RAÇA E RACISMO EM DÉSIRÉE`S BABY (1893), DE KATE
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RAÇA E RACISMO EM DÉSIRÉE`S BABY (1893), DE KATE
RAÇA E RACISMO EM DÉSIRÉE’S BABY (1893), DE KATE CHOPIN Me Ana Paula de Castro Sierakowski (UNICENTRO/I) Resumo: A questão da raça e do racismo são conceitos muito estudados nas teorias póscoloniais pelo fato de ser a cor dérmica um dos fatores determinantes no que se refere à hierarquização das raças, à disputa de poder, à outremização/alteridade. Nesse artigo, então, explorar-se-á, sob o olhar da teoria pós-colonial, as noções de raça e racismo, algumas das questões que esses dois conceitos implicam (a outremização, a mestiçagem), bem como alguns conceitos da teoria feminista que serão, assim, aplicados no conto Désirée‟s Baby (1893), um dos contos mais famosos da escritora estadunidense Kate Chopin que foi publicado na coletânea de contos Bayou Folk, de 1894. Para tanto, foram utilizados os estudos de Ashcroft, Bhabha, Bonnici, entre outros. Palavras-chave: raça; racismo; Désirée‟s baby; Kate Chopin. Abstract: Race and racism are concepts studied in postcolonial theories once the dermal color is a determining factor regarding to the hierarchy of races, the power struggle, the othering/otherness. In this article, it will be explored, through the perspective of postcolonial theory, the notions of race and racism, some of the issues that these two concepts imply (the othering, miscegenation) and some concepts of feminist theory applied to the short story Désirée's Baby (1893), one of the most famous short stories by Kate Chopin, which was published in the collection Bayou Folk, in 1894. To accomplish this purpose it was used the studies by Ashcroft, Bhabha, Bonnici, among others. Keywords: race; racism; Désirée's baby; Kate Chopin. 1 Introdução Os pressupostos da teoria pós-colonial - no que se refere à literatura -, surgidos a partir do século XX, nos mostram as literaturas produzidas em decorrência da experiência da colonização, ilustrando o poder centralizador advindo das metrópoles colonizadoras em relação aos países colonizados e, assim, demonstrando o conflito de poderes, diferenças e crenças entre esses dois polos. Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 1 Dessa forma, existem vários conceitos estudados por essa vertente teórica, como alteridade, subjetividade, a dicotomia Outro/outro, diáspora, transculturação, hibridismo, mestiçagem, raça e racismo entre outros; todos relacionados ao conflito entre colonizador e colonizado. Autores como Fanon, Said, Spivak, Bhabha, compõem o rol dos teóricos fundamentais do pós-colonialismo. Nesse artigo, então, explorar-se-á, sob o prisma da teoria pós-colonial, as noções de raça e racismo, algumas das questões que esses dois conceitos implicam (a outremização, a mestiçagem) e alguns conceitos da teoria feminista que serão, assim, aplicados no conto Désirée‟s Baby (1893), da escritora estadunidense Kate Chopin. Désirée‟s Baby é um de seus contos mais famosos, que foi publicado primeiramente na revista Vogue e depois incorporado na coletânea de contos Bayou Folk, de 1894. Tal conto foi escolhido porque traz consigo preceitos da teoria feminista e também da póscolonial, teorias estas que muito tem em comum. A escritora estadunidense Katherine O‟Flaherty Chopin nasceu em 1850 e morreu em 1904; era filha de um pai irlandês e uma mãe francesa crioula. Ficou viúva em 1882 com seis filhos para criar sozinha. Chopin apenas começa a escrever nos anos de 1880. Um de seus romances mais famosos, The Awakening, publicado em 1899 recebeu reconhecimento apenas após sua morte, pois na época de sua publicação foi considerado escandaloso e mórbido. Por seu trabalho ter sido negligenciado, a crítica literária feminista voltou seus olhos para seus escritos a partir de 1950 (BONNICI, 2004, p.48). Apesar de ter morado por um pequeno período no estado de Louisiana, Chopin foca-se na cultura desse lugar em vários de seus trabalhos, inclusive no conto aqui selecionado. A Louisiana, estado situado no sul dos Estados Unidos, foi um estado, como os outros do sul, que se desenvolveu, principalmente, por meio da agricultura e do sistema escravagista. É uma região multicultural (franceses, espanhóis, afro-americanos, etc), e, desde o século XIX é considerado o segundo estado a conter o maior número de negros em sua população. Isso tudo deve ser considerado aqui, pela importância da ambientação do conto em questão, que trata, claramente, da influência e do funcionamento do sistema escravagista e o que se torna decorrente desse sistema, ou seja, as questões já mencionadas anteriormente: raça e racismo. Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 2 2 Raça e racismo O conceito de raça foi primeiramente usado no início do século XIX pelo estudioso Georges Cuvier, inaugurando assim a ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os muitos grupos humanos (SCHWARCZ, 1993, p.47). Para Telles (2003, p.301) “raça é uma ideia e não um fato biológico”. Da mesma forma que o Orientalismo é colocado como uma invenção do Oriente pelo Ocidente (SAID, 1990), o conceito de raça para Telles também é uma criação. Dessa forma, hierarquizaram-se as raças, colocando-as no binarismo de superior/inferior e que, nesse sentido, a raça branca seria superior à negra. O termo raça é usado, segundo Ashcroft et al (1998), para a classificação física, biológica e genética dos seres humanos de grupos distintos. A noção que esse termo traz, primeiramente, é de que a humanidade é dividida em tipos genuínos, reconhecíveis por características físicas transmitidas “pelo sangue” permitindo-se inferir que raças podem ser puras ou misturadas. Acrescentando-se a isso, registra o autor, o termo carrega consigo o sentido de que os comportamentos moral, mental e, também, a personalidade individual dos seres humanos, as ideias e a capacidade, podem ser relacionadas à origem racial. Apesar dessa aplicação científica, o termo raça tem sido relacionado, muitas vezes, ao sentido mais simples da variação humana – a diferença de cor (ASHCROFT et al, 1998, p.200; nossa tradução). Além disso, o conceito de raça é especialmente pertinente para o crescimento do colonialismo, uma vez que a hierarquização, ou seja, a divisão dos homens em raças, justificaria a necessidade de se estabelecer o poder de dominação aos povos subjugados e ao imperialismo. O pensamento de raça e o colonialismo estão imbuídos do mesmo sentido binário entre “civilizado” e “primitivo” e trazem a mesma necessidade hierarquizante (ASHCROFT et al, 1998, p.198). Dessa maneira, a ideia de Telles, de que raça é uma criação, é cabível nesse sentido; mesmo que essa ideia não tenha sido inventada pelo imperialismo, como discorre Ashcroft, ela foi facilmente incorporada como um argumento plausível de uso. Racismo, de acordo Ashcroft et al. (1998), é uma maneira de pensar que considera as características físicas imutáveis de um grupo humano a ser ligada de maneira direta às características psicológicas ou intelectuais e que, dessa forma, distingue-se esses grupos entre superior e inferior. Racismo seria um construto ideológico baseado em interesses Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 3 de dominação. Sob a ótica desse autor, se não houvesse o desejo de hierarquia pelos grupos ditos dominantes, o racismo não existiria. Ele acrescenta ainda que raça, e adicionamos também o racismo, é mais uma fabricação cultural do que um fenômeno biológico; é um produto de um processo histórico, não uma determinação genética de diferenças físicas (ASHCROFT et al., 1998, p.200; nossa tradução), diferenças essas construídas, mantidas e muitas vezes legitimadas pelo inconsciente coletivo das sociedades. Isso também ocorre e pode ser correlato nos estudos feministas da dominação masculina feitos por Bourdieu, em que vemos a separação entre sexos, entre masculino e feminino, em que o homem sempre é dominante em relação à mulher. Os esquemas de pensamento da dominação masculina (e pensamos também na dominação do colonizador branco com relação ao colonizado negro, índio, etc) mostram as diferenças inscritas entre os sexos (entre as raças, no caso) que contribuem para a manutenção do patriarcado (colonialismo) e, dessa forma, “naturalizam”, transformam o que é arbitrário, paradoxal, em algo dito comum, e tudo isso é sempre confirmado pelo curso do mundo (BOURDIEU, 2005, p.17). Percebemos, nesse sentido, a estreita relação entre os estudos pós-coloniais e as teorias feministas, em que os discursos hierarquizantes que colocam um como dominador e outro como dominado estão de certa forma tão arraigados na sociedade que, muitas vezes, são tidos como „normais‟, „naturais‟. Vejamos, então, de que maneira raça e racismo estão presentes no conto Désirée‟s baby (1893), de Kate Chopin. Tais elementos serão demonstrados por meio das ações e da relação entre os dois protagonistas da história: Désirée e Armand. 3 O binarismo branco x negro “Out in the still fields the negroes were picking cotton”1 Désirée‟s baby, conto escrito em 1893, narra a história de Désirée e Armand. Désirée cresceu em uma família adotiva, pois foi encontrada abandonada quando criança. Dessa forma, seu passado, sua descendência nunca foi sabida. Casou-se com Armand 1 “Lá fora nos campos imóveis os negros colhiam algodão” (CHOPIN, 1893, p.8). Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 4 Aubigny, um fazendeiro de sucesso de Louisiana. No entanto, depois do nascimento do filho, ao passo que ele cresce, Armand nota algumas características afro-americanas na criança e, a partir daí, todo o conflito se desenvolve. Uma vez que Désirée tem sua origem desconhecida, Armand, sendo um grande escravagista (e racista), coloca a “culpa” na esposa pelo filho do casal ser negro. Désirée, então, vai embora da fazenda em que morou com o marido. Ao fim, quando Armand coloca fogo em todas as coisas de sua esposa e seu filho, encontra uma carta de sua mãe, endereçada a seu pai, que contém a grande ironia do conto: na verdade, Armand era quem tinha descendência negra. Narrado em terceira pessoa, depois de descrever como Désirée adentrou na família que a adotou, os Valmondé, o narrador nos descreve então como Armand Albigny a conheceu e como se apaixonou “como que atingido por um tiro de pistola” (CHOPIN, 1893, p.5; nossa tradução2). Ao ficarem noivos, Armand é alertado sobre a incerteza da origem da menina, mas ele não se importa, já que dará a sua esposa um sobrenome tradicional e importante: “O senhor Valmondé era prático e gostava das coisas bem explicadas: que é, a origem obscura da garota. Armand olhou dentro de seus olhos e não se importou. Ele foi lembrado que ela não tinha sobrenome. O que importava um sobrenome quando ele poderia dar a ela o mais antigo e cheio de orgulho de Louisiana?” (CHOPIN, 1893, p.5; nossa tradução). Percebemos nesse excerto a importância que é dada a um nome que carregará a descendência de uma família. Armand tem orgulho do sobrenome que carrega e não se importa com a falta de origem da futura esposa, uma vez que a ela será dado seu sobrenome. O importante é ela possuir o sobrenome do marido, como se ela fosse um objeto, uma posse dele. Além disso, no decorrer da narrativa, Désirée diz que sabe que Armand ficou extremamente feliz por ter tido um filho homem, aquele que levaria sua descendência adiante (diferentemente de uma filha mulher). Por esse motivo, Armand, em alguns episódios, passa a se comportar com menos severidade e violência em relação aos escravos, como pode ser observado na seguinte passagem: 2 A tradução dos excertos do conto é de nossa responsabilidade. Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 5 “Ele [Armand] não puniu nenhum deles [dos escravos] – nenhum sequer – desde que o bebê nasceu. Nem Negrilon, que fingiu ter queimado sua perna para poder descansar do trabalho – ele apenas riu, e disse que Negrillon era um grande malandro” (CHOPIN, 1893, p.6; grifo nosso). Armand, depois do casamento e do nascimento de seu filho, havia amenizado sua personalidade, descrita como imperiosa. Porém, quando o bebê tem mais ou menos três meses de idade, Armand começa a notar uma diferença em seu filho, fato que sua sogra percebeu já no momento em que conhece a criança. Quando Armand percebe, então, essa diferença, ele negligencia e esposa e o filho: “Ele se ausentou de casa; e quando estava lá, evitava a presença dela ou de seu filho, sem desculpas. E cada espírito de Satã parecia ter incorporado nele de repente quando ele lidava com os escravos. Désirée estava tão triste a ponto de morrer” (CHOPIN, 1893, p.6). O protagonista desconta sua raiva nos escravos por perceber a „diferença‟ que o filho tem em relação aos pais. Enquanto a criança cresce, ele percebe que o menino tem traços negros e, então, a “falta de origem” de sua esposa vem à tona. Por não saberem acerca de seus antepassados, Armand a “culpabiliza” pela descendência negra do filho. Désirée, sem entender o que está acontecendo, questiona o marido: “Olhe para nosso filho. O que isso significa? Me diga”. (...) “Me diga o que isso significa!” Choramingou ela desesperadamente. “Isso significa,” ele respondeu calmamente, “que a criança não é branca, isso significa que você não é branca” (CHOPIN, 1893, p.7). Désirée está perdida, de certa forma. Ela não consegue entender ainda o que está acontecendo. Ela não sabe de suas origens, mas se vê e se sente branca. Assim, ela, de certo modo, resiste (e enfrenta Armand – a representação do poder patriarcal) às acusações de seu marido. Para tanto, tenta refutar essa ideia, mostrando que não é negra por meio da listagem de suas características físicas: Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 6 “Um rápido entendimento de toda aquela acusação significou para ela, a enervou com uma coragem rara para negá-la. “Isso é uma mentira; isso não é verdade, eu sou branca! Olhe para meu cabelo, é castanho; e meus olhos são azulados, Armand, você sabe que eles são azulados. E a minha pele é clara”, disse agarrando os pulsos dele. ”Olhe para as minhas mãos; mais brancas que as suas, Armand”, ela riu histericamente. “És tão branca quanto La Blanche”, ele respondeu cruelmente; e saiu deixando-a sozinha com o filho deles” (CHOPIN, 1893, p.7). Segundo Ashcroft, “a construção do binário Outro-outro e a fabricação da alteridade foram estratégias primordiais para a inferiorização do nativo (...)” (ASHCROFT et al., 1998; 170 apud BONNICI, 2000; p.54). O Outro corresponde ao desejo de poder em relação a um sujeito que é produzido, ao passo que o outro é o excluído, ou o sujeito criado pelo discurso de poder. A outremização seria as várias formas em que o discurso colonial produz o sujeito dominado (ASHCROFT, 1998, p. 171; nossa tradução). Armand, nesse momento, outremiza Désirée, ou seja, torna o antes considerado Outro (com maiúscula) em outro (com minúscula). A partir da mera cogitação de que ela é descendente de negros, ele se põe na posição de “colonizador” de Outro, isto é, daquele que detém o poder para torná-la diferente, inferior, merecedora de ser ignorada – o outro. Além disso, sarcasticamente, compara-a com a escrava La Blanche, que inferimos ser, na verdade, mulata, pois seu filho é descrito como um “quadroon boy”, isto significa que um de seus pais é branco e o outro é mulato. Mesmo sendo mulata, para Armand, La Blanche tem sangue negro, assim como sua esposa. Armand sente-se branco, porta-se como banco e, dessa forma, domina quem ele pensa ser negro – sua esposa, no caso. Mas ele só faz isso a partir do momento que vê seu filho, que carrega em si características consideradas negras. Até esse momento, por sua mulher ter a pele branca, ele não desconfiava de sua origem. A outremização de Désirée acontece a partir desse momento. É pela diferença que se identifica o outro, o outro negativo. Segundo Figueiredo (1998, p.64), “o negro, como o colonizador, é criação da Europa. Antes de ter contato com o branco, o colonizado/o negro não se sente inferior a nenhuma outra raça”. Isso ocorre de forma parecida com Désirée e seu filho. Ela apenas percebe o motivo da raiva do marido a partir do momento que ela vê seu filho perto de um menino negro; Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 7 só assim ela percebe a semelhança entre os dois. Antes ela não via a diferença entre o filho e eles – os pais. É o que ocorre na fala de Figueiredo (1998): o negro não se sentia diferente; isso só aconteceu a partir do momento em que o branco apareceu e o colocou como diferente e inferior. Désirée também não percebe que seu filho é diferente. Enquanto não havia o ponto de comparação, seu filho era igual a todos da família, mas quando ela compara com o menino escravo, ela percebe a diferença. Sem contar que ela não via diferença alguma em si mesma. Achava-se igual ao marido. Para Bhabha (1991, p.198), “a pele, como significante da discriminação, deve ser produzida ou processada como visível”, pois é pela visibilidade da diferença que se impõe a hierarquia. Sob o ponto de vista de Abbott, [...] a discriminação precisa incluir as suas representações no consciente para reforçar o reconhecimento crucial da diferença que encarnam e revigorá-las para a percepção da qual depende a sua eficácia. (...) A discriminação deve apoiar-se na presença dessa diferença que é também o seu objeto (ABBOTT, 1979, p.15,16 apud BHABHA, 1991, p.198). Désirée não possuía essa diferença visível e, por isso, era tratada como igual por seu marido. A partir do momento que essa diferença vem à tona por meio da cor da pele do filho dos dois, a discriminação ocorre. Todo o construto colonial embutido em Armand, que só era dirigido aos escravos de sua fazenda, é transferido agora a sua esposa e seu filho, sendo, assim, expulsos da fazenda e considerados indignos de conviver com ele. A diferença do sujeito discriminado (seu filho e, por conseguinte, sua esposa) se torna instantânea, visível e natural; é “a cor como sinal cultural/político da inferioridade e da degeneração, a pele como sua „identidade‟ natural” (ABBOTT, 1979, p.16 apud BHABHA, 1991, p.198). Toda a construção de que o branco é superior às outras raças é incorporada por Armand no tratamento com Désirée – que era vista anteriormente como sua igual em relação à descendência. Armand tratava mal os outros negros, ele se sentia o superior no que se refere à esfera dos escravos. No que concerne ao seu tratamento como marido, percebemos a dominação patriarcal, do homem/marido como superior. Podemos aqui Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 8 inferir a dupla colonização da mulher – colonizada como mulher e como negra. Para Bonnici, [...] há estreita relação entre os estudos pós-coloniais e o feminismo. Em primeiro lugar, há uma analogia entre patriarcalismo/feminismo e metrópole/colônia ou colonizador/colonizado. „Uma mulher da colônia é uma metáfora da mulher como colônia‟ (DU PLESSIS, 1985, p.46). Em segundo lugar, se o homem foi colonizado, a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada (BONNICI, 2005, p.231). No conto, percebemos essa colonização/dominação de Désirée quando ela é considerada por seu marido como negra, como já vimos, e em todo discurso do narrador que constrói o comportamento da protagonista em relação a seu marido. Ela tem medo dele; ela não ousa perguntar o que o entristece ou o alegra; ela não o desafia. Só faz isso quando é “acusada” de uma coisa que ela acredita não ser: negra. É uma tentativa de resistência ao poder patriarcal uma vez imposta. No entanto, esse é o único suspiro de tentativa de resistência ao sistema patriarcal por parte de Désirée que encontramos no conto. Ela não subverte outros valores a ela impostos anteriormente; ela os aceita; é submissa ao marido. Désirée, obedecendo o que lhe é imposto, apenas reproduz os ditames do sistema patriarcal, reduplica esses ditames. É a manutenção desse poder por meio da voz/ação feminina (esse discurso/ações são vistas como naturais, pois já estão arraigadas na vida das mulheres (BOURDIEU; WELZER-LANG); elas apenas reproduzem o que foram ensinadas). Percebemos também nisso, a imagem negativa construída do negro. Désirée só resiste de alguma forma a dominação que tem sobre ela, no que se refere a dizer que ela é de uma raça que acredita não ser. Ela não quer ser negra, não quer se sentir negra, pois o negro é tratado como inferior, como o outro negativo, como o escravo. Enquanto mulher, ela nunca discute nem enfrenta os ditames da dominação masculina. O negro tinha uma imagem negativa construída por seus dominantes: era o estuprador, o forte, o sexualizado, o demoníaco, o primitivo, o escravo, o marginalizado. Estereótipos que ninguém queria ser encaixado. Muito menos Désirée. Ela se sente perdida em sua identidade, não sabe muito bem o que é no momento. É de tal forma objetificada que quer ser o Outro, aquele que tem uma imagem positiva, Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 9 superior, evoluída. Como diria Figueiredo (1998, p.64) “toda a crise identitária surge da negação dos valores humanos e culturais impostos pela colonização”. Depois disso, então, a protagonista sem saber muito bem o que fazer, escreve uma carta à sua mãe onde confessa seu medo de ser negra, justamente pela carga negativa que isso implica: “Minha mãe, eles me dizem que não sou branca. Armand me disse que não sou branca. Pelo amor de Deus, diga-me que isso não é verdade. Você deve saber que isso não é verdade. Eu vou morrer. Eu devo morrer. Eu não posso ser tão infeliz e viver” (CHOPIN, 1893, p.7). Para conseguir aceitação de seu marido e da própria sociedade (considerando a sociedade escravista que vivia - sul dos Estados Unidos), ela sente que tem de ser branca. Ela não pode conviver acreditando que não o é. Em seguida, recebe a resposta de sua mãe, convidando-a a voltar para morar consigo. Désirée vai embora da fazenda, mas antes, pergunta ao marido se é isso mesmo que ele deseja; diante da resposta afirmativa de Armand, ela se vai para nunca mais voltar. Não há luta; não há enfrentamento. Ela apenas faz o que o marido quer e se vai. É dominada duas vezes; expulsa da vida de Armand por ele acreditar que ela é negra e é obediente ao ponto de fazer o que Armand quer. Nesse ponto da narrativa, Armand queima, em uma grande fogueira, tudo que antes havia pertencido à sua esposa e filho; encontra, então, em uma gaveta dos móveis que seriam queimados, um maço de cartas que Désirée havia mandado para ele enquanto eram noivos; no meio delas, encontra também uma carta de sua mãe, destinada a seu pai, agradecendo a Deus pelo bom marido que tinha e por outra motivo, que era: “Acima de tudo”, ela escrevera, “dia e noite, eu agradeço a Deus por ter nossas vidas tão acertadas que nosso querido Armand nunca saberá que sua mãe, que o ama, pertence à raça que é amaldiçoada pela marca da escravidão” (CHOPIN, 1893, p.8). Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 10 É Armand o descendente de negros, raça que tanto repudiava, diferentemente de seu pai, que é descrito no conto como aquele que era indulgente e maleável com os negros, tanto que casou-se com uma deles. Por conseguinte, explica-se, também, a colocação da epígrafe nesse subtítulo. “Lá fora nos campos imóveis os negros colhiam algodão” (CHOPIN, 1893, p.8). É o binarismo branco-negro explícito no excerto. Enquanto os brancos estão na casa – no centro –, os negros estão lá fora, nos campos imóveis de algodão – à margem. Mas, ao mesmo tempo que estão à margem, eles também estão misturados à brancura do algodão. Ou, como uma possível interpretação de uma metáfora do conto como um todo, estão misturados aos brancos. Essa é a miscigenação, o hibridismo das raças. Ou também, nas palavras de Abdala Jr, “o mundo se criouliza. Isto é, torna-se cada vez mais mestiço, mesclado, abrindo-se cada vez mais sem preconceitos para a mistura, para a consideração das formulações híbridas” (ABADALA Jr, 2004, p. 18). Armand, não está aberto para esse hibridismo racial, tanto que nega sua esposa e filho, mas, ao final, deixa-nos a imaginar sobre o momento de sua luta interior ao saber que era ele, na verdade, o descendente da raça que ele tanto odiou. Era ele, como diz Abdala Jr (2004, p.19), o híbrido que se imagina „puro‟. 4 Conclusão Percebemos nesse conto o grande binarismo branco-negro. O branco/claro circunda Désirré em toda narrativa, ao passo que o preto/escuro rodeia Armand. É a simbologia das cores cerceando os personagens e guiando o leitor para o desfecho da intriga. A questão da raça é desenvolvida por meio, principalmente, da mistura delas. É pela miscigenação ou hibridismo que o conflito vai se mostrar. Aparentemente, Armand e Désirée são brancos e, dessa forma, tudo corre bem. Ao presumir que sua esposa descende dos negros, Armand a descrimina, a outremiza, a torna uma pessoa não merecedora de seu amor. Ignora tudo que havia passado com a esposa, tudo que havia sentido por ela, por achar que ela é de outra raça. É no fruto, no filho dos dois, que a questão da raça vai se mostrar – explicitada pelo título “Désirée‟s baby” (O bebê de Désirée). É por meio da descendência que tudo se revela. E descendência, para Armand é um fator crucial. Mas é justamente nesse fato Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 11 que se encontra a ironia. Ao final do conto, o protagonista descobre que, na verdade, quem descende dos negros é ele. Ele é parte negro por descendência de sua mãe, quem escondia esse segredo revelado em uma carta. O conto, assim, acaba na agonia de Armand descobrindo isso. Como diz Telles (2003), raça é um conceito criado. É uma ideia articulada de forma a se hierarquizar um dominante e um dominado. É uma forma de se instituir poderes. Imbuído de todo discurso de poder colonial, Armand se porta como o colonizador, rejeitando a esposa e o filho pelo motivo da descendência negra, que na verdade, é a dele. É a ironia dos fatos desvendando a questão da miscigenação e do racismo. Referências ABDALA Jr, B. Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004. ASHCROFT, B; GRIFFITHS, G; TIFFIN, H. Key Concepts in Post Colonial Studies. London: Routledge, 1998. BHABHA, H.K. A questão do „outro‟: diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. In: HOLLANDA, H.B. (org) Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. BONNICI, T. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: EDUEM, 2000. BONNICI, T. Short Stories: an anthology for undergraduates. 2. ed. Maringá: EDUEM, 2004. BONNICI, T. Teoria e crítica pós-colonialista. In: BONNICI, T. e ZOLIN, L. O. (org). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá: EDUEM, 2005. BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. CHOPIN, K. Désirée‟s baby. 1893. Disponível em: < http://www.enotes.com/desireesbaby-text> Acesso em setembro de 2015. FIGUEIREDO, E. Construção de identidade pós-colonial na literatura antilhana. Niterói: EDUFF, 1998. Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 12 SAID, E.W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SCHWARCZ, L.M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. TELLES, E. Racismo à Brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. WELZER-LANG, D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista de Estudos Feministas: Florianópolis: 2001. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2001000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em 2015. Revista INTERLINGUAGENS 2015 6ed ISSN 2178-955X Página 13
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