Tolerância e inclusão das pessoas com deficiência

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Inclusão e
Diversidade
Tolerância e inclusão das
pessoas com deficiência
Tolerance and inclusion of
handicapped people
Elizabete Cristina Costa-Renders
Assessora pedagógica para a inclusão da pessoa com deficiência na
Universidade Metodista de São Paulo.
Mestre em Ciências da Religião, com pesquisa em educação e religião e
doutoranda em Educação.
R e s u m o
O presente artigo indaga pelo exercício da tolerância na sociedade contemporânea, tendo como foco o
necessário respeito pelas maneiras de as pessoas com deficiência (física, sensorial ou cognitiva) exprimirem sua
qualidade de seres humanos. Entende-se que os conceitos propostos pelo paradigma da inclusão (incapacidade
compartilhada e acessibilidade), bem como o entendimento da vulnerabilidade como condição antropológica
absoluta, serão eixos relevantes na educação na e para a tolerância.
Unitermos: tolerância; pessoas com deficiência; educação; acessibilidade; vulnerabilidade.
S y n o p s i s
The present article questions the practice of tolerance in contemporary society, focusing on the necessary respect
for the ways handicapped people (physically, sensorially or cognitively) express their quality as human beings.
It is understood that the concepts proposed by the paradigm of inclusion (shared incapacity and accessibility),
as well as the understanding of vulnerability as an absolute anthropological condition, will be relevant axes when
educating in and for tolerance.
Terms: tolerance; handicapped people; education; accessibility; vulnerability.
R e s u m e n
El presente articulo indaga por el ejercicio de la tolerancia en la sociedad contemporánea, teniendo como foco
el necesario respeto por los modo de las personas con deficiencia (física, sensorial o cognitiva) exprimieren su
cualidad de seres humanos. Entiende-se que los conceptos propuestos por el paradigma de la inclusión
(incapacidad compartida y accesibilidad), bien como el entendimiento de la vulnerabilidad como condición
antropológica absoluta, serán los ejes relevantes en la educación en la y para la tolerancia.
Términos: tolerancia; personas con deficiencia; educación; accesibilidad; vulnerabilidad.
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Somos todos diferentes, contudo,
quando se trata
de deficiências físicas, sensoriais
ou cognitivas, o
extremamente diferente nos assusta e inibe
As objetivações e
estigmatizações
acabam alimentando círculos de intolerância bastante
presentes na história social das pessoas com
deficiência
Círculos de Intolerância
Começaria a trabalhar na área
de meu interesse e com um
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emprego garantido. Os primeiros seis meses foram um horror. Eu já desconfiava que as
pessoas estranhariam alguma
coisa, mas não pensei que fossem tão elitizadas, egoístas e
preconceituosas em relação às
pessoas que portam algum tipo
de deficiência física. É incrível
como existem “humanos” que
não aceitam que as pessoas
aparentemente desiguais, com
defeitos físicos, ocupem o mesmo espaço que eles.
(Anailda, estudante
com hidrocefalia)
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ignorância, o preconceito, a
estigmatização e a objetivação ainda dominam grande parte
das respostas da sociedade às
deficiências. Parece que a sociedade tem problemas em lidar
com a diversidade, sendo que
esta diferença (deficiência) acabou diluída ou estigmatizada pejorativamente. Somos todos diferentes, contudo, quando se trata
de deficiências físicas, sensoriais
ou cognitivas, o extremamente
diferente nos assusta e inibe. Talvez porque a transversalidade da
deficiência toque diretamente em
nossa comum vulnerabilidade ou
porque nos acostumamos a ver a
vida a partir de categorias
cartesianas – em que apenas valem certezas e classificações.
Se entendermos que a tolerância “é respeito, aceitação e o
apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de
exprimir nossa qualidade de seres humanos” (ONU, 1995), podemos dizer que a intolerância
em relação às pessoas com deficiência ainda é fato em pleno século XXI. As maneiras pelas
quais as pessoas com deficiência
(física, sensorial ou cognitiva)
exprimem sua qualidade de seres humanos, na maioria das vezes, não estão sendo reconhecidas e respeitadas.
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As pessoas com deficiência,
conforme o depoimento de
Anailda, sofrem a intolerância
expressa nos impedimentos sociais que lhes são impostos por
uma sociedade que se considera
sã e que reage, diante das deficiências, pelo medo, pela agressão,
pelo desrespeito e pelo isolamento. Enfim, as objetivações e
estigmatizações acabam alimentando círculos de intolerância
bastante presentes na história social das pessoas com deficiência.
Percebe-se que a sociedade,
na maioria das vezes, trabalha
com a lógica da classificação que
produz dicotomias e hierarquias,
desrespeitando e, muitas vezes,
rejeitando as diferenças humanas. Isto se evidencia nas antropologias subjacentes aos modelos
que marcaram (e ainda marcam)
o processo de segregação ou exclusão das pessoas com deficiência, tais como: o modelo místico
(ser sub-humano, deficiência
como castigo), modelo clínico (ser
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anormal, deficiência como incapacidade), modelo assistencialista
(ser especial, deficiência como
motivo de dependência).
Nestes círculos marcados pela
intolerância, o “poder da lógica da
classe é abstrair diferenças”
(Macedo, 2005, p. 18). Entendemos que abstrair diferenças é
abrir mão da convivência, promovendo a segregação e a conseqüente exclusão social. Isto nos
remete ao círculo vicioso. Trata-se
do círculo de medo e intolerância
alimentado pelo desconhecimento,
[…] quanto mais se marginaliza
os “impedidos” da vida pública,
menos os conhecemos. E quanto
menos se sabe de sua vida, maior será o medo que a mesma inspira. É precisamente este medo
que impede o encontro e a vida
em comum com os “impedidos”
(Moltmann, 1987, p. 74).
Localizamos, portanto, o conhecimento como um dos caminhos para a superação do medo e
do rechaço que sentimos em relação às pessoas que são diferentes
de nós, especialmente quando
esta diferença coloca em cheque a
invulnerabilidade da condição
humana. Nestes termos, Lígia
Amaral entende o estigma como
um dos mecanismos psicológicos
de defesa diante da deficiência e
propõe o rompimento com os
discursos valorativos quando se
fala de pessoas com deficiência:
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ça (nem boa ou ruim, nem benéfica ou maléfica…) pode levar,
em conseqüência, a relações despidas de hierarquia entre aqueles
que são diferentes/deficientes e os
que não o são (nem menos ou
piores, nem mais ou melhores,
nem falha ou plenitude…).
(Amaral, 1995, p. 150)
A mentalidade
cartesiana, com
sua ênfase na
distinção e no
particular (neste
caso, na deficiência), impede-nos
de ver a realidade como um todo
Abstrair diferenças” (Macedo,
2005, p. 18). Entendemos que
abstrair diferenças
é abrir mão da
convivência, promovendo a segregação e a conseqüente exclusão
social
A ausência intrínseca de
adjetivação valorativa da diferenRevista de Educação do Cogeime
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Além de indicar a necessária
construção de relações sociais despidas de hierarquia, a autora nos
ajuda a perceber que não se resolve o problema da hierarquização
social simplesmente afirmando a
deficiência como diferença, pois
as diferenças também podem ser
hierarquizadas. A naturalização
das diferenças pode produzir hierarquias dicotômicas, tais como:
igual/desigual, capaz/incapaz,
normal/anormal, são/deficiente,
melhor/pior etc.
A mentalidade cartesiana,
com sua ênfase na distinção e no
particular (neste caso, na deficiência), impede-nos de ver a realidade como um todo, de ver as
redes de relações, enfim, de ver a
complexidade da vida humana
em suas mais diferentes faces
(potencialidades e limitações).
Diante de problemas sociais
sistêmicos, como a exclusão social, essa visão analítica, que vê
a realidade por partes, não é suficientemente esclarecedora e
não sensibiliza as pessoas para o
exercício da tolerância, e, por
conseguinte, para ações solidárias e inclusivas.
No caso das pessoas com deficiência, elas acabaram assumindo,
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pela classificação, formas desqualificadas de ser e viver que lhes
foram impostas pela sociedade.
Podemos, sob inspiração da sociologia das ausências (Santos, 2006,
p. 24), citar algumas destas formas:
• o ignorante: quando se
focam as limitações corporais e
intelectuais (como impedimento
do viver e do aprender) e perpetua-se a ignorância (pela desconsideração das formas diferenciadas de viver e aprender);
• o residual: quando a segregação (em instituições especializadas ou na própria casa)
torna-se uma forma de esconderijo para o ser humano que não
cabe nos moldes socialmente estabelecidos como “normais”;
• o inferior: quando a diferença naturaliza dicotomias hierárquicas (normal/anormal, eficiente/
deficiente, capaz/incapaz, inferior/superior etc.) e classifica as pessoas entre melhores e piores;
• o local: quando a acessibilidade (física, comunicacional,
atitudinal) não é um bem comum
e o mundo apresenta-se em padrões preestabelecidos como viáveis – seja nos espaços físicos, na
linguagem ou na cultura;
• o improdutivo: quando os
padrões de produtividade estabelecem a desqualificação das pessoas que não apresentam determinadas habilidades para o
mercado de trabalho e, conseqüentemente, legitimam o sistema assistencialista-caritativo e a
impossibilidade de as pessoas
com deficiência assumirem o
protagonismo de suas vidas.
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Se as objetivações alimentam
o círculo vicioso da ameaça e
rechaço, imprimindo às pessoas
com deficiência formas desqualificadas de ser e viver (ignorante,
anormal, incapaz, dependente
etc.), como, então, superar esta
intolerância?
A pista fundamental já nos foi
indicada por Lígia Amaral – tratase da construção de relações despidas de hierarquia, em que prevalece o conhecimento mútuo. O
preconceito se vence com conhecimento. E, no caso das pessoas com
deficiência, entendemos que se trata, especialmente, do conhecimento construído no ato de encontrar
(pessoas com e sem deficiência)
nos diversos espaços sociais. Assim, a necessária efetivação dos
encontros entre todas as pessoas
remete-nos ao paradigma da inclusão (Mantoan, 2003) e ao modelo
social de deficiência (Sassaki,
2003), no qual se destacam conceitos como incapacidade compartilhada e acessibilidade.
A necessária
efetivação dos
encontros entre
todas as pessoas
remete-nos ao
paradigma da
inclusão e ao
modelo social de
deficiência
Educação na e para
a tolerância
A educação para a tolerância
deve visar contrariar as influências que levam ao medo e
à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a desenvolver sua
capacidade de exercer um juízo
autônomo, de realizar uma
reflexão crítica e de raciocinar
em termos éticos.
(Declaração de Princípios sobre a Tolerância, ONU, 1995)
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O paradigma da inclusão
considera a construção da sociedade para todos, na qual se reconhece a potencialidade de todas
as pessoas, independentemente
da singularidade de cada um. A
educação inclusiva contraria “as
influências que levam ao medo e
exclusão do outro” quando nos
remete aos pressupostos epistemológicos da diversidade e da
complexidade humanas. Esta
nova epistemologia apresentanos novos conceitos, tais como
incapacidade compartilhada e
acessibilidade, que podem nos
ajudar a educar para a tolerância.
Trata-se de considerar os processos pedagógicos inerentes à construção de espaços acessíveis e,
portanto, abertos à diversidade e
vulnerabilidade humanas.
a) Incapacidade compartilhada
O Programa de Ação Mundial
para as Pessoas com Deficiência
(ONU, 1982) inseriu um novo conceito de incapacidade na discussão
sobre as formas de inserção das
pessoas com deficiência. Trata-se
da “incapacidade como uma resultante da relação entre as pessoas
(com e sem deficiência) e o meio
ambiente. Incapacidade passava a
ser, então, um problema de todos”
(Werneck, 2000, p. 43).
A incapacidade também tem
a ver com impedimentos ou barreiras socialmente construídos ¯
quando o mundo e seus espaços
são pensados em padrões generalizantes (os normais). Portanto,
a tolerância, nos termos da incapacidade compartilhada, remeteRevista de Educação do Cogeime
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Trata-se de considerar os processos pedagógicos
inerentes à construção de espaços acessíveis e,
portanto, abertos
à diversidade e
vulnerabilidade
humanas
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nos ao necessário rompimento de
barreiras desnecessárias impostas
às pessoas com deficiência, tais
como: um espaço padronizado
(no viés do “normal”), uma só forma de comunicação (a fala), uma
só forma de leitura (a visão) etc. O
que acontece é que, ao construirmos nossas vidas a partir destes
padrões, isolamo-nos e desconsideramos as possíveis diferentes formas de ser, conviver e aprender.
Educar para a tolerância é,
antes de qualquer coisa, buscar
compreender a condição humana
vislumbrando a possibilidade de
convivência entre todas as pessoas, com ou sem deficiência. É reconhecer a cultura humana em
sua complexidade e respeitá-la, é
olhar para as pessoas com deficiência como pessoas que compõem o universo social e que têm
um modo diferente e digno de
viver e aprender. Trata-se de
admitir que existem “saberes diferentemente sábios” e de criar círculos nos quais prevaleça o “reconhecimento recíproco” tal qual
nos indica a sociologia das emergências (Santos, 2005, p. 25-30).
b) Acessibilidade
Os encontros, seja indo ou
vindo, somente acontecem quando
há condições de acesso uns aos
outros. Afinal, para nos encontrarmos, todos precisamos ter condições de fazer o percurso até o encontro. Assim, podemos dizer que
as condições concretas para o
exercício da tolerância em relação
às pessoas com deficiência remetem-nos ao tema da acessibilidade.
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Acessibilidade tem a ver com
a construção de espaços sociais
que fujam de um padrão dito normal e que garantam a “condição
para utilização, com segurança e
autonomia, total ou assistida, dos
espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas
e meios de comunicação e informação” (Brasil, 2004). Entendemos
que a acessibilidade se coloca
como um tema pertinente à educação para a tolerância porque
não queremos mais as pessoas
com deficiência presas em casa
sem poder “ser pessoa” nas ruas –
como todas as demais.
O exercício da tolerância, todavia, deve passar da resignação e
do silêncio para a ressignificação
da dignidade humana como valor
inegociável (Assmann, 1991, p. 18)
e para a mobilização social no
sentido da construção das condições de acesso e permanências das
pessoas com deficiência nos diversos espaços sociais (sejam eles físicos ou representativos).
Nas palavras de Moltmann, a
“superação das barreiras primárias do rechaço e da desconfiança,
do preconceito e da dependência,
partirá daqueles grupos nos
quais os impedidos e os não-impedidos vivem juntos uma vida
autenticamente humana” (1987,
p. 61). Para vivermos juntos, no
entanto, precisamos construir caminhos por onde todos possam
passar e chegar.
As experiências de inclusão
nos diversos espaços sociais (educação, trabalho, lazer etc.) realRevista de Educação do Cogeime
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mente têm demonstrado que o
medo do encontro somente desaparece no ato de encontrar.
Quando passamos a conviver
com as pessoas com deficiência,
nós descobrimos quem realmente
são estas pessoas. Nosso olhar
converte-se da deficiência para a
nossa absoluta condição humana
– a diferença.
Classificação das
pessoas com e
sem deficiência em
dicotomias hierárquicas subjuga o
ser humano em
questão
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c) Vulnerabilidade: condição antropológica absoluta
Retomando o tema da estigmatização e da objetivação das pessoas com deficiência, entendemos
que, além da acessibilidade física e
comunicacional, é necessário construir a acessibilidade atitudinal.
Trata-se da necessária construção
das relações de tolerância e respeito entre todas as pessoas.
O entendimento da vulnerabilidade como “condição antropológica absoluta” (Stalsett, 2002)
e como mais um sinal da
interdependência humana e cósmica leva-nos à percepção de que
não somos auto-suficientes e de
que não temos o destino em nossas mãos. Ou que a classificação
das pessoas com e sem deficiência em dicotomias hierárquicas
subjuga o ser humano em questão, torna ausente uma pessoa
capaz de viver dignamente. Entendemos que no reconhecimento
da dignidade de todas as pessoas
está a chave para a construção de
relações sociais mais solidárias.
A categoria vulnerabilidade
permite-nos entender a deficiência
não só como diferença, mas também como semelhança. Se consideAno
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começar pela humanização das
relações sociais. Como diz Stalsett
(2004),
rarmos a costumeira estigmatização das pessoas com deficiência, o
reconhecimento da vulnerabilidade como “condição humana” seria
um dos caminhos para a construção de relações sociais mais tolerantes e menos excludentes.
Se a deficiência do outro nos
amedronta e instiga ao rechaço
do diferente (seja pela segregação
ou pela exclusão), ela também
nos desafia ao reconhecimento de
nossa própria vulnerabilidade ¯
no sentido da superação da angústia humana diante de sua
vulnerabilidade. Neste sentido,
torna-se fundamental o entendimento de que a dignidade humana é inviolável e que esta é, justamente, a força intrínseca que
garante a vida digna em meio às
situações de vulnerabilidade da
existência – sejam elas temporárias ou permanentes.
O reconhecimento da vulnerabilidade humana transforma a fraqueza em força, a incapacidade
em capacidade, as deficiências em
diferenças (ou, nos termos da condição humana, em semelhanças)
formas de ser, viver e conhecer.
Isto nos remete à sociologia das
emergências (Santos, 2005, p. 30),
no sentido de considerarmos a
latência própria à existência humana. Ou seja, o desabrochar de
saberes diferentemente sábios, de
escalas diferentemente solidárias e
de reconhecimentos recíprocos
nos espaços sociais. Nestes termos, entendemos que a afirmação
da dignidade própria das pessoas
com deficiência leva a demandas
político-sociais fundamentais, a
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Dignidade humana é inviolável e
que esta é, justamente, a força
intrínseca que
garante a vida
digna em meio
às situações de
vulnerabilidade
da existência
Em minha opinião, vulnerabilidade, dignidade e justiça são
valores éticos indispensáveis na
tarefa de construir um mundo
mais humano. A vulnerabilidade, por ser […] fator antropológico e ético constituinte. A
dignidade, por ser a força que
surge da vulnerabilidade e que
desafia qualquer sistema político,
econômico e social que não respeite, proteja e promova a pessoa
humana tal como ela é. A justiça
[…] requer uma inclusão radical
e uma defesa incansável da vida
humana – vida em plenitude,
vida para todos e todas.
Percebam que inversão interessante: a vulnerabilidade pode
não ser mais lugar de exclusiva
debilidade, mas sim da força de
uma nova vida – da vida humana. É esta força que surge da vulnerabilidade compartilhada (a
vida em sua fragilidade e plenitude) que também nos remete ao
necessário reconhecimento da
interdependência humana. Sem a
percepção da vulnerabilidade
humana, ninguém reconhece o
desafio ético no sentido do exercício da tolerância.
No momento em que pudermos respeitar e considerar a condição humana das pessoas com
deficiência em sua complexidade,
poderemos incluir no “ser” humano novas categorias, tais como: ser
cego, ser surdo, ser surdo-cego,
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ser paraplégico, ser tetraplégico,
ser autista etc. E mais que isto,
poderemos dar visibilidade à
vulnerabilidade humana com todos os seus desafios postos, onde
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fraqueza, dor, medo, erro, instabilidade, incapacidade… etc. poderão também ser categorias que
nos ensinam, no exercício da tolerância, a viver e aprender.
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