Edição de Janeiro de 2012 em PDF

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Edição de Janeiro de 2012 em PDF
EDIÇÃO 01 | JANEIRO DE 2012 | FASE II
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00 | EDITORIAL | TODOS OS PORTOS SÃO INSEGUROS | Os primeiros 10 anos de Agulha
Revista de Cultura constituem experiência determinante em um ambiente novo como o uso da
Internet como meio de difusão e crítica da cultura e suas manifestações estéticas, a arte em geral. Ao
lado do Jornal de Poesia, a Agulha Revista de Cultura surge, há 12 anos, com seu duplo caráter
pioneiro, a utilização de nova tecnologia e a aposta em criar um lugar saudável de discussão, troca de
ideias, sobre as inúmeras fontes de expressão artística. | Pg 05
01 | ADONIS DA ARÁBIA | Ensaio de Viviane de Santana Paulo (1966) sobre o poeta e ensaísta sírio
Adonis (1930). | ―Ali Ahmad Said Esber, aliás Adonis, é atualmente o maior expoente da poesia árabe
contemporânea, considerado um indispensável elo entre as culturas do Oriente e Ocidente, um
intelectual que não teme questionar os dogmas e axiomas arraigados na cultura árabe, assim como a
atual realidade político-social do Ocidente.‖ | Pg 07
02 | CAMILO PRADO & OS ARQUIVOS SECRETOS DA NEPHELIBATA | Floriano Martins
(1957) entrevista o editor Camilo Prado (1969). | ―Quando trabalhei com venda de livros usados,
dentro de universidades, percebi uma coisa: sabe onde se encontram os alunos da área de ―humanas‖
menos interessados em livros? Na pedagogia! Terminei recentemente um doutorado em literatura: tive
professores que conhecem tanto de literatura quanto eu entendo de mecânica de ônibus espacial. O
quadro geral da leitura no país é desagradável.‖ | Pg 13
03 | CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, JOÃO CABRAL DE MELO NETO E O SER
IBÉRICO | Ensaio de Luís Eustáquio Soares (1966) sobre Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
e João Cabral de Melo Neto (1920-1999). | ―A produção poética de Carlos Drummond de Andrade e os
secos rios de escrita de João Cabral de Melo Neto são partes alegóricas dessa leveza, dessa rapidez,
dessa exatidão, dessa visibilidade, multiplicidade e consistência da história cultural da tradição ibérica.
No entanto, o modo de realizá-las, poeticamente, de reinventá-las ou reescrevê-las, escrituralmente, é
bastante distinto num e noutro poeta.‖ | Pg 18
04 | CINCO MINUTOS DE SILENCIO… POR KEITH JARRETT | Ensayo del colombiano Luís
Carlos Muñoz Sarmiento (1957) sobre la música del pianista y compositor estadunidense Keith Jarrett
(1945). | ―Si hubiese un día en el que durante… digamos cinco minutos, todos permaneciésemos en
silencio, tengo la impresión de que muchas vidas cambiarían de un modo positivo. Porque a veces
bastan cinco minutos para darte cuenta de que estás equivocado. El silencio es lo que necesitas para
encontrarte a ti mismo.‖ [Keith Jarrett] | Pg 22
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05 | D. H. LAWRENCE: UMA FLORESTA SOMBRIA | O filósofo brasileiro Vicente Ferreira da
Silva (1916-1963) reflete sobre a essência filosófica da obra do romancista inglês D. H. Lawrence
(1885-1930). | ―D. H. Lawrence marcou uma assinalada função cultural, propondo-se de todas as
maneiras alargar e ampliar os limites do humano. Toda sua gestão de escritor, toda sua paixão no
decurso da experiência da vida se coligiu nessa tarefa de descobrir ―novos céus e novas terras‖ para o
homem. O que implica, sem mais, acreditar que a representação antropológica que, como investidura
social, somos compelidos a executar, traduz unicamente uma singular mutilação de nossas
possibilidades de ser.‖ | Pg 25
06 | ¿DEBE LA POESÍA MEJORAR LA VIDA? | Ensayo del poeta alemán Gottfried Benn (1886-
1956) sobre las relaciones posibles entre poesía y vidaos efectos de la creación en la vida. | ―Cuán bello
sería, para el que debe escribir, si pudiese unirse nuevamente con un pensamiento superior, un
pensamiento sólido, un pensamiento religioso o incluso humano, qué consolación sería para su secreto
emisor que transmite rayos mortales; pero creo que en muchos no arraigue pensamiento alguno de
esta clase: consolatorio, creo que viven en un cruel vacío donde las flechas vuelan sin que pueda
desviarlas, la noche profunda es fría, ahí los rayos poseen un solo valor, allí sólo las esferas supremas
tienen valor, y lo humano no está entre ellas.‖ | Pg 33
07 | BESTIARIO HERMÉTICO Y SURREALISTA | Ensayo de Carlos M. Luís (1932) sobre la
presencia del bestiario en el proceso creativo surrealista. | ―El mundo primitivo encarnó para los
surrealistas el signo ascendente que motivara su búsqueda por los predios de lo maravilloso. El águila
banca como la piedra filosofal que planeaba sobre la Nueva Guinea que Breton percibiera en uno de
los poemas de su Pez Soluble, o Las plumas del pájaro maravilloso de colores variados que pasa por
las Bodas Químicas de Simón Rosenkreuz, son apariciones que conjuran tres concepciones afines: la
hermética, la primitiva y la surrealista.‖ | Pg 39
08 | LÉON-GONTRAN DAMAS: PASSAGEM DO POEMA NEGRO | Ensaio de Laurina
Rousselet (1974) sobre a poesia de Léon-Gontran Damas (1912-1978) | ―Léon-Gontran Damas tem a
percepção de ser negro de carne como se é ‗filho de sangue‘. Criador de formas, canta imagens para
que a memória da identidade dê sua oportunidade à vida – emocionante por instantânea–. E de todo
modo a inocência não cabe no assalto dos signos por decifrar, a escritura não pretende dizer nada sem
o grito do ―Eu‖ que clama pela transcendência. Conhecer o mundo por meio da opressão (a
deportação, os tempos de diminuição, o menosprezo, a escravidão, o crime) está na mesma fonte da
forja da poesia damasiana: uma poesia de combate, uma poesia realista na qual música e humor
servirão de tremor para essa ordem interior.‖ | Pg 44
09 | MARÍA LUISA MARTÍNEZ PASSARGE Y EL DESAFÍO EJEMPLAR DE LA CABRA
EDICIONES | Entrevista de Floriano Martins (1957) a María Luisa Martínez Passarge (1956) | ―La
Cabra Ediciones cuenta con un importante catálogo, resultado de casi trece años de producción
editorial. Durante los últimos dos ha bajado la intensidad debido a los ajustes que he tenido que hacer,
de manera personal y en lo que se refiere a la función directiva de la editorial. Es muy difícil que una
sola persona esté en todos los puntos de la cadena productiva del libro. Siempre se descuidará alguno.
Por proyectos no paro. Hacer libros es mi pasión.‖ | Pg 52
10 | MICHEL SERRES: EDUCAÇÃO E MESTIÇAGEM | Entrevista de Betty Milan (1944) a
Michel Serres (1930) | ―Michel Serres foi oficial da marinha de guerra antes de se dedicar à filosofia
das ciências e se tornar professor. A sua biobibliografia tanto menciona os navios em que serviu
quanto os livros que escreveu e as universidades do mundo em que lecionou. Serres é um pensador
que fez pouco das especializações existentes e se especializou em percorrer os saberes para encontrar a
ponte que os liga. À maneira do navegador, privilegiou a rota e a passagem, chegando a dar a um dos
seus livros o título evocativo de uma das grandes aventuras marítimas do século passado: Passagem
do Noroeste.‖ | Pg 57
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ARTISTA INVITADO | ESTUDIOS DE PIEL DE FLORIANO MARTINS | Ensayo del dominicano
Manuel Mora Serrano (1933) sobre el brasileño Floriano Martins (1957). | ―Quizás, precisamente, esta
serie de Estudios de piel sea bastante ilustrativa, ya que quien asista al desfile de estas insólitas
creaciones tendrá que admitir primero, que se trata de auténticas formas de hacer arte, ya que si bien
la fotografía en sí ha sido considerada desde hace muchos años como un arte per se, una cosa es lo que
la cámara como ente estático ve y registra por los recursos que fueren, y otra, muy diferente es la forma
cómo el hombre traduce a otro lenguaje estético esas estancias fijas.‖ | Pg 61
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EDITORIAL | TODOS OS PORTOS SÃO INSEGUROS
Os primeiros 10 anos de Agulha Revista de Cultura constituem experiência determinante em
um ambiente novo como o uso da Internet como meio de difusão e crítica da cultura e suas
manifestações estéticas, a arte em geral. Ao lado do Jornal de Poesia, a Agulha Revista de Cultura
surge, há 12 anos, com seu duplo caráter pioneiro, a utilização de nova tecnologia e a aposta em criar
um lugar saudável de discussão, troca de ideias, sobre as inúmeras fontes de expressão artística.
Desde o princípio tivemos o cuidado com certo equilíbrio entre dois mundos cediços: a glória e o
ostracismo. Ambos possuem seus componentes persuasivos, evasivos, desagregadores, excludentes.
Argumentos em favor do ostracismo ou da glória podem confundir a importância de suas vítimas. É
curioso observar como a atividade humana – que se move, em geral, em um pântano que mescla arte,
religião e ciência – se deixa enredar por essa condição de vítima, sempre que algo lhe foge aos
rascunhos de um calendário programado.
Se há uma lição complicada de ser apreendida, aqui está: a Internet não é mais do que um lápis,
ou seja, uma ferramenta empregada na defesa de um discurso. Mas somos viciados em truques
publicitários, todos os dias imaginamos que algo de novo reluz nas janelas da virtualidade. Em meio a
isto, as redes sociais surgem como evidências de um caráter promíscuo da espécie humana. Melhor
dizendo: aguçam essa promiscuidade latente. Quando a religião exige uma fé incondicional, a ciência
impõe currículos, a arte se torna reiterativa, o que se observa é que o grande prejuízo se localiza no
mundo das artes, pois suas duas contrapartes jamais atuaram de forma distinta. Nossa consideração
aqui é no sentido de que religião e ciência sempre tiveram bem fixo em sua alça de mira o coração do
inimigo. A arte sempre foi uma recusa a essa ideia de um inimigo potencial. Em face disto, hoje é sua
pior controvérsia.
A mídia soube sugar a medula dessa infestação de egos em que se constituiu a arte. Sem hóstia
ou laboratório, o mundo nas mãos de um suspiro poético, um acorde, uma cor, não resta dúvida, a arte
é a grande vítima. Nenhuma novidade, até que os artistas compreenderam e tomaram gosto por essa
condição. Até aqui a cronologia valida o editorial. O que fazemos a partir deste momento é um outro
dilema. A opção da Agulha revista de Cultura aponta na direção de uma discussão clara de temas que
vamos tratando de diversificar, não apenas em seu conteúdo intrínseco, como em uma variedade de
leituras.
O homem sempre sonhou, sempre imaginou, sempre delirou. É curioso que agora o sonho, a
imaginação, o delírio, sejam rejeitados porque expressos on-line. A tecnologia apressou o passo no
contato, porém não garantiu afinidade. A utilização do tempo é outra falácia. Usamos o tempo para
atender a aspectos profissionais, religiosos, afetivos… Colhemos ali as boas orquídeas da curiosidade.
Todos nós sabemos que o mundo imprevisível é o que nos guarda as melhores experiências.
A revista é um desafio perene, de por em dúvida todas as manifestações do ego, fraturar as
linhas de uma cultura alquebrada por falta de conhecimento de seus antecedentes, pares, e
consequente ausência de uma visão de futuro que vá além do alcance de uma janela. Este é um dilema
corrente, pouco observado e talvez o mais prejudicial ao ambiente do que se poderia entender como
renovação estética das artes. É o que desejamos sugerir agora, com a retomada da Agulha Revista de
Cultura a um mundo mais ampliado de aventuras estéticas, compreendido por uma nova estrutura,
lápis bem apontado em mãos de parceiros que nos acompanham há muito.
Cumpre mencionar alguns aspectos, a começar recordando que em 2007 a Agulha Revista de
Cultura foi merecedora do Prêmio Antonio Bento da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte,
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ocasião em que seus editores receberam como troféu uma bela escultura de Nicolas Vlavianos. Vale
conferir a entrega do prêmio nesta página: www.youtube.com/watch?v=lnfzLYblA50.
Empenhada em propiciar reflexão e difusão das artes em suas mais variadas formas de expressão, a
revista naturalmente pôs em destaque preferências como o surrealismo, as artes plásticas e a América
Hispânica. Em sua nova fase reiteramos essas zonas particulares de interesse, ao mesmo tempo em
que estruturamos um maior cuidado com a cultura brasileira, em especial na criação de um centro
virtual permanente de estudos referente a três áreas de criação: a plástica, a música e a literatura.
Este talvez seja o destaque maior dessa nova fase, a aparição, na forma de um conjunto de
dossiês, com circulação quadrimestral, do que chamamos de CENTRO DE ESTUDOS
BRASILEIROS. Nesta primeira edição do ano começamos com uma série de 10 ensaios sobre artistas
plásticos brasileiros. O calendário editorial deste ano inclui ainda um dossiê dedicado à música (maio)
e outro à literatura (agosto), e assim sucessivamente, a cada ano, renovamos, ampliando, nossa
contribuição à cultura brasileira.
Outro destaque que se impõe nesta segunda fase diz respeito à formação mágica – inconfundível
esplendor do voluntariado, da amizade em nome da poesia – de uma equipe de tradutores, o que
permite que a revista não apenas circule em diversos idiomas, como também que seja possível trazer
ao leitor brasileiro temas e autores até então impossibilitados por motivos que certamente vão além da
questão idiomática. São eles: Allan Vidigal, Éclair Antonio Almeida Filho, Gladys Mendía e Luiz Leitão
da Cunha. Também se junta a nós o poeta e ensaísta Márcio Simões, que passa a atuar como editor
assistente. Como os destaques se multiplicam como surgem portos na visão de um navegante,
podemos ainda mencionar que a Agulha Revista de Cultura dispõe tanto de uma versão completa em
formato pdf de cada um de seus números, como também de conta e grupo no Facebook, através do
www.facebook.com/www.revista.agulha.nom.br, cujo endereço da seção de cartas é
[email protected].
Por último, mas certos de que não cessa jamais o espírito da aventura, destacamos dois de
nossos parceiros: La Cabra Editores, do México, pela publicação do primeiro de 4 volumes dedicados
às melhores páginas da Agulha Revista de Cultura nos 10 anos que conformam sua primeira fase; e as
Edições Nephelibata, do Brasil, pela publicação de um volume de entrevistas ao argentino Jorge Luís
Borges e uma antologia poética do estadunidense Gregory Corso, respectivamente montados,
traduzidos e prefaciados por Floriano Martins e Márcio Simões.
Assim a nave singra, confiante em seu espírito, embora ciente de que todos os portos são
inseguros.
Os Editores
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VIVIANE DE SANTANA PAULO | Adonis da Arábia
Ali Ahmad Said Esber, aliás Adonis, é atualmente o maior expoente da poesia árabe
contemporânea, considerado um indispensável elo entre as culturas do Oriente e Ocidente, um
intelectual que não teme questionar os dogmas e axiomas arraigados na cultura árabe, assim como a
atual realidade político-social do Ocidente. O poeta sírio-libanês é pouco conhecido no Brasil. Em
muitos países ele não é tão popular como o palestino Mahmud Darwisch (1941-2008), a argeliana e
diretora de cinema, Assia Djebar (1936), ou o egípcio Nahgib Mahfuss, primeiro árabe a ganhar o
Prêmio Nobel de literatura. Nascido em 1930 em Kassabin, uma aldeia ao noroeste da Síria, Adonis
testemunhou a independência deste país. Ainda era estudante de filosofia, em Damasco, quando
organizou passeatas e manifestações contra o exército francês. Foi detido onze meses devido às
arriscadas atividades políticas junto ao Partido Popular Sírio. Casou-se com a crítica-literária Khalida
Said e, em 1956, rumou a Beirute, cidade liberal, onde trabalhou como professor de universidade e
jornalista. Em 1957, junto com o poeta Youssef El-Khal, fundou a revista vanguardista Shi’r (Poesia),
com a finalidade de renovar a lírica árabe através de traduções da poesia mundial, sobretudo a
ocidental, como os poemas de Hörderlin, Rilke, Whitman, Pound, Eliot, Paz, entre outros.
Federico Arbós Ayuso, tradutor de Adonis para o espanhol, escreve em seu ensaio Tres calas em
la producción poética de Adonis, que, logo depois da Segunda Guerra Mundial, poetas como Nazik alMala-ika e Badr Sakir al-Sayyab publicaram poemas em versos livres. A consolidação desse
movimento iniciado em Bagdá adquiriu repercussão imediata na Síria, Palestina e Egito. Por sua vez, o
historiador da literatura árabe, Luwis Áwad y Muhammad Mandur, havia publicado na revista al-Katib
al-Misri, em 1945, no Cairo, vários artigos sobre escritores vanguardistas ingleses, especialmente um
ensaio sobre T.S. Eliot, o que influenciou consideravelmente a produção poética da época.
Voltando à revista Shi'r, a orientação estritamente ocidental e o radicalismo nacionalista de
Youssef El-Khal fizeram com que a revista deixasse de ser publicada em 1964. Três anos depois Adonis
funda a revista Mawaqif (Posições), juntamente com o poeta Kamal Abu Deeb. Entre 1960 e 61,
Adonis estuda em Paris com o apoio de uma bolsa. Enquanto alguns de seus colegas se exilaram na
Alemanha (como o libanês Fuad Rifka), ou seguiram para os países de língua inglesa (como os
iraquianos Badr Shakir As-Sayyad e Abdul Wahhab al-Bayyati), Adonis busca refúgio em Paris, onde
vive desde 1986, sem abandonar Beirute, para onde viaja constantemente.
O nome Adonis é mais conhecido como uma divindade da mitologia grega, era um belo jovem
que foi disputado por Afrodite e Perséfone. Quando caçava Adonis foi ferido mortalmente por um
javali. Algumas versões contam que foi o deus Ares, amante de Afrodite, que enciumado transformouse em um javali e desferiu um golpe fatal em Adonis. Após sua morte a deusa do submundo, Perséfone,
e a deusa do amor, Afrodite, disputaram o belo jovem. Zeus se interpôs e concedeu que Adonis
permanecesse com Afrodite quatro meses, outros quatro com Perséfone e os restantes ele seria livre. O
mito simboliza o ciclo da semente, da vegetação que morre no inverno e renasce na primavera. A
origem do mito não vem da Grécia e sim da Síria, onde Adonis era cultuado sob o nome semita de
Tamuz. Era um deus jovem, unido à vida, à morte e à ressurreição, estando associado ao calendário
agrícola. O nome Adonis também é procedente do mundo semítico – originário do semita Adonai, que
significa ―meu Senhor‖. É, em suma, um deus que congrega elementos de várias origens.
A fama do poeta se deve ao seu primeiro livro Cantos de Mihyar, o Damasceno (Aghâni Mihiâr
al-Dimashqî, Beirute, 1961), considerado um divisor de águas da literatura árabe. Influenciada pela
mitologia grega, a poética deste livro é voltada ao universalismo moderno, embora a sua base, a
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recepção e muitas metáforas residam no mundo árabe e proporcionem um certo estranhamento aos
não nativos desta cultura. Lendo profundamente deparamos, entretanto, com as questões filosóficas
do homem moderno. Adonis é um assíduo leitor de Nietzsche e Heidegger. Há neste livro vários
poemas dedicados a Ulisses, fazendo alusão à viagem não como destino, mas a própria viagem
enfatizando o significado da aventura, da exploração do desconhecido e da eterna busca de si mesmo.
A construção dos poemas assemelha-se a uma colagem, imbuída de metáforas que resvalam no
expressionismo e surrealismo. Segundo Stefan Weidner, tradutor de Adonis para o alemão: ―ao
contrário da poética árabe clássica, na qual o mais importante é a clareza e a habilidade na formulação
e, sobretudo, a meta de agradar, a difícil compreensão da densa linguagem produzida e propagada por
Adonis é considerada produtiva no momento de interpretação de cada leitor‖. Para Weidner, Mihyar é
um parente espiritual de Zaratustra. Weidner considera o livro um testemunho importante da
recepção de Nietzsche no mundo árabe. Cantos de Mihyar, o Damasceno é dividido em sete partes
constituídas de poemas em prosa. Mihyar de Adonis possui várias facetas, uma delas pode ser do
rebelde e herege Mihyar al-Daylami, poeta árabe de origem persa. Somente na primeira parte Mihyar
aparece na terceira pessoa, como uma apresentação ao leitor, nas partes restantes Mihyar fala em
primeira pessoa. Não se trata aqui da primeira pessoa do poeta, como é característico na poesia árabe
que desconhece a separação do eu-lírico do autor. Na poesia árabe quando um poema é escrito em
primeira pessoa, esta é exclusivamente o autor. Entretanto, Mihyar não é Adonis, trata-se aqui do eulírico independente do autor. Para o leitor árabe uma revolução.
Adonis escreve em árabe. A tradução em língua romana de Cantos de Mihyar, o Damasceno
surgiu na Espanha, em 1968, dois anos depois da publicação do original. A primeira coleção publicada
em idioma inglês data de 1971, nos Estados Unidos, intitulada The Blood of Adonis. A obra Libro de las
huidas y mudanzas por climas del día y de la noche (Kitâb al-Tahawwulât wal-Hijra fî Aqâlîm alNahâr wal-Layl, Beirute, 1965), ou simplesmente Livro das metamorfoses e da migração pelas
regiões do dia e da noite, traduzida para o espanhol em 1993, dá continuidade à introdução de mitos
extraídos da mitologia grega, de elementos modernos mesclando-os à forma tradicional árabe,
utilizando versos livres e poemas em prosa. Para falar deste livro, Federico Arbós Ayso menciona a
obra Metamorfoses, do poeta latino Ovídio, e a transformação de Dafne em uma árvore sagrada, ao
fugir da perseguição de Apolo. Em Livro das metamorfoses e da migração pelas regiões do dia e da
noite o protagonista é o omíada Abderrahmán, o Imigrante (Abd al-Rahmān al-Dājil), fundador de
Córdoba em meados do sec. VIII. A árvore é o motivo central nesta obra, simbolizando o homem, e
suas reflexões, e a natureza. Imagem que aparece em ―árbol de adentro‖ de Octavio Paz, e ―a árvore
da vida‖, de Goethe. As raízes e os galhos, as transformações do tempo, as folhas, flores e os frutos, e
as transformações causadas pelo tempo ilustram as mudanças no corpo do homem, a mudança física, e
a espiritual. A árvore é um dos temas simbólicos mais ricos e difundidos, representa a fertilidade,
abundância e imortalidade, e a vida. Ela está unida ao mundo subterrâneo, às profundezas, através das
raízes. O tronco está aliado à superfície da terra e as folhas alcançam as alturas, significando as
relações com o mundo celeste, divino. Também no poema Um túmulo para Nova York, a árvore
aparece como o símbolo que traduz a poética de Adonis: ―Digo e repito:/ minha poética é uma árvore,
e entre galhos e galhos e folhas e folhas/ encontra-se apenas a maternidade do tronco./ Digo e
repito:/ a poesia é a rosa dos ventos./ Não o vento, mas a direção do vento,/ não a rotação, mas o
circular./ Assim desfaço as regras e para cada momento refaço uma nova./ Assim me aproximo e
não me distancio./ Parto e não regresso./ Emigro para as ondas e setembro.‖
A coletânea O Teatro e os Espelhos (al-Masrah wa-l-Maraya), lançada em 1968, contém
poemas longos, repleto de símbolos, associações e menções a poetas, filósofos e personagens
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medievais. Este é o meu nome é considerado por Weidner a obra mais radical de Adonis, em que, logo
de início, nos primeiros versos, ele quebra completamente com as normas da poesia árabe, criando
versos sem verbo, interrompidos, avulsos:
Extirpar toda verdade
aqui está o meu fogo
Nenhum sinal permanece
meu sangue é o sinal
Este é o meu início
Ocupo o teu leito
teus membros giram à minha volta Terra
correnteza do Nilo afastamo-nos e sedimentamo-nos tu te infundiste no meu sangue
Este é o meu nome retrata a Guerra dos Seis Dias através de uma imagem abstrata de faces e
máscaras, cadáveres, deserto e soldados. Mas não só a destruição e a guerra são reproduzidos aqui,
também a paixão, o amor e a vida adquirem voz. É o caso do poema Metamorfoses de um amante:
Líber, Libera, Phallus
(No mar do amor, no mar o navegar do vento, e
no livro dos corpos o mundo inteiro é uma letra.
(…)
Serei colhido debaixo de teu seio, enxuto
E tu és minha mirra e minha água
Cada fruta é uma ferida e um caminho a ti
Eu te atravesso – tu és minha morada
Eu te habito – tu és minhas ondas
Teu corpo é um mar, cada onda uma vela
Teu corpo é uma primavera, cada vinco uma pomba que pronuncia o meu nome
Em teu corpo juntam-se todos os meus membros
Em um labirinto, inebriante segue o meu caminho.
(…)
Outro poema deste livro a ser destacado é o já mencionado Um túmulo para Nova York (19651971), o mais famoso e traduzido. A temática aqui é o cotidiano cosmopolita da cidade, uma crítica ao
capitalismo, a política exterior dos EUA, ao consumismo, ao imperialismo norte-americano, sobretudo
o imperialismo exercido sobre os países do Oriente. O poema evoca Johnson e Nixon, como também
poetas árabes e personagens de As Mil e uma noites. Trata-se de uma enxurrada de impressões,
seguindo a tradição dos modernistas, escrito em versos livres e longos, divididos em dez capítulos, que
mesclam associações díspares e surrealistas para descrever uma viagem ao inferno. Como a de Virgílio
na Divina Comédia, o inferno aqui é a cidade de Nova York. Adonis emprega a intertextualzação, o
palimpsesto e aproxima a linguagem da oralidade. Neste poema ele desenvolve um novo estilo em que
cria um tempo cultural transitório. As múltiplas culturas são as propulsoras da criatividade e inovação
e impedem a repetição de costumes e continuidade. Um túmulo para Nova York foi escrito na ocasião
de uma viagem do poeta a esta cidade, na época da Guerra dos Seis Dias, em 1967, época em que
Kadafi comandou o golpe de Estado contra o rei Ídris I, em 1969, e eliminou as bases militares norteamericanas e inglesas no país –, Kadafi negava o capitalismo e marxismo –, época da derrota do
movimento para a libertação da Palestina, resultando na matança dos refugiados palestinos na
Jordânia, em setembro de 1970, e época do movimento anti-imperialismo norte-americano surgido na
América Latina, encabeçado pelos revolucionários Fidel Castro e Che Guevara. Seguem alguns trechos
do extenso poema:
(…)
Nova York
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Uma civilização com quatro patas. Cada direção é um crime
ou um caminho para o crime. E na distância:
o lamento dos afogados.
(…)
Nova York – Wall Street – 125. Street – 5. Avenue
Uma cabeça de medusa ergue por entre os ombros. Um mercado
de escravos de todos os povos. Homens, que vivem como plantas em jardins de vidro.
Miseráveis, invisíveis, dissipados como poeira na pele do vazio – vítimas,
que se consomem em espirais.
O sol é uma marcha fúnebre.
E o dia um tambor negro.
(…)
Nova York
Uma mulher – a estátua de uma mulher
Em uma mão ela segura os farrapos, que são chamados de liberdade
Os pedaços de papel que chamamos de História
E com a outra estrangula uma criança, que se chama Terra
Nova York
Corpo de uma mulher com a cor do asfalto.
(…)
Nova York
uma mulher de feno e uma cama que balança entre o vazio e o vazio. (…)
(…)
E confesso: Nova York, no meu país a ti pertence a cabana e a cama
o trono e o crânio. E tudo encontra-se à venda: o dia e a noite
A pedra negra de Meca e a água do Tigre. (…)
E digo: desde João Batista cada um carrega a sua cabeça decepada
em um prato e espera um segundo nascimento. (…)
(…)
Eu te descubro, oh fogo, minha capital,
eu te descubro, poesia.
E seduzo Beirute. Veste-me como uma vestimenta e eu a visto como uma vestimenta. (…)
(…)
Tua neve carrega a noite, tua noite carrega os homens
Como se fossem morcegos moribundos. Cada parede em ti é um cemitério,
Cada dia uma cova escura que carrega o pão negro e um prato negro, com o qual
Ela esboça a História da Casa Branca:
Harlem: o lixo é um banquete para as crianças
As crianças são um banquete para as ratazanas. (…)
(…)
Harlem
O tempo fenece e tu és as horas
Ouço as lágrimas, como o rumor do vulcão
Vejo as bocas que comem os homens como pão
Tu és a mancha que apagará a imagem de Nova York
Tu és a tempestade que passará como uma folha
(…)
Nova York = IBM + metrô
Da lama e do crime tu te originaste
Na lama e no crime te findarás
Nova York = um buraco na manta da Terra
Por onde flui a correnteza da insanidade
Harlem, Nova York fenece e tu és as horas.
(…)
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Entre Harlem e Lincoln Center
Eu caminho como um número a esmo nos desertos presos entre os dentes do alvorecer
De um dia negro. (…)
Vista através do prisma de um poeta árabe Nova York é uma mulher impetuosa. O poema não
apenas ilustra a confusão e crueldade da cidade, mas também a sua vitalidade e atraente dinâmica.
O capítulo nove é dedicado a Walt Whitman, poeta que viveu em Nova York e influenciou
grande parte dos poetas modernistas: ―vejo as cartas a ti voarem no ar sobre as ruas de Manhattan.
Cada letra é/ uma balança cheia de gatos e cães. O século XXI está para os gatos e cães,/ para os
homens está a extinção:/ é o século norte-americano!‖. E nomes de poetas clássicos árabes, como
Urwa Ibn al-Ward, Abu al-Ala, aparecem ao lado de revolucionários, Ho Chi Minh, Che Guevara,
Castro, Lenin, Max, Mao Tse Tung.
Ao analisar Um túmulo para Nova York os estudiosos não deixam de fazer referência ao poema
de Garcia Lorca, Poeta em Nova York, escrito entre 1929 e 1930, traduzido para vários idiomas, o qual
também faz menção ao distrito de Harlem, ao poeta Whitman e à Revolução de Cuba: ―¡Ay, Harlem!
¡Ay, Harlem! ¡Ay, Harlem!/ No hay angustia/ comparable a tus rojos oprimidos,/ a tu sangre
estremecida dentro del eclipse oscuro,/ a tu/ violencia granate sordomuda en la penumbra,/ a tu
gran rey prisionero, con un traje de conserje.‖ Para o leitor brasileiro a obra de Mário de Andrade,
Pauliceia Desvairada, publicada em 1922, contendo os mesmos princípios modernistas da colagem, é,
da mesma forma, um ponto de referência. Aqui a protagonista é São Paulo, a cidade cosmopolita,
consumista, palco de uma burguesia cínica e hipócrita. ―Pauliceia – a grande boca de mil dentes;/ e os
jorros dentre a língua trissulca / de pus e de mais pus de distinção.‖
O espaço geográfico, para Adonis, ―é um território da cultura e criatividade, independentemente
da região política, na qual vivemos‖. Para quem considera a poesia não apenas um gênero ou uma
forma de arte, mas uma maneira de pensar, quase uma revelação mística, para Adonis a política e
literatura sempre estiveram estreitamente unidas, em suas afirmações, ideias, críticas e visão de
mundo. Segundo ele: "poesia não pode ser feita de modo a se adequar à religião ou uma ideologia, ela
proporciona um conhecimento que é explosivo e surpreendente." Defensor do laicismo, ele rejeita as
tradições intolerantes e oclusas, e é contra os dogmas que propagam o monoteísmo. Em um artigo no
jornal alemão Die Zeit, ele declarou: ―sempre quando a religião não impõe nada, a cultura árabe é
magnífica. Tudo o que é isento de religião na cultura árabe é extraordinário‖. E para o jornal O Globo:
―Se você quer criar poesia verdadeiramente nova, é preciso combater as ideias herdadas da religião,
porque criar é ser livre de toda ideologia e de todo pensamento a priori.‖ A religiosidade na poesia
deste poeta sírio-libanês envolve a esfera mística, é a busca do homem em sanar as questões imanentes
envolvendo a vida, como a morte, o amor, a busca da identidade, ―como uma criação permanente, em
um movimento contínuo até chegar à identidade do outro‖. Contemporâneo do já falecido Edward
Said, nem sempre concordava com o amigo: ―O que Said enfatiza corretamente é um estereótipo do
Oriente que existe no Ocidente, mas a meu ver isso está ligado a uma visão política e não cultural.
Muitos intelectuais ocidentais combateram esses estereótipos. Alguns deles conhecem a cultura e a
história árabe muito melhor que a maioria dos árabes e deixaram obras monumentais.‖
A rosa
Pegue uma rosa
Deposite-a como um travesseiro
Depois
Misture o absurdo
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Com a lama
Pegue a bomba
Em tua posse
Depois
Pegue uma rosa
Chame-a de canto
E cante-a para o mundo
(A face do mar)
(…)
Cresces por todos os lugares
Cresces nas profundidades
Tu és para mim como fonte
Entregas-te como árvore
E eu
Suspenso nas torres do sonho
À minha volta minhas imagens
Ansiava segredos e com eles preenchia as lacunas do dia
Gravei no teu corpo a brasa do meu corpo
Escrevi-te sobre os meus lábios e meus dedos
Esbocei-te sobre a minha fronte, transformei o alfabeto e a pronúncia e propaguei as diferentes
formas de leitura
(…)
Líber, Libera, Phallus
um filete de luz matinal, amarga nos olhos, nos desperta
desmancha os nós dos cílios
a luz hasteia no nosso corpo uma colina e bandeira
e a chama salta nos travesseiros
o dia anuncia a noite – desperte!
A ti zarpo com o barco do meu corpo
Exploro a terra oculta no mapa dos sexos
Avanço
Recubro minha passagem com talismãs e sinais
Exalo fumo com o meu denso balbuciar
Com fogo e tatuagem
Sou uma onda e acredito, tu és a praia:
Tuas costas é a metade de um continente
Meus quatro pontos cardeais estão abaixo de teus seios
Estou em torno de ti como uma árvore
(Metamorfoses de um amante)
A antologia Árbol del Oriente, lançada em Madri, em 2010, reúne poemas de 1957 a 2007. Em
2011, surge na Alemanha a antologia Metamorfoses de um amante (Verwandlungen eines Liebenden),
contendo poemas de 1958 a 1971. Neste mesmo ano, Adonis é prestigiado com o Prêmio Goethe da
cidade de Frankfurt am Main. Na opinião dos jurados trata-se aqui de ―um poeta verdadeiramente
universal‖.
Viviane de Santana Paulo (Brasil, 1966). Poeta e ensaísta, residente na Alemanha.
Publicou Passeio ao longo do Reno (2002), Estrangeiro de mim (2005), e Depois do canto do
gurinhatã (2010). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de
Floriano Martins (Brasil), artista convidado desta edição de
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FLORIANO MARTINS | Camilo Prado & os arquivos secretos da
Nephelibata
Em 2007 fui convidado para uma leitura de poemas no Palácio das Artes, em Belo Horizonte.
Além do encanto de minha primeira viagem a Minas, a delícia da viagem esteve por conta de que
aproveitaríamos aquele espaço para apresentar ao público uma novela minha, Sobras de Deus,
que acabara de sair pelas Edições Nephelibata, de Santa Catarina, com o luxo de contar com a
presença de seu editor, Camilo Prado. Criada em 2001, as Edições Nephelibata
(http://edicoesnephelibata.blogspot.com/) se destaca pela primorosa edição de livros
artesanais, somando riqueza de conteúdo, recuperação de títulos deixados de lado pelo mercado
editorial e projeto gráfico de inquestionável qualidade. Comemorando este ano seu aniversário
de 10 anos de existência, nos próximos meses teremos a edição de livros de Leopoldo Lugones,
Apollinaire, Jorge Luis Borges, Marcel Schwob, Augusto dos Anjos e Junqueira Freire. Dentre os
muitos autores que compõem seu invejável catálogo, destacam-se Giorgos Seféris, Ian Curtis, H.
P. Lovecraft, Mário de Sá-Carneiro, João do Rio, Villiers de l‘Isle-Adam, Dino Campana,
Joaquim Pasos, Machado de Assis, Konstantino Kaváfis, Aldo Pellegrini, Jacob Klintowitz, além
de seu precioso ―Arquivo Decadente‖, de poesia brasileira simbolista em sua grafia original. O
editor, narrador e tradutor Camilo Prado (Santa Catarina, 1969) é autor de livros como
Nefas (2004), Uma Velha Casa Submarina (2005), e Pulcritude (2006). Estudioso do
simbolismo, doutorou-se em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, com tese
em tradução da obra Tribulat Bonhomet de Villiers de L’Isle-Adam. Em 2010, criamos, dentro
da Nephelibata, a coleção ―O Começo da Busca‖, com a disposição para evidenciar autores e
títulos de literatura em todo o continente americano, dos raros aos mais jovens, criando no
Brasil uma não usual fissura de perspectiva editorial. Com a circulação deste número de Agulha
Revista de Cultura coincide a publicação de dois novos títulos da coleção, um volume de
entrevistas com Jorge Luis Borges e uma antologia poética de Gregory Corso. Camilo Prado e as
Edições Nephelibata estão entre nossos parceiros mais intensos. Abraxas
FM Em que circunstância surge este teu projeto editorial em torno das Edições Nephelibata?
CP A ideia inicial partiu de uma revista que um amigo, Jason de Lima e Silva, e eu tínhamos em
vista. Uma revista que seria de arte e filosofia. Na época estudávamos juntos na PUC, em Porto Alegre,
e costumávamos construir inúmeros projetos, de peças de teatro a grandes teorias filosóficas, que
morriam dias depois. Mas com o projeto da revista chegamos a convencer pessoas, reunir textos, e
levar a coisa adiante por alguns meses. Depois, não sei por que, a ideia morreu. Mas ficou a vontade de
publicar; e quando voltei a morar em Florianópolis já tinha alguns livros em mente, traduções, e uma
certa obsessão em montar uma editora. Cheguei a consultar gráficas, conferir registros e coisas afins,
mas por fim, achando que tudo era muito complicado e caro, acabei recorrendo à velha fórmula do
―faça-você-mesmo!‖, tendo em mãos uma caixa de disquetes e rodeado pelos fantasmas dos
simbolistas e decadentes.
FM Embora tenhas inicialmente pensado em recuperar livros ligados ao Simbolismo, o catálogo
das Edições Nephelibata avança além disso, mais preocupado com a recuperação de livros raros do que
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propriamente com títulos ligados a alguma estética em particular. Além do mais, há esse cuidado, ao
mesmo tempo, de trazer para o leitor brasileiro títulos de autores estrangeiros de grande expressão
que curiosamente têm pouca atenção por parte do mercado editorial. Mas esta é uma observação
minha. Gostaria de saber de ti, de teu plano editorial, de como desenhaste a concepção editorial que
resulta hoje em valioso catálogo.
CP Quando morei em Porto Alegre, apesar de já conhecer o monumental Panorama do A.
Muricy, eu não conhecia uma boa parte dos autores de quem ele fala, mas tive a sorte de encontrar na
biblioteca da PUC as obras completas de B. Lopes e Pernetta, obras de Gonzaga Duque e Rocha
Pombo, entre outros. E como um autor leva a outro, acabei encontrando em sebos autores como
Ernani Rosas, Xavier Marques e Junqueira Freire, um romântico que é para mim um dos melhores
poetas do país. Isso, aliado a leituras anteriores, levou-me posteriormente a querer publicá-los, já que
quando se publica qualquer desses autores é sempre naquelas feias edições patrocinadas por
instituições e com a grafia atualizada. Daí surgiram as edições de Xavier Marques, João do Rio, o
Arquivo Decadente e em breve dois livros de Adelino Magalhães. Por outro lado, os amigos de primeira
hora e novos conhecidos contribuíram com coisas inéditas e valiosas, como as traduções de Kaváfis,
Ritsos, Seféris, Campana, Delmira Agustini, Baroja e Jaspers. E a partir daí foram surgindo os
inesperados e o catálogo foi se encorpando e se enriquecendo. O que significa que de algum modo
desenhou-se por uma junção de acasos. Mas sendo um leitor incansável e tendo trabalhado com livros
usados por alguns anos, adquiri um pouco de conhecimento dos livros que são mais difíceis de
encontrar e para os quais há um público leitor bastante fiel. E logo percebi a inexistência de autores
que interessariam a esse público que ainda não tinham sido editados no Brasil, ou as edições existentes
já se tornavam raras. Com o passar dos anos, das distintas contribuições que foram surgindo, perdi um
pouco de vista esse meu objetivo, que é paralelo ao resgate de autores brasileiros. E desde o ano
passado tenho me voltado para isso. E em breve haverão de sair alguns títulos de autores de literatura
fantástica, como Lovecraft, Lugones, Schwob, Bierce, Ruben Darío, Villiers de L‘Isle-Adam…
FM Como acreditas que as Edições Nephelibata atuem como opção de mercado no Brasil?
Costumas dizer que não és um editor e sim um artesão, mas a verdade é que os livros são editados e
comercializados. Como articulas sua circulação, acompanhamento de vendas etc.?
CP Quando trabalhei com venda de livros usados, dentro de universidades, percebi uma coisa:
sabe onde se encontram os alunos da área de ―humanas‖ menos interessados em livros? Na pedagogia!
Terminei recentemente um doutorado em literatura: tive professores que conhecem tanto de literatura
quanto eu entendo de mecânica de ônibus espacial. O quadro geral da leitura no país é desagradável.
Li recentemente acerca de uma pesquisa que indica que no Brasil o número de não-leitores chega a 77
milhões. Há alguns anos a porcentagem de leitores era algo por volta de 25%. Se você exclui os leitores
de informação, leitores de jornais e revistas, sobram poucos leitores de livros. E dentre esses leitores
de livros, se você tira aqueles que só leem livros didáticos ou ―best-sellers‖, o número de leitores de boa
literatura no Brasil é muito pequeno! Daí o fato de grandes editoras não editarem determinados
autores de expressão internacional. Eles não têm leitores no país. Eu publiquei um volume de contos
de Villiers de L‘Isle-Adam, autor que já foi publicado pela Iluminuras, Edusp e Edufpr. Mas se você for
perguntar para qualquer dessas editoras se publicariam um novo título de Villiers sem apoio
financeiro, todas responderiam: ―não!‖. Porque é um grande autor que não tem leitores no Brasil. Mas
é um dos títulos mais vendidos da Nephelibata. Por quê? Porque 50 leitores de Villiers no Brasil para
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mim é significativo, mas para uma editora que imprime 1000 exemplares, 50 leitores significa um
fracasso de vendas! Eu não gosto dessa palavra, ―mercado‖, mas para lhe responder: a Nephelibata
atua dentro de uma fração muito pequena do mercado editorial brasileiro ao publicar, na maioria,
autores que não valeria a pena publicar em uma escala, digamos, ―industrial‖. De novos a velhos
autores. Um autor como Ruben Darío dispensa apresentação em todo o nosso continente, mas aqui no
Brasil é uma minoria que o conhece. Nenhuma grande editora se empenharia, sem financiamento, em
editá-lo. Mas para a Nephelibata vale, porque ela está direcionada para essa minoria de leitores que
gostaria de ler os contos fantásticos de Darío e não o encontrava em português. O objetivo então é
atingir um público leitor que fica, de certo modo, à margem das grandes tiragens. Mas isso não
significa, obviamente, que a Nephelibata deixe de publicar autores de amplo público leitor. Até prêmio
Nobel de literatura está no seu catálogo.
Agora, porque prefiro ser considerado um artesão em vez de editor. Pense em editores como o
Sr. Victor Civita, o Sr. Schwarcz ou os Srs. Charles Cosac e Michael Naify. Que tenho eu de semelhança
com esses empresários? Eu que sou filho de um analfabeto e de uma empregada doméstica? Gosto dos
livros editados por eles; sem dúvida parte de minha formação é devida à leitura de livros editados por
eles, mas quanta distância entre eles e eu! Desconfio que eles nunca costuraram um livro na vida. No
Brasil não temos uma tradição de editores, como tem na Itália, por exemplo. O que sempre tivemos
aqui, na edição de livros, foram empresários. Não julgo se isso é bom ou ruim, mas sei que não sou um
empresário; poderia ser um ―micro‖, mas não quero ser. Sinto-me muito mais próximo do Sr. Robson
Achiamé, do Sr. Plínio Coelho, da Imaginário, ou do Sr. Cléber Teixeira, da Noa-Noa. Mas mesmo
entre esses, acho que só o Sr. Cléber sujou suas mãos na tinta de impressão. De certa perspectiva, sim,
somos todos editores. Mas para manter a distinção necessária, prefiro ser considerado um artesão. E
os livros são comercializados, claro, e não devem em nada, na aparência, a qualquer livro editado de
forma industrial. Acho que a diferença principal está mesmo na tiragem, que na Nephelibata é sempre
pequena.
FM Não resta dúvida que reside aí certo atrativo, na costura, na manufatura, um aspecto que
muitos podem ver como excessivamente romântico em plena época de impressões on-demand,
tecnologia gráfica de baixo custo, claro, também com a maquiagem de vendas, complexidade nas
relações entre autor/editor no quesito prestação de contas etc. Onde eu creio que a Nephelibata se
torna mais expressiva é no que diz respeito à oferta de conteúdo, sua sensibilidade para recuperar
obras cegadas pela ganância imediatista de mercado.
CP Sim, são aspectos distintos: manufatura, pequena tiragem e conteúdo. Eu gosto da ideia de
pequena tiragem. Mas a questão da manufatura, não acho que seja importante, não. Eu continuo
fazendo de forma artesanal por hábito e pela facilidade de fazer pequenas tiragens, mas não penso, de
forma alguma, que um livro artesanal tenha mais valor do que um industrial. O mais importante em
um livro é seu conteúdo. Quando digo que me sinto mais próximo da Achiamé, Noa-Noa e Imaginário
é também pela ideia de conteúdo. Grandes editoras, que podem publicar muito, acabam publicando de
tudo; as pequenas (as melhores pelo menos) acabam sendo seletivas e criam um norte editorial que as
caracteriza. E não se trata de ficar com os ―restos‖, como certa ingenuidade poderia levar a pensar, mas
de, por não se estar subordinado de modo absoluto ao mercado, poder ofertar um conteúdo diferente.
Além disso, grandes editoras funcionam de forma empresarial, onde os editores são funcionários
encarregados de fazer o contato com os autores/tradutores. Nas pequenas, o editor faz tudo, e isso o
leva a ter uma relação mais afetiva com os livros e reflete, creio, no conteúdo editado. Mas,
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independente do que pensam os outros, sou com certeza um romântico em todos os sentidos da
palavra: do mais trágico ao mais patético.
FM Já é possível fazer uma avaliação da repercussão crítica das Edições Nephelibata?
CP Não sei se isso já é possível. Sei apenas que eu seria a pessoa menos indicada para fazer esse
tipo de avaliação. Mas há fatos que, mesmo sendo insignificantes para alguns, são inalteráveis. Livros
de autores como Pío Baroja, Baldomero Lillo, Dino Campana, Giánnis Ritsos, Aldo Pellegrini, entre
outros, foram editados no Brasil pela primeira vez na Nephelibata. São autores pouco conhecidos aqui,
mas em seus países de origem, assim como em outros países do mundo, são bastante conhecidos. Além
disso, por exemplo, as edições que estão prontas para sair de H. P. Lovecraft, Os fungos de Yuggoth,
tradução de Nicolau Saião, e A música de Erich Zann, tradução de Renato Suttana, como todos os
demais títulos atuais, são impressos em papel de qualidade e em uma fonte favorável à leitura.
Lovecraft é um autor bastante publicado no Brasil, mas todas as edições que conheço são em papel
branco com letrinhas miúdas. Leitores inteligentes sabem que esse tipo de publicação cansa os olhos e
torna a leitura maçante. Desde o início eu me preocupei em fazer livros que fossem agradáveis de ler, e
atualmente, mesmo com um alto custo, procuro manter mais a qualidade do livro do que o lucro sobre
ele. Contrariando desse modo a comum lógica empresarial que visa o menor custo com o máximo de
lucro. Qualquer repercussão futura que a Nephelibata possa ter, creio que passa por aí.
FM O catálogo da Nephelibata está aberto a sugestões editoriais? O que exatamente deve ser
ofertado a este catálogo? A ideia aqui é antecipar uma triagem que desperte a atenção, em especial, de
pesquisadores de um veio literário que interesse diretamente ao teu catálogo.
CP Sim. A Nephelibata sempre esteve aberta a sugestões. Agora, ―o que deve ser ofertado‖… isso
é difícil de responder, pois aquilo que eu conheço e quero editar eu vou atrás e publico, e sobre aquilo
que eu não conheço e que combinaria com o catálogo não posso nada dizer. Ao longo dos anos tenho
recebido muitas propostas, mas boa parte não tem nada que ver com a Nephelibata. Seria o caso de se
dizer: ―Vai do bom senso de cada um‖ observar o que combina com o catálogo, mas como bem notou
Descartes, quem admitiria que não tem bom senso? De qualquer modo, estou atulhado de coisas no
momento e o catálogo nos próximos meses vai receber pelo menos uma dúzia de novos títulos. E dos
―pesquisadores‖ eu quero distância! Pesquisa é uma coisa científica. Não tem nada que ver com arte. E
literatura é arte. Qualquer cientista sério ri dessa pretensão ―científica‖ dos professores de literatura,
de filosofia, etc. E por outro lado, qualquer artista digno desse atributo, também ri das pretensas
―interpretações‖ que se faz de textos literários. Pesquisadores hoje estão todos subordinados às
instituições que os financiam e que, por vez, cobram um tipo de ―pesquisa‖ baseada (obviamente) em
métodos científicos, e isso gera umas porcarias de textos que só servem para ganhar títulos acadêmicos
e bolsas de estudo. É lamentável, mas é a realidade da atual ―fôrma‖ acadêmica.
FM Há um folder que utilizas para difusão que indica a reunião de plaquetas em uma caixa.
Este é um plano editorial novo, trabalhar com caixas? Fale do novo espaço, ―O abominável Prado‖
(http://oficinasnephelibata.blogspot.com/).
CP Não, é um plano antigo, mas de realização atual. No caso das plaquetas é algo específico. Eu
comecei a fazer as plaquetas para aproveitar sobras de papel, mas com o tempo deixaram de sobrar
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papeis e as plaquetas passaram a ter um custo alto e com desperdício de papel. Além disso, é algo
muito trabalhoso. Então decidi acabar de uma maneira, digamos, elegante, fazendo uma caixinha para
as oito plaquetas e vendendo-as todas juntas. Isso restringe o acesso e consequentemente o trabalho, e
elas permanecem no catálogo. Mas as caixas acompanharão os volumes maiores. De início, os dois
volumes do Borges e em breve do Kaváfis. E alguns títulos estarão saindo com uma luva simples, com
um logotipo de dez anos da Nephelibata.
O novo espaço virtual é mais pessoal. Criei para divulgar alguns textos meus e também para
gerar elos com outras páginas de amigos, de revistas e outras coisas interessantes que há na internet.
Essa coisa de ―editor‖ joga sobre os ombros da gente certa responsabilidade, e apesar de lidar com uma
boa quantidade de pessoas sérias, de escritores a leitores, há em tudo isso um lado lúdico. Ainda que
não seja possível delimitar a fronteira, tentarei deixar o lado profissional mais na página da
Nephelibata e o lúdico nesse novo espaço, que tem esse nome justamente porque sei que muitos me
consideram ―abominável‖, injustamente eu diria, mas sou suspeito para afirmar isso.
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor e tradutor. Criador da Agulha Revista de
Cultura. A presente entrevista foi realizada em agosto de 2011. Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista
convidado desta edição de ARC.
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LUÍS EUSTÁQUIO SOARES | Carlos Drummond de Andrade,
João Cabral de Melo Neto e o ser ibérico
Segundo Italo Calvino, há leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência,
na inesgotável escrita e reescrita dessa pirâmide de cabeça para baixo (pois sua base se amplia,
paradoxalmente, cada vez mais para o alto), que é a inesgotável história da biblioteca babélica das
ficções humanas, sobretudo a literário-cultural, a qual sempre cada vez é outra, seja em sua recepção
ativa, posto que cada leitura pressupõe um novo universo de significação, seja em sua condição
existencial, no passado, no presente e no futuro, para sempre marcada pela autonomia, pela duração
única de sua singularidade, ou pela aura de sua originalidade, para além e para aquém dos tabus e das
intervenções desencantadas e assassinas da reprodutibilidade técnica, que repete, como cópia da
cópia, como clonagem de um ideal genocida, a barbárie de seu transtemporal gesto, o de caçar e
dominar e matar tudo que é diverso, tudo que é vital, que é fome, gozo, alegria, delicadeza, sonho e
utopia.
A máquina da reprodutibilidade técnica, contrariando um pouco Walter Benjamin, não destrói a
aura, e nunca destruirá, a não ser que o fim do mundo aconteça de vez, agora e sempre. O original não
teme a sua reprodução, nem na pintura, nem na escultura, nem em toda e qualquer forma de criação.
Quem verdadeiramente teme o fim da aura não é a aura democrática que emana da criação, mas,
habitualmente, o seu autor ou autora, uma vez que tende a perder a primazia e a autoridade da posse
da patente, e, portanto, do prestígio simbólico e financeiro dela resultante.
O dilema da reprodutibilidade técnica não reside em sua capacidade de destruir a aura, mas em
sua apropriação e em seu uso, já que a posse da técnica está nas mãos dos assassinos, os dominadores,
os estupradores (e ressalto que também não gosto dos maniqueísmos) da vida, e das auras, na terra, a
saber, o tecnocrático poder do lucro imperial, com sua história de poucos, e para poucos.
Nota-se que, neste texto, afirmo o negado, hoje: a criação, a ficção, a poesia, a originalidade, a
herança, o único, a aura, mesmo e apesar da tecnocracia, mesmo e apesar do pesadelo que é, e tem
sido, parafraseando Cortázar (O livro de Monoel), o fracasso de o que chamamos de realidade humana,
o qual nada mais é que um outro nome para a plutocracia, para o impulso de morte, para a tragédia,
que é a finitude num ser que deseja e pode o infinito: o humano, cuja aura criativa o dignifica e o
faculta a transcender a morte, justamente porque morre, justamente porque é frágil, porque é
vulnerável, porque é etéreo, porque é imanente.
E é triste constatar que é dessa vulnerabilidade aurática, da qual todo poder se vale,
interpretando-a como sendo o seu ponto fraco (que é verdadeiramente seu ponto forte), porque todo
poder unilateral constitui a inscrição, em alguns seres, da própria morte, e ataca, como vírus, tudo que
é delicado, como aconteceu no começo da colonização das Américas, em relação aos índios, cuja
fragilidade não foi entendida pelos europeus colonizadores, como um gesto aurático de
confraternização, mas como motivo para a desconsideração arrogante, como vulnerabilidade a partir
da qual a morte virótica, inscrita no desejo de se dar bem, em detrimento de outros, instalou-se e
proliferou-se, como infelizmente aconteceu, e tragicamente, com a nossa omissão, ainda acontece.
Toda essa divagação, no entanto (que gosto francamente de fazer, apesar da moda referencial
ditada pelas camisas de força dos gêneros oficiais, com as suas manias e taras pelo que chamam de
coesão e coerência e sincera preocupação com leitores ―simplistas‖), é para falar de dois poetas
brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, os quais, a seus modos,
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contribuíram para a revitalização aurática da originalidade histórica, (cultural, econômica, religiosa,
social, política e relacional), do mundo ibérico-católico, o qual, apesar das contradições, e das
apropriações genocidas (somos também, infelizmente, o resultado de uma história de destruição), é e
tem sido também um lugar de beleza, de singularidade, de transcendência, em nome das quais
precisamos falar, festejar e reinscrever, na prática, principalmente tendo em vista os tempos atuais,
marcados pela hegemonia do império anglo-saxônico.
A produção poética de Carlos Drummond de Andrade e os secos rios de escrita de João Cabral
de Melo Neto são partes alegóricas dessa leveza, dessa rapidez, dessa exatidão, dessa visibilidade,
multiplicidade e consistência da história cultural da tradição ibérica. No entanto, o modo de realizálas, poeticamente, de reinventá-las ou reescrevê-las, escrituralmente, é bastante distinto num e noutro
poeta.
Em Carlos Drummond de Andrade, a tradição cultural hispanolusoafroindioamericana é
experimentada e vivida a partir do que, no mundo ibérico, é e tem sido estamento, verticalidade, culpa,
pecado, inquisição, dor, massacre. Daí sua poética gauche, daí, desse lugar sombrio da tradição
ibérica, o poeta mineiro traça sua ―flor e a náusea‖ poéticas, pois escreve a partir de Minas Gerais, cujo
iberismo é interior, visceral, montanhoso, lavral e mineral.
Daqui de Minas, Drummond escavou sua poética como quem bate, com a goiva da paixão, no
duro mineral de uma gruta que sangra os passos de uma cultura marcada pela submissão escravocrata,
como quem intui que, apesar da morte e do sacrifício de muitos, apesar da lógica do castigo e da culpa,
uma linha de fuga se desata, o da mistura, o do forno alquímico de um coração, Minas Gerais, que é
capaz de criar, através de um impulso órfico, católico-infernal, a ressurreição da beleza leprosa das
obras de um Aleijadinho, cujo imaginário, conforme Lezama Lima (A expressão americana, p. 106),
confecciona as chispas da rebelião, as da grande lepra criadora do barroco nosso, as de uma cultura
que insiste em sua multiplicidade inconformada, e que resgata a memória viva de uma humanidade
marcada, desde tempos imemoriais, pela dramaturgia do encontro de povos e de culturas e que, se
existe e persiste até hoje, não é porque o mesmo, com sua pureza antissemítica, com sua vontade de
insularidade, tem dado, imperiosamente, as cartas, mas porque compartilhamos nossas diferenças,
nossos saberes, nossos sabores, e lançamos os dardos da utopia e da vida, como o Zaratustra de
Nietzsche, para a outra margem, diferencial e antieuclidiana, como bem ilustra o poema Áporo, de A
rosa do povo (1945):
―Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape/ Que fazer, exausto,
em país bloqueado, / enlace de noite/ raiz e minério?/ Eis que o labirinto/ (oh razão, mistério)/
presto se desata: / em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/ uma orquídea forma-se‖.
Ressaltando que, embora áporo seja o nome de um inseto himenóptero, em grego, por sua vez,
significa um problema de solução difícil. Para mim, Carlos Drummond de Andrade é o poeta do devir
inseto, que, em sua poética, cava os subterrâneos do inconsciente coletivo de uma tradição cultural, a
ibérica (e desde seus primórdios medievais, das cruzadas religiosas para expulsão dos árabes),
revelando-a como um problema complicadíssimo, intrincado, aparentemente insolúvel, mas que traz,
nele mesmo, sua própria solução, sob o signo de uma orquídea utópica, o da simbiose aurífera
subjacente no imaginário de um catolicismo, o qual, ao se expandir pelo planeta, por mais que
impusesse sofrimento, dor e culpa, não conseguiu conter a promessa messiânica da ressurreição da
letra quixotesca, a daqueles que lutam não contra, mas a favor dos moinhos de vento, os das pétalas
errantes das flores de uma história bíblica protagonizada não por reis, nobres, cleros, burgueses, mas
por ladrões, prostitutas, pescadores, marinheiros, crianças, pobres.
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Eis a verdadeira Rosa do povo da poética drummondiana, seu modo de inscrever sua alguma
poesia, seu claro enigma: o de uma poética que dialogou com as trevas obscuras do legado ibérico,
constatando um ganho não previsto, ―o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago
cifrado,/ que, decifrado, nada mais existe‖(Amor e seu tempo), visto que o que existiu, não existe
simplesmente, mas resiste, é antes, agora e depois, um amar se aprende amando.
Por outro lado, se Carlos Drummond de Andrade tece sua rede intertextual, com a tradição
cultural ibérico-católica, lançando-a no fundo de seu labiríntico rio de sonho, em sua correnteza e
redemoinhos intestinais, marcados pelo peso, no mundo, de ser e fazer-se como múltiplo, como
impurezas no branco (no esquecimento) de uma memória não seletiva, porque periférica; João Cabral
de Melo Neto o faz através da exterioridade, da luminosidade, da solaridade, do fora e da visibilidade,
o que, em meu entendimento, fica patente já no próprio ―Auto de Natal‖ que inscreve os títulos de seus
primeiros livros, Pedra do Sono (1942), Os três mal amados (1943), O engenheiro (1945), Psicologia
da Composição (1947), O Cão sem Plumas (1950), O Rio (1954), Quaderna (1960).
Nos dois primeiros títulos, Pedra do Sono e Os três mal amados, além da influência do
surrealismo, há, em João Cabral, uma nítida relação de dívida parafrásica com Carlos Drummond de
Andrade, pois sua poesia ainda não encontrou sua dicção exteriorizante, no que diz respeito à relação
com a cultura ibérica, teatralizando-a pelo viés drummondiano do dentro, do interior e da culpa.
Engenheiro e Psicologia da Composição são livros de transição, do dentro para o fora ibéricos,
resultando daí, a meu juízo, serem textos metapoéticos, posto que a metapoesia, neles, constitui uma
espécie de rito de passagem, através do qual (embora não incorporem ainda a exterioridade da
paisagem cultural ibérica, com seus personagens, suas geografias) Cabral vai gradativamente
incorporando o horizonte da luminosidade solar, como metáfora de uma poética que se desvelará,
como visibilidade geográfico-cultural, a partir de O Cão sem Plumas.
Como discursividade metapoética, a insistência cabralina, em palavras como objetividade, como
lâmina, como antilirismo e antiode, nada mais é, no meu entendimento, que outros nomes para a
solaridade epifânica de seu iberismo, dotado de potência para mostrar, não através da representação
realista, mas daquela capitada pelos focos de uma cultura, a ibérica, que se expandiu rumo à abertura
solar do mundo, o nordeste brasileiro, a paisagem espanhola, a savana luminosa dos territórios
africanos.
Antes, porém, era necessário atravessar o deserto, como na Fábula de Anfion; ―No deserto,/
entre a paisagem de seu /vocabulário, Anfion, /ao ar mineral isento/ mesmo da alada / vegetação, no
deserto (…) Como antecipar / a árvore de som / de tal semente?
João Cabral de Melo Neto percorre o deserto de sua metapoesia para, enfim, descobrir ―a
paisagem de seu vocabulário‖: a apresentação epifânica da explosão solar ibérica, ainda que, como em
―Morte e Vida Severina‖, seja uma explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é assim pequena/
mesmo quando é uma explosão/ como a de há pouco, franzina;/ mesmo quando é a explosão/ de uma
vida severina‖.
Essa explosão de luminosidade, como cenário da dramaturgia ibérica, pelos tempos e espaços,
acontece claramente em O cão sem Plumas, o qual, embora escrito em Barcelona, lança o poeta de vez
na paisagem pernambucana, a de um rio, cuja inconsciência se faz exterioridade de ―um não saber
sabendo‖, porque ―aquele rio/ era como um cão sem plumas./ Nada sabia da chuva azul,/ da fonte corde-rosa,/da água de cântaro,/ dos peixes de água,/ da brisa na água‖, porque sabia,
fundamentalmente, da beleza incontida e institucionalmente não representável de um outro mundo, o
do nordestino qualquer, sujeito cultural, econômico, político e poético de um universo subterrâneo
que, uma vez isentado da culpa de sua diferença, e do peso da inquisição dos poderes (como dramatiza
21
a poética de Drummond), se revela, epifanicamente, na poesia de João Cabral de Melo Neto, como
―uma mulher febril que habita ostras‖ (O Cão sem Plumas) de uma história que é passado e é futuro,
mas é principalmente visibilidade solar, apesar de tudo, no presente.
Sob o meu ponto de vista, de modo excepcional, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de
Melo Neto são os dois poetas brasileiros, por excelência, da tradição ibérico-católica mundial, e ambos
compõem, em suas poéticas, os dois lados desse devir cultural, que é o nosso, latino-americano,
africano, autóctone, asiático, europeu, planetário, pois, se João Cabral de Melo Neto delineia e
apresenta, poeticamente, a corporeidade objetiva e laminal do iberismo, Carlos Drummond de
Andrade configura sua alma, sua esfera subjetiva, como um cabalístico ―poema de sete faces‖, e cuja
profissão de fé, já vem anunciada, como destino, em seu primeiro livro, Alguma Poesia (1930): ―Vai,
Carlos! Ser gauche na vida. ‖
Ser ibérico.
Luís Eustáquio Soares (Brasil, 1966). Poeta, escritor e ensaísta. Publicou Paradoxias (1999), Cor
Vadia (2003), José Lezama Lima, anacronia, barroco e utopia (2008), El evangelio según
Satanás (2010). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Floriano Martins
(Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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LUIS CARLOS MUÑOZ SARMIENTO | Cinco minutos de
silencio… por Keith Jarrett
Pese a la asociación que pueda provocar el título, no se trata de hacer aquí lo que casi siempre se
hace: lamentar la muerte de alguien cuando ya no está y por ello ya no incomoda, no produce envidia,
apenas indiferencia. No, se trata de celebrar a la vida. Para el caso, la de un artista integral. En efecto,
este ocho de mayo hace exactamente 50 años nació en Allentown, Pennsylvania, el pianista,
compositor y percusionista estadounidense Keith Jarrett, un verdadero multiinstrumentista pues toca
además órgano, teclados y todo tipo de vientos y uno de los músicos de mayor envergadura de cuantos
pueblan la escena contemporánea, llámese jazzística, clásica o de la Tercera Corriente. Un hombre
tímido al que se acusa de vanidoso por su resistencia natural al síndrome del Show-bussines, al
exhibicionismo de la cultura Light, a la banalidad que domina los medios hoy. Y a quien,
curiosamente, su propio carácter reservado, su consciente mutismo y su espontánea renuencia a las
entrevistas, le han ayudado a impulsar su imagen, consolidándola. Un hombre que asegura somos
música, no la poseemos, cree en la pureza no contaminada de su inspiración original y en la eficacia
del silencio como agente de cambio individual. Un músico, en últimas, consciente de la necesidad de
que todo intérprete debe ser al tiempo compositor e improvisador.
Como la mayoría de los pianistas clásicos de jazz, y como los demás músicos del género, los
pianistas modernos comparten la idea de que estilos, clasificaciones, categorías y otros, únicamente
sirven al crítico, estudioso u oyente para que puedan acceder a su evolución e historia pero que, de
ninguna manera, tales elementos determinan influencias sobre uno u otro artista. Criterio avalado,
entre varios más, por Oscar Peterson, Cecil Taylor, McCoy Tyner, Herbie Hancock y Chick Corea y
especialmente remarcado por el más exitoso pianista de los años 70, junto a Tyner, Keith Jarrett, un
músico absolutamente imposible de encasillar: ―En mis comienzos, estudié para ser un pianista
clásico. No soy un estilista y muchos dicen, al ‗describir‘ con palabras mi trabajo, que escuchan
influencias de diferentes tipos de música en mi forma de componer o tocar. Escuchar así es
fragmentario y sencillo pues no se implican emocionalmente; verbalizan e intentan tirar por la borda el
trabajo de un artista‖. Con ello, Jarrett permite inferir que todo intento de alinear a un músico tras
otro o incluirlo en determinada tendencia, no es más que un prejuicio de los críticos, una aventura en
la que ellos mismos tal vez se pierdan o la oportunidad de que se puedan ganar el pan…
De ascendencia escocesa-irlandesa y húngara (y no afroamericana), Jarrett, como tantos otros,
también tiene algo que ofrecer a la leyenda del jazz: inició sus lecciones de piano a la edad de tres años.
Y a los siete, sus recitales estaban basados no sólo en partituras clásicas sino en pequeñas suites e
improvisaciones propias. Con apenas 15 años estudió composición y a los 16 ofreció un recital
dedicado por completo a sus obras. Continuó como becario en Berklee, Boston, y al poco tiempo le fue
ofrecida otra beca para estudiar en París con la ilustre Nadia Boulanger (a propósito, maestra de
Francisco Zumaqué). Pero Jarrett ya tenía preparado su destino. Cambió la Ciudad Luz por New York
y allí, tras meses de cuasi-hambruna, estableció nexos con músicos locales de jazz que se fijaron en él
durante audiciones de prueba en el Village Vanguard. Luego de una breve temporada con Rahsaan
Roland Kirk y con Art Blakey ingresó al cuarteto de Charles Lloyd, en el que demostró ser un músico
superdotado y con el que grabó e hizo giras internacionales. Por razones tan absurdas que parecen
lógicas, como pasó con Charlie Parker, fue reconocido primero por el público europeo que por sus
coterráneos.
23
No obstante, debe decirse que al igual que Hancock, Corea y Zawinul, Jarrett emergió de la
bóveda acústica de Miles Davis en los primeros años 70; pero, al contrario de ellos, se abstuvo de
ingresar a la Fusión, hecho que habla per se de su recio carácter, en apariencia serio y carente de
humor —véase su concierto en Japón/76: de su pañuelo de mago que suda parecen brotar torrentes de
notas—, al que algunos críticos han considerado, equívocamente, presuntuoso y arrogante. Su actitud
sólo demuestra que todo artista primero se da gusto a sí mismo… aun a costa de lo que el público
pueda creer o se atreva a especular. Su carácter entonces no debe ser una respuesta sino una propuesta
a la opinión. Que sea o no aceptada es ya otra cosa. Y quizás eso opine Jarrett. Pero, lo que cabría
pensar que no ofrece como persona se ve superado a raudales por su música, la que invade todo:
conciencias y espacios. Existe la tendencia, dicho sea de paso, a pensar que él es negro, lo que reafirma
los criterios racistas en el jazz.
Su estilo es una amalgama de blues (Paris Concert/88), Boggie (Japón/76), country (My Song),
pop demodé (Concerts), himnos (Hymns, Sacred Hymns este, con G. I. Gurdjieff), música clásica
(admira a Charles Ives, emplea armonías al estilo Debussy, recrea a Bach: en Concert in Köln, The
Moth and the Flame y Variaciones Goldberg, respectivamente), barroca (Book of Ways) y exótica, con
ecos mozárabes y gitanos (The Moth…), matizado todo ello con las armonías del jazz convencional:
siente especial afecto por Ornette Coleman, a quien no enjuicia sino aplaude en The Judge, y por Bud
Powell, insigne pianista del Bebop. Sin embargo, probablemente sea el romanticismo ecléctico, o
viceversa, la característica que mejor defina el estilo de Jarrett. En todo caso es imposible cobijarlo con
el hoy impredecible manto del jazz aunque, desde luego, por lo hecho en él se hace imperdonable
excluirlo: así lo certifican álbumes como The Mourning of a Star, The Survivor’s Suite, Shades y My
Song. Menos peligroso resulta asociarlo ahora a la Tercera Corriente, de Günther Schuller, que Jarrett
ha fusionado de modo más natural que su propio creador, mediante un lenguaje más directo y gracias
a su especial facultad de improvisación, la que para él es indesligable de la de compositor: ―De lo
contrario, no veo cómo un intérprete puede entender a un compositor; y tampoco cómo puede
comprender el proceso por el cual la música fluye a través de alguien‖. Su virtuosismo, en tal dirección,
sorprende incluso a los músicos clásicos.
A partir de 1971, Jarrett ha dirigido tríos con Charlie Haden y Paul Motian; luego, en el 76,
cuartetos con los dos anteriores, Dewey Redman, y con el percusionista brasileño Guilherme Franco; y,
a partir del 77, con los noruegos Jan Garbarek y Jon Christensen y el sueco Palle Danielsson. Cinco
años atrás, en 1972, Keith grabó Facing You, especie de presagio para todas las satisfacciones
posteriores dentro del piano solo: Solo Concerts, The Köln Concert, Staircase, Sun Bear Concerts in
Japan (álbum de diez elepés), The Moth and the Flame, Concerts (Bregenz, Austria), Vienna Concert
91, etc. Es en dicho campo donde Jarrett mejor juega y en el que más fácil obtiene la inspiración y el
―sonido esencial… sonido sin tanto énfasis en el ego‖. Y la culpa de esa ―inspiración que viene del más
allá‖ no se le puede echar a Gurdjieff ni a Gibran, filósofos distintos y distantes a los que se sabe ha
estudiado. Jarrett sostiene: ―No estoy en posibilidades de descubrir con palabras de dónde proviene‖.
Y agrega: ―Oyendo lo que hay que oír, percibimos la esencia del sonido sin palabras ni conceptos. Los
que saben, no hablan. Si usas palabras, sólo puedes decir la mitad de la verdad, o aún menos, porque
nunca puedes definir algo totalmente con la verbalización. Así, si me refiero a mi relación con el piano,
siempre quiero significar algo más allá de mis palabras. Sin embargo, a veces pienso que no es un
instrumento suficientemente primitivo para que lo pueda considerar de sonido esencial‖.
Jarrett sintetiza el pensamiento de sus colegas en unas pocas frases, nunca demasiadas, siempre
suficientes: ―Quieren que la música suene personal. ¿Cómo explicar a aquéllos que vienen a un
concierto, que en los últimos años (hasta cuando improviso) estoy tocando otra música y no la mía,
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desplegando un centro personal que es también universal, que cualquiera puede sentir? ¿Cómo
explicarles que la música no les pertenece? Somos música, no la poseemos‖. Y la suya borra, cada vez
más, los linderos que separan al jazz de la clásica, acercando ambas expresiones a una música mundial
o, si se prefiere, popular (entendida sin prejuicios), la que como diría el escritor John Updike ―nos
baña con imágenes de emoción y nos atrae hacia una plenitud de la cual nuestras vidas son sombras‖.
Sustantivo, este, no desconocido aunque proscrito en el lenguaje sonoro de Keith Jarrett. De quien, por
supuesto, no hay que hablar demasiado pues su música basta para establecer que no poseemos nada,
que únicamente somos.
En un país de tan altísima contaminación sonora y en el que las personas que no soportan el
ajeno se fabrican su propio ruido, multiplicándolo, caen justas las palabras de Keith Jarrett, artista que
a través de su obra, cuando no lo sugiere, invoca al silencio: ―Si hubiese un día en el que durante…
digamos cinco minutos, todos permaneciésemos en silencio, tengo la impresión de que muchas vidas
cambiarían de un modo positivo. Porque a veces bastan cinco minutos para darte cuenta de que estás
equivocado. El silencio es lo que necesitas para encontrarte a ti mismo‖. Sí, señor. No hay nada que
buscar por fuera. Así que, por Keith Jarrett, cinco minutos de silencio…
Luis Carlos Muñoz Sarmiento (Colombia, 1957). Escritor, periodista, crítico de cine y de jazz,
catedrático, conferencista, corrector de estilo y lector. Realizador y locutor de Una mirada al jazz y La
Fábrica de Sueños (Radiodifusora Nacional, Javeriana Estéreo y U. N. Radio, 1990-2004). Fundador y
director del Cine Club Andrés Caicedo desde 1984. Foto de Keith Jarrett: Rosa Anne Colavito.
Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Floriano Martins (Brasil), artista
invitado de esta edición de ARC.
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VICENTE FERREIRA DA SILVA | D. H. Lawrence: uma floresta
sombria
D. H. Lawrence marcou uma assinalada função cultural, propondo-se de todas as maneiras
alargar e ampliar os limites do humano. Toda sua gestão de escritor, toda sua paixão no decurso da
experiência da vida se coligiu nessa tarefa de descobrir ―novos céus e novas terras‖ para o homem. O
que implica, sem mais, acreditar que a representação antropológica que, como investidura social,
somos compelidos a executar, traduz unicamente uma singular mutilação de nossas possibilidades de
ser. Somos uma função social, um conjunto de virtudes que garantem unicamente a nossa aceitação no
grupo em que vivemos. O ser para a sociedade, entretanto, atrofiou e absorveu de maneira catastrófica
todos os apelos e invocações que assediavam a alma do homem total. O drama da alienação da alma na
dimensão simplesmente intersocial e humana constitui o tormento de sua realização intelectual.
Prodigou-se em esboçar situações narrativas em que os personagens expiavam e morriam o seu ser
antigo, a sua autoimagem ocludente, em vias de metamorfoses e ressurreições.
Encontramos em sua obra Studies in Classical American Literature páginas de uma polêmica
mordaz, dirigidas contra o patrono do moralismo puritano ianque, Benjamin Franklin. Contudo, o
escopo de nosso artigo não é seguir de perto essa polêmica destruidora contra o credo moralístico de
Franklin e de outros representantes do espírito puritano, mas sim o de explicitar o que Lawrence, no
correr de seu pensamento, vai revelando sobre a ―Colômbia primaveril‖ de sua própria concepção da
vida e do homem. Parodiando a maneira sentenciosa de Franklin, Lawrence estabelece ―para brincar
de Benjamin‖, como ele mesmo ironiza, a sua lista de preceitos e antipreceitos morais, como uma
espécie de decálogo sacrossanto. Esse breviário moral e o resumido credo que o procede traduzem,
porém, uma impressionante sinopse do que poderíamos denominar o neopaganismo de Lawrence. Na
ordem de afirmação de toda afirmação pagã ou neopagã, Lawrence repudia desde o início qualquer
ideia finalista ou progressista do destino humano, qualquer escatologia que calunie ou condene a vida,
em função de uma redenção espiritual. A concepção de fim é inteiramente alheia à sua sensibilidade
religiosa, sendo a realidade ou a vida um estar aqui esplêndido e divino. Os deuses são presenças ou
epifanias que rondam o aqui, que vão e vêm em nossa alma e não se pospõem para um além invisível e
desencarnado. O credo de Lawrence, oposto ao do ―vovô Benjamin‖, é tão importante e decisivo para
tudo que diz respeito à problemática humana e histórico-social, que vamos reproduzi-lo em seu texto
integral.
―Eis aquilo em que creio‖, diz Lawrence:
– Que eu sou eu.
– Que minha alma é uma floresta sombria.
– Que o eu que conheço é apenas uma pequena clareira nessa floresta.
– Que deuses, estranhos deuses vão da floresta para a clareira do eu conhecido e depois se
afastam.
– Que devo ter a coragem de deixá-los ir e vir.
– Que não deixarei jamais a humanidade me dominar, mas sempre tentarei reconhecer os
deuses que estão em mim e a eles me submeter, assim como àqueles que estão em outros homens e
outras mulheres.
Apressa-se Lawrence a comentar que os espíritos enquadrados no simplesmente humano da
nossa civilização não poderão jamais compreender o seu credo. E já podemos compreender essa
26
―incompreensão‖ inicial das vítimas do antropocentrismo fechado e dos que se empolgam pelo ídolo da
condition humaine sem portas e sem janelas. Contesta, em primeiro lugar, o ―teclado apoticário‖ das
virtudes da respeitabilidade social, do existir unicamente em sociedade do eu moderno: temperança –
silêncio – ordem – resolução – frugalidade – trabalho – sinceridade – justiça – limpeza –
tranquilidade – castidade – humildade.
Desse piano mecânico de Benjamin, nascem as fastidiosas harmonias do homúnculo social e do
animal moral, dissociado das raízes vívidas da alma cósmica. A teoria lawrenciana da alma remete-nos
às formulações românticas do psiquismo humano e meta-humano, às antigas ideias de um Karl Gustav
Carus, que reconhecia no inconsciente não só ―a chave do conhecimento da vida consciente da alma‖,
mas que também determinava esse Inconsciente do qual emergimos como a vida fantástico-elementar
do próprio cosmos. O nosso corpo, em especial, expressa essa vida criadora inconsciente, pois a vida só
pode traduzir-se em fenômenos fantástico-somáticos: Wo kein Leiben ist, da ist auch kein Leben.
(Onde não há vida no corpo, não há vida.)
Através da aferência inconsciente do nosso ser, mergulhamos na vida universal do cosmos e
somos essa totalidade criadora. Para Lawrence, de modo semelhante, o nosso ser é um teatro de
revelações das potências morfogenéticas da vida ou dos deuses.
O que significa esse estranho enunciado lawrenciano que mais parece ditirambo poético do que
proposição antropológica: minha alma é uma floresta sombria? Esse enunciado expressa um ir-alémde-si-mesmo, uma compreensão de si além de si e do cogito ou do humanismo rotineiro. Diz
Lawrence: – Eu sou eu, mas não o eu do ego cogito ou da consciência perceptiva vigilante.
Sou uma floresta sombria e, no entanto, em nossa civilização todas as coisas são expressões
desse eu simplesmente consciente e acanhado, como momentos de sua realização. É o que nos revela
Lawrence em seu poema ―New Heaven and Earth‖:
I was so weary of the world,
I was so sick of it,
Everything was tainted with myself,
Skies, houses, streets, vehicles, machines,
Nations, armies, war, peace-talking,
It was all tainted with myself, I knew it all to start with
Because it was all myself.
Entretanto, para que não sucumbe diante da ideia de ―humanidade‖ ou do eu isolado, a alma
continua sendo uma potência aórgica, devotada ao serviço das cenas primordiais. Se pudermos
compreender o homem como uma ―flexura‖ em relação à totalidade das coisas, como um estar-nomundo no qual todas as potencialidades e aspectos, mesmo os mais inadvertidos e inconscientes
colaboram e determinam a sua maneira de ser, então ―a nossa alma é floresta sombria‖. Nós somos o
mundo, justamente o mundo que exorbita a pequena clareira do eu conhecido, esse mundo que
inconsciente e florestal pode entrar em cena no nosso discurso existencial. No pensamento de
Lawrence, o mundo não contém somente a verdade do homem e de suas veredas de ação, mas um
sem-número de itinerários que representam uma simbólica divina. Estranhos deuses vagam da
floresta para a clareira, estranhas dominações podem empolgar a nossa alma e o nosso corpo,
traduzindo-se então através de nossa criatividade mais profunda. Podemos ser ―à maneira de‖ cada um
dos deuses, podemos viver nessas dimensões fascinantes, tornando-nos então emblemas e signos
dessas dominações superiores. Só poderíamos aludir a essas dominações como espoliações ou
alienações de uma pretensa essência verdadeira do homem, na hipótese de imobilizarmos o homem
em sua figura pessoal-espiritual. Não nos devemos deixar dominar pelo exclusivo do homem-só-
27
homem, pelo mitologema cristão da humanidade e pelo plexo de realizações puramente técnicosociais. A máxima alienação consiste justamente na recalcitrância do querer ser si mesmo e nesse
antropocentrismo delirante que oblitera a nossa natureza osmótica e espongiária. Podemos pôr em
imagem os deuses que vêm a nós, desde que a nossa essência, como afirma Heidegger, é uma franquia
de realizações existenciais. O nosso ser mais profundo não é reclusão, fechamento ou paixão de si, mas
entusiasmo, estar-fora-de-si na presença dos deuses. Por isso Lawrence não só declara que devemos
permitir que os deuses venham e se retirem de nossa alma, mas consequentemente que nos
submetemos à sua paideia. Mais significativa que a escola divina, a educação do nosso espírito para o
apelo do mundo em forma da manifestação do divino. Unicamente a hierofania dos mundos virtuais
pode suscitar em nós a vontade de formar e o desempenho absoluto das cenas sugeridas.
Eis que a nossa vida, nesse extraordinário credo lawrenciano tão sucinto, mas tão rico de ideias
e sugestões de pensamento, não comparece como uma superfície hígida e por demais conhecida. Não
estamos assentados sobre o trivial ou sobre o fartamente conhecido, mas existimos na Floresta Negra
do ser, na Amazônia da realidade. ―Viva a Colômbia! A alma do homem é uma floresta sombria‖, diz
Lawrence. E toda a sua obra desloca o centro de apreciação da vida humana, do indivíduo subjetivo
para o domínio aórgico dos deuses. Sua visão da existência é uma visão teocêntrica. E o personagem
aferente da nossa civilização, o homem renascido em espírito, constitui apenas uma das consignações
históricas emitidas pela ordem ex-cêntrica das aberturas religiosas. Somente nessa perspectiva
podemos interpretar as normas que, temperadas de ―humor‖ e ―à maneira do bom Benjamin‖,
Lawrence inscreve nas tábuas da lei da vida histórico-divina. O decálogo lawrenciano que na realidade
consta de treze preceitos, instala-nos imediatamente no reino da ação afetiva, entusiástica, que ocorre
sempre como símbolo e epifania. Eis o primeiro preceito:
I. TEMPERANÇA | Comei e festejai com Baco ou mastigai pão seco em companhia de Jesus, mas não
vos senteis à mesa sem um dos deuses.
Qual o contexto que iluminaria plenamente essa norma e medida de ação?
O homem não existe por si, mas é um dos elos da díade homem-deuses. Pensando apenas a
partir de si mesmo, o homem é uma abstração, um fragmento tinto de absurdo, um ser desértico e
atrofiado. A abertura em que habitamos e somos, na qual se inscreve a árvore dos nossos
desempenhos, expressa sempre um Império da divindade. Tanto assim, que os bens culturais de uma
civilização têm sempre uma origem ritual-religiosa, e mesmo nossa civilização técnico-científica,
quando sondada em sua constituição última e transcendental, é tributária do mitologema cristão.
Podemos reconduzir inclusive a nossa maneira de amar, a nossa erótica, às raízes religiosas de onde
promana. É o que nos diz Walter Schubart em sua obra Religion und Eros: ―A religião não é uma
erótica sublimada mas, pelo contrário, o Eros é que é a vivência religiosa contraída a uma expressão
puramente sexual‖. Assim como o sexo só pode ser desvirtuado quando limitado a uma função
fisiológica, assim também o comer e o beber são muito mais do que mera absorção de calorias ou
refrigério da sede. Lawrence considera o comer uma comunhão com o cosmos, e uma forma
eucarística de incorporação de poderes demônico-energéticos. Essa é a forma que na antiguidade
assumia o Symposion que, muito mais do que um banquete, reunião social ou intelectual, era um ato
sagrado. Sentar-se à mesa com os deuses significa, entretanto, além de uma absorção de poderes, uma
festiva rememoração da razão de ser do nosso ser. De puro ato de conservação do indivíduo, a
alimentação aponta para o fato de existirmos, isto é, comemos e bebemos a fim de realizarmos os
valores supremos. Comer e beber não são atos intransitivos e opacos, mas atos eucarísticos e
presentificação do fundo último das coisas. Comer e beber sem a companhia dos deuses seria uma
simples operação físico-química, um carregar-se de poderes para nada, para a manutenção da vida
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num rumo absurdo e sem finalidade. Como sugere Van der Mühl, a própria festa greco-latina
constituía em si mesma uma manifestação de Baco ou Dioniso, deus dos estados psíquicos exaltados e
transbordantes.
Contudo, entre os gregos a embriaguez era temperada e moderada, já pelo fato de beberem
vinho puro. Lawrence tem razão ao afirmar que a temperança nasce como uma medida relativa, como
uma limitação que adquire significado pela obra humana consignada à nossa consciência. Assim, como
não existe o homem em si, irrelativo ao contexto mítico-cultural, também não existe a temperança em
si, pois o processo de autoconservação depende da forma de vida que realizamos e essa, por sua vez, do
pôr-se em forma religiosa de uma época.
II. SILÊNCIO | Permanecei silenciosos quando não tiverdes nada a dizer; quando uma verdadeira
cólera dominar-vos, dizei o que deveis dizer, e com ardor.
É significante o fato de Lawrence opor a cólera ao silêncio, como se não existissem outros
impulsos que nos levassem a romper o silêncio. O certo é que ele não compreende o Universo como um
mecanismo pacífico, harmonioso, como o living room de hóspedes inteligentes e virtuosos, mas sim
como a conflagração criadora de potências obscuras e violentas. No cerne da vida, na raiz de todo vir a
ser aninham-se o ódio e a cólera, forças primigênias por essência. Tanto assim que na mitologia dos
povos aurorais, e mesmo no repertório de todas as religiões, encontramos a galeria apavorante de
deuses monstruosos e selvagens, dos deuses-dragões. Toda autoformação da vida, toda plasmação,
todo querer-viver, é uma transgressão impetuosa, uma prepotência. O furor originário da vida-paixão,
com seus deuses sanguinários e ameaçadores, traduz essa infraestrutura primordial do ser, a vida
como ainda persiste nos estratos profundos do nosso frágil Eu. Assim, o fundo secreto da vida é uma
chama impetuosa e colérica, um querer-viver agressivo, sem o que a vida se diluiria na indiferença e na
renúncia do não-ser. Toda a nossa existência deve ser uma afirmação inelutável, uma decisão nítida,
uma vontade de onde promane aquele furor criativo da vida-paixão. Lawrence imaginou homens de
grande tônus emocional, ígneos, entusiásticos, violentos e apaixonados, seres verdadeiramente vitais.
Portanto, só a vontade colérica da vida, o querer-mais-vida, deve romper o silêncio e a calmaria dos
sons adormecidos. A vida deve falar acerca da vida e não extraviar-se numa tautologia enfadonha, num
discorrer sobre os mortos, sobre o passado ou sobre as possibilidades já conquistadas. Devemos deixar
de contar ―histórias‖ sobre o ente, sobre o já dado, pondo-nos em consonância com o entusiasmo
criador da mais-vida. Quem se obstina na tautologia do pensamento perene ou da filosofia perene está
repetindo o já dito e redito, e portanto o melhor que teria a fazer seria preservar o silêncio. A tediosa
característica da vida como aferição é a subordinação talmudística ao texto e à palavra autoritária, é a
não-liberdade sob o disfarce de pensamento. Transcender o silêncio deve ser uma palavra das
―cavernas do ser‖, da sombria floresta.
III. ORDEM | Sois responsáveis para com os deuses que habitam em vós e para com os homens
através dos quais esses deuses falam. Reconhecei vossos superiores e inferiores segundo os deuses.
Essa, a raiz de toda ordem.
Para Lawrence, toda ordem é uma ordem ―segundo os deuses‖, é a ordem em sua raiz e em sua
origem. Assim, pois, a ordem não é uma disposição arbitrária das coisas de acordo com um critério
arbitrário, não é uma seriação escolhida ao acaso, ou uma relação serial posta pelo intelecto. A
hierarquia é uma disposição meta-humana que provém das investiduras carismáticas outorgadas pelos
deuses. Já os antigos admitem os dii minores e os dii maiores, potências numinosas de diverso valor e
sentido. Correspondendo a essa ascensão e descida na escala das revelações dos aspectos da vida (os
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deuses são Weltaspekte), se distribui a hierarquia das posições humanas na medida em que, através
dos homens, são os deuses que falam. Os homens representam momentos de uma hierática iniciação
nos arcanos da vida, uma vez que todo comportamento é iniciático e abre perspectivas irrisórias ou
grandiosas no fundamento das forças meta-humanas.
Ao agir, o homem revela-se e ao revelar-se revela os princípios tutelares de seu ser, isto é, seus
deuses. Há homens que confinam e confrangem a nossa alma, que nos remetem a uma verdadeira
micrologia do ser e outros que, pelo contrário, como andrópteros, nos incitam a voar no ilimitado, no
amplo universo das diacomeses divinas.
IV. RESOLUÇÃO | Tomai a resolução de obedecer aos vossos desejos mais profundos e de sacrificar
sempre o inútil ao essencial. Matai, se for necessário, ou aceitai a morte: a injunção procedendo dos
deuses que vos habitam ou daqueles em que reconheceis o Espírito Santo.
Toda decisão e vontade devem representar uma extrema docilidade à vida, uma resolução
obediente, mas de obediência volitiva, um permitir a passagem da corrente da autêntica criatividade.
Em linguagem heideggeriana, poderíamos dizer que devemos abrir-nos à abertura (Offenheit) que nos
instaurou às disposições do Fascinator. Obedecer aos desejos mais profundos significa a superação do
Eu adventício, da persona social, do Eu exterior, para dar livre curso ao fundo ilimitado e criador de
onde emergimos. A resolução é um testemunho dos deuses, é um testemunho criador, pois, afirmou
Walter Otto, nada se revelou mais túrgido de criatividade do que a Imagem do divino.
Essa decisão ou resolução a partir dos estratos profundos da alma implica o abandono
espontâneo do inútil e do inessencial, e a tergiversação da ação insistencial. Com tremenda
radicalidade, Lawrence adverte-nos que a ação como ―injunção vinda dos deuses‖, como
presentificação de uma ordem superior, pode autorizar-nos a matar ou morrer. Assim, não deveríamos
mostrar uma excessiva complacência com o homem intransitivo, antropocêntrico, como simples
proliferação biológica. Não servir jamais a humanidade, dirá o item referente ao Trabalho. Isso
significa que a História deve ser manifestação dos deuses e não teatro do homem autotélico.
Obedecendo ao Espírito Santo, obedecemos a um Espírito que é Santo, nascendo assim as obras do
sentido reverencial aos deuses. O mundo é manifestação, mas manifestação não do ―meio‖ de
manifestação – o homem – mas do manifestável, do digno de manifestar-se, do festivamente
manifestado. E através da História e em muitas eventualidades, o sagrado se manifesta e se afirma
sobre a hecatombe dos humanos.
V. FRUGALIDADE | Não pedir nada; aceitar o que vos parecer justo. Não desperdiceis vosso
orgulho, nem prodigueis vossa emoção.
Para Lawrence, a frugalidade não reside na ordem das coisas, não é economia ou avareza,
segurança obtida por um espírito mesquinho ou retentivo. A frugalidade deve manifestar-se na ordem
do ser e não na ordem do ter. O que não devemos dilapidar e dissipar é a nossa emoção e nosso
orgulho, nosso celeiro reservado ao Espírito Santo dos deuses. Não devemos prodigar-nos ao menor,
esgotando nosso orgulho e nossa vida em questiúnculas, comparecendo exangues e desvalidos à
convocação dos grandes. Devemos respeitar os valores potenciais do nosso ser, respeitando e amando
o possível, o inaudito, o irrevelado e oculto em nós. É próprio do divino ser uma infinita possibilidade
de realização, é próprio do divino manifestar-se em sua ocultação. Nós também, só podemos ser livres
reverenciando o ilimitado que nos habita, isto é, superando o dito, o feito e atualizado.
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VI. TRABALHO | Não deveis perder tempo com as ideias, mas servir o Espírito Santo. Jamais servir
a humanidade.
O sentido profundo dessa norma lawrenciana provém da excedência do nosso ser em relação a
qualquer e exclusivo ser-para-a-sociedade. A sociedade e o homem, tal como se determinam na
civilização atual, representam o fruto de ―ideias‖ e da compreensão da experiência no leito de Procusto
das formas platônicas. As formas ou ideias platônicas são as ―receitas‖, as fórmulas de ser de cada
coisa, fórmulas e receitas que se configuram em vista de um certo fim, isto é, da ideia do Bem. Esse
valor supremo, luz do mundo das ideias, princípio revelador de todas as ideias, é concebido à imagem
da supremacia do espírito incorpóreo sobre as outras possibilidades do ser. A transcendência do
espírito conferiria uma determinação a cada ente, sendo as determinações eidéticas das coisas
configuradas pelo impulso transcendente e em gesto de transcendência em relação à consecução do
melhor espiritual. Como demonstrou magistralmente Heidegger, com Platão a filosofia passou a medir
e avaliar todas as coisas em função do pensamento humano, iniciando o itinerário ascendente do
humanismo antropocêntrico. Essa tendência alicerçou a concepção da vida e das coisas no mundo
ocidental. A essência humana, uma vez determinada pela supremacia do nous ou da alma cognoscente
incorpórea, acarretou a essência das instituições sociais e da sociedade em seu conjunto, como
instrumento de realização da pirâmide da natureza humana na hierarquia de suas funções. Quando
Lawrence obtempera que não devemos perder tempo com as ―ideias‖ ou com a ―humanidade‖ (que é a
ideia geral do homem), sugere-nos que a nossa ação – o nosso trabalho – não deve propiciar um só
aspecto das coisas ou cumprir-se sob a inspiração hegemônica do bem social. Além da justiça social, ou
acima dela, existem inúmeros universos de oportunidades existenciais que clamam pela nossa ação e
obediência. Em outro mandamento dirá Lawrence: ―Cuidado com os absolutos! Há muitos deuses!‖ A
diké platônica é o bem do Eu consciente, do Eu de pequena clareira, apartado do homem plutônico de
outras fascinações existenciais. Em seu romance Lady Chatterley’s Lover, Lawrence propõe o dilema
Platão-Plutão, decidindo-se evidentemente pelo segundo termo da alternativa.
VII. SINCERIDADE | A sinceridade consiste em lembrar que eu sou eu e que o outro não sou eu.
Para sermos sinceros é mister precisamente que sejamos nós mesmos, que superemos o ―todo
mundo‖ em nós e que nos resgatemos das formas inautênticas de ser. A verdade íntima autentificada
não implica evidentemente que de forma obrigatória ou imperativa sejamos ―sinceros‖ com os outros.
Lawrence refere-se a uma sinceridade intrínseca conosco mesmos e a uma originalidade individual
como significado determinante da autorrevelação de cada qual. Essa verdade pessoal exigiria
eventualmente uma estratégia sutil das máscaras do nosso trato com o outro, uma hipocrisia
aristocrática que preservasse nossa verdade fundamental. Tudo o que é profundo se oculta, fugindo às
expectativas rotineiras do maior número, desenvolvendo-se em paragens inóspitas. Entretanto, a
revelação de si mesmo não é o encontro de um Eu-coisa, ou de uma coisa-Eu, a apreensão de uma
alma fechada em si mesma. Pelo contrário, a sinceridade é a total ―flexura‖ em direção à floresta
sombria do nosso ser, desse ser que é essencialmente um ser-no-mundo e consignação a um mundo.
Ser sincero é ser livre e desobstruído para as atestações de um mundo, para os deuses que vão e vêm
na representabilidade da nossa ação. A verdade em relação à qual devemos ser sinceros é certamente a
verdade da nossa alma, mas acontece que a nossa alma é uma floresta sombria. A pujança da
experiência da vida e do Eu em Lawrence torna risível qualquer absoluto moral das ―belas almas‖ que
vivem no Kindergarten da vida beata.
31
VIII. JUSTIÇA | A única justiça é a de obedecer à intuição sincera da alma, seja ela de cólera ou de
doçura. A cólera é justa e a piedade é justa, mas o julgamento nunca é justo.
Essa afirmação de Lawrence identifica a justiça com a vontade divina e com as condições dessa
vontade. O direito e a justiça de uma intuição de vida – e de uma vontade de vida – de um certo tipo
humano. Eis por que ele afirma que uma representação isenta ou imparcial das coisas, um juízo, não
pode ser justo. Justo ou juridicamente válido é o que preserva e favorece uma intuição sincera da
alma, uma postulação fundamental da existência.
IX. MODERAÇÃO | Cuidado com os absolutos – Há muitos deuses.
A confissão veemente de seu politeísmo torna Lawrence o representante de um fenômeno
insólito entre nós. Não se trata evidentemente de um parnasianismo satisfeito em evocar nomes
divinos ou vislumbrar desgastadas imagens de festins divinos. A pluralidade das manifestações do
sagrado é a fonte da qual mana o pensamento lawrenciano, cuja paixão intelectual representa o mais
autêntico desafio filosófico-religioso à sensibilidade geral do homem contemporâneo. A primazia do
Deus Único tornou o homem cego para a pluralidade das formas de vida e para a multiplicidade de
realizações possíveis. O desenvolvimento linear de nossa civilização, em seu estágio presente, é a
decorrência da definição distrófica do homem e de seu destino: um Deus, uma virtude, uma realização
humana, sociopolítica. Vivemos na sanha, na paixão imoderada da forma única, dos valores únicos, da
teleologia única. Transformamos o número Um no absoluto. E Lawrence adverte-nos contra esse
fanatismo, essa imoderação. Investindo contra esse pitagorismo religioso, exorta-nos para que não
cerremos nossas portas a novas experiências, a novas maneiras de ser, destruindo o monopólio
empobrecedor do homem linear, e favorecendo a plenificação das múltiplas solicitações do divino em
novos ciclos de vida e pensamento. Superando o absoluto do absoluto, reencontraremos de novo a
Vida e a polivalência do chamado religioso. Nessa docilidade e plasticidade vitais reside, segundo ele, a
moderação.
X. LIMPEZA | Não exagerar o imperativo da limpeza. Isso empobrece o sangue.
Lawrence alude aqui ao sentido puritano e rigorista da limpeza e ao seu horror às vicissitudes
corpóreas, isto é, à própria vida, como imperfeição, mácula e pecado. Em sua Defesa de Lady
Chatterley encontramos essa passagem: ―O espírito conserva um antigo terror do corpo e de seus
potenciais físicos. É urgente liberar o corpo...‖ E lembra em seguida a insanidade de um grande
espírito como Swift quando, num poema dedicado à sua amante, repete como refrão de desencanto e
de repulsa que Célia, Célia, a bem-amada também vai ao W.C. No fundo, é o espírito desejando que o
corpo não seja corpo, mas espírito, limpo, inodoro, insípido e imaculado. Mas acontece que o corpo é
uma diversa manifestação do divino...
XI. TRANQUILIDADE | A alma move-se em muitas direções, muitos deuses vêm e vão. Nas situações
confusas procurai vosso intento mais profundo e aplicai-vos a ele. Obedecei ao homem no qual
reconhecerdes o Espírito Santo, e comandai quando a vossa honra assim ordenar.
Entendemos comumente a paz e a tranquilidade como um descanso em Deus, ou ainda a
redução das forças em luta em nossa alma a um princípio de ordem soberana. Lawrence não ama essa
paz oriunda de uma mutilação dos movimentos anímicos, pois essa paz significa o sacrifício de
múltiplas formas de ser. Em seu preceito incita-nos a reconhecer e acolher o deus que mais
profundamente fala em nossa alma, isto é, procurar nosso intento mais profundo e ser fiéis a seu
apelo. A alma humana, para Lawrence, é o cenário para a mise en scène do sobre-humano. Em lugar
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da paz na fixidez morta, devemos atingir aquela tranquilidade oriunda da proximidade do divino que
pode ser exuberância e suprema atividade, na medida em que representa a plenitude do cumprimento
sacral. Esse lawrenciano ―estar com Deus‖ não se expressa, pois, necessariamente na quietude da
alma, pois a face divina, sua índole e propulsividade podem variar, impelindo-nos ao Espírito Santo
em nós mesmos ou naqueles em que acaso se manifeste, não haverá tranquilidade no sentido acima
indicado.
XII. CASTIDADE | Não pratique ―o ato venéreo‖. Deveis obedecer vossa impulsão passional se o
outro a ela responder, mas sem ter em vista qualquer finalidade, nem de geração, nem de saúde,
nem mesmo de prazer ou de caridade. O ―venéreo‖ pertence aos deuses todo-poderosos. É uma
oferenda aos deuses sombrios e todo-poderosos – nada mais.
O ―ato venéreo‖ – como o denomina Lawrence parodiando o eufemismo do ―bom Benjamin‖ – é
uma das típicas criações do homem subjetivo, reduzindo a vida à consciência dotada de um ―corpo‖
material. Contribui decisivamente para essa ―objetivação‖ sexual a nossa interiorização, o nosso existir
como um ―dentro‖, isto é, a nossa metamorfose num espírito não sensorial.
O ―ato venéreo‖, na acepção puritana, é a recorrência de uma compreensão anatômicofisiológica da existência, compreensão que procura projetar a nossa realidade no cenário físico. Foi
sem dúvida essa representação que criou a perspectiva dessacralizadora da natureza, induzindo uma
visão positivista e científica do amor. Lawrence, em toda sua prodigiosa obra, pugnou
apaixonadamente contra essa perversão e redução do Eros. Em seu pensamento, o sexo é uma
―oferenda‖ aos deuses, isto é, uma cena onde são atualizadas forças não feitas pelo homem. O universo
afrodítico-sexual constitui uma realização de dispositivos atávicos e, como afirma Lawrence, pertence
ao campo dos deuses poderosos. No amor, é o amor que se realiza através de nós.
XIII. HUMILDADE | Deveis encarar todo homem e toda mulher relativamente ao Espírito Santo que
os habita. Nunca ceder àquilo que é estéril.
Desde que o homem, para Lawrence, é um receptor ou transmissor de correntes mais
profundas, nunca deve ser apreciado em sua presença opaca e intransitiva ou, segundo sua expressão,
estéril. Estéril, porque o homem incomunicante e fechado não está em conexão com o húmus dos
poderes inconscientes e criadores; nada pode nascer do homem incomunicante, pois não possui a
humildade necessária para deixar passar a corrente do divino. O valor do homem, para Lawrence,
reside em sua disponibilidade infinita em relação ao Holy Ghost que habita sua alma.
Vicente Ferreira da Silva (Brasil, 1916-1963). Filósofo. Ensaio originalmente publicado na revista
Diálogo # 15 (São Paulo, 1962). Posteriormente incluído em Transcendência do mundo: obras
completas (organização, preparação de originais, prefácio e introdução geral a cargo de Rodrigo
Petrônio, É Realizações, São Paulo, 2010). Agradecimentos a Rodrigo Petrônio
([email protected]) e Inês Bianchi ([email protected]). Página ilustrada com
obras de Floriano Martins (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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GOTTFRIED BENN | ¿Debe la poesía mejorar la vida?
El tema propuesto para esta tarde ha sido discutido ampliamente por el doctor Reinhold
Schneider [1] y por mí, en nuestros libros. Basta haber leído incluso unas pocas páginas del doctor
Schneider, o mías, para saber de cerca cuál es nuestro orbe mental al respecto. Por mi parte, no deseo
iniciar repitiéndome, pero haré uso de un método alternativo para aproximarme al tema.
El método del cual pretendo servirme consiste, principalmente, en considerar exactamente el tema
y llevarlo directo a mis ojos, palabra por palabra. Debe: esta palabra se puede interpretar únicamente en
el sentido que aquí se intenta establecer para o sobre la poesía un destino de carácter vinculante. En los
diez mandamientos este ―debe‖ aparece en cada tesis del decálogo: debes o no debes. [2]Es una palabra
severa el ―debe‖ que aparece en Éxodo 20: ―Todo el pueblo oía los truenos y el sonido de la trompeta y
veía las llamas y la montaña humeante. Y atemorizados, llenos de pavor, se estaban lejos.‖ [3]Pero
nosotros no deseamos estar lejos, frente a nosotros se levanta un tanto apodícticamente este ―debe‖, y eso
nos conduce directamente a la otra pregunta: ¿quién es el verdadero sujeto que hace la pregunta, quién
expresa la exigencia de esperar una explicación acerca de la poesía? ¿Se trata acaso de un experto en
economía política, un pedagogo, un fiscal de distrito? ¿O bien debe ser la vox populi, el consensus
omnium o el ideal democrático por medio del cual cualquiera debe saberlo todo e intervenir en todo? No
se sabe, y por el momento dejo la pregunta sin respuesta.
La poesía: dado que ya no existen más rapsodas, y nosotros mismos no lo somos, podemos afirmar
que por poesía se entiende un libro, un libro con poesía, un libro lleno de poesía. Tal libro, entonces,
¿debe mejorar o no la vida? Esto es posible establecerlo, pues existen muchos libros que sin el menor
asomo de duda se proponen mejorar la vida; por ejemplo, libros de economía donde se discute el
problema de conciliar libertad y constricción, individualismo ilimitado y sociedad materialista de masas,
y en los cuales en conclusión se indica un camino que debe crear las condiciones para una vida mejor. O
bien, existen libros de medicina sobre neurosis, remoción, o padecimientos de estrés; estos libros
proporcionan consejos, sugerencias y prohibiciones, con el objetivo de mejorar la vida. En este tipo de
libros, entonces, debemos ver el libro lleno de poesía a propósito del cual se nos pone a consideración si
deba mejorar la vida. En esta misma clase de libros podemos acoger incluso al teatro como libro abierto y
desvirgado.
En seguida viene la palabra que contiene una pregunta fundamental: ¿qué es en realidad la vida
misma? ¿Qué se entiende que algo de ella deba ser mejorado? ¿Su fisiología o su ámbito afectivo, la
existencia productiva o la reflexiva? ―Vida‖ es una palabra demasiado genérica, y aquí podría perfilarse una
crítica insólita, o fuera de contexto, del concepto de vida, pero no por esto podemos eludirla, pues es
nuestro tema el que nos lo impone. Desde hace algún tiempo he reflexionado sobre cuanto hay de
singular en el hecho que este concepto de vida haya devenido el concepto supremo en la situación de
nuestra conciencia y de nuestra ciencia. Al lado del verso de Schiller, ―La vida no es el don más supremo‖,
se hallan pocas reservas críticas de este tipo. La vida: aquí la raza blanca tiembla, es el último puntal de la
fe de la actualidad, de nuestro ámbito cultural. Es un residuo del biológico siglo XIX lo que obliga a la
Europa contemporánea a luchar por cualquier vida, así sea por una mínima prolongación, por cada hora,
con inyecciones y transfusiones de oxígeno, mientras conocemos ámbitos culturales en los cuales la vida
ordinaria, la vida en general, carecía de importancia alguna, entre los egipcios, los incas o en el mundo
dórico, y aún hoy sabemos de prácticas en uso en ciertas tribus nómadas de Asia: cuando los antepasados
se vuelven un peso, el hijo mayor planta una lanza a través del muro de la tienda y desde el interior el viejo
se arroja sobre ella ofreciendo el corazón. Entonces, la cura de la vida que esperamos no es una exigencia
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universal, antropológica. Sólo para nosotros, en el espacio de ciertos grados de latitud, se ha vuelto el
concepto determinante y fundamental frente al cual todo se ha detenido, el abismo en el cual, no
obstante se omiten otros valores, todos se arrojan ciegamente, se hallan solidarios y callan conmovidos.
En realidad, a mí esto no me parece tan claro y evidente como la opinión general lo considera; y esto por
motivos muy claros. De hecho, me parece absurdo sostener que el Creador se haya especializado en la
vida, la haya exaltado, la haya puesto en evidencia y con ella haya hecho algo distinto para sus onanistas
juegos de formación y transformación. Esta grandeza seguramente tiene a su disposición otros campos de
actividad y envía al ojo sobre esto o aquello, sobre asuntos lejanos para un caso particular tan oscuro; en
resumen, para un ámbito cultural en el cual nos hemos desarrollado, tan remoto del de las plantas y donde
el material de experiencia es puramente espiritual, este dictatorial concepto de vida es
sorprendentemente primitivo, casi proveniente de la medicina veterinaria.
Esta vida problemática, entonces, debe ser mejorada. Las dificultades son siempre más grandes. ¿En
qué sentido, en sentido político? Esto lo hacen los diputados y los comicios electorales. ¿En sentido
técnico? Pero de esta manera nos agregaremos a los ingenieros y a los soldados que se dirigen a los
confines y arrojan sobre la tierra los reticulados. ¿En sentido social? No hace mucho, en el libro de un
economista inglés, leí que en la Inglaterra de hoy día la vida del trabajador es más confortable y mundana
de cuanto había sido en los siglos pasados la de los grandes latifundistas y señores medievales. Era una
opinión bien documentada: en lo que respecta a las viviendas, que en algún momento fueron sombrías,
angostas e imposibles de calentar; en lo relativo a la alimentación, era necesario matar todo el ganado para
el día de San Martín porque era imposible alimentarlo en los meses de invierno; en lo referente a las
enfermedades, frente a las cuales se estaba inerme. Hoy día los trabajadores viven como los ricos de hace
tres siglos, y dentro de tres siglos la relación será de nuevo la misma, y siempre lo será, y siempre se eleva a
fuerza de crepúsculos de la humanidad y auroras y con sursum corda y per aspera ad astra, los pobres
quieren elevarse y los ricos no desean descender, todo esto no es más objeto de experiencia individual
sino, por el contrario, un proceso funcional de ese dato factual que es la sociedad humana. ¿Debe,
entonces, debería colocarse a la poesía con su mejoramiento posible? ¿O bien ella debe mejorar las cosas
en un sentido cultural? En este punto llego a rozar una situación en relación con la cual, ciertamente, me
hallaré casi aislado. Son las opiniones respecto a que arte y cultura no tienen mucho en común. A
menudo he sostenido que se debería distinguir, netamente, entre ambos fenómenos, el del portador de
arte y el de portador de cultura. [4] Arte no es cultura, el arte tiene un lado dirigido hacia la formación,
hacia la educación, hacia la cultura, pero en la medida en que ésta no es todo esto, sino algo diferente,
que es precisamente el arte. El mundo del portador de cultura está hecho de humus, tierra, él elabora,
trabaja, desarrolla, señalará qué es el arte, le proporcionará un pedestal, la encaminará, instaurará cursos
y ciclos de conferencias a partir de ella, él cree en la historia, es positivista. El portador de arte es asocial
estadísticamente, sabe poco o nada de lo que viene antes o después de él, vive sólo para su materia
interior, por eso recoge impresiones, en su interior las guarda, tan profundamente en sí hasta tocar su
material, alborotarlo y provocar algunas descargas. No le interesa la difusión, la acción visible, la
prolongación de las reseñas, la cultura. Él es frío, el material se mantiene frío, él debe proporcionar
forma a los sentimientos, a la ebriedad a la cual otros pueden humanamente abandonarse, lo que
significa endurecerlos, enfriarlos, conferirle estabilidad a lo que es blando. En muchos aspectos es cínico
y además afirma no ser nada más que esto, mientras los idealistas se sientan entre los portadores de
cultura y quienes producen ganancias. El portador de arte no quiere jamás aparecer en persona y
expresarse en público, tanto más que —aparte de algunas ramificaciones sentimentales— él no se
considera en absoluto competente en materia de mejoramientos; la extraña frase de Nietzsche acerca de
Heráclito, ―entre los hombres él era imposible como hombre‖, es válida para él.
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Para concluir, ¿debe acaso la poesía mejorar, consolar, curar en sentido médico? Hay muchos que
así lo afirman. Música para los enfermos mentales e interiorización mediante Rilke en la curas de ayuno.
Pero si en Kierkegaard leemos ―La verdad vence sólo a través del sufrimiento‖, si Goethe escribe ―He
aprendido mucho sufriendo‖, si Schopenhauer y Nietzsche ven en el grado y la capacidad de sufrimiento
el parámetro para medir el rango del individuo, si Reinhold Schneider escribe: ―En el enfermo debe
revelarse la gloria de Dios, el milagro que cumple en él‖, y si después Schneider define la disminución de la
conciencia de lo trágico como el ocaso de nuestra cultura, ¿puede entonces la poesía o el poeta contribuir
a un mejoramiento de estas trágicas situaciones, o no debería, por el contrario, por sentido de
responsabilidad frente a una verdad superior, detenerse y permanecer en sí mismo? Una verdad superior,
¿y con estas palabras, me dirán en voz alta, qué quiere decir? Respondo: no soy capaz de imaginarme a un
Creador que considere un mejoramiento lo que no estamos en condición de definir como tal en el sentido
de nuestro tema. Entonces me dirán: ¿Qué es lo que esta gente se mete en la cabeza? Les reservo
sufrimiento y muerte para que sean dignos de ser hombres, y ellos se escabullen de nuevo recurriendo a
píldoras y a infusiones de semillas de hinojo y quieren estar alegres y viajar en pullman; y a propósito de
la poesía me atengo a la frase de Reinhold Schneider: ―Es parte de la esencia del arte dejar abiertas las
interrogantes, detenerse en la penumbra, persistir.‖ Quien siente la poesía de esta manera tal vez va más
allá. En la penumbra, basta esto para lo que concierne al Creador y al mejorar.
Hasta ahora me he aventurado en una crítica formal del tema propuesto, pero no me detendré
aquí. Someteré a examen la exigencia misma y dejaré que me hable. Sin embargo, antes quisiera decir,
para resumir, que nuestro tema es una cuestión, una formulación sumamente alemana. No creo que en
Francia, Italia o Escandinavia la pregunta podría ser puesta en estos términos. Para nosotros es una
pregunta natural puesto que la historia de nuestra literatura podría inducirnos a considerar que los
poetas mismos, entendidos como modelo, ídolo, Yo moral concluido, vida ejemplar, puedan mejorar la
juventud y nuestra época. Es verdad, si consideramos los últimos cien años de nuestra literatura, en ella
podemos observar muchos hombres eminentes, pero figuras de bien, como Storm o Fontane, idílicas
como Möricke, Stifter, Hesse, burgueses como Thomas Mann, Gerhart Hauptmann, todas ellas nobles
figuras desde el punto de vista humano, todos hombres de bien. Por el contrario, Dostoievski jugaba a la
ruleta de forma compulsiva. Tolstoi no se bañaba por semanas enteras para heder como un kulako.
Maupassant escribió que un hombre normal tiene, a lo largo de su vida, relaciones sexuales con trescientas
o cuatrocientas mujeres. Verlaine le disparó a Rimbaud en plena calle, lo golpeó y terminó en prisión por
dos años. De Oscar Wilde es mejor no hablar. En resumen, de los productores de poesía no se puede
ciertamente inferir una vida ejemplar, una vida que mejore a los demás.
Para sumergirme aún más en los problemas de nuestro tema fui a buscar qué declaran los poetas a
propósito de su actividad, si alguna vez la han interpretado en el sentido de mejorar a los demás. Sin
embargo, no he hallado confirmación alguna. Hebbel observa: ―Escribir significa entrelazarse en el mundo
como en un manto y abrigarse.‖ Una tesis demasiado egocéntrica. Ibsen dijo: ―Escribir significa realizar
juicios de sí mismo.‖ Es una frase célebre pero no me dice mucho. En Kafka escuchamos: ―Odio todo lo que
no se refiera a la literatura, me aburre.‖ Anatole France escribe: ―Debemos admitir que hablamos de
nosotros mismos cada vez que no sabemos cómo callar.‖ Resulta interesante una observación de Rilke:
―Nada está más lejos de la intención de un poema que despertar en el lector al potencial poeta.‖ Es
maravillosa la frase de Joseph Conrad: ―Escribir significa cumplir en el error la experiencia del ser.‖ Para
concluir, ahora Maiakovski, que anotó: ―El trabajo del poeta debe proseguir día tras día a fin de acrecentar
la maestría y recoger la prefabricación poética. Un buen cuaderno es más importante que la habilidad
para escribir en metros antiguos.‖ Les ruego observen en esta frase las palabras ―prefabricación‖ y
―cuaderno‖. Aquí nos hallamos ya en las avanzadas del arte abstracto, consciente, construido. En ningún
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sitio de esta excursión hemos divisado o escuchado a los autores afirmar algo referente con propósitos de
mejoramiento en sus relaciones con los demás. Pero Goethe, se dirá, él al menos estaba a favor de un
Streben, un esfuerzo que tomase ventaja de todos, él estaba a favor de la formación, educación,
mejoramiento. Pero, pregunto a mi vez, ¿qué no era en realidad Goethe? Y si estudiamos sus poemas, los
más perfectos, los más bellos —Warum gabst du uns die Tiefen Blicke [―Porque has dado a nuestras más
profundas miradas‖] o Parzenlied [―El canto de las Parcas‖] o Nachtgesang [―Canto nocturno‖]: ―O gib
vom weichen Pfühle träumend ein halb Gehör‖ [―Oh, escúchame un poco, en sueños, desde la suave
almohada‖]—, evidencian en el más alto logro siempre y solo la perfección del poeta en sí; no afirmo que
se trate de una perfección por sí misma.
Pero ahora me arrojo en las oleadas, dejo que las olas se abatan sobre mí —¿debe la poesía mejorar
la vida?—, inspiro profundamente en esta esencia humana, idealista, embebida de esperanza. Pero,
repentinamente me pregunto: ¿cómo puede cualquiera que escribe asociar a esta actividad un sentido
ulterior? Quien escribe está contra el mundo entero. ―Contra‖ no quiere decir ―hostil‖, sólo que a su
alrededor hay un fluido de profundización y de gran silencio. Lo que suceda en las demás mesas,
cualquier pasión que consuma a los demás, jugar a las cartas, comer, beber, ser felices, platicar de la
mascota, de Riccione, no lo perturba, y él no los perturba. Dormita, tiene algunas vendas en la cabeza,
arco iris, así le va bien. No quiere mejorar ni se deja mejorar, es sospechoso. O bien está sentado en su
casa, cuatro muros modestos, no es un comunista, pero no quiere poseer dinero, quizá un poco, pero no
vivir en el bienestar. [5] O sea, está sentado en su casa, enciende la radio, alarga la mano hacia la noche,
una voz está en la habitación, vibra, se ilumina y se apaga, luego se interrumpe, una luz azul se ha
apagado. Pero qué pacificación, qué pacificación instantánea, qué abrazo fantástico de lo vivo y de lo
muerto, de recuerdos y de cosas inmemoriales, esto lo expulsa de cualquier costumbre, esto proviene de
reinos en los cuales las estrellas y los soles serían testigos paralíticos, viene de tan lejos, en una palabra,
es perfecto.
¡Un tipo con una carga en su interior! Probablemente lleguen a pensar aún en algo: el arte por el
arte, causalidad, Indochina; él ya no está en grado de hacerlo, el mundo puede ser lo que él desee, el
mundo termina, pero él hoy, en esta latitud, el quincuagésimo tercero, temperatura media en julio 19.8
grados, en enero 0.5 grados, él debe recorrer paso a paso su camino, experimentar sus propios límites;
Moira, lo que en suerte le ha sido dado. ―Al trabajo, se ordena a sí mismo, tienes setenta años, busca tus
palabras, traza tu morfología, exprésate, asume tu tarea, será sólo una función parcial, pero ocúpate de
ella seriamente.‖ Valéry dijo que el hombre completo va desapareciendo, hoy se debería decir: el hombre
completo es un sueño para diletantes, una voluminosa totalidad, un recuerdo arcaico. La época de Goethe
terminó ya de brillar, reducida a cenizas por Nietzsche, dispersa a los cuatro vientos por Spengler; el aire
es brillante y cálido, pero no por los fuegos de San Juan o el fuego de los rastrojos, sino más bien por las
fundidas cadenas de la teoría de los medios ambientes culturales: un medio se hunde, otro se levanta, y
sólo somos las marionetas y los actores de reparto en estos fragmentos solares.
Cuán bello sería, para el que debe escribir, si pudiese unirse nuevamente con un pensamiento
superior, un pensamiento sólido, un pensamiento religioso o incluso humano, qué consolación sería para
su secreto emisor que transmite rayos mortales; pero creo que en muchos no arraigue pensamiento
alguno de esta clase: consolatorio, creo que viven en un cruel vacío donde las flechas vuelan sin que
pueda desviarlas, la noche profunda es fría, ahí los rayos poseen un solo valor, allí sólo las esferas
supremas tienen valor, y lo humano no está entre ellas.
En esta esfera nace la poesía. Y así llegamos al problema del arte monológico. La poesía es
monológica. Esta afirmación no es una anomalía constitucional mía, si bien más allá del Atlántico
hallamos quienes la comparten. En Estados Unidos se busca incluso promover la poesía lírica por medio
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de cuestionarios, uno de estos fue enviado a catorce poetas en Estados Unidos, y una de las preguntas
era: ―¿A quién está dirigido un poema?‖ Esta es la respuesta de un tal Richard Wilbur: ―Un poema está
dirigido a la musa, y ésta existe, entre otras cosas, para velar el hecho que los poemas no están dirigidos a
nadie.‖ La poesía lírica es la mejor prueba para nuestra pregunta. Un poema es siempre la pregunta acerca
del estado del Yo, y todas las esfinges e imágenes de Sais se mezclan en la respuesta. El ámbito cultural
atlántico, entonces, aquí y ahora: la poesía moderna, la poesía absoluta, es la poesía sin fe, la poesía sin
esperanza, la poesía que no se dirige a nadie, una poesía de palabras que van montadas en sí mismas
para fascinar. Y sin embargo, puede tratarse de una esencia supraterrena, trascendente, que no mejora la
vida del simple hombre sino que la intensifica y la potencia. Quien no pueda divisar, incluso detrás de esta
tesis y esta formulación, más que nihilismo y lascivia, entonces no percibe que detrás de la fascinación y la
palabra aún hay suficiente oscuridad y abismo del ser como para satisfacer al pensador más profundo,
que en cada forma que fascine viven suficientes sustancias de pasiones, naturaleza y experiencia trágica.
Observen por un momento el camino recorrido hasta aquí: el camino religioso y el camino poéticoestético a través de los milenios: la humanidad entera se nutre de algunos auto-encuentros, ¿pero qué
encuentra en ellos? Muy poca cosa, y siempre en soledad.
Entonces, acaso pensaréis llegados a este punto, el autor responde de una forma asaz negativa a la
pregunta que le fue puesta. No, de ninguna manera. La poesía no mejora las cosas, pero realiza algo quizá
más decisivo: las modifica. No tiene repercusiones sobre la historia, si es arte pura carece de
repercusiones terapéuticas y pedagógicas, procede de otro modo: anula el tiempo y la historia. Su acción se
ejercita sobre los genes, sobre la masa hereditaria, sobre la sustancia —un largo camino interior—. La
esencia de la poesía tiene reservas infinitas, su núcleo despide una energía demoledora pero su periferia
es angosta; no suena mucho, pero sobre este poco el contacto es incandescente. Todas las cosas se
voltean, todos los conceptos y las categorías modifican sus características en el momento en que son
consideradas bajo la luz del arte —la que ella les pone, y bajo la que son puestas—. El arte suscita un
torrente allí donde todo era aburrido y torpe y seco, un torrente que permanece confuso e
incomprensible pero difunde semillas sobre las reducidas orillas del desierto, semillas de felicidad y de
dolor, la esencia de la poesía es perfección y fascinación.
Y para que vean cuán seria es la situación a la cual me esfuerzo en dar expresión, concluyo con
algunos versos de Hebbel en los que se escucha también esa palabra que es ajena a mi estilo pero que
muchos de ustedes tal vez esperan escuchar. Es un cuarteto del poema ―A los jóvenes‖:
Ja, es werde, spricht auch Gott,
und sein Segen senkt sich still,
denn er macht den nicht zum Spott,
der sich selbst vollenden will. [6]
Leído el 15 de noviembre de 1955 en la sede de la radio colonesa en el marco de una discusión
pública con Reinhold Schneider.
Publicado con este título en 1956, en Wiesbaden.
NOTAS
1. Reinhold Schneider (1903-1958) fue un escritor y biógrafo de tendencia católica. Escribió poemas
antihitlerianos. Entre sus obras se encuentran Philipp II, Las Casas vor Karl V, Macht und Gnade,
Die letzten Tage y Die neuen Türme (sonetos), Taganrog, entre otras.
2. En alemán, los diez mandamientos contienen siempre el verbo sollen, ―deber‖ (por ejemplo: Du sollst
nicht toeten, ―No matarás‖), que aparece también en el título de este ensayo.
3. Uso la versión de Nácar y Colunga, de la Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1973.
4. Al respecto, véase el primer apartado ―El arte‖ del capítulo III, ―Los problemas‖, de G. Benn, Lebensweg
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eines Intellektualisten: ―Soy, asimismo, de la opinión que se debe distinguir nítidamente entre ambos
fenómenos, el del artista y el del hombre de cultura.‖ Cito de acuerdo con mi traducción respectiva
(Verdehalago, México, 1999, pp. 63 ss.).
5. Benn regresa a su propia circunstancia, pero también a su obra temprana. Al respecto, véase Der
junge Hebbel, en la sección de poesía.
6. Así sea, dice también Dios, / y su bendición desciende silenciosa, / pues Él no se burla de quien / en
sí mismo quiere cumplirse.
Gottfried Benn (Alemania, 1886-1956). Poeta, ensaysta. Ensayo tomado de Gottfried Benn, Un
peregrinar sin nombre | Ein Wallen, namenlos. Obra selecta, vol. II, Ensayo. Prosa (La Cabra
Ediciones, México, 2009), organización y traducción de José Manuel Recillas. Contacto:
[email protected]. Página ilustrada con obras de Floriano Martins (Brasil), artista invitado de
esta edición de ARC.
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CARLOS M. LUIS | Bestiario hermético y surrealista
Desde los pulpos de mirada de seda que aparecen en los ―Cantos de Maldoror‖ [1] hasta el gran
oso hormiguero que Breton escogió como su animal totémico, el bestiario surrealista tiende a
animarse… escogido entre aquellos que parecen poder afectar a la sensibilidad moderna, si bien su
interpretación jeroglífica permanece hasta la fecha, reservada en grado sumo [2]. Las palabras de
Breton nos sitúan frente a dos caminos convergentes: el primero nos conduce hacia la poetización
surrealista de los animales, y el segundo nos sugiere su interpretación hermética. Enlazada a la
elaboración de una poesía tanto escrita como visual, se encuentra el simbolismo hermético de los
animales, sumado a su intervención fabulosa en todas las leyendas y cuentos de la humanidad. Si
añadimos que para los primitivos la presencia de los animales formó parte consustancial de sus
visiones sobre el origen del mundo, y por ende en la formación de sus mitos, abrimos una extensa red
de referencias, con las cuales la poesía surrealista continúa enriqueciéndose.
La aparición del animal se remonta a sus primeras representaciones en las cavernas o en las
rocas donde dejara huellas de su paso. En todas las pinturas rupestres, aparecen como parte de las
actividades humanas relacionadas con la búsqueda del sustento, pero simbolizando además fuerzas
superiores. En las cavernas de Lascaux, un pájaro posado sobre una estaca, nos sorprende con su
enigmática presencia. Contigua a ésta yace una figura con cabeza de ave y su sexo en erección, frente a
un bisonte recién lanceado. El espectáculo fue interpretado por George Bataille en su libro Les Larmes
de Eros [3] como prueba de la íntima relación que existe entre Eros y Tanatos. Las figuras ictifálicas
con cabeza de animal de Wadi Djerat (Sahara), sodomizando a rinocerontes, documentan acerca de la
frecuente relación sexual que existió entre el animal y el hombre. El rico arte de los Huicholes abunda
en representaciones zoomórficas como parte de la elaboración de sus mitos. Podríamos, de esta forma,
continuar mencionando todas las antiguas culturas donde el animal juega un rol preponderante en la
vida del ser humano. Lo esencial, en lo que concierne a este trabajo, es poner de relieve la temprana
aparición de los animales como figuraciones del pensamiento mágico. Aparición que habría de
encontrar su puesto definitivo en el arte moderno, y en el surrealismo en particular.
LOS INICIOS PRIMITIVOS | La creencia de que el hombre puede transformarse en animal y
viceversa, es de origen ancestral. Los chamanes se enmascaran con apariencias zoomórficas para
practicar sus ceremonias. En todas las historias relacionadas con éstas, las transformaciones mágicas
del chaman en un animal son comunes. Su presencia en los tótems le comunica una forma de vida a los
mismos, al contar mediante su simbolismo, la historia del clan que representan. La genealogía mítica
de los tótems, se transforma en maravillosa a los ojos de los surrealistas, a medida que un animal
emana del otro, creando una especie de cadáver exquisito. Jorge Camacho le dedicó a ambos
manifestaciones: las chamánicas y las totémicas sendas exposiciones, poniendo de relieve la
continuidad de una práctica de orden mágico/poética que se mantiene viva dentro del surrealismo. En
su ensayo titulado ―Les Pouvoirs Perdus‖ [4], dos de los más agudos estudiosos de esos temas dentro
del seno del movimiento, Micheline y Vicent Bounoure precisan:
De esa forma en las esculturas de Nueva Irlanda, una aceleración del sentido perceptivo
permite que el ojo de un tiburón se incruste en su oído, apareciendo de inmediato alrededor de
cada comisura, la cabeza de un calao. La multiplicación de los contenidos se produce
alrededor del mismo signo y no de una despersonalización de las formas naturales,
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resultando, más bien, en un lujo de interpretación como si hubiesen sido imitadas en el estadio
de la sensación, antes de que la percepción los hubiese especializado.
Las transformaciones a las cuales es sometida la fauna en los tótems, responden a un lujo de
interpretación, no ajeno por lo demás al que utilizan los alquimistas en sus emblemas, pasando a
formar parte del proceso creativo de los surrealistas. En ese mismo ensayo, ambos autores utilizan el
término homonymie para designar la tendencia a reproducir, a nivel analógico, dos objetos naturales
los cuales abren en el interior de una obra plástica un campo inagotable…afirmación ésta que la
pintura surrealista demuestra ampliamente. Por su parte la poesía al tomar posesión de los poderes
que le imparten la cábala fonética cuyo equivalente puede buscarse de acuerdo con estos autores en el
lenguaje Malangan de Nueva Irlanda, engendra un nuevo conocimiento donde La percepción conduce
a restituir la virginidad de las cosas al alba de la primera mirada [5], lo que explica la frase de
Breton que abre su ―Surrealisme et la Peinture‖: El ojo existe en estado salvaje.
Según Mircea Eliade los cientos de miles de años vividos en una especie de simbiosis mística
con el mundo animal, dejaron huellas indelebles [6]. El ser uno y otra cosa que uno mismo como
resultado de esa simbiosis, era característico de las funciones mentales de las sociedades primitivas de
acuerdo con Levy Bruhl: La mentalidad primitiva obedece al principio de participación: el hombre
cree que existen lazos invisibles, pero reales, entre los seres que para nosotros son de naturaleza
diferente, pudiendo ser ellos mismos y otra cosa [7]. Esa noción pasó a formar parte de la confección
del arte surrealista, no sin pasar también por las teorías de un Charles Fourier acerca de la ―atracción
apasionada‖ que comunica a los seres mediante la analogía. Siguiendo esa línea de pensamiento, tres
aspectos esenciales unen al surrealista con el primitivo: sus mitos y sus creencias en el poder revelador
de los sueños y la convicción en la existencia de la unidad analógica universal. Tanto los mitos como
los sueños encuentran manifestaciones en la poesía hablada de los pueblos primitivos y sus creaciones
pictóricas, constituyendo una fuente inagotable de inspiración para los surrealistas. Un nuevo
principio definido por James Frazer como ―magia homeopática‖ rigen las fuerzas espirituales que
hacen posible la transformación de un animal en ―otra cosa que uno mismo‖. Las explicaciones que los
primitivos dan al origen del mundo, parten pues de una imaginación que proviene de acuerdo con la
interpretación surrealista, de lo maravilloso poético. En ese sentido la pintura de Jorge Camacho se
convierte en depositaria de intermitentes viajes que regresan cargados de sorpresivos encuentros, a
través de los dominios de la imaginación.
Si la Oceanía proporcionó un abundante muestrario de animales, la América hizo lo mismo.
Comenzando por los tótems de la Columbia Británica, hasta alcanzar los confines del Amazonas y los
Andes, los pobladores de esas regiones fueron prolíficos en representar un bestiario fantástico. La
geografía del continente fabulada desde la época de los cronistas, con sus seres híbridos y apariciones
deslumbrantes, ejerció un atractivo para los europeos que perdura hasta nuestros días, gracias en gran
medida a la atención que el surrealismo pusiera sobre sus posibilidades poéticas. Los plumajes de los
indios del Amazonas proveen un buen ejemplo de la reciprocidad existente entre los mitos y los
artefactos que sus pobladores utilizan para sus rituales. La energía que emana de los colores de las
plumas, reflejan las fuerzas mágicas que las aves poseen. Para los chamanes Waiwai cuando el sol se
niega a relucir, éstos cambian sus adornos de las plumas negras del guaco, revistiéndose de plumajes
de colores para que vuelva a aparecer. Los tucanes, los macaos y otras aves, le proporcionan a los
chamanes los ―instrumentos‖ idóneos para realizar sus trabajos mágicos. En ciertos cuadros de Toyen
la iridiscencia de colores que emiten esas aves, queda impregnada en sus composiciones. Asimismo la
pintura de Jorge Camacho recoge la variedad de sus colores como un fluido que vitaliza su mundo
pictórico. La corriente pues atravesó el Pacífico hasta llegar a la América:
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Un rayo de luz subsiste deslizándose desde la tapa de un sarcófago a una cerámica peruana, a
una tablilla de la isla de Pascua, manteniendo la idea de que el espíritu que fue animando
sucesivamente a tales civilizaciones, en alguna manera parece escapar al proceso de
destrucción que va acumulando a nuestros pasos las ruinas materiales [8].
El mundo primitivo encarnó para los surrealistas el signo ascendente que motivara su búsqueda
por los predios de lo maravilloso. El águila blanca como la piedra filosofal que planeaba sobre la
Nueva Guinea que Breton percibiera en uno de los poemas de su Pez Soluble [9], o Las plumas del
pájaro maravilloso de colores variados que pasa por las Bodas Químicas de Simón Rosenkreuz [10],
son apariciones que conjuran tres concepciones afines: la hermética, la primitiva y la surrealista. Estas
tres concepciones originan una hermeneútica apasionada, elaborada por lo que Ferdinand Alquié
llamó un ―saber afectivo‖.
LOS CONTACTOS HERMETICOS | Antoine Faivre en su libro Acces to Western Esoterism [11]
propuso lo que él consideraba las seis características del pensamiento esotérico occidental:
1. Las correspondencias. Basada en la creencia de que todo el universo se encuentra conectado
por un sistema de correspondencias que une las cosas entre sí.
2. La naturaleza viviente. La noción de que el universo se encuentra animado por una energía
viva.
3. Imaginación y mediación. La creencia de que el conocimiento esotérico se adquiere a través
de la imaginación visual como mediadora de las correspondencias entre las cosas.
4. La experiencia de la transmutación. La metamorfosis de las sustancias naturales y humanas,
pueden transmutarse a un estado superior.
5. La práctica de la concordancia. La evidencia de que las diferentes corrientes esotéricas se
encuentran entrelazadas por un común denominador.
6. La transmisión. La idea de que el conocimiento esotérico pasa del iniciado al discípulo.
Bajo esas seis condiciones aparecieron los bestiarios desde temprana fecha en el escenario
occidental, traídos por las corrientes esotéricas que antes y después del cristianismo proliferaron en el
cuenca del Mediterráneo. La iconografía apocalíptica como la que aparece en los ―Comentarios al
Apocalipsis‖ del Beato de Liébana (970) reproducen las visiones de San Juan de Patmos dentro de un
contexto donde la presencia del mundo pagano se superpone al de las creencias cristianas. La
diversidad de sus imágenes impactó a la Edad Media y desde esa época continuó realizando un largo
periplo hasta plasmarse en las obras de un Max Ernst o Leonora Carrington. Pero no fue hasta el siglo
XIV cuando las ilustraciones comenzaron a aparecer en los libros de los alquimistas, que los bestiarios
hicieron su aparición en los mismos. En tratados como Hyerogliphica de Horapollo (atribuído a uno
de los últimos magos egipcios del siglo IV), publicado en Florencia en 1505, y en los Emblemas de
Alciato (1522), empezó a surgir una iconografía ligada a las tradiciones herméticas cuya influencia fue
creciendo durante el renacimiento. Basta con recurrir a cuadros como los de Hieronymus Bosch para
sorprender en los mismos una imaginería vegetal y animal derivada de los místicos, astrólogos y
alquimistas. La sensibilidad de los surrealistas no fue ajena a esas representaciones como lo atestiguan
muchas de las obras de sus pintores más representativos. Cada animal pasó, por tanto, a poseer un
simbolismo mágico que aún subsiste. La antigua propensión de comunicarle a los animales un
significado totémico perdura dentro de nuestra sociedad, aunque adulterada por su banalización
comercial, como lo demuestran los anuncios publicitarios.
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El simbolismo animal le confiere al surrealismo una llave de paso para penetrar en los secretos
de la naturaleza, al igual que ocurriera con los alquimistas. Refiriéndose al bestiario fabuloso que
pintara Aloys Zotl, Breton expresó que: sabemos qué enigmas esconden (los animales) en cada uno de
nosotros y el rol primordial que juega en el simbolismo del subconsciente. [12] La correspondencia
entre los animales y el pensamiento hermético pasa por esa vía, como lo bien lo comprendieran un
Víctor Brauner, Jorge Camacho o Max Ernst. La presencia dentro de los emblemas o escritos de la
alquimia de animales fantásticos: dragones, basiliscos, y unicornios unidos a cuervos, leones, sapos,
águilas, pelícanos etc. forman parte esencial del proceso del opus. Hablar pues del surrealismo en
relación con el simbolismo hermético de los animales es incidir en un tema reconocido por todos los
estudiosos de ese movimiento. No se trata de convertir a los surrealistas en practicantes de ese arte,
aunque el caso de Jorge Camacho sea una excepción. Este pintor le dedicó parte de su vida a su estudio
y práctica, siguiendo los pasos de maestros como René Alleau, Eugene Canseliet, Alain Grugier, y
Bernard Roger. En colaboración con este último, le dedicó un estudio al bestiario hermético de la
catedral de Sevilla. [13] Su interés por la heráldica lo llevó a realizar, por otra parte, una exposición
sobre ese tema identificado con la Ciencia de Hermes. Antes que él, Kurt Seligmann autor de una
importante historia de la magia, había realizado una serie de grabados y pinturas con temas
heráldicos, subrayando la presencia hermética de los animales en los mismos.
En los textos herméticos y en las ilustraciones que lo acompañan, sorprendemos una variedad
de animales, poseedores de un simbolismo polisémico. Ese simbolismo contribuye a confirmar la
creencia surrealista –heredada de los adeptos- de la correspondencia universal entre lo animado y lo
inanimado que según Breton refleja el convencimiento que Sus realizadores poseían un mensaje de
importancia que deseaban hacer llegar, que estaban en posesión de un secreto… no repetiremos lo
suficiente que ese secreto es todo. [14] Si ponemos atención en los diversos colores que cubren la piel
de los cuadrúpedos y los peces o los plumajes de las aves, y en las metamorfosis que sufren, veremos
que forman parte de esa polisemia que abre ricas posibilidades poéticas. Los alquimistas utilizaron sus
diversas gamas, como el cromatismo de la cola del pavorreal o la negritud del cuervo, para fijar las
etapas de su obra. Basándose en la pintura de Matta, Breton expresó:
La interpretación simbólica de los colores, solos o relacionados entre sí, se encuentran en él
revolucionados por la interferencia constante de lo visual y lo visionario… fenómenos que no
conocen equivalente sino en los espíritus de los primitivos por una parte y por la otra en
ciertos textos esotéricos de gran clase: la cabeza del cuervo desaparece con la noche, un día el
pájaro vuela sin alas, vomita el arcoíris, su cuerpo se hace rojo, y sobre su espalda sobrenada el
agua pura. [15]
Es posible pues sorprender en las pinturas, collages, cadáveres exquisitos y otras técnicas
inventadas por los surrealistas, una continuidad con las iluminaciones, criptogramas y emblemas
herméticos y las pictografías rupestres que aluden a mitos y creencias primordiales. En ese sentido
puede afirmarse junto con Octavio Paz, que el surrealismo es una actitud del espíritu humano. Acaso
la más antigua y constante, la más poderosa y secreta. [16] Que la bestias ocupen un sitio
preferencial dentro de esa actitud, brinda la garantía de un sentido de sucesión con todos esos mundos
y otro de iniciación, que aún la imaginación surrealista continúa enriqueciendo.
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NOTAS
1. El profuso bestiario de Los Cantos de Maldoror ha sido estudiado por Gastón Bachelard en su libro
Lautréamont, Librairie José Corti, Paris, 1939.
2. ―Cometa Surrealista‖, en La Llave de los Campos, Libros Hiperión, Madrid/Pamplona S/F.
Traducción de Ramón Cuesta y Ramón García Fernández.
3. Editions Jean-Jacques Pauvert, Paris, 1961.
4. La Breche # 5, Octobre 1963.
5. Ibid.
6. Historia de las Creencias e Ideas Religiosas, traducción de J. Valiente Mallá. Editorial Cristiana,
Madrid 1978.
7. La Mentalité Primitive, Librairie Félix Alcan, Paris 1933.
8. Le Surrealisme et la Peinture, Nouvelle Edition, Gallimasrd, Paris, 1965.
9. Hay traducción al español en A. Breton, Poemas, versión de Manuel Ángel Ortega, Visor Libros,
Madrid 1978.
10. Le Surrealisme et la Peinture, ibid.
11. Antoine Faivre: Acces to Western Esoterism, State University of New York Press, 1994.
12. Le Surrealisme et la Peinture, Ibid.
13. Bernard Roger & Jorge Camacho, La Cathedrale de Seville et la Bestiare Hermétique, Fondation
Pol Francois Lambert, Huelva, 2001.
14. ―Oceanía‖ en La Llave de los Campos, ibid.
15. ―Matta‖ en Le Surrealisme et la Peinture, Ibid.
16. Las Peras al Olmo, Libros Enlace, Seix y Barral, Barcelona, 1971.
Carlos M. Luís (Cuba, 1932). Poeta, ensayista y artista plástico. Ha dirigido en su país al Museo
Cubano. Son libros suyos de ensayo: Tránsito de la mirada (1991) y El oficio de la mirada (1998). Este
ensayo forma parte del libro Horizontes del Surrealismo (en preparación). Otros capítulos de este
libro pueden ser encontrado en la fase I de Agulha Revista de Cultura (1999-2009):
www.jornaldepoesia.jor.br/agindicegeral[C].htm. Contacto: [email protected].
Página ilustrada con obras de Floriano Martins (Brasil), artista invitado de esta edición de ARC.
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LAURINE ROUSSELET | Léon-Gontran Damas, passagem do
poema negro
Léon-Gontran Damas [1] tem a percepção de ser negro de carne assim como se é ―filho de
sangue‖. Criador de formas, canta imagens para que a memória da identidade dê sua chance à vida –
pungente porque instantânea –. E se a inocência não cabe no assalto dos signos por decifrar, a
escritura não pretende dizer nada sem o grito do ―Eu‖ que clama pela transcendência. Conhecer o
mundo por meio da opressão (a deportação, os tempos de diminuição, o menosprezo, a escravidão, o
crime) está na mesma fonte da forja da poesia damasiana: uma poesia de combate, uma poesia realista
na qual música e humor servirão de tremor para essa ordem interior.
Nesse momento apenas / vocês todos pois compreenderão / quando a eles vier a ideia / em
breve essa ideia a eles virá / de querer espezinhar o negro / à maneira de Hitler /
espezinhando o judeu / sete dias fascistas / por /semana [2]
PIGMENTS, 1937 | Damas é, com Aimé Césaire [3] e Léopold Senghor, [4] um dos três fundadores do
renascimento cultural dos negros de expressão francesa. É também o menos conhecido. No entanto,
em 1937, Damas é o primeiro a publicar um texto seminal da poesia negra, Pigments, [5] como um
longo canto de amor pela África. Antes de se fixar em Paris em 1929, ele já tinha cotejado Aimé
Césaire, por ocasião de seus estudos, em Fort-de-France em 1925-26. Quanto a este último, ele
conhecerá Léopold Senghor, ―o Africano‖, o ―irmão mais velho‖, em 1931 no Liceu Louis le Grand
(Paris).
―Foi no Quartier Latin em plena Paris dos anos 30. Um grupo de estudantes negros composto de
africanos e antilhanos tinha decidido pegar na lama a palavra ―negro‖ para fazer dela um sinal de
congregação, uma bandeira. Havia Léon Damas, o guianense. […] Ele era já um modelo, era o mais
―negro‖ porque o mais rebelde por suas ideias, mas sobretudo na sua vida. […] Dos três mosqueteiros
que éramos, Léon-Gontran Damas, Aimé Césaire e eu mesmo, foi Léon Gontran Damas quem primeiro
ilustrou a Negritude por meio de um livro de poemas que trazia o significativo título de Pigments‖. [6]
O Surrealismo controlava então o meio intelectual da época, e será Robert Desnos quem
escreverá o prefácio de Pigments, prefácio flamejante, à altura do acontecimento: ―Ele se chama
Damas. É um negro… Damas é negro e se agarra firme à sua qualidade e a seu estado de negro. Aqui
está quem deixará de orelhas em pé um certo número de civilizadores que acham justo que em troca de
sua liberdade, de sua terra, de seus costumes e de sua saúde, as pessoas de cor sejam honradas pelo
nome de ‗negros‘. Damas recusa o título e pega seu bem de volta.‖
Neste livro histórico, de título revelador já que faz alusão às distinções físicas de sua raça,
Damas, ―o Antilhano‖, se dirigia aos senegaleses. Ele tinha de fato uma perfeita consciência do racismo
assim como da preocupante evolução da Alemanha. O último poema de Pigments, ―Et Caetera‖,
destinado aos senegaleses, chama sem rodeios para a revolta.
Aos Antigos Combatentes Senegaleses / aos futuros Combatentes Senegaleses / a tudo o que o
Senegal pode gerar / de combatentes senegaleses futuros antigos / (…) / Eu peço a eles / que
calem a necessidade que sentem / de pilhar / de roubar / de violar / de aviltar de novo as
margens antigas / do Reno // Eu peço a eles / que comecem por invadir o Senegal / Eu peço a
eles / que perturbem a paz ―dos Arianos‖ [7]
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Mas foi na Costa do Marfim que seu chamado foi ouvido. Pigments foi então traduzido em
baoulé, [8] marfinenses recitaram os poemas do livro recusando se deixar mobilizar em 1939. O
governo francês sanciona: o livro foi imediatamente proibido. Mas a censura nada pode contra a
certeza trazida por uma ponte entre as Antilhas e a África. Todo homem negro, não abafando seus
valores culturais, encontrava de fato nesses versos o suporte de uma solidariedade infinita:
Vai ainda / minha hebetude / do tempo de outrora / de golpes de cordas nodosas / de corpos
calcinados / do dedão ao dorso calcinados / de carne morta / de tições / de ferro em brasa / de
braços quebrados / sob o chicote que se enfurece / sob o chicote que faz andar a plantação / e
se imbeber do sangue do meu sangue de sangue o melado / e o cachimbo do comandante
tomar o céu [9]
A PARIS DO ENTRE-DUAS GUERRAS | O entre-duas guerras (1919-1939) em Paris é o palco de uma
Revolução cultural negra impulsionada pela lógica bolchevique (de base ideológica marxista) [10],
pela ―missão civilizadora‖ de uma França na África e em todo o Império, pela difusão dos temas panafricanos, principalmente os de Marcus Garvey, [11] nascidos na América. A ideia da ―maior França‖
culmina, aliás, em maio de 1931 pela Exposição Colonial [12] em Vincennes (Paris).
A eclosão de uma reivindicação política e cultural negra data de 1919, e é a dívida de sangue
contraída pela França (durante a guerra de 14-18) que legitimará os argumentos dos militantes negros.
[13] Em 1926, é o grande período da ―tomada de consciência racial‖ em que organizações militantes
são fundadas por negros para negros. Os africanos e antilhanos se chamam então de os ―negros
conscientes‖. Notemos que o Prêmio Goncourt vai em 1921 para René Maran, antilhano, primeiro
homem negro na França a ganhar o prêmio, por seu romance ―Batouala‖, [14] verdadeiro panfleto
contra o colonialismo.
A verdadeira virada tem lugar nos anos 30. Para o grande público, é o triunfo da voga negra que
se aprecia nos cafés, nas adegas, nas galerias do Quartier Latin (das modas mais superficiais como a
revista de Joséphine Baker à descoberta do jazz, principalmente de Duke Ellington, da Arte Negra,
[15] assim como da escultura negra).
Mas a revolução cultural se afirma realmente de 1937 a 1939 por um conjunto de obras: Cahier
au retour d’un pays natal, [16] considerado como o manifesto da Negritude de Aimé Césaire, Chants
d’ombre e Hostie noires, [17] dois livros de poesia de Léopold Senghor escritos entre 1936 e 1945, sem
esquecer seu famoso texto teórico de 1939 ―Ce que l‘homme noir apporte‖. [18]
Certamente essa revolução foi preparada. Ela o foi pelo exílio voluntário dos chefes de frente da
―Negro Renaissance‖ de Harlem [19] em Paris no fim dos anos 20 que permitiu uma intensidade de
trocas culturais, de ideias políticas sem precedentes. Léon-Gontran Damas expõe com clareza sua
gratidão para com os precursores da Negritude: ―[…] A partir da imersão que representam para nós
Banjo, de Claude McKay, e depois dele Home to Harlem e Banana Bottom, os escritos de Langston
Hughes, de Sterlin Brown e de Walter White, nos conduzem de revelação em revelação à descoberta de
outros países além do nosso‖. [20]
Por outro lado, algumas revistas literárias deixaram um sedimento, uma impressão indelével
que condicionou o movimento da negritude.
O manifesto Légitime Défense, epígono do surrealismo francês, é publicado em 1 de junho 1932
por um grupo de estudantes [21] antilhanos de Paris. Inútil querer encontrar o acento de uma
―proto-negritude‖ que seja. A novidade reside no aporte dos temas comunistas. [22] Foi o jornal
L’étudiant Noir, fundado por volta de 1934, que concretizou essa abertura do movimento da
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Negritude. Só a presença de Léopold Senghor, ―o Africano‖, dá de fato uma nova luz sobre a diáspora
negra de Paris.
Escutemos Léon Damas: ―… L’Étudiant Noir, jornal corporativo e de combate que tem por
objetivo o fim da tribalização, do sistema clânico em vigor no Quartier Latin. Deixamos de ser um
estudante essencialmente martiniquense, guadalupeano, guianense, africano, malgache, para não ser
mais do que um único e mesmo estudante negro. Não vivemos mais numa redoma‖. [23] Desde então,
a revolução política das revistas precedentes (dentre as quais a célebre revista La Revue du Monde
Noir dirigida por Paulette Nardal) no comunismo, a luta anticolonialista, não precede mais a revolução
cultural, e o Surrealismo não é mais considerado como ―uma escola ou um mestre‖. O objetivo do
grupo de L’Étudiant Noir só tem uma única realidade: redescobrir o patrimônio das civilizações
africanas, a palavra negro-africana (através do estudo de obras etnográficas, da poesia africana
tradicional…).
LEON-GONTRAN DAMAS, POETA MARRON. [24] ENTRE A GUIANA E A ÁFRICA | O véu mental se
rasga: Léon Damas tem então seis anos quando a palavra se liberta. Até então tinha sofrido de asma.
Sua infância é guianense, sua adolescência martiniquesa, mas é em Paris, como vimos, lugar de
convergência das Antilhas e da África, que Damas toma posse de suas ascendências africanas.
Notemos que a Guiana não faz parte das Antilhas. O poeta, aliás, não sentirá o condicionamento
psicológico de um insular. Em Paris, ele se mostra, pois, naturalmente antilhano, e o conjunto de sua
palavra poética se organizará em torno desse modelo de comércio triangular: Europa-Áfricas-Ilhas,
modelo carregado no imaginário coletivo dos negros antilhanos e americanos:
Três Rios / três rios correm / três rios correm nas minhas veias [25]
Ele sofre, então, enquanto antilhano, a frustração do continente perdido, do continente distante:
A MILHAS E MILHAS / em Paris Paris Paris / Paris — o Exílio / meu coração mantém em
vida / o duplo lamento / do primeiro despertar para a beleza do mundo / e do primeiro negro
morto na linha / morto sobre a Linha / que leva ainda / às Ilhas da aventura / às Ilhas à
deriva / às Ilhas da Pirataria / às Ilhas do Fumo / às Ilhas da tartaruga / às Ilhas das
Negreiras / às Ilhas das Açucareiras / às Ilhas da Morte-Viva [26]
Mas, sobretudo, as virtudes de sua educação inculcada só fazem desencadear a sua cólera. /
Tenho a impressão de lhes ser ridículo / em seus sapatos / em seu smoking / em seu plastrão /
em sua gola-falsa / em seu monóculo / em seu monóculo / (…) / Tenho a impressão de lhes ser
ridículo / entre eles cúmplice / entre eles defensor / entre eles degolador / as mãos
terrivelmente vermelhas / do sangue de sua ci-vi-li-za-ção [27]
Separado da alma de sua Ilha por essa educação das ―boníssimas maneiras‖, pelos preconceitos
burgueses de seu meio mulato, pela religião… Léon Damas parece tal como um ―assimilado‖. E, apesar
do humor do poeta que transparece principalmente em seu célebre poema ―Hoquet‖ (em que ele coloca
a Negritude em derrisão), se afirma um intenso sofrimento, o de ter sido ―branqueado‖.
Branqueado // Meu ódio aumenta na margem / da cultura / na margem / das teorias / na
margem das conversas fiadas / das quais acreditam que devem me empanturrar no berço /
enquanto tudo em mim aspira a ser apenas negro / tanto quanto minha África que eles
assaltaram [28]
E a ideia do marronnage golpeia duplamente em Damas quando ele denuncia o silêncio
cúmplice de todos os espíritos assimilacionistas:
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e aqueles / falemos deles / que choram nas Antilhas /por ter nascido nas Antilhas / por ter
nascido na Guiana / por ter nascido em toda a parte longe da borda / do Sena ou do Rono / ou
do Tâmisa / do Danúbio ou do Reno / ou do Volga / (…) / Aqueles que recusam uma alma /
aqueles que se desprezam / aqueles que têm por si mesmos e por seus próximos / apenas
vergonha e covardia / Aqueles que renunciam a uma vida plena de homens / para ser /outra
coisa que sombra de sombras [29]
Será apenas em 1938, através da publicação de Retour de Guyane, [30] que Damas se
reapropriará da sua ilha. Em Paris, Damas abandona muito rapidamente seus estudos de direito para
aprofundar seus conhecimentos sobre a África no Instituto de Etnologia. Ele obtém uma bolsa de
pesquisa, e parte para estudar o que sobreviveu da cultura africana na Guiana por conta do Musée de
l‘Homme. Suas pesquisas sobre a organização material e social dos negros Bosch, esses negros
marrons, são, então, publicadas em Retour de Guyane, verdadeiro panfleto contra o colonialismo
francês na Guiana:
Por toda a parte o africano transplantado pôde ser martirizado, extenuado, exterminado. Em
nenhuma parte ele pôde ser aniquilado nem dominado: sempre algumas manifestações
inesperadas, seja na arte, seja no próprio verbo, seja na ação… testemunho indestrutível e, às
vezes, irônica vitalidade desses agrupamentos. [31]
A escrita é uma viagem, sabemos, a leitura também. Essa obra em prosa – Retour de Guyane –
explora os sons e cheiros redescobertos do solo guianense. As batidas do tambor, os odores do ―Rott
Péye‖ caracterizarão a vida recolocada em fluxo. E, se Damas se inscreve nessa poética da resistência
para clamar a Negritude, ele não o fará sem a escrita da oralidade, com vistas a ampliar as fronteiras
de sua reivindicação, revalorização das civilizações negras, notemos, no encontro com a Europa.
O verdadeiro cartão de visita dessa cultura é seu volume de contos crioulos Veillées noires [32].
Os ―konts‖ de Tétèche, narradora mítica, encarnação viva do país natal se ligam, pois, à oralidade
tradicional; quadrinhas, dolos (sentenças proverbiais ou parábolas), massac (jogo ritualizado das
adivinhas), a orquestra crioula (o som), as danças (o gragé, o kassé-co, o négrier)… O protagonista do
livro é um coelho astuto, pródigo em sua arte de driblar a força brutal, de combatê-la. Damas
encontrou ainda aí o meio de incitar os povos oprimidos a se revoltarem.
Se o imaginário é intraduzível, a fé é o fruto de uma divulgação de boca em boca. As fórmulas
são estratégias de sobrevida mais do que veículos da língua, são orgânicas e pertencem a uma
geologia interna. Damas proclama, Damas recolhe, Damas enriquece a palavra negra por tanto
tempo ocultada da qual está marcado inteiramente o livro Poèmes nègres sur des airs africains. Ele
apresenta esses cantos de amor, cantos de guerra, cantos fúnebres e cantos satíricos como traduções.
Ele escreve a esse propósito: ―Traduzidos do rongué, do fanti, do bassouto, do toucouleur ou ainda do
bambara, esses poucos textos que damos hoje, terão a vantagem de revelar os aspectos múltiplos da
poesia negra de expressão e de inspiração. Poesia cuja característica essencial reside no fato de que
improvisada ela não é jamais declamada nem dita, mas cantada.‖
A poesia damasiana é fabulosa justamente porque confere à imagem da resistência o seu acesso.
E se ela engendra o desconhecido, é para que o ordinário se torne absoluto. Pois Damas porta em si o
desejo do movimento, sua língua se apoiando firmemente sempre num futuro, o desejo do encontro.
Sua vida de viagem é testemunha disso: entre a América do Sul (Brasil) e a África Ocidental (Senegal,
Costa do Marfim), entre França e Estados Unidos (onde ele se tornará professor em Washington, na
Universidade Howard, em 1974). O engajamento pode descrever o terror; por trás desse rosto, há a
vontade de obedecer à interrogação.
48
Léon Damas não deixou de lutar contra a morte ou de entrar na vida por meio do seu melhor: a
conquista da liberdade. Sua vida inteira cristaliza a corrente dessas forças. Basta reter que ele foi um
resistente engajado contra os alemães, delegado da Sociedade Africana de Cultura na Unesco,
deputado da Guiana, conferencista através do Estados Unidos (na qualidade de fundador da
―negritude‖)… O poeta nos aparece como um perfeito realizador da esperança, e nós relemos hoje essas
obras, às vezes inencontráveis, ―esgotadas‖, dizem, na singular duração do canto da universalidade.
LEON-GONTRAN DAMAS, CRIADOR DE RESSONÂNCIAS | Black-Label [33] aparece como a
consagração das obras anteriores. No longo desdobramento do poema, quatro tempos conduzem o
poeta de Paris à sua terra natal, ―do país da Guiana ao meu coração atado [du Pays de Guyane à mon
cœur accroché]‖. [34] Inúmeros temas são tratados: a deportação dos negros para as Américas, a
colaboração de negros autóctones, os negros vergonhosos de si mesmos, a ligação com o solo
guianense e a desgraça implantada da ordem colonial, o duplo desenraizamento do guianense, a
denúncia da vontade dos assimilacionistas, etc.
Por outro lado, esse livro é considerado como um poema dos mais importantes na história da
literatura do Caribe, pois Black-Label ilustra por seu título a questão do Label [rótulo] a engolir, essa
etiqueta que cola na pele do homem negro inferiorizado.
E BLACK-LABEL / para não mudar / Black-Label para beber / para quê serve mudar [35]
Sabemos que em Damas a indignação não teme jamais o grito. Seu mundo é o da desobediência.
Jamais o branco será negro / pois a beleza é negra / e negra a sabedoria / pois a resistência é
negra / e negra a coragem / pois a paciência é negra / e negra a ironia / pois o encanto é
negro / e negra a magia / pois o amor é negro / e negra a ginga / pois a dança é negra / e
negro o ritmo / pois a arte é negra / e negro o movimento / pois o riso é negro / pois a alegria
é negra / pois a paz é negra / pois a vida é negra [36]
Só podemos ler a poesia de Damas com os olhos. O trabalho do ouvido envolve também a
promessa de sua presença singular.
Quando o maravilhoso abre à beleza. Quando o sensível assombra um poema pelo som do tamtam. Quando escrever emana do precário, do detalhe a se captar para aprofundar o vazio. Então, um
som estronda, um outro escapa para longe, e a escrita canta, e a escrita dança para varrer o tempo.
A poesia de Damas respira a repetição, a escansão, a salmodia; a marca de um estilo negro para
fazer jorrar da escuta a atenção do maravilhoso. Senghor, ―o Africano‖, escreveu a propósito da poesia
de Damas: ―O todo submetido ao ritmo natural do tam-tam, pois, em Damas, o ritmo o arrebata sobre
a melodia‖ [37]. A música revela vivamente o que o silêncio, a solidão, a tristeza ou o humor catalisam
também de incomunicável.
Eles vieram essa noite em que o
tam
tam
rolava de
ritmo
em
ritmo
o frenesi
dos olhos
o frenesi das mãos
49
o frenesi
dos pés de estátuas
DESDE ENTÃO
quantos de MIM MIM MIM
morreram
desde que eles vieram essa noite em que o
tam
tam
rolava de
ritmo
em
ritmo
o frenesi
dos olhos
o frenesi
das mãos
o frenesi
dos pés de estátuas [38]
Em Pigments, seu primeiro livro, é impossível não se deter na dedicatória do poema ―Shine‖: ―Pour
Louis Armstrong‖. Shine significa ―engraxate‖ e remete a uma coloração de um negror brilhante dos
negros, raça pura. Armstrong compõe de fato uma canção em 1930 (uma retomada) que renova a
imagem do negro, resplendescendo em seu traje na moda, e Damas é imediatamente seduzido pelo
jazz, emblema da valorização do negro.
Inúmeros são os poemas em Damas em que redescobrimos uma textura polimórfica e, a exemplo
do jazz, uma unidade na diversidade dos elementos (poemas ―Nuit blanche‖, ―Hocquet‖, ―Obsession‖
no livro Pigments).
Na obra inteira de Damas, irradia a afirmação da negritude ―Black is beautiful‖ [Negro é lindo]. O
humor é inseparável de sua obra, e provoca devastações tanto quanto o grito. Para viver no mundo, é
preciso perceber sua diferença, trabalhá-la até fazer dela um objeto refletido do humanismo. Damas
compreendeu isso. Ele não se dobra ao contato com o outro. Ele se eleva. Ele pega a noite com os
braços (outro tema da cultura negra), a abraça, se funde nela, jorra à luz pelo riso soberano. E, se ele
troca com a morte palavras inconfessáveis, é para escrever sobre a pele negra a expressão da liberdade.
Léopold Senghor escreve que a poesia de Damas é ―na maioria das vezes carregada de uma emoção
que se esconde sob o humor. Humor negro que não é, como o traço espirituoso, jogo de ideias ou de
palavras, afirmação da primazia do intelecto, mas reação vital em face de um desequilíbrio desumano‖.
[39]
O sarcasmo, a derrisão, a provocação, assim como tantas figuras de linguagem para fazer nascerem
tempos novos, para tirar da sombra as vozes dos oprimidos. A antologia de Damas intitulada ―Poètes
d‘expression française, 1900-1945‖ [40] simboliza a generosidade do poeta, pioneiro da Negritude,
que deu sua vida pela reabilitação de sua raça, pois jamais deixou de abrir a porta à unidade. Seu
pensamento é invadido pelo conhecimento, o único: a sabedoria.
Léon-Gontran Damas, caído no esquecimento? Como seu livro Graffiti que celebra o amor? O
movimento perpétuo assimila a ausência, da qual ele se livra instantaneamente; então da palavra
redescoberta o manifesto da vida respira arfante, a exigência do absoluto não esperando receber nada
do cálculo.
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NOTAS
1. Léon-Gontran Damas nasceu em 28 de março de 1912 em Cayenne, na Guiana Francesa, e morreu
em 22 de janeiro de 1978 em Washington, Estados Unidos.
2. ―S.O.S.‖, Pigments Névralgies, Présence Africaine, 1972.
3. Aimé Fernand David Césaire nasceu em junho de 1913 em Basse-Pointe, na Martinica, e morreu em
17 de abril de 2008, em Fort-de-France.
4. Léopold Sédar Senghor nasceu em 9 de outobro de 1906 em Joal, Senegal, e morreu em 20 de
dezembro de 2001 em Verson, França.
5. Pigments, prefácio de Robert Desnos, éditions Guy Lévy Mano, 1937, Paris. Esse editor e grande
tipógrafo era íntimo dos surrealistas. Notemos que poemas de Damas foram publicados na revista
Esprit a partir de 1934.
6. Discurso de Léopold Sédar Senghor acolhendo as cinzas de Damas em Fort-de-France em 1978.
7. ―Et Caetera‖.
8. O baoulé é um idioma importante da Costa do Marfim.
9. Poema ―La complainte du nègre‖.
10. A Revolução russa de 1917 chama a atenção rapidamente dos militantes anticolonialistas. Mas para
o comunismo, o continente negro continuará sendo uma preocupação secundária. A ―causa negra‖
existe apenas para enfraquecer o capitalismo internacional.
11. Jamaicano, Marcus Garvey funda em 1916 nos EUA uma organização pan-africana, a UNIA
(Universal Negro Improvment association): o primeiro movimento de massa dos negros
americanos. A mística garveyísta repousa sobre o ―retorno à África‖ batizado de ―sionismo negro‖,
sobre um antiliberalismo, um anticomunismo. Seu combate contra a mestiçagem visa introduzir a
divisão racial própria às Antilhas. Apesar do seu componente racista, muitos negros são orgulhosos
de espalhar o famoso Black is beautiful [Negro é lindo] do movimento precursor.
12. Os meios surrealistas se vingam diante da ―feira de Vincennes‖. O panfleto ―Ne visitez pas
l‘Exposition coloniale [Não visitem a Exposição Colonial]‖ é assinado por André Breton, Paul
Éluard, Benjamin Péret, Louis Aragon, René Char, Yves Tanguy, Georges Malkine etc.
13. Os militantes negros são pan-negros ou assimilacionistas, comunistas ou pan-africanos. Notemos
que alguns atiradores senegaleses desmobilizados na metrópole se tornam estivadores ou marujos
nos grandes portos.
14. Batouala, véritable roman nègre, Albin Michel, 1921, Paris.
15. Notemos a obra de referência da época do etnólogo Georges Hardy ―L‘art nègre‖, éditeur Henri
Laurens, Paris.
16. Revista Volontés, n°20, août 1939, Paris.
17. A publicação é tardia: 1945 e 1948.
18. Liberté 1. Négritude et humanisme, Paris, Le Seuil, 1964.
19. São soldados negros americanos (da guerra de 14-18) de retorno ao país que divulgam de boca em
boca a ideia de uma França ―negrófila‖ atraindo a nova geração de escritores (Langston Hughes,
Claude Mac Kay, Countee Cullen etc.). O Negro Renaissance varre o desejo de honrabilidade do
negro americano, do ―negro civilizado‖ que o movimento New Negro se aplicara a habilitar. A veia
―primitivista‖ dá nascimento principalmente a uma literatura de gueto e da plantação sulista. Mas,
no entanto, eles não vão à África…
20. Conferência dada na Universidade da cidade de New-York, ―Rétrospective sur la Négritude‖, 1974.
Ver Daniel Racine, Léon-Gontran Damas, 1912-1978, University Press of America 1979.
21. Etienne Léro, Jules-Marcel Monnerot, René Ménil1, Maurice Sabas Quitman.
22. Notemos que o jornal proletário La Race Nègre dirigido por Kouyaté (secretário geral da Liga de
defesa da raça negra fundada em 1927, a LDRN) já tinha denunciado ―a burguesia nacional negra‖.
23. Léon Damas: Notre génération (inédito). Cité par Lylian Kesteloot in Les écrivains noirs de langue
française: naissance d’une littérature, éd. Université Libre de Bruxelles, 1963.
24. O que é um « marron »? Ele designa o escravo que escapa da escravidão, que se livra do universo
das plantações para viver em liberdade sobre os platôs ou nas florestas (donde em francês o verbo
marronner, e o substantivo marronnage).
25. Black-Label, Gallimard, 1956, Paris.
51
26. Black-Label, Gallimard, 1956, Paris.
27. Poema ―Solde‖, Pigments, Névralgies,. Présence Africaine, 1972, Paris.
28. Poema ―Blanchi‖, Pigments, Névralgies, Présence Africaine, 1972, Paris.
29. Black Label, Gallimard, 1956, Paris.
30. Retorno de sua missão etnográfica financiada pelo Musée de l‘Homme.
31. Retour de Guyane.
32. Veillées noires, Stock, 1943, Paris.
33. Black-Label foi publicado em 1956, duas décadas moldaram o tempo desde Pigments (1937).
34. Black-Label., p.21., Gallimard, Paris.
35. Ibid.
36. Ibid.
37. Senghor in Anthologie de la poésie nègre et malgachede langue française.
38. Poema ―Ils sont venus ce soir‖, Pigments névralgies, Présence africaine, 1972, Paris.
39. Léopold Sédar Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française,
Présence Africaine, 1948, Paris.
40. A antologia foi publicada pelas Éditions Le Seuil, 1947, Paris.
Laurine Rousselet (França, 1974). Ensaísta. Suas publicações de poesia são Mémoire de Sel (2004),
Séquelles (2005), Hasardismes (aforismos) (2011); e de narrativa: L’été de la trente et unième (2007),
De l’or havanais (2010). Tradução para o espanhol de Vincent Ozanam. Tradução ao português por
Eclair Antonio Almeida Filho. Ensaio originalmente publicado na revista Archipiélago # 73 (México,
agosto de 2011). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Floriano
Martins (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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FLORIANO MARTINS | María Luisa Martínez Passarge y el
desafío ejemplar de La Cabra Ediciones
Mayo de 2002, Ciudad de México, Casa del Risco, San Ángel, presentación del número XIX de
Alforja Revista de Poesía, dedicada a la poesía brasileña. Esta edición fue organizada por mí, con la
expresiva presencia plástica del artista brasileño Hélio Rola, que ilustró profusamente la edición
con sus grabados. Los días en México estuvieron siempre en nombre de la amistad y la felicidad del
encuentro entre amigos. En esa ocasión conocí a María Luisa Martínez Passarge, en ese entonces
diseñadora de la revista Alforja. Las vidas de cada persona están marcadas por la magia de los
encuentros y la alquimia de los reencuentros. En octubre de 2004 regresé a México como invitado
de la Feria de Zócalo. En 2006 Alforja publicó un libro mío en su prestigiosa colección Azor,
también diseñada por María Luisa. En 2008, después de unos días intensos en Ciudad Juárez, me
quedé unos días en la capital mexicana. Fue entonces cuando sentí la presencia del reencuentro,
pues allí pude finalmente sentarme a conversar con María Luisa. La revista Alforja tenía un
considerable gusto por la tradición del grabado de México, que es una de las más ricas de nuestro
continente. De eso tratamos, ella y yo, ese 2008. Yo había invitado a Alforja a participar en la
Bienal Internacional del Libro en Ceará, Brasil, y con José Ángel Leyva, uno de sus codirectores,
decidimos que lo mejor sería montar una sala especial de grabado latinoamericano bajo la
curaduría de María Luisa. Así sucedió, y esta sala fue, sin duda, uno de los puntos destacados de la
Feria en Brasil. Luego tratamos de los detalles técnicos de liberación de los derechos para la
donación de las obras al gobierno de la provincia de Ceará. Así nos acercamos un poco más. En
2010 se dio un nuevo reencuentro, en un Salón del Libro en Huelva, Andalucía, España. Allí ya
empezamos a descubrir unas afinidades con relación a la magia de las ediciones, los libros, el
encanto irresistible de hacerlos a toda costa. De manera paralela, el proyecto Alforja llegó a su
término, así como el proyecto que María Luisa y José Ángel Leyva habían decidido trabajar después
de Alforja: la creación de una editorial y de una nueva revista, La Cabra Ediciones y La Otra,
respectivamente. El tiempo no deja nunca de pasar, por suerte. Así que cuando María Luisa y yo
nos reencontramos una vez más, en Quito, Ecuador, 2011, ya está ella sola con el proyecto editorial
de La Cabra Ediciones. Allí tuvimos la oportunidad de tratar personalmente de proyectos que
virtualmente habíamos descubierto llenos de afinidades. He aprendido y descubierto con esta
mujer una nueva configuración de mi pasión por la edición. Los libros son una apuesta sin fin. La
fuente de conocimiento que tenemos en la vida a través de la lectura es algo de imponencia en la
existencia de todos. Pero el conocimiento del otro está dado por su celebración de la vida, algo
distinto de la aburrida intromisión de los medios en la vida ajena. Esta entrevista avanza en el
conocimiento y la feliz complicidad de las determinaciones de vida de una mujer apasionante, que
ha cuidado de la transmisión de la cultura como una tarea especial que la vida le ha destinado.
María Luisa Martínez Passarge (Acapulco, Guerrero, México, 1956). Estudió diseño gráfico y se ha
especializado en diseño editorial; es maestrante de la Maestría en Diseño y Producción Editorial
(Universidad Autónoma Metropolitana-Xochimilco). Formó parte del proyecto Alforja, Arte y
Literatura, A.C. desde 1998 hasta el fin del proyecto, en 2008. Ha trabajado el diseño de carteles,
portadas, catálogos y publicaciones para diversas instituciones de gobierno, universitarias y
culturales. Ha diseñado aproximadamente diez revistas literarias y culturales; ha realizado
53
proyectos que abarcan el diseño y la edición para Siglo XXI Editores, la Fundación México Unido,
los gobiernos de los estados de Campeche, Durango, Oaxaca y Tabasco, el municipio de Naucalpan
(Estado de México), Conaculta, Bellas Artes, La Secretaría de Educación Pública, el Museo de
Culturas Populares, el Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH) y la Dirección de
Literatura de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), entre otras. Ha sido
seleccionada nacional en la Segunda y Tercera Bienal Internacional del Cartel en México (1992 y
1994), y ha merecido por tres proyectos el Premio al Arte Editorial que otorga la Cámara Nacional
de la Industria Editorial Mexicana (2010, género Revistas Literarias y Culturales por La Otra.
Revista de Poesía + Artes Visuales + Otras Letras; y 2011, género Diccionarios, por el Diccionario
de mexicanismos y la Enciclopedia de conocimientos fundamentales UNAM-Siglo XXI, 5
volúmenes). Actualmente es directora, diseñadora y editora de La Cabra Ediciones.
FM | ¿Soñaste con ser editora desde niña?
MLMP | Llegué a la edición de manera muy natural. Desde muy joven, mi gusto y pasión por la
poesía y por el ensayo, principalmente, hicieron de los libros unos fieles compañeros. Nunca pensé
algo tan directo como cuando sea grande quiero ser editora. Lo que sí enuncié en algún momento de
mi adolescencia fue que ya que yo no sería nunca poeta o escritora, me dedicaría a hacerle sus libros a
los escritores y a los poetas. Lo dije sin tener claro en realidad lo que eso significaba. Pero fue, como
ves, una promesa inconsciente que me hice y que se ha convertido en mi proyecto de vida.
FM | ¿Todavía eres niña o simplemente soñadora?
MLMP | Soy juguetona, bastante inocente en muchos sentidos, muy impulsiva, entregada; tengo
facilidad para dejar atrás cosas que me molestan o que me lastiman (―La acción de cerrar es suficiente:
aquello que decido clausurar se esfuma, se disuelve, en realidad no era nada‖, dice Chantal Maillard).
Si tomamos estas características como parte de ser niña, entonces sí, soy niña todavía. Soñadora no.
Me sucede que el entusiasmo por algo o alguien me impide a veces ver el escenario completo –y es
cuando suceden los tropezones, las caídas, o peor, las devastaciones–, pero no es por soñadora. Ahora,
si hablamos del sueño como lo opuesto a la vigilia, sí soy muy soñadora. Durante muchos años trabajé
con mis sueños y en algún momento dejé de hacerlo. Curiosamente es algo que ha entrado de nuevo en
mi vida gracias a una larga e intensa conversación que tuve hace poco en Oaxaca con el poeta
surrealista Ludwig Zeller. De él estoy preparando ahora una antología poética.
FM | ¿Con cuántas cabras se hace una editorial en México?
MLMP | Con una sola cabra, terca y testaurada, puedes hacer una editorial. Lo que es muy difícil
es que esa cabra logre sacarla adelante sola. Es necesario tener cómplices, amigos más o menos cabras,
pero que tengan la misma pasión por el proyecto, además de una especial paciencia para con la cabrita
terca. Me viene a la memoria una oración que Cortázar le hace decir al entrañable Morelli: ―[…] en la
insistencia se va cerniendo la forma y desde los agujeros se va tejiendo la red‖.
FM | ¿Te gustan las montañas como blanco esencial de la existencia?
MLMP | La montaña es para mí casi una región sagrada. Aunque nací en la costa, con el rumor del
Pacífico como música de fondo, la imponencia de la montaña, sus ambientes, las alturas, el silencio
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lleno de vida, están en lo profundo de mi ser. Las montañas me sientan bien, me reconcilian con el
mundo.
FM | ¿Qué te mueve en la vida?
MLMP | Una fuerza importante que me mueve es la libertad, entendida ésta como una emoción
creadora que conlleva una enorme responsabilidad. Creo en el ritmo y el tiempo del Universo. Me
mueve el misterio del cuerpo, de la inteligencia, el deseo, la pasión en su más amplio espectro.
FM | De algún modo, La Cabra Ediciones es el desarrollo de un plan editorial que hace años
empezó como el sueño de un trío (el grupo Alforja), luego ha pasado a ser sueño de un dueto (con la
revista La Otra), hasta llegar a tu sueño personal. Todos estos cambios tienen sus aspectos negativos y
positivos. ¿El pasado ya es parte del pasado o todavía molesta en el presente?
MLMP | El pasado es definitivo en mi presente, y no es en absoluto molesto. Yo llegué a Alforja
con el sueño ya encarrilado por sus forjadores, pero fue un proyecto que hice también mío y al que me
entregué por completo. Cuando el proyecto cerró su ciclo, José Ángel Leyva y yo fundamos La Cabra
Ediciones, con la idea de seguir con los proyectos editoriales de manera más profesional, y decidimos
continuar con el proyecto de una revista de poesía. Así nació La Otra. Revista de Poesía + Artes
Visuales + Otras Letras. Sin embargo, José Ángel y yo no logramos remontar una serie de puntos de
vista diferentes y la sociedad se disolvió: José Ángel se quedó con la revista y ha conformado un nuevo
proyecto editorial. Yo me quedé con La Cabra y estoy en el proceso de sacarla adelante. No es fácil. Me
está costando trabajo por muchas razones. La principal: mi fuerte es el diseño y la edición, la creación
gráfica y el cuidado editorial de los proyectos. Soy buena en eso, porque es algo que me apasiona. Mi
debilidad es la gestión de los proyectos, su financiamiento.
FM | ¿Cómo anda la vida útil de La Cabra? ¿Cómo está la actuación de tu editorial en el mercado
mexicano?
MLMP | La Cabra Ediciones cuenta con un importante catálogo, resultado de casi trece años de
producción editorial. Durante los últimos dos ha bajado la intensidad debido a los ajustes que he
tenido que hacer, de manera personal y en lo que se refiere a la función directiva de la editorial. Es
muy difícil que una sola persona esté en todos los puntos de la cadena productiva del libro. Siempre se
descuidará alguno. Por proyectos no paro. Hacer libros es mi pasión. Así que si por vida útil te refieres
a la producción de libros, La Cabra está vivísima y produciendo. Debo resolver los últimos puntos de la
cadena y lograr que los libros se impriman y lleguen a los lectores. En eso estoy trabajando: encontrar
la forma de darle una vuelta de tuerca a La Cabra para que mi forma de ser, de trabajar, y las
necesidades de La Cabra se reconozcan, se ajusten. En cuanto al mercado, los libros de La Cabra son
productos de calidad con un ritmo lento de venta; no es una editorial autosuficiente en este sentido,
pero esto, lejos de ser un obstáculo, es un reto que confío en remontar en un plazo no muy largo.
FM | Para que nuestros lectores tengan una idea general de tu proyecto editorial, ¿puedes hacer un
resumen publicitario de La Cabra Ediciones?
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MLMP | La Cabra Ediciones ha editado principalmente libros de poesía; es su esencia, nació poeta.
La mayor parte del catálogo comprende a poetas extranjeros; la idea es continuar esta línea de edición,
sin descartar la publicación de poesía mexicana. En los primeros meses de 2012 saldrán al mercado
varios libros, que enumero a continuación, en las siguientes colecciones:
1) Azor, cuyo esquema es la reunión antológica de un poeta, presentado por otro poeta o escritor a
través de un estudio introductorio: El festín de la flama, de la excelente y ya fallecida poeta
boliviana Blanca Wiethüchter, con prólogo de Rodolfo Häsler; Alquimia del fuego inútil. Antología
poética, 1961-2010, del colombiano Armando Romero, con prólogo de Arturo Gutiérrez Plaza, y
Alforja de caza, del ecuatoriano Xavier Oquendo, prologado por la boliviana Vilma Tapia Anaya. En
preparación está Alquimia de la imagen, del poeta chileno avecindado en Oaxaca Ludwig Zeller, así
como otras antologías de importantes poetas brasileños, chilenos, colombianos y argentinos.
2) El Desfiladero, antologías poéticas de países realizadas por reconocidos poetas: saldrá al público
Poesía de Bolivia. De Cerruto y Sáenz a los días de hoy, antología que tú, Floriano Martins, has
organizado y prologado. Hasta el momento hay cinco títulos publicados en esta colección: poesía
contemporánea de Portugal (Miguel Ángel Flores), de Italia (Emilio Coco), de Ecuador (Xavier
Oquendo), indígena de Estados Unidos (Víctor Rodríguez Núñez y Katherine M. Hedeen), y poesía
rusa no oficial de la segunda mitad del siglo xx (Ludmila Biriukova). En preparación están un
volumen de poesía alemana, uno dedicado a la poesía viva de Estados Unidos, otro de poesía
guaraní y uno de poesía catalana.
3) Cuadernos del Mirador, libro de autor: Como si la silla vacía / As if the empty chair, poemario
bilingüe de la estadounidense Margaret Randall; La tentación del mar, de la mexicana Blanca Luz
Pulido, y Cuerpo erosionado, de la ecuatoriana Julia Erazo. En preparación en esta colección tengo
Poeta en el Edén, del uruaguayo Alfredo Fressia.
4) Libros fuera de colección: aquí, Floriano, eres por lo pronto el protagonista: Overnight Medley
es un libro maravilloso, poesía y jazz en tres lenguas (portugués, español e inglés) que participan de
una suerte de juego alquímico entre tú y el poeta mexicano Manuel Iris; y el primer volumen (de
cuatro) de Agulha. Revista de cultura. Diez años, que contendrán parte del material más relevante
que has publicado en este importante proyecto que diriges y llevas a cabo. Este primer volumen
estará dedicado a las principales entrevistas aparecidas en Agulha a lo largo de ese periodo.
El arte es un campo en el que La Cabra Ediciones también ha incursionado. Con el ánimo de hacer
libros accesibles a un público más amplio, los dos primeros títulos de una nueva colección de pequeño
formato (llamada simplemente Los Artistas) aparecerá a más tardar en febrero de 2012: los
inauguradores de esta serie son el mexicano Iván Gardea y la húngara-mexicana Susana Wald. Iván
está considerado por la crítica especializada como uno de los grabadores más originales de su
generación; en este libro se incluyen dos de las series más emblemáticas del artista: Imágenes del
limbo y Desolación, así como la serie Los sombríos, impresionantes grabados de rostros en gran
formato. Susana Wald es una singular pintora surrealista, con un importante trabajo desarrollado no
sólo en la pintura, sino también en la escultura. De ella se presenta su serie dedicada a los huevos,
vistos éstos como símbolo de misterio, de renacimiento, de vida. Otros artistas extranjeros, como el
multifacético pintor, escultor, poeta y artista gráfico brasileño Vicente do Rego Monteiro, se
encuentran en proceso.
En el transcurso del próximo año, La Cabra Ediciones abrirá también sus líneas editoriales a otros
géneros literarios y humanísticos, y ya se trabajan algunos títulos en este sentido.
Por otro lado, La Cabra reconoce la contundencia de las ventajas y el significado de las nuevas
tecnologías con relación al binomio libro impreso-libro digital. Por lo mismo, estoy preparando los
56
libros para abrir el acceso del catálogo a otro tipo de público con la edición virtual de los títulos
publicados y en proceso, pero mantendré al libro impreso como el valor fundamental, con la atención y
el cuidado del oficio editorial como una de las características de esta editorial. En este sentido, como
proyecto en proceso para 2012 y siguientes años es la recuperación de la tradición tipográfica y de las
artes gráficas con la edición de libros especiales y de tirajes cortos.
La Cabra Ediciones es una empresa pequeña, muy pequeña. Uno de mis retos es trabajar en la
sistematización de las estrategias de difusión, promoción y venta. 2011 ha sido un año complicado para
La Cabra, pero los empeños están puestos en superar los obstáculos con base en la calidad de los
autores que deciden formar parte de esta casa editorial, en la calidad y el cuidado de sus productos,
que son los libros impresos, así como en la conformación de una comunidad nacional e internacional
abierta al apoyo y al desarrollo de proyectos colectivos.
Floriano, quisiera aprovechar esta oportunidad que me brindas para, a través de Agulha, agradecer
a los autores, artistas, traductores, ensayistas y tantos amigos, como tú, que han confiado en La Cabra,
en mi persona, y que han aceptado correr el riesgo y sumarse a este proyecto colectivo, que es de todos.
Porque en efecto, María Luisa es el nombre que aparece como directora, pero La Cabra es en realidad
una comunidad mundial fraterna, apasionada, imbuida un poco de locura y un mucho de sueños (o al
revés). Entre todos, con todos, La Cabra seguirá haciendo de las suyas. Invito a los lectores de Agulha a
entrar en la página de La Cabra (www.lacabraediciones.com) y dejar sus comentarios, ideas,
propuestas, sugerencias, etc. Lo agradeceré muchísimo.
Gracias, Floriano, y desde México, un abrazo a todos.
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensayista, editor y traductor. Creador de Agulha Revista de
Cultura. Entrevista realizada en diciembre de 2011. Contacto: [email protected].
Página ilustrada con obras de Floriano Martins (Brasil), artista invitado de esta edición de ARC.
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BETTY MILAN | Michel Serres: educação e mestiçagem
Formado em matemática e em filosofia, Michel Serres foi oficial da marinha de guerra antes de
se dedicar à filosofia das ciências e se tornar professor. A sua biobibliografia tanto menciona os
navios em que serviu quanto os livros que escreveu e as universidades do mundo em que
lecionou. Serres é um pensador que fez pouco das especializações existentes e se especializou em
percorrer os saberes para encontrar a ponte que os liga. À maneira do navegador, privilegiou a
rota e a passagem, chegando a dar a um dos seus livros o título evocativo de uma das grandes
aventuras marítimas do século passado: Passagem do Noroeste. É membro da Academia
Francesa de Letras e diretor da coleção Corpus da filosofia francesa, publicada pela Editora
Fayard. Foi conferencista da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo em 1973.
O terceiro instruído [1] é o título de um livro nada acadêmico que Michel Serres publicou em
1991. Nesta obra, o filósofo faz bem pouco da figura arrogante do doutor, dizendo que basta,
para sê-lo, ter copiado cem modelos e que só é verdadeiramente instruído o homem de muitas
culturas.
O terceiro instruído é um tratado sobre a educação, que se desenvolve através do elogio da
viagem e do saber que dela resulta. ―Parte‖, escreve Serres, ―deixa o ninho para te enriqueceres
com os costumes de outros lugares, e aí ouvires palavras nunca antes proferidas. Expõe o corpo
ao vento e à chuva, porque, para ser verdadeiramente educado, é preciso te expores ao outro,
esposar a alteridade e re-nascer mestiço.‖
Tendo em vista a publicação tão oportuna no Brasil deste livro, que se opõe ao fechamento
cultural e faz do aprendizado um sinônimo de mestiçagem, entrevistei Michel Serres no
escritório da sua residência, em Vincennes, perto de Paris.
BM | Fernando Pessoa, o maior poeta da lusofonia portuguesa contemporânea, dizia que
navegar é preciso. Você é um filósofo pessoano porque nunca se apresenta sem lembrar que foi
marinheiro, o que obviamente não é gratuito. O que pode e o que deve o intelectual moderno aprender
com o navegador?
MS | (Risos) O mar faz descobrir um mundo ignorado aqui na terra. Existe, aliás, um texto de
Hegel sobre isso. O homem só se torna inteiramente responsável por si mesmo quando entra num
navio. Abre mão da segurança que a sua história lhe dá e só conta com o próprio talento.
BM | O terceiro instruído está sendo lançado agora no Brasil. Gostaria que você falasse do livro.
MS | O lançamento me alegra. Escrevi o livro porque é bom que, no fim da carreira, um
professor faça o balanço da sua experiência pedagógica. Dediquei a minha vida aos jovens e tinha
vontade de retratar o homem do século XX. A maioria dos filósofos da educação, Montaigne, Fénelon,
Rabelais, traçou retratos e foi o que eu fiz.
BM | Em O terceiro instruído você diz que, antes de se educar, o jovem é um velho papagaio, só
capaz de repetir, e você dá a entender que não é propriamente com os atuais doutores que ele deixará
de ser papagaio. Qual o perfil do verdadeiro professor e o do aluno instruído?
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MS | Digo que a finalidade da instrução é parar de instruir. Na língua francesa a palavra fin
designa simultaneamente o termo e a finalidade. Não há nada melhor do que instruir alguém,
transmitir a totalidade da nossa experiência e do nosso saber, mas ao ter feito isso é preciso parar,
deixar que o outro seja independente e comece a inventar. Acho ótimo, aliás, que você tenha me
colocado essa questão. Olhando para mim, você percebe que sou um velho, porém a experiência
mostra que, contrariamente às aparências, a gente é muito velho quando é jovem e depois, avançando
na idade, conquista uma segunda juventude.
BM | No seu último livro você incita os jovens a partir, ir ter com o outro, se separar. A
separação é, na sua filosofia, um valor positivo.
MS | A palavra pedagogia, comum à língua francesa e à língua portuguesa, é feita de paidos
(criança) e agogia (conduzir) porque o ensino, na verdade, é uma viagem. Pode ser uma viagem
imaginária ou intelectual, mas é evidente que a educação começa com uma espécie de partida, implica
abandonar hábitos, mudar de língua, partir do lugar onde se nasceu. Não existe educação se não
houver o ―Levanta-te e vai‖. Mais ou menos como o que se passa entre os pássaros. Quando as asas dos
filhotes começam a aparecer, os pais os empurram para que caiam do ninho, abram as asas e saiam
voando.
BM | Montaigne filosofava numa língua literária, escreveu A viagem forma os jovens,
incitando-os a viajar, e se interessou muito pelos índios da América do Sul, em particular pelos
brasileiros. Você se inscreve na tradição de Montaigne…
MS | Sim. E no que diz respeito à viagem, gostaria de acrescentar que viajar não é só sair de
casa, é sobretudo encontrar o outro, porque é com ele que a gente aprende. Óbvio que se você só
encontra pessoas cuja língua é a mesma, que têm os seus hábitos e a sua religião, você não aprende
nada. A alteridade é essencial.
BM | Você diria que a paixão pelo outro é uma paixão francesa?
MS | Desejaria que fosse universal.
BM | Mas você sabe que não é.
MS | Foi por isso mesmo que escrevi o livro. O filósofo tem o dever de mostrar ao homem o seu
horizonte. O livro diz respeito a um triângulo: o eu que parte e encontra o outro e o terceiro, que
resulta do encontro e é instruído. Todo aprendizado é a mistura de um eu e de um outro, que resulta
num mestiço, o terceiro instruído.
BM | Você ensina quatro meses por ano nos Estados Unidos. Como é na cultura americana a
relação com o outro?
MS | Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, a mestiçagem não foi bem-sucedida. Ainda
existem bairros muito separados, os chineses ficam na Chinatown, os italianos na Little Italy etc. No
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Brasil, as raças, as culturas e as línguas realmente se misturaram, o melting pot de fato aconteceu. Há
asiáticos, americanos, africanos, europeus e não há uma comunidade dominante em relação às outras.
BM | Gilberto Freyre, o autor de Casa grande & senzala, [2] repensou a própria sociologia a
partir da noção de mestiçagem. Costumava mesmo dizer que havia aprendido latim com o pai, francês
com a mãe e o principal, cultura brasileira, com a mulata que dele cuidava na infância. Freyre
certamente se diria um mestiço, como você em O terceiro instruído. Poderia ter sido um interlocutor
seu. O que o convívio com os brasileiros em 1973 lhe deu?
MS | Descobri a latinidade, a existência de uma comunidade latina na qual eu acredito muito.
Quando vou à Itália, a Portugal, à Argentina ou ao Brasil, me sinto em casa, e isso porque as línguas
latinas têm muito em comum. As culturas são diferentes, mas a gente sempre encontra um ponto de
coincidência no que diz respeito à relação com o outro, ao gosto pela beleza. Nós, franceses, nos
sentimos mais próximos dos brasileiros do que dos ingleses, apesar de sermos vizinhos destes.
BM | O que mais resultou da sua viagem de 1973?
MS | Descobri, no Brasil, que o país se parecia com o mundo inteiro. Pelos problemas de
economia, de demografia, de saúde, representava o mundo, e isso foi o que mais me impressionou.
Percebi que existia um universo, um global em preparação. Em 1973, na França, podíamos dizer que
existiam os problemas franceses e os outros, os do mundo, que eram diferentes. O Brasil já espelhava o
mundo inteiro, a globalidade. Quando voltei, me perguntavam o que foi que eu aprendi e eu respondia
que havia aprendido o mundo.
BM | Ao lançar O contrato natural você disse que a reflexão política contemporânea é
conduzida por pessoas que têm uma cultura hemiplégica, gente que conhece as ciências humanas,
porém ignora totalmente a modernidade cultural. Como deve ser o político neste fim de século?
MS | O homem político mais frequentemente conhece as ciências humanas. Acontece que a
grande maioria dos problemas atuais é resultante da aplicação de técnicas relacionadas com as
chamadas ciências duras. Assim, por exemplo, os problemas de meio ambiente são produzidos por
técnicas industriais derivadas das ciências físicas e químicas. Já que uma grande parte dos dramas da
modernidade depende das ciências duras, é preciso que o dirigente as conheça. Isso, aliás, é um fato
inteiramente novo. Nunca antes se pediu ao homem político que tivesse tal conhecimento. Quando ele
se limita a ler o jornal, fica demasiadamente preso à atualidade e não tem a distância necessária para
se ocupar dos problemas que só se resolvem a longo prazo, como os da educação, do meio ambiente,
da criminalidade. O homem político não pode se limitar à cultura da mídia.
BM | Talvez seja necessário formar melhor a mídia.
MS | Não há como reformar os sistemas atuais. A única reforma possível é a da educação.
Quando a humanidade tem um problema que não sabe resolver, é preciso que eduque as crianças para
estas o resolverem na geração seguinte. Por isso a pedagogia é a questão fundamental no mundo
inteiro.
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NOTAS
1. Le Tiers Exclu. Paris: François Bourin, 1991.
2. Publicado pela Editora Record, 31.ed., Rio de Janeiro, 1996.
Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais
brasileiros e atualmente é colunista da revista Veja. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o
doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), Fale com ela (2007), e Quem ama escuta (2011). Esta
entrevista integra o livro A força da palavra. Publicação original na Folha de S. Paulo, abril de
1993. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista
convidado desta edição de ARC.
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MANUEL MORA SERRANO | Estudos de pele de Floriano
Martins
BRASIL NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO | A ideia que tínhamos do Brasil na América
Hispânica e particularmente no Caribe foi se modificando com os anos. A princípio não cabia em
cabeça alguma, muito menos da das ilhas, a imagem de um enorme continente absolutamente verde,
inundado de águas, como se o Amazonas cobrisse tudo. Pouco a pouco, através do cinema, com aquela
Carmen Miranda de sorriso pícaro e a ―venda‖ multicolor de Hollywood em uma aventura turística de
Disney, que em meu país se acentuou quando o poeta Héctor Incháustegui Cabral foi embaixador no
Rio de Janeiro e publicou seu Por Copacabana buscando e em seguida os documentários e as notícias
de imprensa do Carnaval do Rio, o mistério foi se convertendo em turismo e todos queríamos aprender
a dançar samba. Desta maneira fomos nos familiarizando com sua cultura, inclusive, durante uma
época da ditadura de Trujillo, pelo casamento de Flor de Oro, sua primeira filha, com um brasileiro,
era obrigatório nas escolas dar noções de português, embora, como em toda tirania que se respeite, tão
logo cessou o matrimônio, o substituíram pelo latim e jamais voltou a ser implantado oficialmente.
Apesar de que o víamos como um país monstruoso, Brasil foi emergindo como uma totalidade com
particularidades. Desde um princípio nos fascinou o projeto arquitetônico de Brasília, que então nos
parecia um sonho (como certamente o foi para Juscelino Kubitschek, a quem a história premiou ou
castigou, isso nunca se sabe), como executor do mandato constitucional de 1890 de que a capital se
erguesse no interior e não à margem de um oceano que o rodeava por milhares de quilômetros.
No entanto, nos anos 60 a revista O Cruzeiro em espanhol foi modificando a percepção que
tínhamos particularmente em meu país.
Entre essas coisas começaram as leituras dos poetas brasileiros e à Amidverza (Amigos da Verdade
e da Beleza), nosso grupo literário, espantou o desembaraço e a graça de um poema em particular (que
não é tão importante na história literária de seu país), nos referimos, claro está, a ―Jandira‖, de Murilo
Mendes.
Por que o escolhemos? Éramos jovens ardorosos do trópico e acima de tudo nos fascinaram as
grotescas metáforas que nos recordavam A giganta de Baudelaire e, precisamente, nos deixamos atrair
pelo inverossímil. Assim é que em uma aldeia mediterrânea da ilha Hispaniola vários jovens poetas
aprendemos de memória e recitamos, nos encontros, a Jandira, tomando cachaça criolla (o run das
ilhas).
***
Certamente, no princípio foi o samba, depois a magia negra, mais tarde vieram os narradores e
os poetas, porém não deixávamos de vê-lo como distante e diferente, apesar do cinema com seus
enormes rios, seus fantásticos sertões e os poemas torrenciais.
Por que digo essas coisas como introdução se devemos falar de Floriano Martins, que não havia
sequer nascido quando começamos a pronunciar nossas primeiras palavras em português?
Porque, do mesmo modo como das ilhas tropicais tinhas brumosas referências brasileiras, no
Brasil havia equívocas visões do mundo que o rodeava ao sul, a oeste e ao norte, porque aquele país
verde e amarelo como sua bandeira mantinha a mesma relação idiomática das chamadas, por alguns,
mães pátrias da península culpada.
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Isto não quer dizer que o Brasil estivesse de costas para seus vizinhos sul-americanos. Sempre
houve nexos e encontros e desencontros, como acontece com todos os vizinhos; mas culturalmente não
havia a interação que devia existir entre povos irmãos, apesar do pan-americanismo, da OEA e muitos
tratados, até que o termo América Latina possa englobar falantes portugueses, ingleses, franceses,
holandeses, centenas de idiomas indígenas e dialetos como o papiamento e línguas novas como o
creole haitiano.
Tampouco irei apontar a Floriano Martins como o único responsável pelo cada vez mais
acentuado encontro internacional com o contato e o conhecimento de nossas literaturas continentais,
porém sim, isto sim, eu me atrevo a dizer que tem sido o mais decidido impulsionador dessas
correntes.
Graças à navegação da Web, este argonauta tem podido realizar esse milagre, não apenas com a
palavra, mas também com a sua presença ativa em cada evento cultural importante havido nos últimos
dez ou 15 anos em toda a América Latina.
Este único fato, de uma importância quase planetária, já o vemos como algo natural e lógico.
E já que o mencionamos, quem é Floriano Martins? Tentar descobri-lo a milhares de
quilômetros de Fortaleza parece uma façanha, apesar de que na Internet encontramos entrevistas a
granel e exposições sobre sua vida e sua obra. No entanto, antes de falar de sua arte e da mostra que
com o título de Estudos de pele aparece neste número de Agulha Revista de Cultura – como artista
convidado –, devemos resumir o que captamos de sua vida e sua pessoa que lhe levou à posição que
ostenta em seu país e nos nossos.
FLORIANO MARTINS O HOMEM E O ARTISTA | Resulta insubstituível apontar partes de sua ficha
biográfica.
Floriano nasce em Fortaleza, Ceará, a 30 de junho de 1957, como Floriano Benevides Júnior; no
entanto, como seu pai era Floriano José Martins, escolhe este terceiro para seu nome de artista como
uma homenagem ao progenitor. Sua mãe foi Maria Consuelo Feijó Benevides.
Em seus primeiros 21 anos de vida ocorreram todas as coisas que o marcaram para sempre.
Vejamos, de 1957 a 1978, cronologicamente, desperta para a vida cultural em um lar onde seu pai,
grande leitor, acumula revistas e jornais e entre os livros estão, nada mais, nada menos, que os Sonetos
de Shakespeare e O Paraíso perdido, de Milton. Entre esse cúmulo de publicações se destacam os
romances ilustrados com fotografias e os chamados gibis ou revistinhas. Isto marcará definitivamente
os rumos estéticos de nosso autor.
Um acontecimento especial foi a morte, em 1970, de Marcos Vinicius aos 9 anos, seu único
irmão. Começava então um episódio doloroso, não somente porque perdia a companhia de um ser
querido, de seu cúmplice, mas também porque desataria nele a ansiedade de companhia e
solidariedade que jamais cessou, porque a busca do irmão perdido, embora não tenha tanta literatura
como a do pai, exaltada por Telêmaco na Odisseia, ou a do filho pródigo na famosa parábola de Jesus,
é a necessidade da amizade pura e desinteressada, manancial de pureza que não sacia nunca a sede
viril.
A inconformidade daquele solitário jovem de Fortaleza, então uma cidade emergente no
caloroso nordeste brasileiro, manifesta sua rebeldia de muitas maneiras. Tratemos de resumi-las.
Enquanto outros jovens formam bandos e grupos cúmplices, este solitário sonhador se entretém em
sua casa recortando revistas para inventar, por sua vez, formas novas, fazendo algo que ele não sabia
que tinha nome: collages.
Seu afeto pela imagem e a literatura data de sua infância, especificamente de sua adolescência
solitária e isto lhe levaria a uma carreira de teeneger insubornável. Em 1970 escreve uns contos, seus
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primeiros esboços literários, e muda seu nome para Floriano Martins; deixa então de ser Floriano
Benevides Júnior para a história.
Então se passam anos abúlicos, até que o rebelde volte a surgir e deixe os estudos em 1975, em
plena adolescência. Este fato comporta, necessariamente, borrascas internas e familiares. Converte-se
assim no rebelde sem causa que de acordo com a época quer provar tudo, que deseja conhecer grandes
emoções.
Com efeito, sua paixão pela música, pelo mundo hippie, o leva a frequentar gente da farândola
do teatro e da arte popular. Da rebeldia ao desenfreio não há distâncias.
Um ano depois de estar neste mundo alucinante, publica seu primeiro livro de poemas:
Composição, em colaboração com o artista plástico Alano de Freitas, editado em sua cidade natal. A
palavra solzinha não basta ao jovem Floriano. E ocorre que o hippie se enamora loucamente e a paixão
por uma italiana mais velha que ele o leva à Bahia. Começa a sentir o sabor do desarraigamento. A
paixão pelas artes e sua aventura amorosa o convertem em um rebelde com causa.
Ninguém sabe até onde pode levar esta aventura passional se não ocorre um fato que volta a
submergi-lo na solidão existencial. Em 1978 morre sua mãe e deve retornar a Fortaleza. Primeiros
amores perdidos na névoa da poesia.
Então, repleto de solidão e necessitando pouso, porque tem 21 anos e deve pensar em seu
futuro, conhece Socorro Nunes. Poucas vezes um nome de mulher tem o vocativo justo para a
necessidade de um homem. Ela o socorre de sua solidão, o resgata de seu passado e se converte na
companhia solidária que andava buscando desesperadamente devido às mortes do irmão e da mãe.
Como suas aventuras amorosas não podem estar órfãs de poesia, publica então, com a
colaboração de outro artista, o fotógrafo Paulo Aécio, um livro com um título que é todo o resumo de
sua solidão e desamparo: Ruínas do silêncio.
Aqui poderíamos nos deter, porém ainda não. É preciso fixar outros detalhes que vão marcar
seu destino. Casou, sua esposa é contadora. Tem a mesma profissão que a aventureira estrangeira. Ele,
que vive nos ares da arte, necessita de mulheres com os pés na terra dos números.
O outro fato significativo é que agora já tem família e deve trabalhar. E o faz, porém em 1979
também inicia uma aventura dentro do que já é a grande paixão de sua vida: formará parte do grupo
literário Siriará, que publicou uma revista com este nome com um só número antológico, formado por
diversas gerações de escritores do Ceará, algo que lhe servirá muito no futuro para manter sua
independência criativa e sua porosidade para receber influências vanguardistas, como o indica a obra
que lhe segue:
Seu título é todo um programa pessoal: Nenhuma correnteza inaugura minha sede, com
desenhos de Itamar do Mar; de modo que parece uma declaração de independência, embora seja
mantido o auxílio para a ilustração pertinente.
Em 1980 começa a trabalho como desenhista na Imprensa Oficial do Ceará.
No entanto, é em 1981 quando recebe ao mesmo tempo uma notícia devastadora e a
inauguração de uma nova visão da vida. Morre seu pai e nasce Flora, sua primeira filha. De maneira
que magicamente acontecem estas coisas em sua vida plena de contrastes até este momento. Algo
ocorreu, uma nova geração com seu sangue e seu nome veio ao mundo. A solidão está vencida do lado
afetivo familiar. Há que seguir lutando sem abandonar a paixão pela literatura e a ilustração.
As mortes trazem ressurreições de palavras: publica Di versos em versos, com ilustrações de
Caú. A união entre a imagem e a poesia se mantém fiel.
Este mesmo ano concorre e é aprovado em um concurso público para o Banco Nacional da
Habitação. Sua rebeldia e independência dão frutos.
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Em 1982 publica O amor pelas palavras, no Rio de Janeiro, com uma xilogravura de Norberto
Onofrio. Uma vez mais, o casamento com o visual se mantém.
Em 1983 ocorre outro fato que influiria decisivamente na vida e na obra de Floriano. Foi seu
traslado para a cidade mais pujante do país, São Paulo. Isto abre enormes possibilidades para o jovem
poeta. Começa também sua aproximação a sério do idioma dos países vizinhos. Juntamente com
Francisco Carvalho traduz Altazor de Vicente Huidobro, desse modo iniciando algo transcendental em
sua missão estética.
Porém ainda faltava algo em sua vida e em sua família para transbordar as ausências do
irmãozinho e do pai. Em 1985 chega à sua vida André, seu segundo filho. Outro vazio que se enche.
Falta então seguir avançando em sua paixão artística.
Em 1986 regressa a Fortaleza e segue sua carreira burocrática ao mesmo tempo em que retoma
as atividades jornalísticas, iniciando colaborações no Suplemento Literário Minas Gerais, de Belo
Horizonte, que também marcará o começo de uma atividade cultural que logo lhe daria reputação
continental: traduções de importantes escritores como Sábato, Bataille, Blake, Pasolini, Paz, Arp,
Huidobro, Mutis etc., e o início de suas entrevistas a escritores de seu país e da América Hispânica.
Até aqui temos seguido uma trajetória que nos levou ao início formal de uma série de ações e
atividades que foram perfilando um homem que foi se organizando e progredindo por seus próprios
méritos para sustentar sua família, naturalmente ajudado por Socorro, e que foi lavrando um nome
como autodidata na literatura, não somente de seu lar nativo, mas também que foi se estendendo por
todo o país.
É em 1987, no mês de novembro, quando aparece seu pequeno livro As contradições terríveis,
onde mescla poemas e collages, e já não requer a colaboração de outros para se expressar
plasticamente. José Alcides Pinto exalta estas composições e estes poemas no jornal Tribuna do Ceará
como um ritmo mágico, como uma pauta musical, apontando que representava uma nova estética da
arte aproveitando as vanguardas.
Sem dúvida alguma, algo novo e excitante há na obra de arte deste trabalhador da imagem e da
palavra.
E aparece no título o que foi sua vida e será seu futuro: as contradições terríveis.
Em dezembro deste mesmo ano, inicia sua colaboração internacional no suplemento
Prosa*Verso no jornal O Comércio do Porto, em Portugal, traduzindo e dando a conhecer a
importantes poetas de língua espanhola.
Para agosto de 1988 cria o jornal Resto do Mundo, dedicado a traduções, ensaios e poemas.
Trata-se de outro título premonitório. É um grito que proclama que não estavam sozinhos no mundo,
porque em outras partes do continente também vinha sendo feita uma boa literatura. Sua área de
interesse abrange outras inquietudes, além das artes gráficas.
Com efeito, sua experiência no teatro e na música forma parte de sua essencialidade humana.
Assombra tudo o que este torvelinho cultural em que se converteu pode fazer, e faz. Conhece
perfeitamente os músicos e os artistas de seu país e está atualizado de tudo o que se passa na Europa e
no resto do continente, incluindo os Estados Unidos. Um homem cuja imagem não é possível sem
óculos, converteu-se naquele que mais vê, e o que mais escuta por detrás e fora dos cenários, dos autofalantes e da câmara, que também foi uma de suas obsessões juvenis.
Podemos resumir dizendo que até este momento sabemos que desde menino solitário (seu
irmão chegaria quando tem 4 anos e será seu cúmplice somente dois ou três anos mais tarde) se
interessou pelo que há em sua casa e se armou de tesouras e colas para fazer estranhos collages; que
muito cedo perde esse irmão quando então já poderia fazer-lhe companhia, iniciando sua rebelião
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abandonando sua cidade e sua família, atraído por uma mulher estrangeira mais velha. O que o
converte em um obstinado. A morte da mãe, impulsionada por uma paixão vulcânica em plena
juventude, o arremessa aos braços de quem o compartiria pelo resto de sua vida.
Estas coisas convertem o hippie alegre que no fundo sempre foi e tratou de alguma maneira de
seguir sendo, pelo menos nos cabelos longos e barba grande, em um Homem. Deve trabalhar em
outras coisas que não são a literatura e as artes, porque inicia como desenhista, mas acaba como
empregado de um banco. Nesse intervalo nasce a filha, morre o pai e nasce o filho estando em São
Paulo; o regresso ao lar o impulsiona à colaboração no jornalismo cultural e esta atividade o projeta
internacionalmente. Já temos feito o homem de hoje, imerso no surrealismo, nas novas tendências, no
conhecimento do que fizeram os vizinhos e os demais hispano-falantes e rastreando europeus,
asiáticos, indígenas, a humanidade. É uma antena que não tardará em converter-se em parabólica, já
que aproveita ao máximo as novas tecnologias.
Tudo o que ele realiza a partir dessas experiências teve como resultado o que é agora: Floriano
Martins iniciou uma carreira sem fim como as galáxias.
Destaquemos, apenas como informação complementar, os fatos mais relevantes de sua vida e de
sua trajetória, porque até este momento, finais do século XX, já o perfil de sua história está
perfeitamente delineado: será poeta, será escritor em tempo completo, e difundirá a cultura, sobretudo
através de entrevistas, com quantas personalidades artísticas ou literárias cruzem suas órbitas
galácticas.
TRAJETÓRIA DE 1991 A 1999. NASCIMENTO DE AGULHA REVISTA DE CULTURA | Os anos que
procedem o novo século foram decisivos na carreira de Floriano.
Como vimos, estava preparado para novas coisas. Em 1991, a morte da avó materna teve um
impacto terrível, ali se rompia outro vínculo com suas origens. Ele mesmo menciona este fato em uma
entrevista que lhe fez Luiz Alberto Machado para O guia de poesia, em 2010, a propósito de seu livro
Cinzas do sol:
Cinzas do sol está pautado por um acidente, ou pelo acaso objetivo. O personagem central do
livro corresponde à minha avó materna. Encontrava-se prostrada à cama, muito doente,
claramente à espera da morte. Diante dela, pensando na intensa vitalidade com que conduziu
seus dias, por muito pouco resisti à vontade de matá-la. Saí dali e não voltei mais a vê-la. Ao
chegar em casa, abri aleatoriamente as páginas de Le coupable, de Georges Bataille, e salta
diante de mim a frase: a vida é um efeito de instabilidade, de desequilíbrio, logo seguida de um
não menos revelador: mas é a fixidez das formas o que a torna possível. A partir de então, eu
deixo de ser apenas um observador e passo a descobrir-me também como personagem de
minha escrita.
O escritor havia encontrado, como ele mesmo disse, a liberdade absoluta ao converter-se em
personagem de sua própria escrita. Embora Cinzas do sol tenha aparecido em agosto, já em
dezembro (que foi uma espécie de mês-chave para ele realizar coisas), publica Sábias areias, que se
converte em um livro escandaloso em muitos sentidos, segundo José Alcides Pinto, em O Escritor,
abril de 1992:
No sentido de experiência-limite, em sua vazante de verticalidades e suntuosos extremos no
tratamento com a linguagem. Recorre a uma forma clássica e às imagens mais subterrâneas
(íntimas tão somente dos verdadeiros iniciados) de uma mística já perdida no tempo, para
narrar – há um sutil elemento narrativo que percorre todo o livro, que o torna por inteiro um
único poema, em seus 33 sonetos brancos, sonetos de areia, como bem salienta o autor – um
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mágico cenário de circunstâncias e tensas vozes em que se dá um diálogo entre o homem e sua
mãe perdida (―mãe infundada‖, ―mãe perdendo seus filhos‖, ―mãe de todas as noites‖, ―mãe
serena dos relâmpagos‖), imagens se desdobrando vorazmente.
Copiamos estas citações porque entendemos que estes dois livros e estas experiências
transformam totalmente interior e exteriormente como pessoa e escritor a Floriano Martins. É sua
plena maioridade. A partir daí será uma torrente humana.
Em 1992 se integra ao grupo surrealista de São Paulo e em julho desse mesmo ano já
compareceu publicamente sob este credo artístico em um Núcleo de arte contemporânea daquela
grande cidade.
Em 1993 publica Tumultúmulos, no Rio de Janeiro, e aparece seu nome e sua obra em inglês.
Dédalus Book edita The mith of the word – Surrealism 2, onde, ao lado de personalidades como
Breton, Desnos, Artaud, Prévert etc., em um total de 47 autores de todo mundo, se inclui Cinzas do sol
traduzido. Este livro foi editado na Inglaterra e distribuído na Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Seu
nome já viajou ao outro extremo do mundo, precedendo-lhe em anos, já que sua filha, ao casar-se, foi
viver na Austrália, e ali nasceu Maya, sua primeira neta. O autor pôde chegar tão longe quanto sua
palavra.
A partir desse momento, seu trabalho nas publicações jornalísticas não cessou nem sua
compilação de entrevistas e antologias, nem suas obras líricas e ensaísticas.
Enfim, basta pôr seu nome na Internet para ter a torrente de atividades, surrealistas em sua
maior parte, até 1999, a antesala do Século XXI.
Em dezembro desse ano cria a Agulha Revista de Cultura, dedicada absolutamente à cultura.
Em agosto de 2000 Claudio Willer assume a seu lado a direção e editam, em formato de revista, uma
edição especial que se constitui realmente no verdadeiro número inicial, apontando o seguinte em seu
editorial:
Em um país onde cresce com profusão a navegação na Internet, sendo patente o desdobrado
índice de investimento de capital estrangeiro em tal atividade, Agulha Revista de Cultura
preocupa-se quando menos em conciliar meio e mensagem. É sua clara intenção veicular um
tratamento de matérias que não incorra no desgasta abusivo, banal e recorrente que hoje
define genericamente o que se convencionou chamar de jornalismo cultural.
Aqui nos deveríamos deter, porque estas notas são precisamente para encabeçar um número
especial desta revista em uma nova época.
Por isto devemos concluir apressadamente, para não esgotar o leitor, que a partir deste
momento a vida e as energias de Floriano Martins, sem descuidar de suas outras atividades, passaram
a girar em torno de Agulha Revista de Cultura. Dedicar-se finalmente à sua tarefa de editor de
antologias, não desmaiar em sua escritura e seguir produzindo livros de criação, haver comparecido a
inúmeras atividades importantes em seu país e em toda a América Latina como convidado especial,
haver sido curador de exposições e feiras em sua cidade natal e finalmente em converter-se em um
referente poético e literário na extensão de seu país e do resto do continente, com repercussões no
velho mundo, por tudo isto, antes de falar sobre as fotos que ilustram o presente número, antológico
em muitos sentidos, me permitam, imitando seu estilo de ágil repórter cultural, reproduzir a entrevista
que em setembro de 2011 lhe fiz a propósito de sua decisão de oferecer nesta edição sua esplêndida
coleção de fotografias, Estudos de pele, onde realizou mágicas composições artísticas armado de
câmara e seu inquestionável gosto artístico.
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MMS Andei lendo sobre tua vida e tua obra e me dei conta de que nenhuma biografia possível,
não importa a quantidade de volumes ou de páginas, poderá contar todas as tuas experiências, tanto
na vida mortal como nas atividades relacionas com a cultura e as letras. Assombra que em apenas meio
século e quatro anos, dos quais apenas quarenta e pouco contam para a literatura, uma pessoa possa
haver realizado a metade de tudo o que conseguiste, com o agravante, já que te conheço, de que parece
que de agora em diante, com todos os teus conhecimentos e relações, nacionais e internacionais, é
quando começas a fazer e conquistar tuas secretas aspirações.
FM Além do tempo que tomamos (não perdemos) com todas as aulas que são dadas pelos
sentidos, houve um período de quase 15 anos em que posso dizer que algo se perdeu, quando eu
trabalhava como empregado em um banco estatal. Foi uma época de muito pouco proveito na
convivência com as artes, inclusive a criação. Quanto à segunda metade da vida, a que tenho pela
frente, sim, o que observas é verdade, basta olhar os últimos dez anos, quando a produção aumentou
consideravelmente.
MMS Para não converter-me em teu biógrafo, algo que não posso tentar desde Santo Domingo,
diante do volume de realizações tangíveis levadas a termo por ti, eu gostaria de perguntar coisas que
apenas parcialmente respondeste em algumas entrevistas e em tuas prosas, sobre tua afeição pela
fotografia.
Já sei da infância e dos collages, e sei que não gostas que deem este nome ao que fazes com as
composições, combinações ou superposições fotográficas (para chamá-las de alguma maneira);
atividade artística anterior a teu conhecimento do surrealismo, embora ninguém fique impune após
conhecê-lo, porque parece que sempre esteve ali nos grandes iluminados, em Hölderlin, por exemplo,
e nem digo Kafka, porque não apenas é quase contemporâneo como também um de seus ícones
sagrados.
Quero que me contes com pequenos detalhes tuas primeiras experiências de fotógrafo, quando
conseguiste a primeira câmara e o que fizeste com ela e tua evolução a partir dos collages infantis.
FM Uma das coisas que caracteriza o trabalho com colagens é a eleição das fontes. O método
empregado para cortar e colar fragmentos de imagens na composição dessa outra imagem, a imagem
final de que resulta a colagem, não define a estética de um artista, segundo me parece, mais do que o
material de origem. Max Ernst, por exemplo, utilizava como fonte principal as gravuras de Gustave
Doré, quase estabelecendo um diálogo entre dois tempos, dois mundos, duas visões. O Chileno Ludwig
Zeller gosta muito de trabalhar com velhas revistas ou manuais de engenharia e mecânica, entre outras
igualmente científicas. Quando comecei a trabalhar com colagens, ainda sem perceber, fui atraído por
uma fonte específica, que somente depois compreendi e, sobretudo, compreendi a ligação com algo de
meu passado. A fonte: as naturezas mortas do século XVII. A ligação com o passado: as naturezas
mortas que havia na casa de minha avó, pintadas por um de seus cunhados, e minha paixão pela
pintura de Velásquez. Depois, quando já havia feito algumas colagens, a descoberta de artistas como
Pieter Claesz, Evaristo Baschebis, Antonio de Pereda, David Bailly, Ludovicus Finson, entre outros.
Havia encontrado a minha voz própria na colagem, porém algo me inquietava: a utilização de
materiais que não eram meus. Foi quando pensei em fotografar texturas para inseri-las nas colagens.
O passo seguinte foi abandonar de uma vez as fontes e com isto me veio a ideia de não mais recortar as
superfícies, mas sim de sobrepô-las. Primeiramente imprimia as fotografias em transparências, porém
logo me decidi a trabalhar diretamente no photoshop, utilizando como recurso único a sobreposição.
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Duas coisas me decepcionaram nas colagens, não na técnica, mas em sua utilização frequente, a
simples aproximação – lado a lado – de duas imagens em geral distintas e a repetição estética de
certos estilos que por vezes chegava a um esgotamento inaceitável. Por outro lado, descubro a força
dos nus, que tampouco me interessa em si mesmo como imagem isolada, mas antes como recurso para
composição de algo que expresse minha inquietude diante do mundo. Foi a partir daí que pensei,
talvez guiado pela magia da pintura de Antonio Bandeira, em mesclar superfícies que representassem
o corpo, a natureza, o objeto, em um tipo de combinatória que fosse, antes de tudo, um ato amoroso.
Assim nasceram as primeiras fotografias, marcadas pela felicidade de que todo o material utilizado era
meu, que não utilizava peças de outros.
MMS A segunda pergunta tem muito a ver com a primeira: gostaria de saber como evoluíste da
fotografia analógica para a digital e se há alguma diferença em teu processamento das superposições.
FM Jamais trabalhei com a fotografia analógica, exceto quando a utilizava para realizar
colagens. A técnica das superposições que utilizo é a mais simples. Tenho um acervo sem fim de fotos
que separo por temas: águas, noites, pedras, árvores, utensílios, texturas, nus etc. Não sou fotógrafo
propriamente, assim que as fotos são utilizadas como recursos para a criação dessas novas imagens.
Na verdade, sigo fazendo poemas, como na época em que fazia colagens. As imagens que crio – por
efeito de superposição – buscam um contexto poético igual ao das imagens que associo na criação de
um poema.
MMS A terceira é que li sobre a manipulação do digital, que tudo dependerá do contexto. Pedro
Meyer, do México, sustenta, em uma declaração na Web: ―Do meu ponto de vista tudo dependerá cada
vez mais do contexto: de onde e com que motivo se exibe ou publica, assim como o modo em que ela
será apresentada a público. Em segundo lugar, deveríamos ver as fotografias pelo que são: tãosomente interpretações. Se entendemos o contexto e a natureza inerentes à fotografia, penso que
estaremos encaminhando a fotografia digital na direção correta. Não esqueçamos que o contexto é
quase sempre aportado pela publicação onde aparece a imagem e não pelos fotógrafos.‖ E em teu caso,
nós que lemos os poemas e tratamos de encontrar similitudes ou sugestões, ou melhor: coincidências,
entre a foto artisticamente tratada por ti para obter alguns resultados, também artísticos, porque a
grande diferença entre o artesanal e o artístico radica em que a arte é irrepetível, é única, e a artesania
uma repetição de habilidades que, no fundo, se não se repetem modelos alheios ou são decalcados,
podem ser, por sua vez, furto de um temperamento artístico. Mas vejamos, tratando-se de algo
mecânico, em parte tecnicamente artesanal, como acontece com as superposições, onde podemos
separar dramaticamente as duas coisas? Vale dizer, quando, em que momento, percebes que atuas
como artista e não como fotógrafo que utiliza um meio que segue sendo mecânico, como a câmara, que
com todas as suas mudanças segue se chamando assim desde os tempos remotos quando era
simplesmente ―escura‖? Com isto não te peço que detalhes a arte, já que esta existe precisamente pelo
que tem de aventura do espírito e de salto no vazio, ou seja, do indizível ou indescritível que é a
emoção criadora e o instante do boom contínuo de todo o universo, do choque e da luz, da sombra e do
esplendor, do silêncio e do ruído.
FM A síntese seria o equilíbrio entre o que chamas de ―temperamento artístico‖ e o domínio das
técnicas. Quando alcançamos este ponto já não sabemos mais – tampouco importa – o que seja uma
coisa e outra. Quando falo em contexto, penso no que é determinado pela criação em si, não pelo
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ambiente em que a mesma é publicada. Em qualquer obra de arte sempre haverá uma leitura outra,
que está dada por seu receptor. Disso não há como fugir e aí radica a beleza da arte, neste encontro
entre o que o artista pensou e o que há encontrado seu leitor. A artesania é parte da criação, como na
música, na escritura etc. A câmara fotográfica não é distinta do violão ou do lápis. Há uma parte
mecânica em toda criação, assim que não trato de mitificar a criação ou de rejeitar seus mecanismos.
Quando experimento uma imagem sobre outra na mesa de edição é o mesmo que faz um músico com
seus acordes ou um poeta com seus recursos verbais. De repente, a surpresa, o choque, a luz penetra a
imagem, o escuro perde sua condição indizível, ali está a música, o poema, a imagem fotográfica.
Certamente o domínio técnico permite uma intimidade mais forte com seus elementos, o jogo se enche
de graça, e o que chamas corretamente de ―salto no vazio‖ se realiza de modo mais feliz, alcançando
novos pontos de ousadia e entrega.
MMS Nota: como não é uma entrevista, mas sim uma busca de motivos para alcançar os
territórios de minha dúvida, que é quando e como decides manipular uma imagem e contrapô-la a
outra tendo um terceiro objetivo presente que é o poema, ou então, se ao contrário, tendo visto uma
foto surge a ―composição‖ ou o contexto da outra imagem e mais tarde a associas ao poema, ou viceversa… de qualquer modo, apesar de tua experiência infantil e juvenil com os collages, quando
exatamente em tua vida planejaste esta outra arte? Foi antes ou depois de tuas primeiras leituras
surrealistas ou das imagens de René Magritte, por exemplo? Vi muitas fotos de autênticos fotógrafos
surrealistas e, no entanto, noto uma grande diferença contigo. Eles buscam, estranhamente, algo
lógico no quadro, que é o mais longe que poderíamos pensar que seja o surrealismo puro, e em ti, pelo
contrário, cada vez mais te internas em territórios abstratos, embora às vezes o efeito seja puramente
surrealista.
FM Creio que até aqui já respondi a muito do que mencionas. A aproximação entre o poema e a
fotografia é como um complemento ou simplesmente a passagem de um plano para outro. Em geral, a
fotografia chega depois do poema. Talvez ali permaneça um pouco a técnica da colagem, nisso da
aproximação de dois mundos aparentemente distintos, que uma vez juntos tratam de desvelar suas
afinidades. Já não recordo quem fez a observação de que Magritte utilizara em sua pintura a técnica da
colagem em igual proporção que Ernst empregara em sua colagem a técnica da pintura. Eu creio que a
minha fotografia cada vez mais se parece com uma pintura. Além do mais, como sempre se passou
com meu poema, me interessa essa relação amorosa entre o abstrato e o concreto, as zonas de tensão
entre dois mundos: sonho e realidade. Não é outra a aposta do surrealismo em seu sentido de buscar o
que está mais além da realidade, sim, porém sem perder contato com ela, ou seja, tratando de
enriquecê-la.
MMS Por último indago: há uma poética de Floriano Martins quando trabalha a fotografia
artística?
FM Quando estava preparando uma série para minha exposição na galeria Citibank em São
Paulo descobri outra vertente mágica que me foi dada pela decisão de não recorrer ao nu. O corpo da
mulher foi substituído por outras evocações corporais, em geral de pássaros ou que sugerisse voo,
mergulho, salto no vazio. Com a presença do nu, a ação estava dada pela paisagem. Em sua ausência,
esse corpo outro é que determinava o movimento. Nos dois casos, o que importava era o mesmo que já
se encontrava em minha poesia: o erotismo em seu plano mais filosófico, o toque mágico de dois
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mundos, a revelação da alteridade em seu mais amplo sentido de entrega. Assim é minha vida. A
fotografia não poderia atuar de outro modo.
CONTATO PESSOAL COM O AUTOR | Conheci Floriano Martins em Fortaleza, Ceará, Brasil, em
novembro de 2007. Fui convidado, juntamente com outros sete agentes literários da América Latina,
para uns encontros enriquecedores. Depois fomos à Feira do Livro do ano seguinte, da qual Floriano
era o curador, e ele também visitou meu país na Feira Internacional de 2009. Além disto, temos
mantido através da Agulha Revista de Cultura nossa relação literária, assim como a nossa amizade
pessoal pela Internet, que vem se intensificando com os anos graças a uma série de afinidades de
caráter e coincidências estéticas.
Sua preocupação com a imagem data, como vimos, desde seus anos de menino solitário cheio de
imaginação que remexia em collages. Seus livros começaram a aparecer com ilustrações. Inclusive
descobriu a forma de fazer seus collages pessoais quando a magia do photoshop lhe permitiu fazer
suas composições (como eu chamo suas sobreposições) que muitas vezes ilustravam seus poemas
próprios e em colaboração.
Conhecemos sua juventude aventureira, seu casamento e o nascimento de seus filhos, fatos que
lhe fizeram sepultar, ao menos visivelmente, o hippie que havia sido, e a sentar a cabeça como esposo e
pai.
Vimos como formou parte ativa do surrealismo, de tal forma que uma de suas obras foi
traduzida ao inglês e teve uma difusão internacional então insuspeitada do outro lado do mundo. De
modo que, apesar de que tem sido eclético e livre para aceitar os demais, no fundo o surrealismo
sempre existiu nele em estado latente.
Talvez, precisamente esta série de Estudos de pele seja bastante ilustrativa, uma vez que quem
assista ao desfile dessas insólitas criações terá que admitir primeiramente que se trata de autênticas
formas de fazer arte, pois embora a fotografia em si seja considerada há muitos anos como uma arte,
uma coisa é o que a câmara como ente estático vê e registra, não importa por quais recursos, e outra,
bem diferente, é a forma como o homem traduz a outra linguagem estética essas estâncias fixas.
Não cabe dúvida quanto aos avanços das novas tecnologias para a nitidez das imagens, o que
tem permitido que muitos fotógrafos, armados de técnica e paciência de ofício, consigam destacar e
ampliar seus próprios pensamentos e suas ideologias pessoais. Contudo, aqui estamos assistindo a
outro milagre que vai um pouco além da tecnologia em si e penetra o território da verdadeira arte.
ACERCA DA ARTE FOTOGRÁFICA DE FLORIANO MARTINS | Na parte final da entrevista lemos
como Floriano remete a aspectos como ―o erotismo em seu plano mais filosófico, o toque mágico de
dois mundos, a revelação da alteridade em seu mais amplo sentido de entrega‖.
Após a confissão da parte interessada, é pouco o que podemos acrescentar que não seja o
mistério imenso em cada superposição ou composição.
Tentaremos falar de cada uma das cenas que compõem esta exposição que ficará
permanentemente aberta na nuvem, utilizando os mesmos recursos surrealistas que o autor, ao final.
O simples título da mostra, Estudos de pele, por si só aponta que tratamos do nu feminino nesta
oportunidade. Seios, coxas, peitos, glúteos, mamilos, que deleitariam, por eles mesmos, porém ocorre
que, embora a sensualidade, o desejo exasperado e a necessidade de contato que sugerem a expressão
nu feminino atraia o voyeur inato que é cada ser humano, aqui se trata e não se trata disto.
Não há, na linguagem de Floriano Martins, um afã morboso, não há mais do que erotismo
transformado sutilmente pela natureza e os objetos, às vezes animados como as águas torrenciais, ou
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vaporosos como as nuvens mutantes, ou decididamente sombrios ou de estridentes coloridos
crepusculares ou de auroras nascentes.
Muitos pintores verdadeiros já quiseram haver composto alguns dos quadros que certamente
alguns de nós editaremos e guardaremos como o que são, autênticas obras de arte.
O que estamos observando é o mistério da criação. A maneira como se constrói seu evangelho
fotográfico, aprendendo a palavra mágica que destrói as formas e as reconstrói, que sobre ruínas abre
pastos e sobre selvas onde despe de imediato a energia dos entardeceres e a torrente das noites ou a
algaravia das alvoradas. Pássaros que são sombras ou sombras que são pássaros voam por entre as
coxas das jovens, das montanhas emergem mamilos ruborizados e por entre as coxas lascivas de
repente nascem rios. É um novo paraíso, é o poder demiurgo de fazer e desfazer a realidade em um
tumulto de formas. Por vezes Floriano saca da máquina detalhes sombrios como os de Rembrandt, ou
surreais como os de Benjamin Péret, mas sempre palpitantes como os cadáveres deliciosos de
Apollinaire, Tzara e os surrealistas.
Em toda festa da arte terminamos repletos de luzes ou de sombras, é preciso observar tudo. Nas
exposições vamos de quadro em quadro, parando morosamente sobre alguns, esquivando outros. Eu
me atrevo a pedir ao observador-leitor que não me siga lendo. Que regresse tranquila e detidamente a
revisar a galeria de fotos e, ao final, retorna a este texto encerrando assim a nossa conversa.
Floriano Martins nos embriagou com aleivosia de belas formas: fomos apontando com o dedo:
aqui é surrealista real; ali é lírico; aquela outra é dramática; por vezes nos faz pensar, em outras
desvairar, nos intriga e apanha. Devemos admitir que esta é a arte. Contudo, se ao final não nos resta
um vapor perfumado de sensualidade, fracassamos e devemos tornar a olhar, para nos convertermos
cada um em autêntico voyeur quando esse aroma intenso nos impregna a alma.
Então decidimos ir revisando quadro a quadro em várias oportunidades, porém em uma delas
fizemos anotações da impressão que nos causaram alguns; no entanto, ao seguir revisando as 180
fotografias decidi anotar a impressão que me produzia cada uma em particular. Em seguida tomei
essas visões e me dei conta de que em distintas oportunidades tinha experiências diferentes e assim
assumi o que ocorrerá com os leitores, porque esta edição oferece outros esplendores.
Então me dei conta que havia feito anotações autenticamente surrealistas porque sequer
passaram pela peneira da razão. De modo que agora, já unidas e sem o número correspondente a cada
foto, porém na ordem que o artista me enviou, o leitor poderá encontrar faíscas de cada uma,
unificadas as visões. O que lerá a seguir não é um poema em prosa, mas sim, como dissemos, um rapto
surrealista dessas impressões que, muitas vezes poderá coincidir com as do leitor, porém sem separar
cada uma nem apontar cortes, além daquelas que impõem algum tipo de ordem à desordem.
(RAPTOS DOS) ESTUDOS DE PELE | Sabes que é carne pura, porém nunca saberás qual carne é
onde uma mão pode reter a sombra. As mãos fazem e desfazem a vida e o amor. Alada a perna é mais
suculenta. As pisadas sobre felpas não conduzem a parte alguma. O pavão real do desejo, o tenebroso
pavão real da vida. O caracol pode invadir a carne.
De uma instante para outro um corpo nu de mulher poder ser o crepúsculo assentado em uma
terra áspera simbolizando a morte do desejo, porque de seu umbigo nascem os entardeceres que
anunciam a noite, tocando a fertilidade na beleza de uns seios.
Ou uma árvore monstruosa que é uma mão encantada acaricia a relva com raízes e desejos onde
as nuvens turvam os sentidos porque o que agrada se toca suavemente. Uma fantasia maravilhosa de
véus ou mortalhas e fantasmas eriçam um mamilo insone formando um quadro surrealista, porque eis
aqui um peito entre gazes, mortalhas e fantasmas.
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A ilusão de um estranho pássaro negro enquanto dois mamilos como ruínas frágeis simulam um
ninho abandonado e nos sugerem o Never more de Edgar Alan Poe ou o ninho da fênix.
Indagando o mistério da sensualidade um corpo de mulher se esfuma convertendo-se em um
titã que leva sobre seus ombros o peso da noite enquanto o céu escuro semelha uma tempestade
fugidia que sugerem Rembrandt.
Às vezes a contradição é o toque mágico que a tudo transforma como a aridez pétrea contra um
seio núbil de donzela ou uma cabeça de cão que bebe sensualmente. Paisagem pétrea plena de
sugestões. A sutileza de uma paisagem onde se contrastam o pico nevado e o mamilo que rivaliza entre
as nuvens, criando uma beleza total. Apoteose de um seio e os glúteos brumosos.
Há um quadro sombrio, clássico, rembrandesco, de um corpo de mulher entre sombras e
utensílios e uma torrente de águas que semelha o desejo, como as outras rembrandescas companhias.
Poucas vezes se evidencia como na sugestão de um sexo de mulher o torrencial desejo sobre a
fragilidade da carne. As pernas e a torrente sobre o sexo tão a sensação do tato e os claros e as sombras
fazem deste quadro uma mensagem surrealista.
Mãos e escuras sombras, as vagas silhuetas das auréolas. A mão que acaricia um seio se
transforma entre as nuvens que sugerem luzes pestanejantes em uma lâmina que explica a tensão
sensual.
Uma catarata irrompe na paisagem contrastando órgãos humanos. Imagem envergonhada
justamente entre a floresta e as rochas. As pedras e a envergonhada nudez. Quem dança uma dança
mágica talhada exatamente como uma sombra? Ritual de dança entre rochas, imagens talhadas nas
pedras.
Visão fabulosa de um amanhecer nublado sobre a pele desnuda, mãos, brumas e sexo. Toque
preciso sobre a pedra de um leito seco; dedos e mamilos como frutos.
Viagem até a vida detrás de um mamilo com maletas. Já chegou o viajante do ser.
Na sensualidade do bosque o mamilo é uma verruga encantada. Uma árvore seca com seios
fragrantes.
A mão que escapa entre o vermelho intenso em um grupo negro e o obstinado vermelho
penetrante. O grotesco anjinho atravessa um deserto de carne ao cair da noite; o anjinho monstruoso
transita sobre o corpo do entardecer.
A mão que acaricia a iluminada névoa. Oh mãos e rocha com pecado.
A pequena aranha desce de um seio até a brumosa realidade do bosque. A aranha chovida do
mamilo sobre a névoa. Como um exercício de Juan Gris os cacos do mamilo de um peito roto.
Sugestões de infinito zarpando de um umbigo até o mar aberto do desejo. A cais do adeus. A
parda cabeleira do mamilo, sinfonia de seios e formas. O vão profundo do desejo secreto.
Glúteos em terceira dimensão iluminam a paisagem. Mão e mamilo sugerem uma estranha
guloseima. Como um livro de carne estremecida. Trânsito infinito da mulher e do livro. Eis aí a árvore
mão-corpo e a lúbrica envoltura da maçã intrusa, deliciosa e cremosa sensação de suculências.
Suspiros, creme e corpo, composição estrutural repleta de sugestões eróticas, no fundo da caverna
brilha a luz.
Combate da harpa e da mulher. A obscura execução musical brota entre as pernas. O oco que
sugere que a mulher é o mundo. Paisagem sensual. O álcool e o sexo simulam um entardecer erótico na
embriaguez da carne, como uma torrente de creme sobre a pele. O arco do desejo se sente tocar. A mão
entre a pele com avelórios. Seu pé como um relâmpago de seda. O pé do labirinto entre as águas.
Como se esfuma uma mulher em uma paisagem.
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A cálida possessão de um seio na janela azul. A porta da vida até outro mundo. Alegoria do
prazer. As colunas que sustentam o mundo.
A estranha árvore viva no meio da praia e a estrada do desejo que se interna nos sonhos.
Caminho maravilhoso que leva a parte alguma.
Às vezes a carne do desejo se evidencia no claustro ou no cárcere. Nunca saberemos o que vimos
por entre as grades. Seres estranhos decorando a pele, os mistérios da carne e o soluço, porque os
mistérios às vezes iluminam.
Nadando entre brumas de imediato a pele se enche de gotas de mel.
Quando se esfumam as imagens uma mulher se perdeu entre as luzes.
As conjunções são eternas como a rota da morte na escuridão. O amor é um fóssil soluçante.
O mamilo dos pesadelos e os sonhos também semelham as baratas do desejo.
Surrealismo de lei em um bosque de vida. A caveira nem sempre significa morte se uma íbis
resplandece sobre a noite das pernas transitando sobre as origens do mundo e outro pássaro contrasta
com o repouso do corpo. Os pássaros amam a primavera.
O tigre e a zebra não andam longe da mulher. Às vezes se atinge o mistério plenamente. O urso
das pradarias fareja entre as coxas o vapor do desejo bebendo a água da angústia.
A luz estala entre umbigos e sombras. O rio sombrio do delírio. A misteriosa travessia da morte.
Estranha composição profundamente surrealista. Que até ali cheguem as pernas.
Os pés se enredam no círculo. Um pé perdido e recobrado.
As barbas do patriarca que deseja. No poço mais fundo disputam Braque e Rembrandt.
A terra do musgo se ergue quando Afrodite ressurge do mar feita unicamente de sexo e a névoa
do crepúsculo abarca o ventre. Grafitos deleitando o triângulo em ruínas. Enorme sensação.
Os três caracóis sagrados e a mão que roça o mamilo emergente. Da noite emerge o dia como um
cão fiel.
Mão entre pedras. A mão se arma. Afrodite está perdida saudando desde as águas. Uma viagem
impossível porque o mamilo espreita as ruínas do amor. A bandeira e o escudo do amor: fantasia
triangular. A janela do desejo. Equilíbrio do sonho enterrado e a mão sigilosa. Eclosão e luzes e cores
do paraíso como pássaros multicores. Fantasia desnuda.
Manuel Mora Serrano (República Dominicana, 1933). Poeta, narrador e ensaísta. Autor de uma
Historia de Literatura Dominicana y Americana. Trabalhou em 2008 no Ministério da Cultura como
conferencista e compareceu a eventos em diversos lugares do país e do exterior, como Porto Rico e
Estados Unidos. Atualmente mantém um contrato com esse ministério para a conclusão de pesquisas,
dentre elas uma história dos movimentos de vanguarda. Tradução de Floriano Martins. Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista
convidado desta edição de ARC.
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