A CONFIGURAÇÃO DO MODERNISMO MUSICAL EM PORTUGAL

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A CONFIGURAÇÃO DO MODERNISMO MUSICAL EM PORTUGAL
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNISMO MUSICAL EM
PORTUGAL Através da Acção de Fernando Lopes-Graça1
por Teresa Cascudo
Em Abril de 1921, a revista alemã Zeitschrift für Musik
– veículo do radicalismo nacionalista que prenunciava os
fundamentos da política musical nazi – publicou o artigo
“Acerca dos verdadeiros e dos falsos avanços musicais”, da
autoria do compositor Walter Niemann. No texto, era partilhada com os leitores a preocupação pelo estado da composição moderna na Alemanha, obcecada com a técnica e
com a forma e esquecida da procura das antigamente evidentes relações entre a música e a vida: “A Técnica matou a
Alma… a maioria dos modernistas já não é capaz de construir uma melodia verdadeiramente nobre, suportada por
uma alma pura, por uma percepção orgulhosa e por um
espírito robusto…”2. Não estava, porém, em causa apenas a
ligação das esferas da arte e da vida, mas também a identificação dessas tendências desagregadoras com estilos
modernos politicamente caracterizados que iam do classicismo da Direita, até ao Expressionismo radical do círculo
de Schönberg à Esquerda, passando pelo Moderno moderado, identificado com o Impressionismo. O que é que isto
tem a ver com Portugal? Referimos este caso apenas como
um exemplo, entre muitos outros possíveis, da combinação
argumentativa de música e ideologia que começou a generalizar-se nas primeiras décadas do século XX. Quando
se toma em consideração esse facto, o uso, nos discursos
1 Este artigo enquadra-se no âmbito do projecto “Fernando Lopes-Graça,
um século de música portuguesa”, financiado pela Fundação para a Ciência
e a Tecnologia (Projectos de Investigação Científica e Desenvolvimento
Tecnológico em Todos os Domínios Científicos, POCI/EAT/61157/2004).
Deriva-se parcialmente de Teresa Cascudo, “A tradição como problema na obra
musical e literária de Fernando Lopes-Graça (1906-1994)”, tese de doutoramento,
Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2002, que pode ser consultada no Museu
da Música Portuguesa (Câmara Municipal de Cascais), no Monte Estoril, onde se
conserva o arquivo pessoal de Fernando Lopes-Graça.
2 Cf. Joel Sachs, “Some Aspects of Musical Politics in Pre-Nazi Germany”,
Perspectives of New Music, Vol. 9, No. 1, 1970, pp. 74-95. A bibliografia
internacional que aborda a questão da articulação entre música e ideologia
durante as primeiras décadas do século XX numa perspectiva historiográfica
é muito vasta. Não se justifica, portanto, a sua discussão dentro dos limites
deste artigo. No entanto, devem ser pelo menos referidos, entre outros, os
nomes dos seguintes especialistas na matéria: Jane F. Fulcher, Carol J.
Oja, Pamela M. Potter e Michael H. Kater. No que diz respeito ao período
da Guerra-fria, só muito recentemente começou a historiografia a prestar
atenção a esta questão. V., por exemplo, Mark Carroll, Music and ideology in
Cold War Europe, Cambridge University Press, 2003.
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sobre música em Portugal, de determinadas expressões
para descrever o curso da criação contemporânea perde
a sua aparência de inocência, transformando-se numa eficiente arma de demolição ideológica no campo cultural. É
esse contexto que faz ganhar um significado determinado
ao uso de adjectivos como “bolchevique” para designar os
jovens artistas de aspirações mais radicais, como Almada
Negreiros, nos anos vinte. Ou do adjectivo “revolucionário”
para descrever obras ou autores mais “arriscados”, tais
como Luís de Freitas Branco na sua primeira etapa, ou o
próprio Fernando Lopes-Graça nos anos trinta. José Vianna
da Motta, situado numa posição antagónica, pronunciou as
seguintes palavras durante as comemorações do centenário
da morte de Beethoven celebradas em Viena em 1927:
Só hoje começa a aparecer [em Portugal] certa tendência para um neoclassicismo Beethoveniano nas obras
de [...] Luís de Freitas Branco. [...] Acentua ele a tendência da geração actual contrária ao impressionismo e
orientalismo inorgânico e enervante a favor do espírito
ocidental mais severo de Beethoven. Para criar obras
organicamente construídas, de grandes linhas, acha
ele necessário regressar à forma Beethoveniana como
base, conquanto modernize a expressão. As suas sinfonias seguem exactamente o plano Beethoveniano admitindo a relação dos temas entre si como deduzidos por
analogia e por contraste. 3
A sua defesa do espírito ocidental severo, orgánica e logicamente construído, não era inofensiva. Define-se contra
as correntes modernas que ele identifica com o enervante
impressionismo orientalista: repare-se na manifesta profissão de fé eurocêntrica e germanófila e nos seus laivos antisemitas. Os modos de articulação destes tópicos críticos
acerca da música moderna no campo musical português
estão, em larga medida, ainda por estudar. Porém, antes de
desenvolver esta análise numa perspectiva global, parece
conveniente começar reconstituindo a história dos seus percursos pessoais. Neste artigo pretendemos precisamente
dar conta de uma trajectória particular, a seguida pela reflexão de Lopes-Graça, concentrando-nos particularmente
na batalha pessoal que o compositor encetou a favor da música moderna e nas tensões e negociações que afectaram
entre as décadas de trinta e de sessenta a sua concepção
3 Citado em Teresa Cascudo, “A música instrumental de José Vianna da
Motta”, em Teresa Cascudo e Helena Trindade (eds.), José Vianna da Motta,
cinquenta anos depois, Lisboa, IPM/Museu da Música, 1998, pp. 155-6.
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da mesma.4 Partindo da ideia defendida por Lopes-Graça
em 1936 de que a música tinha de pregar a Beleza e mais
alguma coisa, questionaremos a natureza dessa “Beleza”
musical, tentando perceber ao mesmo tempo a maneira
como, neste caso concreto, se coadunou com certas “coisas” do foro social e, adicionalmente, do político.5 Sem prejuízo para futuros trabalhos onde esta negociação possa
ser abordada do ponto de vista das políticas efectivamente
postas em acção no meio ideológico no qual Lopes-Graça se
movimentou, neste ensaio atenderemos fundamentalmente
às suas manifestações públicas, nomeadamente através da
referência a fontes hemerográficas e do recurso à análise de
duas das organizações criadas pelo compositor: a sociedade
de concertos Sonata e a revista Gazeta Musical. Nalgumas
situações, revelou-se de particular interesse a consulta de
correspondência inédita. Obviamente, a ausência neste artigo da discussão de obras musicais do compositor deriva-se
das decisões metodológicas adoptadas, as quais também
não entram em colisão com futuros estudos onde aquelas
possam ser abordadas na perspectiva do conceito de moderno.
O Crítico Lopes-Graça Perante a “Encruzilhada” da
Arte Moderna 6
Em 1943, Lopes-Graça lembrava no prefácio do livro
Música e Músicos Modernos o isolamento sentido por
quem pretendia seguir, em Lisboa, o desenvolvimento
da composição contemporânea: “julgamos ser-nos lícito
chamar a atenção [...] para o facto de que o autor se tem
encontrado só, ou quase só, nesta ingrata pugna pela
música moderna, tentando, na medida das suas forças
4 Para uma introdução sintética ao modernismo musical, igualmente numa
perspectiva historiográfica, v. Leon Botstein, “Modernism”, em L. Macy (ed.),
Grove Music Online (último acceso: 1 de Dezembro de 2006), http://www.
grovemusic.com.
5 Estas expressões foram retiradas do artigo “A arte e o homem”, Manifesto,
1 (1936), reeditado em Reflexões sobre a música, Lisboa, Editorial Caminho,
1978, 2ª edição, pp. 197-210.
6 A expressão “encruzilhada” foi retirada de um artigo de João Gaspar
Simões, publicado em 1932, onde aparece assim descrita: “Ou se abandonam
os sonhos impossíveis, [..], para se regressar a um cómodo meio termo entre
o real exterior e o interior, isto é, à purificação do classicismo; ou se continua
sonhando para além da realidade, extraindo monstros e anjos da imaginação,
confiante na eterna força criadora do homem.”, João Gaspar Simões, “A arte
e a realidade”, Presença (Novembro de 1932), p. 8. A citação coloca-se na
discussão dos efeitos do “retorno à ordem” caracterizador das artes na
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fazê-la, não diremos aceitar mas compreender – e isto
num meio que não só lhe é absolutamente hostil a ela,
música moderna, mas até a qualquer espécie de especulativismo de ordem estético-musical.”7 Esta batalha
pessoal materializou-se, a partir da década de 30, em
conferências e crónicas jornalísticas sobre compositores e obras “modernos”, os quais constituem um coerente núcleo de informação e de pensamento estético,
directamente relacionado com o modernismo e com a
sua recepção. Nesses textos, posteriormente recolhidos em livro, encontramos orientações de ordem estética que podem ajudar a perceber a definição que Lopes-Graça fazia do termo “Beleza” aplicado à música
modernista. Alguns deles – dedicados aos compositores
Gabriel Fauré, Maurice Ravel, Darius Milhaud, Arnold
Schönberg, Paul Hindemith e Igor Stravinsky – têm em
comum o facto de terem sido motivados por iniciativas
inseridas no âmbito dos concertos da “Divulgação Musical”, periodicamente organizados por Ema Romero
Fonseca. Nestes anos, durante a sua estadia em Paris,
o nosso compositor dedicou igualmente a sua atenção à
música de Bela Bartók, de Manuel de Falla e de Maurice
Ravel, em artigos que foram publicados na Revista de
Portugal.
Em 1933 – na sua conferência sobre mélodies de Gabriel Fauré, Maurice Ravel e Darius Milhaud, apresentada na “Divulgação Musical” e publicada na Presença
– Lopes-Graça pregava uma “Beleza musical objectiva”
ou, por outras palavras, a impossibilidade de traduzir o
conteúdo do pensamento e da emoção musical.8 Os elementos formais da composição, de ordem matemática
e lógica, são os que permitem, nas palavras de LopesGraça, falar de “uma dialéctica musical tão rigorosa
década de 30, onde também se poderia enquadrar as tomadas de posição de
Lopes-Graça sendo, no entanto, necessária para a sua plena compreensão
uma abordagem global das mudanças acontecidas na composição em
Portugal nesse período. Para uma interpretação da geração presencista,
numa perspectiva que também inclui estes aspectos ideológico-estéticos, v.,
sobretudo, os trabalhos de Fernando Jorge Vieira Pimentel, especialmente
a sua tese de doutoramento, infelizmente ainda não publicada, A poesia
da ‘Presença’ (1927-1940). Tradição e modernidade, 2 vols, Ponta Delgada,
Universidade dos Açores, 1987 e a colectânea de artigos Presença: labor e
destino de uma geração (1927-1940), Coimbra, Angelus Novus, 2003.
7 Cf. Fernando Lopes-Graça, “Advertência” (1943), em Música e músicos
modernos, Lisboa, Caminho, 1986, pp. 9-10.
8 Fernando Lopes-Graça, “Três Liederistas Franceses Modernos
(conferência)”, Presença, 38, Abril de 1933, pp. 8-11, reeditado em Música
e Músicos Modernos, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, pp. 17-31, por onde
citamos.
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como a dialéctica verbal, embora de natureza diferente,
perfeitamente inteligível para o músico, que a pratica em
virtude de leis internas de atracção e repulsão, de afinidade e determinismo dos termos do discurso musical.”
No mesmo texto, e apesar de aceitar o termo com alguma reserva, torna a “desumanização” da arte equivalente à modernidade, na sua tentativa de “fugir à tirania
da realidade exterior”. Lopes-Graça, que nunca renunciou à ideia da transcendência da arte, não se colocou
completamente na órbita do que Ortega y Gasset, entre
1919 (“Musicalia”) e 1925 (La deshumanización del arte),
assinalou como sendo a orientação mais marcante do
novo estilo artístico: a sua tendência para ser uma “arte
artística”, concebida como puro jogo, irónico, mas sem
transcendência. Contudo, aceitando a essência anti-realista da arte contemporânea, na interpretação orteguiana, Lopes-Graça infere que a música é a mais “moderna”
das artes porque “uma sinfonia, uma sonata, uma fuga,
uma simples melodia, não representam, não significam
coisa alguma. Quanto muito sugerem.” Mais ainda, a música que sugere “é uma música inferior”, como são inferiores “a sensibilidade e a inteligência musical daqueles
que recebem da música sugestões sensíveis, exteriores
à própria beleza musical.” A música deve ser “necessária, absoluta, bastando-se a si própria, tendo um fim em
si mesma”, toda a “verdadeira e grande música, é movimento inefável da alma, jogo livre do espírito, capricho
subtil da inteligência, actividade pura e desinteressada
do pensamento, exercício alado da razão, seu triunfo e
sua desesperação.” Afirma, seguidamente, “profissão
de fé de música pura, direis. Talvez, se por música pura
entendermos a prevalência, o primado da sensação e da
imagem sonora, digo mesmo da ideia musical, com todo
o seu mecanismo interno, e até externo, de realização e
na variabilidade e latência dos seus modos de percepção
e assimilação, sobre sensações, imagens ou ideias de
qualquer outra ordem, sejam elas imediatamente psicológicas sejam de natureza estética ou filosófica.” Ou
social e política, poderíamos nós acrescentar.
Mesmo nos casos mais extremos – referimo-nos a
Schönberg –, Lopes-Graça defendia a liberdade do compositor perante quaisquer exigências da parte do público. A obra do compositor austríaco serviu-lhe para
reclamar uma atitude inquieta e desinteressada para
a apreciação, entendida quase como sinónimo de compreensão, da música mais recente, numa das derivações das suas polémicas com Rui Coelho. Lopes-Graça
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começou a escrever na Seara Nova em 1931, um ano
após se ter tornado célebre no meio musical português
como protagonista de uma polémica contra o compositor, crítico e regente Rui Coelho, mantida em 1930 nas
páginas do jornal República e que foi recolhida alguns
meses depois na antologia A caça aos coelhos: o último tiro. Mais do que os motivos da discussão – centrada
inicialmente em torno do conceito de nacionalismo musical – e dos argumentos defendidos por cada um dos
oponentes, é de destacar o valor simbólico que lhe foi
atribuída nos meios da oposição. Quando em 1932 Emma
Romero Santos Fonseca da Câmara Reys ofereceu, num
dos seus concertos da “Divulgação Musical”, a primeira
audição do Pierrot Lunaire, de Schönberg, a obra provocou uma reacção de recusa unânime na imprensa. Nas
páginas do Diário de Notícias, Rui Coelho, compositor,
crítico e regente, escreveu claramente que o presente
da música estava com o “espírito clássico” das últimas
obras de Maurice Ravel e de Igor Stravinsky.9 Para ele,
as audácias do grande inovador que tinha sido o autor
do “doente” Pierrot Lunaire eram de outro tempo já longínquo, de uma época de extravagância. Ele, como compositor do presente que, segundo diz na crónica, tinha
assistido à estreia da partitura em 1912, compreendia os
seus achados, mas julgava inútil “falar de técnica, forma, intervalos, materiais”, concluindo de forma lapidar
e rebarbativa: “Acho na abertura do Barbeiro de Sevilha,
mesmo só a piano, flauta e tambor, mais espírito, mais
modernismo do que no Pierrot Lunaire.” Lopes-Graça,
por seu turno, aproveitou o ensejo para dar provas da
sua profissão de fé modernista, recordando que a crítica
devia exercer as suas responsabilidades explicando – e
não apenas qualificando de forma infundada – as características e as aspirações da música mais recente.10
Em consonância com este programa, um dos seus
primeiros trabalhos – uma conferência para introduzir
um dos concertos da Divulgação Musical – teve como
objectivo explicar os fundamentos do sistema schönberguiano. Baseando-se em bibliografia da época, Lopes-Graça explica o processo que conduziu da atonali-
9 Rui Coelho, “Conservatório. Pierrot Lunaire”, Diário de Notícias (27 de
Janeiro de 1932). Reproduzida, juntamente com as restantes críticas em
Emma Romero Santos Fonseca da Câmara Reys (ed.), Divulgação Musical
(1929-1933), vol. 2, Lisboa, Tip. da Seara Nova, 1934, pp. 334-6.
10“A propósito da primeira audição em Portugal do Pierrot Lunaire de
Schönberg (XXIX)”, Seara Nova, 292 (1932), pp. 54-7, reproduzido em Música
e músicos modernos, op. cit., 33-4.
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dade para o dodecafonismo de forma clara e apelativa
e mantém a distância do crítico, assinalando também
os problemas colocados por Schönberg na sua música,
possuidora de “um valor e um alcance puramente experienciais”, “um meio para realizar o que o seu espírito
de visionário procura para além do conhecido”.11 Lopes-Graça prossegue nos seguintes termos: “Uma arte
assim voluntariamente hermética presta-se evidentemente à detracção e ao ataque. O seu esoterismo há-de
ser sempre um obstáculo à sua expansão, à sua aceitação por parte do público médio musical. O seu carácter
especulativo afasta mesmo aqueles músicos e críticos
cultos que, embora reconhecendo o imenso talento e engenhosidade de Schönberg, o queriam, contudo, menos
intelectual, menos abstracto, mais claro, mais realista,
pretendendo que uma arte de tal natureza se arrisca a
perder o contacto com a vida e a estiolar-se, à força de
ascetismo e de refinamento.” Concluindo da seguinte
maneira: “Mas um artista é o que é, e não aquilo que os
outros entendem que ele devia ser.”12 A sua defesa da
liberdade e da individualidade do artista reaparece nos
seus textos sobre Hindemith, em 1934, 1939 e 1940.13
Assim, o novo objectivismo representado pela obra do
compositor alemão é definido com as seguintes palavras:
“Primado da forma sobre o sentimento. A música agora
não é para sentir: é para se compreender. As razões determinantes das formações musicais são de ordem intelectualista. Uma obra musical é um facto, que existe
por si e para si somente.”.14 Em 1940, estas ideias foram
de novo resumidas com as seguintes palavras: “A obra
mais musicalmente musical é, por isso mesmo, a mais
musicalmente expressiva – e tudo o resto é literatura.”.15
Um ano antes, porém, tinha lembrado que a música de
Hindemith se definia pelo seu anti-romantismo, no sentido de que “não nos alicia, adormecendo-nos, mas, pelo
contrário, obriga-nos a acompanhá-la, bem despertos e
11
Fernando Lopes-Graça, “A Revolução Musical Schönberguiana”,
Presença, 47 (1935) pp. 12-5, reeditado em Música e Músicos Modernos, op.
cit. (por onde citamos), p. 55.
12 Ibidem, p. 56.
13 Todos eles recolhidos em Música e Músicos Modernos, op. cit.
14 Fernando Lopes-Graça, “Hindemith e a música alemã contemporânea”,
Seara Nova, 433 (4-IV-1935), reeditado em Música e Músicos Modernos, op.
cit. (por onde citamos), p. 68.
15 Fernando Lopes-Graça, “Uma obra de Hindemith na Orquestra Sinfónica
Nacional”, Seara Nova, 698 (27-XII-1940), reeditado como “A propósito da
abertura da ópera «Neues von Tage», de Hindemith” em Música e Músicos
Modernos, op. cit. (por onde citamos), p. 200.
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como que comparticipantes na sua aventura sonora.”16
No Verão de 1936, foi escrita a Música para Cordas, Percussão e Celesta, de Bartók, por encomenda de Paul
Sacher e da Orquestra de Câmara de Basileia. LopesGraça, em 1937, ficou impressionado por uma execução da obra em Paris, ao descobrir as potencialidades
que lhe mostrava no sentido do tratamento erudito da
música tradicional. Um ano antes, tinha assinalado a
importância dessa ligação com a música tradicional
na música de Stravinsky, embora nesse momento não
a considerasse de forma explicitamente programática
um modelo a seguir, numa abordagem principalmente
formalista.17 O mesmo efeito teve a escuta de obras representativas do nacionalismo “essencial” de Manuel de
Falla, tais como o Retábulo de Maese Pedro e o Concerto
para cravo. Através destes compositores, Lopes-Graça
começou a considerar que o uso da música tradicional
– também na sua forma de “folclore imaginário” – podia
representar uma via legítima para a construção de uma
identidade musical portuguesa através da composição
de obras musicais modernas. Poderíamos arriscar a
hipótese de que a descoberta dessas potencialidades
foram percebidas pelo compositor como uma possível
solução a uma crise criativa de índole pessoal, apesar
de enquadrada numa crise histórica generalizada.18 No
entanto, cabe frisar que esta mudança de atitude coincidiu com o seu enquadramento em âmbitos e projectos culturais claramente delimitados do ponto de vista ideológico, embora o compositor tentasse na altura
seguir um caminho intermédio, integrador das posições
contrárias assumidas pelos intelectuais que, no seu entender, “deviam” entender-se para poder lutar contra a
ditadura.19 Ainda em Lisboa, Lopes-Graça que se situava inequivocamente no campo da oposição ao Estado
Novo, colaborou com O Diabo e com a revista Manifesto, publicações onde, em finais da década de trinta, se
generalizava a reclamação de uma “arte social”. 20 Em
16 Ibidem, nota 1, p. 98. O comentário é uma transcrição de uma crítica de
1939, escrita a propósito da execução das Peças Escolares, sob a batuta de
Frederico de Freitas.
17 Cf. “Igor Stravinsky”, Divulgação Musical, IV (1936), pp. 357-68 (reeditado
em Música e Músicos Modernos, op. cit., pp. 71-84).
18 Quanto ao primeiro assunto, v. a carta enviada a Francine Benoit, em 1936,
publicada em Teresa Cascudo (introdução, leitura e notas), “Seis cartas a
Fernando Lopes-Graça”, Boca do Inferno: revista de cultura e pensamento.
Câmara Municipal de Cascais, 2 (1997).
19 “Continuo lamentando todas as dissensões, todos os desentendimentos,
todos os conflitos individuais e mesmo os de pensamento entre pessoas
que se podiam entender muito bem e que era preciso que se entendessem,
para ver se isto marchava. E isto talvez não fosse difícil, visto que, além das
divergências inevitáveis, e para cima delas, existe uma larga região onde todos
se encontram, afinal de contas. A questão, a questão... isto é o diabo.”, Carta de
Fernando Lopes-Graça a Adolfo Casais Monteiro, BNL, E 15, Cx. 6. Ms.
44
Paris, frequentou os círculos musicais próximos da esquerda, como revela a sua tentativa de se tornar aluno
de Charles Koechlin e a sua colaboração com a Companhia dos Bailados Internacionais na revista-bailado La
Fièvre du temps. Quanto ao primeiro, de quem LopesGraça recebeu quatro aulas privadas de composição, 21
cabe lembrar a sua proximidade ao Partido Comunista Francês, cujas manifestações exteriores foram, por
exemplo, a defesa da necessidade de escrever para o
“povo” ou a participação, após a Segunda Guerra Mundial, na Associação Francesa de Músicos Progressistas, criada em Outubro de 1948. Quanto à colaboração
no bailado La Fièvre du temps, destaca-se o seu pendor
realista, descrito com as seguintes palavras pelo compositor: “pretendia comentar, por meio da palavra, do
canto, da mímica e da dança, e com intenções nitidamente críticas, certos aspectos da vida contemporânea,
que se encadeavam rapidamente, sem nexo aparente, à
maneira dos documentários cinematográficos”.22
A actualidade da La Fièvre du temps e o primeiro uso
da música tradicional introduziram o “real” nas partituras de Lopes-Graça. Podem ser colocadas na perspectiva das suas considerações, publicadas em 1939, acerca
da relação entre realismo e verosimilhança, assunto que,
segundo Carlos Reis, foi tratado pelo compositor com
uma relativa precocidade em relação aos ensaios literários de autores portugueses sobre o mesmo tema.23 O
que se discutia era o grau de elaboração a que a realida-
20No que diz respeito à primeira delas, v. Luís Trindade, O espírito do Diabo.
Discursos e posições intelectuais no semanário O Diabo, 1934-1940, Porto,
Campo das Letras, 2004.
21Informação confirmada por Flávia Camargo Toni na comunicação “Curioso
destino ou curiosa escolha? Lopes-Graça e Camargo Guarnieri, alunos
de Charles Koechlin”, apresentada no congresso internacional O artista
como intelectual. No centenário de Fernando Lopes-Graça, Universidade
de Coimbra, 26-29 de Abril de 2006, organizado pelo Centro de Estudos
Interdisciplinares do Século XX.
22 Lopes-Graça realizou uma suite orquestral a partir da música do
bailado em 1940, que foi estreada nesse ano na temporada de concertos da
Emissora Nacional. No programa de mão, Lopes-Graça disse do bailado o
seguinte: “pretendia comentar, por meio da palavra, do canto, da mímica
e da dança, e com intenções nitidamente críticas, certos aspectos da vida
contemporânea, que se encadeavam rapidamente, sem nexo aparente,
à maneira dos documentários cinematográficos. [...] A música procura
seguir o mais de perto possível as intenções do cenário [...] sem, contudo,
descer nunca a pormenores descritivos e pitorescos, nem abdicar das suas
necessidades formais, embora a natureza da obra lhe não permita grandes
desenvolvimentos. Sem proscrever absolutamente o lirismo, há, sobretudo,
dinâmica, objectiva e predominantemente rítmica, como convinha à índole
da obra.” A partitura conserva-se no Museu da Música Portuguesa, com a
cota LG 1, v. Teresa Cascudo, Fernando Lopes-Graça. Catálogo do espólio
musical, Lisboa, Câmara Municipal de Cascais, 1997.
23Cf. Carlos Reis, O discurso do neo-realismo português, Coimbra, Livraria
Almedina, 1983, pp. 162-163.
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de devia ser submetida na sua transformação em obra
de arte. Lopes-Graça, mantendo uma posição constante
desde as suas primeiras intervenções públicas, distinguia muito claramente entre a esfera artística e a esfera
do real. Vê-se isto nas suas próprias afirmações:
Continua a confundir-se a arte com a vida, quando a
verdade é que a arte é uma coisa e a vida, outra. Se é um
erro supor que a “vida imita a arte”, como pretendia o
esteticismo oscar-wildeano, não é menor erro imaginarse que a arte deva obediência cega à vida, como julga um
simplismo tão simplista como estéril. Que a arte tenha
a sua raiz, o seu ponto de partida na vida, isto é: no real,
nada mais lógico, legítimo e, podemos mesmo dizer, desejável; mas não para imitar a vida, o real, senão que
para os superar, para construir uma outra realidade que
já não é a realidade da vida, mas a realidade da arte, uma
realidade possivelmente maior, mais larga, mais alta do
que a realidade da vida. 24
Esta distinção projecta-se, por seu turno, na separação entre a actuação militante enquanto cidadão e o
trabalho especulativo enquanto artista. A arte apresenta-se como um estádio posterior à realidade, independentemente da utilização de dados extraídos da mesma
com objectivos estéticos. A sua opinião acerca da “transformação”, “valorização” ou “tratamento” da realidade
é para nós de especial relevância, já que, quando nesta época o compositor abordou as canções tradicionais
portuguesas como “objecto” do seu trabalho artístico,
transferiu para o âmbito da música esses princípios
estéticos.25 A natureza da demarcação do que separa o
“documento real” do “símbolo artístico” fica patente no
seguinte trecho tirado do mesmo texto:
Que importa que determinado “tipo” exista na vida,
isto é: possua uma realidade documentável, se, ao ser
transplantado para o drama ou para a novela, ele não
consegue convencer-nos da sua existência, porque o
24Fernando Lopes-Graça, “Realidade e verosimilhança (a propósito de
O Imbecil)”, O Diabo, 274 (23-XII-1939), p. 5, reeditado em Talia, Euterpe,
Terpsícore, Lisboa, Editorial Caminho, 1990 (por onde citamos), p. 276.
25“[...] A salvação da música portuguesa não está em pôr brigadas de
folcloristas a comporem tiroliros, para serem executados nos hotéis ou
casinos de luxo da América. Os tiroliros podem ser apenas, quando muito, a
matéria bruta de que poderá ser feita a verdadeira «música portuguesa»”,
Introdução à música moderna, Lisboa, Biblioteca Cosmos, 1942, reeditado em
Opúsculos, vol. II, Lisboa, Editorial Caminho, 1984 (por onde citamos), p. 84.
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escritor não lhe soube dar realidade artística indispensável, isto é: consistência e verosimilhança psicológicas
que justifiquem suficientemente os seus actos? Que importa que tal facto tenha acontecido realmente se, ao
ser tratado artisticamente, ele não consegue alcançar a
meta a que aponta toda a obra de arte verdadeiramente
digna desse nome: a transfiguração da vida, a valorização do humano pela conversão do real em símbolo?26
Por um lado, Lopes-Graça demonstra aqui a sua ligação com o posicionamento modernista dos seus primeiros escritos e, por outro, convida a repensar o teor
do seu relacionamento com as diversas manifestações,
em Portugal, da adopção do (neo-)realismo por parte dos
artistas próximos do Partido Comunista que se cristalizava na época.27 Ou seja, estamos perante uma das manifestações da tensão entre o “compromisso humanista”
assumido pelo compositor e a “consciência artística”
que marcaria – embora de forma nem sempre explícita
– o percurso do compositor. Esta dualidade pode ser encontrada noutros momentos. Nesta perspectiva, parece
ser significativa a publicação, quase em simultâneo, em
1941, e na Seara Nova, dos artigos “Introdução à Música
Moderna” e “Sobre o Conceito de Música Portuguesa”,
que são, respectivamente, uma defesa do modernismo
musical e uma reflexão em torno do problema da identidade musical.
Em 1941, Lopes-Graça pronunciou uma conferência
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da
qual foram publicados extensos trechos na revista Seara
Nova.28 A influência da ideia que Lopes-Graça fazia da
“música moderna” foi considerável, já que a conferência serviu, aliás, como embrião para o ensaio Introdução
à música moderna, publicado em 1942 na colecção da
Biblioteca Cosmos e reeditado em 1946. O ensaio apresenta numerosas afinidades com o modernismo presencista,29 e, nele, o compositor mostra uma posição clara26Fernando Lopes-Graça, “Realidade e verosimilhança (a propósito de O
Imbecil)”, op. cit., pp. 276-7. O itálico é do autor.
27Encontra-se uma relação da principal bibliografia relativa ao neorealismo em Massaud Moisés, As estéticas literárias em Portugal, Lisboa,
Editorial Caminho, 2002, pp. 298-310. V., ainda, de António Pedro Pita, “NeoRealismo”, em José Luis Gavilanes e António Apolinário (eds.), Historia de la
literatura portuguesa, Madrid, Editorial Cátedra, 1999, pp. 581-599 e Conflito e
unidade no neo-realismo português, Porto, Campo das Letras, Porto, 2002.
28Fernando Lopes-Graça, “Introdução à música moderna”, Seara Nova, 712 (1941).
29Cf Teresa Cascudo, “À luz do presencismo: uma leitura da Introdução à
música moderna (1942), de Fernando Lopes-Graça”, Leituras: revista da
Biblioteca Nacional, 12-13, 2003, pp. 107-124.
47
mente comprometida. No texto, o compositor continua,
tal como nos seus artigos da década de 30, a repudiar
a concepção da música como “arte do sentimento” afirmando: “Ora os compositores modernos sentiram a necessidade de restituir a música à... música. Nisso não
fizeram mais do que seguir o movimento artístico geral
do século XX, rejeitando o ideal romântico da fusão (ou
confusão) das artes. A música moderna regressou à
concepção de «música pura» tanto quanto o conceito de
«música pura» significa não propriamente uma denegação absoluta da possibilidade que a música tem de sugerir ideias ou de despertar sentimentos, mas uma afirmação do primado da imagem sonora, com a imanência das
suas leis próprias, na informação da obra musical.”30 As
conclusões provisórias às quais chega Lopes-Graça são
que ‘moderno’ é um conceito simultaneamente histórico
e estético e que o programa do modernismo se fundamenta na procura da “verdade” na criação, resultante da
integração do criador na sua contemporaneidade. 31
O problema particular da “música moderna portuguesa” é indirectamente abordado por Lopes-Graça no
capítulo intitulado “Novas culturas musicais”. LopesGraça acentua a importância de uma das tendências do
modernismo musical na década de 30: a resultante das
diferentes expressões de modernismos locais, representados na obra de compositores tais como Béla Bartók, Manuel de Falla e Karol Szymanowski, entre outros,
sendo que esses três são explicitamente citados. Neste contexto, Lopes-Graça defende que a solução para o
problema da “criação de uma «música portuguesa» de
superior envergadura só pode ser a que foi para os outros países que tentaram formar-se uma cultura musical
individualizada: “um método, que há-de ser transcendido logo que os nossos compositores se achem na posse
de uma linguagem e de uma disciplina próprias, capazes portanto, de levar ao mundo a expressão da nossa
musicalidade, sim mas da nossa musicalidade como
elemento de cultura e não como matéria de propaganda
turística.”32
30Introdução à música moderna, op. cit., p. 98.
31Isto é sintetizado no ensaio citando uma nota anterior, inserida numa das
colaborações do compositor na Revista de Portugal: “parece-me que será
sempre falhada, morta na casca, toda e qualquer obra que não mergulhe as
suas raízes no conjunto dos factores psicológicos ou nos dados técnicos que
constituem a essência humana ou a experiência artística contemporânea,
ou que, prolongando-as, encaminhem estas para novas terras, lhes abram
novos horizontes.”, Introdução à música moderna, op. cit., p. 32-33.
32Introdução à música moderna, op. cit., p. 85.
48
O que nos interessa sobretudo é a questão da função
social da música, assim como a sua apropriação e, em
certa medida aos olhos da ortodoxia comunista, má interpretação no pensamento do nosso autor. Devemos referir, antes de passarmos a analisar os seus argumentos
com maior cuidado, que tal formulação pode ser encontrada na doutrina artística soviética e na sua particular
aplicação à música. Efectivamente, podemos ver alguns
dos termos usados por Lopes-Graça como um eco dos
expressados num texto de José Estaline de 1934, muito divulgado e que foi utilizado programaticamente por
analogia no campo artístico: “O desenvolvimento das
culturas nacionais na forma e socialistas no conteúdo é
necessário para o objectivo da sua última fusão numa
Cultura Geral, socialista tanto na forma como no conteúdo, e expressada numa linguagem geral.”33 Lopes-Graça
dedica – significativa, mas heterodoxamente – os dois últimos capítulos do seu ensaio às questões do “conteúdo”
da música moderna e à sua “função social”. Quanto à
primeira parte, o compositor defende uma interpretação
formalista da música, independentemente dos laços de
parentesco que possam ser estabelecidos entre a música – segundo os ensinamentos de Bento de Jesus Caraça, uma criação “humana” – produzida num período
dado e o seu contexto e circunstâncias históricas. Por
um lado, Lopes-Graça afirma que “o «espírito» ou o fundo, em qualquer obra musical está intimamente ligado à
sua matéria, à sua forma. O espírito da obra musical não
é uma categoria em si e é inapreensível a priori: só se
manifesta através da forma.”34 Mas, por outro lado, não
ignora o papel determinante da história na composição
musical: “Mas o século XX não é um século de sonho e
de evasão: o século XX é um século de acção, de participação, de problemas escaldantes e urgentes – e por
isso não podemos culpar a música moderna de ser uma
expressão do dinamismo, do urgencialismo e do problematismo contemporâneos.”35 Na última parte, LopesGraça tece algumas reflexões acerca do papel da música
no novo contexto técnico provocado pelo aparecimento
33José Estaline, O marxismo e a questão nacional (1934), cit. por Marina
Frolova-Walker, “«National in Form, Socialist in Content»: Musical NationBuilding in the Soviet Republics”, Journal of the American Musicological
Society, 51 (1998), p. 331. A tradução é nossa, a partir da versão inglesa: “The
development of cultures national in form and socialist in content is necessary
for the purpose of their ultimate fusion into one General Culture, socialist as
to form and content, and expressed in one general language”.
34Fernando Lopes-Graça, Introdução à música moderna, op. cit., p. 95.
35Ibidem, p. 100.
49
dos elementos que caracterizam a cultura de massas,
A música é encarada como uma reflexão sobre a época
em que surge, tendo por conteúdo a “consciência social
moderna”:
A uma consciência social em crise o que pode corresponder senão uma arte em crise? Se alguns compositores modernos têm procurado, na «especialização» das
suas experiências de ordem técnica ou no culto de uma
arte demasiado ensimesmada e aristocratizada, uma
fuga a um mundo que os choca pelo que tem de brutal,
de desordenado, de caótico e de problemático (e em todos os tempos houve destes delicados) – outros, porém,
não hesitam em fazer-lhes frente, em imiscuir-se na
«confusão» ou, quando não comparticipantes na luta,
ao menos conservando bem viva e desperta a sua personalidade humana, para que nas suas obras sempre
se traduza fatalmente um que outro aspecto do drama
(ou da comédia), que se desenrola no tablado da nossa
época. 36
As suas tentativas de síntese, porém, tinham-se iniciado, pelo menos, uma década antes. Em 1931, o compositor evidenciou, como já vimos, a sua leitura dos escritos de Ortega y Gasset afirmando que a música, como
a arte mais abstracta, era “uma actividade encontrando
a sua razão de ser e a sua finalidade nela própria, no jogo
dos seus elementos constitutivos, estando em si-mesma
o seu princípio e causa suficientes.”37 Prossegue, depois,
da seguinte forma: “A música para o Romantismo tinha
sido símbolo, representação, meio de expressão; para
a nova corrente estética, para a música desumanizada,
a música não é senão pura matéria sonora.”38 Nesse
36Op. cit., pp. 104-5. Para além de o fazer na sua Introdução à música
moderna, Lopes-Graça exprimiu os mesmos pontos de vista em outros
artigos contemporâneos. Assim, também em 1941, defendeu uma posição
tolerante perante a questão da conciliação da militância política com a criação
artística: “Finalmente, julgo conveniente esclarecer que, ao reclamar para a
música um mais estrito contacto com o povo, não entendo dever imolá-la
como arte, a qualquer doutrinação ideológica num sacrifício ou compromisso
que não aproveita nem à arte nem à ideologia, embora não vá cair na ociosa
querela da “arte pura” contra a “arte social”, visto achar que toda arte é
pura, quando profundamente sentida e talentosamente defendida nas suas
“impurezas”, assim como também não deixa de ser arte aquela outra que,
por “puríssima” que seja, obtém a aceitação do maior número de homens.”,
Fernando Lopes-Graça, “Sobre o conceito de música portuguesa”, Seara
Nova, 740/2 (1941), reeditado em A música portuguesa e os seus problemas,
vol., Lisboa, Editorial Caminho, 1986, 2ª edição, p. 81.
37Fernando Lopes-Graça, “Apresentação de Stravinsky” (1931), em Música e
músicos modernos, op. cit., p. 202.
38Ibidem, p. 203.
50
mesmo texto, porém, o compositor inscreveu ambas as
tendências no conceito de clássico: “os clássicos […] representam o equilíbrio entre as duas tendências-limite
da desumanização e da humanização da música.” Esta
operação não é de pouca importância, porque uma concepção idealista do “clássico” cria, precisamente, um
lugar onde o social é possível – implícito na discussão
da música como “símbolo, representação, meio de expressão” – preservando o decoro artístico em obras baseadas em material directamente ligado ao real. Assim,
no que diz respeito à música tradicional, as seguintes
afirmações de Lopes-Graça parecem corroborar esta
ideia: “O folclore é um material. Precisamos trabalhá-lo,
dar-lhe o brilho clássico.”39 O lugar privilegiado onde se
operou essa síntese foi a própria história, ao defender a
íntima ligação entre os processo estético e histórico. 40
Ao mesmo tempo, ao longo da década de quarenta,
estas opções foram amplificadas e suportadas na imprensa por críticos afectos a Lopes-Graça, tais como
Francine Benoit ou João José Cochofel, os quais difundiram, em primeiro lugar, a ideia da necessidade histórica destas decisões e, em segundo lugar, do relevo que
a figura do compositor adquiria no contexto português,
precisamente pela via da valorização do património musical tradicional da nação portuguesa. Em Portugal, as
teses da arte social e do novo humanismo chegaram
também à música, 41 tendo tido as suas primeiras manifestações públicas no Verão de 1943. Em Junho desse ano, Lopes-Graça e João José Cochofel organizaram
uma série de recitais e palestras na Casa do Alentejo,
para a qual contaram com a colaboração de Bento de
39Fernando Lopes-Graça, “Sobre os arranjos corais das canções folclóricas
portuguesas” (1956), em A música portuguesa e os seus problemas, vol. II,
op. cit., p. 118, nota.
40“É evidente que não se pode traduzir em termos objectivos o que uma suite
de Bach, uma sonata de Beethoven, uma sinfonia de Chostakovich exprimem;
mas não é menos evidente que o processo estético que informa cada uma
dessas obras se acha intimamente ligado ao processo histórico, em todo o
seu complexo ideológico, económico e técnico, que a viu nascer”, “Fernando
Lopes-Graça fala-nos dos actuais problemas da música”, Vértice, 36-9
(Junho de 1946), pp. 243-248, reeditado como “Diálogo sobre música”, em
Nossa Companheira Música, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, 2ª edição, pp.
125-126.
41 V. Teresa Cascudo, “Fernando Lopes-Graça e os compositores brasileiros:
a polémica «dodecafonismo vs. nacionalismo» entre 1939 e1954 numa
perspectiva comparativa”, em Manuela Tavares Ribeiro (ed.), PortugalBrasil: Uma visão Interdisciplinar do Século XX. Actas do Colóquio, 2 a 5 de
Abril de 2003, Coimbra, Quarteto, 2003, pp. 269-284.
42A conferência de Caraça foi publicada posteriormente. V. Bento de Jesus
Caraça, “Algumas reflexões sobre a arte”, Seara Nova, 941 (1945).
51
Jesus Caraça. 42 Foram apresentados dois painéis, nos
quais o modernismo musical (representado em Portugal por Luís de Freitas Branco) era confrontado com um
novo modernismo de carácter nacionalista (representado, precisamente, por Lopes-Graça). Seguiu-se a publicação da conferência de Cochofel, “A Música e o Nosso
Tempo”, onde o poeta anuncia “uma nova arte” que “ensaia agora os primeiros passos, procurando actuar sobre o homem, interferir na sua conduta, e não simplesmente diverti-lo ou emocioná-lo”. 43 Mas, quatro meses
antes, também nas páginas da Seara Nova, foi publicado
o artigo intitulado “Compreensão da Música Moderna”,
onde, apesar de a música de Lopes-Graça ser considerada “um dos melhores exemplos do que pode a música moderna como verdadeira arte”, ela é criticada pelo
seu “conteúdo estético pouco progressivo e universal.”44
Neste contexto, ao qual também não foi alheia a campanha de nacionalização artística impulsionada pela política cultural do Estado Novo, 45 Lopes-Graça foi tornando
pública a sua conversão ao “nacionalismo essencial” – a
via que ele escolheu para atingir o “desejável” conteúdo
estético “progressivo e universal” através da renovação
da forma usando a música tradicional como inspiração
– na sua música, assim como em sucessivos artigos jornalísticos, que atingiram o seu ponto álgido no volume A
Canção Popular Portuguesa. 46 Publicado em 1953, como
veremos mais adiante, coincidiu no tempo com as diatribes do compositor contra o “dodecafonismo” do novíssimo Pierre Boulez.
43V. João José Cochofel, “A música e o nosso tempo” (I e II), Seara Nova, 832
e 833 (1943), pp. 243-5 e 262-4.
44Daniel de Sousa, “Compreensão da Música Moderna”, Seara Nova, 813
(1943), p. 273. Dadas a tendência de Álvaro Cunhal para polemizar sobre
temas artísticos sob pseudónimo e a marcada orientação estalinista do
texto, é plausível lançar a hipótese de que este artigo pudesse ter surgido do
entorno mais próximo do dirigente comunista, senão da sua própria pena.
45E da qual Lopes-Graça se desmarcou, criticando com dureza a sua clara
instrumentalização propagandística.
46São eles: “Sobre o conceito de música portuguesa” (1941), “Sobre a
canção popular portuguesa e o seu tratamento erudito” (1942), “A propósito
da audição da Fantasia, de Bello Marques” (1944), “Necessidade e capricho
na música portuguesa” (1945), “Sobre o conceito de «popular» na música”
(1947), “O valor da tradição nas culturas musicais nacionais” e “Valor estético,
pedagógico e patriótico da canção popular portuguesa” (1949), “Defesa e
ilustração da canção popular portuguesa” (1952), e, por fim, o mencionado
volume, A canção popular portuguesa (1953). Estes artigos foram
recentemente compendiados numa antologia, organizada por Alexandre
Branco Weffort, A canção popular portuguesa em Fernando Lopes-Graça,
Lisboa, Caminho, 2006. Infelizmente, o editor não contextualiza, do ponto de
vista histórico, os artigos que reproduz, a propósito dos quais nem sequer é
mencionada a fonte original.
52
EM PROL DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA: A SOCIEDADE DE CONCERTOS SONATA
Algumas das pessoas que colaboraram com LopesGraça nas suas numerosas actividades musicais diferentes da composição ou do ensino, tais como a pianista
Maria da Graça Amado da Cunha, 47 não duvidam em assinalar a fundação da Sociedade de Concertos Sonata,
que a partir de agora denominaremos simplesmente
Sonata, e a criação da revista Gazeta Musical como as
duas iniciativas mais influentes das empreendidas pelo
nosso compositor. Estas organizações tinham em comum a sua ligação à Academia de Amadores de Música,
onde Lopes-Graça começou a trabalhar quando regressou de Paris em 1939, a convite do seu antigo professor
no Conservatório Nacional de Música de Lisboa, Tomás
Borba. Para além de acolher a parte administrativa da
Sonata, assim como alguns dos concertos promovidos
pela sociedade, desde meados da década de quarenta
que a Academia disponibilizou as suas instalações para
muitas audições de jovens intérpretes, homenagens musicais e espectáculos teatrais que tinham Lopes-Graça
como denominador comum.
A linha de acção da sociedade tinha sido insinuada
por ele próprio na Introdução à Música Moderna, já mencionada. Nesse texto, Lopes-Graça faz depender explicitamente a divulgação das novidades no âmbito da composição musical da educação do público, entendida aqui
como uma suspensão dos preconceitos que ditam o que
é e o que não é aceitável, necessariamente acompanhada
por um esforço de assimilação da linguagem musical. 48
A sua análise da realidade musical portuguesa, aplicável
a outros países ocidentais, reflecte preocupações partilhadas com outros compositores. Lopes-Graça denuncia
a relação um tanto pervertida dos sujeitos participantes
na prática musical, empresários, intérpretes e público:
“O empresário é que é soberano, e os seus interesses
estão acima dos interesses da arte. O intérprete é o assalariado, e a sua vontade tem que se conformar à vontade do empresário. O público é o consumidor, e é evidente
que só pode consumir aquilo que o empresário, através
47“Maria da Graça Amado da Cunha. Uma personalidade singular”, Gazeta
Musical, 11 (1997), p. 4.
48“[...] os maiores inimigos da música moderna se encontram, quase
sempre, entre o público de cultura musical cristalizada num determinado
tipo”, Introdução à música moderna, op. cit., p. 110.
53
do intérprete, lhe manda servir.”49 Neste circuito, basicamente comercial, ficam à partida excluídas todas as
considerações de ordem cultural ou educativa. Atingir o
maior número constitui-se o objectivo preferencial. Lopes-Graça não deixa inclusive de criticar a agressividade
publicitária neste âmbito, responsabilizando-a pelo efeito desorientador que cria. O compositor convida ainda no
mesmo texto a tirar partido das vantagens surgidas com
a irrupção da “era da máquina”, como era referida na
altura. Particularmente, celebra as possibilidades de difusão oferecidas pelos meios mecânicos de reprodução
sonora e pela rádio. Estes dois aspectos – a crítica à realidade comercial dos circuitos da música erudita e a avaliação positiva da “música mecânica” –, reflectiram-se
tanto na Sonata como na Gazeta Musical. A primeira iniciativa foi assumida como um acto de resistência e como
uma decisão explícita de criação de um meio alternativo
através de uma sociedade sem fins lucrativos. Quanto
à revista, idealizada igualmente dentro deste esquema
organizativo, teve ininterruptamente nas suas páginas
informações actualizadas, tanto acerca das novidades
discográficas como acerca dos programas mais aconselháveis nas diversas estações radiofónicas sintonizáveis
em Portugal.
A Sonata, sociedade de concertos “votada à música
contemporânea”, foi criada em 1942.50 Surgiu por iniciativa de Fernando Lopes-Graça, contando com o apoio,
constante e benévolo, da pianista Maria da Graça Amado da Cunha e do escritor João José Cochofel. Os seus
concertos realizaram-se em três locais principais: o
Salão de O Século, a sala da Sociedade Nacional de Belas Artes e a Academia de Amadores de Música. Contou
ainda com a ajuda desinteressada de numerosos intérpretes, que colaboraram, a título gratuito ou em troca
de retribuições em muitos casos meramente simbólicas.
Diversas iniciativas podem ser destacadas como antecedentes da Sonata, sobretudo no que diz respeito à preferência por repertórios pouco abordados, tais como a
música contemporânea, a música antiga ou as músicas
de outras tradições diferentes da ocidental. Talvez o facto de terem estado associadas a figuras femininas, como
a condessa de Proença-a-Velha, Sarah Motta Vieira ou a
49Ibidem, p. 112.
50Curiosamente, “contemporânea” é não “moderna”, um termo que, apesar
de ter sido usado por Lopes-Graça de forma recorrente, se apresentava de
moldes menos “burgueses” e “formalistas”.
54
mencionada Emma Romero Santos Fonseca da Câmara
Reys, tenha sido a causa de não ter sido atribuída grande
importância ao seu papel na renovação dos repertórios
para formações camerísticas e vocais. A feminização
desta prática manteve-se, de facto, como característica
permanente nos concertos da Sonata. Se não contabilizarmos os grupos estáveis, como o Quarteto Húngaro ou
o Quinteto Italiano, as obras apresentadas em primeira
audição pela sociedade foram interpretadas numa percentagem nada menosprezável por mulheres, que, aliás,
aumenta consideravelmente se excluirmos na estatística a colaboração dada por Lopes-Graça como pianista.
Como lhe foram negados os meios de produção para
obras mais ambiciosas, a maior parte dos concertos organizados apresentou nos seus programas obras para
instrumentos solistas ou para pequenos agrupamentos
de câmara.
A Sonata não se deparou apenas com dificuldades
vindas das instituições, directa ou indirectamente, dependentes do Estado.51 Fazia parte da rede de academias culturais criada pelos membros do Partido Comunista Português e apoiada por numerosos simpatizantes, sobretudo
a partir da reorganização de 1943, pelo que também esteve à mercê de vicissitudes políticas.52 Por exemplo, em
carta endereçada por Lopes-Graça ao médico e escritor
Arquimedes da Silva Santos, o compositor tecia diversas
considerações acerca das dificuldades que ia atravessando a sociedade. Refere particularmente os comentários
negativos do crítico do Diário Popular a propósito de um
recital onde tinham sido incluídas obras do compositor
polaco Karol Szymanowsky. A seguir, Lopes-Graça quei-
51 Como por exemplo a Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais
Portugueses, conforme o próprio Lopes-Graça conta numa carta endereçada
ao director do jornal República e que não foi publicada, presumivelmente por
sugestão da polícia política, como podemos deduzir da existência de uma cópia
da mesma guardada no arquivo da PIDE (ANTT, Arquivo PIDE/DGS, Proc.
nº 2585-SR). O confronto com os funcionários da Sociedade de Escritores,
motivado pela sua caótica gestão, provocou a ruptura das relações entre esta
e Lopes-Graça, afectando o funcionamento da própria Sonata. A situação foi
resolvida com a expulsão de Lopes-Graça da Sociedade que, desde então,
deixou de tratar dos seus direitos de autor através da sociedade portuguesa.
V. “Carta 9ª: Ao Director do Jornal República – para a História da Sonata”
(20-XI-1945, inédito), publicado em Um artista intervém. Cartas com alguma
moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974, pp. 235-42.
52Temos um testemunho desta relação em Alberto Vilaça, O PCP em Coimbra,
Lisboa, Edições Avante, 1997. Entrevistas pessoais com Arquimedes da Silva
Santos, responsável por diversas iniciativas culturais em Coimbra, e com Alexandre Babo, responsável, por seu turno, por diversas actividades em Lisboa
e no Porto, confirmaram a importância da presença de militantes comunistas
em núcleos culturais aparentemente neutrais (8-VII-1997 e 16-XI-1997).
55
xa-se do dogmatismo de alguns “camaradas” de Lisboa,
afirmando que, em matéria de arte, essa atitude era de
todo recusável. No mesmo sentido aponta José Blanc de
Portugal quando relata uma discussão posterior a um
dos concertos da sociedade, no curso da qual LopesGraça criticou a obra de um compositor soviético, para
escândalo de alguns militantes comunistas. 53 Por último, e ainda na correspondência enviada a Arquimedes
da Silva Santos, Lopes-Graça menciona a saída de vários
membros do partido da Sonata, assim como as consequências que isto tivera no financiamento da sociedade.54 Contudo, este momento de aparente ruptura não
chegou a ter efeitos drásticos, já que, a partir deste ano
e até Julho de 1949, a sociedade conheceu o seu período
de maior dinamismo. Chegou a atingir os catorze concertos na temporada de 1948. Entre 1947 e 1951, a Sonata chegou inclusivamente a fazer parte da Sociedade
Internacional de Música Contemporânea. Viu-se forçada
a abandoná-la devido à impossibilidade de dar resposta
às obrigações financeiras que tal implicava, assim como
devido a motivos relacionados com o reduzido peso que
tinham as filiais mais frágeis.55 A passagem da Sonata
pela Sociedade Internacional foi bastante efémera, mas
nem por isso foi menos reveladora das intenções de
abertura que apoiaram a decisão de fazer parte de uma
organização internacional.
Apesar da energia dispensada, os concertos da Sonata começaram a decair na década de 50. Assim, a partir de 1950, e até ao fim da sua actividade em 1960, em
nenhuma temporada foram programados mais de cinco
concertos. Este declínio coincidiu com a perda de protagonismo dos intelectuais oposicionistas após 1949. Uma
vez desaparecida a dinâmica mobilizadora e conciliadora
criada pelas eleições à presidência da República nesse
ano, após a desistência do candidato democrata Norton
de Matos, a oposição política desagregou-se formando
grupos mais pequenos e mais homogéneos do ponto de
vista ideológico. Isto coincidiu ainda com a substituição da
actividade pública, que dava uma particular e destacada
dimensão política ao protagonismo dos intelectuais, pelo
53Cf. prefácio de Museu da Música Portuguesa, Fernando Lopes-Graça,
anos 40 [roteiro da exposição], 1997, texto policopiado.
54Carta de Fernando Lopes-Graça a Arquimedes da Silva Santos, 20-XII1944, arquivo pessoal do escritor, consultado na sua presença (8-VII-1997).
55V. Fernando Lopes-Graça, “Sonata e a música contemporânea em
Portugal”, Gazeta Musical, 25/26 (1952), reeditado em A música portuguesa
e os seus problemas, Lisboa, Edições Cosmos, 1973, pp. 161-5.
56
trabalho na clandestinidade.56 Como veremos, a perda
desse papel predominante, que facilitava uma certa independência na acção, trouxe consigo uma maior fragilidade dos artistas comunistas perante as chamadas à
ordem da ortodoxia leninista vinda do comité central. De
resto, parece que a apetência pelo tipo de espectáculos
que a Sonata podia oferecer, ou, pelo menos, por estes
espectáculos quando organizados por Lopes-Graça, não
correspondeu às expectativas dos promotores. Assim,
no relatório anual de actividades da Academia de Amadores de Música relativo ao ano de 1954, publicado na
Gazeta Musical, a direcção manifestava o seu desgosto
pela falta de público assistente aos trinta serões musicais e literários organizados entre 1952 e 1953 por iniciativa de Lopes-Graça.57 Apesar de algumas excepções,
como um dos recitais com primeiras audições de obras
do compositor,58 os serões acabaram no ano seguinte,
devido ao número de sócios “ridiculamente diminuto”
da Academia que esteve presente nos recitais e que não
justificava o esforço de os organizar.59 A Sonata foi perdendo público durante a década de cinquenta, como fica
patente nos sucessivos apelos e nas sucessivas queixas
incluídas nas notícias publicadas na Gazeta Musical a
seu respeito.
Após um período de quase dois anos sem actividade,
a Sonata reapareceu em Maio de 1959. Numa entrevista
concedida por esse motivo ao Diário de Lisboa, LopesGraça explica a impossibilidade de organizar concertos
de alto nível pelo escasso rendimento que se tirava das
contribuições dos sócios.60 Lopes-Graça assinala ainda
56O fim do período de relativa autonomia dos intelectuais coincidiu com a
subserviência do Partido Comunista Português às directivas soviéticas;
cf. João Madeira, “O PCP e a validade universal da experiência soviética”,
História, 2 (1998), pp. 21-2.
57“A todos os ilustres intelectuais e artistas que tão gentilmente acederam
a prestar a sua colaboração aos Serões da Academia, a Direcção agradece
penhoradamente. Mas não pode deixar de aqui manifestar o seu desgosto
pela indiferença com que a grande maioria dos Consócios se absteve de
frequentar estes Serões, não correspondendo mais uma vez aos esforços
constantemente empreendidos pela Direcção no sentido de aumentar
e intensificar as suas regalias”, [redacção], “Academia de Amadores de
Música”, Gazeta Musical, 42 (1954), p. 226.
58V. Francine Benoit, “Os concertos”, Gazeta Musical, 69 (1956), p. 247.
59V. [redacção], “Academia de Amadores de Música”, Gazeta Musical, 70
(1956), p. 253. A falta de interesse não se manifestou unicamente no escasso
público presente nos recitais. Por exemplo, o mesmo relatório assinala que,
entre 1954 e 1955, a Biblioteca da Academia (em grande parte formada pelas
novidades que chegavam para serem comentadas na Gazeta Musical) teve
apenas dezasseis consultas.
60“Diálogo com o compositor Fernando Lopes-Graça: o Reaparecimento da
Sonata”, Diário de Lisboa (12-V-1959).
57
que aquilo que tinha sido a prioridade no momento da
fundação da sociedade, divulgar a música contemporânea mantendo assinaturas muito baratas e com intérpretes que colaboravam quase de graça, se tinha tornado um obstáculo, dada a crescente exigência da parte do
público. Segundo o compositor, a viabilidade da sociedade tinha como única alternativa a triplicação do número
de assinantes, o que nunca chegou a acontecer.
O repertório da Sonata esteve sempre determinado
pelas condições em que desenvolvia a sua actividade, o
que limitou bastante as opções relativamente à escolha
de intérpretes. Contudo, a programação da sociedade
respondeu a linhas bem definidas, das quais Lopes-Graça foi por inteiro o responsável. Foram no total interpretadas cerca de quatrocentas e cinquenta obras da autoria
de mais de uma centena de compositores, entre os quais
se contava um número significativo de compositores
portugueses. Os compositores interpretados em mais de
uma dezena de ocasiões foram, por ordem decrescente,
o próprio Lopes-Graça, Béla Bartók, Paul Hindemith,
Francis Poulenc, Sergei Prokofiev, Albert Roussel e Daniel-Lesur, Igor Stravinsky e Darius Milhaud. Sessenta
e quatro autores, quase a metade do total, foram apresentados numa única ocasião. Com uma percentagem
mínima de reposições, a sociedade apresentou mais de
cento e cinquenta peças em primeira audição portuguesa. Esta simples enumeração salienta, sobretudo, a intenção divulgadora do projecto. Podemos verificar que
alguns dos compositores programados aparecem referidos na primeira crónica internacional de Lopes-Graça,
publicada após a conclusão da Segunda Guerra Mundial,
onde dava notícia da programação do Festival da Sociedade Internacional de Música Contemporânea, que teve
lugar em Londres em 1946.61 Essa relação reflecte bem
a actualidade da programação da Sonata. No programa
da sessão com que a Sonata reiniciou a sua actividade
em 1959 foram incluídas três primeiras audições portuguesas de obras de Stravinsky, Anton Webern e Frank
Martin.62 Lopes-Graça assinalou oportunamente as razões pelas quais esse concerto era relevante no panorama português num artigo onde começava por referir
61 Fernando Lopes-Graça, “Regresso da música”, em Introdução à música
moderna, 1946, 2ª edição, reeditado em Nossa companheira música, op. cit.,
pp. 63-9.
62Respectivamente, o Septeto para instrumentos de sopro (1953), o Concerto
op. 24 (1934) e os Études pour orchestre à cordes (1955-6).
58
que a sociedade continuava empenhada na sua “já histórica missão de dar a conhecer [...] as obras e os autores mais representativos das modernas tendências do
pensamento musical.”63 Apesar do atractivo das obras
e dos compositores programados, o esforço foi infrutífero.
As actividades da sociedade acabaram definitivamente em
1960, com um último concerto dedicado ao compositor italiano Luigi Dallapiccola, que contou com a sua presença.64
“DODECAFONISMO” VS. ORTODOXIA
Acabámos de ver as principais linhas de acção seguidas pela Sonata na sua programação, centrada principalmente em obras dos modernistas “clássicos” (Bartók, Hindemith, Prokofiev, Roussel, Stravinsky) e dos
compositores da geração de Lopes-Graça que seguiam
uma tendência modernista-tradicionalista análoga à dele
(Poulenc, Daniel-Lesur, Milhaud, entre outros). A Gazeta
Musical, por seu turno, constituiu um apoio doutrinário
à programação da Sonata, servindo como tribuna para a
defesa de certos posicionamentos, particularmente o do
uso da música tradicional na composição erudita como
meio de integrar a criação artística na colectividade. A
revista foi também importante no meio português pela
sua acção de divulgação do repertório musical contemporâneo. Todas as secções fixas continham alguma notícia referente à actualidade musical: novidades editoriais, novas gravações ou primeiras audições mundiais.
Foram também incluídos, em cerca da metade dos números, estudos específicos sobre obras portuguesas do
século XX assinados por Nuno Barreiros, aluno de Luís
de Freitas Branco, assim como pequenas monografias
sobre Béla Bartók, Zoltán Kodály e Darius Milhaud. Incluiu também panoramas da actualidade musical de vários países, e uma crónica regular que, desde 1953, deu
conta da actividade musical em França. Para além deste
tipo de informação, digamos, objectiva, que se dedicava à
divulgação das novidades musicais da época, a redacção
fez, entre outras, campanha em favor da música contemporânea, denunciando a indiferença partilhada pela
63“Stravinsky, Webern e Frank Martin na “Sonata”, O Comércio do Porto (28-
VII-1959), reeditado em Musicália, Lisboa, Editorial Caminho, 1992, 3ª edição,
pp. 115-8.
64João José Cochofel, “Dallapiccola em Portugal”, Gazeta Musical e de
Todas as Artes, 109/110 (1960), pp. 41 e 66.
59
maior parte do público “por toda a música que extravasa a sua experiência imediata, aquela ‘música-recordação-de-família’ a que adere em virtude do princípio do
mínimo esforço e que, podendo embora ser muito boa
música, está longe de ser tudo quanto a arte dos sons
tem a oferecer-nos e a cativar-nos.”65 Esta ausência de
interesse, clara num dos “Comentários” de 1956, era outro dos sintomas da falta de dinamismo da vida musical
lisboeta:
Ao nosso conhecimento imperfeito destes compositores [Stravinsky, Bartók, Hindemith e Prokofiev], que só
parcialmente representam a música novecentista, junta-se o nosso quase total desconhecimento de bom número de outros, da mesma ou aproximada craveira, que
completam o panorama da criação moderna e sem a
presença dos quais estes se achariam na realidade, diminuídos na sua significação. [...] E assim continuamos
divorciados da música dos nossos tempos, talvez com
muito aprazimento de certas mentalidades, mas com
manifesto prejuízo da nossa cultura artística.66
A participação de Fernando Lopes-Graça na revista como divulgador fez-se também notar neste âmbito.
Os artigos escritos sobre os compositores Bartók e Milhaud, e sobre a actualidade musical em França e Inglaterra67 são exemplos da perseverança com que aproveitava qualquer ocasião para chamar a atenção para a falta de divulgação da música do século XX. Por exemplo,
a retirada, em 1953, das Metamorfoses sinfónicas sobre
temas de Carl Maria von Weber, de Paul Hindemith do
programa anunciado pela Orquestra de Bamberg na sua
apresentação em Lisboa, sob a direcção musical de Joseph Keilberth, foi motivo suficiente para Lopes-Graça
ter enviado uma carta aberta ao Diário de Lisboa, que
65[Redacção], “Falta de curiosidade musical”, Gazeta Musical, 22 (1952), p. 1.
V. também. João José Cochofel, “Males e virtudes da música contemporânea”,
id., 21 (1952), pp. 8-9.
66[Redacção], “Cultura musical”, Gazeta Musical, 73/74 (1956), p. 2.
67 Cf. Fernando Lopes-Graça, “Breve defesa de Milhaud”, Gazeta Musical, 27
(1952) p. 34; “Milhaud e a música francesa contemporânea”, id., 29 (1953), p.
56; “Uma grande figura da música contemporânea: Béla Bartók”, id. 32 e 33
(1953), pp. 98-102 e 112-5; “Breves considerações sobre a música francesa
contemporânea”, id., 56 (1955), pp. 85-6; “Visita a Alan Bush”, id., 57 (1955),
pp. 101-2; “Visita a Humphrey Searle”, id. 58 (1955), pp. 112-4; “Apresentação
de alguns modernos compositores ingleses”, id., 60 (1955), pp. 138-41.
68“Carta aberta ao maestro Joseph Keilberth”, Gazeta Musical, 28 (1953), p.
42. Correu o rumor, conforme conta o próprio Lopes-Graça, de que um grupo
de habitués do teatro tinha enviado uma carta à gerência, protestando pela
inclusão da obra no programa.
60
foi posteriormente reproduzida na Gazeta Musical. O
compositor escreveu também chamando a atenção para
a importância da Sonata como sociedade de concertos
divulgadora da música contemporânea.69
Os debates entre o modernismo tradicionalista e a
vanguarda, por um lado, e entre modernismo e arte social, por outro, manifestaram-se em diversos textos publicados ao longo da primeira série da Gazeta Musical.
Não devemos perder de vista que a revista foi coetânea da
irrupção no âmbito da composição europeia da vanguarda serialista. Lembremos que, entre 1949 e 1950, Olivier
Messiaen escreveu os seus Quatre études de rythme, o
segundo dos quais – “Mode de valeurs et d’intensités”,
de 1949 –, causou uma viva impressão nos jovens compositores Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen aquando da sua apresentação, em 1951, nos cursos de Verão
de música contemporânea organizados em Darmstadt.
Constituiu um ponto de partida para a nova geração, que
se concretizou em obras como Kreuzspiel (1951), de Stockhausen, ou o livro primeiro das Structures para dois
pianos (1951-2), de Boulez. Quando, nos primeiros anos
da década de 50, estes autores foram divulgados nas
páginas da Gazeta Musical, Lopes-Graça posicionou-se
decisivamente num campo antagónico, fortemente marcado por questões ideológicas. A “polémica do dodecafonismo” coincidiu, como já apontámos, com a cruzada em
defesa das qualidades da música tradicional portuguesa
como base da composição musical erudita, encetada
por Lopes-Graça nas páginas da Ler e da própria Gazeta Musical, que culminou com a publicação do volume
intitulado A Canção Popular Portuguesa. Estes artigos
foram consequência de um acontecimento fundamental
que congelou provisoriamente as dúvidas heterodoxas
que Lopes-Graça tinha vindo a expor em artigos anteriores a 1945: o Congresso de Compositores e Musicólogos
Progressistas, que teve lugar em Praga em 1948. LopesGraça visitou Paris nesse mesmo ano pela primeira vez
desde 1939, quando o início da II Guerra Mundial tinha
tornado a sua permanência ali impossível, forçando o
seu regresso a Lisboa. Através do compositor de origem
alemã Louis Saguer, Lopes-Graça conheceu pelo menos
três músicos brasileiros: Cláudio Santoro, Luís Heitor e
Arnaldo Estrela. Todos eles tinham em comum a sua mi-
69“Sonata e a música contemporânea em Portugal”, Gazeta Musical, 25/26
(1952), p. 11, 22.
61
litância no Partido Comunista,70 e foi justamente o Congresso de Praga, um dos eventos organizados segundo
as directrizes soviéticas, que estreitou temporariamente as relações entre eles.71 Estes músicos eram conscientes da urgência de um trabalho de “agitação”72 que
tivesse como intuito argumentar contra os críticos que
acusavam estas tendências populistas de atrasadas na
história da música. O citado Manifesto de Praga determinou as linhas de acção dos músicos comunistas nos países onde não estava instaurado um regime socialista.
As teses do Manifesto estão recolhidas num boletim
organizado em 1949 por Vladimir Stëpanek, do qual se
conserva um exemplar da versão inglesa no arquivo de
Lopes-Graça.73 Este boletim transcreve, entre outros artigos, a posição oficial soviética sobre o papel que devia
ser assumido pelos profissionais da música para resolver a “crise musical contemporânea”.74 Primeiramente,
os compositores deviam combater e anular a sua tendência para o subjectivismo, de maneira a transformar
a sua música na expressão das ideias e das emoções
progressistas das massas. Em segundo lugar, deviam
contrariar a corrente “cosmopolita”, aprofundando as
suas características nacionais para criar um verdadeiro internacionalismo musical. Em terceiro lugar, deviam
dedicar-se preferencialmente àqueles géneros musicais
capazes de veicular conteúdos concretos, nomeadamente aos géneros vocais. Por último, tanto os compositores
como os musicólogos deviam trabalhar em prol da educação musical das massas. A avaliação que Lopes-Graça fez do Manifesto de Praga é reveladora:
70Tratando-se de “comunistas declarados”, em palavras de Vasco Mariz
numa carta a Lopes-Graça escrita no Porto a 28-VI-1948, o que impedia a
sua vinda a Portugal para dar concertos, v. MMP/FLG/COR/M/2/20.
71V. Teresa Cascudo, “Brasil como espelho, Brasil como tópico, Brasil
como argumento: as relações de Fernando Lopes-Graça com a cultura
portuguesa”, em António Bispo (ed.), Brasil-Europa 500 anos: música e
visões (actas do congesso internacional celebrado em Colónia, em Setembro
de 1999), Colónia, Academia Brasil-Europa, 2000, pp. 258-272 e Ricardo
Tacuchian, “Relações da música brasileira com Lopes-Graça”, Brasiliana,
17, 2004.
72Em palavras de Cláudio Santoro: “O principal é que se agite o problema”,
carta a Fernando Lopes-Graça (Rio de Janeiro, 5-XI-1948), MMP/FLG/COR/
S/1/16.
73Vladimir Stëpanek (ed.), Bulletin issued by the Bureau of the Preparatory
Committee of the International Associations of Progressive Composers and
Musicologists in Prague, 1 (1949). Podemos arriscar que o próprio LopesGraça tivesse trazido este documento com o intuito de o divulgar. De facto,
apareceu nas páginas da revista Vértice pouco tempo depois.
74 “Soviet opinion on the Internacional Association of Progressive Composers.
From writtings on «The Development of Soviet Music»”, Vladimir Stëpanek
(ed.), op. cit., p. 3.
62
As questões estéticas, pedagógicas e de organização
musical ali debatidas eram, na verdade, de grande importância; mas, embora os trabalhos apresentados e as
discussões à sua volta se tivessem revestido de um alto
interesse, creio que, no fundo, não fizeram mais do que
reforçar em mim convicções e posições anteriores, tais
como a da maior acessibilidade e comunicabilidade humana da música contemporânea, presa por vezes nas
malhas de experimentalismos por demais áridos e estiolantes, a da afirmação e defesa do carácter nacional
das diferentes culturas musicais, a da necessidade de
estender os benefícios da música a largas camadas populacionais.75
Os ecos da reunião de Praga evidenciaram-se também na mencionada entrevista concedida pelo compositor ao Jornal do Brasil, no decorrer da qual afirma
que a música com maiores possibilidades de sobreviver
é a que se baseia em recursos simples, com propósitos claros e à qual pode ser atribuído um significado
humanista de acordo com uma missão ética, contrária
àquilo que é correntemente denominado formalismo.76
A posição de Lopes-Graça manteve-se, portanto, estável, pelo menos no que se refere às suas intervenções
públicas, nos quatro anos imediatamente posteriores
ao congresso na capital checa, reflectindo aliás no seu
catálogo a adopção de algumas das teses do Manifesto
de Praga. Estes foram os anos da maior parte das suas
harmonizações de canções tradicionais não portuguesas – uma espécie de tradução à la lettre do princípio
do internacionalismo – e da organização, quase febril,
de eventos musicais que, segundo as directrizes do
congresso, assinalaram efemérides relacionadas com
figuras ilustres da história da música.
Outra das incidências das discussões internacionais
que a luta pelo espaço simbólico da “reconstrução” musical provocou, apareceu em 1951, nas páginas da Gazeta
Musical, através da notícia da publicação de um livro de
René Leibowitz, L’Artiste et sa conscience. O volume reúne várias conferências, pronunciadas no Collège Philosophique de Paris em Novembro e Dezembro de 1948, e
75“Uma entrevista com Fernando Lopes-Graça”, Ler, 5 (1952), p. 8.
76 V. Mozart de Araújo (entrevista conduzida por), “Conversa com Fernando
Lopes-Graça”, Jornal de Letras (1952), transcrita em Gazeta Musical, 19
(1952).
63
um texto adicionado como epílogo.77 Não vale a pena, no
âmbito deste trabalho, destacar os argumentos contrários às teses do Manifesto de Praga, ao qual regressaremos mais adiante, e algumas das suas consequências
anedóticas,78 porque o que Leibowitz coloca num plano
central é a pressão das imposições estéticas vindas,
tanto do poder político, como do poder económico. Para
este autor, as dimensões adquiridas pela produção industrial da música – exemplificada através da prática
musical popular americana – e as imposições soviéticas
em matéria de criação musical eram análogas, já que
ambas perseguiam os mesmos objectivos: simplificação
e massificação. Cochofel, na recensão do livro, protestou, contudo, não tanto pelas evidências assinaladas por
Leibowitz, mas pela maneira como este, na sua opinião,
tinha evitado o cerne do debate:
Onde não podemos deixar de estar de acordo é na
conclusão de que «só uma obra de arte autêntica (quer
dizer uma obra de arte que deva a sua existência a meios
puramente artísticos utilizados magistralmente) pode,
sendo inspirada por realidades sociais, tornar-se uma
expressão válida dessas realidades e constituir uma
real homenagem para com elas». Mas isso é quase um
lugar comum que ninguém se lembrará de contestar. E
ao mesmo tempo uma fuga ao verdadeiro problema do
“alistamento do artista”, que em nosso entender Leibowitz deixa intacto, na sua terrível complexidade.79
Cochofel devia ter bastante presente a agudeza com
que esse dilema se estava a colocar no campo intelectual português situado na órbita do Partido Comunista.
Assim, em 1952 e em 1954, Cochofel e Lopes-Graça receberam reprimendas públicas na revista Vértice (que,
não o esqueçamos, era financiada pelo partido) como
reacção à sua posição partilhada em relação aos deve-
77René Leibowitz, prefácio de Jean-Paul Sartre, L’artiste et sa conscience.
Esquisse d’une dialectique de la conscience artistique, Paris, L’Arche, 1950.
Para uma visão de conjunto da composição em França nestes anos, v.
Michèle Alten, Musiciens français dans la guerre froide [1945-1956], Paris,
L’Harmattan, 2000.
78Como, por exemplo, as considerações tecidas a propósito da ida aos
cursos de Darmstadt de uma delegação de compositores “progressistas”,
entre os quais se encotrava Louis Saguer, amigo de Lopes-Graça, v. René
Leibowitz, L’artiste et sa conscience, op. cit., pp. 117-23.
79João José Cochofel, “Bibliografia musical”, Gazeta Musical , 12 (1951), p. 3.
O itálico é nosso.
64
res do artista e ao seu conceito de arte. 80 Cochofel foi
criticado por António José Saraiva, num texto escrito
em resposta ao seu artigo “Notas soltas acerca da arte,
dos artistas e do público”.81 Fragmentos de ensaios de
Lopes-Graça foram utilizados por Álvaro Cunhal no seu
artigo publicado, como dissemos, em 1954, sob pseudónimo: “Cinco notas sobre forma e conteúdo”.82 Enquanto
a resposta dada à intervenção de Cochofel foi imediata,
Cunhal criticou a posição de Lopes-Graça de forma retrospectiva, argumentando contra opiniões exprimidas
pelo compositor uma década antes, assinalando assim
– quiçá inadvertidamente – a antiguidade da heterodoxia
entre os intelectuais do seu partido. 83 Regressaremos a
este texto.
Em 1953, Manuel Dias da Fonseca introduziu em
Portugal, mais uma vez através das páginas da Gazeta
Musical, dois jovens representantes da vanguarda musical europeia mais radical: Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen. A sua entrevista com Boulez, a primeira
de fundo realizada ao compositor que, na altura, tinha 28
anos, apareceu com uma introdução na qual assinalava
a necessidade de conhecer os argumentos de todas as
partes, dada a frequência com que apareciam na mesma
revista “ataques ao dodecafonismo”. 84 Não surpreende
o tom diplomático quando se verifica que as respostas
dadas por Boulez na entrevista, defendem, em resumo,
justamente o contrário do propugnado por Lopes-Graça
80No arquivo pessoal de João José Cochofel, guardado nos Reservados da
Biblioteca Nacional de Lisboa, conservam-se cartas anónimas, que incluem
ameaças para fazê-lo desistir da sua colaboração na Ler. As críticas chegaram
igualmente a outros colaboradores como Piteira Santos, que foi acusado de
provocador e divulgador de “ideias cosmopolitistas de conteúdo confusionista
e reaccionário”, v. “Atrair os falsos democratas”, Avante, 179 (1953).
81João José Cochofel, “Notas soltas acerca da arte, dos artistas e do
público”, Vértice, 107 (1952), pp. 343-9, refutado por António José Saraiva,
“Problema mal posto”, Vértice, 109 (1952), pp. 495-499, ao qual Cochofel
respondeu, reafirmando as suas posições, em “Problema falseado”, Vértice,
109 (1952), pp. 501-2.
82António Vale [Álvaro Cunhal], “Cinco notas sobre forma e conteúdo”,
Vértice, 131-2 (1954), pp. 466-84; respondido por Lopes-Graça em “Uma
Carta do Nosso Colaborador Fernando Lopes-Graça”, Vértice, 134 (1954) [em
Art-Cartas, pp. 281-3].
83Estas novas “chamadas à ordem” ideológica enquadram-se num processo
maior dirigido contra a Ler e usado para implantar a ortodoxia na Vértice. O
assunto é analisado em João Madeira, Os Engenheiros de Almas. O Partido
Comunista e os Intelectuais (dos Anos Trinta a Inicios de Sessenta), Lisboa,
Editorial Estampa, 1996 e José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, uma Biografia
Política, vol. III - O Prisioneiro (1949-1960), Lisboa, Temas e Debates, 2005.
84 Manuel Dias da Fonseca (entrevista conduzida por), “Um depoimento de
Pierre Boulez”, Gazeta Musical, 37/38 (1953), p. 172.
65
nestes anos.85 Boulez argumenta contra as imputações
de novo escolasticismo lançadas ao serialismo, põe em
causa a existência de qualquer “tradição nacional”, acusa Milhaud de reaccionário e assegura que a pouca difusão da nova música se deve à censura activa da parte
dos nacionalistas, que perderiam a “partida” se esta fosse interpretada mais vezes. Dois anos depois, em 1955,
ao publicar a sua entrevista a Stockhausen, Dias da Fonseca viu-se na obrigação de explicar numa introdução
que a sua ideia não era fazer propaganda de nenhuma
corrente estética, mas, unicamente, “aguçar o sentido
crítico dos leitores da Gazeta Musical”86. Isto apesar
das respostas de Stockhausen às suas perguntas serem
bastante conciliadoras. O compositor alemão aproveitou
a entrevista para traçar um panorama das novidades
da composição europeia, explicando a génese das suas
próprias opções enquanto compositor e informando das
suas actividades no campo da música electroacústica.
A posição de Lopes-Graça foi divulgada pela Gazeta
Musical, primeiramente através da reprodução de uma
entrevista dada ao Jornal de Letras do Rio de Janeiro,
em 1952, ou seja, anterior à entrevista dada por Boulez.87
Lopes-Graça expõe aí claramente a sua defesa aberta
de uma música baseada em fontes populares, oposta ao
intelectualismo, escolasticismo e desumanidade da música “dodecafónica”, como era então designado não só
o dodecafonismo schönberguiano, mas também as suas
aplicações individuais e o serialismo integral. Meses
depois, na sua resposta às afirmações de Boulez, Lopes-Graça assinalou ainda o que, na sua opinião, eram
abusos argumentativos, identificando sete “sofismas”:
confusão entre linguagem e técnica; assimilação histórica da descoberta do serialismo à passagem da monodia
à polifonia; confusão do conceito de escolástica com o
85Por exemplo: “O “cosmopolitismo”, que se censura ao dodecafonismo,
“cosmopolitismo” que impediria de se manifestarem as tendências
nacionais, é uma censura só digna de pequenos provincianos atrasados e
que nunca saíram da sua concha. Que fiquem, portanto, com as suas danças
aldeãs, esse adeptos do nacionalismo musical: eles não são capazes de fazer
melhor. A sua raiva impotente manifesta-se como pode. Ou é uma censura
digna de racistas nacionalistas, portanto desprezíveis!”, op. cit., p. 175.
86Manuel Dias da Fonseca (entrevista conduzida por), “Karlheinz
Stochausen fala do dodecafonismo e da música electrónica”, Gazeta
Musical , 61/62 (1955), p. 156.
87“Conversa com Fernando Lopes-Graça”, Gazeta Musical , 19 (Abril, 1952),
p. 6-7. Acerca da posição de Lopes-Graça em relação à vanguarda da década
de 50, v. também “Sistemas musicais e realidade humana”, O Comércio do
Porto (1951), reeditado em Nossa companheira música, op. cit., pp. 141-3.
66
de academismo; impossibilidade de criação de uma tradição nacional devido à actual degeneração do folclore e
confusão entre cosmopolitismo e universalismo; acusação gratuita de nacionalistas, racistas ou medíocres aos
opositores do “dodecafonismo”; e, por último, negação
da complexidade dos processos históricos. 88
Não percamos de vista que este “comentário” ao depoimento de Pierre Boulez realizado por Lopes-Graça,
publicado em 1953, e a explicação, assinada pela redacção, de que a dita entrevista se devia à iniciativa individual
de Dias da Fonseca, num texto onde também se esclarece que os princípios expostos por Boulez eram diametralmente opostos aos defendidos pela revista, são sintomas
da intenção de não contrariar as exigências de ortodoxia
vindas do Partido Comunista Português na mesma altura. Estas verificam-se no mencionado artigo de Álvaro
Cunhal/António Vale, onde se critica nos seguintes termos o “formalismo” advogado uma década antes por Lopes-Graça na sua Introdução à Música Moderna:
No que respeita à música, Lopes-Graça pretende que
«em nenhuma outra arte como a música [...] a oposição
forma-fundo, forma-conteúdo, tem menos razão de ser,
é mais artificiosa e pode conduzir a erros mais graves».
Lopes-Graça opõe à música romântica que considerava
o som «um meio», o modernismo para o qual «a música é uma realidade em-si mesma». «Os compositores
modernos [diz] sentiram a necessidade de restituir a
música... à música». Mas a que conduz a evolução lógica de uma tal concepção e orientação? Lopes-Graça
reconhece que conduz à «música anti-expressiva, uma
música baseada apenas no jogo de valores dinâmicos
ou de quase matemáticas combinações contrapontísticas», onde «a música se encontra realmente reduzida
(ou quase) à sua pura essencialidade temporal»! Desta forma fica claro que a tendência da «música pura»,
pretendendo esvaziar a música de qualquer conteúdo
não puramente «musical», acaba por reduzir a música a simples acrobacias técnicas, ou seja, a esvaziar
a música da... arte musical. Esta dificuldade é sentida
por Lopes-Graça que se vê na necessidade de admitir
que também a música moderna pode querer exprimir
qualquer coisa, mas «intrinsecamente musical», «um
conteúdo de ordem puramente espiritual» [sic]. Mas,
se o conteúdo a exprimir é a própria matéria musical,
então é de admitir que se diga que a música pode expri-
88“À volta do dodecafonismo. Comentário a um depoimento de Pierre
Boulez”, Gazeta Musical, 37-8 (1953), pp. 173 e 176, reeditado em Reflexões
sobre a música, op. cit., pp. 97-108.
67
mir qualquer coisa, mas tem de dizer-se que a exprime
sempre e a todo instante. E se aceita que exprime umas
vezes e não outras, ou se admite que aquilo que exprime
não é «intrinsecamente musical», ou se tem de admitir que muitas composições modernas contêm sons de
princípio a fim, mas sons musicais só por vezes. 89
Lopes-Graça já tinha dado conta, no seu ensaio, da
aparente contradição existente na afirmação de que a
música moderna era fundamentalmente anti-romântica
pelo seu carácter formalista e pela sua capacidade de exprimir “o que tinha a exprimir” através de uma linguagem
musical renovada, em muitas ocasiões difícil, mas nunca
esotérica ou ininteligível.90 No entanto, na perspectiva de
Cunhal, para quem musicalidade e expressão eram sinónimos, essa contradição resultava numa inconsistência.
Lopes-Graça parece ter tentado explicar melhor a sua
posição, não sem certa dose de malabarismo argumentativo, na sua resposta ao inquérito “Para onde vai a música?”, também de 1954, onde reafirma a ideia de que o
objectivo fundamental da composição musical não era a
especulação, mas sim a expressão. Embora sem recusar
de forma absoluta os caminhos abertos pela nova música,
o que ele fez foi colocar as escolhas técnicas numa posição subsidiária em relação à da própria função expressiva
e estética da obra musical:
Tudo isto pode ser interessante, tudo isto pode ser lícito,
sob condição de que não se caia no domínio da pura experiência laboratorial, da descoberta pela descoberta, de
que a busca seja feita por necessidade, com vista ao enriquecimento do pensamento e da expressão, e não apenas para “demonstrar” possibilidades, não apenas para
substituir a motivação estética da música por uma motivação científica em que esta seria apenas um pretexto.91
De facto, o próprio Lopes-Graça foi, à sua maneira, permeável às novidades técnicas surgidas na década de 50,
derivadas da “redescoberta” da música de Anton Webern.
89António Vale [Álvaro Cunhal], “Cinco notas sobre forma e conteúdo”,
Vértice, 131-2 (1954), pp. 468-9. Os parênteses rectos e o itálico são do autor.
A resposta de Lopes-Graça está em “Uma carta do nosso colaborador
Fernando Lopes-Graça”, Vértice, 134 (1954), reeditada em Um artista
intervém. Cartas com alguma moral, op. cit., pp. 281-3.
90Fernando Lopes-Graça, Introdução à música moderna, op. cit., p. 108, n. 1.
91Fernando Lopes-Graça, “Para onde vai a música?”, Gazeta Musical, 49/50
(1954), reeditado em Nossa companheira música, op. cit., p. 152, e “Para
onde vai a música?”, id., 49/50 (1954), pp. 1, 3.
68
No entanto, houve sequelas do debate que permaneceram
na segunda série da revista. Por exemplo, o primeiro número da nova época contém na capa o artigo “Variações”,
de 1958, onde Lopes-Graça arremete contra a “fanfarra
psico-metafísica” do livro Schönberg, de H.H. Stuckenschmidt.92 É preciso advertir que não estava isolado, visto
que a revista também informou os leitores, no número
seguinte, publicando uma notícia sobre a edição de Pour
ou contre la musique moderne, colectânea de entrevistas
realizadas a várias dezenas de compositores activos em
1957 – entre os quais está Lopes-Graça – e coordenada
pelo crítico Bernard Gavotty e pelo compositor Daniel-Lesur.93 O rescaldo da polémica prolongou-se durante aquele
ano, recuperando até um certo tom mordaz das primeiras
colaborações jornalísticas de Lopes-Graça:
É possível, e é também evidente que certos aspectos
da música hodierna não estão ao abrigo da crítica, que,
quando exercida com inteligência e dignidade, é tão legítima (mesmo quando se engana) como a própria criação
(que também não está ao abrigo de ilusões), pese embora àqueles dos criadores actuais que, soberbos das
suas “descobertas” e desconhecendo os “caprichos” da
história (que concebem como um processo algo mecânico), adoptam uma atitude perigosamente dogmática,
crendo-se os próprios, únicos e sagrados agentes das
imposições ou exigências dessa história, que, de facto,
as não tem, ou só as terá numa medida que quase sempre escapa à percepção e aos cálculos dos que dela são,
não agentes, mas sofrentes... 94
Contudo, e neste mesmo período de tempo, LopesGraça foi adoptando uma posição mais tolerante. Passado bastante tempo após os confrontos mais agressivos, em 1967, Lopes-Graça chegou inclusive a defender
o aprofundamento do diálogo entre o público e os novos
compositores vanguardistas.95 A partir de meados da
92Fernando Lopes-Graça, “Variações”, Gazeta Musical e de Todas as Artes,
82(1958), pp. 1-2.
93 Bernard Gavoty e Daniel-Lesur, Pour ou contre la musique moderne,
Paris, Ed. Flammarion, 1957. V. Fernando Lopes-Graça, “Um debate sobre a
música moderna”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, 83 (1958), pp. 30-3.
94Fernando Lopes-Graça, “Os novos caminhos da música”, Gazeta Musical e
de Todas as Artes, 89/90, (1958), p. 135.
95Fernando Lopes-Graça, “A nova música e o público”, Gazeta Musical e de
Todas as Artes, 186/197 (1967), pp. 1-2. Comunicação apresentada numa das
mesas redondas do XXI Congresso da Federação Internacional das Juventudes
Musicais (Montreal, Junho de 1967). A mesa foi moderada por Gilles Lefèvbre,
presidente da Federação, e nela participaram, para além de Lopes-Graça, os
seguintes compositores: Wolfgang Fortner, Jean Papineau Couture, Gottfried
von Einem, Milko Kelemen, Witold Lutoslawski e Elliot Carter.
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década de 50 e durante a de 60, a mudança reflectiuse também na sua obra musical, ao pôr num segundo
plano, nas suas obras mais ambiciosas, o recurso literal
à música tradicional portuguesa que tinha predominado numa parte substancial da sua obra musical desde
finais da década de 30. Esta viragem permitiu inclusive
que houvesse “novos” que puderam, a partir de então,
usar as suas obras de finais da década de 50 e inícios da
década de 60 como antecedente histórico. É o caso de
Jorge Peixinho, que foi o primeiro autor em assinalar o
lugar de relevo ocupado pelos Cinco Nocturnos (1955-7)
na produção de Lopes-Graça, considerando-os, juntamente com o Canto de Amor e de Morte (1961), uma das
obras mais importantes dos anos de maturidade plena
do compositor.96 Nas suas análises, Peixinho demonstrou que ambas as obras podiam ser estudadas a partir
da linguagem técnica da vanguarda, sobretudo no que
diz respeito à completa integração dos elementos de
cada peça abolindo os conceitos de verticalidade e horizontalidade (isto é, de harmonia e de melodia) e a sua
elaboração a partir de escolhas prévias que unificam a
obra na sua globalidade. Porém, apesar da sua inegável
importância, estas análises são, no fundo, mais reveladoras das intenções de Peixinho do que das preocupações do próprio Lopes-Graça, cujo expressivo universo
sonoro permanecia nessas obras, de facto, mais próximo dos mestres do primeiro modernismo.
ENTRE O BELO E O SUBLIME
O social e o político imiscuíram-se de forma particularmente impositiva, quase inevitável, na obra de Fernando Lopes-Graça entre 1936 e 1954, mas nunca fizeram com que os princípios do modernismo fossem por
ele abandonados; assim como não modificaram grandemente o seu cânon pessoal, conformado na década de
30 e do qual faziam parte compositores modernistas tais
como Debussy, Szymanovski, Ravel, Stravinsky, Falla
e Bartók. As imagens do Lopes-Graça nacionalista, no
96Jorge Peixinho, “Canto de amor e de morte. Introdução a um ensaio
de interpretação morfológica” em III Ciclo de Cultura Musical. Fernando
Lopes-Graça [brochura editada pela Associação de Letras da Faculdade de
Direito de Lisboa em colaboração com a Juventude Musical Portuguesa],
Lisboa, Abril de 1966, pp. 35-40; “Lopes-Graça: uma figura ímpar da cultura
portuguesa”, em Uma homenagem a Fernando Lopes-Graça, Câmara
Municipal de Matosinhos/Edições Afrontamento, 1995.
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sentido restringido de compositor que se servia da música tradicional como material para a sua criação, e do
Lopes-Graça assimilável pela vanguarda, veiculadas na
imprensa respectivamente nas décadas de 40 e de 60,
embora respondessem a mudanças patentes na obra do
compositor, fizeram com que os contornos da permanência das suas origens estéticas ao longo do seu percurso
criativo se esbatessem. Contudo, e apesar de ressalvas
pontuais, não se pode dizer que Lopes-Graça repudiasse por completo de forma explícita os seus escritos da
década de 30 e inícios da década de 40. Antes pelo contrário, transformou-os em livros que, nalguns casos,
tiveram mais de uma edição. Esta maneira de divulgar
as suas conferências e as suas colaborações jornalísticas tem contribuído para a construção de uma imagem
fixa e quase monolítica do compositor, o qual, apesar da
permanência de princípios estéticos antes declarada, foi
incluindo novos temas e novas preocupações no meio
das suas reflexões, condicionado pelas circunstâncias
históricas e políticas. Mais ainda, tendo sido construída
através da sua música, dos seus escritos e da sua acção,
mas também através das interpretações propostas, tanto por camaradas e companheiros de caminho, como por
seus oponentes ideológicos, na figura de Lopes-Graça
foram-se cruzando muitas das ideias e dos confrontos
que agitaram as artes do século XX português, particularmente no campo da oposição ao Estado Novo durante
os anos aqui considerados.
Lopes-Graça serviu-se da latente subversão do moderno, marcando logo uma posição combativa nos seus
primeiros anos de actividade profissional mediante a sua
defesa. O compositor propôs um conceito de beleza musical directamente associada ao primado da forma “musicalmente” expressiva e entendida como sensação ou
imagem sonora, em detrimento da sua concepção como
forma psicológica, filosófica ou ideologicamente expressiva. Este foi, aliás, o eixo da sua crítica ao nacionalismo
musical apregoado por Rui Coelho em inícios da década
de 30: a prova é que o seu “nacionalismo essencial” a
partir da década de 40 se justificou em termos estéticos
através da abordagem da música tradicional enquanto
“material”. Esta oposição – de termos, porém, não excludentes – articulou-se com a defesa de um tipo determinado de recepção em moldes formais da música enquanto forma de criação lógica e inteligível, o qual se definia em contra da ideia da música enquanto linguagem
do sentimento. Por esta via, definiu-se igualmente o seu
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anti-romantismo. Não deixa, ainda, de ser em certa medida contraditório do ponto de vista do seu anti-romantismo que a sua definição de moderno na música como
arte absoluta e radicalmente autónoma da subserviência perante o mundo da realidade – daquilo que podia
ser documentado, imitado ou traduzido – uma paráfrase
da definição mais canónica de romantismo musical, tal
como ela se apresentou nos escritos de E. T. Hoffmann.
Lopes-Graça ecoou nos seus escritos a influência de Ortega y Gasset também na sua concepção distanciada e
contemplativa da criação e da recepção musicais, onde
reside o verdadeiro cerne da teoria da desumanização
da arte. A ideia de beleza – associada portanto à da pura
contemplação da arte dos sons – prende-se com a prevalência dada à linguagem musical desligada de qualquer indício representacional patente nos seus artigos
das décadas de 30 e, inclusivamente, de 40 e 50, primado
também atribuído à forma, ao jogo e ao movimento de
elementos sonoros claramente diferenciados – alheios,
até – das paixões e dos sentimentos. Recusou, porém, o
aplauso orteguiano da arte como jogo, revelando assim
– embora esta hipótese careça de ser desenvolvida no
futuro – a permanência no seu pensamento da estética
do sublime enquanto consciência e reflexão em torno do
homem e do seu destino.
Quando em fins da década de 30 a questão do papel
a assumir pela realidade na criação artística se tornou
num tópico dos debates artísticos, Lopes-Graça recuperou e assimilou no seu pensamento estético o conceito
de símbolo, que, para ele, estava directamente ligado
ao romantismo. Se por um lado, portanto, nos deparámos, em Lopes-Graça, com uma concepção autónoma
da obra artística, esta ideia não o impediu de tentar outras vias, respondendo à sua maneira às novas condições criadas pela massificação da cultura e tentando,
na medida do possível, a integração da música e da sua
música nas mesmas. A sua modernidade foi indissolúvel de uma dramática e assumida consciência histórica
– de si enquanto compositor e do seu trabalho como tal
–, condicionada pelas circunstâncias e pelos pontos de
partida por ele individualizados e destacados na “história” que lhe foi dada viver e na qual a sua criação se quis
integrar. Isto não significa que as esferas do real e do artístico se confundissem no seu pensamento sobre as artes. Antes pelo contrário, vincou claramente a distância
que separava a realidade da vida e a realidade da arte,
entendendo esta última como realidade “possivelmente
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maior, mais larga, mais alta”, levando as suas expressões até ao limite, como uma espécie de sobre-realidade. Nessa sobre-realidade inscreveu uma boa parte da
sua obra criativa, enquanto a outra parte era produzida
para ser directamente actuante no mundo da realidade, o mundo que quis transformar mediante a Sonata e
a Gazeta Musical. Só a partir de uma posição baseada
num entendimento moralista ou utilitarista da arte é que
se poderiam condenar os cautelosos malabarismos argumentativos através dos quais Lopes-Graça defendeu
as suas ideias, mantendo a sua integridade ao longo de
mais de seis décadas.
O modernismo como primado da linguagem “que
se constitui, inesperada, a partir dum vazio, dum nãoeu”, na expressão de Jacinto do Prado Coelho, e como
conceitualização do mundo em regime de instabilidade radical teve, de facto, em Lopes-Graça um dos seus
mais apólogos. O modernismo, entendido como “tradição contra si própria” e como “reconstrução artística do
mundo” (Matei Calinescu), também surgiu seu efeito no
nosso compositor, juntamente com a tendência para a
“transposição” ou “expressão paradoxal das emoções
e dos sentimentos” (José Régio). Dando prevalência ao
conceito de música musicalmente expressiva, LopesGraça escreveu uma nova página na história da música
portuguesa. Materializou-o numa obra múltipla e sincera, na qual, porém, é sempre claramente identificável a
mão do seu autor. Talvez essa seja a maior conquista do
modernismo de Lopes-Graça, na medida em que o seu
eu criador está inscrito em todas as suas obras capitais,
livre e independente das ortodoxias ideológicas a partir
das quais foi atacado ou celebrado.
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