RAÇA E RACISMO EM DÉSIRÉE`S BABY (1893), DE KATE

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RAÇA E RACISMO EM DÉSIRÉE`S BABY (1893), DE KATE
RAÇA E RACISMO EM DÉSIRÉE’S BABY (1893), DE KATE CHOPIN
Me Ana Paula de Castro Sierakowski (UNICENTRO/I)
Resumo: A questão da raça e do racismo são conceitos muito estudados nas teorias póscoloniais pelo fato de ser a cor dérmica um dos fatores determinantes no que se refere à
hierarquização das raças, à disputa de poder, à outremização/alteridade. Nesse artigo,
então, explorar-se-á, sob o olhar da teoria pós-colonial, as noções de raça e racismo,
algumas das questões que esses dois conceitos implicam (a outremização, a
mestiçagem), bem como alguns conceitos da teoria feminista que serão, assim,
aplicados no conto Désirée‟s Baby (1893), um dos contos mais famosos da escritora
estadunidense Kate Chopin que foi publicado na coletânea de contos Bayou Folk, de
1894. Para tanto, foram utilizados os estudos de Ashcroft, Bhabha, Bonnici, entre
outros.
Palavras-chave: raça; racismo; Désirée‟s baby; Kate Chopin.
Abstract: Race and racism are concepts studied in postcolonial theories once the dermal
color is a determining factor regarding to the hierarchy of races, the power struggle, the
othering/otherness. In this article, it will be explored, through the perspective of
postcolonial theory, the notions of race and racism, some of the issues that these two
concepts imply (the othering, miscegenation) and some concepts of feminist theory
applied to the short story Désirée's Baby (1893), one of the most famous short stories by
Kate Chopin, which was published in the collection Bayou Folk, in 1894. To
accomplish this purpose it was used the studies by Ashcroft, Bhabha, Bonnici, among
others.
Keywords: race; racism; Désirée's baby; Kate Chopin.
1 Introdução
Os pressupostos da teoria pós-colonial - no que se refere à literatura -, surgidos a
partir do século XX, nos mostram as literaturas produzidas em decorrência da
experiência da colonização, ilustrando o poder centralizador advindo das metrópoles
colonizadoras em relação aos países colonizados e, assim, demonstrando o conflito de
poderes, diferenças e crenças entre esses dois polos.
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Dessa forma, existem vários conceitos estudados por essa vertente teórica, como
alteridade,
subjetividade,
a
dicotomia
Outro/outro,
diáspora,
transculturação,
hibridismo, mestiçagem, raça e racismo entre outros; todos relacionados ao conflito
entre colonizador e colonizado. Autores como Fanon, Said, Spivak, Bhabha, compõem
o rol dos teóricos fundamentais do pós-colonialismo.
Nesse artigo, então, explorar-se-á, sob o prisma da teoria pós-colonial, as noções de
raça e racismo, algumas das questões que esses dois conceitos implicam (a
outremização, a mestiçagem) e alguns conceitos da teoria feminista que serão, assim,
aplicados no conto Désirée‟s Baby (1893), da escritora estadunidense Kate Chopin.
Désirée‟s Baby é um de seus contos mais famosos, que foi publicado primeiramente na
revista Vogue e depois incorporado na coletânea de contos Bayou Folk, de 1894. Tal
conto foi escolhido porque traz consigo preceitos da teoria feminista e também da póscolonial, teorias estas que muito tem em comum.
A escritora estadunidense Katherine O‟Flaherty Chopin nasceu em 1850 e morreu
em 1904; era filha de um pai irlandês e uma mãe francesa crioula. Ficou viúva em 1882
com seis filhos para criar sozinha. Chopin apenas começa a escrever nos anos de 1880.
Um de seus romances mais famosos, The Awakening, publicado em 1899 recebeu
reconhecimento apenas após sua morte, pois na época de sua publicação foi considerado
escandaloso e mórbido. Por seu trabalho ter sido negligenciado, a crítica literária
feminista voltou seus olhos para seus escritos a partir de 1950 (BONNICI, 2004, p.48).
Apesar de ter morado por um pequeno período no estado de Louisiana, Chopin foca-se
na cultura desse lugar em vários de seus trabalhos, inclusive no conto aqui selecionado.
A Louisiana, estado situado no sul dos Estados Unidos, foi um estado, como os
outros do sul, que se desenvolveu, principalmente, por meio da agricultura e do sistema
escravagista. É uma região multicultural (franceses, espanhóis, afro-americanos, etc), e,
desde o século XIX é considerado o segundo estado a conter o maior número de negros
em sua população. Isso tudo deve ser considerado aqui, pela importância da
ambientação do conto em questão, que trata, claramente, da influência e do
funcionamento do sistema escravagista e o que se torna decorrente desse sistema, ou
seja, as questões já mencionadas anteriormente: raça e racismo.
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2 Raça e racismo
O conceito de raça foi primeiramente usado no início do século XIX pelo estudioso
Georges Cuvier, inaugurando assim a ideia da existência de heranças físicas
permanentes entre os muitos grupos humanos (SCHWARCZ, 1993, p.47). Para Telles
(2003, p.301) “raça é uma ideia e não um fato biológico”. Da mesma forma que o
Orientalismo é colocado como uma invenção do Oriente pelo Ocidente (SAID, 1990), o
conceito de raça para Telles também é uma criação. Dessa forma, hierarquizaram-se as
raças, colocando-as no binarismo de superior/inferior e que, nesse sentido, a raça branca
seria superior à negra.
O termo raça é usado, segundo Ashcroft et al (1998), para a classificação física,
biológica e genética dos seres humanos de grupos distintos. A noção que esse termo
traz, primeiramente, é de que a humanidade é dividida em tipos genuínos, reconhecíveis
por características físicas transmitidas “pelo sangue” permitindo-se inferir que raças
podem ser puras ou misturadas. Acrescentando-se a isso, registra o autor, o termo
carrega consigo o sentido de que os comportamentos moral, mental e, também, a
personalidade individual dos seres humanos, as ideias e a capacidade, podem ser
relacionadas à origem racial. Apesar dessa aplicação científica, o termo raça tem sido
relacionado, muitas vezes, ao sentido mais simples da variação humana – a diferença de
cor (ASHCROFT et al, 1998, p.200; nossa tradução).
Além disso, o conceito de raça é especialmente pertinente para o crescimento do
colonialismo, uma vez que a hierarquização, ou seja, a divisão dos homens em raças,
justificaria a necessidade de se estabelecer o poder de dominação aos povos subjugados
e ao imperialismo. O pensamento de raça e o colonialismo estão imbuídos do mesmo
sentido binário entre “civilizado” e “primitivo” e trazem a mesma necessidade
hierarquizante (ASHCROFT et al, 1998, p.198). Dessa maneira, a ideia de Telles, de
que raça é uma criação, é cabível nesse sentido; mesmo que essa ideia não tenha sido
inventada pelo imperialismo, como discorre Ashcroft, ela foi facilmente incorporada
como um argumento plausível de uso.
Racismo, de acordo Ashcroft et al. (1998), é uma maneira de pensar que considera as
características físicas imutáveis de um grupo humano a ser ligada de maneira direta às
características psicológicas ou intelectuais e que, dessa forma, distingue-se esses grupos
entre superior e inferior. Racismo seria um construto ideológico baseado em interesses
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de dominação. Sob a ótica desse autor, se não houvesse o desejo de hierarquia pelos
grupos ditos dominantes, o racismo não existiria. Ele acrescenta ainda que raça, e
adicionamos também o racismo, é mais uma fabricação cultural do que um fenômeno
biológico; é um produto de um processo histórico, não uma determinação genética de
diferenças físicas (ASHCROFT et al., 1998, p.200; nossa tradução), diferenças essas
construídas, mantidas e muitas vezes legitimadas pelo inconsciente coletivo das
sociedades.
Isso também ocorre e pode ser correlato nos estudos feministas da dominação
masculina feitos por Bourdieu, em que vemos a separação entre sexos, entre masculino
e feminino, em que o homem sempre é dominante em relação à mulher. Os esquemas de
pensamento da dominação masculina (e pensamos também na dominação do
colonizador branco com relação ao colonizado negro, índio, etc) mostram as diferenças
inscritas entre os sexos (entre as raças, no caso) que contribuem para a manutenção do
patriarcado (colonialismo) e, dessa forma, “naturalizam”, transformam o que é
arbitrário, paradoxal, em algo dito comum, e tudo isso é sempre confirmado pelo curso
do mundo (BOURDIEU, 2005, p.17).
Percebemos, nesse sentido, a estreita relação entre os estudos pós-coloniais e as
teorias feministas, em que os discursos hierarquizantes que colocam um como
dominador e outro como dominado estão de certa forma tão arraigados na sociedade
que, muitas vezes, são tidos como „normais‟, „naturais‟.
Vejamos, então, de que maneira raça e racismo estão presentes no conto Désirée‟s
baby (1893), de Kate Chopin. Tais elementos serão demonstrados por meio das ações e
da relação entre os dois protagonistas da história: Désirée e Armand.
3 O binarismo branco x negro
“Out in the still fields the negroes were picking cotton”1
Désirée‟s baby, conto escrito em 1893, narra a história de Désirée e Armand. Désirée
cresceu em uma família adotiva, pois foi encontrada abandonada quando criança. Dessa
forma, seu passado, sua descendência nunca foi sabida. Casou-se com Armand
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“Lá fora nos campos imóveis os negros colhiam algodão” (CHOPIN, 1893, p.8).
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Aubigny, um fazendeiro de sucesso de Louisiana. No entanto, depois do nascimento do
filho, ao passo que ele cresce, Armand nota algumas características afro-americanas na
criança e, a partir daí, todo o conflito se desenvolve. Uma vez que Désirée tem sua
origem desconhecida, Armand, sendo um grande escravagista (e racista), coloca a
“culpa” na esposa pelo filho do casal ser negro. Désirée, então, vai embora da fazenda
em que morou com o marido. Ao fim, quando Armand coloca fogo em todas as coisas
de sua esposa e seu filho, encontra uma carta de sua mãe, endereçada a seu pai, que
contém a grande ironia do conto: na verdade, Armand era quem tinha descendência
negra.
Narrado em terceira pessoa, depois de descrever como Désirée adentrou na família
que a adotou, os Valmondé, o narrador nos descreve então como Armand Albigny a
conheceu e como se apaixonou “como que atingido por um tiro de pistola” (CHOPIN,
1893, p.5; nossa tradução2). Ao ficarem noivos, Armand é alertado sobre a incerteza da
origem da menina, mas ele não se importa, já que dará a sua esposa um sobrenome
tradicional e importante:
“O senhor Valmondé era prático e gostava das coisas bem explicadas:
que é, a origem obscura da garota. Armand olhou dentro de seus olhos
e não se importou. Ele foi lembrado que ela não tinha sobrenome. O
que importava um sobrenome quando ele poderia dar a ela o mais
antigo e cheio de orgulho de Louisiana?” (CHOPIN, 1893, p.5; nossa
tradução).
Percebemos nesse excerto a importância que é dada a um nome que carregará a
descendência de uma família. Armand tem orgulho do sobrenome que carrega e não se
importa com a falta de origem da futura esposa, uma vez que a ela será dado seu
sobrenome. O importante é ela possuir o sobrenome do marido, como se ela fosse um
objeto, uma posse dele. Além disso, no decorrer da narrativa, Désirée diz que sabe que
Armand ficou extremamente feliz por ter tido um filho homem, aquele que levaria sua
descendência adiante (diferentemente de uma filha mulher). Por esse motivo, Armand,
em alguns episódios, passa a se comportar com menos severidade e violência em
relação aos escravos, como pode ser observado na seguinte passagem:
2
A tradução dos excertos do conto é de nossa responsabilidade.
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“Ele [Armand] não puniu nenhum deles [dos escravos] – nenhum
sequer – desde que o bebê nasceu. Nem Negrilon, que fingiu ter
queimado sua perna para poder descansar do trabalho – ele apenas riu,
e disse que Negrillon era um grande malandro” (CHOPIN, 1893, p.6;
grifo nosso).
Armand, depois do casamento e do nascimento de seu filho, havia amenizado sua
personalidade, descrita como imperiosa. Porém, quando o bebê tem mais ou menos três
meses de idade, Armand começa a notar uma diferença em seu filho, fato que sua sogra
percebeu já no momento em que conhece a criança. Quando Armand percebe, então,
essa diferença, ele negligencia e esposa e o filho:
“Ele se ausentou de casa; e quando estava lá, evitava a presença dela
ou de seu filho, sem desculpas. E cada espírito de Satã parecia ter
incorporado nele de repente quando ele lidava com os escravos.
Désirée estava tão triste a ponto de morrer” (CHOPIN, 1893, p.6).
O protagonista desconta sua raiva nos escravos por perceber a „diferença‟ que o filho
tem em relação aos pais. Enquanto a criança cresce, ele percebe que o menino tem
traços negros e, então, a “falta de origem” de sua esposa vem à tona. Por não saberem
acerca de seus antepassados, Armand a “culpabiliza” pela descendência negra do filho.
Désirée, sem entender o que está acontecendo, questiona o marido:
“Olhe para nosso filho. O que isso significa? Me diga”. (...)
“Me diga o que isso significa!” Choramingou ela desesperadamente.
“Isso significa,” ele respondeu calmamente, “que a criança não é
branca, isso significa que você não é branca” (CHOPIN, 1893, p.7).
Désirée está perdida, de certa forma. Ela não consegue entender ainda o que está
acontecendo. Ela não sabe de suas origens, mas se vê e se sente branca. Assim, ela, de
certo modo, resiste (e enfrenta Armand – a representação do poder patriarcal) às
acusações de seu marido. Para tanto, tenta refutar essa ideia, mostrando que não é negra
por meio da listagem de suas características físicas:
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“Um rápido entendimento de toda aquela acusação significou para ela,
a enervou com uma coragem rara para negá-la. “Isso é uma mentira;
isso não é verdade, eu sou branca! Olhe para meu cabelo, é castanho;
e meus olhos são azulados, Armand, você sabe que eles são azulados.
E a minha pele é clara”, disse agarrando os pulsos dele. ”Olhe para as
minhas mãos; mais brancas que as suas, Armand”, ela riu
histericamente.
“És tão branca quanto La Blanche”, ele respondeu cruelmente; e saiu
deixando-a sozinha com o filho deles” (CHOPIN, 1893, p.7).
Segundo Ashcroft, “a construção do binário Outro-outro e a fabricação da alteridade
foram estratégias primordiais para a inferiorização do nativo (...)” (ASHCROFT et al.,
1998; 170 apud BONNICI, 2000; p.54). O Outro corresponde ao desejo de poder em
relação a um sujeito que é produzido, ao passo que o outro é o excluído, ou o sujeito
criado pelo discurso de poder. A outremização seria as várias formas em que o discurso
colonial produz o sujeito dominado (ASHCROFT, 1998, p. 171; nossa tradução).
Armand, nesse momento, outremiza Désirée, ou seja, torna o antes considerado Outro
(com maiúscula) em outro (com minúscula). A partir da mera cogitação de que ela é
descendente de negros, ele se põe na posição de “colonizador” de Outro, isto é, daquele
que detém o poder para torná-la diferente, inferior, merecedora de ser ignorada – o
outro. Além disso, sarcasticamente, compara-a com a escrava La Blanche, que
inferimos ser, na verdade, mulata, pois seu filho é descrito como um “quadroon boy”,
isto significa que um de seus pais é branco e o outro é mulato. Mesmo sendo mulata,
para Armand, La Blanche tem sangue negro, assim como sua esposa.
Armand sente-se branco, porta-se como banco e, dessa forma, domina quem ele
pensa ser negro – sua esposa, no caso. Mas ele só faz isso a partir do momento que vê
seu filho, que carrega em si características consideradas negras. Até esse momento, por
sua mulher ter a pele branca, ele não desconfiava de sua origem. A outremização de
Désirée acontece a partir desse momento. É pela diferença que se identifica o outro, o
outro negativo. Segundo Figueiredo (1998, p.64), “o negro, como o colonizador, é criação
da Europa. Antes de ter contato com o branco, o colonizado/o negro não se sente inferior a
nenhuma outra raça”.
Isso ocorre de forma parecida com Désirée e seu filho. Ela apenas percebe o motivo
da raiva do marido a partir do momento que ela vê seu filho perto de um menino negro;
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só assim ela percebe a semelhança entre os dois. Antes ela não via a diferença entre o
filho e eles – os pais. É o que ocorre na fala de Figueiredo (1998): o negro não se sentia
diferente; isso só aconteceu a partir do momento em que o branco apareceu e o colocou
como diferente e inferior. Désirée também não percebe que seu filho é diferente.
Enquanto não havia o ponto de comparação, seu filho era igual a todos da família, mas
quando ela compara com o menino escravo, ela percebe a diferença. Sem contar que ela
não via diferença alguma em si mesma. Achava-se igual ao marido.
Para Bhabha (1991, p.198), “a pele, como significante da discriminação, deve ser
produzida ou processada como visível”, pois é pela visibilidade da diferença que se
impõe a hierarquia. Sob o ponto de vista de Abbott,
[...] a discriminação precisa incluir as suas representações no
consciente para reforçar o reconhecimento crucial da diferença
que encarnam e revigorá-las para a percepção da qual depende a
sua eficácia. (...) A discriminação deve apoiar-se na presença
dessa diferença que é também o seu objeto (ABBOTT, 1979,
p.15,16 apud BHABHA, 1991, p.198).
Désirée não possuía essa diferença visível e, por isso, era tratada como igual por seu
marido. A partir do momento que essa diferença vem à tona por meio da cor da pele do
filho dos dois, a discriminação ocorre. Todo o construto colonial embutido em Armand,
que só era dirigido aos escravos de sua fazenda, é transferido agora a sua esposa e seu
filho, sendo, assim, expulsos da fazenda e considerados indignos de conviver com ele.
A diferença do sujeito discriminado (seu filho e, por conseguinte, sua esposa) se torna
instantânea, visível e natural; é “a cor como sinal cultural/político da inferioridade e da
degeneração, a pele como sua „identidade‟ natural” (ABBOTT, 1979, p.16 apud
BHABHA, 1991, p.198).
Toda a construção de que o branco é superior às outras raças é incorporada por
Armand no tratamento com Désirée – que era vista anteriormente como sua igual em
relação à descendência. Armand tratava mal os outros negros, ele se sentia o superior no
que se refere à esfera dos escravos. No que concerne ao seu tratamento como marido,
percebemos a dominação patriarcal, do homem/marido como superior. Podemos aqui
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inferir a dupla colonização da mulher – colonizada como mulher e como negra. Para
Bonnici,
[...] há estreita relação entre os estudos pós-coloniais e o feminismo.
Em primeiro lugar, há uma analogia entre patriarcalismo/feminismo e
metrópole/colônia ou colonizador/colonizado. „Uma mulher da
colônia é uma metáfora da mulher como colônia‟ (DU PLESSIS,
1985, p.46). Em segundo lugar, se o homem foi colonizado, a mulher,
nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada (BONNICI,
2005, p.231).
No conto, percebemos essa colonização/dominação de Désirée quando ela é
considerada por seu marido como negra, como já vimos, e em todo discurso do narrador
que constrói o comportamento da protagonista em relação a seu marido. Ela tem medo
dele; ela não ousa perguntar o que o entristece ou o alegra; ela não o desafia. Só faz isso
quando é “acusada” de uma coisa que ela acredita não ser: negra. É uma tentativa de
resistência ao poder patriarcal uma vez imposta. No entanto, esse é o único suspiro de
tentativa de resistência ao sistema patriarcal por parte de Désirée que encontramos no
conto. Ela não subverte outros valores a ela impostos anteriormente; ela os aceita; é
submissa ao marido. Désirée, obedecendo o que lhe é imposto, apenas reproduz os
ditames do sistema patriarcal, reduplica esses ditames. É a manutenção desse poder por
meio da voz/ação feminina (esse discurso/ações são vistas como naturais, pois já estão
arraigadas na vida das mulheres (BOURDIEU; WELZER-LANG); elas apenas
reproduzem o que foram ensinadas).
Percebemos também nisso, a imagem negativa construída do negro. Désirée só
resiste de alguma forma a dominação que tem sobre ela, no que se refere a dizer que ela
é de uma raça que acredita não ser. Ela não quer ser negra, não quer se sentir negra, pois
o negro é tratado como inferior, como o outro negativo, como o escravo. Enquanto
mulher, ela nunca discute nem enfrenta os ditames da dominação masculina.
O negro tinha uma imagem negativa construída por seus dominantes: era o
estuprador, o forte, o sexualizado, o demoníaco, o primitivo, o escravo, o
marginalizado. Estereótipos que ninguém queria ser encaixado. Muito menos Désirée.
Ela se sente perdida em sua identidade, não sabe muito bem o que é no momento. É de
tal forma objetificada que quer ser o Outro, aquele que tem uma imagem positiva,
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superior, evoluída. Como diria Figueiredo (1998, p.64) “toda a crise identitária surge da
negação dos valores humanos e culturais impostos pela colonização”.
Depois disso, então, a protagonista sem saber muito bem o que fazer, escreve uma
carta à sua mãe onde confessa seu medo de ser negra, justamente pela carga negativa
que isso implica:
“Minha mãe, eles me dizem que não sou branca. Armand me disse que
não sou branca. Pelo amor de Deus, diga-me que isso não é verdade.
Você deve saber que isso não é verdade. Eu vou morrer. Eu devo
morrer. Eu não posso ser tão infeliz e viver” (CHOPIN, 1893, p.7).
Para conseguir aceitação de seu marido e da própria sociedade (considerando a
sociedade escravista que vivia - sul dos Estados Unidos), ela sente que tem de ser
branca. Ela não pode conviver acreditando que não o é. Em seguida, recebe a resposta
de sua mãe, convidando-a a voltar para morar consigo. Désirée vai embora da fazenda,
mas antes, pergunta ao marido se é isso mesmo que ele deseja; diante da resposta
afirmativa de Armand, ela se vai para nunca mais voltar. Não há luta; não há
enfrentamento. Ela apenas faz o que o marido quer e se vai. É dominada duas vezes;
expulsa da vida de Armand por ele acreditar que ela é negra e é obediente ao ponto de
fazer o que Armand quer.
Nesse ponto da narrativa, Armand queima, em uma grande fogueira, tudo que antes
havia pertencido à sua esposa e filho; encontra, então, em uma gaveta dos móveis que
seriam queimados, um maço de cartas que Désirée havia mandado para ele enquanto
eram noivos; no meio delas, encontra também uma carta de sua mãe, destinada a seu
pai, agradecendo a Deus pelo bom marido que tinha e por outra motivo, que era:
“Acima de tudo”, ela escrevera, “dia e noite, eu agradeço a Deus por
ter nossas vidas tão acertadas que nosso querido Armand nunca saberá
que sua mãe, que o ama, pertence à raça que é amaldiçoada pela marca
da escravidão” (CHOPIN, 1893, p.8).
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É Armand o descendente de negros, raça que tanto repudiava, diferentemente de seu
pai, que é descrito no conto como aquele que era indulgente e maleável com os negros,
tanto que casou-se com uma deles.
Por conseguinte, explica-se, também, a colocação da epígrafe nesse subtítulo. “Lá
fora nos campos imóveis os negros colhiam algodão” (CHOPIN, 1893, p.8). É o
binarismo branco-negro explícito no excerto. Enquanto os brancos estão na casa – no
centro –, os negros estão lá fora, nos campos imóveis de algodão – à margem. Mas, ao
mesmo tempo que estão à margem, eles também estão misturados à brancura do
algodão. Ou, como uma possível interpretação de uma metáfora do conto como um
todo, estão misturados aos brancos. Essa é a miscigenação, o hibridismo das raças. Ou
também, nas palavras de Abdala Jr, “o mundo se criouliza. Isto é, torna-se cada vez
mais mestiço, mesclado, abrindo-se cada vez mais sem preconceitos para a mistura, para
a consideração das formulações híbridas” (ABADALA Jr, 2004, p. 18). Armand, não
está aberto para esse hibridismo racial, tanto que nega sua esposa e filho, mas, ao final,
deixa-nos a imaginar sobre o momento de sua luta interior ao saber que era ele, na
verdade, o descendente da raça que ele tanto odiou. Era ele, como diz Abdala Jr (2004,
p.19), o híbrido que se imagina „puro‟.
4 Conclusão
Percebemos nesse conto o grande binarismo branco-negro. O branco/claro circunda
Désirré em toda narrativa, ao passo que o preto/escuro rodeia Armand. É a simbologia
das cores cerceando os personagens e guiando o leitor para o desfecho da intriga. A
questão da raça é desenvolvida por meio, principalmente, da mistura delas. É pela
miscigenação ou hibridismo que o conflito vai se mostrar. Aparentemente, Armand e
Désirée são brancos e, dessa forma, tudo corre bem. Ao presumir que sua esposa
descende dos negros, Armand a descrimina, a outremiza, a torna uma pessoa não
merecedora de seu amor. Ignora tudo que havia passado com a esposa, tudo que havia
sentido por ela, por achar que ela é de outra raça.
É no fruto, no filho dos dois, que a questão da raça vai se mostrar – explicitada pelo
título “Désirée‟s baby” (O bebê de Désirée). É por meio da descendência que tudo se
revela. E descendência, para Armand é um fator crucial. Mas é justamente nesse fato
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que se encontra a ironia. Ao final do conto, o protagonista descobre que, na verdade,
quem descende dos negros é ele. Ele é parte negro por descendência de sua mãe, quem
escondia esse segredo revelado em uma carta. O conto, assim, acaba na agonia de
Armand descobrindo isso.
Como diz Telles (2003), raça é um conceito criado. É uma ideia articulada de forma
a se hierarquizar um dominante e um dominado. É uma forma de se instituir poderes.
Imbuído de todo discurso de poder colonial, Armand se porta como o colonizador,
rejeitando a esposa e o filho pelo motivo da descendência negra, que na verdade, é a
dele. É a ironia dos fatos desvendando a questão da miscigenação e do racismo.
Referências
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