond
Álvaro Mayrink da Costa
Amilton Bueno de Carvalho
Andreya Mendes de Almeida Scherer
Navarro
Antonio Carlos Martins Soares
Artur de Brito Gueiros Souza
Caio de Oliveira Lima
Cesar Flores
Firly Nascimento Filho
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Francisco de Assis M. Tavares
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Carmen Hein de Campos
Organizadora
Lei Maria da Penha
comentada em uma perspectiva
jurídico-feminista
Editora Lumen Juris
Rio de Janeiro
2011
Copyright © 2011 by Livraria e Editora Lumen Juris Ltda
Categoria: Direito Penal
Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Revisão
Fabiane Simioni
A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.
não se responsabiliza pela originalidade desta obra.
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio
ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.
A violação de direitos autorais constitui crime
(Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 10.695, de 1º/07/2003),
sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações
diversas (Lei nº 9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
Colaboradoras e colaboradores ....................................................................... Apresentação.......................................................................................................
ix
xiii
Parte I
Razão e Sensibilidade:
Teoria Feminista do Direito e Lei Maria da Penha . .....................................
Carmen Hein de Campos
1
Lei Maria da Penha:
uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista.................................
Leila Linhares Barsted
13
O processo de criação, aprovação e implementação
da Lei Maria da Penha39
Myllena Calazans
Iáris Cortes
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional
dos Juizados Especiais – Fonaje no processo de elaboração
da Lei Maria da Penha . ....................................................................................
Rosane M. Reis Lavigne
Lei Maria da Penha no contexto do Estado Constitucional:
desigualando a desigualdade histórica .........................................................
Lenio Luiz Streck
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional
do Brasil...............................................................................................................
Flávia Piovesan
Silvia Pimentel
Avanços e obstáculos na implementação da Lei 11.340/2006......................
Wânia Pasinato
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica:
a experiência brasileira......................................................................................
Carmen Hein de Campos
Salo de Carvalho
65
93
101
119
143
Parte II
Interpretação jurídico feminista da lei
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º . .........................................
Comentários: Carmen Hein de Campos
173
Da violência doméstica e familiar – artigo 5º.................................................
Comentários: Fabiane Simioni e Rúbia Abs da Cruz
185
Da violência contra a mulher como uma violação
de direitos humanos – artigo 6º.......................................................................
Comentários: Maria Berenice Dias e Thiele Lopes Reinheimer
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º ...................................
Comentários: Virgínia Feix
195
201
Da assistência à mulher em situação
de violência doméstica e familiar – artigo 8º ................................................
Comentários: Alice Bianchini
215
Da assistência à mulher em situação
de violência doméstica e familiar – artigo 9º ................................................
Comentários: Ela Wiecko V. de Castilho
233
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12 . ..........................
Comentários: Adilson José Paulo Barbosa e Léia Tatiana Foscarini
247
Dos procedimentos – artigos 13 a 17...............................................................
Comentários: Fausto Rodrigues de Lima
265
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21 .................................
Comentários: Rosane M. Reis Lavigne e Cecilia Perlingeiro
289
Das medidas protetivas que obrigam o agressor – artigos 22.....................
Comentários: Juliana Garcia Belloque
307
Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigos 23 e 24 .............
Comentários: Samara Wilhelm Heerdt
315
Da atuação do Ministério Público – artigos 25 e 26......................................
Comentários: Fausto Rodrigues de Lima
327
Da assistência judiciária – artigos 27 e 28 ......................................................
Comentários: Juliana Garcia Belloque
337
Da equipe multidisciplinar – artigos 29 a 32 . ...............................................
Comentários: Shelma Lombardi de Kato
347
Das disposições transitórias e finais – artigos 33 a 40 . ................................
Comentários: Westei Conde y Martin Junior
357
Da inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 – artigos 41 a 46 ..............................
Comentários: Fauzi Hassan Choukr
367
Colaboradoras e colaboradores
Sílvia Pimentel, Professora doutora da PUC/SP, membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM,
membro da Comissão de Cidadania e Reprodução – CCR. Presidente do
Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Integrou o Consórcio de ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da
Penha.
Flávia Piovensan, Professora doutora da PUC/SP, membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM,
membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, membro
da UN High Level Task Force on the implementation of the right to development e do OAS Working Group para o monitoramento do Protocolo de
San Salvador em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais.
Leila Linhares Barsted, Advogada, Coordenadora Executiva da ONG CEPIA –
Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. Integrante do Comitê de
Especialistas MESECVI-CEVI da Organização dos Estados Americanos –
OEA para o monitoramento da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará). Integrou o
Consórcio de ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
Lênio Luiz Streck, Procurador de Justiça, RS. Pós-doutor em Direito, Professor
do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS.
Juliana Garcia Belloque, Defensora Pública, SP. Doutora em Direito Processual
Penal (USP). Professora coordenadora do curso de pós-graduação em Processo Penal da Universidade Católica de Santos. Membro do conselho editorial da Revista Brasileira de Ciências Criminais. Integrou o Consórcio de
ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
Ela Wiecko de Castilhos, Procuradora da República, DF. Doutora em Direito.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNB. Colaborou
na elaboração do anteprojeto de Lei Maria da Penha.
Alice Bianchini, Doutora em Direito Penal (PUC/SP), mestre em Direito (UFSC).
Presidente do Instituto Panamericano de Política Criminal – IPAN e Coordenadora do Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais da
Anhanguera-Uniderp|Rede LFG. Professora em diversos cursos de especialização. Autora de vários livros e de artigos publicados em periódicos
nacionais e estrangeiros.
ix
Salo de Carvalho, Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais da
UFRGS. Doutor em Direito (UFPR) e Pós-Doutor em Criminologia (Universidad Pompeu Fabra, Barcelona). Autor, dentre outros, de Antimanual de
Criminologia (4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011)
Carmen Hein de Campos, Doutoranda em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em Direito (UFSC) e Universidade de Toronto, Canadá. Professora do
Curso de Especialização em Segurança Pública da PUCRS. Integrou o Consórcio de ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha. Coordenadora Nacional do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher – CLADEM/BRASIL.
Fauzi Hassan Choukr, Promotor de Justiça, SP. Doutor e Mestre em Direito Processual Penal (USP). Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla
La Mancha. Professor do Programa de Pós-graduação da FADISP.
Rosane M. Reis Lavigne, Defensora Pública, RJ. MBA e Mestre em Poder Judiciário (Fundação Getúlio Vargas). Feminista, integrante da Articulação de
Mulheres Brasileiras – AMB, Observatório Brasil da Igualdade de Gênero,
Ordem dos Advogados do Brasil – Comissão Mulher/RJ e de outras organizações governamentais e não-governamentais. Integrou o Consórcio de
ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
Wânia Pasinato, Socióloga. Doutora em Sociologia (USP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência/USP e do PAGU-Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP. Assessora técnica do OBSERVE – Observatório da Lei
Maria da Penha.
Maria Berenice Dias, Advogada especializada em Direito de Família, Sucessões
e Direito Homoafetivo. Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul. Vice-Presidenta do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Shelma Lombardi de Kato, Desembargadora e ex-presidenta do Tribunal de
Justiça do Mato Grosso. Autora de vários artigos sobre direitos das mulheres. Organizadora do Manual de Capacitação Interdisciplinar sobre a
Lei 11.340/2006 – Maria da Penha. Fundadora e integrante da International
Association of Women Judges – IAWJ.
Virgínia Feix, Mestre em Direito Público, especialista em Sociologia Jurídica e
Direitos Humanos, com formação em Direito Internacional dos Direitos
Humanos (Columbia University e Rutgers). Professora de Direito. Coordenadora das Cátedras de Gênero e Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista do IPA/Porto Alegre. Fundadora e ex-coordenadora da
ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Ex-coordenadora
x
nacional do Comitê Latino Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos
da Mulher (CLADEM – BRASIL).
Fabiane Simioni, Doutoranda em Direito (UFRGS/bolsista Capes). Advogada
no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU/UFRGS). Foi advogada da ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e do IAJ
– Instituto de Acesso à Justiça. Professora de Direito de Família e Direito da
Criança e do Adolescente. Membro do Comitê Latino Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM – BRASIL).
Fausto Rodrigues de Lima, Promotor de Justiça, DF. Titular da 2ª Promotoria
Especial e da Violência Doméstica de Samambaia/DF. Membro do Núcleo
de Gênero e Defesa da Mulher do MP/DF. Integrante do Grupo de Trabalho
Interministerial que trabalhou no anteprojeto de Lei Maria da Penha.
Iáris Ramalho Cortês, Advogada feminista. Foi Coordenadora da Comissão de
Legislação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). É co-fundadora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). Integrou o Consórcio de ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da
Penha.
Léia Tatiana Foscarini, Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Advogada da
ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e no projeto Mulheres da Paz – Território de Paz do bairro Guajuviras, Canoas/RS.
Myllena Calasans de Matos, Advogada. Especialista em Direitos Humanos das
Mulheres. Autoras de diversos artigos sobre o tema. Integrou o Consórcio
de ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
Rúbia Abs da Cruz, Advogada. Especialista em Direitos Humanos das Mulheres (Centro de Direitos Humanos, Universidade do Chile). Especialista em
Direitos Humanos e Sistema ONU (American University College of Law
– Washington). Coordenadora Geral da ONG Themis (julho 2005 a abril
2011). Diretora do Departamento da Justiça da Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul. Integrou o Consórcio de
ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
Westei Conde y Martin Júnior, Promotor de Justiça, PE. Mestre em Direito (Universidad Pontificia de Salamanca). Especialista em Direitos Humanos. Professor de Direito.
Samara Wilhelm Heerdt, Defensora Pública, RS. Especialista em Direito Civil
e Processo Civil (Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI). Integrante do Núcleo de Família e de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica (2007/2010). Secretária da Comissão Especial
de Violência Doméstica do Conselho Nacional de Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE 2008/2009).
xi
Adilson José Paulo Barbosa, Advogado, Mestre em Direito. Colaborou na elaboração do anteprojeto de Lei Maria da Penha e assessorou a Deputada
Relatora Iriny Lopes na elaboração de Parecer e voto no Projeto de Lei nº
4559/2004. Coordenador do GPE (Grupo de Pesquisa e Extensão) do Programa de Pós-graduação do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (CEFOR), da Câmara dos Deputados Federais.
Cecília Perlingeiro, Mestranda em Direito Penal (UERJ), professora e advogada
no Rio de Janeiro.
Thiele Lopes Reinheimer, Estudante de Ciências Jurídicas e Sociais, Membro do
Conselho Editorial do Site Direito Homoafetivo (www.direitohomoafetivo.
com.br). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
xii
Apresentação
Há, no mínimo, três razões para comemorar a publicação deste livro. Primeiro, porque ela se dá dentro do marco comemorativo aos cinco anos de vigência da Lei Maria da Penha. Segundo, porque ela é fruto do esforço coletivo do
Consórcio de ONGs que elaborou o anteprojeto de Lei Maria da Penha. Nesse
sentido, o livro reúne a contribuição não só das integrantes do consórcio e das
juristas que participaram ativamente dos debates que precederam a publicação
da Lei, mas também de autores e autoras e preocupadas com a implementação
e interpretação da Lei em conformidade com os propósitos que nortearam a sua
elaboração. Terceiro, porque a publicação supre uma importante lacuna de interpretação jurídica.
Desde a promulgação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), inúmeras publicações surgiram dando as mais diversas interpretações à Lei e aos seus dispositivos. No entanto, nenhuma dessas publicações expressou ou expressa o pensamento sob a perspectiva do movimento feminista, relevante protagonista do
anteprojeto de Lei e seu maior impulsionador. Um pensamento que, na sua diversidade, e reivindicado na proposta de lei, pretendeu também acumular a experiência de décadas dos movimentos de mulheres e feministas no campo sociojurídico
da violência contra mulheres, em particular no âmbito das relações domésticas e
familiares, em ampla perspectiva. Essa lacuna deixou um “vazio jurídico” e, por
isso, a necessidade de uma publicação que congregue a visão desse movimento
sobre a Lei e sobre o tratamento jurídico da violência contra mulheres.
Há que se ressaltar, ademais, a grande desinformação que ainda permeia o
universo jurídico e social nesse campo, apesar dos cinco anos de vigência da Lei.
Desinformação reforçada pelos meios de comunicação e pelo discurso de muitos
operadores do Direito que ainda resistem em aplicar a Lei e entendê-la na sua
perspectiva de direitos humanos.
A publicação é de responsabilidade do consórcio de ONGs que elaborou o
anteprojeto de Lei, sob a coordenação do CLADEM/Brasil – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. Dividida em duas partes,
a publicação resgata um pouco da história da luta feminista contra a violência e da
criação da Lei Maria da Penha, esclarece o processo legislativo, analisa a disputa
jurídica em torno da concepção da lei e a responsabilidade internacional do Brasil
na edição da legislação específica. Por fim, aponta os principais desafios que essa
legislação enfrenta tanto na interpretação jurídica quanto em sua aplicação prática.
A segunda parte analisa juridicamente cada dispositivo da Lei, além de
pontuar as razões sociojurídicas pelas quais determinados dispositivos estão
xiii
estabelecidos na Lei. Com isso, busca-se demonstrar que a Lei, para além da sua
dimensão técnico-jurídica, importante sem dúvida, preocupou-se com a vida
concreta das mulheres. Por outro lado, questiona-se a visão de muitos doutrinadores a respeito de determinadas disposições, como por exemplo, a necessidade
ou não da representação dos crimes de lesão corporal de natureza leve, além de
discutir o conceito mesmo de lesão corporal e seus limites. Demonstra-se que
a opção por uma ou outra tese é fruto de uma percepção política e ideológica
sobre a violência contra as mulheres e não meramente técnica, quando se afasta
da perspectiva de gênero.
O livro cumpre um papel importantíssimo ao trazer para o mundo do Direito
outra versão jurídica – a da teoria feminista do Direito – sobre os direitos das mulheres. Ganham com isso as pessoas que lidam direta ou indiretamente com um
fenômeno tão complexo quanto o da violência contra mulheres, em particular no
âmbito das relações domésticas e familiares, já amplamente reconhecidas pela lei.
Os operadores do Direito, da magistratura, advocacia, defensoria pública, promotoria pública, polícia, e das Universidades, enfim, profissionais e estudantes terão
um valioso instrumento jurídico para questionar os principais paradigmas jurídicos no campo penal e processual penal que sempre nortearam o uso do Direito.
Consequentemente com a perspectiva feminista, o livro traz a voz das protagonistas de umas das mais importantes normas jurídicas para a defesa dos
direitos das mulheres.
A publicação não pretende responder a todas as questões jurídicas originadas com a edição da Lei porque isso seria demais pretensioso, mas se propõe a
ser um guia para uma interpretação jurídica mais favorável às mulheres.
Por fim, gostaríamos de agradecer à Fundação Ford e à Secretaria de Políticas para as Mulheres, através da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher pelo apoio financeiro, sem o qual esta publicação não teria
sido possível. Nosso agradecimento também à ONU Mulheres por garantir a
tradução desta publicação para o espanhol, permitindo sua divulgação na América Latina. Agradecemos à editora Lumen Juris pela sua audaciosa e arrojada
percepção jurídica e disposição imediata em publicar este livro.
Porto Alegre, agosto de 2011.
Consórcio Nacional de ONGs
CLADEM/Brasil – Comitê Latino-Americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos da Mulher;
CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação;
CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
IPE – Instituto para a Promoção da Equidade
THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero
xiv
PARTE I
Razão e Sensibilidade:
Teoria Feminista do Direito e Lei Maria da Penha
Carmen Hein de Campos
I
Há mais de quatro décadas, o feminismo vem tecendo fortes críticas às ciências e às diversas disciplinas acadêmicas. O desenvolvimento desse processo,
inclusive interno, produziu um conhecimento que não pode mais ser caracterizado como mera crítica ao malestream (Smart, 2000). No que se refere ao campo
do direito1, a crítica feminista vem desenvolvendo-se fortemente desde a década
de 1970, sob diferentes perspectivas2. A essa produção do conhecimento feminista refiro, aqui, como ‘teoria feminista do direito’3. Como se depreende, sob
essa nomenclatura não se está a falar de uma ‘grande’ teoria explicativa ou de
uma meta-narrativa feminista sobre o direito4, mas de um pensamento crítico
1
Adoto a perspectiva de Smart (2000), para quem o campo do direito pode ser definido em três níveis:
um nível, como parte de um estatuto resultante de um processo político, isto é, um conjunto de convenções normativas sobre o qual se aplica o que se pode definir como metodologia legal. Em outro,
como a prática do direito (como os operadores do direito o aplicam no dia-a-dia). E ainda, como
as pessoas acreditam ser o direito e se guiam por ele. Nesse sentido, o direito cria subjetividades e
posições do sujeito. Smart exemplifica com a categoria ‘bastardo’, que foi uma categoria de ilegitimidade no século XX e que não significava apenas uma categoria jurídica, mas também uma posição
econômica e psicológica.
2
As perspectivas sobre o desenvolvimento da teoria feminista do direito variam muito e correspondem ao desenvolvimento da teoria feminista de um modo mais geral. Segundo algumas autoras, a
teoria crítica feminista do direito passou por várias fases: feminismo da igualdade, feminismo da
diferença; feminismo da igualdade/diferença (Williams, 1993). Já para Ngaire Naffine, há três momentos: o monopólio do homem no direito, a cultura masculina do direito e a retórica jurídica junto
com a ordem social patriarcal (Naffine apud Carol Smart, 1994). A proposta de Naffine assemelha-se
à de Carol Smart, para quem há três níveis de argumentação: o direito é sexista, o direito é masculino
e o direito tem gênero. Ver Smart (2000).
3
A crítica feminista ao direito é diversa, de modo que não há uma crítica única, mas várias visões críticas, assim como não há ‘um’ feminismo. A denominação ‘teoria feminista do direito’ (feminist legal
theory) é utilizada, entre outras, por Carol Smart, Frances Olsen, Katherine Barlett, Nancy Levit. Já
Catharine MacKinnon e Patrícia Smith preferem a expressão feminist jurisprudence.
4
Até porque isso seria impossível, pois, como bem lembra Carol Smart (2000), o feminismo sempre
esteve fragmentado, mesmo quando os fragmentos eram organizados de diferentes maneiras. No
entanto, segundo Fraser e Nicholson, algumas perspectivas podiam ser consideradas quase metanarrativas. Nesse sentido, ver Fraser e Nicholson, Feminismo y pós-modernismo, 1993.
1
Carmen Hein de Campos
sobre as epistemologias jurídicas e os fundamentos filosóficos que embasaram
o pensamento jurídico ocidental na modernidade e cujos reflexos são visíveis
ainda hoje.
Uma das principais críticas feministas às ciências e disciplinas acadêmicas
diz respeito à dicotomia ‘razão’ e ‘sensibilidade’ que sustentou a construção do
pensamento científico moderno e que reflete a oposição entre masculino e feminino. A crítica feminista revelou que essa dicotomia, por sua vez, evidenciava
a separação entre natureza/cultura fundada na diferença sexo/gênero. Sustenta
Olsen (1995) que, desde o surgimento do pensamento liberal clássico, ou mesmo
desde os tempos de Platão, nosso pensamento estruturou-se em torno de uma
série de dualismos ou de pares opostos: racional/irracional, ativo/passivo, pensamento/sentimento, razão/emoção. Esses pares dualistas dividem as coisas em
esferas contrastantes, são sexualizados e hierarquizados; metade se considera
masculina e metade feminina, e o ‘masculino’ é considerado superior ao feminino. O direito se identifica com o polo masculino5 (OLSEN, 1995: 473).
A percepção social da diferença que alia a razão ao masculino e a sensibilidade ao feminino vem sendo enfraquecida em virtude de significativas mudanças nas posições sociais das mulheres, tanto no mercado de trabalho quanto no
campo político, rompendo com os estigmas e estereótipos socialmente atribuídos aos gêneros6.
A constituição dessa percepção social da diferença de gênero dá-se, conforme Harding (1996), através de três processos distintos assim identificados:
simbolismo de gênero, estrutura de gênero e identidade de gênero. Esses processos não são isolados e interagem entre si. O simbolismo de gênero configura
a atribuição de metáforas dualistas de gênero a diversas dicotomias percebidas,
mas não necessariamente relacionadas ao sexo. A estrutura de gênero refere-se
à divisão do trabalho de acordo com o gênero e a identidade de gênero diz respeito à construção da subjetividade. Essas dimensões de gênero propostas por
Harding são similares à concepção de Scott (1990), para quem o “gênero tanto é
um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de
poder”. A definição de Scott comporta duas proposições essenciais: na primeira
parte, o processo de constituição dessas relações e, na segunda, a dimensão do
5
Essa identificação acontece porque se supõe que o direito seja masculino, racional, objetivo, abstrato
e universal, tal como os homens consideram a si mesmos. Não se imagina o direito como irracional,
subjetivo, contextualizado ou personalizado, como as mulheres. Conforme Olsen em Feminism and
critical legal theory, 1995.
6
No entanto, observa-se que essa nova percepção ainda sofre resistências. O Brasil hoje tem uma
mulher na Presidência da República, cuja personalidade é considerada ‘forte’. Segundo comentários
da mídia escrita e falada, a nova ministra da casa civil, embora meiga, é tida como ‘um trator’, e a
ministra das relações institucionais é ‘boa de briga’. Percebe-se que esses comentários refletem estereótipos de gênero. Observações similares não são feitas aos ministros homens.
2
Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha
poder. O gênero como constitutivo das relações sociais implica em quatro elementos: primeiro, os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas, frequentemente contraditórias (ex.: Eva, Maria e também os
mitos de luz/escuridão, purificação/poluição, inocência/corrupção); segundo, os
conceitos normativos expressos pelas teorias religiosas, jurídicas, educativas,
científicas que põem em evidência as interpretações de sentido dos símbolos,
esforçam-se para limitar e conter suas possibilidades e tomam a oposição binária
para afirmar o sentido categórico do feminino e masculino, como se fosse fixo e
não conflituoso (SCOTT, 1990:14) (grifei). Terceiro, a dimensão política que estrutura essas relações sociais, que inclui a família, as relações de parentesco, a
divisão sexual do trabalho, a educação e o sistema político. Por fim, a identidade
subjetiva, na qual interagem os elementos de ordem subjetiva e as relações sociais. A segunda parte da proposição de Scott refere-se à dimensão do poder, isto
é, o gênero é o primeiro meio através do qual o poder é articulado. Para Scott,
“estabelecidos como um conjunto de referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização simbólica de toda a vida social” e “na medida
em que estas referências estabelecem distribuições de poder o gênero torna-se envolvido na concepção e na construção do poder em si mesmo” (SCOTT,
1990:16). A definição de Scott permite compreender que o gênero constitui-se
através de complexas relações sociais de legitimação e construção recíproca7.
Como já referido, a definição de Scott guarda muita semelhança com a de
Harding. Como sistema simbólico, a diferença de gênero é a origem mais antiga, universal e poderosa de muitas conceitualizações moralmente valoradas de
tudo o que nos rodeia (HARDING: 1996:16). É no simbolismo de gênero que a
doutrina jurídica opera, lançando mão de inúmeras metáforas dualistas sobre o
feminino e masculino8.
A teorização do gênero9 e sua introdução como categoria de análise feminista permitiu vislumbrar que os sistemas conceituais das ‘ciências’ e das disciplinas acadêmicas são fortemente ‘engendrados10’ – marcados pelo gênero –,
razão pela qual a neutralidade científica não passa de mera pretensão. Nesse
7
Scott toma de exemplo a política – manifestação tradicional do poder – como uma dessas dimensões
de complexidade e reciprocidade entre gênero e relações sociais, onde a política constrói o gênero e
o gênero constrói a política. Ver Scott (1990:16).
8
Teresa de Lauretis (1999) utiliza a noção de ideologia de Althusser para construir o gênero com uma
instância da ideologia. Pode-se dizer que talvez se aproxime da visão de simbologia de gênero.
9
A discussão em torno da categoria gênero no feminismo é polêmica. As autoras divergem e problematizam sua utilização. Ver Lauretis (1994); Nicholson (2000; 2009); Haraway (1993; 1994); Butler,
(1998; 2009). No entanto, para os propósitos deste trabalho, considero úteis as definições propostas
por Harding (1996) e Scott (1990).
10
Na falta de uma melhor tradução para gendered, utilizo a expressão ‘engendrado’ para referir que são
marcadas pelo gênero, isto é, construídas a partir do gênero, na simbologia de gênero, conforme os
argumentos de Harding e Scott.
3
Carmen Hein de Campos
sentido, o gênero expõe a retórica progressista do cientificismo, as práticas concretas dos cientistas e os significados simbólicos de masculinidade e feminilidade presentes na ciência. (HARDING, 1996). Desta forma, o contexto social
e político mais geral em que se produz a discriminação contra as mulheres na
ciência é parte das relações sociais ‘engendradas’ tanto quanto o panorama psíquico em cujo marco se desenvolve o pensamento dos cientistas masculinos
sobre si mesmos e sobre a natureza da ciência (HARDING: 1996:53).
Se o gênero organiza a vida social, dá significado à dimensão do poder,
estrutura a divisão sexual do trabalho, as doutrinas jurídicas são criadas em um
contexto social permeado pelo gênero, por relações econômicas e raciais, pela divisão sexual do trabalho e pela subjetividade dos doutrinadores envolvidos no
processo. Mas como opera o gênero no direito? Segundo Smart (2000), o direito
“es uno de los sistemas (discursos) que producen no sólo las diferencias de género, sino
formas muy específicas de diferencias polarizadas”. Atua, portanto, como uma estratégia criadora de gênero ou, utilizando-se da formulação de Lauretis, como uma
‘tecnologia de gênero’ (Lauretis, 1994; Smart, 2000).
Nessa linha, o direito é parte do processo de fixação de gênero e constitui
um discurso que insiste na rígida separação entre masculino e feminino e sequer
reconhece a ideia de um contínuo entre macho e fêmea (SMART, 1994:65). Na
concepção de Smart, não seria estratégico pensar o direito em termos de engenharia política e social. A única possibilidade, então, de utilizar o direito seria
como um lugar para discutir os significados de gênero. Nessa perspectiva do
discurso e da linguagem, as possibilidades de mudanças concretas a serem efetuadas pelo direito, fora do texto jurídico, seriam muito reduzidas.
No entanto, o ‘texto’ se insere em um contexto político e social, onde as noções de gênero também são produzidas e desafiadas constantemente. As significativas conquistas sociais e jurídicas de gays e lésbicas, por exemplo, desafiam
os rígidos limites do gênero. Dito de outra forma, o reconhecimento, por exemplo, da união estável de homossexuais11 (ou matrimônio) traz inúmeras consequências jurídicas e práticas (possibilidade de adoção, herança, vínculo previdenciário, etc.). Esse reconhecimento rompe com a noção de gênero no direito,
que opera a partir do dualismo masculino e feminino e de identidades fixas,
produzindo significativa mudança na noção de cidadania.
Mas o gênero também se constitui através das práticas concretas de juristas que, na formulação de raciocínios tecnicistas buscam invalidar dispositivos
da Lei. Cite-se, como exemplo, a forçada interpretação da admissibilidade da
suspensão condicional do processo em casos de violência doméstica, proibida
expressamente pela Lei 11.340/200612.
11 O Supremo Tribunal Federal reconheceu recentemente a união civil de pessoas do mesmo sexo.
12 O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, considerou constitucional a exclusão da suspensão condicional do processo, em decisão datada de 24/03/2011. Habeas Corpus (HC) 212106- Mato Grosso do Sul.
4
Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha
Por outro lado, mesmo consagrada internacionalmente há décadas, a teoria
feminista do direito segue sendo ignorada por juristas brasileiros de diversos
matizes13. Não apenas nas disciplinas acadêmicas, mas também na conformação
do quadro de doutrinadores. Por exemplo, o predomínio masculino nas disciplinas penais e criminológicas, independentemente da profícua produção acadêmica de mulheres, conforma esse como um campo masculino (ALDER, 1995).
Mas não apenas isso: a negação da produção acadêmica feminista do direito no
Brasil dá-se tanto pela ocultação teórica14 quanto pelo seu antagonismo. Teresa
de Lauretis sugere que os críticos não valorizam as produções feministas, mas
certas posições dentro do feminismo acadêmico que acomodam os interesses
pessoais do crítico ou as preocupações teóricas androcêntricas, ou ambas (LAURETIS, 1994:232). Isso é observável nas críticas à Lei Maria da Penha.
II
Uma das mais importantes e perturbadoras contribuições feministas contemporâneas refere-se à condição do sujeito do feminismo. A crítica feminista
ao essencialismo desconstruiu a categoria Mulher ou Mulheres e uma possível
identidade feminina universal (FRASER; NICHOLSON, 1993; HARDING, 1993;
BUTLER, 1998, 2000; HARAWAY, 1993; LAURETIS, 1999). As mulheres são diversas e plurais e o gênero entrecruza-se com outras categorias, como raça/etnia,
geração, sexualidade e capacidade, construindo um sujeito complexo e plural.
A identidade desse sujeito múltiplo e contraditório não é fixa, é sempre contingente e precária (MOUFFE, 1999), constituída em uma multiplicidade de discursos “entre os quais não tem a haver necessariamente relação, mas um movimento
constante de superdeterminação e deslocamento” (MOUFFE, 1999:32). Essa nova
realidade pressupõe a instabilidade das categorias analíticas e a aceitação de um
consequente desconforto teórico (HARDING, 1996). No entanto, a instabilidade
do sujeito feminista traz consigo a possibilidade de deslocamento discursivo.
O conjunto de posições de sujeito está vinculado às suas diversas inscrições nas relações sociais, ditas como políticas e como um lugar de tensões
(MOUFFE, 1999). No entanto, adverte Chantal Mouffe, as diversas posições do
sujeito podem ser articuladas. A ‘articulação’ é uma categoria fundamental da
perspectiva de Mouffe, já que, no campo da política, “há diversos discursos que
13 Dificilmente vê-se a inclusão de textos acadêmicos feministas, ou mesmo a discussão sobre teoria
feminista do direito, em referências bibliográficas em disciplinas jurídicas. Diferentemente de países
como o Canadá, os Estados Unidos, Inglaterra, Dinamarca, dentre outros, onde a disciplina ‘teoria
feminista do direito’ é oferecida regularmente. Além disso, há departamentos dentro dessas faculdades de direito dedicados aos estudos de gênero e/ou estudos das mulheres.
14 Até mesmo publicações com o propósito de comentar a Lei Maria da Penha omitem a contribuição
feminista.
5
Carmen Hein de Campos
promovem a articulação das posições do sujeito e cada posição do sujeito se
constitui discursiva e essencialmente instável”, já que submetidas a constantes
práticas de articulação que as subvertem e as transformam (MOUFFE, 1999:34).
A possibilidade de deslocamentos discursivos permite pensar que o direito
não é monolítico, abre-se a fissuras, reposicionamentos e reconstrução de gênero
(SMART, 2000). Por isso, pode-se pensar na disputa política por reconstrução
do sujeito dentro do sistema jurídico e fora dele. Tomemos como exemplo a categoria ‘vítima’, colocada em uma posição apenas passiva15, ou, diversamente,
reconstruída discursivamente como ‘mulher em situação de violência’. Nesse
caso, vislumbra-se um deslocamento discursivo que a coloca em outro lugar,
em um lugar de transição de uma situação vitimizante para a de superação16. Se,
no debate de construção da Lei Maria da Penha, a perspectiva da mulher vítima
de violência doméstica construiu um discurso capaz de unificar vários atores
sociais, ao excluir a expressão ‘vítima’ do texto normativo e inscrever a ‘mulher
em situação de violência’, o feminismo promoveu um deslocamento discursivo
dessa categoria e a inscrição de um novo sujeito. Por outro lado, é também argumentável que, mesmo inscrevendo esse novo sujeito, a Lei, ao admitir apenas as
mulheres no polo passivo da violência, mantém a dicotomia de gênero. Se esse
paradoxo parece não ser superável teoricamente, pode ser explicável no campo
da ação política do feminismo.
Mas a Lei opera outro rompimento da identidade fixa, ao dispor que a mulher lésbica também pode ser agressora. Esse dispositivo traz duas consequências: a primeira, já apontada por Maria Berenice Dias (2010), é a ampliação do
conceito de família, incluindo a união entre mulheres de mesmo sexo e, com
isso, rompendo o dualismo de gênero. A segunda, no reconhecimento explícito
da possibilidade de violência entre as mulheres, rompendo com a noção fixa de
mulher vítima.
Os vários deslocamentos discursivos sobre o tema da violência doméstica,
produzidos pela Lei Maria da Penha, são objeto de disputa política entre posições
feministas e não feministas (e entre as feministas). Esses deslocamentos são insistentemente contrapostos, no intuito de que retornem ao seu lugar de origem, ao
seu status quo. Assim, as concepções sobre as formas de violência e o tratamento
jurídico trazido pela Lei refletem as disputas sobre quem fala e o quê se fala.
Nesse sentido, o conceito de violência doméstica adotado pela Lei ultrapassa a limitada noção dos crimes de lesão corporal de natureza leve ou ameaça prevista no Código Penal. Inscrevem-se outras categorias que ampliam o
15 Estou ciente da linguagem processual penal ‘vítima’ e ‘ réu’. A expressão vítima, nos casos de violência doméstica sofreu críticas por parte do feminismo, pois negava às mulheres a possibilidade
de serem sujeitos no processo. Par evitar essa crítica, as feministas americanas passaram a utilizar a
expressão ‘sobreviventes’. Ver HOFF, 1990; HAGUE & MULLENDER, 2005.
16 Nilo Batista (2009) parece não compreender esse deslocamento discursivo quando critica a expressão
‘mulheres em situação de violência doméstica’.
6
Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha
conceito de crime e essas passam a ser questionadas como ‘não jurídicas’. Igualmente, a ruptura dogmática entre as esferas civil e penal, com a criação de um
juizado híbrido, sofre resistências, tanto de natureza teórica quanto prática. No
primeiro caso, pelo questionamento dessa ruptura através do argumento da inconstitucionalidade17 e, no segundo, pelas negativas de solucionar questões de
natureza civil/familiar e penal em um mesmo juizado.
Além disso, estão ainda em disputa a afirmação do discurso feminista da
violência como um problema público18 (de segurança, cidadania e direitos fundamentais) e o discurso tradicional de juristas que, sob o argumento de que
nossa legislação já contava com instrumentos para a proteção das mulheres, (independentemente de sua pouca eficiência), não havendo necessidade de uma
legislação específica.
Ao construir uma legislação específica para nortear o tratamento legal da
violência doméstica, o feminismo disputa um lugar de fala até então não reconhecido pelos juristas tradicionais. É que a afirmação dos direitos das mulheres,
através de uma legislação específica, ameaça a ordem de gênero no direito penal
afirmada por esses juristas. Dito de outra forma, os pressupostos teóricos sob os
quais têm se sustentado a formulação sexista sobre o que deve ou não ser considerado um tema de relevância jurídica.
III
Analisar o direito ou categorias jurídicas a partir de uma perspectiva feminista implica em trazer para o centro da análise ‘as mulheres’. Dito de outra
forma, formular a questão da mulher (the woman question) ou ‘onde estão as
mulheres?’, o que, para Katherine Barlett, constitui um método de análise feminista19. Segundo a autora, uma questão se torna um método quando regularmente perguntada. O objetivo dessa pergunta é iluminar as implicações de
gênero de uma prática social ou de uma norma jurídica. Pergunta-se: as mulheres têm sido desconsideradas pela lei? Sim? De que modo? Como a omissão
pode ser corrigida? Que diferença isso faria? (BARLETT, 1990:371). Implica tam17 Logo após a edição da Lei 11.340/2006, vários magistrados arguiram a inconstitucionalidade da proteção penal exclusiva das mulheres, do afastamento da Lei 9.099/1995 e da criação dos juizados com
competência civil e penal. Essa disputa levou a Advocacia Geral da União a ingressar com uma
Ação Declaratória de Constitucionalidade, que aguarda julgamento no STF desde 2006. Ver também
Rosane Reis Lavigne (2011).
18 Se o pessoal é político, como afirmam as feministas, não há mais que se falar na separação das esferas
pública e privada, mas, sim, de relações sociais que interagem entre si. Ver a respeito Lauretis (1994).
Para uma discussão sobre a relação público/privado, ver Pateman (1996).
19 O método feminista defendido por Barlett compreende três momentos. A formulação da questão (the
woman question); a razão prática feminista (feminist practical reasoning) e conscientização (counsciosness-raising). Para os propósitos desse artigo, detenho-me apenas no primeiro momento.
7
Carmen Hein de Campos
bém em fazer uma releitura dos textos jurídicos tradicionais [ou das doutrinas
jurídicas] para entender de que maneira as experiências das mulheres ficaram
marginalizadas e como seria possível incorporá-las novamente à leitura (JARAMILLO, 2000). A questão supõe, ainda, que algumas características da lei podem
não apenas serem neutras em termos gerais, mas especificamente masculinas.
Assim, o propósito da pergunta (the woman question) é expor essas características, o modo como operam e sugerir como podem ser corrigidas (BARLETT,
1991:371). O seu fundamento é, portanto, revelar os prejuízos, a exclusão das
mulheres e a suposta neutralidade de gênero da lei (BARLETT, 1991:375). Mas a
questão também deve ser confrontada internamente, entre as mulheres: que mulheres a lei exclui ou prejudica? São as mulheres brancas ou negras? O prejuízo
legal é o mesmo para as mulheres em desvantagem econômica? Dessa forma,
evita-se o essencialismo e se reconhece que o gênero é um dos marcadores que,
associado a outros (raça/etnia, situação econômica, educação, etc.), confere diferentes opressões ou subordinações às mulheres20.
Essa visão aproxima-se da afirmação de Harding (1996), que difere o feminismo da concepção tradicional das ciências, pois este aponta para uma epistemologia que conceitua a pessoa conhecedora como parte do conhecido, o conhecido como afetado pelo processo de chegar a conhecer e o processo mesmo como
um elemento manual, intelectual e emocional.
De modo similar, pontua Skinner que a perspectiva de análise feminista
deve estar baseada na experiência das mulheres e na desigualdade de gênero, na
rejeição da separação entre pesquisador e ‘pesquisado’, na possibilidade de dar
voz às mulheres e a outros grupos marginalizados, na importância do ativismo
político e na visão reflexiva (SKINNER; HESTER; MALOS, 2005)21.
20 Pode-se pensar sobre a criminalização do aborto. Quem são as mulheres penalizadas pelo aborto? A
criminalização incide igualmente sobre as mulheres? A quem interessa a criminalização do aborto?
21 As autoras analisam a possibilidade de uma metodologia feminista. Para elas, metodologia significa
um processo político complexo preocupado em estabelecer conexões entre epistemologia e sua inter-relação com teoria, ontologia, bem como reflexões sobre a validade, ética e responsabilidade (accountability) sobre o conhecimento produzido. No entanto, argumentam que a escolha de um método
é influenciada pela posição teórica e epistemológica do pesquisador. As autoras identificam cinco
características de uma metodologia de pesquisa feminista: A) estar baseada na experiência das mulheres e na desigualdade de gênero; B) rejeitar a divisão entre pesquisador e ‘pesquisado’. Isso nem
sempre é uma questão simples, pois não se trata apenas de minimizar o desequilíbrio entre a pesquisadora e a ‘pesquisada’. Envolver as participantes no desenvolvimento das ferramentas, na coleta
dos dados e na sua interpretação é importante, mas quando houver divergência de interpretação,
há que ilustrar onde se situam a pesquisadora e a ‘pesquisada’ em termos políticos, históricos, etc.;
C) dar voz às mulheres e aos grupos marginalizados implica questionar como efetivamente fornecer
espaços a essas vozes para que sejam articuladas e ouvidas; encorajar os grupos marginalizados a se
envolverem na pesquisa; e discutir o papel da experiência na pesquisa; D) afirmar a importância do
ativismo político e da pesquisa emancipatória, possibilitando que a voz das mulheres seja ouvida,
e fornecer dados robustos de modo a facilitar que sejam entendidas pela audiência; E) ser reflexiva,
isto é, o processo de posicionar-se fora e o olhar de volta para ver o que pode ser visto de longa distância (Skinner; Hester; Melos, 2005:10-15).
8
Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha
Ao propor uma legislação específica para tratar da violência contra mulheres, as feministas formularam ‘a pergunta’ sobre as mulheres. Vejamos: antes
da edição da Lei 11.340/2006, os casos identificados como de violência contra
mulheres eram tratados pela Lei 9.099/1995. As feministas questionaram: como
a Lei trata as mulheres? A Lei atende aos interesses das mulheres ou aos dos
homens? De que forma? Quais as implicações jurídicas e sociais de tratar-se a
violência doméstica como delito de menor potencial ofensivo? Ao elaborar essas
questões, as feministas revelaram os propósitos da lei, cujos objetivos estavam
muito distantes dos interesses das mulheres22.
Da mesma forma, pode-se perguntar: a que problemas concretos respondem as críticas à Lei Maria da Penha? Estão elas dirigidas a encontrar uma melhor solução ao problema dessa violência específica? Estão, de fato, preocupadas
com as violências sofridas pelas mulheres nas relações íntimas de afeto?
A Lei Maria da Penha reflete a sensibilidade feminista no tratamento da violência doméstica. Ao desconstruir o modo anterior de tratamento legal e ouvir as
mulheres nos debates que antecederam a aprovação da Lei 11.340/2006, o feminismo registra a participação política das mulheres como sujeitos na construção
desse instrumento legal e sugere uma nova posição de sujeito no direito penal.
IV
Mas se a Lei desafia os cânones tradicionais do ‘fazer direito’, ela também
possibilita e sugere pensar novas alternativas a serem postas à disposição das
mulheres. ‘Fazer direito’, na perspectiva feminista defendida neste artigo, significa considerar as demandas de um sujeito multifacetado (BARLETT, 1991; FRASER; NICHOLSON, 1990).
Não há dúvidas de que a Lei Maria da Penha está provocando deslocamentos discursivos que afirmam cada vez mais os direitos das mulheres relacionados a uma vida livre de violência, rompendo com a ordem de gênero do direito
penal. No entanto, as resistências à aplicação da Lei, embora cada vez mais reduzidas, buscam frear esse novo posicionamento. As tensões entre o conservadorismo legal (doutrinário e jurisprudencial) e as propostas feministas devem
ser resolvidas na superação do primeiro e na inscrição de um novo lugar para as
mulheres, a partir do segundo.
Superadas as críticas iniciais à lei, referentes à sua constitucionalidade23,
resta perguntar se é possível avançar não apenas a aplicabilidade da Lei, mas,
22 As inúmeras críticas feministas à Lei 9.099/1995 responderam a essas questões e revelam que a Lei
não tivera preocupação com as mulheres, mas, sim, em diminuir a incidência da criminalização sobre os autores de violência. Ver: CAMPOS, Carmen Hein de (2000; 2006;2008; 2009).
23 Embora o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha decidido sobre a constitucionalidade da legislação específica, o Tribunal já se manifestou sobre a constitucionalidade do afastamento da Lei
9.099/95.
9
Carmen Hein de Campos
sobretudo, as respostas penais e não penais por ela oferecidas. Sabe-se que a Lei
não criou tipo penal novo, mas tampouco ofereceu alternativas às tradicionais
respostas penais. Ao contrário, ao impossibilitar a aplicação da conciliação, da
transação penal e da suspensão condicional do processo, ela subtraiu essas alternativas jurídicas24 sem oferecer outras. Se isso foi necessário diante do quadro
que se apresentava pela aplicação da Lei 9.099/95, hoje parece ser fundamental
construir novas possibilidades. Este é o desafio posto ao feminismo brasileiro
nesse momento: uma inovação que apresente, de um lado, alternativas às mulheres para além das já existentes na Lei, e, de outro, aos magistrados e magistradas, as condições de lidar de forma diferenciada com as inúmeras situações com as quais são, cotidianamente, confrontadas/os. Algumas alternativas
já estão previstas, como medidas de prevenção e assistência multidisciplinar,
favorecendo o que Baratta (1999:58) assinala como “leitura das situações problemáticas através de códigos doados por outras disciplinas” e que podem permitir
enfoque mais preventivo e reativo.
A complexidade de lidar com um instrumento da modernidade e com a variedade de relações sociais onde se articulam sujeitos múltiplos é, repita-se, um
grande desafio. Articular as diversas posições discursivas do sujeito com suas
variadas inscrições sociais implica em alargar as possibilidades do texto normativo, tendo a consciência de seus limites e tensões decorrentes.
Ao inscrever com razão e sensibilidade25 a nova lei de violência doméstica, o
feminismo brasileiro demonstra que não está preso à dicotomia que fundou o
pensamento moderno. Avançar no aperfeiçoamento da Lei significa continuar
trilhando um caminho que possibilite a sujeitos de direitos cada vez mais complexos uma nova cidadania política. Sabe-se que isso não é uma tarefa fácil e que
nem sempre temos soluções prontas para a complexa realidade em que vivemos.
Reconhecer esse desconforto teórico já é um bom começo na difícil tarefa de aliar
razão e sensibilidade.
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24 O artigo 41 da Lei 11.340/2006 expressamente dispõe: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de
26 de setembro de 1995”.
25 Com Razão e Sensibilidade, Jane Austen introduziu o romance inglês na modernidade.
10
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12
Lei Maria da Penha:
uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista
Leila Linhares Barsted
A constituição do feminismo como ator político
O processo histórico de conquista de direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais ganhou maior relevância a partir do século XX, quando a ação
organizada de movimentos sociais diversos contribuiu para a ampliação da cidadania e novos sujeitos foram incorporados, em particular as mulheres, tendo
reconhecidos seus direitos. A entrada em cena de novos atores sociais redefiniu
as concepções de direitos para além da liberdade e da igualdade formais, apontando para direitos nos campos da saúde, educação, trabalho, moradia, lazer,
cultura e meio ambiente, dentre outros, no marco da indivisibilidade dos direitos inerentes à pessoa humana. Mas a expansão de direitos não assegura necessariamente o exercício efetivo da cidadania. A declaração de direitos civis, políticos e sociais pode compor meramente uma cidadania formal ou passiva, pois
não enfoca as relações de poder na sociedade e nem o caráter excludente de fato
das democracias modernas. Nesse sentido, autores como Hannah Arendt (1993)
falam de uma cidadania ativa na qual os cidadãos agrupam-se pelo discurso e
pela ação no espaço público, locus onde a cidadania floresce.
Provoste e Valdés (2001: 2-3), tendo por base as reflexões de Hannah Arendt,
destacam:
A cidadania ativa (...) se baseia na suposição de uma prática crítica capaz de
exigir o cumprimento de normas jurídicas preestabelecidas, de nomear as
carências daquelas pessoas que não têm sido definidas como sujeitos de direitos e de formular novos direitos que surgem com a complexidade crescente
das problemáticas da vida contemporânea. Com essa perspectiva, a história
das lutas sociais das mulheres, assim como de outros movimentos sociais,
pode ser interpretada como uma tendência para o incremento do exercício
futuro da cidadania, destacando-se papel protagônico das lutas e das ações
das mulheres para ampliar seus direitos, cuja única constante é, segundo
Arendt “o direito de ter direitos.
Os diversos estudos sobre a luta das mulheres no século XX apontam o
surgimento no cenário político de um movimento social vigoroso. De fato, o
13
Leila Linhares Basterd
feminismo da segunda metade do século XX, especialmente o feminismo latino-americano, passou a desenvolver uma prática crítica que envolveu embates
com o Estado, mas também capacidade propositiva para a conquista de direitos
e de políticas públicas.
No Brasil, a existência de organizações e movimentos de mulheres possibilitou a constituição de um sujeito coletivo que alargou o campo democrático.
Esse novo sujeito coletivo tem sido capaz de advogar pelo acesso e pela inovação na constituição de direitos; de articular-se com outros movimentos sociais,
na construção de uma cidadania cada vez mais inclusiva e respeitadora das diferenças; de imprimir novos paradigmas políticos e culturais e de monitorar o
Estado e a sociedade no que diz respeito à compatibilidade entre as declarações
de direitos e a sua efetividade.
As organizações feministas brasileiras tiveram a capacidade de compreender que a luta por cidadania implica a superação de hierarquias temáticas na
medida em que os direitos humanos são indivisíveis. Nesse sentido, a agenda
feminista mostrou-se ampla, abrangendo as questões do trabalho, da renda, da
participação política e social, da saúde, da sexualidade e do aborto, da discriminação étnico-racial, do acesso à terra, do direito a uma vida sem violência, dentre
outros temas e outras questões que precisavam ser incluídos na arena pública.
A luta legislativa por igualdade, incluindo a igualdade nas relações familiares, teve destaque importante nessa agenda na medida em que significava o
rompimento com a lógica patriarcal da subordinação feminina. A conquista por
direitos formais foi, assim, o passo inicial do feminismo brasileiro. No entanto,
essa luta não se esgota no reconhecimento formal de direitos, especialmente porque a declaração de direitos não traz de imediato o usufruto dos mesmos ou a
ampliação do poder de decisão das mulheres sobre suas vidas. O reconhecimento
formal de direitos também não significa, no que se refere às mulheres, que essas
passem a se sentir titulares e vivenciem os direitos expressos nas Constituições
democráticas ou nos tratados e convenções internacionais. A titularidade significa não só ter direitos, mas, também, poder usufruir desses direitos.
Petchesky e Judd (1998) assinalaram algumas condições para a efetivação
da titularidade de direitos, dentre as quais: a existência de uma declaração formal desses direitos em leis nacionais e internacionais; a correspondência entre
esses direitos e os costumes, valores e comportamentos sociais; a implementação
efetiva desses direitos; e a introjeção desses direitos nas representações sociais,
incluindo o próprio sentimento de titularidade. Esse é um longo processo que
envolve o Estado, a sociedade e os indivíduos.
No processo de luta por direitos, as organizações e os movimentos de mulheres constituíram um campo de poder que tem sido decisivo para a manutenção dos direitos conquistados e para a possibilidade de conquista de novos
direitos. Esse processo de luta por direitos, voltado para a eliminação de todas as
formas de discriminação, incluindo a dominação masculina, apresenta, ao longo
14
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
das últimas três décadas, um conjunto de importantes avanços legislativos e de
políticas públicas que não pode ser subestimado.
A luta pelo direito a uma vida sem violência, que possibilitou a aprovação
da Lei Maria da Penha, em 2006, é um caso exemplar de exercício de uma cidadania ativa expressa no discurso e na atuação das feministas no espaço público.
Sintetiza, também, a longa interlocução das feministas com os poderes legislativo e executivo e aponta para a necessidade de investimentos contínuos no diálogo com o poder judiciário e as demais instituições da justiça.
Consideramos importante, dessa forma, destacar a atuação do feminismo
brasileiro como ator político no cenário nacional e sua capacidade de impulsionar políticas públicas voltadas para a efetivação da cidadania das mulheres, especialmente no que se refere ao enfrentamento da violência. Faz-se necessário,
também, contextualizar o processo de advocacy feminista na propositura da Lei
Maria da Penha, que foi precedido por avanços na legislação brasileira e na legislação internacional.
A Lei Maria da Penha, em grande medida, é tributária da Convenção de
Belém do Pará e, nesse sentido, é importante visibilizar os desafios para a implementação dessa Convenção pelos Estados-Partes da OEA, dentre os quais o Brasil.
A Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 –, para além de seus efeitos legais,
representa o resultado de uma bem-sucedida ação de advocacy feminista26 voltada
para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres e para
a compreensão de que as mulheres têm o direito a uma vida sem violência.
Libardoni (2000: 208) chama atenção que devemos entender advocacy não
apenas como defesa e argumentação
(...) em favor de uma causa, uma demanda ou uma posição, mas, compreendendo (...) seu significado mais amplo, denotando iniciativas de incidência
ou pressão política, de promoção e defesa de uma causa e/ou interesse, e de
articulações mobilizadas por organizações da sociedade civil com o objetivo
de dar maior visibilidade a determinadas temáticas ou questões no debate
público e influenciar políticas visando à transformação da sociedade.
Com tal perspectiva, a elaboração e o processo legislativo voltados para a
aprovação da Lei Maria da Penha contaram com a capacidade de organização
e de mobilização política de organizações e movimentos feministas, que desenvolveram articulações amplas, incluindo articulações com atores-chave do poder
político. Esse processo redundou, também, no aprofundamento do debate público sobre a violência de gênero e sobre as limitações do exercício da cidadania
pelas mulheres. Significou, ainda, a incidência sobre políticas públicas para além
26 Esse processo de advocacy incluiu um conjunto de características-chave tal como definidas por
Schuler e Thomas (1997), dentre as quais: forte organização, análise clara da questão, estratégia dinâmica, grupo de apoio ou de constituintes significativo, mobilização e ação visíveis.
15
Leila Linhares Basterd
da demanda legislativa. Nesse sentido, a ação de advocacy das organizações e
movimentos feministas foi um exemplo de pressão sobre o Estado para retirá-lo
do espaço de omissão legislativa em relação aos direitos humanos das mulheres.
A capacidade das organizações e dos movimentos de mulheres de exercer
pressão sobre o Estado, estabelecer articulações políticas e mobilização social foi
construída ao longo das três últimas décadas por meio de um processo contínuo
que permitiu a inclusão na agenda pública das demandas feministas. Ao longo
desse processo, as organizações e os movimentos de mulheres ganharam legitimidade social e credibilidade política. As demandas apresentadas à sociedade
e ao Estado tiveram por base informações qualitativas e quantitativas, estudos
confiáveis de fontes fidedignas e interlocução constante com movimentos de
mulheres de base. A produção de conhecimento pelas organizações, pelos movimentos de mulheres e pela academia, a atuação das feministas, acompanhando
e influindo em fóruns internacionais, especialmente junto à ONU e OEA, a presença constante das feministas no debate público e no processo de redemocratização foram alguns dos elementos que possibilitaram que as organizações e os
movimentos de mulheres se tornassem atores importantes no espaço político e
criassem um campo de poder que, mesmo limitado, não pode deixar de ser considerado e ouvido pelo Estado e pela sociedade civil.
Em paralelo à constituição do movimento de mulheres como ator político no
cenário nacional, as feministas atuaram junto às mulheres de distintos segmentos
sociais e foram por elas fortalecidas, estimulando a mobilização política, dando
visibilidade às discriminações e violências ocorridas, mas também às experiências bem-sucedidas, especialmente no que se refere à criação de mecanismos institucionais, à influência no processo constituinte27 e à ação de advocacy junto a
organismos internacionais, dentre outras.28 O caso Maria de Penha Fernandes foi
exemplo da capacidade de organizações de direitos humanos e feministas de levarem para a alçada internacional da OEA a denúncia de violação de direitos humanos. Da mesma forma, os Relatórios-Sombra, elaborados pelas feministas para
o Comitê CEDAW, contribuíram de forma decisiva para que esse Comitê apresentasse suas recomendações ao Estado Brasileiro voltadas para a eliminação de
todas as formas de discriminação contra as mulheres, incluindo a eliminação da
violência de gênero e a produção legislativa específica a esse respeito.
É nesse contexto de constituição de um novo campo de poder que se deve
compreender o processo de elaboração e de aprovação da Lei Maria da Penha.
Essa Lei adotou a perspectiva feminista de que a violência, especialmente a
violência nas relações interpessoais, é um dos principais mecanismos de poder
27 A esse respeito, ver Pitanguy (1990 e 2008), especialmente no que se refere à criação e atuação do
CNDM no processo constituinte na década de 1980.
28 No processo legislativo destaca-se a advocacy feminista pela Lei do Planejamento Familiar em 1996.
A esse respeito ver Rocha (2005).
16
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
para forçar as mulheres a posições subordinadas na sociedade face à permanência contra elas de padrões discriminatórios nos espaços público e privado. A
elaboração da Lei Maria da Penha envolveu um amplo estudo e levantamento
da legislação e dos instrumentos internacionais de direitos humanos, o conhecimento do ordenamento jurídico nacional, a busca de articulações no campo
jurídico e político, a interlocução com os poderes legislativo e executivo. Buscou-se, como norte dessa legislação, a Convenção de Belém do Pará e importantes
documentos internacionais que consideram a violência contra as mulheres uma
violação dos direitos humanos e expressam a responsabilidade do Estado para
prevenir, punir e eliminar a violência de gênero.
A Lei Maria da Penha em suas Disposições Preliminares acompanha a posição das Nações Unidas e de organismos e instituições de direitos humanos
que ampliou o conceito de segurança acrescentando-lhe um adjetivo importante
– segurança humana,29 considerada elemento-chave na prevenção de conflitos,
na redução da pobreza, na promoção do desenvolvimento. Esses organismos
intencionais consideram que a violência é uma questão de segurança muito diferente para mulheres e homens e que o medo da violência é um constrangimento
permanente sobre a mobilidade de milhões de mulheres limitando seu acesso
aos recursos e às atividades básicas.30
O enfoque feminista, que influenciou a posição de organismos internacionais e nacionais, destaca que a segurança das mulheres significa o reconhecimento e o respeito de seus direitos civis, sociais, culturais e econômicos, dentre
outros, e, também, a ausência do medo.31 Assim, a Lei Maria da Penha está voltada para a promoção da equidade de gênero e para a redução das diferentes
formas de vulnerabilidade social, apontando a necessidade de políticas públicas
articuladas e capazes de incidir sobre o fenômeno da violência contra a mulher.
Em resumo, a ação de advocacy feminista para a elaboração da Lei Maria
da Penha, na sua tramitação, promulgação e na mobilização para sua implementação, teve por base o contexto político democrático, o avanço da legislação
internacional de proteção aos direitos humanos com a perspectiva de gênero e,
especialmente, a existência de organizações feministas atuantes. Essas organizações puseram em marcha uma grande mobilização junto ao Estado e à sociedade
para a aprovação de uma legislação voltada para a proteção das mulheres e para
a fim da impunidade de seus agressores.
Nesse artigo pretende-se destacar, de forma resumida, essa atuação do feminismo brasileiro como ator político no cenário nacional e sua capacidade de
29 A esse respeito, ver Social Watch Report (2004: 15).
30 Social Watch Report (2004: 31).
31 Social Watch Report (2004: 15). Esse Relatório chama atenção para a necessidade de se identificar a
violência contra as mulheres, incluindo a sonegação de seus direitos reprodutivos, como questões
cruciais para a integridade física das mulheres e como elementos centrais para sua segurança íntima
e para a garantia dos direitos humanos fundamentais.
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Leila Linhares Basterd
impulsionar políticas públicas voltadas para a efetivação da cidadania das mulheres, especialmente no que se refere ao enfrentamento da violência. Busca-se, também, contextualizar o processo de advocacy feminista na propositura da
Lei Maria da Penha, destacar os avanços na legislação brasileira e na legislação
internacional, bem como os desafios para a implementação da Convenção de
Belém do Pará pelos Estados-Partes da OEA, dentre os quais o Brasil. No campo
dos desafios, destaca-se o acesso à justiça.
A Cidadania Ativa: o feminismo brasileiro
como um novo ator político
Desde meados da década de 1970, as feministas brasileiras organizaram-se
em torno de propostas específicas de luta contra todas as formas de discriminação e de violência. O rol de propostas, definidas ainda nessa década, abrangia:
igualdade nas relações familiares,32 a igualdade salarial, melhores oportunidades de emprego e de ascensão profissional, direito à regulação da fertilidade,
direito ao acesso a serviços de saúde eficientes, direito a creches para as crianças,
dentre outros, além do direito a uma vida sem violência.
A luta específica contra a violência às mulheres e contra a impunidade dos
agressores, especialmente no contexto familiar, espaço onde tal violência naturalizava-se e invisibilizava-se, ganhou destaque especial na agenda feminista. Em
fins de 1970, o movimento feminista mobilizou-se por meio de manifestações de
rua contra a impunidade de homens que haviam assassinado suas mulheres e
mantinham-se impunes pela aceitação do júri popular da chamada “tese da legítima defesa da honra” (THOMAS, 1995; HERMANN; BARSTED, 1995).
Na década de 1980, a esperança na renovação do Estado brasileiro e o envolvimento na luta pela redemocratização levaram grupos de mulheres a se organizarem em torno de propostas específicas de enfrentamento da violência e
de todas as demais formas de discriminação. Tendo o Estado como alvo principal de sua ação política, as feministas elaboraram e reforçaram o conteúdo de
propostas amplas, definidas já em meados da de 1970, que buscaram incluir na
Constituição democrática de 1988. Assim, além de direitos civis e sociais plenos,
essas propostas incluíam o direito ao aborto legal seguro e o direito a uma vida
sem violência. Em síntese, esperava-se a eliminação das discriminações e violências contra as mulheres por meio de reformas legislativas e de políticas públicas.
A realização de uma ampla análise sobre a forma como essas políticas foram
negociadas, encaminhadas e implementadas e como refletiram sobre o Estado
e a sociedade, sensibilizando-os ou não, permitiria, talvez, avançar um pouco
32 Na década, um grupo de advogadas feministas levou ao Congresso Nacional, em 1976, projeto de
mudança no Código Civil, especificamente na parte relativa ao direito de família onde a discriminação legal contra as mulheres limitava seus direitos de cidadania.
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Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
na compreensão do próprio Estado brasileiro e das características de suas instituições. Possibilitaria, também, compreender a opção do feminismo brasileiro
de buscar uma interlocução com o Estado, seja nas poucas brechas possíveis
no tempo da ditadura militar,33 seja no processo de redemocratização, ao longo
da elaboração da Constituição de 1988 e, depois, na continuidade do restabelecimento da democracia no Brasil. O feminismo brasileiro constituiu-se, assim,
desde seu início, em ator político, desenhando e lutando por uma agenda de políticas públicas voltadas para a inclusão das mulheres nos direitos de cidadania.
Teve clareza de que políticas públicas implicam a existência de atores sociais capazes de mobilizar o Estado na geração de um conjunto de medidas que pressupõem certa permanência, coerência e articulação dos distintos poderes e esferas
institucionais. A conquista e o avanço dessas ações envolvem pressão social e
vontade política (BARSTED, 1994).
No Brasil, os movimentos de mulheres compreenderam que um elemento
fundamental da demanda por políticas públicas sociais é a sua formalização legislativa, com a declaração de direitos e da obrigação do Estado de garanti-los e
implementá-los.
Por isso a percepção sobre a importância do processo legislativo levou as
organizações desse movimento a desenvolverem capacidade de propositura
de leis que completassem a cidadania feminina tolhida, legalmente, em grande
parte, pelas disposições do Código Civil de 1916 (BARSTED; GARCEZ, 1999).
Como resultado dessa atuação de advocacy junto ao Poder Legislativo, a cidadania formal das mulheres brasileiras foi completada formalmente com a Constituição Federal de 1988, que aboliu as inúmeras discriminações,34 especialmente
no âmbito da legislação sobre a família, coadunando-se com a Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979.
Ao reconhecer a igualdade de direitos de homens e mulheres, na vida pública e na vida privada, a Constituição de 1988 incorporou inúmeros outros direitos individuais e sociais das mulheres. Esse processo contou com o fundamental apoio e incentivo do recém-criado mecanismo institucional, o Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (PINTAGUY, 1990 e 2008), que, no interior do
Estado, advogava pelos direitos das mulheres.
Na década de 1990, a luta contra a violência manteve-se na pauta política com a ampliação das Delegacias Especializadas e criação de novos serviços como abrigos e centros de referência. Nessa década, o Superior Tribunal de
Justiça declarou a ilegalidade da chamada “tese da legítima defesa da honra”,
argumento da legislação colonial que se perpetuava nas decisões do júri popular
(BARSTED; HERMANN, 1995). Outro avanço importante foi a elaboração em
33 A esse respeito, destaca-se a atuação de feministas e de profissionais de saúde no diálogo com o
Estado autoritário para a elaboração do PAISM. Ver a respeito Rocha (2005).
34 Exceção à manutenção da limitação de direitos trabalhistas às trabalhadoras domésticas.
19
Leila Linhares Basterd
1998, pelo Ministério da Saúde, da Norma Técnica sobre Agravos da Violência
Sexual, garantindo o direito ao abortamento legal previsto desde 1940, mas jamais disponibilizado às mulheres vítimas de violência sexual.
Na década de 2000, mudanças no Código Penal brasileiro fortaleceram o
marco legal de enfrentamento da violência de gênero. Avanço institucional importante, em 2003, foi o reconhecimento de status ministerial dado à Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) pelo governo federal. Essa Secretaria, resgatando a atuação do CNDM na década de 1980, intensificou sua interlocução com os movimentos de mulheres e foi reconhecida por esses movimentos como aliada na defesa de políticas públicas com a perspectiva de gênero. A
SPM incorporou, no Plano Nacional Pró-Equidade de Gênero e no Pacto de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, grande parte das demandas apresentadas
nas duas Conferências Nacionais de Mulheres. A atuação dessa Secretaria, em
sintonia com os movimentos de mulheres e em interlocução com o Congresso
Nacional, foi de grande importância na aprovação do Projeto de Lei nº 4549/04,
que deu origem à Lei Maria da Penha. Essa Lei também é tributária do avanço
conceitual e legislativo internacional, especialmente da Convenção para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará.
A Cidadania Ativa: advocacy feminista
e seu impacto no avanço conceitual e legislativo
para os direitos das mulheres
Por força da ação de advocacy dos movimentos internacionais de mulheres,
em 1992, suprindo a ausência do tema da violência contra as mulheres na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW) e reconhecendo a magnitude e a gravidade desse fenômeno em todo
o mundo e seu impacto sobre a vida das mulheres, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução no 19:
A violência contra a mulher que, expressamente, dispõe que a definição de
discriminação contra a mulher, prevista no artigo 1º da Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, incluiu a
violência baseada no sexo, isto é, aquela violência dirigida contra a mulher
porque é mulher ou que a afeta de forma desproporcional35.
Essa Resolução estabelece que a CEDAW aplica-se à violência perpetrada
por agentes públicos ou privados. As Nações Unidas fortaleceram, assim, a
35 Nações Unidas, Comité para la Eliminación de la Discriminación contra la Mujer, Recomendación
General 19, Violencia contra las Mujeres (1992). Disponível em: <www.un.org/womenwatch/daw/
cedaw>.
20
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
compreensão de que a violência contra as mulheres é uma grave forma de discriminação que reflete e perpetua a subordinação das mulheres e que, para a sua
superação, nas esferas pública e privada, exige-se a atuação dos Estados-Membros através de medidas legislativas e políticas sociais.
Nas diversas Conferências da década de 1990, as Nações Unidas firmaram
com seus Estados-Membros um conjunto de compromissos e obrigações voltados para ampliar a participação política e social das mulheres completando a
sua cidadania.
Em 1993, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena,
produziu impacto na comunidade internacional ao reconhecer que os direitos
das mulheres são direitos humanos e que a violência contra as mulheres e as meninas representa uma violação desses direitos, conclamando os Estados-Membros a adotarem a perspectiva de gênero em suas políticas como forma de eliminar a violência e a discriminação contra as mulheres.
A partir da Conferência de Direitos Humanos, todas as demais Conferências das Nações Unidas da década de 1990 apontaram para a necessidade de respostas institucionais à violência contra as mulheres de forma a se ter coerência
na defesa da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.
Ainda em 1993, em resposta às denúncias dos movimentos de mulheres
em todo o mundo, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, através da
Resolução 48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, que
se constitui em um marco na doutrina jurídica internacional.
Em 1994, essa Declaração subsidiou, com seus princípios e orientações, a
elaboração, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), da Convenção Para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, “Convenção de Belém
do Pará”, único instrumento internacional voltado para tratar a violência de gênero, assinada naquele mesmo ano pelo Estado Brasileiro e que, ratificando a
Declaração de Viena, definiu a violência contra as mulheres como “qualquer
ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.36
Essas formas de violência podem ocorrer na família, no trabalho, na sociedade
ou nas instituições do Estado.
A Assembleia Geral da OEA, que aprovou essa Convenção, declarou que a
violência de gênero contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma
manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e
homens. Compreendeu, também, que a violência contra a mulher transcende
todos os setores da sociedade, independentemente de sua classe, raça ou grupo
étnico, níveis de salário, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente as bases da própria sociedade. 36 OEA. Disponível em: <www.oas.org/36AG/portuguese/doc_Res/2162.doc>.
21
Leila Linhares Basterd
A conceituação de violência contra a mulher deve ser articulada àquela
de “discriminação contra a mulher”, incluída na Convenção para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 197537, e reforçada pela Resolução nº 19 da ONU:
Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto
ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, pela
mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do
homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais no
campo político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo
(...) a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas
mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural
de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e
da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher
para prestar serviço a seu país e à humanidade38.
Ambas as Convenções, da ONU e da OEA, definem violência e discriminação, declaram direitos e comprometem os Estados-Membros a adotar um conjunto de medidas capazes de erradicar essas violações de direitos humanos nos
espaços público e privado, por meio de políticas públicas que comportem, inclusive, mecanismos capazes de dar visibilidade e mensurar os avanços verificados.
Reconhecendo a persistência da violência contra as mulheres e meninas,
as Conferências Internacionais da década de 1990, incluindo a Conferência de
Direitos Humanos, de 1993, a Conferência de População e Desenvolvimento,
de 1994, e a IV Conferência Mundial da Mulher, de 1995, transmitiram, em suas
Declarações e Planos de Ação, a preocupação com a segurança das mulheres e
a necessidade de os Estados-Partes da ONU inserirem em suas agendas nacionais a equidade de gênero e de raça/etnia, bem como políticas voltadas para a
problemática da violência contra as mulheres e meninas. Nessas Conferências,
os Estados-Partes assumiram o compromisso de envidar esforços para a eliminação dessa violência praticada por agentes públicos e privados. Note-se que a
Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher, de 1995, incluiu um capítulo inteiro sobre o tema da violência contra as mulheres, compreendida como
37 Nações Unidas, Comité para la Eliminación de la Discriminación contra la Mujer, Recomendación
General 19, Violencia contra las Mujeres (1992). Ver em: www.un.org/womenwatch/daw/cedaw. Em
1999, foi adotado o Protocolo Opcional à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, ratificado pelo Brasil em 13 de março de 2001, que criou dois mecanismos de monitoramento: a) o direito de petição, que permite o encaminhamento de denúncias de
violação de direitos; b) procedimento investigativo, que habilita o Comitê a investigar a existência
de grave e sistemática violação dos direitos humanos das mulheres. O Brasil ratificou com reservas
a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher em 1o de
fevereiro de 1984, tendo ratificado-a plenamente em 1994.
38 Nações Unidas. Ver em: www.un.org/womenwatch/daw/cedaw.
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Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
um obstáculo à igualdade, ao desenvolvimento e à paz. A Plataforma chama
atenção para o reconhecimento e a proteção da liberdade das mulheres de tomarem decisões sobre suas vidas, incluindo as decisões nos campos da sexualidade
e da reprodução, sem coerção, discriminação ou violência.
Importante avanço foi a adoção, em 1997, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, da Resolução 52/86, conclamando os Estados-Partes a revisarem
suas leis e práticas nas esferas criminal e social, de forma a atender melhor às necessidades das mulheres e assegurar-lhes tratamento justo no sistema de justiça.
Essa Resolução inclui um anexo sobre Modelos de Estratégias e Medidas Práticas
sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres no Campo da Prevenção de Crimes
e da Justiça Criminal. Fortalecendo a CEDAW, em 1999, as Nações Unidas aprovaram o Protocolo Facultativo, dando maior força ao Comitê de Monitoramento
dessa Convenção (LIBARDONI; GUZMAN; OBANDO, 2001).
Em 2001, na Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban,
África do Sul, organizações de mulheres negras denunciaram a articulação da
violência de gênero com a violência racial. Tal combinação foi evidenciada, também, no Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), no exame
e na avaliação dos Relatórios Nacionais sobre discriminação racial de distintos
países que aderiram a essa Convenção. Esse Comitê chama atenção para o fato
de que a discriminação racial nem sempre afeta homens e mulheres igualmente
ou da mesma maneira. Assinalou que existem circunstâncias nas quais a discriminação racial apenas ou primariamente afeta as mulheres, ou afeta as mulheres
de uma maneira diferente, ou em um grau diferente daquela dos homens. Tal
discriminação racial poderá frequentemente deixar de ser percebida se não houver um reconhecimento ou uma aceitação das diferentes experiências de vida de
mulheres e homens, nas áreas da vida pública e da vida privada.39
Em paralelo às convenções e aos planos de ação das conferências, os diversos Comitês de Direitos Humanos das Nações Unidas, em especial o CEDAW,
têm elaborado recomendações gerais e específicas aos Estados-Membros, voltadas para superação da violência contra as mulheres. Destacam, para tanto, dois
princípios normativos: a) o princípio da não discriminação, como base para a
eliminação da violência; e b) o princípio da quebra da dicotomia entre o público
e o privado no que tange à violência doméstica, incluindo o abuso sexual, especialmente em relação às crianças.
Tais posicionamentos das Nações Unidas e da OEA são frutos de intensa
ação de advocacy de grupos, organizações e movimentos internacionais de mulheres que tornaram explícita no direito internacional de proteção aos direitos humanos a necessidade de proteção aos direitos humanos das mulheres,
39 General Comments adopted by the Committee on the Elimination of Racial Discrimination, 56 Session (2000),
General Recommendation XXV on Gender-Related dimension of Racial Discrimination.
23
Leila Linhares Basterd
reforçando e ampliando a conceituação de “discriminação contra a mulher” da
Convenção CEDAW.
Em grande medida, por força da Constituição Federal e dos instrumentos
internacionais de direitos humanos, ratificados pelo Estado Brasileiro, toda a
parte sobre o direito de família do Código Civil de 1916 foi revogada, eliminado-se as discriminações legais existentes contra as mulheres.40 No que se refere à
violência, a Constituição de 1988, adiantando-se à Convenção de Belém do Pará,
incluiu um importante Parágrafo ao artigo 226, que trata da Família. Esse Parágrafo, escrito por orientação do movimento de mulheres, reconhece que: “Art.
226, parágrafo 8: O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito
de suas relações” (Constituição Federal, 1988).41
Mesmo não tendo sido incluído no texto constitucional, referência explícita
à violência contra a mulher, a partir da década de 1990, a legislação infraconstitucional foi sendo gradativamente alterada para a preocupação com a violência
de gênero. Assim, em 1994, a Lei 8.930/94, de 6/9/1994, em face das denúncias
sobre a incidência da violência sexual, especialmente contra as meninas, incluiu
o crime de estupro dentre os considerados inafiançáveis.
A Lei 9.029/95, de 13/4/1995, passou a considerar crime a exigência de atestado de esterilização e de teste de gravidez para efeitos de admissão ou permanência em emprego. A Lei 9.046, de 18/6/1995, determinou que os estabelecimentos penais destinados às mulheres fossem dotados de berçários, onde
as condenadas pudessem amamentar seus filhos, conforme já garantido pela
Constituição Federal.
A Lei 9.318, de 5/12/1996, alterou o artigo 61 do Código Penal, que trata
das circunstâncias agravantes de um crime, acrescentando à alínea h a expressão “mulher grávida”. Ainda em 1996, a Lei 9.281 revogou o parágrafo único
relativo aos artigos 213 e 214 do Código Penal (estupro e atentado violento ao
pudor), aumentando as penas para esses delitos.
A Lei 9.520, de 27/11/1997, revogou dispositivos processuais penais que impediam que a mulher casada exercesse o direito de queixa criminal sem o consentimento do marido. Também em 1997, por meio da Lei 9.455, a violência psicológica foi tipificada dentre os crimes de tortura. Essa Lei considera tortura, dentre
outras formas de ação, “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade,
com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. A
pena é aumentada se o crime for cometido contra criança, gestante, deficiente e
adolescente; por agente público; ou mediante sequestro.
40 Em 2003, o novo Código Civil recepcionou a Constituição Federal, igualando homens e mulheres em
direitos e obrigações.
41 Constituição Federal, Coleção Saraiva de Legislação, São Paulo, 1988.
24
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
Em 3 de dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo 89, o Congresso
Nacional aprovou a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória
da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Ainda em 1998, o Ministério da Saúde elaborou a Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravantes Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres
e Adolescentes, que também regulamenta o artigo 128, inciso II, do Código Penal,
que trata do aborto legal (gravidez resultante de estupro).
Em 1999, pela Lei 9.807, vítimas de violência e testemunhas ameaçadas,
homens e mulheres, passaram a ter proteção e auxílio legais. Também em 1999,
com a Portaria do Ministro da Justiça, foi criado um Comitê Técnico “(…) para
elaborar projeto de lei com o objetivo de ampliar os mecanismos de defesa e proteção dos que constituem o núcleo familiar e rever as legislações civil e penal,
visando expurgar as discriminações que, por ventura, ainda nelas se encontrem”
(ver: www.aids.gov.br).
A Lei nº 10.224, de maio de 2001, alterou o Código Penal para dispor sobre
o assédio sexual. Definiu como crime (art. 216-A) constranger alguém com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da
sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerente ao exercício de
emprego, cargo ou função.
Em novembro de 2003, a Lei 10.778 estabeleceu a notificação compulsória,
em todo o território nacional, no caso de violência contra as mulheres que forem
atendidas nos serviços de saúde, públicos ou privados. Essa Lei adotou a definição de violência contra as mulheres contida na Convenção de Belém do Pará.
Em seu artigo 3º, declara que a notificação compulsória tem caráter sigiloso,
obrigando, nesse sentido, as autoridades sanitárias que a tenham recebido.
A partir de 2004, a Lei 10.886/04 reconheceu o tipo penal “violência doméstica”, alterando a redação do artigo 129 do Código Penal, que trata da lesão corporal, para incluir os parágrafos 9º e 10º, com a seguinte redação:
§9º. Violência doméstica. Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda prevalecendo-se das relações domésticas de coabitação ou de
hospitalidade. Pena: Detenção de seis meses a um ano.
§10º. Nos casos previstos nos §§ 1º ao 3º deste artigo, se as circunstâncias são
as indicadas no § 9º, deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3.
Em 2005, a Lei nº 11.106, de 28 de março, alterou diversos artigos do Código
Penal claramente discriminatórios. Assim, por exemplo, o artigo 5º dessa Lei declara revogados os incisos VII e VIII, do artigo 107, que consideravam extinta a
punibilidade do estuprador que se casasse com a vítima (inciso VII) ou quando
a vítima se casasse com terceiro e não requeresse o prosseguimento do inquérito
25
Leila Linhares Basterd
ou da ação penal. A Lei 11.106/2005 também revogou o artigo 219, que considerava crime somente o rapto de mulher “honesta”, expressão discriminatória. Da
mesma forma, o adultério, culturalmente utilizado como argumento contra as
mulheres,42 deixou de ser considerado como crime, tendo sido revogado o artigo
240 do Código Penal.
Essa Lei introduziu outras alterações no Código Penal. Assim, o artigo 128
do Código, que trata do sequestro e do cárcere privado, teve ampliados os incisos do seu parágrafo 1º, que trata da punição mais grave para esses crimes. Foi
alterada a redação do artigo 215, que trata da posse sexual mediante fraude, e a
do artigo 216, que trata do atentado ao pudor mediante fraude, retirando-se o
qualificativo de “honesta” na caracterização da vítima mulher.
A nova redação do artigo 226 do Código Penal, que trata de situações que
aumentam a pena, passa a incluir outros agentes, tais como madrasta, tio, cônjuge, companheiro, não previstos até então. Por essa nova redação fica definitivamente caracterizada a situação de estupro marital ou cometido por companheiro.
O artigo 231, que tratava do tráfico de mulheres, mudou sua redação para
tratar do tráfico internacional de pessoas, podendo, portanto, ter como vítimas
homens e mulheres. Além disso, o Código foi acrescido do artigo 231-A, que
trata do tráfico interno de pessoas, compondo o Capítulo V do Título I do Código Penal, que, denominado, originalmente, “Dos Crimes contra os Costumes”,
foi transformado em “Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoas”.
As importantes alterações introduzidas no Código Penal não incluíram, no
entanto, a descriminalização do aborto ou mesmo a ampliação dos permissivos
legais para a interrupção voluntária da gravidez, além dos elencados no artigo
128, II, do Código Penal, apesar de o Estado brasileiro ter assinado os Planos
de Ação das Conferências realizadas no Cairo, em 1994, e em Pequim, em 1995,
que recomendaram, para países que ainda punem a prática do aborto, o abrandamento da punibilidade por considerar a interrupção voluntária da gravidez
como um problema de saúde pública.
As alterações do Código Penal, em grande medida, foram aquelas indicadas nas Recomendações do Comitê da Convenção para a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), quando da apresentação do Relatório Nacional Brasileiro, em 2004.43 Esse Comitê também recomendou que o Brasil elaborasse uma Lei sobre a violência doméstica contra as
mulheres, ratificando, dessa forma, as demandas do movimento de mulheres.
Observa-se, assim, a preocupação dos legisladores nas décadas de 1990
e início da década de 2000 com a magnitude da violência contra as mulheres,
42 A esse respeito ver Hermann e Barsted (1995).
43 Ver SPM (2005) – VI Relatório Nacional Brasileiro – CEDAW/ONU, Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres. Essa publicação contém documentos sobre o processo de avaliação do VI Relatório
Periódico do Brasil ao Comitê da Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres – CEDAW/Organizações das Nações Unidas – ONU. Período 2001-2005.
26
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
denunciada pelas organizações e pelos movimentos de mulheres e fartamente
divulgada pela mídia. Tal preocupação criou um clima legislativo favorável à
aprovação, em 2006, da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha.
No entanto, em paralelo a esses avanços legislativos, voltados para o enfrentamento da violência contra as mulheres, registrava-se a existência de um
conflito de interpretação entre a Convenção de Belém do Pará e a Lei 9.099/95
em relação à violência contra a mulher, especialmente nas relações domésticas
e familiares.
A Convenção e um conjunto de instrumentos internacionais consideram a
violência contra a mulher uma violação de direitos humanos, ou seja, um crime
de grande gravidade. A Lei 9.099/95 trata de crimes considerados de menor potencial ofensivo e para julgá-los foram criados procedimentos processuais penais, com forte influência da legislação processual civil, a serem aplicados por
Juizados Especiais Criminais.44 A definição de crime de menor potencial ofensivo tem como indicador o fato de o delito não ter pena prevista no Código Penal
superior a dois anos.
Por essa lei, o crime de lesão corporal de natureza leve, tipificado no Código Penal, no artigo 129 caput, e o crime de ameaça, previsto no artigo 147, cujas
penas não ultrapassam dois anos, passam a ser considerados crimes de menor
poder ofensivo.45 O crime de lesão corporal perdeu o caráter de crimes de ação pública (qualquer pessoa pode denunciar) e foi transformado em crime de ação pública condicionada à representação da vítima. Isso significa que a ação penal só
tem início a partir de denúncia da própria vítima contra o acusado. Além disso,
pela Lei 9.099/95, as Delegacias de Polícia devem preencher somente o Termo
Circunstanciado de Ocorrência (TCO), mas não realizam, necessariamente, o inquérito policial. Essa mesma prevê, também, a possibilidade de uma conciliação
entre vítima e agressor que, se realizada, põe fim ao procedimento judicial. O
autor dos crimes de pena não superior a dois anos não pode ser preso, não perde
a sua condição de primário, e é proibida a sua identificação criminal.
De modo geral, teoricamente, a Lei 9.099/95 apresenta uma solução rápida
para o conflito, permitindo a sua composição sem a interferência punitiva do Estado, e reforça a possibilidade de aplicação de penas alternativas à prisão. Para
muitos, representa um avanço em termos do Direito Penal, considerando-se as
partes como tendo o mesmo poder para aceitar ou não a conciliação.
No entanto, levando-se em consideração a natureza do conflito e a relação de poder presente nos casos de violência doméstica contra as mulheres, explicitada no texto da Convenção de Belém do Pará, a Lei 9.099/95 acabava por
44 Ver, a respeito desses Juizados, Campos (2003).
45 As lesões corporais e as ameaças contra as mulheres, provocadas por pessoas de sua intimidade, em
especial por cônjuge ou companheiro, representam mais de 70% dos feitos recebidos pelos Juizados
Criminais.
27
Leila Linhares Basterd
estimular a desistência das mulheres em processar seus maridos ou companheiros agressores e, com isso, estimulava, também, a ideia de impunidade presente
nos costumes e na prática que leva os homens a agredirem as mulheres. Cerca
de 70% dos casos que chegavam aos Juizados Especiais Criminais envolviam
situações de violência doméstica contra as mulheres. Do conjunto desses casos,
a grande maioria terminava em “conciliação”, sem que o Ministério Público ou
o Juiz deles tomassem conhecimento e sem que as mulheres encontrassem uma
resposta qualificada do poder público à violência sofrida.
Registrava-se, assim, um conflito legislativo entre a Convenção de Belém
do Pará e a Lei 9.099/95. A não observância da Convenção mantinha no Brasil um
padrão de quase “descriminalização” dos crimes praticados contra as mulheres
no âmbito das relações familiares.
No intuito de provocar o Estado a sanar o conflito legislativo e impulsionar
uma política pública de enfrentamento da violência contra a mulher, organizações feministas mobilizaram-se para a elaboração de um Anteprojeto de Lei debatido no período de 2002-2006.
A Cidadania Ativa: advocacy feminista na elaboração
e na aprovação da Lei Maria da Penha
A ação de advocacy feminista para a elaboração de uma lei de violência doméstica e familiar contra as mulheres foi promovida, inicialmente, em 2002, por
uma articulação envolvendo, em sua maioria, feministas operadoras do direito
de diversas ONGs e instituições. Essa articulação denominada de Consórcio de
ONGs46 elaborou uma proposta de lei de enfrentamento da violência doméstica
contra as mulheres calcada na Convenção de Belém do Pará.
Essa articulação é um exemplo bem-sucedido de advocacy política para aprovação de uma lei acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher. Tendo
por base a Convenção de Belém do Pará, a Convenção CEDAW, as Resoluções e
Recomendações das Nações Unidas, o texto da Constituição Federal de 1988, além
de estudo comparativo das legislações de diversos países do continente e, também, da Espanha, esse Consórcio, de forma propositiva, redigiu um anteprojeto
de lei focado na violência doméstica e familiar contra a mulher por considerar a
naturalização e o alto grau de banalização dessa violência na sociedade brasileira.
No período de novembro de 2003 a setembro de 2006, esse Consórcio não apenas redigiu um anteprojeto de lei de enfrentamento da violência contra a mulher,
como atuou decisivamente no processo legislativo que culminou com a sanção
presidencial da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha.
46 Esse Consórcio foi formado pelas seguintes ONGs: CEPIA, CFEMEA, AGENDE, ADVOCACI,
CLADEM/IPÊ e THEMIS, com a contribuição de diversas operadoras do direito.
28
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
No processo de tramitação e aprovação da Lei Maria da Penha, em paralelo
a essa ação nacional de advocacy, desenvolveu-se também uma vitoriosa ação
internacional de advocacy promovida pelas organizações de direitos humanos
CEJIL e CLADEM junto à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos (OEA). Denunciou-se, junto a essa Comissão, a omissão do
Estado brasileiro no processo de apuração e julgamento do crime praticado contra Maria da Penha Fernandes por seu ex-marido.47
Tais ações, no nível nacional e internacional, são exemplos importantes de
ações de advocacy promovidas pelos movimentos de mulheres. No Brasil, essa
conjugação de forças, possibilitou que, em março de 2006, o PL 4559/04 fosse
aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e, em agosto de 2006, sob o
número de PLC37/2006, fosse aprovado também no Plenário do Senado Federal
e sancionado em 07 de agosto de 2006 pelo Presidente da República, sob o número Lei 11340/006 – Lei Maria da Penha.
Em síntese, a Lei 11.340/06, além de definir as linhas de uma política de
prevenção e atenção no enfrentamento dessa violência, afastou em definitivo a
aplicação da Lei 9.099/95, criou um mecanismo judicial específico – os Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, com competência cível e
criminal; inovou com uma série de medidas protetivas de urgência para as vítimas de violência doméstica; reforçou a atuação das Delegacias de Atendimento
à Mulher e da Defensoria Pública.
Mesmo considerando a Lei Maria da Penha um avanço legislativo no enfrentamento da violência contra a mulher, sua vigência efetiva esbarra em um
conjunto de obstáculos que necessitam ser superados para que seus efeitos possam modificar comportamentos e valores discriminatórios e violentos.
Em paralelo à produção legislativa brasileira, diversos países-membros da
OEA, impulsionados pela Convenção de Belém do Pará, deram início à elaboração de leis sobre violência doméstica e familiar, em grande medida sem destacar
explicitamente a violência contra a mulher.
Estudos comparativos sobre como os Estados-Membros da OEA vêm implementando essa Convenção, especialmente no que se refere a suas legislações
e ao acesso das mulheres à justiça, deixam evidente as dificuldades na efetivação
de leis e políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência contra as
mulheres. O caso brasileiro é objeto de análise na sequência.
47 Trata-se da denúncia contra o Estado brasileiro, encaminhada, em 1998, pelas ONGs CEJIL-Brasil
(Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e pelo CLADEM-Brasil (Comitê Latino-Americano e do
Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA)
em face da impunidade no crime praticado, em 1983, contra a farmacêutica cearense Maria da Penha
Fernandes. Em 2001, essa Comissão condenou o Brasil pela omissão, tolerância e impunidade nos casos de violência contra as mulheres. Em seu pronunciamento a Comissão condenou o Brasil a julgar o
agressor de Maria da Penha Fernandes pelo crime de tentativa de homicídio, indenizá-la e elaborar lei
específica sobre violência contra a mulher em conformidade com a Convenção de Belém do Pará. Ao
sancionar a Lei 11.340/2006, o Presidente da República nomeou essa de Lei Maria da Penha.
29
Leila Linhares Basterd
A avaliação do Comitê de Monitoramento da Convenção
de Belém do Pará sobre a implementação dessa convenção
pelos Estados-Membros da OEA
No Brasil, a concretização da Lei Maria da Penha esbarra em obstáculos,
em especial a dificuldade de acesso à justiça, indicando a necessidade de forte
ação de advocacy junto ao Poder Judiciário. O acesso à justiça implica o conhecimento da lei, a possibilidade de fazer uso desse conhecimento, a existência de
mecanismos ou canais que transformem o direito potencial em direito real e no
tratamento igualitário, livre de preconceitos, oferecido pelo Poder Judiciário.
Se, por um lado, houve esforços do Estado para a eliminação da discriminação na legislação brasileira, além de avanços na criação de mecanismos de gênero e de instituições voltadas para atenção e proteção às mulheres em situação
de violência, por outro constam-se limitações que necessitam ser superadas.
Tais obstáculos e limitações à consolidação das conquistas das mulheres
brasileiras no plano legal, em grande medida, são comparáveis àqueles encontrados em diversos países-membros da OEA, signatários da Convenção de Belém
do Pará. Tal conclusão depreende-se do trabalho que, desde 2005, vem sendo
realizado pelo Mecanismo de Monitoramento dessa Convenção (MESECVI).
Criado pela OEA em 2005, esse Mecanismo é formado por um órgão político – a Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), por um comitê técnico
(CEVI) constituído por especialistas de cada Estado-Parte. O Comitê de Especialistas realizou uma primeira rodada de avaliação que compreendeu o período
de julho de 2005 a julho de 2007. Nesse período foram enviados aos Estados-Partes questionário com quatro blocos de perguntas sobre a implementação
da Convenção: relativos a: legislação/planos nacionais, acesso à justiça, dados
estatísticos e orçamento.48 As respostas dos Estados foram analisadas pelas especialistas que solicitaram complementações, compararam as respostas com os
Relatórios-Sombra disponíveis elaborados por organizações de mulheres,49 incluindo os Relatórios-Sombra encaminhados pelas organizações de mulheres
ao CEDAW.
Em um esforço de sistematização, o MESECVI-CEVI elaborou um Informe
Hemisférico, a partir das respostas que 28 Estados da região apresentaram ao
CEVI. Esse Informe Hemisférico resume a situação da luta contra a violência
à mulher na região, avaliando o cumprimento das obrigações assumidas pelos
diversos países quando ratificaram a Convenção, apresentando recomendações
para sua efetiva aplicação.
48 Disponível em: <http://www.oas.org/cim/Documentos/MESECVI/CEVI/doc.5/06 rev.1>.
49 A Secretaria Técnica do MESECVI recebeu informes-sombra da Argentina (CLADEM), El Salvador
(CLADEM), Honduras (CLADEM), Perú (CMP Flora Tristán) e Uruguay (CLADEM).
30
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
Além da permanência das discriminações e dos obstáculos encontrados ao
acesso a direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, foi evidenciada
a partir desse trabalho do CEVI a ainda frágil atuação dos Estados no enfrentamento da violência contra as mulheres, mesmo nos Estados que já promoveram
reformas legislativas, como o Brasil.
A ausência de dotações orçamentárias e de dados estatísticos, a dificuldade
de implementação de planos nacionais e de articulação das distintas esferas do
Estado, a fragilidade dos mecanismos existentes para a promoção dos direitos
das mulheres, foram alguns dos obstáculos presentes em todos os países, em
maior ou menor grau. Destacamos alguns pontos do Informe Hemisférico relativos à situação da legislação e do acesso à justiça.
Em relação ao avanço legislativo foram destacados cinco tipos de violências contra as mulheres: violência doméstica e familiar, estupro dentro do casamento, tráfico de pessoas, prostituição forçada e assédio sexual. Especificamente, em relação à violência doméstica e familiar, verificou-se que 25 países
possuíam em sua legislação disposições contra essa forma de violência. Um
grupo significativo de países não dispunha de normas contra o tráfico de pessoas, a prostituição forçada e o assédio sexual ou mesmo admitiam o delito de
violência sexual praticada pelo cônjuge. O Informe avalia criticamente o fato
de a ênfase legislativa recair, na grande maioria dos Estados, sobre a violência
no âmbito familiar, na medida em que a Convenção trata de todas as formas de
violência contra as mulheres.
O Informe critica o fato da existência de leis genéricas sobre violência familiar que não dão a devida visibilidade à violência contra as mulheres. A falta
de referência à mulher nas legislações implica o ocultamento das relações de
poder que regem as relações entre homens e mulheres, em detrimento destas.
Recomenda que se torne necessário o reconhecimento da violência praticada
por companheiros, namorados, ex-companheiros ou pessoas que, sem estarem
vinculadas legalmente com a mulher, com ela mantenham relação interpessoal.
Outro ponto destacado no Informe refere-se ao fato de que a maior parte
das legislações não dispõe de medidas específicas de reparação para as mulheres vítimas de violência, sejam medidas de reabilitação física e psicológica ou
indenizações econômicas a serem pagas pelo agressor em ações civis.
Da mesma forma, a maior parte dos Estados não conta com sanções específicas para os funcionários que não cumprem com a aplicação da lei relativa à
violência contra as mulheres. Um grupo de países, dentre os quais o Brasil, informou que tal delito está tipificado de forma genérica no Código Penal como
crime de prevaricação.
Com a preocupação de ampliar o avanço legislativo, de acordo com o disposto na Convenção de Belém do Pará, o Informe Hemisférico apresentou um
conjunto de recomendações para serem incluídas na legislação, dentre as quais:
31
Leila Linhares Basterd
• Criminalizar a violência contra as mulheres através de reformas dos
códigos penais ou expedição de leis especiais, de acordo com o estabelecido na Convenção e com os padrões internacionais do direito internacional de dos direitos humanos.
• Eliminar toda norma relativa à violência contra a mulher que seja genericamente neutra. Ou seja, é necessário que as normas vigentes relativas à violência doméstica sejam especificas para prevenir, punir e
erradicar as agressões infligidas às mulheres.
• Regulamentar as leis vigentes sobre violência contra as mulheres nos casos
em que seja necessário assegurar uma melhor e mais eficaz aplicação.
• Tipificar como delito a violência sexual e outros abusos sexuais dentro
do casamento e das uniões de fato.
• Revogar as disposições que permitam o uso de métodos de mediação
ou conciliação judicial ou extrajudicial, nos casos de violência contra
as mulheres, em face das desiguais condições de poder entre as partes
que pode levar a mulher a aceitar acordos que não deseja ou que não
terminem com a violência.
O informe destaca, também, as dificuldades das mulheres de terem acesso
à justiça; de serem bem atendidas pelos funcionários encarregados de cumprir a
Lei; o limitado esforço dos Estados na promoção de capacitação desses funcionários; a limitação qualitativa e quantitativa dos serviços específicos existentes, incluindo delegacias especializadas; a não realização pelos Estados de avaliações
periódicas sobre a atuação desses serviços; os preconceitos e as discriminações
contra as mulheres ainda vigentes nas instituições, dentre outras questões que
limitam o enfrentamento da violência contra as mulheres. Dentre as Recomendações do Informe para os Estados-Partes da OEA no que se refere ao acesso à
justiça, destacam-se as necessidades de:
• Estabelecer mecanismos judiciais eficazes e ágeis para punir toda forma
de violência contra as mulheres.
• Sensibilizar e criar consciência entre os(as) operadores de justiça a fim
de que ocorra uma adequada aplicação da lei e para que as sentenças
levem em consideração o Direito Internacional em matéria de direitos
humanos e violência contra as mulheres.
• Elaborar protocolos de atenção às mulheres vítimas de violência que
devem ser observados pela policia e pelo judiciário além dos profissionais de saúde.
• Aumentar o número de entidades encarregadas de receber as denúncias de violência contra as mulheres para melhor atender às denunciantes, e garantir que se realize um trabalho coordenado visando evitar a demora ou ineficiência na atenção e no apoio às vítimas.
32
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
• Estabelecer nas leis e regulamentos nacionais sanções para os funcionários
(as) das áreas da policia e da justiça que não levam a diante as denúncias
e não assegurem a aplicação da lei.
• Implementar e manter programa de capacitação nacional permanente
e integral, tanto para juízas e juízes, como para os demais operadores
da justiça encarregados de atender às mulheres vítimas de violência.
• Implementar e avaliar o funcionamento dos serviços de apoio às mulheres vítimas de violência tais como abrigos e centros de acolhimento;
serviços de assistência familiar, grupos de autoajuda, bem como linhas
telefônicas gratuitas para denúncias.
• Elaborar e implementar políticas de prevenção e de atenção à violência
sexual.
• Estabelecer medidas de proteção eficazes para as mulheres que denunciam a violência sofrida, incluindo proteção para suas famílias e para
as testemunhas.
• Implementar as recomendações da Relatora Especial da ONU para
Violência contra as Mulheres e da Relatoria da Mulher da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
Desse Informe, fica patente que, para as mulheres, o acesso à justiça, por
meio dos serviços necessários para esse fim, especialmente o acesso ao Poder
Judiciário e às instituições da justiça como um todo, apresenta-se, assim, como
um desafio em todos os Estados-Membros da OEA, mesmo para aqueles que no
campo legislativo adequaram-se à Convenção de Belém do Pará.
A Cidadania Ativa: o necessário esforço
de advocacy junto às instituições da Justiça
No Brasil, a advocacy feminista nas últimas três décadas teve como alvos
e interlocutores os poderes legislativo e executivo. O investimento de advocacy
junto ao Poder Judiciário e às demais instituições da justiça apresenta-se como
um processo recente (HERMANN; BARSTED, 1995), intensificando-se a partir
da Lei Maria da Penha.
Esse é um poder que não tem a visibilidade do executivo e do legislativo;
seu funcionamento e decisões são menos conhecidos pelas organizações e movimentos sociais e pela sociedade como um todo. Para uma advocacy feminista
pela implementação de uma legislação democrática, em especial pela Lei Maria
da Penha, é necessário lançar luz sobre esse espaço institucional, compreender a
sua “política”, avaliar, por exemplo, o quanto o Judiciário e as demais instituições
da justiça foram permeadas pelo direito internacional dos direitos humanos.
33
Leila Linhares Basterd
Hermann e Barsted (1995: 28), na análise do poder judiciário, citam uma
importante avaliação, realizada por Rosa (1981)50, que, apesar do decurso do
tempo, continua atual:
[...] as normas jurídicas são aplicadas por através de pessoas, de seres humanos, criaturas que vivem em determinada circunstâncias, que foram formadas
e desenvolvidas em face de elementos condicionantes de natureza sociocultural e cuja vivência ou experiência de vida há de estar presente em toda a
sua atividade, inclusive na intermediação que realizam entre o universo normativo-jurídico e os fatos concretos levados à sua apreciação, análise e julgamento, em busca de uma solução de litígios declarados. [...] Dados ainda
não devidamente processados de pesquisa parecem indicar o caráter predominante conservador dos juízes. [...] Esse conservadorismo, embora mesclado
com a tomada de algumas posições nitidamente ‘abertas’ ou ‘avançadas’, é
revelado pelo extrato sociocultural e socioeconômico de que provem eles na
sua esmagadora maioria (classe média e pequena burguesia) e pela trajetória
seguida em sua formação escolar e universitária e, em muitos casos, em sua
vida profissional anterior ao ingresso na magistratura. Os conceitos manifestos, os valores afirmados, as preferências e maneiras de decidir certas questões
cruciais mostram que essa formação conservadora deixou marcas fortes.
Assim, os mitos da “neutralidade” e da imparcialidade” dos juízes são contestados se admitirmos a estreita imbricação entre lei e política.
Hermann e Barsted (1995: 31) assinalam ainda que:
(...) além da origem socioeconômica e da articulação com o poder político,
há, entre os juízes um sprit de corps que não deve ser subestimado na análise de como as leis são interpretadas e aplicadas pelo Poder Judiciário (...)
os condicionamentos socioeconômicos, políticos e culturais geram visões de
mundo que reforçam esse habitus51 e se refletem no julgamento daqueles que
são “iguais” e daqueles que são “diferentes”. As homologias e as heterologias
não se referem apenas ao status socioeconômico, mas podem dizer respeito,
também, ao gênero ou à raça (etnia) dos litigantes.
Tais reflexões sobre o Poder Judiciário poderiam ser aplicadas, também, às
demais instituições da justiça.
Rocha (2007) assinala que a atuação do judiciário configura-se como uma
ação política reafirmando ou contestando princípios e hierarquias. Para essa autora o Judiciário é um dos espaços em que deve ser travada a luta pelo enfrentamento da violência de gênero, que, de modo mais amplo, é parte importante
da luta pela ampliação da democracia, de modo que essa atuação se constitua
50 Ver Rosa (1981), à época, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
51 Sobre o conceitos de habitus, ver Bourdieu (1974).
34
Lei Maria da Penha: uma experiência bem sucedida de advocacy feminista
em um dos instrumentos efetivos de defesa e garantia de direitos dos segmentos
subalternizados, através da democratização do acesso desses setores e de uma
intervenção que supere as falhas e omissões do judiciário no Brasil.
Dessa forma, atrás da aparência de neutralidade e da suposta tecnicidade
das decisões judiciais, estão presentes concepções ideológicas e políticas que tornam as instituições da justiça resistentes ao avanço da legislação com a perspectiva de gênero. O Poder Judiciário, especialmente, ainda não incorporou plenamente as concepções e os princípios norteadores do direito internacional dos
direitos humanos, daí a resistência de alguns juízes de interpretarem a Lei Maria
da Penha como parte do sistema internacional de proteção aos direitos humanos, recepcionado pela Constituição de 1988. Além disso, ao contrário do Poder
Legislativo e do Poder Executivo, as instituições da justiça, incluindo o Judiciário, ainda não se democratizaram suficientemente para promover uma interlocução com os movimentos sociais.
Mesmo considerando que o acesso à justiça requer o envolvimento de outras instituições e outros serviços, para superar parte das dificuldades e dos
obstáculos para a plena efetivação da Lei Maria da Penha, as organizações e os
movimentos de mulheres necessitam exercer uma atuação forte e constante de
advocacy dirigida ao Poder Judiciário e demais instituições da justiça, incluindo a
Ordem dos Advogados do Brasil, levando-as a reconhecer que a violência contra
as mulheres é uma grave violação dos direitos humanos.
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37
O processo de criação, aprovação
e implementação da Lei Maria da Penha
Myllena Calazans
Iáris Cortes
1. Antecedentes
O processo para a criação de uma lei especial de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil foi muito longo e antecipado de
muitas manifestações e debates. Na década de setenta, quando grupos de mulheres foram às ruas com o slogan quem ama não mata, levantou-se de forma
enérgica a bandeira contra a violência, sendo este tema incluído na pauta feminista como uma de suas principais reivindicações. Grupos foram formados, manifestações foram feitas e a luta para ver punidos os assassinos foram iniciadas.
Um dos casos mais emblemáticos daquela época foi o de Doca Street, que assassinou sua companheira e no Tribunal de Júri alegou “legítima defesa da honra”,
alegação até hoje usada por advogados que tentam livrar assassinos da punição
(Brazão e Oliveira, 2010: 19).
Inicia-se, na década de oitenta, as primeiras ações governamentais no sentido de incluir em sua agenda a temática da violência contra as mulheres e, em
1985, é criada a primeira delegacia especializada de atendimento às mulheres,
fruto da luta do movimento de mulheres.
Nos anos noventa, as feministas se mobilizavam de forma mais contundente. Organizaram seminários e reuniões em que a questão da violência era o
foco principal. No Congresso Nacional existiam alguns projetos de Lei de iniciativa de parlamentares, de um modo geral voltados para aplicação de medidas
punitivas e/ou ações pontuais. Nesse período, a representação feminina no Congresso era pequena e a ação ainda não parecia prioritária para o Executivo. Esses
fatores foram determinantes para a permanência da lacuna legislativa.
Como se vê, não havia proteção específica para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar na legislação brasileira e as conquistas legislativas da
década de noventa e início dos anos 2000 eram tímidas e praticamente restritas
à alteração da legislação penal. Dentre a legislação que garantia direitos ou eliminava discriminações tínhamos a Lei 7.209/1984 que alterou o artigo 61 do Código Penal, estabelecendo entre as circunstâncias que agravavam a pena ser ele
praticado contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge. A Lei 8.930/1994
39
Myllena Calazans e Iáris Cortes
estabeleceu que o estupro e o atentado violento ao pudor eram crimes hediondos. Já a Lei 9.318/1996 agravou a pena quando o crime era praticado contra
criança, velho, enfermo ou mulher grávida. Em 1997 foi sancionada a Lei 9.520,
revogando o artigo 35 do Código de Processo Penal que estabelecia que a mulher casada não podia exercer o direito de queixa sem consentimento do marido,
salvo quando estivesse dele separada ou quando a queixa fosse contra ele, podendo o juiz suprir o consentimento caso o marido se recusasse a fazê-lo. O assédio sexual, após intensas discussões e advocacy feminista, foi incluído no Código
Penal pela Lei 10.224/2001.
Mesmo com estes avanços legislativos, as incorporações efetivadas não tinham força necessária para amenizar a vida de mulheres ameaçadas ou violadas. Era como se estes crimes, praticados no reduto do lar – sempre segredo de
família –, fossem para ser guardados a quatro chaves, sem interferências do Estado ou da sociedade. Atos de violência eram muitas vezes encarados como naturais. A questão cultural ou mesmo a necessidade de ter um provedor para si e
sua família também podem ser consideradas como uma das causas de a mulher
permanecer na violência.
Este era o panorama do nosso arcabouço jurídico quando o PL 2372/2000,
de autoria da Deputada Jandira Feghali, foi vetado pelo Sr. Presidente da República, pela Mensagem n. 546, de 28 de julho de 2002. O PL era também pontual,
mas ampliaria o campo de defesa da mulher vítima de violência.
À época a Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), ONG
feminista sediada no Rio de Janeiro, promovia um seminário onde participariam
muitas outras organizações de mulheres. A maioria já sabia do veto presidencial
e da necessidade urgente de tomarmos uma atitude drástica frente à violência
contra a mulher, principalmente a violência doméstica e familiar. A Cepia gentilmente cedeu espaço para que o Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) apresentasse o estudo Situação Dos Projetos De Lei Sobre Violência Familiar, em
Tramitação no Congresso Nacional, acompanhados pelo CFEMEA (Cortês, 2002) para
ser debatido com o grupo participante do evento. O trabalho era uma amostra
do que estava em discussão no Congresso Nacional e poderia servir de ponto de
partida para a elaboração de um anteprojeto de lei integral de combate à violência contra as mulheres que tanto sonhávamos.
A questão da violência doméstica contra as mulheres estava inserida em
seis projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional. A maioria deles alterava artigos do Código Penal. O de número 3.901/00, de autoria da deputada
Nair Xavier Lobo (PMDB/GO), havia sido transformado na Lei 10.455, em 13
de maio de 2002. Essa lei alterou procedimentos contidos na Lei dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099/1995), estabelecendo que, em caso de
violência doméstica, o juiz poderia determinar como medida cautelar o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.
40
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
A mesma deputada Nair Xavier Lobo apresentou mais dois projetos sobre
o tema: o PL 5.172/2001, sobre os efeitos do abandono justificado do lar, e o PL
6.760/2002, alterando o art. 129 do Código Penal (que trata da Lesão Corporal).
Dois outros projetos foram apresentados pelo deputado Freire Júnior
(PMDB/TO): o PL 905/1999 e o PL 1.439/1999 (este último anexado ao PL
905/1999). O que mais chamou atenção no PL 905/1999 foi a forma inusitada para
forçar uma reconciliação em nome de uma paz familiar. O juiz ou conciliador deveria apresentar às partes “os benefícios da conduta familiar pacífica, os direitos
e deveres de cada ente da família, firmando-se o pacto de cessação da violência,
que será assinado pelas partes e homologado pelo juiz”. Além disso, a questão
continuaria a ser tratada pela Lei 9.099/1995, como de menor potencial ofensivo
e a ação poderia ser penal pública, dependendo de representação quando resultassem lesões corporais de natureza leve. Além do mais, permanecer sob a égide
da Lei 9.099/1995, a violência doméstica continuaria menosprezada e tratada
como uma simples “briguinha de casal, em que ninguém deveria pôr a colher”,
e as penas continuariam a ser cestas básicas ou trabalho comunitário.
Por último, havia o Projeto de Lei 2.372/2000, de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), que dispunha sobre o afastamento do agressor da habitação familiar, como uma medida cautelar. Seu descumprimento seria visto
como crime de desobediência à ordem legal de funcionário público. A relatora
deputada Zulaiê Cobra (PSDB/SP) apresentou um substitutivo ampliando seu
alcance para além do Código Penal, abrangendo os códigos de Processo Civil e
Processo Penal. Este projeto aprovado no Congresso Nacional foi vetado totalmente pelo Presidente da República.
O afastamento cautelar do agressor do convívio familiar, constante do projeto vetado, era uma das reivindicações do movimento de mulheres, entretanto
outras questões apontadas na justificativa do veto1 não eram de todo a serem
desprezadas.
Em resumo, os projetos em tramitação no Congresso estavam muito aquém
das reivindicações feministas e, em sendo aprovados, iriam alterar pontualmente algumas leis já existentes, mas não iriam minorar o problema da violência
doméstica contra as mulheres.
No Judiciário, os casos de violência doméstica eram encaminhados para
os juizados especiais cíveis e criminais – JEC e JECRIM, instituídos pela Lei
9.099/1995, que tinham competência para julgar os crimes de “menor potencial
ofensivo”, crimes com pena menor ou igual a 1 ano2. A violência doméstica co1
O Veto ao PL foi apreciado e acatado pelo Congresso apenas em 2008.
2
A Lei 10.259/2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, estabeleceu em seu art. 2º que as infrações de menor potencial ofensivo são
aquelas com pena máxima não superior a dois anos. Em 2006, a Lei 11.313 alterou o texto do artigo 61 da Lei 9.099 para incorporar a definição do art. 2º da Lei 10.259/2001, deixando, assim, de
41
Myllena Calazans e Iáris Cortes
metida na forma de crime de lesão corporal leve, cuja pena era de seis meses a
um ano, passou a ser apreciada pelos JECRIMs como crimes de menor potencial
ofensivo.
No balanço dos efeitos da aplicação da Lei 9.099/1995 sobre as mulheres,
diversos grupos feministas e instituições que atuavam no atendimento a vítimas
de violência doméstica constataram uma impunidade que favorecia os agressores. Cerca de 70% dos casos que chegavam aos juizados especiais tinham como
autoras mulheres vítimas de violência doméstica. Além disso, 90% desses casos
terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação sem que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Nos
poucos casos em que ocorria a punição do agressor, este era geralmente condenado a entregar uma cesta básica a alguma instituição filantrópica.
Os juizados especiais, no que pese sua grande contribuição para a agilização de processos criminais, incluíam no mesmo bojo rixas entre motoristas ou
vizinhos, discussões sobre cercas ou animais e lesões corporais em mulheres por
parte de companheiros ou maridos. Com exceção do homicídio, do abuso sexual
e das lesões mais graves, todas as demais formas de violência contra a mulher,
obrigatoriamente, eram julgadas nos juizados especiais, onde, devido a seu peculiar ritmo de julgamento, não utilizavam o contraditório, a conversa com a
vítima e não ouviam suas necessidades imediatas ou não.
Era este o cenário quando nos reunimos3 naquela noite de julho de 2002,
acolhidas pela Cepia, e tomamos a decisão de estudarmos uma estrutura para
uma minuta de anteprojeto que abarcasse todas as nossas aspirações, contribuindo para erradicar de forma ampla a violência doméstica e familiar contra
as mulheres. Seria uma legislação de impacto que não se restringisse apenas à
questão penal. Deveria também alcançar todos os órgãos governamentais responsáveis pela segurança, educação, saúde, entre outros. Era este o pensamento
do movimento de mulheres e feministas, sempre que o assunto era violência
contra as mulheres, principalmente a violência doméstica. Portanto, eram essas
as diretrizes para uma proposta de lei nas discussões coletivas do movimento.
1.1. A Formação do Consórcio
haver duas definições na legislação sobre as infrações de menor potencial ofensivo in verbis: “Art.
61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada
ou não com multa”.
3
42
Leila Linhares Barsted (Cepia), Carmen Hein de Campos (Themis), Silvia Pimentel (Cladem), Iáris
Ramalho Cortês (Cfemea), Beatriz Galli (Advocaci) e Elizabeth Garcez (Agende). Participaram, também, Rosana Alcântara, do Cedim, Rosane Reis Lavigne, defensora pública do Estado do Rio de
Janeiro e Ela Wiecko de Castilho, sub-procuradora da República.
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
Frente ao desafio de ver uma lei integral de combate à violência, dentro do
movimento de mulheres, seis organizações não governamentais feministas idealizaram um Consórcio de ONGs Feministas para Elaboração de Lei Integral de
Combate à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres. O Consórcio foi
formado pelas organizações CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria; ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos; AGENDE –
Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento; CEPIA – Cidadania, Estudos,
Pesquisa, Informação, Ação; CLADEM/BR – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; e THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, bem como por juristas e feministas especialistas no assunto. A
coordenação do Consórcio ficou sob a responsabilidade do CFEMEA, por estar
sediado em Brasília e ter expertise em advocacy no legislativo e executivo. Os
trabalhos do Consórcio foram iniciados em julho de 2002 e se estenderam até o
primeiro ano da promulgação da lei. Daí em diante, os grupos que participaram
do Consórcio e os outros que se uniram para defender a aprovação do projeto
de lei continuaram a realizar ações, de forma isolada ou em parceria, com outras
ONGs ou instituições governamentais ou não.
Na primeira reunião de trabalho do Consórcio explicitamos o que queríamos e o que não queríamos, respondendo a perguntas, tais como: quais os efeitos da Lei 9.099/1995 sobre a violência cometida contra as mulheres no âmbito
doméstico? Por que uma lei específica de violência doméstica? O que ela deve
conter? Quais as implicações na ordem jurídica? O que não queremos que conste
na lei? Que mulheres ela deve atingir? O que será destinado ao agressor?... No
momento não tínhamos muito a ideia da repercussão que esta lei traria. Uma
coisa estava clara para o grupo: a Lei 9.099/1995 deveria ficar fora da lei, pois,
para nós, a violência doméstica não era e não poderia continuar a ser tratada
como uma violência de “menor potencial ofensivo”. Esta lei até poderia ser
usada como subsídio na sua parte referente à celeridade do procedimento.
No “toró de ideias” decidimos incluir definições claras e precisas sobre violência doméstica, e a prevenção deveria ser feita de forma ampla, abarcando as
escolas, o trabalho, a sociedade. Assim, “nossa” lei romperia os padrões preestabelecidos das normas legais, alcançaria os poderes constituídos e todas as famílias brasileiras, independentemente de classe, formato, integrantes etc.
No entanto, exigiu-se que o estudo tivesse a participação do movimento de
mulheres, do Poder Executivo, de parlamentares (onde a Bancada Feminina do
Congresso Nacional deveria ter um papel relevante), de membros da magistratura, de operadores do direito e da sociedade em geral.
Decidiu-se que seria feito um levantamento das legislações de outros países, em especial os latino-americanos, para subsidiarem o nosso trabalho. Utilizaríamos também, as sugestões do Relatório sobre Violência Contra a Mulher,
suas Causas e Conseqüências, elaborado pela Relatoria Especial Sra. Radhika
43
Myllena Calazans e Iáris Cortes
Coomaraswamy, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, e apresentado
durante a 52ª Sessão, realizada em 1995. Traríamos ainda como componentes
essenciais para nosso trabalho, como a Convenção de Belém do Pará4, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher
(Convenção da Mulher)5, a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da
Mulher (Beijing, 1995) e vários outros instrumentos de Direitos Humanos, patrocinados pela Organização das Nações Unidas.
Também seria considerado o trabalho realizado pela Organização Pan-americana de Saúde em agosto de 2003, no qual foram apresentados os componentes
fundamentais para leis e políticas sobre violência de gênero, em particular sobre
a violência doméstica/intrafamiliar.
No final de 2003 o resultado do trabalho do Consórcio foi apresentado em
um seminário realizado na Câmara dos Deputados, à Bancada Feminina do
Congresso Nacional, onde foi debatido com as deputadas e a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM.
Resumidamente o estudo do Consórcio continha as seguintes propostas:
a. conceituação da violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de Belém do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral;
b. criação de uma Política Nacional de combate à violência contra a mulher;
c. medidas de proteção e prevenção às vítimas;
d. medidas cautelares referentes aos agressores;
e. criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar;
f. assistência jurídica gratuita para a mulheres;
g. criação de um Juízo Único com competência cível e criminal através de
Varas Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres e outros relacionados;
h. não aplicação da Lei 9.099/1995 – Juizados Especiais Criminais – nos
casos de violência doméstica contra as mulheres.
Inicialmente, cogitou-se na possibilidade de o anteprojeto ser apresentado pelas próprias ONGs, na Comissão de Legislação Participativa, porém a
alternativa não era de todo viável, uma vez que o projeto propunha regras gerais e mudança na estrutura com criação de despesas, cuja competência é privativa do Executivo. Assim, durante o debate chegou-se ao consenso de que a
4
A Organização das Nações Unidas (ONU), durante a 52ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos, realizada em 1995, recebeu o “Relatório sobre Violência Contra a Mulher, suas Causas e Conseqüências”,
elaborado pela Relatoria Especial Sra. Radhika Coomaraswamy, que além de mostrar a situação de
vários países, sugeria a estrutura de legislação-modelo, onde explicitava a urgência de os Estados
adotarem definições mais amplas dos atos de violência doméstica e de criação de uma legislação
abrangente que contivesse medidas criminais e civis.
5
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, assinada pela República Federativa do Brasil, em Nova York, no dia 31 de março de 1981, com reservas
e promulgada pelo Decreto Nº 4.377, de 13 de setembro de 2002.
44
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
apresentação do projeto de Lei deveria ser feita pelo Poder Executivo. A Ministra
da SPM mostrou-se receptiva e, de pronto, acolheu a proposta, prontificando-se
a dar andamento ao projeto no menor espaço de tempo possível. Assim o fez,
em pouco tempo, realmente, formou-se um Grupo de Trabalho Interministerial
para elaborar uma proposta de medida legislativa e outros instrumentos para
coibir a violência doméstica contra a mulher6, utilizando como documento-base
o estudo do Consórcio, considerado por muitos como uma legislação inovadora
para o direito brasileiro.
1.2 O Grupo de Trabalho Interministerial – GTI
O Decreto 5.030/2004, que instituiu o GTI para “elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a
mulher”, iniciou seus trabalhos já em abril daquele ano.
A participação da sociedade civil, diga-se, especialmente de ONGs de mulheres e feministas, foi bastante intensa, tanto nas reuniões quanto nas discussões, sempre defendendo os pontos básicos do projeto que não poderiam ser
retirados. Em reuniões do Consórcio e especialistas, foram elencados os itens
considerados pelo movimento quase como “cláusulas pétreas” como, por exemplo, a proibição de utilização da Lei 9.099/1995, que considerava a violência contra a mulher uma violência de menor potencial ofensivo. Outra razão para que a
Lei 9.099/1995 fosse rejeitada era o fato de que a pena, na prática, para os crimes
de menor potencial ofensivo concretizava-se no pagamento em cestas básicas.
Inicialmente, o GTI teve o prazo de sessenta dias para concluir os trabalhos,
prorrogado por mais trinta dias7. Foram convidados para participar de reuniões
ou convocados para oitivas alguns grupos, como a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos, representações de mulheres indígenas e negras, representantes
da Magistratura, da Segurança Pública, do Ministério Público e da Defensoria
Pública. Outra presença marcante foi a de um grupo de juízes integrantes do
Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE). As proposições dos juízes
muitas vezes se contrapunham aos argumentos das feministas e isso fez com
que a SPM promovesse um workshop com o grupo e operadores do direito intitulado “Encontro de Perspectivas”.
6
Decreto Nº 5.030, de 31 de março de 2004, o GTI foi composto por representante dos órgãos: a)
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, que o coordenará;
b) Casa Civil da Presidência da República; c) Advocacia-Geral da União; d) Ministério da Saúde;
e) Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; f) Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; e Ministério da Justiça, podendo ser convidadas para participar de suas reuniões e discussões representantes das Comissões
do Ano da Mulher da Câmara e do Senado e de organizações da sociedade civil.
7
Decreto nº 5.167, de 03/08/04.
45
Myllena Calazans e Iáris Cortes
Primeiramente, criou-se uma certa “euforia”, pois a presença dos juízes dos
JECRIM’s convocados pelo FONAJE tinha muito para acrescentar aos debates e
dava a esperança de que o movimento de mulheres havia encontrado interlocutores no Poder Judiciário. Com o desenvolvimento dos trabalhos, ficou clara
a posição de que a violência contra as mulheres continuasse sob a égide da Lei
9.099/1995 e o apoio de integrantes da SPM e componentes do GTI àquela proposição. A euforia inicial das feministas foi-se dissipando na medida em que
o resultado apontava para aquela opção. Ao que tudo indica, eles não conseguiram entender o ‘espírito’ da filosofia elegida pelo Consórcio e parceiras na
empreitada, que era a de incluir a violência doméstica como uma questão de
violação dos direitos humanos das mulheres e, portanto, de total desvinculação
dos crimes enquadrados como de menor potencial ofensivo.
No início de novembro de 2004, a SPM encaminhou a versão final do projeto ao Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) e ao Consórcio
de ONGs. Uma proposta que se descaracterizava da do Consórcio, ao incluir em
seu texto a competência da Lei 9099/1995 no julgamento dos crimes de violência
doméstica contra a mulher. Por outro lado, as discussões travadas no Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher para afastar a Lei 9.099/1995 do projeto não
foram exitosas. A SPM acatou as ponderações do FONAJE e, diante de sua maior
força política, transferiu para o Legislativo qualquer negociação sobre este ponto
polêmico do anteprojeto, mesmo diante das posições contrárias, manifestadas
em pareceres, do Consórcio de ONGs, da Articulação de Mulheres Brasileiras e
da sub-procuradora da República Dr.ª Ela Wiecko.
Diante disso, o Consórcio solicitou um prazo maior para discutir o anteprojeto com o movimento social, mas também não logrou êxito. A ideia era a
inclusão da votação do projeto de Lei na pauta do Dia Internacional de Combate à Violência Contra as Mulheres. No dia 25 de novembro de 2004, o projeto
de Lei, por iniciativa do Executivo, foi encaminhado à Câmara dos Deputados,
acompanhado da Mensagem presidencial n. 782, de 3 de dezembro de 2004. O
projeto, apesar de ter incorporado muitas propostas do Consórcio, manteve a
competência da Lei 9.099/1995 nos casos de violência doméstica contra a mulher.
1.3 O Projeto de Lei do Executivo
Inicialmente, a Ementa do Projeto 4559/2002 estava assim redigida: “Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, e dá outras providências”.
O Projeto de Lei do Executivo continha quarenta e seis artigos distribuídos
em cinco títulos. O primeiro, com quatro artigos, referia-se às “Disposições Preliminares” e explicava os fundamentos legais e a quem se destinava. Apontava
o papel da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público frente à
violência doméstica e familiar contra as mulheres e finalizava afirmando que, na
46
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
sua interpretação, seriam considerados os fins sociais a que ela se destinava e a
condição peculiar da mulher em situação de violência.
O Título segundo, com dois capítulos e três artigos, definia e mapeava o
âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, configurando todos
os seus tipos. Já o Título terceiro contava com três capítulos e cinco artigos. Sua
finalidade era tratar da assistência: medidas integradas de prevenção, assistência social e o atendimento pela autoridade policial à mulher em situação de violência doméstica e familiar.
O Título quarto possuía vinte e quatro artigos distribuídos em oito capítulos. Estabelecia os procedimentos gerais, a equipe de atendimento multidisciplinar, a atuação do Ministério Público, a assistência jurídica, as medidas cautelares
em relação ao acusado e de proteção à mulher em situação de violência, finalizando com o procedimento nos juizados especiais criminais.
As Disposições Finais encontravam-se no Título quinto, que continha dez
artigos e estabelecia a competência para criação das Varas e Juizados Especiais
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, seu âmbito de atuação, além
de outras medidas, como a criação de centros de reabilitação para os acusados
e de atendimento à mulher em situação de violência. Dispunha ainda que a defesa dos interesses e direitos previstos na Lei poderia ser exercida, concorrentemente, pela ofendida, pelo Ministério Público ou por associação de defesa da
mulher. As bases de dados dos órgãos oficiais desenvolveriam estatísticas e cadastro referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher. Seriam estabelecidas dotações orçamentárias específicas para desenvolver ações previstas
na Lei e, por fim, alterava o art. 313 do Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941
(Código de Processo Penal).
Como se vê, de um modo geral o Projeto do Executivo havia incorporado
grande parte da proposta do Consórcio, principalmente no que se referia aos princípios, conceitos e proteção à mulher vítima de violência, como prevista na Convenção de Belém do Pará. Inobstante, manteve o julgamento dos casos na égide
da Lei 9.099/1995, destruindo assim toda a esperança do movimento de mulheres
em ver considerada como crime de violação dos direitos humanos das mulheres.
Outro ponto questionado pelo movimento de mulheres dizia respeito à
criação das Varas Especiais de Violência Doméstica (Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), pois ao invés da criação de um Juízo Único
(cível e criminal) para julgamento dos casos relacionados à violência doméstica
e familiar, mantinha o julgamento no Juizado Especial Criminal.
2. A Tramitação do PL 4559/2004 no Congresso Nacional
A Mensagem presidencial n. 782, de 24 de novembro de 2004, contendo o projeto de Lei para enfrentamento da violência doméstica e familiar
47
Myllena Calazans e Iáris Cortes
contra as mulheres, foi apresentada no Plenário da Câmara dos Deputados,
no dia 3 de dezembro de 2004, recebendo o número 4559/2004.
Teve apoio integral da Bancada Feminina e de alguns parlamentares,
tanto na Câmara quanto no Senado. As relatorias foram indicadas em consonância com a articulação do movimento de mulheres, a SPM e a Bancada
Feminina e foi consenso que as relatoras fossem deputadas envolvidas com
a questão.
a) O PL 4559/2004 na Comissão de Seguridade Social
e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados
A proposta foi inicialmente encaminhada à CSSF, onde, no dia 15 de
fevereiro de 2005, foi designada como relatora a deputada Jandira Feghali
(PCdoB/RJ).
Foram apensados ao PL 4559/2004 os projetos de lei 4958/2005 e
5335/2005, ambos de autoria do Deputado Carlos Nader (PL/RJ).
No dia 14 de março, logo após a designação da relatora, o Consórcio
organizou um debate, em conjunto com a Articulação de Mulheres Brasileiras, Articulação de Entidades de Mulheres Negras e outras instituições
feministas, e convidou a relatora, deputada Jandira Feghali. Neste encontro
foram expostas a proposta original do Consórcio, as alterações que sofreu e
as constantes do PL 4959/2004, originário do Poder Executivo. A deputada
se comprometeu a, na medida do possível, realizar negociações junto ao
Legislativo e à SPM, de forma a contemplar as propostas do Consórcio.
Na mesma reunião foi debatida a estratégia que o movimento de mulheres e o Consórcio desenvolveriam para apoiar o trabalho da relatoria.
Levantaram-se várias sugestões e foi elaborado um calendário de atividades. A expectativa era de que a aprovação do projeto, já emendado, ocorresse no dia 25 de novembro – Dia Internacional de Combate à Violência
Contra as Mulheres.
Dentre as estratégias elaboradas, destacam-se as seguintes:
a) constituição de um grupo de apoio para subsidiar os trabalhos da
deputada relatora;
b) realização de audiências públicas regionais em cidades a serem indicadas pelo movimento de mulheres, constando com a presença e depoimentos de mulheres vítimas de violências;
c) realização de audiências públicas na Comissão de Seguridade, com
a participação de mulheres que compareceram nas audiências regionais;
d) buscar recursos para realizar um seminário sobre 10 anos da Convenção de Belém do Pará versus 10 anos da Lei 9.099/1995, reunindo feministas e juristas;
48
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
e) incluir no calendário de atividades das organizações e redes debates
sobre o projeto.
No decorrer do andamento do Projeto na CSSF, as ações agendadas
foram sendo realizadas, além de outras de iniciativa de grupos de mulheres
ou de organizações da sociedade civil.
Uma das primeiras ações da deputada Jandira, relatora do Projeto na
CSSF, foi constituir um grupo de apoio e assessoria. Além do Consórcio
e feministas engajadas na proposta, participaram do grupo dois processualistas, Alexandre Freitas Câmara8 e Daniel Sarmento9, e foram ouvidas
opiniões de outros especialistas. O trabalho do grupo constituiu-se, essencialmente, em fazer uma revisão do projeto originado do Executivo. A deputada Jandira optou por não colocar em votação o Projeto preferindo que
fosse, primeiro, debatido com a sociedade. Daí sua permanência nessa Comissão, desde o final de novembro de 2004 até agosto de 2005.
A requerimento da relatora e no intuito de maior debate e participação
da sociedade, foi realizada uma Audiência Pública na CSSF, no dia 26 de
abril de 2005, com o título: “Debater o PL 4559, de 2004, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Posteriormente, no dia 16 de agosto foi realizado um Seminário promovido pelas
comissões de Seguridade Social e Família, Constituição, Justiça e Cidadania, Direitos Humanos e Minorias, Segurança Pública e Combate ao Crime
Organizado, Legislação Participativa e Finanças e Tributação10.
As audiências públicas nos estados foram um sucesso. O Consórcio se
envolveu diretamente e as discussões se ampliaram com a participação do
movimento de mulheres e outras organizações. Definiu-se que as audiências públicas fossem realizadas em todas as regiões brasileiras, e no período
entre maio e agosto, o movimento de mulheres e o Consórcio se articularam
com a Bancada Feminina Federal e com os legislativos e executivos locais
para realização das audiências. As audiências foram realizadas em mais
de dez estados: Rio Grande do Sul; Rio de Janeiro; Minas Gerais, Acre, Rio
Grande do Norte, Paraíba; Ceará; São Pauloe Espírito Santo.. No Ceará, a
audiência teve a participação da senhora Maria da Penha Maia Fernandes.
8
Alexandre Freitas Câmara, jurista, professor de Direito Processual Civil da Escola da Magistratura
do Estado do Rio de Janeiro, nomeado Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro em 2008.
9
Daniel Sarmento, especialista em Direito Constitucional e Direitos Humanos é Professor Adjunto
de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Procurador Regional da
República e doutrinador.
10 O seminário contou com o apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Embaixada da
Espanha no Brasil, CFEMEA, AGENDE e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a
Mulher (UNIFEM).
49
Myllena Calazans e Iáris Cortes
Esta ação foi considerada necessária para que a lei obtivesse uma
maior amplitude e participação, não só do movimento de mulheres e feministas, mas também dos demais segmentos interessados na eliminação da
violência contra as mulheres. Entre esses movimentos, o de direitos humanos, o sindicalismo, os núcleos de mulheres nas universidades, a Ordem
dos Advogados do Brasil, que promoveu debates em várias seccionais e
outras redes, segmentos e associações.
As sugestões, que continham as especificidades regionais e locais referentes à violência doméstica, foram fundamentais para enriquecer o projeto.
Elas eram discutidas pelo grupo de apoio que estudava a possibilidade de
inclusão no texto revisado. Assim, foram surgindo várias visões sobre as
violências. Em muitos estados, por exemplo, a discussão sobre as medidas
em relação ao agressor foi polêmica. Para algumas feministas e organizações não era cabível a previsão de centros de reeducação para os agressores,
penas alternativas ou justiça terapêutica, pois essas ações iriam dividir recursos que deveriam ser destinados para as políticas para as mulheres em
situação de violência. Outros grupos já pensavam exatamente o oposto e
defendiam a ideia de que essa questão (tratamento/reflexão para agressores)
deveria fazer parte da política de enfrentamento à violência como forma de
propiciar um espaço para os homens refletirem sobre sua conduta, discutirem os papéis atribuídos aos homens e mulheres, evitando a reincidência.
Um ponto importante, unânime, consensual e presente em todos os
estados foi a necessidade da exclusão da Lei 9.099/1995 da “nossa” lei. Toda
a sociedade brasileira conhecia o resultado da aplicação dessa lei frente à
violência contra a mulher, inclusive tema de novela: a constatação de que
ela era a base da impunidade que favorecia agressores de mulheres, dentro
da própria família. Além deste ponto, a questão da “desistência” ou “retirada da queixa” também foi um aspecto muito debatido. Além disso, foram
discutidos o alcance da lei em segmentos das mulheres lésbicas, das empregadas domésticas, portadoras de deficiências, idosas etc.
No final de junho de 2005, a versão preliminar do substitutivo foi concluída e divulgada para o movimento debater nas audiências públicas que
aconteciam nos estados.
Precisamente no dia 23 de agosto de 2005 a relatora deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou seu parecer, pela aprovação do PL
4559/2004, com substitutivo e pela rejeição dos PLs 4958/2005 e 5335/2005.
No dia seguinte apresentou à Comissão uma Complementação de Voto ao
parecer formulado no dia anterior.
Neste mesmo dia foi aprovado por unanimidade o Parecer com Complementação de Voto da Relatora, com as proposições PL 4958/2005, e PL
50
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
5335/2005, apensadas. As principais inovações apresentadas no Substitutivo foram:
• retirada dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher
da abrangência da Lei 9.099/95;
• criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
com novo procedimento (com competência para os processos civis e
criminais);
• renúncia à representação somente em audiência, perante o juiz, que
poderá rejeitá-la;
• vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária e de cesta básica;
• interrupção do prazo prescricional em caso do não cumprimento da
pena restritiva de direitos;
• inclusão de dano moral e patrimonial, que passa a integrar o conceito
do crime de violência doméstica e familiar contra a mulher;
• inclusão da expressão “com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia”,
no diagnóstico, registro de dados, capacitação dos diversos segmentos
profissionais e programas educacionais;
• assistência especial para crianças e adolescentes que convivam com tal
violência;
• reforço para as Delegacias de Atendimento à Mulher;
• capacitação, também, para a Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e
Guarda Municipal;
• inclusão das diretrizes e princípios estabelecidos pelo Sistema Único
de Segurança Pública na assistência à mulher vítima de violência doméstica e familiar;
• possibilidade da inclusão da vítima em programas assistenciais do governo, programas de proteção à vítima e à testemunha, acesso à transferência de local de trabalho (quando servidora pública), estabilidade
de 6 meses por motivo de afastamento do emprego e acesso a benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico;
• substituição do termo “medidas cautelares” por “medidas protetivas
de urgência” em todo o projeto. Caberá ao juiz: decidir sobre as medidas protetivas, em 48 horas, e oficiar ao Ministério Público. As medidas
poderão ser concedidas de imediato, manterão sua eficácia até decisão
sobre a matéria em processo civil, e haverá a possibilidade de conceder
novas ou rever as já concedidas;
• regras sobre prisão preventiva, bem como sobre a notificação à ofendida dos atos processuais;
• supressão de qualquer menção à Lei 9.099/1995, com a criação de novo
procedimento e acumulação de competência cível, a ser adotado pelas
51
Myllena Calazans e Iáris Cortes
•
•
•
•
•
•
•
•
Varas Criminais, até a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher;
alteração do Código Penal, com agravamento da pena no art. 129 (lesão
corporal), acrescida, ainda, de 1/3 nos casos de mulher portadora de
deficiência, e com a inclusão de nova agravante genérica no art. 61;
fixação de limite mínimo de distância entre a vítima, seus familiares e
as testemunhas, e o acusado;
realinhamento da proteção à imagem da mulher nos meios de comunicação, de acordo com os mandamentos constitucionais;
inclusão da possibilidade de o juiz determinar a separação de corpos;
determinação para que o Ministério Público cadastre os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher;
obrigatoriedade da criação de centros de atendimento psicossocial e
jurídico, casas abrigo, delegacias especializadas, núcleos de defensoria
pública, serviços de saúde, centros especializados de perícias médico-legais, centros de educação e de reabilitação para os agressores;
inclusão de parágrafo único ao art. 152 da Lei de Execução Penal, pelo
qual, nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá
determinar ao acusado a obrigatoriedade de comparecimento a programas de recuperação e reeducação;
prazo para criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – 18 meses.
b) O PL 4559/2004 na Comissão de Finanças e Tributação (CFT)
da Câmara dos Deputados
A Comissão de Finanças e Tributação (CFT) recebeu o Projeto de Lei
4559/2004 em 30 de agosto de 2005 e designou como relatora a deputada
Yeda Crusius (PSDB-RS).
No dia 10 de novembro do mesmo ano a relatora apresentou seu parecer, pela adequação financeira e orçamentária do projeto, dos PLs 4.958/05 e
5.335/05, apensados, e do Substitutivo da Comissão de Seguridade Social e
Família, com a Emenda de Adequação de n. 111 e a de n. 212. Seu parecer foi
aprovado por unanimidade no dia 23 de novembro de 2005.
11 EMENDA DE ADEQUAÇÃO nº 1 – Dê-se a seguinte redação ao art. 17 do PL 4.559, de 2004, e seu
correspondente art. 38 do substitutivo aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família: Art.
17. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, deverá prever recursos para a
criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar, nos termos da lei de diretrizes
orçamentárias. Sala da Comissão, em de 2005. Deputada YEDA CRUSIUS Relatora.
12 EMENDA DE ADEQUAÇÃO nº 2 – Dê-se a seguinte redação ao art. 44 do Projeto de Lei 4.559,
de 2004, e seu correspondente art. 46, de seu substitutivo aprovado pela Comissão de Seguridade
Social e Família: Art. 44. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de suas
52
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
Em seu pronunciamento, a relatora Yeda Crusius (PSDB-RS) elogiou a
relatoria feita pela deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), a mobilização dos
movimentos feminista e de mulheres e a iniciativa da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres. A deputada afirmou ainda que nessa discussão
desaparece a questão “governo e oposição” para que todos os parlamentares se unam com finalidade da aprovação desse projeto.
Ressalte-se que durante as reuniões na Comissão, o movimento de mulheres fez-se presente, demonstrando o interesse na aprovação do projeto.
c) O PL 4559/2004 na Comissão de Constituição
e Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados
Da CFT o projeto foi encaminhado para a Comissão de Constituição e
Justiça e Cidadania em 24 de novembro de 2005, juntamente com as proposições PL-4958/2005 PL-5335/2005, apensadas. Ali, foi designada relatora a
deputada Iriny Lopes (PT-ES).
No Plenário foi apreciado, votado e aprovado o requerimento dos Líderes para que o PL 4559/2004 tramitasse em regime de urgência, demonstrando desta maneira, o interesse dos parlamentares em tornar efetiva, no
menor tempo possível, a legislação de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras.
No dia 1º de dezembro de 2005, a relatora do PL na CCJC, deputada
Iriny Lopes (PT-ES), apresenta seu parecer pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação do PL 4559/2004,
do Substitutivo da Comissão de Seguridade Social e Família, das Emendas
da Comissão de Finanças e Tributação, do PL 4958/2005 e do PL 5335/2005,
apensados, com substitutivo. O deputado Antonio Carlos Biscaia apresenta
um voto em separado13.
A deputada relatora na CCJC, acatando as sugestões escritas do deputado Antonio Carlos Biscaia e outras que surgiram durante a discussão
do PL, apresentou seu parecer, com Complementação de Voto, no dia 13
de dezembro de 2005, pela aprovação do PL 4559/2004, do Substitutivo da
Comissão de Seguridade Social e Família e das Emendas da Comissão de
Finanças e Tributação. A CCJC aprovou seu parecer por unanimidade.
competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias, deverão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas
estabelecidas nesta Lei. Sala da Comissão, em de 2005. Deputada YEDA CRUSIUS Relatora.
13 O voto em separado trata, principalmente, da questão da competência e autonomia das instituições,
para criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, organização judiciária
e para preservar a possibilidade recursal contra a sentença de pronúncia.
53
Myllena Calazans e Iáris Cortes
O projeto foi para o Plenário em 7 de março de 2006, onde recebeu três
emendas, uma delas retirada pela autora, deputada Laura Carneiro (PFL/
RJ). Depois de várias sessões em pauta, sem ter sido votado, face de apreciações de Medidas Provisórias (MPV) ou por acordo dos Líderes, em 22 de
março de 2006 foram apresentados na CCJC o Parecer da relatora Jandira
Feghali (PCdoB/RJ) e as emendas apresentadas em Plenário, com voto pela
aprovação.
Nesse mesmo dia, o Plenário designou relatora a deputada Luiza
Erundina (PSB-SP), integrante da CFT, para emitir parecer às Emendas de
Plenário de nºs 2 e 3, tendo a relatora concluído pela adequação financeira
e orçamentária.
Na CSSF a relatora deputada Iriny Lopes (PT-ES) também apresentou
parecer favorável às Emendas de Plenário e também concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa e no mérito, pela aprovação.
Ainda neste dia foi encerrada a discussão no Plenário, votado em
turno único, e aprovada a Redação Final do PL 4559/2004, seguindo para o
Senado Federal no dia 30 de março de 2006.
d) O Projeto de Lei no Senado Federal
(PL 4559/2004, PLC 37/2006)
Em 31 de março de 2006, o PL 4559/2006 da Câmara dos Deputados
chegou à Subsecretaria de Coordenação Legislativa do Senado Federal (SSCLSF), recebendo o número PLC 37/2006.
No dia 3 de abril de 2006 foi encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e no dia 10 do mesmo mês, distribuído à senadora Lúcia Vânia (PSDB/GO) para emitir relatório.
No Senado Federal, o Consórcio, o movimento de mulheres e outras
organizações da sociedade civil permaneceram em alerta. Em todas as reuniões, faziam-se presentes.
Tanto na Câmara quanto no Senado, a mobilização da sociedade foi
muito grande. As duas casas receberam diversas correspondências cobrando dos parlamentares a aprovação desta lei, demonstrando, dessa
forma, o quanto a sociedade precisava e almejava uma legislação que findasse a barbárie vivenciada por muitas brasileiras.
Seguindo a dinâmica de discussão da Câmara, a senadora Lúcia Vânia
também formou um grupo de apoio para discutir o PLC e fazer as alterações
necessárias, do qual participaram as organizações do Consórcio, SPM, gabinete da deputada Jandira Feghali, Consultoria Legislativa do Senado e assessoria da senadora Lúcia Vânia e a senadora Serys Slhessarenko(PT/MT).
54
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
A senadora Lúcia Vânia entregou seu relatório à CCJ no dia 22 de
maio, com voto pela aprovação do projeto com as alterações redacionais
devidas, nos termos do texto consolidado que apresentou.
Em seu pronunciamento, a senadora Lúcia Vânia explicou que o PLC
37/2006 torna mais rígidas as punições para os agressores, criando uma
vara judiciária especial para tratar desse tipo de crime. Assinalou também
que o projeto apresenta algumas inovações que poderão contribuir para a
redução dos casos de violência doméstica, como a proibição da aplicação de
penas restritivas de direito, de prestação pecuniária, cestas básicas e multas.
No dia 24 de maio, em Reunião Ordinária, é aprovado o Relatório da
senadora Lúcia Vânia, que passa a constituir Parecer da CCJ, favorável ao
projeto com as alterações redacionais apresentadas, nos termos do texto consolidado. A Comissão também aprova o Requerimento de urgência para a
matéria, por iniciativa da senadora Serys Slhessarenko. O projeto foi encaminhado ao Plenário, para leitura de parecer. No Plenário do Senado, o projeto ficou perante a Mesa durante cinco dias úteis, a fim de receber emendas.
Em 13 de junho, a Presidência comunica ao Plenário o encerramento
do prazo no dia anterior, sem apresentação de emendas à matéria. É incluído na Ordem do Dia, em 4 de julho, extrapauta, em regime de urgência,
nos termos do Requerimento da senadora Serys Slhessarenko.
O Projeto de Lei da Câmara, PLC 37/2006, é aprovado no Senado e enviado pelo Ofício SF nº 1351 de 18/07/06 à ministra de Estado Chefe da Casa
Civil encaminhando a Mensagem SF nº 185/06, ao Presidente da República
para a sanção presidencial.
3. Repercussões e Sanção da Lei
Sem sombras de dúvidas, o processo para aprovação de uma lei que
combatesse a violência doméstica e familiar contra a mulher, obteve repercussão maior do que a esperada.
Muitas foram as manifestações e mobilizações. Não apenas das ONGs
que inicialmente integraram o Consórcio, mas de todo o movimento de mulheres brasileiras que apoiou o projeto. Várias campanhas se desencadearam por todo o Brasil. O CFEMEA, em parceria com o Fundo de População
das Nações Unidas (UNFPA) lançou a campanha de rádio “As Vitoriosas”,
com o objetivo de sensibilizar a sociedade e ampliar o debate sobre o PL
4559/2004. Os spots (peças publicitárias para rádio) apresentavam depoimentos de mulheres que vivenciaram situações de violência e conseguiram
superá-las. Publicou-se um fôlder explicativo abordando as mudanças que
os movimentos de mulheres pretendiam efetuar no Projeto de Lei 4559/2004.
55
Myllena Calazans e Iáris Cortes
Recife foi palco da primeira “Vigília feminista pelo fim da violência
contra as mulheres”, do século XXI. Inspirada nessa ação, a Articulação de
Mulheres Brasileiras multiplicou-a em vários estados brasileiros. Diversas
manifestações foram articuladas e previamente programadas para acontecerem simultaneamente, em diversos locais, no dia 7 de março de 2006. Esta
ação tanto serviu para colocar novamente na pauta da mídia brasileira esse
problema social e quanto para pressionar o Legislativo, o Judiciário e o Executivo pela aprovação da lei de combate à violência doméstica.
Os movimentos de mulheres e feministas, desde o início do ano de
2006, envidaram esforços para que o projeto de Lei fosse votado, aprovado
e sancionado antes do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Entretanto, somente no dia 7 de agosto daquele ano, o Presidente sancionou a lei,
em meio a um cenário favorável, pois o Estado brasileiro havia ratificado a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), o Plano de Ação da IV Conferência Mundial sobre
Mulher e Desenvolvimento (1995), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém
do Pará, 1994), e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, além de outros instrumentos de Direitos Humanos.
Mencione-se ainda, as recomendações da CIDH ao caso Maria da Penha
Maia Fernandes, por não cumprimento do previsto no artigo 7.º da Convenção de Belém do Pará e nos artigos 1º, 8º e 25 da Convenção Americana de
Direitos Humanos, e ainda, o dever do Estado brasileiro de indenizar a vítima, monetária e simbolicamente. Ademais, a Comissão recomendou que
o Brasil adotasse várias medidas de combate à violência contra a mulher,
entre elas, a elaboração de uma lei específica para este fim.
Desse modo, a Presidência da República, com assessoria da SPM, decidiu, ao sancionar a Lei aprovada no Congresso Nacional, cumprir a recomendação da OEA, nominando a nova lei de Lei Maria da Penha, como uma
forma simbólica de cumprir as recomendações da Comissão. A sanção foi
um grande evento no Palácio do Planalto, com a presença de várias autoridades, representantes do movimento de mulheres, e da Senhora Maria da
Penha Fernandes, escolhida como um símbolo da luta contra violações dos
direitos humanos das mulheres.
4. O orçamento e a implementação da Lei
A ação no Legislativo para aprovação de leis que reconhecessem a
questão da violência contra as mulheres como problema a ser enfrentado
pelo Estado, reforçou e impulsionou a ação dos movimentos feministas e
56
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
de mulheres perante os Poderes Executivo e Judiciário para elaboração de
políticas públicas com serviços específicos. No novo milênio, a pauta logrou êxito e foi concretizada na ideia de rede integral de atendimento às
mulheres vítimas de violência e na construção da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, acompanhada do pleito de inclusão no planejamento governamental e no ciclo orçamentário, com status
de prioridade.
Influenciadas pela Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência
Mundial Sobre a Mulher (Beijing, 1995) que instou os estados membros a
se comprometerem com a implementação e a destinação de recursos orçamentários para as políticas públicas promovedoras da igualdade de gênero
e dos direitos das mulheres, e das primeiras experiências de orçamento sensível a gênero. O CFEMEA14, em articulação com o movimento de mulheres e o CNDM, apresentou emendas ao Orçamento Federal para criação e
manutenção das casas abrigo e para a promoção da saúde das mulheres, já
a partir de 1996.
Da existência de apenas uma ação orçamentária no Plano Plurianual
(PPA) de 1996-1999 para o enfrentamento à violência contra as mulheres,
chega-se ao PPA de 2000-2003 com um programa de combate à violência
contra as mulheres – o Programa 0156 (Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do PPA), – que foi reforçado no PPA 2004-2007 e
enfatizou as ações de prevenção e criação dos centros de referência. Trata-se de um resultado evidente da criação da SPM e das ações de incidência
política realizada pelo movimento de mulheres e pelo CFEMEA durante a
elaboração do PPA e da atuação da Bancada Feminina. Com a edição da Lei
Maria da Penha o programa foi ampliado e constitui-se, hoje, em um dos
principais programas orçamentários para a implementação da lei15.
Os avanços até então alcançados para incluir as políticas para as mulheres
como parte do orçamento público e inclusão da Lei Maria da Penha nas peças
14 A primeira iniciativa de transformar o Orçamento em instrumento da igualdade entre homens e mulheres foi na Austrália, em 1984, e depois na África do Sul, em 1997. No Brasil o Orçamento Mulher
é uma experiência em nível nacional, do Orçamento Público com perspectiva de gênero. Trata-se
de uma metodologia, criada pelo Cfemea, com diversas organizações, e consiste na seleção de programas e ações do Orçamento que atendem direta ou indiretamente as necessidades específicas das
mulheres e que impactam as relações de gênero e de raça.
15 O PPA de 2000 a 2003, atendendo reivindicação das mulheres e do CNDM, criou o Programa de
Combate à Violência contra as Mulheres. Em 2003, além de o Programa ter novas ações, o enfrentamento da violência contra as mulheres também passou a fazer parte do Plano Nacional de Segurança
Pública, sob a gestão da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública), ao prever o “Programa
Nacional de Prevenção e Redução da Violência Doméstica e de Gênero”; de ações do Ministério da
Justiça para o combate ao tráfico de seres humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do
Ministério da Saúde. Em 2004, o enfrentamento desse tipo de violência foi eleito uma das prioridades
da I CNPM e incluído como um dos capítulos do I PNPM.
57
Myllena Calazans e Iáris Cortes
orçamentárias do Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentária e Lei Orçamentária Anual (PPA, LDO e LOA, respectivamente), pode-se dizer que são
resultados da ação articulada do movimento de mulheres, da SPM e da Bancada
Feminina do Congresso.
Com a metodologia do Orçamento Mulher, desenvolvida pelo CFEMEA,
tem sido possível incidir tanto na elaboração como também no acompanhamento
da execução das peças orçamentárias para que incluam programas e ações voltadas para a promoção dos direitos das mulheres, para que estejam protegidas da
política de contingenciamento e para que os serviços sejam realmente criados e
funcionem adequadamente.
A Lei Maria da Penha reafirmou os serviços existentes e previu a criação de
novos, perfazendo o total de onze serviços: i) casas abrigo; ii) delegacias especializadas; iii) núcleos de defensoria pública especializados; iv) serviços de saúde
especializados; v) centros especializados de perícias médico-legais; vi) centros
de referência para atendimento psicossocial e jurídico; vii) Juizados de violência doméstica e familiar contra as mulheres; viii) equipe de atendimento multidisciplinar para auxiliar o trabalho dos Juizados; ix) núcleos especializados de
promotoria; x) sistema nacional de coletas de dados sobre violência doméstica; e
xi) centros de educação e de reabilitação para os agressores. Todos esses serviços
conformam a rede integral de atendimento às mulheres vítimas de violência e
são de competência dos Poderes Públicos16. No entanto, para que tais serviços
sejam criados é preciso que os mesmos façam parte do planejamento governamental. Neste sentido, a Lei previu explicitamente que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus programas
às diretrizes e aos princípios desta Lei (art. 36); e que a União, os Estados, o Distrito Fe-
16 A Lei 11.340/2006 também previu que o Poder Público deve organizar-se para a instalação e funcionamento adequado dos serviços. Por isso já estabeleceu no Art. 3, § 1 que:
O poder público desenvolverá políticas que visem a garantir os direitos humanos das mulheres no
âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O artigo 8º por sua vez determina que a política pública que visa a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não governamentais (...).
Articulados com o § 1º, do art. 3º, e o artigo 8º, a Lei Maria da Penha listou, a título exemplificativo,
no artigo 35, os serviços que podem ser criados para prevenir e assistir as mulheres em situação de
violência. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite
das respectivas competências:
I – centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em
situação de violência doméstica e familiar;
II – casas abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar;
III – delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal
especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar;
IV – programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;
V – centros de educação e de reabilitação para os agressores.
58
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
deral e os Municípios, no limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de
diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada
exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei (art. 39).
Além disso, a Lei 11.340 trouxe a mesma previsão para que a criação dos
serviços de justiça fossem incluídos na proposta orçamentária do poder Judiciário, ao prever no artigo 32 que o Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento
multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A previsão legislativa reforçou os programas e ações orçamentárias já presentes no planejamento do governo federal, como também em alguns estados
e municípios. Mas ainda não eram suficientes e requeriam (e ainda requerem)
mais recursos; status de prioridade no planejamento; não contingenciamento e
execução total dos recursos dos programas e ações existentes, além de um trabalho articulado entre os diversos ministérios e pastas do governo, tendo em vista
a complexidade do problema.17
Emblemática foi a ação do movimento de mulheres durante a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres – CNPM – que denunciou a falta
de recursos e a baixa execução dos poucos recursos alocados, além de requerer
prioridade para a efetiva implementação da Lei Maria da Penha.
No intuito de atender tais reivindicações, consolidar a política nacional de
enfrentamento à violência contra as mulheres e de priorizar a efetivação da Lei
Maria da Penha, o Governo Federal criou pacto, planos e programas. Em 2007, foi
elaborado o Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres18,
com recursos no valor de R$ 1 bilhão. A execução das ações do Pacto envolve dez
ministérios, sob coordenação da SPM, em parceria com o Conselho Nacional de
Direitos das Mulheres, Ministério Público, Poder Judiciário, governos estaduais e
municipais, bem como com as organizações e redes do movimento de mulheres.
Um dos eixos prioritários do Pacto é a Implementação da Lei Maria da
Penha (Consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres e implementação da Lei Maria da Penha). O PPA 2008-2011 estabeleceu como meta a criação, reforma e instalação de 764 serviços da rede de assistência às mulheres em situação de violência.
17 Fontes: Série Histórica do CFEMEA e SIGA Brasil (www.senado.gov.br/siga, Orçamentos Temáticos,
Orçamento Mulher). Elaboração: CFEMEA
18 O Pacto é parte da Agenda Social, prioriza a população mais vulnerável, entre ela as mulheres. Tem
como objetivos reduzir os índices de violência contra as mulheres; promover uma mudança cultural
a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos; e garantir e proteger os direitos das
mulheres em situação de violência, com atenção especial às mulheres negras indígenas, do campo e
das florestas. Está estruturado em quatro áreas: i) consolidação da Política Nacional de Enfrentamento
à Violência contra as Mulheres e implementação da Lei Maria da Penha; ii) Promoção dos Direitos
Sexuais e Reprodutivos e Enfrentamento à Feminização da Aids e outras DSTs; iii) Combate à
Exploração Sexual e Tráfico de Mulheres; e iv) Promoção dos Direitos Humanos das Mulheres.
59
Myllena Calazans e Iáris Cortes
Outro importante programa governamental que prevê ações para o enfrentamento da violência contra as mulheres e para a implementação da Lei Maria
da Penha é o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança com Cidadania), coordenado pelo Ministério da Justiça. Instituído em 2007, com recursos na ordem
de mais de R$ 6 bilhões para serem gastos até o fim de 2012, o PRONASCI destina-se a prevenção, controle e repressão da criminalidade, articula ações de segurança pública com políticas sociais por meio da integração entre União, estados e municípios.
O II PNPM, com vigência para o período 2008-2011, seguindo as deliberações da II CNPM, reafirma o enfrentamento da violência como prioridade;
reconhece a violência de gênero, raça e etnia como violência estrutural e histórica, que expressa a opressão das mulheres e precisa ser tratada como questão
de segurança, justiça e saúde pública; e articula as ações integrantes do Pacto e
do Pronasci. O capítulo 4 do Plano trata do enfretamento da violência contra
as mulheres, sendo uma de suas prioridades a Garantia da implementação da Lei
Maria da Penha e outras normas nacionais e internacionais19.
Em que pese as iniciativas para implementação da Lei Maria da Penha, esta,
desde a sua promulgação, enfrenta resistências, desafios e opositores em vários
âmbitos institucionais20. A lei, mesmo prevista em pactos, programas e planos
ainda não alçou o status de política prioritária no planejamento governamental,
especialmente do Distrito Federal e da maioria dos estados e municípios.
Até novembro de 2010, o Pacto havia sido assinado por 23 estados, restando
os estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Distrito Federal. As 27
unidades da Federação fizeram os projetos integrais básicos (PIB), que são compostos por diagnóstico da situação da violência contra as mulheres no âmbito
do estado, a definição dos municípios-polo e o planejamento estadual de ações.
De acordo com a SPM21, isso possibilitou a realização das metas previstas
no Pacto. Até novembro de 2010, este era o cenário:
19 As outras prioridades do capítulo 4 do PNPM são: i) Ampliação e aperfeiçoamento da Rede de
Atendimento às mulheres em situação de violência; ii) Promoção de ações de prevenção; iii)
Promoção da atenção à saúde das mulheres vítimas de violência; iv) Garantia do enfrentamento da
violência contra as mulheres em seus diferentes contextos e especificidades; e v) Promoção dos direitos humanos das mulheres encarceradas. Foram definidas 73 atividades para as seis prioridades, nas
áreas de saúde, justiça e segurança pública, educação, trabalho e assistência social.
20 O relatório do OBSERVE – Observatório de Monitoramento da Implementação da Lei Maria da
Penha aponta alguns problemas e dificuldades na implantação dos mecanismos e instrumentos previstos na lei. Ver os relatórios do OBSERVE de 2009 e 2010.
21 Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de Políticas para as
Mulheres; Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília: Presidência
das República, 2010.
60
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
SERVIÇOS ESPECIALIZADOS
QUANTIDADE
Delegacias e Núcleos ou Postos Especializados
de Atendimento à Mulher
464
Centros Especializados de Atendimento à Mulher
165
Casas abrigo
72
Defensorias Especializadas
58
Promotorias Especializadas
21
Serviços de responsabilização e educação do agressor
12
Juizados especializados/varas adaptadas de violência
doméstica e familiar
89
Os avanços convivem, no entanto, com velhos e novos desafios. Os serviços
ainda não são realidade em todo o país, concentram-se nos grandes centros e nas
regiões Sul e Sudeste e não são considerados prioridades para o planejamento
governamental da maioria dos estados e municípios. Há defasagem no número
de funcionários, falta capacitação da equipe e qualidade no atendimento, o que
dificulta ainda mais a árdua tarefa de implementar a rede integral de atendimento e a política nacional no cotidiano da vida de cada mulher brasileira, bem
como exige dos movimentos de mulheres e feministas o exercício do controle
social frente às ações do poder público.
Destaca-se a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça que, pela Recomendação Nº 9, de 8 de março de 200722, instou os tribunais de Justiça estaduais a
criarem os Juizados de violência doméstica e familiar contra as mulheres e equipes de atendimento multidisciplinares.
Por outro lado, o movimento de mulheres e feministas tem efetivado ações
no sentido de acompanhamento da atuação governamental, entre elas citamos
a iniciativa da Articulação de Mulheres Brasileiras, que tem promovido desde
2006 videoconferências para discutir a lei e apresentar balanço de sua implementação. Em 2009 e 2010, a AMB realizou duas edições da Comitiva em defesa
da Lei Maria da Penha para incidir politicamente perante os poderes públicos e
chamar atenção da sociedade em geral. Como produto da Comitiva, deflagrou a
campanha “Mexeu com a Lei Maria da Penha, mexeu com todas as mulheres: a
Lei precisa de recursos e não de mudanças”.
22 Recomendação nº 9 – Recomenda aos Tribunais de Justiça a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e a adoção de outras medidas, previstas na Lei 11.340, de
09.08.2006, tendentes à implementação das políticas públicas, que visem a garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares.
61
Myllena Calazans e Iáris Cortes
Em 2007 foi criado o Observatório de Monitoramento da Lei Maria da Penha
– O Observe (formado por um consórcio que congrega 12 organizações) –, que
vem desenvolvendo um conjunto de ações que visam a acompanhar a implementação e aplicação da Lei Maria da Penha e identificar avanços e dificuldades
para a sua efetiva e plena aplicabilidade, produzindo e divulgando informações
que subsidiem políticas públicas e ações políticas de enfrentamento à violência
contra as mulheres.
Conclusão
As dificuldades para que a lei seja devidamente cumprida não se restringem aos recursos insuficientes que lhe são destinados. Por parte do Poder Judiciário também surgem ameaças. Desde sua discussão, ainda na Secretaria de
Políticas para as Mulheres, vimos um segmento da sociedade jurídica contrária
à exclusão da Lei dos Juizados Especiais para crimes cometidos contra a mulher
no âmbito doméstico e familiar e estas posições se desdobraram quando o PL
4559/2004 tramitava no Congresso Nacional e antes da sanção presidencial.
Essas mesmas ameaças, ou resistências, têm-se multiplicado depois da sanção da lei, que tem sido alvo da vários ataques, desde a recusa em aplicá-la até
impetração de ações contra ela, no Supremo Tribunal Federal (STF)23 e Superior
Tribunal de Justiça (STJ).
No Congresso Nacional tramitam mais de vinte proposições legislativas
que propõem modificações ao texto original ou impactam diretamente a lei. Para
o movimento feminista, a lei só precisaria ser alterada após os cinco primeiros
anos de vigência. As modificações deveriam basear-se em observações empíricas
e seriam elaboradas por uma Comissão composta por parlamentares, juristas,
Poder Executivo e representante do movimento feminista e de mulheres.
23
62
No STF tramita a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC-19 de 2007). A ADC foi proposta
pelo Presidente da República, em dezembro de 2007, tendo em vista a controvérsia judicial sobre a
aplicação da lei diante de decisões que afirmam tanto a inconstitucionalidade quanto a sua constitucionalidade. A finalidade da ADC-19 é obter dos 11 ministros do Supremo a declaração de constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da lei, por entender que a Lei 11.340/2006 não viola o princípio
da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, CF); a competência atribuída aos Estados para fixar
a organização judiciária local (art. 125 § 1º c/c art. 96, d, CF) e a competência dos juizados especiais
(art. 98, I, CF). As organizações feministas CLADEM, THEMIS e Antígona solicitaram ao STF para
atuarem como Amici Curiae (“Amigas da Corte”), a fim de defenderem a constitucionalidade da lei.
Em junho de 2010, o Procurador-Geral da República impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI 4424/2010) no sentido de o STF declarar que a Lei 9.099/95 não se aplica, em nenhuma hipótese, aos crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha e que o inquérito e o processo criminal
prosseguirão independentemente da vontade da vítima, nos crimes de lesão corporal leve e culposa
cometidos com violência doméstica e familiar. Uma iniciativa para também rever a decisão proferida
pelo STJ.
O processo de criação, aprovação e implementaçao da Lei Maria da Penha
Dessa forma, o movimento de mulheres, as feministas e a sociedade civil
organizada, que lutaram para a aprovação e sanção da lei, permanecem alertas
para garantir a sua efetividade.
Entendemos, outrossim, que esta lei veio para ficar e mudar a vida de muitas mulheres. A reação contrária e a tentativa de destruí-la fundam-se, basicamente, em um grande preconceito e discriminação ainda existentes contra as
mulheres, traduzidos em teses sutis e diplomáticas.
É necessário reconhecer que o processo de elaboração, tramitação e aprovação desta lei teve um caráter bastante democrático e participativo. Para algumas
participantes, o processo lembrou a mobilização do movimento de mulheres
quando da elaboração da Constituição de 1988.
“A lei não pode forçar os homens a serem bons;
mas pode impedi-los de serem maus.”
(Autor desconhecido)
Referências bibliográficas
BRAZÃO, Analba; OLIVEIRA, Guacira César (orgs.) Violência contra as mulheres: uma história contada em décadas de luta. Brasília: CFEMEA, 2010.
CORTÊS, Iáris Ramalho. Situação dos Projetos de Lei sobre Violência Familiar, em Tramitação no Congresso Nacional, acompanhados pelo CFEMEA.
Brasília, 2002. Disponível em http://www.cfemea.org.br/images/stories/pdf/
PLViolenciaFamiliar.pdf. Acesso em 12 de janeiro de 2010.
Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de
Políticas para as Mulheres, Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência
Contra as Mulheres. Brasília : Presidência das República, 2010.
63
Caso Fonaje: o ativismo de juízes
integrantes do Fórum Nacional dos Juizados
Especiais – Fonaje no processo de elaboração
da Lei Maria da Penha
Rosane M. Reis Lavigne
A questão
Este estudo analisa aspectos do embate protagonizado por setores
do movimento brasileiro de mulheres1 e parte dos juízes integrantes do
Fórum Nacional dos Juizados Especiais – FONAJE2, durante o processo
de elaboração do anteprojeto legislativo que impulsionou a criação da Lei
n.º 11.340/06 – Lei Maria da Penha3, à luz de conceitos desenvolvidos por
1
* Agradeço a Leandro Molhano Ribeiro os valiosos comentários feitos a este artigo, bem como a
colaboração de Ana Carolina Costa Silva.
O movimento de mulheres sofre transformações na linha do tempo. A mobilização das brasileiras
em prol da democracia, em especial nos anos 80, adquiriu contornos distintos. Havia grupos de
mulheres que se ocupavam em especial da temática pública institucional, dentre os quais se destaca o Centro da Mulher Brasileira – CMB – marco da segunda onda do feminismo, inaugurada em
1975 –, e também aqueles que se ocupavam da reflexão sobre a condição feminina, com ênfase na
sexualidade – a exemplo do grupo CERES. As mulheres organizadas também constituíram espaços
autônomos como o Fórum Feminista, além dos grupos SOS-Mulher que prestavam atenção direta a mulheres vítimas de violência doméstica e, ainda, das organizações não-governamentais que
atuavam na perspectiva de gênero e políticas públicas. Atualmente, o movimento é o resultado de
expressões de muitos destes grupos e de outros vinculados a partidos políticos. Ver SCHUMAHER
(2006: 124-133).
2
Instalado em 1997, o FORUM NACIONAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS – FONAJE apresenta os
seguintes objetivos: I – congregar magistrados do sistema de Juizados Especiais Cíveis e Criminais
dos Estados e Distrito Federal; II – Aperfeiçoar o sistema de Juizados Especiais e promover a atualização de seus membros pelo intercâmbio de conhecimentos e de experiências; III – Uniformizar
métodos de trabalho, procedimentos e editar enunciados; IV – Analisar e propor projetos legislativos
de interesse de Juizados Especiais; V – manter intercâmbio, dentro dos limites de sua finalidade, com
entidades de natureza jurídica e social do país e do exterior. Disponível em: http://www.fonaje.org.
br/2006/. [acesso em 14 de março de 2011].
3
A Lei Maria da Penha – Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, resulta de ação conjunta da sociedade
civil e o Estado. Como descrito na Carta da CEPIA (periódico informativo da organização não governamental Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e Ação – CEPIA), desde 1995, a experiência
dos diversos grupos feministas, em especial daqueles que prestavam serviço de apoio legal, vinha
65
Rosane M. Reis Lavigne
observadores da atuação do Poder Judiciário na contemporaneidade4. O
dissenso entre os dois grupos mencionados girou em torno do tratamento
legal dado aos crimes relativos à violência doméstica contra a mulher. Todavia, uma visão mais ampla mostra a presença de questões relacionadas à
democracia e suas formas de representação política, sobretudo aos elementos de validade e de legitimidade procedimental.
Do ponto de vista processual, anteriormente à vigência da Lei Maria
da Penha, aplicava-se à maior parte dos casos de violência contra a mulher
a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que regulamenta os Juizados Cíveis e Criminais. Sabe-se que a referida legislação trata de causas de menor
complexidade ou de menor potencial ofensivo mediante uma instrução
simplificada, concebidos como tais crimes apenados até dois anos5. Pois
bem. As mulheres chamavam a atenção para o fato de que a referida legislação interna, além de não responder adequadamente à violência de gênero,
encontrava-se dissonante da normativa internacional que trata esse grave
fenômeno social como violação aos direitos humanos e obstáculo ao desenvolvimento6. Assim, reivindicavam a criação de legislação especial com
demonstrando a inadequação da Lei 9099/95 aos casos relativos à violência doméstica e familiar
contra a mulher. Dessa forma, formou-se ampla articulação feminista com o objetivo de elaborar estratégias destinadas a modificar a resposta do Estado Brasileiro à violação dos direitos humanos das
mulheres. Estabeleceu-se, então, o Consórcio que levantou, no decorrer de vários encontros, aportes
para o refinamento de conceitos, a reflexão e o debate sobre como mais bem construir uma legislação
que atendesse ao disposto no § 8º do art. 226 da Constituição Federal e, em especial, à normativa
internacional de direitos humanos, Convenção Belém do Pará. O apanhado de ideias e o estudo da
legislação comparada consubstanciaram-se em texto-base do que se transformaria, após as inúmeras
discussões acontecidas antes e durante o processo legislativo, na Lei Maria da Penha. Ver BARSTED;
REIS LAVIGNE (2002: 9).
4
Após a Carta Constitucional de 1988, em especial, desenvolvem-se estudos com a finalidade de examinar o comportamento dos juízes e a influência do Poder Judiciário na modelação democrática da
sociedade brasileira. Teorias estrangeiras formuladas em realidades com experiência democrática do
pós-guerra são observadas e com o impulso do trabalho inaugural de Tate & Vallinder (1995) despontam, então, estudos do caso brasileiro, tais como: CASTRO (1997); ARANTES, (1999); VIANNA,
(1999 e 2007); CARVALHO, (2007); MARANHÃO, (2003); OLIVEIRA, (2005); FALCÃO, (2006),
PACHECO, (2008); TAYLOR; DA ROS, (2008) e outros. Vale destacar, também, a visada latino-americana de ACUÑA; ALONSO (2003). E os diagnósticos desenvolvidos por SADEK, (a partir de 1996).
5
As práticas ilícitas contra as mulheres por conflitos de gênero, em particular aquelas circunscritas ao
âmbito doméstico e da família, correspondem, em grande parte, aos tipos penais de lesão corporal
e de ameaça. Estes estão reconhecidos como de menor potencialidade ofensiva de acordo com a
legislação específica dos Juizados Especiais Criminais, em decorrência de o máximo das penas a eles
atribuídas não ultrapassar dois anos.
6
A violência contra a mulher constitui violação aos direitos humanos e obstáculo ao desenvolvimento. Esse reconhecimento, traduzido em diversos documentos internacionais, decorre do intenso lobby das mulheres, formado desde a mobilização interna nos países, avivado a nível internacional
por meio de inúmeras atividades realizadas por ocasião das conferências das Nações Unidas, dentre
as quais se destacam a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, no ano de
1993 e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, em 1995. A Declaração e o
Programa de Ação de Beijing identificam a violência contra a mulher como obstáculo ao alcance da
66
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
a finalidade de melhor sistematizar a matéria, alinhando-a ao tratamento
conferido em convenções internacionais firmadas pelo Brasil, em especial a
Convenção Belém do Pará7, e atendendo ao dispositivo constitucional previsto no § 8º do artigo 226, que determina ao Estado criar mecanismos para
coibir a violência no interior da família. Com essa perspectiva, as mulheres
organizadas se articularam para formular minuta de anteprojeto de lei endereçado ao Poder Executivo, instando-o a iniciar o correspondente processo legislativo para instituir a legislação especial visada.
Por outro lado, os representantes do FONAJE insistiam em manter
a competência sobre a matéria, desprezando o paradoxo do binômio formado: violação dos direitos humanos versus menor potencial ofensivo.
Argumentavam os referidos magistrados que algumas modificações no
texto da Lei 9099/1995 bastariam para aperfeiçoá-la, tornando-a mais efetiva quando manejada em situações de violência doméstica. Portanto, não
enfrentavam a deficiência presente no regramento brasileiro, fruto da discrepância entre a normativa atinente à matéria no plano internacional e o
interno, como citado.
De pronto, a descrição do choque entre os dois atores sociais denota a
divergência na concepção de ideias relacionadas à problematização da violência contra a mulher na esfera pública e às formas de conduzir a questão
no sistema de justiça brasileiro. Esse confronto, contudo, ganha contornos
políticos mais amplos quando se examina a questão sob o viés democrático
da representação política e dos interesses republicanos em jogo. Exemplifica, também, como a atuação judicial pode se desenvolver fora dos territórios delimitados pela competência que marca os diferentes órgãos jurisdicionais8. Há outras dimensões do Poder Judiciário9, as demais arquiteturas
institucionais instaladas com objetivos diversos dos referidos órgãos judicantes. Ao lado do exercício da jurisdição – poder de aplicar a lei ao caso
igualdade, desenvolvimento, paz e também como violação aos direitos humanos e liberdades das
mulheres. Disponível em: http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/platform/. [acesso em 14 de
março de 2011].
7
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção
de Belém do Pará (1994). Trinta e um países da América Latina e Caribe incorporaram a Convenção
aos respectivos ordenamentos jurídicos. Este documento reconhece que a mulher tem direito à vida
livre de violência, seja na esfera pública ou na privada, e condena todas as formas de violência
contra a mulher. A Convenção determina aos Estados parte a adoção de políticas e programas para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/
spanish/tratados/a-61.html [Acesso em 14 de março de 2011].
8
Para a divisão racional do trabalho judicial encontram-se instituídos organismos distintos, como
os que integram as Cortes Superiores, os Tribunais, às Varas, às Turmas Recursais, aos Juizados. O
Supremo Tribunal Federal ocupa o ápice dessa hierarquia institucional.
9
Assinala Falcão (2006: 119): “Não existe um Poder Judiciário. Existem múltiplos poderes judiciários,
se os encaramos do ponto de vista organizacional, econômico, sociológico ou político. Existe uma
multiplicidade quase palpável, de se pegar com a mão, diria certamente Gilberto Freire”.
67
Rosane M. Reis Lavigne
concreto –, formam-se novos espaços de movimentação dos magistrados.
Embora desprovidas de poder vinculante, as deliberações verificadas no
âmbito de tais arquiteturas institucionais transpõem o diálogo entre pares
e, em certo sentido, seguindo a linha dos órgãos judiciais decisórios, também emitem mensagens para a sociedade, valorizando, estigmatizando ou
banalizando expectativas sociais postas em debate. Essa atuação judicial
expandida para fora do território jurisdicional vem conferindo maior complexidade ao Poder Judiciário10.
O FONAJE constitui exemplo deste novo desenho do Poder Judiciário. Forma uma arquitetura institucional, espaço de articulação entre pares
que se identificam sobretudo por exercerem jurisdição em órgãos correlatos11. Os magistrados da referida articulação buscam unificar entendimento
a respeito da matéria que lhes cabe por competência funcional e padronizar procedimentos em todo o território nacional12. Exemplo desses entendimentos são os enunciados por eles produzidos13. Nesse espaço de articulação teceram-se ações estratégicas destinadas a moldar o anteprojeto de lei
de violência doméstica formulado pelo Consórcio de Mulheres aos interesses corporativo-institucionais do próprio FONAJE.
Cabe, então, descrever essa disputa pela representação política dos interesses das mulheres relacionados à questão da violência doméstica e familiar sob a perspectiva de gênero. Tal disputa se materializa na divergência
10 O diálogo sistemático e permanente entre juízes vem se intensificando nos últimos anos. Essa comunicação ocorre a nível interno dos países e ultrapassa fronteiras, com a formação de articulações
no âmbito internacional, como comentam Garapon e Allard (2006). No Brasil há várias articulações
de magistrados instituídas em diferentes âmbitos e com finalidades distintas, como por exemplo a
Associação de Juízes Brasileiros (AMB) e os Juízes para a Democracia (AJD), dentre outras. Fragale
Filho (2009: 124-123), em estudo preliminar, com foco na jurisprudência do CNJ, para identificar
os contornos de um processo de reconfiguração profissional da magistratura, chama atenção para
um paradoxo: “de uma banda, pretende-se que ela (a magistratura) seja mais transparente, aberta
e porosa diante das demandas da sociedade, enquanto, de outra banda, postula-se uma neutralidade ideológica, um distanciamento cognitivo, um insulamento social e uma imobilidade espaço-temporal que praticamente inviabilizam as possibilidades de concretização das novas configurações
profissionais.” Prossegue o autor, “o que talvez nos falte responder é como se quer juntá-las, pois é
dessa reunião que irão emergir não só os contornos de magistratura que desejamos, mas também seu
papel no exercício democrático”.
11 A competência dos Juizados Especiais é matéria constitucional. Segundo o art. 98 da Constituição
Federal de 1988 “a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de
menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses
previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.
12 No site do FONAJE, parte institucional encontra-se a informação de que “sua idealização surgiu da
necessidade de se aprimorar a prestação dos serviços judiciários nos Juizados Especiais, com base
na troca de informações e, sempre que possível, na padronização dos procedimentos adotados em
todo o território nacional”. Disponível em: http://www.fonaje.org.br/2006/. [Acesso em 05 de maio
de 2011].
13 Os Enunciados Cíveis e Criminais encontram-se disponíveis no site do FONAJE.
68
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
entre setores do movimento de mulheres versus o Poder Judiciário. Dois
pólos representados, respectivamente, pelo Consórcio de Mulheres e pelo
FONAJE. Face a esse quadro cabe, ainda, suscitar a verificação da validade
das proposições em confronto, sob a regência da democracia.
Aos interesses dos magistrados integrantes do FONAJE confronta-se
o pleito democrático do movimento de mulheres. Desenhou-se o seguinte
quadro político: de um lado, a aglutinação nacional de magistrados que se
movimentava estrategicamente contra legítima reivindicação de segmento
em condição de vulnerabilidade14 por perdas históricas de direitos, o das
mulheres; de outro, o movimento social de mulheres que buscava exercer
o direito da representação política, expressando-se por meio dos canais típicos da democracia, visando instrumentalizar o pleito de criar legislação
com o fim de prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. A cena esquadrinhada realça a divergência entre as pautas de magistrados e do movimento organizado de mulheres, trazendo à tona uma
atuação da magistratura coorporativa e externa as suas atividades judicantes tradicionais. Assim, o protagonismo dos juízes extrapola o órgão de jurisdição, alcança espaço aberto e inaugura campo político de agir institucional com impacto e amplo alcance social. Diante desse diagnóstico, deve-se
perguntar: a que se deve esse ativismo de magistrados do FONAJE? Que
razão os levou a querer substituir a perspectiva feminista15 na defesa dos
interesses das mulheres?
Frise-se que a atuação dos magistrados nos espaços por eles configurados em arenas institucionais, embora perca a coercitividade e a força vinculante própria do exercício da jurisdição, mantém-se como poder persuasório para a sociedade, em razão da representação funcional destes atores,
a de definidores da legalidade, como agentes decisórios aplicadores da lei,
como expressado anteriormente. Tal inferência pode ser percebida no caso
em apreço, quando os Juízes integrantes do FONAJE lograram junto ao
Poder Executivo modificar, segundo seu interesse, a minuta apresentada
pelo Consórcio feminista atinente à legislação especial pretendida. A partir
14 Facio e Fries (1999: 42) ressaltam que nós mulheres não “constituimos un grupo vulnerable. a lo sumo
podríamos ser un grupo vulnerabilizado por el patriarcado y las estructuras de género”.
15 Feminismo, de acordo com o Diccionario de estudios de género y feminismos “… se refiere a los movimientos de liberación de la mujer, que históricamente han ido adquiriendo diversas proyecciones. Igual que otros
movimientos, ha generado pensamiento y acción, teoría y práctica. […]. La teoría feminista se refiere al estudio
sistemático de la condición de las mujeres, su papel en la sociedad y las vías para lograr su emancipación. Se
diferencia de los estudios de la mujer por su perspectiva estratégica. Además de analizar y/o diagnosticar sobre
la población femenina, busca explícitamente los caminos para transformar esta situación. Aunque el feminismo
no es homogéneo, ni constituye un cuerpo de ideas cerrado – ya que las mismas posturas políticas e ideológicas
que abarcan toda la sociedad se entrecruzan en sus distintas corrientes internas –, podemos decir que éste es el
sexismo en todos los terrenos (jurídico, ideológico y socioeconómico), que expresa la lucha de las mujeres contra
cualquier forma de discriminación”. GAMBA, (2009: 144).
69
Rosane M. Reis Lavigne
dessas constatações é possível construir duas categorias relacionadas à atividade judicial: lato senso e estrito senso. À primeira corresponderia qualquer
atividade realizada como magistrado. À segunda, a prestação da atividade
judicante, exercida em órgão de atuação jurisdicional previsto em regramento próprio. Pois bem. Nota-se que a atividade judicial em sentido amplo
informa o comportamento do juiz, no agir em órgão de atuação, e termina
por impactar o papel e o desempenho do Poder Judiciário como um todo.
Cabe, então, aos que se dedicam a observá-lo, ampliar o olhar para alcançar
as múltiplas dimensões existentes no Poder Judiciário e assim captar possíveis desvios da função a ele reservada nos termos da Constituição Federal.
Ao analisar o caso FONAJE, tem-se como recorte temporal o período
de elaboração do estudo preparatório ao anteprojeto da Lei Maria da Penha
e a promulgação dessa legislação especial. Esse intervalo de tempo compreende a data de composição do grupo de estudo feminista, com o objetivo
de preparar proposta legislativa para enfrentar a violência doméstica e familiar contra a mulher, em 2002, incluindo o período de tarefas realizadas
pelo Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, instituído com o propósito
de expandir o debate, até a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006.
Constituem objeto de análise deste estudo notícias extraídas de informativos institucionais, bem como atas do FONAJE alusivas ao encaminhamento legislativo pretendido pelo movimento de mulheres para tratar o
fenômeno da violência de gênero. As atas foram localizadas em pesquisa
virtual. Há, também, informações selecionadas de correspondência tratada
entre integrantes do Consórcio Feminista, de acervo documental da autora.
O presente estudo decorre de três eixos principais. O primeiro remete
às reflexões provenientes de uma combinação de leituras e discussões desenvolvidas por ocasião do Mestrado em Poder Judiciário da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, nos anos de 2009 e 2010. O segundo deriva da experiência da autora como Defensora Pública, feminista, integrante
da Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB, OAB-Mulher/RJ, Comissão
de Segurança da Mulher, Câmara Técnica de Gestão do Plano Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, ambas do Estado do Rio de
Janeiro. E o terceiro envolve a participação no Consórcio de organizações
não-governamentais e especialistas que elaborou o anteprojeto à Lei 11.340,
sancionada em 6 de agosto de 2006, – Lei Maria da Penha (BANDEIRA,
2009). A linha teórica adotada neste trabalho centra-se em dois temas: democracia e Poder Judiciário. Nesses encontram-se subsumidas a participação
das mulheres na construção de legislação especial para enfrentar a violência
doméstica e familiar e a movimentação de juízes reativos a essa estratégia
positivista de atuar. Como parâmetro conceitual para o desenvolvimento
das questões referenciadas será utilizado o suporte oferecido por O’Donnell
(2007), Vianna (1999), Barsted (1995), Campos (2006) e Piovesan (2000).
70
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
O ativismo do FONAJE no processo de elaboração
da Lei Maria da Penha
Os direitos constitucionais conquistados16 após o Pacto Político de 88
inauguraram para as mulheres nova cena de mobilização17 e de atividades
políticas. Têm também orientado programas de ação destinados a implementar e interpretar a lei, sofisticar as formas de pensar e exercer o poder, e
manter uma visão de igualdade que não seja limitada à igualdade formal18.
Nesse sentido, o movimento de mulheres elaborou plataforma de ação que
se mantém atualizada frente a novos desafios e destinada a transpor para
as esferas dos Poderes da República os referidos direitos, com a finalidade
de transformá-los em políticas de largo alcance social. Para tanto, estabeleceram-se articulações com o Poder Executivo e o Legislativo, que se mostraram permeáveis às reivindicações das mulheres. Com o Poder Judiciário
esse processo ocorreu de forma mais tardia e lenta, em razão mesmo de
suas conhecidas características herméticas (REIS LAVIGNE, 2009: 167). Por
largo período temporal, esse Poder permaneceu aquietado com arquétipos
de discriminação da mulher que, reproduzidos em prestação jurisdicional,
faziam circular e reforçar a desigualdade de gênero no meio social.
É o que demonstram diversos relatórios investigativos da prestação jurisdicional no Estado Brasileiro, quando a vítima é mulher19. Fru16 Segundo Informe Brasileiro ao CEDAW, endossado pelo movimento de mulheres, “a Constituição
Brasileira está, assim, em absoluta consonância com os parâmetros internacionais acolhidos pelo
Brasil, em decorrência da ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher, refletindo tanto a vertente repressiva – punitiva (proibição da discriminação), como a vertente promocional (promoção da igualdade)”. PIOVESAN, F; PIMENTEL,
S. (coords). CEDAW: Relatório Nacional Brasileiro: Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, Protocolo Facultativo. Ministério das Relações Exteriores,
Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, Brasília, 2002, p. 32.
17 A cena anterior, tomando como marco a relação do movimento de mulheres com o processo de redemocratização do país, ocorreu no período de mobilização para a Anistia, as Diretas Já e a instalação
da Assembléia Nacional Constituinte. Nesse processo as mulheres foram protagonistas, tanto na resistência ao regime militar ditatorial, quanto na construção de uma ordem normativa democrática,
fundada na igualdade entre homens e mulheres em todas as faces e dimensões da vida em sociedade.
18 Sob este propósito igualitário, delineiam-se ações que têm por objetivo a afirmação da autonomia da
mulher na vida privada e pública em três esferas, assim descritas no Observatório da Igualdade de
Gênero da América Latina e Caribe, instituído pela Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe – CEPAL: (i) a autonomia econômica (controle dos ativos e recursos); (ii) a autonomia física
(controle sobre seu corpo); (iii) a autonomia na tomada de decisões (participação nas decisões que
afetam sua vida e a da coletividade). Sem tais autonomias, não há igualdade de gênero e tampouco cidadania paritária. O barômetro instituído pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
– CEPAL para espelhar a igualdade entre homens e mulheres nos países da região latino-americana e
caribenha pode ser examinado no Observatório da Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe.
Disponível em: http://www.eclac.org/oig/default.asp?idioma=PR. [Acesso em 07 de maio de 2011.]
19
Dentre eles destacam-se: “Injustiça Criminal X Violência Contra a Mulher no Brasil” desenvolvido
por AMERICAS WATCH REPORT. Criminal Injustice: Violence Against Women in Brazil. Disponível
71
Rosane M. Reis Lavigne
tos da observação de atores no espaço judicial e da análise do ementário
jurisprudencial das Cortes do país, estes relatórios mostram a insuficiente
percepção da magnitude da violência imprimida contra a mulher, em especial a que ocorre no âmbito doméstico e familiar. Assinalam Barsted e
Hermann (1995), ao comentarem pesquisa realizada pela CEPIA20 em momento anterior à Lei Maria da Penha, que o discurso jurídico “tem se orientado segundo padrões morais pré-estabelecidos para homens e mulheres,
refletindo o tratamento histórico penal diferenciado por gênero, sobretudo
quando envolvidos em crimes domésticos” (BARSTED; HERMANN, 1995:
109). Enfatizam que “o Poder Judiciário ratifica papéis e hierarquias sociais
que dizem respeito à estrutura política das relações entre os sexos, não demonstrando, na prática de suas decisões, a neutralidade que afirma caracterizar a sua atuação”.
Diante de tal quadro jurídico-institucional diagnosticado como desalentador, setores do movimento de mulheres incrementaram debates e
ampliaram redes para construir estratégias e ações destinadas a adequar a
ordem jurídica vigente aos preceitos constitucionais e à normativa internacional relacionada aos direitos humanos das mulheres. Visava-se modificar
a cultura prevalente no sistema de justiça, tornando a resposta estatal condizente aos direitos da mulher. Priorizou-se endereçar ações para enfrentar
a violência doméstica e familiar contra a mulher, em razão dos dados alarmantes verificados nesse âmbito.
Como resultado desse conjunto de esforços, formou-se, então, grupo
de trabalho como descrito na Carta da CEPIA:
Em face dessa paradoxal situação, uma articulação de feministas operadoras
do direito, visando contribuir para o debate sobre a violência contra a mulher
e buscando as respostas legais necessárias, promoveu, na Cepia, no Rio de
Janeiro, nos dias 19 e 20 de agosto de 2002, uma reunião que teve como pauta:
avaliar os efeitos da Lei 9099/1995 sobre os crimes domésticos praticados contra as mulheres; analisar os diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre essa matéria, bem como a legislação sobre violência
contra mulheres de diversos países latino-americanos; buscar uma resposta
legislativa adequada a essa problemática em nosso país.
em: http://www.law.georgetown.edu/RossRights/docs/pdfs/BRAZILHRWatch.pdf. [Acesso em 14
de março de 2011]. Ver também ARDAILLON; DEBERT, (1987); PIMENTEL; SCHRITZMEYER;
PANDJIARJIAN (1998).
20 Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e Ação – CEPIA: organização não governamental, sem
fins lucrativos, “voltada para a execução de projetos que contribuam para a ampliação e efetivação
dos direitos humanos e o fortalecimento da cidadania especialmente dos grupos que, na história de
nosso país, vêm sendo tradicionalmente excluídos de seu exercício”. Disponível em: http://www.
cepia.org.br/default.asp. [Acesso em 14 de março de 2011].
72
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
Dessa reunião participaram as seguintes organizações e pessoas que se constituíram em um consórcio: Leila Linhares Barsted (CEPIA), Silvia Pimentel
(CLADEM), Carmen Hein de Campos (THEMIS), Iáris Ramalho Cortês (CFEMEA), Elizabeth Garcez (AGENDE), Beatriz Galli (ADVOCACI), Rosana
Alcântara (CEDIM), Ester Kosoviski (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro), Rosane Reis Lavigne (Defensoria Pública do Rio de Janeiro), Ela Wiecko de Castilho (Procuradoria da República).
Algumas das conclusões desse grupo de trabalho foram: rejeitar a Lei 9099/1995
no que se refere à violência doméstica cometida contra as mulheres, dado que
esta não é de “menor potencial ofensivo”; elaborar um anteprojeto de lei sobre
violência contras as mulheres que incorpore a preocupação com as vítimas,
incluindo medidas de proteção; debater esse anteprojeto com o movimento
de mulheres, com parlamentares e membros da magistratura, dentre outros
atores sociais.
A partir dessa primeira reunião, somaram-se ao grupo de trabalho outras
militantes em defesa dos direitos da mulher. Formou-se, então, o Consórcio de
Mulheres21 (posteriormente Consórcio de ONGs). No decorrer de vários encontros, o Consórcio levantou aportes para o refinamento de conceitos, a reflexão e
o debate sobre como melhor construir uma legislação que atendesse ao disposto
no § 8º do art. 226 da Constituição Federal e, em especial, à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — a Convenção de Belém do Pará22. Essa Convenção, própria do sistema regional americano
de proteção aos direitos humanos, ratificada pelo Brasil em 1995, emerge como
primeiro tratado internacional a dispor sobre a violência contra a mulher como
um fenômeno generalizado, que tangencia classe social, raça, religião, idade ou
qualquer outra condição e afeta elevado número de mulheres em todo o mundo.
O apanhado de ideias e o estudo de legislação comparada consubstanciam-se
em texto base do que se transformaria, após as inúmeras discussões acontecidas
antes e durante o processo legislativo, na Lei Maria da Penha.
Segundo a cronologia das atividades do Consórcio de ONGs na elaboração
de uma lei de violência doméstica23, desenvolvida pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA, ao final da primeira minuta, o anteprojeto de lei
apresentava, dentre outras medidas, as seguintes:
21 Ver “Debate sobre a violência”, CEPIA. Disponível em: http://www.cepia.org.br/articulacao.htm.
[Acesso em 14 de março de 2011].
22 Sobre o impacto dos Tratados Internacionais no Direito brasileiro v. PIOVESAN, (2000: 173-179).
23 Informações extraídas do site CFEMEA. Mobilização por uma lei integral de enfrentamento da violência
doméstica contra as mulheres. 14 de abril de 2005. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=3328:mobilizacaoporumaleiintegraldeenfrentamento
daviolenciadomesticacontraasmulheres&catid=216:noticiaseeventos&Itemid=151. Acesso em 03 de
maio de 2011.
73
Rosane M. Reis Lavigne
a) a criação de uma Política Nacional de combate à violência contra a
mulher;
b) a conceituação a violência doméstica contra a mulher com base na
Convenção de Belém do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral;
c) medidas de proteção e prevenção às vítimas;
d) a criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar;
e) a criação de um juízo único com competência cível e criminal através
de Varas Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica
contra as mulheres e outros relacionados;
f) a assistência jurídica gratuita para as mulheres;
g) a não aplicação da lei 9099/95 nos casos de violência doméstica contra as mulheres.
O anteprojeto preparado pelo Consórcio feminista foi levado a debate com
representantes da Bancada Parlamentar Feminina e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, que instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI)24. Esse, por sua vez, promoveu reuniões e oitivas públicas com várias
instituições25. Buscava-se, dessa forma, aprofundar o debate do anteprojeto de
lei, com o fito de imprimir-lhe forte tessitura democrática.
Muitas vezes, juízes integrantes do Fórum Nacional de Juizados Especiais
– FONAJE compareciam às reuniões do mencionado grupo de trabalho. O acercamento dos juízes com o propósito de agregar contribuição ao anteprojeto de
lei motivou a realização de workshop “Encontro de Perspectivas”, com a participação do referido grupo e operadores do direito26. Inicialmente, houve sa24 BRASIL. Decreto nº 5.030, de 31 de marco de 2004. Institui o Grupo de Trabalho Interministerial para
elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra
a mulher, e dá outras providências. O GTI foi coordenado pela Secretaria de Políticas Especiais para as
Mulheres, que contava com a participação de representantes da Casa Civil da Presidência da República,
Advocacia Geral da União, Ministério da Saúde, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, dentre
outros órgãos federais, além de representantes do consórcio feminista. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5030.htm. Acesso em: 21 de março de 20011.
25 Por exemplo: Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos, mulheres indígenas, negras, representantes da Magistratura, da
Segurança Pública, do Ministério Público e da Defensoria Pública.
26 O VI Relatório Nacional Brasileiro à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher – CEDAW, período 2001-2005, faz referência ao workshop “Encontro
de Perspectivas” e anota as seguintes razões para a realização de tal atividade: “ampliar o diálogo e
receber contribuições para a elaboração do anteprojeto em discussão, tendo como principais objetivos: sensibilizar e estabelecer parcerias com o Ministério Público, os Juizados Especiais Criminais,
as Defensorias Públicas, a OAB e a Magistratura para uma revisão da legislação brasileira sobre violência contra a mulher; refletir sobre o papel desses segmentos na prevenção, punição e assistência à
violência contra a mulher; divulgar e discutir os compromissos internacionais firmados pelo governo
brasileiro na área da prevenção, assistência e combate à violência contra a mulher, especialmente a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar e Violência contra a mulher (Convenção
de Belém do Pará, 1994), a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra
a Mulher (CEDAW, 1981) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995). Disponível
74
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
tisfatória troca de conhecimento entre os Juízes do FONAJE e os membros do
Consórcio feminista. Por um lado, as articuladoras da questão de gênero dispunham de acúmulo teórico e de conhecimento de práticas que apontavam para o
paradigma internacional referente aos direitos humanos das mulheres. Ancorados em dados empíricos, sublinhavam a inexorabilidade de se inovar no quadro
normativo brasileiro para ajustá-lo ao paradigma anunciado. Por outro, os juízes
proclamavam a contribuição da Lei n.° 9.099/1995 ao ordenamento jurídico nacional, por introduzir mecanismos despenalizadores, clamados pela criminologia moderna, assim como outros facilitadores do funcionamento da máquina
judiciária. No entanto, fracassou a possibilidade de o intercâmbio resultar em
ideias inovadoras e propostas comuns ao anteprojeto de lei. Isso porque após
o cotejo dos tratados internacionais, legislação comparada e o regramento legal
interno atinente à temática, o Consórcio concluiu que os Juizados Especiais Criminais não mais deveriam ter competência para apreciar práticas de violência
doméstica contra a mulher por absoluta inadequação funcional. Isso porque tais
práticas acarretam elevada potencialidade lesiva, sendo consideradas violações
aos direitos humanos e colidentes, portanto, com as infrações de menor potencial ofensivo, abarcadas pela Lei n.° 9.099/1995.
Cabe aqui destacar a ocorrência de importante acontecimento para o impulso
do anteprojeto de lei especial de violência doméstica e familiar contra a mulher: a
Recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH órgão
da Organização dos Estados Americanos – OEA (2001)27, encaminhada ao Brasil
após apreciar o Caso Maria da Penha28. Como recomendações ao país, a Comissão
elencou, dentre outras medidas, o encerramento célere e efetivo do processamento
penal do agressor da vítima Maria da Penha e investigação para determinar o responsável pelas irregularidades e demora no andamento da correspondente ação
penal. Anotou também que caberia o Estado Brasileiro “prosseguir e intensificar o
processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório
com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil”.29
em:
http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/instancias-regionais/o-comite-cedaw-2013-comite-para-a-eliminacao-de-todas-as-formas-de-discriminacao-contra-a-mulher.
[Acesso em 8 de maio de 2011.]
27 Para mais informações sobre a mencionada Comissão, visitar o site: http://www.cidh.oas.org/que.
port.htm. [Acesso em 05 de maio de 2011].
28 O Caso Maria da Penha foi levado ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos – CIDH/OEA pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê LatinoAmericano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima
Maria da Penha, em 1998. Mais informações sobre este Caso ver em http://www.mariadapenha.org.
br/a-lei/a-historia-da-maria-da-penha/. [Acesso em 8 de maio de 2011].
29 Para conhecer a íntegra do Relatório do Caso Maria da Penha, ver RELATÓRIO ANUAL 2000.
RELATÓRIO N° 54/01. CASO 12.051. MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES. BRASIL (4 de abril
de 2001), disponível em http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/299_Relat%20n.pdf. [Acesso em
08 de maio de 2011].
75
Rosane M. Reis Lavigne
Ressalte-se que o movimento de mulheres em nenhuma ocasião negou que
os Juizados Especiais Criminais impulsionaram a judicialização da violência doméstica e que esse processo foi rico sob a ótica do favorecimento da pesquisa
empírica e da visibilidade desse fenômeno social. O volume de ações demandadas gerou registros que constituíram base de dados, facilitando a investigação
sobre a produção judicial e, em especial, a possibilidade de se planejar e determinar uma política mais acertada para o sistema de justiça com a finalidade de
romper com a histórica banalização da violência contra a mulher. No entanto,
sob a perspectiva da efetividade dos direitos, naquele momento anterior à Lei
Maria da Penha, a resposta do Judiciário dada aos casos levados a julgamento
nos referidos órgãos jurisdicionais se mostrou insatisfatória e lesiva aos interesses da mulher, como chamam atenção Campos e Carvalho (2006):
A Lei 9.099/95, ao definir os delitos em razão da pena cominada e não do bem
jurídico tutelado, não compreendeu a natureza diferenciada da violência doméstica. Essa (in)compreensão jurídica tem como conseqüência a banalização da
violência de gênero, tanto pelo procedimento inadequado como pelas condições
impostas na composição civil e na transação penal. As possibilidades de escuta
da vítima mostraram-se falaciosas devido à diminuição de sua intervenção na
discussão sobre os termos da composição civil e, sobretudo, da transação penal.
Proliferavam, então, decisões judiciais emanadas dos Juizados Especiais
Criminais que condenavam o autor do fato à pena restritiva de direito correspondente ao pagamento de cesta básica a entidade assistencial ou de uma pequena multa em dinheiro. Essas reiteradas práticas judiciais, que descuidavam
da correspondência sócio-educativa da medida aplicada à infração penal cometida, denotavam a pouca importância conferida pelo Poder Judiciário e instituições afins ao grave fenômeno da violência doméstica, face perversa da violação
dos direitos humanos da mulher.
O Relator Especial da ONU sobre a independência de juízes e advogados,
Leandro Despouy, durante sua visita ao Brasil em outubro de 2004, elaborou o
documento “Civil and political rights, including the questions of independence of the
judiciary, administration of justice, impunity: Report of the Special Rapporteur on the
independence of judges and lawyers”, em que destaca aspectos importantes sobre a
situação da violência contra a mulher no Brasil30:
25. No tema de violência contra a mulher, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) identificou um padrão geral de negligência e falta de
30 A versão em português do mencionado Relatório foi divulgada pelo Comitê Latino-Americano e do
Caribe para a defesa dos direitos da Mulher – CLADEM em CIRCULAR ELETRÔNICA: VIOLÊNCIA
DE GÊNERO Edição Abril/2005 n.º 4. O documento em inglês encontra-se disponível no site da ONU
em http://www2.ohchr.org/english/issues/judiciary/visits.htm. Acesso em 28 de março de 2011.
76
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
efetividade do Estado para processar e condenar os agressores, além de enfatizar que “a sistemática tolerância do sistema não faz nada além de perpetuar as raízes e fatores psicológicos sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher”.
26. O Brasil não conta ainda com legislação específica sobre violência doméstica. Ante essa circunstância, numerosos casos desse tipo de violência são
classificados como delitos de menor potencial ofensivo, o que agrava o problema da impunidade.
27. Alega-se que os casos de violência sexual e violência doméstica, incluindo
aqueles contra adolescentes, não são tratados pela competência adequada
nem com a devida atenção pelos distintos atores do sistema de administração da justiça. Pelo contrário, em vários âmbitos domina uma atitude
machista que tende a culpar as vítimas desses crimes. Cita-se como exemplo
a decisão de um juiz que, ao julgar um caso de exploração sexual e violência
contra uma adolescente de 14 anos, disse em sentença que “ela não era uma
novata em relação a sexo e que já tinha comportamento e idade para libertar-se
de seu agressor”. (grifos nossos).
O quadro de inoperância do Poder Judiciário quanto aos direitos da mulher
encontra-se também refletido em várias pesquisas de opinião, dentre elas a que
o IBOPE realizou por solicitação do Instituto Patrícia Galvão, em 200631. Essa
pesquisa, intitulada “Percepções e Reações da Sociedade sobre a Violência contra a Mulher”, demonstrou o crescimento da preocupação com a violência contra a mulher no meio social. Apresentou dados importantes, dentre eles o fato
de que “em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas aplicadas
nos casos de violência contra a mulher são irrelevantes e que a justiça trata este
drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante.”
Portanto, diverso do entendimento firmado pelos Juízes do FONAJE, a Lei
n.º 9.099/95 não obteve sucesso qualitativo no enfrentamento à violência doméstica contra a mulher, muito embora sob a ótica da administração da justiça tenha
sido eficiente ao desobstruir os órgãos do Judiciário, contando para isso com o
papel do conciliador32, figura de realce na Lei 9099. Daí, o Consórcio feminista
31
Realizada em 2006 pelo Ibope e Instituto Patrícia Galvão, a pesquisa Percepções e Reações da Sociedade
sobre a Violência contra a Mulher contou com o apoio da Fundação Ford e do UNIFEM e parceria da
ASHOKA. Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/pesquisas/
pesq_ibope_2006.pdf. Acesso em 14 de março de 2011.
32
O art. 7º da Lei 9099/95 dispõe que “os conciliadores e Juízes leigos são auxiliares da Justiça, recrutados, os primeiros, preferentemente, entre os bacharéis em Direito, e os segundos, entre advogados
com mais de cinco anos de experiência”. Os Conciliadores potencializam a produção dos Juizados
Especiais. Todavia, entende-se que em casos com episódios de violência deve-se buscar a forma de
adjudicação judicial de resolução de conflitos, pois é dever do Estado assegurar os direitos humanos
das mulheres, em especial por experimentarem relações históricas de desigualdade de gênero.
77
Rosane M. Reis Lavigne
fechou posição sobre a inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 aos casos de violência doméstica contra a mulher. Em decorrência disso, magistrados do FONAJE
perderiam a competência para tratar dessa matéria, pois os órgãos judicantes
concebidos para tratar de crimes de menor potencial ofensivo – os Juizados Especiais Criminais –, deixariam de funcionar para os casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher. Os representantes do FONAJE se insurgiram contra
esse ponto e atuaram de forma estratégica para evitar a exclusão da violência
doméstica do rol de competência dos Juizados Especiais Criminais. Para isso,
desenvolveram diversas ações, como por exemplo: reuniões com a Ministra da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e com o Presidente do Superior
Tribunal de Justiça, além de prepararem arrazoado contrário à proposta das mulheres com a finalidade de realizar lobby no Congresso Nacional33.
2.1 A estratégia dos Juízes
É importante notar que os Juízes ativistas do mencionado Fórum tinham
expectativa de manter inalterado o status quo, qual seja a manutenção da competência dos Juizados Especiais Criminais para processar e julgar os crimes relacionados à violência doméstica contra a mulher. Com esse intento chegaram,
inclusive, a buscar a parceria da Secretaria Especial de Políticas Especiais para
as Mulheres – SPM, como ilustra trecho extraído da Ata do XVI Fórum Nacional
de Juizados Especiais34:
Informou, mais, importante desenvolvimento com a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres da Presidência da República, estabelecendo-se parcerias para resgatar a credibilidade dos Juizados Especiais Criminais, tão
criticados pelos movimentos de defesa da mulher. Apreciou que, hoje, os
Juizados Especiais são considerados parceiros da Secretaria, e são convidados para dar contribuição sobre projetos de lei. Lembrou que no dia 25
de novembro comemora-se o Dia Internacional pela Não-Violência contra
a Mulher. Informou que o Fundo para a Não-Violência à Mulher será o primeiro agente financiador do País que vai subsidiar a implementação de programas e projetos de prevenção e combate à violência contra a mulher, além de
33 Esse arrazoado, sob o título FONAJE – FÓRUM NACIONAL DE JUIZADOS ESPECIAIS. Análise
Crítica. Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4559/04. (Dep. Federal Jandira Feghali – PC do B/RJ), encontra-se disponível em http://www.tjgo.jus.br/juizado/pdf/artigosfonajerevista.pdf. [Acesso em: 14 de
março de 2011.]
34 Ata do XVI Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE. Rio de Janeiro, 24 de novembro de
2004. Disponível em: http://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:ctAWz9gexmQJ:www.tj.rs.gov.
br/institu/je/fonaje/XVI_FONAJE_%2520ATA.doc+Ata+do+XVI+F%C3%B3rum+Nacional+de+Juiz
ados+Especiais+-+FONAJE.&hl=pt-BR&gl=br&pid=bl&srcid=ADGEESjOd9U7XZBnLOTUyVGEb
6mp_vGZb6skjwPuQNFOkGCgkuR2PAobaOAabdv2FFELx5lexsN5hwQUA9g4XgKtaYvF4qbHx
7RWX5nQTayeAM4PNvQoJAimr1HdaRqwozQJKx9H6Aon&sig=AHIEtbQ2cg-ZmKmiT09tzdbN1zksD2u5uQ. [Acesso em: 14 de março de 2011].
78
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
promover, apoiar e disseminar pesquisas e informações sobre o tema. Ele será
administrado pelo Unifem Brasil/ Cone Sul, juntamente com um conselho de
especialistas e vai dar apoio à implantação de serviços especializados no atendimento às mulheres vítimas de violência, capacitando os quadros das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), Juizados Especiais
e de profissionais de instituições públicas que atuam na área. Opinou, mais,
que a Reforma que a Justiça demanda é de sistema de direito, de simplificação
e que já foi testada com sucesso nos Juizados.
A força política que o mencionado grupo de Juízes representou, traduzida
em oposição ao projeto desenhado pelo consórcio feminista, provocou impasse
junto ao GTI, e ocasionou mudança de conteúdo na proposta do Executivo que
passou a se distanciar da original apresentada. Embora inúmeros estudos acadêmicos, bem como informes produzidos por vários grupos feministas tenham
coincidido na conclusão de que a aplicação da Lei n.º 9.099/1995 aos casos de
violência doméstica reavivava a banalização dessas condutas, a Secretaria de
Políticas Especiais para as Mulheres – SPM cedeu ao lobby dos Juízes e acolheu
as objeções apresentadas pelo FONAJE. Assim, ao texto do anteprojeto apresentado pelo Consórcio feminista incorporou-se a incidência da Lei 9099/1995
aos casos de violência doméstica contra a mulher35. Com essa incorporação, que
descaracterizava a proposta apresentada pelo Consórcio, o texto seguiu para o
Congresso Nacional, e de lá o curso legislativo, sob Projeto de Lei 4559/2002. A
SPM sinalizou que as negociações relacionadas aos pontos divergentes deveriam acontecer no âmbito do Poder Legislativo.
Na Câmara dos Deputados, a tramitação do PL nº 4559/ 2002 propiciou ao
Consórcio Feminista rediscutir com Parlamentares aspectos relevantes da proposta
original e recuperar pontos perdidos, entre eles a inaplicabilidade da Lei 9099/1995
aos casos de violência doméstica. Em notícia veiculada no site da CFEMEA36, em
20 de junho de 2005, a Relatora do PL n.º 4.559/04, Deputada Federal Jandira Feghali, destaca os avanços do projeto de lei, como vedar a aplicação de penas de
35 Tanto o art. 12, como o art. 13 do Projeto de Lei 4559/04 autorizam expressamente a aplicação da Lei
9099/95, em frontal desacordo como a proposta do Consórcio de Mulheres. O art. 12 do Projeto de Lei
4559/2002 dispõe o seguinte: “Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
feito o registro do fato, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, além daqueles já previstos no Código de Processo Penal e na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de
1995...”. O comando do art. 13 estabelece “ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e
criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher, aplicar-se-ão
os Códigos de Processo Penal e Civil e a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que não conflitarem com o procedimento estabelecido nesta Lei. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/
integras/256085.pdf. [Acesso em 14 de março de 2011].
36 CFEMEA. Para relatora do PL 4559/04 “bater em mulher fica muito barato”. 20 de junho de 2005. Disponível
em
http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2684:para-relatora-do-pl-4559-04-bater-em-mulher-fica-muito-barato&catid=216:noticias-e-eventos&Itemid=151.
Acesso em: 05 de maio de 2011.
79
Rosane M. Reis Lavigne
prestação pecuniária e cesta básica, bem como a inclusão de discussões sobre violência doméstica no currículo escolar e capacitação de professores. No entanto,
destaca que, apesar dos ganhos, o projeto ainda mantém os Juizados Especiais
Criminais como locus para a solução dos casos envolvendo violência doméstica e
familiar contra a mulher. Em parecer37 apresentado à Comissão de Seguridade Social e Família, a Relatora do mencionado Projeto de Lei naquela Comissão destaca
a impropriedade de se manter a competência dos referidos Juizados:
Os Juizados Especiais Criminais (JECrims), criados pela lei 9099/95, significaram uma conquista da sociedade para desafogar as diversas varas do Poder Judiciário e acelerar decisão sobre diversos delitos, mas não foram criados para tratar
crimes de violência contra a mulher. Não tem, na sua abrangência legal, competência para tratar de questões que envolvam direito de família e, no âmbito criminal, trata especificamente de violações de menor potencial ofensivo. Já está
consagrado, em todas as convenções e tratados internacionais ratificados pelo
Brasil, que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos.
[...]
Na verdade a temática da violência doméstica e familiar contra a mulher
envolve conceitos e processos muito mais profundos e amplos. Culturais, relações desiguais de poder, conceitos econômicos que envolvem a mulher como
objeto de propriedade, vulgarização e distorção de sua imagem na comunicação. A impunidade e conseqüente descrédito nas instituições são focos importantes de analise e superação. O caminho de prevenir, coibir e de fato punir
são necessidades inerentes à construção da igualdade e respeito aos direitos
humanos. (Grifos nossos)
Mais uma vez, os Juízes reagem e preparam o documento “FONAJE –
Fórum Nacional de Juizados Especiais – Análise Crítica ao Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4559/0438, movimentando-se intensamente para recuperarem a
posição perdida. A obstinação em manter os crimes de violência doméstica praticados contra as mulheres no âmbito dos Juizados Especiais Criminais levou
um grupo de integrantes do FONAJE a pedir apoio político ao Ministro Edson
Vidigal, Presidente do Superior Tribunal de Justiça à época. Segundo notícia vei37 Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/334626.pdf. Acesso em: 05 de maio de 2011.
O Parecer, com complementação de voto, foi aprovado por unanimidade na Comissão de Seguridade
Social e Família em 24 de agosto de 2005, de acordo com informações extraídas da tramitação do projeto de lei no site da Câmara Federal. Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.
asp?id=297628. Acesso em: 05 de maio de 2011.
38 No livro FONAJE, elaborado por ocasião do XVIII Fórum Nacional de Juizados Especiais: Os Dez
Anos da Lei 9099/95: Uma Reflexão, realizado em Goiânia, Goiás, nos dias 23 a 25 de novembro
de 2005, consta anexo referente ao ponto de vista dos juízes sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei
4559/2004. Às páginas 121 a 126 podem ser lidos os argumentos dos Juízes contrários aos interesses
das mulheres. Disponível em: http://www.tjgo.jus.br/juizado/pdf/livrofonaje.pdf. Acesso em 13 de
junho de 2011.
80
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
culada em 06 de fevereiro de 2006 no site da referida Corte39, os magistrados pediram que o Ministro interviesse junto ao Congresso Nacional com o intuito de
manter a incidência da Lei 9099/95 para processar e julgar os crimes decorrentes
de violência doméstica. No referido encontro, o presidente do FONAJE salientou que os Juizados Especiais Criminais deram visibilidade aos crimes contra a
mulher no âmbito familiar. Argumentou, ainda, que a mudança de competência
implicaria em impunidade dos agressores de mulheres, uma vez que a morosidade do procedimento ordinário levaria, em muitos casos, à extinção da punibilidade pela prescrição da ação penal. Além disso, aduziu que “a resposta penal
tradicional somente contribuiu para afastar da Justiça a questão da violência
doméstica no processo penal tradicional todo o foco de atuação é sobre o réu e
para ele se constrói todo o sistema de garantias constitucionais”.
Posteriormente, nova manifestação dos magistrados acontece por ocasião
do XIX FONAJE40, realizado nos dias 31 de maio a 02 de junho de 2006, em Aracaju, contrária ao afastamento da Lei 9.099/95 aos casos de violência doméstica:
Foi feito relato pelo Juiz Joaquim Domingos de Almeida Neto (RJ) sobre o
andamento do Projeto de Lei de Violência Doméstica e Projeto de Lei que
cria o Sistema de Política Nacional Antidrogas, sendo aprovada manifestação de rejeição do primeiro e de concordância com o segundo, devendo ser
oficiado pelo Presidente do FONAJE, nos termos da decisão aos órgãos do
Executivo e Legislativo envolvidos na matéria.
[...]
Foi aprovada, por derradeiro, a CARTA DE ARACAJU, nos seguintes termos:
Os Juízes e Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil, reunidos no Fórum
Nacional dos Juizados Especiais – FONAJE, em Aracaju – SE, nos dias 31 de
maio a 02 de junho de 2006, deliberaram vir a público para: [...] 2. manifestar
sua preocupação com a atual redação do Projeto de Lei da Câmara nº 37/2006,
recentemente aprovada na CCJ do Senado, na parte que veda a aplicação
da Lei nº 9099/95 aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 41), inviabilizando a aplicação de qualquer sanção
penal ao infrator, a composição civil e a transação penal, obrigando a submissão de todos os feitos dessa natureza ao rito ordinário do Código de Processo Penal. (Grifos nossos.)
A articulação de juízes do FONAJE para impedir a produção legislativa
nos termos formulados por representações do movimento de mulheres reflete
39 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Presidente do STJ recebe manifesto de juízes do Rio para manter
violência doméstica em juizados especiais. Notícias de 06.02.2006. Disponível em http://www.stj.gov.br/
portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=80616&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=. Acesso em 14 de março de 2011.
40 Ata do XIX Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE. Aracaju, 31de maio a 02 de junho de
2006. Disponível em www.fonaje.org.br/2006/docs/ata%20do%20xix%20fonaje.doc. Acesso em 14 de
março de 2011.
81
Rosane M. Reis Lavigne
a politização da justiça, em um dos sentidos levantados por Maciel e Koerner
(2002), pois “destaca os valores e preferências políticas dos atores judiciais como
condição e efeito da expansão do poder das Cortes”. Revela como a pauta reivindicatória das mulheres foi apreendida e manejada de forma estratégica para
atender aos fins deliberados pelos magistrados do FONAJE, revertendo expectativas legítimas do mencionado movimento.
1.2 A representação política expandida das mulheres
O procedimento legislativo de criação da lei de violência doméstica
e familiar no Brasil, conhecida como Lei Maria da Penha, ficou marcado
como expressão plena de democracia. Isso porque as discussões fomentadas pelo movimento de mulheres, Grupo de Trabalho Interministerial,
Parlamentares chegaram às ruas. Audiências Públicas Parlamentares foram
realizadas em diversas regiões do país com ampla participação popular,
o que resultou em efetiva contribuição para o aperfeiçoamento da iniciativa de lei. Nesse sentido, o texto legal da Lei Maria da Penha resulta de
processo democrático de extraordinária participação popular, como mencionado na exposição de motivos do Projeto de Lei enviado pelo governo
federal ao Legislativo. Esse texto, originário do Consórcio Feminista e modificado pelo Grupo de Trabalho Interministerial, terminou enriquecido no
percurso legislativo e finalmente foi aprovado e sancionado pelo Presidente
da República. Trata-se de texto eminentemente pró-mulher, ou seja, na dúvida quando de sua aplicação, no momento em que a lei se transforma em
norma, deve prevalecer o entendimento mais favorável à mulher, com a
exclusão de estereótipos e da discriminação a eles aliada.
Importa salientar que, em todas as Comissões Parlamentares nas quais
tramitou o projeto de lei para criação da Lei Maria da Penha, os Pareceres apostos por seus respectivos Relatores foram aprovados por unanimidade41. Por fim, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada a Lei 11.340, que cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher. A Lei dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências42.
41 A tramitação completa do referido projeto de lei pode ser consultado respectivamente no site da
Câmara Federal em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=272058. No Senado
Federal em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=77244.
42 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. [Acesso em
14 de março de 2011.]
82
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
A resistência de Juízes à estratégia positivista
das mulheres – Lei Maria da Penha.
A resistência dos Juízes à estratégia positivista das mulheres – Lei
Maria da Penha pode ser verificada de diversas maneiras. Há o notório
caso do Juiz de Sete Lagoas que se recusou a aplicar a Lei Maria da Penha
em diversas ações contra homens que agrediram mulheres no âmbito doméstico ou familiar, ou seja, em casos de violência de gênero, alegando ver
na legislação especial “um conjunto de regras diabólicas” e dizendo que “a
desgraça humana começou por causa da mulher”43.
Há também manifestação pública de Juízes do FONAJE feita logo após
a sanção da Lei Maria da Penha, ocorrida em setembro de 2006, posteriormente ao 3º Encontro de Juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais Criminais do Estado do Rio de Janeiro. Nesse Encontro a
discussão principal foi a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, que trata da
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
conforme noticiado. Segundo os cerca de 60 magistrados participantes do
evento, a lei é de difícil exiquibilidade, a partir do pequeno prazo para entrar em vigor, sendo impossível a criação dos Juizados de Violência Doméstica autônomos, que exigiriam a feitura da lei e a criação de cargos de juízes
e servidores cartorários. Ainda de acordo com a citada notícia:
“Segundo os juízes, é inconstitucional o artigo 41 da nova Lei que diz
não ser aplicável a Lei 9.099 (dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais)
aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista. Para eles, esse artigo afasta os institutos despenalizadores da Lei nº 9099/95 para crimes que se enquadram
na definição de menor potencial ofensivo, na forma do artigo 98, I e 5º, I da
Constituição Federal. Outra inconstitucionalidade apontada pelos magistrados é em relação ao artigo 33 da Lei 11.340/ 06, que versa sobre matéria
de organização judiciária, cuja competência legislativa é estadual (art. 125,
parágrafo 1º, da CF).”
Há, ainda, aqueles que descumprem rotineiramente a Lei Maria da Penha
ao adotarem a legislação anterior – Lei 9099/95 –, desconsiderando, de forma
renitente, o novo paradigma legalmente instaurado, a violência contra a mulher
como violação aos direitos humanos.
43 O referido Juiz sofreu penalidade administrativa por parte do Conselho Nacional de Justiça. No
entanto, essa punição encontra-se suspensa por determinação do Supremo Tribunal Federal. A
decisão do Supremo foi motivada por um mandado de segurança impetrado pela Associação dos
Magistrados Mineiros (Amagis) em janeiro de 2011. A medida cautelar suspende a decisão até o julgamento final deste mandado de segurança e a eficácia do que foi decidido pelo CNJ. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2580058/amb-destaca-decisao-do-stf-em-favor-de-magistrado-de-sete-lagoas. [Acesso em 6 de maio de 2011]
83
Rosane M. Reis Lavigne
A vacilante percepção à causa da mulher ainda está presente no sistema de
justiça, que permanece reativo às mudanças introduzidas pela nova legislação
destinada a enfrentar e combater a violência doméstica contra a mulher44. Tal
deficiência produz, sistematicamente, inadequada resposta do Judiciário à significativa parcela da população feminina que dele espera a efetiva tutela dos seus
direitos e potencializa o déficit democrático identificado na justiça, por grande
parte da literatura45. Esse déficit encontra-se marcado, dentre outros fatores, por
resíduo de insulamento burocrático, corporativismo e pela distanciada participação cidadã na construção de dinâmicas para o funcionamento das instituições
e dos serviços que integram o mencionado setor.
Percebe-se, ainda na atualidade, a inclinação de alguns magistrados a não
observar o dispositivo da Lei Maria da Penha que veda a aplicação da Lei 9099/95
aos crimes de violência doméstica contra a mulher. Para observar o comportamento dos juízes, em números, consideram-se dados estatísticos fornecidos pelo
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Eles demonstram que em todas
as unidades jurisdicionais mencionadas existem processos paralisados por força
da concessão do benefício da suspensão do processo, instituto previsto no art. 89
da Lei 9099/9546, como explicita a tabela adiante:
44 Para outras informações relacionadas à atuação do sistema de justiça após a vigência da legislação
especial de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher ver GOMES et al. (2009).
45 O debate a respeito do déficit democrático da área da justiça centra-se na pouca permeabilidade
das instituições que o integram às demandas por políticas de matiz responsivo, com ênfase na participação social e prestação de contas das atividades desenvolvidas. Ver em SANTOS, (1995: 180);
O’DONNELL, (2007: 74).
46 Dispõe o art. 89 da Lei 9099/95: “Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a
um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor
a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado,
ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a
suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).”
84
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
Tabela 1: Quantidade de processos, dentre eles os suspensos por força do artigo
89 da Lei 9095/95, tramitando nos Juizados Especiais de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher, na Comarca da Capital, Rio de Janeiro, no período
de 2009 e 2010, nas seguintes Serventias: Capital I Juizado de Violência
Doméstica e Familiar47; Campo Grande Regional II Juizado de VDF48;
Jacarepaguá Regional III Juizado de VDF49.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
DGJUR/DEIGE/DICOL
Critérios de extração conforme Resolução 46 de 2007 do CNJ
06/05/2011
PERÍODO
ANO 2009
Acervo Geral
(inclusive
suspensos)
Suspenso pelo
art. 89 da Lei nº
9.099/95-Total
PERCENTUAL
CAPITAL
I Juizado de VDF
18.892
650
3,44%
CAMPO GRANDE
REGIONAL
II Juizado VDF
14.354
119
0,83%
JACAREPAGUA
REGIONAL
III Juizado VDF
6.053
19
0,31%
TOTAL
39.299
788
2,01%
SERVENTIA
47 Instalado no dia 22 de junho de 2007, no Fórum Central, por Ato Executivo Conjunto TJ/CGJ Nº 112,
DE 18/06/2007 (Estadual). Abrange 124 bairros e 26 Delegacias de Policia.
48 Instalado no dia 22 de junho de 2007, em Campo Grande, por Ato Executivo Conjunto TJ/CGJ Nº 113,
de 19/06/2007 (Estadual). Abrange 22 bairros e 5 Delegacias de Polícia.
49 Instalado no dia 25 de junho de 2008, em Jacarepaguá, por Ato Executivo Conjunto TJ/CGJ Nº 67/2008,
de 16 de junho de 2008 (Estadual). Abrange 32 bairros e 7 Delegacias de Policia.
85
Rosane M. Reis Lavigne
SERVENTIA
ANO 2010
Acervo Geral Suspenso pelo
art. 89 da Lei nº
(inclusive
9.099/95-Total
suspensos)
PERCENTUAL
CAPITAL
I Juizado de VDF
17.296
801
4,63%
CAMPO GRANDE
REGIONAL
II Juizado VDF
16.713
123
0,74%
JACAREPAGUA
REGIONAL
III Juizado VDF
9.523
80
0,84%
TOTAL
43.532
1004
2,31%
Fonte secundária: dados fornecidos por DGJUR/DEIGE/DICOL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, em 06 de Maio de 2011.
Estes dados estatísticos revelam que ainda há prática judicial em desconformidade com a Lei Maria da Penha nas unidades jurisdicionais observadas,
pois todas descuidam da vedação legal expressa no art. 41 da Lei e adotam o
procedimento da suspensão do processo disposto no art. 89 da Lei 9099/95. Vê-se
que mais de 2% do total de processos em tramitação nos três Juizados Especiais
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, instalados na Comarca da
Capital, Rio de Janeiro, encontravam-se suspensos no ano de 2009. Os dados coletados em 2010 relacionados às mesmas unidades jurisdicionais também mostram que 2,31% dos processos em curso encontram-se suspensos por igual fundamento legal. Ao cotejar esse percentual com os dados referentes ao ano de
2009 verifica-se um acréscimo de 0,3%. À primeira vista, utilizando-se abordagem quantitativa, esse percentual pode parecer pequeno. Entretanto, no campo
do direito a análise qualitativa se sobrepõe porque, dentre outros motivos, um
caso pode inaugurar um precedente jurisprudencial e imantar novas decisões
judiciais no mesmo sentido. Nessa linha, o quadro em análise impacta porque
mostra que houve quebra da legalidade e prejuízo potencial na vida das mulheres. A questão se tornaria ainda mais problemática se a proposta do FONAVID
que incluiu cláusulas referentes à suspensão condicional do processo no Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
86
Caso Fonaje: o ativismo de juízes integrantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais –
Fonaje no processo de elaboração da Lei Maria da Penha
a Mulher, não tivesse sido afastada pela recente decisão unânime do pleno do
Supremo Tribunal Federal50.
Dessa forma, importante investigar que razões práticas levaram juízes em
atuação nos mencionados Juizados a contrariar frontalmente a Lei Maria da
Penha e aplicar em alguns feitos a Lei 9099/95, concedendo ao autor do fato o
benefício da suspensão condicional do processo. No mesmo sentido, conhecer
as razões que levaram o FONAVID a elencar tal prática no manual de rotina de
trabalho nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Cabe, então, perguntar: Por que afastar a Lei Maria da Penha, conferindo-lhe interpretação contrária à legislação construída pelas mulheres por via democrática da representação política? Ressalte-se que o ativismo judicial reside
onde há desequilíbrio entre a norma e a sua interpretação.
Há várias interpretações para ativismo judicial, como comenta Gomes da
Silva (2009: 72-73). Tais definições encontram-se, via de regra, associadas ao processo de elaboração das decisões produzidas pelas Cortes de Justiça e seus efeitos, bem como à relação que esses procedimentos guardam com a democracia.
O caso FONAJE suscitaria então uma concepção inusitada, espécie de ativismo
complexo, aquele deduzido de agir institucional fora do órgão de jurisdição,
impulsionado por deliberações verificadas em espaços de articulação funcional,
bem como de ação decisória realizada em autos processuais, por competência
jurisdicional. Entretanto, face ao caso FONAJE, o que mais chama atenção é a
análise de Sarmento (2009: 135), ao realçar que “no Brasil é muito comum traçar-se um paralelo entre a defesa do ativismo judicial e posições progressistas”.
Prossegue o autor: “Talvez isso se deva ao fato de que, na nossa história, o Judiciário Brasileiro tem pecado muito mais por omissão”. Arremata o raciocínio
afirmando: “Porém, o paralelismo em questão não existe. Muitas vezes, o Poder
Judiciário pode atuar bloqueando mudanças importantes promovidas pelos outros poderes em favor dos excluídos, defendendo o status quo. E esta defesa pode
ocorrer inclusive através da retórica dos direitos fundamentais”.
Considerações Finais
O caso FONAJE revela que a ação política de setores do movimento de
mulheres, destinada a enfrentar de forma mais eficaz o fenômeno da violência
doméstica e familiar, teve de superar entraves trazidos pela ação articulada de
magistrados integrantes do Fórum Nacional de Juizados. O Consórcio formado
para propulsionar a institucionalização dos direitos das mulheres por meio
50 Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/manual-atendimento-juizados-violencia.pdf. Acesso em 22
de junho de 2011. A proposta do FONAVID foi elaborada na 3ª Jornada da Lei Maria da Penha, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça, em março de 2010.
87
Rosane M. Reis Lavigne
de mecanismo jurídico especial, mais adequado ao tratamento do citado fenômeno, sofreu a interceptação de juízes que atuaram política e estrategicamente
segundo a prevalência valorativa e de interesses deliberados no referido Fórum.
Ao perder a disputa no âmbito do Poder Legislativo, o grupo de juízes articulados, deliberadamente ou não, resistiu à estratégia legislativa das mulheres para
a mudança de paradigma da atuação judicial, configurada pelo novo diploma
legal, a Lei Maria da Penha. Essa resistência ainda subsiste no meio judicial e
pode ser retratada pelo descumprimento do artigo 41 da Lei Maria da Penha,
como mostra a análise dos dados coletados em Juizados de Violência Doméstica
e Familiar Contra a Mulher situados na Comarca do Rio de Janeiro. Tal resistência afronta o texto legal especial interno – Lei Maria da Penha – e o norte fixado
no âmbito supranacional, sobretudo a Convenção Belém do Pará. Mostra, ainda,
uma parte da magistratura resiliente à nova ordem jurídica estabelecida, embora
esta tenha sido conquistada por rico processo legislativo marcado por excepcional participação cidadã, como espelham as audiências públicas parlamentares
realizadas à época.
Nessa linha, poder-se-ia aventar a possibilidade de corrupção, no sentido
de desvio de função do sistema Legislativo pelo Judiciário, precisamente no momento em que o texto da Lei Maria da Penha se transforma em norma por aplicação a casos concretos nas Cortes Judiciais do país. A reiteração de práticas
frontalmente contrárias à Lei Maria da Penha, como o mencionado descumprimento do seu artigo 41, em última medida, afrontaria a própria democracia. Todavia, recente e histórica decisão do Supremo Tribunal Federal demonstra uma
guinada democrática nesse processo de rompimento do status quo buscado pelas
mulheres. Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou, no dia 24 de março de 2011, a constitucionalidade do artigo 41 da Lei
11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que dispõe sobre a inaplicabilidade da Lei
9099/45, vedando a aplicação do artigo 89 desta lei – suspensão condicional do
processo – aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher51. Com essa manifestação o Poder Judiciário, por sua instância maior,
veio compartilhar com o conteúdo político presente na Lei Maria da Penha, assentado na legítima discussão travada e procedimentalizada pelo movimento de
mulheres. Passo largo para a efetividade dos direitos das mulheres.
51 A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus (HC) 106212 – Mato Grosso do Sul. Em julgamento realizado no dia 24 de março de 2011, por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal
Federal (STF) declarou a constitucionalidade do artigo 41 da lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)
afastando a aplicação da Lei 9.099/1995 quanto aos crimes praticados com violência doméstica e
familiar contra a mulher. Segundo informativo divulgado pelo site do STF “os ministros apontaram
que a violência contra a mulher é grave, pois não se limita ao aspecto físico, mas também ao seu
estado psíquico e emocional, que ficam gravemente abalados quando ela é vítima de violência, com
consequências muitas vezes indeléveis”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=175260. Acesso em 01 de abril de 2011.
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92
Lei Maria da Penha no contexto
do Estado Constitucional:
desigualando a desigualdade histórica
Lenio Luiz Streck
A Lei Maria da Penha, não obstante estar há tantos anos em vigência, ainda
não consolidou uma tradição acerca de sua interpretação/aplicação. Há casos,
inclusive, de juízes que a consideram inconstitucional, como o ocorrido, recentemente, em Minas Gerais, fato que resultou no afastamento do julgador do caso
pelo CNJ, decisão que, no entanto, foi posteriormente revertida por decisão monocrática do STF. Mas, deixando o folclore de lado, ainda há questões sérias a
serem debatidas em torno do assunto. Há de se convir que, em um universo
jurídico dominado por uma imaginário masculino, uma lei que visa à proteção
da mulher (violência de gênero) gera(rá) interpretações controversas. Isso é inexorável. Nesse sentido, abordarei, brevemente, três pontos considerados ainda
pendentes no âmbito aplicativo da assim denominada Lei Maria da Penha.
O problema da competência:
juízo comum ou juizado especial criminal?
Ocorre seguidamente. Autuado, o termo circunstanciado de violência (contravenções penais) contra a mulher é remetido ao Poder Judiciário. O feito é
distribuído para uma Vara Criminal. O Juiz de Direito entende que as contravenções penais, mesmo que cometidas entre pessoas com relação de afeto e parentesco protegidas pela Lei Maria da Penha, são de competência do Juizado
Especial Criminal, uma vez que o art. 41 da aludida lei federal se refere somente
a crimes. Isso, ao fim e ao cabo, gera um conflito de competência.
Embora parte da jurisprudência entenda que, no caso de contravenções penais, mesmo quando sob a incidência da Lei Maria da Penha, a competência seja
dos juizados especiais, penso que a questão não é tão simples assim, devendo a
controvérsia acerca do conteúdo do art. 41, da Lei 11.340/06 ser examinada sob
uma perspectiva diversa daquela que vem sendo adotada na maior parte dos
debates em torno do assunto.
Isto porque é impossível proceder à análise de conflito de competência referente a esta questão, sem levar em conta os objetivos expressamente expostos nas
93
Lênio Luiz Streck
disposições preliminares (Título I) e gerais (Título II), da Lei Maria da Penha,
que devem ser tomadas como parâmetro na sua interpretação.
Neste sentido, destacam-se os arts. 4º e 5º, da Lei 11.340/06:
Art. 4º Na interpretação desta Lei serão considerados os fins sociais a que ela
se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação
de violência doméstica e familiar.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra
a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais,
por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual (grifei).
Ora, da leitura simples dos referidos dispositivos legais, percebe-se que o
legislador optou por abranger, sob a égide da Lei Maria da Penha, qualquer
ação ou omissão que cause violência doméstica e familiar contra a mulher – seja
a nível físico, seja a psicológico –, de modo que carece de sentido buscar-se no
art. 41, da Lei 11.340/06, uma suposta distinção entre contravenções penais e crimes, para fins de competência e de abrangência.
Isto é, não se pode negligenciar que, para além da redação (controversa) do
art. 41, o legislador debruçou-se exaustivamente sobre os objetivos da Lei Maria
da Penha, não deixando dúvidas acerca dos seus propósitos, quando da redação
dos Títulos I e II.
Da mesma forma, o art. 7º, da Lei 11.340/06, traz elencados, de maneira suficientemente clara, as condutas passíveis de incidência da Lei Maria da Penha,
de modo que não se pode, de sobremodo, excluir, da esfera de abrangência da
Lei, a inclusão das contravenções penais:
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
94
A Lei Maria da Penha no contexto do Estado Constitucional:
desigualando a desigualdade histórica
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito
de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e
à autodeterminação. (...) (grifei)
Ora, a partir da análise dos artigos basilares da Lei Maria da Penha, verifica-se que o legislador não busca realizar qualquer espécie de ressalva ou distinção entre as condutas referentes aos crimes de menor potencial ofensivo ou
às contravenções penais, mas que, pelo contrário, refere que estarão sujeitas à
incidência da Lei qualquer ação ou omissão que se configure como violência
doméstica e familiar contra a mulher, dentre as quais estão concebidas as diferentes formas de violência – física, psicológica, sexual, patrimonial e moral
(art. 7º, incisos I, II, III, IV e V, Lei 11.340/06).
O que quero dizer é que, ao que parece, o art. 41, da Lei 11.340/06, não se
propõe a delimitar o âmbito de incidência da Lei Maria da Penha – e nem soa
razoável que o legislador tenha pretendido afastar em uma ou duas linhas toda
a construção legal já realizada anteriormente na Lei –, mas apenas a esclarecer
uma questão pontual, qual seja a de que, aos crimes cometidos com violência
contra a mulher, independente da pena prevista, não serão aplicadas as medidas
despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95.
Neste sentido, adotando-se uma diferente perspectiva, tem-se que, a partir
da leitura do referido dispositivo legal, as medidas como suspensão condicional do processo, acordo civil, transação penal, não serão aplicáveis aos crimes
cometidos com violência à mulher, independentemente da pena a eles prevista.
Todavia, nada impede que tais benefícios sejam aplicados em casos de contravenções penais.
Não se trata, portanto, de ler “contravenções penais” onde está escrito “crimes”, como vêm sendo sustentado em determinados entendimentos, mas, pelo
contrário, de não buscar extrair da aludida norma uma informação sobre a qual nada
está a indicar que ela, efetivamente, discorra.
Da mesma forma, o art. 41, em momento algum, refere expressamente a
obrigatoriedade da aplicação da Lei 9.099/95 aos casos de contravenções penais
praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher, de modo que,
neste caso, não se pode tomar a inclusão (afirmação) de uma, como a exclusão
(negação) da outra.
In casu, não é a complexidade do tipo penal que delimita a abrangência da
Lei Maria da Penha, eis que, para todos os efeitos, os crimes de menor potencial
ofensivo também deveriam se restringir à competência dos JECRIMs. Neste sentido, deve-se compreender que, com o advento da Lei Maria da Penha, conflitos
que envolvam violência contra a mulher não podem mais ser considerados de
“menor potencial ofensivo”.
95
Lênio Luiz Streck
Em outras palavras: não se pode ignorar a razão pela qual a Lei Maria da
Penha foi criada, de modo que qualquer violência contra a mulher não pode
mais ser considerada de “menor potencial ofensivo”, visto que esta interpretação seria discordante com as próprias motivações que tornaram necessário o advento de um diploma legal que tratasse especificamente do assunto, bem como
dos princípios e das diretrizes expressamente elencados em suas disposições
preliminares e gerais (Títulos I e II).
O foco do debate, neste sentido, deve ser outro.
Em suma: o fato de o art. 41, da Lei 11.340/06, não fazer menção a “contravenções penais”, de fato, não permite que nele se leia “contravenções penais”.
Todavia, deve-se compreender que nada está a indicar que este artigo trate do
âmbito de incidência da Lei Maria da Penha, mas que, pelo contrário, remeta-se,
tão-somente, à não-incidência das medidas despenalizadoras previstas na Lei
9.099/95, em casos de crimes cometidos, mediante ação ou omissão, com violência contra a mulher.
Assim, da mesma forma que não se deve ler “contravenções penais” onde o legislador optou por colocar “crimes”, não se deve ler “abrangência” da Lei Maria da
Penha, onde nada indica que o legislador tenha, efetivamente, tratado deste assunto.
Afinal, para todos os efeitos, o tão controverso art. 41, da Lei Maria da
Penha, está relacionado nas disposições finais da Lei, no mesmo título em que
estão incluídas disposições sobre diretrizes orçamentárias (art. 39) e inclusão das
estatísticas sobre violência doméstica e familiar na base de dados da Secretaria
de Segurança Pública (art. 38).
Ora, não quero acreditar que o legislador tenha optado por definir a matéria que será abrangida pela Lei apenas nas suas disposições finais, colocando-se
em contradição com as disposições preliminares do Título I e gerais do Título
II, do mesmo diploma legal. Como bem diz Ronald Dworkin, a legislação deve
manter uma integridade e coerência. E a Lei Maria da Penha, ao que consta, deve
ser lida no seu conjunto. Não se diga, nesse contexto, que a discussão é semântica. Não é disso que se trata.
Ademais, não se pode olvidar que os Juizados Especiais não possuem a
estrutura e os instrumentos adequados para tratar da violência contra a mulher,
razão pela qual o art. 33 da Lei 11.340/06 determina que, enquanto não forem
criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o processamento e julgamento dos feitos relativos à Lei Maria da Penha deverão ocorrer
nas Varas Criminais.
Desse modo, resta claro, diante da análise exposta dos artigos da Lei que
discorrem neste sentido, que qualquer ação ou omissão que se configure como
violência doméstica e familiar contra a mulher – dentre as quais se inclui a violência psicológica – será julgada e processada pelas Varas Criminais, enquanto
os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher não forem instituídos e devidamente estruturados.
96
A Lei Maria da Penha no contexto do Estado Constitucional:
desigualando a desigualdade histórica
Neste mesmo sentido, em que pese a competência dos JECRIMs seja emergente da Constituição Federal, a definição do termo “infrações penais de menor
potencial ofensivo” só ocorreu através da Lei 9.099/95, ou seja, via lei ordinária,
de forma que tampouco há de se falar, neste caso, em hierarquia formal.
Ressalte-se, ainda, que não se está aqui a falar de “objetivos (abstratos) – sic –
da Lei” ou da “vontade do legislador” (sic), mas sim de motivações e de diretrizes
expressamente elencadas e discriminadas ao longo de todo o texto legal pelo legislador, cabendo ao intérprete levar em conta o contexto em que a norma se insere,
estabelecendo vínculos entre o texto e os demais elementos da lei, carecendo de sentido a análise de uma parte da lei em separado, como se fosse parte independente
do restante do diploma legal – carecendo ainda mais de sentido buscar extrair um
sentido para todo o restante da Lei, a partir da análise desta parte em separado.
Pelos motivos já expostos, portanto, tampouco há de se alegar interpretação
ampliativa in malam partem, uma vez que os elementos norteadores da interpretação da Lei Maria da Penha estão todos elencados de maneira expressa e clara
no dispositivo legal, de modo que não se trata de nenhuma construção, isto é,
não pode ser considerado ampliativo o que já vem disposto.
A questão do afastamento da incidência da Lei 9.099/95
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, contrariando seus precedentes, por meio da sua Sexta Turma, no julgamento do HC 154.801/MS, admitiu a
suspensão condicional de um processo no qual se julgava um fato enquadrado
na Lei Maria da Penha.
Vejamos: a posição que o STJ vinha adotando era a da não-incidência/aplicação da Lei 9.099/95, prevista no art. 41 da Lei Maria da Penha, uma vez que,
para esse Tribunal, o aludido dispositivo referia-se aos institutos despenalizadores nesta previstos, como a composição civil, a transação penal e a suspensão
condicional do processo (por todos, veja o HC 110.965-STJ).
Entretanto, no julgamento do HC 154.801/MS, em que o homem (companheiro) tentara esganar a sua mulher, o STJ decidiu que a aplicação da suspensão condicional do processo não resultaria no afastamento ou diminuição das
medidas protetivas à mulher, previstas na Lei Maria da Penha. De acordo com
o relator do writ, Min. Celso Limongi, há doutrina que relativiza a aplicação do
artigo 41, já que tanto a Lei Maria da Penha quanto a Lei dos Juizados Especiais
Criminais estão num mesmo patamar de constitucionalidade. Nesse sentido,
se por um lado há proteção contra violência doméstica, por outro há o direito
subjetivo aos benefícios despenalizadores daqueles que praticam infração com
baixo ou médio potencial ofensivo.
Todavia, discordo de tal entendimento. Isto porque, do mesmo modo como
ocorre com a discussão da competência, aqui também não se pode examinar a
97
Lênio Luiz Streck
Lei Maria da Penha de forma aparadigmática e descontextualizada. Ora, o argumento de que o art. 41 não deve ser aplicado in totum é equivocado e fere a
Constituição. Não fosse a Lei Maria da Penha uma lei efetivamente “diferente”
– e o é porque a Constituição estabelece a necessidade de leis diferenciadas no
Brasil, a fim de desigualar as desigualdades físicas e materiais – ela já teria nascido inconstitucional. Isso parece óbvio.
Explicando melhor: ou a Lei Maria da Penha pode prever penas e obrigações diferentes das de outras leis, ou ela fere a isonomia e a igualdade. Só que
não é assim. Da mesma forma que as cotas raciais são constitucionais, também
o é a Lei Maria da Penha, ou, ainda, a Lei dos Crimes Hediondos – com sua diferenciação obrigatória no regime inicial de cumprimento da pena. A resposta
para a constitucionalidade de tais distinções reside no novo direito para o qual
aponta o paradigma do Estado Constitucional. Esse novo direito trás consigo
uma co-originariedade entre direito e moral (Habermas). Logo, trata-se de um
direito pós-Auschwitz, um direito pós-bélico. Um direito que vem diferente. Um
direito que nos lembre que nunca mais poderemos proceder de determinadas
maneiras. No caso, a Constituição do Brasil permite discriminações positivas
para – repito –, através de um tratamento desigual, buscar igualar aquilo que
sempre foi desigual. Esse é o paradigma a partir do qual devemos interpretar a
Lei Maria da Penha. Nem vou falar aqui dos Tratados Internacionais que obrigam proteger – inclusive penalmente – os direitos da mulher e das minorias em
geral. Isso está implícito nesta discussão.
Portanto, o STJ não poderia ter relativizado o art. 41 da Lei Maria da Penha,
sem uma argumentação constitucional. Insisto, pois. Numa palavra, ainda: na
democracia, uma lei (ou um dispositivo legal votado pelo parlamento) somente
pode ser ignorada (deixar de ser aplicada) em seis hipóteses: primeira, quando
a norma compreendida a partir de seus dispositivos for inconstitucional (neste
caso, deverá ser exercitado o controle difuso ou concentrado de constitucionalidade); segunda, quando alterações no sistema, ainda que infraconstitucionais,
modificarem a sua organicidade (é o que denomina de aplicação do critério de
resolução de antinomias); terceira, quando se tratar de uma interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung); quarta, quando for o caso
de se sustentar uma nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung
ohne Normtextreduzierung), hipótese na qual o dispositivo permanece o mesmo,
mas alguns usos são expressamente excluídos face à inconstitucionalidade de
determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle); quinta, quando for
o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião
em que a manutenção da constitucionalidade de uma norma exige a exclusão
de fragmentos textuais do dispositivo que a possibilita; e sexta, quando princípios impedirem a aplicação de uma regra (soluções standards) (Streck, 2009).
Não parece, contudo, que o caso sob julgamento do STJ se enquadre em qualquer destas hipóteses. Isto quer dizer que a decisão do STJ se mostrou contrária
98
A Lei Maria da Penha no contexto do Estado Constitucional:
desigualando a desigualdade histórica
à Constituição, fazendo soçobrar, inclusive, os próprios limites semânticos do
texto legal (entendidos a partir do uso pragmático da linguagem).
Portanto, urge que a doutrina e a jurisprudência façam aquilo que venho
denominado de “constrangimento epistemológico” (Streck, 2009) à essa decisão
do STJ, para que aquele Tribunal volte à jurisprudência anterior. E, veja-se: além
de todos os problemas elencados, o STJ parece ter escolhido um péssimo exemplo (caso concreto) para alterar a sua jurisprudência: a de um caso em que um
homem tentou sufocar a sua mulher. Não me parece que isso se enquadre em
crime de “menor potencial ofensivo”...!
A Lei Maria da Penha, por ser uma lei específica, fere a
igualdade entre homens e mulheres?
Essa questão já vem respondida, de certo modo, no ponto anterior. A Lei
Maria da Penha, votada democraticamente pelo Parlamento brasileiro, discutida
no âmbito da esfera pública, não sofre de vício de inconstitucionalidade. E isso
por várias razões. Trata-se de uma Lei que preenche um gap histórico, representado por legislações anteriores que discriminavam as mulheres e, se não as
discriminavam explicitamente, colocavam o gênero feminino em um segundo
plano. Isso pode ser visto no velho Código Penal de 1940, em que, até há pouco
tempo, o estupro era considerado “crime contra os costumes”. Somente nos últimos anos passou-se denominá-lo “crime contra a dignidade sexual” (pode ser
também “crime contra a liberdade sexual”).
Destaque-se, neste mesmo sentido, que o imaginário dos juristas continua
a sustentar legislação de cunho discriminatório, eis que parte da doutrina penal
ainda considera que o “marido tem o direito de obrigar a mulher a praticar, em
ele, o ato sexual”. Claro que isso pode se dever ao fato de que alguns penalistas –
cujos Manuais ainda tratam desse modo a matéria – não corrigiram sua doutrina
após o advento da Constituição de 1988. Mas, de todo modo, sempre resta uma
questão: o fato, inconteste, de que em algum momento, os Tribunais brasileiros
sufragaram a tese da violência institucionalizada no sexo de um casal (não cito os
autores e nem os acórdãos para poupar seus protagonistas de constrangimento).
Por outro lado, não é necessário falar, aqui, da legítima defesa da honra,
tese que, até há pouco tempo, vicejava no Tribunal do Júri. Desnecessário, também, lembrar que a mulher era dispensada do serviço do Júri, em face dos afazeres domésticos. Tampouco, precisamos repisar julgamentos recentes acerca da
violência contra a mulher (e contra crianças) e o modo como o gênero feminino
é tratado...!
E o que dizer dos meios de comunicação, que historicamente incentivam
esse tratamento infamante à mulher? Quem não lembra da personagem vivida
pela atriz Cristiane Torloni, que na novela Mulheres Apaixonadas, dizia, em um
99
Lênio Luiz Streck
dos primeiros capítulos, que sua vida estava um tédio, que queria mesmo “é
sair”, “levar uns tapas”... tudo em rede nacional, com audiência de mais 70%
dos aparelhos ligados. Outra novela – e é importante citar o exemplo desses
tipos de folhetim pela sua penetração/incorporação pelo imaginário social – que
tratou da temática de modo similar foi A Próxima Vítima. No folhetim, o personagem vivido por José Wilker, Marcelo, em face do adultério de Isabela (vivida
pela atriz Cláudia Ohana), corta-lhe o rosto, produzindo uma profunda cicatriz,
o que fazia com que a personagem, no restante da novela, andasse com o rosto
coberto pelos longos cabelos. Pois bem. Procurado pela polícia, Marcelo reúne-se com suas três filhas e lhes relata o acontecido. Ao que uma de suas filhas
diz: não se preocupe, papai – “ela mereceu”. È necessário dizer algo mais para
fundamentar a necessidade de leis específicas para desigualar a desigualdade?
Numa palavra final. A feitura de uma lei – que garante um agir rápido do
Estado em face da violência doméstica – é uma exigência constitucional. Trata-se da garantia da proteção da integridade física e moral da mulher. Não esqueçamos que, na contemporaneidade, além do princípio da proibição de excesso
(Übermassverbot), que serve para proibir o Estado de punir com exageros, há
também o princípio da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot), que
obriga o Estado (legislador, judiciário, Ministério Publico) a proteger os direitos
fundamentais. Há hipóteses em que o Estado, ao não proteger o bem jurídico
(inclusive via direito penal), estará agindo (por omissão) de forma inconstitucional. Para tanto, é importante ver a obra de Maria Luiza Streck, que trata desse
“lado esquecido” dos Direito Fundamentais (2008).
Arriscaria dizer, na linha da aplicação do princípio da Untermassverbot, que
determinadas interpretações (aplicações judiciais) da Lei podem ser consideradas inconstitucionais. Toda vez que o Poder Judiciário se negar a aplicar os rigores da Lei Maria da Penha – que, insista-se, são rigores para proteger a dignidade da mulher – estará incorrendo em inconstitucionalidade, tendo em vista
que estará protegendo de forma insuficiente (deficiente) os direitos fundamentais da mulher.
Por tais razões, não há qualquer inconstitucionalidade no fato de a Lei
Maria da Penha estar dirigida à proteção da mulher. Estaríamos, pelo contrário,
provavelmente, em omissão inconstitucional se a Lei não tivesse sido aprovada.
Referências bibliográficas
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
STRECK, Maria Luiza. Direito Penal e Constituição, Livraria do Advogado, 2008.
100
A Lei Maria da Penha na perspectiva
da responsabilidade internacional do Brasil
Flávia Piovesan
Silvia Pimentel
1. A Proteção Internacional
dos Direitos Humanos das Mulheres
A arquitetura protetiva internacional de proteção dos direitos humanos é
capaz de refletir, ao longo de seu desenvolvimento, as diversas feições e vertentes
do movimento feminista1. Reivindicações feministas, como o direito à igualdade
formal (como pretendia o movimento feminista liberal), a liberdade sexual e reprodutiva (como pleiteava o movimento feminista libertário radical), o fomento
da igualdade econômica (bandeira do movimento feminista socialista), a redefinição de papéis sociais (lema do movimento feminista existencialista) e o direito
à diversidade sob as perspectivas de raça, etnia, dentre outras (como pretende o
movimento feminista crítico e multicultural) foram, cada qual ao seu modo, incorporadas pelos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.
Enquanto um construído histórico, os direitos humanos das mulheres não
traduzem uma história linear, não compõem uma marcha triunfal, nem tampouco uma causa perdida. Mas refletem, a todo tempo, a história de um combate2, mediante processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana3, como invoca, em sua complexidade e dinâmica, o movimento
feminista, em sua trajetória plural.
Considerando a historicidade dos direitos humanos, destaca-se a chamada
concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela
Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos
de Viena de 1993.
Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos
humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. É neste cenário que se vislumbra o esforço de
1
Sobre as diferentes fases do movimento feminista, ver Rosemarie Putnam Tong (1998).
2
Daniele Lochak, (2005:116), Apud, Celso Lafer, (2006:XXII).
3
Joaquín Herrera Flores, (mimeo:07).
101
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana
como valor fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os
direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. O sistema
internacional de proteção dos direitos humanos constitui o legado maior da chamada “Era dos Direitos”, que tem permitido a internacionalização dos direitos
humanos e a humanização do Direito Internacional contemporâneo4.
Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse
internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual
o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Para Andrew Hurrell, (1999: 277):
“O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional
é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com
base na idéia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser suscetíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de
um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades
domésticas são politicamente ordenadas”.
Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos
humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença
de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos,
considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana.
Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para
a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando
um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem,
assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de
conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.
A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. Sob este prisma, a ética dos direitos humanos é a ética
4
102
Thomas Buergenthal, (1991: XXXI). No mesmo sentido, afirma Louis Henkin (1993: 3): “O Direito
Internacional pode ser classificado como o Direito anterior à 2a Guerra Mundial e o Direito posterior
a ela. Em 1945, a vitória dos aliados introduziu uma nova ordem com importantes transformações
no Direito Internacional.”
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito,
dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre,
autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano.
Ao longo da história as mais graves violações aos direitos humanos tiveram
como fundamento a dicotomia do “eu versus o outro”, em que a diversidade era
captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença era visibilizada para conceber o “outro” como um ser menor em dignidade e direitos,
ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um
ser descartável e supérfluo. Nesta direção, merecem destaque as violações da
escravidão, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia e
de outras práticas de intolerância. Como leciona Amartya Sen (2006: 4), “identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and terror”. O
autor ainda tece aguda crítica ao que denomina como “serious miniaturization of
human beings”, quando é negado o reconhecimento da pluralidade de identidades humanas, na medida em que as pessoas são “diversily different”5.
O temor à diferença é fator que permite compreender a primeira fase de
proteção dos direitos humanos, marcada pela tônica da proteção geral e abstrata, com base na igualdade formal.
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral
e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a
ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta
específica e diferenciada. Neste cenário as mulheres, as crianças, as populações
afro-descendentes, os migrantes, as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de
sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito
fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade:
a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que,
ao seu tempo, foi crucial para a abolição de privilégios); b) a igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo
critério sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de
justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).
Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identidades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não
pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode
5
Amartya Sen, (2006: XIII – XIV).
103
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status.”6 Há, assim, o caráter bidimensional da justiça:
redistribuição somada ao reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de
Souza Santos (2003: 56) afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da
redistribuição permite a realização da igualdade7. Atente-se que esta feição bidimensional da justiça mantém uma relação dinâmica e dialética, ou seja, os dois
termos relacionam-se e interagem mutuamente, na medida em que a discriminação implica pobreza e a pobreza implica discriminação.
Ainda Boaventura acrescenta: “temos o direito a ser iguais quando a nossa
diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades”.
Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto,
como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de
igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo
como ponto de partida a visibilidade às diferenças. Isto é, essencial mostra-se
distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade. O reconhecimento de identidades
e o direito à diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. A emergência conceitual do direito à diferença e do reconhecimento de
identidades é capaz de refletir a crescente voz do movimento feminista, sobretudo de sua vertente crítica e multiculturalista.
Isto é, em sua fase inicial, o sistema internacional de proteção dos direitos
humanos guiou-se pelo lema da igualdade formal, geral e abstrata -- lema do
movimento feminista liberal. O binômio da igualdade perante a lei e da proibição da discriminação, sob a ótica formal, vê-se consagrado em todos os instrumentos internacionais de direitos humanos. Sua proteção é requisito, condição e
pressuposto para o pleno e livre exercício de direitos.
6
Afirma Nancy Fraser (2000-2001: 55-56): “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição,
porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo
de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que não consegue tomar um taxi. Neste caso, a
injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. (...) Reciprocamente, a
distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado,
que fica desempregado em virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão
corporativa especulativa. Neste caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de
reconhecimento. (...) Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta
concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da
justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca ambas em um marco mais amplo”. Ver ainda da mesma
autora o artigo From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice (1997). Sobre a matéria, consultar Axel Honneth, (1996); Nancy Fraser e Axel Honneth, (2003); Charles Taylor, (1994); Iris Young,
(1990); Amy Gutmann, (1994).
7
Ver ainda do mesmo autor (20 03: 429-461).
104
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
No entanto, gradativamente, surgem instrumentos internacionais a delinear a concepção material da igualdade, concebendo a igualdade formal e a
igualdade material como conceitos distintos, mas inter-relacionados. Transita-se
da igualdade abstrata e geral para um conceito plural de dignidades concretas.
Daí a contribuição das demais vertentes feministas -- como a libertária radical; a
socialista; a existencialista; e a multiculturalista -- para o processo de construção
histórica dos direitos humanos das mulheres.
À luz da internacionalização dos direitos humanos, foi a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 que, de forma explícita, afirmou, em seu parágrafo 18, que os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Esta concepção foi
reiterada pela Plataforma de Ação de Pequim, de 1995.
O legado de Viena é duplo: não apenas endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos invocada pela Declaração Universal de 1948,
mas também confere visibilidade aos direitos humanos das mulheres e das meninas, em expressa alusão ao processo de especificação do sujeito de direito e
à justiça enquanto reconhecimento de identidades. Neste cenário as mulheres
devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. O
direito à diferença implica o direito ao reconhecimento de identidades próprias,
o que propicia a incorporação da perspectiva de gênero8, isto é, repensar, revisitar e reconceptualizar os direitos humanos a partir da relação entre os gêneros,
como um tema transversal.
O balanço das últimas três décadas permite apontar que o movimento internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres centrou seu foco em
três questões centrais: a) a discriminação contra a mulher; b) a violência contra
a mulher; e c) os direitos sexuais e reprodutivos. Este artigo será concentrado na
temática da violência contra a mulher, com especial destaque aos parâmetros
protetivos internacionais e seu impacto na lei Maria da Penha.
2. O combate à violência contra
a mulher no âmbito internacional
Em 1979, foi adotada a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas
de Discriminação contra a Mulher, ratificada por 186 Estados (2010). Apresenta,
assim, um amplo grau de adesão, apenas perdendo para a Convenção sobre os
8
Afirma Alda Facio (1992: 54): “(...) Gender ou gênero sexual corresponde a uma dicotomia sexual
que é imposta socialmente através de papéis e estereótipos”. Gênero é, assim, concebido como uma
relação entre sujeitos socialmente construídos em determinados contextos históricos, atravessando
e construindo a identidade de homens e mulheres. Sobre a matéria, ver ainda BUNCH, Charlotte
(1995: 11-17); BARTLETT, Katharine T. (1993: 633-636); SCALES, Ann. (1993; 94-109); WEST, Robin.
(1993: 493-530); MACKINNON, Catharine. (1993: 610-619).
105
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
Direitos da Criança, que, por sua vez, conta com 193 Estados-partes (2010). A
Convenção foi resultado de reivindicação do movimento de mulheres, a partir
da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México, em 1975.
No plano dos direitos humanos, contudo, esta foi a Convenção que mais recebeu reservas por parte dos Estados signatários9, especialmente no que tange à
igualdade entre homens e mulheres na família. Tais reservas foram justificadas
com base em argumentos de ordem religiosa, cultural ou mesmo legal, havendo
países (como Bangladesh e Egito) que acusaram o Comitê sobre a Eliminação da
Discriminação contra a Mulher de praticar “imperialismo cultural e intolerância
religiosa”, ao impor-lhes a visão de igualdade entre homens e mulheres, inclusive na família (Henkin, 1999: 364). Isto reforça o quanto a implementação dos
direitos humanos das mulheres está condicionada à dicotomia entre os espaços
público e privado, que, em muitas sociedades, confina a mulher ao espaço exclusivamente doméstico da casa e da família. Vale dizer, ainda que se constate,
crescentemente, a democratização do espaço público, com a participação ativa
de mulheres nas mais diversas arenas sociais, resta o desafio de democratização
do espaço privado – cabendo ponderar que tal democratização é fundamental
para a própria democratização do espaço público.
Embora a Convenção não explicite a temática da violência contra a mulher,
o Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (Comitê CEDAW) adotou relevante Recomendação Geral sobre
a matéria, realçando que10: “A violência doméstica é uma das mais insidiosas
formas de violência contra mulher. Prevalece em todas as sociedades. No âmbito
das relações familiares, mulheres de todas as idades são vítimas de violência de
todas as formas, incluindo o espancamento, o estupro e outras formas de abuso
sexual, violência psíquica e outras, que se perpetuam por meio da tradição. A
falta de independência econômica faz com que muitas mulheres permaneçam
em relações violentas. (...) Estas formas de violência submetem mulheres a riscos
de saúde e impedem a sua participação na vida familiar e na vida pública com
base na igualdade.” Ainda nos termos da Recomendação Geral n.19 (1992): “Gen9
Trata-se do instrumento internacional que mais fortemente recebeu reservas, dentre as Convenções
internacionais de Direitos Humanos, considerando que ao menos 23 dos mais de 100 Estados-partes
fizeram, no total, 88 reservas substanciais. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação da Mulher pode enfrentar o paradoxo de ter maximizado sua aplicação universal ao
custo de ter comprometido sua integridade. Por vezes, a questão legal acerca das reservas feitas à
Convenção atinge a essência dos valores da universalidade e integridade. A título de exemplo, quando da ratificação da Convenção, em 1984, o Estado brasileiro apresentou reservas ao artigo 15, parágrafo 4º e ao artigo 16, parágrafo 1º (a), (c), (g), e (h), da Convenção. O artigo 15 assegura a homens
e mulheres o direito de, livremente, escolher seu domicílio e residência. Já o artigo 16 estabelece a
igualdade de direitos entre homens e mulheres, no âmbito do casamento e das relações familiares.
Em 20 de dezembro de 1994, o Governo brasileiro notificou o Secretário Geral das Nações Unidas
acerca da eliminação das aludidas reservas.
10 Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Violence against women. CEDAW General recommendation n.19, A/47/38. (General Comments), 29/01/92.
106
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
der-based violence is a form of discrimination that seriously inhibits women’s ability to
enjoy rights and freedoms on a basis of equality with men. (…) The full implementation of the Convention required States to take positive measures to eliminate all forms
of violence against women”11. Segundo a ONU, a violência doméstica é a principal
causa de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo, manifestando-se não
apenas em classes socialmente mais desfavorecidas e em países em desenvolvimento, mas em diferentes classes e culturas.
A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada
pela ONU, em 1993, bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”), aprovada pela OEA, em 1994, reconhecem que a violência contra a mulher, no âmbito
público ou privado, constitui grave violação aos direitos humanos e limita total
ou parcialmente o exercício dos demais direitos fundamentais. Definem a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na
esfera pública, como na privada” (artigo 1o). Vale dizer, a violência baseada no
gênero ocorre quando um ato é dirigido contra uma mulher, porque é mulher,
ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional. Adicionam que a
violência baseada no gênero reflete relações de poder historicamente desiguais
e assimétricas entre homens e mulheres.
11 Para a prevenção e a erradicação da violência contra a mulher, o Comitê CEDAW recomenda, dentre outras medidas: “(a) States parties should take appropriate and effective measures to overcome
all forms of gender-based violence, whether by public or private act; (b) States parties should ensure that laws against family violence and abuse, rape, sexual assault and other gender-based violence give adequate protection to all women, and respect their integrity and dignity. Appropriate
protective and support services should be provided for victims. Gender-sensitive training of judicial and law enforcement officers and other public officials is essential for the effective implementation of the Convention;(c) States parties should encourage the compilation of statistics and research
on the extent, causes and effects of violence, and on the effectiveness of measures to prevent and
deal with violence; (d) Effective measures should be taken to ensure that the media respect and
promote respect for women; (e) States parties in their report should identify the nature and extent of attitudes, customs and practices that perpetuate violence against women, and the kinds
of violence that result. They should report the measures that they have undertaken to overcome
violence, and the effect of those measures; (f) Effective measures should be taken to overcome these
attitudes and practices. States should introduce education and public information programmes
to help eliminate prejudices which hinder women’s equality; (g) Measures that are necessary to
overcome family violence should include: Criminal penalties where necessary and civil remedies
in case of domestic violence; Legislation to remove the defence of honour in regard to the assault or murder of a female family member; Services to ensure the safety and security of victims
of family violence, including refuges, counselling and rehabilitation programmes; Rehabilitation
programmes for perpetrators of domestic violence; Support services for families where incest or
sexual abuse has occurred; (h) States parties should report on the extent of domestic violence and
sexual abuse, and on the preventive, punitive and remedial measures that have been taken; (i)
That States parties should take all legal and other measures that are necessary to provide effective
protection of women against gender-based violence”. (Comitê pela Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher. Violence against women. CEDAW General recommendation n.19,
A/47/38. (General Comments), 29/01/92.)
107
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
A Convenção de “Belém do Pará” elenca um importante catálogo de direitos a serem assegurados às mulheres, para que tenham uma vida livre de
violência, tanto na esfera pública, como na esfera privada. Consagra ainda a
Convenção deveres aos Estados-partes, para que adotem políticas destinadas a
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. É o primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer, de forma enfática, a
violência contra as mulheres como um fenômeno generalizado, que alcança, sem
distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado
número de mulheres.
Com relação aos direitos das mulheres, emblemático é o caso González e
outras contra o México (caso “Campo Algodonero”), em que a Corte Interamericana condenou o México em virtude do desaparecimento e morte de mulheres em
Ciudad Juarez, sob o argumento de que a omissão estatal estava a contribuir para
a cultura da violência e da discriminação contra a mulher. No período de 1993 a
2003, estima-se que de 260 a 370 mulheres tenham sido vítimas de assassinatos,
em Ciudad Juarez. A sentença da Corte condenou o Estado do México ao dever de
investigar, sob a perspectiva de gênero, as graves violações ocorridas, garantindo
direitos e adotando medidas preventivas necessárias de forma a combater a discriminação contra a mulher12. Destacam-se também relevantes decisões do sistema
interamericano sobre discriminação e violência contra mulheres, o que fomentou
a reforma do Código Civil da Guatemala, a adoção de uma lei de violência doméstica no Chile, a adoção da lei Maria da Penha no Brasil, dentre outros avanços13.
No âmbito da ONU, merece ainda destaque as Resoluções do Conselho de
Direitos Humanos n.11/2 de 2009 e n.14/12 de 2010 sobre “Accelerating efforts to
eliminate all forms of violence against women”. A Resolução n.14/12 expressamente
demanda dos Estados que estabeleçam ou fortaleçam planos de ação de combate
à violência contra mulheres e meninas contemplando mecanismos de accountability para a prevenção da violência14, considerando a adoção de estratégias de
alcance universal e de alcance específico endereçada a grupos vulneráveis (por
exemplo, mulheres afro-descendentes e indígenas). A Relatora Especial sobre a
Violência contra a Mulher, de igual modo, tem realçado a necessidade de fortalecer due diligence standards, envolvendo tanto a prevenção, como a repressão à
violência no campo da responsabilidade do Estado15.
12 Ver sentença de 16 de novembro de 2009. Disponível em: www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_205_esp.pdf .
13 A respeito, ver caso María Eugenia versus Guatemala e caso Maria da Penha versus Brasil decididos
pela Comissão Interamericana.
14 A Austrália destaca-se por apresentar um exemplar plano de prevenção à violência contra a mulher.
Ver: Time for Action: The National Council’s Plan for Australia to Reduce Violence against Women and their
Children, 2009-2011.
15 Consultar ‘15 years of The United Nations Special Rapporteur on Violence against Women, its Causes and
Consequences’. Sobre o tema, realça a Recomendação Geral n.19 do Comitê CEDAW: “Under general
108
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
3. A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade
internacional do Brasil
“Sobrevivi, posso contar”. É este o título do livro autobiográfico de Maria da
Penha, vítima de duas tentativas de homicídio cometidas por seu então companheiro, em seu próprio domicílio, em Fortaleza, em 1983. Os tiros contra ela disparados (enquanto dormia), a tentativa de eletrocutá-la, as agressões sofridas ao
longo de sua relação matrimonial culminaram por deixá-la paraplégica aos 38 anos.
Apesar de condenado pela Justiça local, após quinze anos o réu ainda permanecia em liberdade, valendo-se de sucessivos recursos processuais contra decisão condenatória do Tribunal do Júri. A impunidade e a inefetividade do sistema judicial frente à violência doméstica contra as mulheres no Brasil motivou,
em 1998, a apresentação do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), por meio de petição conjunta das entidades CEJIL-Brasil (Centro
para a Justiça e o Direito Internacional) e CLADEM-Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher). Em 2001, após 18 anos
da prática do crime, em decisão inédita, a Comissão Interamericana condenou
o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica
(Piovesan e Pimentel, 2002: A3).
O caso Maria da Penha é elucidativo de uma forma de violência que atinge
principalmente a mulher: a violência doméstica. Aos 38 anos, Maria da Penha
era vítima, pela segunda vez, de tentativa de homicídio. Essa violência revelou,
todavia, duas peculiaridades: o agente do crime, que deixou Maria da Penha
irreversivelmente paraplégica, não era um desconhecido, mas seu próprio marido; e as marcas físicas e psicológicas derivadas da violência foram agravadas
por um segundo fator, a impunidade16.
Estudos apontam a dimensão epidêmica da violência doméstica. Segundo
pesquisa feita pela Human Rights Watch17, de cada 100 mulheres assassinadas
no Brasil, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas. De acordo com pesquisa realizada pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, 66,3% dos acuinternational law and specific human rights covenants, States may also be responsible for private
acts if they fail to act with due diligence to prevent violations of rights or to investigate and punish
acts of violence, and for providing compensation”. (Comitê pela Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher. Violence against women. CEDAW General recommendation n.19,
A/47/38. (General Comments), 29/01/92).
16 Ver, a respeito, Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Informe n. 54/01, caso 12.051, Maria
da Penha Maia Fernandes v. Brasil, 16/04/2001.
17
Americas Watch, Criminal Injustice: Violence against Women in Brazil, 1992. Afirma ainda o relatório da
Human Rights Watch que, “de mais de 800 casos de estupro reportados a delegacias de polícia em
São Paulo de 1985 a 1989, menos de um quarto foi investigado”. Ainda esclarece o mesmo relatório
que “a delegacia de mulheres de São Luis no Estado do Maranhão reportou que, de mais de 4000
casos de agressões físicas e sexuais registrados, apenas 300 foram processados e apenas dois levaram
à punição do acusado”. (Americas Watch, Criminal Injustice: Violence against Women in Brazil, 1992).
109
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
sados em homicídios contra mulheres são seus parceiros18. Ainda, no Brasil, a
impunidade acompanha intimamente essa violência19. Estima-se que, em 1990,
no Estado do Rio de Janeiro, nenhum dos dois mil casos de agressão contra mulheres registrados em delegacias terminou na punição do acusado. No Estado de
São Luiz, relata-se, para este mesmo ano, que dos quatro mil casos registrados
apenas dois haviam resultado em punição do agente (Steiner e Alston, 2000:
171).
A violência doméstica ainda apresenta como consequência o prejuízo financeiro. Em conformidade com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), uma em cada cinco mulheres que faltam ao trabalho o fazem por terem
sofrido agressão física20. A violência doméstica compromete 14,6% do Produto
Interno Bruto (PIB) da América Latina, cerca US$ 170 bilhões. No Brasil, a violência doméstica custa ao país 10,5% do seu PIB21.
À luz deste contexto, o caso Maria da Penha permitiu, de forma emblemática, romper com a invisibilidade que acoberta este grave padrão de violência de
que são vítimas tantas mulheres, sendo símbolo de uma necessária conspiração
contra a impunidade.
Em 2001, em decisão inédita, a Comissão Interamericana condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica,
recomendando ao Estado, dentre outras medidas, “prosseguir e intensificar o
processo de reforma, a fim de romper com a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil”22.
Adicionou a Comissão Interamericana que “essa tolerância por parte dos órgãos
do Estado não é exclusiva deste caso, mas é sistemática. Trata-se de uma tolerância de todo o sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher”23.
A decisão fundamentou-se na violação, pelo Estado, dos deveres assumidos
em virtude da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (“Convenção do Belém do Pará”), que consagram parâmetros protetivos
18 Movimento Nacional de Direitos Humanos, Primavera já Partiu, Brasília, 1998.
19 Jornal da Redesaúde, Informativo da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos,
No. 19 – novembro 1999, citado por Valéria Pandjiarjian, Os Estereótipos de Gênero nos Processos
Judiciais e a Violência contra a Mulher na Legislação. (mimeo)
20 Folha de São Paulo, Caderno São Paulo, 21 de julho de 1998, p. 1 e 3.
21 Informativo da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, No. 19 – novembro 1999,
citado por Valéria Pandjiarjian, Os Estereótipos de Gênero nos Processos Judiciais e a Violência contra a
Mulher na Legislação. (mimeo)
22 Comissão Interamericana de Direitos Humanos – OEA, Informe 54/01, caso 12.051, Maria da Penha
Fernandes v. Brasil, 16/04/01, parágrafos 54 e 55. http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm.
23 Comissão Interamericana de Direitos Humanos – OEA, Informe 54/01, caso 12.051, Maria da Penha
Fernandes v. Brasil, 16/04/01, parágrafos 54 e 55. http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm.
110
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
mínimos concernentes à proteção dos direitos humanos. A Comissão ressaltou
que: “O Estado está (...) obrigado a investigar toda situação em que tenham sido
violados os direitos humanos protegidos pela Convenção. Se o aparato do Estado age de maneira que tal violação fique impune e não seja restabelecida, na
medida do possível, a vítima na plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que
não cumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas à sua jurisdição o exercício
livre e pleno de seus direitos. Isso também é válido quando se tolere que particulares ou grupos de particulares atuem livre ou impunemente em detrimento
dos direitos reconhecidos na Convenção. (...) A segunda obrigação dos Estados
Partes é “garantir” o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos na Convenção a toda pessoa sujeita à sua jurisdição. Essa obrigação implica o dever dos
Estados Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as
estruturas mediante as quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos
direitos humanos. Em conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção
e, ademais, procurar o restabelecimento, na medida do possível, do direito conculcado e, quando for o caso, a reparação dos danos produzidos pela violação
dos direitos humanos”24.
Ao final, recomendou ao Estado brasileiro que: a) concluísse rápida e efetivamente o processo penal envolvendo o responsável pela agressão; b) investigasse séria e imparcialmente irregularidades e atrasos injustificados do processo
penal; c) pagasse à vítima uma reparação simbólica, decorrente da demora na
prestação jurisdicional, sem prejuízo da ação de compensação contra o agressor;
d) promovesse a capacitação de funcionários da justiça em direitos humanos, especialmente no que toca aos direitos previstos na Convenção de Belém do Pará�.
É a primeira vez que um caso de violência doméstica leva à condenação de um
país, no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
O objetivo das entidades peticionárias era um só: que a litigância internacional pudesse propiciar avanços internos na proteção dos direitos humanos das
mulheres no Brasil.
Em 31 de outubro de 2002, finalmente, houve a prisão do réu, no Estado da
Paraíba25. O ciclo de impunidade se encerrava, após dezenove anos. As demais
medidas recomendadas pela Comissão Interamericana (como, por exemplo, medidas reparatórias; campanhas de prevenção; programas de capacitação e sensibilização dos agentes da justiça, dentre outras) foram objeto de um termo de
24 Comissão Interamericana de Direitos Humanos – OEA, Informe 54/01, caso 12.051, Maria da Penha
Fernandes v. Brasil, 16/04/01, parágrafos 42 a 44. http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm.
25 Economista é preso 19 anos após balear a mulher, Folha de São Paulo, 31 de outubro de 2002.
111
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
compromisso firmado entre as entidades peticionárias e o Estado Brasileiro26. Em
24 de novembro de 2003, foi adotada a Lei 10.778, que determina a notificação
compulsória, no território nacional, de casos de violência contra a mulher que
for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.
Em 31 de março de 2004, por meio do Decreto 5.030, foi instituído um Grupo
de Trabalho Interministerial, que contou com a participação da sociedade civil e
do Governo, para elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher. O Grupo elaborou uma
proposta legislativa, encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional,
no final de 2004. Na exposição de motivos do aludido projeto de lei, há enfática
referência ao caso Maria da Penha, em especial às recomendações formuladas
pela Comissão Interamericana.
Finalmente, em 07 de agosto de 2006, foi adotada a Lei 11.340 (também denominada Lei “Maria da Penha”), que, de forma inédita, cria mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo medidas
para a prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência.
Diversamente de dezessete países da América Latina, o Brasil até 2006 não
dispunha de legislação específica a respeito da violência contra a mulher.
Aplicava-se a Lei 9099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais (JECrim) para tratar especificamente das infrações penais de menor potencial ofensivo,
ou seja, aquelas consideradas de menor gravidade, cuja pena máxima prevista
em lei não fosse superior a um ano. Contudo, tal resposta mostrava-se absolutamente insatisfatória, ao endossar a equivocada noção de que a violência contra a mulher era infração penal de menor potencial ofensivo e não grave violação a
direitos humanos. Pesquisas demonstram o quanto a aplicação da Lei 9099/95
para os casos de violência contra a mulher implicava a naturalização e legitimação deste padrão de violência, reforçando a hierarquia entre os gêneros27. O
26
No Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 2003, no capítulo sobre
Situação Referente ao Cumprimento de Recomendações da CIDH (disponível em: http://www.cidh.
org/annualrep/2003port/cap.3c.htm – acesso em 25/02/2005) verifica-se que o Estado Brasileiro informou à Comissão sobre o andamento do processo penal em trâmite contra o responsável pelas agressões e tentativa de homicídio a que se refere a recomendação nº. 1. Posteriormente, a Comissão teve
conhecimento de que a sentença que condenou à pena de prisão do responsável havia sido executada.
27 A título exemplificativo, ver Araújo (2005). Na visão de Leila Linhares Barsted: “Após dez anos de
aprovação dessa lei, constata-se que cerca de 70% dos casos que chegam aos Juizados Especiais
Criminais envolvem situações de violência doméstica contra as mulheres. Do conjunto desses casos,
a grande maioria termina em “conciliação”, sem que o Ministério Público ou o juiz tomem conhecimento e sem que as mulheres encontrem uma resposta qualificada do Poder Público à violência
sofrida. Em face do efeito praticamente descriminalizador dessa lei, o movimento de mulheres tem
debatido algumas soluções e avaliado iniciativas de parlamentares que encontram no Congresso
Nacional, bem como experiências legislativas de outros países que elaboraram leis contra a violência
doméstica. Com tais subsídios, um consórcio de ONGs elaborou uma proposta de lei sobre o tema,
calcada na Convenção de Belém do Pará e que afasta a aplicação da Lei 9.099/95. Essa proposta foi
apresentada à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.” (2006: 280-281).
112
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
grau de ineficácia da referida lei revelava o paradoxo do Estado romper com a
clássica dicotomia público-privado, de forma a dar visibilidade a violações que
ocorrem no domínio privado, para, então, devolvê-las a este mesmo domínio,
sob o manto da banalização, em que o agressor é condenado a pagar à vítima
uma cesta básica ou meio fogão ou meia geladeira. Os casos de violência contra
a mulher ora eram vistos como mera “querela doméstica”, ora como reflexo de
ato de “vingança ou implicância da vítima”, ora decorrentes da culpabilidade
da própria vítima, no perverso jogo de que a mulher teria merecido, por seu
comportamento, a resposta violenta. Isto culminava com a consequente falta de
credibilidade no aparato da justiça. No Brasil, apenas 2% dos acusados em casos
de violência contra a mulher são condenados.
No campo jurídico a omissão do Estado Brasileiro afrontava a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher –
a “Convenção de Belém do Pará” – ratificada pelo Brasil em 1995. É dever do
Estado brasileiro implementar políticas públicas destinadas a prevenir, punir
e erradicar a violência contra a mulher, em consonância com os parâmetros internacionais e constitucionais, rompendo com o perverso ciclo de violência que,
banalizado e legitimado, subtraia a vida de metade da população brasileira. Tal
omissão deu ensejo à condenação sofrida pelo Brasil no caso Maria da Penha.
Daí o advento da Lei 11.340, em 07 de agosto de 2006. Destacam-se sete inovações extraordinárias introduzidas pela Lei “Maria da Penha”:
1) Mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher
A violência contra mulher era, até o advento da Lei “Maria da Penha”,
tratada como uma infração penal de menor potencial ofensivo, nos termos da Lei
9099/95. Com a nova lei passa a ser concebida como uma violação a direitos humanos, na medida em que a lei reconhece que “a violência doméstica e familiar
contra a mulher constitui uma as formas de violação dos direitos humanos” (artigo 6º), sendo expressamente vedada a aplicação da Lei 9099/95.
2) Incorporação da perspectiva de gênero para tratar da violência contra a mulher
Na interpretação da lei devem ser consideradas as condições peculiares das
mulheres em situação de violência doméstica e familiar. É prevista a criação de
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência
cível e criminal, bem como atendimento policial especializado para as mulheres,
em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher.
3) Incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar
Para o enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei “Maria da Penha”
consagra medidas integradas de prevenção, por meio de um conjunto articulado de ações da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e de ações não-governamentais. Sob o prisma multidisciplinar, determina a integração do Poder
113
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, com as áreas da segurança
pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Realça a importância da promoção e realização de campanhas educativas
de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como da
difusão da Lei e dos instrumentos de proteção dos direitos humanos das mulheres. Acresce a importância de inserção nos currículos escolares de todos os níveis
de ensino para os conteúdos relativos a direitos humanos, à equidade de gênero
e de raça, etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Adiciona a necessidade de capacitação permanente dos agentes policiais
quanto às questões de gênero e de raça e etnia.
4) Fortalecimento da ótica repressiva
Além da ótica preventiva, a Lei “Maria da Penha” inova a ótica repressiva,
ao romper com a sistemática anterior baseada na Lei 9099/95, que tratava da violência contra a mulher como uma infração de menor potencial ofensivo, sujeita
à pena de multa e pena de cesta básica.
De acordo com a nova Lei, é proibida, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniárias,
bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa28.
Afasta-se, assim, a conivência do Poder Público com a violência contra a mulher.
5) Harmonização com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de Belém do Pará
A Lei “Maria da Penha” cria mecanismos para coibir a violência doméstica
e familair contra a mulher em conformidade com a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de
Belém do Pará”). Amplia o conceito de violência contra a mulher, compreendendo tal violência como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”, que ocorra no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família
ou em qualquer relação íntima de afeto.
6) Consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito à livre
orientação sexual
A nova Lei consolida, ainda, um conceito ampliado de família, na medida
em que afirma que as relações pessoais a que se destina independem da orientação sexual. Reitera que toda mulher, independentemente de orientação sexual,
classe, raça, etnia, renda, cultura, nível educacional, idade e religião tem o direito de viver sem violência.
28 A respeito, ver “Nova lei que protege a mulher já tem um preso”, In: O Estado de São Paulo, C5, 23 de
setembro de 2006. O caso refere-se à prisão de homem que agrediu a mulher, grávida de cinco meses.
Segundo a delegada, o agressor teria achado “um absurdo ser preso”.
114
A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil
7) Estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas
Por fim, a nova Lei prevê a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e
outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero, raça e etnia, concernentes à causa, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, com a sistematização de dados e a avaliação periódica dos
resultados das medidas adotadas.
Na visão de Leila Linhares Barsted (2006: 288): “O balanço de mais de uma
década no enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil revela o importante papel dos movimentos de mulheres no diálogo com o Estado em suas
diferentes dimensões. (...) Não há dúvidas de que, ao longo das três últimas
décadas, o movimento de mulheres tem sido o grande impulsionador das políticas públicas de gênero, incluindo aquelas no campo da prevenção da violência.
Mas, apesar das conquistas obtidas, é inegável a persistência da violência doméstica e sexual contra a mulher no Brasil.”29
4. Conclusão
A lei Maria da Penha constitui fruto de uma exitosa articulação do movimento de mulheres brasileiras: ao identificar um caso emblemático de violência
contra a mulher; ao decidir submetê-lo à arena internacional, por meio de uma
litigância e do ativismo transnacional; ao sustentar e desenvolver o caso, por
meio de estratégias legais, políticas e de comunicação; ao extrair as potencialidades do caso, pleiteando reformas legais e transformações de políticas públicas;
ao monitorar, acompanhar e participar ativamente do processo de elaboração
da lei relativamente à violência contra a mulher; ao defender e lutar pela efetiva
implementação da lei.
A partir da competente atuação do movimento de mulheres, na utilização
de estratégias legais e de um ativismo transnacional, o caso “Maria da Penha”
29 Ao tratar do diálogo entre o movimento feminista e os Poderes Públicos, no que se refere à violência
doméstica, prossegue Barsted (2006: 288): “E esse diálogo tem enfatizado atuações em diversas áreas,
entre as quais: a) a ação voltada ao Poder Legislativo para alterar dispositivos discriminatórios da lei
penal e para criar legislação sobre a violência doméstica contra as mulheres; b) o empenho com os
Poderes Executivo e Legislativo para ratificar tratados, convenções e planos de ação internacionais
que reconheçam os direitos humanos das mulheres, especialmente no campo da segurança e da luta
contra a violência; c) a pressão nos Poderes Executivo e Legislativos estaduais para criar, ampliar e
melhorar delegacias, abrigos, centros de referências, núcleos da Defensoria Pública e do Ministério
Público e serviços na área da saúde voltados ao atendimento das vítimas; d) a demanda com o
Poder Executivo e o Congresso Nacional por recursos para o combate à violência em suas diversas
dimensões; e) a demanda com os órgãos da administração federal e estadual por pesquisas nacionais
e locais que possam ampliar a visibilidade dessa violência e orientar políticas públicas de prevenção
e atenção; f) o esforço sobre os órgãos federais e estaduais para qualificar policiais que atuam nas
Delegacias da Mulher”.
115
Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
teve a força catalizadora para fomentar avanços na proteção dos direitos humanos das mulheres, por meio da reforma legal e de mudanças de políticas públicas.
A adoção da lei Maria da Penha permitiu romper com o silêncio e a omissão
do Estado brasileiro, que estavam a caracterizar um ilícito internacional, ao violar obrigações jurídicas internacionalmente contraídas quando da ratificação de
tratados internacionais. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua
a impunidade, simbolizando uma grave violência institucional, que se soma ao
padrão de violência sofrido por mulheres, em total desprezo à ordem internacional e constitucional.
Perante a comunidade internacional o Estado Brasileiro assumiu o dever
jurídico de combater a impunidade em casos de violência contra a mulher, cabendo-lhe adotar medidas e instrumentos eficazes para assegurar o acesso à justiça para as mulheres vítimas de violência. É dever do Estado atuar com a devida
diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra
a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos30.
No amplo horizonte de construção dos direitos humanos das mulheres, jamais se caminhou tanto quanto nas últimas três décadas. Elas compõem o marco
divisório em que se concentram os maiores avanços emancipatórios na luta das
mulheres por dignidade, direitos e justiça. Sob esta perspectiva, em absoluta
harmonia com os parâmetros protetivos internacionais, a lei Maria da Penha
inaugura uma política integrada para prevenir, investigar, sancionar e reparar a
violência contra a mulher.
Ao repudiar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório concernente
à violência contra a mulher, a lei Maria da Penha constitui uma conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres. Sua plena implementação
-- com a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, em todas as suas manifestações – surge como
imperativo de justiça e respeito aos direitos das vítimas desta grave violação que
ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres brasileiras.
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118
Avanços e obstáculos na implementação
da Lei 11.340/2006
Wânia Pasinato
Este artigo tratará das experiências de aplicação da Lei Maria da Penha a
partir da participação de diferentes setores, instâncias e atores envolvidos nesta
tarefa. Para tanto, serão apresentados alguns dos resultados obtidos por pesquisa
recém-concluída pelo Observe – Observatório da Lei Maria da Penha, a respeito
das Condições para Aplicação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) nas DEAMS e
Juizados de Violência Doméstica e Familiar nas capitais e no DF (2010)1, os quais constituirão o pano de fundo das reflexões a respeito dos avanços e obstáculos que se
tem identificado em todo o país para a implementação desta legislação.
O texto foi organizado em três partes. Na primeira se apresenta algumas
considerações a respeito da lei, da pesquisa e a experiência do Observe. Na segunda parte são apresentados os resultados da pesquisa já mencionada, ressaltando tanto as práticas promissoras quanto os obstáculos que ainda persistem
para que a lei possa ser aplicada de maneira integral. Na terceira e última parte
são apresentadas as considerações finais.
1. A Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e seu Observatório
Quatro anos após ter entrado em vigor, a Lei Maria da Penha é, talvez, uma
das legislações de maior popularidade na história recente da sociedade brasileira. Essa popularidade pode ser aferida nas pesquisas de opinião pública que
mostram que a lei faz parte do conhecimento de mulheres e homens sobre a
existência de alternativa legal para enfrentar a violência doméstica e familiar
(DataSenado, 2011; Fundação Perseu Abramo, 2010, IBOPE/Instituto Avon, 2009,
IBOPE/Themis, 2008 entre outras). Isto sem falar do debate público que é mobilizado em torno de ocorrências de violência contra a mulher e que acaba também
contribuindo para problematizar a aplicação da lei e os limites que são enfrentados para a concretização da proteção dos direitos das mulheres.
No bojo dessas discussões, tem sido crescente também o reconhecimento
desta legislação como uma política pública que necessita do empenho de todos
– governo e sociedade – para que possa ser aplicada de maneira integral e para
1
Agradeço a coordenação nacional do OBSERVE por autorizar o uso do relatório final na elaboração
deste artigo.
119
Wânia Pasinato
que se alcance êxito na proteção dos direitos de mulheres que vivem em situação
de violência doméstica e familiar.
A Lei Maria da Penha pode ser considerada especial em vários sentidos,
entre os quais se destacam dois. O primeiro, e também mais óbvio, refere-se ao
objeto de atenção ao qual é dedicada: a violência doméstica e familiar contra a
mulher, que é tratada como violação aos direitos das mulheres (artigo 6º). Esta
violência, segundo a lei, pode se manifestar num conjunto de ações e comportamentos que são classificados em cinco categorias – física, sexual, psicológica,
moral e patrimonial – que podem ser praticadas de forma isolada e/ou combinada e que resultam em cerceamento do exercício de direitos pelas mulheres e
de sua autonomia.
Um segundo sentido está na forma ampla como propõe que esta violação
de direitos humanos seja tratada pelas instituições públicas, com a recomendação de medidas de responsabilização do autor/agressor, medidas de proteção à
integridade física das mulheres e de seus direitos, medidas de assistência que
contribuam para fortalecer a mulher e medidas de prevenção, que visam a romper com a reprodução da violência baseada no gênero na sociedade. É sempre
importante lembrar que estes conjuntos de medidas não estão hierarquizados no
texto da lei e sua aplicação deve ocorrer de forma equacionada e de acordo com
as necessidades que são identificadas caso a caso. Assim, embora num primeiro
momento a lei tenha sido divulgada como uma aposta no maior rigor no campo
penal como medida de erradicação da violência doméstica e familiar contra a
mulher, as respostas previstas vão mais além da aplicação de penas restritivas
de liberdade para os agressores.
Dada a amplitude das ações que são previstas na legislação, as condições
para sua aplicação incluem mudanças substantivas nas políticas de segurança
pública e no judiciário, mas também requerem a integração entre políticas e serviços nas áreas de segurança, justiça, saúde, assistência social, médica, psicológica, entre outras. Ciente dessas complexidades, a Secretaria de Políticas para
Mulheres do governo federal, cuidou para que a lei não surgisse como um ato
legislativo isolado, criando-lhe apoio no Pacto Nacional de Enfrentamento da
Violência Contra as Mulheres (2007) e em outros programas, projetos e políticas
do governo federal. Entre as iniciativas encontra-se a criação de um Observatório da Lei Maria da Penha.
1.1 Observe – Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha
Assim como a própria Lei Maria da Penha, o Observe – Observatório pela
Aplicação da Lei Maria da Penha constitui uma experiência inédita no país. No
plano nacional, sua criação faz parte das iniciativas para a efetiva implementação da Lei Maria da Penha e se insere entre os projetos financiados pela Secretaria de Políticas para Mulheres com o objetivo de fortalecer a Política Nacional de
120
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. No plano internacional, a criação
de um observatório que une governo e sociedade civil para o monitoramento da
aplicação de uma legislação ocorre em consonância com as recomendações internacionais (OPAS, 2004, DAW, 2009).
O Observe é formado por um consórcio de 12 organizações2, entre núcleos
de pesquisa e organizações não governamentais, com representações nas cinco
regiões brasileiras e iniciou suas atividades em setembro de 20073. De forma
compatível com as tendências atuais de monitoramento de políticas públicas, a
tarefa prioritária do Observe, definida por suas integrantes, foi a criação de um
sistema de indicadores sólidos que permitam o monitoramento da aplicação da
lei em todo o território nacional. Diante da inexistência de dados e informações
de abrangência nacional e que permitissem formular as bases do sistema de indicadores, primeiramente foi preciso consolidar um conjunto de informações a
respeito das condições que as instâncias e serviços apresentam para o desempenho de suas atribuições na aplicação da lei. Desse modo, a própria tarefa de
monitoramento assumiu um caráter mais amplo, compreendendo o desenvolvimento de uma metodologia com a seleção das instâncias a serem monitoradas, a
criação de instrumentos adequados à coleta, registro e processamento de informações, visando à elaboração de uma base consistente de dados que permitam
acompanhar no tempo e no espaço o desempenho das instituições encarregadas
da aplicação da lei, monitorar a atuação dos governos de estados e municípios
no cumprimento de seus deveres em ampliar a oferta de serviços para a formação de redes de atenção especializada para as mulheres em situação de violência e, no futuro, construir um sistema de indicadores que permita acompanhar
tanto os investimentos de recursos públicos para a melhoria dos serviços quanto
os resultados alcançados pela aplicação da lei.
Numa primeira etapa do trabalho, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMS) e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher foram eleitos como instâncias a serem observadas. A seleção baseou-se no papel estratégico que estas duas instituições desempenham na aplicação
2
NEIM/UFBA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – Região Nordeste; GEPEM/
UFPA – Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações e Gênero – no
Norte; AGENDE – Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento –, e NEPeM/UnB – Núcleo
de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher –, no Centro-Oeste; CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa,
Informação e Ação –, e NEPP-DH/UFRJ – Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos
Humanos –, no Sudeste; e, por fim, o Coletivo Feminino Plural, Themis – Assessoria Jurídica e
Estudos de Gênero e NIEM/UFRGS – Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero
–, na região Sul. Além dessas instituições, o Consórcio estabeleceu parceria com a Rede Feminista
de Saúde – Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos –, a Redor
– Rede Regional Norte e Nordeste de Estudos sobre a Mulher e Relações de Gênero – e o CLADEM
– Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM/Brasil.
3
Mais informações sobre a composição e as atividades realizadas pelo Observe podem ser acessadas
em sua página eletrônica: www.observe.ufba.br
121
Wânia Pasinato
da Lei Maria da Penha – tanto na investigação policial e o consequente processo
criminal quanto no acesso às medidas de proteção e assistência4. A pesquisa
contou com duas edições, sendo a primeira, em 2008, aplicada em cinco capitais
(Belém, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro e no Distrito Federal) (Observe,
2009) e a segunda rodada, em 2010, quando a pesquisa foi aplicada em todas as
capitais do país. (Observe, 2010)
1.2 A pesquisa sobre Condições para aplicação da Lei 11.340/2006
(Lei Maria da Penha) nas DEAMS e Juizados de Violência
Doméstica e Familiar nas capitais e no DF
A segunda edição da pesquisa aplicou-se a um universo de 40 Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMS) e 26 Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher (doravante, Juizados) instalados nas 27
capitais brasileiras5. A pesquisa de campo foi realizada entre dezembro de 2009
e março de 2010, envolvendo uma equipe de pesquisadoras locais que foram
treinadas para a realização do trabalho.
A atividade compreendeu coleta de dados quanti-qualitativos e realizou-se mediante o preenchimento de dois formulários especialmente desenvolvidos
para este projeto, durante entrevista efetuada com delegadas e juíza(e)s titulares
de DEAMs e Juizados, respectivamente, ou pessoas por ela(e)s designadas, e
foram complementados com os registros de observações em cadernos de campo.
Com estes procedimentos, procurou-se aliar a coleta de informações quantitativas6 a uma descrição mais detalhada a respeito do ambiente e das condições de
funcionamento dos serviços, bem como sobre os obstáculos que são enfrentados
por estes profissionais no desempenho cotidiano de suas atividades. O conjunto
4
A seleção das duas instâncias não exclui a preocupação com a abordagem integral proposta pela
lei. Os demais serviços que formam as redes de atenção especializada para mulheres em situação
de violência doméstica e familiar foram abordados em dois projetos de pesquisa que resultaram em
estudos de casos sobre a experiência em Cuiabá (Pasinato, 2010) e em cinco capitais (Observe, 2011).
Os resultados destas pesquisas também são utilizados nas análises que se apresentam neste artigo.
5
O município de Rio Branco, capital do Acre (AC), não pode ser incluído na pesquisa, apesar dos
esforços para identificação de uma pesquisadora que pudesse realizar as atividades de campo no
local. Também não foram incluídos a DEAM de Vitória (ES) e dois Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher: um em Belém (PA) e outro no Rio de Janeiro (RJ)
6
Os dois formulários consistem em uma estrutura comum apresentada em duas versões, sendo uma
para aplicação nas DEAMS e outra para os Juizados. A estrutura é dividida em nove partes contendo
informações sobre identificação dos pesquisadores/entrevistados; identificações do serviço; informações sobre as atribuições e regras de funcionamento (cobertura territorial, acessibilidade, horário de
funcionamento, existência de plantão, público-alvo etc.), infraestrutura (edificações, recursos técnicos, materiais), recursos humanos (quantidade, formação e qualificação), produção e sistematização
de dados e estatísticas, articulação com os serviços que atendem mulheres em situação de violência,
impacto da Lei Maria da Penha sobre o desempenho cotidiano das tarefas e atendimento ao público;
e identificação de obstáculos e soluções propostas.
122
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
de informações coletadas permitiu que as análises fossem além da simples descrição, para uma compreensão mais ampla dos contextos locais e regionais de
aplicação da Lei Maria da Penha. Os dados registrados nos formulários foram
inseridos em base eletrônica, sistematizados e organizados em gráficos e tabelas
que foram utilizados na elaboração do relatório final.
Para este artigo foram selecionados alguns dos resultados desta pesquisa.
Por um lado, procurou-se apresentar um panorama mais amplo sobre as condições de funcionamento das DEAMS e Juizados para aplicação da Lei Maria
da Penha, considerando as limitações e os obstáculos existentes e a forma como
refletem no atendimento cotidiano oferecido às mulheres. Por outro lado, são
mostradas algumas iniciativas que podem ser classificadas como “práticas promissoras” na aplicação da lei.
O uso de denominações como “boas práticas” ou “práticas promissoras”
tem se disseminado entre os documentos nacionais e internacionais de avaliação
de políticas sociais em diferentes áreas. A adoção da denominação “práticas promissoras” neste artigo reconhece a responsabilidade implicada nestas escolhas
e não tem por objetivo tomar essas práticas como modelos consolidados, como
regras que devem ser reproduzidas pelo país afora com a promessa de garantia
de sucesso nos resultados alcançados. (UNDAW/UNODC, 2005)
O objetivo de selecionar algumas experiências e utilizá-las como exemplos
deve-se à sua adequação, mesmo que parcial, ao objetivo maior de garantir o
acesso a direitos para as mulheres em situação de violência e aos princípios
previstos na Lei Maria da Penha. Considera também que os contextos sociais e
políticos têm forte influência sobre as dinâmicas institucionais nas quais estas
experiências estão inseridas, ainda mais num contexto em que, historicamente,
as chamadas políticas sociais se configuram como programas de governo, projetos e planos de ação, sem a necessária institucionalização e enraizamento nas
políticas de estado. Além disso, leva em consideração a diversidade regional
do Brasil, um país de extensão continental e marcado por significativas diferenças sociais, culturais e econômicas. Neste sentido, ao destacar alguns exemplos
de “práticas promissoras” na implementação da Lei Maria da Penha, espera-se
mostrar que apesar dos obstáculos e dificuldades, algumas mudanças são possíveis e devem ser observadas com atenção.
2. Condições para a aplicação da Lei Maria da Penha
2.1 As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher
A seguir são apresentados alguns resultados a respeito das condições de
funcionamento das DEAMS para a aplicação da Lei Maria da Penha. Dadas as
limitações deste artigo, foram selecionados alguns itens que pareceram melhor
ilustrar as dificuldades que são enfrentadas no cotidiano destas instituições.
123
Wânia Pasinato
A Lei Maria da Penha trouxe importantes alterações no papel das polícias
civis7 para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres, mas é importante compreender o que há de realmente novo.
Uma das alterações introduzidas foi a retomada dos procedimentos de investigação mediante a instauração de inquérito policial, atividade típica de polícia judiciária, razão pela qual não constitui, em si mesma, uma novidade. Esta
mudança resulta do afastamento da aplicação dos dispositivos da Lei 9099/958
nos crimes de violência doméstica e familiar e, neste caso, implica maior volume
de trabalho que é demandado na elaboração dos inquéritos policiais que devem
ser instruídos por laudos, assentadas de testemunhas, declarações da vítima e
autos de qualificação e indiciamento do agressor, antes de serem finalizados por
um relatório da(o) delegada(o) e encaminhado ao Ministério Público9. Uma das
principais queixas entre policiais é a dificuldade para a localização de testemunhas, o que tem repercutido em inúmeros pedidos de dilação de prazos até que
os inquéritos policiais sejam concluídos, o que vem ocorrendo em intervalos
que variam de um ou até dois anos após o registro da ocorrência. Consequentemente, há uma maior atividade cartorial, uma vez que aumentou o volume de
documentos que circulam no interior da delegacia e entre delegacias e juizados.
Outra atribuição que foi dada às polícias civis refere-se à solicitação de medidas protetivas para aqueles casos em que a mulher estiver se sentindo ameaçada
em sua integridade física, ou contra seus filhos ou seu patrimônio. A solicitação
das medidas protetivas deve ser realizada por um instrumento próprio, no qual
conste um breve relato da ocorrência e as medidas adequadas às necessidades
da mulher. Este documento deve ser encaminhado ao Juizado em até 48 horas. A
solicitação de medidas protetivas é atrelada a um registro policial, de modo que
o inquérito policial continuará a ter sua tramitação na delegacia. Este novo procedimento fez com que, em muitos casos, o volume de trabalho seja duplicado.
As medidas protetivas representam a grande contribuição da Lei Maria
da Penha para as mulheres que vivem em situação de violência, uma avaliação que é consensual entre os operadores do direito e profissionais de serviços
7
As atribuições previstas no Título III, Capítulo III, artigos 11 e 12 da legislação, referem-se às polícias
civis, o que significa que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada por todas as delegacias de polícia
e para todas as mulheres que vivem situações de violência doméstica e familiar e que demandarem
uma resposta institucional. Na prática, o maior movimento vem ocorrendo nas DEAMS, uma vez
que estas delegacias especializadas são a principal referência para mulheres.
8
No caso da investigação policial, a Lei 9099/95 prevê um procedimento policial mais célere e menos
formal que se consubstancia no formato de um Termo Circunstanciado de Ocorrências que deve
conter as versões da vítima e do agressor, sendo dispensada a presença de testemunhas. Outras medidas previstas na Lei 9099/95 também receberam veto de aplicação nos casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher, pela Lei 11.340/2006.
9
Ainda como procedimento criminal, a Lei Maria da Penha prevê a prisão em flagrante delito. Entre
1995 e 2006, quando os casos de violência doméstica e familiar eram, em sua maioria, enquadrados
na Lei 9099/95, as prisões em flagrante apenas se aplicavam aos crimes sexuais e nas tentativas de
homicídio, o que correspondia a um número pequeno de casos.
124
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
especializados (PASINATO, 2010b, Observe, 2011) e também entre as mulheres
(PASINATO, 2010ª). A elaboração deste procedimento demanda, por um lado,
que as mulheres conheçam quais são as medidas previstas e tenham condições
para discernir quais são relevantes para sua situação. Por outro lado, requer que
o profissional que faz o atendimento seja treinado para compreender as especificidades da violência doméstica e familiar baseada no gênero, ou seja, como
resultado do exercício desigual de poder na relação entre homens e mulheres, e
as dificuldades que são enfrentadas pelas mulheres no momento da denúncia.
O profissional deve também ser treinado em aspectos técnicos da elaboração
de relatos circunstanciados sobre a ocorrência, de forma que os juízes tenham
informações sobre as quais poderá fundamentar sua decisão de deferimento ou
indeferimento da medida.
Uma terceira atribuição que foi dada às polícias civis foi cuidar do transporte das mulheres para hospitais ou locais onde estejam em segurança. A polícia também deve conduzir a mulher à sua casa para retirada de objetos e documentos, quando assim for determinado pelas medidas protetivas. Para tanto, as
delegacias devem contar com viaturas policiais em condições de uso e policiais
que possam se responsabilizar pela execução da tarefa.
Diante de tais mudanças, era esperado que os governos dos estados, responsáveis pela estruturação, manutenção e execução de políticas na área de segurança pública, realizassem investimentos criando melhores condições de funcionamento para as delegacias de polícia, em especial para as DEAMS. Estas
reformas deveriam incluir mudanças de infraestrutura, melhoria nos recursos
materiais e técnicos, melhor gestão de recursos humanos e capacitação para o
trabalho, mas também a elaboração de instrumentos padronizados para a realização dos procedimentos e a edição de normas e decretos regulamentando
o funcionamento das delegacias especializadas, dando uniformidade ao atendimento que realizam. Em outras palavras, deveriam representar o reconhecimento das Delegacias da Mulher como parte das políticas de segurança pública,
rompendo com o “paralelismo institucional” que marcou a trajetória destas instâncias desde sua criação (GREGORI, 2006) demonstrando o interesse e compromisso do poder público em garantir os direitos das mulheres, com o reconhecimento da gravidade da situação em que se encontram e o oferecimento de
serviços de qualidade.
A pesquisa nas 40 DEAMS em funcionamento nas capitais mostrou que
esse comprometimento do poder público, na maior parte das vezes, não ocorreu ou vem ocorrendo de forma tímida e com resultados muito pontuais. As
DEAMS enfrentam muitas limitações em seu funcionamento, com problemas
relacionados à inadequação da infraestrutura e limitações de recursos materiais
e técnicos e baixa qualificação dos recursos humanos. A seguir são apresentadas algumas conclusões a respeito do horário de funcionamento das DEAMS e
125
Wânia Pasinato
existência de plantão, atribuições legais, infraestrutura, recursos técnicos e materiais, recursos humanos e capacitação, sistemas de informações e articulação
com os serviços especializados, temas que produzem impactos diretos sobre o
atendimento dado às mulheres.
Horário de Funcionamento: A existência de atendimento 24 horas nas
DEAMS figura entre as principais demandas entre os movimentos de mulheres
e profissionais que atuam no atendimento de mulheres vítimas de violência.
Os resultados da pesquisa sugerem que não é suficiente garantir a existência dos plantões, sendo necessário conhecer e avaliar a qualidade dos serviços que são oferecidos. Conforme foi possível apurar, 65% das DEAMS nas
capitais (26) funcionam em horário comercial (das 8 às 19 horas, de 2ª a 6ª
feira) em períodos que variam de 8 a 10 horas de atendimento diário. Com
relação aos plantões: 52,5% (21) das DEAMS afirmaram ter atendimento 24
horas, enquanto outras três funcionam em regime de plantão apenas nos finais
de semana. Existem diferenças quanto ao atendimento oferecido: em algumas
DEAMS o plantão é realizado na própria delegacia especializada e por sua
equipe (como em Recife, Porto Alegre e São Paulo/1ª DDM). No entanto, tem
se disseminado um modelo de atendimento em que os plantões noturnos e de
final de semana são centralizados em delegacias plantonistas ou centrais de
flagrante, uma tendência nas políticas de segurança pública de alguns estados,
que garante o atendimento policial, mas ele é oferecido para toda a população
independentemente do crime que tenham sofrido. Existem também diferenças
quanto aos procedimentos adotados: algumas delegacias apenas registram o
boletim de ocorrência e, caso sejam necessárias medidas protetivas, a mulher
deverá se deslocar a outra delegacia (em geral, em DEAM) em horário de expediente (comercial) para que a medida seja solicitada. Algumas destas mudanças são recentes e estão inseridas em reformas mais amplas das polícias
civis estaduais que incluem também a interrupção do atendimento ao público
no horário do almoço. Aparentemente, trata-se de uma política de gestão de
recursos humanos que tenta minimizar a falta de pessoal que vem sendo enfrentada de forma generalizada pelas polícias civis do país. Se forem consideradas as novas atribuições das polícias na aplicação da Lei Maria da Penha,
será possível afirmar que nas DEAMS das capitais o atendimento de urgência
não está sendo garantido para as mulheres que sofrem violência. Esta adoção
parcial de procedimentos, somada à ausência de outros encaminhamentos e
à exigência para que as mulheres dirijam-se a outra delegacia para dar seguimento à ocorrência, acaba por se constituir em um obstáculo de difícil transposição por muitas mulheres, podendo resultar em desistências, no retorno ao
relacionamento conjugal violento e a crença de que nada nem ninguém poderá
ajudá-las a sair desta situação.
126
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
Atribuições Legais: a definição de crimes e contravenções que são de atribuição das DEAMS é feita pelos governos estaduais através de portarias, decretos e
resoluções e apresentam algumas diferenças entre os estados. O critério comum
é que seja violência contra a mulher baseada no gênero, (excluindo-se, portanto,
as ocorrências como roubos, furtos, latrocínios, próprios da criminalidade urbana e que não possuam qualquer motivação aparente relacionada com o sexo
da vítima). Outro critério para o atendimento nestas delegacias especializadas
estabelece que não importa o tipo de relacionamento entre a vítima e o agressor
(podendo ser conhecido ou desconhecido) e do contexto em que tenha sido praticado o delito. Em outras palavras, significa que, ao menos formalmente, o atendimento nas DEAMS não está limitado aos casos da Lei Maria da Penha. As 40
DEAMS pesquisadas registram ocorrências de ameaças, lesão corporal dolosa,
maus-tratos e estupro, que são também os crimes mais comuns quando se trata
de violência doméstica e familiar. Após a Lei Maria da Penha, foram poucos
os relatos de mudanças nestas atribuições. A principal alteração ocorreu para a
inclusão de crimes contra o patrimônio e, em alguns casos, a inclusão de contravenções penais, sempre que tenham sido praticados em contexto doméstico
e nas relações familiares. Quanto aos homicídios, 32 DEAMS registram o crime
na forma tentada e apenas 23 investigam homicídios consumados, desde que
a autoria seja conhecida. Não há consenso sobre a relevância desta atribuição
para as DEAMS. A falta de pessoal e de recursos materiais para a investigação
é apontada como impeditivo para o trabalho, que segue sendo realizado pelas
Delegacias de Homicídio ou distritos policiais. Chamou a atenção a justificativa
dada por uma delegada para que a DEAM não investigue os crimes de homicídio, usando em seu argumento aquele que ela acredita ser o objetivo do trabalho
nestas instâncias especializadas: “o objetivo da delegacia é proteger a mulher, não é?
Então, se ela já perdeu a vida...” (Delegada Titular).
Prática Promissora de Fortalecimento das Delegacias da Mulher
Departamento de Polícia da Mulher da Polícia Civil de Pernambuco
Em 2008, a Polícia Civil do estado de Pernambuco criou o Departamento de
Polícia da Mulher, um dos seis departamentos ligados diretamente à Diretoria-Geral de Operações de Polícia Judiciária. O Departamento é comandado
por uma delegada de polícia com experiência nas DEAMS e responde exclusivamente pelo trabalho realizado nas seis DEAMS em todo o estado. Entre
suas atribuições estão: coordenar as atividades destas especializadas, padronizar o atendimento através de protocolos comuns, realizar cursos e palestras
para a comunidade. Com esta estrutura e atribuições o Departamento está
adequado às recomendações da Norma Técnica de Padronização das DEAMS.
127
Wânia Pasinato
Infraestrutura10: Com relação às instalações físicas, em 27 DEAMS (67,5%)
as condições de funcionamento foram consideradas boas pelas entrevistadas (e
também pelas pesquisadoras), o que inclui apreciação de itens como limpeza,
organização, conservação e distribuição de espaços, iluminação, ventilação e
disponibilidade e conservação de mobiliários. Outras sete tinham infraestrutura precária e 4 eram inadequadas. Apesar de haver uma descrição mais favorável para as delegacias das regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste, foram relatados problemas em todas as regiões. A maior parte das DEAMS – 24 – está
instalada em prédios isolados de outros serviços, embora nem sempre sejam
sedes próprias, mas prédios alugados e adaptados. No restante das capitais
as DEAMS dividem espaço com outras delegacias como em São Paulo, onde
as Delegacias da Mulher estão instaladas junto aos distritos policiais. Em Aracaju, João Pessoa, Teresina/Centro e Boa Vista foram criados espaços que são
compartilhados com outras delegacias especializadas (do idoso, discriminação
e homofobia), o que faz com que as áreas de espera e circulação sejam compartilhadas, contrariando a recomendação de privacidade que deve ser garantida
para os atendimentos (Norma Técnica de Padronização das DEAMS, 2006 e
2010). Todas as delegacias possuem espaços para as atividades de polícia judiciária (cartórios, sala de investigação, gabinete das delegadas), embora nem sempre as dimensões sejam adequadas para comportar todos os funcionários e as
tarefas que necessitam ser executadas. Instalações como banheiros privativos,
salas para descanso, copa foram encontradas em algumas delegacias, das quais
algumas apresentavam péssimas condições de uso, como em Boa Vista, onde a
sala de repouso dos funcionários tinha fiação exposta, marcas de infiltração de
água nas paredes e armários sem porta.
O principal problema identificado neste quesito está relacionado com a
privacidade e a segurança das mulheres, uma vez que são poucas as DEAMS
que possuem salas de espera separadas e espaços privativos para realização do
primeiro atendimento (quando solicitam informações ou registram a ocorrência
policial), de forma que as mulheres acabam expondo suas histórias na presença
de todos que estão aguardando atendimento. Ainda com relação aos espaços,
identificou-se a manutenção de salas destinadas ao atendimento psicossocial, o
que ocorre a despeito das recomendações da Norma Técnica das DEAMS para
que este atendimento seja encaminhado para os serviços da rede de atendimento: em 19 DEAMS havia sala destinada para as psicólogas, em 14 havia sala
para assistentes sociais e em sete encontrou-se sala para assistência jurídica. Na
maior parte dos casos, o atendimento psicossocial é realizado por voluntários e
estagiários, o que deve também ser adequadamente analisado.
10 As análises para este item tiveram como referência a Norma Técnica de Padronização das DEAMS
(2006 e 2010).
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Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
Prática Promissora de Integração dos Serviços da Rede
Espaços Integrados de Atendimento na 1ª Delegacia de Defesa da Mulher de
São Paulo
A 1ª Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo está instalada na região central da cidade e é a única que atende em regime de plantão 24 horas em todo o
estado. A delegacia funciona em um edifício cedido pelo estado e, embora necessite de reforma e recuperação de sua estrutura, o prédio é espaçoso e comporta em seu interior um Centro de Referência e o Núcleo de Atendimento a
Mulher da Defensoria Pública. No local, as mulheres podem efetuar o registro
da ocorrência policial e serem encaminhadas para o atendimento psicossocial
no Centro de Referência, onde também receberão encaminhamento para outros serviços. No Núcleo da Defensoria o atendimento é realizado por defensores públicos e estagiários e além de receber orientação jurídica, podem dar
andamento às solicitações de ações de alimento, o que evita que as mulheres
tenham que se deslocar à sede da Defensoria ou aos Fóruns Regionais.
Recursos materiais e técnicos11: todas as DEAMs declararam ter recursos técnicos – tais como computadores, impressoras, aparelhos de telefone e fax. No
entanto, nem sempre as quantidades são adequadas ou se encontram em condições de uso: 32,5% das delegadas entrevistadas consideram que a inadequação
desses recursos representa obstáculo para o bom atendimento e desempenho da
atividade policial. Em média, foram localizados 11,4 computadores e 5,8 impressoras por DEAM, com variações significativas entre os estados (por exemplo, no
Distrito Federal foram declarados 32 computadores, todos em uso. Enquanto em
João Pessoa havia dois computadores, dos quais apenas um estava em funcionamento). Além de problemas de manutenção dos equipamentos, as DEAMS também padecem com equipamentos antigos e que não comportam novas tecnologias como a instalação de softwares de sistemas de informações. Em Boa Vista,
a precariedade dos equipamentos é tão grande que o computador é usado como
máquina de escrever para digitação de documentos que, após, são impressos e
arquivados apenas em papel. Neste contexto, o acesso a redes é ainda mais precário: em 33 DEAMs os computadores estão conectados em rede, mas apenas em 29
delas havia ponto de acesso à internet (pontos que nem sempre estão disponíveis
em números suficientes para todas as máquinas). Esta limitação tecnológica favorece ainda mais o isolamento institucional das DEAMS que deixam, por exemplo,
de lançar seus registros nas bases de dados eletrônicas das polícias civis. Com relação às viaturas policiais as condições também são de precariedade: a pesquisa
11 Assim como no item anterior, a Norma Técnica para Padronização das DEAMS foi adotada como
referência.
129
Wânia Pasinato
apurou a existência de três viaturas em média por DEAM, mas muitas estavam
fora de uso ou apresentavam péssimas condições de manutenção.
Recursos Humanos: o número reduzido de recursos humanos foi apontado
como o principal obstáculo para o bom funcionamento das DEAMS, expresso na
opinião de 33 delegadas titulares entrevistadas (83% do total) em todas as regiões do país. A queixa principal refere-se à falta de pessoal para os cartórios (escrivã/os). Segundo se apurou, o tamanho das equipes variou entre sete e 79 funcionários, entre os quais predominam os agentes policiais – responsáveis pelo
atendimento e atividades administrativas. O número de delegadas de polícia
varia na média de três delegadas por DEAM. Quanto à vinculação institucional
dos funcionários, 90% são efetivos das polícias civis, mas há também 4,3% de
terceirizados, 3,5% de temporários e 2,1% que são cedidos de outras secretarias.
Em algumas delegacias, as pesquisadoras puderam perceber que os números
oficiais de funcionários nem sempre correspondiam ao efetivo que se encontrava trabalhando, em virtude de muitos estarem afastados por licença médica
ou para estudo, em férias ou por estarem cedidos para outras delegacias. Outra
queixa refere-se à ausência de equipes multidisciplinares em decorrência do pequeno número de psicólogos e assistentes sociais no quadro da segurança pública. Neste caso, a falta de pessoal efetivo costuma ser suprida por estagiária(o)
s, principalmente na área de psicologia e direito, contratados através de convênios entre as DEAMS e universidades públicas e privadas, sendo que boa parte
deles (40%) são estágios curriculares e não remunerados. O tema merece atenção, pois estes estudantes estão dando atendimento diretamente para as mulheres, sem que se conheça a abordagem que adotam ao falar de direitos, violência
ou a própria legislação. Além disso, muitos deles contam apenas com uma supervisão remota de professores e responsáveis pelos programas de estágio.
Práticas Promissoras para Melhoria da Qualidade de Atendimento
Protocolo de Atendimento no DF
A DEAM do Plano-Piloto é a única delegacia especializada do Distrito Policial.
Para melhorar o atendimento, a delegada titular desenvolveu dois protocolos de atendimento que são aplicados nas ocorrências de violência sexual e
ocorrências de violência doméstica e familiar. Cada protocolo consiste num
conjunto de 16 recomendações a respeito da postura do policial no momento
do atendimento, as informações que devem ser solicitadas à mulher e a forma
como devem ser registradas. Os protocolos também orientam quanto aos documentos necessários para a instauração dos procedimentos policiais, os encaminhamentos que devem ser realizados, de acordo com a Lei Maria da Penha e
a entrega de material informativo sobre violência contra a mulher.
130
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
Capacitação: Algumas entrevistadas também percebem que os problemas relativos a recursos humanos não se limitam a um déficit numérico, sendo necessário
melhorar a qualificação para o trabalho com investimento na formação de profissionais que tenham “perfil” para trabalhar com mulheres em situação de violência.
Mesmo entre as delegadas titulares esta formação se apresenta como problemática:
apenas 12 declaram ter realizado cursos de capacitação depois de 2006. Além disso,
65% das delegadas titulares (26) assumiram o cargo na fase inicial de implementação da Lei Maria da Penha ou depois, sem noticiar experiência prévia no atendimento a mulheres em situação de violência. Não existem informações sistematizadas a respeito da formação dos demais profissionais destas equipes. As próprias
delegadas demonstraram desconhecer o perfil dos profissionais com os quais trabalham cotidianamente. Algumas entrevistadas se limitaram a informar o número
de policiais e sua distribuição por cargo (investigadores, escrivã(o)s), mas de modo
geral nada sabem a respeito de escolaridade ou especialização para o trabalho que
realizam. Algumas também afirmaram assumir esta atividade de treinamento da
equipe, embora não existam experiências documentadas dessas iniciativas.
A falta de sistematização sobre essas informações sugere que elas não são
usadas para definir a composição das equipes e, tampouco, como estímulo para o
aprimoramento do atendimento. Apesar das iniciativas da SENASP e da Secretaria de Políticas para Mulheres para a inclusão de temáticas de gênero e violência
nos currículos de formação policial, nos cursos de especialização e capacitação,
e de grande inversão de recursos financeiros que já foi realizada, não existem
avaliações que permitam conhecer a assimilação desses conteúdos, sua aplicação
nas práticas institucionais e o impacto que produzem para o atendimento das
mulheres. A realidade de atendimento nas DEAMS sugere, ao contrário, que o
atendimento se baseia no senso comum que não reconhece a violência contra a
mulher como violação de direitos humanos e não percebe os desafios que são
enfrentados pelas mulheres para sair da situação de violência, persistindo uma
distância muito grande entre os conteúdos programáticos e a prática policial.
Práticas Promissoras para a Capacitação de Policiais
Cursos de capacitação organizados pela Coordenadoria Estadual de Políticas para
Mulheres do Mato Grosso do Sul
Em Campo Grande (MS) não existe um órgão de coordenação das DEAMS, mas
a Coordenadoria Estadual da Mulher , organismo governamental de políticas
para mulheres, tem atuado para aprimorar a atuação dos policiais de todas as
delegacias na aplicação da Lei Maria da Penha. Em uma de suas iniciativas,
realizou capacitação de policiais de distritos policiais que dão atendimento às
mulheres nos períodos noturno e nos finais de semana. Além de contribuir
para a transversalização de gênero nas políticas de segurança, a Coordenadoria promove uma maior integração entre DEAMS e políticas de governo.
131
Wânia Pasinato
Sistemas de Informações: a pesquisa encontrou enorme deficiência na sistematização de dados e produção de estatísticas nas DEAMS. Embora não seja um
problema específico destas delegacias especializadas, a falta de informações sistematizadas e disponíveis nestas delegacias chamou a atenção por pelo menos
três aspectos.12 Primeiro, pela aparente despreocupação em conhecer mais detalhes sobre as ocorrências registradas, de modo a aprimorar os registros policiais e os atendimentos que são realizados13. Um segundo aspecto refere-se à
despreocupação com a prestação de contas para a sociedade, uma vez que essas
informações deveriam ser públicas e divulgadas periodicamente. Terceiro, pela
baixa percepção das delegadas sobre a importância estratégica que estas informações podem ter para fundamentar suas solicitações por melhoria de recursos
materiais, técnicos e de pessoal. Numa perspectiva mais ampla, a ausência de informações sistematizadas, confiáveis e públicas impede as atividades de monitoramento do desenvolvimento de políticas públicas. No caso das DEAMS, limita
as avaliações sobre o desempenho das atividades policiais e sobre o impacto que
a aplicação da Lei Maria da Penha vem tendo para a vida das mulheres, seja esse
impacto positivo ou negativo. Além de conhecer a existência de sistemas de informação, outro objetivo da pesquisa era obter dados sobre os números de inquéritos instaurados distribuídos por tipo de crime, bem como o número de medidas
protetivas solicitadas. Os números obtidos foram parciais no tempo e no espaço,
fragmentados na sua forma de registro e diversos quanto às fontes que precisaram ser consultadas, gerando um conjunto de dados que, muitas vezes, não
permitem afirmações sobre sua representatividade nacional ou sua comparação.
Prática Promissora de Divulgação de Dados sobre Violência Contra a Mulher
Dossiê Mulher – Sistematização de Dados Policiais
O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro publica
anualmente o Dossiê Mulher, no qual se encontram dados sistematizados a respeito dos registros policiais sobre violência contra a mulher de todas as delegacias
de polícia do estado. O documento permite acompanhar os registros de violência
contra a mulher com dados desagregados por sexo do agressor, idade, raça/cor e
12 Dizer que não existem informações sistematizadas não significa que as DEAMs não contabilizem o
movimento de registros policiais. No entanto, esta contabilidade é feita apenas para fins de prestação
de contas sobre as atividades realizadas, que são enviadas para as delegacias gerais ou secretarias de
segurança pública, para fins de correição institucional. Algumas delegacias também informaram que
enviam os dados para a SENASP. Não há qualquer supervisão sobre o trabalho realizado, e esta atividade (que consiste em preenchimento de formulários digitais ou em papel), que deve ser realizada
por um funcionário qualificado para a função (como a escrivã-chefe) é, às vezes, deixada a cargo de
estagiários ou funcionários terceirizados que estejam mais disponíveis para o trabalho.
13 Algumas delegadas, mais engajadas com o tema da violência contra a mulher, mantêm sistemas de
registros particulares contendo algumas informações sobre as ocorrências registradas. A finalidade é
usar estes registros como ilustração nas palestras que realizam.
132
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
estado civil das vítimas, além de trazer análises comparativas segundo a natureza
dos crimes. Os crimes enquadrados na Lei Maria da Penha possuem categorias específicas, o que permite conhecer o impacto da Lei Maria da Penha no movimento
de denúncias realizadas pelas mulheres. Esta compilação de dados é possível porque as delegacias são interligadas pelo sistema de Delegacia Legal e todos os registros policiais do estado estão lançados numa base única e integrada de dados14.
Articulação com os serviços especializados de atendimento às mulheres: a aplicação
integral da Lei Maria da Penha demanda intervenções intersetoriais, com atenção
na área de saúde, assistência social, psicológica, jurídica, médica e judicial, além
de acesso a direitos relacionados a trabalho, educação, habitação, entre outros.
Para tanto, a própria legislação alerta para o comprometimento dos diversos setores públicos para a oferta desses serviços. Sinaliza também para sua articulação
em rede, para que o atendimento à mulher se dê de forma integral. A despeito
do aumento no número de serviços especializados e dos avanços para a articulação entre os serviços, a pesquisa apurou que as delegadas possuem um conhecimento limitado sobre os serviços que podem ser acionados e sobre sua existência nas capitais incluídas no estudo. De modo geral, as entrevistadas avaliaram
como positiva a articulação com os serviços que dão atendimento psicossocial
para as mulheres – como os centros de referência, as casas abrigo e os serviços de
atendimento para vítimas de violência sexual – e, também, com os Juizados de
Violência Doméstica e Familiar, onde esses serviços existem. Apurou-se também
que pouco menos da metade das DEAMS (42,5%) mantém um cadastro atualizado com endereço de serviços para onde as mulheres podem ser encaminhadas,
o que seguramente reflete também esta dificuldade de articulação.
Prática Promissora de Divulgação de Serviços da Rede de Atendimento à Mulher
Guia de Defesa, Orientação e Informação sobre Violência Contra a Mulher
Desde 2005, a CEPIA – Centro de Estudos, Pesquisa, Informação e Ação –,
uma organização não governamental feminista, com sede na cidade do Rio
de Janeiro, edita um Guia de Serviços de atendimento a mulheres em situação
de violência. Além de endereços e telefones de serviços de todo o estado do
Rio de Janeiro, o guia também traz informações sobre o tipo de atendimento
oferecido por cada serviço e uma cartilha com informações sobre as características da violência contra a mulher e o que as mulheres podem fazer nessas
situações. Em 2010, o Guia chegou à sua 7ª edição, revisada e atualizada, e é
apresentado em versão impressa.
14 Dossiê Mulher 2010 encontra-se disponível para download no sítio eletrônico do Instituto de Segurança
Pública do Rio de Janeiro: http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/DossieMulher 2010.pdf
133
Wânia Pasinato
2.2 Os Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher
Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar são instâncias especializadas na aplicação da Lei Maria da Penha, cuja criação é uma recomendação da
própria legislação visando à elaboração de condições para que as medidas de
punição, proteção, assistência e prevenção possam ser aplicadas integralmente.
A criação destes Juizados é atribuição dos Tribunais de Justiça Estaduais e
do Distrito Federal. Na maioria dos estados, o que se encontra são varas criminais adaptadas e Juizados Especiais Criminais que acumulam a aplicação da Lei
Maria da Penha. De acordo com o balanço recentemente divulgado pelo CNJ,
em 12 estados existe apenas um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, instalado nas capitais.15 Esta falta de compromisso dos Tribunais
de Justiça tem provocado grandes limitações para que as mulheres em situação
de violência doméstica e familiar tenham acesso a seus direitos, especialmente
nas comarcas localizadas no interior dos estados onde as varas atuam de forma
ainda mais isolada, pela ausência de outros serviços especializados aos quais as
mulheres possam recorrer.
Nesta pesquisa foram selecionados apenas aqueles Juizados que funcionam exclusivamente para a aplicação da Lei Maria da Penha e foram criados
com essa finalidade. No total foram identificados 26 Juizados que preenchiam
esse critério, localizados em 19 capitais16.
Da mesma forma como altera os papéis das polícias no enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha também
prevê novas atribuições para os Juizados, que deverão ter uma atuação que difere da aplicação tradicional da justiça criminal – que se limita à apreciação das
responsabilidades criminais e distribuição de penas – para operar em consonância com as convenções internacionais de proteção dos direitos da mulher
(CEDAW e Convenção de Belém do Pará), com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher e o Pacto Nacional de Enfrentamento à
Violência contra a Mulher, que enfatizam a adoção de medidas para enfrentar a
violência contra a mulher em seus efeitos diretos e indiretos contra a autonomia
das mulheres e o exercício de seus direitos.
Para cumprir com este papel, os Juizados devem contemplar a dupla competência que é dada ao magistrado para atuar nas causas cíveis e criminais relacionadas à ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher; dispor
15 Ainda de acordo com o mesmo balanço, os estados da Paraíba, Rondônia e Sergipe ainda não criaram nenhum Juizado Especializado. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/campanhas/mariapenha/ apresentacoes/apresentacao_v_jornada_versao_i.pdf
16 Na época em que a pesquisa foi realizada, os estados que não possuíam Juizados de Violência
Doméstica e Familiar eram Rondônia e Santa Catarina (que tiveram Juizados criados em agosto de
2010), Paraíba, Roraima, Piauí e Sergipe.
134
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
de equipe multidisciplinar com profissionais de psicologia e serviço social, para
assessorar os magistrados em suas decisões, dar encaminhamento para as medidas de assistência e promover a articulação entre os Juizados e a rede de serviços
especializados. Os trabalhos do Juizado devem, ainda, ser assessorados por Núcleos Especializados da Defensoria Pública, que deverão assegurar a presença
de defensores para acompanhar as vítimas em todos os atos processuais, além
de garantir defensores públicos para acompanhamento dos réus nos processos
criminais. Ao Ministério Público a lei também recomenda que sejam criadas Promotorias Especializadas que atuem exclusivamente nos Juizados, como órgão
auxiliar nas solicitações de medidas protetivas, na titularidade das ações criminais incondicionadas, entre outras atribuições.
A seguir são apresentados os resultados da pesquisa para os itens que tratam das atribuições legais dos Juizados, os recursos humanos e capacitação, as
equipes multidisciplinares, as Promotorias Especializadas e os Núcleos da Defensoria Pública.
Atribuições legais: Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar possuem
competência para a apreciação e julgamento de todos os crimes enquadrados na
Lei Maria da Penha. Na maior parte dos Juizados, os homicídios tentados e consumados estão excluídos deste rol por serem de competência exclusiva dos Tribunais do Júri. Além da apreciação de matéria penal, a dupla competência dada
aos magistrados nestes Juizados compreende também a apreciação de matéria
cível, solicitada através das medidas protetivas. Ao preservar a conexão entre
os litígios, quis o legislador permitir que o mesmo juiz que julga os pedidos de
separação conjugal, ação de alimentos, afastamento do agressor do lar – entre
outras medidas protetivas – possa levar este conhecimento em consideração na
apreciação das práticas violentas relacionadas a estes conflitos familiares, e que
ensejaram os processos criminais. Conforme se apurou na pesquisa, esta dupla
competência não está sendo exercida de maneira consensual pelos juízes. Em 10
Juizados a atuação nos processos cíveis tem se limitado às medidas cautelares,
aplicadas no âmbito das medidas protetivas, que contemplam as ações provisórias de alimentos, de guarda de filhos, além do afastamento do agressor da residência e a proibição de aproximação e contato. Essas medidas são deferidas com
prazo de validade, após o qual as ações principais devem ser encaminhadas nas
Varas de Família e/ou Varas Cíveis. Este entendimento encontra respaldo nas
resoluções do FONAVID – Fórum Nacional de Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher – e também nos posicionamentos do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito da Família. O argumento principal desses posicionamentos refere-se ao caráter especializado das matérias de família, especialmente
por envolver os filhos do casal e seus direitos.
135
Wânia Pasinato
Esse tema precisa de melhor reflexão. A competência dada ao magistrado
para julgar todas as ações relacionadas com a violência contra a mulher tinha
como propósito assegurar o acesso das mulheres à justiça de forma mais rápida e menos onerosa. Além disso, a não padronização de procedimentos fere
o princípio da universalização do acesso à justiça, criando oportunidades diferentes para grupos de mulheres que enfrentam situações semelhantes de
desrespeito a seus direitos. Por fim, ainda que as Varas de Família sejam especializadas para o tratamento de questões relacionadas à guarda de filhos e
à separação conjugal, não é incomum que os problemas sejam reduzidos ao
pagamento da pensão alimentícia, tratado como uma disputa em torno de valores monetários e que é resolvida em setores de conciliação, por voluntários
e pessoas sem qualquer preparo para reconhecer a violência que está por trás
desses conflitos (Perrone, 2010).
Prática Promissora na definição das atribuições dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar de Belém do Pará
Em Belém do Pará, os dois Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher foram criados por lei estadual que também modificou a Organização Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Os dois Juizados
possuem competência para julgar todas as causas cíveis e de família, crimes e
contravenções, desde que praticados contra a mulher, em contexto doméstico
e familiar – segundo definição da Lei Maria da Penha –, incluindo os crimes
de homicídio consumado e tentado. Esta abrangência foi possível porque a
alteração na Organização Judiciária permitiu a criação de mais um Tribunal
do Júri vinculado ao Juizado. Esses são os únicos juizados em todo o país com
competência tão ampla.
Recursos humanos: Uma das principais queixas apresentadas pelos entrevistados quanto às condições de funcionamento dos Juizados refere-se à falta
de recursos humanos. Para 12 entrevistados, as equipes disponibilizadas pelos
Tribunais de Justiça não são compatíveis com o número crescente de processos
que tramitam nesses Juizados. As queixas referem-se à falta de pessoal de cartório, ao pequeno número de juízes, à ausência de equipe multidisciplinar e, também, à falta de uma equipe de oficiais de Justiça que atue exclusivamente junto
ao Juizado, para dar vazão ao grande número de mandados que são expedidos
no deferimento das medidas protetivas, e naqueles que são necessários para o
andamento dos processos criminais. Problemas com oficiais de Justiça foram
136
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
referidos por vários entrevistados, inclusive porque provocam atraso no cumprimento das medidas em desrespeito a seu caráter de urgência e acabam afetando também a dinâmica de funcionamento de outros serviços, como as casas
abrigo, onde muitas mulheres aguardam as medidas protetivas para dar andamento ao processo de desabrigamento (Pasinato 2010ª e 2010b, Observe, 2011).
Com relação ao conjunto das equipes que atuam nos cartórios dos Juizados, da
mesma forma como ocorreu nas DEAMS, as tentativas de obter informações detalhadas sobre seu tamanho, composição e sobre o perfil dos servidores, não
foram bem-sucedidas em decorrência da ausência de informações sistematizadas e públicas sobre quem são estes profissionais. O que se sabe é que a designação dos servidores segue critérios meramente burocráticos com preenchimento
de vagas por concurso público, sem que seja necessária qualquer formação especializada sobre a violência doméstica e familiar. Após ingressarem nas carreiras
judiciárias, os servidores passam por treinamento a respeito da administração
judiciária, técnicas e gestão de atividades cartoriais, as quais, por sua vez, não
envolvem nenhuma informação sobre as especificidades dos procedimentos da
Lei Maria da Penha.
Equipe multidisciplinar: a presença de equipes multidisciplinares atuando
exclusivamente nos Juizados é um elemento definidor da especialização destas
instâncias. A composição destas equipes está definida no artigo 29 da Lei Maria
da Penha, que também define suas atribuições e estabelece a obrigatoriedade dos
Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal para prover a sua contratação. A composição das equipes está também amparada em resolução do CNJ
e nos Enunciados do I FONAVID, que se dedicaram a estabelecer as atividades
que deverão ser realizadas por essas equipes, entre as quais estão: a elaboração
de pareceres técnicos para os juízes, encaminhamento da mulher para serviços
especializados de acordo com as medidas de assistência aplicadas, representação
dos Juizados na articulação com os demais serviços especializados, favorecendo
a integração dos serviços e a aplicação das medidas protetivas e de assistência.
Entre os Juizados pesquisados, apenas 18 contavam com equipe multidisciplinar atuando exclusivamente nessa instância. Para três entrevistados, a ausência
dessas equipes é reconhecida como um obstáculo para a aplicação da Lei Maria
da Penha, limitando os encaminhamentos que poderiam ser realizados para as
mulheres. Em alguns Juizados, as equipes funcionam precariamente, com poucos profissionais, às vezes apenas com atendimento psicológico ou apenas de
serviço social. Além disso, nem todos os Tribunais de Justiça disponibilizaram
profissionais de seus quadros para compor as equipes, o que leva eles serem
contratados de forma temporária, fazendo com que o fornecimento do atendimento se dê de maneira descontínua e precariamente organizada.
137
Wânia Pasinato
Prática Promissora de Articulação de Equipes Multidisciplinares
Convênio entre o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e a Coordenadoria Estadual de Políticas para Mulheres de Minas Gerais (CEPAM)
Em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça e a Coordenadoria Estadual de Políticas para Mulheres (CEPAM) celebraram convênio para a composição da
Equipe Multidisciplinar que atende junto às duas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher existentes na capital: o Tribunal de Justiça
cedeu duas assistentes sociais e a CEPAM cedeu a equipe de psicólogos que
atendem no Centro de Referência Risoleta Neves, sob sua coordenação. Desse
modo, tornou-se possível dar maior agilidade e qualidade aos pareceres técnicos e encaminhamentos para as mulheres.
Promotorias Especializadas: A Lei Maria da Penha também ampliou as atribuições do Ministério Público, que deverá atuar nas causas cíveis (das medidas
protetivas) e criminais, além de atuar como órgão fiscalizador dos serviços de
atendimento a mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Caberá
também ao Ministério Público a estruturação e manutenção de um cadastro integrado de ocorrências de violência doméstica e familiar contra a mulher. Com
tantas novidades, tem sido estimulado que os Ministérios Públicos Estaduais e
do Distrito Federal criem Promotorias Especializadas para atuar exclusivamente
junto aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar e que desenvolvam também os Núcleos de Direitos da Mulher, que poderão assumir as atribuições de
fiscalização e gestão do cadastro de informações, além de contribuir para a padronização de procedimentos na aplicação da Lei Maria da Penha nas promotorias especializadas e naquelas que atuam nas comarcas do interior, nas Varas
Criminais adaptadas. Nas 19 capitais pesquisadas, foram identificadas 10 Promotorias Especializadas, com competência exclusiva para trabalhar nos Juizados. Em geral, cada promotoria é composta por apenas um promotor de Justiça e
estagiários, atuando em apenas um Juizado. As demais capitais, onde não foram
criadas essas instâncias especializadas, o promotor de Justiça designado para o
Juizado também acumula o trabalho em outras Varas ou Juizados não especializados em violência doméstica e familiar. Há também casos em que o promotor
atua em diferentes comarcas. Foram também identificados apenas dois Núcleos
de Gênero: no Distrito Federal e em Salvador. Nas outras capitais, as Promotorias Especializadas estão acumulando todas as atividades, fazendo com que
algumas vezes as pautas de audiências acabem prejudicadas pela sobrecarga de
trabalho e pelo pequeno número de profissionais.
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Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
Prática Promissora do Ministério Público
Grupo Especializado de Direitos da Mulher/GEDEM e a Promotoria Especializada de
Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público da Bahia
Em 2006, atendendo a uma reivindicação do movimento de mulheres local, o
Ministério Público da Bahia criou o Grupo Especializado de Direitos da Mulher/GEDEM com a atribuição de promover ações de transversalização de gênero nas políticas da instituição, fiscalizar as ações das demais promotorias em
matérias que envolvam direitos da mulher, representar o Ministério Público
no Grupo de Trabalho da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher
e dar orientação à Promotoria Especializada e demais promotorias do interior
que atuem na aplicação da Lei Maria da Penha. Em 2008, com a instalação da
Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, foi criada também
a Promotoria Especializada que atua exclusivamente junto à Vara na capital,
com equipe própria formada por uma promotora de Justiça e estagiários.
Núcleos da Defensoria Pública: a grande mudança introduzida pela Lei Maria
da Penha na política de assistência judiciária é a exigência para que as mulheres
sejam acompanhadas por defensor em todos os atos processuais, sejam cíveis ou
criminais, relacionados à sua denúncia de violência, conforme definido no artigo
27 da Lei Maria da Penha. A medida visa a garantir que as mulheres tenham
orientação e acesso a informações consideradas essenciais à sua proteção e a garantia de seus direitos. Para assegurar este atendimento, tem sido recomendado
que as Defensorias Públicas criem Núcleos de Atendimento à Mulher que atuem
exclusivamente nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, garantindo que
as mulheres tenham acesso à assistência judiciária gratuita e integral. Existem
Núcleos de Atendimento à Mulher em 15 capitais, mas a maior parte limita sua
intervenção às ações cíveis e de família e nem sempre atendem exclusivamente
casos relacionados à violência doméstica e familiar. Apenas em dez Juizados
foram identificados defensoras públicas que atuam exclusivamente junto aos
Juizados e acompanham as mulheres nos pedidos de medidas protetivas, nas
audiências previstas no artigo 16 da Lei Maria da Penha (nos casos de retratação
da representação criminal) e nas audiências de instrução nos processos criminais. Uma justificativa para a limitação destas intervenções é o pequeno número
de defensores públicos existentes na maior parte das capitais. Mas aparentemente, há também um obstáculo na forma como os defensores entendem seu
papel nos processos criminais. Tradicionalmente, a defesa atua nos processos
criminais em favor dos réus, uma vez que os interesses das vítimas estão representados pelo Ministério Público. Dessa maneira, entendem que a presença
139
Wânia Pasinato
do defensor público representando as vítimas nas audiências criminais criaria
uma desigualdade jurídica que poderia ser prejudicial ao réu. Entende-se que
esta medida prevista pela lei está sendo interpretada sob uma ótica limitada e
tradicional de acesso à justiça, uma vez que o acompanhamento das mulheres
por defensores deve assegurar que tenham acesso a informações e orientações a
respeito dos atos processuais e das decisões que estão sendo tomadas, sem que
necessariamente os defensores tenham que atuar como assistentes de acusação
em todos os processos, com intervenções formalizadas em peças processuais.
Assim como outras ‘novidades’ que foram trazidas pela legislação, alterando as atribuições dos operadores do direito, este papel da Defensoria Pública
(e que se estende aos defensores constituídos) deve ser analisado cuidadosamente e melhor compreendido em busca de soluções que permitam o exercício
desse direito pelas mulheres. De qualquer maneira, independentemente dos limites que as Defensorias têm apresentado no atendimento oferecido às mulheres, em algumas capitais foi possível perceber que a assistência judiciária gratuita para os réus também é precária, o que demanda uma reformulação mais
abrangente das políticas de Defensoria Pública nos estados e no Distrito Federal.
3. Considerações Finais
A proposta inicialmente apresentada para este artigo consistia em discorrer
a respeito de experiências bem-sucedidas na aplicação da Lei Maria da Penha,
considerando suas diferentes esferas de intervenção e os vários atores envolvidos. A execução da tarefa poderia ser relativamente fácil, buscando em pesquisas recentes alguns exemplos daqui e dali, para descrever seu conteúdo e
mostrá-los como iniciativas promissoras, posto que tudo seja ainda muito novo,
sendo difícil conhecer resultados e medir seu impacto sobre a redução da violência que aflige as mulheres em ambiente doméstico e nas relações familiares.
Uma proposta relativamente simples, não fossem os obstáculos, desvios e
atalhos que se tem identificado na aplicação da lei. Entre eles, destaca-se a dificuldade em se avaliar o sucesso ou a promessa de uma iniciativa, num contexto
em que a produção e sistematização de informações não são priorizadas e limitam qualquer avaliação sobre o alcance dos resultados que são propostos. Diante
desta realidade, a proposta inicial foi redefinida para que se pudesse apresentar
alguns resultados da primeira pesquisa nacional a respeito das condições de
funcionamento das DEAMS e dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, em funcionamento nas capitais e no Distrito Federal.
O cotidiano de funcionamento das DEAMS e Juizados revelam contextos
institucionais de grande precariedade e muitos limites para enfrentar os desafios
que são colocados por uma legislação nova, complexa e avançada como a Lei
Maria da Penha. Apesar do pessimismo que alguns relatos e contextos acabam
140
Avanços e obstáculos na implementaçào da Lei 11.340/2008
por inspirar, não se pode concluir que haja um fracasso generalizado destas instâncias na aplicação da lei e, consequentemente, na redução da violência contra
as mulheres na sociedade. Ao contrário, os dados devem ser tomados como um
convite para novas reflexões e debates em busca de alternativas para melhorar o
funcionamento das políticas públicas envolvidas com a aplicação dos dispositivos da Lei Maria da Penha e o atendimento de mulheres em situação de violência.
As práticas de monitoramento e avaliação de políticas públicas ainda constituem novidade no país. A inexistência de séries históricas de dados, aliada a
culturas institucionais de não valorização da produção de informações, da transparência dos atos institucionais e uso de recursos públicos, e avessas ao controle
social, fazem com que as iniciativas de monitoramento tornem-se, elas próprias,
limitadas no tempo e no espaço. A criação de um Observatório para monitorar
e avaliar a implementação da Lei Maria da Penha vem como proposta para alterar esse cenário nas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as
mulheres. Os desafios até aqui enfrentados e os resultados alcançados reforçam
a necessidade de dar continuidade a esta iniciativa, usando os resultados das
pesquisas como instrumento de diálogo com os profissionais, gestores e formuladores de políticas públicas, na busca de parcerias que tornem a aplicação da lei
realmente integral, contribuindo para a construção de relações de respeito entre
homens e mulheres e igualdade no exercício dos direitos da cidadania.
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Tensões atuais entre a criminologia feminista
e a criminologia crítica: a experiência brasileira
Carmen Hein de Campos
Salo de Carvalho
1. Introdução: A Lei Maria da Penha como Referencial
Normativo do e para o Movimento Feminista
Desde a década de 70, o movimento feminista brasileiro vem lutando para
obter reformas políticas e jurídicas no tratamento da violência doméstica. Neste
período, várias estratégias foram utilizadas pelas feministas e vários avanços na
esfera da justiça criminal foram alcançados com o estabelecimento de políticas
públicas específicas.
Nesses quarenta anos de luta, importantes progressos podem ser percebidos. Dentre os mais significativos, é possível citar (a) a criação de Delegacias
Especializadas no Atendimento a Mulheres (DEAMs) e sua incorporação como
política pública; (b) a reforma da legislação com a inclusão da violência doméstica como circunstância agravante ou qualificadora de crimes, sobretudo nos de
lesão corporal; e consequentemente (c) a mudança na interpretação doutrinária
e jurisprudencial dos crimes praticados com violência doméstica; (d) a alteração
na interpretação doutrinária e jurisprudencial da tese da legítima defesa da honra
nos crimes de adultério; (e) a revogação de inúmeros tipos penais discriminatórios, como os crimes de atentado violento ao pudor, de atentado violento ao
pudor mediante fraude, de sedução, de rapto violento ou mediante fraude e
de rapto consensual, inclusive a revogação do próprio delito de adultério; (f) a
modificação na redação do crime de estupro, englobando a anterior tipicidade
do atentado violento ao pudor; (g) a revogação do dispositivo que permitia a extinção da punibilidade com o casamento da vítima com seu ofensor nos crimes
sexuais. Por outro lado, (h) a definição de inúmeras medidas protetivas, como o
afastamento do cônjuge violento do lar, colaborou para fomentar uma nova cultura jurídica no que diz respeito à violência contra mulheres e meninas no Brasil.
A trajetória de lutas, porém, foi consolidada com a publicação, em 2006, da
Lei Maria da Penha. Fruto do esforço do movimento de mulheres brasileiro no
sentido de sistematizar em um estatuto único as conquistas históricas do feminismo, a Lei 11.340/06 cria novas situações jurídicas que impõem mudanças de
143
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
rumo no campo jurídico. Tais alterações enfrentam inúmeras e notórias resistências pelo atores da cena jurídica, sobretudo por serem os espaços das justiça,
notadamente aqueles que entrecruzam direito de família e direito penal, no mínimo conservadores – para não afirmar genericamente serem efetivamente regidos por uma racionalidade androcêntrica e sexista.
A Lei Maria da Penha, portanto, define verdadeira mudança conceitual e
operacional no entendimento do tratamento das violências contra mulheres no
Brasil, motivo pelo qual são injustificáveis omissões e ausências no enfrentamento
destes problemas latentes, sejam na esfera do direito material, do direito processual e, no que diz respeito a esse trabalho, da criminologia e da política criminal.
2. Principais Inovações Trazidas pela Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha é considerada pelas Nações Unidas um exemplo de
legislação efetiva para o tratamento da violência doméstica contra mulheres.
Dentre inúmeros motivos, o acolhimento no corpo da Lei dos tratados internacionais de direitos humanos das mulheres, a conceituação da violência contra
mulheres com o uma violência de gênero e a perspectiva de tratamento integral.
A integralidade no tratamento da violência doméstica prevista na Lei Maria
da Penha diz respeito à aliança entre as medidas assistenciais, as de prevenção e
as de contenção da violência, além do vínculo da esfera jurídica com os serviços
de assistência em rede.
Diferentemente da expectativa tradicional dos atores do campo jurídicopenal, a Lei 11.340/06 estabelece um catálogo extenso de medidas de natureza
extra-penal que amplia a tutela para o problema da violência contra mulheres
e, ao mesmo tempo, transcende os limitados horizontes estabelecidos pela dogmática jurídica. Dentre as medidas destacam-se (a) os programas de longo prazo
como planejamento das políticas públicas, promoção de pesquisas e estatísticas,
controle da publicidade sexista; (b) as medidas emergenciais como a criação de
cadastro de programas assistenciais governamentais nos quais as mulheres em
situação de violência doméstica tenham prioridade de assistência, sobretudo
quando há risco à sua integridade física e psicológica, e a previsão de remoção
ou de afastamento do trabalho de forma prioritária quando a servidora pública
é vítima ou sua integridade física e psíquica encontra-se em risco; e (c) as medidas de proteção ou contenção da violência como criação de programas de atendimento ou proteção, fornecimento de assistência judiciária gratuita, possibilidade de atendimento por equipe multidisciplinar (CAMPOS, 2008).
Desta forma, o estatuto se desvincula daquele campo nominado exclusivamente como penal e cria um sistema jurídico autônomo que deve ser regido
por regras próprias de interpretação, de aplicação e de execução da Lei. Guias
interpretativas que, necessariamente, devem seguir os instrumentos normativos
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Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
internacionais que consolidaram os direitos das mulheres. Conforme previsto,
“na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e
familiar” (art. 4º, Lei 11.340/06).
A combinação das medidas de natureza penal e extrapenal estabelece, portanto, uma nova proposta de política para as mulheres. Política que ultrapassa
o terreno estrito da política criminal. Assim, no campo das políticas criminais e
extrapenais, inúmeras inovações podem ser destacadas.
(a) Limitação da tutela penal para as mulheres. Ao criar “mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, a Lei definiu formas
de tutela penal exclusiva para as mulheres vítimas de violência. A exclusão da
possibilidade de proteção aos homens causou, inclusive, inúmeras reações, sob
o argumento de que a Lei 11.340/06 seria inconstitucional em razão da violação
do princípio constitucional da igualdade. No entanto trata-se de tese argumentativamente débil, que tende a ser refutada pelos Tribunais Superiores, em razão
de ser comum na experiência legislativa nacional pós-Constituição de 1988 a incorporação de instrumentos normativos que podem ser considerados como de
efetivação positiva da igualdade material, ainda que impliquem, aparentemente
em desigualdade formal (p. ex. Estatuto do Idoso e Estatuto da Criança e do
Adolescente, no que tange ao fator etário, e Lei que define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor, no que diz respeito à questão racial e étnica).
(b) Criação normativa da categoria ‘violência de gênero’. A Lei Maria da
Penha, seguindo as orientações das normativas internacionais e sobretudo em
conformidade com o disposto na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), conceituou normativamente violência de gênero. A conceituação é significativa pois
rompe com a tradição jurídica de incorporação genérica da violência de gênero
nos tipos penais incriminadores tradicionais. A nova conceituação define essa
violência como violação dos direitos humanos das mulheres e dispõe sobre as
suas formas (artigos 5º, 6º e 7º1). A Lei 11.340/06 não cria, porém, novos tipos pe1
“Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física,
entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica,
entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir
ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual,
entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não
desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que
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Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
nais incriminadores da violência de gênero, mas exemplifica diversas situações
que caracterizam essa violência e estabelece a condição de violência doméstica
como circunstância de agravamento ou qualificação das penas nos crimes específicos2.
(c) Redefinição da expressão ‘vítima’. Questão relevante que parece despercebida na literatura jurídica sobre a Lei Maria da Penha é a da intencional
mudança provocada pela expressão ‘mulheres em situação de violência doméstica’ em contraposição ao termo ‘vítimas’ de violência . A mudança operada pela
Lei (de vítima de violência para mulheres em situação de violência) é mais do
que um mero recurso linguístico e tem por objetivo retirar o estigma contido na
categoria ‘vítima’. Aliás o termo indica a verdadeira complexidade da situação
de violência doméstica, para além dos preceitos classificatórios e dicotômicos do
direito penal ortodoxo (p. ex., sujeito ativo e passivo, autor e vítima). A expressão
‘mulheres vítimas de violência’ foi muito utilizada pelo feminismo na década de
1980 e, de certo modo, seu uso aconteceu de forma acrítica. O próprio feminismo
revisitou esta questão e percebeu que esta forma de adjetivação colocaria as mulheres na posição de ‘objeto’ da violência, sem autonomia (ou com autonomia reduzida) e no lugar de um não-sujeito de direitos. A crítica fez, inclusive, com que
algumas feministas americanas utilizassem o termo ‘mulheres sobreviventes da
violência doméstica’ (HOFF, 1990; HAGUE & MULLENDER: 2005). No entanto
essa categoria não ganhou muitas adeptas no Brasil3. A expressão ‘mulheres em
situação de violência’ foi igualmente contestada por autores que justificam que
o termo remeteria ao do ‘menor em situação irregular’, circunstância que indicaria a mulher como um sujeito deficitário em sua capaciadade jurídica. No entanto, superando as crítica, a expressão ‘mulheres em situação de violência’ foi
consolidada e indica a recuperação da condição de sujeito. Ao mesmo tempo, a
expressão permite perceber o caráter transitório desta condição, fato que projeta
o objetivo da Lei, que é a superação da situação momentânea de violência em
que vivem estas mulheres.
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como
qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria.”
2
Neste sentido, exemplar a inclusão, pela Lei Maria da Penha, do parágrafo 9º no art. 129 do Código
Penal, que trata da lesão corporal: “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge
ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)”. Além disso as
inclusões do inciso IV no art. 313 e da alínea f no inciso II do art. 61, ambos do Código Penal.
3
Suely de Almeida utiliza a expressão em seu livro Femicídio (1997).
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Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
(d) Exclusão dos atos de violência doméstica do rol dos crimes considerados de menor potencial ofensivo. Até o advento da Lei Maria da Penha, os
crimes de lesão corporal de natureza leve e de ameaça, os mais recorrentes nos
casos de violência doméstica (como será demonstrado), por força da categorização realizada pela Lei 9.099/95, eram enquadrados no conceito de infração de
menor potencial ofensivo. A Lei 9.099/95, conhecida como Lei dos Juizados Especiais, regulamentou comando constitucional (art. 98, inciso I, Constituição) que
determinava a criação de varas especiais para processamento e julgamento célere
de demandas de menor gravidade, no âmbito civil e penal. No que tange à jurisdição criminal, seguindo a linha despenalizadora, a referida Lei criou institutos
diversificacionistas que possibilitam ao autor do fato submeter-se a determinadas condições para não responder ao processo penal – os institutos criados são a
composição civil, a transação penal e, para delitos de ‘médio potencial ofensivo’,
a suspensão condicional do processo. Neste sentido, fato que foi muito criticado
pelo movimento feminista, o agressor poderia aceitar a transação penal – como
instituto despenalizador é voltado para o acusado, constituindo-se direito público subjetivo – e, durante período determinado pelo juiz, cumprir determinadas exigências como, p. ex., comunicar ausência da Comarca por mais de 30 dias,
comunicar mudança de residência, indenizar a vítima ou realizar prestações ou
serviços comunitários. Ao fim do período, se cumpridos os requisitos, é operada
a extinção da punibilidade. A Lei Maria da Penha proibiu expressamente a incidência da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica4, sobretudo em face da
crítica feminista à universalização da aplicação de prestações comunitárias (contribuições financeiras à entidades filantrópicas, conhecidas vulgarmente como
“penas de cestas básicas”) como resposta judicial às violências praticadas contra
mulheres. Situação que foi projetada igualmente para as modalidades de sanção
previstas na Lei5. Ademais, diferentemente do que acontecia na vigência da Lei
9.099/95, houve a limitação das possibilidade de renúncia à representação nos
crimes de lesão corporal de natureza leve6. Outrossim, a não-incidência da Lei
dos Juizados Especiais Criminais operou importante mudança nos códigos de
interpretação, pois, para além das questões simbólicas, a exclusão da adjetivação da violência doméstica como infração de menor potencial ofensivo permitiu
compreender estas formas de agressão como penalmente relevantes.
4
“Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da
pena prevista, não se aplica a Lei no. 9.099, de 26 de setembro de 1995.”
5
“Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta
básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado
de multa.”
6
“Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será
admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade,
antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”
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(e) Previsão de a companheira ser processada nos casos de relações homoeróticas. A Lei Maria da Penha, ao estabelecer os critérios gerais para definir
as espécies diversas de violência doméstica e familiar contra mulheres, incluiu a
possibilidade de processamento da mulher que, no âmbito das relações homoeróticas, agride sua parceira. Segundo o parágrafo único do art. 5º, “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.” O estatuto incorpora
as constatatações alcançadas pelos estudos feministas de que as relações homossexuais entre mulheres igualmente podem ser violentas e que esta situação de
violência, mesmo entre mulheres, reproduz a mesma lógica dessaa violência de
gênero, circunstância que legitima a intervenção protetiva.
(f) Inovação nas medidas cautelares de proteção. Inegavelmente a previsão de várias medidas autônomas de proteção trazidas pela Lei 11.340/06 constituem um dos seus aspectos mais inovadores. Diferentemente da lógica do processo penal, na qual as prisões provisórias adquirem o papel de medida cautelar
por excelência para proteção da vítima contra a reiteração delitiva, a Lei Maria
da Penha ofereceu uma série de possibilidades para além da prisão cautelar –
embora a prisão preventiva seja mantida como possibilidade. Neste sentido, a
Lei criou duas espécies de medidas, voltadas à ofendida e ao agressor. Dentre
as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, o art. 22 prevê (a) a
suspensão da posse ou restrição do porte de armas, (b) o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; (c) proibição de aproximação da
ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; (d) proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; (e) proibição de frequentar lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
(f) restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; (g) prestação de
alimentos provisionais ou provisórios. Em relação às medidas voltadas à mulher, o art. 23 estabelece a possibilidade de (a) encaminhamento da ofendida e
dos seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; (b) recondução da ofendida e a de seus dependentes ao domicílio, após
afastamento do agressor; (c) afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos
direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; (d) separação de corpos.
Conforme indicam as pesquisas, as medidas de proteção são os procedimentos
mais solicitados pelas mulheres, demonstrando o acerto legal de sua previsão.
(g) Criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar com competência civil e penal. A previsão de Juizado Especial com competência para processar e julgar as matérias cíveis e penais que envolvam violência doméstica é,
inegavelmente, no campo jurídico uma das maiores inovações da Lei 1.340/06.
A demanda surgiu a partir de problemas concretos enfrentados pelas mulheres, que percorriam vários caminhos e inúmeras esferas burocráticas para tentar
148
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
resolver problemas decorrentes de uma única situação geradora: a violência doméstica. Se a situação de violência é que deflagra a demanda jurídica, o movimento de mulheres entendeu como inconcebível a fragmentação na prestação
jurisdicional, com a construção de uma trajetória no âmbito criminal (a partir do
registro da ocorrência na Delegacia de Polícia e, posteriormente, a processualização nas Varas Criminais) e outra no âmbito civil (processo nas Varas de Família). A propósito, importante perceber que mesmo quando havia a incidência da
Lei 9.099/95 nos problemas de violência doméstica e familiar contra mulheres, a
previsão da composição civil não abrangia a possibilidade de definição de questões entendidas como extrapenais, como a separação judicial, guarda dos filhos,
alimentos entre outras. Com a Lei Maria da Penha, a violência contra mulheres
passa a ser tratada como um problema complexo, originado em uma relação
afetiva marcada pela desigualdade de gênero, cuja complexidade o direito deve
responder de forma minimamente satisfatória. Desde o ponto de vista do movimento de mulheres, era injustificável cindir artificialmente a situação, como se
as questões de família e criminais fossem instâncias distintas da relação afetiva
que as originou. Logicamente a racionalidade jurídica, através dos detentores
dos discursos autorizados (doutrina e jurisprudência), refutou (e ainda refuta)
radicalmente esta aproximação do problema em uma única esfera jurisdicional,
visto ser inconcebível para dogmática ortodoxa a superação das fronteiras da jurisdição civil e criminal. A grande questão, porém, é que o movimento feminista,
a partir da Lei Maria da Penha, realizou um choque de realidade no campo jurídico, impondo que as formas e os conteúdos do direito tenham correspondência
com a realidade dos problemas sofridos pelas mulheres. Contrariramente à tradição do pensamento jurídico, a partir da reforma legal, é o sistema jurídico que
necessita se adequar à realidade e não o contrário. Especificamente em relação
à violência contra mulheres, a possibilidade de que, na mesma esfera jurisdicional, de forma concentrada e com economia de atos, possam ser resolvidas questões penais e de família representa importante inovação e, em termos pragmáticos, significa efetividade dos direitos.
De todas as inovações trazidas pela Lei 11.340/06, os pontos centrais de
enfrentamento entre a Criminologia Crítica, em seu viés minimalista, e a Criminologia Feminista foram as alterações nos tipos penais incriminadores (aumento de penas) e nas circunstâncias de aumento das sanções (agravantes) e a
obstrução dos institutos diversificacionistas (composição civil, transação penal
e suspensão condicional do processo). Essas reformas específicas provocaram
diversas reações dos criminólogos críticos, para além das críticas explicitadas
decorrentes do pensamento jurídico conservador.
Dentre os argumentos mais comuns, o de que ao se propor aumento de
penas e ao se obstruirem medidas diversificadoras, estar-se-ia consolidando uma
visão punitivista da administração da justiça que se aproximaria dos movimentos
149
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
político-criminais maximalistas, notadamente à esquerda punitiva (KARAM,
2001: 11-15) ou das teses retributivas (BATISTA, 2007), fato que, em consequência, converteria os grupos feministas em empresários morais atípicos (SCHEERER, 1986).
No entanto três questões merecem reflexão. A primeira é a de que os atos
de violência contra as mulheres, em sua maioria, podem ser traduzidos no que
o direito penal e a criminologia caracterizam como criminalidade tradicional, ou
seja, tais condutas implicam danos concretos, praticados por e contra ‘pessoas
de carne e osso’7, em que são afetados bens jurídicos tangíveis, palpáveis, como
vida, integridade física e liberdade sexual. Encontram-se, pois, no rol daquelas condutas que as políticas criminais alternativas – derivadas da criminologia crítica e atualmente identificadas como direito penal mínimo ou garantismo
– entendem como lícita a criminalização. Conforme destaca Larrauri, são “bienes
jurídicos tradicionales del derecho penal mínimo” (LARRAURI, 2007: 58) e, diferentemente do que é projetado atualmente como política criminal punitivista, não
inovam ampliando as hipóteses de criminalização – com a criminalização da
mera desobediência, com a antecipação da pena aos atos preparatórios, com a
criminalização de condutas que violam bens jurídicos abstratos, p. ex. A conclusão, portanto, é a de que a mera especificação da violência de gênero para
hipóteses de condutas criminalizadas já existentes não produz o aumento da
repressão penal, sendo compatível inclusive, conforme explicitado, com pautas
político-criminais minimalistas.
No plano processual, não se pode esquecer que a Lei Maria da Penha inviabilizou inúmeros mecanismos diversificacionistas como a composição civil, a
transação penal e a suspensão condicional do processo. Neste aspecto, é inegável
que, no plano da criminalização secundária, há maior incidência do sistema formal de controle social. Todavia, embora se tenha ciência de constituir o processo
penal uma pena em si mesmo, reitera-se a ideia de que a Lei 10.340/06 impõe a
criação de um sistema processual autônomo que não pode ser interpretado dentro das categorias ortodoxas da dogmática jurídica, ou seja, não pode ser qualificado exclusivamente como ‘penal’ ou ‘civil’. Trata-se, conforme destacado, de um
novo modelo que tende a superar esta lógica binária, inclusive porque os temas
abordados transcendem os problemas tradicionais das jurisdições penal ou civil.
A segunda questão relevante, superando o debate normativo sobre a justificação própria do direito penal e ingressando no campo empírico da criminologia, é a
de que o número de prisões efetivamente realizadas em decorrência da Lei Maria
da Penha não permite afirmar que o estatuto colabore com o aprisionamento massivo, de modo a não caracterizar faticamente a visão punitivista ‘oraculada’.
7
150
Neste sentido, sustenta Ferrajoli que o “principio de lesividad permite considerar ‘bienes’ sólo a aquellos
cuya lesión se concreta en un ataque lesivo a otras personas de carne y hueso” (FERRAJOLI, 1995: 478).
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
A terceira questão diz respeito à efetividade da Lei Maria da Penha em diminuir as violências contra as mulheres e os eventuais custos da restrição dos
direitos dos acusados em optar por mecanismos processuais diversificacionistas
(composição civil, transação penal ou suspensão condicional do processo). Frise-se, contudo, que não existem dados que permitam afirmar que o afastamento
desses institutos contribua para o aumento da aplicação da pena de prisão, sobretudo em razão de a Lei não proibir sua conversão em pena restritiva de direitos. O debate está diretamente relacionado ao problema central desse artigo,
expresso na tensão entre o excessivo encarceramento decorrente do punitivismo
denunciado pela Criminologia Crítica e o alto índice de violência contra as mulheres exposto pela Criminologia Feminista.
3. Criminologia Crítica e Criminologia Feminista:
Perspectivas de Vanguarda nas Ciências Criminais
Como é possível perceber, a Lei Maria da Penha representou o momento
ótimo da consolidação das lutas do movimento feminista no Brasil. A Lei consagra a longa caminhada do movimento feminista para dar visibilidade aos problemas de violência doméstica e criar mecanimos legais e institucionais para
conter as agressões contra mulheres. Com a Lei 11.340/06, as demandas do movimento feminista são inseridas no centro das políticas públicas brasileiras.
No entanto, se a Lei 11.340/06 efetivamente merece ser festejada como a
grande conquista do movimento feminista, como instrumento de positivação
dos direitos das mulheres, no plano político-criminal tem produzido forte tensão
entre duas perspectivas criminológicas de vanguarda: a criminologia feminista
e a criminologia crítica. Ambas as perspectivas criminológicas (criminologia feminista e criminologia crítica) se estruturam originalmente como discursos de
denúncia e se consolidam posteriormente como perspectivas político-criminais.
A criminologia crítica, após o criminological turn operado pelo paradigma
do etiquetamento, possibilitou que o foco de análise criminológico fosse ampliado da visão atomizada no criminoso, próprio da (micro)criminologia etiológica, para os mecanismos institucionais que definem os processos de criminalização. Com a crítica criminológica, o próprio sistema de punitividade passa a
ser o objeto de investigação, sobretudo os mecanismos seletivos de definição das
condutas puníveis (criminalização primária), os critérios desiguais de incidência
das agências de controle sobre as populações vulneráveis (criminalização secundária) e os instrumentos perversos que transformam a execução das penas em
fontes de reprodução de estigmas. A partir do diagnóstico da seletividade intrínseca ao sistema penal, as distintas correntes que se identificam sob o rótulo criminologia crítica projetaram inúmeras ações no campo político, em sua grande
maioria voltadas à constrição das hipóteses de criminalização e superação da
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Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
forma carcerária de penas. As tendências críticas apresentaram, ao longo das
décadas de 80 e 90, uma série de propostas político-criminais (políticas criminais
alternativas) que abrange desde a reforma e a humanização dos sistemas penais
à sua abolição. Dentre as principais, destacam-se as correntes minimalistas (realismo de esquerda, realismo marginal e garantismo penal) e abolicionistas.
A criminologia feminista, porta-voz do movimento feminista no campo de
investigação sobre o sistema penal, permitiu ao ‘malestream’ criminológico compreender a lógica androcêntrica que define o funcionamento das estruturas de
controle punitivo. Ao trazer a perspectiva das mulheres para o centro dos estudos criminológicos, a criminologia feminista denunciou as violências produzidas pela forma mentis masculina de interpretação e aplicação do direito penal. O
sistema penal centrado no ‘homem’ (androcêntrico) invariavelmente produziu o
que a criminologia feminista identificou como dupla violência contra a mulher.
Em um primeiro momento, invisibiliza ou subvaloriza as violências de gênero,
ou seja, as violências decorrentes normalmente das relações afetivo-familiares e
que ocorrem no ambiente doméstico, como são a grande parte dos casos de homicídios, lesões corporais, ameaças, injúrias, estupros, sequestros e cárceres privados nos quais as mulheres são vítimas. No segundo momento, quando a mulher é sujeito ativo do delito, a criminologia feminista evidenciou o conjunto de
metarregras que produzem o aumento da punição ou o agravamento das formas
de execução das penas exclusivamente em decorrência da condição de gênero.
Elena Larrauri percebeu de forma muito perspicaz esta dupla violência punitiva contra as mulheres, seja no papel de vítima ou de autora da violência, em
todos os âmbitos de incidência do controle penal punitivo: na elaboração das
normas penais pelo Legislativo, na aplicação do direito pelos Tribunais e na execução das sanções pelo Executivo (LARRAURI, 1996: 13-26).
Os estudos que possibilitaram à criminologia crítica identificar a seletividade do sistema penal foram realizados pela Escola de Chicago, notadamente
Sutherland em White Collar Criminality. Segundo Sutherland, nas conclusões da
pesquisa, “the theories of the criminologists that crime is due to poverty or to psychopathic and sociopathic conditions statistically associated with poverty are invalid because, first, they are derived from samples which are grossly biased with respect to socioeconomic status; second, they do not apply to the white-collar criminals; and third, they
do not even explain the criminality of the lower class, since the factors are not related to
a general process characteristic of all criminality”8 (SUTHERLAND, 1940:12).
Assim, a Escola de Chicago altera o olhar tradicional da criminologia e
insere no campo de investigação os processos que imunizam determinados
8
152
“As teorias criminológicas baseadas nas teses de que o crime deriva da pobreza ou de patologias psíquicas associada à pobreza são inválidas porque, primeiro, são derivadas de amostras manifestamente tendenciosas em
relação ao nível socioeconômico; segundo, não se aplicam aos criminosos de colarinho branco; terceiro, não são
suficientes para explicar a criminalidade das classes inferiroes, pois os fatores apontados não derivam de uma
característica geral de todo o processo de criminalização” (SUTHERLAND, 1940:12, tradução livre).
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
segmentos sociais da incidência das agências punitivas. Trata-se de mudança de
perspectiva que abdica de olhar a criminalidade e concentra-se na criminalização.
Lola Anyar de Castro, parafraseando o clássico da literatura marxista, sintetiza
esta mudança de paradigma ao referir que “a grande miséria da Criminologia [positivista] é de ter sido somente uma Criminologia da miséria.” (CASTRO, 1983: 75).
Sutherland nomina, portanto, uma espécie de criminalidade que era invisibilizada pelos mecanismos formais e informais de seletividade penal: a criminalidade dos poderosos. A partir dos seus estudos, o fenômeno crime passa
a ser compartilhado por todos os atores sociais que habitam o espaço público,
independentemente de sua posição social.
A questão é que se os estudos da Escola de Chicago definiram uma nova
forma de olhar o problema criminal, operando verdadeiro giro criminológico,
as pesquisas da criminologia feminista no mínimo causam impacto similar. Se
Sutherland irá universalizar o crime para todos os atores do espaço público,
o pensamento feminista demonstrará que existem formas cruéis de violências
no espaço privado. Diferentemente do que a tradição do pensamento patriarcal
demonstra, no âmbito da vida privada e familiar as pessoas não se encontram
em plena segurança. Pelo contrário, é na vida doméstica que formas brutais de
violência são perpetradas e perpetuadas.
As consequências dos saberes críticos e feministas são para o pensamento
criminológico arrasadoras e irreversíveis. No entanto é possível dizer que no
plano epistemológico são saberes complementares na desconstrução da racionalidade etiológica que fundamenta a criminologia ortodoxa e na ampliação dos
horizontes de investigação (objeto) e das formas de abordagem (método). Os
conflitos entre os modelos criminológicos ocorrerão, porém, no plano político-criminal, com a tensão entre os distintos projetos que orientam as agendas críticas e feministas. Projetos que podem ser identificados na constante resistência
da criminologia crítica aos processos de criminalização e amplicação dos níveis
de punitividade social (punitivismo) e na incessante luta da criminologia feminista para redução dos altos índices de violência contra a mulher.
A pergunta cuja resposta permitiria harmonizar crítica e feminismo igualmente no plano político-criminal seria: é possível estabelecer pautas de ação que
viabilizem a redução das violências privadas contra as mulheres e das violências
público-institucionais contra as populações vulneráveis (femininas e masculinas)?
Antes de enfrentar a questão teórica é importante visualizar a concretude
dos problemas das violências no Brasil.
4. O Problema da Criminologia Crítica no Brasil:
O Grande Encarceramento em Números
153
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
A atividade legislativa no Brasil, após a promulgação da Constituição de
1989, ampliou as hipóteses de criminalização (primária) e enrijeceu o modo de
execução das penas, ou seja, paralelamente à criação de inúmeros novos tipos
penais houve substancial alteração na modalidade de cumprimento das sanções.
O resultado desta experiência político-criminal foi a dilatação do input e o estreitamento do output do sistema punitivo, fato que provocou aumento vertiginoso nos índices de encarceramento. O exemplo mais significativo da tendência
punitivista que orientou a política criminal brasileira das últimas décadas foi a
edição da Lei 8.072/90, a qual aumentou as penas dos delitos classificados como
hediondos e, no que diz respeito à execução penal, estabeleceu vedação da progressão de regime9, aumento de prazo para livramento condicional e obstrução
de comutação e de indulto aos crimes nela dispostos.
Não obstante a ampliação das hipóteses de aplicação e da execução das
penas privativas de liberdade, em matéria processual penal as alterações no
Código fomentaram o alargamento da criminalização secundária. Assim, não
apenas as possibilidades de prisão cautelar foram (re)estruturadas – v.g. prisão
temporária (Lei 7.960/89) e novas espécies de inafiançabilidade e vedação de liberdade provisória (Leis 7.716/89, 8.072/90, 9.034/95 e Lei 9.455/97) –, como foi
criada modalidade de execução de pena sem o trânsito em julgado de sentença
condenatória (Lei 8.038/90), denominada execução penal antecipada.10
Nota-se, portanto, que a política legislativa contribuiu significativamente
para o incremento dos índices de encarceramento, cujos resultados podem ser
sintetizados da seguinte forma: (a) criação de novos tipos penais a partir do
novo rol de bens jurídicos expressos na Constituição (campo penal); (b) ampliação da quantidade de pena privativa de liberdade em inúmeros e distintos
9
A obstaculização do processo de desinstitucionalização progressiva da pena estabelecida pela Lei
dos Crimes Hediondos foi uma das principais causas do aumento da taxa de encarceramento no
país. Não obstante algumas decisões monocráticas isoladas que reputavam junto com a doutrina
como inconstitucional a Lei 8.072/90, sobretudo a partir da edição da Lei 9.455/97 (Lei dos Crimes de
Tortura), o Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito de pacificar a matéria, emitiu a Súmula
698 – “não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de regime de execução da
pena aplicada ao crime de tortura.” No entanto, mesmo após a publicação da Súmula 698, a 1ª Turma do
STF decidiu em dois Habeas Corpus (HC 87.623 e HC 87.452), à unanimidade, afastar a proibição da
progressão de regime em casos de extorsão mediante sequestro (art. 159, § 1º CP) e de tráfico ilícito
de entorpecentes (art. 12 c/c art. 18, III da Lei 6.368/76), respectivamente. Com o julgamento do HC
82.959 pelo Pleno, por maioria de votos o STF entendeu, após 16 anos de vigência, pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos (STF, Tribunal Pleno, Habeas Corpus 82.959/
SP, Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j 23.02.06).
10 O Superior Tribunal de Justiça, em 2005, revisou a posição que admitia cumprimento de pena sem
o trânsito em julgado de sentença penal condenatória — execução penal antecipada (STJ, 6ª Turma,
Habeas Corpus 25.310, Rel. Min. Paulo Medina, DOU 02.02.05). Até a revisão do posicionamento,
os Tribunais entendiam que a interposição de Recursos Federais (Especial e Extraordinário) contra
acórdão condenatório não suspendia os efeitos da decisão, conforme disciplina o art. 27, § 2º, da Lei
8.038/90. O Entendimento havia sido pacificado na Súmula 267 do STJ (“a interposição de recurso, sem
efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”).
154
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
delitos (campo penal); (c) sumarização do procedimento penal, com o alargamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão preventiva e temporária) e diminuição das possibilidades de fiança (campo processual penal); (d) criação de
modalidade de execução penal antecipada, prescindindo o trânsito em julgado
da sentença condenatória (campo processual e da execução penal); (e) enrijecimento da qualidade do cumprimento da pena, com a ampliação dos prazos para
progressão e livramento condicional (campo da execução penal; (f) limitação
das possibilidades de extinção da punibilidade com a exasperação dos critérios
para indulto, graça, anistia e comutação (campo da execução penal); (g) ampliação dos poderes da administração carcerária para definir o comportamento
do apenado, cujos reflexos atingem os incidentes de execução penal (v.g. Lei
10.792/03) (campo penitenciário).
O diagnóstico normativo possibilita dizer que o Brasil, nas duas últimas décadas, aderiu ao punitivismo, tendência político-criminal que obstaculiza a consolidação da democracia nos países ocidentais, sobretudo nos países da América
Latina que lograram superar os períodos de Ditaduras civis-militares.
Desta forma, se até os anos 80 os representantes da criminologia crítica latino-americana, em conjunto com inúmeras correntes da sociedade civil e com
os movimentos sociais organizados, concentraram esforços para superar a política criminal autoritária imposta pelo terrorismo de Estado, após o processo de
redemocratização enfrentam novo e paradoxal problema: apresentar alternativas ao processo gradual e constante de densificação dos níveis de punitividade.
A primeira e mais nítida resposta ao punitivismo, entendido neste trabalho
como sinônimo de altas taxas de encarceramento, seria a tentativa de criar condições para uma reforma geral no quadro legislativo, atingindo todas as fases
da persecução criminal, da investigação policial à execução da pena, orientada
pelos princípios de subsidiariedade e de intervenção mínima.
Todavia, apesar de se entender correta a necessidade de racionalização
e de ressistematização do quadro geral dos delitos, das sanções, dos procedimentos e da execução (law in books), é igualmente possível afirmar que as
mudanças devem operar, de igual forma e com intensidade, na cultura dos
atores jurídicos (law in action). Isto porque ao longo do processo de formação
do grande encarceramento nas duas últimas décadas, inúmeras hipóteses concretas de estabelecimento de filtros minimizadores da prisionalização foram
obstaculizadas pelo próprio Poder Judiciário, nitidamente influenciado pela
racionalidade punitivista11.
11 Em relação ao tema, verificar algumas importantes investigações atuais: Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB, 2006: 18-20); Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2007: 24-41); Instituto
Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (2006:
24/5); Azevedo (2005: 18-78).
155
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
A fusão entre a adoção do populismo punitivo pelo Poder Judiciário e a
tradição inquisitória da cultura dos atores do sistema punitivo elevou superlativamente as taxas de punitividade. Os dados sobre encarceramento são reveladores:
Tabela 01: Presos por 100.000 Habitantes no Brasil entre 1994 e 2010
Ano
População
Presos
Presos/100.000 hab.
1994
147.000.000
129.169
87,87
1995
155.822.200
148.760
95,47
1997
157.079.573
170.207
108,36
2000
169.799.170
232.755
137,08
2001
172.385.826
233.859
135,66
2002
174.632.960
239.345
137,06
2003
176.871.437
308.304
174,31
2004
181.581.024
336.358
185,24
2005
184.184.264
361.402
196,22
2006
186.770.562
401.236
214,83
2007
183.965.854
419.551
228,06
2008
189.612.214
451.219
238,10
2009
189.612.214
473.626
247,35
2010/1
191.480.630
494.237
258,11
Fonte: Censos Penitenciários (Ministério da Justiça) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Segundo o informe do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), relativo ao primeiro semestre do ano de 2010, a população carcerária atingia o
número de 494.237. Com base no índice populacional apontado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil teria atingido o índice de
258,11 presos por 100.000 habitantes.
Ao ser analisada a curva do aumento da população carcerária, nota-se que
a opção político-criminal de recrudescimento dos aparelhos do sistema penal
tem obtido êxito no incremento do punitivismo. Dados que desde o ponto de
vista da crítica criminológica tomam dimensões preocupantes.
156
250
200
174,31
150
185,24
196,22
214,83
228,06
238,1
247,35
258,11
137,08 135,66 137,06
108,36
Tensões atuais entre a criminologia
feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
95,47
100
87,87
50
0 1: Presos por 100.000 Habitantes no Brasil entre 1994 e 2010
Gráfico
1994 1995 1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Fonte: Censos Penitenciários (Ministério da Justiça) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Na comparação dos índices apresentados pelo Brasil com os dos países
da Comunidade Europeia, percebe-se que o grau de encarceramento (número
de presos por 100.000 habitantes) supera em grande medida países como Portugal (109), Espanha (148), França (92), Itália (77), Inglaterra (148) e Alemanha
(92), aproximando-se de países do Leste como Azerbaijão (211,9), Lituânia (239),
Moldávia (227) e Polônia (230). Os países mencionados são ultrapassados apenas pela Estônia (322), Georgia (302), Ucrânia (332) e, notoriamente, pela Rússia (613), país com a maior densidade populacional encarcerada do continente
(ICPS, 2010).
Em relação aos países da América do Sul, o Brasil é superado em número
de presos por 100.000 habitantes pela Guiana Francesa (365), Suriname (356),
Chile (297) e Guiana (260). Todos os demais países do continente apresentam
níveis de encarceramento inferiores aos dos brasileiros: Argentina (140), Bolívia
(80), Colômbia (135), Equador (134), Paraguai (95), Peru (141), Uruguai (202) e
Venezuela (79) – dados relativos ao biênio 2006-2008 (ICPS, 2010).
Os Estados Unidos, segundo dados de 2007 apresentados pelo Federal Bureau of Prisons, permanecem com a maior taxa de encarceramento mundial (758),
atingindo o número absoluto entre presos provisórios e definitivos de 2.298.041
encarcerados ICPS, 2010; BUREAU OF JUSTICE ESTATISTICS, 2007: 04).
Ademais do acréscimo constante das taxas de prisionalização, nota-se que a
maior parte do encarceramento masculino nacional decorre de prática de delitos
patrimoniais, ou seja, refletem o caráter econômico da política de exclusão social. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), 16,8%
dos presos no Brasil resultam de imputações de crimes patrimoniais não-violentos como furto, estelionato e receptação; 24,46% decorrem de crimes patrimoniais praticados com violência ou grave ameaça, fundamentalmente roubo;
dos quais 12,88% seriam decorrentes de crimes contra a vida e 3,68% por crimes
sexuais. Note-se que 15,73% da população encarcerada masculina é fruto de envolvimento com tráfico de drogas (DEPEN, 2010).
O contingente de mulheres presas, embora infinitamente menor que o masculino, tem crescido proporcionalmente com maior força na última década. E
o que chama atenção é a grande quantidade de presas por envolvimento com
comércio de drogas ilegais (48,31%). Em relação aos crimes patrimoniais não-violentos, a proporção de mulheres presas é de 11,3%, crimes patrimoniais
praticados com violência ou grave ameaça 10,96% e crimes contra a vida 7,33%
(DEPEN, 2010).
157
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
Frente a esta realidade, um dos principais problemas colocados pela criminologia crítica brasileira nas últimas décadas é o da possibilidade de gerar
condições políticas e sociais para a diminuição dos índices de punitividade e,
paralelamente, diminuir as distorções em matéria de seletividade da população
masculina e feminina vulnerável.
5. O problema da criminologia feminista no Brasil:
a violência contra as mulheres em números
Apesar de existirem inúmeros centros de apoio à mulher vítima de violência no Brasil (serviços públicos, privados e instituições do terceiro setor), os
dados quantitativos, principalmente sobre violência doméstica, ainda carecem
de maior sistematização – para além, logicamente, do sério problema que é o
alto índice de invisibilidade (cifra oculta) desta forma peculiar de delito. Em
razão de os números levantados pelas instituições de defesa dos direitos das
mulheres serem normalmente circunscritos ao levantamento regional de Estados ou Municípios, os dados quantitativos de maior consistência estão vinculados à sistematização realizada pela Ouvidoria da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, notadamente em relação aos atendimentos prestados
pela Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, instrumentalizada pela
Central de Atendimento à Mulher. Entende-se, para uma das finalidades que este
artigo se propõe (mapear em números os problemas principais enfrentados pela
Criminologia Crítica e Criminologia Feminista), que os dados oficiais registrados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres fornecem uma dimensão geral e
confiável do quadro das violências contra a mulher no Brasil.
A Central de Atendimento à Mulher é um serviço de utilidade pública em âmbito nacional destinado a atender gratuitamente mulheres em situação de violência. O serviço foi implantado em caráter experimental em novembro de 2005,
a partir de acordo entre a Secretaria de Políticas para as Mulheres e o Ministério
da Saúde, objetivando criar canal de comunicação constante e ininterrupto com
as mulheres em situação de violência. Após a experiência e a efetivação do serviço, foi oficialmente incorporado às políticas públicas do Governo Federal com
a publicação do Decreto Presidencial 7.393/10.
Embora o principal serviço prestado seja o de orientação e de encaminhamento através de linha telefônica (Ligue 180), a Central de Atendimento também pode ser acessada através de e-mail, carta, fac-símile ou pessoalmente. A
principal preocupação da Secretaria foi criar mecanismo ágil de acesso à informação e para denúncia de violências contra a mulher, em horário integral e sem
interrupções (24h/dia, sete dias por semana).
Nota-se que o serviço preencheu importante lacuna porque, segundo dados
da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), entre abril de 2006 e dezembro
158
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
de 2010, a Central de Atendimento à Mulher prestou 1.658.294 atendimentos (SPM,
2010: 05). Comparando os números desde a criação do sistema em 2005 até dezembro de 2009, houve aumento de 1.890% de denúncias no período. De igual
forma, a Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a partir de 2003,
passou a receber denúncias diretamente, sendo registrados 2.551 casos. Importante referir que o registro numérico contabilizado é aquele realizado na primeira
demanda, embora seja comum sua reiteração ou o seu acompanhamento12.
Conforme frisado anteriormente, tem-se ciência de que os dados não relatam com precisão o número de violências praticadas contra mulheres no Brasil,
inclusive porque é notório na literatura especializada o alto número de casos
não-registrados (cifra oculta). Todavia os números permitem dimensionar a gravidade do problema e projetar políticas de prevenção e repressão.
Neste sentido, a criação dos referidos mecanismos de acesso à informação e
à denúncia, com investimentos em tecnologia e com capacitação de pessoal para
atendimento e acolhimento de vítimas da violência doméstica, efetivamente incentiva a criação de uma cultura de visibilidade das violências praticadas contra
mulheres. Fatos que, inclusive, explicam o constante aumento no número de
casos registrados pela Secretaria especializada. Assim, a criação e ratificação de
instrumentos normativos, como a Lei Maria da Penha e o Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, contribuem
muito para ampliar a visibilidade e construção de uma nova linguagem para o
enfrentamento da violência contra mulheres.
Neste sentido, os dados de registro de violência contra a mulher tabulados
pela Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres podem ser apresentados da seguinte forma.
Tabela 02: Registros Total de Atendimentos (2005-2010)
Ano
Registros de Violência Contra a Mulher
2006
2007
46.423
2007
204.514
2008
271.212
2009
401.729
12 “Importante ainda ressaltar que muitas pessoas demandam mais de uma vez. Em geral, contabilizamos apenas
a primeira demanda, pois quem demandou em 2004, por exemplo, ao procurar a Ouvidoria novamente, terá
seu registro de 2004, que será atualizado no mesmo relatório. Assim, os números trabalhados são referentes à
quantidade de registros e não ao número total de demandas recebidas. Por este motivo, alguns atendimentos
chegam a durar meses” (SPM, 2009: 17).
159
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
2010
734.416
Total
1.658.294
Fonte: Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres
Segundo as informações do Relatório de 2009 da Ouvidoria da Secretaria
de Políticas para as Mulheres, dos 401.729 registros 51,72% ocorreram através
de e-mail, 22,26% através do link da Ouvidoria no site da Secretaria e 20,46%
através de telefonema, diretamente ao número dos órgãos da Secretaria que recebem denúncia (1,15%) ou pelo serviço especial ‘Ligue 180’ (19,31%).
Em relação ao tipo de atendimento, do total apresentado em 2009, foram
registradas 32,09% denúncias (relatos de ocorrência de algum crime contra a
mulher), 29,5% pedidos de informação ou orientação (demandas de esclarecimentos sobre legislação e direitos da mulher, rede de atendimentos, políticas e
ações da Secretaria entre outras), 18,82% solicitações (pedidos de providências
ou intervenções da Ouvidoria ou da Secretaria), dentre outros (sugestões, elogios, convites e reclamações) (SPM, 2009: 17). Em 2010, do total de 734.416 registros, 40,5% foram de denúncias, 17,8% solicitações, 16,5% informações, dentre
outros (SPM, 2010: 05).
Quanto aos tipos de denúncia das agressões mais frequentemente relatadas,
embora a tipologia utilizada não corresponda necessariamente à estrutura do tipo
penal incriminador previsto no Código Penal ou na Legislação Especial e Complementar, a Secretaria de Políticas para as Mulheres classifica as violências da
seguinte forma: ameaça, assédio moral, discriminação, violência doméstica, violência sexual, tráfico de pessoas, violência física, cárcere privado, violência psicológica, violação dos direitos humanos das presas, apologia ao crime e perseguição13.
13 “Ameaça: quando alguém promete um mal futuro, injusto e grave que, para se consumar, depende da vontade
do agente. O crime admite todos os meios de execução (por escrito, oral, gestos, símbolos, etc). A ameaça pode
se voltar também contra terceira pessoa ou coisa pela qual a vítima tenha afeição (família, etc.)
Assédio Moral: são todos aqueles atos e comportamentos provindos do patrão, gerente, superior hierárquico
ou dos colegas, que traduzem uma atitude de contínua e ostensiva perseguição que possa acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima.
Discriminação: toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil,
com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Violência Doméstica: são as lesões corporais praticadas contra 4 categorias de pessoas: 1) contra parentes
próximos (ascendentes, descendentes, irmãos); 2) contra cônjuges ou companheiros em união estável; 3) contra
quem conviva ou tenha convivido com o agente; e 4) contra pessoa que seja hóspede ou coabite com o agente.
Violência Sexual: violência sexual pode ser definida como qualquer tipo de atividade de natureza erótica ou
sexual, que desrespeita o direito de escolha de um dos envolvidos. É a penetração genital, oral ou anal, por
alguma parte do corpo do agressor ou por objeto, utilizando a força e/ou sem o consentimento da vitima.
Tráfico de Pessoas: consiste em promover, intermediar ou facilitar a entrada no país, ou a saída, de pessoa
para exercer a prostituição (internacional). O tráfico interno de pessoas visa promover, intermediar ou facilitar
o transporte, o recrutamento ou o alojamento de pessoa que venha a exercer a prostituição.
160
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
A partir desta categorização das violências contra a mulher, dos 401.729 registros em 2009, a incidência ocorreu nas seguintes proporções:
Tabela 03: Espécies de Denúncia (2009)
Espécie de Violência Contra a Mulher
Percentual
Violência Doméstica (2007)
9,95%
Discriminação
6,47%
Violência Sexual
1,49%
Perseguição
0,5%
Violência Psicológica
1,49%
Cárcere Privado
48,76%
Violação dos Direitos das Presas
1,99%
Ameaça
3,48%
Assédio Moral
3,98%
Apologia ao Crime
2,49
Tráfico de Mulheres
9,95%
Outros
9,45%
Total
100%
Fonte: Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres
Dos relatos de violência no período apontado (2006-2010), os dados revelam que os agressores são, na sua maioria, os próprios companheiros, fato que
reforça a tese histórica demonstrada pelo movimento feminista e comprovada
Violência Física: é a ofensa à integridade corporal ou à saúde física ou mental do ser humano. A integridade
corporal diz respeito a alteração física do corpo (amputações, feridas, manchas, inchaços, etc). A ofensa à saúde
é a debilitação funcional do organismo (doença), seja fisiológica ou mental, podendo incluir também o agravamento de doença já existente.
Cárcere Privado: é o confinamento em um cômodo isolado particular (...).
Violência Psicológica: é entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Violação dos Direitos Humanos das Presas: violação da dignidade da pessoa humana e o acesso ao pleno
aos direitos fundamentais, tendo em vista as particularidades da mulher encarcerada.
Apologia ao Crime: é defender, louvar, elogiar publicamente crime ocorrido ou criminoso.
Perseguição: ato de perseguir pessoa de forma ostensiva e contumaz.” (SPM, 2009: 13-14)
161
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
pela criminologia feminista de que a violência contra a mulher é fundamentalmente violência praticada por pessoas próximas e não por desconhecidos – embora esta seja a imagem deflagrada nas campanhas de pânico moral, sobretudo
em relação aos crimes sexuais (estupro).
A constatação consolidada nos dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres é validada pela mais recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo, realizada no período de agosto de 2010, ocasião em que foram ouvidas 2.365 mulheres e 1.181 homens com idade superior a 15 anos, nos 25 Estados da Federação.
Na pesquisa de opinião pública intitulada Mulheres Brasileiras e Gênero no Espaço
Público e Privado (2010), que atualiza investigação análoga realizada em 2001,
constatou-se que no país em média uma em cada cinco mulheres (18%) sofre ou
sofreu “algum tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”.
Os números demonstram a constância das violências, pois na pesquisa de 2001 o
percentual era praticamente idêntico (19%). Segundo o relatório final, ao serem
especificadas formas de violências distintas das agressões físicas e sexuais, como
violência psíquica, o número de mulheres que afirmam ter sido vítimas aumenta
para duas em cada cinco mulheres (40%). Dentre as violências citadas preponderam formas variadas de controle ou cerceamento (24%), violência psíquica
ou verbal (23%), restando ameaças e violências físicas propriamente ditas com
percentual de 24%.
A pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2010) revela ainda que além do
alto número de ameaças sofridas, em média 13% das consultadas, uma em cada
dez (10%) teria sido efetivamente espancada ao menos uma vez na vida (12% na
pesquisa de 2010 e 11% em 2001). E considerando a última ocasião da ocorrência,
o contingente de mulheres representado em ambos os levantamentos revela que
a média de agressões contra as brasileiras permanece altíssimo, a dizer, uma a
cada 24 segundos ou cinco mulheres agredidas a cada 2 minutos.14
Dado importante e que permite projetar minimamente as cifras ocultas nos
casos de violência de gênero são relativos aos recursos utilizados pelas mulheres
para auxílio após sofrerem violências. Na investigação, as mulheres agredidas
informam que após as agressões frequentemente pedem auxílio para familiares próximos, com destaque para as mães e irmãs. Este procedimento seria o
utilizado em dois terços dos casos. Em nenhuma das modalidades de violência
pesquisadas o número de denúncias prestadas à autoridade policial ou judicial
supera um terço dos casos.
Embora incipiente na tradição das investigações criminológicas brasileiras,
algumas pesquisas de vitimização realizadas por agências públicas fornecem
14 Na pesquisa realizada em 2001 o número de mulheres espancadas era de uma a cada 15 segundos
ou 8 mulheres a cada 2 minutos. Embora a incidência tenha diminuído, as taxas de violência seguem
extremamente altas.
162
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
importantes elementos de análise. Pesquisa nacional realizada no período de
08 a 28 de fevereiro de 2011 pelo DataSenado (2011) intitulada Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, entrevistou 1.352 mulheres e concluiu que
mais de 50% entendiam não ser tratadas com respeito pelos seus maridos ou
companheiros. O mesmo percentual de entrevistadas (50%) informou conhecer alguma mulher que já havia sofrido algum tipo de violência doméstica e
familiar, sendo a violência física preponderante em mais de 70% dos casos. É
contrastante o fato de que cerca de 80% das entrevistadas informarem nunca ter
sofrido violência doméstica ou familiar, o que sugere a hipótese de que há vergonha em ser reconhecida com uma mulher agredida. Do universo que havia
sido vítima, 60% dos agressores foram maridos ou companheiros. Em relação
às denúncias, o medo do agressor seria a principal causa do silêncio (65%) (DATASENADO, 2011).
Nas análises sobre a atuação do sistema Judiciário, o Relatório Anual do Conselho Nacional de Justiça (2010), no item sobre a eficácia da Lei Maria da Penha,
informa dados de vitimização semelhantes aos apresentados anteriormente.
Segundo o Relatório, em 2010 existiam 43 Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher. Nestes juizados especializados havia em andamento
328.964 processos, tendo sido proferidas 108.882 decisões judiciais desde a entrada em vigência da Lei (CNJ: 2010, 15). No que se refere aos crimes com maior
incidência, lesões corporais e ameaças são citadas como prevalentes, como demonstram os dados das pesquisas anteriormente mencionadas.
Tabela 04: Dados sobre a Judicialização
da Violência Doméstica no Brasil (2010)
Juizados Especializados de
Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher
43
Processos em Andamento nos
Juizados
328.964
163
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
Crimes (ou Contravenções)
com Maior Incidência
Lesão Corporal
Ameaça
Dano
Crimes contra a Honra: Injúria e
Difamação
Invasão a domicílio
Desobediência
Atentado violento ao pudor
Estupro
Contravenções Penais: Vias de Fato e
Perturbação do Sossego
Sentenças Proferidas
108.882
Prisões Decretadas
11.659
Medidas Protetivas Deferidas
96.098
Processos em Tramitação
216.011
Estados com maior quantidade
de processos
Rio de Janeiro
Rio Grande do Sul
Minas Gerais
Fonte: Conselho Nacional de Justiça
Dados sobre a formalização processual dos registros relativos à violência
doméstica no Estado do Rio Grande do Sul permitem dimensionar a lacuna
entre comunicação e processualização. O Ministério Público do Rio Grande do
Sul (MPRS) informa que nas 140 comarcas do Estado, no período de 27/11/2008
a 31/12/2010, foram cadastrados 36.904 procedimentos referentes à Lei Maria da
Penha. Dos procedimentos, 14.280 (38,7%) referem ameaças e 9.472 (25,7%) lesões corporais contra esposas e companheiras. No período haviam sido solicitadas 13.966 (37,8%) medidas protetivas, sendo concedidas 10.301 (27,9%). Dentre
as medidas protetivas deferidas computam-se 16.368 (44,4%) ordens de proibição de aproximação, 13.678 (37,1%) ordens de proibição de contato e 516 ordens
de prisões do agressor (1,4%) (MPRS, 2010).
Por fim, registra-se que no Juizado de Violência Doméstica e Familiar da
cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, tramitam hoje
mais de 16 mil processos referentes à Lei Maria da Penha. O perfil das vítimas,
164
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
como na grande maioria dos casos nacionais, é predominantemente constituído
por mulheres pobres e socialmente vulneráveis15.
Os números apresentados pelas distintas pesquisas revelam paradoxo de
difícil resolução, pois ao mesmo tempo em que há uma crescente judicialização
na busca da democracia nas relações de gênero no âmbito doméstico e familiar,
é notório o alto índice de invisibilidade da violência doméstica (cifras ocultas),
fato decorrente em grande medida pelo temor das vítimas em relação ao agressor. Paralelamente, o sistema de justiça recebe número de denúncias que dificilmente tem capacidade de processar. Esta tensão entre crescente demanda, cifra
oculta e incapacidade operativa do sistema em relação à violência contra mulheres parece, igualmente, reforçar o paradoxo entre as perspectivas da Criminologia Crítica e da Criminologia Feminista.
6. Considerações Finais: As Tensões Entre a Criminologia Crítica e a Criminologia Feminista (ou “É Possível ser
Feminista e Crítico/a ou Crítico e Feminista?”)
Retomamos a pergunta inicial formulada: é possível estabelecer pautas de
ação que viabilizem a redução das violências ‘privadas’ contra as mulheres e das
violências público-institucionais contra as populações vulneráveis (femininas e
masculinas)? Em outros termos, seria possível compatibilizar as pautas político-criminais das Criminologias Feminista e Crítica?
Conforme reconhecido pela academia internacional, o feminismo é um dos
mais importantes movimentos políticos e teóricos das últimas décadas, tendo
contribuído de forma decisiva para o avanço das humanidades. Outrossim, a
crítica feminista à criminologia (ortodoxa e crítica) provocou verdadeira “ferida
narcísica”, pois não apenas deu visibilidade à violência praticada pelos homens
contra as mulheres, mas apresentou as metarregras sexistas que orientam a elaboração, a aplicação e a execução do direito (penal), bem como expôs a lacuna
das investigações críticas em relação ao caráter falocêntrico do sistema penal. É
incompreensível, portanto, que a criminologia tenha ignorado por décadas as
análises feministas e que tenha se preocupado com esta nova forma de enfrentar os problemas do sistema penal apenas quando em questão a necessidade
de responsabilização dos homens pelas violências contra as mulheres. Isto tudo
porque não é aceitável – para um modelo de pensamento criminológico que se
intitule crítico – o tradicional olhar androcêntrico que demonstra complacência
com os danos provocados às mulheres quando atoras ou vítimas de delitos. A
criminologia tem-se recusado a ouvir as mulheres, e quando o faz, não apoia
15 Dados fornecidos diretamente pela Vara de Violência Doméstica, na ocasião do Fórum pelo Fim da
Violência Doméstica contra Mulheres, Porto Alegre, em 28/01/2011.
165
Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho
ou valoriza o projeto feminista, mas valoriza e legitima “certas posições dentro do
feminismo acadêmico, posições que acomodam os interesses pessoais do crítico ou as preocupações teóricas androcêntricas, ou ambas”. (LAURETIS,1994:232).
Por outro lado, o feminismo criminológico incorporou de maneira significativa as contribuições da criminologia crítica, inclusive avançando no debate
sobre os riscos da utilização do sistema penal por parte das mulheres (SMART,
1995; GELSTHORPE, 2002; LARRAURI, 2007).
As análises apresentadas apontariam para algumas impossibilidades de
superação da tensão em razão de algumas incoerências entre os discursos da
Criminologia Feminista e da Criminologia Crítica.
Todavia a perspectiva de elaboração de um sistema absolutamente coerente, sem contradições ou lacunas, pressupõe a adoção de uma forma de pensamento que não condiz com o período além-da-modernidade. A vontade de
sistema (vontade de verdade) é traço característico dos modelos científicos modernos que se sustentam pela elaboração de grandes narrativas. Modelos em
crise e que não dão conta da complexidade dos fenômenos contemporâneos.
Perspectivas que questionam a estabilidade no campo da coerência científica parecem, portanto, responder de forma mais adequada aos problemas
prático-teóricos da atualidade. Neste sentido, Sandra Harding (1993) chama a
atenção para a necessidade de as categorias analíticas feministas permanecerem instáveis e incoerentes, pois teorias com pretensão de coerência não apenas
não são adequadas ao mundo instável e incoerente do Século XXI como criam
obstáculos intransponíveis ao conhecimento e às práticas sociais. Aderindo ao
argumento da autora, é possível sustentar que as hipóteses de reinterpretação
ou subversão da Criminologia – tarefa última que tem sido realizada pela Criminologia Feminista – são opções conceituais que criam dilemas insolúveis ao
feminismo, motivo pelo qual “em vez da fidelidade ao princípio de que a coerência
teórica é um fim desejável em si mesmo e a única orientação válida para a ação, podemos
tomar como padrão a fidelidade aos parâmetros de dissonância entre os pressupostos dos
discursos patriarcais e dentro de cada um deles” (HARDING, 1993: 13).
Inevitável, pois, acolher alguns desconfortos intelectuais, políticos e emocionais e “considerar inadequados e mesmo derrotistas determinados tipos de soluções
luminosas que nos colocamos” (HARDING, 1993: 13).
Desde esta perspectiva, entendemos que a Lei Maria da Penha pode proporcionar uma importante agenda para a superação e o enfrentamento aberto
das tensões apresentadas, sobretudo porque sua proposta ultrapassa o campo
meramente repressivo e os maniqueísmos determinados pela lógica binária das
jurisdições cíveis ou criminais. Neste aspecto entendemos crucial reforçar a ideia
de que estamos perante um novo modelo, regido por uma lógica diversa da forma
mentis misógina que vem regendo o Direito na Modernidade. É uma nova lógica que se fundamenta na realidade vivida pelas pessoas que se envolvem em
166
Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
conflitos, para além das coerências e plenitudes dos sistemas que só interessam
aos que nutrem vontade de sistema.
Assim, ao que tudo indica, ser feminista e crítica/o seria possível apenas
à medida que formos nos submetendo à complexidade e à fragmentariedade
da contemporaneidade. Instabilidades que se refletem em desconfortos teóricos
voluntariamente aceitos e, sobretudo, desejados, e que podem ser resumidos na
tensão vontade de verdade versus vontade de desconforto.
O debate proporcionado pela Lei Maria da Penha é uma ótima oportunidade para o exercício dessa capacidade.
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169
PARTE II
Interpretação jurídico feminista da lei
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
Comentários: Carmen Hein de Campos
Art.1º. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda,
cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à
vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à
convivência familiar e comunitária.
§1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das
mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e,
especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e
familiar.
Proteger as mulheres da violência no âmbito doméstico e familiar diz respeito à capacidade do estado de garantir nossa segurança e nossa cidadania.
Nesse sentido, afirma Lúcia Avelar (2004) que o debate entre cidadania e segurança humana é essencial à democracia. A Lei Maria da Penha faz surgir o mecanismo jurídico mais importante para a garantia da segurança das mulheres
173
Carmen Hein de Campos
e a promoção da cidadania feminina1. Os altos índices de violência doméstica
praticados contra mulheres no Brasil informam um padrão sistemático dessa
violência e a impossibilidade do exercício da cidadania feminina sob essa inaceitável condição.
Recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo2 (2010) revelou que a violência doméstica contra mulheres não se alterou nos últimos dez anos. Na pesquisa realizada, 13% das mulheres relataram ter sofrido ameaça de surra (em
2001 o índice foi de 12%) e uma em cada dez mulheres (10%) relatou ter sido
espancada ao menos uma vez na vida (11% na pesquisa anterior). Observa-se,
portanto, que a violência nas relações conjugais de conjugalidade e domésticas é
uma realidade ainda persistente.
Essa tolerância tem uma longa trajetória jurídica muito bem documentada
por autoras feministas em mais de trinta anos de estudos e pesquisas, conforme
demonstram Grossi, Minella e Losso (2006). Os primeiros estudos desvelaram
a lógica sexista dos julgamentos em torno da tese da ‘legítima defesa da honra’
ou ‘crimes da paixão’ (CORREA, 1981; 1983); o espancamento tratado como incidente doméstico (ARDAILLON e DEBERT, 1987) e mais recentemente a violência doméstica considerada delito de menor potencial ofensivo pela Lei 9.099/95
(Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) com a aplicação da denominada
‘pena de cesta básica’ (CAMPOS, 2001). Por fim, o caso Maria da Penha Maia
Fernandes3 expôs dramaticamente essa tolerância levada quase ao seu limite
(PANDJIARJIAN, 2007). A luta feminista contra esse (des)tratamento legal às
mulheres culmina com a edição da Lei 11.340/2006.
O artigo 1º do Título das Disposições Preliminares informa o objetivo da
lei de “criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher’,
e seu fundamento legal, o § 8º do art. 226 da Constituição Federal, a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (Convenção CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), e outros tratados
internacionais. Além disso, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e sobre as medidas de assistência e proteção
às mulheres em situação de violência.
1
As Delegacias de Atendimento às Mulheres são um mecanismo essencial vinculado ao sistema de
segurança. A Lei Maria da Penha é um mecanismo ligado ao sistema de justiça. A Lei Maria da Penha
articula esses dois mecanismos e ainda confere novas atribuições às delegacias.
2
Disponível em http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/ pesquisas-realizadas/pesquisa-mulheres-brasileiras-nos-es [Acesso em 01/05/2011]
3
O Caso Maria da Penha Maia Fernandes foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos pelas organizações CEJIL – Centro para a Justiça e o Direito Internacional e pelo CLADEM –
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. Ver Comissão Interamericana
de Direitos Humanos. Informe n. 54/01, caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes v. Brasil, 16/04/2001
174
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
O art. 226 da Constituição Federal estabelece o dever do estado de proteger
a família e seu §8º dispõe que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações”. (grifo nosso)
A obrigatoriedade de proteção, pelo Estado, de cada integrante da família é
decorrência expressa do estabelecido constitucionalmente. Nesse sentido, a Lei
Maria da Penha ao criar mecanismos para coibir a violência contra mulheres no
âmbito doméstico e familiar projeta a aplicabilidade da norma constitucional
aos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, irradiados a partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A
dignidade da pessoa humana implica o respeito e proteção da integridade física,
autonomia corporal e psíquica, individualidade, intimidade, privacidade (SARLET, 2003) e garantia do desenvolvimento autônomo da personalidade no âmbito familiar. É evidente que se não houver respeito à vida e integridade física e
psíquica das mulheres, se não lhes for assegurada condições mínimas para uma
existência respeitada e se sua intimidade for violada, a dignidade estará seriamente comprometida. É por isso que o exercício da violência no espaço doméstico e familiar representa uso arbitrário do poder, violação expressa dos direitos
fundamentais e negação da dignidade humana.
Nesse sentido, a exposição de motivos da Lei reforça a proteção dos direitos
fundamentais, a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos
e o propósito de a legislação contribuir para a igualdade nas relações de gênero
no âmbito familiar:
“14. As disposições preliminares da proposta apresentada reproduzem as regras
oriundas das convenções internacionais e visa proporcionar às mulheres de
todas as regiões do País a cientificação categórica e plena de seus direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, a fim de dotá-la de maior cidadania e conscientização dos reconhecidos recursos para se agir e se posicionar, no
âmbito familiar, e na sociedade, o que de certo, irá repercutir, positivamente, no
campo social e político, ante o factível equilíbrio das relações pai, mãe e filhos”.
A Lei 11.340/06 encontra ainda fundamento jurídico na Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção
CEDAW) ratificada pelo Estado brasileiro4.
O conceito de discriminação adotado pela Convenção é abrangente e vem
expresso em seu artigo 1º como ‘toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no
sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade do
4
A Convenção CEDAW foi adotada pelas Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1884,
com reservas. Ver Piovesan e Pimentel (2011).
175
Carmen Hein de Campos
homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo’.
A conceituação da discriminação prevista no art. 1º da Convenção é ampla
no sentido dos resultados que impliquem prejuízo ou anulação do gozo ou exercício de direitos em base de igualdade com os homens, e embora refira expressamente à categoria sexo, deve ser lida em conjunto com a recomendação específica do Comitê CEDAW5 sobre violência. Na sua Recomendação Geral 19 sobre
violência6, o Comitê explicita que a violência baseada no gênero é uma forma de
discriminação dirigida às mulheres pelo fato de serem mulheres ou que as afeta
desproporcionalmente, impedindo-as de gozar dos direitos em igualdade com
os homens. Inclui atos que causam sofrimento ou dano físico, mental e sexual, as
ameaças de tais atos, coerção ou outras privações de liberdade. A relação entre
discriminação e violência que a Recomendação estabelece confirma o entendimento da violência doméstica como discriminatória nas relações de conjugalidade porque é dirigida às mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, isto
é, a violência como um ato discriminatório de gênero. Ao fazer essa importante
vinculação, a Lei reforça o princípio constitucional da igualdade entre homens e
mulheres e da violência específica contra mulheres como uma forma de discriminação, debilitando as críticas sobre sua inconstitucionalidade pela proteção
exclusiva às mulheres7.
Por sua vez, o artigo 2º da Convenção dispõe sobre a obrigatoriedade dos
Estados-partes de adotarem todas as medidas para eliminar a discriminação contra a mulher, inclusive medidas de caráter legislativo para modificar ou derrogar
leis, usos e práticas que constituam discriminação8. Além dessa disposição, o artigo 3º da Convenção estabelece o dever dos Estados-partes de tomar medidas,
inclusive legislativas, com o objetivo de garantir o exercício e o gozo dos direitos
humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.
Ademais, o Comitê CEDAW nas Observações Finais9 ao Relatório apresentado pelo Estado brasileiro10, parágrafo 113, recomendou que o Brasil adotasse
5
O Comitê CEDAW monitora o cumprimento da Convenção pelos países.
6
Disponível em: http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/recommendations/recomm.htm
7
Ver Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel (2011).
8
Artigo 2º- Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas,
concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a:
f) adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar
leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher.
9
Concluding Observations of the Committee on the Elimination of Discrimination Against Women,
Brazil, U.N. Doc. A/58/38, paras. 76-136 (2003).
10 O Comitê analisou os relatórios inicial, segundo, terceiro, quarto e quinto apresentados pelo Estado
brasileiro em 2002. (CEDAW/C/BRA/1-5) at its 610th, 611th and 616th meetings on 1 and 7 July 2003
(see CEDAW/C/SR.610, 611 and 616).
176
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
todas as medidas para combater a violência contra as mulheres em conformidade com a Recomendação Geral No. 19 do Comitê para prevenir a violência,
punir os agressores e fornecer serviços para as vítimas. Além disso, recomendou
que o país adotasse, sem demora, uma legislação sobre violência doméstica, monitorasse o seu cumprimento e apresentasse informações e dados gerais sobre a
violência contra mulheres em seu próximo relatório11.
Depreende-se dos dispositivos em comento que criar uma legislação especificamente destinada a eliminar a violência contra mulheres tornou-se uma obrigação para o Estado brasileiro. A Lei 11.340/06 veio para realizar essa obrigatoriedade e suprir a lacuna infraconstitucional. Nesse sentido, a edição da Lei Maria da
Penha sintetizou, no campo legislativo e normativo, o cumprimento pelo Estado
brasileiro de suas obrigações internacionais decorrentes da Convenção CEDAW.
Mas a Lei Maria da Penha também encontra fundamento na Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará). Essa Convenção especificamente destinada ao
enfrentamento da violência é o mais importante instrumento normativo do sistema interamericano para o enfrentamento das violências contra mulheres. Sua
relevância é tal, que a Lei incorporou vários de seus dispositivos em seu texto12.
Por fim, o artigo 1º da Lei também dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a cargo dos Tribunais Estaduais
de Justiça e sobre o estabelecimento das medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A criação de Juizados
destinados ao julgamento dos crimes cometidos com violência doméstica é uma
importante inovação da Lei, e os Tribunais de Justiça têm o dever de criá-los. As
medidas de assistência e prevenção e as medidas protetivas que estão previstas
nos artigos 8º, 9º e 18 a 24, respectivamente, são outra novidade da Lei e objeto
de comentários específicos neste livro.
As disposições preliminares, de fato, informam que a Lei cria um estatuto jurídico autônomo, com fundamento legal nos direitos humanos, com mecanismos
específicos e apropriados de proteção e assistência, e com uma jurisdição especial
para o tratamento dos delitos. Este estatuto jurídico autônomo estabelece regras
próprias de interpretação, aplicação e de execução13.
11 113. The Committee urges the State party to take all necessary measures to combat violence against
women in conformity with the Committee’s general recommendation 19 to prevent violence, punish offenders and provide services for victims. It recommends that the State party adopt without
delay legislation on domestic violence and undertake practical measures to follow up and monitor the application of such a law and evaluate its effectiveness. It requests the State party to provide comprehensive information and data on violence against women in its next periodic report.
Concluding Observations of the Committee on the Elimination of Discrimination Against Women,
Brazil, U.N. Doc. A/58/38, paras. 76-136 (2003).
12 Artigo de Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel nesse livro detalham a responsabilidade internacional do
Brasil frente às Convenções.
13 Sobre o assunto, ver artigo de Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho neste livro.
177
Carmen Hein de Campos
Por fim, merece ser comentada a utilização da expressão ‘mulheres em situação de violência’, que exprime uma mudança conceitual e não apenas semântica. O direito penal e processual penal nomina como ‘vítimas’ aquelas pessoas
que sofrem uma ação delituosa ou se encontram no polo passivo da relação processual. Durante muito tempo, o termo também foi utilizado pelas feministas
para se referir às mulheres que sofriam violência doméstica. No entanto, o termo
‘vítima’ foi bastante criticado pelas próprias feministas, uma vez que colocava as
mulheres em uma situação de passividade frente ao outro.
A mudança operada pela Lei, ao substituir a expressão ‘vítima’ por ‘mulheres em situação de violência’, revela o abandono do lugar vitimizante e o caráter
transitório dessa condição. Esse novo lugar indica que a mulher está passando ou
vivenciando uma situação de violência que não é permanente, embora em muitos
casos possa ser bastante longa. Esse novo significado permite o deslocamento para
um lugar de sujeito, assim que cessada a violência ou encontrados os meios para
esse movimento. Essa mudança expressa o rompimento com termos estigmatizantes atribuídos às mulheres que sofrem violência14 e a transformação do significado.
A crítica a essa alteração linguística parece não compreender o significado
e o alcance dessa mudança. Nessa nova conceituação não há possibilidade de
alguma referência à expressão ‘menor em situação irregular’, previsto no regime anterior ao Estatuto da Criança e Adolescente15. A utilização ‘mulheres em
situação de violência’ provoca o sentido inverso a uma suposta solidariedade
universal entre as mulheres que o termo vítima evocaria. Em resumo, expressa
uma mudança teórica importante, de inconformidade com o lugar de ‘vítimas
passivas’ da violência ou de um ‘sujeito deficitário em sua capacidade jurídica’.
O artigo 2º da Lei estabelece o princípio da não discriminação para o gozo dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Assim, a garantia do exercício
dos direitos fundamentais independe de classe, raça ou etnia, orientação sexual,
renda, nível cultural, idade ou religião. Nenhum desses marcadores pode impedir ou dificultar o exercício ou o gozo dos direitos fundamentais, assegurando-se
particularmente a integridade física e mental, o aperfeiçoamento intelectual e social e o acesso às oportunidades e facilidades para uma vida sem violência.
A exposição de motivos da Lei é mais uma vez reveladora:
12. É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das
mulheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica
que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não
14 A criminologia faz forte crítica ao etiquetamento de criminosos e delinquentes, e Louk Hulsmann
propõe mudança de termos para se referir àqueles que comentem infrações penais. A expressão
autor do fato (Lei 9.099/95) e adolescentes em conflito com a lei (Lei 8.089/90) presentes na legislação
brasileira são exemplos de mudanças linguísticas de natureza não estigmatizante.
15 A crítica é formulada por Nilo Batista (2009).
178
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência
doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à
integridade física das mulheres são violados quando um membro da família
tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus
tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos.
No entanto, sabe-se que preconceitos como o de classe, cor, orientação sexual ou idade aumentam a vulnerabilidade das mulheres. Por exemplo, a dependência econômica muitas vezes impede o rompimento da relação violenta ou a
relação violenta aumenta o grau de vulnerabilidade e dependência das mulheres.
Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a violência
doméstica constitui um grande obstáculo para o desenvolvimento econômico.
As mulheres que são vítimas de violência doméstica são menos produtivas no
trabalho. A sua menor produtividade representa uma perda direta para a produção nacional e tem importantes efeitos multiplicadores: as mulheres menos
produtivas geralmente ganham menos e essa diminuição de renda, por sua vez,
implica uma diminuição do consumo e, por conseguinte, da demanda global
(BUVNIC, 1999). Para o BID, os custos econômicos da violência se desagregam
em quatro categorias: os efeitos na saúde (gastos com atenção médica como conseqência da violência), perdas materiais (gastos privados e públicos em polícia,
sistemas de segurança e serviços judiciais), custos intangíveis (o que as pessoas
estariam dispostas a pagar para viver sem violência) e transferências (valor dos
bens perdidos em roubos, destruição etc.). No Brasil, esses custos representaram
sobre o Produto Interno Bruto (PIB) 1,9% gastos em saúde, 3,6% em perdas materiais, 3,4% em custos intangíveis e 1,6% em transferências.
Da mesma forma, Relatório da Organização Mundial de Saúde (2002)16 informa que o chamado ‘espancamento’ (battering) ocorre quando o abuso é repetidamente no mesmo relacionamento e que a maioria das mulheres que são alvo de
agressão física geralmente passa por múltiplos atos de agressão no decorrer do
tempo, e diferentes tipos de abuso coexistem no mesmo relacionamento. Nesse
sentido, o art. 2º reforça o objetivo maior pretendido pela Lei, que é a preservação
dos direitos fundamentais das mulheres e uma vida livre de violências.
Ademais, ao incorporar o conceito de gênero, a Lei não restringiu a proteção à mulher enquanto ser biológico. Sexo e gênero são construções sociais e não
necessariamente correspondentes. Dessa forma, as “mulheres trans17” são protegidas pela Lei. Essa proteção não se limita à identidade sexual, mas engloba a
16
Organização Mundial da Saúde, Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, 2002, p.91.
17
Esses termos identitários mudam rapidamente. Preferimos a utilização da expressão “mulheres
trans” para nos referir às mulheres que têm identidade de gênero diferente de seu sexo biológico.
Agradeço a Rosa Maria Rodrigues de Oliveira por seus comentários e sugestões sobre o tema.
179
Carmen Hein de Campos
identidade de gênero, isto é, aquela cujo sexo biológico (masculino) não corresponde à identidade de gênero (feminino).
Alguns autores defendem ser necessário prova da mudança de nome e alteração de registro18, o que parece demasiado. Essa exigência limita o acesso à justiça e o exercício do direito de proteção, criando um ‘vazio’ jurídico ao deixar fora
do alcance da Lei aquelas que não tenham feito a alteração formal da identidade.
Não parece razoável haver cidadãs que não possam recorrer à proteção judicial
porque o seu registro nominal não confere com sua identidade de gênero. Essa
obrigatoriedade criaria uma imposição para alteração de identidade civil, o que
não é uma exigência da Lei. Esse aparente conflito parece que se resolve em favor
dos direitos das mulheres “trans”, que por sua condição de vulnerabilidade social merecem também a proteção jurídica. Assim, independentemente da troca de
sexo ou de nome, há um direito subjetivo à segurança e acesso à justiça. Do ponto
de vista prático, para o registro da ocorrência policial, deve-se registrar o nome social (como a trans se identifica) e os demais dados constantes na identificação civil.
O pleno exercício dos direitos fundamentais não se dá em abstrato e exige
condições concretas para sua realização. Daí a obrigatoriedade do poder público
de garantir esse exercício, em conformidade com o disposto no art.3º da Lei.
A primeira condição para o exercício pleno dos direitos fundamentais é
uma vida sem violência, objetivo máximo da legislação. Essa condição deve ser
assegurada pelo poder público através de políticas públicas.
O entendimento da complexidade do fenômeno da violência norteou a
proposta de tratamento integral que a Lei estabelece. A vulnerabilidade social
vivenciada por grande parte das mulheres em situação de violência demanda
do poder público medidas concretas para a diminuição do risco de novas violências. Muitas mulheres temem deixar a relação porque não têm para aonde ir,
ou porque não existem programas de atendimento psicológico, ou porque não
têm renda, e assim por diante. Torna-se imperioso pensar como os diversos programas governamentais podem ser mecanismos de apoio e auxílio às mulheres.
Por isso, a integração das esferas governamentais e das políticas públicas é tão
necessária para, de fato, beneficiar as mulheres. Os diversos programas devem
ser entrecruzados, de modo a formar-se uma rede de serviços postos à disposição das mulheres.
Os programas devem prever meios de inclusão facilitada ou prioritária em
casos de violência grave, risco de morte ou outra situação emergencial. Nesse sentido, programas de renda, de proteção a testemunhas, abrigamento, dentre outros, devem proporcionar às mulheres acesso prioritário. Além disso, seu modo
de acesso deve ser do conhecimento dos juizados da violência doméstica e familiar, do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos organismos de segurança e
18
180
Essa é a posição de Humberto Dalla de Pinho (2009).
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
de organizações não governamentais que atendem mulheres. Assim, a rede deve
estar intra e interconectada, de modo a garantir o fluxo das informações.
Programas de natureza educativa também devem ser ofertados às mulheres, não apenas para a educação formal, mas aqueles que possam desenvolver
suas capacidades laborais ou fontes de renda autônoma. Desenvolver a autonomia econômica das mulheres é condição necessária para o início de uma vida
nova. Propiciar as condições materiais para atingir esse fim é tão importante
quanto a existência de disponibilidade subjetiva das mulheres.
O acesso à justiça oportunizado pelos diversos mecanismos previstos na
Lei não pode ser obstaculizado pela omissão dos poderes públicos. Por isso, não
só a existência de políticas públicas e de rede de atenção, mas a criação dos juizados de violência doméstica e familiar é condição necessária para o exercício
desse direito fundamental. Esses juizados devem ser providos com magistrados/
as capacitados/as e que compreendam a complexidade do fenômeno desse tipo
de violência. Em virtude dessa complexidade, a Lei prevê que os Juizados tenham uma equipe multidisciplinar para auxiliar o juízo.
O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher19, que
possui na implementação da Lei Maria da Penha um de seus eixos fundamentais, prevê o fortalecimento da rede de assistência às mulheres. A rede de assistência é um mecanismo importante para a concretude dos direitos fundamentais
elencados pela Lei. A rede de serviços por sua vez deve estar conectada à de
programas assistenciais, em um fluxo de permanente troca e conhecimento, de
modo a facilitar o ingresso das mulheres.
Por fim, o § 2º reforça o comando constitucional da responsabilidade da família, da sociedade e do poder público de efetivar as condições para o exercício
desses direitos. Vale dizer, ainda, que a família deve banir a violência e criar formas de socialização que primem pelo respeito aos direitos das mulheres; a sociedade não deve tolerar a violência doméstica e familiar; e os poderes públicos
necessitam cumprir, fazer cumprir e efetivar esses direitos através de políticas
públicas que articulem a prevenção, a assistência e a contenção dessas violências.
O art. 4º reforça o caráter integrativo e sistemático que deve permear a interpretação desse novo estatuto legal que estabelece um sistema jurídico autônomo
regido por regras próprias de interpretação, de aplicação e de execução. Esse
novo estatuto jurídico, cujo objetivo é proteger, dar assistência e punir a violência, deve ser interpretado à luz dos preceitos constitucionais e dos intrumentos
internacionais de direitos humanos que promovem a dignidade e os direitos
19
O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher foi lançado em 2007 e é a principal política nacional elaborada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Articula-se em quatro
eixos, sendo um deles a implementação da Lei Maria da Penha e da rede de assistência às mulheres
em situação de violência. O Pacto destinou recursos aos estados e municípios para a construção de
equipamentos sociais para a rede de assistência, como casas abrigo e centros de referência.
181
Carmen Hein de Campos
fundamentais das mulheres, coibindo-se no âmbito das relações domésticas e
familiares toda e qualquer forma de violência.
A ‘condição peculiar das mulheres em situação de violência’ diz respeito à
vulnerabilidade específica decorrente da violência. Essa vulnerabilidade é em
grande parte psicológica, refletindo-se na baixa estima das mulheres, e também
em sua saúde física, mas também pode estar relacionada a outras condições.
Cite-se como exemplos, mulheres que vivem em bairros distantes, com imensa
dificuldade de acesso aos serviços, ou em localidades consideradas muito perigosas, ou ainda vivendo com com companheiros envolvidos com o tráfico de
drogas. Essas e outras situações tornam a vida dessas mulheres ainda mais vulnerável. Desse modo, considerar essas peculiaridades e as diversas circunstâncias que envolvem a vida das mulheres é absolutamente necessário para uma
adequada prestação jurisdicional, ou assistencial.
As dúvidas de interpretação que porventura surjam quando de aplicação da
Lei devem guiar-se pela orientação ampla desse dispositivo. É de se ressaltar que
essa disposição reforça o afastamento do entendimento de alguns magistrados de
que a Lei se aplica também aos homens. O objetivo da Lei é cristalino – proteção às
mulheres em situação de violência –, sem possibilidade de aplicação aos homens.
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182
Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
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SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
183
Da violência doméstica e familiar – artigo 5º
Comentários: Fabiane Simioni e Rúbia Abs da Cruz
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que
são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com
a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação
sexual.
A violência baseada nas desigualdades de gênero1 no âmbito doméstico há
muito está na agenda dos debates políticos nas sociedades complexas contemporâneas. No caso brasileiro, esta agenda se desenvolve a partir da presença
das mulheres na resistência ao período ditatorial, na década de 60 (SARTI et al.,
2001:33). A participação das mulheres nas lutas contra a violência política do
Regime Militar, pela anistia e por melhorias nas condições de vida das mulheres
empobrecidas, contribuiu para que mulheres de vários segmentos sociais se organizassem politicamente em torno de uma luta que, no contexto pós-ditadura,
as unificava: a violência doméstica e familiar (GOMES et al., 2009: 12).
De lá para cá, muitas disputas e tensões contribuíram para dar visibilidade
aos essencialismos recorrentes na cultura patriarcal, como também para introduzir outros discursos sobre as relações de poder entre homens e mulheres, homens
1
Os ‘estudos de gênero’ surgiram, nas décadas de 60 e 70, para problematizar os diferentes valores
culturais que são dados às mulheres e aos homens. Estes valores definem os comportamentos e as
expectativas sobre como deve ser a mulher e como deve ser o homem na nossa sociedade. De acordo
com Warat (1997:59), quando se fala em gênero, a referência que se faz é sobre as implicações que
o exercício do poder tem sobre as subjetividades masculina e feminina. Entretanto, como adverte
Scott (1990), este termo não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às
práticas cotidianas, aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais.
185
Fabiane Simioni e Rúbia Abs da Cruz
e homens, mulheres e mulheres. Um bom exemplo disso foi a normatização, através da Lei Maria da Penha, de um dos temas mais caros ao campo da militância
feminista que são os diversos tipos de violências praticadas contra as mulheres.
Aqui nesse espaço, nos propomos a analisar o artigo 5º e seus incisos, tendo
em vista que se trata de um dos elementos chaves para uma adequada hermenêutica desta lei2.
O caput do artigo 5º traz o conceito fundamental de violência doméstica e
familiar contra a mulher. Com efeito, o conceito utilizado na legislação reproduz a definição utilizada na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como ‘Convenção de Belém
do Pará’. Nesse sentido, será configurada quando uma ação ou omissão causar
a qualquer mulher3 danos em diferentes graus, seja em relação à integridade
física, aos bens materiais ou aos bens imateriais.
As relações interpessoais marcadas pela violência fazem parte das formas
de socialidade presentes nas sociedades complexas, onde as hierarquias e as desigualdades contribuem para a formação do arcabouço cultural das práticas discriminatórias e violentas em diferentes esferas sociais, das relações indivíduo-Estado
até a vida cotidiana. Nesse sentido, essas situações de conflitualidade encontram
legitimidade entre aqueles (sejam homens ou mulheres) que operam e agem segundo uma lógica androcêntrica baseada na dominação e subordinação imposta a
todo aquele que não se encontra em igual ou superior posição hierárquica.
As diferenças (de classe, de gênero, de geração, de raça/etnia) entre os sujeitos foram apropriadas de um modo que o outro, o diferente da norma tornada hegemônica (diferente do modelo masculino tomado como o neutro) deve
ser invisibilizado ou inferiorizado, tornando-se, desse modo, alvo preferencial
de diferentes tipos de violências. No caso da violência contra as mulheres existem ingredientes que tornam essas conflitualidades ainda mais críticas. A relação afetivo-conjugal e a habitualidade das situações de violências tornam as
2
Aqui nos reportamos ao movimento geral de questionamento método tradicional hermenêutico no
âmbito jurídico, no sentido de que o legislador não é o único a dizer o sentido da lei, que o intérprete
também a constrói; que a norma em si mesmo não é abstração, pois adquire sentido diante do caso
concreto; que é descabida a dicotomia entre questão de fato e questão de direito; que o caminho
hermenêutico não é silogismo subsuntivo, enfim, que o juiz não é mero reprodutor do ‘senso comum
teórico dos juristas’ (SILVA FILHO et al. 2007: 25-6).
3
Cabe esclarecer que a lei não faz distinção entre mulheres numa acepção estritamente biológica e
uma mulher transgênero (identificada subjetivamente como mulher, com a adoção de caracteres
sexuais secundários e/ou primários e a ressignificação do feminino). Portanto, acreditamos que a
proteção da Lei Maria da Penha deva ser compreendida no sentido amplo do sistema de gênero,
para acolher situações de violência contra mulheres ‘trans’, independente de ter havido a cirurgia de
transgenitalização. Tal interpretação está baseada na idéia de que as desigualdades entre homens e
mulheres, entre homens e homens, entre mulheres e mulheres, muito mais que natural ou biológica,
tratam-se de construções e representações culturais determinadas e engendradas historicamente.
Sobre políticas pós-identitárias ver: LOURO (2001) e MISKOLCI (2009). Sobre a patologização da
transexualidade, ver: BENTO (2008).
186
Da violência doméstica e familiar – artigo 5º
mulheres ainda mais vulneráveis dentro sistema das desigualdades de gênero
(CAMPOS, 2006: 2). Nos espaços familiares, onde as relações interpessoais entre
os sujeitos foram historicamente interpretadas como restritas e privadas, a complacência e a impunidade para com a violência praticada nesse âmbito encontraram sua legitimação social. Criou-se um senso comum apoiado na idéia de
que o espaço doméstico é ‘sagrado’, acreditando-se que aquilo que ocorre entre
familiares não ameaça a ordem social, ou que a forma como aqueles sujeitos se
relacionam é natural, operando-se com a ficção de que a liberdade é vivida na
esfera pública e a privação na esfera privada. Postulamos que a conflitualidade
no âmbito doméstico deve ser compreendida como um fenômeno relacional, fazendo parte daquela cena os diversos sujeitos e atores sociais, para além de uma
polarização reificada entre agressor e vítima. Daí a importância da análise dos
contextos e significados atribuídos por estes sujeitos. Nessa perspectiva, não se
pode definir a violência como uma categoria a priori, mas configurada segundo
as regras do espaço social no qual se manifesta (SARTI, 2006:169).
Contextualizando o referido, destacamos o caso do juiz da cidade de Sete
Lagoas, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, que em uma sentença sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, em que não deferia as medidas protetivas de
urgência, manifestou-se de forma discriminatória, escrevendo o que cotidianamente escutamos em vários ambientes sociais:
“(...) Por isso — e na esteira destes raciocínios — dou-me o direito de ir mais
longe, e em definitivo! O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é
masculina! Jesus foi Homem!”4.
Refere o magistrado que observa a Lei Maria da Penha como “um conjunto
de regras diabólicas” e que a “a desgraça humana começou por causa da mulher”. Além disso, reputava a lei como um “monstrengo tinhoso”5.
O caso teve grande repercussão na mídia, sendo o Conselho Nacional de
Justiça acionado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres para se manifestar.
A decisão do CNJ foi no sentido de suspender o juiz de seu cargo, devido ao caráter discriminatório e sexista de sua decisão, totalmente contrária ao princípio
básico de garantia do direito humano das mulheres a uma vida livre de violência
(CRUZ et al., 2008:17). Esse posicionamento, embora coerente com o direito à
livre expressão, viola valores fundantes do Estado Democrático de Direito, bem
como ignora o reconhecimento e a garantia dos direitos fundamentais como exigência inarredável da dignidade humana (SARLET, 2009), da igualdade e da
não-discriminação (RIOS, 2008).
4
Disponível em: www.sbdp.org.br/arquivos/materiais/439_CNJdecisesde1ae2ainstncias.pdf
5
Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101110/not_imp637613,0.php
187
Fabiane Simioni e Rúbia Abs da Cruz
Ademais, o magistrado faz uma grande confusão entre religião e Estado.
Como nos lembra Lopes (2005: 66), a ordem jurídica de um Estado Democrático
de Direito não está fundada em razões religiosas de nenhum dos grupos que
compõem a soberania popular daquele Estado. Em outras palavras, acreditamos
que o discurso do magistrado negou a laicidade do Estado brasileiro, e portanto,
afrontou o próprio texto da Constituição Federal de 1988. Esse exemplo, por
fim, chama a atenção sobre o quanto é preciso ainda desconstruir os discursos e
as práticas que buscam sua legitimidade em afirmações travestidas de interesse
público, mas que apenas reproduzem a convicção de um determinado pertencimento religioso.
Segundo Cruz e Severo (2010: 47), para uma melhor compreensão sobre a
inserção e o desenvolvimento da violência nos espaços privados deve-se atentar para as conseqüências de uma socialização permeada pela ordem patriarcal
marcada por valores que relegam à mulher uma postura de submissão.
Vale dizer, portanto, que, muitas vezes, é na mais tenra infância, em casa,
que se inicia a lógica de dominação do masculino sobre o feminino e que prossegue na escola, nas vivências comunitárias, nas mídias e no convívio social de
uma maneira geral. Essa realidade faz com que as possibilidades e as estratégias
de transformações culturais para a superação dessas desigualdades devem ser
consideradas um exercício permanente de tensionamentos e de redefinições.
I e II – Da unidade doméstica e familiar
A Lei Maria da Penha retrata uma mudança de paradigma no enfrentamento
da violência contra a mulher, pois traz uma perspectiva de gênero para tratar da
violência contra a mulher. Ora, se a tortura, o cerceamento da liberdade ou a violência física (apenas para citar alguns exemplos), exercidas nos mais diferentes
contextos, são considerados intoleráveis no espaço público, porque seriam toleráveis quando praticadas contra mulheres, no espaço doméstico e intrafamiliar?
No Brasil, as pesquisas indicam que as mulheres estão mais propensas a
sofrer violência dentro de suas casas e por parte de pessoas de sua confiança.
Nesse sentido, a pesquisa de opinião pública realizada pela Fundação Perseu
Abramo e SESC revela que 40% das mulheres entrevistas afirmaram terem sofrido algum tipo de violência (2010: 235-6)6.
Os incisos I e II, do artigo 5º da Lei Maria da Penha, coíbem a violência contra a
mulher mais comum no Brasil, de acordo com os dados estatísticos, que é a violência doméstica e familiar, ainda que não se desconheça outras formas de violências
6
188
A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços públicos e privados” conta com uma amostra de 2.365 entrevistas com mulheres acima de 15 anos de idade, distribuídas por 25 unidades da
federação e intervalo de confiança de 95%. No final da década de 80, o IBGE constatou que 63% das
vítimas de agressões físicas ocorridas no espaço doméstico eram mulheres (SIMIONI et al., 2008: 9).
Da violência doméstica e familiar – artigo 5º
e discriminações contra as mulheres. Nesse sentido, o dispositivo aponta para o
espaço doméstico como o locus privilegiado para a proteção às mulheres.
Entretanto, a violência ocorrida na rua, no trabalho, ou outros espaços, que
seja perpetrada por marido ou ex-marido, companheiro ou ex-companheiro,
namorado ou ex-namorado, amante ou ex-amante, e ainda outros parentes ou
moradores da mesma casa que tenham ou não vínculo familiar, também deverá
ser considerada de competência da Lei Maria da Penha. Diferentemente da Convenção de Belém do Pará que ampara as mulheres em todos os âmbitos da vida,
seja na unidade residencial, seja fora dela, no trabalho, na escola, no posto de
saúde ou em qualquer outro espaço, o legislador brasileiro optou por especificar
a proteção contra as violações dos direitos das mulheres cometidas no âmbito
das relações de convivência e familiares.
De outra parte, o conceito de comunidade familiar proposta pela Lei é
amplo. Nele estão abarcados maridos, companheiros, namorados, amantes, filhos, pais, padrastos, irmãos, cunhados, tios e avós (com vínculos de consangüinidade, de afinidade ou por vontade expressa). Este conceito abrange uma
variedade de laços de pertencimento no âmbito doméstico.
Salienta-se que o dispositivo alcança também as pessoas ‘esporadicamente
agregadas’, visto que particularmente em casos de violência sexual, sobrinhas, enteadas, irmãs unilaterais (filhas de um dos cônjuges de outra relação) que convivem
na mesma casa, e até empregadas domésticas que dormem ou não na residência,
podem sofrer com esse tipo de violência. Na prática judiciária, esses casos pouco
têm chegado ao conhecimento dos Juizados de Violência Doméstica. Uma hipótese
para essa situação pode ser uma limitada interpretação da Lei Maria da Penha.
Esse dispositivo também é importante porque permite que a violência sexual
contra mulheres ocorrida no âmbito doméstico e familiar saia da invisibilidade,
assim como permite um tratamento jurídico-legal mais adequado à questão, no
marco da compreensão da violência sexual como uma variante da violência baseada nas desigualdades de gênero. Por certo, reconhecemos que a violência sexual
também é recorrentemente perpetrada por vizinhos e conhecidos7. Entretanto,
esses casos ficaram de fora do âmbito da Lei Maria da Penha, pois contam com
uma legislação penal específica, ainda que as medidas protetivas de urgência,
nesses casos, obedeçam aos ritos e garantias de outras normativas afins.
III e parágrafo único – Das relações íntimas de afeto e da orientação sexual
O inciso III não deixa dúvidas de que as relações afetivo-sexuais momentâneas,
duradouras ou situacionais estão incluídas na competência da Lei Maria da Penha,
7
De acordo com Vieira (2008: 114-5), a maioria dos registros em Boletins de Ocorrência, de crimes
sexuais da Delegacia da Mulher de Porto Alegre indicava que as partes eram conhecidas entre si (227
registros – 81,36%). Essa e outras pesquisas indicam um certo incômodo com a representação social
majoritária do estupro como um crime realizado por desconhecidos.
189
Fabiane Simioni e Rúbia Abs da Cruz
já que fala ‘em qualquer relação íntima de afeto’. A lei não refere qualquer critério para
a caracterização deste tipo de relacionamento. Tampouco exige a comprovação de
um tempo mínimo para proteger a mulher submetida a um tratamento violento.
O inciso abrange, por conseqüência, a figura do(a) amante, daquele(a) que não coabita, mas que mantém uma relação afetivo-sexual com uma ou várias mulheres.
Qualquer especulação ou interpretação diversa, no sentido de aplicar a Lei
somente aos casos de relacionamentos duradouros, estará fundada em concepções pessoais, relacionadas a uma moralidade conservadora em relação a estilos
de vida divergentes da norma hegemônica. Por que somente as mulheres casadas ou que vivem em união estável teriam a proteção do Estado em caso de
violência doméstica e familiar? As decisões no Superior Tribunal de Justiça são
divergentes quanto à aplicação da Lei 11.340/2006 em relações afetivo-sexuais
passageiras. Todavia, postulamos que a interpretação a ser empreendida a partir
do inciso III, do artigo 5º da Lei Maria da Penha permite sua abrangência para as
relações afetivo-sexuais momentâneas ou situacionais8.
De outra parte, o parágrafo único da Lei Maria da Penha, também inovou
quando deu visibilidade as situações de conflitualidade nas relações conjugais
entre duas mulheres, em seu artigo 5º.
O referido dispositivo não discrimina em relação ao sexo e ao gênero no
que concerne aos autores de violência doméstica, uma vez que estabelece que as
relações pessoais independem de orientação sexual. Nesse sentido, em relações
entre mulheres, uma das parceiras pode ser autora de violência e o procedimento a ser aplicado será o da Lei Maria da Penha. Concordamos com Campos
(2008: 261), quando refere que a discriminação que a Lei faz está relacionada ao
sujeito passivo dessa violência, assim como o fazem vários tipos penais.
A esta altura, retornamos para o ponto em que começamos esses comentários, quando destacávamos as desigualdades nas relações de poder entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres. A existência dessa
dimensão da desigualdade baseada no gênero combinada com aspectos da vulnerabilidade social de um grande grupo de mulheres (somados aos marcadores de classe, raça/etnia e geração) foram alguns dos fatores determinantes para
a construção de uma legislação nacional especialmente dedicada à coibição da
violência doméstica e intrafamiliar.
Exatamente por isso é que a Lei Maria da Penha tornou-se também um instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres e mulheres e mulheres. Assim, não há que se cogitar de qualquer ofensa ao princípio
8
190
Na decisão do Conflito de Competência nº 96533/MG, o Ministro Og Fernandes entendeu pela inaplicabilidade da Lei Maria da Penha. Foi voto vencido o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho ao
entender pela aplicabilidade da Lei Maria da Penha em caso de relações de namoro. Na mesma linha
do voto vencido: Ministra Laurita Vaz, na decisão CC 100654-MG; Ministra Jane Silva CC 96532-MG;
Ministro OG Fernades CC 104758-MG; Ministro Napoleão Nunes Maia Filho CC 88952-MG e CC
96522-MG; Ministro Felix Fischer CC 90603-MG.
Da violência doméstica e familiar – artigo 5º
da igualdade. Ao contrário, a inexistência da lei, o silêncio do legislador, é que
caracterizariam afronta à igualdade materialmente pretendida (PIOVESAN; PIMENTEL, 2007). Trata-se de um compromisso público firmado com as mulheres
no sentido de serem assegurados muito mais que o direito uma vida livre de
violência, mas também a promoção positiva do princípio da dignidade humana,
da igualdade, da liberdade, da integridade, da integridade física e moral e da solidariedade (garantia e promoção da coexistência humana)9. Para além do valor
legal e jurídico, a Lei Maria da Penha, possui também um caráter preventivo,
pedagógico, político e de denúncia.
Entretanto, a lei não compreende todas as formas existentes de situações de
conflitualidade domésticas e familiares, pois outras normatizações se dedicam
a determinadas populações específicas. É o caso da violência contra crianças e
adolescentes, disciplinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e da violência contra idosos, amparados pelo Estatuto do Idoso. Infelizmente as violências fundadas nas assimetrias hierárquicas não se limitam aos casos abarcados
nessas legislações, como é o caso das violências baseadas na orientação sexual
(homofobia, lesbofobia) ou na identidade de gênero em relação às transexuais e
travestis (transfobia).
Diante dessas considerações, concluímos que muito trabalho foi dedicado
no processo legislativo para a aprovação deste instrumento jurídico tão importante na defesa dos direitos humanos das mulheres. A cultura político-jurídica
brasileira permanece construindo avanços e retrocessos em matéria de garantias
aos direitos fundamentais, mas consideramos que a promulgação da Lei Maria
da Penha veio dar uma contribuição inestimável para os necessários processos
de ressignificação das interações entre os sujeitos. Nesse sentido, a interpretação
do artigo 5º nos convida a uma atuação diligente quanto aos modos de produção, prevenção e coibição da violência doméstica e familiar contra as mulheres.
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9
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191
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193
Da violência contra a mulher como uma
violação de direitos humanos – artigo 6º
Comentários: Maria Berenice Dias e Thiele Lopes Reinheimer
Art. 6º. A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.
Considerações iniciais
Não bastou a revolução feminina ter marcado o século anterior. O significativo avanço das mulheres em várias áreas e setores não conseguiu encobrir a mais
cruel sequela da discriminação de que ainda são vítimas: a violência doméstica!
Ainda que o momento não comporte uma análise mais apurada sobre as
causas de quando o amor gera dor, ninguém duvida que é a ideologia patriarcal
– ainda subsistente – que leva o homem a se considerar proprietário do corpo e
da vontade da mulher e dos filhos.
Ao homem sempre coube o espaço público. A mulher foi confinada ao limite do lar, com o dever de cuidado do marido e dos filhos. Isso ensejou a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; outro de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais dos
homens e das mulheres. Ele provendo a família e ela cuidando do lar, cada um
desempenhando a sua função.
Os distintos padrões de comportamento instituídos para homens e mulheres levam à geração de um verdadeiro código de honra. A sociedade outorga ao
macho um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão da fêmea. As
mulheres acabam recebendo uma educação diferenciada, pois necessitam ser
mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e em seus desejos. Por isso,
o tabu da virgindade, a restrição ao exercício da sexualidade e a sacralização da
maternidade. Ambos os universos, ativo e passivo, distanciados, mas dependentes entre si, buscam manter a bipolaridade bem definida, sendo que ao autoritarismo corresponde o modelo de submissão.
A descoberta de métodos contraceptivos e as lutas emancipatórias levaram
ao surgimento de uma nova postura feminina, que acabou impondo a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao integrar-se no mercado de trabalho, passou a cobrar do homem a necessidade de assumir responsabilidades
dentro de casa.
195
Maria Berenice Dias e Thiele Lopes Reinheimer
Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro preestabelecido, criando um contexto potencializador para situações de violência, que
tem como justificativa a cobrança de possíveis falhas no cumprimento ideal dos
papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com a atuação do outro quanto
ao cumprimento do modelo, surge a “guerra” dos sexos. Em geral, cada um dos
envolvidos usa suas armas: eles, os músculos; elas, as lágrimas. As mulheres,
por evidente, levam a pior, tornando-se vítimas da violência masculina.
Agressor e agredida firmam um pacto de silêncio, que o livra da punição.
Estabelece-se um verdadeiro círculo vicioso: a mulher não se sente vítima, o que
faz desaparecer a figura do agressor. Mas a ausência de imposição de uma barreira faz a violência só aumentar.
A violência, frequentemente, está ligada ao uso da força física, psicológica
ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer. A relação de
desigualdade entre o homem e a mulher, realidade milenar que sempre colocou
a mulher em situação de inferioridade lhe impondo a obediência e a submissão,
é terreno fértil à afronta ao direito à liberdade.
O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa
autoestima decorrente da ausência de pontos de realização pessoais sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. A ideia sacralizada da família e a inviolabilidade do domicílio serviam de justificativa para impedir qualquer tentativa de
coibir o que acontecia dentro do lar. A família vista como “entidade inviolável”
não se sujeitava a qualquer interferência, tampouco a da Justiça, o que tornava
a violência invisível.
Acostumada a realizar-se exclusivamente com o sucesso do par e o saudável desenvolvimento dos filhos, algumas esposas e mães acabavam por desenvolver um profundo sentimento de culpa, o que a impedia de usar a queixa
como forma de fazer cessar a agressão de que era vítima. Em seu íntimo, talvez
se achasse merecedora da punição, por ter desatendido as tarefas que historicamente eram-lhe afetas. Daí os dados assustadores da Organização Mundial da
Saúde. As mulheres agredidas ficam, em média, convivendo um período não
inferior a dez anos com seus agressores (ROVINSKI, 2004: 8).
Em boa hora surgiu a Lei Maria da Penha, que veio criar mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Veio dar efetividade à
Constituição Federal que proclama, no seu artigo 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. E promete, no artigo 226, § 8º: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
Antes da sua promulgação, as agressões contra a mulher sequer eram identificadas como violação dos direitos humanos. Daí louvável a iniciativa do legislador em expressamente fazer tal afirmativa, que dispõe, inclusive, de caráter pedagógico. Certamente a mais eficaz arma para coibir a violência doméstica é gerar no
agressor a consciência de que ele não é o proprietário da mulher, não pode dispor
196
A violência contra a mulher como uma violação de direitos humanos – art.6º
de seu corpo, comprometer impunemente sua integridade física, higidez psicológica e liberdade sexual.
Ainda que a lei não seja a sede adequada para emitir conceitos, andou bem
a Lei Maria da Penha em definir a violência doméstica e identificar suas formas.
Afinal, a absoluta falta de consciência social do que seja violência doméstica é
que acabou condenando esse crime à invisibilidade.
Violência doméstica, como diz o próprio nome, é a violência que acontece
no seio de uma família. Pela primeira vez foi consagrada, em âmbito infraconstitucional, a ideia de que a família não é constituída por imposição da lei, mas sim,
por vontade dos seus próprios membros (ALVES, 2007: 149).
Com o advento da nova normativa legal, a mulher, visivelmente mais frágil
quando o assunto é violência doméstica, começou a receber a merecida atenção.
“Por via complementar, pode-se afirmar que a Lei Maria da Penha protege, além
da mulher vítima de violência, a família e a sociedade, dado que o sofrimento
individual da mulher ofendida agride ao equilíbrio de toda a comunidade e a
estabilidade das células familiares como um todo” (PARODI; GAMA, 2009: 130).
Com o afastamento do modelo convencional da família, constituído pelos
sagrados laços do matrimônio, ocorreu o alargamento do conceito de família, que
enlaça uma multiplicidade de conformações interpessoais. Tal foi a transformação por que passaram as estruturas familiares que se fez necessário buscar este
novo conceito de família que albergasse todas as formas de convívio que as pessoas encontraram para alcançar a tão almejada felicidade. O elemento identificador está em sua origem, ou seja, no vínculo de afetividade presente em todas elas.
É indispensável ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no
conceito de entidade familiar os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar. Nesse conceito, também em boa hora o Supremo Tribunal Federal reconheceu as famílias homoafetivas, depois de muita luta contra
todas as formas de discriminação e preconceito.
As uniões entre pessoas do mesmo sexo não estão previstas expressamente
na Constituição Federal que, no entanto, consagra como princípio fundamental,
o respeito à dignidade humana. Deste modo, os relacionamentos afetivos são
alvos da proteção constitucional, independentemente da identidade do sexo do
par: se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens.
A natureza afetiva do vínculo em nada diferencia as uniões hétero e homossexuais, sendo todas identificadas como entidade familiar.
Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de
assistência, em verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito
mútuo, com o objetivo de construir um lar, é inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gere direitos que já não podem
ficar à margem da tutela jurídica.
197
Maria Berenice Dias e Thiele Lopes Reinheimer
A omissão do legislador impôs à doutrina e à jurisprudência o encargo de
identificar as uniões homoafetivas como entidades familiares no âmbito do Direito das Famílias. A falta de lei não serviu de empecilho. O art. 4ª da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro1 indica o caminho. O juiz deve fazer
uso da analogia, dos princípios gerais de direito e dos costumes. Como alerta
Veloso (1999: 92), a interpretação deve ser axiológica, progressista, na busca daqueles valores, para que a prestação jurisdicional seja democrática e justa, adaptando-se às contingências e mutações sociais.
A única referência legal à natureza familiar das uniões homoafetivas encontra-se na Lei Maria da Penha. Diz o seu art. 2º: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual [...], goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. O parágrafo único do art. 5º reitera que
independem de orientação sexual todas as situações que configuram violência
doméstica e familiar. Como é assegurada proteção legal a fatos que ocorrem
no ambiente doméstico, isso significa que o legislador reconhece as uniões de
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Assim, toda relação de parentesco, de afinidade, de socioafetividade ou de afeto, em eficácia ou rompida,
tenha havido ou não coabitação ou prática de relações sexuais, todo e qualquer
relacionamento dessa natureza está protegido por essa lei (PARODI; GAMA,
2009: 129).
As uniões homoafetivas não podem ser negadas. Quando seus membros
vêm reclamar a tutela jurídica, o juiz não pode omitir-se. Incabível que suas
convicções subjetivas o impeça de julgar, pois a mais cruel consequência do agir
omissivo é a perpetração de grandes injustiças. Segundo Rodrigo da Cunha Pereira (2001: 281), “[...] em nome de uma moral sexual dita civilizatória, muita
injustiça tem sido cometida. O Direito, como instrumento ideológico e de poder,
em nome da moral e dos bons costumes, já excluiu muitos do laço social.”
A homoafetividade e a violência doméstica
Ainda que a Lei Maria da Penha tenha por finalidade proteger a mulher,
acabou por cunhar este novo conceito de família, independentemente do sexo
dos parceiros. A entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica para
abarcar todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto
(ALVES, 2007: 149).
A Lei, ao afirmar que a mulher está sob o seu abrigo, sem distinguir sua orientação sexual, assegura proteção tanto às lésbicas como às travestis, às transexuais
e aos transgêneros do sexo feminino que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. A Lei busca a preservação plena da dignidade da
1
198
Lei nº 12.376, de 30 de dezembro de 2010.
A violência contra a mulher como uma violação de direitos humanos – art.6º
pessoa humana, fazendo valer o gênero alegado pela pessoa vitimada (PARODI;
GAMA, 2009: 130).
Para o reconhecimento da violência doméstica, preocupou-se o legislador
em delimitar o seu alcance. Assim define unidade doméstica (art. 5º, inc. I): “espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive
as esporadicamente agregadas”. Depois, estabelece que a violência passa a ser
doméstica quando praticada: a) no âmbito da unidade doméstica; b) no âmbito
da família; ou c) em qualquer relação íntima de afeto, independentemente da
orientação sexual da vítima.
Para se chegar ao real conceito de violência doméstica, é necessária a conjugação dos arts. 5º e 7º da Lei Maria da Penha. Deter-se somente no art. 5º é insuficiente, pois são vagas as expressões: “qualquer ação ou omissão baseada no
gênero”; “âmbito de unidade doméstica”; “âmbito da família” e “relação íntima
de afeto”. De outro lado, apenas do art. 7º também não se retira o conceito legal
de violência contra a mulher. A solução é interpretar os arts. 5º e 7º conjuntamente para, então, extrair o conceito de violência doméstica e familiar contra a
mulher (MISAKA, 2007: 85). Ou seja, violência doméstica é qualquer das ações
elencadas no art. 7º (violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral)
praticada contra a mulher em razão de vínculo de natureza familiar ou afetiva.
É obrigatório que a ação ou omissão ocorra na unidade doméstica ou familiar ou em razão de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. De
modo expresso está ressalvado que não há necessidade de vítima e agressor
viverem sob o mesmo teto para a configuração da violência como doméstica ou
familiar. Basta que agressor e agredida mantenham, ou já tenham mantido, um
vínculo de natureza familiar2.
Como o conceito de entidade familiar foi reformulado, abarcando o afeto como
elemento principal e vinculativo, é necessário perceber a existência da violência
2
“Apelação criminal. Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Incidência. Medidas protetivas de urgência, sob pena de prisão preventiva. Deferimento. O indivíduo que, por obsessão própria ou rejeição
pessoal, persegue e ameaça uma mulher com a qual quer se relacionar, pode ter sua conduta coibida pela Lei Maria da Penha, que, além de conferir especial tutela protetiva à violência doméstica e familiar, dá cumprimento aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, em especial à
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e à Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a fim de combater todas
as formas de violência contra a mulher, decorrentes das relações de gênero. No caso examinado, o
agente (35 anos), de forma obsessiva, quer se relacionar com uma menor de 14 anos. Ante a recusa,
persegue, agride e ameaça de morte a menor e seus familiares, impedindo-a, inclusive, de frequentar
regularmente a escola. Ademais, o histórico policial do acusado, com inúmeros registros, inclusive
de crimes com violência, demonstra que o temor da família da menor-vítima tem fundamento e merece a devida tutela jurisdicional protetiva. Deferimento de medidas protetivas de urgência à vítima
e seus familiares, sob preceito cominatório de prisão preventiva do agente, no caso de violação das
ordens de não fazer. Apelo provido (TJRS, AC 70022590905, 6.ª C.Crim., Rel. Des. Aymoré Roque
Pottes de Mello, j. 27/03/2008)”.
199
Maria Berenice Dias e Thiele Lopes Reinheimer
doméstica nas uniões gays, uma vez que é essencial a proteção de todos os membros da família que sejam vítimas de agressões, sejam eles quem for. Não só as mulheres, mas também homens. Em recente decisão, juiz de Rio Pardo-RS, invocando
a analogia, aplicou a Lei Maria da Penha à relação homoafetiva entre dois homens.
Concedeu medida protetiva à parte que afirmou estar sendo ameaçado por seu
companheiro após o término do relacionamento3. Alarga-se a interpretação da Lei.
Não é mais possível deixar de arrostar a realidade do mundo de hoje. Todos
precisam ter os olhos abertos para ver a realidade social, os ouvidos atentos para
ouvir o clamor de quem só quer ter assegurado o direito de ser feliz. Somente
a partir desta conscientização de que hoje há novos modelos de famílias e baseando-se na mútua colaboração e no afeto é que se poderá chegar à tão almejada
igualdade e ao fim da violência.
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maio 1999.
3
200
Proc. nº indisponível, Juiz de Direito Osmar de Aguiar Pacheco, j. 23/02/2011. Decisão na íntegra
disponível no site www.direitohomoafetivo.com.br.
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
Comentários: Virgínia Feix
Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde
corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional
e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir
e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a
manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação
ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio,
à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação
ou injúria.
Considerações Gerais
O artigo 7º da Lei Maria da Penha (LMP), em conjunto com os que lhe precedem, particularmente os artigos 5º e 6º, constitui o núcleo conceitual e estruturante
da Lei, porque justifica sua existência e finalidades, delimitando o escopo de sua
aplicação. Daí decorre a necessidade de sua interpretação sistemática1 (FREITAS,
2003: 61), levando em consideração a ordem jurídica nacional e internacional.
1
Segundo Juarez Freitas, o Direito deve ser visto como sistema assim definido: “Rede axiológica e
hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) de valores
201
Virgínia Feix
Ainda pouco compreendidos pelos encarregados de lhe dar efetividade,
esses artigos contêm definições e conceitos que foram sistematizados na legislação internacional e precisam ser explicitados e assimilados para garantirmos
sucesso em sua internalização.
Segundo a Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU,
1996),2 a violência contra as mulheres é a expressão brutal da discriminação
de gênero, tendo sua origem no espaço doméstico que se projeta para a esfera
pública. Constitui-se como dispositivo eficaz e disciplinador das mulheres no
cumprimento do papel de subordinação que lhes é atribuído; sendo, portanto,
um componente fundamental no sistema de dominação. Não é um ato de abuso
individual, pois dá sustentação aos estereótipos de gênero dominantes e utilizados para controlar as mulheres no único espaço tradicionalmente a elas determinado: o privado.
Tal constatação permite reconhecer a violência contra a mulher como uma
violência política, porque utilizada como instrumento de manutenção do lugar
de superioridade e de dominação atribuído ao homem pelas diferentes culturas. A autorização cultural para o ato violento contra a mulher seria o mecanismo utilizado para garantir relações de poder desiguais, pelos homens contra
as mulheres, ambos vistos como categorias genéricas, o que, segundo Saffioti
(2004), são ideias associadas ao patriarcalismo. Assim, tal violência possibilitaria
a imposição de comportamentos determinados por papéis sexuais diferenciados, masculinos e femininos e justificaria toda a sorte de violação aos direitos
humanos das mulheres.
A violência contra a mulher, a “violência nossa de cada dia”, considerada
pela Organização Mundial da Saúde, epidemia mundial, e que no Brasil ocorre
a cada 24 segundos,3 representa um mecanismo para demonstrar, afinal, quem é
que manda “no pedaço”, seja esta uma referência ao espaço físico ou ao corpo que
se pressupõe silenciado pela violência.
O desenvolvimento do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, que inclui o sistema global (ONU) e regional (OEA para nós brasileiros),
impõe o reconhecimento de novos sujeitos e temas de direitos, até então invisibilizados. Decorre daí a exigência de um processo de reordenamento jurídico dos
jurídicos cuja função é de, evitando e superando antinomias em sentido amplo, dar cumprimento
aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram substanciados, expressa ou implicitamente, na constituição”. A Interpretação Sistemática, segundo o autor, leva em
consideração a abertura do sistema, remete ao tema da incerteza e à ideia de incompletude do conhecimento científico e da modificabilidade da ordem jurídica; percebe a função promocional do direito,
sua dimensão valorativa, quebrando a falsa dicotomia entre direito e moral.
2
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência Mundial sobre a Mulher. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 1996.
3
Dados da pesquisa Mulheres Brasileiras no Espaço Público e Privado 2010. Publicada em 21 de fevereiro
de 2011. Disponível em: <www.fpabramo.org.br/sitesdefault/files/pesquisaintegra.pdf>.
202
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
Estados, para fazer frente a suas obrigações internacionais, o que em nosso país,
deu-se com o advento da Lei Maria da Penha.
Todo o Estado-membro de uma convenção internacional tem no mínimo
três obrigações a cumprir: 1) respeitar e promover os novos temas e sujeitos de
direitos previstos na convenção; 2) adequar sua legislação aos padrões adotados
internacionalmente na mesma convenção; e 3) apresentar relatórios para o monitoramento do cumprimento das obrigações dela decorrentes.
É, portanto, a partir da esfera internacional, que os Estados nacionais em
suas legislações passam a aderir a novos padrões de respeito, promoção e proteção dos direitos humanos, entre eles, os direitos humanos das mulheres.
O principal marco histórico para promoção do paradigma feminista em relação aos Direitos Humanos foi a Conferência Mundial de Direitos Humanos,
em Viena, 1993; onde se afirma pela primeira vez que violência contra a mulher
é violação de direitos humanos. Contudo a mais importante conquista ocorre
em 1994, com a primeira convenção especificamente voltada para o combate à
violência de gênero, em nível regional, no âmbito da Organização dos Estados
Americanos (OEA). Conhecida como Convenção de Belém do Pará, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
estabelece mecanismos para concreta proteção das mulheres perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Não é por outra razão que a Lei Maria da Penha tem sua história e texto
diretamente vinculados à referida Convenção, o que fica estabelecido na ementa
e artigo primeiro da lei.
Feitas essas considerações passemos à análise do artigo 7º, caput e incisos.
A estrutura do artigo 7º, ao apresentar elementos conceituais e descritivos
sobre os diferentes tipos de violência, tem o objetivo de facilitar, didaticamente,
a aplicação do Direito. Ao estabelecer a expressão “entre outras”, o caput do
artigo 7º deixa clara a intenção de não exaurir as hipóteses ou prever todas as
possíveis situações, já que o Direito não pode pretender compreender a vida ou
ser tão amplo quanto ela.
Tal enumeração exemplificativa é subdivida nos incisos subsequentes e em
cinco dimensões: a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. Fica,
pois, em aberto o catálogo de situações que poderão ser assim denominadas,
presentes os requisitos dos artigos 5º (baseado nas desigualdades de gênero) e
6º (violação de direitos humanos).
Aliás, estabelecida a premissa de que se trata de violação dos direitos
humanos, na Convenção de Belém do Pará e na própria Lei Maria da Penha,
mesmo que o caput do art. 7º não apresentasse a expressão “entre outras”, o
catálogo estaria aberto com base no parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição
Federal. Tal dispositivo confere status constitucional a toda a convenção internacional de direitos humanos aprovada conforme os requisitos estabelecidos para
aprovação de emenda à Constituição. Assim sendo, na hipótese de que nova
203
Virgínia Feix
regulamentação internacional da matéria venha a ser aprovada no Brasil, sua
aplicação será imediata, conforme previsto nos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º;
independentemente de regulamentação ou alteração da Lei Maria da Penha.
Tratemos agora da análise dos cinco incisos do artigo 7º.
A Convenção de Belém do Pará, no artigo 4º, menciona que toda a mulher
tem direito: a) a que se respeite sua vida; b) a que se respeite sua integridade
física, mental e moral; c) à liberdade e à segurança pessoais; d) a não ser submetida à tortura, entre outros direitos.
A violência física é a forma mais socialmente visível e identificável de violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher por gerar consequências e resultados materialmente comprováveis, como hematomas, arranhões, cortes, fraturas, queimaduras entre outros tipos de ferimentos. Na prática, sua presença
indica grandes possibilidades de existência das demais formas de violência.
É preciso registrar que marcas deixadas no corpo não são requisitos para
configuração desse tipo de violência, entendida como toda a forma de utilização
da força física que ofenda o corpo ou a saúde da mulher agredida. Nesse sentido, a violência física continuada, mesmo que mais sutilmente empregada (sem
marcas), pode gerar transtornos psicológicos que promovem o aparecimento de
enfermidades psicossomáticas e oportunistas decorrentes de baixas imunidades.
Muitas enfermidades estão sendo hoje associadas com baixa autoestima e sentimentos de desvalia, raiva e não gestão das emoções, tais como dores e fadiga
crônicas e também o câncer. Aliás, o Banco Interamericano de Desenvolvimento
afirma que as mulheres vítimas de violência têm diminuída em cinco anos a expectativa média de vida.4 Cabe referir que recente pesquisa da Fundação Perseu
Abramo (2010) concluiu que 24% das mulheres brasileiras já sofreram alguma
forma de violência física e que, além de ameaças de surra (13%), uma em cada
dez mulheres (10%) já foi de fato espancada ao menos uma vez na vida.
Vale lembrar, para melhor compreender o fenômeno da violência doméstica e intrafamiliar como violência de gênero, indissociável do conceito de violência política (ou seja, de instrumento para perpetuar relações desiguais de
poder), que o castigo físico ainda é prática culturalmente aceita e naturalizada
como condição de afirmação da autoridade, ou poder familiar (antes conhecido
como pátrio poder) dos pais sobre seus filhos.
Assim o castigo físico imposto às mulheres nas relações afetivas e domésticas também é, em última análise, o recurso utilizado para dizer quem manda, ou
qual dos sujeitos está em condição de subordinar e submeter o outro, toda a vez
que a sua conduta ameaçar ou não atender as expectativas ou desejos de quem
“deve” deter a autoridade. Nesse comportamento, como já se disse, há tentativa
4
204
Dados de pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento, oferecidos no Portal da Violência
contra a Mulher. Disponível em: <http://copodeleite.rits.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/noticias.
shtml?x=105>.
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
de perpetuar a posição de poder, pela anulação do outro como sujeito, como diverso, que só existe como extensão ou projeção do sujeito dominador.
A violência psicológica está necessariamente relacionada a todas as demais
modalidades de violência doméstica e familiar contra a mulher. Sua justificativa
encontra-se alicerçada na negativa ou impedimento à mulher de exercer sua liberdade e condição de alteridade em relação ao agressor. É a negação de valor
fundamental do Estado de Direito, o exercício da autonomia da vontade e, portanto, da condição de sujeito de direitos conquistada pelos homens, nas revoluções burguesas, americana e francesa, já no século XVIII.
Como sujeitos geneticamente sociais que somos,5 nossa identidade é constituída culturalmente pela interação social e inter-relação de vários “Outros” sujeitos que nos constituem e com quem compartilhamos nossa trajetória de vida.
Os ataques à liberdade de escolha pela afirmação constante da incapacidade da mulher de fazer e sustentar eticamente suas escolhas infantilizam-na enquanto sujeito; impedindo-a de desenvolver sua identidade com autonomia, pelo
permanente ataque a sua tentativa de diferenciação e afirmação de sua alteridade
em relação ao agressor, ou seja, como outro ser, capaz de autodeterminação.
As condutas descritas no inciso II como violência psicológica estão intimamente relacionadas ao boicote do ser; ao boicote à liberdade de escolha, que nos
define como humanos.
Graziela Ferreira (1994) estuda “El Sindrome de La Indefensión Aprendida”, como um sintoma desenvolvido por mulheres vítimas de violência, que
se assemelharia à conhecida “Síndrome de Estocolmo”. Segundo a autora, tal
como o fenômeno que justifica a afeição expressa pelo refém em relação ao seu
algoz, nas situações de rebeliões ou sequestros; a mulher vítima de violência sistemática desenvolveria a incapacidade de reação e consequente anulação de sua
identidade, projetando como seus os desejos do agressor, como uma condição de
sobrevivência. Ou seja, evitar a diferenciação seria a receita que algumas mulheres utilizam como estratégia para sobreviver ou não ser fisicamente molestadas,
tendo como preço a invisibilidade e a incapacidade de contestar as agressões.
Neste sentido, analisando a continuidade do vínculo marital frente às diversas formas de violência, a pesquisa da Fundação Abramo (2010) afirma que
a continuidade de vínculo marital é mais alta nos casos de violência psíquica
(de 29% a 43% dos casos, nas cinco modalidades consideradas), mas atinge 20%
mesmo em casos de espancamento e mais de 30% frente a diferentes formas de
controle e cerceamento.
Como já foi referido, o uso da violência tem como objetivo a afirmação de
poder e dominação nas relações, e sua expressão como violência de gênero revela-se
5
A afirmação é de Henri Paul Hyacinthe Wallon. Ver mais sobre o tema em GROSSI, Esther Pillar;
BORDIN, Jussara (orgs). Construtivismo Pós-piagetiano: um novo paradigma sobre a aprendizagem. 8º ed.
Editora Vozes, 1993, p. 158.
205
Virgínia Feix
na intenção de impedir que as mulheres sejam sujeitos de direitos, capazes de decidir e expressar livremente sua vontade, nos mais variados planos da vida.
No que tange à violência sexual, as condutas exemplificadas referem-se,
sem exceção, a práticas contra a liberdade sexual e reprodutiva, que representam violações aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos6.
Ao interpretar a lei, precisamos atentar aos padrões estereotipados sobre
os papéis sexuais a serem exercidos diferente e desigualmente pelos homens e
mulheres, que ainda limitam ou reduzem a capacidade da mulher de decidir
ética e moralmente, ou seja, de exercer sua vontade. Os estereótipos geram falsas
crenças e expectativas sobre o comportamento das pessoas. Uma das crenças alimentadas culturalmente é que as mulheres não podem desistir da relação sexual
“no meio do caminho”.
A crença expressa no jargão “ajoelhou tem que rezar” implica uma comum
naturalização do uso da força e do constrangimento contra a manifestação e o
exercício autônomo da vontade. Como se o “sim” dito no cartório, no altar, no
bar ou no motel impusesse à mulher um consentimento permanente, inquestionável, infalível, irretratável. Não. O exercício da sexualidade deve ser sempre
contratado, e os contratantes, para garantia de sua dignidade, devem ser livres
para destratar a qualquer tempo.
Outra crença, e falsa expectativa, que promove situações de violência sexual e
contraria o exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres
anteriormente referidos é a de que todas as mulheres nasceram para serem mães.
Em Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno, Elizabeth Badinter (1985)
demonstra que essa é uma construção cultural que não tem nada a ver com instintos. Assim, impor à mulher a reprodução em contrariedade a sua vontade pelo
sexo forçado ou com constrangimento ou com impedimento de uso de métodos
contraceptivos é uma violência de gênero e grave violação de direitos humanos.
Também cabe lembrar que a legislação brasileira, até 2005, promoveu a representação social e cultural sobre a “mulher honesta” identificada a partir de
6
206
Da leitura da legislação internacional (provenientes das Conferências de Cairo, Copenhagen e
Pequim), pode-se afirmar que os direitos sexuais e os direitos reprodutivos abrangem os seguintes
conteúdos normativos, entre outros: Direitos Sexuais: 1) O direito de explorar a própria sexualidade
sem medo, vergonha, culpa, falsas crenças e outros impedimentos à livre expressão dos próprios
desejos e orientação sexual. 2) O direito a viver a própria sexualidade sem violência, discriminação,
nem coerção, dentro de um marco de relações baseadas na igualdade, respeito e justiça. 3) Pleno
respeito à integridade física do corpo. 5) O direito a escolher os/as próprias compaheiras/os sexuais
sem discriminação. 4) O direito a escolher ser sexualmente ativo/a, a não ser-lo, incluído o direito a
ter sexo que seja consensual. 5) O direito a expressar a sexualidade independentemente da reprodução. 6) O direito a praticar sexo seguro e com prevenção de gravidez não desejada, bem como de
doenças sexualmente transmissíveis, incluindo HIV. Direitos Reprodutivos: 1) decidir livre e responsavelmente o número de filhos e intervalo entre eles; 2) controlar seus próprios corpos; 3) ter sexo
consensuado, sem violência nem coerção; e 4) contrair o casamento com o consentimento pleno e
livre de ambas as partes.
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
sua adesão, ou não, a um padrão sexual estabelecido por atributos exigidos somente para as mulheres: a virgindade, a fidelidade, o recato e a responsabilidade
pela gravidez não planejada. Nesse sentido, também é preciso ter presente que o
direito a relações sexuais baseadas na igualdade, no respeito e na justiça muitas
vezes é negado a mulheres, como se, entre elas, as supostamente “desonestas”
pudessem ser tratadas com violência, desrespeito, negligência e/ou desonra.
As mudanças legislativas necessárias a combater os estereótipos sexuais e
discriminatórios contra as mulheres exigiram também a alteração da linguagem
do Código Penal que deixou de classificar os crimes sexuais como “crimes contra
os costumes”; passando a designá-los “crimes contra a dignidade sexual”.
Por último é preciso relembrar que a violência contra a mulher em todas as
suas formas e dimensões tem graves consequências a sua saúde. Assim sendo, a
Lei não só combate a violência sexual redefinindo os crimes sexuais praticados no
âmbito das relações domésticas e familiares, tendo como fundamento o vínculo
afetivo e as desigualdades de gênero, mas também garante a assistência às vítimas.
É por essa razão que o art. 9º da Lei assegura o acesso a todos os benefícios
decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, bem como aos serviços
de contracepção de emergência (a conhecida pílula do dia seguinte), à profilaxia necessária ao combate das doenças sexualmente transmissíveis, inclusive da
AIDS, além de outros procedimentos médicos necessários e cabíveis em caso de
violência sexual.
Cabe destacar que, em relação a tais “outros procedimentos médicos necessários e cabíveis em caso de violência sexual”, a Portaria 1.508 de 2005, do
Ministério da Saúde, que “dispõe sobre o procedimento de justificação e autorização de interrupção da gravidez nos casos previstos em lei no âmbito
do Sistema Único de Saúde – SUS”, já previa expressamente a dispensa de
ocorrência policial para prática de aborto em casos de gravidez decorrentes
de estupro. Tal procedimento já era reconhecido doutrinariamente como conduta conforme o Direito, portanto não antijurídica. A LMP, nesse sentido, vem
dar amparo legal fortalecendo a atuação dos profissionais médicos quanto ao
fantasma da responsabilização penal por prática criminosa, face à exclusão de
dolo ou culpa do médico que pratica aborto nas hipóteses de gravidez decorrente de violência sexual.
A violência patrimonial é uma inovação da Lei Maria da Penha que tipifica com clareza condutas que necessariamente configuram violação dos direitos
econômicos das mulheres, justificando a iniciativa do Estado brasileiro de combater atos que impeçam ou anulem o exercício desses direitos, conforme determina o disposto no artigo 5º da Convenção de Belém do Pará.7
7
Diz o art. 5º da Convenção de Belém do Pará: “Toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e contará com a total proteção desses direitos
207
Virgínia Feix
Voltando-se ao pressuposto já analisado anteriormente de que a violência
contra a mulher é considerada uma violência política que trata de afirmar a condição social e cultural de dominação dos homens sobre as mulheres, fica muito
fácil compreender as condutas descritas no inciso IV do artigo 7º desta lei, como
integrantes do rol de práticas que, atingindo a autonomia econômica e financeira da mulher, contribuem para sua subordinação e/ou submissão.
A retenção, subtração ou destruição de bens, ainda que parcial, e o impedimento a sua utilização enfraquecem e a colocam em situação de vulnerabilidade,
atingindo diretamente a segurança e dignidade, pela redução ou impedimento
da capacidade de tomar decisões independentes e livres, podendo ainda alimentar outras formas de dependência como a psicológica.
Também o abandono material decorrente do não pagamento de pensão
alimentícia ou prejuízo financeiro infligido como castigo pela iniciativa na separação devem ser considerados formas de retenção ou subtração de recursos
financeiros necessários para satisfação de suas necessidades, caracterizando a
violência patrimonial, referida na lei.
A lei tratou de prever garantias de ordem patrimonial, levando em consideração, inclusive, que, tanto no casamento em regime de comunhão parcial de
bens quanto na união estável, os bens adquiridos na constância do relacionamento, salvo exceções previstas pela legislação, pertencem a ambos os participantes. Assim sendo, como assevera Maria Berenice Dias (1996:116), a possibilidade de restituição dos bens diz respeito tanto àqueles pertencentes ao acervo
comum quanto aos particulares da mulher.
É por essa razão que, além de reconhecida como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, consagradas no artigo 7º, a Lei Maria
da Penha ainda prevê a possibilidade de concessão de medidas preventivas de
caráter patrimonial tais como: a restituição de bens da vítima que lhe foram
indevidamente subtraídos pelo agressor, proibição temporária para compra,
venda ou locação de bens comuns e suspensão de procuração concedida pela
vítima; hipóteses previstas no artigo 24.
É preciso aqui destacar que o empoderamento econômico das mulheres
é um fenômeno recente, e que a retirada dos obstáculos legais, burocráticos e
culturais para a livre disposição de seus bens, inclusive rendimentos, ainda está
sendo conquistada. Disso decorre que, em muitas situações, os homens permanecem na condição de chefia da família, administrando os bens e monopolizando o poder econômico da comunidade familiar, o que pode ser considerado
moeda de troca ou vantagem na imposição de sua vontade e manutenção de
relação desigual de poder.
consagrados nos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos. Os Estados Partes
reconhecem que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses direitos” (grifo nosso).
208
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
É exatamente por isso, pelos pressupostos teóricos e conceituais da violência de gênero, que não se pode aceitar que a Lei Maria da Penha tenha recepcionado as imunidades previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal.
A imunidade absoluta do art. 181 do Código Penal consagra a isenção de
pena quando o crime for praticado em prejuízo de cônjuge, na constância da
sociedade conjugal ou em prejuízo de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural. Já a imunidade relativa do art.
182 impõe prévia oferta de representação pelo ofendido, quando ele for cônjuge
desquitado ou judicialmente separado, irmão legítimo ou ilegítimo ou sobrinho
com quem o agente coabita. Diante disso, alguns doutrinadores têm questionado se a Lei teria revogado tais dispositivos, afastando a isenção dos parentes e
tornando pública incondicionada a ação penal, nos casos de imunidade absoluta
e relativa previstos no Código Penal.
Assim sendo, queremos discordar da opinião e interpretação conferida por
Cunha e Pinto (2008:64) ao entender que, por uma questão de política criminal e
de proteção à família, deve ser mantida, sendo até recomendável, a adoção das
imunidades. Também sob o ponto de vista formal, os autores entendem que, ante o
silêncio da lei quanto à revogação expressa de tais dispositivos em casos de mulheres vítimas de crime patrimonial, não é de se afastar a incidência das imunidades.
Em nosso entendimento, devem ser afastadas, sim. Corroborando nossa
posição, neste mesmo sentido, também Maria Berenice Dias (2010:117) afirma:
Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência
patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa
dos artigos 181 e 182 do Código Penal. Não estando mais chancelado o furto
nas relações afetivas, cabe a ação penal, e a condenação sujeita o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II,f).
Utilizar argumentos de proteção à família como fundamento da política criminal em caso de violência patrimonial contra a mulher é desconhecer os fundamentos históricos, filosóficos e políticos que justificam e enquadram a Lei Maria
da Penha como uma ação afirmativa do Estado brasileiro, que tem como objetivo
promover a diminuição da estrutural desigualdade entre os gêneros, na família
e no “sagrado” lar, que tem na violência poderoso instrumento de perpetração
e reprodução.
Em nosso entendimento, é desconhecer o próprio conteúdo do artigo 226,
parágrafo 4º, da Constituição Federal, que determina ao Estado agir positivamente, com medidas que combatam a violência intrafamiliar. Assim, não se
podem permanecer chancelando, em nome da família, as violações aos direitos
de seus integrantes e perpetuando dispositivos legais que promovem a banalização da violência contra mulheres.
209
Virgínia Feix
A Convenção de Belém do Pará estabelece que toda mulher tem o direito
à integridade moral. A violência moral, segundo o inciso V, é sempre verbal e
se configura conforme o que está descrito nos tipos assim nominados no Código Penal como crimes contra a honra, limitando-se a legislação na descrição e
exemplificação de condutas. A calúnia, que consiste em imputar à mulher fato
criminoso sabidamente falso; a difamação, que consiste em imputar à mulher a
prática de fato desonroso; ou a injúria, que consiste em atribuir à mulher qualidades negativas.
A diferença entre os tipos genericamente concebidos no Código Penal e sua
previsão na Lei Maria da Penha são a especificidade de todo o ato considerado
como violência doméstica e familiar contra a mulher, que conceitualmente impõe
o agente ter relações familiares ou afetivas e íntimas, considerado por isso de âmbito doméstico.
A violência moral está fortemente associada à violência psicológica, tendo,
porém, efeitos mais amplos, uma vez que sua configuração impõe, pelo menos
nos casos de calúnia e difamação, ofensas à imagem e reputação da mulher em
seu meio social.
Apresentada na forma de desqualificação, inferiorização ou ridicularização,
a violência moral contra a mulher no âmbito das relações de gênero sempre é uma
afronta à autoestima e ao reconhecimento social.
Diante das novas tecnologias de informação e redes na internet, a violência
moral contra a mulher tem tomado novas dimensões, sendo necessário que o Direito e seus operadores atentem para novos padrões de violação dos direitos de
personalidade em geral e das mulheres, em particular, quando tal violação pressupuser a manutenção da desigualdade de gênero. Ou seja, quando as ofensas
forem divulgadas em espaços virtuais massivamente e em rede, de forma instantânea e de difícil comprovação e combate, fortalecendo sentimentos ou percepções discriminatórias e reproduzindo padrões de relações desiguais de poder
entre homens e mulheres, que importam em anular a condição de sujeito dessas.
Considerações Finais
A existência da Lei Maria da Penha é a comprovação da possibilidade de
uso político do Direito como instrumento para transformação social, no sentido
de buscar a igualdade material e a justiça social almejadas no artigo 3º da Constituição Federal. É a comprovação de que os direitos humanos não são realidades naturais, mas históricas, conquistados na organização e mobilização de grupos sociais que lutam e disputam politicamente por interesses contraditórios. E,
principalmente, que o Estado Democrático de Direito, na sua tipificação ideal,
dota a sociedade de instrumentos e mecanismos legais para promoção de seus
direitos.
210
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
A legitimidade da Lei Maria da Penha decorre não só do fato de ela ser um
instrumento legal para promoção dos fins a que se propõe o Estado brasileiro (erradicar as desigualdades sociais e combater todas as formas de discriminação, o
desenvolvimento e a redução da pobreza para afirmação da dignidade humana
de todas as pessoas). Sua legitimidade decorre também do fato de que sua criação
e aprovação são consequências diretas da mobilização e ação concreta do movimento de mulheres e suas organizações representativas, historicamente situadas.
O que estamos afirmando justifica a sua existência e pode explicar todos os
obstáculos à sua implementação e efetivação, que estão situados para além da
lei e de seu conteúdo normativo; ou seja, nas esferas do que denominamos estrutura e cultura do Direito.
Isso porque, superando o pensamento positivista, precisamos compreender as três dimensões do fenômeno jurídico: o conteúdo do Direito, a estrutura
do Direito e a cultura do Direito8. O conteúdo diz respeito a toda a normatização, ao Direito Objetivo, às regras vigentes em determinado ordenamento.
A estrutura diz respeito às instituições, aos órgãos, aos mecanismos e procedimentos necessários a sua implementação; referindo-se diretamente às condições
materiais, aos recursos financeiros e orçamentários necessários para garantir a
implementação do que está dito na lei (seu conteúdo). Por último, a cultura do
Direito fala-nos das representações sociais, dos sentimentos, das percepções que
temos sobre os direitos e quem são seus titulares, espaço onde se reproduzem os
estereótipos, as falsas expectativas, os preconceitos e toda sorte de discriminações acerca de seus “verdadeiros destinatários”9.
Ao enfrentarmos a carga de críticas que vem sendo desferida contra a Lei
Maria da Penha, é preciso ter em mente a metodologia anteriormente descrita
para, então, compreender os obstáculos e promover a implementação dos direitos humanos das mulheres: pensar o Direito como um sistema, dotado destes
três componentes: o conteúdo, a estrutura e a cultura do Direito.
Tal afirmação não autoriza pensar que a lei não tem problemas a serem
corrigidos pela via do diálogo, do debate e da reforma legal. Mas, como afirma
o dito popular: “É preciso muita calma nesta hora”, porque, mesmo reconhecendo que caberão alterações legislativas para aperfeiçoamento e melhor eficácia na sua aplicação, consideramos que os maiores obstáculos para sua efetivação ainda estão situados no plano da estrutura e da cultura do Direito.
8
WOMEN, LAW AND DEVELOPMENT INTERNATIONAL. Women Human Rights Step By Step.
Washington, DC:1997.
9
Todos conhecem a percepção discriminatória sobre quem deve ser titular dos direitos humanos: “os
humanos direitos!” Tal percepção, contrária ao princípio da legalidade e da igualdade, traduzida
para situações que violam os direitos humanos das mulheres é facilmente identificável, por exemplo, na expressão “mulher honesta”, que foi incorporada no conteúdo normativo e na aplicação do
Direito Civil e do Direito Penal.
211
Virgínia Feix
Transcorridos cinco anos da vigência da Lei Maria da Penha, não houve
avanço do Estado brasileiro, através do Poder Judiciário, no sentido de dotar
o sistema judicial de condições de acesso à justiça para as mulheres vítimas de
violência. Estudos10 comprovam a falta de destinação de recursos orçamentários
para ampliação do número de Varas da Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher; para ampliação do número de funcionários nas referidas varas e, por
fim, para criação de serviços interdisciplinares integrados em rede, para efetivação das medidas urgentes de proteção, assistência e apoio aos agressores e vítimas, conforme estabelecido na Lei. Ou seja, de elementos que convencionamos
identificar como Estrutura do Direito.
Finalmente, falta ao Poder Judiciário e aos funcionários encarregados do
cumprimento da LMP, em geral, tanto os pertencentes às polícias quanto ao Ministério Público, a apropriação dos conceitos básicos da Lei e dos seus fins. São
eles: a desigualdade de gênero e violência de gênero como violação dos direitos
humanos, conceitos fundamentais para desconstrução dos preconceitos e estereótipos discriminatórios e possível classificação de certas condutas violentas,
não de todas as agressões praticadas contra as mulheres, como passíveis de tratamento pela LMP.
Falta, à sociedade em geral e aos operadores do Direito em particular, pela
incompreensão do fenômeno da violência contra a mulher, a apropriação dos fins
da Lei e de sua natureza promocional. Ou seja, é preciso avançar quanto ao reconhecimento da necessidade de uma tutela legal específica, capaz de promover a
desconstrução, na esfera do que convencionamos denominar de Cultura do Direito, dos entraves e ataques, às vezes viscerais, ao progresso na efetivação da Lei.
Referências bibliográficas
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Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
CEPAL. Estudio de la información sobre la violencia contra la mujer en América Latina y
el Caribe. Serie Mujer y desarrollo nº 99. Disponível em: http://www.cepal.org.
10 Balanço do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aponta que, em quatro anos, 9.715 pessoas foram presas em flagrante com base na Lei Maria da Penha, que pune a violência doméstica contra a mulher. O balanço considera processos distribuídos nas varas e juizados especializados no
tema desde a entrada em vigor da lei, agosto de 2006, até julho de 2010. No período, foram decretadas 1.577 prisões preventivas e gerados 331.796 processos envolvendo a lei, mas apenas um
terço – 111 mil – resultou em decisão. Foram tomadas pela Justiça mais de 70 mil medidas de
proteção à mulher. Em quatro anos, 9.715 são presos pela Lei Maria da Penha (Folha.com) Em
quatro anos de Lei Maria da Penha, a Justiça já contabiliza 111 mil processos (Estadão.com), a
Lei Maria da Penha gerou mais de 330 mil ações na Justiça (Portal G1 – 22/03/2011).
212
Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica, Lei
Maria da Penha (Lei 11.340/2006) comentada artigo por artigo. 2ª Ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 2ª Ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010.
FERREIRA, Graciela. La Mujer Maltratada. Buenos Aires: Sudamericana, 1994.
ONU. Estudio a fondo sobre todas las formas de violencia contra la mujer.
Informe del Secretario General. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/daw/vaw/index.htm>.
Portal da Violência Contra A Mulher. Disponível em: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_capas&view=capas&tplay=sub&ca
paid=7&Itemid=32>.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
SCHULER, Margaret; THOMAS, Dorothy Q. (Orgs). Women´s Human Rights: Step
by Step. 2ª ed. Washington, DC: International and Human Right Watch, 1997.
UNIFEM. Datos y cifras de la violencia contra las mujeres. Disponível em: <http://
migre.me/10Sm5>.
213
Da assistência à mulher em situação
de violência doméstica e familiar – artigo 8º
Comentários: Alice Bianchini
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios e de ações não governamentais, tendo por diretrizes:
I – a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública
com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a
perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a
serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;
III – o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da
família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência
doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art.
3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal;
IV – a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular
nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
V – a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica
e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão
desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;
VI – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não governamentais,
tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e
familiar contra a mulher;
VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo
de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I
quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;
VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito
respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher.
215
Alice Bianchini
O Estado brasileiro, ao ratificar documentos internacionais de proteção à
mulher,1 assumiu, no plano internacional, o compromisso de adotar medidas internas para garantir os direitos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares. A fim de cumprir com tal obrigação, planos, metas e estratégias devem ser
estabelecidos, bem como, e principalmente, implementadas ações (políticas públicas). Iniciativas com abrangência nacional nesse sentido foram concebidas somente
a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2003).
O Primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres2 vem a lume no
ano seguinte (2004). Esse primeiro, juntamente com o Segundo Plano3 (2008) e
com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2007)4,
prevê, conforme estabelece o “Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
Contra a Mulher” (2007),5 “os conceitos, os princípios, as diretrizes e as ações de
prevenção e combate à violência contra as mulheres, assim como de assistência
e garantia de direitos às mulheres em situação de violência”.
Antes disso, podem ser vislumbradas somente ações isoladas (não obstante
a importância delas). Destacando-se, dentre tantas: surgimento das Delegacias
de Atendimento Especializado à Mulher – DEAM6 –, em São Paulo (1985); criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher7 (1985); criação do Conselho
Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro – CEDIM/RJ8 (1987).
1
O Brasil é signatário de todos os instrumentos internacionais sobre a matéria, no âmbito do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos.
2
Veja na íntegra: http://www.sepm.gov.br/pnpm/plano-nacional-politicas-mulheres.pdf, bem como o
seu relatório final: http://www.sepm.gov.br/pnpm/relatorio-de-implementacao-final.pdf.
3
Ver na íntegra: http://www.sepm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2008/livro-ii-pnpm-completo09.09.2009.pdf.
4
Ver na íntegra: http://www.sepm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2007/violencia-2007.pdf.
5
O Pacto foi lançado no ano de 2007, pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como parte da Agenda
Social do Governo Federal, e “consiste num acordo federativo entre o governo federal, os governos
dos estados e dos municípios brasileiros para o planejamento de ações que visem à consolidação
da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres por meio da implementação
de políticas públicas integradas em todo território nacional”. Ver na íntegra: http://www.sepm.gov.
br/publicacoes-teste/publicacoes/2010/PactoNacional_livro.pdf. A versão elaborada no ano de 2007
pode ser encontrada em: http://campanhapontofinal.com.br/download/informativo_02.pdf.
6
No item 1.4 serão trazidos alguns dados acerca das DEAMs.
7
“O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi criado em 1985, vinculado ao Ministério
da Justiça, para promover políticas que visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país. De 1985 a 2010, teve
suas funções e atribuições bastante alteradas. Em 2003, passou a integrar a estrutura da Secretaria
Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República, contando em sua composição com
representantes da sociedade civil e do governo, o que ampliou o processo de controle social sobre
as políticas públicas para as mulheres. É também atribuição do CNDM apoiar a Secretaria na articulação com instituições da administração pública federal e com a sociedade civil.” Disponível em:
<http://www.sepm.gov.br/conselho>.
8
Tinha por finalidade assessorar, formular e estimular políticas públicas para a valorização e a promoção feminina.
216
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
A coletânea Enfrentando a Violência contra as Mulheres traz as principais informações no tocante à linha política, dados e estratégias implementadas entre
2003 e 2010. Seus sete volumes encontram-se assim organizados:
Volume I
Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
São apresentados os conceitos, princípios, diretrizes
e ações de prevenção e combate à violência contra
as mulheres, assim como de assistência e garantia
de direitos às mulheres em situação de violência,
conforme normas e instrumentos internacionais de
direitos humanos e legislação nacional.
Volume II
Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
Apresenta os objetivos, as metas, o modelo de gestão e as instâncias de implementação das políticas
públicas de enfrentamento ao problema. Também
traz um balanço das principais ações desenvolvidas
pelo Governo Federal para implementação do Pacto
e as metas alcançadas entre 2007 e 2010.
Volume III
Rede de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres
Traz as definições da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres e da rede de atendimento
às mulheres em situação de violência, bem como
apresenta os dados relativos aos serviços especializados de atendimento e as diretrizes gerais para sua
implementação.
Volume IV
Balanço da Ouvidoria e Central de Atendimento à Mulher –
Ligue 180
Apresenta um histórico da Ouvidoria (criada em
2003) e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue
180 (criada em 2005).
Volume V
Diretrizes para o
Abrigamento das Mulheres em situação de
Violência
Refere-se ao conjunto de recomendações que norteiam o abrigamento de mulheres em situação de
violência e o fluxo de atendimento na rede de serviços, incluindo as diversas formas de violência contra a mulher.
217
Alice Bianchini
Volume VI
Diretrizes Nacionais
para o Enfrentamento
à Violência contra as
Mulheres do Campo e
da Floresta
Apresenta os princípios, as diretrizes e as ações de
enfrentamento à violência das mulheres do campo
e da floresta, a partir das discussões realizadas no
âmbito do Fórum Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta.
Volume VII
Tráfico de Mulheres
Traz as principais discussões e conceitos referentes
à temática, assim como um balanço das ações realizadas para o enfrentamento do tráfico de mulheres
pela SPM no âmbito do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do Pacto Nacional
de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.
As ações mencionadas nos documentos acima têm por objetivo comum, de
um lado, a redução dos fatores de vulnerabilidade9 da mulher vítima de agressão e, de outro, a promoção e o fortalecimento dos fatores que possam levar ao
seu empoderamento.
É o que se dá em relação às medidas integradas de proteção, trazidas pelo
art. 8º, ora sob comento, que, juntamente com as de assistência à mulher (art. 9º)
e as voltadas ao atendimento pela autoridade policial (arts. 10 a 12), compõem a
gama das medidas de assistência à mulher em situação de violência doméstica
e familiar concebidas pela Lei.10 Todas as atividades estabelecidas no presente
título, se bem utilizadas, têm o condão de, efetiva e finalmente, alterar positivamente o quadro de violência contra a mulher.
Dos três conjuntos de ações acima mencionados (medidas integradas de
proteção, medidas de assistência à mulher e medidas voltadas ao atendimento
pela autoridade policial), o primeiro dirige-se primordialmente para o momento
que antecede a violência e, em razão disso, conta com uma maior efetividade na
redução e/ou eliminação da violência contra a mulher. Vejamos cada uma das
medidas integradas de proteção estabelecidas pela Lei.
O dispositivo do artigo 8º da Lei Maria da Penha traz as diretrizes que
acompanham as políticas públicas que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como dá o tom que deve ser observado no momento
9
A vulnerabilidade deve ser entendida como a reduzida ou inexistente capacidade do indivíduo ou
do grupo social de decidir sobre sua situação de risco. Ela se encontra diretamente ligada a fatores
culturais, sociais, políticos, econômicos e biológicos.
10 Muitas das medidas previstas no presente título decorrem da previsão contida na Convenção de
Belém do Pará (art. 8º).
218
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
de sua implementação: ação articulada entre os entes estatais (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios) e os organismos não governamentais.
A parceria Estado-sociedade torna-se imprescindível para o sucesso na coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Por meio da responsabilidade compartilhada, busca-se criar sinergia, com vistas a dar maior efetividade às políticas implementadas.
É importante atribuir e conhecer responsabilidades, bem como limitações
e, principalmente, ter-se em conta os aspectos sociais, culturais e históricos que
vulneram a mulher e dificultam, quando não obstaculizam, processos de mudança do quadro de violência.
A violência contra a mulher é um daqueles poucos problemas que atingem
ampla e substancialmente toda a sociedade, independentemente de categoria
social e de status financeiro. Além disso, é problema universal, já que presente
em todos os países, variando, apenas, o (menor ou maior) grau de incidência.
Constitui um grande desafio estabelecer articulação entre as várias instituições (governamentais e não governamentais) que desenvolvem trabalhos na
área de violência doméstica e familiar contra a mulher (organizando, coordenando, integrando e articulando as atividades desenvolvidas), o qual, no entanto, é facilitado pelo fato de a própria Lei (artigo sob comento) trazer especificados os parâmetros de atuação de tais entidades (diretrizes).
Além disso, o “Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a
Mulher” (2010),11 anteriormente mencionado, estabelece as competências de
cada uma das esferas governamentais, as quais podem ser resumidas nas seguintes responsabilidades:
I) Governo Federal: Secretaria de Políticas para as Mulheres
a. Assegurar o cumprimento das ações e o alcance dos objetivos estabelecidos
no Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres;
b. Coordenar a implementação das ações do Pacto junto aos diversos órgãos
do Governo Federal que integram o Pacto Nacional;
c. Elaborar com detalhamento, em conjunto com os estados, plano de trabalho
das ações do Pacto a serem implementadas e cronograma de execução;
d. Monitorar, juntamente com as Câmaras Técnicas de Gestão Federal e Estadual, as ações do Pacto nos estados.
II) Governos Estaduais: Organismos Estaduais de Políticas para Mulheres
a. Definir, em conjunto com a SPM/PR e demais Ministérios envolvidos no
Pacto, as microrregiões e municípios-polo para implantação das ações do Pacto;
b. Articular com os municípios-polo para garantir a implementação das ações
estabelecidas no Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as
Mulheres e acordadas com a SPM/PR;
11 Ver na íntegra: http://www.sepm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2010/PactoNacional_livro.pdf.
219
Alice Bianchini
c. Prestar contas, junto à SPM/PR e demais Ministérios envolvidos, dos convênios firmados pelas instituições estaduais;
d. Garantir a sustentabilidade dos projetos;
e. Instituir a “Câmara Técnica de Gestão Estadual”;
f. Incentivar a constituição de consórcios públicos para o enfrentamento da
violência contra a mulher.
III) Governos Municipais: Organismos Municipais de Políticas para Mulheres
a. Prestar contas, junto à SPM/PR e demais Ministérios envolvidos, dos convênios firmados pelas instituições municipais;
b. Garantir a sustentabilidade dos projetos;
c. Participar da Câmara Técnica de Gestão Estadual;
d. Promover a constituição e o fortalecimento da rede de atendimento à mulher
em situação de violência, no âmbito municipal e/ou regional, por meio de consórcios públicos (quando couber);
e. Garantir a instituição das Câmaras Técnicas Municipais.
No plano do estabelecimento de ações que visam coibir a violência doméstica
também é importante citar a criação da Subsecretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (Decreto nº 7.043, de 22.12.09), órgão vinculado à Secretaria
Especial de Política para a Mulher, que, no âmbito da Coordenação Geral de Ações
Preventivas e Garantia dos Direitos, possui as seguintes competências:
• Coordenar e monitorar todas as atividades de Prevenção e Garantia de Direitos das Mulheres;
• Garantir e proteger os direitos das mulheres em situação de violência, considerando as questões étnico-raciais, territoriais, geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional;
• Desconstruir estereótipos e representações de gênero, além de mitos e preconceitos em relação à violência contra a mulher;
• Publicar livros e cartilhas com as ações de prevenção à violência contra as
mulheres e de garantia dos direitos destas mulheres;
• Organizar, divulgar e monitorar as campanhas de caráter nacional que venham a combater a violência contra a mulher e a desconstruir estereótipos e
conceitos discriminatórios da imagem da mulher;
• Acompanhar e monitorar as ações relacionadas aos Tratados Internacionais
que visem à garantia dos direitos das mulheres;
• Manter a interface das ações com outros temas da Secretaria Nacional de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher.
220
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
O problema da violência contra a mulher exige articulação entre os profissionais envolvidos em torno de um projeto comum, levando em conta a complexidade do assunto, da sociedade, do humano.
O tema, portanto, é daqueles que exige compartilhamento de conhecimento
e trânsito entre as especialidades dos vários setores comprometidos, sendo, portanto, transdisciplinar.12 Os estudos realizados na esfera da saúde, bem como
as pesquisas desenvolvidas na área das ciências humanas (antropologia, sociologia, história, psicanálise, psicologia), por exemplo, têm sido fundamentais no
trato da questão.
De conformidade com a perspectiva transdisciplinar, todas essas dimensões devem ser consideradas no conhecimento e na abordagem da violência contra a mulher, buscando-se definir a diversidade de situações sem se perder de
vista a globalidade do fenômeno e a singularidade de suas manifestações em
cada sujeito que se apresenta.
Também aqui uma articulação entre os poderes do Estado é de importância vital para a melhor condução das políticas públicas de coibição da violência
doméstica e familiar.
Na presente diretriz, a preocupação do legislador foi com a comunicação
entre os setores governamentais (Judiciário, Ministério Público e Defensoria) e
suas interfaces com as áreas de segurança, assistência social, saúde, educação,
trabalho e habitação, cada uma delas de extrema relevância quando se trata de
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em relação a cada uma
das interfaces, muitas ações já foram realizadas, podendo-se computar resultados bastante positivos.13
12 Abordagem transdisciplinar tem por foco “trabalho e estudo da natureza ou qualidade das relações existentes entre as diversas áreas do conhecimento ou especialidades implicadas no fenômeno.
Propõe que os profissionais trabalhem integrados para não perderem a visão global do fenômeno
e da pessoa em atendimento enquanto sujeito ativo e participante do processo e inserido num contexto familiar e sociocultural. Implica uma leitura inovadora sobre a questão que, ao invés de se
preocupar apenas com as especialidades (as partes), busca resgatar a globalidade (o todo) do fenômeno, priorizando o estudo de como as diferentes dimensões se articulam gerando uma diversidade
de situações. Estas situações são resgatadas em sua singularidade sem, no entanto, perder de vista
sua relação com a complexidade e a globalidade do fenômeno”. Sudbrack, Maria Fátima Olivier.
Abordagem interdisciplinar. Disponível em: <http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/
index.php?id_conteudo=11418&rastro=TRATAMENTO%2FModelos/Abordagem+Interdisciplinar>.
13 O Pacto Nacional destaca as seguintes ações:
“Secretaria de Reforma do Judiciário/MJ:
- apoiou em 2008 e 2009 a criação de 88 serviços (46 Juizados Especializados de Violência Doméstica
e Familiar em 22 estados da federação; 26 Defensorias Especializadas e 16 Promotorias/Núcleos de
Gênero no Ministério Público).
Secretaria Nacional de Segurança Pública/MJ
- repassou recursos para as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), num
total de R$ 2.062.432,40.
Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça
- criação de 8 serviços de responsabilização e educação do agressor
221
Alice Bianchini
Também merece destaque a representação do Conselho Federal de Psicologia (CFP) junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), visto
que a abordagem psicológica em relação aos motivos que desencadeiam a violência, a sua aceitação e o seu silêncio, bem como o acompanhamento psicológico dos membros envolvidos no conflito (mulher, marido, filhos, familiares e,
muitas vezes e cada vez mais, inclusive, vizinhos), no tocante às ações a serem
realizadas no momento posterior à violência (quando as marcas da violência
precisam ser cicatrizadas), são deveras importantes.
Somente no ano de 2001 foi realizado levantamento nacional sobre a violência contra a mulher. Elaborado pela Fundação Perseu Abramo, a pesquisa descortinou uma realidade avassaladora: a violência contra a mulher no Brasil alcançava índices epidêmicos. Um dado que chamou muito a atenção, à época: a cada
15 segundos uma mulher era espancada por um homem, o principal autor sendo
pessoa com quem ela mantinha (ou manteve) uma relação íntima de afeto.14
A extensa investigação, divulgada por vários meios de comunicação, serviu para que, tomando-se conhecimento do preocupante problema, diretrizes,
Ministério da Saúde/MS
- número de serviços/programas especializados de atendimento à mulher em situação de violência
na saúde foi ampliado (138 para 443 serviços, entre janeiro de 2007 a outubro de 2009);
- articulou a efetivação de 23 convênios com Secretarias Estaduais de Saúde para implementação de
novas redes municipais de atenção a mulheres em situação de violência.
Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP/MJ), por meio do curso da Rede Nacional de
Altos Estudos em Segurança Pública/RENAESP
- capacitou 529.710 profissionais de segurança pública em 23 unidades da federação.
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Escolas de Magistratura e Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados/ENFAM
- cursos de capacitação sobre a Lei Maria da Penha. Foram oferecidas mais de 750 vagas para a formação de juízes com competência para tratar a matéria nos estados do Ceará, Espírito Santo, Mato
Grosso, Pará, Pernambuco, Piauí e Rio de Janeiro.
Secretaria de Política para Mulher e Secretaria de Reforma do Judiciário/MJ
- criação, a partir de 2008, dos Núcleos de Gênero nos Ministérios Públicos Estaduais, que, em conjunto com o Conselho Nacional dos Ministérios Públicos, formaram uma Comissão para elaborar
proposta de cadastro nacional sobre a violência doméstica contra a mulher;
- criação da Comissão da Mulher no Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais dos Estados
– CONDEGE.
Secretaria de Políticas para Mulheres/PR, Secretaria Nacional de Segurança Pública/MJ e
Secretaria Nacional de Habitação/ Ministério das Cidades
- estabeleceu a promoção de sensibilização de Estados e DF, Municípios e entidades privadas que
atuam no setor habitacional, para priorizarem o atendimento de mulheres em situação de violência
doméstica e familiar no âmbito dos programas de habitação sob gestão pública. As famílias com
mulheres responsáveis pela unidade familiar foram incluídas nos critérios de hierarquização do
Programa “Minha Casa, Minha Vida” do Governo Federal.
Secretaria de Políticas para as Mulheres, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome e Ministério da Justiça
- foram disponibilizados recursos da ordem de R$ 10 milhões, para capacitar 7.864 psicólogos/as,
assistentes sociais e advogados/as dos CRAS e CREAS de todas as unidades da federação.”
14 VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely (org). As mulheres brasileiras no início do
século XXI. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. .
222
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
programas e ações fossem estabelecidos, buscando alterar a situação. Também
foram criadas inúmeras instituições (ONGs, Institutos, Fundações etc.) voltadas
exclusivamente para a temática de violência contra a mulher.
Tal pesquisa foi elaborada no mesmo ano em que ocorreu a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Caso Maria da Penha Maia Fernandes – Relatório n. 54/2001, Caso 12.051), que, por conta de atraso em decisão
judicial cujo processo tinha como objeto situação de violência contra mulher,
recomendou ao Brasil, dentre outras medidas, “prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório
com respeito à violência doméstica contra mulheres no país”.
De lá para cá, outras importantes averiguações sobre a violência contra a
mulher (ou que dela trataram) foram desenvolvidas, destacando-se:
http://www.patriciagalvao.
org.br/pesquisaibopemulhereaids.htm*
2003
Atitudes frente
ao crescimento
da AIDS no Brasil
Ibope/
Instituto
Patrícia Galvão
2004
O que a sociedade pensa sobre
a violência contra
as mulheres
Ibope/
Instituto
Patrícia Galvão
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/
stories/PDF/pesquisas/pesq_
ibope_2004.pdf
2005
Violência doméstica contra a
mulher
DataSenado
http://www.senado.gov.br/
noticias/DataSenado/pdf/
datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_Domestica_
contra_a_Mulher-2005.pdf
Percepções e reações da sociedade
sobre a violência
contra a mulher**
Ibope/
Instituto
Patrícia Galvão
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/
stories/PDF/pesquisas/pesq_
ibope_2006.pdf
2006
*
Ainda que a pesquisa não tratasse da violência contra a mulher, ela trouxe uma importante informação: na percepção dos entrevistados, há questões mais preocupantes do que a AIDS, como o câncer
de útero e mama, mencionado por 48%, e o problema da violência doméstica, que é citado por 46%
**
A enquete foi realizada antes de entrar em vigor a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
223
Alice Bianchini
2006
Pesquisa Mapa
da Violência 2006
2007
Pesquisa de opinião pública nacional: violência
doméstica contra
a mulher
2008
Retrato das Desigualdades de
gênero e raça
2008
Dois anos da lei
Maria da Penha:
o que pensa a
sociedade?
2009
Percepções e reações da sociedade
sobre a violência
contra a mulher
2009
Pesquisa de
opinião pública
nacional:
violência doméstica e familiar
contra a mulher
2010
224
Mapa da violência
Organização
dos Estados
Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência
e a Cultura
http://www.comunidadesegura.org/files/active/0/mapaviolencia.pdf
DataSenado
http://www.senado.gov.br/
noticias/DataSenado/pdf/
datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_Domestica_
contra_a_Mulher-2007.pdf
IPEA
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/crise/desig_gen_
raca.pdf
IBOPE/ Themis
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/
stories/PDF/pesquisas/pesq_
ibope_2008.pdf
IBOPE/
Instituto Avon
http://www.sepm.gov.br/nucleo/dados/pesquisa-avon-violencia-domestica-2009.
pdf
DataSenado
http://www.senado.gov.
br/noticias/DataSenado/
pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_
Domestica_e_Familiar_
contra_a_Mulher.pdf
Instituto Sergari
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/
stories/PDF/pesquisas/pesq_
sangari_2010_mapadaviolencia.pdf
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
2010
Mulheres brasileiras nos espaços
público e privado
2011***
Violência doméstica e familiar
contra a mulher pesquisa de
opinião pública
nacional
2011
Balanço de atendimentos do
Ligue 180
Fundação Perseu Abramo
/SESC
http://www.fpa.org.br/sites/
default/files/pesquisaintegra.pdf
DataSenado
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/
stories/PDF/violencia/datasenadopesqvcm2011.pdf
SEPM
http://www.sepm.gov.
br/noticias/ultimas_noticias/2011/02/em-2010-a-central-de-atendimento-a-mulher-2013-ligue-180-2013-registrou-734-416-atendimentos
Além das pesquisas e estudos acima mencionados, é importante citar os
Fóruns de discussão sobre a Lei, destacando-se, dentre tantos, as Jornadas da
Lei Maria da Penha, realizadas pela SPM, em parceria com o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) e com a Secretaria de Reforma do Judiciário, com a finalidade
de debater a efetividade da aplicação da lei. De 2007 a 2010 foram realizadas 4
Jornadas. Como resultado delas, foi criado o Fórum Nacional de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – FONAVID, cujos encontros
têm por objetivo aperfeiçoar a aplicação da Lei Maria da Penha.
Tais estudos, pesquisas, levantamentos e discussões acerca do tema violência doméstica e familiar contra a mulher permitirão que se aprofunde o conhecimento do tema, a fim de nortear as intervenções e políticas sobre o fenômeno.
Além disso, poder-se-á estabelecer ou reordenar estratégias mais decisivas em
relação a pontos de maior incidência de crimes previstos na Lei.
As preocupações contidas no presente dispositivo habitaram, inicialmente,
a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de 1979 e
*** Pesquisa realizada de 08 a 28 de fevereiro de 2011.
225
Alice Bianchini
ratificada pelo Brasil em 198415. O art. 6.º, b, da Convenção Interamericana para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de Belém do
Pará), de 1994, firmada pelo Brasil no ano de 1995, contém previsão semelhante.
O tema é mais um daqueles que buscam estabelecer equilíbrio entre a proibição de censura (art. 220, § 2.º, e art. 5.º, IX, da CF) e a preocupação contida nos
dispositivos constitucionais citados no presente inciso (art. 1°, III16, art. 3º, IV17 e
art. 22118).
Para evitar algum tipo de excesso no controle, há que se ter sempre em
consideração que os meios de comunicação (mídia escrita e falada) precisam
abster-se de apresentar mulheres desempenhando papéis que as inferiorize
(submissão, déficit intelectual, descontrole emocional, ridicularização etc). Tal
preocupação é relevante, pois, segundo relatório do Projeto Global de Monitoramento de Mídia de 201019:
• Quase metade (48%) de todas as matérias reforça estereótipos de gênero, enquanto 8% das matérias questionam estereótipos de gênero.
As mulheres são identificadas nos noticiários por seus relacionamentos
familiares (esposa, mãe, filha), cinco vezes mais que os homens.
• Matérias apresentadas por mulheres têm consideravelmente mais foco
em temas femininos do que as matérias apresentadas por homens, e
questionam estereótipos de gênero quase duas vezes mais do que matérias de repórteres homens20.
Ainda sobre o tema, deve ser conferido o alerta trazido por Sanchez e Pinto
(2008):
15 Consta no texto da Convenção: “Estados adotarão as medidas necessárias para modificar os padrões
socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias, ou de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da
inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e
mulheres” (art. 5.º, a.)
16 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
III – a dignidade da pessoa humana;
17 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
18 Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios: [...] IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
19 A pesquisa, realizada em nível mundial, tem o propósito de incentivar a representação justa e equilibrada das mulheres na mídia noticiosa. Foram pesquisados 42 países situados na África, Ásia,
América Latina, Caribe, Ilhas do Pacífico e Europa.
20 Representação de gênero na mídia não é equilibrada. http://www.observatoriodegenero.gov.br/
menu/noticias/representacao-de-genero-na-midia-nao-e-equilibrada/?searchterm=m%C3%ADd
ia. Consulta em: 03.03.2011. Dados preliminares do estudo podem ser encontrados em: www.whomakesthenews.org
226
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
Mas nos parece seja necessário fazer uma diferenciação. Por vezes a exposição da mulher em um papel estereotipado serve como verdadeira denúncia
e, por isso, traz o tema a debate. Uma novela que representasse uma mulher
vítima de frequentes agressões praticadas pelo marido, mas que fosse capaz
de reagir, procurando uma delegacia de polícia especializada e valendo-se da
proteção legal, teria seus efeitos positivos. Serviria, por exemplo, como poderoso instrumento de divulgação da lei em exame. Mostraria que há alternativas legais capazes de coibir essa espécie de prática. E, dependendo da condução da trama por seu autor, poderia o agressor ser preso preventivamente,
suportando o afastamento do lar, obrigado a pagar alimentos, enfim, todas as
consequências [previstas na Lei].
O Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que, a exemplo do que ocorre com a
Lei Maria da Penha, estabelece uma série de proteções especiais, também trata
da questão, e o faz de forma muito mais rigorosa, ao criminalizar a conduta de
“exibir ou veicular, por qualquer meio de comunicação, informações ou imagens
depreciativas ou injuriosas à pessoa do idoso” (art. 105).
As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher — DEAMs — compõem a estrutura da Polícia Civil. Suas ações devem estar voltadas para prevenção,
apuração, investigação e enquadramento legal. A seleção e capacitação de seus operadores representam diretriz que muito pode contribuir para que não seja vivenciada pela mulher uma segunda vitimização, agora, pelos aparelhos do Estado21.
No que tange à seleção de seus integrantes, deve ser dada preferência, no
momento de se compor os quadros das Delegacias especializadas, a policiais do
sexo feminino, em face do natural constrangimento da mulher vítima em relação aos fatos a serem narrados (violência sofrida, mesmo que não tenha sido de
natureza sexual)22.
A capacitação de tais profissionais (de preferência do sexo feminino) merece
cuidados especiais. Eduardo Mayr (1998) elenca algumas atitudes que bem demonstram o quando eventual despreparo no lidar com esse tipo de violência pode
acarretar, começando pelas indagações que são formuladas às vítimas: “Você tem
sorte de ainda estar viva, por que você estava andando sozinha naquele local?, não sabe que
não se pode sair à noite desse jeito?, por que não gritou?, e questionamentos que tais.
[Não é incomum] as vítimas sofrerem um mais de maltrato por policiais, que, com
seu descaso, indiferença e desrespeito, [acrescentam humilhação ao provocado pelo
próprio vitimizador.] A vítima é interrogada como se fosse culpada de um ilícito,
sem qualquer contemplação, impondo-se-lhe uma agonia psíquica intolerável”.
21 A vitimização secundária ou sobrevitimização é causada pelas instâncias formais de controle social,
no decorrer da investigação criminal ou do processo penal. Cf. GOMES e MOLINA (2000).
22 Portaria 11/97, do Delegado Geral de Polícia do Estado de São Paulo, estabelece que “às Delegacias
de Defesa da Mulher deverão ser designadas, preferencialmente, policiais civis do sexo feminino,
principalmente para o exercício das funções relacionadas ao atendimento público”.
227
Alice Bianchini
Não obstante a importância de as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar receberem tratamento condizente com a situação que estão vivenciando no momento mesmo em que buscam o aparato policial, dados do IBGE
(2009) revelam que das 5.565 cidades brasileiras apenas 395 têm delegacias especializadas para o atendimento eventualmente buscado (às mulheres)23.
A igualdade de gênero, a fim de se tornar realidade, exige que homens e
mulheres rompam com as heranças de costumes cuja atribuição de sentidos de
vida já não mais se coaduna com o presente. Faz-se necessário compreender os
modos como a assimetria sexual se processa e se reproduz em sociedades históricas concretas.
Sendo a diferença de tratamento entre os sexos, com a valorização de papéis
atribuídos aos homens, uma construção social, ela pode, perfeitamente, ser modificada por meio do implemento de um novo modo de pensar e agir, com valores outros sendo disseminados, prestigiados e estabelecidos por um proselitismo
competente. É nesse momento que entram em cena as campanhas educativas de
prevenção da violência doméstica e familiar de que trata o presente inciso.
A consciência social da censurabilidade dos atos que integram práticas de
violência contra a mulher é uma aquisição civilizacional muito recente. Foi a
partir da integração social das mulheres nos espaços públicos, e da (re)definição
do seu papel nesses espaços e no espaço privado, que se chegou à percepção da
não-violência como caminho necessário, ainda que não suficiente, à promoção
da igualdade. Para essa mudança cultural, muitas ações foram feitas24.
Os programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a
mulher pretendem reforçar as competências das mulheres com vistas à sua autonomia e ação emancipadora, a fim de que possam protagonizar a construção
de um novo projeto de vida, agora, sem violência (prevenção da revitimação).
23 Pesquisa na íntegra: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/mulheres_de_
olho/munic2009_ibge.pdf.
24 De conformidade com o “Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher” (2010)
- foram implementados 43 projetos educativos e culturais de prevenção;
- foram repassados, pela Secretaria de Política para Mulheres, para governos estaduais, municipais e
para organizações não-governamentais, o total de R$ 7.500.918,13, para projetos educativos e culturais de prevenção (campanhas, seminários, oficinas, etc.);
- foi criado o projeto “Siga Bem Mulher” (2008), que integra a “Caravana Siga Bem Caminhoneiro”,
levando informações sobre gênero e enfrentamento à violência contra a mulher a um universo de 2
milhões de caminhoneiros do país;
- foram lançadas 6 Campanhas Nacionais de enfrentamento à violência contra as Mulheres:
1. “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”;
2. “Donas da Própria Vida”;
3. “Camisinha, um direito seu”;
4. “Uma Vida sem Violência é Direito de Todas as Mulheres;
5. “Homens Unidos pelo fim da Violência contra as Mulheres;
6. “Fale Sem Medo – Não à Violência Doméstica”.
Ver íntegra: http://www.sepm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2010/PactoNacional_livro.pdf
228
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
Portanto, há necessidade de que eles se dirijam à proteção das vítimas no sentido
do seu empoderamento e à diminuição do isolamento em situações comprovadas de risco. A implementação de estratégias de empoderamento constitui uma
intervenção indispensável para se romper com o silêncio, quebrar o medo que
paralisa vítimas, e, sobretudo, para que se encontrem saídas não violentas para
por fim ao ciclo de violência que as enreda.
Toda mulher pode ser vítima de violência doméstica, porém o risco de sofrer tal abuso não é distribuído igualmente entre as mulheres. A principal determinante para afastar o risco é a forma como a mulher se relaciona consigo
mesma. A mulher deve se compreender como um sujeito de direito, e não como
objeto de uma tradição que a subjuga. É nessa questão, portanto, que se devem
concentrar as políticas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a
mulher. Mas não é só isso: há necessidade de se melhorar as políticas públicas
de igualdade de gênero. Nesse aspecto, muito há que ser percorrido para que o
Brasil possa sair da vergonhosa 85ª posição em uma lista de 134 países25.
Dentro deste contexto, são importantes, tanto os programas voltados para
as vítimas, quanto os que se dirigem à intervenção junto aos agressores. Igualmente, é necessário que eles sejam visibilizados e se construa uma crescente credibilidade no sistema de apoio e proteção criado pela Lei Maria da Penha.
Outra relevante necessidade que ressalta dos dados acima: que os programas alcancem os momentos posteriores à ruptura do casal, principalmente se a
inciativa partiu da mulher, pois, nesses casos, o risco e a gravidade de agressão
aumentam. Quanto maior a dificuldade criada, especialmente por constrangimentos socioculturais, para iniciar o processo de ruptura da união, maiores serão
as chances de violência nesse período final. Por outro lado, o incentivo a que se
busquem desde logo soluções socialmente legitimadas pode evitar que o conflito
sofra uma ruptura fatal, com graves lesões ou até a morte de um dos cônjuges,
normalmente a mulher. Pesquisa realizada no ano de 2006, em Portugal, constata
que o homicídio conjugal representa 16,4% dos homicídios em geral. A maioria
(88%) foi cometido por homens e apenas 12%, por mulheres (Dias, 2007: 277-8).
Por conta disso, as vítimas devem preparar a saída do relacionamento, articuladas com sistemas de proteção, ou seja, pedir apoio (da família, dos amigos,
dos entes estatais, de ONGs, conforme a necessidade) e tratar das ações relativas
ao desfecho do relacionamento, fazendo uso, nos casos extremos, dos mecanismos de proteção de vítimas e/ou controle de agressores colocados à sua disposição pela Lei Maria da Penha.
A capacitação dos membros das entidades mencionadas no presente inciso
completa a diretriz mencionada no inciso IV, no que tange aos integrantes de
Delegacias de Atendimento à Mulher.
25 Estudo sobre igualdade entre os sexos, Gender Gap, 2010.
229
Alice Bianchini
O “Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher” (2010)26
relata uma série de capacitações desenvolvidas, podendo-se citar as seguintes:
• até dezembro de 2009 foram abertas 24,5 mil vagas para capacitação
de profissionais da educação por meio do programa Gênero e Diversidade na Escola;
• Em 2008, foram assinados convênios com 20 universidades, proporcionando assim a capacitação de mais de 13 mil professoras e professores;
• Em 2009, mais 9 universidades públicas, distribuídas por diversos estados brasileiros e com a oferta de mais 6.500 vagas, também foram
conveniadas;
• Em 2010, outras 10 universidades públicas apresentaram suas propostas de oferta do GDE, em um total de 5 mil vagas, totalizando 39 instituições e 24,5 mil vagas;
• até setembro de 2010 573.707 profissionais da rede de atendimento
foram capacitados;
• cursos de capacitação sobre a Lei Maria da Penha (Conselho Nacional
de Justiça, Escolas de Magistratura e Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados/ENFAM): foram oferecidas mais de
750 vagas para a formação de juízes com competência para tratar a matéria nos estados do Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Piauí e Rio de Janeiro;
• Curso de Capacitação em Políticas Públicas para Organizações Produtivas de Mulheres Rurais com recorte de gênero e enfrentamento à
violência, nas seguintes capitais: Natal/RN, Rio Branco/Acre, Belo Horizonte/MG, Cuiabá/MT, Salvador/BA, Rio de Janeiro/RJ, Goiânia/GO,
Belém/PA e Maceió/AL.
A compreensão do problema da violência doméstica e familiar contra a mulher exige a análise do papel reservado ao sexo feminino nas relações sociais.
Facilmente se verificam sobras consistentes do sistema patriarcal, marcado e garantido pelo emprego de violência física e/ou psíquica. Tal dominação propicia o
surgimento de condições para que o homem sinta-se (e reste) legitimado a fazer
uso da violência e para compreender a inércia da mulher vítima da agressão,
principalmente no que tange às reconciliações com o companheiro agressor após
reiterados episódios de violência. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo conclui
que é comum as mulheres sofrerem agressões físicas, por parte do companheiro,
por mais de dez anos.
Diante da complexidade do quadro, torna-se imprescindível um trabalho de
reflexão com mulheres vítimas, tendente a viabilizar um processo de mudança
26
230
Ver íntegra: http://www.sepm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2010/PactoNacional_livro.pdf .
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 8º
subjetiva paralelo à definição das experiências de agressão. Elas precisam compreender o processo de violência e, a partir desta consciência, tomar a sua decisão (manter o relacionamento agressivo, buscar auxílio para superar as duas
primeiras fases do ciclo de violência, ou afastar-se, definitivamente, do agressor).
A preocupação com o tema, junto aos currículos escolares de todos os níveis de ensino, é de eficácia muito elevada para a coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher, pois se passa a conhecer e eventualmente cultivar
valores mais libertários do que aqueles advindos do senso comum.
Como já dito, e é bem sabido, a violência doméstica e familiar contra a
mulher possui causa social. Ela decorre, principalmente, do papel reservado na
sociedade às representantes do sexo feminino. Apesar dos avanços, perduramos vivendo em uma sociedade marcada por herança de costumes patriarcais,
na qual predominam valores estritamente masculinos, restos de imposição por
condição de poder. Dito de outra forma, a dominação do gênero feminino pelo
masculino é apanágio das relações sociais patriarcais, que costumam ser marcadas (e garantidas) pelo emprego de violência física e/ou psíquica. Tal dominação
propicia o surgimento de condições para que o homem sinta-se (e seja) legitimado no controle da mulher por meio de agressão.
Tendo causa social, a violência contra a mulher há que ser coibida na sua
origem e meio, ou seja, na própria sociedade. Nesse sentido, é de extrema valia
a presença de discussões sobre ela em todos os níveis educacionais, conforme
prevê o presente inciso. Exemplo é a parceria entre Ministério da Educação e a
SPM, para incluir o Programa Gênero e Diversidade na Escola (GDE) no sistema
de oferta da Universidade Aberta do Brasil (UAB) da CAPES/MEC.
Sanchez e Pinto (2008) chamam a atenção para uma importante discussão
sobre o tema: a falta da disciplina direitos humanos nos currículos das faculdades de Direito, bem como em alguns concursos públicos. Citando, a título
de exemplo, o concurso de ingresso à carreira do Ministério Público do Estado
de São Paulo, de 2006, informam os autores que a matéria Direitos humanos
nem mesmo foi incluída no programa, constituído por direito penal, processual
penal, civil, processual civil, comercial, da infância e juventude, constitucional,
administrativo e tutela de interesses difusos e coletivos.27 Vale dizer, logo o parquet, em que o legislador depositou tanta confiança, como se vê dos arts. 25 e 26
da Lei 11.340/2006, simplesmente ignora (pelo menos no Estado de São Paulo) a
relevância da disciplina.
Ainda de acordo com os mesmos autores, felizmente, a ausência de discussões sobre direitos humanos não ocorre em concursos de ingresso em outras carreiras jurídicas, como Defensoria Pública, Procuradoria do Estado, Polícia Civil.
27 Edital 371/2006, publicado em 17 de agosto de 2006, no DOE na Seção referente ao Ministério Público.
231
Alice Bianchini
Referências bibliográficas
CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica. 2. ed.
rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007.
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de. Criminologia. 3. ed.
Trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MAYR, Eduardo. Vitimologia e direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n. 21, p. 183, jan.-mar. 1998.
SANTIN, Valter Foleto. CAMPOS, Roberta Toledo. A constitucionalidade da Lei
Maria da Penha. Revista Prática Jurídica, Ano VII, n° 73. 30 de abr. de 2008.
SOUZA, Luiz Antonio. KUMPEL. Vitor Frederico. Violência domestica e familiar
contra a mulher. São Paulo: Método, 2007.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de combate à violência contra a mulher.
Curitiba: Juruá, 2007.
232
Da assistência à mulher em situação
de violência doméstica e familiar – artigo 9º
Comentários: Ela Wiecko V. de Castilho
Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada
de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da
Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública,
entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1º O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência
doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e
municipal.
§ 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar
sua integridade física e psicológica:
I – acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta;
II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.
§ 3º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o
acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os
serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos
médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.
A origem deste artigo encontra-se no Anteprojeto do Consórcio. Integrava
uma Seção do Capítulo sobre “Mecanismos de Assistência às Vítimas de Violência Doméstica” sob a rubrica de “Assistência Social”, embora contivesse propostas de dispositivos relativos à assistência médica e psicológica. Na última versão
do Anteprojeto, constituía o art. 18, no Capítulo “Do Atendimento”, com a seguinte redação: “A assistência social às mulheres vítimas de violência doméstica
será prestada, de forma articulada, emergencial ou não, conforme os princípios e
as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, na Política Nacional
de Direitos Humanos, no Sistema Único de Saúde e demais normas pertinentes”.
O Projeto encaminhado pelo Executivo encampou a mesma redação.
233
Ela Wiecko de Castilhos
A substituição da expressão “Política Nacional de Direitos Humanos” por
“Sistema Único de Segurança Pública” e a inclusão dos parágrafos foram feitas
na Câmara dos Deputados, por meio do Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.559,
de 2004, apresentado pela Deputada Jandira Feghali na Comissão de Seguridade
Social e Família. No entanto, cumpre observar que os princípios da prioridade
no atendimento nos serviços públicos de saúde, justiça e segurança, bem como
de proteção imediata e integral às mulheres em situação de violência doméstica,
já estavam enunciados no Anteprojeto desde o início de sua concepção.
A redação do art. 9º, que se manteve até a aprovação no Plenário da Câmara
dos Deputados, era a seguinte:
Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar
será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no
Sistema Único de Segurança Pública, dentre outras normas e políticas públicas
de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1º O juiz deverá estabelecer, por prazo determinado, a inclusão da mulher
vítima de violência no cadastro de programas assistenciais governamentais,
federais, estaduais e municipais.
§ 2º O juiz assegurará à mulher vítima de violência doméstica e familiar, para
preservar sua integridade física e psicológica:
I – acesso prioritário à transferência de local de trabalho quando servidora
pública, integrante da administração direta ou indireta;
II – estabilidade, por prazo de 6 (seis) meses, por motivo de afastamento do
emprego.
§ 3º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e
tecnológico. O acesso incluirá os serviços de contracepção de emergência, profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis – DSTs e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS e outros procedimentos médicos cabíveis e
necessários para os casos de violência sexual.
As alterações só vieram a ocorrer durante a tramitação no Senado, por iniciativa da Relatora Lúcia Vânia, em Parecer ao PLC nº 37, de 2006.
O Parecer consignou que o nome do Capítulo II até então aprovado (Da Assistência à Mulher em Situação de Violência) indicava “um escopo mais abrangente que o da futura lei” e não refletia “a necessária uniformidade da nomenclatura utilizada na designação do Título III ao qual pertence (Da Assistência à
Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar)”. Propôs que, “nessa
e em outras ocorrências semelhantes ao longo do projeto”, devia-se restringir,
portanto, “a amplitude da expressão ao âmbito da incidência da lei”.
No art. 9º, propôs uniformizar a nomenclatura alusiva à mulher em situação de violência, mediante a supressão do termo “vítima”. Também, no inciso
234
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 9º
I do § 2º, “a substituição da expressão ‘transferência do local de trabalho’ pelo
termo ‘remoção’, que se aplica à situação regulada, conforme o art. 36 da Lei nº
8.112, de 11/12/90”. No inciso II do § 2º, indicou a conveniência de “substituir o
termo ‘estabilidade’ pela expressão ‘manutenção do vínculo trabalhista’, não só
para evitar os desdobramentos financeiros que o uso do primeiro impõe, mas
sobretudo para ressaltar o verdadeiro propósito do dispositivo quando de sua
inclusão no substitutivo da CSSF da Câmara dos Deputados”. Fundiu os dois
períodos que formam o § 3º e inverteu “a sequência do aparecimento dos termos
‘cabíveis e necessários’ nele presentes, para atender aos princípios de clareza e
ordem lógica prescritos no art. 11 da LC n. 95/98”.
Essas informações são relevantes para a interpretação da lei, embora, esta,
depois de editada, adquira vida própria, sendo reinventada continuamente à
luz de princípios, de contextos e de critérios que não nortearam a elaboração das
normas ou não estavam presentes à época.
Do ponto de vista do conteúdo da assistência prevista, as disposições do
art. 9º podem ser classificadas em três grupos. O primeiro diz respeito a políticas
públicas de proteção, em especial às políticas públicas de assistência social, de
saúde e de segurança. O segundo refere-se à proteção no trabalho, com regras
diferenciadas para o caso de a mulher ser servidora pública ou ser empregada
em empresa privada. Ou seja, medidas protetivas nas relações de trabalho que
talvez estivessem melhor situadas no Capítulo II “Das Medidas Protetivas de
Urgência”. O terceiro grupo também diz respeito à proteção à saúde, mas, em
sentido mais restrito, relacionado a agravos decorrentes de violência sexual.
Do ponto de vista do comando das normas, essas são dirigidas, em sua
maior parte, aos agentes da administração pública dos três níveis de governo, na
área da saúde, da assistência social e da segurança pública.
Aparentemente, os §§1º e 2º dirigem-se apenas ao Judiciário. Todavia, a
inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro
de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal prescinde
de ordem judicial, como será explicado mais adiante. Da mesma forma, a chefia
do órgão da administração direta ou indireta pode priorizar a remoção de servidora pública, quando comprovada a necessidade para preservar a integridade
física e psicológica, independentemente de ordem judicial.
No inciso II do § 2º, o comando dirige-se ao empregador da mulher em
situação de violência doméstica ou familiar que, na prática, só assegurará a manutenção do vínculo trabalhista se compelido pelo Judiciário.
Em suma, é possível interpretar, sob um ângulo, que, se os agentes públicos
não assegurarem a assistência por meio das políticas públicas, ela poderá ser demandada em ação judicial, não estando limitada à inclusão no cadastro de programas assistenciais. Sob outro ângulo, é possível interpretar no sentido de que
medidas protetivas podem ser implementadas independentemente de ordem
judicial se no plano da administração pública ou no plano das relações privadas
235
Ela Wiecko de Castilhos
for reconhecida a necessidade de assegurar o direito à integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar.
A seguir serão indicados os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), no Sistema Único de Saúde (SUS), no Sistema
Único de Segurança Pública (SUSP), entre outras normas e políticas públicas de
proteção, disponíveis nos portais eletrônicos do governo federal.
Consoante o art. 4º da Lei nº 8.742, de 7/12/93 (LOAS), a assistência social
rege-se pelos seguintes princípios:
I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de
rentabilidade econômica;
II – universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação
assistencial alcançável pelas demais políticas públicas;
III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária,
vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;
IV – igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de
qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;
V – divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para
sua concessão.
Por sua vez, o art. 5º aponta as seguintes diretrizes para a organização da
assistência social:
I – descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo;
II – participação da população, por meio de organizações representativas, na
formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis;
III – primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo.
No tocante à Lei nº 8.080, de 19/9/90, que institui o Sistema Único de Saúde,
as ações, os serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou
conveniados que integram o SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal (descentralização, com direção
única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas; participação da comunidade), obedecendo ainda aos seguintes princípios indicados no art. 7º:
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
236
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 9º
III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física
e moral;
IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a
sua utilização pelo usuário;
VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática;
VIII – participação da comunidade;
IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada
esfera de governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;
X – integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;
XI – conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de
serviços de assistência à saúde da população;
XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e
XIII – organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de
meios para fins idênticos.
No que toca ao Sistema Único de Segurança Pública, trata-se de uma articulação das ações federais, estaduais e municipais na área da segurança pública
e da Justiça Criminal, ainda não estabelecida em lei. Servem de modelo para o
SUSP as experiências de missões especiais e forças-tarefa, em que órgãos diferentes trabalham integrados, com pessoal qualificado e com objetivos, metas e
metodologia bem definidos.
O governador do estado assina um protocolo de intenções com o Ministério
da Justiça. Então, é criado no estado um Comitê de Gestão Integrada, do qual
fazem parte o secretário estadual de Segurança Pública, como coordenador, e
mais representantes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil
e guardas municipais. Busca-se também a cooperação ativa do Ministério Público e do Poder Judiciário. Cabe a esse comitê definir de forma consensual as
ações, principalmente no combate ao crime organizado, e as prioridades para investimentos federais na área de segurança pública no estado. Todas as decisões
do comitê estadual são repassadas a um comitê gestor nacional.
Dentre as outras normas e políticas públicas de proteção cumpre apontar
a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, estruturada a partir do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), elaborado com base na Primeira Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres,
realizada em 2004 pela então Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
237
Ela Wiecko de Castilhos
(SPM) e pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM). O documento
objetiva explicitar os fundamentos conceituais e políticos do enfrentamento à
questão e as políticas públicas que têm sido formuladas e executadas para a prevenção e combate à violência contra as mulheres, assim como para a assistência
às mulheres em situação de violência.
Um dos conceitos fundamentais é o de rede de atendimento. Consiste na
atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais e não governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da qualidade do atendimento, à identificação e ao encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência e ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção. A
constituição da rede de atendimento busca dar conta da complexidade da violência contra as mulheres e do caráter multidimensional do problema, que perpassa
diversas áreas, tais como: a saúde, a educação, a segurança pública, a assistência
social, a cultura, entre outros.
No âmbito do governo, a Rede de Atendimento à Mulher em situação de
Violência é composta pelos seguintes serviços: Centros de Referência – espaços
de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento
jurídico à mulher em situação de violência, que devem proporcionar o atendimento e o acolhimento necessários à superação de situação de violência, contribuindo para o fortalecimento da mulher e o resgate de sua cidadania, bem como
exercer o papel de articulador das instituições e serviços governamentais e não
governamentais que integram a Rede de Atendimento; Casas-Abrigo – locais
sob sigilo que oferecem moradia protegida e atendimento integral a mulheres
em risco de vida iminente em razão da violência doméstica, por um período
determinado, durante o qual deverão reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas; Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher
(DEAM) – unidades especializadas da Polícia Civil para atender as mulheres
em situação de violência, realizando ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal; Defensorias da Mulher – com a finalidade de dar
assistência jurídica, orientar e encaminhar as mulheres em situação de violência
e que não possuem condições econômicas de contratar advogado; Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – órgãos da Justiça Ordinária
com competência cível e criminal que poderão ser criados pela União (no Distrito Federal e nos Territórios) e pelos Estados para o processo, o julgamento e
a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher; Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 – serviço do
governo federal que auxilia e orienta as mulheres em situação de violência através do número de utilidade pública 180, gratuitamente e de qualquer parte do
território nacional; Ouvidorias – canais de acesso e comunicação direta entre
a instituição e a(o) cidadã(o), que procuram atuar através da articulação com
outros serviços de ouvidoria em todo o país, encaminhando os casos que chegam para os órgãos competentes em nível federal, estadual e municipal, além
238
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 9º
de proporcionar atendimentos diretos; Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) – fazem parte do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF) e
desenvolvem serviços básicos continuados e ações de caráter preventivo para
famílias em situação de vulnerabilidade social (proteção básica); Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) – responsáveis pela proteção de famílias e indivíduos que tenham seus direitos violados e que vivam
em situações de risco pessoal e social (proteção especial); Centro de Educação e
Reabilitação do Agressor – espaços de atendimento e acompanhamento de homens autores de violência, encaminhados pelos Juizados Especiais de Violência
Doméstica/Familiar contra a Mulher e demais juizados/varas, para a reeducação
dos homens autores de violência e a construção de novas masculinidades, a partir do conceito de gênero e de uma abordagem responsabilizante.
As ações detalhadas e as metas a serem implementadas pela Política Nacional encontram-se previstas no Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres, que constitui um plano de ações referente à Agenda Social
do Programa de Aceleração do Desenvolvimento, elaborado em agosto de 2007
para execução no período de 2008 a 2011. A coordenação do Pacto Nacional está
a cargo da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), da Presidência da
República, e as atividades são executadas por um amplo conjunto de ministérios e secretarias. Ressaltam-se aqui algumas metas a serem alcançadas até 2011:
construir, reformar ou equipar 764 serviços da Rede de Atendimento à Mulher
em situação de violência; capacitar 3.000 CRAS e CREAS para que prestem atendimento adequado às mulheres em situação de violência e, assim, passem a integrar a Rede de Atendimento à Mulher; capacitar cerca de 200 mil profissionais
nas áreas de educação, assistência social, segurança, saúde e justiça.
Os serviços ofertados nos CREAS devem ser desenvolvidos de modo articulado com a rede de serviços da assistência social, órgãos de defesa de direitos
e demais políticas públicas. A articulação no território é fundamental para fortalecer as possibilidades de inclusão da família em uma organização de proteção
que possa contribuir para a reconstrução da situação vivida. Os CREAS podem
ter abrangência tanto local (municipal ou do Distrito Federal) quanto regional,
alcançando, neste caso, um conjunto de municípios, de modo a assegurar maior
cobertura e eficiência na oferta do atendimento.
Com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), os serviços assistenciais voltados para mulheres em situação de violência doméstica
e familiar estão inseridos no âmbito da Proteção Social Especial (PSE de Alta
Complexidade).
A Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, objeto da Resolução
nº 109, de 11/11/09, distingue a Proteção Social Básica, de caráter preventivo, da
Proteção Social Especial, com caráter protetivo. As atividades da Proteção Especial são diferenciadas de acordo com níveis de complexidade (média ou alta) e
conforme a situação vivenciada pelo indivíduo ou família.
239
Ela Wiecko de Castilhos
A PSE de Alta Complexidade oferece atendimento às famílias e indivíduos
que se encontram em situação de risco pessoal e social, com vínculos familiares
rompidos ou extremamente fragilizados, mediante o acolhimento em ambiente
com estrutura física adequada, oferecendo condições de moradia, higiene, salubridade, segurança, acessibilidade e privacidade. Os serviços também devem
assegurar o fortalecimento dos vínculos familiares e/ou comunitários e o desenvolvimento da autonomia dos usuários.
A PSE de Alta Complexidade oferece quatro serviços: Serviço de Acolhimento Institucional (que poderá ser desenvolvido nas modalidades de abrigo
institucional, casa-lar, casa de passagem ou residência inclusiva); Serviço de
Acolhimento em República; Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora; e
Serviço de Proteção em situações de Calamidade Pública e de Emergência.
O primeiro deles guarda mais interesse para os fins do art. 9º. O Serviço
de Acolhimento Institucional oferta acolhimento em diferentes tipos de equipamentos, destinados a famílias e/ou indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a fim de garantir proteção integral. O atendimento prestado
deve ser personalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar
e comunitário. Deve funcionar em unidades inseridas na comunidade com características residenciais, ambiente acolhedor e estrutura física adequada, oferecendo condições de habitabilidade, higienização, salubridade, segurança,
acessibilidade e privacidade. O serviço deve ser adequado às especificidades do
público atendido: crianças e adolescentes; adultos e famílias; jovens e adultos
com deficiência; idosos; mulheres em situação de violência. São ações que requerem o acompanhamento familiar e individual e maior flexibilidade nas soluções.
Comportam encaminhamentos efetivos e monitorados, apoios e processos que
assegurem qualidade na atenção.
Os serviços de PSE atuam diretamente ligados com o sistema de garantia
de direito, exigindo uma gestão mais complexa e compartilhada com o Poder
Judiciário, o Ministério Público e com outros órgãos e ações do Executivo.
Além do Pacto Nacional vale mencionar a existência de uma Rede Nacional de Atenção Integral para Mulheres em situação de violência que articula
as ações organizadas entre o governo federal, governos estaduais e municipais,
organizações da sociedade civil, entidades de classe, instituições de ensino superior e comunidades para o desenvolvimento de estratégias globais no enfrentamento da violência contra mulheres.
A Rede Estadual de Atenção Integral para Mulheres e Adolescentes em situação de violência replica no âmbito do estado a rede nacional. A Rede Estadual organiza as referências e contrarreferências no atendimento, acompanhamento, notificação, defesa de direitos e responsabilização de agressores.
A Rede Municipal de Atenção Integral para Mulheres e Adolescentes em situação de violência é a organização das estratégias locais (serviços e sociedade civil disponíveis) que desenvolvem de forma intra e intersetorial as ações de acolhimento,
240
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 9º
atendimento, notificação, defesa de direitos, responsabilização de agressores e
atenção psicossocial para o enfrentamento da violência contra mulheres.
O § 1º do art. 9º prevê como direito a inclusão da mulher em situação de
violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo
federal, estadual e municipal. O acesso aos programas assistenciais do governo
federal depende de inscrição prévia no Cadastro Único para Programas Sociais,
regulamentado pelo Decreto nº 6.135/07 e coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). É um instrumento que identifica e caracteriza as famílias com renda mensal de até meio salário-mínimo por
pessoa ou de três salários-mínimos no total. Famílias com renda superior a meio
salário-mínimo também podem ser inscritas, desde que sua inserção esteja vinculada à inclusão e/ou permanência em programas sociais implementados pelo
poder público nas três esferas do governo. Deve ser obrigatoriamente utilizado
para seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal, como o Bolsa Família. Suas informações podem também ser utilizadas
pelos governos estaduais e municipais para obter o diagnóstico socioeconômico
das famílias cadastradas, possibilitando a análise das suas principais necessidades. O cadastramento é feito no município, mas o governo federal, por meio de
um sistema informatizado, consolida os dados coletados.
No caso do Bolsa Família, o MDS seleciona de forma automatizada, com base
nas informações inseridas no Cadastro Único, as famílias que serão incluídas no
Programa. O critério principal é a renda familiar por pessoa. O cadastramento não
implica a entrada imediata das famílias no Programa e o recebimento do benefício.
À vista dessas regras, o cadastramento da mulher em situação de violência
doméstica e familiar prescinde de ordem judicial, podendo ser providenciada
diretamente pela Rede de Atendimento no Município onde ela reside, desde
que atenda ao critério de renda. Caso ocorra a determinação judicial, deverá ser
dirigida à autoridade municipal responsável pelo cadastramento. Na verdade, o
objetivo do § 1º parece ser a inclusão em programas assistenciais, devido ao uso
da expressão “por prazo certo”. Nesse caso, a ordem judicial deve ser expedida
à autoridade federal, estadual ou municipal que concede o benefício. A ordem
judicial pode implicar superação dos limites orçamentários para pagamentos de
benefícios e não pode violar os requisitos exigidos para o recebimento do benefício assistencial.
Levantamento feito pela Ouvidoria da SPM, com base em informações
colhidas, publicada no Boletim bimestral de maio-junho de 2010, revelou que
94,5% das mulheres não recebem bolsa assistencial, por isso o questionamento
“Recebe Bolsa Assistencial”, que passou a ser feito nos atendimentos feitos pela
Central Ligue 180, visando complementar a análise referente à dependência financeira da mulher em situação de violência, em relação a seu agressor é relevante para a aplicação do disposto no art. 9º § 1º da Lei Maria da Penha..
241
Ela Wiecko de Castilhos
O § 2º do art. 9º prevê dois instrumentos para reforçar as medidas protetivas
à mulher. Se necessário, por exemplo, conforme o art. 23, afastar a ofendida do
lar e encaminhá-la a programa oficial de proteção de vítimas ou a casa-abrigo, o
exercício da função pública em outro local, pelo acesso prioritário à remoção, ou a
manutenção do vínculo empregatício por prazo determinado podem ser indispensáveis para dar condições à mulher de retomar sua vida.
A natureza jurídica dessas medidas também é protetiva. Do ponto de vista
do empregador público ou privado, constituem obrigações, gravames que devem
suportar, porque o interesse protegido transcende o privado para se tornar também público. O interesse em assegurar às mulheres uma vida sem discriminação
e sem violência é do Estado brasileiro. A responsabilidade em criar as condições
necessárias para tanto cabe à família, à sociedade e ao poder público, consoante
enunciado no art. 3º, § 2º. A previsão integra logicamente as demais possibilidades de remoção independentemente do interesse da administração, comportando conforme o caso ainda mudança de sede e lotação ou exercício provisório
no destino, como nos casos de licença por motivo de afastamento do cônjuge
deslocado para outro ponto do território nacional (art. 84, § 2º, Lei nº 8.112/90).
As implicações são várias e não foram discutidas no processo legislativo.
Há muitas interpretações possíveis do alcance dessas medidas. Qual delas é a
correta? Aquela que melhor conformar-se ao princípio expresso no art. 4º: “Na
interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e,
especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência
doméstica e familiar”.
Na primeira situação regrada, a lei, sem dúvida, estabelece uma preferência
em favor da mulher, servidora pública, da administração direta ou indireta, em
situação de violência doméstica e familiar, em eventual pedido de remoção, com
vistas a garantir a sua integridade física e psicológica.
No início vimos que o termo “remoção” substituiu o de “transferência”, tendo
em vista a Lei Federal nº 8.112/90. Segundo o art. 36 dessa Lei, “remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem
mudança de sede”. No entanto, no direito ao “acesso prioritário à remoção” não há
fundamento para restringir o direito à medida à mulher servidora pública federal.
Tendo em vista o art. 4º da Lei nº 11.340, o conceito de remoção deve ser
amplo, de modo a abranger outras categorias similares como transferência, redistribuição, cessão, lotação, no âmbito da administração federal, estadual ou
municipal. No entendimento de Adriana Ramos de Mello (2007, p. 52), “o Juiz
não pode proferir uma determinação para que outro município aceite aquela
vítima, o que violaria o princípio constitucional que impõe a obrigatoriedade
do concurso público como única forma de acesso à administração pública (art.
37, II, da CF)”. Entretanto, não viola o princípio a cessão de servidora pública
de um ente da federação para outro ou para órgãos diferentes do mesmo ente
federativo. Tal situação pode ser encontrada na experiência prática do Programa
242
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 9º
Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Lei nº 9.807, de
13/7/99), ainda que a previsão legal seja de suspensão temporária das atividades
funcionais, sem prejuízo dos respectivos vencimentos ou vantagens (art. 7º, VI).
A cessão também ocorre em situações para acompanhamento de cônjuge removido. A implementação da solução exige tratativas no âmbito administrativo.
Além da interpretação ampla do que há de se entender por remoção, acrescente-se a interpretação de independe da existência de cargo vago (SOUZA, 2007, p. 60).
Dizem alguns que deixou o legislador ao Poder Judiciário a tarefa de verificar se estão presentes os requisitos legais para a concessão da medida, quando
a questão poderia ser resolvida facilmente na esfera administrativa, sem necessidade da intervenção judicial. No entanto, como já afirmado antes, a autoridade administrativa pode ser acionada diretamente e aplicar a lei. Tem-se conhecimento, no âmbito do Ministério Público Federal, de lotação provisória de
servidora em outra unidade, antes da abertura de edital de remoção, diante de
requerimento fundamentado na Lei Maria da Penha.
Questão relevante é saber se a ordem de acesso prioritário à remoção na
administração federal pode ser decretada pelo juiz estadual do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A resposta é positiva. Explica Sérgio Ricardo de Souza (2007, p. 62) que não se pode confundir “a competência
para processar e julgar as causas de interesse da União (CFRB, art. 109), com o
julgamento das causas comuns, de onde decorram decisões que tenham reflexos
indiretos na Administração Pública Federal”.
A interpretação do inciso II acerca da manutenção do vínculo trabalhista da
mulher igualmente enseja dificuldades. Viu-se que no processo legislativo a intenção não foi a de assegurar o pagamento dos encargos trabalhistas, apenas a
manutenção do vínculo. Cabe então indagar qual a natureza desse afastamento
legal não remunerado para saber as implicações relativamente aos encargos trabalhistas e previdenciários.
Em primeiro lugar, é corrente a interpretação que o afastamento configura
uma suspensão do contrato de trabalho. Isso significa que o empregador não
está obrigado a pagar o salário nem a recolher as contribuições previdenciárias
e o FGTS. Explica Sérgio Pinto Marins (2008, p. 458) que “a suspensão envolve a
cessação temporária e total da execução e dos efeitos do contrato de trabalho. Na
interrupção há a cessação temporária e parcial do contrato de trabalho, porém há
a produção de efeitos”. Ressalta que “o empregador não poderá, por exemplo,
conceder aviso prévio na suspensão do contrato de trabalho” e que, quando o
empregado voltar à empresa, “terá direito a todas as vantagens legais ou normativas que forem atribuídas à categoria a que pertence na empresa” (p. 459).
Como não há na lei previdenciária previsão para o pagamento de benefício,
a suspensão do contrato de trabalho importa em prejuízo para a contagem do
tempo de contribuição. Sérgio Ricardo Souza (2007, p. 63) reporta que segundo a
Lei de Seguridade Social da Espanha o pagamento da remuneração é suportado
243
Ela Wiecko de Castilhos
pela previdência social. Vale lembrar que, na Lei nº 9.807/99, já referida, o art.
7º, V, prevê “ajuda financeira mensal para prover as despesas necessárias à subsistência individual ou familiar, no caso de a pessoa protegida estar impossibilitada de desenvolver trabalho regular ou de inexistência de qualquer fonte de
renda”.
O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) observa que “os
sindicatos podem assumir um papel importante neste momento buscando assegurar o direito da trabalhadora celetista, por ocasião dos acordos coletivos,
incluindo sua garantia na pauta de reivindicações” (2007, p. 25).
Marília Costa Vieira defende (2009) a incompetência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, pois “só será possível a concessão
da suspensão do contrato de trabalho se houver, de fato, o vínculo trabalhista,
e para analisar se existe este vínculo é necessário remeter a questão à Justiça do
Trabalho, vez que as causas envolvendo a relação de trabalho, por expressa disposição constitucional (art. 111, CF/1988), são da sua competência”.
No entendimento de Pedro Rui da Fontoura Porto (2006), do qual compartilho, “cabe ao juiz criminal reconhecer o enquadramento na hipótese de violência
doméstica, comunicando a empresa. Não cumprida tal determinação, o empregador estará sujeito a uma reclamatória trabalhista com pedido de reintegração
e restabelecimento do vínculo rompido”.
Não vislumbro óbice a que a manutenção do vínculo trabalhista, sem a correspondente prestação laboral, seja reconhecida pelo empregador, independentemente de decisão judicial ou em face de decisão judicial posterior com efeito
retroativo, desde que demonstrada a força maior. É relevante para a mulher em
situação de violência doméstica e familiar impedida de comparecer ao trabalho
justificar as suas faltas, a fim de que não se caracterize abandono de emprego.
Registre-se que “a ausência do empregado por mais de 30 dias sem trabalhar
cria a presunção relativa (iuris tantum) de que abandonou o emprego. Caberá ao
empregado fazer prova em sentido contrário” (MARTINS, 2008, p. 515).
O § 3º destaca que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento
científico e tecnológico. É uma norma cujo alcance e razão só se fazem claros com
a leitura da segunda parte do parágrafo. O que se quis dizer é que a mulher
que, em situação de violência doméstica e familiar, sofra violência sexual tem o
direito aos serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis e da síndrome da imunodeficiência adquirida e outros
procedimentos médicos necessários e cabíveis.
A implementação do comando legal depende em grande parte da atuação
da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde bem como do Programa Nacional DST-AIDS a cargo do mesmo
ministério.
244
Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar – artigo 9º
No estado atual do desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil, a
contracepção de emergência se faz com a “pílula do dia seguinte”, um combinado de estrógeno e progesterona que, se administrado à mulher, decorridas, no
máximo, 72 horas após a relação sexual, seguida de outra dose, após 12 horas, é
capaz de reduzir em até 85% a ocorrência da fecundação.
Na expressão “outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos
casos de violência sexual”, a lei engloba o aborto, nos termos do art. 128, II, do
Código Penal. A Portaria nº 1508, de 1º/9/05, dispõe sobre o Procedimento de
Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em
lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
Referências bibliográficas
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Mulher. Elaborado pelo Consórcio de ONGs Feministas. Brasília. 2004. Mimeo.
BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de Lei nº 4.599/2004. Parecer da Deputada Jandira Feghali. Comissão de Seguridade Social e Família, 2005.
______. Parecer da Deputada Irini Lopes. Comissão de Constituição de Justiça e
Cidadania, 2005.
______. Senado Federal. Projeto de Lei da Câmara 37, de 2006. Comissão de Justiça e Cidadania. Parecer da Senadora Lúcia Vânia. Painel de Emendas, 2006.
CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Lei Maria da Penha: do
papel para a vida. Comentários à Lei 11.340/2006 e sua inclusão no ciclo orçamentário. Brasília: 2007. Disponível em: <www.cfemea.org.br>.
MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários à CLT. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
MELLO, Adriana Ramos. Cap. II – Da assistência: Mulher.... – art. 9º. In: MELLO,
Adriana Ramos (Org.). Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a
mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 50-53.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares à Lei 11.340/06 e sua repercussão em face dos juizados especiais criminais. Disponível em: <www.mp.rs.gov.
br/areas/criminal/arquivos/lei11340pedrorui.doc>. Acesso em: 3 mar. 2011.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher:
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VIEIRA, Marília Costa. A Lei Maria da Penha e a nova hipótese de manutenção do vínculo trabalhista. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. 11 fev. 2009. Acesso
em: 28 fev. 2011.
245
Ela Wiecko de Castilhos
Sites consultados
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial
http://www.ms.gov.br
http://www.sepm.gov.br
http://www.observatoriodegenero.gov.br
http://www.mj.gov.br
246
Do atendimento da autoridade policial –
artigos 10 a 12
Comentários: Adilson José Paulo Barbosa e Léia Tatiana Foscarini
Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as
providências legais cabíveis.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida
protetiva de urgência deferida.
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério
Público e ao Poder Judiciário;
II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro,
quando houver risco de vida;
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do
local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro
da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos,
sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
247
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
IV – determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros
exames periciais necessários;
V – ouvir o agressor e as testemunhas;
VI – ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes
criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências
policiais contra ele;
VII – remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.
A regulação especifica e detalhada do “atendimento” pela Autoridade Policial, cumpre e fundamenta-se no compromisso multilateral, entre outros, assumido pelo Brasil e outras nações, ao celebrarem a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de
Belém do Pará)1”. A Convenção traz o compromisso e o dever dos Estados parte
de treinarem seus policiais e especializarem seus atendimentos a mulheres vítimas de violência doméstica. Exige a regulação expressa e detalhadas das “atitudes” e “ações” das autoridades responsáveis pelo acolhimento e investigação de
vítimas e crimes de violência contra a mulher.
A necessidade ou obrigatoriedade de regulamentação, em detalhes, de algo
que, a priori, já está regulado nos estatutos funcionais e regulamentos éticos e
de conduta de servidores civis e militares, deve-se ao histórico de maus tratos e
preconceitos sofrido pelas mulheres vítimas de violência sexual, durante o atendimento em delegacias, hospitais e instituições públicas de uma maneira geral.
Além do machismo e sexismo, a falta de treinamento para compreender a complexidade da situação de violência doméstica, fazia com que muitos Delegados e
Escrivães de Polícia pedissem a vítima para entregar a “intimação” ao agressor.
1
248
“Artigo 7. Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em
adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades,
seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com
essa obrigação (...);”
Artigo 8. Os Estados Partes convêm em adotar, progressivamente, medidas específicas, inclusive
programas destinados a:
“(...)
c) promover a educação e treinamento de todo o pessoal judiciário e policial e demais funcionários
responsáveis pela aplicação da lei, bem como do pessoal encarregado da implementação de políticas
de prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher;
d) prestar serviços especializados apropriados à mulher sujeitada a violência, por intermédio de
entidades dos setores público e privado, inclusive abrigos, serviços de orientação familiar, quando
for o caso, e atendimento e custódia dos menores afetados (...);”
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
Apesar da vedação expressa da lei2, autoridades e servidores ainda mantém a
sádica prática de pedir a mulheres ferozmente espancadas que procurem seus
algozes para comunicar-lhe que está sendo “processado” criminalmente.
Além de atender um compromisso internacional do Brasil, o Capitulo III
cumpre também uma das diretrizes “política” da própria lei que, em ser artigo
8º, incisos IV e VII, fixa com dever e meta do poder público, entre outras: “IV –
a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em
particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; e a VII – a capacitação
permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de
Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no
inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia (...);”.
No paradigma anterior, as autoridades em geral e autoridade policial em
especial só agiam quando situação de violência já havia se efetivado, ou seja, mediante denúncia da agredida ou seus familiares. Medidas de proteção, em razão
de ameaças, raramente eram tomadas. Da mesma forma, o atendimento médico
emergencial era relegado a segundo plano, em nome da necessidade de “colher
provas”. Despreparados e incapazes de perceber as diversas formas manifestações de violência doméstica – hoje conceituadas no art;.7º, da LMP – na imensa
maioria dos casos os policiais interferiram no sentido evitar prisões, medidas
judicias e para “promover” a “paz” entre a vítima e o algoz.
Esse “encaminhamento” tornou-e rotineiro com a atuação dos chamados Juizados Especiais Criminais – JECRIMs que consideravam de menor potencial ofensivo os crimes praticados com violência doméstica. Nos casos de agressão levados
aos Juizados Especiais Criminais, a vítima de violência doméstica praticamente
era forçada a negociar acordos que, quase sempre, “condenavam” o agressor ao
“pagamento” de cestas básicas3 a instituições de caridades. A celebração de tais
acordos, que era quase imposta pelos chamados “operadores” do direito envolvidos, gerou uma sensação de impunidade e pânico para mulheres agredidas4.
Não é por caso que o artigo 10 determina que medidas devam ser tomadas mesmo na iminência da ocorrência ou prática de violência doméstica ou
2
“Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente
dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído
ou do defensor público.
Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor”.
3
O art. 17, da Lei Maria da Penha veda, expressamente, “a aplicação, nos casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a
substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”.
4
Nesse sentido, como reconheceu, o Professor Elias Antonio Jacob, em artigo publicado na WEB,
sobre os JECRIMs e a LMP, “Persistia a possibilidade de composições espúrias. O poder dissuasório
do autor do fato desencorajava a disposição da vítima de manifestar sua vontade de vê-lo punido (os
crimes de lesão corporal leves são de ação pública condicionada). Continuaram freqüentes as transações penais pusilânimes, com propostas de pagamento de valores irrisórios ou de cestas básicas”. [A
lesão corporal em situação de violência doméstica e a Lei Maria da Penha – Estudos Iniciais, artigo
publicado em in: http://www.jmadvogados.com.br/index.php].
249
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
familiar. Tomando conhecimento, por qualquer meio, de que existe risco ou delineia-se a prática de violência aqui descrita a ação da autoridade ou autoridades
deve ser célere e preventiva.
Essa diretiva da lei impõe, por exemplo, que sejam instalados serviços
“Vinte Quatro Horas” e plantões para atendimento de “pedidos de socorro” por
telefone ou mesmo por carta. Serviços sigilosos que devem ter servidores treinados e capazes de identificar as diversas formas de violência doméstica e encaminhar, de forma individualizada, a vítima ou vítimas para um ou mais atendimentos, que devem ser colocados a disposição da vítima e familiares.5 Numa
interpretação sistemática, não apenas policiais civis e militares devem prestar
atendimento ou o socorro exigido, mas também a Guarda Municipal, o Corpo
de Bombeiros e os Conselhos Tutelares6 devem agir no sentido de prestarem um
pronto atendimento a vítima ou vítimas da violência, que quase sempre envolve
crianças e outros familiares indefesos, como idosos e pessoas deficientes.
Nesse sentido, coloca-se como um dos grandes desafios “político” e de “política pública” da lei a redefinição e, por que não dizer, a refundação democrática
do próprio papel institucional das “Polícias” no Brasil. Papel que não foi modificado com o avanço que significou a instalação de delegacias especializadas em
violência contra mulher. Registre-se que as imensas maiorias das cidades brasileiras não contam com “Delegacias da Mulher” ou serviços especializados, em
violência doméstica.
Para compreender o papel que deve ser desenvolvido pela, ou pelas polícias, nos casos relacionados a violências contra a mulher, especialmente aquelas
cometidas no âmbito doméstico ou familiar, conforme previsão da Lei Maria da
Penha, é necessário entender a estrutura da organização policial no Brasil, que
obedece a determinação da forma de Estado mediante determinação Constitucional, que prevê a organização da federação, com reconhecimento de organização (e poderes) distribuídos entre Municípios, Estados e União, relacionando as
atribuições das polícias a esses níveis da esfera organizacional política do país.
Além disso, a organização da polícia no Brasil apresenta-se dividida entre policia civil e militar. (Choukr, 2004: 5)
A polícia civil, também conhecida como a polícia judiciária, eis que responsável pela fase pré-processual onde se efetiva a investigação e a primeira
5
A violência doméstica causa impacto a família, ao indivíduo (física e econômico), a saúde mental,
a saúde reprodutiva das mulheres e as crianças, que passam a ter traumas psicológicos, maior tendência para complicações de saúde, falta de concentração e deficiência no aprendizado escolar, entre
outros graves problemas.
6
A capacitação e o treinamento de todos os agentes públicos – em todas as áreas e poderes – envolvidos no “atendimento” de vítimas de violência doméstica e familiar são imprescindíveis para se
possa dar cumprimento aos princípios e dispositivos da lei. Por ser a principal “porta” de entrada e
“socorro” as vítimas, a qualificação e a integração com outras áreas (saúde, previdência ,assistência
social, justiça, etc) é essencial para um “atendimento” e acompanhamento digno das situações de
violência doméstica.
250
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
instância da formação da culpa7, recebeu, com a Lei Maria da Penha, um enorme
desafio: deixar de atuar especificamente com o olhar voltado ao processo penal,
para a atividade investigativa. A Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 trouxe diversas novidades, dentre elas elementos que devem integrar o atendimento da
autoridade policial às pessoas envolvidas em conflitos e/ou violências domésticas e/ou familiares.
Para além de fazer o registro e remeter o expediente ao poder judiciário, depois de proceder aos trâmites legais de investigação, quando o devido processo
assim o requeria, agora a autoridade policial também recebeu atribuições típicas de
serviço de rede de atendimento de pessoas em situação de violência. A proteção, o
encaminhamento e a informação que devem ser prestados à vítima, especialmente,
são exemplos desse novo modelo que exige um redesenhar-se da própria instituição no sentido de estabelecer relações de acolhimento, proteção e articulação de
rede, para além dos saberes decorrentes da legislação penal e processual penal.
O aparato da polícia militar, “[...] ainda considerado como uma força auxiliar das Forças Armadas e com uma hierarquização simétrica a do Exército”,
(Choukr, 2004:5,), responsável pela atividade policial ostensiva, também é chamado ao desafio da prestação do atendimento aos casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher, com olhar e capacidades muito mais refinadas, requerendo-se também desses profissionais a devida qualificação capaz de garantir uma abordagem respeitosa, eficaz e competente na situação de violência. Tal
qualificação demanda tanto no sentido de compreender a dinâmica que envolve
a complexidade das relações íntimas de afeto truncadas pelas violências, bem
como as violências de gênero de forma mais ampla, como no aspecto do conhecimento acerca dos direitos (especialmente da mulher vítima), da legislação, dos
trâmites pré e processuais, bem como da rede de atendimento para a qual a mulher pode ou deve ser encaminhada, preferencialmente acompanhada.
Das providências a serem tomadas pela autoridade policial
Conforme prevê o texto da Lei 11.340/2006, no Capítulo III, em seus artigos 10 e 11, um rol de providências devem ser tomadas pela autoridade policial quando do atendimento prestado aos casos amparados pela referida legislação, entretanto, o texto legislativo permite que a autoridade policial tome
7
A idéia de formação da culpa – no sentido de estabelecer culpados, responsáveis pelo ato/fato criminoso – decorre do fato de que as provas, ou indícios de prova que são produzidos na fase pré-processual, pela autoridade policial, sem o crivo do contraditório e da ampla defesa, servem para
formar a convicção da/do delegado/a no sentido de indiciar ou não a pessoa investigada, sendo este
um primeiro elemento de formação da culpa desse indivíduo, ainda que isso sirva (ou deva servir)
apenas para subsidiar o oferecimento ou não da denúncia por parte do Ministério Público. Sobre o
tema, importante ler: ALMEIDA (1973: 207-208) e LOPES Jr (2006: 175-176).
251
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
providências que entenda cabíveis, ainda que não estejam ali expressas, desde
que cabíveis e legais.
Vejamos:
Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida.
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao
Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico
Legal;
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou
local seguro, quando houver risco de vida;
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus
pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.
Inicialmente o texto já apresenta a circunstância em que deve a autoridade
policial atuar: a hipótese de iminência ou prática da violência doméstica ou familiar
contra a mulher. Ou seja, ao tomar conhecimento a polícia tem a obrigação de agir,
tomando as providências cabíveis, diante da prática ou da iminência da prática.
Não se pode concordar com o que ocorre freqüentemente de norte a sul deste
país, conforme relatos trazidos pelas vítimas – as que sobrevivem – que diante
da iminência, ainda que após violência reiterada, a polícia argumente que não
pode interferir.
Necessário se faz atentar para o fato de que Lei não se refere a uma ou
outra polícia, não interferindo nas competências já designadas para a atuação
das diferentes polícias existentes no Brasil afora. Com isso é possível extrair da
norma o entendimento de que quando o texto aponta para o termo “autoridade
policial”, pode servir tanto para a polícia civil, quanto para a polícia militar, já
que a informação acerca da hipótese de ocorrência da violência pode chegar ao
conhecimento de ambas, ou ora de uma, ora de outra e nenhuma delas pode se
eximir da responsabilidade de tomar as providências legais cabíveis, sendo que
essas sim poderão estar atreladas às funções específicas de cada uma. Ou seja, a
polícia militar na atividade ostensiva, de prevenção e a polícia civil, na atuação
após a ocorrência, voltada para a investigação e para os procedimentos subsidiários à ação penal e agora às medidas protetivas.
De outro lado, as novidades trazidas pela Lei 11.340/2006, que podem
ser compreendidas também como providências resultantes em acolhimento,
252
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
proteção e articulação de rede, parecem se situar na seara das competências comuns das duas polícias.
Refere expressamente o artigo 10 que: [...] a autoridade policial que tomar
conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis (grifo nosso). Assim, resta evidente que independente de qual seja a autoridade policial, ao tomar conhecimento da hipótese da violência doméstica e
familiar contras a mulher, quer seja já ocorrendo na prática ou na iminência de
acontecer, deve tomar as providências. Tais providências poderão variar conforme
cada caso concreto, entretanto não podem ultrapassar os limites da legalidade.
Ou seja, os direitos e garantias fundamentais devem ser preservados e, estando a
vítima em flagrante situação de violência, poderá a autoridade policial proceder
a entrada (concedida) no local onde ocorre a violência, ou até mesmo o arrombamento do mesmo, a prisão em flagrante do agressor, a condução da vítima à delegacia de polícia ou aos estabelecimentos de atendimento à saúde, dentre outros.
Ainda o art. 10 refere em seu Parágrafo único, que: Aplica-se o disposto no
caput deste artigo ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida. Isto é, assim que a autoridade policial for informada do descumprimento
de metida protetiva, deve tomar providências para que a medida judicialmente
concedida seja respeitada.
No art. 11 estão elencadas providências que devem ser tomadas pelas autoridades policiais sem prejuízo de outras que sejam necessárias para cessar ou
evitar a violência, ou para garantir o cumprimento das medidas de proteção já
concedidas, conforme abordagem acima exposta. A seguir, veremos detalhadamente cada um dos incisos desse artigo.
Já no primeiro inciso, o artigo 11 apresenta o desafio às polícias do trabalho
integrado, pois a proteção pode estar permeando o trabalho a ser desenvolvido
tanto pela polícia civil, quanto pela polícia militar. Já a imediata comunicação ao
Ministério Público e ao Poder Judiciário dialoga com a competência de polícia
judiciária que ostenta a instituição policial civil.
A garantia de proteção prevista legalmente à mulher oportuniza interpretações diversas, já que o legislador deixou sob a responsabilidade dos operadores
o entendimento sobre em que consiste de fato essa proteção. Ocorre, no entanto,
que essa interpretação deve estar de acordo com as reais necessidades da mulher vítima de violência, especialmente no momento da violência ocorrida ou na
iminência de seu acontecimento. Assim, o inciso I do artigo 11, no que refere à
proteção, fica diretamente relacionado aos demais incisos, sendo que essa proteção poderá se efetivar inclusive acompanhando, conduzindo a locais necessários
para fazer cessar a violência e garantir direitos, como aos locais de prestação de
atendimento médico e/ou à delegacia de polícia e informando sobre seus direitos e como acessá-los.
Atender a mulher vítima de violência implica oferecer uma proteção integral que não demanda somente estrutura material das polícias, mas também de
253
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
recursos humanos qualificados. Sobre o assunto, refere Colomer (2004; 102) ao
tratar da importância da função policial em relação à vitima do crime:
[...] A Polícia Judiciária deve estar preparada para ajudá-la imediatamente,
incluindo proporcionar-lhe atendimento médico o mais rápido possível. Um
aspecto decisivo do ponto de vista jurídico é sem dúvida obrigar a Polícia Judiciária a instruir a vítima de seus direitos, de forma que, na prática, seja verdadeiramente efetiva a proteção. Pensamos em comunidades que, por diferentes
razões, merecem uma tutela processual penal especial – como menores abandonados ou mulheres maltratadas ou objetos de abusos sexuais – e compreenderemos imediatamente a importância desta função.
O inciso II do art. 11 da Lei 11.340/2006, que trata das providências que a autoridade policial deve adotar refere que é obrigação da polícia: “II – encaminhar
a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal” (grifo
nosso). Por certo que encaminhar é sem dúvida fundamental, especialmente visando proteger e preservar a vida e a integridade física da mulher e até mesmo em
razão de garantir a produção de provas para subsidiar posterior juízo a ser proferido em ação penal cabível. Desse modo, cada situação de atendimento concreto
poderá ensejar um procedimento específico no sentido de que a mulher pode ser
encaminhada pela autoridade policial ao atendimento médico tanto antes quanto
depois de realizados os procedimentos na delegacia, devendo o policial ter a sensibilidade de perceber a necessidade conforme a gravidade da situação.
Ocorre que, na prática, somente encaminhar nem sempre é suficiente. Esse
encaminhamento deve ser formal, para que o atendimento realizado por profissional da saúde seja feito de maneira que garanta a privacidade e o respeito à vítima, além da minuciosa atenção que exige a coleta de tais provas, contemplando
a complexidade da dor e dos elementos subjetivos das violências sofridas, sem
que a mulher precise se expor ou expor novamente toda a situação vivenciada.
De outro lado, muitas vezes o acesso ao serviço de atendimento à saúde e/ou
de perícia médico-legal precisa estar atrelado à providência da proteção e, nesses
casos, não há como pensar em proteção sem mencionar que a autoridade policial
deve providenciar o transporte e fazer o devido acompanhamento da vítima.
Os demais incisos, III, IV e V tratam de estabelecer que é dever da autoridade policias:
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou
local seguro, quando houver risco de vida.
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus
pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.
254
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
Novamente vêm à tona questões de responsabilidade integrada, o que mais
uma vez desafia as autoridades policias, não só no sentido de manter uma boa
relação entre as corporações policiais, mas também com a rede de serviços. A
polícia deve ostentar condições estruturais para oferecer o transporte e o acompanhamento adequados nos termos da lei, além de saber onde é esse local seguro para o qual a ofendida e seus dependentes devem ser transportados. Desse
modo, como normalmente não existem locais considerados seguros, destinados
ao acolhimento de vítimas e familiares em risco, tampouco abrigos, dentro das
estruturas policiais, a mulher e seus dependentes devem ser transportados para
o referido local, entretanto, para isso, o local veze existir e estar a disposição de
quem dela necessitar, sendo que os contatos e encaminhamentos relacionados
ao acolhimento dessa mulher devem ser feitos pela polícia e responsáveis pelo
local, normalmente agentes de secretarias públicas voltadas para o atendimento
das demandas decorrentes das situações de violência e vulnerabilidade social.
Ademais, é responsabilidade da autoridade policial informar a ofendida
sobre seus direitos e sobre os serviços de atendimento. Novamente vem à tona
a necessidade do conhecimento (e da existência) da rede de serviços de atendimento que possam ser oferecidos à mulher, além da questão relativa à qualificação técnico-profissional que requer além do conhecimento dos direitos e das
leis, a qualificação metodológica que viabiliza e abordagem adequada e o entendimento da informação por parte da ofendida, que normalmente quando se encontra diante da autoridade policial se encontra fragilizada por toda a situação
de violência vivida, merecendo ainda maior atenção por parte dos profissionais
que prestam o atendimento.
Até a edição da lei n° 10.455, de 13 de maio de 2002 que alterou o parágrafo
único do art. 69, da Lei nº 9.099/95, para permitir que, em caso de violência, o
Juiz, cautelarmente, afastasse o agressor do lar, não havia no ordenamento jurídico brasileiro nenhum menção expressa a violência doméstica e, menos ainda,
tratamento adequado a complexidade da sua manifestação e, sobretudo, à dimensão ou amplitude dos impactos causados a vítima (de forma física, psicológica, econômica e sexual), a família e as crianças, em particular.
Naquele momento, o uso da expressão “violência doméstica” não alterou a
percepção e o “processamento” dos casos de violência praticado contra a mulheres, que continuaram a serem tratados, quando muito, apenas como uma agressão com impacto físico. Quando muito graves, como homicídio ou seqüestro, recorria-se ao Código Penal. Na imensa maioria dos casos, contudo, reforçado pela
alteração do artigo 69, referida a violência doméstica era tratada como crime de
menor potencial ofensivo. A violação da integridade física e psicológica da mulher e familiares nas relações afetivas era classificada, como lesão corporal leve,
ameaça e injúria.
A gravidade do problema, a ineficácia dos JECRIMs e a pressão das mulheres e vítimas, fez com que, o “legislador” buscasse dimensionar o “crime” de
violência doméstica.
255
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
Centrado apenas no “dano” físico, a Lei nº 10886 de 17 de junho de 2004
típificou ou tentou tipificar uma nova forma de crime de lesão corporal8 como resultado de violência doméstica , cominando pena de seis meses a dois anos de detenção à conduta de quem ofende a integridade corporal ou a saúde de ascendente,
descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido,
ou, ainda, prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.
A norma incriminadora agregou, então, ao tipo fundamental de lesão corporal uma das formas ou elementares configuradora da violência doméstica . E fez
seguir a esse tipo fundamental causas especiais de aumento da pena quando, da
ofensa em situação típica de violência doméstica, resultar lesões corporais graves ou gravíssimas, ou quando dela decorrer a morte da vítima.
A nova cominação acentuou o reconhecimento da maior reprovabilidade
social da infração e representou certa reação ao clima de impunidade e leniência
até então vigente.
Contudo, não surtiu o efeito desejado. Os crimes de lesão corporal leve,
ameaça, e injúria, entre outros, mesmo cometidos em situação de violência doméstica, mantiveram-se no rol das infrações de pequeno potencial ofensivo, de
competência do Juizado Especial Criminal, espaço de consenso propício ao exercício do natural domínio que o agressor, nesses casos, detém sobre suas vítimas,
o mais das vezes suas dependentes econômicas e afetivas.
Nos JECRIMs o registro das infrações eram feitas em termo circunstanciado
e não em boletim de ocorrência, como determina a nova lei, que retirou do rol de
crimes de menor potencial ofensivo, aqueles praticados com violência doméstica. Agora, é necessária a abertura e a conclusão da investigação, com o posterior encaminhamento ao Juiz9 e ao Ministério Público. Essa investigação tanto
pode ser iniciada de ofício, nos crimes de ação pública que envolva violência doméstica, como mediante representação da vítima ou seu representante legal, nos
demais casos. Conforme o art. 37 da Lei Maria da Penha, “a defesa dos interesses
e direitos transindividuaiss previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente,
pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída
há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil”. Em sendo assim, tanto o MP,
8
9
256
“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena – detenção, de três meses a um ano.(...)
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com
quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de
coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste
artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004) (...)”.
Há quem entenda que o inquérito não deve ser encaminhado ao Juiz, mas diretamente ao representante do MP.
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
como ONG’s e Associações Civis podem requerer, entro outras medidas de proteção às mulheres, a abertura de inquérito policial.
Conforme entendimento adotado pela Quinta Turma do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), a mulher que sofre violência doméstica e comparece à delegacia
para denunciar o agressor já está manifestando o desejo de que ele seja punido,
razão por que nào há necessidade de uma representação formal para a abertura
de processo com base na Lei Maria da Penha. Com efeito, o simples registro da
ocorrência já caracteriza o desejo de persecução criminal do agressor. A questão
ainda não foi pacificada. Mas não há dúvida de que outra interpretação fere o
espírito da lei e frustra o principio da equidade de tratamento entre gênero, presente em todo texto constitucional.
Até que, eventualmente, receba comunicado do Juiz de que a vítima retratou-se da Representação, deve à autoridade policial dar sequência normal as
investigações e a conclusão do inquérito policial. Ao mesmo tempo, deve estar
atento para tomar medidas urgentes, mesmo nos raros casos de queixas de crimes de ação privada, praticados com violência doméstica. Deve, quando necessário, comparecer ao local do fato e, se for caso, efetuar a prisão em flagrante
do agressor. Nada impede, também, que seja requerida a prisão temporária ou
mesmo a prisão preventiva (art. 20, da LMP), independente de descumprimento
de medida de proteção.
A autoridade deve colher e usar todos os meios de provas, requerendo por
exemplo, quebra de sigilo fiscal e telefônico, ou ainda, quando for o caso, interceptação telefônica. Como de praxe, deve determinar a realização de exame de
corpo delito e outros exames periciais que se fizerem necessários.
Essas provas devem ser colhidas de forma a preservar o bem estar e evitar
novos danos para vítima, sobretudo, nos casos de crimes sexuais ou violentos.
Tendo sido requerido pela ofendida ou seu representante legal medidas
protetivas de urgência, cabe à autoridade policial remeter tal pedido ao Juiz, em
autos apartados. Tomado a termo, como dispõe o § 1º, do art. 12, os autos deve
conter: qualificação da ofendida e do agressor; a descrição sucinta do fato e das
medidas requeridas. Deve ser anexada cópia do boletim de ocorrência, do depoimento da vítima, quando disponíveis.
Art. 12 (...).
I – (...);
§ 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e
deverá conter:
I – qualificação da ofendida e do agressor;
II – nome e idade dos dependentes;
III – descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.
§ 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1o o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da
ofendida.
257
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos
fornecidos por hospitais e postos de saúde.
Nada impede, diante das circunstâncias e do estado da vítima, que pode,
em choque, estar incapacitada para manifestar-se, que o Delegado, relatando
os riscos a sua integridade solicite ou sugira ao Juiz – que pode determinar de
ofício – a concessão de Medidas Protetivas de Urgência10, assim como outras
medidas restritivas de direito e da liberdade, previstas na legislação processual
penal, já mencionadas.
As medidas protetivas de urgência, que estão previstas nos artigos 18 a 24,
da LMP, permite que o Juiz, entre outra medidas, determine:
I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao
órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o
limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio
de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade
física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a
equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
VII – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
VIII – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos
relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IX – determinar a separação de corpos.
X restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
XI – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra,
venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
XII – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
XIII – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e
danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
10
258
“(...) Quando a pessoa é agredida, internaliza o medo segundo um processo educativo repressor, inibe todo tipo de inciativa, mesmo a denunciar a autor da agressão e buscar alternativas de mudança
para a sua vida, aprisionada que está em seu medo. A ruptura com o autor da agressão leva tempo.
E um intenso trabalho de resgate dos valores pessoais agredidos. A conquista de independência
econômica e psicológica é um dos principais passos para a autonomia e libertação dessas pessoas do
jugo da violência a que foram submetidas”.[Painel de Indicadores do SUS, 2008]
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
As medidas protetivas de urgências podem ser aplicadas isoladas ou cumulativamente, podendo ser, a qualquer tempo ou fase do inquérito ou processo,
revogadas ou ampliadas.
A autoridade policial deve, de forma clara e didática, informar a vítima
sobre seus direitos e a possibilidade de concessão das medidas acima e outras
necessárias a situação de violência encontrada.
Principio cerne da lei, o respeito máximo a dignidade da mulher, impõe
uma investigação com o mínimo de constrangimento para vítima e familiares. Não se deve, por exemplo, ouvir a mulher e o agressor no mesmo local
e mesmo horário obrigando-os a encontrarem-se na antessala do Delegado de
Polícia. Pelas características que envolvem a violência doméstica, a oitiva da vítima, familiares e testemunhas, deve ser realizada em local apropriado e longe
do agressor. Quando for caso, tais depoimentos devem ser acompanhados por
profissionais especializados, como pedagogos, terapeutas infantis e psicólogos,
entre outros.
A condução do inquérito segue, basicamente, as mesmas regras “gerais” do
CPP (art. 6º e 7º), com as alterações da Lei Maria da Penha, que dá prevalência
ao atendimento e a proteção da vítima de agressão, como visto no artigo 11, que
estabelece como primeiras providências da autoridade a garantia integridade e
do bem estar da vítima e familiares. Nesse sentido, também, o artigo 12 da lei,
estabelece que, sem prejuízo dos procedimentos previstos no CPP11, deve a autoridade policial, de imediato: ouvir a ofendida, lavrar boletim de ocorrência e
tomar a representação a termo, se apresentada.
Como visto, antes da conclusão do inquérito pode e deve a autoridade policial encaminhar requerimento ao Juiz com pedido de concessão de Medidas
Protetivas de Urgência para a vítima e outros envolvidos. Dispensando-se, nesse
caso, a oitiva do agressor ou testemunhas e, mesmo, o exame de corpo de delito.
Tais provas irão instruir o inquérito policial. Outra medida indispensável é o
atendimento médico e psicológico da vítima, que deve ser encaminhada, antes
de qualquer depoimento, para o atendimento mencionado, quando for o caso.
Registre-se que os exames, laudos e prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde são aceitos, no processo judicial, como prova material da
agressão, nos casos que envolvem violência doméstica (art. 12, § 3º).
Concluído, em 10 (dez) dias se o Réu estiver preso e em 30 (trinta) dias se o
agressor estiver solto, o inquérito é encerrado formalmente com um Relatório da
chamada autoridade judiciária do local ou circunscrição territorial onde ocorreu
o crime ou da residência da vítima de agressão, que dever conter, entre outras
informações: a) exame de corpo de delito e outros exames apresentados pela
11 No CPP na uma ordem para as diligências elencadas, podendo, o Delegado, por exemplo, ouvir primeiro o acusado.
259
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
vítima; b) identificação do agressor; c) depoimento do agressor; d) depoimento
de testemunhas e outras provas possíveis e cabíveis nas circunstâncias, como
escutas telefônicas, vídeos, reprodução dos fatos, etc...
O Relatório também deve trazer o indiciamento do agressor, ou seja, confirmar a suspeita investigada de que o fato pode ter sido praticado pelo acusado.
As investigações podem concluir pela inexistência da agressão, ou mesmo, pela
inocência do investigado, não havendo, nesses casos, indiciamento.
Quando o for o caso, o encaminhamento do inquérito, ao Juiz e ao Ministério Público, poderá conter novos pedidos de Medidas Protetivas de urgência
e outras diligências, posto que durante as investigações outros fatos e novas
agressões físicas ou patrimoniais podem ocorrer.
A maioria das ocorrências com violência domésticas envolve crimes de
ação penal pública, incondicionada ou condicionada. Duas posições têm prevalecido nos tribunais superiores. A considerada conservadora, que condiciona o
prosseguimento da ação penal a oitiva da vítima pelo Juiz, em audiência, tem
prevalecido, em detrimento de julgados que aceitam a manifestação frente a autoridade policial, como desejo de “representar” da vítima.
Nos casos – no quais estejam configurado a violência doméstica – em que
estiverem envolvidos crianças ou adolescentes, como vítima ou autor da agressão, apuração do “ato infracional” ou crime contra o menor de 18 (dezoito) anos
deve ser apurado na forma do artigo 103 e seguintes da Lei nº 8.069, de 13, de
julho, de 2011 que dispõe de instrumentos de contenção e proteção muito semelhantes aos previstos na Lei da Maria da Penha. Os artigos 101, 108, 173 e 174,
do ECA, em caso de prática de ato infracional, permite, por exemplo, no caso de
criança, o encaminhamento para acolhimento institucional, e para o adolescente
infrator, é prevista a possibilidade de internação, mesmo antes da sentença. A
apuração, em qualquer situação, deve respeitar as garantias individuais e processuais previstas no ECA, na Constituição Federal e em Tratados Internacionais celebrados pelo Brasil, referente aos direitos da Criança e do Adolescente.
A necessidade de prevenção impõe registro eficaz dos meios e circunstâncias em
que se produziu a violência, pessoas envolvidas, medidas tomadas, etc. Todos
os registros e medidas tomadas pela autoridade, devem ser, de forma confidencial, comunicadas ao Ministério Público, ao Ministério da Saúde, ao Ministério
da Justiça, a Secretaria de Mulheres, Estaduais e Nacional. A memória dos fatos
e de todas as circunstâncias que envolvem a situação de violência doméstica
e familiar são fundamentais para a compreensão e dimensão do problema e a
consequente produção de políticas preventivas e inclusivas de gênero. Alerte-se, que no geral, a atuação das policias judiciárias e a eficácia dos inquéritos
policiais na prevenção e elucidação de crimes deixam muito a desejar, sendo,
em alguns casos, inexistentes. Trata-se, portanto de um problema que atinge
a apuração de quase todos os tipos de crimes, agravando-se, contudo, quando
260
Do atendimento da autoridade policial – artigos 10 a 12
se trata da apuração dos chamados crimes de ódio ou intolerância, praticados
contra homossexuais e outras “minorias”, como índios e religiosos. É preciso,
portanto, está atento ao mundo real das delegacias brasileiras, abarrotadas de
presos provisórios e servidores mal remunerados e treinados. Nesse sentido,
valem as observações de Foscarini (2010: 65-66):
Quanto à produção do inquérito policial, uma das dificuldades apontadas por
vários policiais é a desconfiança das pessoas, que deixam de depor por medo
de represálias na comunidade onde moram. Os próprios policiais e delegados
reconhecem a incapacidade da polícia para oferecer a devida proteção às testemunhas em caso de necessidade: “Não há o que fazer. É tirar a pessoa de circulação até que termine o inquérito e depois dizer ‘até logo, muito obrigado.’
A polícia não funciona como nos filmes. Não há como garantir a segurança de
quem esta sendo ameaçado.” Além disso, o volume de ocorrências e inquéritos é muito superior a capacidade operacional da polícia. Então, os que têm
indício de autoria (maior probabilidade de solução), ou que têm muita pressão
política/midiática, são os atendidos.
Para fazer o que preleciona a legislação que ora abordamos, a autoridade
policial necessita no mínimo de: estrutura material/física e de pessoal, sendo os
últimos profissionais qualificados e preparados para o atendimento de violência
doméstica e familiar contra a mulher. Ocorre que, infelizmente, o retrato que
se desenha no Brasil não está de acordo com o que se espera e precisa para dar
conta das demandas. “Em todos os países latino-americanos a atividade policial é uma coisa pública” (Malarino, 2004: 120). E, sendo pública requer planejamento, orçamento e políticas públicas voltadas para esse serviço. Entretanto,
o que vem se experimentando ao longo doa anos no Brasil é o aumento das demandas de violência ao lado da insuficiência de instrumentos efetivos de atendimento das seqüelas dessas violências.
Outro elemento merecedor de atenção ao se tratar da relação polícia e violência contra a mulher é a existência de setores e delegacias especializadas, as
DEAMS. “Em geral, nos países latino-americanos existe também corporações
policiais especializadas” (Malarino, 2004: 121), o que não é o caso, pois se trata
aqui, neste recorte específico, de delegacias com competência especializada e não
uma polícia especializada. A organização das DEAMS foi e continua sendo um
grande avanço, sendo de essencial valor a existência dessas delegacias no trato e
atendimento das mulheres. Ocorre que, alguns questionamentos são inevitáveis
diante da realidade concreta encontrada em muitos lugares, onde a especialização não alcança efetivamente a qualificação dos profissionais que atuam em
locais onde tal requisito deveria ser tomado como fundamental. Nesse sentido,
chama a atenção elementos verificados em pesquisa empírica realizada em delegacias especializadas em Porto Alegre em 2009:
261
Adilson Barbosa e Leia Tatiana Foscarini
O que se encontrou nas DPs foram pessoas em plena capacidade física e
intelectual, na plenitude da idade adulta, apenas concursadas para desempenhar a atividade policial. Esses agentes estão distribuídos, no caso dos ambientes pesquisados, por delegacias ora especializadas, ora distritais, entretanto sem
qualquer capacitação técnica especializada. Ou seja, para o enfrentamento da
criminalidade foram criadas delegacias especializadas, mas não foram capacitados tecnicamente os profissionais para uma ação especializada. O que acaba por
ocorrer é que as mudanças e transferências dos agentes da polícia independem
da atividade a ser desenvolvida, acontecem por interesses pessoais ou políticos.
(Foscarini, 2010: 122)
Essa é uma situação, que, ao lado da insuficiência – ou inexistência – de recursos físicos/estruturais e de quantidade de pessoal, compromete a qualidade
da prestação dos serviços, importando na privação de direitos das mulheres que
vitimadas pela violência doméstica, não raras vezes passam a ser também vítimas da violência institucional. De outro lado, há o desafio de construirmos juntas e juntos ações concretas, políticas públicas e programas capazes de alcançar
todos os espaços e esferas de enfrentamento das violências, fazendo com que a
prestação de serviço por parte dos profissionais da segurança pública seja pautada pelos princípios de um modelo de segurança pública com cidadania, competente, eficaz, coordenado e desenvolvido em conjunto com a comunidade e
demais serviços voltados para a construção de direitos.
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Federal, e dá outras providências., disponível em http://www.camara.gov.br/
sileg/Prop_Detalhe.asp?id=272058.
263
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
Comentários: Fausto Rodrigues de Lima
Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes
da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos
Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao
adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça
Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas
decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária.
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei,
o Juizado:
I – do seu domicílio ou de sua residência;
II – do lugar do fato em que se baseou a demanda;
III – do domicílio do agressor.
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata
esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena
que implique o pagamento isolado de multa.
Este título é voltado especialmente para os órgãos estatais responsáveis
pela persecução ao crime, mormente o Ministério Público e o Judiciário. Prevê
as inovadoras medidas protetivas de urgência e, não por acaso, contém uma das
disposições mais polêmicas do novo ordenamento: a condição para a renúncia
das vítimas (art. 16).
Ocorre que a omissão estatal e a própria aceitação da violência doméstica sempre foram um empecilho para o enfrentamento oficial dos crimes praticados nos
lares. Não é exagero dizer que a Lei Maria da Penha foi criada justamente para
265
Fausto Rodrigues de Lima
combater a jurisprudência que permitia ao marido bater impunemente na mulher
em nome da “harmonia familiar”, bem como a Lei 9099/95 que, oficializando aquela
jurisprudência, optou pela não intervenção estatal nestas causas, propondo às vitimas que se reconciliassem com os ofensores em nome da tal “harmonia familiar”.
A primeira parte do dispositivo é redundante, já que tanto o Código de Processo Penal (CPP) quanto o Código de Processo Civil (CPC) são aplicáveis em
todo o território nacional a todas as pessoas, como prevêm respectivamente seus
artigos 1º e 1.211, ressalvando-se somente as disposições contrárias de lei federal
posterior, como é o caso.
Porém, a segunda parte é inovadora porque dirigida a uma vítima específica: à mulher adulta, ou seja, entre 18 e 59 anos de idade. Isso porque às idosas,
bem como às crianças e adolescentes do sexo feminino, já são aplicados supletivamente os estatutos respectivos. Assim, a mulher adulta vítima de violência
doméstica pode se beneficiar de todas as disposições do Estatuto do Idoso (EI) e
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no que for aplicável, por exemplo: das regras de sigilo processual do ECA (art. 143), combinadas com as do
CPP (792, § 1º) e CPC (arts. 155 e 444); do direito de preferência disposto no EI
(art. 71) na tramitação dos processos, tanto cíveis quanto criminais, já que o art.
33, parágrafo único, da Lei Maria da Penha (LMP) só estabelece prioridade para
as varas criminais (CUNHA at al, 2007: 65-67).
Poder-se-ia argumentar, como já ocorreu, que a mulher adulta não pode ser
comparada aos idosos e aos menores, pois estes mereceriam proteção especial
em função de sua vulnerabilidade física.
Esclareça-se, porém, que a Lei Maria da Penha não foi criada para compensar eventual inferioridade física da mulher adulta, mesmo porque esse “determinismo biológico” é questionável sob diversos aspectos e circunstâncias. Não
se desconhece que há mulheres mais fortes que homens, dependendo da genética de cada um e/ou das atividades físicas praticadas. O corpo que se convencionou denominar masculino ou feminino é menos um processo biológico/genético
do que uma construção cultural. Segundo Silvana Vilodre Goellner (2008:255):
“Dada a materialidade do corpo biológico são os argumentos de cunho biologista aqueles que, em grande parte, justificam a inserção, adesão e permanência de homens e mulheres em diferentes práticas corporais. Para as mulheres, em grande medida, é incentivado viver o mundo fitness desde que não
deixe de lado a beleza e a graciosidade, atributos colados uma suposta ‘essência feminina’. Afinal, se o destino de toda mulher é a maternidade, nada de
sobrecarregar o corpo, potencializar demasiadamente os músculos, excitar os
nervos, enfim, envolver-se em atividades que colocam esta representações em
perigo (...)”
E é justamente essa cultura – que, dentre outras discriminações de gênero,
nomeia os corpos e os normatiza –, a razão de ser da Lei Maria da Penha. Ela
266
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
veio para enfrentar a naturalização de uma pseudo inferioridade, inclusive intelectual, do feminino perante o masculino, que delimitou o lugar da mulher
na sociedade (vida privada/afazeres domésticos)1, forjou a hierarquia familiar
(subordinação da esposa e dos filhos ao marido) e o método encontrado para
manter essa ordem social: a violência doméstica. Esta só será vencida quando a
tradição sexista incrustada em nossa sociedade ruir perante uma atuação proativa e eficaz do Estado em todas as esferas institucionais, inclusive na aplicação
da lei penal quando necessária, usando os mecanismos preventivos, protetivos e
punitivos estabelecidos no texto da referida Lei.
Esclareça-se, por importante, que a Lei Maria da Penha é aplicável a toda
pessoa do sexo feminino, independentemente da idade. O legislador jamais intencionou proteger apenas a mulher adulta. Confira-se seu art. 2º:
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à toda pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e
mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Por isso, a jurisprudência majoritária tem determinado que a competência
para julgar as causas de violência doméstica envolvendo crianças e adolescentes do sexo feminino, bem como idosas, é do Juizado de Violência Doméstica.
Confira-se:
“A lei Maria da Penha não fez distinção da idade da mulher. Não exclui as
crianças do sexo feminino do âmbito de sua incidência. Onde a lei não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo. (TJDF, processo 20100020079089, Relatora;
SANDRA DE SANTIS, julgado em 23/08/2010)”2.
Por outro lado, a Lei Maria da Penha se aplica integralmente aos transexuais que, nascidos homens, se reconhecem e agem como mulheres. Em nome da
dignidade da pessoa humana, não é necessário que esse indivíduo tenha sido reconhecido pela Justiça como mulher, com a consequente alteração do nome e do
1
A conquista recente do mercado de trabalho pelas mulheres não mudou esse padrão, pois 86,3%
delas realizam tarefas no lar contra apenas 45,3% dos homens; as mulheres dedicam uma média de
23,9 horas aos afazeres domésticos e os homens 9,7 horas (IPEA, 2010). Essa sobrecarga de trabalho
influi na inserção da mulher no mercado de trabalho: “Enquanto que para os homens a presença
de filhos não afeta a sua participação no mercado de trabalho, para as mães o impacto dos filhos é
significativo. Por exemplo, para o homem chefe de família, composta por um cônjuge e filhos com
idade inferior a 14 anos e sem parentes, a taxa de participação registrada em 2001 foi de 97%. Para a
mulher cônjuge, neste mesmo tipo de família, a participação no mercado de trabalho cai para 60%”
(SORJ, 2006:22).
2
No mesmo sentido: TJGO, Processo: 200994949529, Rel. PRADO, j. 07/04/2010; TJRJ, processo
0012106-41.2009.8.19.0206, Rel. CAIRO ITALO FRANÇA DAVID, j. 01/07/2010
267
Fausto Rodrigues de Lima
sexo em sua identidade. Basta que haja indícios dessa transexualidade, comprovada por depoimentos de familiares ou mesmo dos(as) ofensores(as), para que
se aplique a proteção deferida às mulheres em situação de violência doméstica.
Questão interessante pode surgir em caso contrário: e se o transexual tiver
nascido mulher, mas se vê como homem? Cremos que não pode ser aplicada a
Lei nesta hipótese, afinal a luta dos transexuais é ver reconhecido seu gênero
contra os preconceitos e “medos” sociais. Nesse ponto, cada um deve ter o direito de experimentar “a dor e a delícia de ser o que é”, como filosofa Caetano.
Durante a tramitação do projeto de lei que culminou na Lei Maria da Penha,
aventou-se a possibilidade de estender suas disposições aos menores e idosos do
sexo masculino. Baseando-se na hipótese de que tanto o ECA quanto o EI seriam
aplicáveis à mulher adulta, o Ministério Público do Distrito Federal sugeriu à relatora do anteprojeto no Senado, Serys Slhessarenko, o acréscimo de dispositivo
com a seguinte redação: “Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, à
violência doméstica contra crianças, adolescentes e idosos”.
Os motivos da proposta foram assim resumidos:
“O PLC 37/2006 traz importantes mecanismos para combater a violência
doméstica contra as mulheres, como medidas protetivas e prisão preventiva,
porém não prevê a possibilidade de sua aplicação para o combate da violência
doméstica contra crianças ou idosos. Assim, se um menino de 4 anos de idade
for violentado em casa, não terá a mesma proteção de uma menina. O mesmo
se diga quando a violência for dirigida a um idoso, também vulnerável e incapaz de se defender. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do
Idoso não contemplam atuação diferenciada em casos de violência doméstica,
nada impedindo que sua proteção jurídica seja aprimorada, através de uma
simples norma de extensão.
Os estudos sociológicos e antropológicos sobre gênero e sociedade patriarcal,
que forneceram subsídios à Convenção de Belém do Pará e, de consequência, a este Projeto de Lei, demonstram que o modelo sócio-cultural de comportamento imposto a homens, dominantes, e mulheres, dominadas, também
se aplica às crianças e idosos, pessoas vulneráveis que devem obediência ao
patriarca3. Nessa esteira, a maioria dos países americanos promulgou leis contra a violência familiar, sem excluir de sua proteção as pessoas mais vulneráveis, como mulheres, crianças e idosos.
Note-se que as disposições do Estatuto do Idoso e do Estatuto da Criança e do
Adolescente serão também aplicáveis às mulheres em situação de violência,
conforme determina o art. 13 do PLC 37/2006, verdadeira norma de extensão que visa conferir às mulheres os mesmos direitos protetivos garantidos
às crianças e idosos. Nada mais justo que estabelecer também o mesmo tratamento no sentido inverso.
3
268
Marcadas a Ferro, Uma visão multidisciplinar, estudos Brasil-Espanha-França, SPM, Departamento
de Historia da UFPE, Brasília, 2005.
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
Frise-se, por importante, que o acréscimo não significa alteração à proposta
original, nem desvirtua o caráter exclusivo do Projeto à violência contra a
mulher, eis que apenas estabelece a mesma proteção jurídica inovadora também a outras pessoas igualmente vulneráveis. Brasília/DF, 18 de maio de 2006”.
Porém, o assunto não avançou no parlamento porque a matéria tramitava
em regime de urgência e qualquer alteração significaria o retorno do projeto à
Câmara dos Deputados, hipótese impensável àquela altura.
De qualquer modo, não obstante a sugestão acima ainda possa ser trabalhada no Congresso Nacional, o sexo masculino não foi prejudicado pela nova
Lei, conforme veremos a seguir.
Uma das críticas mais ferozes sofridas pela Lei Maria da Penha reside na
alegada ofensa ao princípio constitucional da igualdade. Nesse contexto, alguns
julgaram a norma inconstitucional por conter normas “diabólicas”; outros, para
que não se perca tempo com as mulheres que se amoldam ao “triste vaticínio de
Nelson Rodrigues” (aquelas que “gostam de apanhar”). Publicou-se até um artigo de uma juíza afirmando que não existe violência de gênero no Brasil e que o
Estado não deve intervir quando o marido bate “na mulher dele”.
Essas decisões tentam passar a impressão de que o homem ficou “subjugado” pelas normas penais “a ele dirigidas”, ou “desprotegido” da violência
doméstica. Ambos os argumentos são falhos, mas não apenas por desconsiderar
as questões histórico-culturais que justificam uma norma específica para lidar
com a discriminação de gênero – com atenção especial à sua vítima predileta (a
mulher) –, ou por desprezar a teoria das ações afirmativas (discriminações positivas) que há mais de quatro décadas orienta o Estado a tratar “desigualmente
os desiguais na medida da sua desigualdade”, sob pena de não tornar realidade
a igualdade formal preconizada nas Constituições modernas. As criticas pecam
na base principalmente porque a LMP não criou um sistema para punir homens
e nem os desprotegeu quando acossados pela violência familiar.
De fato, sujeito ativo dos crimes praticados em violência doméstica é qualquer pessoa, homem ou mulher. Dessa forma, a mulher também se submete à
Lei Maria da Penha quando agride outras mulheres em violência doméstica.
Não se pune homens, mas pessoas.
Além disso, a Lei Maria da Penha não excluiu o homem do sistema de proteção dos direitos humanos, nem retirou sua dignidade humana. O homem continua protegido na esfera penal. A lei não criou crimes para tutelar unicamente
a mulher como sujeito passivo, nem estabeleceu penas maiores para os crimes
cometidos contra as mulheres4. Os tipos penais que protegem a mulher são os
4
É fato que o art. 43 da Lei Maria da Penha criou uma agravante genérica quando o crime for cometido “com violência contra a mulher na forma da lei específica” (art. 61, inc. II, alínea f, do Código
269
Fausto Rodrigues de Lima
mesmos que protegem o homem; a pena prevista para os crimes praticados contra elas é igual à prevista quando a vítima for um homem.
Exemplo claro dessa assertiva está no aumento da pena do crime de lesão
corporal (art. 129, § 9º, CP), que não diferenciou o gênero das vítimas. Assim,
a Lei Maria da Penha também protegeu o sexo masculino ao estabelecer que o
crime de lesão cometido contra eles terá pena de até 3 anos de prisão, e não 1
ano como antes. Em consequência, e por obra da Lei Maria da Penha, o crime
de lesão contra o homem não é mais de menor potencial ofensivo, de forma que
também não se aplica aos(às) agressores(as) dos homens a Lei 9.099/95, com suas
audiências de conciliação ou seus benefícios despenalizantes.
Pois bem, se o homem for vítima de violência doméstica, qual será sua
proteção? Se o crime for de menor potencial ofensivo (ameaça ou crime contra a honra, por exemplo), o homem tem o direito a pedir o afastamento do(a)
agressor(a) do lar, nos termos do art. 69, parágrafo único, da Lei 9099/95. A vítima-homem tem direito a uma audiência, onde poderá pedir reparação mediante compromissos a serem firmados pelo agressor(a); este poderá prestar medidas alternativas (transação penal) ou cumprir condições processuais por dois
a quatro anos (suspensão condicional do processo). Se nenhuma destas medidas
for eficaz, poderá o(a) agressor(a) ser condenado, tudo conforme a Lei 9099/95, a
qual, repise-se, nunca se alegou ser ineficaz na proteção do homem.
Se o crime sofrido pelo homem for de médio ou de maior potencial ofensivo, o procedimento é o mesmo previsto para a mulher, com pontuais diferenças, que serão abordadas no final deste tópico.
E quanto às medidas cautelares em favor do homem? Além do afastamento
do lar previsto no art. 69, parágrafo único, da Lei 9099/95, que pode ser pedido
ao JECrim e também ao Juízo criminal, já que este atua, em tese, em crimes mais
graves (quem pode o mais pode o menos), a vítima tem o direito de pedir ao
Juízo de Família todas as cautelares possíveis (alimentos, guarda, visita, etc.).
E se a vítima-homem estiver sendo perseguida? Ora, a proteção da intimidade/privacidade (art. 5º, X, CF) é um direito constitucional e um dos atributos
da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). O homem pode pedir ao juiz
uma medida cautelar incidental (Título III do Código de Processo Civil) em ação
de obrigação de não fazer, para determinar à pessoa inconveniente que se afaste
e fique proibida de se aproximar, mediante a cominação de punição pelo descumprimento. Aliás, esse pedido é um direito de todo cidadão em qualquer circunstância, não apenas em situação de violência doméstica. Se uma pessoa está
Penal). Ora, o Código Penal estabelece no mesmo artigo e inciso as seguintes agravantes genéricas:
“prevalecendo-se (o agente) de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade” (alínea f)
ou o crime for praticado “contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge” (alínea e). Assim, a
nova norma acrescentou circunstância que já era prevista tanto para homens quanto para mulheres.
Redundante, o acréscimo feito não desigualou os gêneros.
270
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
se aproximando de outra sem autorização e isso causa incômodo, o Judiciário
deve obrigar o perturbador a ficar longe, sob pena de responsabilização penal
(crime de desobediência ou contravenção de perturbação da tranquilidade, por
exemplo) e civil (pagamento de multa).
Dessa forma, a LMP não “perseguiu” e nem “desprotegeu” o sexo masculino, o qual não só continua com seus direitos plenamente garantidos pelo ordenamento jurídico, como foi até beneficiado, quando vítima, pelo aumento da
pena do crime de lesão corporal, como vimos acima.
Pode-se aplicar a LMP em defesa do homem, conforme tem alardeado a
mídia ao noticiar algumas decisões com tal fundamento? Vejamos trecho da decisão pioneira sobre o assunto, da lavra do Dr. Juiz Mário Kono de Oliveira, do
Juizado Especial Criminal de Cuiabá:
“Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Poder Judiciário para fazer
cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia.
É sim, ato de sensatez, já que não procura o homem/vítima se utilizar de atos
também violentos como demonstração de força ou de vingança. E compete à
Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de uma solução de conflitos, em busca de uma paz social. No presente caso, há elementos
probantes mais do que suficientes para demonstrar a necessidade de se deferir a medidas protetivas de urgência requeridas, pelo que defiro o pedido e
determino à autora do fato o seguinte: 1. que se abstenha de se aproximar da
vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local
de trabalho; 2. que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja
por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se
o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até
em prisão (Autos 1074/2008, outubro/2008).”
A decisão acima trata da proibição de aproximação e contato. Ora, conforme vimos no tópico anterior, tal medida pode ser aplicada a qualquer pessoa,
esteja ou não em situação de violência doméstica, para fazer valer o comando
constitucional que protege a privacidade e intimidade da pessoa, independentemente da existência da LMP. Se for necessário o afastamento do lar, a previsão
também não está na LMP, mas no art. 69, parágrafo único, da Lei 9099/95.
Assim, não obstante a fundamentação da decisão ora comentada seja extraída na LMP, a fundamentação escorreita deve partir na verdade de outros
ordenamentos jurídicos, uma vez que não é possível aplicar a LMP para a vítima
do sexo masculino, pois as regras processuais de natureza penal não podem ser
interpretadas extensivamente contra os(as) acusados(as), sob pena de nulidade.
Dessa forma, é vedada a prisão em flagrante por crime de menor potencial
ofensivo ou a prisão preventiva em crime punido com detenção praticado contra
a vítima-homem.
271
Fausto Rodrigues de Lima
Como vimos, apesar da LMP não estabelecer diferenças penais entre os
gêneros, ainda que possa fazê-lo em nome da teoria das ações afirmativas, ela
buscou inovar no enfrentamento da violência contra a mulher notadamente nas
regras processuais – procedimentais e cautelares –, situações em que elas eram
sabidamente desfavorecidas. As normas foram criadas apenas para as mulheres
vítimas porque jamais se julgou necessário aprimorá-las para a vítima homem.
Se necessário fosse, já se teria buscado alterar o sistema, inclusive pelos mesmos
grupos de juristas e instituições que alardeiam, só agora, a inconstitucionalidade
da LMP. Se nunca reclamaram da atuação do sistema na proteção do homem,
porque querem agora fulminar do mundo a Lei Maria da Penha sob alegação de
que não protege esse mesmo homem?
Dessa forma, a LMP dificultou a renúncia das vítimas (art. 16), estabeleceu e sistematizou medidas protetivas a serem aplicadas pela vara especializada
(arts. 18 a 24), permitiu a prisão em flagrante em todos os crimes ao revogar a
Lei 9099/95, e admitiu a prisão preventiva até para crimes punidos com detenção
(art. 42). Todas estas medidas são privativas para as vítimas do sexo feminino.
De forma equilibrada, a Lei estabeleceu mecanismos por demais óbvios
para o enfrentamento da violência contra a mulher. Inconstitucional era o sistema anterior, sabidamente discriminatório e prejudicial ao gênero feminino
porque desconsiderava as peculiaridades desse tipo de violência, bem como os
tratados internacionais que regiam a matéria. Somente uma cultura patriarcal
arraigada pode sustentar críticas a uma Lei que, por tão lógica, parece já ter nascido tardiamente.
O artigo determina a concentração de todas as questões cíveis e criminais
decorrentes da prática de violência doméstica contra a mulher em um só Juízo.
Todos os crimes e contravenções penais praticados em violência doméstica
contra a mulher devem ser processados perante o Juízo especializado, com exceção dos crimes dolosos contra a vida, os quais são julgados perante o Tribunal
do Júri por imperativo constitucional (art. XXXVIII, d, da Constituição Federal).
No entanto, a primeira fase do processamento pelo júri (instrução preliminar), em que se coletam provas para eventual julgamento em plenário (judicium
causae) pode ser realizada perante os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher (JVDF), segundo as normas de organização judiciária do ente
federativo. Nesse sentido, decidiu o E. STJ:
Ressalvada a competência do Júri para julgamento do crime doloso contra a
vida, seu processamento, até a fase de pronúncia, poderá ser pelo Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em atenção à Lei 11.340/06.
(STJ, HC 73161/SC, Rel. JANE SILVA, 29/08/2007)
Esclareça-se, porém, que o Tribunal do Júri deverá aplicar todos os comandos da Lei Maria da Penha, inclusive as medidas protetivas de urgência. Não
272
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
importa o Juízo que processa a matéria, mas a natureza da violência e a qualidade de sua vítima.
Muito se discute sobre a abrangência da competência civil atribuída aos
Juizados de Violência Doméstica. Estes podem aplicar apenas as medidas protetivas de natureza cível (afastamento do lar, separação de corpos, restrição/suspensão de visitas, prestação de alimentos) ou são competentes também para a
decisão de mérito sobre as questões familiares, proferindo a palavra final sobre
separação, divisão patrimonial, guarda de filhos, etc? Caso a segunda opção seja
a verdadeira, esses Juizados de Violência devem processar ações cíveis decorrentes de violência doméstica, como a de reparação de danos?
Pois bem, a Lei diz expressamente que os Juizados de Violência doméstica
têm competência cível e criminal para o “julgamento e a execução das causas
decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Portanto, numa leitura literal, a competência cível abrange tudo, não apenas as cautelares de emergência. Essa disposição, porém, não é privativa e nem esvazia a
competência das Varas de Família, pois a finalidade da Lei é facilitar o acesso à
Justiça. Expliquemos.
No caso das medidas protetivas, a competência dos JVDF e da Vara de Família é sempre concorrente. Confira-se o ensinamento do Promotor de Justiça
Irênio da Silva Moreira Filho (2008):
“Com efeito, a LMP tem por escopo facilitar a proteção dos direitos da ofendida, inclusive possibilitando que requeira medidas protetivas logo ao registrar a ocorrência policial, que serão reduzidas a termo na delegacia e enviadas
celeremente ao JVCM. Contudo, pelas mais variadas razões, pode interessar à
mulher que a cautelar seja apreciada pelo juízo de família. De fato, pode ser
que deseje maior resguardo de sua intimidade, o que será mais efetivamente
observado nesse juízo (art. 155, inciso II, do CPC); que seu intuito, ao registrar
a ocorrência policial, fosse apenas de mera documentação para efeito, v.g., de
pedir a separação de corpos, mas que não tenha interesse na persecução criminal; que já esteja em tramitação, na Vara de Família, a ação principal, tendo o
juiz e o promotor desse juízo conhecimento da realidade que cerca a ofendida.
Outrossim, o fato configurador de violência doméstica e familiar, em face da
amplitude conceitual do art. 4º, pode não configurar infração penal, o que tornaria ilógico acionar o JVCM.”
Concordando com IRÊNIO, entendemos que o JVDF e a Vara de Família
dispõem de competência concorrente para as medidas protetivas de urgência,
podendo a vítima eleger um desses dois juízos especializados, a critério seu,
para as providencias acautelatórias.
Com relação às ações principais de natureza familiar, é preciso respeitar as
peculiaridades de cada local, deixando-se as regras de organização judiciária e
273
Fausto Rodrigues de Lima
as resoluções dos Tribunais de Justiça decidir se essa competência será privativa
ou concorrente. A advertência de IRÊNIO, porém, é pertinente: “É recomendável que os Tribunais de Justiça, ao instituírem os JVDF, não relacionem na competência destes as ações de família aqui tratadas. Não foi intenção da Lei nº
11.340/06 conferir estas causas ao JVDF. Caso contrário, teria arrolado de modo
expresso, ainda que exemplificativamente, algumas ações de conhecimento em
sua esfera de competência, mas não o fez, restringindo-se a um rol de cautelares,
necessárias para a proteção emergencial da mulher em quadro de violência doméstica e familiar e apropriadas, por isso mesmo, para a concepção que informa
esse juizado”.
A competência criminal é, em regra, fixada pelo local em que se consuma a
infração (art. Art. 70 CPP). Assim, eventual pedido de medida protetiva deveria
ser requerido perante o JVDF do lugar do crime.
Por outro lado, prevê o art. 108 do Código de Processo Civil o seguinte critério de competência funcional: “A ação acessória será proposta perante o juiz
competente para a ação principal”. No mesmo sentido, estabelece o art. 800 do
mesmo Codex sobre as cautelares: “As medidas cautelares serão requeridas ao
juiz da causa; e, quando preparatórias, ao juiz competente para conhecer da ação
principal”.
A prevalecer os critérios supramencionados, a mulher vítima de violência
teria que ingressar com pedido de medida protetiva perante o juiz que eventualmente já tivesse conhecimento da causa principal (ação de divórcio ou ação
penal) ou perante o juiz competente para processar a ação principal (JVDF ou
Vara de Família). Considerando a vulnerabilidade das vítimas, que não raro têm
que mudar de residência várias vezes em decorrência da agressão ou de sua condição social, essa situação não lhes atenderia.
Por isso, a Lei Maria da Penha, através da norma ora comentada, alterou a
competência funcional do CPC para garantir às vítimas escolher o Juízo em que
entrarão com as medidas protetivas ou com as ações principais cíveis, de forma
que tais pedidos poderão tramitar em varas diferentes para melhor atender aos
seus interesses. Elas podem escolher entre o local do seu domicílio, do lugar do
fato em que se baseou a demanda ou do domicílio do agressor.
O artigo 16 foi pensado para abolir as retratações (que a Lei denomina renúncia) extrajudiciais e tácitas, popularizadas nos Juizados Especiais Criminais
(JECrim)5. Perigosamente, alguns têm usado o dispositivo para obrigar as vítimas a participar de uma audiência para ratificar a representação anteriormente
prestada na polícia. Outros o invocam erroneamente para exigir representação
das vítimas do crime de lesão corporal, conforme dramático julgamento ocorrido no Superior Tribunal de Justiça em 24/2/2010. Analisemos o artigo.
5
274
Sobre a origem do art. 16 e sua discussão legislativa, vide LIMA, 2010.
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
Dois são os requisitos para a realização da audiência referida: que o crime
seja de ação penal condicionada e que a vítima tenha se manifestado, voluntariamente, pela renúncia.
O artigo 16 é expresso: a renúncia somente pode ocorrer nos crimes de ação
penal pública condicionada à representação. Estes são facilmente identificáveis
na legislação penal, mediante a expressão: “(...) somente se procede mediante
representação” (art. 100, § 1°, do Código Penal). Os demais são de ação penal
pública incondicionada (ressalvando-se os casos de ação penal privada).
Não existem outras hipóteses. Se não houver qualquer menção legal determinando o contrário, o crime será de ação penal pública incondicionada, e não
depende de representação.
O crime dependente de representação mais comumente denunciado é o de
ameaça (art. 147). No entanto, poderão ocorrer alguns outros mais raros (menos
registrados), como perigo de contágio venéreo (art. 130, CP), violação da correspondência (art. 151, CP), divulgação de segredo (art. 153, CP), furto de coisa
comum (art. 156, CP) ou qualquer crime contra o patrimônio previsto no Titulo
II do Código Penal, cometido sem violência ou grave ameaça (art. 182, incs. I, II
e III, c/c art. 183, inc. I, CP)6.
Os crimes de ação penal privada podem perfeitamente justificar a audiência
do art. 16, já que seu processamento depende também da vontade das vítimas.
Entram nesta categoria os crimes contra a honra (arts. 138, 139 e 140, CP), de dano
simples (art. 163, caput, CP), de fraude à execução (art. 179, CP), de induzimento
a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236, CP) e de exercício arbitrário
das próprias razões, se cometido sem violência (art. 345, parágrafo único, CP).
Verifica-se, assim, que os crimes passíveis de renúncia mais comuns são caracterizados pela violência psicológica, representada, por exemplo, pelo crime de
ameaça, de injúria (humilhações e desqualificações, por exemplo) ou pela contravenção penal de perturbação da tranquilidade (perseguição, ciúmes ou controle
excessivo). A análise de tais fatos exige grande responsabilidade dos operadores do
direito, mormente porque a sociedade tende a desconsiderá-los, classificando-os
como “chiliques femininos”. É importante ressaltar que eles podem causar maior
sofrimento e dano, como depressão, baixa auto-estima e tentativa de suicídio do
que agressões físicas. Nessas ocasiões, por vergonha ou por exigência do agressor,
as vítimas tendem a se isolar socialmente, evitando até os parentes. As marcas não
são visíveis, mas merecem a atenção respeitosa e interessada do Estado.
Apenas quando as vítimas manifestarem, voluntariamente, interesse em
renunciar é que o juiz irá designar a audiência. Tal manifestação deve ser feita
antes do recebimento da denúncia.
6
Apesar de o art. 225, caput, do Código Penal ter previsto a representação como regra geral para os
crimes contra a dignidade sexual, a jurisprudência tem repudiado tal dispositivo para determinar
que todo crime de estupro é de ação penal publica incondicionada (LIMA, 2010).
275
Fausto Rodrigues de Lima
É defeso à Justiça contatar a vítima através de oficial de justiça, por correspondência ou telefone ou por qualquer outro meio, sem a manifestação dela, espontânea e prévia, no sentido de renunciar. Quem deve procurar as autoridades
para o encerramento do caso é a vítima, e não o Estado.
Portanto, se a vítima, por livre e espontânea vontade, quiser procurar a polícia, o Ministério Público ou a Justiça para encerrar o caso, deverá fazê-lo antes
do recebimento da denúncia. Depois do início do processo, a responsabilidade
estatal será exclusiva para apurar a notícia criminosa e aplicar a lei penal como
de direito.
Alguns Juizados de Violência Doméstica no Distrito Federal estão promovendo audiências em todos os casos, mesmo sem o pedido das vítimas, para
questioná-las sobre seu desejo de renunciar ao processo (?!). Com esse procedimento equivocado, confundem as disposições da Lei nº 9.099/95 com as da Lei nº
11.340/06, que são diametralmente opostas e incompatíveis entre si.
Isso se dá porque a Lei n° 9099/95 (JECrim), conforme visto, previa a realização de uma audiência preliminar na qual, após a tentativa de conciliação
e composição de danos, as vítimas exerceriam seu direito de “ratificar a representação”. Na ausência das vítimas, restavam os procedimentos arquivados por
“renúncia tácita”, instituto popularizado nos JECrim, que, como sabemos, passaram a arquivar liminarmente mais de 90% de todas as causas relacionadas à
violência doméstica e familiar.
Tal disposição, porém, não mais se aplica às causas de violência doméstica
contra a mulher, em razão da expressa derrogação da Lei 9099/95, operada pelo
art. 41 da Lei 11340/06.
Além de tudo, o art. 16 ora comentado tem disposição frontalmente contrária à da Lei derrogada, com a finalidade clara de abolir a renúncia extrajudicial
e a renúncia tácita.
A diferença de tratamento é patente. Enquanto para a Lei n° 9099/95, que
visava evitar o máximo possível o processo criminal, a vítima devia comparecer
em juízo para ratificar a representação, no novo sistema de proteção integral às
vítimas, instituído pela Lei nº 11.340/06, é a renúncia à representação que deve
ser ratificada em Juízo.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal tem reiteradamente repudiado as
audiências sem requerimento das vítimas. Confira-se o precedente pioneiro, da
lavra do Desembargador Mário Machado:
“Com o artigo 16 da lei nº 11.340/2006 colima-se fiscalize o juiz a renúncia, na
verdade a retratação da representação da ofendida para evitar que ela ocorra
por ingerência e força do agressor. Nada mais. Em nenhum momento, cogitou-se de impor realização de audiência para a ofendida ratificar a representação
ou confirmar o seu interesse no prosseguimento. Somente havendo pedido
expresso da ofendida ou evidência da sua intenção de retratar-se, e desde
276
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
que antes do recebimento da denúncia, é que designará o juiz audiência para,
ouvido o Ministério Público, admitir, se o caso, a retratação da representação.
No caso, oferecida pelo Ministério Público a denúncia, a qual não depende
de conclusão do procedimento policial, e não havendo qualquer evidência de
ocasional desejo de a vítima retratar-se da representação que ofertou, impunha-se ao magistrado dispor acerca da denúncia, como de direito, e não determinar o seu arquivamento em pasta própria, em cartório, aguardando-se o
inquérito policial.
Oferecida a denúncia, deve ser logo apreciada na forma da lei. O arquivamento, enquanto se aguarda o inquérito, não encontra amparo legal e pode ser
prejudicial às partes, principalmente à vítima. Sem dúvida louvável o propósito de se dar tempo para eventual reconciliação das partes. Mas não é regra
que ela ocorra e qualquer demora na implementação das providências e do
procedimento insertos na nova lei pode resultar em graves e até mesmo irreparáveis prejuízos. A lei nº 11.340/2006 buscou precisamente mecanismos mais
ágeis de proteção à mulher e a decisão reclamada isso contraria.
Pedido julgado procedente, proclamada desnecessária prévia audiência da
vítima para ratificar a representação ou confirmar o seu interesse no prosseguimento, determinada a imediata apreciação da denúncia oferecida, como de
direito, prosseguindo-se na forma da lei” (Reclamação: 20070020010016, Acórdão: 269081, Julgamento: 29/03/2007, Relator: MARIO MACHADO).
Alguns pregam a impossibilidade de o Estado recusar a renúncia das vítimas, em razão do sistema das ações penais vigente, do perigo de se julgarem
“aceitáveis” algumas violências e pelo fato de o legislador ter recusado essa possibilidade, a qual fora aventada na tramitação do projeto de lei (LIMA, 2010:
89-98). A jurisprudência, porém, tem admitido essa recusa em casos especiais,
possibilitando ao Ministério Público iniciar a ação penal mesmo contra a vontade das vítimas. Esse entendimento inovador foi iniciado pelo Desembargador
do TJDF, Mário Machado, que com sua sensibilidade peculiar, decidiu:
“O claro objetivo é que o Ministério Público e o juiz fiscalizem a retratação da
representação, para evitar que ela ocorra por ingerência e força do agressor
(...) Manifestada a retratação antes do recebimento da denúncia, deve designar
o juiz audiência para, ouvido o Ministério Público, admiti-la, se o caso. Não
se trata aqui de mera homologação da retratação. O objetivo da lei, dever do
Ministério Público e do juiz, é perquirir, efetivamente, por todos os meios, a
motivação do pedido da vítima. Ouvido o Ministério Público e convencido
o juiz de que a retratação é espontânea, tendo por fim a efetiva reconciliação
do casal, a real preservação dos laços familiares, e havendo condições a tanto
favoráveis, deve admitir o pedido, pondo fim ao processo. Caso contrário, não.
Na dúvida, é de recusar-se a retratação, pelo relevo que merece a proteção à
vítima da violência doméstica e familiar. Reiteração da violência doméstica e
familiar, maus antecedentes criminais do agressor, seriedade e gravidade das
277
Fausto Rodrigues de Lima
circunstâncias, (...) tudo isso milita contra a aceitação da retratação. Imprescindível, portanto, o exame de cada caso concreto.
No caso, é inaceitável a retratação. O relatório técnico elaborado pela promotoria de justiça da infância e da juventude informa que a situação de violência
perpetrada pelo denunciado contra sua companheira e seus filhos menores
ocorre desde o ano de 2004, culminando com o abrigo destes em instituição
própria para crianças em estado de risco. De especial relevo a manifestação técnica de que “a genitora não consegue proteger seus filhos, estando ela mesma
fragilizada e à mercê da violência do seu companheiro. Somam-se condenações criminais do denunciado, inclusive reincidências em crimes de roubos”.
(Processo: 20060910172536, Acórdão: 277342, Julgamento: 12/07/2007, Relator:
MÁRIO MACHADO).
Este precedente, que tem sido seguido por outros Tribunais, também seduziu o Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
(…) denegou-se a ordem pleiteada no writ originário ao fundamento de que
inaceitável a retratação da representação apresentada em audiência marcada
ex officio pelo Juízo processante, nos moldes do art. 16 da Lei 11.340/06, quando
a vítima, subjugada pelo habitual proceder violento de seu consorte, não se
manifestou com isenção suficiente a imprimir veracidade ao recuo que pronuncia (…) a retratação deve ser feita na forma preconizada no art. 16 da Lei
11.340/06, isto é, perante o Juiz, em audiência especialmente designada para
tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e com a ouvida do Ministério Público, podendo o Magistrado recusá-la quando verificar que o recuo da
ofendida não é espontâneo, mas motivado por coação, como no caso concreto. (STJ, HC 137622/DF, Rel. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgado
em 23/03/2010)
A questão merece, no entanto, uma advertência: somente o Ministério
Público, titular exclusivo da ação penal, pode recusar a renúncia. O juiz não
pode entrar nessa seara, sob pena de ofensa ao principio do contraditório, com
evidente prejuízo à defesa. “Ora, se o juiz pudesse recusar a renúncia, estaria
praticamente propondo uma ação penal contra o acusado. Para tanto, teria que
se imiscuir na prova investigatória, apontando porque o agressor merece ser
processado (periculosidade, intimidação à vítima, gravidade dos fatos, etc). Tal
esforço judicial – típico do sistema inquisitivo medieval –, confunde-se com o
próprio mérito da imputação. Na prática, a atuação judicial significaria a inevitável condenação, uma vez que o espírito do julgador estaria contaminado com
a vontade persecutória, incompatível com a isenção e imparcialidade judicial
garantida ao cidadão” (LIMA, 2010:90-91).
Caso o juiz discorde do promotor, poderá encaminhar o caso ao procurador-geral de justiça, que dará a palavra final, nos termos do art. 28 do CPP (aplicável por analogia).
278
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
A LMP revogou integralmente a Lei 9099/95, fulminando, por consequência, seu art. 88, que exigia representação para os crimes de lesão corporal “leve”.
Para que não sobrassem dúvidas, a LMP aumentou a pena do crime de lesão
qualificado pela violência doméstica (art. 129, §9º, CP). Dessa forma, mesmo que
o art. 88 não tivesse sido revogado – e foi – não pode ser considerada “leve” uma
lesão qualificada pela violência doméstica, pois o critério médico-legal original
do Código Penal só se refere às denominadas lesões graves dos parágrafos anteriores (§1º, §2º e §3º). Assim, em nenhuma hipótese deve ser exigida representação das vítimas do sexo feminino.
Essa decisão da LMP foi tomada após inúmeros debates legislativos, já que
o anteprojeto da lei também revogava a Lei 9099/95, mas ressalvava seu art. 88.
A opção final do legislador foi clara em não ressalvar tal artigo da Lei revogada,
para que a ação penal voltasse a ser incondicionada (obrigatória), ou seja, independente do pedido (representação) das vítimas.
A jurisprudência, no entanto, decidiu desconsiderar esta opção legal e continuar exigindo representação das vítimas. Com isso, impede que outras pessoas
denunciem a violência, de forma que os familiares, vizinhos, amigos ou terceiros que souberem ou presenciarem agressões físicas contra as mulheres devem
testemunhar a violência de braços cruzados, como se fosse um problema delas;
elas que arrumem forças para noticiar o fato às autoridades e pedir a punição de
seu algoz. Se não suportarem esse pesado fardo, que o agressor fique impune!
Analisemos o dramático julgamento que impôs esse entendimento em todo país.
Atendendo pedido do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT), o
ilustre Ministro Napoleão Nunes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a suspensão de todos os processos que discutiam a questão no país. Convocou a reunião de todos os Ministros criminais daquela Corte para julgamento
conjunto da matéria (processo nº 1.097.042-DF), que vincularia o Judiciário do
país, nos termos da Lei dos Recursos Repetitivos (Lei nº 11672/08).
Formou-se um pool de algumas das entidades feministas7 que elaboraram
um anteprojeto de lei para a LMP à Secretaria de Políticas para as Mulheres, as
quais se habilitaram no processo do STJ como amicus curie para defender a LMP,
ou seja, a incondicionalidade do crime de lesão. Esse passo significou uma guinada histórica do movimento pois, apesar de algumas feministas serem favoráveis ao processo obrigatório, muitas o questionavam em nome da “autonomia”
das mulheres. Acredito que prevaleceu o entendimento de que a incondicionalidade do crime de lesão não retira esta autonomia, pois está se tratando de
delito cujo enfrentamento é de interesse público, afinal, a violência doméstica
fora outrora instituída pelo Estado exatamente para manter a autoridade do ma7
THEMIS (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero), CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e
Assessoria), AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras) e CLADEM (Comitê Latino Americano e do
Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres).
279
Fausto Rodrigues de Lima
rido. A liberdade de vontade se manifesta mormente na vida privada, para decidir sobre planejamento familiar, casamento, divórcio, trabalho, etc., conquistas
oriundas de bandeiras históricas feministas.
Quando do julgamento, em 24/2/20108, a Subprocuradora Maria Eliane fez
a sustentação oral pelo Ministério Público e mencionou os casos de lesão “leve”
aceitos pelos Tribunais a pretexto de “respeitar a vontade da mulher”9. Os pro8
Àquela altura, a situação era crítica, pois, com a saída da Ministra Jane Silva, que defendia a LMP
com galhardia, os Ministros favoráveis à exigência de representação eram maioria. Seria possível
tentar reverter o resultado de um julgamento que já se anunciava prejudicial à LMP? Enquanto o
Brasil pulava o carnaval, o Núcleo de Gênero do MPDFT se propôs um desafio: como mostrar à
maioria dos Ministros a angústia das vítimas de violência doméstica e quão graves são as lesões
consideradas “leves”? Enquanto isso, a Unidos da Tijuca assombrava a Sapucaí com sua comissão
de frente misteriosa e mágica, desfilando os “segredos da humanidade”, que lhe rendeu o campeonato carioca das escolas de samba. Dessa maravilha de cenário, surgiu um estalo: que tal desvelar o
segredo, guardado a sete chaves, da forma como a Justiça tutela a violência contra a mulher? Com
esse propósito, realizou-se durante o carnaval uma pesquisa de fôlego dos casos de lesão “leves” arquivados “a pedido” das vítimas no país. No dia do julgamento, o plenário do STJ estava cheio como
nunca se viu. O cenário só não seria a tela de um Brasil em forma de aquarela porque algumas mulheres foram proibidas de entrar, pois usavam traje incompatível com a “dignidade” daquela Corte:
calça. A Subprocuradora Maria Eliane fez a defesa da Lei, citando os casos mencionados acima.
9
Citemos alguns: Arquivados pelo STJ: MANDIBULA QUEBRADA e SUTURA NA CABEÇA: marido derrubou esposa no chão, desferiu chutes por todo seu corpo e cabeça. A vítima desmaiou e
acordou toda ensanguentada. Laudo: mandíbula quebrada e corte suturado na cabeça (HC 137620/
DF, julgado em 8/9/2009); MORDIDAS: marido desferiu várias mordidas na cabeça, nos braços, nas
mãos e nos dedos da esposa (REsp 1051314/DF, julgado em 10/9/2009). Arquivados pelo TJDF:
QUEIMADURAS: marido jogou álcool na esposa e ateou fogo, causando-lhe queimaduras de 1º e 2º
graus (acórdão 364307, julgado em 27/4/2009); PEDAÇO DE TÁBUA: causou lesões contundentes na
cabeça da vítima com golpes de tábua (acórdão 395227, julgado em 12/11/2009); SOCOS E AMEAÇA:
após esmurrar a vítima, marido ameaçou: “se procurar a polícia, eu te mato!” (acórdão 383625, julgado em 13/10/2009); MARCADA A DEDOS: laudo detectou a marca dos quatro dedos do acusado
no rosto da esposa (tapa) e hematoma na boca (acórdão 373039, 27/8/2009); HOSPITALIZADA: após
atendimento hospitalar depois do espancamento, esposa foi conduzida por policiais a Delegacia,
mas não teve forças para representar (344938, julgado em 11/04/2008). Arquivados pelo TJMG:
DENTE QUEBRADO E FACADA: amásio esfaqueou esposa e depois quebrou-lhe dois dentes a socos, deixando-lhe também com o olho roxo (proc. nº 1.0024.08.979380-6/001, julgado em 11/11/2008);
BEBÊ: pai agrediu filha de apenas 2 meses de idade (proc. 1.004.07.759506-4, julgado em 30/10/2008);
CRIANÇA COM DENTE QUEBRADO: padrasto desferiu pancadas na cabeça de menina de 7 anos,
quebrando-lhe um dente. O laudo detectou debilidade permanente da função mastigatória (lesão
grave), mas o Tribunal o afastou, alegando que a lesão era “leve” (proc. 1.0382.06.067286-4/001, julgado em 13/10/2009); FACADA: por ciúmes, companheiro desferiu facada contra a mulher, lesionando-lhe o dedo (proc. 1.0024.07.527048-8/001, julgado em 15/7/2008); QUEIMADA COM ÓLEO
FERVENTE: após discussão, marido mandou esposa fazer comida, a qual obedeceu. Em seguida, o
acusado foi ao fogão e jogou uma panela de óleo fervente contra a esposa, causando-lhe sérias queimaduras. Neste, o juiz arquivou o caso, mas o TJMG considerou que a lesão “leve” é de ação incondicionada (proc. 1.0024.07.569185-7/001, julgado em 14/08/2008); PEDRADA: filho agrediu mãe com
uma pedrada, lesionando-lhe a barriga e o braço (RSE 1.0024.08.974798-4/001, julgado em 2/9/2009).
Arquivado pelo TJSP: PÁ DE PIZZA: marido agrediu mulher com pá de madeira, lesionando-lhe
membros e face. Depois, desferiu tapas no rosto e destruiu peças de roupa e certidão de casamento.
Arquivado durante a instrução e após o recebimento da denúncia, alegando “renúncia tácita” pela
reconciliação anterior do casal (acórdão 02547963, 20/8/2009). Arquivados pelo TJMA: ARMA DE
FOGO: lesionou e ameaçou a vítima com arma de fogo (acórdão 87.250/2009, julgado em 3/12/2009);
ENFORCAMENTO: acusado deu socos e tentou enforcar esposa (proc. 14080039457, julgado em
280
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
testos de alguns Ministros argumentando que as lesões referidas eram graves, e
não “leves” demonstraram que a situação ora desvelada também era uma surpresa para eles próprios. A Subprocuradora prosseguiu:
“O legislador editou a Lei 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, pontuando que a violência doméstica contra a mulher é uma violação de direitos
humanos (art. 6º), e não infração de “menor potencial ofensivo”. Para que não
pairassem dúvidas sobre a necessidade de atuação do Estado, bem como a
natureza da ação penal do crime referido, a nova norma revogou totalmente
a Lei 9099/95. Não houve qualquer ressalva a nenhum dispositivo da lei revogada. Toda ela foi afastada, inclusive seu art. 88.
Desse modo, o crime de LESÃO QUALIFICADO PELA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (art. 129, § 9º, CP) voltou a ser de ação penal pública incondicionada.
Houve a repristinação do Código Penal, que não exige representação para o
crime de lesão corporal.
Frise-se que essa conclusão jurídica é inarredável e consentânea com entendimento já consagrado anteriormente nesta Corte.
De fato, a derrogação da Lei 9099/95, especialmente seu art. 88, não é novidade no direito brasileiro. O legislador já tomou igual providência com relação aos crimes de lesão praticados por militar, determinando a não aplicação
da Lei 9099/95 no âmbito da Justiça Militar, nos termos da Lei 9.839/9910. A
jurisprudência nacional, inclusive deste STJ, reconheceu que o crime de lesão
“leve” praticado por militar voltou a ser de ação penal pública incondicionada. Jamais se questionou a validade da referida derrogação e a jurisprudência desse E. Tribunal é unânime em reconhecê-la11.
A Lei Maria da Penha buscou a mesma solução da lei dos militares. Estranhamente, porém, a aceitação jurisprudencial não tem sido pacífica. Há enorme
resistência em admitir a intervenção obrigatória na violência doméstica praticada contra a mulher. Sustenta-se que a união da família prevalecerá se a
decisão ficar nas mãos das vítimas, possibilitando “reconciliações” e evitando
a “desagregação familiar”.
É louvável a preocupação com as famílias. O que não se compreende, e nem
se pode aceitar numa República que se diz democrática, é que essa pretensa
unidade familiar seja forjada em cima do espancamento impune de mulheres.
Esse entendimento significa a restauração do mais arcaico patriarcalismo, que
perdurou na jurisprudência criminal durante todo o século XX.
Com efeito, para manter a hierarquia familiar instituída pelo Código Civil de
1916, sempre se aceitou que o “cabeça de casal” utilizasse de violência contra
as esposas e os filhos, para curar sua desobediência.
04/11/2009). Arquivado pelo TJPR: PORRETE: marido espancou esposa com porrete, lesionando-lhe
nos pulsos, braços e pernas (proc. 0445657-0, julgado em 8/5/2008)”.
10 Art. 90-A da Lei 9.099/95, acrescentado pela Lei 9839/99
11 STJ, REsp 178488/DF, Rec. Espec. 1998/0044460-2, julgado em 08/08/2000, Rel. Fontes de Alencar.
281
Fausto Rodrigues de Lima
Quando as vítimas buscavam a polícia, os tribunais tratavam de arquivar os
casos, alegando que, por política criminal, a “harmonia familiar” devia ser
preservada. Nesse contexto, harmonia significava a supremacia incontestada
do homem. Considerava-se que a paz familiar era quebrada pela mulher, e não
pela violência de que ela era vítima. Confira-se essa decisão:
‘Condenar o réu seria acender a fogueira da discórdia da desunião, o que
inclusive poderia levar a desunião de um lar. A própria vítima já perdoou seu
marido, seu amor por ele e seus filhos falou mais alto que sua condição de
companheira fiel e amiga. Veio então pedir a sua absolvição e não seria o juiz
como membro do poder judiciário que iria destruir uma família, sustentáculo
da sociedade, que é a base do Estado, com uma condenação sem significado’ 12
São os mesmos argumentos utilizados hoje para negar a incondicionalidade
do crime de lesão, não é mesmo? Pois bem, referido julgado é de 1975 (Belém/
PA) e resume o entendimento de uma época.
Frise-se que o crime de lesão “leve” era de ação pública incondicionada desde
o Código Penal de 1940. Porém, a norma era solenemente ignorada em nome
de uma fictícia “harmonia familiar”. A Lei 9099/95 legalizou aquela situação,
ao exigir representação das vítimas.
Por isso, ao revogar tal norma, a Lei Maria da Penha buscou romper com a
tradição tolerante e omissa. Para tanto, baseou-se no art. 226, § 8º, da Constituição Federal, que reza: ‘O Estado assegurará a assistência à família na pessoa
de CADA UM dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações’.
Vejam que a Carta Maior não visa apenas o bem estar dos maridos ou dos
filhos. Ela exige o respeito a TODOS os membros da família, sem qualquer
discriminação de sexo (art. 3º, IV, CF).
Dessa forma, a antiga família-instituição (fim), que valia por si só e devia ser
preservada a todo custo, deve ser substituída pela família-instrumento (meio),
que garante os direitos humanos de cada um de seus integrantes.
Por outro lado, o argumento de que o juiz pode negar a renúncia das vítimas
no caso concreto, com base no art. 16 da Lei Maria da Penha, é útil apenas para
os crimes de ação condicionada, como o de ameaça, por exemplo. Utilizá-lo
para justificar a condicionalidade do crime de lesão corporal poderá acarretar,
como já está acontecendo, a criação de uma jurisprudência permissiva à violência contra a mulher.
De fato, várias decisões que sustentam a necessidade de “analisar cada caso
concreto”, têm aceito a renúncia das vítimas quando, além de hematomas
diversos e do clássico olho roxo, ocorrem queimaduras, quebra de ossos (nariz,
mandíbula), enforcamentos etc. Como as vítimas conseguem se recuperar até
o 30º dia, sem sequelas, tais fatos caracterizam lesão “leve” para nosso sistema
penal (confira-se a tabela anexa).
12 Decisão judicial em processo de lesão corporal “leve” de 1975, Belém/PA (FERREIRA, Maria Patrícia
Corrêa. Das “pequenas brigas entre casais” aos “dramas familiares”: um estudo sobre a violência doméstica
em processos criminais de Belém nas décadas de 1960 e 1970. Campinas: UNICAMP, 2002).
282
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
A violência desmedida cometida contra as mulheres, cujo ápice é o assassinato,
tem crescido a cada dia. Uma simples leitura dos jornais mostra que os atentados diários geralmente são praticados por seus parceiros ou ex-parceiros.
É preciso acabar com a cumplicidade social e estatal. Uma vez incondicionada
a ação penal, qualquer cidadão, parente, vizinho ou amigo das vítimas, poderá
noticiar as agressões às autoridades. A polícia será obrigada a investigar; o
Ministério Público, a acusar; o Judiciário, a punir. O pesado fardo de sustentar
uma acusação sairá dos ombros das vítimas para os do Estado. Os acusados e
as vítimas ficarão mais tranquilos em saber que a culpa pela punição não é das
mulheres, mas dos agressores. Os casais continuarão a se reconciliar, mas em
outras bases. Um novo ideal de família surgirá.
O Ministério Público espera que uma vida sem violência seja a verdadeira harmonia familiar prometida para os brasileiros – e brasileiras – neste século XXI!”
No entanto, o STJ consagrou a tese que vinha sendo aplicada em quase
todos os Tribunais no sentido de continuar exigindo a representação das vítimas. O relator do acordão, Ministro Jorge Mussi, resumiu a tese vencedora:
“1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da
mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação
da vítima. 2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei
9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas
despenalizadoras. 3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação
da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada.”
Verifica-se que o art. 16 da LMP foi o principal argumento da Corte Cidadã.
O equívoco dessa fundamentação é evidente, pois referido artigo, apesar de tratar dos crimes de ação penal condicionada, não acrescentou crimes neste rol.
Pelo Código Penal, o crime de lesão corporal “leve” sempre foi de ação penal
incondicionada, depois passou a ser condicionada pelo art. 88 da Lei 9099/95,
a qual restou integralmente revogada pela LMP, restaurando (repristinando) a
incondicionalidade anterior. Se o entendimento do STJ fosse válido, todos os
crimes praticados contra a mulher deveriam ser condicionados, inclusive o de
tortura e o de tentativa de homicídio.
Após a decisão do STJ, houve um sem-número de habeas corpus que garantiram a impunidade dos espancamentos de mulheres. Acusados levaram suas
parceiras aos Fóruns para renunciarem aos casos, conseguindo a anulação de
inquéritos e processos. Nessa farra patriarcal, um jurista, nomeado pelo Senado
para redigir um novo Código de Processo Penal, comemorou a decisão do STJ:
“A medida não é machista. Cito o exemplo de uma batida de carro. Quem fez
a denúncia pode mudar de idéia mais tarde e até mesmo fazer amizade com
quem bateu no seu carro” (Gazeta do Povo, 5/3/2010)
283
Fausto Rodrigues de Lima
Ao comparar a agressão física contra a mulher com o amassamento de um
carro, o jurista resume, sem rodeios, uma jurisprudência sexista que, tal qual a
propaganda acima e inúmeros programas de televisão, ainda não enxerga a pessoa do sexo feminino, equiparando-a a bens de consumo. Mais direto que ele,
só o Tribunal de Justiça paulista, que anulou a condenação de um marido para
que a Justiça “não perca tempo” com mulheres que, como profetizava Nelson
Rodrigues, gostam de apanhar:
“o art. 16 é claro – claríssimo – que a audiência é conditio sine qua non para a
ação penal contra o agressor, para que não se perca tempo com pessoas que não
tem amor próprio, ou não sabem bem o que querem, amoldando-se ao célebre
e triste vaticínio de Nelson Rodrigues”. (TJSP, HC 11586743/6-00, julgado em
21/2/2008)
Pelo visto, a jurisprudência do século XX, desta vez sem segredos nem mistérios, pretende perdurar neste milênio. É uma pena!
A origem do artigo 17 está na popularização das penas de cesta básica no
âmbito dos juizados especiais criminais (JECrim), consistente no acordo realizado entre o Ministério Público e os acusados para que estes ficassem livres
de eventual processo. Com efeito, na aplicação da transação penal (art. 76, Lei
9099/95) em que os autores poderiam cumprir penas alternativas para evitar a
ação penal, a praxe forense instituiu a aplicação de cestas básicas para beneficiar
entidades beneficentes. Este modelo desagradou as entidades de defesa dos direitos da mulher, que diziam, com razão, que a cesta básica era a moeda de troca
da dignidade da mulher (LIMA, 2010:75).
Por esta e outras deficiências, a Lei Maria da Penha revogou integralmente
a Lei 9.099/95 para os “crimes praticados com violência doméstica e familiar
contra a mulher” (art. 41) e, para que não pairassem dúvidas, aboliu, através
do artigo ora comentado, qualquer pena de cesta básica. O legislador foi além
ao repudiar também qualquer prestação pecuniária, de forma que está vedado
estipular como pena qualquer “pagamento em dinheiro à vítima, seus dependentes ou entidade pública ou privada com destinação social” (art. 45, § 1º, Código Penal).
Assim, não é possível fixar qualquer pena de cesta básica ou de prestação
pecuniária na condenação por crime ou contravenção, nem mesmo quando houver a substituição por penas restritivas de direitos. Estas só podem se constituir
em perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade ou a entidades
públicas, interdição temporária de direitos e/ou limitação de fim de semana (art.
43 do Código Penal).
E, considerando que a Lei 9099/95 só foi abolida para os crimes praticados contra a mulher, é possível aplicar transação penal às contravenções penais,
desde que não preveja o pagamento de cesta básica ou prestação pecuniária.
284
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
O artigo, em sua última parte, proíbe a “substituição da pena que implique
pagamento isolado de multa”. Assim, admite a substituição da pena privativa de
liberdade, desde que se incluam outras penas restritivas de direitos além da multa.
Tal dispositivo se choca frontalmente com o Código Penal, que veda a substituição da pena de prisão por restritivas de direitos a todos os crimes praticados
com “violência ou grave ameaça à pessoa”, nos termos de seu art. 44, I. Ora,
todo crime praticado em violência doméstica implica “violência ou grave ameaça contra a pessoa”, de forma que essa substituição seria vedada para todos os
casos tratados pela Lei Maria da Penha.
Poder-se-ia argumentar que o termo violência previsto no art. 44, I, do Código Penal seja sinônimo de agressão física e que, por isso, não inclui em seu
conceito o crime de dano ou os crimes contra a honra, por exemplo (CAVALCANTI, 2010:216). Dessa forma, a substituição referida na Lei é prevista apenas
para os casos em que não haja violência física ou grave ameaça.
Porém, analisando o sistema de execução da pena pensado pela nova Lei,
veremos que essa substituição é possível em todos os casos regulados pela Lei
Maria da Penha, de forma que a disposição ora analisada revogou intencionalmente o art. 44, I, do Código Penal para estas causas.
É que, em seu art. 45, a Lei Maria da Penha acrescentou o seguinte dispositivo à Lei de Execuções Penais (Lei 7210/84):
“Art. 152. Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas.
Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz
poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas
de recuperação e reeducação”. (Redação dada pela Lei 11340, de 2006)
O artigo acima trata especificamente de uma das penas restritivas de direito
estabelecidas no diploma penal, qual seja, a limitação de fim de semana, prevista
no art. 48 do Código Penal e regulada nos arts. 151 a 153 da Lei de Execuções Penais. Esta consiste em substituir a pena de prisão pela “obrigação de permanecer,
aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa de albergado ou outro
estabelecimento adequado”. O parágrafo único introduzido pela Lei Maria da
Penha estabelece uma das condições desse cumprimento pelo condenado.
Assim, com o espírito de intervir nas famílias, mas evitar quando possível a
prisão dos condenados em benefício de um programa de intervenção multidisciplinar, a Lei Maria da Penha abriu uma exceção à vedação do art. 44, I, do Código Penal. Não haveria sentido possibilitar a reflexão apenas para os crimes de
dano ou de injúria, por exemplo, impedindo-a para os crimes de ameaça, lesão
corporal e outros importantes, quando a Lei Maria da Penha determina a criação
de equipe para “desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares” (art.
285
Fausto Rodrigues de Lima
30). Nas palavras de Maria Berenice Dias (2007) “A imposição de medida restritiva de direitos, que leve o agressor a conscientizar-se de que é indevido seu agir,
é a melhor maneira de enfrentar a violência doméstica”.
Dessa forma, em todo crime praticado com violência doméstica é possível
substituir a pena de prisão por restritivas de direito, apesar da violência e da
ameaça ínsitas a todo tipo penal regulado pela Lei Maria da Penha.
No entanto, para a concessão do benefício, é necessária a presença dos demais requisitos objetivos e subjetivos previstos nos arts. 44, II e III, do Código
Penal, ou seja, a pena privativa de liberdade não pode ser superior a quatro anos,
o condenado não pode ser “reincidente em crime doloso” e sua “culpabilidade,
antecedentes, conduta social e personalidade”, bem como os motivos e as circunstâncias, devem indicar que essa substituição será suficiente para a prevenção e repressão ao crime. A pena alternativa também não pode ser apenas a de
multa, conforme determina o artigo ora analisado.
Nesse sentido, é recomendável a aplicação da limitação de fim de semana
com a submissão dos condenados a programas multidisciplinares em que poderão ser ministrados cursos e palestras correlacionados ao tema violência doméstica e gênero (art. 48, parágrafo único, Código Penal), nos termos previstos
na Lei Maria da Penha em seus artigos 29 a 32 (intervenção psicossocial).
Entendemos que essa interpretação está em sintonia com os ideais inspiradores da lei de repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher, que,
ao contrário do alarde injusto feito por seus críticos, é muito equilibrada e não
pensou a prisão como uma regra para punir a violência ora tratada.
Referências Bibliográficas
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica: Análise da Lei
“Maria da Penha”, nº 11.340/06. Salvador: Ed. Podium, 2010.
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. Lei
Maria da Penha comentada artigo por artigo. São Paulo: Ed. RT, 2007.
DIAS, Maria Berenice Dias. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Ed. RT,
2007.
GOELLNER, Silvana Vilodre. A cultura fitness e a estética do comedimento: as
mulheres, seus corpos e aparências. In: A Construção dos Corpos: perspectivas
feministas. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2008.
IPEA, Comunicados do. Mulher e trabalho: Avanços e continuidades. Comunicados
do IPEA nº 40. Brasília: IPEA, 2010. Disponível em http://agencia.ipea.gov.br/
images/stories/PDFs/100308_comu40mulheres.pdf
LIMA, Fausto Rodrigues de. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica: da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha.
286
Dos procedimentos – artigos 13 a 17
In: SANTOS, Claudiene e LIMA, Fausto Rodrigues de Lima. Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de
Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.
MOREIRA FILHO, Irênio da Silva. Vara de família e juizado de violência doméstica
e familiar contra a mulher. Análise acerca de eventual competência concorrente e
sua repercussão sobre outras questões processuais atinentes. 2008. Disponível em
http://jus.uol.com.br/revista/texto/11916/vara-de-familia-e-juizado-de-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher
PINTO, Ronaldo Batista; CUNHA, Rogério Sanches. Violência Doméstica. Lei
Maria da Penha comentada artigo por artigo. São Paulo: Ed. RT, 2007.
SORJ, Bila. Gênero, Trabalho e Família. In: SORJ, Bila e YANNOULAS, Silvia
Cristina. Perspectivas e críticas feministas sobre as reformas trabalhista e sindical.
Brasília: CFEMEA, 2006.
287
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
Comentários: Rosane M. Reis Lavigne e Cecilia Perlingeiro
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48
(quarenta e oito) horas:
I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II – determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando
for o caso;
III – comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento
do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser
prontamente comunicado.
§2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão
ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§3º. Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder
novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário
à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão
preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público
ou mediante representação da autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar
a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que
a justifiquem.
Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado
constituído ou do defensor público.
É importante para a análise das disposições gerais e do catálogo de medidas protetivas de urgência atinentes à mulher vítima de violência doméstica e
289
Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
familiar revisitar o contexto político-jurídico no qual tais medidas foram estrategicamente desenhadas. Nota-se, no preâmbulo da referida Lei,1 o intuito em
dispor e alinhar seu conteúdo segundo os mandamentos de natureza constitucional e os decorrentes da força obrigatória dos tratados internacionais, consolidadas pelo trabalho articulado de organizações de mulheres a nível nacional e
supranacional2.
A recuperação dos pilares e do escopo da Lei Maria da Penha, na abertura
da seção referente às medidas protetivas, justifica-se pela importância de se interpretar a Lei em conformidade ao conjunto de princípios e regras determinado
pelo ordenamento jurídico nacional e supranacional relacionado à matéria.
Dentre os tratados internacionais sobressaem os que compõem o sistema
especial de proteção dos direitos humanos3, aqueles voltados a eliminar todas
as formas de discriminação compreendidas neste estudo, como ingrediente da
subalternidade que mantém determinados grupos em órbitas desiguais na sociedade, como os étnico-raciais e as mulheres, dentre outros. Os referidos tratados relacionam-se à proteção de direitos de indivíduos integrantes de segmentos que demandam política de reconhecimento, em grande medida associada à
redistribuição. Como assinala Fraser (2010: 168), “a justiça requer tanto redistribuição quanto reconhecimento. Nenhum deles sozinho é suficiente”.
Nesse sentido, é necessário reconhecer o papel social e a condição de cada
indivíduo, visando superar a subordinação. Isso significaria tratar as reivindicações por reconhecimento como reivindicações por justiça – no sentido amplo
do termo –, fazendo do sujeito falsamente reconhecido um membro integral da
sociedade, capaz de participar, com os outros, efetivamente, como igual.
Da mesma forma, com o intuito de expandir as possibilidades das mulheres
viverem uma vida livre da opressão marcada pela violência, destacam-se, entre
1
A Lei Maria da Penha é apontada como uma das legislações mais avançadas para enfrentamento da
violência contra as mulheres no mundo, ao lado da Lei de Proteção contra a Violência de Gênero da
Espanha, instituída em 2004, de acordo com o relatório global do Fundo das Nações Unidas para o
Desenvolvimento da Mulher – UNIFEM, intitulado “Progresso das Mulheres no Mundo – 2008/2009”.
2
A propósito do significado político das conferências das Nações Unidas sob a perspectiva feminista,
assinala Barsted (1995: 195): “é no espaço das conferências que se organizam os foros paralelos, campo de reunião dos movimentos sociais em âmbito internacional. Aí se dá o congraçamento desses
movimentos, o reforço de internacionalismo feminista, o espaço para denúncias e elaboração de estratégias não governamentais para pressionar tanto as Nações Unidas como cada Estado membro”.
3
No decorrer das duas últimas décadas, ao sistema global de proteção de direitos humanos formado
por instrumentos de alcance geral, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos,
somaram-se outros de alcance regional e específico. Nesta linha, forma-se o sistema interamericano
contemporâneo que, de acordo com Piovesan (2000: 140), não se esgota na Convenção Americana de
Direitos Humanos e os respectivos Protocolos: “a estes há que se agregar as quatro novas Convenções
Interamericanas, dirigidas à proteção em particular dos direitos humanos de determinadas pessoas ou em determinadas situações, que por isso denominamos de setoriais”. Dentre as setoriais
está a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — a
Convenção de Belém do Pará.
290
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
as ferramentas supranacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres:
a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela
ONU em 1993; a Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993 e a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
1994 – Convenção de Belém do Pará4. Assim, baseada na normativa internacional e na Constituição Federal brasileira de 1988 erige-se a Lei Maria da Penha,
com suas medidas protetivas de urgência. Trata-se de mecanismo legal destinado a gerar procedimentos judiciais, políticas e serviços especializados, particularmente no âmbito do sistema de justiça, operando em rede, com perspectiva
interdisciplinar e foco na mulher usuária do sistema.
A referida lei constitui um desafio, sobretudo ao Poder Judiciário, pela posição de centralidade que este ocupa no referido sistema, com vistas a levá-lo a
uma atuação marcada pela eficiência ética5 e pela aplicabilidade dos direitos da
mulher segundo os valores neles subjacentes.
No que diz respeito às medidas protetivas de urgência, há o escopo específico de proteger a mulher em situação de violência doméstica e familiar em caso
de risco iminente à sua integridade pessoal. Tais medidas representam o maior
acerto da Lei Maria da Penha, e sua eficácia e inovação são elogiadas na doutrina
até mesmo por autores que oferecem, via de regra, críticas à mencionada conquista. Neste sentido, a opinião de Batista (2009: xvii):
“Certamente o setor mais criativo e elogiável da lei reside nas medidas protetivas de urgência. Ali estão desenhadas diversas providências que podem,
no mínimo, assegurar níveis suportáveis no encaminhamento de solução para
conflitos domésticos e patrimoniais”.
A ordem jurídica vigente torna evidente o dever do Estado de salvaguardar em sede de cognição sumária a liberdade de ação da mulher e seus filhos
e familiares envolvidos em situação de risco objetivo e iminente. Essa inovação provoca no meio jurídico uma abertura à concepção da violência contra a
4
Esta Convenção, ratificada pelo Brasil em 1995, emerge como primeiro tratado internacional a dispor
sobre a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que tangencia classe social, raça,
religião, idade ou qualquer outra condição e afeta elevado número de mulheres em todo o mundo.
Reconhece que a mulher tem direito à vida livre de violência, seja na esfera pública ou na privada, e
condena todas as formas de violência contra a mulher. A Convenção determina aos Estados partes a
adoção de políticas e programas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Disponível
em http://www.oas.org/juridico/spanish/tratados/a-61.html. Acesso em 07 de março de 2011.
5
Para Cunha (2009), eficiência ética, no âmbito do sistema de justiça, relaciona-se à elaboração de
trabalho orientado ao outro, ao usuário e à usuária dos serviços públicos oferecidos pelo referido
sistema, o outro identificado e reconhecido na sua especificidade, na sua particularidade social e
condição peculiar de sujeito de direitos. Em contraposição, o autor aponta a eficiência burocrática,
que consiste no exercício da função voltado para atender de forma prevalente os interesses da administração da justiça.
291
Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
mulher como violação aos direitos humanos, marco reforçado pela Lei Maria
da Penha, expondo a complexidade e gravidade de delitos considerados de
menor potencial ofensivo em passado recente. Tais medidas encontram-se em
conformidade com o standard registrado no Protocolo de Actuación para Operadores de Justicia frente a la Violência contra las Mujeres en el Marco de las Relaciones
de Pareja.6
Por outro lado, sob o prisma do reconhecimento da eficiência na esfera da
administração da justiça e confiança no Poder Judiciário, o procedimento célere,
e em certa medida desburocratizado, dado à formação e encaminhamento do
expediente da medida protetiva de urgência para salvaguardar os direitos da
mulher também representa conserto em área tradicionalmente resistente à mudança de paradigma nas relações de gênero.
Assinala Campos (2007) que os juristas tradicionais desconhecem igualmente o esforço feito por uma mulher agredida para romper com uma relação
violenta, em virtude dos vínculos existentes e das incertezas do futuro. Prossegue a autora:
Eles ignoram, por exemplo, que as inúmeras denúncias nas delegacias são
tentativas de confiar no sistema legal e fazem parte do processo de ruptura
do denominado ciclo da violência doméstica. A mulher agredida não é uma
mulher irracional, que não sabe o que quer. É uma mulher que está buscando,
por meio de vários mecanismos, mudar a situação de violência. Como consequência, o tratamento jurídico dispensado a estes casos será fundamental para
a mudança da situação e para a confiabilidade futura no sistema (CAMPOS,
2007: 146).
Dados colhidos nos últimos 12 meses – março de 2010 a março de 20117
– relacionados a atos praticados pelos juízes em casos de violência doméstica
e familiar na jurisdição do Estado do Rio de Janeiro ilustram o volume de movimentação de expedientes de medidas protetivas, compreendidos os pedidos
deferidos ou indeferidos.
6
O Protocolo de Actuación para Operadores de Justicia Frente a la Violência Contra las Mujeres en el Marco
de las Relaciones de Pareja foi preparado no âmbito do Centro de Direitos Humanos da Faculdade
de Direito da Universidade do Chile, sob a direção de Claudio Nash, pesquisador interno Ignácio
Mujica Torres e consultora externa Lidia Casas Becerra, em 2010.
7
Este recorte temporal corresponde ao início do processo de sistematização da coleta de dados em
conformidade com o padrão estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça, referente à movimentação dos procedimentos alusivos à Lei Maria da Penha, realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro. Este trabalho encontra-se em fase de consolidação, portanto ainda há dados que
escapam ao registro no novo padrão ou estão agregados indevidamente a outros.
292
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
Tabela 1 – Número de medidas protetivas de urgência deferidas e indeferidas
na jurisdição do Estado do Rio de Janeiro entre os anos 2010-2011.
ANO
2010
2011
TOTAL
MÊS
Mar
Abril
Mai
Jun
Jul
Ago
Set
Out
Nov
Dez
Jan
Fev
Mar
Medidas Protetivas de
Urgência DEFERIDAS
Medidas Protetivas de
Urgência INDEFERIDAS
18
596
957
839
1242
1309
1356
1061
1431
1282
1294
1482
1771
14.638
12
867
1251
892
910
1064
1000
1120
928
1518
1066
904
1165
12.697
Fonte: DGJUR/DEIGE/DICOL – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro 2010/2011.
Nota-se na tabela acima elevado número de pedidos de medidas protetivas
de urgência procedidos no Estado do Rio de Janeiro. Estes dados informam uma
realidade generalizada quando observados os dados compilados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ relativos à matéria a nível nacional8. Significam
também uma necessidade social atendida pelo canal do sistema de justiça, em
relação às históricas pautas feministas endereçadas ao Estado, com vistas à construção de mecanismos e dinâmicas eficientes de proteção e tratamento especial
à mulher nos casos de violência marcada pelo viés de gênero.
8
Dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ mostram que as medidas protetivas de urgência constituem o procedimento mais aplicado pelos Juizados especializados, representando cerca de 60% da
atuação dos mesmos. Desde 2006, ano de início de vigência da lei, até o ano de 2010 foram deferidas
96.098 medidas protetivas contra 11.659 prisões deferidas, ou seja, existe uma relação média de 1 prisão para cada 8 medidas protetivas deferidas. A prática tem confirmado que as medidas protetivas
são uma mostra evidente de que o tratamento prioritário que se pretende dar aos direitos humanos
das mulheres na pauta estatal não está em desalinho com o esforço de contenção do poder punitivo.
A utilização criteriosa e adequada das medidas protetivas pode conferir às mulheres a proteção
necessária e o desencarceramento desejado pelas orientações garantistas. Desta forma, a despenalização e a descriminalização de condutas devem ser o parâmetro norteador da política criminal.
Relatório anual CNJ, 2010, p. 116. Disponível em: http://wwwh.cnj.jus.br/images/relatorios-anuais/
cnj/relatorio_anual_cnj_2010.pdf.
293
Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
Os artigos 18 a 21 da Lei explicitam os procedimentos que devem ser realizados para garantir a proteção contra risco iminente à integridade pessoal
da mulher e familiares. Como não se encontra estabelecido no texto legal o rito
específico relativo às medidas protetivas, há controvérsias quanto à natureza
e a forma de seu processamento. Todavia, vislumbra-se mais adequado o rito
simplificado e de tramitação célere, utilizando-se padrão acessível a todas as
vítimas, de modo que tanto estas como seus representantes legais ou pessoas de
seu entorno familiar possam solicitá-las. Deve-se também usar linguagem clara
e objetiva, assegurando às pessoas comuns compreensão do requerimento e das
demais peças que informam o expediente feito para atender o caráter emergencial da medida requerida.
A publicidade das inovações da Lei Maria da Penha e seus institutos, assim
como a compreensão dos direitos, o conhecimento da existência de serviços e
seu funcionamento e, sobretudo, a possibilidade de influenciar na resposta ao
seu pleito fazem da mulher sujeito mais empoderado. Configuram elementos
chave para o êxito não apenas das medidas protetivas, mas da própria Lei Maria
da Penha.
Da linha central de interpretação dos artigos a seguir comentados sobressai
a importância da atuação conferida ao magistrado da lide. A busca da solução
mais acertada ao caso concreto exige do julgador, ademais do estudo das questões de gênero e dos direitos da mulher, conhecimento de práticas desenvolvidas em outros países destinadas ao enfrentamento dessa singular violência que
vitimiza/atinge o segmento feminino da população mundial.
Sob a perspectiva da ação estatal para enfrentar a violência de gênero, a realidade espanhola chama atenção9. Assim, considerando a utilidade da análise
comparativa, vale examinar informações, orientações e práticas judiciais da Ley
Integral da Espanha, com o objetivo de conhecer um pouco do arcabouço jurídico construído referente à sua aplicação, extrair ensinamentos e refletir como
podem contribuir para o aperfeiçoamento das ações fomentadas com a mesma
finalidade no cenário brasileiro. Com esse intuito, importa examinar os seis princípios básicos que alicerçam as ordens de proteção a vítimas de violência doméstica, similares às medidas protetivas, compreendidas no espectro normativo da
9
294
É rica a realidade da Espanha quanto à defesa e promoção dos direitos da mulher. Nesse sentido,
merece realce a Ley Orgánica 1/2004, de 28 de dezembro de 2004, que tem como objetivo, segundo sua
exposição de motivos, “actuar contra la violencia que, como manifestación de la discriminación, la situación
de desigualdad y las relaciones de poder de los hombres sobre las mujeres, se ejerce sobre éstas por parte de quienes sean o hayan sido sus cónyuges o de quienes estén o hayan estado ligados a ellas por relaciones similares
de afectividad, aun sin convivencia. Tal legislação e as ações desenvolvidas pelo poder público para a
sua efetividade constituem medidas positivas que envolvem a feitura, além de arranjos políticos, de
protocolos, guias e outras normativas destinadas a estabelecer novas concepções sobre a matéria. Ver
MINISTERIO DE JUSTICIA. La Administración de Justicia en la Ley Integral contra la Violencia de Género.
Madrid: Edición Ministerio de Justicia, Secretaría General Tecnica, 2005.
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
mencionada “Ley Integral”, segundo o “Protocolo para la Implantación de la Orden
de Protección de las Víctimas de Violencia Doméstica”10:
a) Principio de protección de la víctima y de la familia. La razón de ser de la Orden de Protección reside en el objetivo fundamental de proteger la integridad de la víctima y de la familia frente al agresor. Dicho con otras palabras, el objetivo prioritario de la Orden de Protección es que la víctima y la familia recuperen la sensación de seguridad frente a posibles
amenazas o represalias posteriores de agresor. Por ese motivo, en los supuestos de violencia
doméstica el acceso a una Orden de Protección se constituye en un derecho de la víctima.
b) Principio de aplicación general. El Juez debe poder utilizar la Orden de Protección
siempre que la considere necesaria para asegurar la protección de la víctima, con independencia de que el supuesto de violencia doméstica sea constitutivo de delito o de falta.
c) Principio de urgencia. La Orden de Protección debe -sin menoscabo de las debidas
garantías procesales, ni del principio de proporcionalidad- obtenerse y ejecutarse con la
mayor celeridad posible. Debe, pues, articularse un procedimiento lo suficientemente
rápido como para conseguir la verificación judicial de las circunstancias de hecho y las
consiguientes medidas de protección de la víctima.
d) Principio de accesibilidad. La eficaz regulación de la Orden de Protección exige la
articulación de un procedimiento lo suficientemente sencillo como para que sea accesible a todas las víctimas de delitos de violencia doméstica. Así pues, la solicitud de la
orden debe adaptarse a criterios de sencillez, de tal modo que la víctima, sus representantes, etc., puedan acceder fácilmente al Juez para solicitarla, sin costes añadidos.
e) Principio de integralidad. La concesión de la Orden de Protección por el Juez debe
provocar, de una sola vez y de manera automática, la obtención de un estatuto integral
de protección para la víctima, el cual active una acción de tutela que concentre medidas
de naturaleza penal, civil y de protección social.
f) Principio de utilidad procesal. La Orden de Protección debe facilitar, además, la
acción de la Policía Judicial y el subsiguiente proceso de instrucción criminal, especialmente en lo referente a la recogida, tratamiento y conservación de pruebas.
A leitura dos mencionados princípios, combinada à das disposições gerais
relacionadas às medidas protetivas em análise revela harmonia e aponta para
a normatividade dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos
das mulheres inicialmente destacada. Tais princípios correspondem, analogicamente, às regras previstas na seção 1 das medidas protetivas.
O encaminhamento do requerimento de medida protetiva, no caso da Lei
Maria da Penha, exige a formação de expediente simplificado, com registro e autuação próprios, em separado, portanto, dos autos do inquérito policial ou da ação
penal, nos termos do art. 18, inciso I.
10 “Protocolo para la Implantación de la Orden de Protección de las Víctimas de Violencia Doméstica”. Comisión
de Seguimiento de la Implantación de la Orden de Protección de las Víctimas de Violencia Doméstica.
Documento preparado pelo Consejo General del Poder Judicial (España). Disponível em: http://
www.poderjudicial.es/eversuite/GetRecords. Acesso em 22 de junho de 2011.
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Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
Este expediente deve conter as peças fundamentais para demonstrar o risco
objetivo e em via de efetivação imediata. Alguns requisitos para a formação do
expediente encontram-se identificados e elencados no corpo da própria Lei. Dispõe o texto legal no §1º do artigo 12 sobre os requisitos que devem ser observados por ocasião do registro de ocorrência: qualificação da ofendida e do agressor, nome e idade dos dependentes, descrição sucinta do fato. Estas informações
reunidas instruem o expediente com pedido de medidas protetivas solicitadas
pela parte, autoridade policial, advogado ou pelo Ministério Público. Importante juntar ao expediente as informações básicas para fornecer ao juiz elementos justificadores da decisão judicial, que deverá ser tomada em 48 horas.
Para imprimir maior conformidade da atuação funcional do sistema de justiça com a norma que se pretende efetivar para garantir os direitos da mulher
há o esforço de identificar critérios facilitadores dessa operação. Nessa linha,
diversos protocolos, manuais e outros instrumentos vêm sendo formulados com
o propósito de fornecer parâmetros ao manejo do direito frente aos fatos que necessitam da intervenção do Estado para salvaguardar a integridade pessoal da
mulher. Esse processo, com frequência, implica tomada de decisão em matéria
complexa e exige do magistrado, além do uso de um método, ponderar sobre
princípios fundamentais em choque.
O “Protocolo de Actuación para Operadores de Justicia Frente a la Violencia contra
las Mujeres en el Marco de las Relaciones de Pareja”(2010: 29-32) apresenta elementos que devem constar no expediente de maneira a demonstrar a potencialidade
da lesão e, assim, justificar a concessão da medida protetiva. São eles: (i) declaração espontânea da vítima; (ii) dados da vítima e do agressor para que se possa
individualizá-los; (iii) descrição dos fatos, que deverá contar com um relato cronológico e exaustivo; (iv) declaração do agressor; (v) declaração de testemunhas
do fato; e, (vi) declaração dos agentes policiais que atenderam a vítima. A posse
de informações sobre a realidade de violência experimentada pela mulher ampliaria a capacidade do juiz de aferir os riscos objetivos e de lesão potencial.
A tarefa de avaliação do risco também é pautada pela observação de certos
critérios. Ainda de acordo com o mencionado Protocolo (2010: 31), pode-se citar
(i) a análise de antecedentes de situações de violência e a existência de outras
medidas protetivas em prol daquela mulher; (ii) a existência de violência física
e sua gravidade; (iii) a existência de violência sexual; (iv) o uso de armas; (v) a
realização de ameaças; (vi) a violência psicológica.
A tomada de decisão orientada pela verificação destes critérios confere
maior objetividade à atuação do juiz e afasta o tratamento dessa matéria do âmbito puramente intersubjetivo, privado, reconhecendo-se a manutenção da integridade pessoal da mulher como bem jurídico a ser protegido pelo Estado. Essa
forma se mostra imprescindível para reforçar a intolerância a condutas lesivas
aos direitos humanos das mulheres.
296
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
Nesse contexto, adquire especial relevo a palavra da mulher vítima de violência doméstica e familiar, não podendo ser mitigado seu valor. É notório que a
violência dessa natureza ocorre, em grande parte, sem testemunhas presenciais.
Ao dar ensejo ao pedido de medidas protetivas, a palavra da vítima, com suas
marcas visíveis e invisíveis11 relata, via de regra, anamnese até então oculta, na
qual finca raiz a violência geradora do pedido de amparo e tutela. Deve sua palavra ser valorada. Depreciar seu depoimento implica abandonar a vitima à própria sorte e contribui para a falta de efetividade dos mecanismos conquistados.
Andrade (2004) assinala como às demandas das mulheres aplica-se, via de regra,
uma intensa “hermenêutica da suspeita”:
“... do constrangimento e da humilhação ao longo do inquérito policial e do
processo penal que vasculha a moralidade da vítima (para ver se é ou não uma
vítima apropriada), sua resistência (para ver se é ou não uma vítima inocente),
reticente a condenar somente pelo exclusivo testemunho da mulher (dúvidas
acerca da sua credibilidade)”.
Não se pretende revestir de sacralidade a palavra da mulher vítima de violência doméstica e familiar e, desta forma, suprimir os direitos do suposto autor
do fato (PRADO, 2009: 97). O intuito é ressignificar a palavra da mulher nesse
contexto, expandindo-a na medida do devido processo legal, livre de representações muitas vezes trazidas aos autos por imaginário marcado por estereótipos
e discriminações.
Ao observar a sequência das providências que competem ao juiz após o recebimento do expediente da medida protetiva, Carvalho (2009: 92) anota como
estranho o caminho escolhido pelo legislador. Chama-lhe atenção o juiz decidir
primeiro e somente depois a ofendida ser encaminhada à assistência jurídica.
Ainda observa que o Ministério Público toma conhecimento à posteriori da decisão judicial, momento em que lhe caberia examinar o caso e adotar as providências pertinentes. Tal encadeamento, segundo o citado autor, fugiria à regra
comum processual, na qual a manifestação do Juízo tem por pressuposto a oitiva
11 O enfrentamento da violência contra a mulher exige, por suas características complexas, a sensibilização e formação continuada de agentes do poder público, de forma intersetorial, para proporcionar
melhor compreensão dos sintomas e demais manifestações dela decorrentes. Nota-se, ainda, insuficiente instrução nesse sentido. Para atuar com eficácia exige-se, em especial no sistema de justiça, pessoal com formação especializada. Estariam, por exemplo, os peritos criminais sem a devida
formação em gênero aptos a fornecer laudos caracterizadores de delitos inscritos no âmbito da Lei
Maria da Penha? Como estabelecer graus de violência psicológica de gênero, segundo a medicina
forense? Ressalte-se, a titulo de ilustração, a experiência espanhola e o intento de articular política de
saúde para o enfrentamento da violência integral de gênero, como se constata no “Protocolo Común
para la Actuación Sanitaria ante La Violencia de Género Comisión Contra la Violencia de Género” (Consejo
Interterritorial del Sistema Nacional de Salud). Ministerio de Sanidad y Consumo. España. Disponível em:
http://www.msps.es/organizacion/sns/planCalidadSNS/pdf/equidad/protocoloComun.pdf . Acesso
em 22 de junho de 2011.
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Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
anterior das partes. Alega que a inversão assinalada arranharia ao princípio da
imparcialidade. Entretanto, diante da urgência da medida pleiteada, ancorada
em Lei fruto de ação afirmativa dos direitos da mulher, a excepcionalidade à
regra processual comum se justifica pelos princípios da devida diligência do Estado e da ampla proteção da mulher.
Quanto ao encaminhamento da vítima à Assistência Judiciária, este deve
estar previsto na rotina de trabalho dos órgãos especializados na temática dos
direitos da mulher e violência doméstica ou familiar, bem como das instituições
que compõem o sistema de justiça. Tal encaminhamento não se apoia tão somente na necessidade de assistência jurídica da mulher, mas essencialmente no
seu direito ao efetivo acesso à justiça. Portanto a vítima, ao acorrer à justiça, tem
o direito de obter resposta certa para suas inquietações jurídicas, prestada por
serviço interdisciplinar, conforme dispõe a Lei Maria da Penha. Dessa forma, a
existência de obstáculos de outra natureza, diversos do requisito de hipossuficiência econômica, impeditivos do amparo à vítima, motivam e sustentam a
defesa de direitos por parte da Defensoria Pública.
Conforme o último item do artigo 18, a comunicação da decisão judicial relacionada ao pedido de medida protetiva ao órgão do Ministério Público, além
de atender a pressupostos processuais, assenta-se na própria incumbência que
este órgão tem de realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, pelas características do
fenômeno da violência contra a mulher, por sua manifestação individual e pelo
impacto coletivo que fragiliza a democracia, caberia ao Ministério Público exercer postura mais ativa como defensor da legalidade e fiscalizar a observância
integral da Lei Maria da Penha, a começar pela eficácia das medidas protetivas.
Em momento posterior, caberia também ao Ministério Público provocar a produção de provas e, dessa maneira, desonerar as vitimas do encargo/obrigação de
aportar material probatório nesses casos de violência de gênero. Significa, portanto, atribuir ao Ministério Público a defesa e o manejo inovador de instrumentos de proteção à mulher. Por exemplo, nos casos em que ao Ministério Público
cabe examinar o pleito referente às protetivas, esse agir institucional, ademais
de verificar se as medidas adotadas guardam correlação com os princípios da
proporcionalidade e razoabilidade, dar-se-ia mais em conexão e com a mulher e
suas demandas históricas. Permitiria, ao órgão ministerial ainda, se entendesse
cabível, o estabelecimento de outras medidas com a finalidade de garantir melhor proteção à mulher.
Em virtude do caráter urgente da proteção, a lei confere à vítima12 legitimidade e capacidade postulatória para requerer tal medida, dispensando a atuação
12 O art. 27 da Lei Maria da Penha determina que a mulher em situação de violência doméstica e familiar deve estar acompanhada de defensor técnico em todos os atos do processo, seja cível ou criminal,
à exceção dos casos previstos no art. 19 do mesmo diploma legal.
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Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
de advogado. Ressalte-se, também, a legitimação extraordinária do Ministério Público para postular a concessão de medidas protetivas (CARVALHO, 2009: 105).
A concessão de medidas protetivas de ofício tem despertado controvérsia.
De um lado, há os que entendem que proteger a mulher contra a sua vontade
afrontaria sua autonomia (LARRAURI, 2008: 174); por outro, há aqueles que
compreendem a possibilidade de o juiz estabelecer a medida de oficio em casos
excepcionais, sopesando os princípios conflitantes.
Não obstante a omissão legislativa nesse sentido, o poder geral de cautela
aliado à proteção da integridade pessoal da mulher autorizaria o magistrado a
proceder dessa forma. A partir desse pressuposto, justifica-se a concessão de salvaguarda de maior alcance para a requerente. A atuação pró-ativa do juiz nessas
hipóteses pode auxiliar a vítima a encontrar uma solução por ela não identificada, seja por desconhecimento técnico específico ou qualquer outro motivo que
lhe impeça vislumbrar aquela possibilidade jurídica de maior resguardo para
ela ou pessoa a ela vinculada nos termos legais. Assim, o juiz, ao receber o expediente da medida protetiva de urgência, pode decidir em conformidade ou não
ao pedido encaminhado, bem como estabelecer de ofício providência diversa do
pleito, embora, como mencionado, haja literatura em sentido contrário.
Portanto, compreende-se o protagonismo que a lei concede expressamente ao
juiz nesses casos, possibilitando à vítima obter do Estado resposta mais adequada
e precisa a sua situação fática. Justificável, então, repita-se, a concessão de medida
de ofício, por natureza intrínseca ao princípio da devida diligência do Estado.
Por fim, tendo em vista seu caráter provisório, a medida protetiva pode
ser revista ou cassada a qualquer tempo, conforme previsto no §3º do artigo
19, assim como substituída por outras de natureza diversa quando houver
alterações no contexto fático. No entanto, deve-se destacar que, embora a
medida protetiva não ostente prazo determinado, o mencionado dispositivo
legal apenas garante a manutenção da medida enquanto se verificar a necessidade ante o perigo de lesão, já que as medidas visam dar maior e eficaz
proteção à vítima.
A prisão preventiva é forma de contenção de liberdade de natureza excepcional13, justificando-se, somente, com fundamento nas previsões do artigo 312
do Código de Processo Penal e nas circunstâncias do artigo 313 do mesmo diploma legal. O acréscimo do inciso IV ao artigo 313 não tem o condão de afastar
a excepcionalidade típica da prisão preventiva. Neste sentido:
13 A excepcionalidade da prisão preventiva encontra importante demonstração em jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal: a fim de evitar constrangimento ilegal decorrente de ilegalidade na manutenção da prisão preventiva, nestas hipóteses excepciona-se a aplicação da Súmula 691,
STF para que seja reconhecida a competência daquele Tribunal em reconhecer a existência de um injusto no caso concreto, e determinar o relaxamento da prisão. STF. HC 99914, Relator(a): Min. ELLEN
GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/03/2010,
DJe-076 DIVULG 29-04-2010 PUBLIC 30-04-2010 EMENT VOL-02399-05 PP-01060.
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Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será
admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:
IV. Se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de
urgência.
O acréscimo legal transcrito, aportado ao Código de Processo Penal pela
Lei Maria da Penha, não representa, em nenhuma medida, inovação punitiva
ante a previsão anteriormente existente. Pode-se inclusive argumentar que a inclusão expressa da prerrogativa de prisão preventiva em crimes cometidos em
contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher é inócua, uma vez
que o caput do referido artigo – que traz a autorização da prisão preventiva em
sede de crimes dolosos – de plano abarcaria as condutas verificadas em contexto
de violência contra as mulheres, desde que verificadas as circunstâncias genéricas dos artigos do Código de Processo Penal.
Contudo, se faz necessário assinalar que a inclusão de inciso específico,
para além da função jurídica estrita, possui caráter político e pedagógico, marcando a mudança de paradigma com relação à gravidade percebida nas condutas violentas contra as mulheres em ambiente doméstico e familiar.
Assim, embora se possa argumentar que a previsão jurídica para a prisão
preventiva em casos de violência doméstica contra a mulher já existia, a inclusão
do referido inciso sublinha a gravidade que se atribui a condutas desta natureza
e destaca a intolerância estatal frente às mesmas a elas.
Além de ressaltar o caráter político e pedagógico da inclusão do inciso IV
no artigo 313, destaca-se também a relevância desta prerrogativa na efetivação
da proteção à integridade pessoal da mulher e na análise das variações da incidência do poder punitivo face às condutas entendidas como pertencentes às
esferas privada ou pública.
A prisão preventiva do agressor se revela, em muitos casos, a única medida
ao alcance do Estado para garantir a integridade pessoal da mulher. Sem prejuízo da necessidade de desenvolver e aprimorar a execução das medidas protetivas, que devem manter-se como o primeiro instrumento ao qual o Estado deve
recorrer visando a proteção da mulher, parece precipitado abrir mão da prerrogativa desta contenção mais gravosa, na medida em que há casos em que tal
medida materializa a proteção à integridade pessoal da mulher, que não poderia
ser assegurada através de intervenção mais branda.
Assim, por exemplo, quando se verifica a não-colaboração do indivíduo com
a medida restritiva de direito imposta através de medida protetiva, sucessivamente descumprida, forma-se situação complexa na qual se configuram, por um
lado, a necessidade de devida diligência estatal na proteção dos direitos da mulher (integridade pessoal e vida) e, por outro, a observância à mínima intervenção penal (liberdade). Nesta ponderação, não se pode desprezar a severidade da
300
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
interferência estatal na privação de liberdade cautelar de alguém, mas tampouco
se pode mitigar a gravidade do ato e seu potencial lesivo face aos direitos humanos de outra pessoa (mulher). Neste caso, justifica-se a privação de liberdade cautelar do sujeito pelo fato de representar ameaça ou perigo de dano a bem jurídico
tutelado, quando observada a excepcionalidade autorizadora dessa medida.
Apesar das críticas direcionadas à Lei Maria da Penha no sentido de tratar-se de lei eminentemente punitiva, destaca-se que a prisão preventiva nos casos
desta lei possui natureza ainda mais excepcional do que em outras hipóteses legais. Afinal, as medidas protetivas emergem como uma novidade extremamente
positiva da lei e representam alternativa real ao encarceramento.
Com base nos argumentos expostos, observa-se que a prerrogativa de prisão preventiva não representa, per se, impulso de expansão criminalizante e ,
tampouco visa punir antecipadamente o homem14; vem, na realidade, atender
necessidade real de ampla proteção aos direitos humanos das mulheres, principal foco da Lei Maria da Penha.
Face ao exposto, resta claro que a proteção estatal de tais direitos ocupa
posição central dentre suas obrigações assumidas constitucional e internacionalmente, evidenciando também o caráter público desta atuação de tutela de
direitos frente a conduta lesivas, que absolutamente não podem ficar restritas à
ordem privada.
Uma vez destacada a necessidade de uma nova compreensão quanto à obrigação estatal em tutelar a integridade pessoal da mulher, atribuindo-lhe especial
relevância na esfera pública, também é importante examinar os instrumentos
estatais disponíveis para tanto. A interferência penal é, sabidamente, menos recorrente na esfera privada. Uma série de fatores parece colaborar neste sentido;
entretanto, ressalta-se a predominância da lógica que mantém a violência exercida por homens contra mulheres no âmbito doméstico como prática típica do
poder patriarcal – portanto de ordem privada – e não como tema de interesse
público de defesa de direitos. Desta forma, a não-utilização do direito penal não
se fundamenta em nenhuma medida em uma justificativa crítica de desejo de redução do alcance do poder punitivo, mas sim na compreensão de que esta forma
de violência específica seria inerente à esfera privada, o que já não mais pode ser
admitido, de acordo com os argumentos de Baratta (1999: 54):
A não-intervenção do sistema penal na esfera privada e a sua abstinência no
confronto da violência masculina não podem mais ser considerados, então,
como uma tutela da esfera privada por parte do aparelho estatal, mas sim como
uma falta estrutural de tutela das mulheres, vale dizer, a legitimação “pública”
em si do incondicionado poder patriarcal.
14 STF. HC 94114, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 01/06/2010, DJe120, DIVULGAÇÃO EM 30-06-2010, PUBLICAÇÃO EM 01-07-2010.
301
Rosane M. Reis Lavigne e Cecília Perlingeiro
Não se deseja, com isso, valorizar o poder punitivo e a interferência penal
mais gravosa, mas sim destacar a existência de uma seletividade penal com recorte de gênero. A construção teórica do autor lança luz sobre a importância de se
orientar a temática da violência doméstica contra a mulher da esfera privada para
a pública. Esta tarefa de redimensionamento do problema possibilitará ao Estado
lançar mão de instrumentos para que esta proteção se dê da forma mais eficaz possível. Neste ponto, não se propõe o uso amplo da prerrogativa de aprisionamento,
mas sim justificá-la quando parecer ser a melhor forma de garantia do direito.
Este é, sem dúvida, tema de cuidado, na medida em que a expansão do
poder punitivo é fato notório. O contexto contemporâneo criminalizante, marcado pela supervalorização do direito penal (SÁNCHEZ, 2002: 64), não pode
deixar de ser considerado na presente análise, já que a realidade material onde
se dá a aplicação da norma não pode ser descolada dos argumentos teóricos.
Entretanto, ocorre que a forma desproporcional e expansiva de uso do poder
punitivo não retira a importância da retenção cautelar do agressor em situações
em que esta medida demonstra ser a mais eficaz na proteção da mulher.
Não se pode confundir, portanto, a defesa da prerrogativa estatal em possuir instrumentos mais ou menos gravosos para a ampla proteção de direitos
humanos com uma suposta intenção punitiva que depositaria no direito penal
as maiores expectativas para se lidar com o problema da violência de gênero.
Assim, a prerrogativa de aprisionamento em determinadas situações não se dá
por nenhum impulso punitivo nem pelo desconhecimento do problema da explosão carcerária (ABRAMOVAY, 2010), mas sim pela necessidade de garantir
ao máximo a utilização de instrumentos para a proteção do bem jurídico tutelado pela Lei Maria da Penha.
Neste contexto, destaca-se a importância de redimensionar o uso da prisão
preventiva, mantendo-a como ultima ratio e como instrumento de caráter excepcional. De fato, a devida aplicação da Lei Maria da Penha somente se verificará
quando a aplicação deste instituto ocorrer tão-somente nos casos estritamente
necessários e de acordo com os critérios legais. O encarceramento do agressor
constitui apenas um meio ao qual se poderá recorrer em casos extremos, visando
os fins principais da lei.
Assim, a ressignificação das hipóteses de utilização do aprisionamento –
limitando-o às situações nas quais se verifique potencial lesivo a direitos humanos – não parece ser contraditória ao esforço de contenção do poder punitivo
típico do marco teórico da criminologia crítica.
Por tudo que foi dito, a prerrogativa de prisão preventiva em situações com
as características das previstas na Lei Maria da Penha não representa uma forma
de “privilegia[r] o sistema penal como método de solução de controvérsias geradas pela violência de gênero em âmbito doméstico e familiar” (PRADO, 2009:
97) nem de tratar de tema complexo como a violência doméstica meramente
com os instrumentos do sistema penal. Trata-se, ao contrário, da necessidade de
302
Das medidas protetivas de urgência – artigos 18 a 21
assinalar a profunda complexidade do tema e a convergência de fatores relevantes diante de risco à integridade pessoal de uma mulher, produzido por alguém
que pertence à sua esfera íntima de relações de afeto. Tal complexidade sugeriria não a redução de esferas de interferência estatais, mas sim a conjugação das
mesmas para formar uma rede multidisciplinar de amparo e proteção à mulher
em situação de violência.
Levar ao conhecimento da vítima a soltura ou prisão do seu agressor compõe o rol de cuidados e da devida diligência do Estado espelhado no texto legal.
Buscou-se, ao implicar a administração penitenciária na rede de proteção à mulher sob o principio do dever de diligência do Estado, reduzir riscos.
Sem dúvida, o conhecimento da situação prisional do agressor permite à
mulher um agir consciente dos perigos que porventura possam se avizinhar. A
inovação legislativa estabelece parâmetro para novo funcionamento da justiça
criminal e da administração penitenciária, também convocada a adotar medida
em atenção ao dever de cuidado para com a mulher vítima de violência doméstica. Caberia, então, à referida administração estabelecer um registro Central
para a Proteção das Vítimas de Violência Doméstica, com o objetivo de cumprir
com este mandamento legal15. Campos e Correa (2007: 406) vão além ao defenderem que a notificação da vítima sobre a soltura do agressor é condição prévia
para a liberação do acusado: “significando que nenhum juiz ou tribunal poderá
dar cumprimento a um alvará de soltura sem comunicar o fato à vítima previamente, sob pena de estar incorrendo em omissão injustificável e ilegalidade
expressa [...].
No parágrafo único do supracitado artigo, referente à comunicação dos
atos processuais, buscou-se positivar entendimento óbvio para muitos, mas que
em passado recente ocorria: evitar que a vítima seja a responsável por entregar as notificações e intimações ao agressor. Tal procedimento, por vezes, colocava a mulher em situação de vulnerabilidade, possibilitando novas agressões.
Dessa forma, sem dúvida, a vítima poderá contribuir com a justiça fornecendo
informações sobre o paradeiro do agente imputado ou outras relevantes ao bom
andamento do processo. Contudo, constitui dever das instituições judiciais proceder aos atos destinados a dar seguimento ao procedimento, pois isso significa
não colocar a mulher em nova situação de risco.
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15 Na Espanha além do dever de informar a vítima sobre a situação prisional do agressor, existe o
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305
Das medidas protetivas que obrigam
o agressor – artigos 22
Comentários: Juliana Garcia Belloque
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as
seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite
mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação
em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor
responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de
prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar,
a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos
§§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).
307
Juliana Garcia Belloque
Nestes primeiros anos de vigência da Lei Maria da Penha, o seu grande
marco tem sido a aplicação de medidas protetivas de urgência que obrigam o
agressor durante o desenrolar da persecução penal. Tais medidas, adotadas pelo
juiz em qualquer fase da persecução, desde a instauração do inquérito policial
até a fase judicial, visam a garantir a eficácia do processo criminal, protegendo a
mulher vítima de violência e outros membros da família – notadamente os filhos
– para conferir-lhe reais condições de romper com o ciclo de violência fazendo
uso do aparato estatal de repressão.
O elenco das medidas que obrigam o agressor foi elaborado pelo legislador
a partir do conhecimento das atitudes comumente empregadas pelo autor da
violência doméstica e familiar que paralisam a vítima ou dificultam em demasia
a sua ação diante do cenário que se apresenta nesta forma de violência.
Como a violência doméstica e familiar contra a mulher ocorre principalmente no interior do lar onde residem autor, vítima e demais integrantes da
família, em especial crianças, é muito comum que o agressor se aproveite deste
contexto de convivência e dos laços familiares para atemorizar a mulher, impedindo-a de noticiar a violência sofrida às autoridades. Este quadro contribui
sobremaneira para a reiteração e a naturalização da violência, sentindo-se a mulher sem meios para interromper esta relação, aceitando muitas vezes o papel de
vítima de violência doméstica para manter seu lar e seus filhos.
Assim, é como fórmula imprescindível de amparo à vítima durante o processo criminal que atuam as medidas protetivas de urgência, sendo que aquelas
que obrigam o agressor estão voltadas para a garantia da integridade física, psicológica, moral e material da mulher e de sua família.
O rol do artigo 22 não é exaustivo, podendo o juiz, a rigor do que dispõe o
seu parágrafo primeiro, adotar outras providências previstas em lei sempre que
a segurança da ofendida ou outras circunstâncias o exigirem. Trata-se de um
guia ao julgador que bem ilustra, pela natureza das medidas elencadas, qual foi
o propósito do legislador, como adiante se explicitará.
De outra banda, nada impede a adoção de mais de uma medida protetiva
concomitantemente, desde que essa solução pareça a mais adequada ao julgador. O caput do artigo 22 expressamente traz essa possibilidade. Evidente que
a decisão judicial deverá estar sempre acompanhada de motivação que apresente as razões fáticas e jurídicas pelas quais as espécies de medidas aplicadas
se mostram cabíveis, a teor do que prevê o artigo 93, inciso IX, do Constituição
da República e também porque trata- se de medidas restritivas de direitos, cuja
necessidade – portanto – deve estar demonstrada no caso concreto.
As medidas protetivas de urgência são claramente medidas cautelares,
adotadas em cognição sumária na fase inquisitiva ou judicial, inclusive sem oitiva da parte afetada, não definitivas e que visam assegurar o resultado do processo de apuração dos fatos supostamente criminosos, culminando na eventual
punição do agressor.
308
Das medidas protetivas que obrigam o agressor – artigo 22
Na sua essência, as medidas trazidas pelo dispositivo em comento possuem
natureza de restrições administrativas, como a suspensão da posse de arma de
fogo, ou de decisões provisórias relativas a restrições de direitos previstos na lei
cível, especialmente no âmbito do direito que regula as relações familiares, como
a obrigação de prestar alimentos e a restrição ou suspensão do direito de visitas
aos filhos menores.
Não obstante o fato de dizerem respeito a obrigações referentes ao direito
de família, não se deve olvidar que tratam-se de medidas impostas no decorrer
da investigação ou do processo criminal, ou seja, servem a garantir o eventual
resultado do processo criminal, e não civil.
Nesta esteira, equivocado o entendimento de que tais medidas protetivas
perderiam seus efeitos caso a ofendida deixasse de ajuizar a ação principal no
juízo cível no prazo de 30 (trinta) dias, como se se tratasse de processo cautelar
preparatório de ações cíveis típicas da área do direito de família, como divórcio,
fixação de guarda, regulamentação de visitas ou ação de alimentos.
De modo todo diverso, as medidas previstas na Lei Maria da Penha que
obrigam o agressor estão voltadas à garantia da ordem pública, em especial à
integridade física e psicológica da mulher e dos demais integrantes da família, e
à conveniência da instrução criminal, intentado impedir que o agressor se utilize
do poderio econômico ou da ameaça à reiteração da violência contra a ofendida
e seus filhos como forma de constranger a declarante ou as testemunhas durante
a persecução penal.
Desta forma, para cumprirem o seu papel, as medidas podem perdurar até
a decisão penal definitiva, isto é, até o desfecho do processo criminal, independentemente de outras ações no âmbito cível eventualmente ajuizadas.
Por outro lado, cumpre salientar o quanto se mostra desarrazoado obrigar a
mulher vítima de violência doméstica e familiar, em condição de especial vulnerabilidade, a buscar os seus direitos e proteger-se da violência em diferentes órgãos
do Poder Judiciário. Esta situação agravaria em demasia o processo de vitimização secundária, aquele provocado pelas instâncias formais do poder público.
Neste aspecto, não foi à toa que a Lei Maria da Penha instituiu os Juizados
Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência
cível e criminal (artigo 14), competência essa transferida integralmente para as
Varas Criminais enquanto os Juizados não estiverem plenamente estruturados
(artigo 33). Buscou-se a superação da visão do Poder Judiciário enquanto serviço
público que chega ao usuário de maneira completamente compartimentalizada,
inclusive quando isso prejudica extremamente a eficácia e a qualidade da prestação jurisdicional, como é o caso da violência contra a mulher praticada no âmbito doméstico e familiar.
Isto posto, o fato é que as medidas protetivas de urgência que obrigam o
agressor são adotadas durante a persecução penal para servir às suas finalidades, mostrando-se um absoluto contra-senso que seus efeitos ou sua caducidade
309
Juliana Garcia Belloque
dependam do ajuizamento de ações perante o juízo cível se ainda forem pertinentes e necessárias para a causa penal.
Encerrando este tópico, apenas faz-se necessário destacar que, ao término
do processo criminal, elas não poderão mais subsistir, pois não podem ser aplicadas enquanto penas acessórias da infração penal, por falta de previsão legal
nesse sentido. Com o alcance do resultado do processo, seja ele de natureza absolutória ou condenatória, encerra-se necessidade de tais medidas e, caso seja
do interesse jurídico da ofendida obter uma decisão judicial definitiva a respeito
dos temas a elas correlatos, deverá ela ajuizar demanda perante o juízo de família para obter essa tutela jurisdicional.
Vale sublinhar que o arquivamento do inquérito policial, bem como a retratação da representação contra o agressor implicam a imediata perda de validade
da medida protetiva aplicada, razão pela qual é de fundamental relevância a
adequada orientação jurídica à mulher vítima de violência para que decida de
modo consciente acerca do exercício de seu direito de representação nos casos
de ação penal pública condicionada.
A primeira medida elencada pelo legislador é essencial para a proteção da
vida da mulher vítima de violência, consistindo na suspensão da posse ou restrição do porte de armas por parte do agressor.
Tem fundamental importância quando o agressor é policial civil ou militar
ou outro agente público cuja atuação se correlacione com a posse e o porte de
arma de fogo. Nesta circunstância, a vulnerabilidade da ofendida e de seus filhos
ganha dimensão praticamente invencível caso permaneça o agressor na posse da
arma, ainda com mais razão quando perdurar algum grau de convivência.
A aquisição e o registro de armas de fogo estão regulados, de modo restrito,
pela Lei n. 10.826/2003, sendo que o porte é proibido em todo o território nacional, salvo as hipóteses expressamente previstas na legislação. Em situações em
que a posse ou o porte da arma ultrapasse os limites da legislação, mostrando-se
irregular, estará configurada conduta criminosa, sendo automática a sua apreensão e retenção pelas autoridades policiais. Assim, esta medida protetiva é direcionada aos agressores que possuem regular registro e porte da arma de fogo,
podendo incluir qualquer indivíduo, em situações mais restritas, mas principalmente os agentes que atuam na segurança pública.
Conforme salienta Sérgio Ricardo de Souza (2008: 134), para a adoção desta
medida não é necessário que a violência doméstica e familiar objeto da apuração
tenha sido praticada com o emprego da arma, pois “seus objetivos são preventivos e visam evitar a efetiva utilização da arma, além de coibir o efeito de intimidação decorrente da sua própria existência”.
Em seguida, no inciso II do artigo 22, a Lei Maria da Penha prevê o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida.
Essa espécie de medida cautelar já era constantemente aplicada pelos juízos de família em processos de divórcio ou dissolução de união estável que
310
Das medidas protetivas que obrigam o agressor – artigo 22
envolviam um contexto de violência (artigos 1.562 do Código Civil e 888, inciso
VI, do Código de Processo Civil). Mostrava-se inadequada, contudo, a prática
das audiências de conciliação prévias à adoção desta providência e a concessão
de prazos muitas vezes longos para que o agressor cumprisse a medida, o que
enfraquecia muito a posição da mulher vítima nessa relação de violência.
Além do sério risco à vida e à integridade física da mulher e da família, a
manutenção do suposto agressor sob o mesmo teto que a vítima é uma forma de
submeter a mulher uma constante pressão psicológica e até desconforto moral (DE
SOUZA, 2008: 135), porque ela convive com a alta probabilidade de voltar a ser
agredida a qualquer momento, principalmente por ter chegado ao conhecimento
do poder público a violência contra ela praticada. O afastamento do lar possibilita
que a vítima e os demais familiares sintam-se, pelo menos, aparentemente seguros.
A saúde física e psicológica fica preservada na medida em que inexiste o
risco iminente de agressão, já que o agressor não estará dentro da própria casa
em que reside a vítima. O patrimônio da ofendida também é preservado, uma
vez que os objetos do lar não poderão ser destruídos com a mesma facilidade. É
bastante comum em casos de violência que o agressor destrua os pertences da
mulher, bem como seus documentos pessoais, como forma de tolher sua liberdade, provocar-lhe baixa estima e diminuir sua autodeterminação, no intento de
que ela desista do prosseguimento da persecução criminal.
Em 2002, através da Lei n. 10.455, o legislador introduziu no parágrafo
único do artigo 69 da Lei n. 9.099/1995 – Lei dos Juizados Especiais Criminais,
que trata do processo e execução das infrações de menor potencial ofensivo – a
possibilidade de o juiz determinar, como medida de cautela, o afastamento do
agressor do lar em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Pela inserção tópica do dispositivo na lei, tal medida deveria ser adotada
quando do comparecimento do suposto autor do fato no Juizado Especial Criminal, após lavratura do termo circunstanciado. Seja pela carente regulamentação
da medida – diferentemente do que ocorre com a Lei Maria da Penha, onde é
prevista de modo mais detalhado em termos procedimentais –, ou pela estrutura
e pela dinâmica dos Juizados Especiais Criminais, voltados para as infrações de
menor potencial ofensivo e marcados pela ótica da conciliação, esta medida não
vingou a contento e não produziu os efeitos aguardados, fazendo necessária a
edição de lei específica sobre o tema.
Medida semelhante também já havia sido prevista na legislação pátria em
relação aos maus-tratos praticados contra criança ou adolescente. O artigo 130
da Lei n. 8.069/1990 possibilita ao juiz o afastamento do agressor da moradia
comum, de modo cautelar, na hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual infligidos pelos pais ou responsáveis.
Percebe-se, desse modo, que, apesar da gravidade da medida, a mesma já
foi considerada imprescindível para a repressão e prevenção de outras formas
311
Juliana Garcia Belloque
de violência, sendo igualmente adequada e indispensável para os casos de violência contra a mulher praticada na unidade doméstica.
Resta claro, no exercício da ponderação de valores, que a proteção à vida
e à integridade física e psicológica da mulher, cuja necessidade nasce pela existência de uma relação de violência, supera os deveres nascidos do casamento ou
da união estável.
O inciso III do artigo em epígrafe traz as chamadas proibições de conduta
por parte do agressor, com natureza de obrigações de não fazer, ou de abstenção.
Em três alíneas, a Lei Maria da Penha prevê que o agressor fique proibido de se
aproximar da ofendida, de seus familiares ou das testemunhas, seja obrigado a
se abster de qualquer contato com essas pessoas e proibido de freqüentar determinados lugares. Todas as proibições perseguem os mesmos objetivos: preservação da integridade física e psicológica da mulher e vedação à intimidação
voltada a conturbar o andamento da investigação ou processo criminal.
Quanto à primeira medida, conforme vem decidindo a jurisprudência,
pode o juiz determinar, em metros, a distância que o agressor deve manter da
vítima, “mostrando-se desnecessário listar os lugares a serem evitados, pois, se
assim fosse, seria possível ao agressor burlar a proibição e assediar a vítima em
locais que não constam da lista”1.
Quanto à vedação de contato, esta atinge qualquer meio de comunicação,
pessoal, direta, telefônica, via cartas ou mensagens eletrônicas.
Ambas buscam evitar que o agressor persiga a vítima, seus familiares e as
testemunhas da causa penal, situação que evidentemente prejudica a colheita da
prova na causa penal e gera grave risco às pessoas que dela participam ou que
tem relação familiar com a ofendida.
A proibição de frequentar determinados lugares dirige-se especialmente à
proteção dos espaços de convivência da vítima e de seus familiares.
É característica da violência doméstica e familiar contra a mulher que as
agressões físicas sejam acompanhadas de humilhações públicas que diminuem
sobremaneira a autodeterminação da mulher, ofendendo de modo grave sua
integridade moral.
Desse modo, a Lei Maria da Penha buscou proteger os espaços públicos nos
quais a mulher vítima de violência desenvolve sua individualidade: seu local
de estudo, de trabalho, de lazer, de culto religioso ou qualquer espaço de convivência comunitária, espaços onde o juiz pode vedar a presença do agressor para
evitar humilhações e intimidações.
Os locais frequentados pelos filhos ou outros membros da família também
podem ser objeto da vedação, principalmente em caso de adoção da medida prevista no inciso IV do artigo 22, a seguir comentada.
1
312
STJ, RHC 23.654-AP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 3/2/2009.
Das medidas protetivas que obrigam o agressor – artigo 22
Trata-se da restrição ou suspensão de visitas aos dependentes crianças ou
adolescentes.
Esta medida, destacada das demais, requer, para a sua adoção, a manifestação da equipe de atendimento multidisciplinar que deve funcionar nos Juizados
Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A previsão é bem-vinda, pois a suspensão das visitas traz consequências para crianças e adolescentes, exigindo-se a análise sob o prisma do impacto por eles vivenciado, seja
pela prática da violência, seja pela ausência completa do pai. Segundo aponta
Maria Berenice Dias (2008: 85), “a recomendação para que seja ouvida equipe
de atendimento multidisciplinar bem revela a preocupação em preservar o vínculo de convivência entre pais e filhos”; contudo, havendo risco à integridade
da mulher ou de seus filhos, o parecer técnico não precisa ser prévio à adoção da
medida cautelar, não ficando o juiz a ele vinculado. A autora também destaca a
importância das visitas supervisionadas que podem ser realizadas em ambiente
terapêutico, da forma a preservar a integridade da vítima sem romper totalmente a convivência do agressor com seus filhos (DIAS, 2008: 86).
Sem dúvida a restrição mais grave dentre as previstas no dispositivo em
exame, que deve ser adotada mediante a prudência judicial na análise do caso
concreto, mas que se faz necessária quando há indícios de que o agressor intimida
a vítima, genitora, através de mau comportamento ou de ameaças dirigidas aos
filhos do casal. Isso sem mencionar as hipóteses de violência doméstica e familiar
praticadas contra meninas e adolescentes pelos próprios membros da família.
Por fim, o artigo 22 prevê a prestação de alimentos provisionais ou provisórios pelo agressor. Os alimentos devem ser fixados de acordo com as possibilidades do alimentante (agressor) e das necessidades dos alimentados, nos termos
dos artigos 1.694 do Código Civil e seguintes.
Os alimentos provisionais ou provisórios dependem da demonstração da
relação de parentesco e da relação de dependência econômica, sem necessidade
de larga produção de prova.
Nas relações domésticas e familiares em que a mulher mostra-se economicamente dependente do agressor, o que ocorre com frequência quando a opção
adotada pelo casal é de que a mulher se dedique ao cuidado do lar e da família,
é comum o uso do poder econômico por parte do agressor enquanto meio de
intimidar a mulher em situações de violência. O quadro se agrava quando a mulher, após a prática de violência, permanece com a guarda dos filhos, sendo responsável por seu sustento na vida cotidiana. Esse cenário se traduz em grande
pressão, e mesmo constrangimento, para que a mulher não noticie a violência
sofrida para proteger a sobrevivência digna dos filhos do casal.
Assim, o cumprimento da obrigação alimentar, que nasce da lei, pode ser
essencial para a adequada apuração da infração penal cometida contra a mulher
no contexto doméstico e familiar.
313
Juliana Garcia Belloque
O próprio artigo 22, em seus parágrafos, dispõe sobre os mecanismos de
imposição das medidas protetivas aplicadas em face do agressor.
Na hipótese de suspensão da posse ou restrição do porte de armas, a medida será comunicada ao órgão, corporação ou instituição pública a que pertença o agressor, de modo que o seu superior imediato ficará responsável pelo
cumprimento da determinação judicial, configurando-se os crimes de prevaricação ou desobediência pela não observância da ordem.
No que atine às demais vedações, poderá o juiz requisitar o auxílio da força
policial, a qualquer momento, para garantir a efetividade das medidas. É evidente que disso depende a comunicação da ofendida, de seus familiares ou das
testemunhas e a rápida ação da polícia quando acionada.
Outrossim, a possibilidade legal de aplicação da prisão preventiva quando
descumpridas as medidas protetivas de urgência, ao que se deve somar a presença dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, reforça a natureza impositiva dessas medidas.
Por outro lado, o artigo 22, §4º, traz para os casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher a possibilidade de aplicação da tutela inibitória, destinada a impedir violações a direitos através das sanções previstas no artigo 461
do Código de Processo Civil para o descumprimento das obrigações de fazer ou
não fazer (DIAS, 2008: 92).
Prevê o diploma processual civil que, visando garantir a efetiva tutela do
direito, o juiz poderá adotar as seguintes providências: imposição de multa por
tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento
de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de
força policial.
Assim, preocupou-se a Lei Maria da Penha em conferir ferramentas na
construção de um cenário de efetiva aplicação de suas medidas protetivas, as
quais oferecem indispensável alicerce ao sistema de prevenção e repressão da
violência doméstica e familiar contra a mulher.
Referências bibliográficas
DE SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher.
2ª ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p. 134.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2008.
314
Das medidas protetivas de urgência
à ofendida – artigos 23 e 24
Comentários: Samara Wilhelm Heerdt
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio,
após afastamento do agressor;
III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a
bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV – determinar a separação de corpos.
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas,
entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação
de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.
As medidas protetivas de urgência trazidas pela Lei 11.340, de 7 de agosto de
2006, caracterizam-se como inovadoras e contribuem de forma determinante para o
sistema de prevenção e de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Essas medidas de urgência foram introduzidas para garantir uma proteção
imediata às mulheres em situação de violência. Há muito, verificava-se a necessidade de oferecer às mulheres medidas que pudessem, rapidamente, sustar a
situação de violência, seja protegendo diretamente a vítima, seja submetendo o
agressor a determinado comportamento.
A lei prevê, dentre as medidas protetivas de urgência, aquelas que obrigam
o agressor (artigo 22) e aquelas que visam à proteção da vítima (artigos 23 e 24).
Em sendo constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos da lei (art. 5º), poderá o juiz, sem prejuízo de outras medidas,
315
Samara Wilhelm Heerdt
encaminhar a vítima e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de
proteção ou atendimento, determinar a recondução da vítima e de seus dependentes ao respectivo domicílio, determinar o afastamento da vítima do lar e decretar a separação de corpos.
A lei, em seu art. 24, ainda prevê a possibilidade de aplicação de medidas
que visam à proteção patrimonial da vítima, como a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor; a proibição temporária para a celebração de
atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; a suspensão das procurações conferidas pela vítima
ao agressor; e a prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por
perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar.
Destaca-se que, tanto as medidas protetivas de urgência que obrigam o
agressor, quanto as medidas que protegem a vítima, caracterizam-se como ferramentas imprescindíveis para o tratamento da questão da proteção integral da mulher vítima de violência doméstica e familiar, dada a diversidade de sua natureza.
Ocorrendo a violência doméstica e familiar contra a mulher, a vítima poderá procurar a autoridade policial, a qual, dentre outras providências, deverá
(art. 11) garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato
ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; encaminhar a ofendida ao hospital
ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de
vida; se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus
pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; e, por fim, informar à
ofendida os direitos a ela conferidos na Lei 11.340/06 e os serviços disponíveis.
No momento do registro junto à autoridade policial, poderá a vítima requerer, dentre outras, as medidas protetivas de urgência previstas nos artigos 23 e
24 da Lei 11.340.
Como ensina Dias (2007: 78):
‘a autoridade policial deve tomar as providências legais cabíveis (art. 10) no
momento em que tiver conhecimento de episódio que configura violência
doméstica. Igual compromisso tem o Ministério Público de requerer a aplicação de medidas protetivas ou a revisão das que já foram concedidas, para assegurar proteção à vítima (art. 18, III, art. 19 e § 3º). Para agir o juiz necessita ser
provocado. A adoção de providência de natureza cautelar está condicionada à
vontade da vítima’.
Ou seja, mesmo com o registro de ocorrência junto à autoridade policial, é
a vítima quem detém legitimidade para o requerimento das medidas protetivas
de urgência em sede de antecipação de tutela, não podendo a autoridade policial
ou o juiz, de ofício, antes dela, requerer, no caso do primeiro, ou determinar, no
caso do último, a concessão de medidas protetivas de urgência.
316
Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigo 23 e 24
A atuação da autoridade policial limita-se, nesse momento, a prestar o atendimento inicial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, lembrando
que esse atendimento deverá ser especializado, como forma de garantir a dignidade
da pessoa humana. A autoridade policial, então, adotará as providências necessárias
e remeterá o pedido das medidas protetivas de urgência ao Poder Judiciário.
Assim, como já destacado anteriormente, apenas após a manifestação expressa da vítima, requerendo a concessão de medidas de urgência, é que poderá
o juiz, de ofício, conceder outras medidas que entender necessárias para assegurar a proteção da vítima.
O art. 18, em seus parágrafos 2º e 3º, é nítido quando dispõe que as medidas
protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente e poderão
ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia sempre que os
direitos forem ameaçados ou violados.
Da mesma forma, poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público, da
Defensoria Pública, ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio.
Ressalta-se, assim, que o rol de medidas trazidas pela lei não se caracteriza
como taxativo, mas meramente exemplificativo, não ficando adstrito o julgador
somente à concessão daquelas previstas na lei. Poderá ele, em sendo necessário,
adotar outras medidas como forma de assegurar a eficácia daquelas previstas
expressamente pelo legislador.
Essa possibilidade é justificada pelo fato de que as medidas protetivas
visam à proteção da vítima, de seus familiares e de seu patrimônio, não podendo o julgador ficar adstrito a um rol taxativo de medidas, quando se está
diante da necessidade de proteção da liberdade, da integridade física, psíquica
e patrimonial da ofendida.
Hermann (2008) refere que a natureza cumulativa do rol de medidas protetivas é destacada no próprio caput do artigo 23, o qual autoriza a aplicação judicial sem prejuízo de outras medidas eventualmente necessárias.
Assim, a definição e os limites de tal necessidade são fixados pelo julgador,
motivada e fundamentadamente, sob pena de nulidade, nos termos do art. 93,
IX, da Constituição Federal.
No que tange à natureza, verifica-se que a diferenciação entre direito civil
ou direito penal importa na medida em que serão conhecidos os recursos em
função desta distinção. Embora a Lei Maria da Penha tenha buscado romper
com a dicotomia entre direito civil e direito penal, na prática, tal superação está
muito longe de ser realidade.
No mesmo sentido, aliás, o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, adotou o paradigma dicotômico ao vincular o sistema recursal à natureza da medida protetiva deferida.
317
Samara Wilhelm Heerdt
O art. 3º, parágrafo único da Resolução nº 562/2006 do COMAG, prevê que:
Os recursos contra as medidas protetivas liminares de natureza cível ou de
família são os previstos no Código de Processo Civil, observada a competência recursal peculiar a cada um; e os recursos das medidas de natureza criminal serão os previstos no Código de Processo Penal, observada a competência
recursal peculiar a cada um.
Dessa forma, verifica-se que o fato de a medida protetiva de urgência ter
sido requerida em expediente que tramita junto à Vara Criminal (por determinação legal expressa do art. 33, onde não houver o Juizado Especializado de
Violência Doméstica), por si só, não determina a natureza da medida protetiva,
nem mesmo o sistema recursal que deverá ser adotado.
Ademais, o art. 33 da Lei 11.340 expressamente prevê que, enquanto não
estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e
julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra
a mulher, observadas as previsões do Título IV da lei, subsidiada pela legislação
processual pertinente.
Nessa linha de pensamento, verifica-se que as medidas de urgência que
protegem a ofendida (artigos 23 e 24) caracterizam-se pela natureza cível e, por
conseguinte, deverão ser discutidas, em sede de recurso, junto às Câmaras Cíveis dos Tribunais de Justiça.
Nesse contexto, Hermann (2008: 196-197) salienta que:
‘enquanto o artigo 22 – ao definir medidas que obrigam o agressor – pode ser
identificado como normal penal ou, no mínimo, correlata ao processo penal
– os artigos 23 e 24, pela natureza das medidas que estabelecem, são mais
compatíveis com processos cíveis. Aplicam-se, principalmente, a situações de
violência doméstica e familiar contra a mulher no contexto da conjugalidade
ou relações afins, com ou sem coabitação, embora a regra não seja absoluta’.
Ultrapassada a questão da natureza, passaremos, de imediato, a análise individualizada dessas medidas protetivas de urgência que protegem a vítima.
I – Encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário
de proteção ou de atendimento
O encaminhamento da ofendida e de seus dependentes a programa oficial
ou comunitário de proteção ou de atendimento, como já destacado, constitui
medida de natureza cível e poderá ser requerida pela vítima no momento do
registro de ocorrência junto à autoridade policial, bem como determinado pelo
juiz, de ofício, ou a pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública.
318
Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigo 23 e 24
Essa medida protetiva traz à tona a necessidade de organização e de fortalecimento da rede de enfrentamento à violência contra a mulher, a qual, segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República,
diz respeito à atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais,
não-governamentais e a comunidade, visando ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção; e de políticas que garantam o empoderamento das
mulheres e seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência2.
Já a rede de atendimento faz referência ao conjunto de ações e serviços de
diferentes setores (em especial, da assistência social, da justiça, da segurança
pública e da saúde), que visam à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e ao encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; à integralidade e à humanização do atendimento.
A rede de enfrentamento, por sua vez, é composta por agentes governamentais e não-governamentais formuladores, fiscalizadores e executores de políticas
voltadas para as mulheres (organismos de políticas para as mulheres, ONGs feministas, movimentos de mulheres, conselhos dos direitos das mulheres, outros conselhos de controle social; núcleos de enfrentamento ao tráfico de mulheres, etc.);
serviços/programas voltados para a responsabilização dos agressores; universidades; órgãos federais, estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos
(habitação, educação, trabalho, seguridade social, cultura); e serviços especializados e não-especializados de atendimento às mulheres em situação de violência
(que compõem a rede de atendimento às mulheres em situação de violência).
É a partir dessa rede de enfrentamento, portanto, que são organizados e
estruturados os programas de proteção e de atendimento da mulher vítima de
violência doméstica e familiar.
Destaca-se que o art. 35 expressamente prevê que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências, centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar,
casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de
violência doméstica e familiar, delegacias, núcleos de Defensoria Pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à
mulher em situação de violência doméstica e familiar, programas e campanhas
de enfrentamento da violência doméstica e familiar e, por fim, centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Nesse contexto, a Defensoria Pública possui importantíssimo papel na
orientação e na assistência jurídica da mulher, antes, durante e após o procedimento judicial, uma vez que, nos termos do art. 134 da Constituição Federal de
2
Ver em: https://sistema3.planalto.gov.br//spmu/atendimento/atendimento_mulher.php.
319
Samara Wilhelm Heerdt
1988, é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do
art. 5º, LXXIV.
Ademais, salienta-se que, de acordo com os artigos 27 e 28, em todos os atos
processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado ou Defensor Público. Da mesma
forma, é garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar
o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de assistência judiciária gratuita,
nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico
e humanizado.
Nessa linha de pensamento, possuem direito de assistência jurídica integral
pela Defensoria Pública tanto o agressor quanto a vítima, o que vai ao encontro
do disposto no art. 4º, XI, da Lei Complementar 80/94, que prevê como função
institucional da Defensoria Pública o exercício da defesa dos interesses individuais e coletivos da mulher vítima de violência doméstica e familiar.
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a
bens, guarda dos filhos e alimentos;
Nos termos dos incisos II e III do art. 23 da Lei Maria da Penha, tanto a vítima poderá ser reconduzida a sua residência após o afastamento do agressor
do lar conjugal, quanto poderá ser afastada do lar sem prejuízo dos seus direitos
relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos.
Destaca-se que essas medidas inclusive poderão ser requeridas diretamente
na esfera cível, por meio da propositura de medida cautelar de afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal, nos termos do art. 888, VI, do
Código de Processo Civil, como diretamente no momento do registro de ocorrência junto à autoridade policial, devendo o expediente ser direcionado pela Delegacia de Polícia à Vara Criminal, como já destacado anteriormente, por previsão
expressa do art. 33 da Lei 11.340, no prazo de quarenta e oito horas (art. 12, III).
Essas medidas tornam-se necessárias quando a mulher possui o fundado
temor de que o agressor possa retornar ao lar e, assim, representar perigo a si
própria e a seus familiares. Salienta-se, ainda, que parecer técnico da equipe
multidisciplinar, previsto no art. 30, poderá dar maiores subsídios ao julgador
durante o curso do procedimento, uma vez que a equipe deverá ser formada por
profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Ressalta-se, contudo, que o deferimento da medida protetiva requerida pela ofendida
não poderá ficar condicionado à realização do parecer técnico referido, sob pena
de grave prejuízo à vítima, uma vez que as medidas protetivas caracterizam-se
justamente pelo seu caráter primordial de urgência.
320
Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigo 23 e 24
IV – determinar a separação de corpos
Finalizando o rol exemplificativo do art. 23 da Lei Maria da Penha, temos
a determinação de separação de corpos. Nesse caso, como nos outros, o juiz
poderá cumular a medida de separação de corpos com a proibição de determinadas condutas pelo agressor, nos termos do art. 22, III, da Lei 11.340, como
proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas,
sendo fixado pelo juiz o limite mínimo de distância que deverá ser mantido pelo
agressor, proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas
por qualquer meio de comunicação e proibição de freqüentar determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida.
De acordo com Lavorenti (2009: 270):
‘a separação de corpos tem previsão própria no Código Civil (art. 1.562), mas,
para efeitos da Lei Maria da Penha, não se faz necessário que a mulher ingresse
com medida cautelar objetivando a separação de corpos, bastando um pedido
à autoridade policial, quando da formalização da ocorrência, para que o expediente conduza a uma decisão judicial célere nesse sentido. A busca de efeitos civis específicos deve ser pleiteada, por meio da ação própria – separação
judicial, nulidade do casamento, dissolução da sociedade da fato etc. – junto à
Vara de Família. O magistrado do Juizado de Violência Doméstica e Familiar
somente pode conceder separação de corpos quando os fatos disserem respeito exclusivamente à violência respectiva e não a outras questões de natureza civil, sob pena de se esvaziar a competência da Vara de Família e se distanciar do objeto da lei em comento’.
Destaca-se que as medidas protetivas de urgência que protegem a vítima,
em sua quase totalidade das vezes, são cumuladas com as medidas protetivas
que obrigam o agressor, a fim de que se propicie a integralidade de proteção,
não só da vítima, como de seus dependentes e familiares, como é o caso da restrição ou suspensão de visitas aos filhos (art. 22, IV), da prestação de alimentos
provisórios (art. 22, V), entre outras.
O art. 24, por sua vez, prevê medidas de proteção ao patrimônio da sociedade conjugal ou dos bens de propriedade particular da mulher, a partir do qual
o juiz poderá, liminarmente, adotar as seguintes medidas:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra e
venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e
danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
321
Samara Wilhelm Heerdt
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.
As medidas de proteção de cunho patrimonial estão diretamente ligadas à
ideia de violência doméstica trazida pelo art. 7º, VI, o qual dispõe como forma
de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras, a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Veja-se que a referida proteção, autorizada pela Lei nº 11.340/06, visa resguardar o patrimônio da mulher quando esta se mostrar em situação de fragilidade, característica do processo de violência doméstica, necessitando a vítima
de salvaguarda judicial para proteção de seus bens.
A lei busca proteger o patrimônio comum do casal ou particular da vítima,
justamente quando esta se encontra em situação de iminente ou concreto perigo
por atos abusivos do ofensor, garantindo que a mulher tenha plena disponibilidade de seus bens e não sofra qualquer prejuízo ou restrição indevida em razão
da situação de violência doméstica e familiar.
Lavorenti (2009) lembra que o Código de Processo Civil, em seu artigo 855
e seguintes, dispõe sobre a medida cautelar de arrolamento, na qual existe a
possibilidade de a mulher ser nomeada pelo juiz como depositária dos bens pertencentes ao patrimônio do casal. Esse procedimento, nos termos da lei, poderá
ser requerido pela parte interessada sempre que houver fundado receio de extravio ou de dissipação de bens, receio muitas vezes presente quando a mulher
encontra-se em situação de violência doméstica e deseja afastar-se do lar.
Contudo, destaca-se que o art. 24 visa à proteção do patrimônio comum e
também exclusivo da vítima em razão da ocorrência de violência doméstica e
familiar. Ou seja, as medidas de urgência disciplinadas na lei estão contextualizadas em uma situação de violência doméstica concreta, até mesmo porque o
pedido de concessão das medidas protetivas dar-se-á, inicialmente, junto à autoridade policial, no momento do registro de ocorrência do fato.
De acordo com Hermann (2008), o inciso I do art. 24 guarda maior relação
com bens móveis que tenham indevidamente sido subtraídos da vítima pelo
agressor ou estejam na iminência de ser subtraídos ou ocultados. Já o inciso II
do referido dispositivo legal comporta a ideia de bens imóveis pertencentes ao
patrimônio comum e possui caráter temporário como disposto no próprio texto
legal. Ou seja, poderá ser revista pelo juiz a qualquer tempo em razão da precariedade. Nesses dois casos, deverá o juiz oficiar ao cartório competente para as
respectivas averbações, nos termos do parágrafo único do art. 24.
O inciso III do art. 24, por sua vez, prevê a possibilidade de suspensão de
procurações concedidas pela vítima em favor do agressor. Ou seja, poderá o
322
Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigo 23 e 24
juiz, em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, adotar a concessão dessa medida de urgência, a fim de proteger o patrimônio (bens e direitos)
da vítima. Entretanto, é importante destacar que a lei prevê a possibilidade de
suspensão da procuração e não revogação, o que poderá ser buscado em ação
própria junto à esfera civil.
Destaca-se nesse inciso uma inovação legislativa, uma vez que o artigo 682
do Código Civil apenas prevê a cessação do mandato pela revogação ou renúncia, pela morte ou interdição de uma das partes, pela mudança de estado que
inabilite o mandante a conferir os poderes, ou o mandatário para seu exercício e,
por fim, pelo término do prazo ou pela conclusão do negócio.
O inciso IV do art. 24 prevê a possibilidade de concessão de medida protetiva de prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e
danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra
a ofendida.
Essa disposição legal caracteriza-se por sua generalidade, uma vez que se
refere as perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica.
De acordo com Hermann (2008), pode ser considerado perda ou dano material
todo tipo de prejuízo neste sentido, incluindo-se até mesmo os lucros cessantes.
Destaca-se, ainda, que o dispositivo abrange não apenas condutas físicas, mas
também morais e psicológicas, oportunidade em que a prova oral, juntamente
com o laudo técnico da equipe multidisciplinar, poderá confirmar a prática da
violência e o nexo de causalidade com o dano causado à vítima, requisitos essenciais para a configuração do dever de indenizar.
Como leciona Dias (2007: 91):
‘a exigência de caução para garantir posterior pagamento de indenização (art.
24, IV), tem nítido caráter cautelar, até por determinar depósito judicial de bens
e valores. Trata-se de medida acautelatória, para garantir a satisfação de direito
que venha a ser reconhecidoem demanda judicial a ser proposta pela vítima’.
Por fim, verifica-se que as medidas protetivas de urgência à ofendida
previstas nos artigos 23 e 24 da Lei 11.340 caracterizam-se como medidas de
natureza cível e poderão ser cumuladas com outras medidas que obriguem o
agressor, bem como com outras medidas julgadas necessárias pelo julgador, de
acordo com a complexidade e as peculiaridades do caso concreto.
Não há dúvidas de que a Lei Maria da Penha representa um importantíssimo avanço na luta pelos direitos da mulher, principalmente no que diz respeito à criação, à organização e ao fortalecimento da rede de enfrentamento à
violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como pela previsão de procedimento próprio e instrumentos para a efetiva proteção da vítima, de seus
familiares e de seu patrimônio.
323
Samara Wilhelm Heerdt
Embora algumas das medidas elencadas nos artigos 23 e 24 já possuam
previsão dentre as medidas cautelares dispostas no Código de Processo Civil,
salienta-se que as medidas protetivas de urgência previstas nessa Lei encontram-se contextualizadas dentro de uma situação concreta de violência doméstica, o que evidencia seu caráter de urgência. Em outras palavras, a partir do
sistema procedimental trazido pela Lei 11.340, devem ser disponibilizadas todas
as medidas possíveis constantes no ordenamento jurídico garantidoras da mais
efetiva proteção à vítima.
Não se pode negar que um dos maiores avanços da Lei Maria da Penha
foi contextualizar a situação da violência doméstica, como forma de centralizar e sistematizar, num mesmo procedimento judicial, todos os instrumentos
de defesa dos direitos da mulher, o que, outrora, necessariamente teria de ser
buscado, muitas vezes, de forma individual, por meio de ações próprias junto às
Varas Cíveis, de Família e Criminal, ignorando-se a situação de efetiva urgência
relacionada à violência doméstica e familiar.
Um dos maiores desafios existentes hoje, com certeza, é a sensibilização dos
operadores do Direito para o tema da violência doméstica e familiar e, principalmente, a formação e o aperfeiçoamento especializado daqueles que receberão e
atenderão as vítimas dessa violência complexa, silenciosa, que irradia seus efeitos por tempo indeterminado, para além da pessoa da vítima, para além do lar,
para além da família.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei Complementar 80, 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria
Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas
gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências.
BRASIL. Lei 11.340, 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do parágrafo 8º do art. 226
da Constituição Federal, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal;
e dá outras providências.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei
11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei como nome de mulher: considerações à Lei nº 11.340/2006: contra a violência doméstica e familiar, incluindo
comentários artigo por artigo. Campinas: Servanda Editora, 2008.
324
Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigo 23 e 24
LAVORENTI, Wilson. Violência e discriminação contra a mulher: tratados internacionais de proteção e o direito penal brasileiro. Campinas: Milennium Editora, 2009.
MELLO, Adriana Ramos de (Org.). Comentários à Lei de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher. 2ª ed.Rio de Janeiro: Lumem Juris Editora, 2009.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Conselho
da Magistratura. Dispõe sobre os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a mulher. Lei nº 11.340/06. Competência e Procedimento. Resolução n.
562/2006, 11 de outubro de 2006.
325
Da atuação do Ministério Público – artigos 25 e 26
Comentários: Fausto Rodrigues de Lima
Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de
violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário:
I – requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência
social e de segurança, entre outros;
II – fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em
situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas;
III – cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A Constituição Federal preconiza que o Ministério Público é “instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127). É sua função institucional “zelar pelo efetivo
respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (art. 129, inc. II).
Essa feição constitucional consolidou a vocação tradicional e fundamental
do órgão de enfrentar a violência, em qualquer de suas formas, ampliando sua
atuação para a defesa geral da sociedade e do interesse público, com atenção
especial aos direitos humanos indisponíveis. É inegável a imprescindibilidade
do órgão para garantir o acesso à Justiça, aperfeiçoando os ideais democráticos.
Por isso, a implementação da Lei Maria da Penha (LMP) depende de uma
atuação eficaz e comprometida da instituição, que deve encarar com desassombro as verdades imutáveis e naturalizadas do preconceito de gênero, que forjou uma discriminatória e hierarquizada estrutura social. O encargo gigante dos
Promotores de Justiça pode ser resumido na exortação do sempre inspirador
Ministro da Corte Suprema, Celso de Mello:
“A responsabilidade social do Ministério Público torna-se, por isso mesmo,
imensa; todos os Membros da instituição são, agora, depositários da fé e da confiança do Povo que, com eles, celebrou o compromisso, grave e inderrogável,
327
Fausto Rodrigues de Lima
da liberdade e do respeito aos seus direitos e às suas garantias” (voto reconhecendo o princípio do promotor natural na Constituição de 1988, HC 67759-2
RJ, 06/08/1992).
O capítulo ora analisado reconhece e convoca essa essência ministerial.
Como titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, inc. I, da Constituição Federal), o Ministério Público funciona como parte na persecução da maioria das infrações penais, cabendo-lhe oferecer denúncia para o início do processo criminal. Geralmente, o Ministério Público não precisa da autorização das
vítimas (crimes de ação penal publica incondicionada). Em alguns crimes, a lei
exige a representação das vítimas, sem a qual o Ministério Público não pode
iniciar o processo (crimes de ação penal pública condicionada). A jurisprudência tem entendido que, em determinadas situações, o Ministério Público pode
dispensar a representação das mulheres em situação de violência doméstica, iniciando o processo mesmo contra a vontade delas (vide comentário ao artigo 16).
Quando o Ministério Público deixar de oferecer denúncia nos crimes de
ação penal pública, omitindo-se sobre eventual arquivamento do inquérito, as
vítimas podem iniciar diretamente o processo, através de advogado, nos termos
do art. 29 do CPP (ação penal privada subsidiária da pública).
Alguns poucos crimes são de ação penal privada, ou seja, sua iniciativa é
privativa do ofendido, que deve oferecer uma queixa. O Ministério Público poderá aditar a queixa e “intervir em todos os termos subseqüentes do processo”
(art. 45 do CPP). Pois bem, o artigo ora comentado reforça esse comando, determinando a intervenção ministerial quando não for parte, ou seja, nos crimes de
ação penal privada.
Dentre as atribuições ministeriais, a LMP previu a possibilidade de requerer medidas protetivas em favor das vítimas (art. 19). Dessa forma, o Ministério
Público não precisa aguardar o pedido das vítimas e pode, inclusive, requerer
medidas contra a vontade delas. Esta é a razão principal do dispositivo. É que
a vulnerabilidade própria das pessoas que sofrem violência doméstica, motivo
da construção da LMP, não raro as impede de se opor aos(às) agressores(as). O
medo ou o sentimento de lealdade vigente na família, aliado à perplexidade perante um ato criminoso praticado por pessoa próxima, paralisa sua reação. Um
representante de uma criança (pai ou mãe), por exemplo, pode ser conivente
com um ato violento praticado por algum parente. Essa omissão deve ser suprida pelo Estado, que pode determinar, por exemplo, o afastamento do lar de
todos quantos coloquem em risco a integridade dos membros da família.
Frise-se que a jurisprudência tem admitido até a abertura de processos contra a vontade das vítimas nos casos em que a representação delas é necessária
(vide comentários ao art. 16). Com maior razão, é permitido ao Ministério Público agir na proteção das vítimas, buscando as medidas protetivas por elas recusadas, quando houver indícios de que sua vontade não é livre ou espontânea.
328
Da atuação do Ministério Público – artigos 25 e 26
Poder-se-ia argumentar que o Ministério Público não poderia pedir algumas medidas que pressupõem uma ação de família, por exemplo, o afastamento
do lar como preliminar de uma ação de divórcio, já que esta decisão é da exclusiva alçada das vítimas (ação personalíssima). A conclusão é correta, mas a premissa é falha. Vejamos.
A doutrina tem discutido sobre a natureza jurídica das medidas protetivas:
segundo alguns, se for penal, as medidas pressupõem um processo criminal,
sem a qual a medida não poderia existir; outros pregam sua natureza cível, de
forma que elas só serviriam para resguardar um processo civil, como o de divórcio. Acessórias, as medidas só funcionariam se e enquanto perdurar um processo principal, cível ou criminal.
Entendemos que essa discussão é equivocada e desnecessária, pois as medidas protetivas não são instrumentos para assegurar processos. O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da
violência e das situações que a favorecem. E só. Elas não são, necessariamente,
preparatórias de qualquer ação judicial. Elas não visam processos, mas pessoas.
A LMP foi expressa quanto a esses objetivos, ao determinar que as medidas visam a “proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio” (art.
19, § 3º), e devem ser aplicadas “sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei
forem ameaçados ou violados” (art. 19, § 2º) e “sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem” (art. 22, § 1º).
Assim, a própria LMP não deu margem a dúvidas. As medidas protetivas
não são acessórios de processos principais e nem se vinculam a eles. No ponto,
assemelham-se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou o mandado
de segurança, não protegem processos, mas direitos fundamentais do indivíduo.
Portanto, as medidas protetivas são medidas cautelares inominadas que
visam garantir direitos fundamentais e “coibir a violência” no âmbito das relações familiares, conforme preconiza o art. 226, § 8º, da Constituição da República.
No ponto, também divergem das cautelares penais (busca e apreensão, interceptação telefônica, prisão temporária, etc.), que visam provar a prática de um
crime no bojo do processo penal, ou da prisão preventiva, que, embora possa ter
como um dos seus requisitos a garantia da integridade das vítimas, só se sustenta se
houver indícios suficientes da prática de crime. Ora, as medidas protetivas previstas na LMP não se prestam para provar crimes. Elas podem inclusive ser requeridas
mesmo quando não seja praticada infração penal. Basta a ocorrência de alguma das
violências domésticas elencadas no art. 7º da LMP, pois a Lei busca enfrentar a violência, que nem sempre terá um tipo correspondente na legislação penal.
É recomendável que o juiz fixe um prazo razoável de vigência das medidas
protetivas, suficiente para evitar a continuidade da violência. Isso evita a eternização de medidas, e suas reiterações desnecessárias, principalmente quando as
partes podem resolver definitivamente seus conflitos através de uma eficaz ação
na Vara de Família.
329
Fausto Rodrigues de Lima
De outra parte, para cumprir sua missão constitucional na área cível, mormente na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ora o Ministério Público atua como parte (órgão agente) ora como fiscal da lei (órgão interveniente). Vejamos a repercussão da LMP nessas atribuições tradicionais.
Como órgão agente, o Ministério Público deve promover os interesses (direitos) sociais, bem como os difusos, coletivos e individuais1. A Constituição
Federal (art. 6º) elenca os direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à
infância, bem como a assistência aos desamparados.
Em seu art. 8º, a Lei Maria da Penha exemplificou alguns dos direitos sociais
da mulher em situação de violência doméstica. Sua inobservância exige a atuação
do Ministério Público, através do inquérito civil e da ação civil, nos termos da Lei
nº 7347/85. Poderão ser utilizadas as disposições especiais sobre a matéria previstas no Estatuto do Idoso e no Estatuto da Criança e Adolescente, nos termos do
art. 13. Essa função é concorrente com “associação de atuação na área” (art. 37).
Advirta-se que, antes de intentar uma ação judicial, cujo resultado prático
pode ser duvidoso, deve o Promotor tentar esgotar os meios extrajudiciais possíveis (recomendação, termo de ajustamento de conduta, audiências públicas,
parceria com instituições etc.), que poderão impedir a continuidade da ilegalidade ou minimizar seus prejuízos (MOREIRA, 2009:89). Citamos, como exemplo, a atuação da Promotoria de Justiça de Natal/RN contra uma concessionária
de automóveis que divulgou a foto de uma mulher espancada, sugerindo que
ela precisava de lanternagem e pintura. A propaganda preconceituosa foi afastada, a empresa se comprometeu a promover um evento sobre violência doméstica e a publicar o termo de ajustamento de conduta no mesmo jornal.
Por outro lado, pode o Ministério Público atuar como parte (substituto processual) na defesa de direito individual indisponível da mulher em situação de
violência doméstica?
A legitimidade para o Ministério Público postular qualquer direito individual indisponível em Juízo tem matriz constitucional, nos termos do art. 127
acima citado, bem como do art. 129, IX (“outras funções” compatíveis com a
finalidade do Ministério Público). Não é necessária a autorização legal específica prevista no art. 6º do CPC, pois a norma constitucional referida tem eficácia
plena e imediata (GODINHO, 2007). De qualquer modo, o Estatuto do Idoso (74,
I) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (201, V e IX), aplicáveis supletivamente à violência doméstica contra a mulher, preveem essa função ministerial
na defesa dos direitos individuais indisponíveis. Portanto, é inquestionável que
o Ministério Público pode, e deve, postular direito individual indisponível da
mulher em situação de violência doméstica.
1
330
Vide art. 6º, VII, c, da LC 75/93, e art. 25, IV da Lei 8625/93.
Da atuação do Ministério Público – artigos 25 e 26
Essa atuação, porém, não deve ocorrer em todos os casos, sob pena de inviabilizar a função ministerial. A simples alegação de pobreza da parte, por si
só, também não a autoriza, já que a pessoa pode intentar pessoalmente a ação
judicial através da Defensoria Pública.
A atuação ministerial é de rigor quando a situação de vulnerabilidade da
pessoa, ou o contexto em que está inserida, possa impedi-la de buscar seus direitos indisponíveis (irrenunciáveis). A possibilidade de obter assistência jurídica
(advogados particulares ou Defensoria Pública) não supre sua necessidade, pois
essa pessoa teria que, primeiramente, procurar essa assistência jurídica e, depois,
postular/litigar em nome próprio, assumindo todos os ônus processuais, e sociais,
desse litígio. Há casos em que esse esforço é simplesmente difícil ou impossível;
algumas pessoas acabam por renunciar a um direito irrenunciável. Se o Ministério Público não assumir essa demanda individual, o resultado será a violação de
direito indisponível e o comprometimento da dignidade humana, valores e princípios cuja guarda não é um direito do Ministério Público, mas um dever.
De forma didática, a legislação exemplifica: 1) O Estatuto do Idoso determina que o Ministério Público promova ações de alimentos, de interdição total
ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida (art. 74, II), bem como quando houver ação ou omissão da sociedade ou do Estado, omissão/abuso da família ou indicar a condição pessoal do
idoso (art. 74, III); 2) O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a promoção
de ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do poder
familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães (art. 201, III),
bem como a especialização e a inscrição de hipoteca legal e a prestação de contas
dos tutores, curadores e quaisquer administradores de bens de crianças e adolescentes (art. 201, IV).
Assim, circunstâncias especiais ou a condição pessoal do indivíduo, é que
autorizam excepcionalmente a atuação ministerial como substituto processual,
sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direito individual indisponível.
Nessa esteira, a própria LMP, ao estabelecer os casos de medidas protetivas, as quais podem ser requeridas pelo Ministério Público, fixou um norte interessante para a função ministerial, que podem ser analisadas em conjunto com
as disposições do ECA e do EI. Se o Ministério Público pode requerer medidas
protetivas, cujo procedimento precário prescinde de delongas probatórias, com
muito mais razão está autorizado a defender direitos daí decorrentes, sempre
que sua indisponibilidade estiver ameaçada de lesão. Frise-se que as medidas
protetivas, por si só, não resolveriam definitivamente a questão, pois são provisórias por natureza. Somente uma ação judicial competente, manejada oportunamente pelo Ministério Público, afastará com mais segurança eventual violação de direito indisponível.
Cabem alguns comentários quanto a alimentos. Não há dúvida de que o
Ministério Público pode requerer alimentos em favor de menores e idosos, como
331
Fausto Rodrigues de Lima
prevê expressamente o Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, parte da
jurisprudência tem, erroneamente, negado a legitimidade do Ministério Público
quando o menor estiver sob o poder familiar. Esse entendimento não leva em
conta situações de risco e impede a livre atuação ministerial no cumprimento
de dever. Se uma mãe vítima de violência doméstica, por exemplo, dispensar os
alimentos da prole para cortar qualquer vínculo com o agressor, evitando que
este use os filhos do casal como pretexto para persegui-la, só o Ministério Público poderia sanar essa omissão. Felizmente, as luzes que emanam do Tribunal
da Cidadania têm iluminado o melhor caminho a seguir:
“Ocorre que o art. 201, III, da Lei 8.069/90 (ECA) confere expressamente ao
Ministério Público legitimidade para “promover e acompanhar ações de alimentos.” Esse dispositivo legal não faz qualquer distinção no que diz respeito
à situação da criança ou adolescente; tampouco menciona a necessidade de
estar o menor necessitado representado por seus tutores ou genitores. O art.
141 do mesmo estatuto, por sua vez, garante “o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por
qualquer de seus órgãos.” Logo, se o Ministério Público recorrente deixasse
de ajuizar a ação de alimentos de que ora se cogita, estaria cometendo injustificável omissão, furtando-se a cumprir uma de suas funções institucionais,
qual seja, a curadoria da infância e juventude”. (STJ, REsp 1113590/MG, Rel.
NANCY ANDRIGHI, julgado em 24/08/2010.)
Mas, e quando é a mulher adulta que precisa de alimentos? Pois bem, os
alimentos garantem o direito à vida e à sobrevivência com dignidade, direitos
constitucionais indisponíveis. No entanto, a prestação de alimentos pode ser
disponível em determinadas situações e, portanto, renunciável. Imagine-se uma
criança que possui um patrimônio considerável cujo representante legal deixa
de cobrar alimentos, por exemplo, de seu genitor. O Ministério Público não precisa entrar com ação para suprir a omissão, pois a criança não está em risco.
O mesmo se diga da mulher que, mesmo vítima de violência doméstica, não
precisa de pensão alimentícia do/a agressor/a. Há casos, porém, que a mulher
sempre dependeu financeiramente de terceiros e, por estar em situação de violência doméstica, “cede” e renuncia à pensão, mesmo sabendo que será privada
do mínimo indispensável à sua sobrevivência digna. Está o Ministério Público
legitimado para requerer alimentos em seu benefício, medida que poderá tranquilizar tanto a vítima quanto o agressor. Isso não é um favor, é um dever constitucional e IRRENUNCIÁVEL do Ministério Público.
Por outro lado, a atuação ministerial também é obrigatória onde inexista
Assistência Judiciária ou Defensoria Pública, ou quando estes órgãos se recusem
a acolher a pessoa, demorem para atendê-la ou para tomar as medidas cabíveis,
como infelizmente é a realidade em muitas comarcas país afora, em razão da sua
precariedade estrutural.
332
Da atuação do Ministério Público – artigos 25 e 26
O Código de Processo Civil (CPC) dispõe que a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei (custos legis) é obrigatória “nas causas em que há interesse
público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte” (art. 82, III).
Dessa forma, o Ministério Público intervirá sempre que estiverem presentes direitos indisponíveis ou umas das partes for hipossuficiente, entendida esta
como uma fraqueza social que pode repercutir numa relação processual desigual. O próprio CPC (art. 8º, I e II) exemplificou algumas situações de intervenção obrigatória: presença de pessoas incapazes ou discussão sobre direito
de família (tutela, curatela, casamento etc.). Outros exemplos: presença de interesses de idosos (Estatuto do Idoso) ou de acidentados do trabalho (construção
jurisprudencial).
Nessa esteira, a Lei Maria da Penha criou mais uma necessidade de intervenção ministerial obrigatória: “nas causas cíveis decorrentes da violência doméstica
e familiar contra a mulher”. Assim, interessa a qualidade da parte, mulher em
situação de violência doméstica, bem como a natureza da lide, que deve ter relação com a violência sofrida. Não importa se o direito discutido é disponível, basta
que uma das partes, do gênero feminino, seja vítima de violência doméstica.
Isso se dá porque, não só na interpretação da LMP (art. 4º), mas em toda
atuação estatal, devem ser observadas as “condições peculiares” das mulheres
em situação de violência doméstica, cuja fragilidade psicossocial merece atuação
cautelosa e despida dos preconceitos de uma sociedade machista. A participação
do Ministério Publico, como guardião da ordem jurídica e dos interesses individuais relevantes, é fundamental2.
Dessa forma, a compreensível tendência de o Ministério Público não atuar
nas causas de separação consensual ou de alimentos quando as partes forem
maiores e capazes, deve ser mitigada quando houver interesse de mulher vítima de violência doméstica. Sabe-se que é comum as mulheres abrirem mão de
alguns direitos legítimos (patrimoniais, alimentares), para tentar se ver livre de
perseguições ou de qualquer vínculo com o parceiro. A atuação eficaz do Promotor de Justiça em prol de uma decisão justa poderá tranquilizar tanto a vítima
quanto seu eventual ofensor, evitando retaliações que poderiam vulnerar ainda
mais a situação da mulher.
Pelos mesmos motivos expostos, eventual ação de indenização por danos
decorrentes de violência doméstica também deve ter a intervenção ministerial.
Frise-se que, ao contrário da atuação do Ministério Público como parte
na defesa de direitos individuais indisponíveis, que deve ocorrer em situações
2
Não está o Ministério Público, porém, obrigado a militar a favor das pretensões da pessoa que está
numa situação especial (criança, idoso, acidentado ou, no caso ora tratado, mulher vitimada). O
Parquet pode se manifestar contrário a interesse privado da parte hipossuficiente, pois não lhe cabe
assumir sua defesa pessoal. A função ministerial é sempre na defesa do interesse público e dos interesses indisponíveis (LIMA, 2007:208).
333
Fausto Rodrigues de Lima
especiais, a função de custos legis é de rigor em todos os casos, pois a situação de
risco da mulher em situação de violência doméstica é presumida.
Advirta-se que a não intimação do Ministério Público para as causas em
que sua intervenção é obrigatória gera a nulidade do processo, nos termos do
art. 84 do CPC (regra repetida no art. 77 do Estatuto do Idoso).
Quanto ao artigo 26, seus incisos I e II beberam na fonte do Estatuto do
Idoso, que possui disposições semelhantes (art. 74, VIII e IX), com o fim de
exemplificar a atuação ministerial, que não exclui outras previstas na legislação. Podem ser aplicadas as disposições previstas no Estatuto do Idoso (EI) e
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos termos do art. 13. Dessa
forma, é possível aplicar penalidades às entidades que descumprem obrigações
no acolhimento de mulheres em situação de violência doméstica, conforme art.
97 do ECA e art. 55 do EI, observando-se o procedimento de apuração previsto
no Estatuto do Idoso.
No inciso III, a LMP determina ao Ministério Público o cadastramento da
violência doméstica.
É cediço que a falta de estatísticas confiáveis é um problema nacional, que
impede a formulação de políticas públicas eficientes. A insuficiência do mapeamento da criminalidade e da violência em geral é uma falha grave e crônica no
país.
Por isso, a formação de uma base de dados é uma preocupação evidente
da LMP, que em seu art. 8º, inc. II, determina aos Poderes Públicos e entidades
privadas “a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações
relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a
mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a
avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas”. O art. 38 reforça esse
comando, ao exigir uma base de dados do Sistema de Justiça e Segurança, bem
como das Secretarias de Segurança Pública.
Portanto, a LMP confiou ao Ministério Público, e também a outras entidades, a realização de um cadastramento da violência doméstica, que poderá
ajudar a compreender e enfrentar esse fenômeno em âmbito regional e nacional.
Em 20/5/2010, o Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Justiça
(CNPG) deu um passo importante no sentido de cumprir essa norma, ao aprovar o Cadastro Nacional das Vítimas de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher, contendo um critério mínimo de alimentação de dados a ser utilizado
nacionalmente pelo Ministério Público. O sistema, que está em fase de testes na
Promotoria de Violência Doméstica de Campo Grande/MS, sob a coordenação
da Promotora de Justiça Ana Lara Camargo de Castro, será disponibilizado para
todos os Ministérios Públicos brasileiros.
334
Da atuação do Ministério Público – artigos 25 e 26
Referências Bibliográficas
GODINHO, Robson Renault. O Ministério Público como Substituto Processual no
Processo Civil. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007.
LIMA, Fernando Antônio Negreiros. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil brasileiro como custos legis. São Paulo: Ed. Métodos, 2007.
MOREIRA, Jairo Cruz. A intervenção do Ministério Público no processo civil à luz da
Constituição. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2009.
335
Da assistência judiciária – artigos 27 e 28
Comentários: Juliana Garcia Belloque
Artigo 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no
art. 19 desta Lei.
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos
serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em
sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.
O escopo precípuo da norma:
minimizar os efeitos da vitimização secundária
“Juiz: Sua mãe diz que você não é mais virgem. É verdade?
Menina: É, e daí?
Juiz: Olha, menina, você deve responder às perguntas, sem comentários, sem fazer
caretas. Entendeu? Você está prestando um depoimento judicial. É coisa muito séria.
Você perdeu a virgindade naquele fim de semana?
Advogado: Pela ordem, Excelência. Os réus não são acusados de delito sexual e...
Juiz: Um juiz deve ser minucioso, doutor. (Voltando-se para a menina.) Eu sei que
são intimidades, mas eu devo conhecer todos os detalhes do caso. Sou obrigado a perguntar. Para te proteger, as portas estão fechadas. (Agora, com ternura.) Você era virgem?
Menina: Não. Minha primeira vez faz dois anos!
Juiz: Foi com algum dos réus?
Menina: Isso interessa?
Juiz: Se eu pergunto, interessa sim.
Menina: Não foi com nenhum deles, não!
Juiz: E com os réus, você já manteve relações?
Menina: Com um deles. Agora... Eu preciso dizer?
Juiz: Precisa.
Advogado: Excelência, eu...
337
Juliana Garcia Belloque
Juiz: Eu já disse que não vou admitir interrupções, doutor. Depois o senhor terá oportunidade para reperguntas. O senhor se contenha, por favor. (Para a menina.) Está
bem, você não precisa dizer. Eu permito. Nesse fim de semana houve sexo entre vocês?
Sua mãe conta que a cama dela foi usada por vocês, o que aconteceu?
Menina: Minha mãe é louca.
Juiz: Responda à pergunta, você é muito atrevida, sabia? Isso não é bom”.
O trecho acima transcrito, extraído da obra ficcional de Luís Francisco Carvalho Filho (2001), perfeitamente se encaixaria em cenas reais vistas nas delegacias e fóruns, e bem ilustra o constrangimento a que, desnecessariamente,
podem ser submetidas vítimas e testemunhas chamadas a participar de um processo judicial, que transforma pessoas em objeto de produção da prova com a
reprodução de padrões estereotipados que refletem, entre outras, a discriminação de gênero.
Essa forma, não incomum, de agir do sistema de justiça exemplifica o que
se chama de vitimização secundária, aquela produzida pelas instituições públicas em função do tratamento desumanizado e discriminatório dado à vítima. O
fenômeno encontra o seu ápice na persecução criminal dos crimes que afrontam
a liberdade e a dignidade sexual da mulher, conforme retratado no estudo de
casos desenvolvido por Silvia Pimentel, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian (1998), mas permeia todo o sistema de repressão aos crimes
e atinge especialmente as mulheres vítimas de violência, notadamente aquela
praticada no âmbito doméstico e familiar1.
A vitimização secundária se reflete no tratamento recebido pela mulher
quando presta declarações como vítima na polícia ou em juízo, quando se submete a exames corporais necessários à prova da existência da agressão, quando
se vê confrontada com o agressor no processo em desigualdade de forças e,
muito especialmente, quando transparece dúvida acerca do exercício ou da renúncia de seus direitos enquanto vítima em função das conseqüências práticas
de sua conduta processual para o próprio agressor e para a sua família.
Apesar de ser na justiça criminal onde a discriminação atua com maior perversidade, é certo que o sistema de justiça não se livra da reprodução de papéis também em outros ramos do direito que não o criminal, principalmente nas
questões de família (PIMENTEL; DI GIORGI; PIOVESAN, 1993).
Esse cenário tem funcionado como um grande obstáculo para que as mulheres ganhem plena consciência de seus direitos e saibam como adquiri-los ou
deles fazer uso.
Ainda é muito comum nos dias atuais perceber mulheres que se paralisam
diante de situações de risco em razão de temores infundados acerca da perda de
1
338
Ver também Pimentel, Belloque e Pandjiarjian, 2004.
Da assistência judiciária – artigos 27 e 28
direitos sobre os bens da família ou sobre a guarda dos filhos. A falta de informação é um dos fatores que contribui para a paralisação provocada pelo medo,
para a omissão quando da violação de direitos.
O que se constatava constantemente é que, nos momentos em que a mulher
superava essa paralisação e procurava o sistema de justiça, via-se diante de uma
profunda incompreensão pelo tratamento recebido e pelo resultado dos processos.
O quadro formado pelo fenômeno da vitimização secundária sempre foi
um dos maiores desestímulos à notícia de crimes e à publicidade de violações a
direitos, sendo um dos elementos que transformam a violência doméstica e familiar contra a mulher num dado social oculto.
Este é o círculo vicioso que a Lei Maria da Penha pretendeu romper destacando a necessidade de que a mulher vítima de violência doméstica e familiar esteja sempre acompanhada por advogado, seja nas causas cíveis, seja nas criminais.
Importante repisar que a necessidade da vítima estar acompanhada de advogado se dá em todos os atos do processo, se justifica pelo fato de que a ausência de assistência jurídica a torna ainda mais vulnerável e dificulta sobremaneira
o exercício de seus direitos.
O descumprimento desta disposição caracteriza como irregular o ato praticado, podendo, inclusive, se ver maculado de nulidade caso venha a gerar prejuízo à situação jurídica da vítima.
Uma das principais hipóteses em que esse prejuízo pode ocorrer reside na
audiência judicial prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha, aquela especialmente designada para a formalização da renúncia ao direito de representação
ou, mais tecnicamente, para a retratação da representação feita na fase policial.
Trata-se de um dos momentos culminantes de exercício de direitos por
parte da vítima, ou de renúncia a eles, pois a ausência da representação da
ofendida, condição de procedibilidade da ação penal, implica no encerramento
da persecução penal e leva, pelo decurso do tempo, à extinção da punibilidade
do suposto agressor, ocasionando a conseqüente impossibilidade de adoção ou
manutenção de medidas de proteção à mulher, as chamadas medidas protetivas de urgência.
O ato, portanto, apenas é válido se a vítima houver sido devidamente
orientada sobre as conseqüências jurídicas e práticas de sua decisão, merecendo
anulação notadamente quando a manifestação de vontade da mulher ofendida
estiver marcada por erro quanto à compreensão de seus efeitos.
Daí decorre a imprescindibilidade da assistência jurídica nesta audiência.
O entendimento contrário faz tábula rasa do sistema de proteção e conscientização da vítima estruturado pela Lei Maria da Penha.
Assim, não é possível anuir com a interpretação de que seja dispensável
a presença de advogado justamente na audiência designada para a ratificação
ou a retratação do direito de representação contra o agressor. Comunga deste
339
Juliana Garcia Belloque
entendimento Maria Berenice Dias (2008:115), para quem “comparecendo a vítima para a audiência desacompanhada de advogado, ser-lhe-á nomeado defensor”, sendo que a nova sistemática visa a evitar pressões indevidas sobre a vítima no momento desta importante decisão e “a intenção do legislador foi cercar
a retratação da ofendida da mais ampla garantia de independência”2.
É forçoso invocar, nesta discussão, o artigo 4º da Lei Maria da Penha, o qual
prescreve que, na interpretação da lei, devem ser considerados os fins sociais a
que ela se destina e especialmente as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
A vulnerabilidade da vítima, as pressões sociais e familiares que suporta
quando vivencia esta forma de violência, a carga penosa desta situação em que
o processo penal acarretará graves conseqüências a pessoa do círculo íntimo de
convivência; são todos elementos que convergem para dificultar extremamente
a decisão da mulher de manter ou não a representação contra o agressor. Dados
que merecem, portanto, consideração na atividade hermenêutica.
Assim, conclui-se que o artigo 16 da lei em comento deve ser interpretado
de acordo com a sistemática construída pelo legislador no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, devendo conviver harmonicamente
com os artigos 4º e 27 da mesma lei, tudo em seu conjunto a impor a assistência
de advogado na audiência especialmente designada para a eventual retratação
do direito de representação pela ofendida.
A ressalva feita na norma em estudo ao artigo 19 da lei visa aclarar qualquer dúvida no sentido de que o pedido de aplicação imediata das medidas
protetivas de urgência não exige capacidade postulatória, ou seja, a própria mulher vítima de violência doméstica e familiar possui legitimidade, independentemente de estar ou não assistida por advogado, para pleitear a adoção de uma
medida de proteção.
Percebe-se, então, que a intenção do legislador foi a de garantir à mulher a
assistência de advogado enquanto ferramenta indispensável para que seja bem
informada e orientada sobre seus direitos, possibilitando que deles se apodere,
inclusive como instrumento indispensável para romper com o ciclo de violência que especialmente a vitima em função da discriminação. Não se trata aqui,
porém, de prever a atuação de advogado, com capacidade postulatória, enquanto condição sine qua non para o pleito e a adoção de medidas em favor da
mulher vítima de violência. Nestas condições, a assistência jurídica tenderia a
se transformar de facilitador em verdadeiro óbice ao acesso ao sistema de tutela
de direitos. Assim, embora seja sempre desejável a assistência jurídica técnica,
2
340
Em sentido contrário, aduz Souza (2008) ser dispensável a presença de advogado na audiência prevista pelo artigo 16, pois o ato é praticado antes do recebimento da denúncia, em fase pré-processual,
não podendo, então, ser denominado de “ato processual” ao qual faz referência o artigo 27, ora em
comento, que determina a assistência de advogado à vítima.
Da assistência judiciária – artigos 27 e 28
é importante ressaltar que a sua falta não poderá obstaculizar a adoção incontinente de providências policiais e judiciais em favor da vítima.
A discriminação contra as mulheres, reproduzida pelo sistema de justiça que
incorpora e reflete as relações sociais de poder, enquanto integrante de um corpo
social com identificações de papéis, tem sido historicamente uma barreira limitadora do acesso à justiça por parte das vítimas de violência doméstica e familiar.
A Lei Maria da Penha buscou superar este estado de coisas na distribuição
da justiça brasileira. É neste contexto que o artigo em comento deve ser compreendido. Não se está diante de uma norma procedimental, nem tampouco de imposição de atuação de advogado enquanto profissional que ostenta capacidade
postulatória indispensável para o agir em juízo. A necessidade de assistência
por parte de advogado em todos os atos cíveis e criminais é posta como garantia
de que não se fará menoscabo dos direitos da mulher nos atos processuais, bem
como de que a vítima de violência doméstica e familiar será adequadamente informada das conseqüências jurídicas de todas as suas opções, seja em relação ao
agressor, seja em relação à ela e à sua família.
De forma inovadora, o constituinte de 1988 previu a Defensoria Pública
como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado”, de forma a impor
a sua criação e organização na União e em todos os estados da federação, devendo incumbir a esta instituição pública a orientação jurídica e a defesa, em
todos os graus, dos necessitados, consoante preceitua o artigo 134 da Constituição. A grande maioria dos estados atualmente cumpre com este dever constitucional, restando a criação da Defensoria Pública apenas nos estados do Paraná
e Santa Catarina.
Regulamentando a norma constitucional, a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80/1994, com significativa alteração promovida pela LC 132/2009) definiu de modo mais preciso em seu artigo 1º: “A
Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático,
fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e
a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e
coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na
forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal”.
O artigo 4º da aludida lei, o qual trata das atribuições funcionais da Defensoria Pública, prevê, ainda, que incumbe à instituição promover a mais ampla
defesa dos direitos fundamentais dos necessitados (inc. X); exercer a defesa dos
interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e
familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial
do Estado (inc. XI); atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou
violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das
341
Juliana Garcia Belloque
vítimas (inc. XVIII); além de representar aos sistemas internacionais de proteção
dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos (inc. VI).
Percebe-se, portanto, que a opção legislativa expressa na reforma da lei nacional que organiza a Defensoria Pública no Brasil abraçou a atribuição conferida à instituição pelo artigo 28 da Lei Maria da Penha. Se já se podia depreender
do cenário constitucional e legislativo que a Defensoria também é responsável
pelo atendimento às vítimas de violações aos direitos humanos, atualmente as
normas pertinentes também são cristalinas ao afirmar que as mulheres vítimas
de violência doméstica e familiar integram este conceito e merecem o atendimento jurídico gratuito. Vê-se acima que o artigo 4º, inciso XI, da Lei Complementar nacional 80/1994 (com a alteração havida em 2009) expressa e especificamente elenca as mulheres abrangidas pela Lei Maria da Penha dentre os “grupos
sociais vulneráveis que merecem proteção especial do Estado”, devendo-se incluir aqui o sistema de justiça.
De forma complementar, cumpre salientar que o artigo 6º da Lei Maria da
Penha – acompanhando as Convenções internacionais sobre direitos das mulheres ratificadas pelo Brasil – define a violência contra a mulher como uma das
formas de violação dos direitos humanos. Essa definição, necessária na lei como
forma de sublinhar uma mudança de paradigma na visão social, cultural e jurídica do tema (a qual infelizmente não datava de longa data), de forma bastante
clara, igualmente traz a responsabilidade da Defensoria Pública, dentre outros
órgãos e instituições públicas, de atuar contra a violação aos direitos das mulheres nesta situação de violência. Basta lembrar o artigo inaugural da lei nacional
que organiza as Defensorias Públicas em todo o Brasil e incumbe à instituição a
promoção dos direitos humanos.
Destarte, o arcabouço normativo é bastante sólido nesta matéria, o que não
impediu o surgimento de dúvidas quando da edição da lei – que perduram com
menos força no presente momento, mais que ainda remanescem – quanto à assistência gratuita prestada pela Defensoria Pública a mulheres vítima de violência que disponham de algum recurso financeiro.
Para introduzir a análise do tema, é de suma relevância invocar as reflexões
desenvolvidas em parecer jurídico da lavra da professora Ada Pellegrini Grinover, encartado na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3943, que tramita no Supremo Tribunal Federal sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia e versa sobre a
legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ações coletivas3. Neste
estudo, a autora se debruçou sobre a exegese das disposições constitucionais relativas à abrangência e aos destinatários da prestação de assistência jurídica gratuita pela instituição pública, invocando o conceito de necessitados organizacionais
para a exata inteligência do disposto no artigo 134 da Constituição Federal.
3
342
Parecer disponível no sítio www.sbdp.org.br em 14.03.2011.
Da assistência judiciária – artigos 27 e 28
Segundo o parecer, o termo necessitados, utilizado pelo constituinte no aludido dispositivo – que incumbe à Defensoria Pública a sua defesa, em todos
os graus – remete precipuamente à idéia de necessidade econômica, mas a ela
não se limita. Isso porque, explica a autora, “existem os que são necessitados no
plano econômico, mas também existem os necessitados do ponto de vista organizacional. Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis”.
Acrescenta, ainda, que “da mesma maneira deve ser interpretado o inc.
LXXIV do art. 5º da CF: ‘O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita
aos que comprovarem insuficiência de recursos’. A exegese do termo constitucional não deve limitar-se aos recursos econômicos, abrangendo recursos organizacionais, culturais, sociais”.
Mesmo não sendo o atendimento jurídico às mulheres vítimas de violência
o foco do parecer, os conceitos nele lançados trazem à baila uma reflexão sobre
quais os efeitos produzidos pela escolha do legislador, estampada na Lei Complementar nacional n. 132/2009, de elencar as mulheres vitimadas pela violência
doméstica e familiar dentre os “grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”. Não residiria aí um direcionamento no sentido de que
a Defensoria Pública deve atuar na defesa destas mulheres independentemente
de sua realidade econômica? Não se olvida que a assistência jurídica gratuita
deve estar voltada muito especialmente à mulher vítima e carente de recursos
financeiros, pois duplamente vulnerável e necessitada de amparo estatal, mas a
peculiar situação de vulnerabilidade gerada pela violência doméstica e familiar
autoriza a atuação da instituição pública que visa garantir o pleno acesso à justiça em todos os casos.
A Constituição da República, ao tratar da assistência que deve ser prestada
gratuitamente pelo Estado visando a garantir a democratização do acesso à justiça, refere-se à “assistência jurídica integral” (art. 5º, inc. LXXIV, CR).
É um construído já bastante consolidado a compreensão de que a expressão assistência jurídica em muito se difere do termo assistência judiciária. Esta se
limita à defesa jurídica desenvolvida em juízo, no curso de processo judicial ou
procedimento preparatório. Aquela abrange a orientação jurídica em toda a sua
amplitude, não só a que deve ser prestada aos atores processuais, como também,
e principalmente, à população em geral, abarcando a educação em direitos, a
mediação de conflitos e o desenvolvimento de diversas atividades que visam
prevenir a violação de direitos.
A educação em direitos, atividade de disseminação do conhecimento sobre
o exercício de direitos, é sobremaneira importante na prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, que exige, acima de tudo, uma profunda alteração cultural da sociedade ainda patriarcal. Desta forma, quando a Lei Maria
da Penha garante às mulheres em situação de violência o “acesso aos serviços da
Defensoria Pública” exige que a assistência jurídica integral e gratuita seja prestada pelo Estado em toda a sua completude.
343
Juliana Garcia Belloque
Advogar em favor da mulher vitima de violência significa prestar assistência voltada especialmente para os seus interesses individuais, independentemente do interesse social na repressão ao crime espelhado na atuação do Ministério Público no processo criminal.
Isso significa que a atuação do advogado ou do defensor público na Lei
Maria da Penha deve se direcionar exclusivamente para as necessidades apresentadas pela ofendida, ouvindo-se e respeitando-se as suas manifestações de vontade, após a devida orientação sobre as conseqüências jurídicas e processuais de
seus atos. Não se pode jamais olvidar que a assistência jurídica objetiva minimizar os efeitos da vitimização secundária, bem como o menoscabo dos direitos da
mulher ofendida, muitas vezes vista como figura alheia, personagem-objeto no
processo criminal. Para tanto, o atendimento jurídico deve conferir protagonismo
aos interesses conscientemente manifestados pela mulher vítima de violência.
O dispositivo em análise expressamente garantiu o acesso à assistência jurídica gratuita não apenas na fase judicial, ou processual, da persecução penal, determinando a prestação deste serviço público também na fase policial, quando a
mulher vítima de violência doméstica e familiar noticia a agressão na Delegacia
de Policia, ensejando a instauração de inquérito policial.
A orientação jurídica neste momento é de fundamental importância, pois
é na fase policial da persecução criminal que devem ser adotadas as medidas
protetivas de urgência, ferramentas imprescindíveis na tentativa de se romper
com o ciclo de violência, evitando-se o seu agravamento. Conforme se pontuou
acima, a atuação de advogado não é indispensável para o encaminhamento dos
pedidos de aplicação das medidas protetivas ao Judiciário; contudo, a assistência jurídica voltada especialmente à defesa dos interesses da mulher neste decisivo momento é de grande relevo para que os pedidos estejam adequadamente
instruídos e reflitam com segurança as necessidades e a expressão da vontade
da ofendida.
O dispositivo em comento previu expressamente que o atendimento dado à
mulher vítima de violência doméstica e familiar deve ser específico e humanizado.
O termo específico quer designar duas características da assistência jurídica: que ela seja prestada i) de modo individualizado, garantindo-se inclusive a
intimidade dos envolvidos; e ii) por órgão que tenha a sua atuação, sempre que
possível, especialmente voltada para este tipo de caso, o que permite atingir as
tão desejadas capacitação e sensibilização para a peculiar situação da mulher
vítima de violência.
O termo humanizado como característica fundamental mínima do atendimento jurídico está posto na norma com o fito de jogar maior luz à atenção que
deve ser dada para a especial situação de vulnerabilidade em que se encontram
as mulheres vítimas desta forma de violência. Se todo o atendimento jurídico
institucionalmente prestado à população deve ser humanizado – daí se poder
344
Da assistência judiciária – artigos 27 e 28
concluir pela inutilidade da expressão, com o que se discorda – aquele referente
às mulheres em situação de violência doméstica e familiar deve estar apto a ver
com ainda maior sensibilidade, e sem estereótipos discriminatórios, as necessidades da atendida que brotam no momento da violência.
Quis o legislador conferir ênfase à necessidade de superação pelo sistema
de justiça da secular discriminação sofrida pelas mulheres também neste aparato estatal.
Por outro lado, uma terceira característica do atendimento jurídico gratuito
não expresso neste dispositivo da Lei Maria da Penha merece destaque, sem
prejuízo de outros traços disciplinados nas leis e atos normativos internos das
Defensorias Públicas.
Segundo prescreve o artigo 4º, inciso IV, da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, a instituição deve estar aparelhada para prestar atendimento
interdisciplinar aos usuários de seus serviços.
Se esta exigência é importante em todas as áreas de atuação da instituição,
ela é ainda mais marcante quando se trata de prestar assistência às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Como bem aponta a Lei Maria da Penha,
quando lida sob uma perspectiva integral, a interdisciplinariedade e a intersetorialidade no enfrentamento deste tipo de violência que afeta especialmente as mulheres são ferramentas indispensáveis para o alcance de resultados significativos.
O atendimento jurídico não produz os efeitos almejados sem estar ao lado
da assistência social e psicológica, necessárias não só para o enfrentamento global
da situação vivenciada – o que é fundamental para o empoderamento pela vítima
de todos os mecanismos que ela deve dispor para superar a violência – como
também para que a mulher possa bem compreender os institutos jurídicos aplicáveis à situação e suas conseqüências, dispondo, assim, de efetiva liberdade para
tomar as decisões que lhe cabem acerca do exercício dos direitos previstos em lei.
Referências bibliográficas
CARVALHO PINTO, Luís Francisco. Nada mais foi dito nem perguntado. São Paulo:
Editora 34, 2001.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei
11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2ª
tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
PIMENTEL, Silvia; DI GIORGI, Beatriz e PIOVESAN, Flavia. A figura/personagem
mulher em processo de família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.
________________; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore e PANDJIARJIAN,
Valéria. Estupro: crime ou cortesia?: abordagem sociojurídica de gênero. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.
345
________________; BELLOQUE, Juliana e PANDJIARJIAN, Valéria. Legítima
defesa da honra: legislação e jurisprudência na América Latina. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 50, set./out. 2004, p. 311/354.
DE SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a
mulher. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2008.
Da equipe multidisciplinar – artigos 29 a 32
Comentários: Shelma Lombardi de Kato
Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser
criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por
profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.
Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe
forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério
Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver
trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes.
Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o juiz poderá
determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de
atendimento multidisciplinar.
Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar, nos termos
da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Com a grande quantidade e diversidade das situações postas em juízo, é
exigência imprescindível, sine qua non, que os/as magistrados/as das Varas de
Violência Doméstica e os operadores de direito nelas atuantes possam contar
com a assistência de equipes de atendimento multidisciplinar, de acordo com o
volume e as necessidades do serviço; as quais serão integradas por profissionais
especializados (arts. 29 e 30).
Da assistência de profissionais experientes, nas áreas de atendimento psicossocial (psicólogas e assistentes sociais), jurídico (advogados) e de saúde (médicos ou médicas e enfermeiras) é que na prática a Lei irá fazer a diferença!
Com a cooperação, mediante avaliação técnica desses profissionais, também deverão ser editadas pelo juiz medidas urgentes de proteção em favor das
vítimas, em caráter cautelar, inclusive no plano da saúde sexual e reprodutiva,
e constritivas à liberdade do agressor, se necessárias, sem prejuízo de posterior reavaliação, consoante determinam os princípios e garantias constitucionais, penais e processuais penais da ampla defesa e do devido processo legal.
Considerada a peculiaridade da espécie, uma vez que, na maioria dos casos, o
agressor continua a morar na mesma casa ou a ter amplo acesso à mesma, são
347
Shelma Lombardi de Kato
circunstâncias indicativas de risco para vítima, familiares e/ou dependentes, de
modo a justificar a prisão cautelar: o abuso sexual infantil no âmbito familiar,
ameaças, a agressão ou agressões por consumo de álcool ou de drogas, precedentes do agressor relacionados à prática de homicídio(s) ou de atos de violência ou crueldade, sejam os motivos quais forem... além de outras em que, no caso
em exame, o juiz ou a juíza identificar o periculum libertatis (CRFB, art. 226, § 8º,
e art. 227; Lei 11.340/2006, art. 20 e parágrafo único).
Aos juízos especializados e respectivos tribunais, cumpre adotarem as providências cabíveis para que a demanda crescente dos serviços, que não se compadece com o imobilismo político e administrativo, resultante de uma estrutura
defasada, gere atrasos processuais, sobretudo em processos de réus presos. Sob
outro prisma, a liberação ou a liberdade do agressor, em detrimento da segurança
das vítimas, viola direitos humanos impostergáveis das mesmas e, se concretizados os riscos, o Poder ou órgão público deve ser responsabilizado na medida
de sua incúria. Cumpridas as reiteradas ameaças pelo agressor, com o assassinato da vítima, por meio cruel, ante a inércia do poder público, na presença dos
filhos infantes, como ocorrido nesta Capital de Mato Grosso, emerge com clareza
a responsabilidade do Estado, por configurar a espécie da verdadeira denegação de justiça! Com violação dos direitos humanos da mulher e das crianças.
Por sua relevância e amplitude de atuação, é imprescindível assegurar aos juízos da violência doméstica, para que bem cumpram seus objetivos, a assistência de
equipes multidisciplinares, as quais, longe de serem facultativas como se pode imaginar, são necessidade que se impõe, devendo ser prioridade do Poder Judiciário!
Razões óbvias evidenciam que nenhum juiz, por mais dedicado que o seja,
teria disponibilidade de tempo ou mesmo conhecimentos técnicos especializados, de modo a poder preterir os serviços profissionais nas áreas da saúde,
substituindo médicas(os), enfermeiras, de preferência a enfermeiros, além de
psicólogas e assistentes sociais. Sem embargo, tais serviços são obviamente indispensáveis para a correta aplicação da Lei, sob pena de total frustração dos
objetivos visados pelo legislador. Daí poder afirmar-se que a atuação desses profissionais, junto às varas especializadas, é condição sine qua non para o normal
funcionamento das mesmas. Pondo fim à solidão muitas vezes dramática do
julgador, provendo-o com informações pessoais, laudos e pareceres, e principalmente através do atendimento e acompanhamento adequados, as equipes técnicas irão respaldar inúmeras medidas assistenciais e de proteção em benefício
das vítimas, de seus filhos e familiares, bem como direcioná-las ao tratamento
dos agressores – v. art. 30.
Ponto alto da Lei é o de ter assegurado atendimento holístico às vítimas de
violência doméstica, sem o que não se poderia cogitar de “vara” ou “juizado”
especializado. Nessa perspectiva, os profissionais designados ou contratados
para os serviços e atendimentos nela referidos devem ser pessoas sensíveis,
348
Da equipe multidisciplinar – artigos 29 a 32
solidárias, dotadas de espírito público, “vocacionadas” para a respectiva missão; fazendo-se oportuno enfatizar que os laudos técnicos, embora não vinculantes, servem para orientar as decisões judiciais.
Impende acrescentar que policiais civis e militares exercem papel relevante
no acompanhamento e na cobertura de diligências e para tarefas “delicadas”
que envolvem situação de risco, como a de lidar com doentes mentais, alcoólatras, “fronteiriços” ou a de desenvolver atividade junto a usuários de drogas,
como costuma ponderar a Dra. Adriana Coningham, juíza da 2ª Vara da Violência Doméstica de Cuiabá-MT.
De qualquer modo e em quaisquer circunstâncias, o combate à violência
doméstica só será eficaz se implementadas políticas públicas direcionadas para
tal propósito, como quer o art. 8º da Lei, com amplo envolvimento da sociedade
organizada, da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios.
Nesse mister, especialmente três itens do citado artigo mostram-se de magna
importância: o de nº I, que prevê a integração operacional do Poder Judiciário,
do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública,
assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; o de nº II, concernente
à promoção de estudos, pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes,
com a perspectiva de gênero etc.; e o de nº VII, que diz respeito à capacitação
permanente de todos os agentes envolvidos no combate à violência doméstica.
Com efeito, ainda que de passagem, por indispensável, é preciso lembrar que
as “equipes técnicas” só poderão desempenhar-se com êxito de seus relevantes
encargos legais se os sistemas, público e privado, nas diversas áreas, estiverem
disponíveis para os atendimentos necessários. Ademais, cada um de seus membros deverá estar “razoavelmente bem preparado” para as respectivas tarefas; devendo os juízos e tribunais competentes propiciar-lhes permanente capacitação.
De um modo geral, faltam no país casas de amparo, policlínicas, centros
de reabilitação para alcoólatras e dependentes de drogas, cursos de formação
profissional e outros recursos que fazem parte do amplo elenco de atendimentos
emergenciais no combate à violência doméstica preconizados pela Lei. É preciso
construir a rede de proteção, de maneira consistente e progressiva, o que demanda ampla articulação, envolvendo instituições públicas e privadas. E, numa
perspectiva mais ampla e abrangente, é sempre bom lembrar que não se erradica a violência doméstica sem encontrarem-se alternativas para a superação
das causas econômicas e sociais que em grande parte estão na sua origem.
A diligente Juíza Adriana Conninghan, da 2ª Vara da Violência Doméstica
de Cuiabá, frequentemente ressalta a necessidade de terapia específica para os
agressores alcoólatras, uma vez que os mesmos, habitualmente, recusam-se a
frequentar as policlínicas. Com idêntica preocupação, exorta para a premência
da ampliação de tratamento aos dependentes químicos, de campanhas e ações
preventivas dada a grande quantidade de agressões decorrentes do uso de
349
Shelma Lombardi de Kato
substâncias entorpecentes colocando em risco constante a vida da vítima e de
toda a sua família. Aponta a magistrada, a ausência de dados estatísticos integrados, ou seja, a falta de estatísticas confiáveis; para aferir resultados obtidos, até o
momento, para a aplicação da Lei; bem como para analisar as falhas e redefinir estratégias
para a correção das irregularidades.
Razão assiste à d. Juíza, com dados desencontrados, estamos caminhando
no escuro! É preciso conhecer as falhas para, corrigindo as irregularidades, redefinir estratégias!
Estudos, pesquisas, estatísticas e outras fontes de informações concernentes ao fenômeno da violência em geral, e da violência intrafamiliar em particular,
são de notória relevância. Não se pode dar combate eficaz a nenhum mal, muito
menos aos males coletivos ou sociais, sem conhecermos em profundidade as diversas causas que estão na sua origem ou etiologia, a frequência com que ocorrem
etc... É preciso também quantificar o custo social da violência doméstica, a fim
de encorajar os poderes públicos e a população em geral a darem real combate
a costumes e práticas perversos que ainda têm ampla guarida em nossos meios
sociais, com imensos prejuízos para as vítimas e para a comunidade nacional.1
Sob outro prisma, a capacitação permanente de todos os agentes, civis e
militares, e de outros profissionais envolvidos na magna tarefa, em programas
e ações de erradicação da violência doméstica, é condição essencial e exigência
inafastável para o seu eficaz desempenho. “Capacitar é preciso!” Nesse sentido
foi implementado no Brasil, através de convênio firmado pela Associação Nacional de Magistradas (ANM) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), pioneiramente, na década de 90, o Projeto JEP (Jurisprudence of Equality
Project), visando à capacitação de magistrados para a aplicação das convenções e
tratados internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres. O “Projeto” foi o instrumento precursor da Lei Maria da Penha; por preconizar o combate à discriminação de gênero como violação dos direitos humanos das mulheres, com fulcro na Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
as Mulheres – Convenção de Belém do Pará (1994) e na Convenção CEDAW,
ou Convenção para Eliminar todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU (1979). A Suprema Corte dos EEUU da América deu abrigo ao
primeiro curso de capacitação das brasileiras que dele participaram. A Juíza Arline Pacht, de Washington, DC, fundadora da IAWJ (International Association of
Women Judges), e a Profa. Anne Goldstein, PhD da Universidade de Georgetown,
criaram e modularam o JEP,2 no qual atuaram como capacitadoras, feministas
1
Vários Estados americanos divulgam dados e informações sobre a violência doméstica, número de
ocorrências, perfil dos agressores e das vítimas, tipos de agressão, custo econômico e social das
agressões em geral, e com mortes etc...
2
De 28 de outubro de 1997 a 06 de março de 2002, um total de 1.277 pessoas, dentre juízes, operadores
de Direito, universitários e outros, participou do Projeto JEP – v. Os Rumos do Direito Internacional dos
350
Da equipe multidisciplinar – artigos 29 a 32
ilustres, a exemplo da Profa. Silvia Pimentel, atualmente presidindo o Comitê
CEDAW da ONU, Leila Linhares Barsted, da CEPIA, RJ, além de outras figuras
exponenciais do Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo participado
do programa o então Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
hoje integrante da Corte Internacional de Justiça (Haia), e a Ministra Ellen Gracie
Northfleet, do STF.
O Direito é dinâmico como os fatos sociais que as leis buscam regulamentar em consonância com os avanços da ciência em benefício dos destinatários da
norma jurídica a quem visa proteger e em harmonia com os interesses sociais.
Não obstante, em tema de direitos sexuais e reprodutivos, prevalece a postura negativista que insiste em conduzir para a seara religiosa questões que afetam a dignidade da mulher, sua saúde física e mental, com irreparáveis consequências para as vítimas; quer em caso de interrupção da gravidez resultante
de estupro, quer em situação de risco para a sua saúde (física ou mental); quer
em razão de anomalias fetais, plenamente detectáveis, que inviabilizam a vida
normal extrauterina. Posturas radicais, em nome de princípios religiosos, ferem
de morte o respeito ao humanismo do direito e as garantias constitucionais das
mulheres à dignidade pessoal! Sob tal enfoque, gerava ansiedade, desconforto
moral e angústia o sobrestamento da decisão da ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com fulcro no § 1º do art. 102 da CRFB),
pendente de julgamento na Suprema Corte do país, a qual, felizmente, retoma o
seu curso, sob a relatoria sábia e segura do Ministro Marco Aurélio.
De magna relevância é o programa de assistência integral às vítimas de
violência sexual, para o qual deverá estar preparada a equipe interdisciplinar. Desde o atendimento imediato, o acompanhamento especializado, com os
exames necessários para a constatação de gravidez resultante dessa violência,
contracepção de emergência, profilaxia das DST’s, tratamentos; atendimento a
traumatismos, aspectos psicológicos da violência sexual; rotina de atendimento
emergencial pelos profissionais da saúde.
Dentre outras hipóteses, ao abrigo do art. 31, inclui-se também a necessidade de perícia para constatação e avaliação da prática de violência patrimonial, quase sempre agravada por ofensas morais simultâneas. A experiência de
décadas no exercício da função judicante alertou-me para a ocorrência de fraudes, vendas simuladas de bens, “desaparecimento” de herança, supostos prejuízos nos “negócios” comuns do casal, em prejuízo da mulher; via de regra
inexperiente e de boa-fé, com a qualificação “do lar”. Situações existem que, por
sua complexidade, demandam a avaliação de “experts”; o que se fará com a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar por determinação da juíza
ou do juiz do feito.
Direitos Humanos; “Liber Amicorum Cançado Trindade” – Tomo V; Sergio Antonio Fabris Editor.
351
Shelma Lombardi de Kato
Um grande magistrado, figura de proa da magistratura nacional, José Néri
da Silveira, que serviu à Justiça com dedicação exemplar, tendo presidido com
invulgar competência o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal, costumava evocar o art. 99, §§ 1º e 2º, incisos I e II, da CRFB, com a alegria
dos justos e a emoção cívica de quem vislumbrava na autonomia financeira do
Poder Judiciário a solução para muitos de seus inúmeros problemas!
Entretanto, exortava o Ministro Néri: os recursos materiais não suprem por
si sós as necessidades do Judiciário, que dependem da nossa fidelidade à vocação de servirmos à causa da Justiça! Os meios materiais e a proteção da Lei são
apenas ferramentas propícias para a boa prestação jurisdicional, incluídos os
serviços públicos que lhe são concernentes!
Feita a observação, por oportuna e salutar, não há como desconsiderar o
dever constitucional do Estado brasileiro de coibir a violência no âmbito das famílias, dar especial proteção às crianças e aos adolescentes e de cumprir acordos
e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos em geral; inclusive os das mulheres, a teor da CRFB, art. 5º, § 2º e §3º, em sintonia com a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
e com a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
como fontes convergentes, com a finalidade de assegurar a proteção efetiva
dos mesmos direitos.
A teor do art. 32 da Lei, em sintonia com o art. 99, §§1º e 2º, incisos I e II,
da CRFB, o Poder Judiciário, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos
Territórios, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de
atendimento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A melhor hermenêutica para os citados dispositivos é no sentido de que a expressão poderá deve ser interpretada como imposição constitucional e legal de
se respeitar a autonomia do Poder Judiciário em face dos outros Poderes. Em
outras palavras, ao Poder Judiciário cumpre o dever de implementar as medidas
legais em questão, porque lhes são pertinentes.
Outra medida auxiliar importante é a criação de fundos, dentro do princípio federativo e da autonomia dos Estados. Uma vez exercitada a opção, deverá constar da respectiva lei que as receitas deverão ser aplicadas no custeio, no
investimento, no pagamento dos profissionais credenciados e nas atividades
de apoio e qualificação do pessoal lotado nas respectivas Varas Especializadas.
Restam, ainda, como fontes de receita, as seguintes possibilidades:
a. parcela mínima da arrecadação das taxas dos foros judicial e extrajudicial;
b. parcela mínima das receitas provenientes das custas judiciais;
c. arrecadação dos valores das transações penais realizadas nos Juizados
Especiais e na Justiça Comum;
d. receitas decorrentes das aplicações das penas restritivas de direito;
352
Da equipe multidisciplinar – artigos 29 a 32
e. parcelas das receitas originadas pela movimentação dos ativos financeiros da conta única de depósitos judiciais, onde houver; onde não
existir, criar o instrumento;
f. recursos transferidos por entidades públicas;
g. auxílios, doações, subvenções, receitas de convênios firmados (de origem nacional ou estrangeira, obedecidas as regras do STN e do BACEN;
h. finanças prestadas na fase do inquérito ou da ação penal.
Sistemas de Remuneração dos Profissionais:
a. por contratação temporária;
b. por credenciamento.
No caso de contratação temporária os membros da equipe são contratados
pelo Tribunal de Justiça, como qualquer trabalhador. Têm direito a férias, 13º
salário etc.
Já o sistema de credenciamento permite a redução de gastos com pessoal. A
possibilidade de remuneração de profissionais credenciados que prestam serviços a órgãos públicos, com caráter indenizatório, a cada ato; enseja o estipêndio
por produtividade. O modelo permite a flexibilização do número de profissionais, de acordo com as necessidades do Judiciário local, considerados a densidade demográfica, o volume de processos, entre outros dados importantes.
No Estado de Mato Grosso, o sistema já estava em vigência para os juízes leigos e conciliadores, de acordo com a Lei Complementar 270/2007, sendo
certo que os pagamentos são suportados com as dotações de custeio; sem impacto nas limitações de gastos com o pessoal (LRF), dado o caráter indenizatório dos valores.
A par com as mencionadas vantagens, de acordo com o Dr. Marcelo de
Souza Barros: “a intervenção dos Conselhos regionais nos convênios para o credenciamento dos profissionais agrega segurança na habilitação e na elaboração
da tabela de honorários”.3
Resta apenas ponderar que, apesar da conveniência do sistema do ponto
de vista da administração pública, inclusive por ser menos oneroso, é preciso
estabelecer critérios justos, de modo a assegurar remuneração condigna a esses
profissionais, lembrando-se da relevância do seu trabalho para a correta administração de justiça; de quanto se exige das pessoas que o exercem, as quais não
fazem jus a férias, nem ao 13º salário; e, em muitos casos, são expostas a riscos,
devendo, portanto, serem bem e pontualmente remuneradas, para que se mantenha a qualidade dos serviços!
3
BARROS, Marcelo de Souza Barros. A viabilidade da instalação e funcionamento das varas de violência
doméstica e familiar contra a mulher. IBCCRIM, 29/01/2011.
353
Shelma Lombardi de Kato
Espaço físico adequado, infraestrutura mínima de trabalho, além de meio
de transporte com motorista para os serviços que dependerem de tais recursos,
são necessidades impostergáveis!
Cuida-se do desempenho de missões complexas e diferenciadas que dependem de recursos materiais e humanos, como exigência mínima para o seu
regular cumprimento; plenamente factíveis, ao alcance dos Tribunais. Basta
que seus dirigentes, com espírito cívico e zelo irreprochável que os conduziram
ao comando do Poder, entendam a importância da proteção legal às vítimas!
Ao proverem as Varas ou Juízos especializados dos meios necessários, estarão
igualmente protegendo os direitos humanos das mulheres, das crianças, dos
idosos que vivem no seio da família; o próprio agressor em algumas circunstâncias, além da sociedade como um todo!
À gravidade e complexidade dos casos que, às centenas, aportam a juízo,
via de regra, soma-se o fato de que os mesmos nunca envolvem apenas as mulheres, principais destinatárias das agressões. Embora essas sejam o alvo principal da fúria ensandecida que leva o companheiro a cometer de ofensas morais
a assassinatos com requinte de crueldade, os crimes mais bárbaros são muitas
vezes praticados na presença dos filhos infantes. Tão amarga experiência causa-lhes imponderáveis prejuízos pessoais, além de criar sérios riscos sociais, que
os agentes públicos, e em especial os juízes, os promotores, os advogados e os
defensores públicos, não podem desconsiderar!
Ao longo das duas últimas décadas, a repercussão negativa da violência
intrafamiliar contra a mulher sobre o desenvolvimento econômico e social vem
sendo monitorada na América Latina, com registro de imensos prejuízos para
os respectivos países. A falta ao trabalho das mães provedoras, por motivos de
lesões corporais, temporárias ou permanentes, as frequentes agressões, as mortes, por maridos ou companheiros, além de graves problemas sociais, chegam a
impactar negativamente a economia dos países, conforme pesquisas e avaliação
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A par com isso, as crianças,
vítimas diretas ou indiretas da violência doméstica, ficam expostas aos azares do
acaso, às influências da rua, onde buscam refúgio e “proteção”! Tais circunstâncias por si sós demandam dos Poderes Públicos ações coordenadas e tempestivas, sob pena de grave omissão, com inegáveis riscos em detrimento dos direitos
de crianças e adolescentes e dos interesses maiores da nação. Em tal contexto, de
proteção aos direitos humanos das mulheres e das crianças, há de ser enfrentada
a questão da violência doméstica, com ampla utilização dos instrumentos jurídicos4 colocados pelo legislador em favor das vítimas.
Entretanto, já passado quase um lustro da vigência da Lei, as inúmeras
dificuldades para a sua implementação bem refletem a postura histórica dos
4
354
No plano interno: CRFB, art. 1º, III; art. 4º, II; art. 5º, I, LXXVII, §§1º, 2º e 3º; art. 226, § 8º, e 227, § 1º.
Lei 11.340, de 07/08/2006.
Da equipe multidisciplinar – artigos 29 a 32
agentes públicos que, minimizando o potencial ofensivo da criminalidade “intramuros”, banalizam as gravíssimas violações aos direitos humanos das vítimas. Desconsiderando-as, a despeito da repercussão social das mesmas, deixam
de contribuir para a construção de uma sociedade mais feliz porque menos violenta... ou menos violenta porque mais feliz! É sabido que não se mudam costumes e práticas sociais da noite para o dia! Razões históricas e culturais contribuíram durante séculos para a impudica discriminação de gênero, oficializada
pela legislação pátria e consagrada pela jurisprudência dos tribunais em tempos
recentes. Mulheres, indígenas e menores relativamente incapazes, legalmente
equiparados, vivenciaram tal condição, como pessoas necessariamente “assistidas” por seus representantes legais, a quem a sociedade como um todo ignorava... Ademais, as vítimas, entregues à própria sorte, pouca ou nenhuma consciência tinham de seus direitos! Se o tinham, por falta de “aliados” na causa, ao
preferirem o silêncio, deles “sucumbiram”!
Nesse cenário jurídico-social, o enfrentamento da violência contra a mulher,
ou violência de gênero, não é tarefa simples! Os padrões culturais machistas nos
quais prevalecem as relações de subordinação e dominação ainda fazem-se presentes na sociedade brasileira, embora repudiados pela vigente Carta Magna da
República e pelos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos
das mulheres e das meninas,5 incorporados ao direito pátrio. Maus-tratos,
humilhações, agressões físicas, sexuais e psicológicas, bem como diversas e variadas formas de violência patrimonial, constantes do rol das violações previstas
na Lei Maria da Penha, desventuradamente, ainda fazem parte do cotidiano de
milhões de mulheres no país! Por outro lado, a ambiguidade de sentimentos por
parte das mesmas, a preocupação com os filhos, o medo de não poder sustentá-los, o temor pelas ameaças sofridas e tantos outros receios tornam muitas vezes
dramático o rompimento da união, com a responsabilização do companheiro
agressor! Para o juiz ou a juíza que preside o feito, trata-se de enfrentar e solucionar situações graves ou gravíssimas com a maior brevidade possível, cumprindo-lhe editar medidas urgentes em favor das vítimas, dentre as quais a de
decretar eventualmente a prisão preventiva do marido ou companheiro agressor, se necessária; de adotar providências nas áreas da segurança pessoal e da
saúde física e mental da mulher e dos filhos, em conformidade com a gravidade
ou pelo menos com a complexidade do caso; e ainda de encaminhar para abrigos
as vítimas de violência em situação de risco; além de determinar o tratamento
dos agressores alcoólatras e/ou drogaditos etc.
5
No plano internacional: os acordos e as convenções internacionais firmados pelo Brasil no âmbito
da ONU e da OEA direcionados à proteção dos direitos humanos das mulheres e das meninas, a
Declaração de Viena, o Pacto de San José da Costa Rica etc.
355
Das disposições transitórias
e finais – artigos 33 a 40
Comentários: Westei Conde y Martin Junior
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo
e o julgamento das causas referidas no caput.
Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias necessárias e do serviço de assistência judiciária.
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover,
no limite das respectivas competências:
I – centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos
dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II – casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência
doméstica e familiar;
III – delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar;
IV – programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;
V – centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a adaptação de
seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios desta Lei.
Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser
exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área,
regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil.
Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando
entender que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da
demanda coletiva.
357
Westei Conde y Martin Junior
Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher serão incluídas
nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o
sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres.
Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal
poderão remeter suas informações criminais para a base de dados do Ministério da Justiça.
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer
dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das
medidas estabelecidas nesta Lei.
Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos princípios por
ela adotados.
O dispositivo em comento fixa a competência cível e criminal nas varas
criminais na ausência de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher (JVDFM’s) instalados. Pretendeu o legislador ao estabelecer esta norma
transitória, atendendo-se em parte à demanda dos movimentos de mulheres e
feministas, impedir a reedição do “modelo anterior”, vale dizer, dos Juizados
Especiais Criminais (JECRIM’s) criados pela Lei nº 9.099/95.
Como é sabido, a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº
9.099/95 contribuiu gravemente para o fenômeno da violência contra a mulher
com a adoção de práticas banalizadoras, que só reforçaram o sentimento social
de impunidade em relação à violência perpetrada contras as mulheres no contexto doméstico-familiar.
A mudança de paradigma trazida pela Lei n°11.340/06, popularmente conhecida por “Lei Maria da Penha” (LMP), abandona a noção de menor potencial
ofensivo da lei anterior e reconhece a violência doméstica e familiar contra a
mulher como uma forma de violação de direitos humanos (art.6º). O desejo de
ruptura radical com o “modelo anterior” é manifestamente expresso no art.41,
ao dispor da impossibilidade de aplicação da referida lei aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da
pena prevista.
No processo de implementação da LMP e, por conseguinte, dos JVDFM’s
não se trata apenas de, estrategicamente, retirar da alçada dos JECRIM’s o processamento/julgamento de grande parte dos crimes praticados no âmbito doméstico
e familiar e decorrentes das relações íntimas de afeto, atribuindo de forma transitória distintas competências às varas criminais. Mas, sobretudo, de dar tratamento jurídico (penal e processual penal) a questão sem descuidar da dimensão
de direitos humanos que representa esta particular forma de violência.
358
Das disposições transitórias e finais – artigos 33 a 40
Faz-se necessário negar a possibilidade de se cunhar a violência contra a
mulher como de menor potencial ofensivo e reflexamente impedir/impossibilitar a aplicação da Lei nº 9.099/95, pois seus institutos despenalizadores empregados à violência doméstica e familiar contra a mulher, como acima assinalado,
contribuíram para o agravamento da violação dos direitos humanos das mulheres, aprofundaram a banalização da violência contra a mulher e aumentaram o
sentimento de impunidade presente na sociedade brasileira.
Embora inicialmente interessante a alternativa encontrada de se atribuir,
em caráter provisório, a responsabilidade às varas criminais, o ritmo lento na
implantação dos JVDFM’s pelo Brasil afora tem-se mostrado um óbice à efetiva
implementação da LMP e dado lugar ao ressurgimento, contra legem, de “soluções via Lei 9.099/95” nas próprias varas criminais1.
Dessa forma, o número pouco expressivo de JVDFM em funcionamento no
Brasil2, aliado ao grande volume de procedimentos resultantes da violência doméstica e familiar em trâmite nas varas criminais (com considerável quantidade
de medidas protetivas de urgência) e ao acervo constituído dos demais processos das citadas varas, ao invés de servir de estímulo e acelerar a implantação dos
JVDFM, acabam por dificultar a efetividade da Lei 11.340/06.
Diversas publicações comentadas da Lei nº 11.340/06 apontam a inconveniência da competência cumulativa. Alguns doutrinadores sustentam, com base
no art.125, §1º da CF, a inconstitucionalidade do art.33 da LMP, por dispor de
matéria de organização judiciária, cuja competência legislativa é estadual. Por
outro lado, outros argumentam inexistir a alegada inconstitucionalidade, pois
o art. 22 da CF define que é da competência privativa da União legislar sobre
direito civil, penal e processual, não se cogitando, portanto, de invasão de competência atribuída aos Estados3.
Encontra-se pendente de apreciação pelo STF a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº19, proposta pelo então Presidente da República Luis
Inácio da Silva, que sustenta com acerto, dentre outros dispositivos da LMP, a
constitucionalidade do Art.334.
1
Com respaldo inclusive em decisões claudicantes do STJ, que ora negam a aplicação da Lei nº
9.099/95 no âmbito da violência doméstica e familiar, ora afirmam esta possibilidade. Neste sentido,
ver decisões da 6ª Turma, disponíveis no site www.stj.jus.br.
2
Segundo matéria jornalística veiculada pelo UOL, de 26.07.2010, “há 47 juizados em todo o país, mas
até o fim deste ano 51 devem estar em funcionamento”. Disponível em http://ultimainstancia.uol.
com.br/conteudo/noticia/. Acesso em 23.02.2011. Observe-se que estão instalados basicamente nas
capitais brasileiras. Assim, expressivo número de Varas Criminais segue cumulando competências
cíveis e criminais.
3
Ver críticas à competência cumulativa e a discussão acerca da (in) constitucionalidade do Art.33 em:
Lima Filho (2007; 89); Souza e Kumpel (2008: 124-126); Dias (2007: 148-153); Hermann (2007: 215218); Cunha e Pinto (2008: 174-175).
4
Texto disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADCN&
s1=mariadapenha&processo=19. Acesso em 15/02/2011.
359
Westei Conde y Martin Junior
Cabe ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atuar na perspectiva de não só
melhor estruturar os poucos JVDFM’s existentes pelo Brasil, como fomentar os
Tribunais de Justiça para que ampliem, de forma significativa, a instalação e o
funcionamento efetivos de ditos Juizados. Nesse sentido, editou a RECOMENDAÇÃO nº 9, de 08 de março de 20075 e mais recentemente publicou o “Manual
de Rotinas e Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher”6.
Em que pese as iniciativas do CNJ, os esforços até aqui empreendidos para a
implementação da LMP têm sido insuficientes e marcados por dubiedade. Poderia, no âmbito de sua competência (art.103-B, §4º CF), ter fixado prazo aos Tribunais de Justiça para instalação, ampliação e funcionamento efetivo dos JVDFM’s.
Igualmente, em seu “Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher” , poderia ter desconsiderado a possibilidade da “suspensão condicional do processo” no âmbito da LMP, bem como
a obrigatoriedade de realização da audiência prevista no Art.16 7.
Na esteira da crítica da competência cumulativa transitória das varas criminais, parte da doutrina rebela-se também contra a previsão legal do direito
de preferência, no âmbito dessas varas, para o processamento e julgamento das
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Argumenta-se que a apreciação de prisões em flagrante, de habeas corpus e o julgamento das ações penais, cujos réus encontram-se presos, impõem prioridade
à manifestação do Poder Judiciário.
Pelas razões acima expostas, o tratamento preferencial previsto em lei, por
parte das varas criminais, não tem sido assegurado espontaneamente, como medida rotineira. Cabe à defesa das mulheres, nos casos concretos, invocá-lo.
O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher impõe
ao poder público a formulação e a implementação das correspondentes políticas
públicas. Além do Poder Judiciário, não estão isentas dessa responsabilidade as
instituições que atuam no Sistema de Justiça, notadamente o Ministério Público
e a Defensoria Pública.
Respeitadas as respectivas autonomias funcionais e administrativas, previstas constitucionalmente (art.127, §2º e art.134 §2º da CF), tanto o Ministério
Público quanto a Defensoria Pública devem dar consecução à diretriz inserta no
art.8º, inciso I da LMP, integrando-se operacionalmente através da criação de
5
RECOMENDAÇÃO Nº 9, de 08 de março de 2007: “Recomenda aos Tribunais de Justiça a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e adoção de outras medidas, previstas na Lei 11.340, de 09.08.2006, tendentes à implementação das políticas públicas, que visem a
garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares”.
6
Ambos documentos encontram-se disponíveis no site www.cnj.jus.br. Acesso em 22.02.2011.
7
Ver o texto da Recomendação nº 9/2007 e as páginas 28/29 e 39/ 42 do “Manual de Rotinas e
Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”.
360
Das disposições transitórias e finais – artigos 33 a 40
cargos de Promotores de Justiça e Defensores Públicos para atuarem junto aos
JVDFM. Para tal, devem estruturar Promotorias de Justiça e Defensorias Públicas especializadas que atuem, com a máxima eficiência, nas situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, consoante disposto nos arts. 25/28 da
Lei nº11.340/06 .
A execução das políticas públicas para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher deve ocorrer, de forma integrada e articulada,
nas distintas esferas governamentais, com a criação de serviços especializados e
o estabelecimento de rede de atendimento às mulheres.
Os serviços descritos nos incisos I, II, III e V são definidos na Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres8 nos seguintes termos:
– Centros de Referência: Os Centros de Referência são espaços de acolhimento/
atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à
mulher em situação de violência, que devem proporcionar o atendimento e
o acolhimento necessários à superação de situação de violência, contribuindo
para o fortalecimento da mulher e o resgate de sua cidadania. Os Centros de
Referência devem, além de prestar o acolhimento e atendimento da mulher em
situação de violência, monitorar e acompanhar as ações desenvolvidas pelas
instituições que compõe a Rede.
– Casas-Abrigo: As Casas-Abrigo são locais seguros que oferecem moradia
protegida e atendimento integral a mulheres em risco de vida iminente em
razão da violência doméstica. É um serviço de caráter sigiloso e temporário,
no qual as usuárias permanecem por um período determinado, durante o qual
deverão reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas.
– Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher: As DEAMs são unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação
de violência. Com a promulgação da Lei Maria da Penha, as DEAMs passam a
desempenhar novas funções que incluem, por exemplo, a expedição de medidas protetivas de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas.
– Defensorias da Mulher: As Defensorias da Mulher têm a finalidade de dar
assistência jurídica, orientar e encaminhar as mulheres em situação de violência. É órgão do Estado, responsável pela defesa das cidadãs que não possuem
condições econômicas de ter advogado contratado por seus próprios meios.
– Instituto Médico Legal: O IML desempenha um papel importante no atendimento à mulher em situação de violência, principalmente as vítimas de
8
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres foi estruturada a partir do
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), elaborado com base I Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres, realizada em 2004 pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e
pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Tem por finalidade estabelecer conceitos, princípios,
diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra as mulheres, assim como de assistência
e garantia de direitos às mulheres em situação de violência, conforme normas e instrumentos internacionais de direitos humanos e legislação nacional. A íntegra do documento está disponível no site
http://www.sepm.gov.br. Acesso em 25.02.2011.
361
Westei Conde y Martin Junior
violência física e sexual. Sua função é decisiva na coleta de provas que serão
necessárias ao processo judicial e condenação do agressor.
– Centro de Educação e Reabilitação do Agressor: Constituem espaços de atendimento e acompanhamento de homens autores de violência, encaminhados pelos
Juizados Especiais de Violência Doméstica/Familiar contra a Mulher e demais
juizados/varas. Os Centros de Educação e Reabilitação do Agressor visam à reeducação dos homens autores de violência e à construção de novas masculinidades, a partir do conceito de gênero e de uma abordagem responsabilizante.
No conjunto de ações articuladas integrantes das políticas públicas que coíbam a violência doméstica e familiar (art.8º), os programas e as campanhas de
enfrentamento dessa particular forma de violência (inciso IV) também são instrumentos importantes a serem desenvolvidos pelos governos. Tais instrumentos possibilitam a modificação de padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres e auxiliam no combate a preconceitos e às visões estereotipadas,
presentes na sociedade, que legitimam a violência contra a mulher.
Sem desconsiderar a especificidade que envolve a violência de gênero, o
legislador prevê a possibilidade de criação de centros de educação e de reabilitação para os agressores, na expectativa de se evitar agressões futuras, reincidências criminais e, fundamentalmente, permitir mudanças de comportamento do
autor da agressão, de maneira a abandonar o uso da violência como forma de
resolução de conflitos, particularmente no contexto doméstico-familiar.
A rigor, todo e qualquer criminoso, dentro do pacto societário brasileiro,
deve ser (re)educado, (res)socializado. Assim, o agressor de que trata a LMP carece de idêntica atenção. Todavia, é preciso muito cuidado quando da concepção
desses espaços de “reabilitação”, pois eventual “patologização” do agressor desqualifica o caráter criminoso de sua conduta, “desterritorializando-a” do crime
para doença.
Ademais, não se pode perder de vista — notadamente no contexto de alegada escassez de recursos públicos por parte dos governos — que, na esmagadora maioria dos estados e municípios brasileiros, inexiste ou há insuficiência
de oferta de serviços especializados às mulheres em situação de violência doméstica familiar. Portanto, a criação dos centros para os agressores deve estar
contrabalançada na pauta de prioridades a serem implementadas.
O dimensionamento da violência doméstica e familiar contra a mulher
como uma das formas de violação dos direitos humanos (art.6º) exige inicialmente do Estado — em todas as esferas de governo, respeitadas suas autonomias — a criação de mecanismos que a coíbam, conforme expressa determinação constitucional (§8º do art. 226).
Desse modo, as estruturas anteriormente desenhadas (órgãos e programas)
para prestarem assistência às mulheres em situação de violência doméstica e
familiar carecem de adaptação às diretrizes e aos princípios norteadores da Lei
362
Das disposições transitórias e finais – artigos 33 a 40
nº11. 340/06. Cabe, inclusive, diante de eventual inércia dos entes federativos, a
adoção de providências por parte dos legitimados à defesa dos interesses e direitos transindividuais.
A natureza dos conflitos interpessoais no âmbito doméstico, familiar e afetivo, configuradora de específica forma de violência contra a mulher (art.5º) não
retira a dimensão pública do fenômeno em questão. Ao contrário, revela a magnitude do problema e aponta para a necessidade do poder público desenvolver,
à luz do disposto no §1º do rt. 3º, políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres, resguardando-as de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Entrementes o poder público, com muita frequência, não se desincumbe
da sua obrigação de desenvolver políticas públicas (materializadas em ações,
programas e serviços) e deixa de assegurar efetiva assistência às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar, cabendo ao Ministério Público e demais legitimados — através da propositura de ações civis públicas — buscarem
prestação jurisdicional que concretizem ditas políticas.
O presente dispositivo legal prevê expressamente a legitimidade concorrente entre o Ministério Público e associação devidamente constituída, há mais
de ano, que tenha dentre suas finalidades institucionais a promoção e defesa dos
direitos humanos das mulheres. Entretanto, vale destacar que com a edição da
Lei nº 11.448/20079, posterior à LMP, também a Defensoria Pública passou a ter
legitimidade para propor ação civil pública.
O Parágrafo Único do dispositivo sob comento autoriza o juiz, em caráter
excepcional, a dispensar a associação do requisito da pré-constituição quando
verificar a inexistência de outra entidade com representatividade adequada para
propositura da demanda coletiva.
À luz do disposto no art.8º, II da legislação em exame, figura dentre as diretrizes da política pública de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher não só a promoção de estudos, pesquisas e outras informações relevantes,
mas também a realização de estatísticas com a perspectiva de gênero e de raça/
etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à frequência da referida violência.
Pretende-se, com a participação dos órgãos integrantes do Sistema de Justiça e Segurança dos Estados e do Distrito Federal, alimentar com as informações
criminais geradas em cada unidade da federação o sistema nacional de dados e
informações relativo às mulheres. Os dados remetidos, uma vez sistematizados
e unificados nacionalmente, devem ser transformados em informação, permitindo, a partir de avaliações periódicas, a (re) orientação das medidas preventivas e repressivas desenvolvidas.
9
Ver Lei nº 11.448, de 15 de janeiro de 2007, cuja ementa dispõe: “Altera o art. 5o da Lei no 7.347, de 24
de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, legitimando para sua propositura a Defensoria
Pública”.
363
Westei Conde y Martin Junior
Convém assinalar que o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres10, lançado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres em 2007,
prevê, dentre outras ações relativas à implementação da LMP, a construção do
Sistema Nacional de Dados e Estatísticas sobre a Violência contra as Mulheres.
As políticas públicas, como é cediço, não se efetivam sem destinação de recursos financeiros. A previsão legal da possibilidade do estabelecimento, pelos
entes federativos, de dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas estipuladas na Lei Maria da Penha,
por si só, não tem o condão de garantir suficientes recursos orçamentários para o
enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Como bem destacam o Cortês e Matos (2008: 42):
Neste sentido, é fundamental uma ação política dos movimentos de mulheres
e feministas nos processos de planejamento das políticas governamentais e na
distribuição dos recursos públicos.
Primeiro é preciso entender como funciona o ciclo orçamentário, que competências (funções) a Constituição Federal estabelece para União, estados,
Distrito Federal e municípios, e o diz a Lei sobre atribuições específicas, ou
em conjunto, para os Poderes Judiciário, Legislativo, Executivo, Ministério
Público, Defensoria Pública. A partir daí, a sociedade civil, em especial os
movimentos de mulheres e feministas, pode pensar formas e instrumentos
que fortaleçam sua participação no ciclo orçamentário e planejamento governamental, seja perante os Poderes e as instituições governamentais ou nos
espaços de controle social.
Ao criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, a LMP sintoniza-se não apenas com a Lei Maior, mas igualmente com os tratados internacionais, em matéria de direitos humanos, incorporados ao nosso ordenamento jurídico, notadamente, a Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).
Por via de consequência, tem-se em favor da dignidade das mulheres um
plus de proteção que não se esgota nas obrigações previstas na Lei nº 11.340/06,
mas que encontra especial guarida nos direitos fundamentais constitucionalmente elencados e nos tratados de direitos humanos já ratificados, impondo ao
Estado brasileiro o dever de observar outras obrigações de comportamento não
previstas na sua legislação interna.
10 Documento disponível em http://www.sepm.gov.br/subsecretaria-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres/pacto/texto-pacto-enfrentamento-violencia-contra-mulheres.pdf. Acesso em
25.02.2011.
364
Das disposições transitórias e finais – artigos 33 a 40
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365
Da inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 – artigos 41 a 46
Comentários: Fauzi Hassan Choukr
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo
Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:
“Art. 313. .............................................................................................................
IV – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei
específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” (NR)
Art. 43. A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 61. ..................................................
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;
........................................................... ” (NR)
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa
a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 129. ..................................................
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro,
ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” (NR)
Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa a
vigorar com a seguinte redação:
Art. 152. ...................................................
367
Fauzi Hassan Choukr
Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar
o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.” (NR)
Art. 46. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação.
Considerações iniciais:
violência de gênero e internacionalização da discussão
A preocupação da comunidade internacional com a denominada “violência
de gênero” (STREY, 2004: 13)1 não é nova, como também não é nova a interação
do Estado brasileiro nesse cenário.
Ligados a esse movimento podem ser recordados desde a Carta das Nações
Unidas, de 1945, onde se encontra o estabelecimento da igualdade entre homens
e mulheres, passando pela criação da Comissão da Condição Jurídica e Social da
Mulher (de 1946) e por textos que estabelecem patamares para o tratamento equânime entre homens e mulheres no plano salarial,2 a equidade entre homens e mulheres na relação de convivência no casamento,3 até aqueles mais abrangentes,
como Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, e outros mais específicos, como a
“Declaração sobre a eliminação de discriminação contra a mulher”,4 transformada
em Convenção no ano de 1979, em vigor em 1981,5 e que daria base para uma série
de atividades e estudos no âmbito da ONU sobre a condição da mulher,6 até que
se alcançasse, em 1993, em Belém do Pará/BR, sob os auspícios da OEA, a “Convenção Interamericana para erradicar a violência contra a mulher” (1994).
Destaca-se, de forma imediata nesse processo, a Convenção de 1994 da
OEA, a qual o Brasil ratificou em 27.11.1995, inclusive como parte do I Plano
Nacional de Direitos Humanos,7 este por sua vez compreendido num processo
1
Recorde-se, também, o quanto afirmado por Sabadell (1990): “Considerando os debates ensejados ao
longo da década de 1970, observa-se que o conceito de violência doméstica tendia a ampliar-se: aquilo que inicialmente era entendido como violência física perpetrada contra a mulher (extensível a seus
filhos) começa a sofrer profundas transformações. Por um lado, o termo passou a ser interpretado de
modo amplo, incluindo a violência emocional e psíquica. Por outro, a mobilização contra a violência
doméstica adquiriu um caráter cada vez mais especializado… Finalmente, a tendência à ampliação
do conceito, já na década de 1980, levou à inclusão de todas as formas de violência que podem ocorrer no âmbito das relações familiares, encontrando-se, nos anos de 1990, autores que sugerem incluir
ao conceito as agressões entre vizinhos ou amigos”.
2
Convênio da OIT, de 1952.
3
Convenção sobre os direitos da mulher casada de 1957.
4
De 1967.
5
Ratificada pelo Brasil em 1º de fevereiro 1984.
6
Dentre outros, o “Estudo mundial sobre o papel da mulher no desenvolvimento” (1986).
7
Como parte das “Propostas de ações governamentais”, integrando aquelas de “Proteção do direito
à vida – Segurança das pessoas – Curto prazo”, estava “Apoiar programas para prevenir a violência
368
Da inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 – arts. 41 a 46
macropolítico que tem seu nascedouro com a própria Constituição de 1988 e que
exigiria uma significativa mudança de compromisso do Estado brasileiro com o
tema dos direitos humanos nos planos interno e internacional.
Afigura-se neste ponto, de nodal importância, a ratificação, pelo Brasil, em
1992, da Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como a posterior
assunção da competência da Corte Interamericana de Direitos do Homem, em
1998, cuja jurisdição haveria de influenciar definitivamente o direito interno.
Restringindo-se o presente texto ao tratamento legislativo – e sua respectiva
prática – no enfrentamento da violência contra a mulher na seara penal, visto
que a abrangente análise das políticas públicas dessa matéria desvirtuaria o foco
proposto e se tornaria por demais extenso para ser abordado, impõe cotejar a
formação do contexto internacional anteriormente exposto e sua projeção para o
direito interno, este já banhado pelas novas perspectivas normativas e culturais
da Constituição de 1988.
Violência de gênero e direito interno
Observado o sistema penal, não é possível identificar, no arco temporal que
vai da Constituição de 1988 até a edição da Lei 11.340-2006 (a denominada “Lei
Maria da Penha”), qualquer tendência de direito interno no sentido de concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Em 1988, quando a Constituição entrou em vigor, a disciplina penal sobre
o tema cingia-se ao Código Penal reformado em sua parte geral em 1984, ainda,
portanto, no contexto do estado de exceção militar, e o tratamento da “violência
de gênero” limitava-se a uma operacionalmente insignificante circunstância de
agravamento de pena introduzida pela Lei 7.209/19848.
Apenas em 2004 houve algum reflexo do movimento de internacionalização
no sistema penal pátrio, com a edição da Lei 10.886/04 que criou o tipo penal da
“violência doméstica” por meio do acréscimo dos §§ 9º e 10 ao art. 129 do Código Penal9, o qual viria sofrer nova alteração com a redação determinada pelo
artigo 44 da Lei Maria da Penha, aumentando a pena máxima cominada de modo
que não se pudesse falar na possibilidade de um dos mecanismos transacionais
contra grupos em situação mais vulnerável, caso de crianças e adolescentes, idosos, mulheres, negros, indígenas, migrantes, trabalhadores sem terra e homossexuais”.
8
Que passou a prever, no art. 61, II, “f”, o crime praticado com “abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.
9
“§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou
com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. § 10. Nos
casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo,
aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).” (NR).
369
Fauzi Hassan Choukr
conhecidos no direito brasileiro, o da “transação penal”, que será analisado noutra parte deste trabalho.
Pode-se, assim, concluir a alienação substancial do direito penal material
aos postulados dos textos internacionais.
Mas, se o tratamento do direito penal material era pouco condizente com
os compromissos firmados no plano internacional, o direito processual penal
tratou de transformar as potenciais situações de violência doméstica em “infrações penais de menor potencial ofensivo”, na medida em que a maior parte das
condutas verificáveis no cotidiano se subsumiria a ameaças ou lesões corporais
dolosas (leves) as quais redundavam na aplicação dos mecanismos transacionais
sobre a pena (art. 76 da Lei 9099/95) ou, residualmente, no desenvolvimento do
processo (art. 89 da Lei 9099/95).
Como decorrência sistêmica desse tratamento, inviabilizou-se por completo a incidência de medidas cautelares (ou precautelares) nessas hipóteses,
como a própria prisão em flagrante ou a decretação da prisão preventiva, dado
que incompatíveis com a estrutura da “justiça pena consensual” nas hipóteses
mais corriqueiras como lesão corporal ou ameaça. Tal quadro somente viria a ser
alterado com a Lei Maria da Penha em especial com seus artigos 41 e 42.
O primeiro artigo antes mencionado (art. 41) das Disposições Finais da Lei
11.340/06 explicitamente afasta a aplicação da Lei 9099/95,10 em face ao fracasso
operacional, dogmático e de política criminal dos denominados “juizados especiais criminais” no específico âmbito da violência aqui tratada, tema de resto já
reconhecido em inúmeras obras alentadas sobre a matéria (HERMANN, 2000).
Diretamente voltado ao tema proposto, acompanha-se o quanto já foi demonstrado sobre o fracasso da tutela da vítima no âmbito dessa jurisdição penal
diferenciada (WUNDERLICH, 2005), o que, dentre outras razões, impulsionou
posição contrária a essa forma de “justiça penal” por prestigiosa fonte doutrinária (COUTINHO, 2005).
Não se podia esperar algo diferenciado diante da maneira pela qual, com
frágil e manipulada base dogmática sobre o consenso penal no Brasil, aliada a
uma estrutura legislativa precária e por demais lacunosa, larga parte dos operadores do direito reiteradamente tratou,11 na prática,12 o complexo fenômeno
10 Para uma definitiva visão da manipulação ideológica do discurso sobre a negociação penal no direito
brasileiro, ver Prado (2003).
11 Ainda com Sabadell (1990), pode-se recordar que “Estudos indicam que há pelo menos três razões para
que a mulher vítima de violência queira continuar (se possível sob melhores condições) o relacionamento
privado com o agressor: medo de não poder prover sozinha as necessidades dos filhos; depressão e passividade devido à experiência contínua de violência; temor de sofrer maiores danos e correr risco de morte
se abandonar o companheiro violento. A estes fatores, podemos acrescentar os vínculos emocionais com
o agressor. […] Nenhum desses fatores é levado em consideração no caso da intervenção penal”.
12 Para uma análise critica a partir de constatações empíricas do funcionamento do Juizado Especial
Criminal no trato da violência de gênero, ver Pasinato (2005).
370
Da inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 – arts. 41 a 46
social que a lei rotulou, por meio de um critério abstrato, de “menor potencial
ofensivo” (BASTOS, 2006).
Já consolidada a ausência de tutela efetiva da vítima da violência de gênero
no âmbito da redação original da Lei 9099/95, e como fruto da censura sofrida
pelo Brasil no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos13, foi alterado formalmente o artigo 69 da Lei 9099/95, para fazer constar em
seu parágrafo único reformado que “Ao autor do fato que, após a lavratura do
termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso
de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança.
Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”14.
Os dados estatísticos de aplicação dessa norma não são consistentes, mas
pode-se depreender de todo o movimento legislativo que culminaria alguns
anos mais tarde com a lei 11.340/06 que sua aplicação prática foi praticamente
nenhuma15, o que se deve, inclusive, por fatores técnicos, na medida em que o
artigo modificado era insuficiente no tratamento da matéria.
A “Lei Maria da Penha” nasce com a criação, pelo Decreto n° 5.030, de 31
de março de 2004, de um “grupo de trabalho interministerial”, contando com os
seguintes órgãos do Poder Executivo da União: Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM) da Presidência da República (coordenação); Casa Civil
da Presidência da República; Advocacia-Geral da União; Ministério da Saúde;
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública. Esse
grupo apresentou ao Congresso, em nome do Poder Executivo, aquilo que seria
o Projeto de Lei nº 4.559, de 200416.
De relevo pontuar, no presente momento, a iniciativa do projeto pelo Executivo, assumidamente em virtude da sanção sofrida pelo Brasil no contexto do
sistema interamericano de direitos humanos como anteriormente exposto. Da
“mensagem” enviada pelo Executivo ao Legislativo deve ser destacado o seguinte trecho, que orientará a compreensão da norma:
13 O Brasil acabou sendo acionado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, em 2001,
por meio do Relatório nº 54/2001 (caso 12051), censurou o estado brasileiro por “dilação injustificada” e “tramitação negligente” no processo crime que tinha como vítima a Sra. Maria da Penha
Fernandes Maia, recomendando “Continuar e aprofundar o processo de reformas que evitem a tolerância estatal e o tratamento discriminatório a respeito da violência doméstica contra as mulheres no
Brasil”. Dados completos acessíveis em http://www.cidh.org/annualrep/2001port/capitulo3c.htm.
14 Redação dada pela Lei nº 10.455, de 13.5.2002
15 Para uma avaliação estatística mínima da projeção da violência aqui tratada, veja-se o quanto compilado em http://www2.fpa.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/pesquisas-realizadas/projecao-da-taxa-de-espancamento.
16
Dados também apresentados por Alves (2006).
371
Fauzi Hassan Choukr
“É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das
mulheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica
que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não
haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência
doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à
integridade física das mulheres são violados quando um membro da família
tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus
tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos17”.
É importante frisar, igualmente, que na proposta originária enviada pelo
Executivo não havia o afastamento total dos institutos previstos na Lei 9099/95,
mas, sim, alteração de sua estrutura para, por exemplo, postergar a celebração
da transação penal na forma do artigo 76 daquele diploma legal.18
O repúdio aos mecanismos transacionais da Lei 9099/95 não surgiu, assim,
no Executivo, mas, sim, no Parlamento, como se pode observar da proposta da
Relatora Dep. Jandira Feghali, a qual incorporou as críticas realizadas pelo Consórcio de ONGs quando da apresentação do anteprojeto da Lei. Textualmente:
Os Juizados Especiais Criminais (JECrims), criados pela lei 9099/95, significaram uma conquista da sociedade para desafogar as diversas varas do Poder
Judiciário e acelerar decisão sobre diversos delitos, mas não foram criados
para tratar crimes de violência contra a mulher. Não têm na sua abrangência
legal, competência para tratar de questões que envolvam direito de família
e, no âmbito criminal, trata especificamente de violações de menor potencial
ofensivo. Já está consagrado em todas as convenções e tratados internacionais,
ratificados pelo Brasil, que a violência contra a mulher é uma violação aos
direitos humanos. Ao analisarmos dez anos de atuação dos Juizados Especiais
17 Disponível em http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=272058, acessado em
09.02.11.
18 “A presente proposta mantém a celeridade do previsto na Lei 9.099/95, mas altera o procedimento
do Juizado Especial Criminal em razão da especificidade dos casos de violência doméstica e familiar
contra as mulheres. Prevê, a criação de audiência de apresentação para permitir que a vítima seja
ouvida primeiro pelo juiz, em separado do agressor, e ainda que a audiência se balize pelo princípio
da mediação, não podendo a mulher ser, em nenhuma hipótese, forçada à conciliação. Esta audiência
deverá ser conduzida por juiz ou mediador, devendo este último ser profissional do direito, devidamente habilitado no Curso de Ciências Jurídicas e capacitado em questões de gênero. A presente
proposta garante, também, que a vítima esteja acompanhada por advogado na audiência, visto que
a Lei 9.099/95, em seu artigo 68, concede esta prerrogativa apenas ao agressor. O Projeto propõe,
outrossim, alteração na Audiência de Instrução e Julgamento retirando a realização da transação
penal da primeira audiência e postergando esta possibilidade para a segunda audiência. O objetivo é
disponibilizar ao juiz outras ferramentas mais adequadas e eficazes para solucionar a questão, como
por exemplo, o encaminhamento das partes à equipe de atendimento multidisciplinar, realização de
exames periciais e providências cautelares. O Projeto proíbe a aplicação de penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta básica e multa, pois, atualmente, este tipo de pena é comumente
aplicado nos Juizados Especiais Criminais em prejuízo da vítima e de sua família.”. Disponível em
http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=272058, acessado em 09.02.11.
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Da inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 – arts. 41 a 46
vemos que os resultados reforçam a impunidade, permitindo a reincidência
e agravamento do ato violento – 90% dos casos são arquivados ou levados a
transação penal. Neste sentido é clara a descrição feita pela Dra. Flávia Piovesan (professora doutora de direito constitucional e direitos humanos da PUC/
SP): ‘O grau de ineficácia da referida lei revela o paradoxo do Estado romper com a
clássica dicotomia público-privado, de forma a dar visibilidade a violações que ocorrem no domínio privado, para, então, devolvê-las a este mesmo domínio, sob o manto
da banalização, em que o agressor é condenado a pagar à vítima uma cesta básica ou
meio fogão ou meia geladeira. (...) Os casos de violência contra a mulher são vistos
como meras querelas domésticas, ora como reflexo do ato de vingança ou implicância
da vítima, ora decorrentes da culpabilidade da própria vítima, no perverso jogo de que
a mulher teria merecido, por seu comportamento, a resposta violenta’19.
Não por outra razão, a Relatora do projeto original apresentou substitutivo
excluindo, por completo, a incidência da Lei 9099/95 no enfrentamento da violência aqui enfocada, e assim acabou por ser aprovado o diploma legal em questão, para insatisfação de parte dos operadores do Direito e mesmo em desacordo
com a visão original do próprio Poder Executivo.
Com efeito, não foram poucas as vozes que se insurgiram, no plano acadêmico (MOREIRA, 2007)20, contra o afastamento dos mecanismos da transação penal à brasileira do campo da violência de gênero, as quais reverberaram
em inúmeros comportamentos judiciais21 e em postulação pela declaração de
inconstitucionalidade de tópicos da lei em questão22.
19 Disponível em http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=272058, acessado em
09.02.11.
20 Segundo o autor: “o art. 41 da Lei certamente [é] o que vem causando o mais acirrado debate na
doutrina. Segundo este dispositivo, ‘aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra
a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995’.
Entendemos tratar-se de artigo inconstitucional. Valem as mesmas observações expendidas quando
da análise do art. 17. São igualmente feridos princípios constitucionais (igualdade e proporcionalidade). Assim, para nós, se a infração penal praticada for um crime de menor potencial ofensivo (o art.
41 não se refere às contravenções penais) devem ser aplicadas todas as medidas despenalizadoras
previstas na Lei 9.099/95 (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do
processo), além da medida “descarcerizadora” do art. 69 (Termo Circunstanciado e não lavratura do
auto de prisão em flagrante, caso o autor do fato comprometa-se a comparecer ao Juizado Especial
Criminal)”.
21 De todas as decisões que buscaram atacar a constitucionalidade da Lei Maria da Penha ou fazer incidir
nela, ao menos em parte, os chamados “mecanismos despenalizadores” da Lei 9099/95 chamam a atenção, pelo órgão jurisdicional prolator, o HABEAS CORPUS Nº 154.801 – MS, concedido pelo Superior
Tribunal de Justiça, tendo como relator o Min. (convocado) Celso Limongi, julgado em 14/12/2010 e contando com os votos de votos favoráveis dos Ministros Maria Thereza de Assis Moura e Og Fernandes e
com a dissidência do Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE).
22 Trata-se da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4.424, proposta pela Procuradoria Geral
da República, ainda em curso quando o presente artigo era escrito, e sob a relatoria do Ministro
Marco Aurélio que negou a concessão da liminar pretendida.
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Não se têm notícias substanciais de que tenha havido tamanho repúdio
quando, em situação de ampliação dos institutos “despenalizadores”, foram
propiciados mecanismos transacionais para infrações que, à época da sua edição, não eram “infrações penais de menor potencial ofensivo”23.
A essa visão que se pode considerar, ainda, como quantitativamente minoritária, contrapõe-se aquela do grupo de operadores do direito que vê a perfeita
harmonia do texto de lei em questão com os primados constitucionais e supraconstitucionais da matéria, colocando em relevo o fato de que os tratados internacionais assinados e ratificados pelo Brasil, enunciados no início deste texto,
têm força de direito interno e orientam todo o tratamento legislativo específico
(BIANCHINI; MAZZUOLI, 2009).
Não nos parece haver sentido metajurídico ou normativo em repudiar a
adequação constitucional dos tópicos aqui expostos da denominada “Lei Maria
da Penha”.
Observada a inserção do Estado brasileiro no movimento internacional de
enfrentamento da violência de gênero, é inegável que os compromissos assumidos devem ter reflexos na legislação interna, a qual precisa obedecer aos cânones
normativos supranacionais que passam a pertencer ao ordenamento jurídico interno. Visão distinta acarretaria na total desconsideração desses compromissos e
no afastamento do marco constitucional com a construção de uma ordem (inter)
nacional de proteção aos direitos humanos.
Caso assim não se considere, é imperioso lembrar que o direito brasileiro
já conviveu, em alto grau de pacificidade, com o alargamento dos mecanismos
“despenalizadores” para infrações que não eram de menor potencial ofensivo,
por conveniência marcantemente utilitária.
Mais ainda, deve ser recordado que a própria Lei 9099/95 afasta, expressamente, a incidência desse diploma legal a toda uma gama de infrações penais
diante das especificidades dos envolvidos e como salvaguarda da própria eficiência de uma determinada esfera de jurisdição24 com autorizadas vozes25 sustentando o acerto da exceção da aplicação.
Pelas mesmas razões de índole infraconstitucional – e observado apenas
esse aspecto –, há plena sustentação do afastamento dos institutos despenalizadores no enfrentamento jurisdicional da violência doméstica.
23 Referimo-nos, por exemplo, ao alargamento da transação penal a determinadas infrações de trânsito
quando da entrada em vigor, em 1997, do então novo Código de Trânsito que não poderiam ser
assim consideradas diante do conceito normativo de infração penal de menor potencial ofensivo em
vigor à época.
24 “Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar. (Artigo incluído
pela Lei nº 9.839, de 27.9.1999)”
25 Ver Silveira e Silveira (1997).
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Da inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 – arts. 41 a 46
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