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ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
Trecho da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Foto: Danna Merril, 1910.
ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
Corpo Editorial
Editores
Alberto Lins Caldas
Prof. Dr. Departamento de História - UFAL
Eliaquim Timóteo da Cunha
Centro de Documentação e Estudos Avançados sobre Memória e Patrimônio de
Rondônia – CDEAMPRO (http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9070107951585272)
Conselho Editorial
Caesar Sobreira – Antropologia – UFPE
Inara do Nascimento Tavares - Antropologia – INSIKIRAN/UFRR
Jean-Pierre Angenot - Letras - UFRO
Jacinta Castelo Branco Correia - Comunicação - UFRO
José Carlos Sebe Bom Meihy – História – USP
Lilian Maria Moser – História – UFRO
Michel Zaidan Filho - História – UFP
Miguel Nenevé – Letras – UFRO
Nilson Santos – Educação – UFRO
Pedro Rapozo – Sociologia - UEA
Raiana Ferrugem – Antropologia – UFOPA
Xênia de Castro Barbosa – História - IFRO
www.revistazonadeimpacto.unir.br
https://www.facebook.com/pages/Revista-Zona-de-Impacto/161448780689967?ref=hl
Sumário
Apresentação ...................................................................................................................................... 6
Eliaquim Timóteo da Cunha............................................................................................................. 6
Dossiê ................................................................................................................................................... 8
O Primeiro Século da Cidade de Porto Velho ................................................................................. 8
Apresentação ............................................................................................................................... 9
Xênia de Castro Barbosa (Org.)................................................................................................. 9
Porto Velho: notas para uma geo-história.............................................................................. 11
Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 11
Uílian Nogueira Lima............................................................................................................... 11
Reginaldo Martins da Silva de Souza ....................................................................................... 11
Migração e identidade do negro em Rondônia ...................................................................... 18
Simeia de Oliveira Vaz Silva .................................................................................................... 18
A função da educação no campus Porto Velho Calama e o ideal de homem que se está
formando ................................................................................................................................... 28
Iranira Geminiano de Melo ...................................................................................................... 28
Liliane Barreira Sanchez .......................................................................................................... 28
História e patrimônio: os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
.................................................................................................................................................... 47
Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 47
Laura Borges Nogueira ............................................................................................................ 47
Uílian Nogueira Lima............................................................................................................... 47
Movimentos sociais e escravistas na construção do real Forte Príncipe Da Beira – 1776 –
1783 ............................................................................................................................................ 55
Lourismar da Silva Barroso ..................................................................................................... 55
Ciência e Saúde na Amazônia: uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao
vale do Madeira e ao vale do Amazonas ................................................................................. 68
Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 68
Maria Enísia Soares de Souza .................................................................................................. 68
Lucas Mariano Dias ................................................................................................................. 68
Uma análise do perfil econômico de famílias impactadas pela cheia do Rio Madeira de
2014 residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa ................................................ 77
Carlos Miguel Teixeira Ott....................................................................................................... 77
José Ítalo Oliveira dos Santos .................................................................................................. 77
Josenaldo Santos Porto ............................................................................................................ 77
Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 77
Violência no trânsito uma abordagem da problemática na cidade de Porto Velho ........... 82
Tiago Lins de Lima ................................................................................................................... 82
Maria Enísia Soares de Souza .................................................................................................. 82
Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 82
Madson Silva de Souza Junior.................................................................................................. 82
Artigos ............................................................................................................................................... 95
História e Realidade ....................................................................................................................... 96
Alberto Lins Caldas ................................................................................................................... 96
Culturas em movimento Antropologia e Literatura entre o Saara e Paris .................................. 105
Ricardo Moreno de Melo ......................................................................................................... 105
O desenvolvimento econômico no contexto da industrialização na paraíba: engenhos, curtumes e
tecelagens ..................................................................................................................................... 123
Luciano Bezerra Agra Filho ................................................................................................... 123
Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX .................................... 139
Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque ................................................................................ 139
Monografias .................................................................................................................................... 157
Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres em Moçambique.
Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e poupança (Parte II) ................................. 158
Catarina Casimiro Trindade ................................................................................................... 158
Amor só de mãe: drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade (Parte I) .... 175
Simone de Oliveira Mestre ...................................................................................................... 175
Ensaios............................................................................................................................................. 200
A ditadura em que vivemos .......................................................................................................... 201
Rafael Ademir Oliveira de Andrade ........................................................................................ 201
Notas preliminares sobre como escrever nas ciências sociais .................................................... 209
Maryelle Inacia Morais Ferreira ............................................................................................ 209
Tradução ......................................................................................................................................... 214
A autoridade em desejo. Algumas reflexões sobre sujeição e sexualidades ................................ 215
Aina Pérez Fontdevila (Universitat Autònoma de Barcelona) .............................................. 215
Tradução de Brena Barros (Graduanda Arqueologia UNIR) ............................................... 215
Ensaio Fotográfico ......................................................................................................................... 221
Glacial Perito Moreno: um olhar sobre o gélido azul na Patagônia .......................................... 222
Simone Gomes Marques .......................................................................................................... 222
Sobre as autoras e os autores ........................................................................................................ 228
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Apresentação
Eliaquim Timóteo da Cunha
Neste décimo sétimo ano a Zona de Impacto apresenta o primeiro volume dividido em seis
sessões. A primeira é composta pelo dossiê, “O primeiro século da cidade de Porto Velho”,
somando-se sete artigos. Os títulos são: “Porto Velho: notas para uma geo-história”; “A função da
educação no campus Porto Velho Calama e o ideal de homem que se está formando”; “História e
patrimônio: os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”; “Movimentos
sociais e escravistas na construção do real Forte Príncipe da Beira – 1776 – 1783”; “Ciência e
Saúde na Amazônia: uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao vale do Madeira e ao
vale do Amazonas”; “Uma análise do perfil econômico de famílias impactadas pela cheia do Rio
Madeira de 2014 residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa” e “Violência no trânsito
uma abordagem da problemática na cidade de Porto Velho”.
A reunião desses trabalhos ocorreu no âmbito do colóquio “Cidade e História – Porto Velho,
cem anos”; esse espaço de discussão foi organizado pelo Núcleo de Estudos Históricos e Literários
do IFRO – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – em parceria com o
Centro de Hermenêutica do Presente, da Universidade Federal de Rondônia. Partindo de uma
perspectiva interdisciplinar temos contato com temas diversificados, no entanto, complementares no
que se refere ao exercício de uma leitura crítica sobre a construção de unidades sociais.
A segunda sessão é formada por três artigos, eles são: “História e Realidade” Alberto Lins
Caldas; “Culturas em movimento: Antropologia e Literatura entre o Saara e Paris”, Ricardo Moreno
de Melo e “Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX”, Jarisson Lima
dos Santos Albuquerque.
Dois ensaios compõem a terceira sessão. “A ditadura em que vivemos” assinado por Rafael
Ademir Oliveira de Andrade; “Notas preliminares sobre como escrever nas ciências sociais” sob
autoria de Maryelle Inacia Morais Ferreira.
As duas monografias, desse volume, configuram a quarta sessão, assim damos continuidade
ao projeto “publique seu TCC”. A primeira, “Como as instituições de microcrédito promovem a
autonomia das mulheres em Moçambique. Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e
poupança”, é uma pesquisa realizada por Catarina Casimiro Trindade; nessa oportunidade segue a
segunda parte do trabalho publicado no segundo volume do ano de 2014.
Na sequência encontramos a primeira parte da pesquisa “Amor só de mãe: drama e estigma
de mães de adolescentes privados de liberdade”, realizada por Simone de Oliveira Mestre.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Na sessão tradução compõe-se a quinta sessão deste volume. O texto traduzido é: “A
autoridade em desejo. Algumas reflexões sobre sujeição e sexualidades”, assinado por: Aina Pérez
Fontdevila, a tradução foi realizada por Brena Barros.
Encerrando este primeiro volume de 2015 trazemos o ensaio fotográfico: “Glacial Perito
Moreno: um olhar sobre o gélido azul na Patagônia”, um olhar apresentado por Simone Gomes
Marques.
Boa leitura!
Janeiro de 2015
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Dossiê
O Primeiro Século da Cidade de Porto Velho
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Apresentação
Xênia de Castro Barbosa (Org.)
Em dois de outubro de 2014 a cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia,
completou seu primeiro centenário de instalação. Formada a partir de terras dos territórios do Mato
Grosso e do Amazonas, a cidade se desenvolveu a partir do início do século XX, com a retomada de
esforços para a edificação de uma estrada de ferro – a Madeira-Mamoré, também conhecida como
“ferrovia do diabo”, e cuja construção tinha sido abandonada em decorrência da crise financeira
resultante da Guerra Franco-prussiana (1870-1871), que inviabilizou a aplicação de capitais no
projeto.
A estrada de ferro, que facilitaria o transporte da borracha dos seringais bolivianos e
brasileiros da região de Guajará Mirim e Santo Antonio do Madeira, possibilitou a vinda de
milhares de trabalhadores de diferentes países, que nas interações com a população nativa, formaria
o primeiro núcleo urbano.
Típica cidade amazônica, Porto Velho experimentou nesses primeiros 100 anos um
desenvolvimento desigual, expresso em suas formas, que alternam bairros e residências de alto
padrão a aglomerados subnormais, e expresso também nas condições de acesso de sua população a
bens e serviços, como educação e saúde.
O desenvolvimento desigual e a modernidade incompleta repercutem não só em sua
paisagem, como também na qualidade de vida, nos perfis epidemiológicos e nos desafios
educacionais e políticos de sua história presente.
Com o intuito de promover o debate sobre os dilemas e desafios de Porto Velho, o Núcleo
de Estudos Históricos e Literários do IFRO – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Rondônia, em parceria com o Centro de Hermenêutica do Presente, da Universidade Federal de
Rondônia organizou colóquio com a temática “Cidade e História – Porto Velho, cem anos”, no qual
docentes e estudantes dos diversos níveis do ensino puderam refletir, a partir de estímulos
interdisciplinares, sobre o espaço onde vivem.
Os textos que seguem, diversos e plurais, registram algumas das reflexões tecidas durante o
colóquio, e entrelaçam história, geografia e literatura na busca de construção de um discurso
inteligível e claro acerca da história do tempo presente, uma história que é, sobretudo, política, em
seu sentido clássico de enfrentamento dos problemas da vida da polis. Esses textos não se limitam,
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contudo, a abordar questões relativas à formação história de Porto Velho, mas posicionam-se
também quanto à educação e a educação para o convívio étnico racial, o trabalho, os movimentos
sociais escravistas e desafios urbanos presentes na cidade, como a violência no trânsito ou os
impactos causados pela cheia fluvial do primeiro trimestre de 2014. São textos abertos e
convidativos para a leitura e para a reflexão.
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Porto Velho: notas para uma geo-história
Xênia de Castro Barbosa
Uílian Nogueira Lima
Reginaldo Martins da Silva de Souza
Resumo: Esse ensaio é uma proposta de reflexão sobre a formação de Porto Velho na perspectiva
da geo-história. Nele convidamos o leitor a pensar sobre a interação entre os elementos naturais e
sociais que constituem essa cidade, e as possibilidades de análises abertas pela obra de Fernand
Braudel, com vistas a uma ciência nova e mais adequada à investigação da complexidade emergente
do mundo vivido.
Palavras-chave: geo-história. Porto Velho. Ciência.
Abstract: This essay is a proposal of reflection about the foundation of Porto Velho city in a geohistory perspective. The reader is invited to reflect about the interaction between the social and
natural elements that constitute this city as well the possibilities of analysis presented by Fernand
Braudel’s work in order to get a new and modern science toward the investigation of the emergent
complexity of the world we live in.
Keywords: Geo-history. Porto Velho. Science
Em tempos de crise nada mais confortável do que reler os clássicos. E que isso não seja
visto, apressadamente, como simples subterfúgio, mas como deleite necessário para os
enfrentamentos diversos.
Diante da crise da razão, em que operamos a fragmentação do conhecimento e transitamos
por disciplinas esfaceladas, a busca por um conhecimento mais abrangente, integrador e plural
demanda esforços de conexão entre as sociedades, o tempo e o espaço que as formaram,
intercalando produção material e simbólica com vistas a sínteses mais inteligíveis.
Em sua “Lição de História”, Braudel (1989, p. 164) dizia que “a verdadeira história, a
história biológica, a história profunda, é a história bem antes de Cristo, bem antes do primeiro ou do
segundo milênio”, indicando para elementos geográficos de longa duração que atuaram sobre o
desenvolvimento de civilizações milenares.
O Egito foi considerado por Heródoto, historiador grego do século V a.C, como uma
“dádiva do Nilo”, sendo esse rio, com seus ritmos alternados e repetitivos o fornecedor de água,
alimentos e húmus para que a civilização egípcia, uma das mais sofisticadas que jamais existiu,
pudesse se desenvolver. O Nilo começava sua enchente por volta do mês de junho, elevando o
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volume de suas águas em cerca de sete a oito metros, inundando as terras ribeirinhas. A partir de
outubro, quando iniciava a estiagem, essas terras que haviam sido inundadas estavam repletas de
matéria orgânica, prontas para receber o plantio de cereais, frutas e leguminosas que abasteciam as
mesas de sacerdotes, escribas, escravos, felás e faraós.
Na Europa, o Mediterrâneo possibilitou o florescimento da França, da Itália, da Grécia, da
Espanha e da Turquia, dentre outros, integrando culturas, promovendo a circulação das riquezas,
constituindo a base material da vida desses povos. Por séculos, a vida seguiu aos ritmos e
movimentos desses atores geográficos – e os chamamos de atores porque não só as pessoas
desenvolviam suas existências em sua base, mas eles próprios protagonizaram fatos e processos
históricos que em grande medida definiram as condições de vida daqueles povos.
A geo-história, perspectiva analítica exposta por Fernand Braudel em 1945, é uma síntese
entre Geografia e História, “que se alimenta tanto da geografia alemã pós-ratzeliana quanto da
geografia francesa, da escola vidaliana, para configurar uma nova resposta à dialética entre base
geográfica e processo civilizatório” (AGUIRRE ROJAS, 2013, p.20).
Essa nova episteme historicisou os elementos geográficos, apresentando-os não mais como
simples “cenário onde se passa a história”, mas como elementos modeladores e atuantes em seus
processos. Essa ideia foi exposta, pela primeira vez na em 1947, na tese de doutorado de Fernand
Braudel, intitulada “O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II”, publicada dois
anos depois. Nessa obra o pesquisador submeteu à análise histórica as interações entre homem,
meio ambiente e paisagem, redimensionando o valor das formas e estruturas espaciais para a
formação do mundo mediterrânico e invertendo a ordem tradicional da narrativa histórica, que
costumava colocar em primeiro plano os acontecimentos políticos. Filipe II deixou de ser, portanto,
a personagem central da trama, para dar lugar ao mar mediterrâneo e as relações engendradas pelas
pessoas em função do mesmo.
Fernand Braudel, contudo, não limitou sua inovação à nova abordagem historiográfica do
meio físico, contribuindo decisivamente para uma nova concepção de tempo e de fazer
historiográfico. Se antes dos Annales e, especialmente, de sua segunda geração, da qual Braudel foi
o representante mais ilustre, o tempo histórico privilegiado nessa construção discursiva era o tempo
curto, o tempo do evento, da política, centrado nos indivíduos, e ocasionalmente, um tempo de
média duração, de análise de influências de acontecimentos mais recuados em fenômenos
contemporâneos, Braudel apresentou o tempo da longa duração. Esse tempo, geográfico por
excelência, também pode indicar permanências espaciais de “mentalidades”, de interpretações
culturais.
Em o Mediterrâneo (BRAUDEL, 1953) foram apresentados, portanto, três tempos
diferentes: o da longa duração, tempo quase imóvel, o da média duração, que mais tarde seria
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chamado pelo autor de tempo da “conjuntura” (BRAUDEL, 1992) - o tempo da história,
propriamente dita -, e o tempo de curta duração, ou seja, dos eventos e paixões passageiras.
Esses múltiplos tempos são atuantes sobre os fenômenos sociais, e a título de exemplo da
longa duração, é possível imaginar fenômenos de ampla abrangência temporal, como as práticas
agrícolas e comerciais, que por milênios se desenvolveram sem grandes transformações na Europa,
ou a cultura milenar dos povos da América andina. O tempo da média duração é o da conjuntura
histórica, da formação das estruturas sociais e econômicas e a curta duração pode ser pensada como
os acontecimentos contemporâneos que não encontram vínculos com fenômenos e estruturas mais
profundas - o tempo das notícias de jornais, da propaganda, da política, da biografia.
A geo-história representou, em meados do século XX uma forma privilegiada de produção
de conhecimentos acerca da vida política, econômica e cultural dos povos, perdendo espaço na
medida em que o desenvolvimento do capitalismo impunha a necessidade de especializações, que,
se por um ângulo permitiram conhecimentos aprofundados, por outro promoveram fragmentação no
saber e em nossa capacidade cognitiva, nos tornando limitados na elaboração de conexões entre as
diversas áreas e perspectivas educacionais.
O modelo de ciência do século XX é o da chamada “ciência normal” (KUHN, 2011),
aprofundada e detalhista quanto a áreas bastante delimitadas. Para o autor, essa ciência
[...] parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites
preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal
não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno [...] Em vez disso, a
pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já
fornecidos pelo paradigma.
Para além do campo ou do laboratório, na vida social comum, essa forma de gestão do
conhecimento moldou nossas estratégias de estudo e compreensão do mundo, contribuindo para a
formação de uma cultura visual que apenas enxerga o óbvio e lê o que está explícito. Perdidos nas
formas, esquecemo-nos da Geografia, da geomorfologia, dos movimentos de longa duração que,
junto com as ações humanas, formam o espaço, as paisagens e diferencia as regiões e as vidas dos
povos.
Embora tenhamos nos distanciado dessa forma de produção do conhecimento, destacamos
que alguns dos mais brilhantes exemplares da historiografia brasileira foram produzidos na esteira
da geo-história, ou pelo menos, concatenadas com a discussão da importância dos elementos
geográficos na formação histórica do Brasil: Monções, de Sérgio Buarque de Holanda (1990
[1945]), Caminhos e Fronteiras (2001 [1957]) e Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, de
Capistrano de Abreu (1982 [1930]).
Esse ensaio é uma proposta de reflexão sobre a formação de Porto Velho na perspectiva da
geo-história. Nele convidamos o leitor a pensar sobre a interação entre os elementos naturais e
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sociais que constituem essa cidade, uma vez que Porto Velho não seria Porto Velho se não fosse o
seu rio – fonte de alimentos, de riquezas e estrada líquida que liga os diversos mundos amazônicos,
o seu clima quente e úmido, o seu relevo pouco acidentado, a sua população, que aprendeu a viver
nessa terra, a interagir com esses elementos, incrementando-a com beleza e funcionalidades
socialmente produzidas. Entende-se, portanto, que Porto Velho é resultado de conjunções
complexas entre o meio físico e o meio social, ambos favorecedores da vida nesse espaço, e que
para compreendê-la não podemos negligenciar nenhum desses aspectos.
Porto Velho localiza-se na parte oeste da Região Norte do Brasil, na área abrangida pela
Amazônia Ocidental. Situa-se no vale do rio Madeira, à margem direita deste rio, entre a planície
amazônica e o planalto central brasileiro, na coordenada geográfica 8° 54' 46'' de latitude Sul e 63°
40' 00'' de longitude Oeste (AGRA, 2012).
O município faz fronteira, ao Norte, com o Estado do Amazonas, ao Sul com os municípios
de Buritis e Nova Mamoré, a Leste com o município de Candeias do Jamari e a Oeste com os
Estados do Amazonas e Acre. Abriga três Terras Indígenas e quatorze Unidades de Conservação,
dispondo de um Plano Diretor, instituído pela Lei Municipal n. 311, de 30 de junho de 2008 que
orienta quanto à política urbana, o ordenamento territorial e a mobilidade urbana, dentre outros.
O clima de Porto Velho apresenta perfil quente e úmido, sendo sua temperatura média anual,
mínima e máxima respectivamente de: 25,2ºC; 20,9ºC e 31,1ºC (BRASIL, 1992), conforme registro
do Instituto Nacional de Meteorologia para o período 1961-1990. Sua topografia indica relevos
ondulados a fortemente ondulados e acidentados. Com relação à vegetação, “há nas partes mais
altas extensas áreas de cerrado e nos vales e encostas, predominam formações florestais tipicamente
amazônicas. Ocorrem, ainda, grandes áreas de transição entre o cerrado e a floresta. Domina a
Floresta Ombrófila Aberta Submontana (46%), apresentando ainda: Vegetação de Contato
Savana/Floresta Ombrófila (18,3%), Savana Arborizada (8,8%), Savana Densa (8,05%), Savana
Parque (7,8%), Floresta Ombrófila Densa Submontana (6%), Savan Gramínea-Lenhosa (1,6%), e
outras” (AMBIENTE BRASIL, 2014).
A bacia hidrográfica do Rio Madeira tem como principais afluentes, em sua margem direita
os rios Mutum-Paraná, Jacy-Paraná, Caracol, Jamari e Machado, destacando-se ainda outros
importantes rios como: Candeias, Jacundá, Garças, Preto do Jacundá e muitos outros de menor
porte. Pela margem esquerda do rio Madeira afluem os rios Abunã, Caripunas e Cuniã, além do rio
Marmelo e o São Sebastião.
A cidade possui 34.068,50 km² de extensão e é considerada a maior capital brasileira em
termos de área territorial, além de uma das cidades que mais cresce atualmente no Brasil, devido a
investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento Econômico do Governo Federal – PAC.
Segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (FIERO, 2011), esse Estado
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concentra hoje a maior taxa de ocupação da população economicamente ativa da região norte
(94,6%) e a segunda menor taxa de desemprego do Brasil. Sua população, segundo o último censo é
de aproximadamente 428 mil habitantes (IBGE, 2010), distribuída entre 66 bairros em perímetro
urbano, três reservas indígenas (Karitiana, Kararaxi e Karipuna) e de 12 distritos na zona rural e
ribeirinha.
A vida nesse espaço existe a milhares de anos, muito antes da chegada de exploradores
europeus, de seringueiros, de engenheiros construtores de ferrovia, de militares construtores de
linha telegráfica ou de técnicos empenhados na produção de energia elétrica. Embora todos esses
atores sociais tenham contribuído para a formação de Porto Velho, para uma nova modelação de seu
espaço e cultura, não podemos nos esquecer de que povos indígenas habitavam a floresta amazônica
desde tempos imemoriais. Esses povos, conforme Meggers (1987) constituíam civilizações bem
adaptadas ao meio natural, habitando tanto as várzeas quanto as terras firmes. Esses grupos
indígenas, cuja história desconhecemos, foram definidos pela autora (op. cit.) como “povos do
milho” e “povos da mandioca”, sendo o primeiro identificado pelo seu principal produto alimentício
– o milho -, que costumava ser plantado nos planaltos andinos e também na planície amazônica, nas
regiões de terra firme; e o segundo, os “povos da mandioca”, tinham esse produto como principal
referência de sua dieta e de sua cultura, utilizando-o tanto no cotidiano quanto nos momentos
festivos, transformando-o em bebida fermentada.
Devido à dizimação sofrida por essas sociedades indígenas no contexto da colonização do
Brasil e mesmo no século XX, com a expansão da fronteira agrícola do país (a chamada “corrida
para o oeste”), não possuímos fontes suficientes para traçar um perfil desses povos e sua cultura,
tendo de nos basear apenas em dados arqueológicos (campo que recebe poucos incentivos na
ciência brasileira) e relatos de viajantes estrangeiros (em geral estereotipados e preconceituosos
acerca dos modos de vida das populações tradicionais amazônicas). Perdemos em conhecimento,
perdemos em possibilidades de outro tipo de vida, quiçá mais consciente da importância da
preservação ambiental para a sustentação da vida.
Porto Velho se formou no início do século XX, a partir da instalação da empresa MadeiraMamoré Railway Company, que visando superar o trecho encachoeirado do Rio Madeira para a
escoação do látex produzido nos seringais da região, retomou trabalhos para a construção de uma
ferrovia, popularmente conhecida como “ferrovia do diabo”, devido à grande quantidade de
trabalhadores mortos em decorrência das limitações da atenção à saúde, aos acidentes de trabalho e
ao contato com povos nativos que resistiam à ocupação de seus territórios. Antes de se tornar
cidade, no entanto, a vida nesse espaço já manifestava suas cores. Centenas de indígenas, caboclos,
ribeirinhos e viajantes transitavam ou habitavam seu espaço, muito antes de 1914.
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Primeiramente, gostaríamos de lembrar que o que corresponde hoje a Porto Velho nasceu
como um porto natural, onde viajantes e aventureiros atracavam seus barcos para descarregar seus
produtos, descansar ou contornar, por terra, o trecho encachoeirado do Rio Madeira. Apenas no
século XX esse atracadouro natural passou a ser trabalhado pela engenharia de forma a funcionar
organizadamente, para atender as demandas crescentes de transporte de produtos entre os diversos
municípios amazônicos.
Em segundo lugar, destacamos que, em face de poucas estradas os rios são as principais vias
de transporte e conexão entre as pessoas e os lugares, permitindo a ocupação espacial, mas na
cultura amazônica tradicional esses rios não são apenas “instrumentos de uso”, meios para se chegar
de um ponto a outro, mas elemento com o qual se convive em simbiose:
O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode comportar a
transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a
ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos
humanos. Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre
e do rico, determinante das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados,
louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem ele o vale se
estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a
conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezaram a paisagem, fazem girar
a civilização - comandam a vida no anfiteatro amazônico (TOCANTINS, 1998, p.278)
O Madeira, assim como outros rios amazônicos, possibilitou a fixação da vida na floresta e
sua gradual transformação em espaços urbanos. A relação tecida pelas sociedades que habitavam
suas margens antes dos ciclos recentes de exploração econômica demonstrava certo respeito e
harmonia com esse elemento marcante da paisagem, que se estende por cerca de 1.460 km.
Sem desconsiderar as dificuldades enfrentadas pelos povos habitantes da planície amazônica
– especialmente a partir do século XVII, de quando datam os principais registros do contato entre
indígenas e colonizadores ibéricos, e sem querer reproduzir uma visão romântica sobre a vida em
espaço selvático, considera-se que a relação das populações tradicionais com o rio e o meio
ambiente, de modo geral, seguiam, positivamente, à contramão da história. Isso por que, enquanto
na Europa se vivia a cisão entre natureza e cultura, colocando-se o homem como superior a todos os
elementos naturais, na Amazônia a cultura se desenvolvia de maneira integrada aos recursos
naturais, com usos mais racionais desses recursos e possivelmente, com uma postura de
“humildade”, de reconhecimento das limitações humanas frente às forças telúricas.
A lógica europeia que dissociava natureza e cultura e conferia ao homem o direito de se
sobrepor aos diversos ecossistemas e explorá-los ao seu bel prazer desencadeou uma das maiores
crises da razão jamais enfrentadas, vez que, após a Segunda Guerra Mundial, os limites de nossa
racionalidade e de nosso modelo de desenvolvimento econômico mostraram-se insustentáveis.
Sabemos que os recursos naturais são limitados, que sua renovação, quando possível, obedece a um
tempo de longuíssima duração e que nosso modelo de crescimento econômico coloca em risco a
continuidade da vida no planeta. Vivemos, portanto, uma era de complexidades crescentes, na qual
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as leis e princípios da ciência normal já não são suficientes, tendo em vista os contornos qualitativos
dessa complexidade. Para Porto (2012, p. 138),
A complexidade emergente é essencialmente qualitativa, dialética, histórica e plural, e a
existência de leis atemporais ou independentes do contexto que regem os fenômenos
fisicalistas e, em parte, os biológicos não se aplica da mesma forma aos fenômenos sociais
e humanos. A complexidade do viver humano eleva a dimensão qualitativa ao máximo,
pois traz no seu centro questões teleológicas e éticas relacionadas à consciência humana,
aos valores e objetivos dos seres humanos em suas culturas e organizações.
Com base no exposto, fica evidente a necessidade de uma nova ciência, ou pelo menos, da
renovação de seus métodos e abordagens, e nesse contexto, a geo-história se mostra um campo fértil
de possibilidades para a produção de análises que buscam um conhecimento integrado entre as
interações do meio social com o meio físico.
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Migração e identidade do negro em Rondônia
Simeia de Oliveira Vaz Silva
RESUMO: O presente artigo tem a princípio algumas pretensões, sua proposta inicial é compreender como a
população atual do estado de Rondônia foi formada com uma grande contribuição de negros, uma vez que Rondônia
não faz parte da rota do Atlântico e não tem tradição no comércio de escravizados negros africanos, e assim entender a
identidade negra rondoniense dentro desse processo migratório. A segunda pretensão do artigo ao começar a esboçar
esse entendimento, é dar início à primeira parte do projeto O ensino da História e da Cultura afro-brasileira em Porto
Velho-RO: a aplicação da Lei 10.639/20031. Para compreender esse processo de formação da população local buscou
vislumbrar mais detalhadamente importantes momentos históricos constituintes dessa identidade sendo o período de
formação do Estado, a vinda dos afro-caribenhos e os momentos de intensa migração para o Estado. Esses períodos
distintos podem nos ajudar a compreender a formação dessa população e como a identidade rondoniense foi se
caracterizando ao longo desses processos. E assim, abordando a primeira parte do projeto de pesquisa acima citado ao
dar contornos ao quadro local ao qual a Lei 10.639/2003 irá se permear; partindo do ponto de sancionamento da lei, aos
seus antecedentes como os PCNs e ao lançamento da DCN - Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da
História e Cultura Afro-Brasileira e a busca por uma identidade.
Palavras-chave: Rondônia – identidade- Lei 10.639/2003.
ABSTRACT: The present article has some claims at first, its initial proposal is to understand how the current
population of Rondônia State was formed with a large contribution of blacks, once Rondônia is not part of the route of
the Atlantic and has no tradition in trade in enslaved black Africans, and so understand the Black identity rondoniense
within this migration process. The second claim of the article when you start sketching this understanding, is to begin
the first part of the project the teaching of history and of Afro-Brazilian culture in Porto Velho-RO: law enforcement
10,639/2003. To understand this process of forming local population sought to glimpse more important historical
moments constituents see this identity being the period of formation of the State, the advent of the Afro-Caribbean and
moments of intense migration to the State. These distinct periods can help us understand the formation of this
population and how the identity rondoniens.
Keywords: Rondônia-identity-Law 10,639/2003.
INTRODUÇÃO
O presente artigo é resultado da proposta avaliativa do seminário sobre Migrações e
Identidade ministrado pela Prof.ª Taís Campelo no curso de Mestrado em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul em parceria com a Faculdade Católica de Rondônia. O
projeto de pesquisa O ensino da História e da Cultura afro-brasileira em Porto Velho-RO: a
aplicação da Lei 10.639/2003 nasce da vontade de entender como as escolas públicas de Porto
Velho-RO se adaptaram ou não para atender à lei, uma vez que nosso Estado tem uma população
1
O projeto visa compreender a como se dá o processo de migração do negro para o Estado de Rondônia, para analisar o
impacto da aplicabilidade da Lei 10.639/2003 nas escolas públicas de Porto Velho. O problema a ser analisado é se os
conteúdos apresentados nos livros didáticos adotados pelo Estado de Rondônia possibilitam a aplicabilidade da Lei
10.639/2003 ou não. Se a visão da História e Cultura Afro-brasileira apresentada na Lei é oportunizada pelo livro
didático, que é a ferramenta imediata da implantação da Lei.
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negra imensa, e tentar entender isso é ver e analisar muitos pontos ainda não vistos, tentando dessa
forma preencher algumas lacunas.
É preciso analisar, por exemplo, que a história dos escravizados no Brasil foi marcada pelos
maus tratos, trabalho forçado, pela violência e pela discriminação racial. Ao longo dos anos, mesmo
após a abolição da escravatura, o negro foi colocado às margens da sociedade, a ponto de nosso expresidente, Luís Inácio da Silva e sancionador da Lei 10.639/2003 e afirmar que o Brasil tem uma
dívida histórica com os negros, o que gerou muitos protestos e críticas, segundo algumas opiniões
nossa dívida como nação é com os indígenas, os negros deviam cobrar essa dívida dos europeus
portugueses. Séculos de subjugação conduziu o negro, que foi escravizado ou seus contemporâneos
e descendentes a estar sempre um passo atrás do restante da sociedade, salvo as exceções. O que a
referida lei busca, em sua intencionalidade é “resgatar” a contribuição do que a Lei chama de povo
negro2 nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil e para isso tornou
obrigatório no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) e o
ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira, de maneira interdisciplinar e principalmente nas
áreas de História, Educação Artística e Educação Física.
A Diretriz Curricular Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
da História e Cultura Afro-Brasileira parte da concepção da obrigatoriedade do Estado em
contribuir com políticas públicas afirmativas no combate à discriminação do negro. A escola é,
portanto, o ponto de partida, é no cotidiano escolar, tendo como base o ensino das áreas de História,
Educação Artística e Educação Física como determina a Diretriz, que novos princípios devem ser
estabelecidos para nortear os pressupostos pedagógicos na construção dessas ações afirmativas.
MIGRAÇÃO E MOVIMENTO DO NEGRO
É a partir de 1985, no período em que se convencionou chamar de pós-redemocratização que
o movimento negro ganhou força na sociedade brasileira e representatividade em força de lei com a
aprovação de dois grandes documentos – os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), em 1996,
que introduziram no ensino, em seus temas transversais os conteúdos de história africana e a DCN
(Diretriz Curricular Nacional) para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de
história e cultura afro-brasileira que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-
2
Entendemos aqui a problemática do conceito. Povo negro é um conceito que indica a uniformidade de uma nação, de
um povo que se identifica como negro, que tem uma história, uma identidade. A Lei não leva aqui em consideração as
múltiplas etnias e cultura africana, nem suas afinidades. Todavia, usamos o termo aqui, porque fazemos menção a
trechos da Lei.
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brasileira nas disciplinas já acima citadas. Esses documentos, embora resultantes de uma trajetória
de movimentos negros apontam para lados opostos. Os PCNs, ao abordar o tema da diversidade
cultural, trabalham a ideia de construção de uma identidade nacional através da miscigenação das
três raças, o branco, o negro e o índio que juntos formariam a nossa atual sociedade, uma vez que
esses grupos se miscigenaram e formaram a nossa população, e portanto, buscam valorizar essa
sociedade, valorizar isso é resgatar essa identidade nacional. Os Parâmetros então fazem parte da
formação de um discurso sobre a origem da população brasileira, da construção de um discurso
oficial sobre a nação3. O papel do negro ganha destaque a partir da gestão política de Getúlio
Vargas que, no seu governo pós 1937, deu início a um projeto de formação de nação e foi buscar na
cultura negra esse traço considerado genuinamente brasileiro, é assim, por exemplo, que se valoriza
o samba. Entretanto, a Diretriz Curricular Nacional aponta para a valorização da história e cultura
afro-brasileira, levando a entender então que, se há a necessidade do ensino, então não há
valorização dessa cultura. É, portanto, o resultado de uma longa discussão política em torno das
questões étnicas, discussões essas que ganharam espaço desde 1930.
Desde o final da década de 1990, as noções de cultura e diversidade cultural, assim como
de identidades e relações étnico-raciais, começaram a se fazer presentes nas normatizações
estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e
médio, especialmente na área de história (...) (ABREU e MATTOS, 2008, p. 2).
Dessa forma, a Diretriz Curricular Nacional nasce nesse ensejo e dentro dessa perspectiva de
discussão sobre etnia, e apresenta em seu seio avanços e retrocessos, que se manifestam em
permanências e descontinuidades. Ela vem atender aos objetivos propostos pela Lei de Diretrizes e
Bases (Lei 9.394/96) e pela 10.639/00 que programavam no ensino básico o ensino da História e
cultura afro-brasileira, cumprindo dessa maneira a legislação federal e muitas outras vozes 4. Vozes
essas que se tornam relevantes na construção dessa África e seus significados, e nesse sentido o
Movimento Negro ganha destaque na busca por compreender e difundir essa África no Brasil,
principalmente a partir de 1970. Por isso, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 é considerada para
esses movimentos uma vitória e também o início de uma nova luta, dessa vez para sua implantação
de modo efetivo: habilitando professores, produzindo material didático ou paradidático, enfim,
3
SANSONE. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o
século XX.
4
A DCN atende aos propósitos do CNE/CP6, buscando cumprir a Constituição Federal nos seus Art. 5º, I; Art.210; Art.
206, I, §1º do Art. 242; Art. 215; Art. 216; e os Art. 26, 26A e 79B da Lei 9.394/96. Além disso, responde a
Constituição Estadual da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de Janeiro (Art. 306) e Alagoas (Art. 306); as Leis
Orgânicas de Recife (Art. 138), Belo horizonte (Art.182, IV) e Rio de Janeiro (Art. 321, VIII); as Leis Ordinárias de
Belém (Lei Municipal nº 7.685, de 17/01/94), de Aracaju (Lei Municipal nº 2.251, de 30/11/94) e a de São Paulo (Lei
Municipal nº 11.973 de 04/01/96). Atende também ao Estatuto da Criança e do adolescente (Lei 8.096, 13/06/90), do
Plano nacional de Educação (Lei 10.172 de 09/01/01) e as reivindicações e propostas do Movimento Negro.
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viabilizando o cumprimento da Lei. E nessa busca de viabilização da Lei é que se encontra o objeto
de pesquisa.
Definido então o projeto de pesquisa e sua relevância, podemos compreender sua relação
com o tema do atual artigo. Se há uma lei federal que nos atinge diretamente, não apenas porque se
estabelece em nossas escolas, mas também porque busca resgatar o valor de uma população de
número expressiva em nosso Estado, entender como essa parcela da sociedade rondoniense se
formou é importante. Todavia, voltamos para a pergunta inicial: como entender a diáspora negra em
Rondônia se esse território não fazia parte da rota do Atlântico? Porque pensar isso, é pensar como
se constitui essa identidade cultural em suas múltiplas complexidades,
De forma mais geral, esse debate torna-se um problema teórico a partir da modernidade
quando a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações. Esse
tema está relacionado (...) como nos constituímos, percebemo-nos, interpretamos e nos
apresentamos para nós mesmos e para os outros (...) (ESCOTEGUY, 2001, p. 139).
Entender, portanto, essa identidade negra é algo extremamente complexo é volátil, não é um
conjunto de símbolos fechados. Como afirmou Hall,
é contraditório, portanto, sugerir uma relação sincrética, porque os elementos de igualdade
são inscritos diferentemente pelas relações de poder, principalmente as de dependência e
subordinação do colonialismo (HALL, 2011, p. 34).
Passamos a perceber ai uma relação híbrida cuja migração tornou-a mais forte. A migração é
um evento histórico mundial que colocou essas questões como raça, etnia, identidade entre outras à
mostra para serem discutidas, analisadas e refletidas; e segundo Hall, tornou-se a própria
experiência da diaspóra. Entender essa identidade em Rondônia é uma pretensão que não alçamos
voo pleno neste artigo, apenas discutiremos alguns conceitos teóricos, uma vez que para se pensar
sobre isso era necessário entender a identidade rondoniense, que não é tarefa fácil, ao contrário é
uma tarefa árdua e longínqua que este trabalho não tem como demarcar em absoluto o seu território,
mas pode e irá no decorrer demarcar alguns pontos para posteriormente se definir algumas
fronteiras e alguns limites. Isso é, vislumbrar pequenos voos. O Estado de Rondônia como tantos
outros lugares é resultado de um intenso processo migratório e, portanto, diaspórico que torna quase
que impossível identificar uma identidade própria. Somos o exemplo do hibridismo e da
ambiguidade.
O primeiro desse momento histórico está relacionado com a formação do estado. Rondônia
que foi constituído com o desmembramento de terras pertencentes ao Mato Grosso e Amazonas, a
partir do século XVII. Nesses lugares do vale do Guaporé, a colonização portuguesa não diferiu do
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restante do país, baseou-se no trabalho escravo, na exploração de riquezas, nesse caso a mineração
de ouro, mas com um diferencial apenas: o fato de que a Amazônia serviria como ocupação militar
para garantir as fronteiras portuguesas No início do século XVII, foi dada a ordem para construção
de diversas fortificações na região:
São José de Macapá, na foz do rio amazonas; Tabatinga, no rio Solimões; Marabitanas, no
rio Negro; São Joaquim, no rio Branco; Real Forte Príncipe da Beira, no rio Guaporé; Forte
de Coimbra, no rio Paraguai (...) (PINTO, 2003, p. 66).
É para essa região que vieram os escravos africanos que mesmo após o fracasso dessas
empreitadas coloniais se mantiveram aqui. Emanuel Pontes Pinto5, ao escrever sobre a capital da
Capitania de Mato Grosso, Vila Bela da Santíssima Trindade de Mato Grosso em seu processo
inicial, afirma que havia “(...) no povoado, nessa época, somente 80 homens brancos (...)”
(PONTES PINTO, 2003, p. 47). A grande maioria era sem dúvidas de escravizados africanos, cujo
trabalho fez andar a máquina colonial portuguesa no vale do Guaporé e cujos descendentes fixaram
aqui sua residência após a falência da empresa mineradora quando foram abandonados por seus
senhores ou, pelo fato de fugirem e constituírem comunidades quilombolas ao longo do rio
Guaporé, algumas delas reconhecidas hoje como remanescentes quilombolas. É claro que, nesse
grupo, nos deparamos com as marcas e tradições da colonização portuguesa como o catolicismo por
exemplo. Esse grupo se fez um pouco mais recluso, mas veio, portanto, a ser a primeira onda
migratória negra para o Estado.
Um segundo momento a ser observado é o da chegada dos primeiros afro-caribenhos, mais
especificamente os que vieram de Barbados e que aqui foram carinhosamente chamados de
barbadianos,
(...) Esse contingente de trabalhadores especializados foi deslocado para o vale do Madeira
e do Mamoré a fim de atuar na construção da ferrovia e das cidades que surgiram em
função da mesma (...) (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 1).
Vieram, portanto, para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1873-1912) e se
tornaram um grupo ímpar na história de Porto Velho, uma vez que foram primordiais para áreas
como a educação e a saúde. Ao palestrar sobre a diáspora caribenha para o Reino Unido, e como
essas comunidades caribenhas visualizavam sua terra natal, Stuart Hall escreveu que para os
caribenhos a identidade é uma questão histórica, a noção de Caribe nasce pela violência gerada pela
conquista, expropriação, genocídio, escravidão, tutela colonial, mas que nem por isso os caribenhos
deixaram de procurar sua terra prometida, que pode nunca ser encontrada. Talvez isso explique
5
Professor mestre em história pela UFRJ, autor de vários livros sobre a História de Rondônia.
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porque muito barbadianos retornaram a sua terra e outros permaneceram. É o que Benedict
Anderson chama de comunidade imaginada.
Depois desse momento, tivemos outros momentos de migração caribenha no Estado,
De fato, para além deste período de construção da EFMM, também foi assistida a migração
de negros denominados “barbadianos”, “antilhanos” ou “West-indians”, como eram
identificados os procedentes da América Central, em diversas regiões da Amazônia,
notadamente nas áreas em que o fenômeno da urbanização se fazia sentir, como eram os
casos de Belém, Manaus e Porto Velho. Portanto, ao longo da primeira metade do século
XX, ainda por conta da ação de empresas estrangeiras que mantinham forte presença em
toda a Amazônia, a entrada de afro-caribenhos, denominados “barbadianos” foi um
processo relativamente comum na região, estando sujeita às oscilações dos investimentos e
da produção da economia urbana em questão (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011,
p. 8).
Os autores acima citados destacam o isolamento social desse grupo que embora, ocupando
cargos de destaque e sofrendo discriminação formaram grupos fechados, parcialmente isolados,
contudo isso não parece ser característica exclusiva de Rondônia uma vez que em outros países o
mesmo aconteceu com comunidades caribenhas, é o caso do Reino Unido. “Lá esse processo
migratório se dá em 1948, e em 1998 quando Hall proferiu a palestra esse ainda era um sentimento
forte, tão forte que afirmou o pensamento de Lamina, de que a sua geração tornou-se “caribenha”,
não no Caribe, mas, em Londres”. O oposto, o contraditório, o diferente a fez se afirmar dentro de
uma identidade comum ao ponto de formarem comunidade de no Reino Unido. É o que Hall chama
de “identificação associativa”. Onde dá primeira até a terceira geração buscava elos de associação
para se identificarem, para formar uma identidade, portanto, a “formação de novas formas de
identidade está ligada ao recontar o passado através da memória e à afirmação da diferença.”
(HALL, 1996, p. 140). E mesmo quando o local de origem não é mais a única fonte de identificação
outros fatores ou pontos serão levantados, buscando o que Hall chama de elo umbilical. Buscar
aquela “comunidade imaginada” que Benedict Anderson cita, onde sentimento de pertencimento, de
reconhecimento e de identidade podem ser encontrados.
E por fim, chegamos à última leva de migração. Esse grupo constitui-se num grupo muito
variado e chegou em momentos diferentes, mas todos ligados a grandes ciclos de exploração do
Estado, importantes em sua formação,
O terceiro segmento populacional negro de Rondônia é muito mais difuso e variado.
Constitui-se de afrodescendentes provenientes de diversas regiões do Brasil que migraram
para as terras que hoje formam o Estado de Rondônia em diferentes momentos a partir do
Ciclo da Borracha (1870/1945), das minerações de cassiterita, pedras preciosas e ouro
(1950/1990) e para as frentes de colonização agropastoril (1960/1990) (TEIXEIRA,
FONSECA, MORATTO, 2011, p. 9).
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Logo esse grupo encontrou seu espaço como seringueiros, soldados da borracha,
mineradores e agricultores. Este último, em sua maioria nos projetos de colonização do Estado que
nos remete aos projetos nacionais de integração desse espaço ao espaço nacional, onde a máquina
pública foi utilizada para atrair ao Estado gente no sentido de encaminhar a “vocação agrícola” de
Rondônia e ocupar esse território e assim garantir a soberania nacional. Como resultados desses
projetos, muitas cidades do interior do estado surgiram. Esse foi um processo muito difícil e que
marginalizou essas populações. Quando o ciclo da borracha ou da mineração, por exemplo, faliu,
não houve uma organização por parte do Estado para acolher essa população, muitos ficaram aqui
por não ter condições de retornarem. Muitos vieram enganados por propagandas inverídicas de uma
terra extremamente fértil de um eldorado amazônico, que na prática não correspondia exatamente
ao prometido, fazendo nascer em pouco tempo uma população expulsa do campo, de sua pequena
propriedade por um pecuarista dotado de muito mais recursos tendo que ir para a cidade.
Acredito que por causa dessa migração tão intensa no Estado de Rondônia, a implicação na
identidade também foi forte e emblemática. Há uma recíproca relação entre migração e identidade.
“A globalização tem implicações com a identidade” (Hall, 2011, p. 34),
Portanto, é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos
modelos culturais tradicionais orientados para a nação. Como outros processos
globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas
compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias afrouxaram os laços
entre a cultura e o “lugar”. Disjunturas patentes de tempo e espaço são abruptamente
convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos diferenciais. As culturas, é claro, têm seus
“locais”. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam (...)” (HALL, 2001, p.
36).
Se a globalização em seu caráter migratório torna a identidade algo híbrido e ambíguo, essa
complexidade torna-se ainda mais explícita quando percorremos a definição de Hall de que essa
identidade é afirmada ou reafirmada se contando o passado e afirmando as diferenças. Isso é o que
Stuart chama de “Mito Fundador”6. Esse mito fundador levaria a uma noção exclusiva de pátria
(aquele sentimento de pertencimento de um lugar) e assim criaria um paradoxo, porque a
globalização em seus efeitos é desterritorializante, ela faz uma disjuntura da cultura em seu tempo e
espaço, tornando assim, a cultura uma produção daquilo que fazemos com nossas tradições que,
como muito bem descreveu Hobsbawn e Ranger, são inventadas e construídas para dar sentido aos
símbolos do nacionalismo e a construção da nação.
Para Stuart Hall, o mito fundador é uma concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria. Essa identidade seria
imutável e atemporal, isso seria tradição.
6
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Todavia, nesse sentido a memória torna-se o fio condutor dessa história. Como então, ver
essa memória construtiva dessa identidade social? Acredito que as reflexões de Michael Pollack
sobre Memória e Identidade Social vêm nos fornecer uma lente para essa análise,
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio
da pessoa. Mas Maurice Halbwaschs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória
deve ser entendida também ou, sobretudo, como um fenômeno construído coletivamente e
submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLACK, 1992, p. 202).
Então, a memória individual é também uma memória coletiva, e logo faz parte de uma
identidade social que pode ser construída e reconstruída e dessa forma a identidade pode ir se
transformando em meios a esses fluxos. Sendo assim, como encontrar então algo que possa ser
entendido como um marco? Para Pollack isso é perfeitamente possível. Não é porque a memória
sofre variações, que não podemos encontrar marcos, pontos invariáveis. Assim sendo essa memória,
(...) individual ou coletiva, pode ser flutuante, e mutável, mas, pode apresentar pontos
invariáveis e imutáveis que são percebidos numa entrevista em momentos que mesmo
perdendo-se na fala sempre volta a um (s) determinado (s) ponto(s) (POLLAK, 1992, p.
203).
Logo, existem elementos que são constitutivos dessa memória individual ou coletiva, que
são os acontecimentos vivenciados pessoalmente e os acontecimentos que foram vivenciados
através dos outros. Além disso, as pessoas, os personagens, os lugares físicos bem como os lugares
de apoio da memória como as comemorações são elementos que constroem essa memória coletiva
que pode ser projetada e transferida. Essa memória tem características como a seletividade, ela é
seletiva, porque escolhe os fatos a serem armazenados; é algo herdado e construído quer seja na
esfera do individual quer seja do social, mas em função de preocupações pessoais e políticas.
Vale perceber que as flutuações da memória não a diminuem, mas nos chama a atenção ao
dito e não dito da história, se toda pesquisa historiográfica se articula com lugar de produção
socioeconômico, político e cultural, a escolha desse lugar ou a sua não escolha é tão significativo
quanto, logo este lugar deixado em branco ou escondido pela análise (...) é uma instituição do saber
(CERTEAU, 1982, p. 68).
E essa instituição da memória como afirmou Cartroga, será sempre axiológica, fundacional,
socializadora, reatualizadora de um passado que tende a fundir no presente, a subjetividade com a
objetividade (CARTROGA, 2001, p. 40). E nesse caso o trabalho quase científico do historiador é
que vai separar memória e historiografia. Nesse ponto, Paul Ricouer nos traz luz ao identificar que
em seus próprios campos a memória e a historiografia se encontram na consciência da dúvida,
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consciência essa que é o princípio de um trabalho científico. Estabelecer esses limites é uma tarefa
complexa, que se torna ainda mais tênue quando nos lembramos de que para Paul Veyner de certa
forma a história é filha da memória, uma vez que a historiografia é legitimadora da memória,
todavia o oposto também é verdade: a história é um produto da memória. A grande diferença é que
enquanto a memória julga a historiografia pretende explicar e compreender os fatos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A identidade é algo construído dentro de uma memória coletiva e social que se utiliza de
valores como uma unidade física que nos dá o valor de pertencer a um lugar; a ideia de
continuidade dentro de um período de tempo seja ele físico, moral ou psicológico e o valor de
unidade e identificação entre as pessoas. Isso é trabalho da memória. Uma vez que,
(...) A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em
referência aos critérios de aceitabilidade, de admisissibilidade, de credibilidade, e que se faz
por meio da negociação direta com os outros (...) (POLLAK, 1992, p. 204).
Foi nesse sentido então de aceitabilidade, de se passar uma imagem de si para ou outros e
para nós mesmos que essa identidade social foi sendo forjada no emblemático fluxo migratório
rondoniense. Dessa maneira, a aplicabilidade da lei 10.639/2003 e sua efetividade no estado de
Rondônia corresponderia à intenção da lei? Iria ao encontro das disparidades de identidade desse
Estado? Esses são questionamentos ainda em abertos que nos convida à reflexão.
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das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana: uma
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A função da educação no campus Porto Velho Calama e o ideal de homem que se está formando
Iranira Geminiano de Melo
Liliane Barreira Sanchez
Resumo: Este artigo tem por objetivo elucidar a função da educação no Instituto Federal de Rondônia, Campus Porto
Velho Calama, na visão dos educadores e dos alunos, explicitando o ideal de homem que esse Instituto acredita estar
formando. Para proceder à coleta de dados utilizamos a metodologia do grupo focal. Assim, fizemos o convite aos
professores e alunos via email com o propósito de discutir a educação no IFRO, realizando um grupo focal com quatro
docentes e outro com 20 discentes. Durante a realização dos grupos utilizamos dois gravadores de voz, um moderador e
um anotador. As falas foram transcritas e interpretados com base nos princípios da hermenêutica e da teoria crítica. No
olhar dos estudantes predominou o entendimento de que a Instituição tem a função de formar para o mercado de
trabalho. A visão dos professores se focou nas diretrizes, apontando, a preocupação em formar o técnico e o cientista
como função institucional. As opiniões foram divergentes em relação ao homem que está sendo formado, ficando
evidentes preocupações em não estar formando nem o técnico, nem a pessoa com os conhecimentos necessários à
continuação dos estudos.
Palavras-Chave: Educação, ideal de homem, formação.
Abstract: This paper aims is to analyze the role of education in IFRO, Campus Porto Velho Calama, in the view of
teachers and students, demonstrating the ideal man that this Institute believes to be forming. For collection of data we
use the methodology of the focus group. So did the invitation to teachers and students via email in order to discuss
education in IFRO, a focus group with four teachers and another with 20 students being held. During the
accomplishment groups we used two voice recorders, a moderator and a recorder. The discussions were transcribed and
interpreted based on the principles of hermeneutics and critical theory. In the view students predominated the
understanding that the institution has the function form for the labor market. The vision of the teachers focused on the
guidelines, pointing to concern form the technical and institutional role as the scientist. Opinions differed on the man
being formed and were evident concerns are not forming neither the technical nor the person with the knowledge to
continue their studies.
Keywords: Education, ideal man, formation.
Introdução
Este artigo é resultado de parte da dissertação desenvolvida pela primeira autora, sob
orientação da segunda. O objetivo é elucidar a função da educação no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), Campus Porto Velho Calama, na visão dos
educadores e, dos alunos, demonstrando o ideal de homem que esse Instituto acredita estar
formando e estabelecendo uma relação com o que a Instituição se propõe.
As inquietações com relação à função da educação no Campus Porto Velho Calama sugiram
dos constantes debates presenciados em reunião de professores e conselhos de classe envolvendo a
dicotomia formação humana versus formação técnica. É frequente a preocupação dos professores da
formação básica com a educação para o exercício da cidadania, o acesso ao ensino superior e a
emancipação do aluno. Enquanto aqueles da área técnica argumentam a necessidade de essas
disciplinas serem desenvolvidas em consonância com as matérias técnicas para que a formação
profissionalizante seja mais efetiva.
As propostas pedagógicas dos cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio destacam o
ensino como uma atividade de compartilhamento de conteúdo, e a aprendizagem como um processo
de construção de conhecimentos. Nesse processo, os estudantes “e os professores serão sujeitos em
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constante dialética, ativos nos discursos e efetivos para interferir nos processos educativos e no
meio social” a partir de conteúdos que “associam o mundo do trabalho, a escola e a sociedade” de
modo contextualizado e “trabalhados com recursos tecnológicos e estratégias inovadoras, mediados
por relações afetivas, interacionais e transformadoras” (IFRO, 2010, p. 12).
Com base nesses princípios, surgem alguns questionamentos: transformar o ensino médio
em muleta para uma formação profissional efetiva não atende a amplitude da missão institucional e
compromete o desenvolvimento integral do aluno e a possibilidade de acesso ao ensino superior,
aumentando as possibilidades de se ter como resultado um mero técnico, sem condições de realizar
reflexões críticas e de transformar a realidade social em que está inserido? Se a falta de recursos
tecnológicos compromete as estratégias inovadoras, não se estaria incorrendo no risco de
comprometermos o compartilhamento de conteúdo, a aprendizagem e a construção do
conhecimento e com isso a formação cidadã e técnica do aluno? Esses são dois dos principais
questionamentos que motivaram a realização desse estudo, que envolve também aspectos relativos à
educação que estamos fazendo e à educação que queremos.
Em termos conceituais a palavra educação tem uma diversidade de definições na literatura.
Aqui, consideramos necessário apontar que, no modelo atual, ela surge com a Revolução Burguesa,
que, dentre seus objetivos, elencava a educação como um direito universal, assumindo,
particularmente, a inculcação cultural. Ela “abrange os processos formativos que se desenvolvem na
vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (BRASIL,
2010, p. 7).
Assim, a educação apresenta também uma variedade de atores e elementos atuando no
processo, que não deve ser visto apenas como a mera transmissão de conhecimentos ou de cultura
de uma geração para outra, bem como um instrumento que assegura a reprodução cultural, política,
econômica e social de determinada sociedade. Vista apenas destas formas, podem-se aumentar as
possibilidades de evitar que a educação seja um instrumento de fortalecimento do poder da classe
dominante. Embora, como destaca Sanchez (2012, p. 123) “pensar a educação como transmissão do
patrimônio cultural e de formação de valores implica pensar os projetos pedagógicos dos diferentes
contextos sociais e históricos, que são, também, projetos políticos”, portanto, “são instituídos pela
sociedade, com objetivos e finalidades específicas”.
Em relação aos objetivos e finalidades da educação, Sarti (1979, p. 38) afirma que “a escola
(assim como o processo educativo em geral) exerce uma função dupla”: formar mão de obra
qualificada e transmitir os valores da classe dominante, sendo que ambos os “aspectos dessa dupla
função se unificam na necessidade de expansão (econômica) e manutenção (ideológica) do
sistema”.
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Sobre a formação de mão de obra qualificada, Althusser (1996, p. 105) entende essa
qualificação como indispensável para a reprodução do status quo vigente: “para existir, toda
formação social, ao mesmo tempo em que produz, para poder produzir, tem que reproduzir as
condições de sua produção” - reproduzir as forças produtivas e as relações de produção existentes.
Dessa forma, o referido autor destaca que a condição suprema da produção é a reprodução das
condições de produção.
E para reproduzir as condições de produção é necessária a reprodução das forças produtivas,
que para Althusser (1996, p. 107) “é assegurada em se fornecendo à força de trabalho os meios
materiais para sua reprodução: através de salários”. Mas, o autor observa que para a força de
trabalho se reproduzir, não basta assegurar as condições materiais de sua reprodução, pois a mão de
obra disponível deve ser competente – apta a ser posta no mercado de trabalho para trabalhar no
complexo processo de produção.
Silva (2006, p. 1-2) enfatiza que, na sociedade capitalista, cada vez mais “os valores
materiais sobressaem-se aos valores humanos, a individualização, a competição e a concorrência,
essenciais ao desenvolvimento do capitalismo, levam o homem a atitudes subumanas que retratam a
barbárie instaurada por esse sistema”. Nesse contexto, a educação assume duplo papel: o de
denunciadora “da educação burguesa como instrumento da ideologia dominante” e o de “repúdio
categórico às propostas reformistas a serem implementadas pelo Estado burguês”, reconhecendo os
“atributos da educação em termos de meio de conscientização” e revelando seu potencial
transformador (SARTI, 1979, p. 9).
Nesse sentido, é importante destacar que a educação escolar (institucional) sempre será uma
ferramenta de conformação ideológica, independentemente do sistema político-econômico vigente.
Isso é salientado tanto por Sarti (1979), ao analisar Lênin, que, após conquistar o poder na Rússia,
teria destacado a necessidade dos membros do partido conquistarem os professores e promoverem
uma reeducação nos espaços culturais e de ensino; como por Souza (1987), para quem a educação é
uma ferramenta para construir e consolidar outros tipos de estrutura social, seja por meio de uma
reforma ou de uma revolução. Nesse caso, ela se transforma em um mecanismo utilizado para se
“criar as condições subjetivas que possam personificar relações econômicas e ideológicas nos
grupos sociais que constituem a estrutura social” (p. 29).
Assim, os resultados da educação que se está promovendo no Campus dependerá das ações
sistematizadas pelos professores, as quais estão sintonizadas aos projetos pedagógicos dos cursos.
Projetos esses que foram instituídos de forma pouco democrática, ou melhor, importados de outras
realidades, cujos contextos sociais e históricos são bastante diferentes. Por isso, estão, na segunda
metade do ano de 2014, sendo reformulados. Ainda assim, é perceptível que pouco se alterará de
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fato, pois, ainda estarão orientados pelo projeto político, ou melhor, serão instituídos por uma
sociedade capitalista e neoliberal em relação a sua forma, objetivos e finalidades específicas.
Material e Métodos
Esta é uma pesquisa qualitativa, realizada a partir de estudo bibliográfico, coleta e
interpretação de dados, obtidos a partir da realização de grupos focais e aplicação de questionários.
Desse levantamento resultaram reflexões de cunho sociofilosófico a respeito da educação que se
desenvolve no Campus Porto Velho Calama, do IFRO.
Para desenvolver este trabalho, optamos por nos limitar a um determinado grupo de
professores e outro de alunos e pelo uso de um referencial bibliográfico que constituiu o aporte
teórico que dialoga com os dados coletados e ajuda a compreender, numa perspectiva
sociofilosófica, a visão de professores e estudantes em relação à função da educação no IFRO,
Campus Porto Velho Calama e ao ideal de homem que esse Instituto está formando.
Para proceder à coleta de dados foi feito o convite aos professores e alunos via email para
participarem de um grupo focal com o propósito de discutir a educação no IFRO. Compareceram ao
grupo docente quatro professores, e ao grupo discente vinte alunos, com os quais foi aplicada a
metodologia do grupo focal. Durante a realização dos grupos, utilizamos dois gravadores de voz,
um moderador (que direcionou as discussões de acordo com as respostas e com um roteiro
previamente elaborado) e um anotador de informações relacionadas às expressões corporais que
passam despercebidas aos gravadores de voz. Ao término de cada grupo, os colaboradores
responderam a um questionário, resumindo suas opiniões sobre os aspectos discutidos. Os dados
foram transcritos e analisados textualmente e organizados em ilustrações confeccionadas com o
emprego do Software NVivo 10, que facilitaram a visualização dos resultados.
Para interpretarmos as falas surgidas no grupo focal e as respostas dadas aos questionários
recorremos aos princípios da hermenêutica e da teoria crítica, que fundamentam as nossas reflexões
sociofilosóficas. Para assegurar o anonimato, os professores receberam uma letra: Professor A,
Professor B, Professor C e Professor D; Estudante A, Estudante B, e assim por diante.
Resultados e Discussão
A nuvem de palavras a seguir representa os vocábulos pronunciados pelos professores ao
falarem sobre o que entendiam por educação. Observamos que os termos professor, educação,
escola e processo são as palavras mais frequentes. A educação, para existir no modelo que temos,
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requer professores em uma instituição de ensino (escola) e um processo, que é o meio, o caminho
que tem de ser trilhado para se chegar à formação do homem.
Figura 1: A educação no IFRO e o ideal de homem, Porto Velho, 2013.
Fonte: Melo e Sanchez, 2013.
O termo educação foi descrito pelo professor A como “um processo informativo que tem
como finalidade, que tem ou que deveria ter, como uma das suas finalidades uma formação o mais
abrangente possível e o mais humanístico possível, isso o conceito. Agora, o significado pra mim,
educação é uma prática transformadora”.
Para o Professor B, ao se considerar a educação formal, a escola tem o papel de “produzir
mudanças, provocar mudanças no sujeito, no estudante, na pessoa que procura a escola”. Quanto à
transformação, ele afirmou que “ela é discutível, por que transformar o quê? Quando? Por quê? Que
a educação precisa, tem esse papel, tem esse significado de transformadora. E é aí que entra a
questão mais complexa a respeito, possivelmente, do papel da escola e a escola às vezes se perde
nisso”.
A transformação, para o Professor A, é “uma ação voltada para formar esse sujeito. Esse
estudante na maneira como ele vê o mundo e na maneira como ele se posiciona no mundo. Ou pelo
menos fornecer para esse estudante os instrumentos básicos pra ele poder se comportar perante os
desafios”.
O Professor C destacou que a educação “é o processo formativo. Mas em relação à educação
escolar, a gente sabe que a escola, ela se enquadra dentro dos mecanismos de controle”. Acrescenta
que no caso dos Institutos Federais “o nosso processo formativo, ele se enquadra na questão técnica,
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o que limitaria “muito essa amplidão que é o processo geral. O ideal seria que o aluno chegasse à
compreensão e à vivência do conceito de cidadania”. [...] “Mas, ao mesmo tempo, a gente sabe que
essa mesma educação vai controlar algumas coisas na vida dele. E nesse sentido, educação não visa
formar para o mercado, não visa... Então, ela tem um significado, também, de abrir os horizontes
para a pessoa que passa por esse processo”. E nesse caso, a pessoa teria condições de tomar
“decisões autônomas e não a partir de coisas que sejam exteriores a ela”. Nesse caso, a educação
como processo formativo estaria criando “novas posturas, novas possibilidades para a pessoa diante
do que se apresenta no dia-a-dia, socialmente, ou em outras categorias que venham a se apresentar
para a pessoa. Que embora a gente seja envolvido em formar, mas a gente também é formado nisso
aí, nesse processo”.
Observamos que na fala do Professor C, há um ideal de educação que não está sendo
atingido e que no processo educativo do ensino técnico integrado ao médio parece ainda mais
distante essa criação de novas posturas e possibilidades. Pensando em educação como processo
formativo, o professor nega que ela vise formar para o mercado de trabalho, mas sim desenvolver a
autonomia nas tomadas de decisões. Outro aspecto importante na fala anteriormente citada é que
para o professor, quando se pensa em educação escolar como processo formativo, não considera-se
essa formação apenas para o estudante, mas, assim como Freire e Shor (1986), ele vê o professor
também sendo formado por esse processo.
O Professor D falou da educação escolar como uma relação complexa, que pode agir na
reprodução do sistema, mas também como agente da transformação. Para ele “esses
questionamentos que levam a uma educação que é para criar um cidadão pleno, mas ela também
reproduz a sociedade em que ela tá inserida: A sociedade do capital”. Estando a escola presa ao
sistema surgem as “teorias que debatem: de um lado a hegemonia do capital e do outro lado a contra
hegemonia do capital”. Como parte de sua argumentação, esse educador cita a fala de seu colega no
grupo: “como o Professor B falou: Como a gente vive nesse fio da navalha, como a escola também
pode reproduzir o capital, mas ela tem outro papel, como ela pode também ser o agente da
transformação, o agente da mudança”.
Na fala anterior do Professor C e agora também na fala do Professor D, parece haver uma
preocupação com o caráter reprodutivo da educação e com a sua possibilidade de ser um agente de
transformação. E nesse debate surge o ideal de homem que se pretende formar, pois se estamos
desenvolvendo uma educação reprodutora, ela deve ser a garantia da reprodução da força produtiva.
Na perspectiva dos professores, o ideal de homem que o Instituto pretende formar é: “Um
homem trabalhador, eficiente, mas pouco crítico” (professor A); “A pretensão do IFRO é formar um
cidadão” (professor B). No entanto, parece aos professores ser complicado o alcance deste ideal de
homem, uma vez que os cursos integrados ao ensino médio possuem uma matriz curricular
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constituída por muitas disciplinas (técnicas, básicas e diversificadas), sendo poucas aulas por
semana de cada uma, principalmente de matérias que possibilitem discussões sobre a cidadania,
sobre como exercê-la, como sociologia e filosofia. “Busca-se oferecer uma educação que contribua
para a autonomia da pessoa, de tal forma que ela exerça a cidadania” (professor C). “O Instituto
Federal de Rondônia espera o homem (o cidadão pleno) consciente do mundo em que vive,
reflexivo da sociedade capitalista, porém capaz de desenvolver habilidades e competências para o
mercado de trabalho” (professor D). Mesmo não destacando a formação para o trabalho como uma
preocupação, os professores reconheceram essa tarefa como função institucional.
Os estudantes apontaram como função da Instituição formar o homem: “Crítico e ético”;
“Técnicos em algum curso”; “Consciente de que o mercado de trabalho precisa dos melhores
profissionais”; “Pessoas qualificadas para o mercado de trabalho, convívio com a sociedade”;
“Pessoas de ética, moral e caráter, que saberão atuar de forma certa no local onde trabalhará”;
“Profissional totalmente qualificado”; “Um homem crítico e questionador”; “Pessoas bem
capacitadas e que sigam as regras da sociedade”; “Aquele que esteja preparado para mudanças e
que saiba lidar com as situações”; “Com capacidade e pronto para o mercado de trabalho”; “Bons
profissionais, sendo eles referência no mercado onde eles darão mais nome à Instituição”; “Pessoas
que ajudam não só o meio acadêmico, mas também a comunidade. Tendo em vista seu caráter
formado”; “Com caráter, ética e boa índole”; “Um homem com caráter, ético e com respeito à
sociedade”; “Um profissional bem qualificado e apto para exercer sua formação”; “Uma pessoa
profissionalmente, com uma visão realista do futuro e preparada para um ensino mais capacitado”;
“Cidadão é o principal motivo, além de formar pessoas críticas em relação ao seu meio”; “Que aja
com ética e moral”; “Cidadão com uma profissão”; “Profissional bem qualificado, com resultados
que possam ser indicados, ter objetivos amplos, com tendência de crescimento em geral e com
remuneração alta, para ter uma qualidade de vida boa”.
As falas dos estudantes sugerem que retornemos aos questionamentos do Professor B:
“Transformar o quê? Quando? Por quê?”. São perguntas que, talvez até o final das discussões, o
grupo não tenha respondido. É importante ainda mencionar que o pensamento pedagógico é
determinado por um pensamento filosófico que o precede e também por uma concepção de
“homem” e de “sociedade”. Nesse sentido, o termo usado pelo Professor D de que “a escola fica no
fio da navalha” pode indicar que ela pode ser o espaço, algumas vezes propício para novas ideias.
Mas, em muitos momentos, a escola pode funcionar, conforme Althusser (1996) afirma, como um
aparelho ideológico de Estado.
“No fio da navalha” pode estar ainda o reconhecimento de que “não é a educação que
modela a sociedade, mas, ao contrário, a sociedade é que modela a educação, segundo os interesses
dos que detêm o poder”. E, se assim for, as lutas para a possibilidade de transformação se acentuam
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profundamente. Seriam ações pautadas na esperança e não na ingenuidade, pois seria ingênuo
demais pensar que na estrutura política apresentada se possa “atuar contra ela” (FREIRE & SHOR,
1986, p. 49).
Em relação à opinião dos professores sobre o papel social, educacional, pedagógico e
político do IFRO, apresentamos a seguinte nuvem de palavras dos professores e estudantes. É
possível observar que os termos professor, político, pedagógico e necessidades estão aparentes, o
que sugere que as responsabilidades institucionais envolvem o professor para que possam ser
cumpridas e implementadas.
Figura 2: O papel do IFRO, Porto Velho, 2013.
Fonte: Melo e Sanchez, 2013.
O Professor B acredita que a instituição tem uma dupla ambição: “formar o aluno para o
ensino médio, prepará-los para o prosseguimento dos estudos e, também prepará-los para o
exercício de uma profissão”. Nesse caso, a formação técnica integrada ao ensino básico “quer
formar para esses dois caminhos. Só que na realidade a gente tem alunos que está aqui, se acha
aqui, no curso técnico em química, mas que pretende, por exemplo, atuar na área do jornalismo”.
Na concepção do professor, o IFRO tem o propósito de, além do ensino médio, oferecer o curso
técnico; retirando-se esse último, seria uma escola “como outra qualquer. Tem algum diferencial,
mas esse diferencial é mais material do que pedagógico”.
Observa-se que a primeira ideia sobre contexto educacional e pedagógico é a de formar
alguém, mas esse formar alguém deve envolver todo o processo formativo, em seus múltiplos
aspectos, especialmente o político e o social. Assim, cabe questionar: como está se dando esse
processo formativo na Instituição? Nesse processo de formação, os aspectos educacional e
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pedagógico estão intimamente relacionados ao aspecto social e ao político, isto é, a formação
acontece com e na interação desses papéis ou funções?
Nesse sentido, o Professor D acredita que o papel político e o social dos Institutos Federais
ainda está em construção e se questiona “como fazer com que a cultura geral se integre ao curso
técnico?”, apontando ser esse o papel pedagógico do IFRO. É notável que mesmo tentando abordar
o papel político do IFRO, o Professor D acabou por apontar o papel pedagógico e, ao concluir sua
fala, o Professor B desabafou: “E o técnico se integra à formação geral, quer dizer, aí que me parece
o nó”.
Então, o Professor D prosseguiu afirmando que no papel político está a questão de “como
desenvolver tecnologia, inovações para essa região? Porque Rondônia é o novo Mato Grosso. Mas
ele (estado de Rondônia) não pode derrubar mais nada. Tem que investir naquilo que foi derrubado
para produzir” e ir corrigindo a falta de investimento em tecnologia. Então, o país “tenta fazer dos
institutos federais aquilo que funcionou na França e no Japão. Mas só que há setenta anos, atrás”.
Quanto ao papel social, ele diz que essa sociedade tem necessidades econômicas e sociais e
situa Rondônia como uma “região de fronteira onde faltam engenheiros, arquitetos, pessoal ligado
mais ao Cone Sul. Da agricultura, falta engenheiro agrônomo, veterinário, uma mão de obra que
não tem nessa região. E aí, o Instituto deve oferecer essa mão de obra, para esses grupos
econômicos?” O Professor D lembrou que todo o Estado sofre com isso, acrescentando que na parte
econômica há necessidade de muito investimento, citando como exemplo a parte veterinária, já que
Rondônia tem um dos maiores rebanhos do Brasil e as formações na área de “engenharias” está
voltada para o engenheiro mecânico e o arquiteto e urbanista – provavelmente se referindo à futura
oferta de curso na Instituição. Por fim, o professor questiona: “Qual é o que a gente vai ter? Qual é a
necessidade dessa região?”
Pode-se perceber que não há clareza, em termos políticos, sobre qual seria a política de
expansão do IFRO em relação às perspectivas de crescimento do estado de Rondônia. Formar para
atender a uma demanda estanque ou para expandir para regiões mais estratégicas do Estado? O
professor B aborda esse assunto apontando para a necessidade de um estudo das microrregiões antes
de implantar os campi, pois há alguns em municípios muito próximos e sem tanta diversidade
econômica que os justifiquem.
Não podemos desconsiderar que o IFRO é uma rede de escola com ensino médio, técnico e
tecnológico, mas que também oferece curso superior. Então, a expansão do ensino universitário no
Estado de Rondônia deveria ser um papel político do IFRO também. Sobre esse papel político,
social, pedagógico e a intersecção entre eles, o Professor A enfatiza que esses papéis precisariam
ser tratados conjuntamente, no entanto, “a impressão que dá é que quando se pensa em uma coisa
não se pensa em outra. E aí alguma coisa não funciona”. Ele ainda destacou não há “uma atenção
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mais detalhada para as demandas, para as necessidades das microrregiões, dependente de cursos
importados de Santa Catarina, de São Paulo, que não necessariamente há necessidade das pessoas
que vivem no lugar”.
Continuando a argumentação, o Professor A afirmou que se “apenas atender às demandas, a
gente acaba não desenvolvendo esse papel político que pode ser muito maior que é o de produção
de ciência e tecnologia, de ocupação de outros espaços na sociedade, de formação de cursos de
nível mais elevados”. Por outro lado, ele afirma entender que “não pode simplesmente viver para
atender às demandas do mercado. Isso seria deixar-se usar muito como aparelho ideológico e não
pensar em outras possibilidades”.
Parece que o IFRO e, mais especificamente, o Campus Porto Velho Calama, tem se
concentrado em atender demandas, sendo necessário ampliar os diálogos com as comunidades para
a construção de sua política de oferta de cursos. O que se questiona acerca desse assunto,
considerando as políticas, o contexto e a construção do projeto pedagógico educacional é: como
ocorre a participação dos professores na elaboração, na construção das propostas dos cursos em que
eles atuam? Observa-se que o Professor A menciona a importação de cursos de realidades muito
distantes da que se vivencia no estado de Rondônia. O professor A destaca ainda a falta de
discussões sobre o projeto político pedagógico:
Quando cheguei, ainda nem tinha curso e a gente jamais participou de nenhuma discussão
de projeto político pedagógico. O Campus não tem seu projeto, seus projetos de curso
foram feitos a gente não sabe por quem. Inclusive a ementa que eu ministro há dois anos,
não foi feita por mim e eu não posso alterá-la. Tem esses defeitos seriíssimos. A gente já
cansou de conversar sobre isso nos conselhos de classe, nas reuniões pedagógicas. Mas
enfim, me parece que há uma resistência muito grande em permitir que nós professores, que
estamos em sala de aula, e sabemos as necessidades dos alunos, e o que tem que ter no
segundo ano do ensino médio, do curso de Informática. E, eles resistem muito em permitir
que a gente possa receber esses documentos no Word ou pelo menos copiá-los. Não sei por
que isso acontece, mas a gente não participou de nenhuma discussão sobre isso. Inclusive o
Campus até hoje não tem projeto político pedagógico.
Contribuindo com essa discussão a respeito de projeto político pedagógico de curso, o
Professor B afirmou que “não ia dizer que não sabia da existência”, devido o tempo que tem de
Instituição, destacou que os conteúdos que trabalha estão previstos na ementa da disciplina que ele
leciona. Continuando sua fala, ele mencionou: “E eu também cheguei a comentar sobre a ementa,
disse... olha o que não posso fazer, estou fazendo adaptações. É, não poderia, mas estou fazendo,
adaptações”. Nesse momento, o Professor A interrompeu e destacou: “Na verdade, a gente tá
fazendo um currículo oculto”. E o Professor B confirma, salientando que esse currículo oculto é
registrado: “É, mas não, mas a gente tá registrando”. O Professor A concluiu: “Há uma ementa
formal, mas a gente dá um currículo oculto”. E sua conclusão foi aprovada pelo Professor B, que
concordou: “Exatamente!”.
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As falas evidenciaram que há um programa que não atende às necessidades pedagógicas,
que não foi discutido pelos professores e eles percebem suas lacunas e buscam fazer adequações. O
Professor B amplia essa compreensão afirmando que a “impressão que a gente tem é que quem
decidiu por essa ementa, essa, do jeito que está no currículo, é que não se preocupou com a questão
de pré-requisito, de sequência, porque as disciplinas têm pré-requisito”. Para o professor isso é
importante porque “se não você pode dar tudo a qualquer hora, dar nada e pronto. Não, tem que ter
uma organização pedagógica que é preciso seguir, é preciso apresentar, é preciso adaptar o tempo
todo”. Ele ainda acrescenta que não participou da elaboração do projeto político pedagógico dos
cursos em que leciona.
Cabe aqui destacar que no dia 30 de agosto de 2013, o Campus fez três anos. No entanto,
mesmo com todas as demandas e lutas, com a nomeação de outro reitor (ainda sem eleição, prevista
para 2014), apenas em setembro de 2013, a Pró-Reitoria de Ensino (PROEN) iniciou uma discussão
sobre reformulação de ementas (em ambiente virtual) somente com docentes do núcleo comum.
Ainda que se considere que o uso do ambiente virtual é cada vez mais frequente, há que se observar
que a construção do currículo demanda discussões, diálogos, debates e (des)entendimentos que são
comprometidos quando não há a possibilidade de encontros presenciais.
Ainda sobre o currículo, o Professor C se manifestou, afirmando que na “verdade, parece
que houve uma pesquisa de implantação. Antes da implantação, se percebeu alguma necessidade,
implantou, mas não se chegou ao ponto de se fazer a construção do projeto político”. Para ele, isso
impede as contribuições das pessoas da região, que realmente conhecem a realidade. Outro aspecto
evidenciado é que o trabalho interdisciplinar não tem sido desenvolvido, talvez por não haver essa
construção coletiva.
Nesse momento, o Professor B disse “que para quem chega, também, o certo seria mostrar: esse é o nosso projeto político pedagógico, a senhora ou o senhor se teve isso...” O Professor A
esclareceu: “não tem projeto político pedagógico”. E o Professor B continuou: “E aí [...], qualquer
coisa, qualquer questionamento, porque pelo menos deveria ser assim”. Concluindo, o Professor C
destacou a importância desse documento para os docentes recém-chegados à instituição: “Para a
gente que está chegando isso seria bom”.
Então, contribuindo com o debate, o Professor A fez uma contextualização a respeito do
assunto, afirmando que o Campus
Só tem os projetos pedagógicos dos cursos, não há projeto político pedagógico. Projeto do
Curso de Informática Médio, Projeto do Curso de Informática Subsequente. Esses
problemas que quem chegou agora constatou-os, e por sinal também são problemas
conhecidos já desde o ano passado, ou ano retrasado. Sei que isso é triste, mas ainda não
houve ninguém que diga vamos elaborar isso? Vamos reelaborar isso? Agora a gente sabe,
eu digo isso porque o ano passado a gente teve um problema com a disciplina [menciona a
disciplina que leciona], que o conteúdo previsto para a disciplina a gente terminou no
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começo do terceiro bimestre. Era tão pouco conteúdo previsto que mesmo com a greve, tipo
assim, no dia 11 de setembro, nós já teríamos terminado tudo que estava previsto para todas
as turmas do curso, e a gente tinha dois bimestres pela frente, mais 30 dias depois de greve.
Na verdade, o que a gente fez foi outra ementa oculta, não oficial para poder ter conteúdo
para as oitenta horas de aula, requeridas pelo MEC. É uma coisa absurda. Esse ano vai
acontecer a mesma coisa, o conteúdo da ementa é menos do que o que eu tenho de horas
aula para ministrar. E assim, eu não sei até quando isso vai estar acontecendo.
A partir dessas falas, consideramos que, de qualquer modo, a Instituição não funciona sem
um elemento norteador e que, se veio uma diretriz a partir de uma orientação do MEC ou de um
modelo ou referência de outro Instituto Federal, de outro estado, ela não precisaria de três anos para
se iniciar um processo de redirecionamento. Processo esse necessário e urgente, como pode ser
observado nas quatro falas anteriores e na fala seguinte, na qual o Professor D afirmou que “As
questões de implantação são muito difíceis, porque fica sempre aquela coisa de impor. E aí, nessa
imposição a gente já está há três anos. E já era para ter sido, pelo menos isso, deveria ser feito de
uma forma democrática, com a participação de todo mundo”.
Sendo assim, parece que a organização dos cursos não está atendendo nem a “gregos nem a
troianos”, ou melhor, nem aos docentes nem aos estudantes. Observamos vários apontamentos dos
professores sobre esse assunto, mas também na fala do Estudante D, que destacou que deseja fazer
um curso superior em “outra instituição, porque aqui tá faltando muito curso superior, por exemplo,
a gente tá fazendo o ensino médio integrado ao técnico, mas não tem uma graduação, pelo menos
em informática não tem, eletrotécnica, edificações, química, não tem uma continuação do curso”.
Se os cursos não estão atendendo à demanda de mercado, também não estão sendo
organizados pensando em continuação da escolaridade do estudante em suas áreas de formação
técnica. Existem, como o Estudante D apontou, os cursos técnicos em Informática, Química,
Eletrotécnica e Edificações, mas o curso superior ofertado é em Física, o que parece não estar de
acordo com as expectativas dos estudantes, já que apenas um participante citou querer fazer física e
os demais pretendem: Química, Direito, Matemática, Engenharia química, Engenharia de
navegação, Engenharia de petróleo, Arquitetura, Engenharia mecatrônica.
Por outro lado, parece que as tentativas de fazer uma instituição democrática esbarram no
discurso do processo de implantação. Essa situação parece cômoda a quem apresenta essa
justificativa, mas mostra-se de outra forma para quem a escuta, conforme a fala do Professor A:
Me incomoda esse discurso do estamos em implantação, estamos em implantação, como se
todas as deficiências fossem porque estamos em implantação. Os institutos foram criados
em 2008, sabe? Até quando ficaremos em implantação? Dez anos para as coisas serem
analisadas? Eu vejo que há falta de um esforço político em ouvir as pessoas, ouvir,
principalmente nós professores, que estamos em sala de aula e construir novas diretrizes. E
aí, fica-se com o discurso de que: Ah, mas é implantação. Nada pode ser feito.
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A fala do Professor B contribuiu com essa análise da realidade dos Institutos, que talvez se
possa chamar de antidemocrática ou, se é democrática, é uma democracia da minoria, já que nem os
professores nem os estudantes estão sendo considerados: “eu penso que o primeiro ano era um ano
chave, um ano importante para saber, sentar e ver tudo que se precisava adaptar. Já que tinha
pessoal suficiente, ou pelo menos, quase suficiente”. Para o Professor isso é complicado, pois “um
ano é suficiente para você errar, para você acertar, e para você depois pensar e refazer, e obter
resultados”.
Sobre a necessidade de um processo de reformulação dos currículos, o Professor B disse ser
importante: “Iniciar e rápido, hoje você tem elementos o suficiente para uma reconstrução, mas
é...”. Então, o Professor D interrompeu, afirmando que: “Um amplo quadro, professores da equipe
pedagógica a gente tem 50%, então eu acho que já deveria ter sido... [pausa]” e o Professor A
destacou: “Não há falta de servidor e nem falta de manifestação de nossa parte”.
Essas falas podem indicar que, apesar de os professores terem aceitado os projetos
pedagógicos de cursos copiados (ou imitados) de outras instituições, sentem a necessidade e
percebem as condições para readequá-los à realidade que estão vivenciando. Podem sugerir ainda
que, mesmo havendo manifestação dos professores e quantitativo favorável de servidores, não se
diz o porquê de ter havido resistência a essa reformulação.
Provavelmente nesses apontamentos feitos pelos professores possa se identificar o que
Souza (2009, p. 294) chama de “má-fé institucional”, referindo-se “a uma ação institucional que se
articula tanto no nível do Estado, através dos planejamentos e das decisões quanto à alocação de
recursos, quanto no nível do micropoder”.
Visamos agora ampliar essa discussão, buscando compreender qual o ideal de homem (no
sentido de cidadão, pessoa) que o Campus investigado pretende formar (ou está formando), na visão
que os professores e estudantes têm a respeito dessa, nas palavras de Freinet (2004), “obra de vida”.
Em relação ao ideal de homem ou ideal de pessoa que a Instituição pretende formar segue
uma nuvem de palavras, na qual se destaca “professor” como o termo mais pronunciado. Na
sequência, apresentam-se os posicionamentos dos participantes a respeito desse assunto.
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Figura 31: O ideal de homem que a Instituição pretende formar, Porto Velho, 2013.
Fonte: Melo e Sanchez, 2013.
O ideal de homem envolve tanto as diretrizes políticas e pedagógicas, como as tendências
pedagógicas, seguidas da relação teoria e prática e da relação professor-aluno, dentre outros fatores.
O Professor B iniciou essa abordagem entendendo como diretrizes os planos de curso. O homem
quer se quer formar, disse ele, “é o homem preparado para o trabalho. Para o qual ele está
matriculado, para a função que o curso vai lhe possibilitar e, também, o Instituto quer alguém que
seja pesquisador, que seja técnico e que pense”. Segundo o professor, isso está “bem claro em todos
os planos de curso, a gente percebe isso. Agora para ele [o IFRO] formar isso, daí a isso acontecer é
preciso que a prática aconteça. Isso teoricamente está muito bem claro”.
Observamos um afastamento entre a perspectiva teórica (as ideias materializadas nas
diretrizes) e a realidade que está posta, que se apresenta no cotidiano dos professores. Em
colaboração com a fala do Professor B, o Professor D acrescentou que a ideia de formar para o
trabalho e para a ciência (alguém que seja pesquisador) está presente: “Até mesmo na lei que cria os
Institutos está, no princípio. Depois, vêm os outros princípios da demanda de mercado”.
Entretanto, o Professor A tem outros apontamentos em relação a esse ideal de homem e
sobre a forma como o Campus está trabalhando, que parecem estar desencontrados. Ele tem a
impressão de “que não há nenhum ideal de homem a ser formado”, e, acrescenta ter participado, no
dia anterior ao do grupo focal, de uma reunião com uma turma de terceiro ano do curso técnico em
edificações e eles teriam falado: “Professor, aqui a gente se forma como técnico de edificações e a
gente não tem prática de edificações, a gente não sabe professor, fazer um projeto nem construir
uma parede”. E o professor constata: “Quer dizer, não se está formando o técnico, não se está
formando trabalhador e também não se está formando um futuro estudante universitário, porque
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com os componentes curriculares reduzidos, para atender às disciplinas técnicas que não
funcionam”.
Concluindo esse raciocínio o professor acrescentou que há um comprometimento de ambas
as formações porque as matérias do núcleo comum são reduzidas: “Quer dizer, não está formando
ninguém, não tá formando nada, está gastando dinheiro público. A julgar pela crise atual, que eu
espero que seja momentânea e que passe logo” (Professor A). Sobre a formação para o trabalho, o
Professor B disse que a formação dos cursos subsequentes pode ser melhor, mas é sua preocupação
também não estar formando nem o técnico, nem a pessoa com a formação geral.
Os estudantes também reconheceram que não estão tendo a formação técnica adequada. O
Estudante B, ao se manifestar sobre se a educação recebida pelo IFRO contribuiu ou não para que
ele possa transformar a sociedade, afirmou que: “Como formação técnica eu não tenho capacidade
mental nenhuma, aí tipo, na formação cidadã é que eu consigo entender como eu posso contribuir”.
O estudante esclarece que no tocante à formação técnica “70% das pessoas que saírem daqui não
vão estar capacitadas suficiente para dar uma qualidade de serviço e nem assistência para empresas.
Podemos até ter bons professores, mas muitos alunos gostam, estão aqui pela qualidade do ensino”.
e conclui sua fala acreditando que será “pior técnico em informática que tem, mas o ensino aqui é
tão bom que eu acho muito melhor ficar aqui quatro anos do que ficar três anos numa escola
estadual”.
O Professor C destacou a seriedade que é pensar esse ideal de homem que a escola está
formando ou se propõe a formar e que, diante da realidade vivenciada, pode-se estar formando
pessoas que não conseguirão emprego, nem continuar seus estudos.
Na verdade o ideal de homem... Esse ideal de pessoa... É preciso ter mais claro isso, eu
acho que na verdade essa coisa é séria mesmo. Não é brincadeira, não é uma coisa para se
levar assim sem cojulgamento, sem planejar melhor as coisas. Porque é muito séria essa
questão de projeto de pessoas. Nós podemos, futuramente, ser lembrados como uma
geração de educadores que deu como resultado pessoas que não conseguem nem trabalhar
nem estudar. [Professor A: A gente tá vivendo isso!] Na verdade, é ao contrário, é o ideal
de pessoa, no grego se diz Paideia. O nosso projeto, a nossa Paideia é uma pessoa muito
diferente dessa que tem sido gestada nos últimos 20 anos, 30 anos aí. São pessoas que
sabem reclamar do que não funciona, que sabem reclamar, que sabem planejar aquilo que
ele acha que deve ser feito e que sabe executar. Quer dizer, esse projeto, o que está por trás
desse modelo de educação, ele é mais amplo que eu não sei se esses primeiros vão... [risos].
O Professor C afirmou ser muito sério pensar um projeto de pessoa. Sobre esse assunto,
Sanchez (2012) destacou que o projeto de formação humana lida sempre com aspectos da
individualização (modos únicos de ser) e da socialização (características comuns), contribuindo
para as representações que o sujeito faz da sociedade, dele mesmo e do mundo que o cerca. Nesse
processo, o estudante é um ser “moldável” segundo os ditames da sociedade, mas ele também é
criador de si mesmo e, nesse processo de criação, ele tem o poder de poder ser (autonomia).
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Esses risos ao fim dos apontamentos do Professor C podem sugerir que se tem um grande
desafio e uma situação não muito favorável. Mas quanto ao ideal de homem a ser formado pelo
IFRO, parece estar claro nas diretrizes que norteiam o ensino no Campus, como destacou o
Professor B.
O professor anteriormente citado aproveitou a questão sobre o ideal de homem para falar
sobre a burocracia para se desenvolver projetos e a necessidade de desenvolver ações que tenham
um retorno para os estudantes, que as pesquisas sejam divulgadas, conhecidas. Observamos que há
uma angústia em relação a esse ideal de homem. De alguma forma, estão acontecendo muitas
discussões sobre isso entre os professores, mas nada muito sistematizado, como relatou o Professor
A e complementou o Professor C:
Não é programado, mas aqui no quadro de professores nós damos grandes discussões
sempre. É, nas reuniões há discussões sobre isso. Essa angústia que o professor colocou
sobre: vai preparar o aluno com a educação básica? Vai preparar para o mercado de
trabalho? Vai fazer o quê? Há essa preocupação. Agora como eu disse, há uma
preocupação, mas nada muito planejado [Professor D: Sistematizado], sistematizado. Mas
como é que eu posso falar... nos documentos eu não vejo isso não. A gente vive uma crise
vocacional [todos riem].
Nessa crise educacional mencionada pelo professor C, o Professor B conseguiu ver algumas
saídas: “A gente tem uma chance de não transformar num operário padrão, mas se a gente for
formar o operário, um operário que seja crítico, reflexivo do mundo que ele vive, pelo menos nos
documentos, nas leis que criaram está claro”. Ao falar do projeto político, o professor pensou o
desafio de desenvolvê-lo na prática e acrescentou: “Agora a prática para formar esse novo... esse
novo homem... aí o bicho pega”.
Talvez o desafio do professor manifestado na expressão “aí o bicho pega” seja devido às
contradições da própria política institucional, conforme destacado por Sanchez parece haver uma
contradição no próprio
[...] projeto de educação profissionalizante voltado para a adequação dos sujeitos às
demandas econômicas atuais e integrado à formação de trabalhadores que sejam cidadãos
livres, críticos, conscientes e transformadores, em conformidade com as propostas
pedagógicas dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (SANCHEZ, 2012,
p. 123).
A contradição apontada pela autora está entre o conceito de adequação, que pelo plano de
conteúdo não se ajusta aos termos livres, críticos, conscientes e transformadores. Nesse sentido,
parece ser impossível, ou pelo menos não ser fácil, ao mesmo tempo, promover a adequação de
sujeitos a determinadas demandas e torná-los críticos, reflexivos e, muito menos, transformadores
de sua realidade.
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Nas falas dos professores não foi possível perceber se eles observaram esse contrassenso,
presente na proposta institucional. Ainda que tenham externado inquietações sobre a discrepância
entre o que está nos documentos institucionais e o que pensam ser o ideal de educação nos institutos
federais, que oferecem cursos técnicos integrados ao ensino médio, não registramos enunciações
que pudessem sinalizar o referido desacordo.
Sobre a formação de sujeitos críticos, talvez possa ser considerada uma saída o que disse o
Professor B ao apontar que isso perpassa as diretrizes políticas e pedagógicas, transferindo-se para
ações individuais pautadas no incômodo de estar a serviço da reprodução das desigualdades,
principalmente das diferenças intelectuais, no sentido de saber ler a realidade que vivencia.
Percebemos que os professores se desdobram buscando alternativas para os problemas que
identificam, mas essas ações ficam mais concentradas no plano individual; não havendo ações
conjuntas, diálogos para um fortalecimento entre eles, capaz de tornar suas intervenções mais
significativas, causando maior impacto na formação dos estudantes.
Nesse aspecto, considera-se importante destacar como os estudantes percebem a relação
professor-aluno, pois muitos são os apontamentos sobre a diversidade no nível de aprendizagem.
Além de ser visível que as formas didático-pedagógicas e ideológicas também se diferenciam entre
os professores. Nesse sentido, o Estudante A destaca:
A relação professor-aluno, digamos que é comum. O papel do professor, na formação do
técnico, é preparar para o mercado, a partir da disciplina, aplicando também de modo
realista, na vida real, para poder, justamente, o aluno identificar realmente o que está
acontecendo, o quê que ele aprendeu e o quê está acontecendo na realidade que ele está
vendo. Há uma convivência boa, de forma respeitosa, respeitável.
Percebemos nessa fala alguns aspectos amplos, não apenas voltados à avaliação da
aprendizagem, mas à expectativa de uma práxis e de uma educação voltada para o trabalho.
Concentrando-se mais nas relações interpessoais, o Estudante B disse haver espaço para o diálogo e
para negociações sobre como essas relações têm sido tratadas:
Em relação à convivência, pelo menos na minha sala, comparando a rede estadual, aqui a
gente tem mais liberdade também de falar com o professor. Quando a maneira que ele está
dando aula não está agradando, não está ensinando, a gente se reúne e conversa com o
professor, ele conversa com a gente e acaba mudando. A gente faz uma troca, ele pede que
alguma coisa melhore entre a gente e nós, de uma maneira especial, mudamos também, e
isso acaba melhorando nossas relações em relação à aprendizagem do grupo (Estudante B).
Ainda sobre a relação professor-aluno, o Estudante C destaca haver motivação, diálogo e
dinamismo que favorecem a aprendizagem, mas que as relações variam de acordo com o professor e
o método que ele utiliza “porque cada um tem o seu método diferente. Mas comparando com os
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professores que eu tive antigamente, aqui no IFRO, eles usam métodos muitas vezes melhores,
empolgam os alunos, assim, com as matérias de verdade”.
A função da educação é cumprida de acordo com o desenvolvimento das práticas
pedagógicas, que variam de um professor para outro, isso pode ser notado tanto na visão docente
como discente. Sobre esse assunto, Libâneo (2008) esclarece que a prática escolar tem
condicionantes sociopolíticos que formam concepções distintas de homem e de sociedade, por isso,
tem-se também diferentes pressupostos sobre o papel da escola, aprendizagem, relações professoraluno e técnicas pedagógicas.
Sobre a dinâmica mencionada pelo estudante, o autor anteriormente citado destaca que o
professor é um animador que deve “descer” ao nível dos estudantes, adaptando-se às suas
características e ao desenvolvimento específico de cada grupo, caminhando junto, fornecendo uma
informação mais sistematizada, intervindo somente quando necessário.
Conclusões
Nesse estudo registramos que a educação no Campus Porto Velho Calama se apresentou
com dupla função: formar o trabalhador técnico para as demandas do mercado e o trabalhador
intelectual ou pesquisador mais direcionado às posições de comando. E nessa dupla função se
manifestaram as diferenças do papel social, do político, do pedagógico e do educacional. Uma vez
que esses dois tipos de homens (o técnico e o intelectual) são, inicialmente, formados juntos
(formação básica integrada à formação técnica). Mas, na sequência do processo formativo, alguns
poderão voltar-se a uma formação intelectual e outros interromper esse processo e ir às empresas e
indústrias vender sua força de trabalho.
Percebemos que no olhar dos estudantes predominou o entendimento de que a Instituição
tem a função de formar para o mercado de trabalho. Já a visão dos professores se focou mais nas
diretrizes, apontando, simultaneamente, a preocupação em formar o técnico e o cientista como
função institucional. Houve uma divergência em relação ao cidadão que está sendo formado.
Alguns acreditavam que não se estava formando nem o técnico para o mercado, nem a pessoa com
os conhecimentos da cultura geral necessários à continuação dos estudos.
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Referências
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FREINET, Célestin. Pedagogia do bom senso. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos
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instituído e as possibilidades instituintes. In: OTRANTO, Celia Regina; FAZOLO, Eliane;
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Disponível
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História e patrimônio: os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
Xênia de Castro Barbosa
Laura Borges Nogueira
Uílian Nogueira Lima
Resumo: A pesquisa “História e Patrimônio: os desafios da conservação do patrimônio cultural Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré frente à enchente do Rio Madeira de 2014”, está em desenvolvimento no Instituto Federal de
Rondônia e compõe um dos subprojetos do macroprojeto institucional denominado “Banzeiro: uma análise sistêmica da
enchente do Rio Madeira de 2014 e seus efeitos socioeconômicos e ambientais”. A pesquisa visa construir informações
sobre os principais desafios enfrentados pelos gestores culturais na restauração e conservação daquele sítio no contexto
da cheia que o impactou no primeiro trimestre desse ano, bem como sensibilizar, por meio de oficinas, estudantes do
Ensino Médio integrado ao Técnico quanto aos significados e disputas em torno da obra. As análises aqui apresentadas
são ainda de caráter parcial, uma vez que a pesquisa encontra-se em desenvolvimento.
Palavras-chave: História. Patrimônio. Educação.
Abstract: The research “History and Heritage: challenges to the conservation of the cultural heritage Madeira-Mamoré
Railway in terms of the flood of the Madeira river in 2014”, is being developed in the Instituto Federal de Rondônia and
is one of the subprojects of the major institutional Project called “Banzeiro: a systemic analysis of the flood in the
Madeira river in 2014 and its socio-economic and environmental effects”. The research aims to generate information on
the major challenges faced by the cultural managers in the restoration and conservation of that site in the flood context
that had an impact during the first quarter of this year, as well as, through workshops, make Technical-integrated High
School students aware of the meanings and disputes involving the railway. The analysis here presented is still partial,
since this research is still being developed.
Key words: History. Heritage. Education.
Introdução
Trem fantasma, ferrovia do diabo, caldeirão do inferno... Assim era chamada a Estrada de
Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) e seu trecho encachoeirado na proximidade de Santo Antonio do
Madeira. Se o nome sugere literatura de horror, a história da execução desse projeto confirma os
piores pesadelos imaginados por imigrantes e indígenas que se viram envolvidos pelo
empreendimento. Para os indígenas, que da noite para o dia viram seu território invadido por
homens estranhos, transportando no calor da floresta objetos pesados, de um material que
desconheciam, só restava resistir aos invasores. Para os trabalhadores das 50 etnias que vieram
construir a linha férrea, o desafio de sobreviver a um ambiente hostil e a um projeto capitalista
insensível aos direitos dos trabalhadores, que os demitia sem nenhuma assistência assim que
manifestavam os primeiros calafrios da malária.
A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré começou a ser construída em 1872, sob a
administração da empresa estadunidense Madeira & Mamore Rail Company Limited. O projeto,
colonialista e ambicioso para a época, visava à injeção de capitais ociosos em projetos
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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potencialmente lucrativos nos países subdesenvolvidos e impor sua lógica sobre povos e espaços
considerados inferiores e improdutivos. Para o Brasil, a obra significava possibilidade de integração
dos territórios amazônicos ao restante do país, e maior agilidade no transporte do látex produzido
nos seringais amazônicos, uma vez que a borracha era um dos principais produtos de exportação
brasileira do período. Para seringueiros e comerciantes brasileiros e bolivianos do eixo MadeiraMamoré, a construção da linha férrea representava a esperança de reduzir as mortes e os prejuízos
causados pelo trecho encachoeirado do Rio.
Por ser uma obra de porte vultoso, a ferrovia atraiu grande contingente de pessoas, que se
substituíam umas às outras à proporção das doenças e das mortes; e a necessidade de se evitar
prejuízos e novas interrupções levou à implantação, por parte da administração da empresa, de uma
infraestrutura básica de saneamento e atenção à saúde, expresso no complexo hospitalar da
Candelária – que englobava um hospital com enfermaria, uma farmácia e um laboratório. E pela
força dessas ações, pelo crescimento da população que mensalmente era trazida à região ou pela
força da própria vida, que insiste em prosseguir mesmo diante do absurdo, a população do entorno
do pátio dessa ferrovia cresceu, dando origem a uma improvável cidade – Porto Velho.
O núcleo urbano de Porto Velho formou-se nas adjacências do pátio da estrada de ferro.
Ferroviários, mecânicos, lenhadores, comerciantes, pastores, padres, pescadores, indígenas,
lavadeiras, cozinheiras, donas de casa e prostitutas foram os seus primeiros habitantes. Esses
trabalhadores e trabalhadoras, em sua maioria estrangeira, indicam a formação de um mercado de
mão de obra internacional, passível de migração em massa na busca por inserção social:
A forma de recrutamento desses exércitos proletários dependerá sobretudo das oscilações
em seu valor. É do exército industrial de reserva, das franjas do sistema capitalista que
sairão seus contingentes maciços, excetuados os artífices mecânicos e outros ofícios
qualificados. Em geral com baixa qualificação técnica, a relativa escassez ou abundância de
sua oferta no mercado internacional determinarão as regiões geográficas de suprimento. O
caráter das relações de trabalho irá também variar numa escala que compreende desde o
assalariado livre até formas compulsórias de exploração, incluindo modalidades servis e
escravistas, todas elas comandadas pelo movimento do capital em sua forma mais moderna
(HARDMAN, 2005, p. 149)
O fato acima apresentado sugere ainda a vinculação entre capitalismo e escravismo
moderno, uma vez que, em alguns casos, as condições de trabalho vivenciadas por esses
trabalhadores nos países de capitalismo periférico reproduzem práticas de exploração compulsória,
violências físicas e interdição de espaços. Os conflitos e as contradições sociais atravessaram o
século sem medidas efetivas de mitigação.
Em 1914 Porto Velho foi elevada à categoria de município (pertencente ao Território
Federal do Amazonas), por meio da Lei 757, de 2 de outubro de 1914. A partir daquele ato, novas
inscrições de poder foram realizados em seu território, evidenciando os conflitos entre urbanismo e
urbanização, entre o planejamento e a vida em seu desenvolvimento (MEDEIROS, 2010).
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Seus limites territoriais, que se alteraram ao longo do tempo foram estabelecidos pela
primeira vez pelo Decreto n. 1063, de 17 de março de 1914. De acordo com Matias (2013) este
Decreto
[...] marca os limites do Termo Judiciário de Porto Velho”, com o seguinte traçado: ao
norte o paralello que passar pela bocca do igarapé São Lourenço, a montante da praia do
Tamanduá, até encontrar os limites com o município de Lábrea; a leste uma linha partindo
do ponto fronteiro a bocca do igarapé São Lourenço, na margem direita do rio Madeira, vá
encontrar o ponto em que o paralello de 8º 48’ sul corta o rio Candeias, em sua margem
esquerda; ao sul o citado paralello, limite com o estado de Mato-Grosso, entre a margem
esquerda do rio Candeias e margem direita do rio Madeira até a foz do Abunã; o rio Abunã
até o limite com o território contestado do Acre e esse território; e a oeste, o município de
Lábrea”. Portanto, antes de criar o município, o governo amazonense cuidou de delimitar
seu espaço físico. Mas fez uma confusão geográfica por ignorar as terras do município de
Canutama e invadir uma parte do estado do Mato Grosso, no município de Santo Antonio
do Rio Madeira.
Em 1943 Porto Velho foi transformada em Capital do recém-criado Território Federal do
Guaporé, que em 17 de fevereiro de 1956 passou a se chamar Território Federal de Rondônia, em
homenagem ao sertanista Cândido Mariano Rondon. Em 04 janeiro de 1982 o Território Federal de
Rondônia foi elevado à categoria de Estado de Rondônia.
Do ponto de vista administrativo, estes eventos da vida política resultaram em uma nova
dinâmica na relação da sociedade com o Estado, originado, principalmente um sistema burocrático
e dando forma a aparelhos ideológicos e repressores, que remodelaram a paisagem e a cultura de
Porto Velho.
Porto Velho, capital de Rondônia, cresceu “dando as costas” para a ferrovia e para o Rio
Madeira, que lhes permitiram as primeiras levas de povoadores Depois de formada, eventualmente
olha para trás, na busca de tentar entender esses elementos com os quais se vincula, mesmo contra
sua vontade ou além de seu entendimento. A ferrovia e o rio são, para parte de sua população – a
mais progressista-, como parentes indesejados vindos do interior, - representantes de um tempo e
um tipo de experiência que se prefere esquecer. Já para outros, cultivadores da nostalgia, o pátio e o
rio são elementos quase que sagrados que precisam ser preservados a qualquer custo, para a
manutenção de uma identidade, que, como todas as outras, é forjada na dialética dos interesses.
Tão problemático quanto o desejo de esquecimento é o culto de sua memória, quando
desprovido de reflexão sistemática, pois leva à fetichização e ao esquecimento do significado
histórico do símbolo – um símbolo da modernidade na selva, que se impôs violentamente,
promovendo a dizimação de populações nativas e de trabalhadores pobres que para cá vieram.
No ano de seu centenário, localizados entre esses dois polos, buscamos na história as
ferramentas para produzir uma reflexão acerca dos desafios da conservação do patrimônio que o
conjunto arquitetônico da EFMM representa. Somos favoráveis à sua conservação como
monumento à lembrança dos impactos dos projetos coloniais modernos e como recurso pedagógico
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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para o ensino da história e da cidadania. Somos favoráveis à problematização da tragédia que a obra
ocasionou, para que a história não se repita como farsa em novos empreendimentos modernizantes
que ferem a vida nesse ecossistema.
A História é um campo do saber cujo objeto de estudo é as ações dos homens no tempo e no
espaço (BLOCH, 2002). Ao concentrar-se nos vestígios materiais e imateriais que o passado legou,
o historiador ou o estudioso da história opera com dois tempos: o passado e o presente, na busca por
construir uma narrativa esclarecedora e plausível da sociedade que produziu tais vestígios. Esta
operação, sem dúvida carregada de ideias, interesses e crenças do presente não apenas lança luzes
sobre um passado envolto em sombras, mas sobre o próprio presente.
Cabe aos estudiosos da História, por seus métodos e técnicas trazer à cena pública o
conhecimento do que é relevante para a vida em sociedade. Por outro lado, povos de todas as partes
do mundo, embora possuidores de noções e regimes de historicidade diferenciados, desde os tempos
mais antigos apresentam a preocupação de deixar registrados seus acontecimentos mais
importantes, edificando-os por meio de documentos diversos. Nesse sentido, Le Goff (1990),
chegou mesmo a discutir a equivalência do termo documento ao sentido da expressão
“monumento”. Para ele documentos são monumentos, na perspectiva em que foram produzidos ou
conservados com uma intenção: a de permanecer como sinal que conjura contra o esquecimento e a
morte. Embora a noção de documento como monumento, como edificação intencional de um Poder
já estivesse presente desde a Idade Média, o inverso praticamente não ocorria, ou seja, os
historiadores preferiam adotar por fonte apenas documentos escritos, excluindo de suas análises
uma infinidade de outros objetos culturais que também são registros expressivos de um tempo e de
uma sociedade. Tal preferência pelos documentos escritos ditos oficiais encontra justificava em
uma maior segurança quanto aos métodos clássicos da crítica documental: a heurística (crítica de
ordem externa, principalmente quanto à autenticidade) e a hermenêutica (crítica interna, do
conteúdo).
A partir de 1929, com a instituição do movimento intelectual francês denominado Escola do
Annales, a História passou por uma renovação profunda de métodos, problemáticas e perspectivas
de abordagens. A noção de documento se ampliou e passou-se a considerar como fonte para as
pesquisas historiográficas tudo o que produzido pelo homem ou tocado por ele deixou vestígios
sobre sua vida; tudo o que, em alguma medida, o expressa. Nesse contexto a ciência histórica abriuse para o trabalho com documentos diferenciados, passou a valorizar as matemáticas sociais e a
manifestar uma atenção especial quanto ao uso do patrimônio cultural como fonte histórica, assim
como propor atividades para sua valorização e divulgação do conhecimento.
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Somente a partir de 1929 foi possível, portanto, uma História engajada nas discussões sobre
Patrimônio Cultural, seja como bem público e histórico a ser conservado, seja como elemento
prenhe de significados que viabiliza a escrita da história.
É relevante notar que o termo “patrimônio cultural” é substituto do termo “patrimônio
histórico e artístico nacional”. A alteração, elaborada pela nova carta magna (BRASIL, 1988) não
foi só de nomenclatura, como também de concepção e de representatividade, como podemos
perceber ao compararmos o Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937 e a Constituição Federal
de 1988:
Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937).
O novo conceito, exposto no artigo 216 da Constituição Federal exclui a ideia de
“excepcional valor”, que é relativo e arbitrário, e inclui a ideia de referências à identidade, à ação e
à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira.
No Brasil, portanto, o ordenamento constitucional optou pelo termo sintético “Patrimônio
Cultural”, para envolver bens culturais diversos, como os bens culturais históricos, artísticos,
arqueológicos, paleontológicos, etnográficos, folclóricos, paisagísticos, dentre outros. Alei opera
com uma concepção ampliada de cultura, que abarcaria todas as produções humanas ou fenômenos
com os quais tenhamos relação. Ainda do ponto de vista jurídico, o patrimônio cultural brasileiro é,
segundo (SILVA, 2001), um modo de preservar os valores das tradições, da experiência histórica e
da inventividade.
Conforme o Art. 216 da Constituição Federal,
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem (EC n.
42/2003)
Ias formas de expressão;
IIos modos de criar, fazer e viver;
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
Vos conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
Sem adentrar no mérito das discussões sobre as diversas formas de expressão desse
patrimônio reconhece-se seu valor enquanto síntese de processos históricos e identitários variados,
de memórias, crenças, lutas e visões de mundo, sendo uma obrigação individual e coletiva sua
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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preservação, e uma obrigação do Estado sua promoção, preservação, valorização e facilitação do
acesso à sociedade.
Como vivemos em um tempo de rápidas transformações, em que os processos históricos
tendem a ser esquecidos e em que as identidades são fluidas e cambiantes, o patrimônio cultural
pode constituir-se em importante ferramenta de educação histórica, favorecendo as memórias e
identidades coletivas dos grupos e a própria identidade nacional. Não se trata, desse modo,
[...] de imobilizar, em um tempo presente, um bem, um legado, uma tradição de nossa
cultura, cujo suposto valor seja justamente a sua condição de ser anacrônico com o que se
cria e o que se pensa e viva agora, ali onde aquilo está ou existe. Trata-se de buscar, na
qualidade de uma sempre presente e diversa releitura daquilo que é tradicional, o feixe de
relações que ele estabelece com a vida social e simbólica das pessoas de agora. O feixe de
significados que a sua presença significante provoca e desafia (BRANDÃO, 1996, p.51).
Para problematizar esse feixe de significados que o patrimônio cultural provoca é que se faz
necessária a Educação Patrimonial, entendida como prática difusa na sociedade e nas instituições de
ensino com vistas à compreensão, conservação ou ressignificação dos elementos que favorecem a
memória e a identidade coletivas.
De acordo com o IPHAN (2014) a Educação Patrimonial deve envolver toda a sociedade,
bem como as instituições de ensino e pesquisa, embora se reconheça que os processos educacionais
e formativos transcendam às atividades escolares. Para esse instituto, essa educação patrimonial
deve ser feita de forma transversal e dialógica, valorizando as diferentes percepções dos diferentes
atores territoriais.
No Brasil, a educação patrimonial ainda não é uma prática suficientemente disseminada no
território nacional, tanto em escolas quanto em entidades e movimentos sociais. Nos espaços
escolares que operam com essa discussão e forma de educação, tem-se constatado predominância de
atividades voltadas à conscientização quanto à preservação patrimonial, com foco na
conscientização quanto aos danos da depredação, do acúmulo de lixo e de outras ações
irresponsáveis. Não restam dúvidas de que essas linhas de ações devem ser mantidas, no entanto,
não são suficientes, tendo em vista que não incluem a responsabilidade do Estado e a divergência de
interesses e disputas pela memória.
Em Porto Velho, as discussões sobre a pertinência da educação ambiental e seus desafios
tem ganhado destaque pelo fato de que seu patrimônio cultural mais conhecido foi fortemente
atingido pela cheia do Rio Madeira, no primeiro trimestre de 2014. Preocupações por parte da
sociedade das escolas e de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil têm pressionado o
município, o Estado e mesmo o Ministério Público a tomar providências quanto ao conjunto
impactado. Os galpões que guardavam peças de maquinário e mobiliário da ferrovia MadeiraZona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Mamoré foram inundados e após a estiagem, ficaram cobertas de lama. Até o dia oito de novembro
de 2014, os objetos no interior dos galpões-museu encontravam-se na mesma situação, embora o
terreno externo já tenha recebido obras de limpeza e manutenção.
Compreende-se que a restauração e mesmo a limpeza de peças de valor histórico, artístico
ou cultural, como as do museu da ferrovia Madeira-Mamoré em Porto Velho não seja tarefa fácil. O
trabalho de limpeza e restauro requer previamente estudos arqueológicos e históricos do bem e
respeito à integridade estética do conjunto, bem como o registro das possíveis alterações sofridas
pelo bem, sejam pelo impacto, seja pela ação de manutenção ou restauração. Importante que a
avaliação dos danos e a manutenção ou restauração sejam feitas por profissionais capacitados com
base na ABNT NBR 14653-1 e outras instruções técnicas pertinentes.
Além dos desafios de ordem técnica presentes no processo há ainda os desafios de ordem
política e econômica que remontam ao valor atribuído ao bem pelos gestores e pela sociedade e o
quanto se pretende investir na obra.
O complexo arquitetônico da EFMM é um patrimônio cultural que abrange um museu
ferroviário, uma praça e as edificações de uma antiga estação central da centenária ferrovia. Esse
conjunto, localizado à margem direita do Rio Madeira é um dos mais importantes lugares de
memória da população de Porto Velho, mas há conflitos em relação a seus usos e significados.
Depois de décadas abandonado pelo poder público e utilizado por criminosos, o espaço foi
revitalizado e comemorou seu primeiro centenário em 2012. Desde 2005 esse conjunto
arquitetônico e seus componentes foram tombados pelo IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, e em 2008 o Ministério da Cultura, por meio da portaria ministerial 108 o
sagrou Patrimônio Cultural Brasileiro.
O fato de esse patrimônio ter sido afetado diretamente pela cheia do Rio Madeira em
fevereiro de 2014, levou com que muitos bens específicos de seu acervo fossem resgatados e, tal
como as pessoas, realojados em locais que não são os mais adequados para sua preservação,
conservação e visitação pública, embora se reconheça o esforço dos gestores na tentativa de colocálos à salvo da enchente, que ultrapassou quase 20 metros em relação ao nível normal do rio.
Permaneceram nos galpões principalmente os objetos mais pesados, difícil de serem manuseados.
Nessa situação em particular, em que a ameaça ao patrimônio não veio da sociedade, com as
tradicionais práticas de pichação e depredação do bem público, mas de fenômeno ambiental
complexo, tem-se como necessário estudar o papel do Estado, enquanto gestor e salvaguarda do
mesmo, sem negligenciar, contudo, as possibilidades democráticas da participação da sociedade
civil. Uma estratégia sugerida para o enfrentamento do problema é o envolvimento de professores e
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estudantes da rede pública de educação nas discussões sobre a gestão desse patrimônio e no
tratamento pedagógico de seus significados sociais, ao lado do corpus legal que rege a preservação
de bens desse tipo.
Considera-se a Educação Patrimonial
[...] um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura
do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória
histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da auto-estima (sic)
dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira compreendida como
múltipla e plural (TEIXEIRA, 2008, p. 200),
A Educação Patrimonial é um recurso indispensável para a compreensão da cultura, que na
definição dada por Geertz (1989), constitui uma teia de relações socialmente construída e que
perpassa todas as ações humana, transcendendo, portanto, a ideia de objetos específicos e de
categorizações impregnadas de juízo de valor, como as que separavam uma cultura dita erudita, de
uma cultura dita popular, promovendo a valorização de algumas expressões e bens em detrimento
de outros. Destaca-se que essa perspectiva de cultura com a qual trabalhamos está em acordo com o
próprio ordenamento jurídico brasileiro (CF, 1988), que além de entendê-la como um direito
assegura sua pluralidade e pluralismo de manifestações, nos limites da lei.
Referências
ABNT. NBR 14653-1. 2001.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Cultura, educação e interação: observações sobre ritos de
convivência e experiências que aspiram torná-las educativas” In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues et
al. O difícil espelho: limites e possibilidades de uma experiência de cultura e educação. Rio de
Janeiro: Iphan, 1996.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Editora do Senado, 1988.
_______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2007.
_______. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Rio de Janeiro: Senado Federa, 1937.
FERREIRA, MANOEL RODRIGUES. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos, 2005.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
HARDMAN, F. F. Trem fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº.
9.394 1996), Brasília: 1996.
SILVA, José Afonso. Ordenação constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros Ed, 2001.
TEIXEIRA, Cláudia Adriana Rocha. “A Educação patrimonial no ensino de história”. Revista do
Instituto de Ciências Humanas e da Informação. Biblos, Rio Grande, 22 (1): 199-211, 2008
Disponível em: http://www.seer.furg.br/biblos/article/view/868/347 Acesso em 18/02/2014.
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Movimentos sociais e escravistas na construção do real Forte Príncipe Da Beira – 1776 – 1783
Lourismar da Silva Barroso
Resumo: Os movimentos sociais que surgiram na Europa no século XVIII, a partir dos acontecimentos como:
Revolução Industrial (1750); Revolução Francesa (1789) e Revolução Industrial, primeira (1750) e segunda (1860) fase,
geraram reflexos e ganharam dimensão significativa quando atingiram solos lusitanos, assim como seu entendimento
respinga a sociedade escrava da região do Vale do Guaporé, que vê nesses movimentos políticos e econômicos, a
possibilidade de mudança gerada a partir de seu engajamento enquanto sujeito da história, levando em conta seu papel
enquanto ser cultural de uma sociedade. No que se refere ao negro trabalhador do Real Forte Príncipe, temos como
sujeito importante desse processo de construção e consolidação do espaço junto com o nativo da região, para a proteção
da fronteira oeste lusitana. Seu modo de vida e seu processo de construção de uma sociedade que vai permanecer
isolada e abandonada na região do Vale do Guaporé, a custa da própria sorte, vai gerar mudança nesse cenário que será
desenhado pela força da persistência a partir da união desse grupo.
Palavras-chave: Movimentos. Negros. Trabalhador. Príncipe da Beira.
Abstract: The social movements that emerged in Europe in the XVIII century, from the events as: Industrial
Revolution (1750); French Revolution (1789) and Industrial Revolution, first (1750) and second (1860) phase,
generated reflections and acquired a considerable dimension when it arrived in Lusitanian soil, as well as its
understanding spatters the slave society from Valley of Guaporé, that see on these political and economic movements,
the possibility of change generated from its engagements while is subject of history, considering its role while a
society's being cultural. Concerning to black workers of Real Forte Príncipe, we have as important subject of this
building process and consolidation of space with the native of region, for the protection of west Lusitanian's frontier. Its
life style and its building process of a society that will belong isolated and abandoned at region of Valley of Guaporé, at
the expense of own fortune, will beget change on this scenario that will be designed by persistence's power from the
union of this group.
Keyword: Movements – Blacks – Worker – Príncipe da Beira
Introdução
É importante para esse objeto de estudo relacionar os movimentos sociais que ganharam
forças no século XVII e XVIII na Europa como a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1680); a
Revolução Industrial (1750) e a Revolução Francesa (1789) com os movimentos sociais brasileiros.
De certa forma, “esses movimentos sociais seriam uma invenção do mundo ocidental, o produto
último de uma série de mudanças estruturais, que culminaram na centralização do poder político na
Inglaterra do século XVIII7” (ALONSO. 2009. p, 56). Dobrando os séculos em questão, obtiveramse forças com o passar dos tempos, avançando na interação das classes sociais e operárias, muito
embora, o tipo de trabalho exercido por esses trabalhadores não foi diferente daqueles aplicados aos
escravos e índios na construção do Real Forte Príncipe da Beira não condizendo se houve
representação de movimentos sociais, haja vista que o movimento cultural sobressaiu desse povo.
7
Simplificadamente, o argumento, baseado no caso inglês, é que campanhas militares levaram à expansão do Estado,
com burocratização e crescente intervenção na sociedade (por meio de taxação), o que causou o fortalecimento do
parlamento.
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1. As articulações geradas no canteiro de obra do Forte Príncipe da Beira
Para a explicação do conceito de movimento social, Kauchakje (2010) define que:
Movimentos sociais são formas de ação coletiva com algum grau de organização
que emergem de contradições fundamentais da sociedade ou de demandas conjunturais
decorrentes de carências econômico-culturais. Representam o conflito ou a contradição
entre setores da sociedade pela conquista e/ou administração de recursos e bens
econômicos, culturais e políticos, e, também, para promover modificações e transformações
nas relações instituídas, havendo, também, movimentos sociais que almejam a manutenção
das instituições sociais (KAUCHAKJE, 2010, p. 114).
Paralelo a essa política de protestos que crescia a cada ano na Europa moderna, chegava ao
Brasil nesse mesmo período, manifestações iguais àquelas enfrentadas nos grandes centros culturais
do mundo ocidental. “Esses novos movimentos sociais seriam, então, formas particularistas de
resistência, reativas aos rumos do desenvolvimento socioeconômico e em busca da reapropriação de
tempo, espaço e relações cotidianas” (ALONSO, 2009.p, 64).
A Amazônia do século XVIII, já sofria com o teor das manifestações sociais, nos seringais8,
nas construções arquitetônicas que embelezavam e enfeitavam as cidades9 ou através dos seus
fortes10 montados para guardarem suas fronteiras, todos vindos da província do Grão Pará e da
província do Mato Grosso, esses movimentos sociais e culturais faziam parte do cotidiano daqueles
que, de alguma maneira, eram aplicados aos trabalhadores que foram usados na construção do Real
Forte Príncipe da Beira em 1776.
A chegada dos negros escravos que vindo de várias partes do continente africano, arrancados
à força do convívio familiar e exilados no continente americano como força braçal escrava, sem
direito à própria vida, ajudaram a construir e a desenvolver a nação brasileira, fazendo parte a
própria região do Guaporé.
Esses trabalhadores escravos que se instalaram na região guaporeana tiveram a sua maneira
contatos ou conhecimentos dos movimentos sociais que estavam acontecendo na Europa ou
simplesmente passaram a obter conhecimentos dos mesmos quando ainda estavam no sudeste
brasileiro que naquele período seria o grande centro político e econômico da nação, e que ao
A Selva – Ferreira de Castro – conta a história de um refugiado português na Amazônia no final do século XIX e
início do Século XX sobre o processo dos barracões da borracha e seus exploradores, os seringalistas.
9
Se referindo aos modelos arquitetônicos adotados nos centros histórico das cidades de Manaus e Belém, com suas
fachadas em estilo colonial, clássicos e neoclássicos.
10
No tocante ao Forte de Coimbra e Real Forte Príncipe da Beira especificamente.
8
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57
chegarem à região do Guaporé, foi uma questão de tempo para que se organizassem e buscassem de
alguma forma seus direitos enquanto povo.
Embora as aspirações colonialistas fossem portuguesas e brancas, o trabalho que erigiu os
pilares deste projeto foi, sempre, negro. A mão-de-obra africana tornou-se o sustentáculo
vital da empreitada colonizadora portuguesa no Guaporé, diferentemente das posturas
adotadas na mesma região pelos espanhóis, que preferiram o trabalho indígena, obtido
através da iniciativa missionária. (TEIXEIRA, 1998, p.74).
Fazendo uso de uma política gerada através do tratado de Madri (1750), Pombal implanta
uma postura de progresso em toda área do Oeste brasileiro, demarcando espaço, conquistando e
traçando metas para a ocupação de áreas que ainda estavam para serem anexadas ao território
lusitano, fazendo valer sua autoridade, utilizando da força e da mão-de-obra dos nativos, através das
bandeiras quando se julgava necessário e dando incentiva a penetração da mão-de-obra escrava
advinda de Belém ou de Goiás através de uma rota exclusiva11, tudo para garantir o processo
expansionista da Amazônia.
A interpretação quanto à identidade coletiva segundo Melucci (1988) nos traz o
entendimento de que:
Os atores construiriam a ação coletiva, à medida que se comunicam, produzem e negociam
significados, avaliam e reconhecem o que têm em comum, tomam decisões. Assim: A
identidade coletiva é uma definição interativa e compartilhada produzida por numerosos
indivíduos e relativa às orientações da ação e ao campo de oportunidades e
constrangimentos no qual a ação acontece (MELUCCI, 1988, p. 342).
Durante os 27 anos (1750-1777) em que esteve à frente da política expansionista, Marquês
de Pombal deu um salto no avanço de conquista e acabou consolidando o território fronteiriço,
expulsando os missionários jesuíticos que de certa forma competiam economicamente com a coroa
portuguesa, “ao mesmo tempo considerados como uma violação à soberania portuguesa”
(TEIXEIRA, 2000, p, 47). Mas foi com o quarto governador da província de Mato Grosso Dom
Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1772-1788) que se intensificou o uso da mão-deobra tanto nativa da região do Guaporé quanto de negro oriundos das províncias adjacentes.
Para Luiz de Albuquerque, o desenvolvimento do projeto colonial adotado por Pombal
requeria o uso abundante da mão-de-obra escrava. Ao contrário da maioria das regiões da
Amazônia Portuguesa, em Vila Bela e no Guaporé prevaleceu a escravidão africana e não a
indígena.
11
Rota fluvial que saia de São Paulo pelo rio Tietê, passando pelo rio Paranaguá em Mato Grosso e interligando os
estados até chegar à embocadura do Rio Guaporé.
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O interesse metropolitano pela região levou ainda, à fundação de fortalezas e de povoações
ao longo dos vales do Madeira, Mamoré e Guaporé, sendo a mais antiga dentre elas, o Forte de
Nossa Senhora da Conceição no sítio da antiga Missão de Santa Rosa, por Rolim de Moura12,
durante o ano de 1760, bem como sua reforma realizada por Luís Pinto Souza Coutinho (1766-68),
e que após uma considerável enchente no rio Guaporé, houve sua destruição parcial e logo depois
veio à necessidade da construção do Real Forte Príncipe da Beira (1776-1783) que, por iniciativa de
Dom Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres evidenciava a preocupação do Estado com a
ocupação regional.
Para as respectivas obras, foi utilizada a mão-de-obra dos nativos e de alguns negros que
foram caçados e arrancados de seus quilombos na região do Alto Guaporé. Na tabela nº 1 abaixo,
podemos conferir os escravos do El Rey e de particulares que trabalharam na construção do Forte
Príncipe no ano de 1780 com um quantitativo de 154 escravos, sendo 67 escravos do El Rey, o
restante somava um total de 87 escravos de ganho, todos pertencente a particulares, todos esses
serviçais eram empregados na construção do forte. Além desse quantitativo de escravos,
contávamos também com a eficiência do trabalho de especialistas, sendo pedreiros e artífices.
A preocupação de mencionar a origem desses trabalhadores que foram enviados para
exercerem suas funções na construção do Real Forte, com qualidades e habilidades, foi importante
para essa pesquisa ressaltar através de documentos primários, pesquisados no arquivo do APMT
(Arquivo Público de Mato Grosso), esses documentos relatam os motivos que justificam a vinda
dessa mão-de-obra.
Tabela 01 – Quantitativo de trabalhadores escravos em 1780. Escravos de El Rey
12
1
Paulo Alina
14
Aylario
2
João Alina
15
Estanislao Baboleras
3
João Soares
16
Antonio Mandinga
4
Bernardo
17
Antonio Bojagó
5
Francisco Alina
18
Manoel
6
João Aulupo
19
Paulo Bojagó
7
Clemente Congo
20
Joaquim Balandra
8
Miguel
21
Joseph Bojagó
9
Joseph Pereira
22
Zacarias Papel
10
Poncalo
23
Joseph Mandinga
11
Pedro Mandinga
24
Manoel Dagomes
12
Lazaro
25
Miguel Banguella
Primeiro governado de Mato Grosso de 1751 a 1765.
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59
13
Francisco Cabo Verde
26
Manoel Banguela Sambucetti
27
Manoel Banguella
48
Pedro Gomes
28
Francisco Rebolho
49
Antonio dos Santos
29
Antonio Alina de Albuquerque
50
Domingos da Cunha
30
Felix
51
Alado Luis Gomes
31
João Cabo Verde
52
João Antonio
32
Clemente Banguella
53
Pedro Mandinga
33
Luis
54
Carlos Bruno
34
Joseph Alina
55
Francisco Papel
35
Fabio Banguella
56
Lourenço da Silva
36
Domingos Congo
57
Joaquim Manoel
37
Pedro Cazado
58
Alexandre Pereira
38
Francisco Moleque
59
Ambrozio da Costa
39
Ventura Rebolho
60
Caetano Papel
40
Antonio Nagô
61
Augustinho Joseph
41
Sebastião da Cunha
62
Manoel Caetano
42
Francisco da Costa
63
Francisco Banguella
43
Joseph Gomes
64
Tomas Ignacio
44
Domingo da Costa
65
Miguel Jacó
45
Joaquim Francisco
66
Alberto Joseph
46
Lourenço Cretano
67
Joseph Sarabá
47
Tomé Pereira
Fonte: REF. BR. APMT. RFP. CA 0137CAIXA Nº 002
Na tabela de nº 2 abaixo, temos o quantitativo de escravos existentes na região do Guaporé
no ano de 1780, é perceptível o aumento dessa população sob o domínio de particulares que a cada
ano crescia de forma considerável, sendo convocados pela coroa todas as vezes que fosse
necessário.
Tabela 02 – Quantitativo de trabalhadores escravos em 1780. Escravos de particulares
68
João Angolla
97
Francisco Nagô
69
Antonio Gomes
98
Joseph Banguella
70
Joseph Angolla
99
João Mina
71
Pedro Banguella
100 Antonio Cobê
72
Manoel Banguella
101 Antonio Congo
73
Francisco
102 Clementes
74
Tomas
103 Manoel
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60
75
Francisco
104 Luis Nagô
76
Antonio Lapa
105 João Gomes
77
Joaquim Mina
106 Miguel
78
João
107 Luis
79
Joseph Mina
108 João
80
Joseph Angolla
109 Manoel
81
Maninio
110 Antonio
82
Feliciano
111 João Coelho
83
Manoel
112 Francisco
84
Lauriamo
113 Gomes
85
Antonio Mina
114 Manoel
86
Joseph Magalhães
115 Joaquim
87
Francisco
116 Joseph
88
Joaquim Cambá
117 Joaquim Mina
89
Domingos Tororó
118 Joseph Mina
90
João
119 Manoel Crioulo
91
João Mandinga
120 Joaquim de Silva
92
Rafael
121 Joaquim Mina
93
Agostinho Mandinga
122 Joseph Mina
94
André
123 Francisco
95
Gaspar Cabo Verde
124 Manoel Mandinga
96
Luis Mina
125 Agostinho
126 João Baptista
141 João Angolla
127 Antonio Angolla
142 Joseph Mandinga
128 João Angolla
143 Matheus Crioulo
129 Joseph Angolla
144 Miguel Cabo Verde
130 João Mina
145 Ignacio
131 João Luis
146 Manoel
132 Antonio Magalhães
147 Silvestre
133 Pedro Banguella
148 João Baguella
134 Manoel Banguella
149 Joaquim Mina
135 Francisco Luis
150 Joseph Mina
136 Antonio Angolla
151 Narcisio
137 Antonio Barboza
152 Vicente Banguella
138 Izidoro
153 Antonio Pereira
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
61
139 Joaquim Angolla
154 Manoel Mandinga
140 Manoel Angolla
Total: 154 operários
Fonte: REF. BR. APMT. RFP. CA 0137CAIXA Nº 002
Procurando uma compreensão que justifique os movimentos sociais do século XVIII,
percebemos que ao analisar esse conceito, os trabalhadores que estiveram envolvidos na construção
do Real Forte Príncipe da Beira já praticavam tal movimento, muito embora a sua maneira,
acabavam praticando uma mistura de movimentos sociais com movimento cultural. Para Alonso
(2009), “a mobilização é o processo pelo qual um grupo cria solidariedade e adquire controle
coletivo sobre os recursos necessários para sua ação”.
No caso dos negros trabalhadores do Forte Príncipe, que foram trazidos de várias partes do
continente africano e que se encontraram num ambiente que estava propício para esse
acontecimento, gerou uma união desse povo em recomeçar a busca pela sua identidade. Estavam
eles criando condições para buscar o melhor para o grupo ou estavam começando a se despertar
para um entendimento mais sólido de sociedade da qual deveriam estar participando?
De acordo com Gohn (2008), “a definição de movimento social é uma noção presente em
diferentes espaços sociais: de erudito, acadêmico, passando pela arena política das políticas e dos
políticos, até o meio popular”.
É justamente esse “meio popular” que aborda este artigo que vai ser vivenciado pelos
trabalhadores que foram levados para o Vale do Guaporé com a missão de construir o grande
sustentáculo da fronteira, o Forte Príncipe da Beira e manter povoada aquela região nos confins do
Brasil.
A coroa portuguesa queria ter a certeza de que a sua presença na área da fronteira oeste
Amazônica estava assegurada e consolidada, tirando de vez as pretensões espanholas sob a região
do Guaporé. Esses negros que estiveram presentes na construção do Forte foram abandonados à
própria sorte, largados e esquecidos, passando e sofrendo maus tratos, humilhação e castigos. Esse
sofrimento sentido pelos negros trabalhadores do Forte só aumentará a cada ano, o que vai gerar um
clima de tensão e insegurança na região do Guaporé.
Outra observação que devemos ressaltar é procurar entender o porquê de Portugal nesse
processo de colonização querer implantar um sistema de escravidão nitidamente africano no
Guaporé, muito mais oneroso e de difícil obtenção na região, sendo que a mão de obra nativa por
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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aqui estava em abundância? Sendo nativos ou negros, um sentimento de revolta vai unir-vos, com a
força da perseverança, seus anseios de liberdade, suas raças, culturas e tradições vão poder protestar
contra o castigo excessivo adotado pelos feitores lusitanos durante o trabalho.
Como afirma Gohn (2008) que:
As diferentes interpretações sobre o que é um movimento social na atualidade decorrem de
três fatores principais: primeiro: mudanças nas ações coletivas da sociedade civil, no que se
referem a seu conteúdo, suas práticas, formas de organização e bases sociais; segundo:
mudanças nos paradigmas de análises dos pesquisadores; terceiro: mudanças na estrutura
econômica e nas políticas estatais (GOHN, 2008, p. 243).
A consequência desses castigos durante o processo de construção do forte será as constantes
fugas desses escravos e o seu ajuntamento em quilombos, às fugas ocorriam pelos mais diversos
motivos, muitas vezes deixando perplexos os senhores da obra que não encontravam justificativas
para o procedimento de seus escravos.
Foi o caso dos escravos da Real Fazenda, que em 21 de outubro de 1775 fugiram para rumo
ignorado, abandonando as obras de construção do Real Forte Príncipe da Beira, e rumando para as
partes altas do Guaporé, onde se estabeleceram em quilombos e que alguns dos quais resistiram, e
estando aquilombados iriam resistir por longos períodos, como é o caso do Quariterê (ou Piolho)
desde sua formação em 1752, até seu total extermínio em 1795.
Estando sob a administração da rainha Thereza de Benguela, o quilombo se manteve ativo
por quase meio século, vindo a ser destruído após ser atacado e seus descendentes foram presos e
humilhados, expostos em praça pública, açoitados, sofreram mutilações em uma das orelhas, sendo
marcados a ferro em brasa.
Diante da barbárie, Thereza de Benguela ficou inconformada com o assalto e destruição do
quilombo que governava, entrou em profundo estado de melancolia e depressão, vindo a
enlouquecer e finalmente durante um acesso de fúria suicidou, tendo os descendentes fugidos para o
interior da floresta, ocasionando assim um desabastecimento da mão de obra.
Como expõe Kauchakje (2010),
os movimentos sociais expressam práticas organizativas e participativas de grupos sociais,
bem como suas interpretações e representações sobre a experiência social, as forças sociais
que consideram representar e sobre aquelas contra as quais se antagonizam”.
(KAUCHAKJE, 2010, p. 115).
Melucci (1988) admite que,
há oportunidades e constrangimentos objetivos à ação coletiva, mas eles são mediados
pelas percepções dos agentes, por uma apreensão cognitiva das possibilidades e limites,
produzida no próprio curso da ação: “Indivíduos agindo coletivamente ‘constroem’ suas
ações por meio de investimentos ‘organizados’; isto é, eles definem em termos cognitivos o
campo de possibilidades e limites que percebem, enquanto, ao mesmo tempo, ativam as
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
63
teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate de suas relações de modo a dar
sentido ao seu ‘estar junto’ e aos fins que perseguem (MELUCCI, 1988,p 332).
Sabe-se que para a construção do Real Forte Príncipe da Beira em todo seu processo de
construção se contabilizou a força da mão-de-obra de mais de mil escravos negros arrebanhados no
Guaporé, alguns trazidos da capitania de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás e outros de
Belém, e mais outro tanto de mão-de-obra nativa que foi retirada das missões jesuítica, sendo os do
sexo masculinos convocados para auxiliarem na construção, e mais 200 especialistas como
carpinteiros, artífices que vieram dos grandes centros urbanos como Belém e Rio de janeiro.
A resistência dos escravos ao trabalho da construção do Real Forte Príncipe da Beira
assumiu um caráter de violência individual e posterior coletiva, dentro de uma esfera de
inconformismo, que denunciava a postura extrema adotada pela coroa lusitana e seus
representantes, nessa ocasião, os negros escravos aproveitavam de fatores ambientais e físicos,
como as doenças e pragas naturais para fugirem. Nesse caso, como afirma Touraine (2006),
é necessário não aplicar a noção de movimentos sociais a qualquer tipo de ação coletiva,
conflito ou inciativa política. É aceitável aplicar análises, ligadas à noção de “resource
mobilization” a todas as formas de ação coletiva e de conflito. Aliás, é mais aceitável que
as ações coletivas consideradas possam ser analisadas mais em termos de busca de
participação no sistema político, mas não há dificuldade de princípio em aplicar essa
categoria a todos os tipos de ação coletivos (TOURAINE. 2006: p, 18).
É por isso também que Melucci (1989) afirma que “os movimentos sociais são difíceis de
definir conceitualmente e há várias abordagens de difícil comparação e há mais comparação
empírica do que analítica”. O temor do movimento social dos escravos e as constantes insurreições
tomaram corpo na colônia brasileira e não passou despercebido em Mato Grosso, embora não se
tem registrado levantes da escravatura, pairava no ar um clima de medo e de desconfiança do que
poderia vir acontecer mais cedo ou mais tarde. Medidas restritivas foram adotadas e eram
constantemente tomadas na tentativa de combater as possibilidades de rebelião, motins ou
desordens dos escravos.
Bando13 e Alvarás14 eram expedidos pelas autoridades coloniais que permitiam a punição
com açoites no pelourinho, o escravo capturado após a fuga e exaltado por liderar certos
movimentos eram duramente castigados, marcados com ferro quente no corpo ou na testa, levando a
letra “F” que significava fujão, e em caso de alguma reincidência, era amputada uma das orelhas.
Nunca se pensou na hipótese de matar um escravo, pois essa atitude geraria um prejuízo gigantesco
para o patrão, por tanto deveriam ser mantidos sob as rédeas curtas do feitor.
13
Grupo de pessoas que cometem crimes ou atos condenáveis pela sociedade.
Documento ou declaração que garante a autorização de poder funcionar qualquer tipo de empresa ou comércio, à
realização de eventos, como também autorização para cometer atos justificado pela coroa.
14
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
64
Além da prática de inúmeros crimes e contravenções acometidos pelos escravos do Guaporé,
eles buscavam nas fugas a maneira mais imediata e eficaz de se libertarem do domínio português e
do cativeiro em que estavam atrelados, era uma forma, um mecanismo de resistência, as fugas se
completavam com a formação nos quilombos.
Com o término da construção do Real Forte Príncipe da Beira em 1783, a posse definitiva da
região do Guaporé estava agora efetivada a introdução da mão-de-obra escrava de procedência
africana, que aproveitando o seu entorno criara uma lavoura de subsistência. Com a escassez de
povoadores brancos e livres, em geral, determinou o contínuo subpovoamento do Vale do Guaporé.
O trabalho de construção das edificações quer seja em Vila Bela, quer seja no restante do Guaporé,
só puderam ser realizados graças à introdução de uma, relativa numerosa, escravaria africana.
A guarda fronteiriça e a mineração mantiveram-se a partir do braço escravo, e as lavouras de
subsistência15 foram sempre cultivadas pelos negros que resistiram ao ficar na região, mesmo após a
saída dos brancos. Nas condições mais adversas, os negros guaporeanos mantiveram as conquistas e
a presença dos colonizadores nas vastas regiões do Guaporé, permitindo a continuidade da posse
territorial.
No decorrer dos tempos, os negros tornaram-se os senhores do Guaporé e a região passa a
ser reconhecida pelo estado brasileiro como terra de pretos, que no início prevaleceu os conflitos
entre senhores e escravos, hoje com as frentes de colonização, o embate se dá entre latifundiários e
posseiros.
Para Gohn (2008) sua definição para explicar movimentos sociais é:
Os movimentos sociais são ações sociopolítica construídas por atores sociais coletivos
pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articulada em certos cenários da
conjuntura socioeconômica e política do país, criando um campo político de força social na
sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e
problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações
desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o
movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do
princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e
políticos compartilhados pelo grupo, em espaço coletivo não institucionalizado. Os
movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública (GOHN: 2008. p, 251).
15
Agricultura de subsistência é aquela em que, basicamente, a plantação é feita em pequenas propriedades
(minifúndios), e a finalidade principal é a sobrevivência do agricultor e de sua família, não para a venda dos produtos
excedentes, em contraposição à agricultura comercial.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
65
Podemos também analisar o contexto sofrido no decorrer dessas transformações que gerou
mudanças quase que significantes, como teorias, como diz ALONSO (2009), que são fundamentais
em seus processos de atuação. A autora nos faz lembrar que:
As teorias dos movimentos sociais se constituíram diante de um quadro bastante distinto, o
do Ocidente dos anos 1960, quando o próprio termo “movimentos sociais” foi cunhado para
designar multidões bradando por mudanças pacíficas (“faça amor, não faça guerra”),
desinteressadas do poder do Estado (ALONSO, 2009. p, 51).
É importante salientar que o trabalho escravo no Brasil foi ao longo dos séculos XVI/XIX a
principal mola propulsora de uma economia baseada em um sistema falido e ultrapassado, que tinha
medo de avançar para um processo inovador e que ao mesmo tempo havia receios de não dar certo.
O negro era submetido à exploração assim que chegava ao Brasil, e nas regiões mais afastadas dos
grandes centros, como é o caso da região do Guaporé não era diferente essa prática, pelo contrário,
aqui não se tinha respeito e nem pudor pela vida.
Mesmo assim, para alguns autores heterogêneos como Riesman e Adorno tratam o
movimento social tanto de negros como de branco da seguinte maneira: “a teoria que confluiu para
as teorias da desmobilização política, cuja chave explicativa estava na cultura, em correlações entre
estrutura da personalidade e estrutura da sociedade” (ALONSO, 2009. p, 52).
As ciências teóricas16 que buscam explicar os movimentos sociais acabam gerando debate
entre si sob as versões economicistas do marxismo, argumentando que o descontentamento é
motivo para a mobilização individual e coletiva, sejam eles privações materiais ou interesses de
classe, sempre existem, o que os tornariam inócuos para explicar a formação de mobilizações
coletivas. Assim, mais importante que identificar as razões seria explicar o processo de mobilização
de como esses negros escravos, operários da fortaleza do Real Forte Príncipe da Beira na região do
Guaporé se articularam e criaram um meio para reagir ao comando dos seus benfeitores?
Sabemos que os negros estando afastado do seu grupo, recluso aos quilombos dentro da
mata e distante dos engenhos, minas e faisqueira, teriam a decisão de agir sozinhos e isso seria
apenas um ato de deliberação individual, para isso resultariam cálculos racionais entre benefícios e
custos. Mas a ação coletiva só se viabilizaria na presença de recursos materiais, humanos e de
organização, isto é, da coordenação entre indivíduos doutro modo avulsos.
Para a autora Alonso (2009):
Vários movimentos podem se formar em torno de um mesmo tema, compondo uma
“indústria de movimento social”, na qual haverá cooperação, mas também competição, em
torno de recursos materiais e de aderentes a serem garimpados num mercado de
16
Sociologia – Psicologia – Antropologia - História
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
66
consumidores de bens políticos. Daí a emergência de conflitos internos que gerariam
faccionalismo, com dissolução de movimentos grandes e formação de subunidades em
torno de uma mesma causa (ALONSO, 2009. p, 52).
Como podemos perceber, as ciências sociais tratam dos movimentos e os autores que têm
seus pensamentos voltados às explicações mais convincentes sobre manifestações sociais/culturais
são unânimes quando o assunto retrata a causa dos menos privilegiados, por isso podemos avaliar e
notar que dependendo da classe, interesse e dos grupos que se unem em busca de uma atitude mais
sólida, acabam descobrindo razões que podem levar ao fracasso da pesquisa.
Kauchakje (2010) corrobora dizendo:
Movimentos sociais são fenômenos de diversas facetas e são nucleares na história de
diferentes sociedades. Portanto, junto a uma única definição genérica é apropriado
relacioná-los ao contexto social do qual emergem: revolta de escravos, seitas sociais e
levantes camponeses da Antiguidade e da Idade Média, motins rurais do século XVIII,
movimentos milenares do século XIX, movimentos socialistas e trabalhista pós-Revolução
Industrial, movimentos de bairro e populares urbanos, movimentos rurais brasileiros, bem
como novos movimentos sociais, já na segunda metade do século XX (KAUCHAKJE,
2010, p. 115).
Para o meu objeto de estudo, esbarro em um fator primordial para a explicação de como a
classe trabalhadora escrava do Real Forte Príncipe desapareceu de forma instantânea, a falta de
documentos que narrem o desaparecimento de uma classe que aos olhos da Coroa portuguesa era
insignificante, até porque, entram na história e sai da mesma sem que seja percebido, nesse caso
específico parece ser insignificante para a história.
Documentos que pudessem dar uma luz na explicação desses resultados penso que possam
ser raríssimos, porém, não difíceis, os mesmos precisam ser explorados para uma maior
compreensão no mundo científico. Estudá-los em seu contexto trariam à tona como se estabeleciam
o relacionamento dos escravos em seu cotidiano, sendo raros na região Amazônica, não que isso
seja impossível, mas em se tratando de documento oficial, podendo até ser encontrados na antiga
capitania de Mato Grosso e do Rio Negro.
Relacionar meu objeto de pesquisa com as ciências sociais me dará um rumo de como devo
prosseguir e avançar nas informações, sendo auxiliado por outras ciências que me dará suporte e
traçará um caminho para uma explicação teórica, lógica e prática no sentido da palavra.
A despeito das modificações no campo teórico e na configuração da realidade, as análises
sobre movimento social, quase sempre tendem a vinculá-los ao processo de mudança ou
transformação social. Entender o pensamento de diferentes autores que tratam de movimentos
sociais também é um desafio que precisa ser vencido, mas no final valerá a pena tê-los conhecidos,
são “ossos do ofício” de um pesquisador.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Conclusão
Em resumo, conhecendo parte do processo que se desenhou sobre os movimentos sociais no
Brasil e no mundo, é possível trazer para o regionalismo e fazer uso de comparação mediante
eventos relativos de ações voltadas para os protestos sociais. No caso em estudo, suas ações estão
voltadas para o contexto de identificar e ressaltar a importância de como os movimentos sociais se
estrutura e designa suas conclusões mediante fator social/cultural, na região do Guaporé, foco dessa
pesquisa.
O que temos é uma gama de informações em prol da exploração do trabalho escravo na
região, que nos faz acreditar que o processo de manifestações sociais e culturais advindas da luta e
da persistência de mudanças vinculadas ao processo explorador é a chave que abre o caminho para
o novo.
Referências
ALONSO, Ângela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. Editora Lua
Nova, São Paulo, 2009.
GOHN, Maria da Glória. Teoria sobre os Movimentos Sociais. In: Movimentos Sociais e lutas
pela moradia. Edição Loyola, p. 21-50. C. 2008
KAUCHAKJE, Samira. 35 anos de pesquisas sobre movimentos sociais. RBCS, n.3, jan/jul.
2010, p. 113- 132.
TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues. História Regional. Porto Velho, Rondoniana, 2ª Edição,
1998.
TOURAINE, Alain. Na Fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v.21,
n.1, já/abr.2006, p.17-28.
Carta do capitão Engenheiro José Pinheiro de Lacerda ao Governador e Capitão-General da
Capitania de Mato Grosso Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Enviada em
02 de março de 1780 - REF. BR. APMT. RFP. CA 0137CAIXA Nº 002.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Ciência e Saúde na Amazônia: uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao vale
do Madeira e ao vale do Amazonas
Xênia de Castro Barbosa
Maria Enísia Soares de Souza
Lucas Mariano Dias
Resumo: O texto propõe analisar, em breves linhas, alguns documentos-chave para a compreensão da História da
Ciência na Amazônia no século XX: o texto “Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira”, o
“Relatório sobre as condições médico-sanitarias do valle do Amazonas” e o dossiê Miloca (conjunto de cartas enviadas
por Oswaldo Cruz a sua esposa). Os textos, de autoria do cientista Oswaldo Cruz e datados respectivamente de 1910,
1913 e as cartas de 1911 são consideradas fontes para o estudo dos desafios ambientais e de saúde pública representados
pela Amazônia no início da vida republicana brasileira. A pesquisa pautou-se na Análise Documental e nos
procedimentos de avaliação do contexto de produção dos documentos, identificação da posição política do autor e
identificação do público ao qual o documento foi direcionado. O objetivo da pesquisa foi produzir uma síntese histórica
sobre a visão do Instituto Manguinhos sobre a região amazônica, em especial Porto Velho, evidenciando a relevância
das práticas e discursos dessa instituição de pesquisa para a “invenção da Amazônia”.
Palavras-chave: saúde; integração nacional; Amazônia.
ABSTRACT: The paper proposes to examine, briefly, some key documents for understanding the History of Science in
the Amazon in the twentieth century: the text "General considerations on the sanitary conditions of the Madeira River,"
"A Report on the medical-sanitary conditions valley of the Amazon" and the dossier Miloca (set of letters sent by
Oswaldo Cruz to his wife). The texts, written by the scientist Oswaldo Cruz and dated respectively 1910, 1913 and
1911, and the letters are considered sources for the study of environmental and public health challenges represented by
the Amazon in the early Brazilian republican life. The research was based on Documental Analysis and assessment
procedures of the documents production context, identification of the author´s politics position and the identification of
the public to whom the document was directed to. The research objective was to produce a historical contextualization
of the Manguinhos Institute view over the Amazon region, especially Porto Velho, highlighting the relevance of the
practices and discourses of this research institution to the "invention of the Amazon."
Keywords: Health; National Integration; Amazon.
Introdução
No despontar do século XX o Brasil viu nascer o Instituto Soroterápico Federal (mais
conhecido como Instituto Manguinhos), inaugurado em 23 de julho de 1900. Esse instituto, cujo
principal desafio era produzir vacina contra a peste bubônica, que assolava o Porto de Santos e
aterrorizava os pensamentos de uma sociedade ainda predominantemente rural, desenvolveu um
papel de destaque para o desenvolvimento nacional e para a própria construção do Estado brasileiro.
O Instituto Manguinhos, posteriormente denominado Instituto Oswaldo Cruz (1908) e
Fundação Oswaldo Cruz (1974), assumiu o desafio de desenvolver pesquisas tanto em laboratório
quanto em campo, revelando os fatores que contribuíam para os limites do desenvolvimento
nacional. Graças a essas pesquisas foi possível superar os determinismos que prevaleciam nas
análises sociais acerca do Brasil: o determinismo geográfico, que apregoava a inaptidão dos
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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brasileiros para a vida produtiva, e o racial, que propunha o “embranquecimento” da população
brasileira como meio para uma “depuração” genética, promovendo o preconceito racial contra
afrodescendentes.
Para a República que se formava, no limiar do século XX, era fundamental assegurar a
soberania nacional, a manutenção da unidade territorial e o controle estatal das regiões e populações
remotas, a fim de se construir uma nação e uma identidade nacional. A Amazônia era a vasta região
que desafiava o Brasil republicano, seja por sua extensão territorial, seja pela complexidade da vida
que se desenvolvia em seu espaço, na qual se incluíam as doenças tropicais. O enfrentamento desses
desafios foi favorável não só à manutenção da República, quanto ao desenvolvimento da Medicina
Tropical.
Conforme Schweickardt (2001, p. 37),
As doenças tropicais que tiveram maior conjunto de pesquisas no país e na região
amazônica foram a malária e a febre amarela. As pesquisas que trouxeram mudanças
significativas no modo de ver essas doenças e no modo de combatê-las levaram à
construção da categoria vetor e à identificação deste no processo de sua transmissão. A
Amazônia representava o palco típico ideal para o estudo dessas doenças porque reunia as
condições favoráveis à reprodução da doença, isto é, o clima, a temperatura e as condições
de vida da população colaboravam para a presença permanente do vetor.
Nesse trabalho de produção da nação, os intelectuais tiveram papel de destaque, produzindo
análises de utilidade política sobre os mais diversos aspectos dos problemas brasileiros.
As expedições do Instituto Manguinhos para os “sertões”, para o Brasil interiorano e
desconhecido, revelaram uma vasta população em condições precárias de vida, condições essas que
repercutiam diretamente em seus perfis de saúde e doença. Essas expedições significavam a
presentificação da ciência e do progresso, sendo os médicos e cientistas tratados com cordialidade e
respeito:
Não imaginas como essa gente me tem tratado: como um verdadeiro principe. Puzeram a
minha disposição um navio da Cia e ás minhas ordens puzeram o Mordomo da Companhia,
que depois de indagar ao Belizario da minha dieta etc. poz um cozinheiro pra meu regime e
durante toda a viagem, nessas paragens onde não ha recursos fui alimentado a vegetaes,
ovos, gallinhas, doces, aguas mineráes, enfim tudo quanto podia desejar. O navio trouxe um
carregamento desses alimentos para aqui afim de que me não falte cousa alguma.
Installámo-nos na casa do medico em chefe que abandonou seus commodos e tudo nos
entregou. Temos criados chineses. Enfim todo o conforto possivel numa grande cidade
tenho aqui nessas inhospitas passagens (CRUZ, 2010).
Quase que reverenciado, até mesmo o médico-chefe do hospital da Candelária cedeu sua
casa (possivelmente uma das melhores existentes à época), para o sanitarista se hospedar e
desenvolver seu trabalho: clínico e de pesquisa.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
70
Oswaldo Cruz tinha como desafio, nessa primeira expedição, investigar as condições
médicas e sanitárias do Rio Madeira, com ênfase para a região em que se concentravam as
instalações da EFMM (o pátio da ferrovia e a vila dos operários).
A expedição, liderada por Oswaldo Cruz e Belisário Penna ocorreu entre 16 de junho e 29
de agosto de 1910, financiada pela construtora da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), que
sob a coordenação de Percival Farquhar, retomara o trabalho de construção da ferrovia.
A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que deu origem à cidade de Porto
Velho era uma obra de engenharia de grande porte, cujo objetivo principal consistia em facilitar o
transporte da seringa extraída dos seringais amazônicos do Brasil e da Bolívia. A demanda
internacional por borracha, matéria-prima para a fabricação de pneumáticos se acentuou a partir de
1890, intensificando a exploração desse recurso natural e produzindo uma nova Amazônia, com
uma elite enriquecida e detentora de uma nova mentalidade, diferente das dos caboclos que
exploravam recursos naturais para fins de subsistência ou de comércio em escala local. Para
Weinstein (1993, p. 15),
A economia de exportação, resultante dessa confluência de forças econômicas e ambientais,
gerou um crescimento demográfico sem precedentes na região e fez uma área esquecida e
muito atrasada um dos mais promissores centros de comércio do Brasil.
A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi um empreendimento que visava a atender as
demandas produtivas do momento, e essa primeira expedição de Oswaldo Cruz à Amazônia17,
custeada pela construtora da obra, intencionava colaborar com a indústria da Borracha, na medida
em que fornecesse aos administradores do empreendimento, diagnósticos e recomendações
científicas para a promoção da saúde dos trabalhadores e o contingenciamento das principais
patologias tropicais da época, a malária e a febre amarela.
Além do desafio técnico de superar terrenos acidentados e pantanosos para a construção de
uma ferrovia no meio da selva amazônica, os trabalhadores enfrentavam um ambiente complexo, de
uma diversidade biológica jamais vista, no qual circulavam diversos agentes patológicos, com
destaque para os anofelíneos transmissores da Malária.
Embora não haja consenso quanto ao número de trabalhadores mortos ou que tenham
adoecido durante a empreitada, sabe-se que esses índices eram elevados, desafiando o poder público
17
Embora se afirme que Oswaldo Cruz tenha estado na Amazônia pela primeira vez em 1905, não foi possível localizar
documentos sobre essa sua estada, razão pela qual nos detemos na análise das expedições de 1910, ao Vale do Rio
Madeira, e na de 1913, ao Vale do Amazonas.
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e a iniciativa privada, e é na esteira desses desafios que as expedições do Instituto Manguinhos à
Amazônia devem ser pensados.
Chegando a Porto Velho em 10 de julho de 1910, Oswaldo Cruz e Belizário Pena
dedicaram-se a avaliar as condições sanitárias das margens do Rio Madeira, englobando o “canteiro
da obra”, os alojamentos dos trabalhadores e a estrutura médico-hospitalar e de diagnóstico,
fornecida pela construtora da Estrada de Ferro em Porto Velho, a Madeira-Mamoré Railway e Port
of Pará.
Fiz hontem o percurso de toda a linha até a extremidade dos trilhos: cerca de 120
kilometros. Sahimos ás 7 h. am e viajamos, parando apenas para o almoço até 10 horas da
noite. Fomos além do rio Jacy-Paraná. Estudei os acampamentos dos empregados e fiz as
indagações que se me afiguraram de utilidade. A linha é admiravel, rasgada toda no meio
da floresta virgem offerece offerece espectaculo grandioso, mostrando a riqueza
consideravel deste verdadeiro El Dorado: É de lastimar que a tanta riqueza esteja associada
a Morte: onde não reina exclusivamente o impaludismo de caracter pernicioso impera o
beri-beri. Minha vida aqui tem sido de trabalho em que procuro afogar o caudal de saudade
que me devora. Levo a examinar os numerosos doentes existentes no hospital, ao lado de
que móro, trabalho no laboratorio, estudo embriagando o tempo afim de que não faça muito
soffrer esta ausencia da família (CRUZ, 2010).
Se nas cartas Oswaldo Cruz escreve em tom intimista, revelando detalhes do seu cotidiano e
de seus sentimentos em relação à família, no documento “Considerações Gerais”, enviado ao diretor
da Estrada de Ferra, seu tom é mais técnico, embora não deixe de registrar observações muito
pessoais acerca de paisagens, culturas e acontecimentos políticos do período, como a greve dos
foguistas do Acre. Um dos pontos mais marcantes desse documento diz respeito às medidas
profiláticas que promoveu em relação à malária: a administração compulsória de quinino a todos os
trabalhadores da EFMM. O quinino, conhecido desde o século XVII é uma substância eficaz no
tratamento de malária, especialmente a causada pelo Plasmodium Falcíparum, mas devido a seu
sabor extremamente amargo, a administração da droga, por via oral, causava desconforto nos
pacientes e população residente na área, que também era obrigada a consumir diariamente o
produto. O próprio Oswaldo Cruz fazia uso diário da quinina, conforme excerto da missiva do dia
13 de julho 1910: “Apresenta-se-me hoje a opportunidade de te mandar algumas noticias. De saúde
vou admiravelmente fazendo uso diario de quinina”.
Compreende-se que a intenção de Oswaldo Cruz fosse a de preservar vidas e contribuir para
que os trabalhadores da ferrovia, com saúde, pudessem concluir a obra, todavia, sua atitude também
pode ser lida como um exercício de biopoder, entendido como. “o conjunto dos mecanismos pelos
quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai
poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT,
1977-1978, p.3). Esse controle sobre os corpos é instrumentalizado mediante estratégias e técnicas
diversas, que “docilizam” os corpos com vistas a assegurar a propriedade e o direito.
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Ainda no que se refere á prática de Oswaldo Cruz, de administração compulsória de
medicamento antimalárico, vale destacar que desde o início do século passado o cientista se
mostrava favorável a esse tipo de intervenção sobre populações residentes em áreas de risco de
doenças, como a população do Rio de Janeiro, em 1905. Oswaldo Cruz, ao propor para Pereira
Passos a criação dos batalhões de “mata-mosquitos” e a vacinação obrigatória contribuiu para a
ocorrência da Revolta da Vacina – um dos exemplos históricos mais contundentes sobre a
necessidade de informações claras para a população e da gestão participativa dos programas e
campanhas de saúde pública.
A decisão do cientista de aplicar dose (s) diária (s) de quinino ao conjunto de trabalhadores
da EFMM (cerca de 2000 ao todo), e só depois comunicar aos responsáveis pela empresa visava à
profilaxia e combate da malária, e pode ser vista também como uma medida de emergência, sem
prejuízo da leitura na perspectiva do biopoder. Isso porque, embora Oswaldo Cruz não estivesse
diretamente a serviço do Estado, as atividades que desenvolveria lhe seriam úteis.
A malária, no século XX matou entre 150 e 300 milhões de pessoas (RAMOS, 2007). Por
ser uma doença que compromete órgãos internos, como o fígado e o baço, bem como os glóbulos
vermelhos, causa grande debilidade física, tornando os enfermos indispostos para as atividades
laborais. Como o protozoário permanece no sangue por longos anos, quando não é feito o
tratamento correto, a população amazônica – área endêmica da doença -, passava praticamente a
vida toda sem condições de se desenvolver plenamente. A ênfase que o texto confere à malária
explica-se
[...] porque além de ser a questão mais grave na construção da ferrovia, era também o maior
problema sanitário de toda a Amazônia e de outras regiões do Brasil. Interessava não
somente como um entrave a uma obra determinada, mas como uma temática científica que
animava a comunidade científica internacional na área de medicina tropical
(SCHWEICKARDT; LIMA, 2007, p.27)
O documento apresenta as condições sanitárias do Rio Madeira, considerando aspectos
geográficos, econômicos, sociais e nosológicos, enfatizando a malária (impaludismo). Oswaldo
Cruz evidenciou também, em suas considerações gerais, a qualidade dos serviços de saúde
prestados pelo Hospital da Candelária, consonante com as orientações modernas da medicina e da
enfermagem, mas também seus limites: não era possível atender a todos. O hospital, em sua
política, tinha o intuito de atender, gratuitamente, qualquer pessoa que necessitasse, mesmo que não
fosse empregada da Companhia ou seu familiar, no entanto, havia uma métrica desigual entre o
número de leitos e profissionais disponíveis e a quantidade de pessoas necessitadas dos serviços de
saúde. É relevante considerar que o referido hospital, diferente do que ocorre na maioria das regiões
do país, não é um hospital de caridade, sustentado por irmandades religiosas, como as Santas Casas,
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e nem é público. A iniciativa privada tenta suprir, nesse rincão, a ausência do Estado, e constitui-se
num exemplo de que, com planejamento e racionalidade, a vida e o trabalho tornam-se possíveis,
mesmo em condições ambientais adversas.
O autor apontou ainda para as contradições existentes na região de Porto Velho. A cidade,
que brotava dos trilhos do pátio da ferrovia apresentava caráter moderno e multiétnico, com
trabalhadores oriundos das diversas partes do mundo, com luz elétrica e conjunto habitacional com
sistema de esgoto. Crescia com um mínimo de planejamento (embora as ocupações irregulares e
insalubres não tardassem a aparecer). Nela havia serviços de saúde consideráveis: um hospital com
cerca de 300 leitos, farmácia e serviços laboratoriais de microscopia. No entanto, muito próximo
desse “enclave” modernista, estava Santo Antônio do Madeira, mais antiga que Porto Velho, mas
sem infraestrutura de saúde e saneamento. Essa não contava com arruamento planejado e nem luz
elétrica. Seu monumento mais conhecido são as ruínas de um presídio, em uma ilha do Rio
Madeira, para onde eram levados presos políticos e outros criminosos. A população nativa
(indígenas, ribeirinhos e seringueiros) que habitava o lugar tinha de conviver com degredados,
forasteiros e pessoas consideradas “incômodas” ao governo da jovem República. Quiçá por ter se
tornado um lócus privilegiado de castigos aplicados pelo Estado Brasileiro, não se tenham feito os
investimentos necessários para que sua população, autóctone ou migrante, pudesse viver com
dignidade.
A comparação tecida por Oswaldo Cruz sobre as duas vilas é discreta, mas não o exime de
registrar a impressão que Santo Antonio lhe causara:
Visitamos hontem a cidade de Sto Antonio. Não podes imaginar o que seja. Qualquer
descripção por mais pessimista ficaria aquem da realidade. Basta que te diga que na cidade
não ha um só habitante filho do lugar. Todas as crianças que ali nascem morrem
infallivelmente e as poucas ahi nascidas estão de tal modo doentes que fatalmente morrerão
breve. A immundicie é incrível. Para dar uma ideia pallida do que é ella basta que te diga
que matam os bois nas ruas e ahi abandonam as visceras cabeça etc. que deixam apodrecer
em plena rua, e o máo cheiro é de tal ordem que quase se fica suffocado. Estou horrorizado
com tanta porcaria! (CRUZ, 2010).
Para o cientista, fazia-se urgente implantar uma cultura da higiene em Santo Antonio e
localidades próximas a Porto Velho, uma vez o conhecimento sobre a ecologia das doenças já lhe
fazia supor a circulação de vírus e mosquitos, seres que não reconhecem fronteiras geográficas.
Assim, não valeriam de muito as medidas profiláticas adotadas em Porto Velho se seu entorno
permanecesse contaminado pela falta de controle sanitário.
Na segunda expedição para a Amazônia, o foco das ações dos médicos-pesquisadores foi o
chamado “Valle do Amazonas”, a região da bacia amazônica e das microbacias dos rios Purus,
Acre, Abunã, dentre outros. Dessa feita, análises sobre o Rio Madeira e Porto Velho, em específico,
não foram empreendidas, pelo fato de que, três anos antes, Oswaldo Cruz já tinha tecido suas
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considerações sobre aquele espaço. Informações construídas naquela ocasião, entretanto, são
retomadas no novo texto, exemplificando-o ou atualizando-o com novos dados e leituras.
Essa segunda expedição foi composta por Oswaldo Cruz, João Pedroso e Pacheco Leão e se
estendeu pelos meses de outubro de 1912 a abril de 1913. O relatório que, registra os trabalhos do
grupo foi apresentado ao Senhor Pedro de Toledo, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio,
em um contexto no qual a indústria da borracha iniciava sua crise, tanto devido à concorrência com
a indústria asiática, quanto do ponto de vista da produtividade média realizada pelos seringueiros
amazônicos, na qual influíam doenças tropicais e as dificuldades inerentes a exploração do recurso
em um ambiente de floresta densa.
Esse relatório foi encomendado pelo próprio ministro da Agricultura, Indústria e Comércio e
os cientistas empenharam-se em descrever o cenário percorrido pela expedição, as condições de
vida dos seringueiros e uma detalhada nosologia das principais enfermidades presentes na região.
Um dos pontos que nos chamou a atenção foi a construção de “tipos” elaborada pelos
autores, que se entendemos estereotipada e preconceituosa, também dialoga com as principais
representações sociais sobre o caboclo daquele período. Segundo os autores, os que visitam a
Amazônia – com exceção deles próprios -, são “aventureiros sem princípios ou sem lógica na vida,
ou o cearense corajoso e tenaz, que fugindo da morte nas ardentias da secca sucumbem nos paúes
amazônicos, victimas da cruel antithese da natureza” (CRUZ, 1972b).
Para os cientistas, o esforço dos nordestinos que migraram para a Amazônia como retirantes
da seca deve ser valorizado, e esse grupo étnico é considerado valoroso e trabalhador, contudo, terá
de enfrentar a antítese da seca, que é a vida nas várzeas amazônicas.
Os discursos dos cientistas do Instituto Manguinhos reproduzem um imaginário tecido por
viajantes, cronistas e jornalistas, que interpreta a Amazônia como o “inferno verde”. Nesse espaço
de natureza sobrepujante, o homem se vê em toda a sua fragilidade, no entanto, não é só a condição
humana que está em jogo na dialética da natureza e da cultura, mas projetos políticos de
colonização dos trópicos. Para Lima e Botelho (2013, p. 746)
As viagens à Amazônia e os relatos nela inspirados condensam uma complexa discussão
sobre as possibilidades, os impasses e os sentidos próprios da construção da civilização nos
trópicos. Feitos não apenas por cientistas e intelectuais estrangeiros, mas também
brasileiros, os registros dos viajantes contribuíram para a composição de persuasivas
representações que se tornaram, ao mesmo tempo, um ponto de partida para discussões
mais amplas sobre a sociedade brasileira. Itinerários nos quais se deslocavam ideias,
leituras e impressões sobre a natureza, a cultura, as populações locais e as relações entre
região e nação, e mesmo entre o Brasil e o mundo, esses deslocamentos e seus
correspondentes relatos permaneceram cruciais nas duas primeiras décadas do século XX.
Nesse sentido, os cientistas criticaram ainda a falta de racionalidade na exploração da
borracha, que segue as determinações da floresta em vez da lógica humana. Os prejuízos
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econômicos dessa falta de racionalidade são considerados prejudiciais ao florescimento da vida na
Amazônia, e esses prejuízos se intensificam ainda mais na medida em aquele espaço é marcado por
patologias tropicais que desafiam a saúde pública.
A indústria gomífera é desafiada pelas doenças tropicais, que coloca os seringueiros em face
do “espectro da morte”, representado principalmente pela malária. Em sua segunda parte o relatório
(CRUZ, 1972b) apresenta diversas análises sobre as questões médico-sanitárias dos rios Solimões,
Juruá e Tarauacá, indicando a sazonalidade das principais doenças constatadas. A terceira parte,
denominada “notas sobre a epidemiologia no Valle do Amazonas” alerta para o fato de que o
interior do vale do Amazonas é pouco conhecido e pouco estudado pela Medicina Experimental.
Aquela porção do espaço foi descrita no texto como de precárias condições de vida e elevados
índices de mortalidade. Para Oswaldo Cruz e sua equipe, contudo, esse quadro é passível de
superação na medida em que as medidas profiláticas forem aceitas e adotadas pela população e seus
governos.
O texto é crítico quanto a determinismos geográficos que atribuem a causas meteorológicas
ou ambientais a inadaptação do homem à vida naquele espaço e seu estado de constante
enfermidade. Os cientistas representam uma visão moderna e positiva da ciência, mediante a qual as
adversidades do meio físico podem ser superadas com medidas científicas, como a produção de
vacinas, o controle de vetores, a proteção das residências com telas em suas portas e janelas, o uso
de mosquiteiros e de medicação para restabelecimento da saúde.
A profilaxia de doenças parece mais enfatizada do que a promoção da saúde, primeiro
porque esse não era um conceito muito utilizado naquela época, e segundo porque poderia ser
inconveniente, para cientistas que dependem dos recursos do Estado para desenvolver suas
pesquisas, levantar todas as obras públicas necessárias para o saneamento da região. Embora os
documentos analisados apresentem uma perspectiva bastante técnica, com descrições e medidas
objetivas sugeridas aos gestores, é digna de nota a preocupação humanista dos cientistas do Instituto
Manguinhos, que compreendem o sofrimento humano das populações amazônicas e o percebem
como limite ao desenvolvimento econômico do país.
Os documentos, brevemente analisados por essa pesquisa, possibilitaram o entendimento das
vinculações entre ciência e saúde no espaço amazônico, nos primórdios da República, o lugar
estratégico ocupado pela Amazônia para o Estado brasileiro e para o próprio desenvolvimento
científico, além de favorecem o conhecimento sobre Porto Velho no início do século XX, antes
mesmo de sua elevação à categoria de município. No caso de Porto Velho, em particular, considerase que a expedição de Oswaldo Cruz de 1910 foi relevante para sua emancipação política, não só
pelas medidas profiláticas adotadas após a vinda dos cientistas, que possibilitou melhorias nas
condições de vida e saúde da população – especialmente da população ligada aos trabalhos da
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ferrovia Madeira-Mamoré, quanto por dar visibilidade ao lugar, que graças à recepção de cientistas
de renome, se fez lembrar na mídia e na política nacional.
Referências
CHAGAS, Carlos. “Notas sobre a epidemiologia do Amazonas”, Brazil Médico, Rio de Janeiro,
v.27, n.42, p.450-456. 1913.
CRUZ, Oswaldo. Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira. Rio de
Janeiro. Papelaria Americana, 1910. In: Sobre o saneamento da Amazônia. Manaus, Philipe
Daou, 1972.
_________, Oswaldo. Relatorio sobre as condições medico-sanitarias do valle do Amazonas
apresentado a Sua Exa o Sr. Dr. Pedro de Toledo - Ministro da Agricultura, Industria e
Commercio. In: OSWALDO Gonçalves Cruz: Opera omnia. Rio de Janeiro: Impr.
Brasileira, 1972b. p.663-718.
_________, Oswaldo. Dossiê Miloca - 1910/1911 - Expedições científicas de Manguinhos.
Fundação
Oswaldo
Cruz.
Disponível
em:
http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=607&sid=7
acesso
em
02/08/2014.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (19771978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
LIMA, Nísia Trindade; BOTELHO, André. “Malária como doença e perspectiva cultural nas
viagens de Carlos Chagas e Mário de Andrade à Amazônia”. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos , Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2013, p.745-763.
SCHWEICKARDT, Júlio Cesar. Ciência, Nação, Região: as doenças tropicais e o saneamento no
estado do Amazonas, 1890-1930. Manaus, FAPEAM/FIOCRUZ, 2011.
SCHWEICKARDT, Júlio Cesar; LIMA, Nísia Trindade. “Os cientistas brasileiros visitam a
Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910-1913)”. Hist.
cienc. saude-Manguinhos vol.14 suppl.0 Rio de Janeiro Dec. 2007
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Uma análise do perfil econômico de famílias impactadas pela cheia do Rio Madeira de 2014
residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa
Carlos Miguel Teixeira Ott
José Ítalo Oliveira dos Santos
Josenaldo Santos Porto
Xênia de Castro Barbosa
Resumo: O texto visa a uma breve análise do perfil econômico de 300 famílias residentes nos bairros Baixa União,
Triângulo e Balsa, em Porto Velho - bairros localizados às margens do rio Madeira e que foram atingidos pela enchente
de 2014. Buscou-se, a partir de uma concepção materialista da História traçar o perfil econômico dessas famílias, por se
entender que o fator econômico influi fortemente na capacidade de resiliência de pessoas vítimas de eventos
socioambientais extremos, embora não seja o único capaz de contribuir para a retomada dos projetos de vida e a
reconstrução dos ambientes de convívio familiar e social.
Palavras-chave: Enchente. Perfil econômico. Território urbano.
Abstract: The paper aims at a brief analysis of the economic profile of 300 families living in Baixa União, Triângulo
and Balsa Districts, in Porto Velho - districts located on the banks of the Madeira River that were affected by the flood
of 2014. We tried, through a materialistic conception of history, to trace the economic profile of these families, because
it is understood that the economic factor strongly influences the resilience of victims of extreme social and
environmental events, although it is not the only factor capable of contributing to the resumption of life projects and
reconstruction of family and social scene.
Keywords: Flood. Economic profile. Urban territory.
Introdução
Esse ensaio é um recorte do estudo “Gestão Ambiental do Território Urbano: uma análise
dos riscos e vulnerabilidades socioambientais dos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa, em Porto
Velho/RO”, desenvolvida no Programa Institucional de Pesquisa do IFRO – PIP/IFRO. O projeto
faz parte de um projeto “guarda-chuva” denominado “Banzeiro: uma análise sistêmica da enchente
do Rio Madeira de 2014 e seus efeitos socioeconômicos e ambientais em Porto Velho/RO”.
O texto visa a uma breve análise do perfil econômico de 300 famílias residentes nos bairros
Baixa União, Triângulo e Balsa, em Porto Velho - bairros localizados às margens do rio Madeira e
que foram fortemente impactados pelo transbordamento desse rio, em 2014. Buscou-se, a partir de
uma concepção materialista da História e do método do materialismo histórico e dialético traçar o
perfil econômico dessas famílias, por se entender que o fator econômico influi fortemente na
capacidade de resiliência de pessoas vítimas de eventos socioambientais extremos, embora não seja
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o único capaz de contribuir para a retomada de projetos, a reconstrução de moradias, naqueles ou
em outros espaços, e a reconstrução de equipamentos urbanos danificados pela enchente.
A escolha por uma concepção materialista da História e pelo método do materialismo
histórico e dialético como ferramenta de análise se deu com base no entendimento de que, ao
procedermos à produção social de nossa existência, nos colocamos em relações determinadas,
necessárias, e independentes de nossa vontade, relações que
“correspondem a um dado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O
conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base
real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social” (MARX, 1989, p. 28).
Do mesmo modo, a produção material do espaço se dá a partir das condições materiais
disponíveis, essas compreendendo os recursos técnicos, a cultura e as relações de produção que
definem a propriedade e os usos do solo.
Com base no exposto, torna-se patente que: (1) Os bairros investigados nessa pesquisa,
caracterizados como de colonização antiga (centenária), foram formados a partir de ocupação
espontânea (não planejada), com exceção das adjacências do pátio da Estrada de Ferro MadeiraMamoré, (2) Não houve ações efetivas por parte do poder público em regular a ocupação desses
espaços, sujeitos a alagamento e desabamento de terra, (3) Esses bairros foram formados
historicamente por famílias de trabalhadores, em geral funcionários da Ferrovia Madeira-Mamoré
ou outros trabalhadores, cujos ofícios contribuíam, direta ou indiretamente, para a manutenção do
empreendimento ferroviário, (4) A maioria desses trabalhadores era de condição social humilde e
edificou suas residências próximas ao rio e ao pátio da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, porque
aquele ambiente lhes proporcionava, simultaneamente, interação social, possibilidade de comércio,
acesso a serviço médico-hospitalar (prestados pelo hospital da Candelária), além da exploração das
benesses do Rio Madeira, que fornecia a principal fonte de proteína utilizada na época – o peixe,
além da água para o consumo humano e irrigação de pequenas hortas. Destaca-se que o rio também
se apresentava como o mais importante meio de transporte e conexão entre o mundo ribeirinho
amazônico e o nascente mundo urbano de Porto Velho.
Com o decorrer dos anos, a população desses bairros se diversificou, abrangendo tanto
famílias descendentes desses primeiros povoadores, que se encontram há três ou mais gerações
assentadas naqueles espaços, assim como migrantes recentes, das diversas classes sociais. É
possível encontrar nesses bairros tanto residências precárias em becos onde não é possível o trânsito
nem mesmo de caminhão coletor de lixo, até mansões, edificadas à margem do rio por escolha
estética de uma parcela da elite econômica portovelhense.
As características estruturais desses bairros levaram-lhes à classificação de “aglomerados
subnormais”, que coexistem com residências de alto padrão evidenciando as disparidades
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econômicas entre as classes. A enchente do Rio Madeira de 2014, que acreditamos ocasionada por
uma convergência de fatores de ordem climática e social, afetou indistintamente a ricos e pobres,
evidenciando as falhas políticas e técnicas quanto ao uso, distribuição e ocupação do solo urbano
em Porto Velho.
O fenômeno trouxe à tona o problema do ordenamento territorial, da propriedade do solo, da
falta de tratamento do lixo, da inexistência de sistemas de drenagem e de prevenção de enchentes,
dentre outros, mobilizando entes privados e públicos no auxílio às vítimas dessa que foi a maior
catástrofe enfrentada pela população de Porto Velho desde a criação da Estrada de Ferro MadeiraMamoré. Impacto socioambiental dessa envergadura, apesar de “democrático” em sua extensão,
resulta em respostas diferenciadas por parte dos sujeitos por ele afetados. Se os riscos parecem
equivalentes a todos os grupos sociais, pelo menos em um primeiro olhar, a vulnerabilidade
socioambiental e econômica desses grupos é variável, assim como sua capacidade de resiliência.
Para dimensionar os riscos e vulnerabilidades foram entrevistados 300 moradores dos
bairros em análise, sendo cem da Baixa União, cem do Triângulo e cem do bairro Balsa. A coleta de
dados levantou informações variadas sobre risco e vulnerabilidade socioambiental, mas nesse texto
daremos enfoque tão somente a seu perfil econômico.
Do total de pessoas entrevistadas, 36 pessoas, ou seja, 12,00% da amostra afirmou receber
mensalmente menos de um salário mínimo, 41,33% afirmou receber apenas um salário mínimo,
27,66% dos entrevistados afirmou possuir renda de um a dois salários mínimos, 0,66% disse
perceber mensalmente o equivalente de cinco a oito salários mínimos e 1,00% da amostra afirmou
possuir renda superior a oito salários mínimos.
O conjunto foi representado por 147 pessoas do século masculino e 153 do sexo feminino,
correspondendo, respectivamente a 49% e 51% da população entrevistada. No grupo do gênero
feminino encontram-se tanto as pessoas com maior renda (acima de oito salários mínimos), quanto
aquelas de maior fragilidade econômica (menos de um salário mínimo). Foi possível perceber
também que, dentre as pessoas de menor renda econômica encontram-se mulheres jovens, entre 16
e 24 anos. A pesquisa não investigou a quantidade de filhos dessas mulheres, mas foi possível
perceber que três delas estavam em estado gestacional avançado, das quais duas não estavam
recebendo acompanhamento pré-natal, até o momento em que as contactamos e encaminhamos para
a assistência social do município.
A procedência Geográfica dos entrevistados revelou-se predominantemente urbana, com
apenas 86 pessoas de procedência rural. Importante destacar que esse ambiente rural do qual essas
pessoas se deslocaram até chegar a Porto Velho são, predominantemente, os ambientes ribeirinhos
do Baixo Madeira e de antigos seringais da região de Humaitá.
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O nível de escolaridade dos entrevistados é considerado baixo: 62,33% (187 pessoas) possui
apenas o Ensino Fundamental, sendo que desse percentual constam tanto os que possuem o Ensino
Fundamental completo quanto o incompleto. O Tempo médio de permanência na escola vivenciado
por aquelas pessoas foi de quatro anos. Apenas 34,66% dos entrevistados – o que equivale a 104
pessoas – tiveram acesso ao Ensino Médio e desse total 16 não estavam frequentando escola no
momento da entrevista, devido a mudança para abrigos distantes das escolas onde estudavam e/ou
porque a escola onde estudavam também sofreu alagação. Apenas nove, das 300 pessoas
entrevistadas possui curso superior completo, estando essas situadas nas faixas que apresentaram os
rendimentos econômicos mais elevados. Cabe destacar, contudo, que uma das pessoas que
apresentou rendimento superior a oito salários mínimos possui o Ensino Médio incompleto, e
justificou seu poder aquisitivo pelo fato de ter herdado propriedades de seu falecido esposo, que lhe
deixou oito imóveis de aluguel. Curiosamente, essa pessoa estava servindo-se de um abrigo mantido
pela Igreja Católica, como forma de ser vista pelo Estado e receber a indenização que considera
justa. A entrevistada alegou também a importância de estar unida às demais pessoas que sofrem
pelo mesmo problema, evidenciando que a luta pela reparação aos danos sofridos deve ser uma luta
coletiva.
O perfil dos atingidos pela enchente do Rio Madeira de 2014 é variável e engloba tantas
pessoas de baixa renda, cujo valor preciso não foi possível estimar18, mas sabe-se inferior ao valor
do salário mínimo vigente no Brasil, quanto pessoas de classe média e média alta. A maioria,
contudo, contudo, é de pessoas pobres, que pela difícil condição socioeconômica em que se
encontram sentem de maneira atroz a violência causada pela enchente do Rio Madeira. Para essas
pessoas, que perderam tudo, que perderam o pouco capital que possuíam, recomeçar se torna mais
difícil, levando-as à dependência do assistencialismo estatal e da filantropia das organizações
sociais.
É preciso problematizar ainda o dado de que 41,33% da amostra afirmou possuir renda de
um salário mínimo, o que pode ter se dado pela necessidade de informar uma renda aquém da que
realmente se possui para não se ficar desassistido dos programas sociais, que atendem apenas aos
mais carentes. Os fatores emocionais envolvidos no processo e as necessidades materiais imediatas
desses trabalhadores, especialmente a de reconstruir suas habitações e assegurar o conforto da
família, compensando os prejuízos sofridos deve ser considerado como possível fator de
subquantificação da renda familiar.
Quanto às informações sobre escolaridade e procedência geográfica, acredita-se estarem
corretas, na medida em que se faz necessária sua comprovação documental para cadastros nos
18
Não insistimos no detalhamento dessa informação por entendermos se tratar de assunto que pode causar
constrangimento às pessoas que vivem aquela situação. Trabalhamos apenas com as informações que, voluntariamente,
as pessoas quiseram dar a esse respeito.
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programas sociais, assim a expressão da identidade e referenciais geográficos se mostrou, nesse
caso, menos problemática do que a revelação da renda familiar, embora se possa afirmar que a
maioria das pessoas entrevistadas estavam abrigadas em escolas e igrejas por não possuírem outro
imóvel ou não possuírem condições de pagar aluguel, naquelas circunstâncias.
Considerou-se o perfil econômico das famílias entrevistadas um agravante da situação de
vulnerabilidade que enfrentam, por não lhes possibilitar o acesso aos recursos necessários para a
reconstrução da moradia. Mesmo com os subsídios governamentais, não se constatou alterações
significativas nesse perfil. Foram pagos às famílias cadastradas e aprovadas pela Secretaria de
Assuntos Estratégicos (Seae) o auxílio aluguel, por seis meses, no valor de R$: 500,00 mensais e o
Auxílio Vida Nova, no valor de R$ 1.000, pago em parcela única, para utilização conforme
necessidade do beneficiário. Também foram efetuados cadastros para o projeto “Morada Nova”, do
Governo do Estado de Rondônia, em parceria com o Programa do Governo Federal Minha Casa
Minha Vida, mas ainda não houve beneficiados e nem é preciso dizer que os valores pagos às
vítimas da cheia (Auxílio aluguel social e auxílio Vida Nova) são simbólicos e insuficientes em
vista dos prejuízos sofridos e do alto valor do preço dos alugueis em Porto Velho.
Referências
PLEKHÂNOV, Guiorgui. A concepção materialista da História. São Paulo: Ed. Escriba, 1983.
MARX, Karl. Prefácio de Contribuição para a Crítica da Economia Política . São Paulo:
Mandacaru,1989.
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Violência no trânsito uma abordagem da problemática na cidade de Porto Velho
Tiago Lins de Lima
Maria Enísia Soares de Souza
Xênia de Castro Barbosa
Madson Silva de Souza Junior
Resumo: O presente trabalho objetiva apresentar um panorama da violência no trânsito na cidade de Porto
Velho/Rondônia, com base em estatísticas e relatórios produzidos pelo DENATRAN – Departamento Nacional de
Trânsito, DETRAN/RO – Departamento de Trânsito do Estado de Rondônia e o SIM – Sistema de Informações sobre
Mortalidade. A pesquisa articulou os métodos bibliográfico-documental e observação em campo para a produção de
uma síntese que problematiza o modelo de desenvolvimento e modelo de transporte privilegiado na sociedade de Porto
Velho. As reflexões aqui apresentadas foram tecidas tendo como base as discussões relativas aos desafios da cidade de
Porto Velho, no contexto de seu centenário, celebrado em dois de outubro de 2014.
Palavras-chave: Violência. Trânsito. Porto Velho.
Abstract: This work aims to present an overview of traffic violence in Porto Velho/Rondônia, based on statistics and
reports presented by DENATRAN – National Traffic Department, DETRAN/RO – Traffic Department of the State of
Rondônia, and SIM – Data System on Mortality Rate. This research related documental-bibliographic methods and field
observation to produce a synthesis that questions the development model and the privileged transportation model in the
society in Porto Velho. Reflections here presented were based on arguments related to the challenges Porto Velho faces,
especially in its centennial context, celebrated on October 2 nd, 2014.
Key words: Violence. Traffic. Porto Velho.
INTRODUÇÃO
Não é desconhecido o fato de que o Brasil atravessa uma situação crítica em relação ao
trânsito, seja no que diz respeito à lentidão do tráfego, devido aos congestionamentos ou número
elevado de veículos em circulação, seja no que reporta aos elevados números de acidentes. Nesse
texto daremos enfoque para esse segundo aspecto, com vistas produzir uma discussão capaz de
contribuir para a mitigação desses danos.
Consideramos a educação no trânsito um dos aspectos essenciais das políticas públicas de
combate a essa forma de violência. Entretanto, entendemos que, mais do que campanhas educativas
– que muitas vezes são direcionadas ao público-alvo errado (estudantes que não dirigem), é
necessário discutir o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil e seu modelo de transporte.
O Brasil vivenciou a partir dos anos 1950 um acentuado processo de urbanização, que
consagrou a cidade como espaço privilegiado de vida. As oportunidades (verdadeiras ou não)
vislumbradas em relação a ela atraíram grande contingente de migrantes, ocasionando o fenômeno
do “êxodo rural”, característico, principalmente, do período de 1960 a 1980. Nas cidades se
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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concentraram o comércio, a indústria, os centros de formação acadêmica e as principais opções de
lazer, embora nem sempre essas opções estejam de fato disponíveis a todos os que a demandam.
A cidade é, por excelência, o espaço da segregação e do desenvolvimento desigual. No seu
reverso encontra-se a política agrária brasileira, marcada pela má distribuição da terra, pela retração
dos investimentos públicos na agricultura familiar e a incorporação de tecnologias para a agricultura
extensiva. De acordo com Mueller e Martine (1997), essas novas tecnologias de produção agrícola
atuaram na intensificação das desigualdades socioeconômicas, considerando que seu acesso foi
limitado a uma elite agrária. Essa elite, por sua posição social, pode dispor dos créditos e incentivos
produtivos, em detrimento da maioria da população camponesa do Brasil, que sem condições de se
manter no campo deslocou-se para as cidades em busca de uma vida melhor.
Atualmente, 84% da população brasileira residem em áreas urbanas (IBGE, 2010),
evidenciando um crescimento de 3% em relação ao ano de 2000. Na escala de Porto Velho,
constata-se a reprodução desse modelo: dos 428.527 habitantes que compõem sua população
(IBGE, 2010), cerca de 360 mil pessoas residem em espaço urbano.
Estudo de Cláudia Pinheiro Nascimento, Carlos Santos e Maurício Silva (2012) indica
crescimento negativo da população rural de Porto Velho, ao passo em que sua população urbana se
desenvolve a taxas elevadas. De acordo com o estudo (op. cit.), no ano de 2010 houve decréscimo
da população rural de Porto Velho em -42%, ou seja, quase metade de sua população rural teria
deixado a vida no campo e migrado para outros espaços.
A vida nas cidades apresenta desafios peculiares e crescentes, como o da violência no
trânsito. Conforme Rodrigues,
Violência por definição é um comportamento humano que vise ou possa causar dano a
outra pessoa, ser vivo ou objeto. È o ato atentatório contra a autonomia, integridade física
ou psicológica e mesmo contra a vida de outro. É um fenômeno que permeia todo o tecido
social e assume diferentes formas. É geral. Ocorre do nosso lado e nas mais longínquas
regiões terrestres. Pode ser percebida nos bairros nobres das cidades e nas periferias. Está
nas ruas e, até mesmo, dentro de nossas casas. É exterior à vontade das pessoas. Alcança
todas elas indistintamente variando, porém, em intensidade (RODRIGUES, 2007, p. 1).
Apesar de a violência ser um fenômeno social generalizado, suas expressões podem ser
seletivas, atingindo grupos mais vulneráveis, como a violência de gênero, a violência contra
crianças e adolescentes ou contra idosos. Os acidentes de trânsito são uma das expressões da
violência que perpassa as relações sociais no trânsito, e podem contar ou não com a
intencionalidade de seus autores, ou seja, podem ser provocados devido à imprudência dos
condutores - que sabendo dos limites de velocidade e da condição de sobriedade necessária para a
condução de veículos, as ignoram intencionalmente, ou podem decorrer de problemas não
intencionas, como falhas mecânicas no veículo e no sistema de sinalização das vias públicas.
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Entende-se por acidente aquilo que é casual, “fortuito, imprevisto, não planejado, um evento
não intencional que produz danos e/ou ferimentos. Quando esse imprevisto origina um dano grave
nas pessoas ou leva à sua morte, converte-se em fatalidade, obra do destino, produto do acaso”
(WAISELFISZ, 2013, p. 8). Apesar disso, muito do que se considera “acidente” poderia ser evitado
com medidas de educação no trânsito e maior responsabilidade, seja por parte dos condutores, seja
por parte do poder público, mediante engenharia de trânsito.
A violência no trânsito é uma manifestação específica de violência e, sendo assim, pode ser
intencional (crime doloso) ou não intencional (crime culposo). Nesse sentido, é necessário ainda
distinguir violência automobilística de violência no trânsito. A violência automobilística é a que
envolve um ou mais automóveis, sendo o seu condutor o seu principal agente. A violência no
trânsito é toda e qualquer forma de violência que acontece no trânsito, desde o que juridicamente é
chamado de crime doloso até um acidente entre um ciclista e um pedestre (VIANA, 2013).
O quadro contemporâneo de violência no trânsito é emblemático do modo de vida urbanoindustrial, que imprimiu nas sociedades ocidentais a “ditadura do tempo”, obrigando as pessoas a se
deslocarem cada vez mais e com mais “eficiência” pelos espaços. Velocidade e pontualidade se
tornaram valores culturais capazes de favorecer ganhos financeiros, e para isso o automóvel foi
apresentado como um dos principais aliados.
Segundo o Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN, 2014), há em circulação no
Brasil 84.892.511 veículos, dos quais 45.444.387 são automóveis, ou seja, 56% da amostra. No
período de 2001 a 2011 o número de veículos no Brasil cresceu mais de 100%, e com base no
Censo IBGE 2010, calcula-se que o país tenha uma média de 01 carro para cada 2,94 habitantes. Já
o município de Porto Velho possui uma frota de 231.004 veículos (DENATRAN, 2014), dentre os
quais 71% são de automóveis e motocicletas. A frota de ônibus desse município é de 1623
unidades, ou seja, menos de 1% do total de veículos em circulação.
De acordo com Julio Waiselfisz, em seu Mapa da Violência,
Mais da metade (52,2%) dos domicílios brasileiros possuem carro e/ou motocicleta. A
maior presença é a de carros, que existem isoladamente em 32,9% dos domicílios, além dos
7,9% onde existem acompanhado de motocicleta, com o que o automóvel encontra-se
presente em 40,8% dos domicílios do país. A motocicleta existe, de forma exclusiva, em
11,1% dos domicílios e, acompanhada de carro, em mais 7,9%, totalizando 19% dos
domicílios do país (WAISELFISZ, 2013, p. 79).
Os dados acima apresentados permitem pensar que o transporte individual de passageiros,
realizado principalmente por meio de automóveis e motocicletas não só tem sido priorizado como
tem sido estimulado pelo governo, em prejuízo do transporte público. No Brasil, o transporte
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coletivo – que poderia substituir boa parte do transporte individual, diminuindo o trânsito e a
poluição atmosférica – tem qualidade questionável e tarifas incoerentes com a qualidade dos
serviços prestados e as condições econômicas da população, o que levou a uma onda de protestos
no ano de 2013 que tomou conta das principais capitais do país, forçando os governantes e
concessionários do serviço a reduzirem o valor das tarifas.
A redução do valor das tarifas não foi suficiente, contudo, para a melhoria da qualidade dos
serviços prestados e nem para a universalização do acesso ao serviço, o que faz com que muitas
pessoas tenham ou preferiam utilizar automóvel e motocicletas a ônibus.
Sem entrar no mérito dos danos ambientais ocasionados por esse modelo de transporte, um
dos principais impactos dessa grande quantidade de carros e motos em circulação se dá na
desordem do trânsito e na quantidade de vítimas fatais dos acidentes. De acordo com o Sistema de
Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM, 2011), o número de óbitos por
acidente de trânsito no Brasil atingiu a casa dos 46. 253, dos quais 591 ocorreram em Rondônia. O
cálculo das taxas de óbito para cada 100 mil habitantes da população total do Brasil no ano de 2011
foi de 22,5 e em Rondônia, de 37, 5, acima, portanto, da média nacional.
Sabe-se, todavia que, esses números alarmantes não são restritos ao Brasil e a Rondônia,
mas fazem parte da maioria dos países em desenvolvimento no mundo. Segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS, 2010), no ano de 2010 foram registrados 1,24 milhão de mortes por
acidentes de trânsito e de 20 a 50 milhões de pessoas com traumatismos decorrentes de acidentes
desse tipo, o que tem levado a própria entidade a falar de uma “epidemia letal” de violência no
trânsito (OMS, 2010).
No Brasil, como forma de tentar reduzir a mortalidade e ferimentos por acidentes de trânsito
foi decretada a Lei Seca (Lei 11.705/2008), que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB),
penalizando com multa, suspensão da carteira de habilitação e até detenção os motoristas que
trafegarem sob o efeito de álcool. O CTB sofreu nova alteração em 2012, com a Lei n. 12.769, de
20 de dezembro de 2012, que tonou mais rigorosa a fiscalização e punição dos infratores.
Com a pesquisa procuramos discorrer brevemente sobre o conjunto documental que deu
base ao estudo e dimensionar o problema da violência no trânsito em Porto Velho.
A pesquisa, de cunho qualitativo, baseou-se na metodologia da Análise Documental e tomou
como fontes relatórios da OMS, DETRAN/RO, do DENATRAN, bem extraiu dados do
SIM/DATASUS. Também utilizamos de relatos sistematizados a partir de nossas próprias
observações em ruas e avenidas movimentadas da cidade, nas quais costumam ocorrer acidentes de
trânsito, como as Avenidas Jorge Teixeira, Calama e Rio Madeira, e as ruas Rafael Vaz e Silva,
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Guanabara, Joaquim Nabuco e Uruguai. As observações em campo localizaram-se principalmente
nos bairros a oeste da região central de Porto Velho: Olaria, São Cristóvão, Liberdade, e Setor
Industrial.
As noções de acidente e acidente de trânsito utilizadas no presente estudo foram as do
SIM/MS, que estão em consonância com as classificações da Organização Mundial da Saúde. A
análise dos dados tomou como referência Araújo (2009), Bacchieri e Barros (2011), Viana (2013) e
(WAISELFISZ, 2013), dentre outros.
1 AVIOLÊNCIA NO TRÂNSITO EM NÚMEROS
Uma multiplicidade de fatores interage para a ocorrência constante de acidentes e violências
no trânsito, desde as más condições das vias e falhas mecânicas nos veículos até o consumo de
drogas lícitas e ilícitas (ARAÚJO, 2009).
Quanto à vulnerabilidade social, a violência do trânsito é extensiva a todas as classes e
grupos sociais, todavia, consideram-se mais vulneráveis as populações que não dispõem de boas
condições econômicas e de acesso aos serviços de saúde em tempo e qualidade adequados. Por
tempo e qualidade adequada se consideram o socorro rápido e eficiente, que pode minimizar a
extensão e gravidade dos traumatismos e evitar mortes prematuras.
Em Porto Velho, muitos dos acidentes de trânsito são ocasionados por negligência dos
condutores, conforme atestam dados provenientes da 4ª edição do Anuário Estatístico de Trânsito
(DETRAN, 2013), que reuniu informações da Polícia Civil – PC, Polícia Militar – PM, Polícia
Rodoviária Federal – PRF, Delegacia Especializada em Delitos de Trânsito - DEDT e Instituto
Médico Legal – IML, do período de 2002 a 2012, com base nas orientações da Associação
Brasileira de Normas Técnicas pela NBR 10697.
A partir da figura abaixo é possível constatar as principais infrações de trânsito praticadas
em Porto Velho no ano de 2013.
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Figura 1: Infrações mais cometidas no município de Porto Velho no ano de 2013
Fonte: CIATRAN/PVH/2013
Ao se analisar os dados do quadriênio 2009-2012 fornecidos pelo DETRAN (DETRAN,
2013), constatam-se que essas mesmas infrações vêm acontecendo sem grandes recuos desde 2009,
demandando, portanto, iniciativas mais eficazes de educação para o trânsito. A violação aos artigos
230, 162, 232 e 167 do CTB, por exemplo, aparecem em todos os 4 anos, demonstrando contínuo
desrespeito às normatizações de segurança e legalidade.
O quadro seguinte mostra dados da CIATRAN com os resultados da Operação Lei
Seca e nos permite perceber que o quantitativo de condutores autuados superou a soma do
período 2011-2012. Em 2013, 6.173 motoristas foram autuados por dirigirem embriagados.
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Figura 2: Números da Operação Lei Seca no município de Porto Velho, ano 2013
Com as alterações legais e a operação Lei Seca em Porto Velho houve aumento do número
de autuações e de prisões, o que indica que a fiscalização está sendo realizada, no entanto, não se
notam transformações de ordem cultural, por parte da sociedade, para um trânsito menos violento.
Os entendimentos dessa sociedade e a falta de ética de alguns condutores têm contribuído para a
elevação do número de vítimas fatais em acidentes de trânsito no município do Porto Velho.
Figura 3: Número de vítimas fatais no município de Porto Velho segundo sexo
VÍTIMAS FATAIS NO MUNICÍPIO DE PORTO VELHO SEGUNDO SEXO
Fonte: DETRAN/RO, 2013.
Quanto ao comportamento das mortes por acidentes de trânsito segundo o sexo, é
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Com base na imagem acima é possível notar que em Porto Velho, as principais vítimas de
acidentes de trânsito no período 2002 a 2012 foram os homens, em uma proporção de 3:1 (três
homens para cada uma mulher), indicando a vulnerabilidade desse gênero. Essa pesquisa não teve o
propósito de investigar as causas da vulnerabilidade desse grupo, todavia, estima-se que fatores
econômicos (como maior acesso a veículos de transporte) e culturais (maior consumo de bebidas
alcoólicas) possam estar envolvidos.
Figura 4: Quadro comparativo de condutores envolvidos em acidentes
A concentração de mortes em decorrência de acidentes de trânsito tem predominado, nos
seis últimos anos, na faixa etária do adulto jovem – 30 a 59 anos, seguido de 18 a 29 anos
(DETRAN, 2013).
A população dessas faixas etárias são, segundo (WAISELFISZ, 2013), os principais
usuários de motocicletas. Essas, conforme Bacchieri e Barros (2011) submergiram no espaço
urbano como eficiente ferramentas de transporte e trabalho diante de um trânsito cada vez mais
congestionado, tornando-se o meio de transporte individual mais popular no Brasil. Entretanto, a
forma de condução e a vulnerabilidade do condutor e passageiro contribuíram para o aumento dos
acidentes com motociclistas jovens do sexo masculino, e suas vítimas, os pedestres, o que coloca
esse grupo como prioritário nas campanhas educativas e de saúde pública com ênfase no trânsito.
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Figura 5: Vítimas fatais no município de Porto Velho segundo tipo
Fonte: DETRAN/RO/2013
Cabe destacar que as populações das faixas etárias acima identificadas são classificadas
como as economicamente ativas, dessa forma, a perda de vidas de pessoas desse grupo ou acidentes
que deixam sequelas duradouras impactam diretamente na economia familiar e do país.
A reabilitação de vítimas de acidentes de trânsito também afeta o orçamento público. De
acordo com Patrícia Santos Dumont,
As alarmantes estatísticas de acidentes no trânsito representam um gasto público de R$ 230
milhões ao ano. O montante corresponde às despesas do Ministério da Saúde com quase
170 mil vítimas internadas em hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), em
2013 (DUMONT, 2014, p. 1).
Já dos cofres do INSS saíram, em 2012, cerca de R$ 12 bilhões, gastos com o pagamento de
seguro para um milhão de acidentados com danos temporários ou permanentes (PREVIDÊNCIA
SOCIAL, 2013), e como o acesso a créditos para aquisição de veículos é crescente, não se
percebem perspectivas, em curto prazo, de retração do problema da violência e dos acidentes de
trânsito. Considera-se pertinente, contudo, que as responsabilidades por esses índices alarmantes
sejam assumidas por todos: pelo Estado, pela sociedade e também, individualmente por cada
condutor. Da sociedade em geral, e dos condutores, em particular, se espera o compromisso com a
vida, a responsabilidade em cada metro percorrido, e do Estado se espera o reconhecimento do
fenômeno como problema de saúde pública, que deve ser efetivamente combatido, com campanhas
educativas e com adequada formação aos condutores. É necessária maior fiscalização das escolas de
formação de condutores, na proporção do que se faz com as instituições de curso superior e pósgraduação, bem como investimentos sistemáticos em engenharia de trânsito, de modo melhorar a
circulação pela cidade, a visualização e entendimento da lógica de seus fluxos.
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2. A TERRITORIALIZAÇÃO DOS ACIDENTES DE TRÂNSITO EM PORTO VELHO/RO
No que remonta à territorialização dos acidentes de trânsito em Porto Velho, pode-se afirmar
que estes estejam distribuídos por toda a malha urbana municipal, com concentração nos bairros e
cruzamentos de maior fluxo de pessoas e veículos.
Os 15 bairros com maior número de vítimas de acidentes de trânsito foram o Nova Porto
Velho, o Centro, Agenor de Carvalho, Embratel, Tancredo Neves, Nossa Senhora das Graças e São
Cristóvão, seguidos de Flodoaldo Pontes Pinto, JK, Aponiã, Olaria, Areal, Lagoinha, Caladinho e
Nova Floresta, sendo que o bairro Nova Porto Velho concentrou 301 acidentes com vítimas no ano
de 2012.
Figura 6: Acidentes com vítimas por bairro no município de Porto Velho, 2012
Fonte: DETRAN/RO/2013
O DETRAN/RO (2013), aponta ainda as ruas e avenidas consideradas críticas, onde foram
registrados elevados números de acidentes no ano de 2012. Dentre elas destacam-se cinco
principais: Avenida Calama com 159 acidentes, 99 vítimas não fatais e 1 fatal, Avenida Jatuarana
com 134 acidentes, 95 vítimas não fatais e 3 fatais, Avenida Mamoré com 121 acidentes, 123
vítimas não fatais e 4 fatais, Avenida Campos Sales com 118 acidentes e 90 vítimas não fatais e
nenhuma fatal e Avenida Rio Madeira com 102 acidentes, 94 vítimas não fatais e 2 fatais.
Em 2013 o DETRAN/RO disponibilizou sua base geocodificada de acidentes de trânsito em
cruzamento de vias. A geocodificação de cerca de 55% dos acidentes ocorridos em 2013 foi
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elaborada com base no Sistema Geodésico Sul-Americano de 1969 (SAD-69) e o sistema de
coordenadas geográficas utilizadas foi o Sistema Universal Transversal de Mercator (UTM). A base
pode ser acessada do site do DETRAN (http://www.detran.ro.gov.br/category/estatisticas/) e
possibilita o conhecimento das principais vias de cruzamento onde ocorreram acidentes, o horário e
as condições das vias (se pavimentadas ou não) e s estavam ou não molhadas no momento do
acidente. A base, que precisa ser ampliada constitui uma ferramenta importante para os gestores do
planejamento urbano, de saúde e da própria autarquia.
Quando articulamos o fator tempo às coordenadas espaciais vemos que o número de vítimas
por acidente de trânsito em Porto Velho é mais elevado no final de semana, ou seja, nos momentos
de lazer, quando é de costume, por parte de muitos condutores, o consumo de bebidas alcoólicas,
que somadas ao problema da má sinalização das vias e da crença de que, como é “feriado ou fim de
semana existe pouco movimento, então se pode acelerar um pouco mais” ocasionam os acidentes.
Figura 7: Relação dias da semana – acidentes, 2012
Fonte: DETRAN/RO/2013
De acordo com Cichovicz, o trânsito é composto pela interação entre três grandes
subsistemas - o homem, a via e o veículo, e uma locomoção segura e organizada envolve três
elementos principais: engenharia, educação e policiamento/legislação. Contudo, o homem, com
seus múltiplos fatores sensoriais, motivacionais, emocionais e de personalidade, é o maior
responsável pelas diferentes causas dos acidentes de trânsito (CICHOVICZ, 2011).
As relações estabelecidas no trânsito devem contemplar valores ou princípios para um
convívio social pacífico, como o respeito ao próximo, a prudência, obediência às leis e a
solidariedade, pois, muitas vezes, a sociedade passa por crises, marcada pela agressividade e
individualismo (PINTO, 2013). Nessa mesma esteira, Viana (2013) defende a ideia de que a
solução para a problemática da violência no trânsito depende de uma profunda transformação nas
relações sociais, culturais e valorativas, junto com formas de auto-organização da população e sua
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intervenção na organização do espaço urbano. Contudo, tendo em vista a complexidade de tal
objetivo, antes que ele seja alcançado é preciso que se estabeleça um processo de articulação de
ações imediatas e ações a longo prazo.
Inserida no conjunto das estratégias para diminuição da violência no trânsito, tem-se a
política de conscientização executada por meio de campanhas ou projetos, principalmente nas
escolas. A educação aflora o senso crítico, as potencialidades de cada indivíduo e,
consequentemente, os predispõem a uma convivência colaborativa e integradora (PINTO, 2013).
Um dos mais importantes elementos de educação no trânsito e coibição da violência
realizada no trânsito é o Código de Trânsito Brasileiro, que por força da lei impõe sansões aos que
violam os preceitos legais, no entanto, a lei em si não é suficiente para promover uma cultura de
responsabilidade e respeito à vida, além do que, há que se medir a própria responsabilidade do
Estado na conformação do problema, pois muitos acidentes ocorrem por omissão direta do poder
público, que deixa de fazer nos investimento necessários nas vias de circulação e sinalizar a cidade,
e no limite, o próprio Estado é responsável pelo modelo de transporte hegemônico, pautado no
automóvel.
A solução que nos parece mais viável à resolução de tal problemática, seria o
engendramento de uma política de repressão aliada às ações educativas, visto que, a atual política
adotada, de forte repressão, não vem surtindo os efeitos esperados pela legislação vigente.
De outra sorte, as campanhas educativas além de demonstrar a importância da segurança pública de
trânsito têm por objetivo a transformação de todos os agentes envolvidos no trânsito, contribuindo assim para
uma sociedade mais segura para todos.
Referências
ARAUJO, Marcus Maximilliano; MALLOY-DINIZ, Leandro Fernandes; ROCHA, Fábio Lopes.
Impulsividade e acidentes de trânsito. Rev. psiquiatr. clín., São Paulo, v. 36, n. 2, 2009.
BACCHIERI, Giancarlo; BARROS, Aluísio J D. Acidentes de trânsito no Brasil de 1998 a 2010: muitas
mudanças e poucos resultados. Rev. Saúde Pública. 45(5), 2011
BRASIL. Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 24 de set. de 1997.
______ Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro. Brasília, DF,
2008.
______ Lei n. 12.769, de 20 de dezembro de 2012, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro. Brasília,
DF, 2012.
CICHOVICZ, Alexandre Adriano. A política ciminal para o trânsito no Brasil: uma leitura a partir do
garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli e do princípio da dignidade da pessoa humana. Florianópolis,
SC, 2011. 137 p. Dissertação (mestrado).
DENATRAN. Frota Nacional – setembro de 2014. Brasília: 2014.
DETRAN. Anuário de estatísticas 2013. Porto Velho: 2013.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
94
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Artigos
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História e Realidade
Alberto Lins Caldas
Resumo: Este artigo aborda a História enquanto discurso que se apaga enquanto criação discursiva, produzindo o
passado enquanto realidade e como se não fosse um constructo de linguagem. Negando assim a própria historicidade,
sua essência, torna-se o pensamento do imóvel, do imutável, da identidade, das despolitizações. É essa matriz metafísica
que é explicitada aqui. Para isso se expõe sucintamente as operações que “produzem a História” e as consequências
desse fazer.
Palavras-Chave: Teoria, Método, Escrita da História.
Abstract: This article discusses the history as a discourse that goes off while creating discursive, producing the past as
reality and as if it was a construct of language. Thus denying the historicity itself, its essence, becomes the thought of
the property, the unchanging, the identity of depoliticization. It is this matrix that metaphysics is explained here. For it
succinctly exposes operations that "produce history" and the consequences of doing.
Key-Words: Theory, Method, Writing of History.
Introdução
Na luta por uma “compreensão mais aguda da existência” os séculos iniciais da
modernidade acreditaram que haviam separado a imaginação da razão, a “mitologia” da ciência,
separar a crença e os métodos que estabelecem a certeza, a objetividade, o “realmente acontecido”
daquilo que se acredita que aconteceu. Espinosa (1983), no centro da criação da história, inocenta a
imaginação: “as imaginações da mente, consideradas em si mesmas, não contêm nenhum erro; ou
seja, a mente não erra por imaginar” (Ética II, prop.17, esc.). O engano, não estando na imaginação,
desliza para um saber que imaginamos sem atinar que não se trata de saber ou conhecimento, não se
trata da razão, mas sim de um imaginar que não sabe nem pode saber que é apenas imaginação. A
certeza da exclusão da imaginação, das crenças e das mitologias dos campos da razão e da ciência
só fez se consolidar até se tornar, na “História de Segundo Grau”, a grande “História Estatal”, e na
“opinião pública” um ponto pacífico, e a História jamais esteve fora desta questão ou desta
autoilusão. Ao contrário, estando desde Vico (1993; Berlin, 1992; Burke, 1997b) mergulhada na
certeza da razão contra a imaginação, no estabelecimento da realidade. A certeza do fundamento
histórico, leito do “realmente acontecido”, a certeza da existência do tempo, do tempo ser histórico,
certeza do passado e confiança no campo de saber historiográfico enquanto instância própria para
pensar e refazer o “tempo morto”, os “feitos e vestígios”: a certeza da “história em si” de Hegel
(1990), a estranha confiança metafísica no céu dos verdadeiros fatos, arquétipos a que toda
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interpretação deve se remeter, sempre foram, de uma maneira ou de outra, instâncias da certeza
historiográfica.
Nem o século XIX nem o Século XX, realmente os consolidadores da História e do tempo
enquanto dimensão histórica, conseguiram escapar desse paradigma, dessa episteme periculosa (no
fundo essencialmente anti-histórica) porque torna a História um saber transcendental, com uma
espécie de má-fé e má consciência de que é apenas mais uma metafísica, discurso que não sabe que
é ficcional, que jamais reconhece seu produto (o passado, o que povoa e adensa o imediato) como
uma criação, discurso que mesmo depois de muita luta ainda não se moveu de suas confianças
(Foucault, 1968; White, 1994, 1995). Essa é uma posição que torna a História mais um discurso do
Estado, da mídia, do senso comum e material básico para os imaginários de sustentação de
determinadas visões do real. Num malabarismo estranho, negando a própria historicidade, sua
essência, torna-se o pensamento do imóvel, do imutável, da identidade, das despolitizações, quando
deveria ser precisamente o contrário. É, em parte, essa matriz metafísica que pretendemos
desenvolver aqui. Para isso exporemos sucintamente as operações que “produzem a História” e as
consequências desse fazer.
Criação Historiográfica
A criação historiográfica é espécie de instalação interpretativa de “materiais linguísticos”
com “efeitos de realidade”, precisos “efeitos ideológicos” escondendo suportes jurídicos, policiais,
institucionais que, por princípio, dizem as “estruturas sociais” e seus movimentos. Documentos em
geral são sempre sistemas de linguagens: figuras, máscaras, peças, montagens, arquivos, astúcias,
poderes e forças cristalizadas; interpretações, perspectivas, lócus, disfarces, máscaras, instituição:
cicatrizes, chancelas, sinais, inscrições, regras im-postas que formam redes, impõem significados,
estabelecem acessos e proibições, naturalizam imagens: o historiador cria redes provindas de redes
já organizadas: poder sobre poderes, saberes instaurando perspectivas que devem agir como-se
fossem realidades: força contra forças, senhas e contrassenhas: documentos não são indícios de
acontecimentos, vestígios do que aconteceu, mas campo já instalado por regras disciplinares,
instalação de acontecimentos, de crenças e sistemas teóricos que devem agir enquanto sintomas
vivos do passado, esse mega artifício que é a consequência, não o fundamento, da perspectiva
historiográfica.
A escrita, a escrita da História, muda retroativamente os conjuntos, os dados, as falas, os
testemunhos, as perspectivas, os interesses; faz incidir – outras forças, outras esperanças, outras
relações, outras miragens, outras configurações – os futuros do fato e as perspectivas, os
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inescapáveis do historiador, seu tempo, seu conhecimento, suas crenças, mudam retroativamente
criando sempre outro fato, outra história, outro tempo, ficando de mesmo apenas a impressão-domesmo, redirecionando o passado, a identidade, os fluxos temporais, as políticas em ação, os
imaginários, as ideologias.
A História, pelo menos desde Hegel, é um dos principais eixos de apoio discursivo da
ocidentalidade, sua maneira privilegiada de pensar o existente. É a geradora e mantenedora
disciplinar dessa discursividade enquanto temporalidade e lógica de articulações: é o cão de guarda
do tempo, isso que é do “Estado”. A de-formação se dá exatamente naquilo que é formatador, nos
fluxos criadores e mantenedores do real enquanto domínio “teórico” dos devires. A missão (função)
da História não é desprezível nem sua marca invisível: seus poderes são muito maiores do que se
imagina. Assim como a Literatura, ela age numa dimensão gerativa, essencial, atingindo os
materiais constitutivos das atividades gerais, as lógicas das relações.
A forma, os sentidos, as inter-relações de qualquer “campo fruto de pesquisa”
historiográfico é imposição interpretativa e só se efetiva em confronto: entre conceitos, métodos,
teorias, procedimentos, tipos de “olhar e faro”: im-posição contra outros “campos” sejam teóricos,
institucionais, metodológicos, políticos ou religiosos, conjugação de forças e posições não “estado
de existência” independente do interprete-historiador. A história (construção historiográfica) não
existe sem a História (campo de saber), o “fato” não existe antes de sua construção teóricometodológica, de sua instauração por uma lógica, por uma perspectiva, por imposição disciplinar.
A pesquisa, ao procurar estabelecer o “campo”, impõe e projeta sua narratividade, sua
temporalidade, sua valoração e essa valoração é o “fato”. Os signos não se encontram nem estão
entrelaçados in natura, muito menos uma “essência” ou uma “verdade” que estão esperando para
serem descobertos. A “verdade” é sempre resultante provisória de uma “correlação de forças”
(ficção esquecida que é ficção, interpretação, perspectiva, efeitos de realidade, discurso), de guerras,
de contrastes, de uma metamorfose incessante enquanto conquista e imposição de sentido: luta
pessoal, grupal, coletiva, luta de interpretações, por um lócus de verdade, um naco de potência
interpretativa que resultará em poderes de vários tipos. Insaciabilidade de um lócus, sua lógica, suas
próprias forças e razões a uma “matéria” que, tanto para ele quanto para seu “leitor”, parecerá ou
deverá parecer e aparecer como independente dum trabalho teórico (tratamos do “real como ele é”,
como “ele foi”), duma construção, o que não prejudica sua força política, sua materialidade, mas a
pressupõe. É exatamente o “efeito de realidade” das construções teóricas que traduzem e possibilita
sua utilidade, sua disposição política e plástica capaz de atingir o imediato como lócus de atuação,
de mudança, de i-mobilização, de reação (a História enquanto campo disciplinar despolitizador). Se
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houvesse uma “natureza”, uma “sociedade”, um “homem” seria praticamente impossível qualquer
tipo de “pesquisa genealógica”.
Os discursos se formam sempre dentro e fora de determinados controles que é preciso
apreender e surpreender em seu exercício, normalmente camuflado. Controles que estão em todo
“sistema”: das instituições, dos documentos, do historiador, das teorias, dos métodos, da escrita, da
própria tribo em sua essência: fantasmas não domados dos sistemas de crenças que formatam,
formam, reproduzem e direcionam o sujeito como membro da ocidentalidade.
Não impor “características genéricas” aceitáveis somente enquanto generalizações vindas de
“fora”, formalmente articuladas a outras generalizações num círculo de autocomprovações. Uma
coisa é a “matéria do campo” construída pela pesquisa, que nunca é uma “origem”, uma “matéria
exata”, mas um não-lugar, um não-eu, mas o disparate in-significante, o absurdo, o equívoco, o
paradoxo, que, depois da pesquisa, não conquistará nem chegará a uma verdade, ao definitivo, a
uma “identidade primeira”, a um “solo fundamental”, mas a mais um estado de “caos” para outros
num círculo de poder transitório; outra é aquele “campo imaginário” (a origem, a causa, o princípio,
a paternidade, o fundamento, o que aconteceu, o acontecimento, o fato) que se confundirá com o
resultado da pesquisa historiográfica, não por um “erro teórico-metodológico”, mas por uma
consequência inescapável das estruturas conceituais, metodológicas e filosóficas da própria
História: que não se sustenta sobre nenhuma “realidade autônoma” (sobre poderes), nenhum
“absoluto”, mas sim sobre perspectivas e interpretações, “escritas”, onde as forças se ex-põem em
guerra, re-velando jogos de dominação (sempre com regras que é preciso compreender) onde o
historiador será aquele que atinge com violência a violência do disparate que é o “campo” antes da
pesquisa (rede inerte de interpretações que será posta em movimento pelo historiador, rede que
passará a existir apenas depois de ser configura enquanto rede significativa). O historiador é, antes
de tudo, aquele que subverte interpretações e posições anteriores criando sua própria posição, que
chamará de “fato”, de “verdade histórica”, de “realidade histórica”, daí porque seu produto é parte
do espólio do Estado, daqueles materiais e lógicas de suporte de um mundo estranhamente imóvel,
racional, sem sombras, naturalizado e universalizado para o bem daquilo que rapta o sentido da sua
forma de existência.
Não há um “encadeamento de fatos” e a eclosão de um “fato” por “acúmulo evolutivo”,
“amadurecimento histórico-social”, “ação dos sujeitos”, “clivagem econômica”, mas devires, fluxos
de forças em constante formatação por presença sempre triangulada, presença social: cabe ao
historiador pôr em andamento o que estava imóvel, morto, cristalizado enquanto “sistema
documental”, signos entre signos, signos já organizados, já dis-postos a fazerem parte de uma grade
disciplinar, não enquanto “realidade” (antes ou depois): nada aconteceu-antes, tudo acontece-agora
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no texto historiográfico e naquilo que ele atingir no-mundo. Os “sistemas documentais” não
representam nada, não reproduzem nada antes da cozinha e da oficina do historiador onde são
criadas certas perspectivas do próprio “presente”, o “tempo” sendo sempre singular, único, estranho
e exclusivo, jamais servindo como “elemento numa série”: o historiador atinge “o devir” com as
forças e poderes do seu lócus. Tempo é um nome para as redes vivenciais, corporais, trianguladas
entre corpos “sociais” e não uma matéria que corre, algo fora dos movimentos grupais e singulares,
exterioridade as atividades constitutivas.
Ao “construir o campo” é preciso saber esquadrinhar “marcas diferenciais”; repertoriar
desvios, lacunas, irregularidades, perturbações, ritmos e acidentes; distinguindo e marcando
heterogeneidades, regularidades, dimensões, classificações, interferências: mas antes de tudo é
preciso saber que esquadrinhar, repertoriar, apontar, marcar, distinguir diz respeito a ações criativas,
interpretativas, valorações que ampliam, reduzem, suprimem, falsificam, revertem, corrigem,
inventam, dramatizam, montam, aparecendo como geradoras de realidades discursivas, não ações
que encontraram algo que organizaram uma existência prévia, um sistema pré-existente: sem a
cimentação do “campo” numa realidade plena, acontecida, não podemos falar de “realidade”, o que
existiria autonomamente, independente das ações interpretativas, da presença do historiador munido
do seu campo disciplinar, das regras que produzem realidade. A sensação e certeza do “já
acontecido” são não apenas um truísmo da teoria, mas uma ingenuidade geral, uma hipóstase
daquilo que nós mesmos produzimos. Esse truísmo, essa ingenuidade, essa hipóstase é precisamente
aquilo que é transmitido, ensinado e pensado com o nome de “realidade histórica”, “passado”,
enfraquecendo essencialmente o trabalho historiador: acreditar no passado prejudica e abastarda a
História.
Conhecer condições e circunstâncias, forças de onde e quando as atividades surgem, se
organizam, se tornam força, singularidade, como se relacionam, se deslocam, como produziram
outras atividades, como se tornaram fatos (o q se acredita “acontecido”), como se tornaram
significantes. Tudo isso sem perder o sentido de teoria, de se haver com materiais conceituais,
narrativos, não a “própria realidade”, o legitimamente acontecido, num deslocamento do
“subjetivo” ao “objetivo mesmo”. O historiador precisa retomar, talvez porque nunca tenha tomado,
consciência da sua atividade criadora, não reprodutora e repetidora. E mesmo sabendo dessa ideia
resta sempre uma margem de reinvidicação de relator do acontecido, servindo perfeitamente para
um ensino da História e da história que é cruelmente naturalista e universalizador sem saber,
operações estas que tornam imóvel “os campos da História”.
A singularidade das emergências, pontos de surgimento que se produzem em determinados
estados de forças como um afrontamento entre forças: o lócus privilegiado do historiador: o “campo
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imaginário” - é o que nos interessa. Esse “campo” não pode ser explicado por “antecedentes” ou
pretensos fins, o que seria criar materialidades anteriores e posteriores como “causas” e “efeitos”, o
que faz se deixar de ver o historiador como aquele que formata e instaura o “campo” como estado
das forças, sendo, ele mesmo, uma das forças principais, aquela que impõe sua perspectiva num
campo de saber que é pura imposição de “substância” e “perspectiva”. E temos assim o historiador
como uma força que cria funções enquanto dispositivos ideológicos, dispositivos lógicos que
retornam ao campo geral das forças enquanto uma força agora repolitizada com símbolo negativo:
os fluxos, o caos, os indeterminados agora são feixes precisos e forças despolitizadas
Os acidentes, os desvios, as heterogeneidades, as multiplicidades, os diversos poderes em
atuação, as forças em questão, quem se apoderou e quem se apodera do “sistema de regras”, os
“tipos” em luta, as divergências, os conflitos, as mediações, os momentos instáveis e estáveis, a
entrada em cena de cada um dos conflitos: compreender que o “campo” é criado não resolvendo
nem eliminando os conflitos, mas entendendo que o “campo” é esse disperso de forças que se
impõe ou se dis-põe através do historiador enquanto agente disciplinador, enquanto produto
disciplinar. Em cada novo “estado de forças” o “autor”, os “autores” são acrescentados à ação, se
tornam a ação, como-se autoria fosse uma força autônoma.
O “quem pronunciou?”, o “quem é o responsável” (pela construção, manutenção, difusão,
naturalização dos discursos do “campo”)? deve ser entendido como a compreensão de forças em
atuação, não como sujeitos, eus, personagens, figuras. O que define os elementos do “campo”
estabelece “a verdade e a realidade do campo”, o que aquilo “é”, para que aquilo serve, que forças
utilizam tal “campo”: nada é inocente. O historiador não deve se eximir de diagnosticar se as forças
postas por ele em ação, e ele mesmo, contribuem para a expansão ou para a degenerescência das
perspectivas em ação, se sua própria atividade e construção é periculosa ou não, qual a direção dos
valores: que visão de mundo é esta? A quem serve essa mega despolitização de valores?
Interpretar, no fundo e fora da perspectiva metafísica da origem (tudo está dentro das
loucuras da tribo, faz parte dos seus rituais, suas crenças: vivo enquanto imaginário temporal), é o
papel do historiador: conquistar e se apossar dos “sistemas de regras” (em essência in-significantes)
im-pondo um sentido, um outro sentido, outro jogo com novas regras, criar o “campo” com seus
tradicionais “efeitos de realidade”, principalmente porque a História não consegue “fazer outro
jogo”: ela é um dos suportes fundamentais da ocidentalidade (nossa tribo, nossa “máquina tribal”)
sem a atividade plena dos eixos da cristandade: sua re-significação é sempre uma “invenção” (o que
não tem origem, mas redes de força e poder em configurações) que teima em aparecer como
“descoberta”: o que existiria antes da pesquisa, da interpretação: nossa busca é por uma reflexão
“contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico”.
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História e Realidade
A história, criação da História, série escrita, imaginário, mentalidade, construção de valores,
imposição de perspectivas, é relação de forças, relação de poder: não é nem poderia jamais ser
contínua, fixa, linear ou algo em “constante transformação”, como se “existisse de fato”, fosse algo
“externo”, uma espécie de em-si kantiano que fluísse ou o em-si da história de Hegel, que se
modificasse pela “ação dos homens”. Por isso a história não poder ser nem descontínua nem
descontínua como se tivéssemos tratando de um “processo separado”, de um “objeto”. Seu nãolinear, suas rupturas, que são a “luta entre forças” de interpretação [uma luta por posição, luta
ideológica, política, jamais uma luta-aí-no-mundo: antagonismos discursivos que se tornam
antagonismos do em-si, do mundo, da sociedade] que estão sempre se impondo e reimpondo
enquanto realidade e interpretações verdadeiras e reais (o poder do que nos parece real, verdadeiro,
racional). O “contexto histórico” (também texto, criação historiográfica) não é mais do que a
resultante que domina o imaginário enquanto realidade (sempre um aqui-agora complexo). A
história não possui uma natureza, uma essência, uma origem, uma unidade, um objeto, nem é uma
realidade (mas uma grade imaginária, conceitos e imagens, perspectivas dispostas para suas funções
políticas), não aquela imaginariamente independente das nossas ações, mas independente da
escritura da História. Ao contrário, a história é heterogeneidade, multiplicidade, perspectivas em
luta, imaginário de forças ensandecidas pensando que “aconteceu” (daí poderem impor sua
perspectiva sempre parcial enquanto “a realidade”) e em in-constante transmutação, escritas que
deliram que são o próprio real, discursos pilares da temporalidade: a história é, antes de tudo,
“conceito” envergonhado.
Mas se a História não fosse esse imaginário reificado, hipostasiado, essa criação conceitual
que se torna “força social e política”, não teria sido produzida. É essa a “grande razão” dessa
História: ser um dos “suportes ideológicos” das forças disciplinares, das formações e formatações
de tudo aquilo que podemos chamar de “trabalhadores”, “população”, “humanidade”, as massas
vivas de uma biopolítica. Essa História é a corporificação de um tipo de lógica que foi se tornando
visível no século XVII e nos séculos seguintes conquistou não apenas requinte, mas poder político
sem precedentes laicos, se apresentado como a História.
A história enquanto invenção, escrita, imaginário (jamais “sistema de signos” diante do real
como exige o senso comum), é construção de relações e condições de todo tipo, redes vivas de
poder e contra poder. Sua emergência e sua proveniência não é um caso de realidade a não ser em
segunda instância, quando entra nas “correntes sanguíneas” dos indivíduos, dos grupos, das
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instituições, das práticas sociais, das transmissões de saber enquanto relações de poder: o fundo da
História é uma moral e todo historiador um moralista.
A compreensão da “Ciência da História” e da sua criação, a história e o tempo histórico, por
grande parte dos professores de História e da mídia, se dão como se a história tratasse de uma
realidade realmente acontecida, tendo como fundamento crenças que não fazem parte da História,
mas que foram sendo incorporadas ao fazer, ensinar e pensar historiador.
Representação com específicos “efeitos de realidade”, oculta, precisamente por isso, que há
um conhecer as coisas por palavras, imagens, conceitos, descrevendo, narrando, verbalizando,
substantivando e predicando sempre nos círculos dos campos de saber, nas ordens dos métodos, dos
estilos, das crenças. A ingênua pretensão de dizer o “existente como ele é”, expor o passado
“realmente como foi”, a patética e messiânica pretensão da linguagem replicar o existente da
mesma maneira como se põe a “palavra de deus”, que diz o que-é, o que-foi, o que-será, termina
minando as racionalidades de suporte do próprio campo de saber, e essa tola mediania é mortal para
a História porque despolitiza, despotencializando a compreensão, tornando ela, precisa e
ironicamente, anti-histórica.
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Culturas em movimento Antropologia e Literatura entre o Saara e Paris
Ricardo Moreno de Melo
Resumo: Este texto visa desenvolver uma análise do romance A gota de ouro, do escritor Michel Tournier, com base
nas proposições teóricas de uma Antropologia desenvolvida a partir década de 1960, através de teóricos como James
Clifford, George Marcus, Arjun Apaddurai e Edward Said. Os dois primeiros têm chamado a atenção para as relações
entre a Etnografia e a Literatura e a dimensão de escritura que tem a primeira com todas as implicações que um
construto literário pode ter. As análises de Said contribuíram com a sua tese de que o oriente é uma construção teóricocolonial do ocidente. De Appadurai explorei seus insigths referentes ao papel mobilizador que tem a imaginação como
força social na contemporaneidade. O eixo central da narrativa está na história do jovem Idriss, que sai de sua terra
natal, um Oásis no deserto do Saara, para viver em Paris. Acompanhando essa jornada identifica-se várias questões
relativas à antropologia contemporânea.
Palavras chave: Culturas; Antropologia; Literatura
Abstract:This paper aims to develop an analysis of the novel the drop of gold, from writer Michel Tournier, based on
theoretical propositions of an anthropology developed from the 1960s through theorists such as James Clifford, George
Marcus, Arjun Apaddurai and Edward Said. The first two have drawn attention to the relationship between the
Ethnography and Literature, and the dimensions of scripture that has the first with all the implications that a literary
construct can have. The analyzes of Said contributed to his thesis that the east is a theoretical and colonial construction
of the West. From Appadurai explored their insights regarding the mobilizing role that has the imagination as a social
force in the contemporary world. The core of the narrative is the story of young Idriss, who leaves his homeland, an
Oasis in the Sahara Desert, to live in Paris. Accompanying this journey is possible to identify several issues relating to
contemporary anthropology.
Keywords: Culture; Anthropology; Literature.
INTRODUÇÃO
Ao iniciar as reflexões acerca do tema desse texto não pude evitar ser tomado pela
lembrança de uma afirmação de uma personagem do romance História do cerco de Lisboa, de José
Saramago. No início do romance há um diálogo entre um historiador e um revisor de texto. A
conversa em princípio deveria se ater ao livro que o historiador acabara de escrever sobre a
expulsão dos árabes da Península Ibérica e sobre o mesmo discutia-se as melhores alternativas de
construção das frases, pontuação e coisas do gênero. O revisor tendo-se mostrado homem culto e
arguto foi indagado pelo historiador sobre o que ele achava do livro. Respondeu laconicamente que
gostou. Mas achando pouco entusiasmada a resposta do revisor, o historiador voltou à carga
solicitando que se aprofundasse mais e lhe estimulou a ser mais analítico. O revisor insistiu que sua
função lhe exigia sobriedade, e mesmo tendo já visto muita coisa em termos de literatura e vida,
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preferia ser comedido em seus juízos analíticos. O historiador lhe respondeu que seu livro tratava de
História, e não de literatura. Disse isso como a invocar uma aura científica ao seu trabalho. Vale
aqui a citação direta do que responde o revisor, sempre em um misto de ironia e sobriedade:
Assim realmente o designariam segundo a classificação geral dos gêneros, porém, não
sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor
doutor, tudo quanto não for vida, é literatura (Saramago, 1989:12).
O diálogo continua com o historiador acusando o golpe do revisor, e uma vez mais tenta
insistir na tese positivista de que o que faz na verdade é ciência, lidando, portanto com fatos
positivos efetivamente ocorridos. O embate agonístico não cessa por aí, e tomaria todo o espaço
desse texto caso tentasse extrair as implicações e sutilezas profundas produzidas pelo gênio literário
do escritor português. Cabe aqui, a título de introdução para este trabalho, uma reflexão sobre as
implicações da frase proferida pelo revisor, para as assim chamadas ciências humanas, dando conta
de que tudo que não é vida é literatura,
Disciplinas tais como a História e a Antropologia têm desde a segunda metade do século XX
estado atentas as aproximações entre elas e o fazer literário. Essas aproximações são ricas em
possibilidades e insights criativos. A História como disciplina tem seus começos ligados à escrita
propriamente dita. Muito simplificadamente pode-se afirmar que seu surgimento está ligado a um
ímpeto racional em torno do século VI a.C. momento no qual um conjunto de saberes ligados a
oralidade começa a ceder espaço para um saber organizado a partir da escrita, e mais
especificamente da escrita alfabética (Havelock, 1996). Curiosamente um dos primeiros
protagonistas dessa saga, ainda anterior aos pais fundadores da disciplina, Heródoto e Tucídides, é o
logógrafo Hecateus de Mileto, nascido em 550 a.C., que tanto pode ter seu nome ligado às
fundações da disciplina histórica quanto da disciplina antropológica.
A palavra História provém de Historie, de origem jônica que quer dizer investigação
(Boorstin, 2003). Nesse sentido ela é solidária ao referido impulso racionalizador que desabrocha
nos albores da Grécia clássica e que vai de certa forma rivalizar com o saber vinculado aos mitos. O
impulso de investigação encontra-se também na formulação do saber filosófico que tem em outro
ilustre cidadão de Mileto, Tales, um dos seus primeiros formuladores. Na concepção da escola
filosófica de Mileto a palavra investigação significava a busca das causas naturais para fenômenos
também naturais. Segundo o historiador estadunidense Daniel Boorstin parece ter sido Hecateus um
dos primeiros a aplicar o método investigativo dos filósofos físicos ao mundo social. Em suas
viagens procurava registrar as tradições “culturais” locais e as genealogias das famílias dos mitos.
Guardando as devidas proporções talvez seja lícito afirmar que Hecateus dá início mais de dois mil
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anos antes, ao menos no que ficou registrado, o que irá se estruturar como método, a Etnografia, no
início do século XX.
Não encontrei registro de Hecateus de Mileto nos livros de História da Antropologia que
pesquisei: History and Theory in Anthropology, de Alan Barnard (2004); e História da
Antropologia de Eriksen e Nielsen (2012). Neste último há a indicação de Heródoto como um autor
que primou por descrições minuciosas que fez de povos que visitou. Os autores chamam a atenção
para a ambivalência com a qual Heródoto se referia aos povos com os quais travava contato. Em
suas narrativas ele ora agia como um relativista fazendo observações sobre as particularidades do
grupo observado, ora agia como um “homem civilizado” fazendo ponderações etnocêntricas e
preconceituosas.
De todo modo, o que interessa reter desses inícios disciplinares é que a escrita estará em
ambos os casos presidindo um novo tipo de organização e produção do saber indissociavelmente a
ela ligado. Disciplinas cuja constituição dos seus protocolos, ou dos diversos protocolos, irão
estabelecer formas de aproximação da verdade, quer seja diacronicamente, a História, ou
sincronicamente, a Antropologia. O produto final tanto do historiador quanto do antropólogo /
etnógrafo é um texto que traduz e apresenta uma verdade. Para o antropólogo a verdade etnográfica,
e para o historiador a verdade histórica.
Os rigores protocolares das disciplinas formalizados ao longo de suas constituições com o
objetivo de produzir ou de alcançar uma “verdade” irá fazer com que o texto resultante das
pesquisas sofra controles tais que o afastará de uma escrita ficcional ou artística. É somente na
década de 1960 que antropólogos como Clifford Geertz e James Clifford, entre outros, vão trazer
para o debate da teoria antropológica uma discussão sobre a produção da escrita por parte dos
antropólogos. Geertz (2013) em seu projeto semiótico de interpretar a cultura o faz não como faria
uma ciência experimental, em busca de leis gerais, mas de uma forma interpretativa em busca de
significações. O projeto semiótico de Geertz abre as portas para que se pense o resultado do
trabalho antropológico, a etnografia, como possibilidade de interpretação ou tradução cultural.
Nesse sentido, José Jorge de Carvalho analisa que a Antropologia poderia ser considerada como
uma “vertente etnográfica da Literatura Comparada” (Carvalho, 2003:03). E salienta ainda que o
campo da Literatura é o campo da representação e não é outra coisa o trabalho do etnógrafo quando
representa em seu texto a figura do outro e de sua “cultura”.
Toda essa questão muito rapidamente tratada acima sobre as relações entre Antropologia e
Etnografia de um lado e literatura do outro, foi vista por James Clifford (2008) como precipitadora
do que veio a ser chamado de questionamento da autoridade etnográfica. Clifford analisa
apontamentos que desde a década de 1950 vêm assinalando a insustentabilidade de discursos que
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retratam a condição do outro sem colocar em perspectiva a própria condição ou posição social
daquele que traduz, o etnógrafo. A partir dessas críticas surge a necessidade de superação dos
paradigmas baseados na experiência e interpretação por outros cuja ênfase recaia no diálogo e nos
aspectos polifônicos da construção textual. Nessa perspectiva, Clifford põe em evidência as análises
literárias do crítico russo Mikhail Bakhtin, para mostrar como as formas literárias podem ser
utilizadas como princípio metodológico na construção de monografias etnográficas. O modelo
polifônico tal qual apresentado por Bakhtin, através do qual múltiplos discursos são apresentados no
texto possibilitando o rompimento com o excessivo controle, faculta o surgimento de uma
pluralidade de visões compondo aquilo que chama de “heteroglossia”.
A utilização do modelo do romance polifônico tem muitas possibilidades de desdobramento
na própria concepção da cultura, pois assim como o primeiro é visto como uma “arena
carnavalesca” sujeita às diversas intervenções e visões de mundo; a segunda é tratada como um
espaço aberto sujeito a diversos e novos arranjos, e nunca dado em absoluto. Por fim, Clifford,
ainda se utilizando de elementos advindos da teoria literária como um conjunto de reflexões capaz
de inflectir a teoria antropológica, cita Roland Barthes, para quem a unidade do texto não está
exclusivamente dada na sua própria interioridade, mas também na reconstrução textual operada pelo
leitor no seu ato criativo de ler. Essa perspectiva que valoriza a ação receptiva como um ato criador
traz interessantes perspectivas para a análise antropológica, uma vez que possibilita leituras
enviesadas e polifônicas que criativamente permite ver e ouvir personagens e vozes que de outra
maneira poderiam estar ocultas na perspectiva de quem escreveu.
O exercício analítico que se seguirá nas próximas páginas se dará na perspectiva das
relações entre Antropologia e Literatura. Analisarei, com base principalmente nas reflexões de
Arjun Appadurai, Edward Said, James Clifford e George Marcus, um texto do escritor francês
Michel Tournier intitulado A gota de ouro, cujo eixo central da narrativa está na história do jovem
Idriss, que sai de sua terra natal, um Oásis no deserto do Saara, para ser emigrante em Paris.
Questões como a imaginação como força social (Appadurai); a construção do “oriental” pelo
ocidente (Said); as culturas viajantes (Clifford) e a possibilidade de uma “Etnografia multicentrada”
e processos de identificação em contextos modernos (George Marcus), serão fundamentais para
esse trabalho. Será, portanto, uma leitura antropológica de um texto literário.
Na seção seguinte, intitulada Uma gota de ouro ou signos em rotação, tratarei da história em
questão, para na seção seguinte fazer os nexos possíveis com a teoria antropológica.
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Uma gota de ouro ou signos em rotação
O romance do escritor francês Michel Tournier intitulado A gota de ouro, objeto de análise
desse texto, narra as vicissitudes que envolvem a partida do jovem berbere Idriss, de sua
comunidade situada em um oásis cujo nome é Tabelbala, ao sul do deserto do Saara. Em certa
medida, a partida desse jovem de aproximadamente 15 anos, se iguala a tantas outras partidas, como
a de seu próprio primo Achour, compondo um fluxo migratório rumo à França em busca de
emprego e melhores condições de vida. Mas há um elemento a ser destacado na migração do jovem
Idriss: quando estava a pastorear seu pequeno rebanho de carneiros, Idriss foi surpreendido por um
automóvel Land Rover do qual saiu um casal. A mulher loura, ao descer do carro com uma máquina
fotográfica, lhe dirigiu a palavra avisando que iria tirar-lhe uma foto. Em seguida, a ele é prometido
pela mulher do casal que ao chegar à França iria enviar-lhe a foto.
Eis aí no primeiro ato a evidência de um confronto que vai tomando corpo por toda a
história: O papel da imagem na tradição árabe e no ocidente. Esse confronto terá termo no capítulo
final com a confrontação entre imagem e escrita. Mas esse primeiro ato é também um dos
elementos que vão produzir um efeito de evasão no espírito de Idriss. Poder-se-ia elencar vários
elementos que vão paulatinamente produzindo esse efeito: a) a morte de seu amigo Ibrahim, um
nômade do deserto, cuja vida em movimento e fora do Oásis lhe inspirava bastante; b) a saída do
seu primo Achour alguns anos antes do momento que o romance focaliza (Achour é dez anos mais
velho que Idriss); e c) por último, a foto tirada no deserto pelo casal francês cuja cópia ele nunca
recebeu. Com relação ao primeiro item citado, o jovem Ibrahim representa uma oposição muito
clara entre a vida nômade e mais individual de um lado, e a vida mais coletiva e sedentária do
Oásis.
A imagem não goza de muito prestígio naquele povoado de Tabelbala. A mãe de Idriss dizlhe que foi um pouco dele que os franceses levaram na foto. Ela pergunta como ele há de fazer se
acaso ficar doente, revelando uma crença de que com a imagem uma parte da energia vital do
garoto também se foi. Havia apenas uma fotografia no povoado, e esta pertencia ao seu tio materno,
o cabo Mogadem. Através dele fica-se sabendo que no passado havia outra, mas que tudo levava a
crer que foi queimada pela sogra do dono da mesma por conta do receio dos mais velhos com
relações a imagens fotográficas. Mogaden serviu na segunda guerra ao lado dos aliados, e desse
tempo trouxe a fotografia que ele guardava como um troféu. Tinha ele também uma reflexão sobre
a potência das imagens fixadas em um papel. Afirmou, quando perguntado por Idriss se uma foto
pode fazer mal a quem foi fotografado, que pode fazer mal caso o fotografado não a tenha consigo.
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No caso dele, Mogaden, acredita até que teve sorte, pois por tê-la guardado consigo não sofreu
nenhum revés durante as batalhas, coisa que não aconteceu com as duas outras pessoas que
aparecem com ele na fotografia. Ambos, talvez por não terem a foto em seu poder, vieram a morrer
em combate.
Em suas reflexões Idriss classificava os homens de Talbebala em duas categorias: os que
ficam e casam, e os que partem. Ele se considerava no segundo grupo, e teve ainda mais certeza
disso assistindo a um casamento de dois jovens da comunidade. Na noite da festa acompanhou a
dança de celebração, principalmente da negra Zett Zobeida. O canto desta mulher vai também servir
de presságio para Idriss e reaparecerá através de sua memória durante todo o livro. A letra da
canção dizia:
A libélula vibra sobre a água
O grilo trila sobre a pedra
A libélula vibra e não canta
O grilo trila e não fala
Mas a asa da libélula é um libelo
Mas a asa do grilo é um escrito
E esse libelo foge às partidas da morte
E esse escrito desvenda o segredo da vida
Zett Zobeida estava também ornada com muitas joias para a festa e sem perceber deixa cair
uma delas, que nesta mesma noite vai ser encontrada por Idriss. Era a gota de ouro. Idriss a tinha
visto em seu colo enquanto a dançarina cantora rodopiava ao som da música. A imagem e sua
portadora são postas em contraposição com a mulher loura da fotografia. A mulher negra em
oposição à mulher platinada; a imagem que esta última propõe é de conteúdo representativo
explícito, enquanto a primeira traz um signo puro. “A gota de ouro não significa nada senão ela
própria”, diz o narrador do texto. São personagens e imagens, portanto, antitéticas. Zobeida e sua
indumentária eram a evocação de “um mundo sem imagem”.
Quando estava às portas do deserto na segunda etapa de sua saída de Tabelbala, Idriss vê um
hotel e um museu. Do primeiro é expulso das proximidades e no segundo consegue entrar seguindo
um grupo de turistas interessados na vida do deserto. Era o museu do Saara, no qual se podia ver
animais da região embalsamados, objetos e habitações. Idirss ouvia o guia com muito interesse,
apesar de não compreender algumas coisas ditas. Sua fala era entrecortada com referências a
personagens da cultura de massa, como Tartarin de Tarascon, responsabilizado por ter exterminado
os leões do deserto argelino. Em outros momentos Idris via desfilar pela sua frente objetos que eram
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do seu cotidiano. Vale também aqui uma citação direta do texto de Tournier na qual ele descreve a
surpresa do jovem habitante do Oásis:
Idriss estava com os olhos abertos de espanto. Todos aqueles objetos, de uma limpeza
irreal, fixos na sua essência eterna, intangíveis e mumificados, tinham acompanhado a sua
infância e a sua adolescência. Havia menos de quarenta e oito horas, comia em um prato
assim, via a mãe usar o moinho como aquele (Tournier,1987: 68).
Na sequência dos acontecimentos uma senhora do grupo de turistas pergunta se não há
colheres entre os objetos de cozinha. A resposta do guia informa que o habitante do Oásis tal como
Adão, come com os dedos, em uma referência possivelmente etnocêntrica a uma prática “não
civilizada” ou de um estágio civilizatório precário. Mas a vertigem do jovem Idriss não cessava,
antes pelo contrário, tornou-se ainda mais intensa quando o guia fez referências acerca dos hábitos
alimentares e das gesticulações que as acompanhavam. Ele as conhecia, mas nunca as tinha visto
formuladas daquela maneira. Talvez aqui um exemplo, já me antecipando à parte analítica deste
texto, daquilo que Roy Wagner chamou de “invenção da cultura” (Wagner, 2012). Esse Saara
turístico que dá vertigem em Idriss vai se reproduzir mais a frente, quando já em solo francês, em
Marselha, ele vai ver um outdoor com o convite: “com seu carro, vá passar as festas de fim do ano
no paraíso de um Oásis no Saara”. Na verdade a foto que anunciava o comercial era de um hotel,
com suas piscinas, moças louras com biquines sumários, compondo aquilo que Marc Augé chamou
de “não lugares” (Augé, 1994).
Em sua rota de saída, Idriss percorre mais duzentos e quarenta quilômetros de Béni Abbès a
Béchar, cidade na qual tomará um trem para Oran, última cidade da Argélia, pois daí seguirá de
barco para Marselha. Em Béchar, enquanto espera por dois dias o ônibus para Oran, ele peregrina e
acaba por dar com um fotógrafo que faz fotomontagens com turistas. Mustafá, este é o nome do
fotógrafo, chama seu atelier de Palácio dos sonhos, pois em suas montagens põe o fotografado em
um dos ambientes “exóticos” do deserto: dunas douradas, Oásis verdejantes, tamareiras frondosas.
Uma música de caráter oriental toca enquanto o cliente é fotografado, como que sendo um item que
atesta, junto com as imagens no fundo, a realidade oriental do lugar. Enquanto isso, Mustafá sempre
de forma eloquente diz em brados vigorosos para um homem a ser fotografado: “tu és o xeique, o
sultão, o marajá. És orgulhoso. És o grande macho dominador. Tu dominas. Reinas sobre um
rebanho de mulheres nuas espalhadas a teus pés (Tournier, 1987:73)”.
Já na França Idriss entrará em um caleidoscópio de imagens. Toma parte como figurante em
um filme; é chamado para um comercial de uma bebida que evoca o Saara; é associado pelo diretor
desse comercial com o pequeno príncipe, personagem literário criado pelo escritor Antoine SaintExupéry; serve de modelo para a confecção de manequim com vistas ao mercado de roupas para
jovens árabes; e vê em sua imaginação sua própria história transformada em história em quadrinhos.
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Por fim a sedução da televisão. Enquanto os mais velhos têm no rádio, falado em árabe, sua forma
principal de comunicação de massa, os jovens se identificam com a televisão falada em francês.
Mas há também o cinema, e é através dele que Idriss vai ouvir do marquês Sigibert de Beaufond o
que é o Saara. Este novo personagem encontra Idriss na porta de um restaurante árabe e lhe
pergunta qual daqueles pratos que o jovem do Oásis mais aprecia. Cuscus com frango ou carneiro?
Briks com mel ou chorba com ervas? Idriss não conhece nenhum desses pratos. O marquês sem
entender indaga se Idriss é mesmo um árabe, e este lhe responde que é berbere, não se
reconhecendo na identidade de árabe que lhe é fixada. Sigibert então pergunta qual o prato nacional
de onde ele vem e mais uma vez Idriss não entende o que é um prato nacional.
A partir desse primeiro diálogo truncado pela falta de registro por parte do jovem berbere
das categorias utilizadas pelo marquês, os dois vão almoçar. Durante a ocasião o francês vai
explicar a Idriss o que é o Saara e toma em boa parte de sua explicação as referências
cinematográficas que possui. O desconforto de Idriss só aumenta e vale aqui mais uma vez uma
citação direta do que ele diz:
Os franceses têm sempre que explicar tudo. Mas eu não compreendo nada das suas
explicações (...). Vejo fotografias em toda a parte. Fotografias de África também, do Saara,
do deserto, do oásis. Não reconheço coisa nenhuma. Dizem-me: ‘é o teu país isto. Este és
tu’. Isto? Eu? Não reconheço nada. (Tournier,1987:120).
Diante da confissão de Idriss o francês resolve doutrinar-lhe lhe ensinando coisas como o
que é um país, um estado nacional, etc. Idriss ouve então a pregação do francês que versava sobre
filmes cujo conteúdo tratava da ocupação francesa em Argélia.
Nos últimos capítulos, e esta será uma passagem importante para minha análise, Achour,
primo de Idriss, o explica sobre o que é a França moderna. Ele diz que os franceses gostam deles,
mas do seu jeito: “com a condição de nos deixarmos calcar. Temos de ser humildes, miseráveis. Um
árabe rico e poderoso, os franceses não suportam isso”. Achour explica que há um lugar reservado
para eles na França, onde eles são pejorativamente chamados de bougnoules. Vai ainda mais além
dizendo que os franceses deveriam reconhecer que a França moderna foram eles que a fizeram.
Indaga sobre a condição dos imigrantes afirmando que ninguém quer saber deles, mas também que
nenhum quer voltar. É como se no fundo eles nem quisessem ficar na França e nem retornar para
seus lugares de origem. Analisa que a vinda de Idriss tem uma conotação, e ele fala
metaforicamente, de queda em uma ratoeira. Há aí uma ideia de labirinto cuja porta de entrada foi a
mulher loura e sua máquina fotográfica. Sair desse labirinto ou saber se mover nele requereria
astúcia, e é isso que Idriss consegue a partir do contato com os velhos de sua tradição.
Idriss enfastiado das provações do seu labirinto resolve permanecer mais tempo no albergue
em que se instalou desde que chegou a Paris. Dessa forma conhece o alfaiate Amouzine cujas
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reflexões o levavam a pensar que contra o excesso de signos imagéticos que alicia os olhos havia a
possibilidade de um antídoto sonoro: a língua e a música árabes veiculados pelo rádio. Com ele
pode aprender sobre aquela que era considerada a “estrela do oriente”, a cantora Oum Kalsoum.
Idriss acabou por encontrar em Amouzine um guia para essa nova incursão. O alfaiate lhe apresenta
o mestre em caligrafia árabe Abd Al Ghafari. Com ele, Idriss teve lições tornando-se um aluno
muito aplicado, ocorrência que lhe possibilitou um rápido desenvolvimento. O jovem berbere
aprendeu com seu mestre que a imagem pode ser um ópio se não se tem o preparo para lidar com
ela, e que se a imagem é matéria, a letra é o espírito. A caligrafia é a álgebra da alma. Por conta de
sua rápida evolução, Idriss foi convidado pelo mestre a ouvir a lenda da rainha loura.
Essa história provém da tradição oral árabe, e dá conta de uma jovem muito bonita cujos
cabelos eram louros, fato que não era comum entre os árabes. Segundo a tradição desses povos, as
crianças nascidas com essa tonalidade de cabelo eram fruto da concepção à luz do dia. Essa jovem,
porém, era de uma beleza que a todos fascinava, e dessa forma acabou por se tornar rainha. O rei,
no entanto, que lhe transformou em rainha teve vida curta, pois seu irmão tomado de ciúme o matou
em nome do amor que sentia por ela, e logo depois se suicidou. A partir daí ela não mais se casou e
passou a reinar sozinha, porém com o rosto e os cabelos cobertos1. Um jovem pintor, porém, se
infiltrou no palácio e fingindo ser uma de suas criadas conseguiu retratar a rainha em um belo
quadro, mas tal feito lhe custou a própria vida, pois tendo também se apaixonado pela rainha,
acabou por se suicidar por conta de saber que nunca poderia tê-la como amante. Segue-se daí, e
mesmo depois da morte da rainha, uma sucessão de ocorrências maléficas com diversas mortes
ocorridas àqueles que se envolviam diretamente com o quadro.
Após suicídios, assassinatos, doenças e outros tantos malefícios, o quadro caiu em mãos de
um pescador de nome Antar. Este, como todos os anteriores que possuíram o quadro, caiu em
profunda tristeza apaixonada assim que o encontrou no estômago de um tubarão. Antar parou de
pescar deixando sua família à beira da miséria e da fome. O filho mais velho do pescador, cujo
nome era Riad e tinha doze anos de idade, porém, era dotado de muita perspicácia e sendo
percebido como tal por um importante mestre calígrafo, cujo nome era Ibn Al Houdaida, passou a
ser dele um aprendiz. Foi a partir da relação entre Riad com o calígrafo que o encanto do quadro
pôde ser quebrado. O mestre da caligrafia ensinou Riad a ler o quadro. Ensinou-o que aquelas
linhas, volumes e texturas contidas na imagem eram traços profundamente enraizados na alma de
todas as pessoas, e é este enraizamento que por sua vez exerce um profundo fascínio nas pessoas
mais simples. A partir de um conhecimento com base nos signos caligráficos, o mestre da escrita
facultou ao filho do pescador a decifrar os enigmas contidos nas imagens, e sobretudo nas imagens
dos rostos humanos.
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Munido desses saberes, o jovem Riad penetrou na cabana na qual o pai guardava
zelosamente o quadro da rainha loura e começou a decifrá-lo. O pai chegou nesse momento e
tomado de uma ira sobre-humana tentou golpear o filho. O jovem, porém, conseguiu explicar ao pai
a necessidade de decifrar aquelas linhas que tanto fascínio exercia sobre sua alma. O pai aos poucos
se acalmando pôde compreender que os traços que compunham aquele rosto que ele aprendera a
amar, ainda que de uma forma doentia, eram um poema que revelava todos os sofrimentos pelos
quais ela passou, tendo-se tornado vítima de sua própria beleza. Dessa forma o pai só pôde
efetivamente se ver liberto quando, na bela expressão do antropólogo Marcio Goldman em análise
ao texto de Tournier, transformou o retrato em interlocutor (Goldman, 1992), daí ele se viu liberto
do poder encantatório da imagem, e era desse mesmo poder fascinante da imagem que Idriss tentava
se libertar com o auxílio do seu próprio mestre calígrafo.
Nativos em diáspora: por uma antropologia em movimento
Na introdução do seu texto Culturas viajantes James Clifford elenca uma série de textos que
tratam de viagens e movimentos para introduzir suas reflexões acerca de questões tais como
movimento, deslocamento, desterritorialização e suas implicações para a construção do saber
antropológico. Ali estão citados, entre outros, Fredric Jameson e Levi-Strauss. Poderia também
estar o romance de Michel Tournier aqui analisado, uma vez que este encena aquilo que Stuart Hall
(2003) chamou de condição diaspórica acrescentando ser esta a condição exemplar da modernidade
tardia. O próprio texto de Clifford produz em sua forma, ainda na introdução, o efeito de seu
conteúdo: a vertigem do movimento errático para nos situar dentro daquilo que ele vai abordar.
Clifford parte da percepção da Etnografia, prática basilar da ação antropológica do século
XX, como um constructo que evolui a partir da viagem moderna. Esse início da prática etnográfica,
na perspectiva de Clifford, já a posiciona desconfiada das construções estratégicas localizadoras no
que diz respeito à representação das culturas. Em seus inícios, no entanto, é o etnógrafo quem faz a
viagem, e toda uma construção do nativo vai se efetivar a partir do contato entre esses dois sujeitos:
o etnógrafo e o informante. A relação entre ambos, no entanto, não se deu de forma simétrica ou
ingênua ou ainda melhor, fora das relações de poder. Clifford questiona o simplismo envolvido na
visão que reduz o informante ou nativo a um ser a-histórico ou congelado em um tempo sem tempo.
Toma como paradigma a figura do índio Squanto, que tendo recebido peregrinos em 1620 em
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Massachusetts nos EUA e tendo sido de vital importância para a sobrevivência dos estrangeiros, era
falante da língua inglesa e tinha naquele momento acabado de regressar de uma viagem a Europa.
Um nativo isolado, confinado e vivendo quase em estado de natureza talvez nunca tenha
existido. Talvez ele tenha sido a projeção de uma mentalidade colonial partícipe de uma hierarquia
construída pelo colonizador. É nessa perspectiva que segue Arjun Appadurai em seu texto Putting
Hierarchy in Its Place. Nesse texto Appadurai tenta demonstrar a construção da ideia de nativo
como uma operação política de subalternização. Chama a atenção para o fato de que o termo em si
poderia sugerir apenas a ideia de alguém que é nascido em algum lugar, mas efetivamente não é
isso que acontece. Ele diz textualmente que
What it means is that natives are not only persons who are from certain place, and belong to
those places, but they are also those who are somehow incarcerated, or confined, in those
places. What we need to examine is this attribution or assumption of incarceration, of
imprisonment, or confinement. Why are some people seen as confined to, and by, their
places? (Appadurai, 1988: 37).
Se o índio Squanto foi utilizado como figura paradigmática por Clifford como elemento
representativo de um indivíduo complexo e atravessado por movimentos de grande envergadura,
forçoso é notar que os processos de descolonização dos séculos XIX e XX potencializaram esses
movimentos. Idriss, personagem central do romance ora analisado, metonimicamente representa
esse conjunto de elementos em trânsito pelo mundo. São os nativos deslocados. A homogeneidade e
o simplismo com os quais um determinado senso comum tenta representá-los deixa escapar matizes
complexas das supostas existências simples e autocentradas. O campo torna-se agora algo muito
mais fluido e matizado e isto sugere reflexões em torno da constituição desse campo. A observação
participante sempre estará a sugerir um “onde”, como afirma Clifford, mas cumpre indagar como
que metodologicamente essas fronteiras são traçadas, e uma vez que se esteja atento às
complexidades inerentes a esta operação deve-se pensar o espaço observado como que cruzado por
sentidos, conexões e fluxos diversos.
Desde o início do romance Idriss é confrontado por questões tais como a reflexão sobre os
modos constituintes dos indivíduos do oásis e do deserto, na comparação que faz entre o que vê em
torno de si por um lado, e o que percebe na vida de seu amigo Ibrahim, pastor chaamba de uma
tribo seminômade, por outro. É esta figura do amigo Ibrahim que vai entre outros elementos
estimular a imaginação de Idriss no sentido de lhe empurrar para a França. Havia também, e
principalmente, a fotografia tirada dele no deserto pela mulher loura, e havia ainda a figura do seu
tio materno, Mogadem, homem que lutou aliado do exército francês e também possuidor de uma
fotografia, que, aliás, era a única do povoado antes que Idriss fosse ele também fotografado no
deserto. Todos esses elementos vão compondo uma teia complexa que vão atuar naquilo que
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Appadurai (1996) chamou de imaginação como força social. Appadurai faz-nos ver em sua
teorização acerca do que chamou de etnopaisagens, que o nativo construído na prática
antropológica tradicional já não pode mais ser encarado da mesma forma, quando se pensa no
grande aumento exponencial dos fluxos migratórios ocorrido no século XX. Ele diz que:
Como os grupos migram, refazem em novos locais, reconstroem, a sua história e
reconfiguram os seus projetos étnicos, o etno de etnografia assume um caráter esquivo, não
localizado, a que as práticas da Antropologia terão que responder. (Appadurai,2004: 71).
Como dito acima sobre as reflexões do próprio Appadurai sobre a constituição teórica do
“nativo”, e também se verá mais a frente nas análises de Edward Said – especificamente na
constituição do nativo oriental –, a tentação de localizar e circunscrever o nativo como figura
enraizada é uma estratégia que tem mais a ver com processo de subalternização do que
propriamente com método ou episteme, ou no melhor das hipóteses trata-se de um romantismo
ingênuo. Appadurai trabalha mais na perspectiva de certo didatismo quando pensa como polos
ideais as figuras do nativo clássico-selvagem por um lado, e o nativo em diáspora por outro. O
primeiro, ele mesmo diz, talvez nunca tenha existido. Termos e expressões como “desatar dos
laços”, “desterritorialização”, “movimentação transnacional”, são abundantes nas reflexões do
pensador indo-estadunidense, e nos sugere a ideia de uma prática antropológica necessariamente em
movimento para captar as nuances surgidas nos processos contemporâneos de migração e
movimento.
A desterritorialização do dinheiro e das finanças, por exemplo, é um fator potencial de
acirramento de tensões. É sabido que os investidores do capital procuram as melhores condições
para a sua reprodução independente das fronteiras nacionais. Essa questão teorizada por Appadurai
aparece no romance de Tournier quando Achour, primo de Idriss, lhe explica que os franceses até
gostam dos árabes, mas do seu jeito. O que eles não toleram mesmo são os árabes ricos. No quadro
mental imperialista o papel do árabe é o da subalternização e não do investidor. As tensões
mencionadas por Appadurai como realidade corrente expressa nos fluxos atuais de grupos étnicos,
culturas e finanças, e que compõem por sua vez um dos nós da complexidade do mundo
contemporâneo com a qual a prática antropológica tem de lidar através de novas ferramentas
teóricas, as quais ele próprio ajuda a forjar, aparece claramente na afirmação de Achour. A partir do
termo desterritorialização, falar de produção do local ou de localidade pressupõe agora pensar esses
termos atravessados de fluxos poderosos capazes de mobilizar a fantasia e a imaginação dos agentes
ditos locais. Recorde-se aqui que o próprio Appadurai afirma que a imaginação e a fantasia sempre
tomaram parte na vida social dos povos através dos mitos, contos, sonhos e canções e que sempre
compuseram parte do repertório de qualquer sociedade culturalmente organizada. Mas salienta que
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contemporaneamente o papel desses dois itens ganha uma força nova e singular. A conexão entre
imaginação e desterritorialização é expressa por ele nos seguintes termos:
Os termos da negociação entre vidas imaginadas e mundos desterritorializados são
complexos e por certo não podem ser captados apenas pelas estratégias de localização da
etnografia tradicional. O que uma nova espécie de etnografia pode fazer é captar o impacto
da desterritorialização sobre os recursos imaginativos das experiências locais vividas.
(Appadurai, 2004:77).
A hipótese de Appadurai sobre o papel da imaginação no mundo social contemporâneo é
particularmente interessante para a análise ora realizada. Em uma chave interpretativa menos
matizada, ou talvez até mais vinculada aos domínios do senso comum, é corrente pensar a ação
migratória apenas em seus aspectos materiais. Obviamente não se está aqui a dizer que esses
aspectos são desprezíveis, mas sim que eles vêm em arranjos complexos com questões e aspectos
que também são de suma importância para a análise social. Os sujeitos que migram sempre ou
quase sempre se relacionam com os que ficaram: escrevem cartas, enviam dinheiro, contam
histórias, visitam seus familiares ou são visitados. Tudo isso concorre para que os que ficam – quase
sempre mais jovens, mas nem sempre –, sejam tomados por imagens e projeções poderosas que vão
paulatinamente atuando no sentido de estimulá-los a percorrer o mesmo caminho. Em suas
reflexões com base no que imaginava ser a vida livre do morador do deserto fora do oásis, Idriss
concluía que havia dois tipos de pessoas: os que ficam no povoado para cumprir os ritos da
comunidade tais como casar e ter filhos, e os que migravam. Acabou por concluir que ele pertencia
ao segundo grupo. Outros elementos foram atuando sobre sua imaginação para que ele pusesse seu
plano migratório em ação, sendo o mais significativo deles o encontro no deserto com a mulher
loura que lhe tira a foto.
Esta fotografia, como objeto-fetiche, será a porta de entrada em um labirinto do qual só
poderá sair com a ajuda de sua própria tradição recriada em desterro. E esta recriação da sua própria
tradição começa para Idriss através da utilização de um recurso que para Appadurai forma um par
com a imaginação no sentido de tornar possível um conjunto mais vasto de possibilidades
existenciais: a comunicação de massa, notadamente o rádio. Seguindo as reflexões de Appadurai
pode-se facilmente chegar ao entendimento de que a vida sempre foi o vivido + o imaginado. Deuse, porém, na modernidade a ampliação da parte imaginada, sendo essa ampliação um aspecto
marcante da vida social contemporânea. Idriss vê sua vida em ciclos concêntricos de expansão em
busca de outros mundos quando primeiramente mantêm relações de amizade com seu amigo
nômade Ibrahim; depois questiona os valores tradicionais de sua aldeia – o que desafia certa visão
etnocêntrica de que os grupos humanos não modernos não são capazes de elaborar contestação no
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quadro das regulações sociais em que vivem –; seu desejo de fuga ganha ímpeto após a ocorrência
da foto no deserto.
Mas se a imagem pela via da fotografia – objeto vinculado à indústria cultural – foi a porta
de entrada de seu labirinto de imagens, o rádio – objeto igualmente vinculado a mesma indústria –
foi o início de sua linha de fuga (Deleuze, 1998). Deixo, porém, para o final dessa seção a análise
dessa questão, por ter um caráter mais epilogal, para me deter nos próximos parágrafos na ideia da
construção do conceito de oriental tal qual esboçado por Edward Said e que também tem
implicações importantes para esta análise.
Um saber que se constitui em poder é efetivamente um tema caro à tradição intelectual
ocidental. Edward Said em seu texto Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, que trata
do conceito ou da invenção do que é Oriental por parte do ocidente, discorre sobre o discurso do
conde Arthr James Balfour na câmara dos comuns inglesa no qual este argumenta em favor da
permanência da Inglaterra no Egito, ainda no início do século XX. Analisando o discurso de
Balfour sobre a manutenção dos ingleses em terras egípcias, Said torna claro o nexo estabelecido
pelo conde inglês entre a ocupação britânica e o conhecimento que se tem sobre o povo dominado.
Para Balfour, segundo Said, o conhecimento está em definir o outro em suas origens, passar pelo
seu apogeu, e chegar à compreensão do seu declínio. Este conhecimento se materializaria na
superação do imediatismo e na busca de ir além de si mesmo e nessa rota chegar até a se introduzir
no estrangeiro distante. Ter este conhecimento sobre o outro é de certa forma recortá-lo e defini-lo,
ou em outras palavras afirmá-lo como realidade ontológica e cognoscível. É, em suma, ter poder
sobre ele. A equação torna-se clara na afirmação de que para Balfour o conhecimento inglês sobre o
Egito é o próprio Egito.
Esta equação também aparece na narrativa de Michel Tournier em, pelo menos, dois
momentos. A primeira quando Idriss está em Béni Abbès e vê no museu do Saara os hábitos de sua
tribo como objeto recortado e definido como uma cultura. No mesmo movimento em que ele
reconhece aqueles hábitos, lugares e objetos, ele estranha o modo de formulação no qual tudo
aquilo se coloca. A disposição dos gestos e hábitos dos habitantes do oásis lhe parece estranho, não
por ele nunca ter visto, mas pelo fato de que foi recortado como uma unidade observável e
cognoscível. Parafraseando Balfour podemos dizer que o conhecimento francês sobre o Saara é o
próprio Saara. O segundo momento em que a equação se faz perceber no romance se dá quando
estando em Paris à porta de um restaurante de comida “típica” do mundo árabe, Idriss é indagado
sobre qual é o prato nacional do seu país. O jovem de Tabelbala sequer entende o que seu
interlocutor quer dizer com a palavra nacional. A noção de nacionalidade é tomada pelo marquês
Sigibert de Beaufond como um dado autoevidente e natural sobre o qual não são necessárias
maiores explicações. O marquês cita dois ou três pratos nacionais que entende ser de povos árabes,
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mas o jovem berbere (é assim que ele se define) não conhece nenhum. O marquês também estranha
e pergunta se Idriss não é um árabe. Este lhe responde que tampouco se vê nessa condição
identitária. É a partir desse ponto que o francês vai ensinar a Idriss o que é ser árabe. Vai localizálo, vai defini-lo, vai, por fim, circunscrevê-lo. Esta é sempre uma operação de simplificação das
complexidades inerentes a qualquer conjunto humano, e é também uma operação de guerra e de
subalternização do outro. É digno de nota que os elementos de doutrinação elencados pelo marquês
e que estão em suas memórias são provenientes do cinema cujos filmes tratam justamente da
ocupação francesa na Argélia, portanto, refere-se a uma ação de cunho colonial.
Era com uma suposta essência árabe que o marquês de Beaufond estava dialogando quando
conversava com Idriss à porta do restaurante parisiense. Isto porque essa operação de
essencialização está na gênese da visão colonial europeia, e não é outra coisa que afirma Said
quando diz que “(...) os orientais, para todos os fins práticos, eram uma essência platônica que
qualquer orientalista (ou governantes de orientais) pode ria examinar, compreender e expor” (Said,
2007: 70). O conhecimento do Oriente – tanto do conde Balfour, analisado por Said, quanto do
marquês de Beaufond, do romance de Tournier – dá sustentação a ação colonial ao mesmo tempo
em que dela se nutre em uma verdadeira dialética entre saber e poder fazendo com que o oriental
seja, como colocado por Said, concebido como algo que se possa julgar, como em um tribunal; se
possa estudar e descrever, como em um currículo; se possa disciplinar, como em uma prisão ou
escola; ou ainda ser ilustrado, como em um manual de zoologia.
Na fala da autoridade inglesa analisada por Said, na qual o primeiro tece seus argumentos
em favor da importância do papel da Inglaterra no que diz respeito a uma ação civilizatória no
Egito, há claramente defendida a ideia de que o Egito teve seu apogeu no passado e que essa etapa
em muito contribuiu para o desenvolvimento da civilização como um todo. Mas deixa bem claro
que essas conquistas egípcias estão no passado, pois naquele momento presente aquele país estava
em seu momento de declínio e comungando com outros orientais a incapacidade de produzir um
autogoverno (expressão do próprio Balfour), necessitando por isso da permanência da Inglaterra
como potência indutora e criadora de valores verdadeiramente civilizados, no sentido moderno do
termo. Em algum momento Balfour diz textualmente que “a ocupação estrangeira torna-se,
portanto, a própria base da civilização egípcia contemporânea” (Said, 2007: 65). A contrapelo da
retórica imperialista inglesa proferida até mesmo com ares de indulgência por Balfour, surge no
romance de Tournier a afirmação, em uma conversa na qual Achour explica a Idriss o que é a
França, de que a França contemporânea são eles, os árabes, e que os franceses deveriam reconhecer
isto. Aqui os sinais estão invertidos e a fala do primo de Idriss tem o sabor da afirmação
psicanalítica que trata do “retorno do reprimido”. Se por um lado os egípcios de Balfour deveriam
reconhecer que o Egito contemporâneo só se constitui com a presença dos ingleses, sendo estes
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colonizadores; por outro, os franceses deveriam, como pensa Achour, reconhecer que não haveria a
França contemporânea sem a presença dos pejorativamente chamados de bougnoules.
Agora é preciso voltar à estratégia através da qual Idriss consegue sair do seu labirinto de
imagens, e para isso será importante a compreensão do que diz Appadurai sobre os modos através
dos quais os migrantes recriam seus mundos, elaborando formas complexas de ação e um
entendimento menos localizado e reificado do que seja cultura. Se o estopim da saga de Idriss
encontra-se na captura de sua imagem no deserto do Saara por uma mulher loura, a qual o texto
parece sugerir ser uma modelo, o rádio – assim também como a fotografia, pertencente ao mundo
da indústria cultural – será a porta de saída. O olho e a escuta parecem aqui compor um campo de
antinomia no qual um drama será performatizado. A partir da foto do deserto um conjunto de
ocorrências todas ligadas à imagem vai fazer Idriss experimentar um verdadeiro turbilhão no qual
muito do sentido absolutamente lhe escapa, e faz aparecer em sua volta um mundo fragmentário e
assustador. O rádio é o meio de comunicação de massa com o qual os velhos das diversas tradições
árabes têm mais contato, ao contrário dos jovens que preferem a televisão. E é importante aqui
lembrar que para Appadurai os meios de comunicação de massas, as mediapaisagens, são de suma
importância para a configuração da imaginação como força social de grande significação. É
importante também assinalar que a apropriação do rádio como ferramenta para recriação de formas
tradicionais pelos árabes mais velhos, guarda uma estreita relação com os universos orais os quais,
de certa maneira, as transmissões através do rádio evoca.
É, portanto, através do rádio que Idriss auxiliado pelo alfaiate consegue aos poucos se livrar
do fastio provocado pelo excesso de imagens ao qual foi submetido. O rádio lhe coloca em contato
com a tradição do canto árabe através da figura da cantora Oum Kalsoum a “estrela do oriente”, e
através desse canto Idriss vai estabelecendo ligações e construído uma nova identidade tanto
espacial como culturalmente mais abrangente. Vai inventando sua “arabização” na medida em que
vai estabelecendo novas relações de sentido. Essa sua nova terra, como alerta Appadurai “é parte
inventada, existe apenas na imaginação dos grupos desterritorializados”, mas não é por isso menos
verdadeira. O canto da grande diva egípcia serve como antídoto sonoro para a alienação visual do
jovem berbere, agora árabe. Na sequência dos fatos o alfaiate apresenta Idriss ao calígrafo Abd Al
Ghafari, com quem ele vai adentrado um mundo de conhecimentos profundos ligados à sabedoria
dos povos árabes. Com o mestre, Idriss aprendeu que a imagem pode ser perigosa e destruidora
quando se lida com ela sem preparo. Acrescenta poética e filosoficamente que a imagem é a
matéria, enquanto a letra é o espírito e a caligrafia é a álgebra da alma.
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Conclusão
Seguindo o roteiro complexo e multifacetado típico da contemporaneidade como apontado
pela Antropologia das últimas décadas nas figuras de antropólogos tais como Arjun Appadurai;
George Marcus; James Clifford e Edward Said, Idriss de Talbelbala, depois Idriss o árabe, torna-se
uma personagem prototípica dos novos cenários nos quais a Antropologia se imiscui e cuida de
criar novas ferramentas teóricas para compreender o homem em seu eterno devir. A partir de um
labirinto de imagens que compõe o cerne de uma sociedade que vai produzindo seus efeitos, Idriss
se move e complexamente elabora a recomposição, ou melhor, a invenção de um novo mundo
plasmado a partir da decifração que se torna possível na medida em que descobre um a rede de
sujeitos que mesmo desterritorializados são possuidores de uma potência agentiva capaz de
alinhavar e produzir novos saberes a partir dos elementos dos saberes originários. Idriss não supera
a alienação imagética a qual esteve por certo tempo subjugado reencontrando uma cultura original e
autêntica, mas pelo contrário, vai “inventando” uma cultura para si a partir da recriação astuta de
antigos saberes investidos agora em domínios contemporâneos.
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O desenvolvimento econômico no contexto da industrialização na paraíba: engenhos,
curtumes e tecelagens
Luciano Bezerra Agra Filho
Resumo: Em que consiste a industrialização na Paraíba? O que são os Engenhos 19? O que são Curtumes20? O que são
tecelagens21? Muitas perguntas, muitas respostas... Este artigo relata a partir dos meados do século XIX, sobre a
manufatura agroindustrial, ancorada especialmente na cana-de-açúcar e no algodão, era a “pedra de toque” da economia
paraibana. Essa análise visa resgatar o período de seu reinado do açúcar, enquanto o “embaixador” Brasileiro, da
colônia portuguesa recém desvelada e sem maior exposição da expressão, ou seja, a mesma importância econômica, na
Europa dos séculos XVI a XIX.
Palavras-Chave: Industrialização na Paraíba – Engenhos – Curtumes – Tecelagens.
Abstract: What is the industrialization in Paraíba? What are devices? What are Tanneries ? What are tecelagens ?
Many questions, many replies... This article reports from mid 19th century, on the manufacturing agroindustrial,
anchored especially in the cane-of-sugar and cotton, was the "cornerstone" of the economy paraibana.This analysis aims
rescue the period of his reign of sugar, as the "ambassador" Brazilian Portuguese, of the colony recently uncovered and
without greater exposure of expression, or is, the same economic importance, in the Europe of centuries XVI to XIX.
Key-words: Industrialization in Paraiba - Devices – Tecelagens - Leather.
Introdução
19
Com referência a isso, o engenho é o nome da grande propriedade agrícola destinada à produção do açúcar.
Confirma-se, portanto, que os proprietários dos engenhos eram conhecidos como senhores de engenho. Mas afinal, o
que faziam parte do engenho? Casa-grande eram construções sólidas e espaçosas, onde viviam o senhor de engenho e
sua família: mulher, filhos e agregados. Assim, acredita-se que a casa-grande era o centro da vida social e econômica do
engenho. A Capela é o local onde se realizavam os serviços religiosos católicos. Aos domingos e dias santos, a capela
era o ponto de encontro da comunidade, ali realizavam-se batizados, casamentos e funerais. A Senzala: era a moradia
dos escravos. Era uma habitação rústica e pobre, onde os negros eram amontoados, sem nenhum conforto e por fim o
Engenho possuia instalações destinadas ao preparo do açúcar - a moenda, onde a cana era moída para a extração do
caldo; as fornalhas, onde o caldo era fervido e purificado em tachos de cobre; a casa de purgar, onde o açúcar era
branqueado; os galpões, onde os blocos de açúcar eram quebrados em várias partes e reduzidos a pó.
20
O Curtume é um estabelecimento onde o couro cru é tratado a fim de ser comercializado para indústrias de artefatos
de couro. O processo de curtimento consiste na transformação de peles de animais em couro e pode ser classificado em
3 modalidades, a saber, o curtimento mineral, o vegetal e o sintético. Primeiramente o Curtimento Mineral mais
conhecido é o à base de cromo, utilizando-se sulfato de cromo com 33% de basicidade. Em seguida o Curtimento
Vegetal se dá pela utilização de taninos, ou seja, extrato de plantas que possuem afinidade pelo colágeno,
transformando a pele sujeita ao apodrecimento em couro não putrescível. E por fim no curtimento sintético, são
empregados curtentes, em geral orgânicos (resinas, taninos sintéticos), que proporcionam um curtimento mais uniforme
e aumentam a penetração de outros curtentes, como os taninos e de outros produtos. Isto propicia, por exemplo, um
melhor tingimento posterior. Portanto os curtumes geralmente, são mais caros, relativamente aos outros curtentes e são
mais usados como auxiliares de curtimento.
21
As Tecelagens são os atos de tecer, entrelaçar fios de trama (transversal) e urdume, ou urdidura, (longitudinal)
formando tecidos. Pode-se, vislumbrar, portanto que os tecidos produzidos no processo de tecelagem, ou seja, também
conhecidos como tecidos planos ou de cala, não podem ser confundidos com tecidos de malha. Nos tecidos planos há
somente duas posições possíveis para os fios de trama, ou, ele passa por baixo ou passa por cima dos fios de urdume.
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O presente artigo tem por objetivo realizar uma abordagem sobre inovações tecnológicas as
características físicas da fibra do algodão colorido e as fibras do algodão branco. Para isto foi
realizada uma avaliação de desempenho no processo de fiação a rotor do algodão colorido, face aos
promissores investimentos advindos da demanda por produtos ecologicamente corretos, e a
decorrente inovação tecnológica requerida à industrialização deste produto. Este estudo foi
realizado numa grande indústria têxtil, instalada na Paraíba, tomando-se como base o processo de
fiação utilizado por esta indústria.
Primeiramente o surgimento da urbanização da Cidade de Campina Grande se encontra
lastreada nas atividades comerciais e mercantis desde o início da formação estrutural da própria
cidade. Em seguida ela se constituiu um descanso para os tropeiros e consequentemente se
estruturou e desenvolveu-se em uma feira de gado, e posteriormente começou-se a desenvolver as
atividades tropeiras e ainda o crescimento da cultura do algodão colorido estimulará o crescimento
urbano através do município. Isto significa dizer que as atividades comerciais foram expostas como
as atividades fundamentais para o crescimento demográfico e a urbanização do município. Como se
vê, encontra-se explicação à gênese da urbanização de Campina Grande, tendo como horizonte
histórico o período que abrange o século XX.
É interessante assinalar que as atividades comerciais, principalmente o comércio do algodão
colorido, constroem a urbanização de Campina Grande. Vale ressaltar que é a atividade do
comércio, tais como o algodão colorido e o comércio entre produtores, atacadistas, varejista e
consumidores industriais e domiciliares que consolida as estruturas urbanas básicas da cidade.
Podemos perceber que não podemos deixar de ressaltar a importância que a chegada da ferrovia em
1907, foi a base essencial para o progresso da cidade, ou seja, o algodão colorido surgiu e se
consolidou como atividade econômica essencial e quais os rebatimentos dessa atividade para a
construção da hegemonia econômica e a urbanização de Campina Grande, mas, a decadência do
empório algodoeiro campinense não determina o declínio da economia da cidade, devido à
consolidação de uma estrutura econômica diversificada não afetando significativamente o processo
de urbanização da cidade.
Durante o início do Século XX, o comercio do algodão se tornou-se mais forte
significativamente, especialmente após a instalação da estação ferroviária, sendo assim umas das
principais atividades da cidade, fazendo de Campina Grande a segunda maior exportadora de
algodão no mundo. É preciso perceber que se devia a condição do município como mercado de
produtos que eram trazidos pelos tropeiros que traziam suas mercadorias em transportes de tração
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animal, geralmente burros, para ser comercializado na cidade, onde daí era levado para a capital do
Estado ou para o porto do Recife, onde seria exportado para o exterior.
Entretanto com a decadência do comércio de algodão surgiu uma crise econômica e se
estabeleceu praticamente em todos os setores comerciais, sobretudo varejistas e prestação de
serviços, implicando assim numa tomada de decisão em que se necessitou dar novos rumos para a
economia campinense, isso para não deixar com que houvesse uma retração e consequente
estagnação como ocorreu em outras cidades paraibanas que dependiam dessa produção algodoeira.
Concluímos que o cultivo do algodão naturalmente colorido desenvolvidas pela Embrapa, o algodão
para as condições de semiárido entre o sertão e o Seridó da região nordeste do Brasil, enfocando os
aspectos socioeconômicos da agricultura familiar. Destaco que o caráter reestruturante da cultura do
algodão colorido, obtido através de técnicas de melhoramento genético, e que tem como principais
desafios, a geração de renda e o resgate da cidadania às populações de baixa-renda daquela região, e
é por isso que a cultura do algodão colorido, especificamente na região do semiárido nordestino, se
demonstra como uma alternativa extremamente viável, sob os pontos de vista econômico, social e
ecológico. Outra indagação que podemos perceber é o seguinte: Quais os produtos que podem ser
obtidos? Em relação a isto, percebemos que os artefatos, a farinha, o leite, sementes de arroz, feijão,
o álcool, pimenta, o limão, frutas, tecidos, hortaliças, fibras, fiação, tecelagem, confecções,
corantes, e outros produtos químicos, o milho e a soja e assim sucessivamente. E Por fim a última
pergunta. O produto [o algodão colorido] é beneficiado no local, ou é exportado in natura?
Todavia muitos esforços tenham sido feitos no sentido de conscientizar a população local
sobre a importância do algodão colorido para a economia local, ainda há certa hostilidade que
advém principalmente das camadas sociais inferiores, que têm a percepção de que o produto é
inacessível e traz benefícios apenas para alguns agentes da Cadeia. Afirmando esta crítica está o
fato de que os produtos de algodão colorido são destinados especialmente para os turistas, para a
classe média-alta e para a exportação, já que seus preços são relativamente altos. É importante
lembrar que é dificilmente encontra-se em Campina Grande um morador que esteja vestindo algum
destes produtos. No presente momento, o cultivo do algodão colorido é realizado por pequenos
agricultores no formato de agricultura familiar, em regiões zoneadas do sertão Paraibano.
Para a fundamentação dos estudos e avaliação dos parâmetros encontrados, utilizou se como
referencial analítico às teorias trabalhadas e a realidade encontrada na empresa estudada. Concluiuse a utilização do algodão colorido como inovação tecnológica utilizada na indústria têxtil, é viável,
tendo-se um bom desempenho da matéria-prima e do fio, todavia, para que isso se concretize é
necessário que a matéria-prima tenha um baixo percentual de desperdício, um comprimento de fibra
médio e uma resistência satisfatória.
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Em seguida, apesar do progresso econômico, da modernização do Estado, da acumulação de
capital e da mão de obra ser assalariada ao invés de escrava, encontramos um desnível nas
condições de vida no qual as opulências são para poucos e as dificuldades são de muitos.
Desenvolvimento econômico
Essa constatação não é muito diferente do período colonial que Freyre nos apresentou, visto
que, embora os homens estejam em um espectro social estruturalmente diferente, ainda
encontramos um contraste entre riqueza e pobreza. No período da época passada da Casa Grande &
Senzala, tornou-se um dos caminhos para detectarmos o entendimento da essência do preconceito
dos anos 70 do século XX. Sendo assim, percebemos que os empregadores de São Paulo poderiam
ter preferências por homens ou mulheres, jovens ou velhos, migrantes ou não-migrantes, brancos ou
negros, sua opção pode resultar tanto de motivações econômicas ou por preconceitos sociais e
raciais. O sociólogo Gilberto Freire dizia em seu livro “Casa-Grande & Senzala”, o seguinte que:
é o estudo integrado do complexo sociocultural que se construiu na zona
florestal úmida do litoral nordestino do Brasil, com base na monocultura
latifundiária de cana-de-açúcar, na força de trabalho escrava, quase
exclusivamente negra; na religiosidade católica impregnada de crenças
indígenas e de práticas africanas; no domínio patriarcal do senhor de
engenho, refluído na casa-grande com sua esposa e seus filhos, mas
polígamo, cruzando com as negras e as mestiça. (FREYRE, 2001, p.28-29)
Como se vê, serão analisados, neste artigo, as características como motivo, facilitadores,
dificultadores, pressões, conflitos e consequências decorrentes do ciclo da cana-de-açúcar a partir
dos séculos XVI a XIX. É importante perceber que a necessidade de colonizar a terra para protegêla e explorá-las as suas riquezas fizeram com que o Governo de Portugal instalasse os engenhos e
produtores de açúcar no nosso litoral, mas essa cultura foi selecionada por se tratar de um produto
de alto valor no comércio europeu e por seu consumo crescente na Europa. Portanto, após as
dificuldades de sua implantação, a falta de dinheiro para montar a moenda, comprar os escravos,
refinar o açúcar e, sobretudo transportá-lo para os mercados consumidores da Europa, o açúcar
tornou-se o essencial produto brasileiro e foi à base de sustentação da economia e da colonização do
Brasil durante os séculos XVI e XVII. Assim, acredita-se que no século XVIII, houve uma
emergência do açúcar de beterraba e a formação dos conhecimentos e as técnicas para construção
de uma indústria açucareira por parte dos holandeses, que fizeram com que o nosso principal
produto entrasse em decadência e perdesse o mercado consumidor para o continente europeu, e foi
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por esse motivo que acabaria o monopólio do açúcar e alteraria o quadro político-econômico da
época em nosso país.
Vale ressaltar que à concorrência com os holandeses, o açúcar há muito tempo vinha se
decaindo cada vez mais em torno de seus preços no determinado mercado ao passo que os custos da
produção somente aumentavam o que levou o algodão a assumir o lugar de exposição na economia
paraibana a partir do século XIX, e como argumentou Aécio Villar de Aquino: “De início
competido, quase em condições de igualdade, o algodão vai pouco a pouco adquirindo vantagens
sobre o açúcar e antes do término da primeira metade do século, já figurava em primeiro lugar nas
exportações da Província”. Confirma-se, portanto, que todas essas classes sociais foram sentidas nas
primeiras décadas do século XIX mesmo com as tentativas de soerguimento da capitania sob o
governo de Fernando Delgado Freire de Castilho que assumiu em 1798 do século XVIII e com
referência a isso, ele afirma o seguinte: “Tentando aliviar a situação econômica, Castilho promoveu
uma série de melhorias no manejo do açúcar e do algodão, além de reunir a safra de açúcar e tentar
exportá-la pelo porto da Paraíba, em navios solicitados ao Reino” (MARIANO, 2001, p.63).
Nessa passagem acima, percebe-se que o açúcar era refinado com os métodos artesanais de
fabrico. Isto quer dizer que a precariedade do equipamento de produção se evidenciava por
moendas movidas por cavalos e bois, por processos custosos e dispendiosos, onde essas moendas
necessitavam de seis ou oito repetições para extrair a matéria-prima da cana, mas, o açúcar tornavase branco através de um processo que utilizava barro, como analisou Aécio Villar de Aquino
“bastante complicado e os mestres de açúcar eram de baixa classificação”. Cabe ressaltar que os
engenhos d’água pouco eram utilizados, já que as planícies da várzea do Paraíba não ofereciam os
desníveis necessários à movimentação daqueles aparelhos. No que tange aos engenhos movidos a
vapor, há portanto registros que eles tenham chegado à Paraíba, tardiamente, em 1882 do século
XIX, na mesma década em que entraria em funcionamento, mas o primeiro engenho central foi
justamente Aécio Villar de Aquino. Ele argumentava que trazia o engenho central, algumas
inovações, utilizando a tração a vapor; era uma fábrica de maior capacidade em que o setor
industrial estava separado do agrícola, recebendo canas de outros engenhos e de plantadores
independentes, isto quer dizer que a experiência constituiu-se num verdadeiro fracasso por causa
dos desentendimentos entre a direção e os fornecedores de cana, irregularidades no fornecimento de
cana, falta de controle de preços e avultando sobre os demais fatores negativos, o eterno e magno
problema de carência de capital. Martha Lúcia Ribeiro Araújo relatava que:
A cultura do algodão, a mais importante do Estado, não consegue
acompanhar as mudanças que estão se processando no Centro-Sul. Mantendo
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técnicas atrasadas de plantio e colheita, não aumenta a produção. Além disso,
firmas como o SAMBRA e a CLAYTON, financiavam os pequenos
produtores, porém, após a colheita, determinavam os preços, em detrimento
dos produtores, desestimulando, assim, a produção. (ARAÚJO, 2001, p. 114)
Os empecilhos políticos, os atrasos tecnológicos e os insucessos econômicos destacados
pelos historiadores Aécio Villar de Aquino e Martha Lúcia Ribeiro Araújo impediam a Paraíba de
ingressar no cenário da industrialização brasileira no século XIX. Pode-se, vislumbrar, portanto, que
o setor industrial era bastante insuficiente e insignificante para a economia do Estado, apresentava
pouco mais de duzentos estabelecimentos, que majoritariamente eram micro oficinas ou unidades
fabris de caráter semi-artesanal, empregando de cinco a dezenove trabalhadores em média por cada
unidade.
Durante este período destacaram-se alguns segmentos do setor industrial pelo número de
estabelecimentos, a exemplo das cinco fábricas de couro, as cinco de tecidos, além das oito
indústrias de beneficiamento de algodão com grande destaque para produção têxtil. É nesse
contexto, que a indústria de Tibiry, localizada no município de Santa Rita, cuja fundação deu-se nos
anos de 1891 do século XIX. Nesse aspecto, seria importante reconhecer que esse município
funcionava com trezentos e oitenta e um tear e um quadro de seiscentos e cinquenta trabalhadores.
Já no município de Mamanguape a Fábrica Têxtil de Rio Tinto, fundada no ano de 1924,
pertencente à família Lundgren de Pernambuco, era de grande porte, equipada com setecentos e
sessenta teares e treze mil fusos. Em consequência disto, as fábricas menores se localizavam em
outras cidades, tomando por exemplo, Campina Grande e Areia, que empregavam, em média,
cinquenta operários por estabelecimento. Mas, afinal em que consiste os Engenhos?
Aécio Villar de Aquino nos mostrou que a Paraíba além de possuir um belíssimo litoral, é
detentor de um rico e prazeroso roteiro turístico e cultural também pelo interior do estado. Ressaltese, ainda, que as cidades que compõe o Brejo e que foram as principais responsáveis, naquela
região, pela chamada "civilização do açúcar". De toda forma as principais cidades que fizeram parte
deste cenário são, a saber, como é o caso de Alagoa Grande, Areia, Bananeiras, Borborema,
Solânea, Serraria e Arara. Alagoa Grande Teatro Santa Ignês: Situado entre os casarões antigos, é o
terceiro teatro mais antigo da Paraíba. O proprietário rural e político Apolônio Zenaide Montenegro
foi quem mandou construí-lo.
É neste ponto que o estilo italiano e a arquitetura interior em pinho de riga, teve sua
construção iniciada em 1902 e foi inaugurado em 1905 do século XX. A Igreja Matriz é uma obra
centenária e dedicada a Nossa Sra. da Boa Viagem, mas teve a sua construção iniciada em 1861 do
século XIX pelo Frei Alberto de Santa Augusta Cabral, sendo o primeiro vigário da paróquia, e
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concluída em 1868 do século XIX. Contudo a Areia Museu da Rapadura está localizado no Centro
de Ciências Agrárias da UFPB [Campos III], no lugar onde funcionava um engenho açucareiro do
século XVIII [Engenho da Várzea]. Além disso, o local, aberto à visitação pública, mantém
preservados as instalações e todo o maquinário utilizado para a fabricação da rapadura, do açúcar
mascavo, do mel e da aguardente, além de um alambique de barro, que destilava cachaça para uso
exclusivo dos seus antigos proprietários. Museu do Brejo: Também está localizado no Centro de
Ciências Agrárias acima citado.
É um antigo casarão onde funcionava a Casa-Grande do Engenho da Várzea, onde se pode
ter uma ideia da arquitetura rural da época. Museu Casa de Pedro Américo: Localizado na Rua
Pedro Américo, foi a casa onde o grande pintor paraibano nasceu em 1843 e viveu até os nove anos
de idade. Em 1943 foi desapropriada, passando a funcionar como museu. Bananeiras Cruzeiro de
Roma trata-se de uma capela construída em 1899 pelo Capitão Joça Rodrigues, em homenagem à
Sagrada Família, após ter alcançado uma graça. Situada no topo da Serra da Cupaóba, também é
conhecida como "Outeiro de Roma" ou "Capela da Sagrada Família". O Carmelo Sagrado Coração
de Jesus e Madre Tereza é um magnífico prédio secular, que se destaca pela sua grandiosidade e
imponência arquitetônica. Ali funcionou um antigo Colégio, que foi transformado em Carmelo com
a chegada das irmãs carmelitas, em 1999, procedentes da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
Borborema Igreja-Matriz está situada no topo de uma elevação que domina toda a cidade e é o mais
imponente e importante prédio da cidade, mas já passou por inúmeras melhorias e reformas.
Chegando-se até ela subir por uma grande escadaria, cujo parapeito é adornados por várias
estátuas que representam alguns santos, profetas e antigos patriarcas hebreus. Serraria Engenho
Martiniano está de fogo morto, mas seus atuais proprietários estão produzindo a Cachaça "A
Cobiçada", de grande aceitação em toda a região. Os restos mortais de seus fundadores [Francisco
Duarte e sua esposa Josefa Duarte] estão enterrados na capela da propriedade, que está bem
conservada. Sua casa grande também se encontra em perfeito estado. Arara Santa Fé é um Santuário
que foi erguido em homenagem ao Padre Ibiapina, e ela está situado bem na divisa com Solânea,
onde esse religioso passou os últimos anos de sua vida. O Santuário conta com uma capela, casa dos
milagres, pequeno museu [com instrumentos utilizados pelas irmãs nas casas de caridade criadas
pelo padre, quadros, utensílios domésticos da época, moedas, etc], casa dos missionários e casa
onde morou aquele religioso.
Os empecilhos políticos, os atrasos tecnológicos e os insucessos econômicos destacados
pelo historiador Aécio Villar de Aquino impediam a Paraíba de ingressar no cenário da
industrialização brasileira no século XIX. Pode-se, vislumbrar, portanto, que o setor industrial era
bastante insuficiente e insignificante para a economia do Estado, apresentava pouco mais de
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duzentos estabelecimentos, que majoriamente eram micro oficinas ou unidades fabris de caráter
semi-artesanal, empregando de cinco a dezenove trabalhadores em média por cada unidade.
Durante este período destacaram-se alguns segmentos do setor industrial pelo número de
estabelecimentos, a exemplo das cinco fábricas de couro, as cinco de tecidos, além das oito
indústrias de beneficiamento de algodão com grande destaque para produção têxtil. É nesse
contexto, que a indústria de Tibiry, localizada no município de Santa Rita, cuja fundação deu-se nos
anos de 1891 do século XIX. Esse município funcionava com trezentos e oitenta e um teares e um
quadro de seiscentos e cinquenta trabalhadores. Já no município de Mamanguape a Fábrica Têxtil
de Rio Tinto, fundada no ano de 1924, pertencente à família Lundgren de Pernambuco, era de
grande porte, equipada com setecentos e sessenta teares e treze mil fusos. Em consequência disto, as
fábricas menores se localizavam em outras cidades, tomando, por exemplo, Campina Grande e
Areia, que empregavam, em média, cinquenta operários por estabelecimento.
É importante perceber que a origem da indústria têxtil em Campina Grande segundo o
economista Luiz Gonzaga de Sousa, é um prolongamento da industrialização desses municípios:
Com isto, surgiram as primeiras fábricas em Campina Grande, como foi o
caso das fábricas de beneficiamento de algodão e de sisal. Com o advento do
setor de transformação, surgiram a SAMBRA, a ANDERSON CLAYTON e
a MARQUES DE ALMEIDA e poucas outras empresas que tinham a
finalidade de beneficiar produtos da terra para o uso doméstico e até mesmo
exportar. Foi desta forma que apareceu a Indústria Têxtil em Campina
Grande. (SOUZA, 1996, p. 57)
O setor têxtil se fez hegemônico nas primeiras décadas do século XX comportando o maior
número de estabelecimento industrial e empregando mais de 50% dos operários na Paraíba,
acompanhado pelo setor de transformação de alimentos, deixando a terceira posição para o setor de
minerais não metálicos. Entrando em crise, nos anos quarenta do século XX, primeiro por não
acompanhar a modernização dos avanços tecnológicos, desenvolvida no centro sul do país que
passava a inserir no setor, além de novas técnicas de produção, as máquinas de maior, além de
novas técnicas de produção, as máquinas de maior porte tecnológico que concentravam as
atividades de beneficiamento diminuindo os custos do produto, segundo pela política de
financiamento das grandes indústrias têxteis que sofriam com a crise comercial do seu produto
instaladas na Paraíba e que açambarcavam a produção local. Isto significa dizer que a Paraíba tem
uma economia bastante diversificada com setores emergentes de média tecnologia, alavancada por
uma estrutura de serviço e comércio de importância no cenário nordestino. Em relação com a
abertura comercial no estado, a economia tem sofrido forte impacto no que diz respeito à
concorrência das cidades circunvizinhas, e é por isso que alguns setores se modernizam enquanto
outros sofrem retrocesso devido à falta de incentivos para investir em inovações tecnológicas.
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É importante notar que algumas indústrias têm conseguido se modernizar utilizando algumas
estratégias como novos métodos de organização do trabalho e da produção, enquanto que no
processo de reestruturação econômica e política da indústria na região, vêm-se utilizando-se da
otimização dos recursos locais, mas a indústria paraibana vem se diversificando, pois ela está
investindo nos setores que estão ligados pelos grandes centros urbanos, e é através destes setores
que são expoentes desta nova dinâmica, podemos citar como exemplo, plásticos, bebidas e couro
calçados. Colocando que a indústria de Calçados é a que mais vem se alastrando dentro do próprio
Estado, assim o segmento de bens não-duráveis se destaca com 76% das unidades instaladas após
1980 do século XX, das quais 54% após 1990 do século XX, porém a receita das indústrias
paraibanas provém, principalmente, da venda de produtos em outros estados, seguidos de venda a
mercados da própria região.
As Grandes partes das empresas paraibanas, entre 1999 e 2001, apresentam investimento na
aquisição de máquinas e equipamentos, programas de treinamento da mão-de-obra e aquisição de
equipamentos de informática e os motivos que levam os empresários, segundo eles, a investir na
indústria são, a saber, a ampliação da capacidade produtiva, melhoria da qualidade do produto e
melhoria da eficiência, como nos apontou a historiadora e socióloga Martha Lúcia Ribeiro: “firmas
como a SAMBRA e a CLAYTON, financiavam os pequenos produtores, porém após a colheita,
determinavam os preços, em detrimento dos produtos, desestimulando, assim, a produção.”
Contudo, a cidade de Campina Grande nos anos 60 do século XX, assistiria ao surgimento
de novas indústrias e a proliferação do número de seus estabelecimentos industriais, superando a
capital político-administrativa da Paraíba, João Pessoa, cujos índices de crescimento industrial
imperavam na década de 40 do século XX. Grandiosa, magnificante, pública e aplicada, Campina
Grande destacou-se pelo seu vigoroso crescimento industrial e pela histórica vocação comercial
local e para além dos limites do Estado. Observe-se, ainda, que o município de Campina Grande
passa a ser beneficiado com essa política de industrialização promovida pelo governo federal,
possivelmente por ser a cidade mais desenvolvida do Estado da Paraíba e, em decorrência desse
privilegio adquiria importância significativa no cenário regional.
Evidentemente havia na região Nordeste outros centros mais desenvolvidos que Campina
Grande, no entanto, se tomarmos o desenvolvimento vivenciado por esta cidade e compararmos
com a situação geral do Nordeste, chegaremos a conclusão que Campina Grande se desenvolvia
muito mais que várias cidades dessa região. As políticas públicas implementadas na região eram,
geralmente, ineficazes e atrasadas como mostra essa citação de Raimundo Moreira, comparando as
políticas de desenvolvimento do Nordeste e do Centro-Sul:
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[...] Desenvolvia-se no Centro-Sul uma política de inversões dentro de um
programa orientado com objetivos definidos, visando à industrialização,
enquanto no Nordeste se levava a cabo uma política “assistencialista”. A
ação governamental no Nordeste centrava-se na política de combate às secas
e tinha efetivamente um caráter filantrópico [...] (MOREIRA, 1979, p. 3243).
De acordo com Lima (2004. p. 48): “essa realidade global do Nordeste não se reflete em
Campina Grande, ao contrário, ao entrar nos anos cinquenta o município já se destacava como um
centro industrial em franca ascensão e continua durante toda década”. O crescimento era tanto que,
em 1959, Campina Grande tinha 111 estabelecimentos industriais, enquanto João Pessoa tinha 93
estabelecimentos. Em termos quantitativos, o número de indústrias, de habitantes, de lojas de
comércio, somando-se ainda sua importância como polo comercial de algodão, fazia dessa cidade
um centro propulsor de crescimento econômico. Como podemos perceber, depois de mais de
quarenta anos passados da publicação dessa notícia, o Diário nos mostra a imagem de uma
instituição que poderiam contribuindo para o desenvolvimento da cidade, ajudando Campina e
região a prosseguir seu processo de desenvolvimento. Além disso, apresenta a situação de
desenvolvimento que estava inserida Campina Grande. E com o funcionamento de um curso como
o de Ciências Econômicas, seria de fundamental importância, devido essa cidade se encontrar em
processo de industrialização.
Entre as décadas de cinquenta e final de sessenta, muitas empresas que haviam se instalado
na cidade atraída, ainda, pelo reavivamento da fase áurea do algodão, contribuíram para o
desenvolvimento socioeconômico campinense. Podemos destacar a Escola Técnica do Comércio de
Campina Grande, a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência e da Técnica (1956), a Faculdade
Católica de Filosofia de Campina Grande (1952), a Faculdade de Serviço Social de Campina
Grande (1951), origem da Universidade Regional do Nordeste (URN), criada em 1966 através da
Lei Municipal e, transformada 1986, na Universidade Estadual da Paraíba. Foram, também, criadas
nessas décadas várias empresas municipais e órgãos voltados para o desenvolvimento da cidade; a
Campanha Municipal de Desenvolvimento (COMUDE), criada pela Prefeitura Municipal em 1956.
Em 1957, fora criada a SANESA, a primeira Sociedade Mista de Água e Esgoto de todo o Brasil e
da América do Sul. Segundo Lima (1996:50) a base do modelo da SANESA serviu posteriormente
para a criação da TELINGRA criada em 1955, o Fundo de Desenvolvimento Agro-Industrial
(FADIN), o Banco de Fomento Agrícola S.A (BANFOP), criado em 1959, além da Wallig Nordeste
S.A, CANDE, FIBRASA, PREMOL e IPELSA, todas criadas em 1966. Segundo o historiador
Damião de Lima colocou que:
A cidade participou da preparação do projeto de industrialização, desde as
primeiras discussões sobre a mudança na política oficial para região Nordeste
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e já se destacava no Estado [...] a única cidade do interior do Brasil, não
capital de Estado, que tornou-se sede de um órgão de liderança do processo
de industrialização do país, a Federação das Indústrias do Estado da Paraíba
– FIEP. (LIMA, 1999, p. 125)
Assim, no ano de 1959, a cidade foi a sede do I Encontro dos Bispos do Nordeste, evento
realizado com a finalidade de encontrar alternativas para a dinamização e o desenvolvimento da
região. Para sanar os problemas que afligiam o Nordeste, o governo federal ofereceu incentivos
fiscais para implementar o desenvolvimento da região. Era criada, em 15 de dezembro de 1960, a
SUDENE e a partir daí criava-se juntamente com o órgão as condições necessárias para que o
centro dinâmico da região Nordeste, antes exportador e primário, fosse substituído pelo setor
industrial, para onde foram canalizados os investimentos do Governo Federal. Oferecendo
facilidades não verificadas em outras cidades, Campina Grande conseguiu estrategicamente atrair
novas indústrias no início da década de 60 do século XX, beneficiando-se do órgão recém-criado
como destacou o historiador Damião de Lima no período compreendido entre 1961 e 1965:
Foram aprovados pela SUDENE, para Campina Grande, 9 projetos, sendo 5
de implantação de novas indústrias e 4 de modernização das indústrias já
existentes. Entre esses projetos, dois merecem destaque: o Projeto de
Implantação da Campina Grande Industrial Ltda [CANDE], produtora de
tubos plásticos e, principalmente, o Projeto de Implantação da WALLIG
NORDESTE S/A, empresa de grande porte, produtora de fogões a gás
liquefeito. (LIMA, 1999, p. 126)
Pela primeira vez na história o setor secundário superava o terciário campinense, empregado
mais 16. 300 pessoas no início da década de 60 do século XX. A industrialização era vista como a
panaceia para os problemas sociais da cidade. Nesse sentido, podemos citar o discurso de Newton
Rique, empresário e político campinense, onde chegou a expor que:
A industrialização de Campina Grande vem sendo o desejo dominante no
seio da classe produtora e chegou às massas trabalhadoras sob a forma de
uma aspiração coletiva, capaz de solucionar com todo o cortejo de males que
ele acarreta. [...] Julgo que é chegado o momento de uma poderosa
intervenção do governo municipal para, dirigir, fomentar e disciplinar um
maior surto desenvolvimentista, através da industrialização em maior escala
no município. (LIMA, 1999, p. 125)
Considerando, então, que a política desenvolvimentista de concessões e incentivos fiscais da
SUDENE garantiu ainda o amadurecimento do setor calçadista da Paraíba que teve participação
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discreta na economia local nas primeiras décadas do século XX, modernizando o polo coureirocalçadista do Estado a partir da vinda de estabelecimentos de peso deslocados das regiões CentroSul para a Paraíba, como a BESA, a AZALEIA e a PARC, implantadas em Campina Grande, o que
transformou o município no maior distrito calçadista da Paraíba. Os anos 70 e 80 do século XX,
foram marcados pelo impressionante volume de empregos gerados pelo setor de calçados, mas, a
concentração técnica e econômica garantiu a indústria calçadista a sua afirmação, o seu “lugar ao
sol” como setor vetor de desenvolvimento na economia do Estado.
Diametralmente diferente do município de João Pessoa, no que tange a constituição de um
aglomerado de empresas de calçados possibilitada pela atração de empresas vindas de outras
regiões do país, em Campina Grande a indústria calçadista surgiu no início do século XX enquanto
indústria artesanal de beneficiamento e produção de artigos de couros possibilitada pelo comércio
do algodão, força propulsora da agropecuária beneficiada pela localização geográfica do município
como destaca Damião de Lima: “Campina Grande, localizada no interior do Estado da Paraíba,
destacou-se no cenário nordestino, desde sua a origem, como um importante entreposto comercial e
um elo entre o interior do Estado e a capital e também o estado de Pernambuco.” A indústria
calçadista campinense atingiu seu apogeu no período de 1937 a 1945 contando com mais de trinta
novas indústrias, fenômeno efêmero discutindo pelo professor de Economia da UFCG, Luiz
Gonzaga de Sousa: “Depois desta fase, como em todo ciclo econômico, muitas destas indústrias
faliram, inclusive Luiz Gomes Bezerra, o ‘Lula Gato Preto’, tendo em vista as peculiaridades da
economia da época provocaram crise”.
Neste fragmento acima, percebe-se que a crise foi superada pelo setor em meados dos anos
50 do século XX com a introdução do couro sintético que tornava o produto mais barato facilitando
sua comercialização no mercado local. Na história da formação do setor coureiro-calçadista da
Paraíba tanto os pequenos grupos formados por pequenos produtores pioneiros como os Mottas que
durante a Segunda Guerra Mundial tinham a sua produção total de fabricação de botas vendida para
o Exército Brasileiro, como também um grupo pequeno de grandes empresas vindas do Centro-Sul
do país, a partir da criação da SUDENE, estiveram presentes na construção do setor calçadista
paraibano. Mas, afinal podemos fazer uma outra indagação: Em que consiste a origem e a evolução
da indústria de curtume na Paraíba? Primeiramente Egidio Luiz Furlanetto dizia o seguinte: “O
período [...] entre o pós-guerra até o final dos anos 50, houve [...] um desenvolvimento do setor
coureiro no Estado da Paraíba com aumento das exportações, com Campina Grande constituindo-se
o principal polo coureiro do Estado [...] do Nordeste.” (FURLANETTO, 2004, p. 4).
Percebe-se por essa leitura que o período compreendido entre o pós-guerra segunda guerra
mundial até o final dos anos 50 do século XX, houve uma comunicação em torno do
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desenvolvimento econômico do setor coureiro no Estado da Paraíba das exportações, com Campina
Grande constituindo-se, assim o principal polo coureiro do Estado, sendo que é um dos mais
importantes do Estado do Nordeste da paraíba. Em consequência disto, este crescimento tenha se
restringindo durante a década dos anos 70 do século XX, mas em Campina Grande continuava
sendo relevante e importância para o setor, basta dizer que em 1973 do século XX, quando o
Núcleo de Assistência Industrial da Paraíba [NAI/PB] - célula inicial do que viria a ser o atual
SEBRAE, ao realizar um diagnóstico da Indústria de Couros e Calçados no estado da Paraíba,
identificou que dos cinco curtumes industriais do Estado quatro encontravam-se em Campina
Grande e, somente um em João Pessoa. Campina Grande e, por consequência o estado, viu se
restringir a sua importância como importante polo coureiro a partir dos anos 80 do século XX,
efeito este que fez com que entrasse no século XXI com reduzido grau de importância no setor,
mantendo em atividade somente algumas pequenas e médias unidades que operam muito mais em
função de um outro segmento, o qual, diga-se de passagem, vem crescendo de importância dentro
do arranjo, o da indústria de equipamentos de proteção individual, tais como luvas, botas, aventais e
perneiras, todos produzidos a partir do subproduto do couro bovino denominado de “raspa” .
Atualmente a indústria paraibana de curtumes foi uma pujante indústria foi se
transformando, aos poucos, numa atividade associada à produção de equipamentos de proteção
individual [EPI’s], pois nenhuma daquelas importantes unidades, existentes na década de 80,
encontram-se em atividade. Atualmente, não existe nenhuma unidade significativa que processe
couros da forma completa em Campina Grande, isto é, que adquira peles “in natura” ou conservadas
e as processe. Todas as quatro indústrias que podem ser caracterizadas como indústrias de curtumes,
nasceram muito mais para servir de suporte à fabricação de equipamentos de proteção individual
[EPI’s], indústria que surgiu em função das iniciativas pioneiras de uma importante empresa, hoje
desativada, que produzia uma gama expressiva de EPI’s e das “janelas de oportunidades” que se
abriram em função da desativação das indústrias tradicionais de curtume, o que acabou
disponibilizando equipamentos e mão-de-obra especializada. Vale ressaltar outro ponto importante
que é sobre a tecelagem. Maria da Conceição Gomes Valle, argumentou que para Daniel (2004) o
processo para obtenção de artigos prontos torna-se difícil devido à pequena quantidade de fibra
produzida. A fiação de toda a produção, atualmente:
Em Campina Grande, Paraíba, é realizada a tecelagem em teares manuais
pela Entre fios. Além do algodão ser naturalmente colorido, a fibra do Brasil
segundo o presidente da Embrapa, tem constituição orgânica por todo
processo ser limpo, apresentando propriedades similares às do algodão
branco. O cultivo do algodão colorido traz, benefícios ecológicos, visto que a
sua coloração é natural, dispensando desta forma o uso de produtos químicos
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para o tingimento, o que irá contribuir significativamente com a diminuição
do nível de poluição dos rios. Além disso, apresenta também vantagens
econômicas e sociais, pois, seu cultivo mantém os agricultores no campo,
oferecendo-lhes uma oportunidade de renovação da produção algodoeira.
Contudo, é importante salientar que além das vantagens citadas acima, o
algodão possui uma alta capacidade de absorção, o que faz com que a fibra
seja confortável, e mais adequada ao clima quente do Brasil. (VALLE, 2004,
p. 62)
É importante destacar nessa passagem que os tecelões paraibanos colocam em suas redes,
mantas, tapetes e almofadas, uma mistura viva de cores e formas que traduzem claramente a
formação "misturada" que o povo brasileiro possui, sobretudo o povo nordestino. É importante,
entretanto, que do Litoral ao Sertão temos comunidades trabalhando e produzindo aquilo que foi
identificado como maior expansão do artesanato paraibano, a rede de dormir. No entanto, existem
as cidades de Gurinhém, Campina Grande, Boqueirão, São Bento e Aparecida como principais
produtoras. Como se vê, é certo que atualmente, a Paraíba também desponta como único produtor
de produtos elaborados com a técnica da tecelagem utilizando o fio do algodão colorido,
ecologicamente correto e que não é tingido quimicamente, ele já brotou com a cor que vai ser fiado.
Considerações finais
Concluímos que, se por um lado constata-se a quase extinção de um importante setor da
economia, por outro se vislumbra o nascimento de uma nova indústria no estado da Paraíba – a
indústria de EPI’s, a qual poderá fazer com que o setor consiga “renascer das cinzas”. Podemos
concluir que os resultados obtidos, analisar-se-á, as proposições consideradas ao determinado longo
deste estudo, bem como a circulação da trajetória indústria de curtumes da Paraíba. É evidente que a
partir dos anos 80 do século XX, as políticas de atração de grandes empresas continuaram sendo
praticadas pelo governo no Estado. Assim, foram instaladas no município de Campina Grande uma
fábrica da SÃO PAULO ALPARGATAS S/A e duas na cidade de João Pessoa, sendo a empresa
paulista contemplada na década de 90 do século XX com incentivos ofertados pelo governo para
expandir as suas atividades para outros municípios do Estado. Ainda nos anos 90 verificou-se a
afirmação da indústria de confecções da Paraíba, setor formado na década de 80 por pequenas e
médias empresas e que ganhou novo fôlego com a instalação da unidade de produção da
COTEMINAS S.A, que em Campina Grande propiciou a retomada da condição hegemônica de
maior produtora de fios do Estado.
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O setor industrial da Paraíba vem realizando particularmente no início do novo milênio, um
significativo esforço para adaptar-se às transformações que desafiam os paradigmas básicos de
produção, com novas tecnologias e modelos operacionais de gestão em um ritmo avassalador que
levaram a indústria a repensar não somente como o “fazer” diante de uma série de metamorfoses
globais como também “o que fazer”. Outra perspectiva mais importante é modelo de
desenvolvimento do estado da Paraíba, proposto pela Federação das Indústrias [FIEP], baseado no
aproveitamento das potencialidades e vocações regionais, leva em consideração o conhecimento
como variável chave para que se possa alimentar um processo continuo de geração da inovação
tecnológica. É importante ressaltar que diante desse cenário o setor industrial ressente-se da
insuficiência e da inadequação da oferta de formação em áreas tecnológicas focadas em setores
produtivos. As empresas estão preocupadas com a formação profissional que possa atender as
estratégias do negócio.
Esse é o contexto no qual emergiu, em 2003 do século XXI na Universidade Corporativa da
Indústria da Paraíba, com foco central na formação de profissionais com o perfil de competências
demandadas pelo setor produtivo. Desta forma, a Universidade Corporativa da Indústria da Paraíba
[UCIP] é associação civil de direito privado, sem fins lucrativos, instituída e mantida pelo Sistema
Federação das Indústrias do Estado da Paraíba (FIEP, SESI, SENAI e IEL). Portanto, a UCIP é
provedora de conhecimentos, com vistas ao fortalecimento da indústria paraibana, atuando de forma
inovadora com um novo conceito de universidade corporativa multisetorial, fundamentada no
desenvolvimento de competências. Assim, a UCIP brotou alinhada com os conceitos de educação
corporativa
setorial,
tendo
como
propósito
promover
o
desenvolvimento,
difusão
e
compartilhamento de conhecimento por meio de programas de educação continuada, com cursos em
todos os níveis e áreas de especialidade das indústrias vinculadas aos sindicatos.
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Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX
Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque
Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológico - NEPA
Resumo: Este artigo se situa num período em que graduais mudanças afetavam o padrão de vida das elites produtoras
de açúcar, que tinham nas terras e nos escravos o símbolo de sua nobreza. Ao longo do século XIX, no entanto, essa
dita nobreza sofreu um duro golpe e começou a perder espaço, contudo ainda lutavam para manter sua imagem, poder e
influência. Por meio da análise arqueológica, que tem nos artefatos os elementos para pensar socialmente, juntamente
com o conceito de habitus, necessário para refletir a respeito do desenvolvimento das maneiras de pensar e agir, buscase compreender a forma com que se modificaram certos comportamentos e costumes cotidianos dos donos de engenho
do norte de Alagoas.
Palavras-chave: Artefatos, Engenho, Habitus.
Abstract: This article is in a period in which gradual changes affected the living standards of Alagoas elites, in what
slaves and lands were the symbol of their nobility. Throughout the nineteenth century, however, this so-called nobility
suffered a blow and started to loose space, yet still struggled to maintain their image, power and influence. Through
archaeological analysis, wherein artifacts are the elements to think socially, along with the concept of habitus, needful
to reflect on the development of ways of thinking and acting, seeks to understand the way that certain behaviors and
everyday customs of the plantation owners from the north of Alagoas has changed.
Key words: Artifacts, Mill, Habitus
Arqueologia e história: uma relação de intimidade
Jacques Le Goff, em História e Memória, afirma que o documento é como um monumento,
é o resultado dos esforços das sociedades históricas para impor ao futuro uma determinada visão de
si, sendo estão imposição voluntária ou involuntária (Le Goff, 1990:548), sua posição, busca se
distanciar de todo e qualquer tipo de noção positivista de uma aparente neutralidade. Segundo Le
Goff, o documento não é inócuo, é o resultado de uma ação, de uma montagem, produzido em um
determinado contexto, com juízos dos mais variáveis possíveis.
Não obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos não
aparecem aqui e ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua
presença ou a sua ausência nos fundos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno,
dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e aos problemas
postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios técnicos, tocam, eles
próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é
nada menos do que a passagem da recordação através das gerações. (Marc Bloch, 1941-42,
p.29-30, apud Jacques Le Goff, p. 544, 1990)
O historiador é o responsável pela construção do conhecimento histórico, e a interpretação
destas fontes serão certamente influenciadas por suas posições, sejam elas teóricas, metodológicas,
políticas, econômicas ou culturais. Uma vez realizado este trabalho, aquilo que está posto aparenta
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assumir a forma de passado, e faz desaparecer todo o laborioso processo de desenvolvimento e
construção historiográfica, parecido com o processo de produção de mercadoria, onde os meios
pelos quais são criadas fazem desaparecer o caráter social do trabalho dos homens; de certa forma,
algo análogo acontece com a operação historiográfica, que depois de realizada, apaga todos os
procedimentos anteriores que foram necessários para chegar ao resultado final da produção.
Outra problemática bastante discutida por pensadores como Marc Bloch e Jacques Le Goff
se refere a noção de documento, do que poderia ser tido como fonte de análise historiográfica, o
foco sai apenas do documento escrito em si, com o intuito de se afastar da noção elitizada do “fazer
história” como algo de exclusividade da elite letrada, a fim de expandir as fontes históricas. Há
então, como pontua Muniz (1999:34) uma desierarquização do documento, este podendo ser um
filme, uma poesia, uma música ou um artigo de jornal; no âmbito da história, todos são discursos
que produzem realidade e que são ao mesmo tempo produzidos em determinada condição histórica.
“Fazer história”, para Certeau (1982:77) é uma prática, muito antes de uma interpretação,
esta ação é mediatizada pelo uso de diversas técnicas, as quais possibilitam a construção do corpo
interpretativo da história, contudo essas técnicas são relegadas em segundo plano, e são colocadas
em uma posição de subordinação a história, são classificadas como “ciências auxiliares”, sejam elas
a paleografia, a diplomática, a numismática, a informática, o folclorismo, ou ainda no caso em
questão, a arqueologia; onde as opiniões divergem se ela seria ou não um apêndice da história,
contudo, como afirma Jacques Le Goff:
“O primeiro diz respeito a arqueologia. O meu problema não é saber se ela é uma
ciência auxiliar da história ou uma ciência independente. Apenas faço notar como o seu
desenvolvimento renovou a história. Mal deu seus primeiros passos, no século XVIII,
ganhou logo o vasto campo da Pré-história e da Proto-história e renovou a história
antiga”. (Le Goff, 1990:108)
O ato de desierarquizar os documentos, abre espaço para uma gama bastante vasta de fontes
históricas, é nesse contexto que se abre a possibilidade de exploração de outros tipos de fontes de
interpretação do passado que possam atuar, em pé de igualdade com a documentação escrita. Assim
como os documentos escritos são interpretados, esses outros tipos de fonte devem também ser
examinadas por via de um olhar crítico. A operação historiográfica procura se apossar de elementos
“naturais”, transformando-os num ambiente cultural, pois de acordo com Michel de Certeau:
“De resíduos de papeis, de legumes, até mesmo das geleiras das “neves eternas”, o
historiador faz outra coisa: faz deles história. Artificializa a natureza. Participa do
trabalho que transforma a natureza em ambiente, e assim modifica a natureza do
homem. Suas técnicas o situam, precisamente, nesta articulação. Colocando-o ao nível
desta prática, não mais se encontra a dicotomia que opõe o natural ao social, mas a
conexão entre uma socialização da natureza e uma “naturalização” (ou materialização)
das relações sociais”. (Michel de Certeau, 1982, p. 78)
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Ainda segundo Certeau (1982:79), o historiador é capaz de traduzir uma linguagem social
para outra, transformando fenômenos sociais em objetos da história, está habilitado ainda, por meio
de uma articulação entre natureza e cultura, a transformar os componentes dos campos naturais em
elementos culturais, na medida em que é comum que certos objetos que fazem parte da vida de
alguém, por vezes assumam certo significado que vão além da utilidade objetiva.
A articulação entre natureza e cultura, não parte de um ponto de vista explicativo a partir de
leis, a forma de proceder não é a mesma das ciências da natureza, pois se assim fosse,
impossibilitaria uma interpretação que procura observar a vida enquanto processo social e afetivo.
Nesse sentido, o leque de possibilidades de fontes de interpretação histórica aumenta de
maneira bastante significativa. A cultura material, enquanto fonte de interpretação, enquanto
documento, se apresenta como algo de potencial uso na interpretação da história.
Cultura material
Em Domínios da História (1997), Mary del Priore, sustenta que para que o historiador seja
capaz de estudar e explicar o cotidiano das populações, seria necessário a união com os estudos
arqueológicos da cultura material, valorizando os menores e mais simples utensílios domésticos, a
mobília, instrumentos de trabalho, restos de suas dietas alimentares, ou quaisquer outros tipos de
objetos que fossem de uso rotineiro.
A arqueologia então tem como foco principal os estudos a respeito da materialidade deixada
pelo homem ao longo do tempo, privilegiando ainda o ambiente em que se localizam esses restos
materiais, pois o contexto em que se encontram esses materiais é de suma importância, algo que não
pode ser dissociado do estudo arqueológico, volta também seu olhar para a arquitetura, os
monumentos, ou todo e qualquer remanescente que tenha sofrido ação do homem; todo esse
conjunto faz parte da cultura material, “os restos arqueológicos são o produto de feitos históricosociais do passado (...) são testemunhos” (Boschin, 1991: 81, apud Reis, 2010:81). No entanto, não
é uma tarefa simples trabalhar a cultura material, pois:
Uma das categorias da teoria arqueológica que talvez provoque as tais subversão e
ambiguidades apontadas é a ‘cultura material’. Aqui sim há polissemia de acordo com a
posição teórica do arqueólogo. Cultura material: reflete uma sociedade, dissimula efeitos de
poder social, pode ser lida e transformada em texto, são os vestígios materiais do passado, é
a agente ativa da vida humana, está significada, simbolizada carregada e imbuída de
emoções, de estética, de relações socioculturais-crenças, etc. (Reis, José Alberione, 2010, p.
82)
Alguns arqueólogos da década de 80 começaram a enfatizar o caráter simbólico da cultura
material, faziam frente a ideia neopositivista de que os artefatos eram simples formas de adaptação
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ao meio, acreditavam que esses fragmentos de atividade humana podiam também exprimir
significados, logo, as formas, decorações, pinturas, poderiam ultrapassar o quesito de utilidade,
dando lugar a uma relação mais íntima entre sujeito e objeto. (Johnson, 2000:133)
A interpretação arqueológica parte do pressuposto que a cultura material enfatiza como os
objetos aparentemente inanimados, juntamente com o ambiente, agem em conjunto sobre os
indivíduos numa relação dialética, mudando então o foco de antigas perspectivas mecanicistas da
arqueologia, numa ótica diferente daquela que tem o sujeito como produtor e possuidor do objeto,
que o usa segundo sua vontade; para a concepção do objeto como atuante, formador, como algo que
não é simplesmente coisa com função prática. (Woodward, 2007:3)
A cultura material, é vista como relevante para o conhecimento histórico na medida que
estes objetos são resultado das atividades realizadas pelos indivíduos. Diariamente pessoas
convivem, se relacionam e criam laços umas com as outras; esses elos, são criados através das ações
diárias como: trabalho, consumo e lazer, por exemplo. Essas atividades, são em sua maioria,
mediadas por objetos de uso habitual, sejam eles quais forem. Sendo estes objetos atuantes nas
relações desenvolvidas pelos indivíduos cotidianamente, num universo que é tanto de palavras,
quanto de coisas, é possível considerar que possuem valor histórico (Meneses, 1997:2).
Essas “coisas velhas” de fato geram essa controvérsia na mente dos indivíduos, são objetos
que escapam a uma categoria funcional ou utilitária, nos dias de hoje não fazemos uso de cerâmicas
indígenas ou de faianças portuguesas, são consideradas ultrapassadas para o modo de vida atual,
dessa maneira, surge a questão do porquê estudar tal coisa, qual a relevância do maior dos
monumentos históricos, ao menor dos fragmentos de cerâmica?
A modernidade não compreende o valor desses remanescentes, vivemos no mundo do
capital, onde se produzem mercadorias que atendem quesitos práticos, necessidades, e que tem
funções bastante específicas, sendo assim, não é de se espantar que esses objetos deslocados do
tempo e que não atendem a esses requisitos; causem estranheza a muitas pessoas. Contudo, esses
materiais não são carentes de funcionalidade, eles servem precisamente para significar o tempo,
resultados das atividades dos homens, indícios culturais (Baudrillard, 2009:82). O que se pretende
tratar aqui, mesmo que de maneira sutil, é como esses objetos, que fizeram parte do cotidiano de um
grupo, tornaram-se influentes em seu meio, e a maneira que as relações são construídas através de
simples práticas rotineiras. Para tentar compreender esse universo onde os objetos são ativos nas
relações sociais, o conceito de habitus é para isso, bastante útil.
Habitus
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Bourdieu enquanto sociólogo, trouxe grande contribuição para a compreensão crítica da
realidade social, reunindo e aprimorando ideias de outros grandes teóricos como Marx, Weber,
Durkheim e Lévi-Strauss. Para entender um pouco seu raciocínio, é necessário compreender o
conceito de habitus.
Há de se esclarecer previamente, duas características do conceito de habitus, primeiro
quando se tratando de algo já estruturado apresenta seus executores como passivos, a cultura por
exemplo, quando vista como um conjunto caracterizador de determinadas condutas, crenças e
práticas, assume essa característica de algo que já é dado, já está posto, é então instrumento
comunicador que cria um consenso quanto a visão de mundo; é também estruturante, pois os
indivíduos estão impregnados dessa estrutura e a partir disso se tornam ativos reprodutores dessa
formação.
Seguindo a tradição marxista, esta realidade é constituída através de um processo de
coerção, através de ideologias que servem a classe dominante para legitimar e estabelecer uma
ordem, e por meio desta, se estabelecem hierarquias para distinguir aqueles que estão acima e os
que se encontram abaixo. Sua comunicação está estreitamente ligada as formas de poder que agem
para assegurar a dominação de uma classe sobre outra, por meio da violência simbólica,
contribuindo para a domesticação dos dominados. (Bourdieu, 1992:11)
A análise da formação de condutas e das representações é o cerne dos interesses
bourdieusianos, as estruturas são responsáveis e dão sentido as ações individuais, são determinadas
no tempo e no espaço, historicamente construídas, sendo assim não são um tipo de espírito
universal, mas estão sujeitas a mudanças.
O habitus põe em evidência as capacidades criadoras, ativas e inventivas, dos
indivíduos. (...) o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido, e
também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o
habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural – mas sim, o de um
agente em ação (...) (Bourdieu, 1992:61)
A noção de habitus orienta o funcionamento do corpo socializado, a sociologia de Bourdieu
é uma tentativa de desvendar de que maneira a sociedade consegue reproduzir nos indivíduos todas
as suas estruturas, ela age e se reproduz de maneira inconscientes, sua atuação embora não
determinada, é condicionada por esse habitus.
Ao conceituar habitus, Bourdieu o difere da palavra hábito, a qual considera repetitiva e
mecânica, e mais reprodutivo que reprodutor, essa distinção deixa clara sua intenção de não fadar as
práticas individuais a meros processos automáticos, o habitus é potencialmente um propulsor de
ações com base em nossas condições sociais, contudo a forma com que ele se reproduz está sujeita a
transformações imprevisíveis. (Bourdieu, 2003:140)
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A reprodução é outra característica muito presente em Bourdieu, é através desse processo
que as estruturas de valores da sociedade tendem a renovar constantemente seu habitus, servindo
como forma de manutenção dos mecanismos da sociedade, são exterioridades que são
continuamente interiorizadas na trajetória social dos indivíduos.
A estrutura de poder e de dominação que se reproduz sem que o indivíduo tenha
consciência, é algo investido no indivíduo e por isso não conscientes, para que ele possa assim
ativamente, engendrar as práticas que reproduzem tal estrutura de dominação e de hierarquias, faz
surgir então aquilo que parece “normal” ou “natural”, como formas de conceber a realidade social.
A dimensão simbólica, é necessariamente política, capaz de construir a realidade,
instrumento de integração social e que contribui para a reprodução social, de certas práticas e
crenças, organizando a lógica, a ética e a moral, age dessa forma tanto no corpo, quanto na “alma”.
Essa concepção da realidade social, busca ir além de objetivismos ou subjetivismo,
colocando-se num projeto teórico classificado como “construtivismo estruturalista”, que põe as
estruturas objetivas e subjetivas numa relação dialética:
Os que ocupam posições dominadas no espaço social, estão também em posições
dominadas no campo de produção simbólica e não se vê de onde lhes poderiam vir os
instrumentos de produção simbólica de que necessitassem para exprimirem o seu
próprio ponto de vista sobre o social, se a lógica própria do campo de produção cultural
e os interesses específicos que aí se geram não produzisse o efeito de predispor uma
fração dos profissionais envolvidos neste campo a oferecer aos dominados, na base de
uma homologia de posição, os instrumentos de ruptura com as representações que se
geram na cumplicidade imediata das estruturas sociais e das estruturas mentais e que
tendem a garantir a reprodução continuada da distribuição do capital simbólico.
(Bourdieu, 1992:152)
Esse espaço social, constitui outro conceito fundamental de Bourdieu, o campo, o lugar onde
o poder simbólico é exercido, através do choque de interesses, visando legitimar posições, o campo
é onde empiricamente se desenrola o habitus que é previamente estabelecido, é o local de
socialização em que os agentes lutam entre si para validar uma representação. É multidimensional,
Bourdieu critica a abordagem marxista, para ele, sua visão estritamente econômica para explicar as
diferenças do mundo social baseada apenas no campo econômico é bastante limitada, enxergando a
posição social como resultante apenas da posição em relação a produção econômica, ignorando com
isso as posições ocupadas no diversos campos e subcampos, sobretudo nas relações de produção e
reprodução cultural. (Bourdieu, 1992:153)
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O habitus é lei22¹ imanente, depositada em cada agente, condição não somente da
concentração das práticas, mas das práticas de concentração, há um consenso entre os que compõem
mesma classe, um código comum (Bourdieu, 2003:71), essa concordância faz funcionar o sistema
das práticas do campo, onde há um reconhecimento que faz com que os agentes empreguem ações
automáticas em prol de um sistema objetivo, onde as atividades cotidianas parecem “sensatas” ou
“razoáveis”, em que os indivíduos contribuem para reproduzi-las, quer ele deseje ou não.
Tal imanência do habitus pode nos levar a várias reflexões, chamando atenção
primeiramente a sua força de imposição, cujo termo “violência simbólica” mencionado
anteriormente, é utilizado por Bourdieu como o mediador entre a interiorização e exteriorização,
consciência e inconsciência; seria um tipo de dominação mais suave, ou que de tão sorrateira,
parece invisível. É algo que toca no sistema de percepção, que à primeira vista parece inocente, mas
que encobre seu forte poder coercitivo, em A dominação masculina (2012) Bourdieu fala a respeito
da maneira como estão instituídas em todos os corpos os mais diversos tipos de “naturalização”, a
começar pela divisão dos sexos, esta que parece estar na “ordem das coisas”, a oposição entre
masculino e feminino parece estender-se para além das questões de gênero, distinções como:
alto/baixo, em cima/ abaixo, subir/descer, fora (público)/dentro (privado).
O paradoxo está no fato de que são as diferenças visíveis entre o corpo feminino e o corpo
masculino que, sendo percebidas e construídas segundo esquemas práticos da visão
androcêntrica, tornam-se o penhor mais perfeitamente indiscutível de significações e
valores que estão de acordo com os princípios desta visão. (Bourdieu, 2012:32)
A força da ordem masculina não carece de justificação, “o mundo social constrói o corpo
como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão sexualizantes” (Bourdieu,
2012:18). As diferenças biológicas e mais especificamente a diferença anatômica dos sexos são
utilizadas como pressuposto em favor de um “natural domínio masculino”, atuando quase como
uma regra geral, está estabelecido e é reproduzido, e daí o porquê de ser estrutura estruturada e
estruturante. Esse tipo de violência simbólica se manifesta nas coisas mais triviais do cotidiano,
Bourdieu toca bastante na questão do feminino e masculino, porém essa violência que não é física,
mas nem por isso menos danosa, é evidenciada em outros âmbitos como o cultural, étnico, religioso
e etc.
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produtos da
dominação, ou em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão
estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da dominação que lhes é imposta,
1 A “lei” é para Bourdieu um termo extremamente perigoso de se tratar, que tende a se naturalizar, que defende a
hierarquia de dominação, e que se perpetua enquanto útil àqueles a quem serve, sendo tarefa da sociologia esfacelar tais
leis. (Boudieu, 2003:50)
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seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão.
(Bourdieu, 2012:22)
Ao tratar de dominação simbólica, Bourdieu não pretende cair em idealismos, ao demonstrar
as capacidades opressivas da violência simbólica, ele não o faz em detrimento da violência física, o
que tenta demonstrar é de que maneira ela pode atuar juntamente com a força bruta para impor
domínio, pois o reconhecimento da submissão supõe sempre um ato de conhecimento (Bourdieu,
2012:53)
Eu estava tão ciente, desde o início do inquérito, de que o efeito de legitimidade, que
desempenha um papel tão grande em matéria de linguagem, fazia com que os membros das
classes populares interrogados sobre sua cultura tendessem consciente ou
inconscientemente, em situação de inquérito, a selecionar o que lhes parecia mais em
conformidade com a imagem que tinham da cultura dominante, de tal maneira que não se
podia conseguir que dissessem simplesmente aquilo que deveras gostavam. (Bourdieu,
2003:135)
Bourdieu se interessava pela capacidade de alcance dessa dominação simbólica; por meio de
inquéritos verbais ele percebeu a tendência que os dominados têm de reproduzir os gostos dos
dominantes ou admirá-los, quando colocadas certas questões, pareciam responder mais aquilo que
acreditavam ser o que se desejava ouvir, reproduzindo as características que eram comuns as classes
dominantes, sempre com a imagem de “bom gosto”, “melhor”, “mais desenvolvido” ou “mais
culto”.
Essa reprodução presente em Bourdieu é alvo de duras críticas por parte de seus opositores,
sendo por muitos identificado como determinista e reprodutivista, ele no entanto rebate tal
afirmação argumentando que por vezes há uma confusão entre duas coisas distintas: uma seria a
necessidade objetiva dos corpos e a outra a necessidade subjetiva, aquilo que se pensa ser
necessário, ao passo que conhecer a necessidade e sua razão, representa um progresso na liberdade
possível, e é nesse sentido que para Bourdieu a sociologia se apresenta como arma de reflexão no
conhecimento das necessidades, e por consequência, no avanço da liberdade possível (Bourdieu,
2003:49)
Apesar da tendência dos indivíduos de reproduzirem seu habitus como um propulsor de
ações, a relação entre estruturas objetivas e subjetivas faz com que as orientações sociais sejam
concretamente moldadas para determinados fins como forma de se adaptar a contextos históricos
específicos “em que os atores são submetidos a efeitos de histerese23 e forçados a sair, por assim
23
Trata-se de um desarranjo entre condições práticas e incorporações estruturadas, sendo estas, não mais adequadas
como resposta a circunstâncias objetivas.
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dizer, do ‘piloto automático’” (Peters, 2013:9), e que os colocaria num movimento de reflexão
consciente dessas disposições.
Por meio da noção de habitus, é possível discutir o processo de formação e transformação
das vivencias em terras alagoanas durante o século XIX.
A figura do senhor de engenho e o banguê
Numa relação com o princípio das práticas, procurando compreender as metamorfoses
ocorridas em território nacional durante século XIX, percebe-se mudanças que navegam na mesma
corrente que iniciada no continente europeu, num longo processo de transformações estruturais.
A distinção comportamental sempre agradou aqueles que fazem ou fizeram parte das elites,
apregoando normas de conduta que os colocam em um pedestal bem acima das classes inferiores.
Essa diferenciação tem sua gênese nas práticas das aristocracias, onde a burguesia tentava
incessantemente assumir padrões semelhantes ao dessa camada nobre, criando uma competição,
uma concorrência incessante para se colocar em evidência, esse é segundo Norbert Elias, o principal
motor do processo civilizador, um jogo constante para aumentar as sofisticações criando assim uma
discrepância entre os detentores de certos status e aqueles que não o possuíam. (Elias, 2001:23)
Elias da ênfase as alterações pelas quais passavam a sociedade europeia. Com o crescente
avanço do poder econômico da burguesia, essa camada começou aos poucos a adquirir certos
espaços que anteriormente pertenciam apenas aos mais nobres e privilegiados.
Segundo Elias, a uma diferença capital no quesito de consumo entre a burguesia e aqueles
que habitam a corte, de acordo com ele o ethos24 social dos profissionais burgueses se pauta pela
norma de que seu consumo diário deve ser menor do que seus gastos, para que assim a renda
acumulada possa servir para investimentos futuros, de modo que seu êxito social e de sua família,
depende da estratégia de ganhos e despesas a longo prazo. Já nas sociedades em que prevalece o
consumo em função do status, o oposto se verifica, as despesas domésticas estão diretamente
ligadas a esfera social, em que o prestígio e a convivência em meio a determinado grupo são mais
importantes (Elias, 2001:86)
Nas sociedades pré-industriais, a riqueza mais respeita era aquela que não havia sido
conquistada pelo esforço, aquela pela qual não era preciso trabalhar, portanto uma riqueza
herdade. Não o trabalho em si, mas o trabalho com o objetivo de ganhar dinheiro, bem
como a própria posso do dinheiro bem recebido, ocupava os níveis mais baixos na escala de
24
De acordo com Bourdieu o ethos denota um sistema objetivo de dimensão ética, uma vez que nota-se que os
indivíduos podem ser capazes de resolver questões práticas sem a necessidade de uma posição pautada de normas éticas
estabelecida; essa noção é abarcada pelo conceito de habitus.
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valores das camadas superiores nas sociedades pré-industriais. Era o que ocorria com
ênfase especial na sociedade de corte mais influente do século XVII e XVIII: a francesa.
Ao assinalar que muitas famílias da nobless d’épée viviam do seu capital, Montesquieu
quer dizer, em primeira instância que elas vendiam terras, e talvez joias ou outros objetos
de valor herdados a fim de pagar dívidas. Seus rendimentos diminuíam, mas a coerção para
representar não lhes oferecia nenhuma possibilidade honrosa de limitar suas despesas.
Contraíam novas dívidas, vendiam mais terras, sua rende continuava a decrescer. Aumentála por meio de uma participação ativa em empreendimentos comerciais lucrativos era não
só proibido por lei, como também vergonhoso – do mesmo modo que limitar os gastos com
a casa ou com as ostentações (Elias, 2001:91)
Esse caráter de comportamento mais evidenciado nas sociedades pré-industriais, se verifica
também nas altas camadas das sociedades industriais, mesmo que em menores proporções, ainda
que o prestígio seja de grande relevância, quase não se afigura como aparelho de poder. Na
sociedade baseada no consumo de prestígio, a posse de um título de nobreza é muito mais valiosa
do que a acumulação de riquezas.
Desde os primórdios da colonização do Brasil era bastante comum o pedido de mercês a
coroa portuguesa como forma de retribuição pela prestação de algum serviço, é através disso que
começam a se constituir as primeiras elites senhoriais na América portuguesa, a chamada “nobreza
da terra”, que tinha na figura do proprietário de terras e de escravos, seu símbolo máximo.
Contudo a industrialização iniciada na Europa, em especial na Grã-Bretanha, logo se
expandiu também para o Brasil e com a Família Real em território nacional, experimentou-se maior
liberdade de comércio, o que anteriormente era bastante limitado a trocas com Portugal devido ao
pacto colonial.
Devido a isso, verificou-se que o poder econômico se concentrava cada vez mais nas mãos
de comerciantes, contudo Sheila de Castro Faria destaca que “a casa-grande e seu senhor
representavam na época, a aspiração, de podemos supor, quase todos os homens que vieram por
vários séculos para a Colônia” (Faria, 1998:48).
Diversos foram os motivos da vinda de diversos homens para a colônia, em geral a buscando
fazer fortuna nas terras que por muitos era vista como purgatório, outros ainda fugiam de
perseguições ou buscavam atender estratégias de família. A América Portuguesa era uma terra de
inúmeras possibilidades para os que desejavam se aventurar e que por vezes oferecia recompensas
para aqueles com capital necessário para investir, sendo o comércio uma das opções preferidas dos
recém chegados a Colônia. (Faria, 1998)
A área urbana era o local de atividade do comércio e onde viviam aqueles com profissões
manuais, como alfaiates, carpinteiros, sapateiros, médicos, comerciantes e toda a sorte de gente
comum, a vila tinha função comercial. Em oposição ao meio urbano, o meio rural era moradia dos
produtores de açúcar e objetivo dos que detinham poder aquisitivo suficiente para se tornarem
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donos de terra e de escravos, a vila era somente trajeto de passagem para esse objetivo principal,
onde a estabilidade estava ligada, pelo menos em teoria, aqueles que se enquadravam no modelo da
tradição patriarcal, que eram donos de engenho e de muitos escravos.
Embora a atividade comercial pudesse oferecer condições necessárias para estabilidade
econômica, ela carregava consigo uma chaga profundamente enraizada na sociedade, em que “este
desprezo tinha suas raízes na hierarquia medieval cristã, que colocava o mercador mais abaixo na
escala social dos que os praticantes de artes mecânicas: camponeses, caçadores, soldados,
marinheiros, cirurgiões, tecelões, ferreiros” (Boxer, 1981:303, apud Faria, 1998:176). O que
justifica o fato de mesmo sendo o comércio atividade bastante lucrativa, ser apenas o meio para se
chegar a um fim, o de se tornar senhor de engenho.
O casamento muitas vezes parecia uma alternativa muito eficaz e um meio de rápida
ascensão para o comerciante bem sucedido, e ainda mais fortuito para o senhor de engenho que
dispunha suas filhas ao casamento como uma maneira de assegurar crédito necessário para a
manutenção das fortunas rurais, o benefício era mútuo. Mediante análise de inventários de alguns
proprietários rurais da capitania de Paraíba do Sul no Rio de Janeiro, Faria (1998) constatou que a
maior parte destes, em algum momento de suas vidas, atuaram como comerciantes, e que foi através
disso que conseguiram transformar-se em proprietários rurais. É possível perceber ainda que em
meados do século XVIII os comerciantes que conseguiram, seja por casamento ou por acúmulo de
riquezas tornar-se senhores de engenho, gozaram durante certo tempo dos privilégios que
acompanhavam seu título, porém o mesmo não se verificou nas gerações que o sucederam, pois
seus filhos e netos muito dificilmente conseguiam manter o padrão econômico e acabavam pobres e
endividados. Esse fenômeno ainda que analisado em contexto regional, pode ser verificado também
em Alagoas e persiste até fins do XIX.
Além de ser dispendioso e economicamente inviável deixar de ser comerciante para se
tornar senhor de engenho, o século XIX trouxe um novo problema para estes, a mecanização a força
produtiva que obrigava a esses senhores se modernizarem para que pudessem continuar competindo
no mercado mundial do açúcar. Os engenhos a vapor tornaram o sistema banguê obsoleto,
produziam açúcar em maior quantidade, em menor custo e em menos tempo. Desse modo, para que
conseguissem se manter no topo da pirâmide social, os senhores de engenho necessitavam atualizar
o modo de fabrico do açúcar.
Foi então que mais arraigou o exclusivismo da cultura açucareira. O banguê sofria os seus
primeiros desencantos, mais agravados nos fins do século XIX com o aparecimento da
usina. O desenvolvimento técnico da produção criava dificuldades à vida do banguê – do
banguê que tinha na água, nos bois, nas bestas, nas “entrosas”, no trabalho escravo os seus
elementos fundamentais, os sustentáculos de sua vida. (Diégues Júnior, 206:121)
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De acordo com Manuel Diegues Júnior, data dos primeiros anos da segunda metade do
século XIX a introdução do engenho a vapor em Alagoas. Mesmo sendo no século XIX o período
de maior proliferação de engenhos banguês, com um total de 479, a cultura da cana que já não era
economicamente satisfatória, declina em vista da concorrência com o engenho a vapor.
Para que o engenho banguê conseguisse competir em pé de igualdade era necessário adotar
novas tecnologias, contudo isso demandava um alto investimento o qual muitos proprietários do
engenho não dispunham. Outro agravante para a situação crise, foi a suspensão do tráfico de
escravos por meio da Lei Eusébio de Queiroz em 1851, e a Lei do Ventre Livre em 1871, que
sufocaram ainda mais a vida do engenho banguê.
Os produtores banguês criticaram duramente o governo imperial pela falta de auxílios
destinados a seus engenhos, em face a concorrência com o engenho a vapor que eram obrigados a
enfrentar. Desse modo, o governo buscando atender a essas demandas, criou o projeto de engenhos
centrais que buscava aperfeiçoar a fabricação do açúcar, contudo houve certa resistência por parte
de alguns, e a falta de capital para investimento ainda era preocupação primária, os poucos que
buscaram aderir a máquina a vapor, fizeram isso com recursos próprios (Carvalho, 1988; Campos,
2001; Sant’anna, 1970, apud Barbosa, 2012).
Num contexto alagoano
Como afirmava Diegues Júnior, “a história dos engenhos de açúcar nas Alagoas, quase que
se confunde com a própria história do hoje Estado, antiga Capitania e Província”. A cultura do
açúcar foi amplamente desenvolvida em Alagoas, ela se entrelaçava com a cultura, com a vida
social, sem falar é claro de sua indispensável contribuição econômica.
O banguê era local onde se congregava a vida social, expressivo elemento da paisagem
social de Alagoas. Em torno do engenho que se constitui a família alagoana e é no senhor de
engenho que se centraliza a atividade social e política, que tinha na grande propriedade, na capela e
nas senzalas, elementos constitutivos do projeto colonizador.
Para compreender um pouco da história e do desenvolvimento dos engenhos em território
alagoano é necessário citar o nome do português Cristovão Lins, a quem é atribuído a fundação da
Vila de Porto Calvo, núcleo de irradiação do povoamento do território de Alagoas e local onde
estão situados os engenhos abordados nesse trabalho, bem como desbravamento de todo o norte do
Estado, que abrangia os municípios de Porto de Pedras, Camaragibe, Maragogi, Colônia Leopoldina
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e São Luiz do Quitunde (DIEGUES JÚNIOR, 2006:51). Devido a um projeto político militar com o
objetivo de defesa das terras da capitania de Pernambuco, Porto calvo foi um dos primeiros lugares
ocupados pelos portugueses (Babosa, 2012:48). A região era vista como ponto estratégico com rotas
de importante acesso a capitania (Lindoso, 2000:17 apud Barbosa, 2012, 48).
Os engenhos a serem trabalhados são resultado de estudos arqueológicos do projeto Rota da
Escravidão/Rota da Liberdade realizado nos anos de 2006 e 2007, que por meio de procedimentos e
metodologias da arqueologia, como: sondagem, prospecção visual e poço teste, tinha por objetivo
identificar locais de possível interesse arqueológico, em que os materiais obtidos pudessem dar
noções do cotidiano dos antigos habitantes da região.
Dentro do projeto Rota foram delimitados os sítios: Capiana, Capricho, Colinas, Crastos,
Cova da onça, Escurial, Estaleiro, Genipapo, Guaribas, Ilha da Guedes e São Gonçalo. Dentre eles,
serão objetivo de discussão os sítios: Capiana, Cova da onça e São Gonçalo, engenhos banguês; e
Estaleiro e Escurial, engenhos a vapor. Para compreender o contexto destes, os artefatos de louça
recolhidos se apresentam como de grande potencial elucidativo para os sítios aqui abordados.
Louças e análise
Como já mencionado anteriormente, desde de fins do século XVIII a Europa já começava a
sentir os sinais de uma gradual mudança provocada pela industrialização, essas transformações vão
aos poucos reconfigurando todo o modelo social e econômico dessa região, e como não poderia ser
diferente, esse processo se expande para além do continente europeu.
Essa expansão buscava mercados consumidores para os novos produtos industrializados,
fruto do desenvolvimento cada vez maior das forças capitalistas que buscava fincar suas raízes.
A chegada da família real portuguesa ao Brasil e a posterior abertura dos portos para
expansão do comércio, trouxe consigo uma série de mudanças no cotidiano desta terra. O meio
urbano começou a ser mais valorizado e buscava se diferenciar não só economicamente, mas
culturalmente, com maiores requintes, sempre espelhados na corte, e essa por sua vez seguia a
mesma corrente de mudanças vivenciadas na Europa.
Esse cenário se deu devido a produção em massa propiciada pela indústria dos itens que
anteriormente somente eram consumidos pelas classes superiores. O barateamento dessas peças fez
com que mais pessoas conseguissem adquiri-las, e entre esses produtos, está a louça.
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As louças foram privilegiadas nessa discussão não somente devido à sua onipresença nos
sítios domésticos brasileiros do século XIX, mas sobretudo por atuarem como suportes no
domínio das refeições, as quais constituíram-se em um dos campos mais propícios para
ritualização do universo burguês, ajudando, assim, a definir e redefinir posições sociais bem
como inclusão ou exclusão dentro de um determinado grupo (Lima, 1999:209; Lucas, 1994;
Wall, 1994; apud Symanski,2002)
No início do século XIX, o Brasil já começava a se tornar um mercado consumidor bastante
atrativo para diversos produtos industrializados, numa tentativa de emular as elites europeias, um
certo padrão de consumo e comportamento começa a se configurar nas famílias brasileiras mais
abastadas, que ao se identificar com um modo de vida mais civilizado, cosmopolita e burguês
europeu, busca se distinguir dos demais.
Um exemplo do estabelecimento dessas mudanças que visavam estabelecer um padrão de
civilidade pode ser visto no livro The Habits of Good Society, em que são enumeradas diversas
maneiras de como usar o garfo e faca, como assoar o nariz, como sentar à mesa, em resumo, uma
lista bastante extensa, que deveria ser seguida à risca, para afugentar a “barbárie” (Elias, 2011:127)
Dessa maneira, a exuberância dos jantares e festas da aristocracia alagoana além tentar
tornar visível seu poder e sua aparente riqueza refletida em sua mobília, procuravam também,
demonstrar sua proximidade com os altos padrões estabelecidos na Europa, as louças nesse
contexto, transparecem certamente poder econômico e social, mas também o alto nível de seus
costumes.
A escala proposta por Miller (1980 apud Barbosa, 2012), estabelece uma classificação das
louças de acordo com seu valor econômico, onde as peças de cor branca e sem decoração eram as
mais baratas, logo depois as de decoração simples e com pouca perícia, as louças pintadas a mão,
em sua maioria com decorações floridas, geométricas ou paisagísticas e por fim viriam as mais
caras, decalcadas na técnica de transfer printing.
(Figura 1: louça
pintada a mão. Foto: Rute Barbosa) (Figura 2: louça transfer printing. Foto: Rute Barbosa)
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Os resultados obtidos através da análise do material distribuem as louças dos engenhos do
Projeto Rota da seguinte maneira:
Engenhos
Branca
Pintada à Mão
Transfer-Print
Capiana
16
35
47
Estaleiro
25
29
13
Escurial
57
64
11
São Gonçalo
137
341
236
Cova da Onça
53
60
46
Pela quantidade de artefatos de louça coletado em cada um dos engenhos e através da
análise desse material, podemos perceber que foram encontradas louças do padrão decorativo
transfer printing, as mais caras, nos engenhos que ainda faziam uso do sistema banguê, Capiana,
Cova da Onça e São Gonçalo; o oposto se verifica nos engenhos a vapor, Estaleiro e Escurial, onde
esses artefatos aparecem em menor quantidade.
Mesmo numa conjuntura de crise do sistema banguê, é em certa medida curioso
encontrarmos as peças mais caras em maior quantidade nestes engenhos, do que aqueles que
acompanhavam o desenvolvimento da indústria a vapor. Num diálogo entre os materiais coletados e
praxiologia estrutural de Bourdieu, é possível estabelecer uma discussão a respeito das
transformações ocorridas no século XIX, que modificam as formas de comportamento da
aristocracia alagoana.
Considerações Finais
Como apresentado, o número de fragmentos de louças transfer printing, as mais caras,
foram encontrados em maior número nos engenhos que não foram capazes de se modernizar, já
aqueles que aderiram ao sistema a vapor, foi constatado uma frequência menor desse tipo de
material.
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A partir desse material cerâmico podemos perceber a estrutura que permeava na sociedade
alagoana do século XIX. Rute Barbosa (2012), propõe pensar a utilização dessas louças como
atividade estratégica dos senhores de engenho para manter seu prestígio social, que estava em queda
vertiginosa devido à crise do sistema banguê.
Os pressupostos teóricos de Bourdieu oferecem ferramentas importantes na interpretação
desse contexto. Podemos pensar o consumo dessas louças na ótica de um mercado simbólico, em
que das mesmas maneiras em que no mercado econômico também há uma relação de forças, há
conflito. Os produtores de açúcar estavam não só em concorrência objetiva pelo comércio de
açúcar, mas também em busca de cada vez mais títulos, mais honras que pudessem elevar seu
prestígio. As imposições desse mercado são violentas, exercem um efeito de censura aos que não
estão aptos a disputa.
O sistema banguê em gradativa derrocada, que tinha na figura forte do senhor de engenho,
chefe de sua casa, de sua família, de sua esposa e filhos, detentor de vários escravos, e de vastas
propriedades de terra, era incapaz de acompanhar a produção açúcar dos engenhos a vapor. Porém
mesmo assim, ainda em meados do século XIX, muitos desejavam se tornar donos de engenhos
banguês, o prestígio que possuíam os donos dessas propriedades vinha acompanhado de um habitus
“superior”.
Ser dono do engenho não era suficiente, era preciso exercer essa função por meio de certos
gostos e de algumas práticas e “para que haja gostos, é necessário que haja bens classificados, de
‘bom’ ou de ‘mau’ gosto, ‘distintos’ ou ‘vulgares’, classificados e no mesmo lance classificatórios,
hierarquizados e hierarquizantes” (Bourdieu, 2003:169). Esse gosto se encontra a meio caminho do
gosto individual e o de classe, um criando e recriando constantemente o outro.
Dessa maneira, além da própria figura do senhor de engenho representar poder, seus
costumes se adaptaram ao ritual burguês, como forma de continuar a exercer influência na
sociedade.
O luxo consiste no grande número de peças das baixelas de prata. Quando se hospeda
alguém, apresenta-se-lhe para abluções soberbos vasos de metal, de que são também as
bandejas que vêm para a mesa, as bridas e os estribos dos cavalos, e o cabo dos punhais
(...). Encontrei também belíssimos aparelhos de louças da Inglaterra. (ARQUIVO
ERNANI. FICHA, 26836, apud BARBOSA, 2012:176)
O ajustamento do habitus pode variar bastante de acordo com a situações impostas ou
imprevistas, as louças na decoração de transfer printing, consideradas as mais caras, presentes nos
engenhos banguês nos mostram isso. A sociedade alagoana passa a se organizar de maneira
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diferente a partir do século XIX, a riqueza que antes estava em segundo lugar como representação
de poder - há de se lembrar o caso dos comerciantes ricos que não detinham tanto status quanto os
proprietários de terra, como demonstrou Sheila Faria (1998) – passa a tomar conta dos espaços. Há
então um elemento estruturador que produz costumes e comportamentos que são imbuídos nos
indivíduos, bem como essas incorporações se refletem no meio social por meio da ação dos
indivíduos, em um movimento estruturante, a reprodução dos gestos, dos gostos, das formas, do
consumo, tende a ativamente contribuir para a reprodução da estrutura
Mesmo em uma conjuntura de crise, a estrutura da sociedade banguê, da “nobreza da terra”,
consegue ainda se arrastar por longa data, ainda que economicamente respirando com dificuldades,
o consumo em favor de um habitus consegue sustentar até boa parte do século XX uma ordem que
marchava a ruína. Podemos avaliar que esse caráter estratégico se faz enquanto prática, na medida
em que há um habitus disposto nesses indivíduos e que opera em certos limites, o consumo de
louças para preservar a notoriedade desses senhores, parece funcionar na defesa de interesses
próprios, na mesma medida que defende uma “velha sociedade” e uma antiga hierarquia.
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Monografias
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Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres em Moçambique.
Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e poupança (Parte II)
Catarina Casimiro Trindade
(Mestranda Antropologia UNICAMP)
Resumo: Como se organizam mulheres que possuem pequenos negócios nos mercados da cidade de Maputo e que
recorrem a instituições de microcrédito? Os seus negócios e família beneficiam do empréstimo que as mulheres
recebem das institumicroições financeiras? Poderão estas promover a autonomia financeira das mulheres? Partindo da
constatação de que são as mulheres as que mais procuram instituições micro financeiras e as que têm maior taxa de
sucesso, a pesquisa partiu do estudo de caso de uma instituição de microcrédito existente na cidade de Maputo, Tchuma,
Cooperativa de Crédito e Poupança, e das suas clientes comerciantes, para procurar dar resposta às questões levantadas.
Orientadora: Profa. Dra. Virgínia Ferreira. Instituição de ensino: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Curso: licenciatura em Sociologia. No volume anterior (ANO 16 Vol. 2 - 2014 - Julho/Dezembro) foi publicado o
primeiro capítulo. Nesse momento, publicamos a segunda parte que corresponde aos segundo e terceiro capítulo da
pesquisa.
Palavras-chave: microcrédito; autonomia; mulheres; economia informal.
Operacionalização do estudo
Hipóteses de trabalho
As hipóteses apresentadas foram construídas com a finalidade de dar resposta à pergunta de
partida. São elas:
1.
O apoio que as instituições micro-financeiras prestam às mulheres permite-lhes
desenvolver as suas capacidades para um determinado negócio, transformando-os em
actividades produtivas, com a finalidade de conseguirem pagar as suas dívidas, podendo,
assim, aumentar a sua renda.
Assim, as mulheres tornam-se capazes de cuidar de si e das suas famílias, através do seu
próprio trabalho.
2. As instituições de micro-crédito, embora garantam o acesso ao crédito a muitas
mulheres, levam a que estas se tornem cada vez mais dependentes do crédito,
impedindo-as de se tornarem plenamente autónomas do ponto de vista financeiro.
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Devido à instabilidade do sector financeiro, as mulheres precisarão sempre de recorrer ao
micro-crédito para suprir as dificuldades financeiras que enfrentam por não conseguirem vender o
suficiente para gerar renda. Desta maneira, o acesso ao crédito torna-se um círculo vicioso, pois as
mulheres precisam de dinheiro para comprar produtos, mas se não os vendem nas quantidades
necessárias para gerar renda têm que recorrer novamente ao crédito, o que as impossibilita de se
tornarem autónomas.
Construção/Operacionalização de conceitos
Ao olhar para a pergunta de partida, um conceito salta logo à vista. Esse conceito é o de
autonomia. Pois se a minha questão central é tentar perceber se as instituições de micro-crédito
promovem ou não a autonomia das mulheres, fica claro que este conceito é central ao
desenvolvimento do estudo.
O conceito de autonomia possui múltiplas dimensões, sendo cada uma indispensável para
que cada mulher alcance o controle sobre a sua vida. A autonomia física diz respeito à
autodefinição da reprodução e da sexualidade; a autonomia política está relacionada com o direito
de opinião, de organização e de participação; a autonomia sociocultural refere-se a aspectos de
identidade e auto-estima.
Mas existe uma dimensão do conceito de autonomia que, no meu entender, é o mais
importante e o que merece maior atenção. Estou a falar da dimensão financeira, que está
intimamente ligada ao acesso e controle dos meios de produção e dos recursos, ou seja, das
condições económicas que assegurem o bem-estar para a mulher e para a sua família. Este é o
principal objectivo deste trabalho: tentar perceber se, através das instituições de micro-crédito - que
proporcionam às mulheres o acesso ao crédito necessário à melhoria do seu negócio - as mulheres
se tornam (ou não) financeiramente autónomas, ou seja, se são ou não capazes de gerir, elas
próprias, o seu negócio e aumentá-lo, conseguindo assim lucro suficiente para quitarem as suas
dívidas e viverem decentemente. E como saber se uma mulher é ou não financeiramente autónoma?
Existem vários indicadores que nos podem mostrar, tais como a possibilidade de pagar, no prazo
certo, o empréstimo; poder comprar comida para alimentar os filhos e o resto da família, fazer o
rancho mensal e ter dinheiro para a saúde; a possibilidade de mandar os filhos à escola; ter como
pagar os transportes públicos; pagar as despesas da casa e fazer melhoramentos na habitação; fazer
melhorias no local do negócio ou poder comprar mais produtos para vender e ter dinheiro para
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consumo próprio. É certo que estes indicadores, que mostram uma melhoria no nível de vida das
mulheres, só são possíveis se houver lucro suficiente no negócio.
Outra questão importante no que respeita à autonomia financeira e que tem que ser bem
compreendida durante a fase das entrevistas é a de as mulheres, durante e após o processo de
empréstimo, conseguirem (ou não) tornar-se auto-suficientes relativamente ao negócio. Isto quer
dizer, conseguirem ter autonomia para continuar o seu negócio sem a ajuda dos empréstimos
constantes, mas sim dos seus lucros. Ou, se por outro lado, isto dificilmente acontece, fazendo com
que as mulheres tenham que recorrer constantemente aos empréstimos para poderem tocar os
negócios em frente, evitando que assim estes vão abaixo.
Estratégia de recolha de informação
A informação inicial foi conseguida através da recolha e análise bibliográfica. A informação
recolhida no decorrer do trabalho de campo foi conseguida através de entrevistas semi-estruturadas
às mulheres clientes da Cooperativa de Crédito e Poupança Tchuma, análises de conteúdo das
próprias entrevistas e observação não-participante, efectuada durante o período em que me
encontrei a fazer as entrevistas numa das agências da Tchuma, onde passei várias manhãs, umas a
entrevistar várias mulheres e outras a ter conversas informais com os gestores de clientes (quando
estes lá se encontravam) e a tirar notas de tudo que se passava à minha volta, o que faziam os
funcionários, o que conversavam entre si, quem entrava e saía da agência, o que as pessoas lá iam
fazer, entre outras actividades. Explicarei, de seguida, como decorreu o trabalho de campo, passo a
passo e com maiores detalhes.
O trabalho de campo
A realização do trabalho de campo foi feita em duas fases, na cidade de Maputo. A primeira
foi de 23 de Maio a 14 de Julho de 2006 e a segunda de 8 a 21 de Fevereiro de 2007.
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Fig.1 Mercado do T3, em frente à agência do Infulene, onde trabalha a maior parte das mulheres
entrevistadas
Primeira fase do trabalho de campo
Confesso que, quando cheguei a Maputo, não fazia a mínima ideia de como começar a
recolher informação. O primeiro passo foi tentar encontrar uma agência onde pudesse fazer o estudo
de caso, tarefa nada fácil. Não conhecia ninguém que me pudesse pôr em contacto com as
instituições e sozinha também não fui a lado nenhum. Só depois de bastante tempo e de várias
tentativas é que, através de um conhecido, entrei em contacto com a Tchuma.
O primeiro encontro não correu muito bem, pois a senhora com quem deveria encontrar-me
não me recebeu. Só depois de contactar a directora adjunta da Tchuma é que o meu trabalho
realmente começou.
Depois do encontro, onde expliquei em que consistia o meu trabalho e o que iria fazer na
instituição, ficou combinado que iria trabalhar na agência do Infulene, por ser a mais calma, o que
facilitaria o trabalho. Combinou-se também um encontro na agência, para ficar a conhecer tudo
antes de começar as entrevistas.
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Após a visita à agência, onde fiquei a conhecer as instalações, fui apresentada aos
trabalhadores e tive uma pequena entrevista com o chefe sobre o seu funcionamento, em que se
decidiu que o melhor seria fazer as entrevistas na própria agência, numa das salas, à medida que
fossem chegando as clientes. Ficou assim decidido por ser mais fácil, uma vez que combinar
encontros com as mulheres é muito difícil por causa do seu trabalho.
Análise da primeira fase do trabalho de campo
Depois de voltar a Portugal, iniciei a transcrição das entrevistas e a análise das mesmas. Foi
durante esta parte do trabalho que me dei conta de que não tinha informação suficiente para
continuar com o trabalho. Penso que a minha falta de experiência na altura dificultou a recolha da
informação. Não soube conduzir bem as entrevistas nem tirar toda a informação que precisava.
Também não fiz certo tipo de perguntas que, mais tarde, ao analisar as entrevistas, verifiquei que
eram bastante importantes. A única solução era voltar a Maputo e tentar entrevistar de novo as
mesmas mulheres.
Falei então com a directora adjunta da Tchuma, que não se opôs de maneira nenhuma a que
eu voltasse a fazer as entrevistas na agência do Infulene.
Assim, depois de rever todo o projecto, ler e detectar os erros cometidos durante as
primeiras entrevistas e corrigir o guião, acrescentando-lhe algumas questões, voltei para Maputo
para dar continuidade ao meu trabalho de campo.
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Fig.2 Mercado do T3, no Infulene
Segunda fase do trabalho de campo
Esta fase do trabalho foi muito mais fácil para mim, visto já ter um à vontade na agência e
conhecer bem as pessoas que lá trabalhavam. Depois de um pequeno encontro com a directora
adjunta da Tchuma, fiquei a saber que o chefe da agência tinha mudado e que os gestores estavam
também em fase de transição. Contou-me que costumam fazer uma rotação do pessoal pelas
agências, de tempos a tempos. A única pessoa que ainda estava na agência era uma das gestoras que
conheci na primeira fase.
Fui à agência antes de começar o trabalho para combinar com uma das senhoras que lá
trabalham como iam ser as entrevistas. Fiquei contente por saber que os gestores estariam muito
ocupados e que ficaria mais ou menos por minha conta. Contente porque, assim, podia explorar
melhor as coisas, ir ao mercado sozinha e procurar as clientes. Por um lado foi mais complicado,
porque não tinha ninguém que me anunciasse. Mas por outro, algumas das senhoras já me
conheciam e levaram-me a outras. Na agência, o método continuou o mesmo: faria as entrevistas à
medida que fossem chegando mulheres à agência.
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O trabalho durou cerca de 10 dias, nos quais consegui fazer 14 entrevistas. Foram menos
entrevistas do que as da primeira fase, mas muito melhores em termos da informação recolhida.
Análise da segunda fase do trabalho de campo
Esta foi, sem dúvida, a melhor fase do meu trabalho. Com a experiência ganha
anteriormente, consegui recolher mais e melhor informação para os objectivos a que me propus no
início do trabalho. Apesar de não ter tido tanto tempo como na primeira fase, consegui fazer tudo.
Podia ter feito mais entrevistas, mas acho que, para o que preciso, estas entrevistas são suficientes.
Percebo agora melhor como vivem estas mulheres e como é o seu trabalho, as suas
preocupações e sonhos de futuro. Depois de transcrever todas as entrevistas, analisei-as, fazendo um
quadro com toda a informação obtida, pergunta a pergunta.
Dificuldades encontradas durante o trabalho de campo
No início do trabalho, o mais difícil foi encontrar uma organização de micro-crédito com a
qual pudesse trabalhar. Depois de várias tentativas fracassadas, consegui chegar à directora adjunta
da TCHUMA através de um conhecido que me colocou em contacto com ela. Já durante o trabalho
de campo, penso que o mais difícil para mim foi ganhar a confiança das mulheres a quem
entrevistei. Por ser branca e jovem, aparentemente sem experiência, as mulheres desconfiam logo.
Não gostam muito de falar sobre o seu negócio, sobre assuntos que envolvam dinheiro, porque as
pessoas têm muito receio que façam levantamentos para lhes “roubarem” os bens. Este é, aliás, um
problema que se encontra muitas vezes durante o trabalho de campo em Moçambique.
O facto de ter que fazer as entrevistas com um gravador também não facilitou as coisas. Foi
preciso muita conversa e explicações para as senhoras aceitarem a presença do gravador. Muitas
pensavam que eu era uma jornalista e que a entrevista iria estar num jornal, para toda a gente ver.
Por isso também insisti para que as entrevistas fossem anónimas.
Também foi difícil falar de certos temas. Por mais perguntas que fizesse, as entrevistas
nunca duraram mais que 20 minutos. Em certo tipo de perguntas, mais relacionadas com o marido
da entrevistada, elas não se estendiam muito, sorriam mas não falavam. Tive que ser eu a puxar por
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elas, a fazer mais perguntas indirectas, para assim chegar ao meu objectivo. Também tive que fazer
um esforço para que disessem mais que um “sim” ou “não”.
O problema da língua também se fez sentir em algumas entrevistas. Apesar de a maior parte
das entrevistadas falar português, por vezes não entendiam o que eu dizia e tinha que repetir várias
vezes. O contrário também aconteceu, ou seja, também eu não percebi várias das palavras que as
senhoras disseram. Nada de muito relevante, apenas algumas expressões sem muita importância ou
nomes de lugares. Somente uma vez aconteceu de eu não poder levar adiante a entrevista por a
senhora não falar quase nada de português. Como não encontrei ninguém que me ajudasse com a
tradução, tive que desistir de entrevistar a senhora.
O local das entrevistas também não foi o ideal. As entrevistas feitas na agência, durante a
primeira fase, foram realizadas na sala de reuniões, que não estava sempre vazia. Ora, foi um pouco
complicado entrevistar as senhoras com os gestores sempre de volta, a entrar e a sair e a falar entre
si, sem qualquer cuidado para com a entrevista que estava a ser feita. Durante a segunda fase as
entrevistas foram feitas na copa da agência, um local bem mais calmo, mas que de vez em quando
era perturbado pela passagem de alguém, ou para a casa-de-banho ou para buscar algo na copa.
Já no mercado, apesar de ter sido bom poder ver onde as senhoras trabalhavam e como era o
local, as entrevistas também foram constantemente interrompidas ou por pessoas a passar ou por
clientes que perguntavam algo. Não foi nada que perturbasse gravemente o desenvolver das
entrevistas, mas muitas vezes quebrou o ritmo e alguns temas que estavam a ser desenvolvidos
foram interrompidos e jã não foi possível voltar a eles.
Na segunda fase, uma das coisas que muito me desagradou, principalmente ao transcrever as
entrevistas, foi o barulho ensurdecedor vindo de uma barraca ao lado da agência, que todos os dias
nos inundava de música.
Por último, a questão da distância. Apesar de ter tido sempre quem me levasse e trouxesse
do bairro do Infulene, onde se encontra a agência, a verdade é que este fica a cerca de 30 minutos de
Maputo. Para poder estar na agência todos os dias bem cedo, tinha que acordar mais cedo ainda e
enfrentar uma viagem que, muitas vezes, era atrasada pelo trânsito infernal que se verifica a essa
hora do dia.
Caracterização da Tchuma, Cooperativa de Crédito e Poupança
Os principais fundadores da TCHUMA são a Fundação para o Desenvolvimento da
Comunidade (FDC) e a Sociedade de Controlo e Gestão das participações Financeiras (SCI), cada
um detendo 49,9% do capital social.
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O seu surgimento
A Tchuma foi iniciativa do então presidente do BCI25, Magid Osman. Ao mesmo tempo em
que criava o banco, queria estabelecer uma outra instituição para as camadas menos favorecidas.
Para tal, juntou-se à FDC. Assim, os accionistas fundadores da Tchuma são a SCI, que é a holding e
também accionista do BCI e a FDC. No início, a Tchuma era um projecto pequeno, sem muita
viabilidade e sem existência legal. Quem abria as contas bancárias era a SCI e estas ficavam em
nome dos principais directores. Tornou-se assim, uma cooperativa, pois na altura era umas das
únicas opções. Não foi a opção ideal para a Tchuma o facto desta ter começado como uma
cooperativa, pois cada cliente tem que ser atendido como um membro, o que se traduz em mais
burocracias para as pessoas e também pelo facto de cada accionista ter um voto, seja ele um banco
de fora que investiu uma grande soma ou um cliente que benificiou de um crédito há 5 anos e já não
precisa dele. Assim, em termos de investimentos, isso não funciona, facto pelo qual está a pensar-se
mudar a situação, fazendo da Tchuma um banco.
O mais difícil em termos de origem da Tchuma é o facto de não ter uma organização por
trás, que garanta o seu funcionamento. Se, por um lado, torna-se complicado depender de um
financiamento, que nem sempre vem na altura certa ou da maneira desejada, por outro dá uma
independência que as outras organizações não têm.
Missão da Tchuma
A sua missão é a de, através dos serviços financeiros prestados à população menos
favorecida lutar, com ela, pela cada vez maior dignidade humana e valorização social e pela
melhoria das condições de vida das suas famílias, o que resultará na melhoria da vida social do país
em geral.
Objectivos da Tchuma
De maneira geral, a Tchuma tem como objectivos oferecer serviços microfinanceiros e
outras actividades bancárias permitidas por legislação em vigor no país. Especificamente, os
objectivos são:

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a concessão de micro-créditos aos empresários moçambicanos emergentes,
em particular as mulheres;
Hoje BCI Fomento
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



a mobilização de poupanças dos seus sócios e a sua orientação para a
promoção do empresariado nacional;
a mobilização de apoio externo, em particular de instituições bilaterais e
multilaterais interessadas no desenvolvimento do sector privado nacional;
o apoio ao desenvolvimento de projectos de pequena e média dimensão
realizados por organizações a nível da base;
a concessão de empréstimos e outras operações activas de crédito a curto,
médio e longo prazo que sejam permitidas por lei.
De forma estratégica, a Tchuma pretende ser a melhor instituição microfinanceira do país
através do desenvolvimento de uma relação de parceria com os seus clientes, serviços
qualitativamente aprovados e uma maior abrangência à escala macional.
Organização interna e gestão
A Tchuma tem uma estrutura orgânica formada por:
 Assembleia Geral
 Conselho de Administração
 Comissão Executiva
 Conselho Fiscal
A sua gestão diária é assegurada por uma equipa de directores e gestores seniores, dirigida
por um administrador delegado, que ocupa também funções de director executivo.
Funcionários
Trabalham na Tchuma cerca de 103 funcionários, dos quais cerca de 70 é pessoal técnico e o
restante administrativo. Mais de 50% são mulheres. Não sendo relevante descrever aqui as funções
de todos os funcionários, falarei somente dos gestores de clientes. Estes têm como função principal
gerir os clientes, ou seja, cada gestor tem uma carteira de clientes, normalmente distribuída por
zonas, da qual tem que fazer a gestão. O seu trabalho consiste em fazer o acompanhamento do
negócio do cliente, fazer visitas regulares ao local de trabalho, fazer a promoção dos serviços da
Tchuma, controlar as datas de pagamento dos empréstimos e assegurar que estes são pagos em dia.
Possuem relatórios bastante detalhados sobre cada cliente, qual a sua situação exacta. Estão a maior
parte do tempo fora da agência, a visitar clientes, fazer avaliações ou a promover a cooperativa.
Aconselham, aos clientes que têm crédito, a abrir também uma conta poupança, para facilitar o
pagamento das prestações. Têm, normalmente, uma relação de confiança e proximidade com cada
cliente, o que facilita a resolução de qualquer tipo de problemas que estes possam vir a ter. Este
facto confirma-se pois, sempre que um gestor está doente e tem que ser substituído por um
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polivalente, os clientes preferem esperar que este volte ao trabalho a serem atendidos por uma
pessoa “estranha”, que não conhecem e em quem não confiam.
Produtos oferecidos
A Tchuma possui os seguintes produtos:
 Créditos
a) Para actividades económicas
São créditos de valores que variam entre 500,0026 e 60,000.00 MT, que são oferecidos a
pessoam que já desenvolvem um negócio com uma experiência mínima de 6 meses. O prazo do
empréstimo varia entre 1 e 12 meses. A taxa de juro, única, é de 5% por mês. As prestações são
mensais. Existem duas modalidades de empréstimos, os empréstimos em grupos solidários (não
exigem garantias reais) e os empréstimos individuais (exigem garantias constituídas por bens
domésticos).
b) Para o consumo
Este produto, destinado aos empregados do Estado, em particular professores e funcionários
da Educação, oferece um valor máximo de 100.000,00 MTS em prazos que vão até 24 meses e
taxas de juro que variam entre os 3 e os 3,5%.

Poupanças
É um produto recente na instituição. A Tchuma oferece uma conta de depósito à ordem.
Clientes e agências
Tendo começado com uma só agência, em Agosto de 2005 a Tchuma tinha já cerca de
13,403 clientes repartidos por 6 agências na cidade de Maputo, Matola (província de Maputo) e
Xai-Xai (província de Gaza) e 3 satélites, 1 em Marracuene (servindo também a Manhiça, ambas na
província de Maputo) e 1 em Boane (província de Maputo).
Contando com cerca de 842 clientes no seu início, em 2005 possuia cerca de 8,930 clientes
de negócio e consumo e cerca de 4,473 de poupanças. Tem-se verificado, assim, uma evolução
positiva da actividade e dos resultados que vão sendo alcançados pela Tchuma.
Não existe ainda uma ligação on-line entre as agências, mas todas elas comunicam entre si.
No fim de cada dia de trabalho, cada agência faz o fecho do dia e envia tudo por e-mail ao centro,
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R$1,00 equivale a cerca de 12,56 MT (meticais)
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onde os dados são validados, voltando depois a serem enviados para as agências, para serem
reintegrados. Dependendo da utilidade, existem relatórios diários, semanais ou mensais. Existe um
relatório diário que é enviado para todas as agências.
Em relação aos gestores, estes têm relatórios mais detalhados sobre a situação de cada
cliente. No início do mês têm acesso a uma lista sobre o programa de pagamentos dos clientes, em
que dia estes devem efectuar os seus pagamentos. O seu trabalho é assim feito com base nessa lista,
programam visitas para lembrar aos clientes dos prazos ou então para saberem se estes estão
interessados em renovar.
Perfil dos clientes
Não existe um perfil ideal de cliente, mas sim exigências que se fazem para uma pessoa se
poder tornar sócia. Para ter um crédito na Tchuma, uma pessoa tem que ter já um negócio montado
há pelo menos 6 meses, pois é preciso ter o que avaliar para se saber quanto dinheiro a Tchuma está
disposta a conceder. O facto de ter já um negócio montado está bastante ligado também com a
experiência que a pessoa possa ter, pois é preciso saber se a pessoa está capaz de fazer a gestão do
seu próprio dinheiro antes de se lhe conceder o dinheiro para ela gerir. Como não há maneira de se
saber ao certo quanto tempo tem um negócio, muitas vezes os gestores, aquando da avaliação,
fazem perguntas aos vizinhos do futuro cliente, tentando saber se eles conhecem a pessoa e que tipo
de negócio esta faz, onde vende e há quanto tempo, etc. Por isso também a maior parte dos gestores
prefere um cliente que tenha sido recomendado por outro cliente, de preferência um bom cliente.
Isto porque um bom cliente nunca vai recomendar uma má pessoa, com medo de manchar a sua
reputação. E um bom cliente é uma pessoa que paga e investe bem, que fica mais tempo na
instituição e que sobe o seu valor. É também alguém que já deu dicas de como se comportar perante
a instituição à pessoa que quer entrar na Tchuma. Tudo isto se baseia muito na confiança que as
pessoas têm umas nas outras.
Os gestores preferem também pessoas que tenham um negócio fixo e não ambulante, não
porque estes apresentem um maior risco, mas porque é mais fácil trabalhar com um negócio que
tenha um local.
O tipo de negócio que cada cliente tem também não é relevante. O mais importante é a
capacidade das pessoas para gerir o seu negócio, seja ele criar frangos ou vender roupa no mercado.
A idade média dos clientes da Tchuma, que anda à volta dos 45 anos, é mais elevada do que
a maioria das outras instituições porque não existe um limite de idade para se ser cliente.
Prazos – Cumprimento e punições
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Nos procedimentos da Tchuma, cada agente estipula o que um gestor deve fazer quando o
cliente não efectua o pagamento. A frequência e o tipo das visitas que deve fazer ao cliente, quem
deve executar os bens, etc. Quando o cliente atinge os 30 dias de atraso, a Tchuma tem que
apresentar o caso à Comissão de Crédito, que se reúne uma vez por semana. Se se consegue provar
que já foi feito tudo, que já se tentou de todas as maneiras fazer com que o cliente pagasse a sua
dívida e este não colaborou e que não tem meios de pagar, então é provável que a Comissão aprove
a execução dos bens.
O que normalmente acontece é que, mesmo existindo já uma autorização para a execução
dos bens, o cliente acaba por pagar a dívida antes da Tchuma chegar a sua casa. Isto porque existe
um camião, utilizado nas execuções dos bens, que circula pelas agências, ficando uma semana em
cada uma. Ora, se existe uma autorização em mãos, mas o camião não se encontra na posse da
agência, há ainda uma oportunidade para se conversar com o cliente e tentar que este pague. Então,
o que acontece é que, em mais de 50% dos casos, ou o cliente paga antes de o camião chegar a sua
casa ou, e isto é sempre muito aborrecido para a agência, quando o camião chega a casa do cliente
para fazer a execução, este tira o dinheiro do bolso para pagar.
Os outros 50% são divididos entre clientes em que se consegue confiscar os bens, vender e
liquidar a dívida. Há ainda outros 25% de casos em que não se consegue executar as garantias, ou
porque nunca existiram, porque as pessoas pedem emprestado na altura de conferir, ou porque
venderam, esconderam, ou não deixam as pessoas entrar, não há ninguém em casa, porque não se
pode confiscar os bens, não se pode entrar forçosamente em casa, tem que ser pacífico.
O que a Tchuma tenta fazer para evitar esta situação é, na altura da vistoria, ter a assinatura
de todos os membros da família, para confirmar que os bens podem ser oferecidos como garantias,
que a pessoa que os está a oferecer tem direito sobre eles, que a família está toda de acordo. E tentase fazer entender à família toda que estes bens serão confiscados se assim for preciso, para depois
não poderem dizer que não tinham sido informados.
O negócio da Tchuma não é a cobrança e venda de bens, mas sim financiar negócios com
valores e prazos que os clientes sejam capazes de reembolsar. A maior parte das vezes, os bens que
são apresentados como garantias são simbólicos, pois não é possível vendê-los pelo valor que lhes
foi atribuído. Por isso é que, na altura da avaliação, os gestores não olham só para o rendimento do
negócio. Olham também para a situação económica da família, para tentar chegar a um valor
excedente da unidade familiar. Verificam quanto é que a família gasta em alimentação, renda,
telefone, energia, etc, para saber quanto sobra para pagar a prestação. Utilizam esse valor como
base e ajustam-no para chegar a um valor que é uma percentagem razoável que não sobrecarregue
as pessoas. Isto porque à medida que as pessoas renovam os contratos, pagam melhor e mostram
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capacidades de pagar, vontade de pagar, os rácios da Tchuma ficam cada vez mais flexíveis e, em
termos de garantias, não se exige tanto.
Perspectivas para o futuro
Existem já diversas ideias em desenvolvimento em relação ao futuro da Tchuma. No novo
pacote informático que vai ser instalado, foi incluido todo o software para ATM’s27, no pressuposto
de que, num futuro muito breve, se possa introduzir essa possibilidade. O novo pacote inclui
também novos produtos de depósito e de crédito de consumo, que foi testado com o sector da
educação, pois a Tchuma trabalha com escolas. Pensam que se poderá expandir este serviço para
outros sectores do governo, pois este é muito estável, ou seja, as pessoas, uma vez admitidas no
quadro do Estado, não são facilmente demitidas. A instituição está também num processo de fazer
uma agência no Xai-Xai28, com outros produtos, e pretende abrir em mais duas províncias nos
próximos dois ou três anos. Pretendem também instituir um produto nas zonas rurais, para a
agricultura.
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Automatic Transfering Machine ou o que normalmente se chama caixa electrónica
Informação referente a meados de 2005
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Agência do Infulene – caracterização e funcionamento
Fig.3 Fachada da agência do Infulene
Tendo aberto em finais de 2004, a agência do Infulene situa-se ao lado da terminal dos
chapas29 e em frente a um mercado informal, num bairro chamado T3. As instalações são pequenas.
Tem um balcão de atendimento geral e informações, outro de entrega de talões e cobrança e um de
depósitos e levantamentos.
Possui um número reduzido de pessoal para o que é normal, mas visto ser uma agência
pequena, não se justifica ter mais gente a trabalhar. Tem, portanto, sete pessoas ao serviço: o chefe
da agência, uma pessoa na caixa, uma tesoureira, uma operadora, que substitui o chefe da agência
quando este não se encontra e dá conta da parte informática, das fichas, contratos e relatórios, dois
gestores de clientes, que fazem o trabalho de campo, são analistas de crédito, promovem a agência,
avaliam e visitam os clientes, com ensino médio e formação para o cargo e, finalmente, uma
servente.
A agência é composta por um balcão de atendimento logo à entrada, com algumas cadeiras
para as pessoas que estão à espera de serem atendidas, uma sala de reuniões, uma sala para o chefe,
uma cantina e um pátio exterior onde se encontra a casa-de-banho.
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Designação popular para transportes semicoletivos de passageiros.
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O horário de atendimento ao público é das 8h00 às 15h00, sem pausa para almoço. Porém, a
agência abre às 7h30 e fecha às 17h30. Todos os dados da agência são remetidos diariamente à
sede, que lhes fornece um relatório diário. Existe também um relatório mensal. Os clientes desta
agência pertencem ao Posto Administrativo do Infulene, mas a acção não se sente da mesma
maneira em todos os bairros. A actividade principal da maior parte dos clientes é o comércio (de
alimentos, bebidas, roupas, criação e venda de frangos, etc), existindo também alguns carpinteiros e
modistas. No total, existem 408 clientes, dos quais 269 são mulheres e 139 são homens.
As principais actividades da agência são a venda dos produtos, o crédito30 e a poupança31,
através de reuniões, palestras nos mercados e bairros ou visitas indidualizadas, pessoa a pessoa, nos
mercados, onde estas se encontram a trabalhar. Também nesta agência se podem efectuar depósitos,
levantamentos, pagamentos (de prestações32) e obter informações diversas. Não sendo na agência
que se dá o dinheiro do empréstimo, emite-se um cheque a ser levantado no banco. Relativamente
ao serviço de crédito, enquanto que o individual exige garantias, o grupal não. Este pode ser
formado por vizinhos ou amigos, pessoas com laços afectivos, cada um com o seu negócio. Exige
uma grande solidariedade do grupo, pois quando um membro se encontra em dificuldades, os outros
têm que ajudá-lo. Pode ir de 4 a 6 elementos.
Relativamente aos empréstimos, no crédito individual o primeiro vai de 1.000,00MT e não
pode ser superior a 6.000,00MT, variando consoante a avaliação dos agentes e as garantias que o
cliente possui. A taxa de juro é de 5% ao mês e o empréstimo deve ser pago num máximo de 6
meses. A maior parte dos clientes paga, porém, numa média de 2 meses. Os empréstimos seguintes
vão subindo, variando entre 8.000,00MT a 10.000,00MT. Já no crédito grupal, o empréstimo pode
ir até 2.000,00MT por cada elemento, não podendo cada elemento ultrapassar os 6.000,00MT.
A maior parte dos clientes renova os empréstimos, existindo clientes que vão já no seu
décimo empréstimo. Existem muito poucas desistências, a tendência é o crescimento no número de
contas. Quando existe um mau desempenho por parte dos clientes (ou porque o negócio não corre
bem ou porque este estava desempregado e entretanto arranjou um emprego), estes páram o negócio
por iniciativa própria. Quando os clientes ultrapassam bastante o prazo do pagamento do
empréstimo, a TCHUMA executa os bens que serviam como garantia. Esta acção é, porém, muito
rara, uma vez que se consegue quase sempre conversar com os clientes e arranjar maneira de estes
pagarem as suas dívidas.
Nem todos os clientes da TCHUMA têm conta poupança, assim como nem todos os que têm
uma conta poupança são clientes de crédito. Existe, porém, um grande incentivo à poupança.
30
Individual ou grupal
Este serviço é relativamente novo, tendo cerca de 2 ou 3 anos
32
Por transferência (através da sua conta poupança) ou paga-se no banco e traz-se o recibo
31
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
174
Existe uma relação igual de pessoas que visitam a agência por vontade própria, que ouvem
falar através de outros clientes ou através da promoção que os agentes de clientes fazem. Para se
tornar cliente da TCHUMA, tem que se ser abonado por dois sócios activos, com o pagamento em
dia, ter um negócio há pelo menos 6 meses33, ter mais de 21 anos de idade, possuir garantias
(bens)34, ter a documentação em dia e tornar-se sócio da TCHUMA35, pagando a jóia (não
devolvível) e um depósito mínimo, correspondente a duas acções na Cooperativa (devolvível se
quiser sair da Cooperativa).
Referências
Site consultado a 3 de Fevereiro de 2006:
Casimiro, Isabel (2000), Relações de Género na Família e na Comunidade em Nampula: Cruzeiro do Sul
Trust Fund, Maputo
Cruzeiro do Sul Trust Found (1999), Projecto Seguimento do Programa Estratégico de Nampula (Projecto
SEGUI), Relatório Ano 1 (referente a 1998), Nampula e Maputo, Janeiro.
Grameen Bank
http://www.grameen-info.org/
Jackelen, Henry R. e Rhyne, Elisabeth (1991), Toward a More Market-Oriented Approach to Credit and
Savings for the Poor (UNCDF), Tokyo Fórum on LDCs. pp10
Mick, Jacques (1999), Micro-crédito e Combate à Pobreza: A Experiência Brasileira no Contexto da
Globalização. Brasília: ESAF
UNRISD (2005), Gender Equality: Striving for Justice in an Unequal World. Geneva
Sites consultados a 5 de Março de 2007:
A organização dos trabalhadores do sector informal dos mercados de Maputo e sua acção na promoção de
melhores condições de vida e de trabalho – O papel da ASSOTSI de Vletter, Fion (prepared by) (2006),
Microfinance in Mozambique – Achievements, Prospects and Challenges. A report of the Mozambique
Microfinance Facility
Francisco, António e Paulo, Margarida (2006), Impacto da Economia Informal na Protecção Social, Pobreza
e Exclusão: A Dimensão Oculta da Informalidade em Moçambique. Cruzeiro do Sul, Instituto de
Investigação para o Desenvolvimento José Negrão, Maputo
www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/assotsi.pdf
Yunus, Muhammad (1997) O Banqueiro do Povo. Difel
33
Sujeito a avaliação.
Electrodomésticos, mobílias, etc.
35
A admissão como sócio não garante que a TCHUMA concederá o empréstimo.
34
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Amor só de mãe: drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade (Parte I)
Simone de Oliveira Mestre
(Mestranda Antropologia UFMG)
Resumo: AMOR SÓ DE MÃE: Drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade é
um estudo etnográfico36 através de uma descrição sócio – antropológica sobre a realidade dessas
mulheres/mães. O estudo é fruto de uma pesquisa monográfica que foi realizada em 2012 e 2013
com mães de adolescentes internos na Unidade Socioeducativa de Internação Masculina
Sentenciados I/UIMS, localizada em Porto Velho – RO. Com objetivo geral de evidenciar as
consequências sociais provocadas pelo vínculo entre a mãe e o filho adolescente privado de
liberdade, e os seguintes objetivos específicos: 1) Investigar a recepção e o atendimento das
genitoras dos adolescentes em internos na UIMS-I, identificar os marcadores simbólicos dessa
situação; 2) Fornecer para sociedade em geral, um estudo compreensivo da realidade de buscando
dessas mulheres, a partir da perspectiva de direitos e 3) Identificar e demonstrar as expectativas e
angústias dessas mulheres e mães, e as dimensões sociais do fato de ser mãe de um adolescente em
conflito com a lei.
Introdução
O presente estudo foi guiado através da seguinte pergunta: “Por que recai sobre a figura
feminina a responsabilidade de acompanhar o filho adolescente durante a execução da medida
Socioeducativa?”. E para encontrar a resposta para essa questão, diante do contexto onde as
perspectivas sobre maternidade assim como sobre adolescente em conflito com a lei são tão
complexas e diversificadas, foi necessário estabelecer uma fronteira acerca das limitações da
pesquisa. Neste caso, essa pesquisa delimita-se em explicar/descrever a experiência das mães ao ter
um filho adolescente privado de liberdade, que cumprem medida Socioeducativa na I/UIMS-I.
Para alcançar os objetivos da pesquisa e chegar a (s) resposta (s) da pergunta chave, foi
necessário seguir um percurso metodológico, que permitiu minha vivência de campo e funcionou
simultaneamente como o rito de passagem da condição de estudante para pesquisadora, tornando a
experiência de campo o exercício prático da pesquisa social que auxilia na produção de um artesanato
intelectual. No percurso metodológico, priorizamos a observação participante, bem como buscando
uma abordagem qualitativa e quantitativa (mista), usando as técnicas de coleta de dados, como
diário de campo, registro fotográfico, levantamento de dados junto aos registros da unidade e
entrevistas.
36
No método etnográfico é possível o(a) pesquisador(a) expressar sua subjetividade, permitindo, portanto o uso da
primeira pessoa no texto.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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O presente trabalho será publicado em três partes nesta revista, dividida da seguinte forma:
Primeira Parte – Da “VIDA LOKA” ao “AMOR SÓ DE MÃE”; Segunda Parte – UNIDADE,
ADOLESCENTE E SUAS MÃES: Contextualizando o cenário de pesquisa; Terceira Parte - DRAMA
E ESTIGMA das mães de adolescentes privados de liberdade.
Na sequência deste texto, apresento a primeira parte que contém um diálogo com as
concepções culturais, históricas e sociais da maternidade, buscando mostrar o sentido presente por
trás do “amor só de mãe”, bem como o conceito de sujeitos desviantes e medidas socioeducativas
no contexto da construção do adolescente enquanto vidaloka37.
Na segunda parte, que será publicada na próxima edição da revista, contextualização do
cenário da pesquisa, através do olhar para a unidade, adolescentes e suas mães, o atendimento
socioeducativo e unidade, onde trago para reflexão os conceitos de panóptico e de disciplinas de
Michel Foucault (2009) e de instituições totais de Goffman (1974). Apresento ainda os aspectos que
marcam o cotidiano dos adolescentes internos, e a importância atribuída por eles às suas mães e aos
dias de visita durante o cumprimento das medidas socioeducativas.
A terceira parte Drama e Estigma das mães de adolescentes privados de liberdade descrevo
os estigmas e dramas sociais envolvendo mãe e filho, através do desempenho dos adolescentes e
dedicação de suas mães durante os eventos de visitas na unidade. E concluo o último capítulo
tecendo considerações acerca dos processos visualizados durante a realização da pesquisa e
chamando atenção para necessidade de olharmos os adolescentes privados de liberdade em conexão
com suas famílias.
Finalizo essa apresentação, ressaltantando que buscas realizadas durante os anos de 2010 a
2013 nos sites da SCIELO (Scientific Electronic Library Online), Google Acadêmico
(scholar.google.com.br) e nos periódicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior) não encontrei nenhuma trabalho acadêmico no Brasil que pesquise mães de
adolescentes privados de liberdade, indicando que o presente estudo trata-se de uma pesquisa
inédita, sendo assim uma contribuição original no campo de pesquisa das ciências sociais.
2. DA “VIDA LOKA” AO AMOR SÓ DE MÃE: UM ESTUDO DE MÃES DE
ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE
O termo “vidaloka” é sinônimo de agitação, adrenalina, perigo, liberdade e até libertinagem. Ser um vidaloka é ser
um indivíduo que não possui medos e restrições ou leis, sem limite entre o certo e o errado.
37
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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A frase “Amor só de mãe” entra no título deste estudo por expressar o sentimento do filho
pela mãe, no caso desta pesquisa o filho que se encontra privado de liberdade, e a genitora que o
acompanha em todo o processo de execução da medida socioeducativa. E também pelo fato da frase
traduzir com eficácia a permanência e mutação do mito do amor materno38 na contemporaneidade,
ao lado do discurso da mulher moderna.
O estudo trata especificamente do drama e do estigma de mães de adolescentes privados de
liberdade, assim, seria impossível não abordar alguns aspectos e discussões em torno da
maternidade e das questões de gênero. Sendo que ambas fornecem informações pertinentes em
relação ao papel e função da mãe em nossa sociedade.
A frase consagrada da filósofa feminista Simone de Beauvoir (1967, p. 09): “Ninguém Nasce
Mulher: torna-se mulher”, se adapta muito bem na seguinte colocação sobre o processo da
maternidade: “Nenhuma mulher nasce mãe, torna-se mãe”, ou seja, a aprendizagem do papel de
mãe ocorre através dos moldes da cultura imposta, derivadas da nossa sociedade patriarcal,
machista e capitalista.
Para nortear o entendimento em torno da maternidade e seus diversos aspectos, farei a seguir
a análise da figura materna, do sentimento materno e da construção de relações de gênero, através
das contribuições teóricas de Kitzinger (1978), Badinter (1985) e Forna (1999).
2.1 Aspectos históricos, culturais e sociais da maternidade
A maternidade é uma representação social excessivamente complexa, cuja noção é
construída a partir de imagens, modelos e crenças estabelecidas da história, do social e
culturalmente pela nossa sociedade, o que a torna um campo fértil para os estudos nas áreas das
ciências sociais e humanas.
Por tratar-se de uma manifestação tão embutida de significados diversos, devemos lançar um
olhar minucioso para a diversificação deste fenômeno, uma vez que, segundo S. Kitzinger (1978),
“basta-nos olhar para as diferentes manifestações do papel de mãe noutras civilizações para
compreender que a Maternidade também é uma atividade multidimensional”.
Atualmente, existe um consenso que define a maternidade como um estado ou qualidade de
ser mãe, através da ação de pôr uma criança no mundo ou criá-la, onde se prioriza os laços efetivos
entre mães e filhos. Através do discurso da naturalização da maternidade, difundidos pela cultura e
que colocam como condição natural das mulheres as qualidades essenciais e certas para tornarem-se
38
Para Badinter e Forna a maternidade é configurada no inconsciente coletivo como um mito, um tema sagrado que
define o amor materno como uma reação biológica para sustentar o mito da maternidade.
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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mães, como expõe Forna (1999 p. 31- 32):
Em cada sociedade há uma tendência a acreditar que só existe um modo de criar filhos, que
é o modo adotado naquela cultura. Os antropólogos e sociólogos, porém, demonstraram que
a maternidade é uma construção social e cultural que decide não só como criar filhos, mas
também quem é responsável pela criação do filho.
Quando falamos em maternidade lembramos da cena de uma mulher abraçada ou segurando
uma criança, de maneira afetuosa, que ambos aparentam laços eternos de amor e ternura. Tal cena
lembra ainda as telas de Mary Cassat (Mãe e filho, 1900) e Pablo Picasso (A maternidade, 1905 e
Mãe e filho, 1921) - figuras 01, 02 e 03. As referidas imagens representam a maternidade no
aspecto mítico, em que a figura materna é retratada a partir da perspectiva da devoção, do amor
incondicional, da responsabilidade exclusiva dos cuidados e educação do filho.
Figura 01 - Mãe e Filho, 1900.
Cassat.
Figura 02 - A Maternidade,
1905. Picasso
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Figura 03 Mãe E Filho, 1921. Picasso
FONTE: sites: http://viciodapoesia.wordpress.com/tag/mary-cassatt/
http://www.allposters.com.br/-sp/Maternity-posters_i4915897_.htm
Essa ligação óbvia entre mãe e filho (mulher e criança) nas representações visuais, sociais
e culturais da maternidade não são o único elemento que demonstram o quanto a maternidade é um
fenômeno essencial das configurações sociais de uma sociedade. No entanto, ao aprofundarmos
nossos estudos, podemos verificar que esse modelo de maternidade que habita nosso imaginário,
nem sempre foi assim. A própria história da maternidade demonstra o quanto ela caminha lado a
lado com a história da infância, sendo assim, a maternidade e a infância são processos sociais de
dependência mútua.
Elisabeth Badinter em sua obra Um Amor Conquistado (1985), afirma que o mito do amor
materno faz uma retrospectiva da história da maternidade, descreve que tanto na antiguidade como
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
180
na idade média, até meados do século XVIII, a maternidade era encarada de maneira extremamente
diferente da que vivemos hoje. Para Aminatta Forna (1999) a maternidade foi “inventada” em 1762
e a “ideia de infância era alguma coisa que simplesmente não existia” (p. 36).
Buscando explicar essa desvalorização, Badinter (1985) a justifica a partir da fragilidade
física da criança da época e suas poucas possibilidades de sobreviver: “como seria possível se
interessar pelo pequeno ser que tinha tantas possibilidades de morrer antes de um ano?”
(BADINTER, 1985, p. 85).
A própria Badinter contrapõe essa afirmação ao observar que “não é porque as crianças
morriam como moscas que as mães se interessavam pouco por elas. Mas é em grande parte porque
elas não se interessavam que as crianças morriam em tão grande número” (BADINTER, 1985 p.
87). Além disso, o desapego dos pais era notado segundo Badinter (1985) em outras situações,
como por exemplo, “em certas paróquias, como em Anjou, nenhum dos pais se dava ao trabalho de
comparecer ao enterro de um filho de menos de cinco anos” (p. Idem p. 89), e "é preciso dizer que
não se empenham muito em se manter informados da saúde do filho” (Idem, p. 90).
No término do século XVIII algumas transformações sociais na concepção de sentimento e
de felicidade junto com a valorização da arte e da sensibilidade humana, alteraram intensamente a
função da mãe na sociedade e o significado do amor.
Foi a “revolução do sentimento”, que teve como catalisador o movimento
iluminista, escola filosófica que ressaltava o direito do homem à felicidade, o
caráter verdadeiramente nobre do homem, o amor romântico, a liberdade e a
natureza. Essa mudança viria tornar o amor (mais que o status ou a obrigação
social) a razão principal para o casamento e para o filho ser considerado o fruto ou
um dom desse amor. O amor materno surgiu de tudo isso (FORNA, 1999, p. 4).
A figura da mãe totalmente indiferente aos filhos tão presente no “passado” começa a ser
vista com reprovação social, dando espaço à figura da mãe devotada, totalmente dedicada aos
cuidados do filho. Essa mudança de mentalidade inventou a maternidade e criou o conceito de
infância como sugere Forna (1999), além de alterar o papel social da figura feminina, de criatura
maléfica para criatura delicada e meiga, como ilustra Badinter:
A mulher não é mais identificada à serpente do Gênesis, ou a uma criatura astuta e
diabólica que é preciso pôr na linha. Ela se transforma numa pessoa doce e sensata,
de quem se espera o comedimento e indulgência. Eva cede lugar, docemente, a
Maria. A curiosa, a ambiciosa, a audaciosa metamorfoseia-se numa criatura
modesta e ponderada, cujas ambições não ultrapassam os limites do lar.
(BADINTER, 1985 p. 176).
Essas transformações sobre a imagem da mãe no final século XVIII impulsionaram o
enraizamento do ideal de mãe, em torno da dedicação, do sacrifício da exclusividade total para o
filho. Essa imagem auxiliou a construção da concepção que condiciona a felicidade dos filhos como
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responsabilidade dos pais, sobretudo da figura materna. Porém na segunda parte do século XX essa
concepção é alterada e passa-se a atribuir a figura materna, além da responsabilidade pela felicidade
do filho, a culpa materna, como explica Badinter: “No século XVII a confirmou, acentuando a
responsabilidade da mãe, o Século XX transformou o conceito de responsabilidade materna no de
culpa materna” (p.1985, p. 179).
Ainda segundo, Badinter, tais transformações ocorreram graças às contribuições da teoria
psicanalista: “quer se queira ou não, a psicanálise levou a pensar, durante muito tempo, que uma
criança efetivamente infeliz é filho ou filha de uma mãe má mesmo, que o termo má não tenha aqui
nenhuma conotação moral” (1985, p. 295) reforçando o mito do amor materno como instinto
próprio da condição feminina da maternidade, sendo assim “a Maternidade é, ainda hoje, um tema
sagrado… e a mãe continua, no nosso inconsciente coletivo, a ser identificada com Maria, símbolo
do indefectível amor-dedicação” (BADINTER, 1985, p. 09).
2.1.2. O mito do amor materno e a culpabilização da mãe
Além da retrospectiva da história da maternidade, Badinter (1958) acrescenta aos debates
sobre a maternidade a premissa do mito do amor materno, como uma das condicionantes
fundamentais nas representações dos papéis sociais da mulher moderna.
O mito do amor materno é sustentando pela ideia do instinto maternal em conjunto com o
mito da felicidade feminina no sacrifício e da onisciência paterna, assim as palavras amor e materno
“significa[m] não só a promoção do sentimento, como também a da mulher enquanto mãe.
Deslocando-se insensivelmente da autoridade para o amor, o foco ideológico ilumina cada vez mais
a mãe” (BADINTER, 1985, p. 145).
O mito do amor materno é o próprio mito da maternidade que consagra a figura da mãe
perfeita, de forma que cabe à mãe “ser completamente devotada não só aos filhos, mas a seu papel
de mãe. Deve ser a mãe que compreende os filhos, que dá amor total é o que é mais importante que
se entrega totalmente. devendo ser capaz de enormes sacrifícios.” (FORNA, 1999, p. 11).
A concepção do mito do amor materno é construído com base no padrão exigido pela
sociedade, que defini a figura materna como portadora dos atributos de delicadeza, dedicação e
sacrifício em nome do filho, uma vez que a maternidade socialmente é vista como uma condição
inerente às mulheres:
A maternidade se tornou o que é hoje: um dos estados humanos mais naturais, e um
dos mais policiados; uma responsabilidade única das mulheres; não apenas um
dever, mas uma vocação altamente idealizada, cercada de emoção por todos os
lados. As coisas já eram ruins o bastante para as mães vitorianas, mas e ficaram
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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piores no decorrer do século XX, quando a ciência, a psicologia, a política e a
polêmica em torno dos gêneros levaram o mito da maternidade além dos limites
(FORNA, 1999, p. 55).
Todavia, o mito do amor materno cede espaço para um fenômeno nomeado pelo
feminismo e algumas áreas de ciências sociais de “marianismo”, compreendido como culto das
mulheres ao catolicismo ligado à figura da virgem Maria (mãe de Jesus). Segundo Forna (1999), o
marianismo é caracterizado por Mulheres pobres que se sacrificam e negam tudo a si mesmas, em
favor dos filhos, principalmente os meninos, na esperança de que venham a retribuir seu amor e
lealdade quando estiverem velhas. (FORNA, 1999, p. 18).
A maternidade se torna mais que um estado biológico ou um ritual de passagem da mulher,
passa a ser um estilo posicionado enquanto uma “expressão da cultural, que engloba um sistema de
valores relacionados” (KITZINGER, 1978), que organiza o consenso em torno do entendimento do
papel materno na sociedade.
O mito do amor materno constitui um dos pilares na disseminação da cultura da culpa da
mãe, como explica Forna (1999 p. 21): “A culpa ficou tão fortemente associada à maternidade que é
considerada um sentimento natural. Pois não é. A culpa não é uma reação biológica regulada por
hormônios. As mulheres se sentem culpadas porque as fazem se sentir assim”. As mães que não
atendem aos padrões do ideal maternal impostos socialmente através da cultura são julgadas e
consequentemente penalizadas socialmente com rótulos e estigmas, como diz Forna:
Paralelamente à imagem idealizada da maternidade entra em funcionamento o
segundo instrumento de imposição: A culpa. A cultura da culpa da mãe, por parte
de todos, inclusive da criança, está tão profundamente arraigada em nossa
sociedade que o mau desempenho da mãe é visto como tributário de uma lista
impressionante de problemas contemporâneos (1999, p. 21).
Para S. Kitzinger (1978, p. 05) isso é reflexo do “processo de socialização da vida na
sociedade industrializada e capitalista, na qual o sucesso tem uma importância primordial e onde as
realizações individuais são tudo”. Toda a culpabilização da figura materna gira em torno do suposto
fracasso na criação do filho, e ocupar um espaço central na articulação de todos os problemas
sociais, nos quais as mulheres não podem resolver, mesmo estando diretamente ligadas à
problemática.
Para Forna, o “enfraquecimento das corporações à decadência urbana e à emergência de
novas forças econômicas mundiais que desorganizam as economias domésticas e os padrões de
emprego” (1999 p. 24) são as explicações mais plausíveis para essa culpabilização que ocorre em
torno da figura da mãe.
A expressão popular “Quem pariu Mateus que Balance” é uma representação típica de
como nossa sociedade atribui à mulher a responsabilização social pela criação do filho,
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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desconsiderando inclusive suas possíveis dificuldades em criar um filho, ou de sua classe social,
agregando tal responsabilização a uma categoria de gênero, tanto, que as “mulheres que largam os
filhos inspiram um ódio moral, que nunca é endereçado aos milhares de pais que fazem o mesmo”
(FORNA, 1999, p. 17). Cabe ainda ressaltar que a maioria dos grupos de mães que são
discriminadas ou julgadas como irresponsáveis pertencem às classes populares.
2.1.2. A interface de gênero e maternidade na conexão de novas estruturas familiares.
Para uma melhor compreensão entre maternidade e gênero abordados neste estudo, é
fundamental o entendimento da maternidade em conexão com as novas estruturas familiares. As
pesquisas acadêmicas que buscam a partir das relações de gênero, uma explicação para alguns
fenômenos sociais, vêm apresentando significativo crescimento, principalmente nas Ciências
Humanas. Em função disso, “há uma emergência de um campo intelectual em diferentes disciplinas
das ciências humanas, definido por privilegiar os estudos sobre mulheres” (MACHADO, 1994, p.
02).
A partir de alguns referenciais, observamos que existe hoje, por parte de alguns autores,
uma aceitação dos estudos de gênero como instrumento de compreensão das mudanças sociais.
A categoria gênero torna mais nítida a compreensão das formas e dos conteúdos
que vem tomando as relações entre as gerações, de como vêm ocorrendo às
mudanças e as permanências dos “papéis sexuais” na socialização de crianças e
adolescentes e, o mais importante, apontando mecanismo de ruptura ou de revisão
das hierarquias de gênero (MADEIRA, 1997 p. 90).
As mulheres são, em geral, instruídas para assimilarem o mundo de acordo com as
categorias próprias do pensamento masculino (BOURDIEU, 2005) e para não perceberem que o
social está dividido em um plano simbólico, cujas representações masculinas estão em torno de
funções mais nobres e as representações femininas em torno das tarefas e funções de pouco valor.
A divisão do mundo baseada no gênero mantém-se e é regulada por violências múltiplas e
variadas. Séculos de patriarcalismo moldaram um processo de socialização da mulher baseado no
cuidar do outro, mesmo que em detrimento de suas próprias possibilidades de realização pessoal.
Essa posição traz uma questão pertinente: quando alguma coisa não está bem na família, o peso da
culpa é direcionado à mãe.
Dentro do contexto das relações de gêneros, devemos considerar que o conceito de gênero
se situa na esfera social, diferente do conceito de sexo, privilegiando os aspectos sociais. Essa noção
permite refletir sobre a forma como são socialmente construídos os papéis do homem e da mulher
(SAFFIOTI, 1992, p. 183). É necessário lançar um olhar para diversas situações que delineiam as
trajetórias de vidas das mulheres, em especial, aquelas que são mães e as novas configurações de
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familiar, conforme expõe Del Priore (1994):
A presença de famílias compostas por um dos membros adultos e filhos, em maior
proporção mãe e filhos, vêm levando demógrafos e sociólogos a criarem termos
para nomearem esse tipo de família. Assim, são chamadas de famílias quebradas ou
reconstituídas. Estudos demográficos no Brasil Colônia nos mostram que as
famílias chefiadas por mulheres não representam, necessariamente, uma invenção
da história contemporânea.
Del Priore explica que mesmo os atuais debates sobre o fenômeno do crescimento de
famílias chefiadas por mulheres, apresente-se como atual, o referido fenômeno não é tão novo
assim. Inclusive alguns estudos apontam a relação maciça entre famílias chefiadas por mulheres
(mães) e a pobreza, que contribui para construção de outros estigmas, entre eles os que as mulheres
são menos “capazes” de cuidar dos filhos e administrar uma família sem um homem (VITALE,
2000).
Essa exigência social da figura materna como a mulher devota ao filho, surge como um
paradigma da sociedade capitalista na qual, predominam as relações com base no trabalho e
consumo. Kitzinger (1978) e Zola (1998), afirmam que a interpretação da maternidade como tarefa
exclusiva das mulheres entra em contradição com a realidade concreta de uma grande parte das
mulheres.
Uma vez que a distância é imensa entre o ideal de mãe (educadora, sagrada e dedicada
exclusivamente) com a vida das mulheres das camadas sociais mais populares, principalmente
porque essas mulheres precisam trabalhar e acabam assumindo maternidade nas condições mais
precárias e difíceis. Desse cenário social, cultural e histórico mais amplo decorre a discussão das
perspectivas sociais que envolvem a relação entre maternidade e a sociedade.
2.2. Contextualizando o envolvimento dos adolescentes com a criminalidade
Em nossa sociedade temos a crescente tendência de classificar como desviantes os
indivíduos que não se enquadram em nosso padrão cultural em torno do ideal, ou seja, não segue as
regras, normas e leis sociais. Sendo que muitas vezes a noção de desviante se apresenta segundo
Velho (2013. p. 41):
Carregada de conotações problemáticas que é necessário utilizá-la com muito
cuidado. A ideia de desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de um
comportamento “médio” ou “ideal”, que expressaria uma harmonia com a
exigência do funcionamento do sistema social.
O termo “desviante” é atribuído com frequência aos indivíduos que estão em situação de
prisão, loucura ou anormalidades. Segundo Gilberto Velho essa nomeação gera um problema, pois
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no nível do senso comum, o sujeito desviante é sempre remetido a uma perspectiva de patológica,
como explica:
Tradicionalmente, o indivíduo desviante tem sido encarado a partir de uma
perspectiva médica preocupada em distinguir o “são” do “não são” ou do “insano”.
Assim, certas pessoas apresentariam características de comportamento “anormais”,
sintomas ou expressão de desequilíbrios e doença. Tratar-se-ia, então de
diagnosticar o mal e tratá-lo (…) Enfim o mal estaria localizado no individuo
(VELHO, 2013, p. 36).
Gilberto Velho (2013), em uma crítica ao entendimento que a origem do comportamento
desviante encontra-se no individuo, aponta a desorganização de normas e valores no ambiente
social como fator favorável para aparecimento de indivíduos desviantes “a falta de consenso geraria
crise nas expectativas de comportamentos, impedindo o funcionamento normal da sociedade”
(p.39). Assim, o problema do comportamento desviante não está originado no individuo, e sim no
sistema social que gerará os comportamentos individuais desviantes. Sendo que o desviante é:
Um indivíduo que não está fora de sua cultura, mas que faz uma “leitura”
divergente. Ele poderá estar sozinho (um desviante secreto?) ou fazer parte de uma
minoria organizada. Ele não será sempre desviante. Existem áreas de
comportamento em que agirá como qualquer cidadão “normal”. Mas em outras
áreas divergirá, com seu comportamento, dos valores dominantes (VELHO, 2013
p. 50).
Os comportamentos ditos como desviantes, sempre foram motivo de preocupação por parte
de toda a sociedade, assim como também se apresentam como campo fecundo para/na realização de
estudos das Ciências Sociais, principalmente na área da sociologia. Richard Miskolci (2005), afirma
que “a Sociologia sempre buscou compreender os comportamentos socialmente desviantes”.
Pensar uma sociedade sem “desviantes”, ou seja, sem crime é irrealizável, uma vez que a
presença de crimes é rotineira e comum em todas as sociedades complexas. Segundo Durkheim
(2010), “o crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse
isenta dele”. (p. 58). Dessa forma, o crime é visto como um fenômeno que afeta a todos,
constituindo-se, segundo Durkheim como um fato social normal, produzido pela própria sociedade.
Um dos principais pontos de tensão na leitura e interpretação das relações que permeia a
maternidade e a sociedade, está no fato da mãe, no exercício da maternidade, visar proteger o filho
ao mesmo tempo que precisa lidar com o fato de que o crime com os quais seus filhos se envolvem
é produzido pela própria sociedade, colocando em risco seu papel de guardá-lo por meio dessa
maternidade. Por ser um fato social tão presente em nossa sociedade, o envolvimento dos
adolescentes no mundo do crime é um tema constante nos noticiários, jornais, programas televisivos
e debates em diversos setores da sociedade.
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2.2.1 Medidas Socioeducativas, ECA e SINASE
No Brasil, a posição do Estado frente ao envolvimento de adolescentes com a
criminalidade é dividida em fases doutrinais: a Doutrina da Situação Irregular e a Doutrina da
Proteção Integral. A Doutrina da Situação Irregular tem como base a código do menor, que vigorou
a partir do início do século XX até meados de 1950 em que crianças e adolescentes eram colocadas
no mesmo patamar de tratamento e obrigações que os adultos. Nesse tempo, havia o entendimento
que as crianças e os adolescentes pobres eram criminosos, cabendo ao Estado sua tutela.
Esse entendimento na época era baseado no senso comum que os mais pobres tivessem
certa inclinação natural à desordem e à criminalidade, como Misse (1995, p. 04), em seu artigo
“Cinco Teses Equivocadas sobre a Criminalidade Urbana no Brasil” explica:
1) se a pobreza causasse o crime, a maioria dos pobres seria criminoso e não é 2) a
esmagadora maioria de presos é de pobres, pretos e desocupados porque a polícia
segue um roteiro típico que associa de antemão a pobreza coma criminalidade; 3)
os próprios pobres declaram nas pesquisas que não se identificam com qualquer
carreira criminal.
No ano de 1988, inicia-se no Brasil a Doutrina de Proteção Integral, que tem como marco
inicial a promulgação do Estatuto da Criança e do adolescente – ECA, que prevê direitos para
crianças e adolescentes, considerando-as prioridades absolutas, sendo dever de todos (Estado e
família) garantirem e efetivação desses direitos, conforme art.4º do ECA:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária
(BRASIL, 2000, p. 20).
A Doutrina de Proteção Integral representa uma reviravolta na maneira como a sociedade
enxergar o público infanto-juvenil do País. Com a aprovação do ECA (Lei nº 8069/90), foi iniciada
a era dos direitos para menores de dezoito anos, tornando o ECA uma das legislações de proteção e
garantia de direitos da criança e adolescente mais avançadas do mundo, que prevê inclusive
medidas protetivas e socioeducativas para crianças e adolescentes envolvidos com a violência e
com a criminalidade.
A partir do ano de 1988, os jovens menores de 18 anos tornam-se penalmente
inimputáveis, ou seja, adolescentes autores de atos infracionais, análogos crimes do código civil e
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penal, serão submetidos a cumprir medidas socioeducativas, de caráter predominante pedagógico,
sendo divididas conforme art. 112 do ECA, em seis modalidades: 1) Advertência; 2) Obrigação de
reparo ao dano; 3) Prestação de serviços à comunidade; 4) Liberdade assistida; 5) Inserção em
regime de semiliberdade e 6) Privação de liberdade, através de internação em estabelecimento
socioeducativo.
A medida socioeducativa de privação de liberdade deve ser cumprida pelo adolescente em
estabelecimento educacional (socioeducativo) e próprio para esse fim, sendo garantido ao
adolescente na aplicação da medida os princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à
condição peculiar do adolescente como pessoa em desenvolvimento, conforme Art. 121 do ECA.
Nos anos seguintes da aprovação do ECA, os movimentos de defesa dos direitos das
crianças e dos adolescentes especialmente os militantes que atuam em defesa da humanização das
medidas socioeducativas, observando que a nova mentalidade proposta no ECA diante da
problemática do envolvimento dos adolescentes com ato infracional e a necessidade de políticas
públicas que efetivem a garantia de direitos de adolescentes em conflito com a lei, reuniram-se para
construir o SINASE:
Em fevereiro de 2004 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), por
meio da Subsecretaria Especial de Promoção dos Direitos da criança e do
Adolescente (SPDCA), em conjunto com o Conanda e com o apoio do Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), sistematizaram e organizaram a proposta
do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Em novembro do
mesmo ano promoveram um amplo diálogo nacional com aproximadamente 160
atores do SGD39, que durante três dias discutiram, aprofundaram e contribuíram de
forma imperativa na construção deste documento (SINASE), que se constituirá
como um guia na implementação das medidas socioeducativas. A implementação
do SINASE objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação
socioeducativas sustentada nos princípios dos direitos (SINASE 2006, p. 15)
A proposta considera que o ECA não esgota a necessidade de estabelecer parâmetros para
gestão das medidas socioeducativas nos estados, uma vez que a diretriz regente do atendimento
socioeducativo requer um leque de políticas de atendimento específicas e transversais. Deste modo
nasce o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, que é:
O conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político,
pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração
de ato infracional até a execução de medidas socioeducativas. Este sistema
nacional inclui os sistemas estaduais, distritais e municipais, bem como todas as
políticas, planos e programas específicos de atenção a esse público (SINASE 2006,
p. 23).
O SINASE visa estabelecer parâmetros pedagógicos, organizacionais e arquitetônicos que
39
Sistema de Garantia de Direitos
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orientarão os procedimentos das medidas socioeducativos no Estado de forma justa e humana.
Recentemente, os princípios e pressupostos do SINASE se tornaram obrigatórios, através da
aprovação da lei Nº.12.594 que institui o Sistema Nacional de Execução das Medidas
socioeducativas, sancionada pela Presidenta da República, Dilma Rousseff, no dia 18 de Janeiro de
2012.
2.2.2. Uma breve contextualização das medidas socioeducativas em Rondônia
Em Rondônia, as medidas Socioeducativa passam a ser executadas seis anos depois da
aprovação do ECA, em 1994, pela Secretaria de Justiça e Cidadania – SEJUCI, através do Decreto
n. 6400. No ano de 2000, o Estado passa a ter o entendimento das medidas Socioeducativas como
uma política de atendimento social, passando a responsabilidade de execução dessas medidas para a
atribuição institucional da Fundação de Assistência Social – FASER.
No ano de 2007, a referida Fundação foi extinta do quadro estrutural do governo do estado,
e a função de executar as medidas socioeducativas ficaram a cargo da Coordenadoria de
Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei – CAA. O referido órgão é subordinado à
Secretaria Estadual de Justiça que, por sua vez, tem como dever de administrar o sistema
penitenciário e socioeducativo, conforme Lei Completa N. 412 de 28 de dezembro de 2007.
O histórico do atendimento Socioeducativo no Brasil, assim como em Rondônia é bem
recente, como evidenciado acima. O estado de Rondônia demonstra certa instabilidade na gestão
das medidas socioeducativas, uma vez que gerenciamento das mesmas já passaram por diversas
instituições estaduais e algumas pesquisas e informações colocam o estado em uma posição
preocupante sobre a situação dos adolescentes em conflito coma lei, como podemos perceber a
seguir.
O 4º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, realizado pelo Núcleo de
Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) aponta um crescimento, entre 2004
e 2006, no número de adolescentes (entre 12 e 17 anos) cumprindo medida de internação, a região
Norte teve a maior alta de jovens infratores internados (70%). Rondônia aparece com crescimento
de 750% de adolescentes em conflito com a lei, com um número absoluto de crescimento de 30 para
233 jovens.
Porto Velho ocupa a 18ª posição entre os 43 municípios, nos quais a taxa de adolescentes
em situação de vulnerabilidade é considerada alta, conforme uma pesquisa encomendada pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que pesquisou mais de 266 municípios com mais de 100
mil habitantes em 2008.
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Dados levantados in loco na Coordenadoria de Atendimento ao Adolescente em Conflito
com a Lei/CAA revelam que, entre os anos de 2008 a 2009, o número de adolescentes que
cumpriram medidas socioeducativas de internação, chegou a 1.372 enquanto o número de saída foi
de 1.079, sendo que deste total 339 adolescentes eram reincidentes, conforme gráfico I e II.
Figura 4. Gráfico I: Quantitativo de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação em Rondônia - 2008.
Figura 05 - Gráfico II: Quantitativo de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação em Rondônia – 2009.
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FONTE: Coordenadoria de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei- CAA gráficos elaborados pela autora.
No tocante à infraestrutura das unidades socioeducativas de Porto Velho, algumas
pesquisas revelam um cenário precário, e que nem sempre os direitos dos adolescentes e dos
servidores são garantidos como previstos por lei. O que compromete os atendimentos oferecidos aos
adolescentes, eliminando as possibilidades do jovem seguir outro caminho que não seja o da
criminalidade, veja a colocação acerca de um estudo realizado na Unidade Feminina de Internação
de Porto Velho:
As disparidades entre o legalmente instituído pela legislação de garantia de direitos
da criança e do adolescente não foi a única revelação da pesquisa de campo,
também podemos constatar o quanto o tratamento socioeducativo oferecido a essas
adolescentes, é semelhante ao tratamento penitenciário, apresentando o sistema
socioeducativo como uma versão “teen” do sistema carcerário. (MESTRE. 2013, p.
08 e 09)
Diante desse cenário, destaca-se a importância dos gestores das medidas socioeducativas,
em especial do Estado de Rondônia em se adequar urgentemente aos princípios e regras
estabelecidas através do ECA, SINASE e Regras Mínimas das Nações Unidas Para a Administração
Da Justiça, da Infância e da Juventude, Conhecidas como Regras de Beijing.
2.2.3. Adolescentes em conflito: entendendo o sentido da “vidaloka”.
A adolescência é caracterizada como o período de transição entre infância e a idade adulta,
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de origem latina, origina-se adolescência que significa passagem entre criança e adulto. Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA são considerados adolescentes os indivíduos com
idade entre 12 a 18 anos, no entanto, o estatuto da Juventude, nomeia como jovens os indivíduos
entre 16 a 29 anos.
A fase da adolescência é considerada “difícil”, por se tratar de um período que ocorrem
muitas mudanças pessoais, sociais, culturais, físicas e hormonais. Essas alterações causam impactos
nos sentidos, modos e manifestação em torno dos adolescentes e das pessoas que estão em seu
entorno social.
A adolescência não é só o conjunto das vidas dos adolescentes. É também uma
imagem ou uma série de imagens que muito pesa sobre a vida dos adolescentes.
Eles transgridem para serem reconhecidos, e os adultos, para reconhecê-los,
constroem visões da adolescência (CALLIGARIS, 2000, p. 35).
Tanto a adolescência como a juventude são representações sociais, construídas na/pela
sociedade, uma vez que “as representações sociais – enquanto sistemas de interpretação que regem
nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e organizam condutas e as comunicações
sociais” (JODELET. 2001 p. 22). Nesse aspecto como já destacamos, a história da maternidade
caminha lado a lado com a história da infância, representando, assim, as configurações sociais de
dada sociedade em determinado contexto histórico, conforme já evidenciado no início deste
capítulo.
A adolescência e juventude40 tornaram-se um fenômeno social central no foco da
organização da sociedade moderna e contemporânea, seja como público-alvo do sistema capitalista
(consumismo, mão de obra, publicidade etc.), seja como problema social (violência, baixa
escolaridade, desemprego, criminalidade, gravidez etc.).
Podemos verificar, por exemplo, que no contexto que vários setores da sociedade atuam na
defesa fervorosa da redução da maioridade penal, sob os pilares da falsa ilusão de impunidade dos
adolescentes infratores no Brasil. Esses discursos não levam em conta que esse público,
“principalmente os rapazes, são também vítimas frequentes da criminalidade urbana. Estão entre os
que mais morrem e sofrem violência urbana”41 (ZALUAR, 1997).
Algumas estatísticas mostram que o Brasil possui 25 milhões de adolescentes na faixa
etária entre 12 a 18 anos, o que representa aproximadamente 15%(quinze por cento) da população
40
De acordo com a Lei Nº 12.852, de 05 de agosto de 2013, que Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os
direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude –
SINAJUVE. São consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade.
41
Alba Zaluar, Antropóloga brasileira, pesquisadora das áreas: antropologia urbana e antropologia da violência
desenvolve em sua obra A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza e demonstra
aspectos determinantes da violência urbana. cf. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o
significado da pobreza. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2000, pp.07-38.
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do País42. Desses jovens cerca de 39.578 estão cumprindo alguma medida socioeducativa43. O país
tem a terceira maior população carcerária do mundo, com um total de 496 mil (2011) presos, sendo
que 59% são formados por jovens entre 18 a 29 anos, 32% correspondem a jovens entre 18 a 24
anos e os outros 26% a jovens entre 26 a 29 anos44.
Esses dados representam uma realidade, que aflige a população em geral: o alto índice de
envolvimento da Juventude brasileira com a criminalidade, em especial os adolescentes. Esse
fenômeno social atinge de forma avassaladora a sociedade e impulsiona diversos estudos e
pesquisas que tentam compreender o fenômeno, porém, muitos desses estudos acabam por legitimar
o discurso estigmatizador em torno desses adolescentes, pois não conseguem compreender o
adolescente e suas dimensões, como explica Lyra (2013, p.17):
A falta de conhecimento sobre quem são esses garotos é uma lacuna inegável nas
ciências sociais. Não se produzem reflexões sobre o que pensam a respeito de si
mesmo e do mundo à sua volta. Os sentidos que atribuem a seus atos e a maneira
como os situam diante dos conflitos éticos e morais subjacentes a eles, são
completamente ignorados. Constituem um grupo tão estudado quanto
incompreendido.
Segundo a antropóloga Alba Zaluar, um ícone nos estudos de violência e juventude, existe
uma estreita relação entre o envolvimento de jovens com a criminalidade e a busca por status de
poder. A autora explica que durante a realização de sua pesquisa “os jovens entrevistados falam do
fascínio que tanto esses bens quanto a figura dos bandidos exercem sobre eles e os fizeram
aproximar-se das quadrilhas. Hoje, homens cada vez mais jovens assumem o domínio no mundo do
tráfico” (ZALUAR, 1993, p. 193).
Os jovens acabam por adquirir o que Zaluar nomeia de “ethos guerreiro”, que tem a ver
com “ethos da honra masculina”, que é estabelecido através da priorização e demonstração da
força, da virilidade e da coragem em torno do ideal do homem forte:
A idéia do homem forte e da punição (…) é resultante de um ideal de
masculinidade baseado na demonstração de força bruta e na lealdade aos chefes
que encarnam o grupo de pares. Mata-se, rouba-se, droga-se crianças, torturam-se
maus devedores, cala-se diante de maldades, tudo em nome da autoafirmação do
homem na construção social baseada na violência, em que outros são meros objetos
de uma vontade que não tem limites nos meios empregados, em que as pessoas são
mero instrumentos para se ter o que se quer. (ZALUAR, 2004, p. 65).
As masculinidades, do “ethos guerreiro”, são manifestadas por esses adolescentes através
de códigos de conduta e performances corporais e visuais, que são incorporadas através de
IBGE, (Censo Demográfico 2000 Características gerais da população – resultado da amostra).
O Levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos (2004)
44
Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Ministério da Justiça).
42
43
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tatuagens, vestimentas, pichações, grafites etc. Essas manifestações foram percebidas durante a
pesquisa de campo, como podemos perceber nas imagens a seguir.
Figura 06 - Vida Loka
FONTE: [MESTRE. Simone. Fotografias dos alojamentos destinados aos internos da UIMS-I]
A expressão “vida loka”, demonstra a grande evidência que eles dão ao termo, sendo
manifestada nos discursos verbais e corporais dos adolescentes, e compõem parte da linguagem do
grupo funcionando como configurações de auto identificação. A referida expressão é sinônimo de
agitação, adrenalina, perigo, liberdade e até libertinagem. Ser um “vida loka” é ser um homem sem
limites, não ter medos, é viver sem restrições, sem lei, sem limite entre o certo e o errado.
Tais configurações consistem em marcadores simbólicos que desencadeiam um processo
de estigma, uma vez que segundo Goffman quando certos traços são percebidos socialmente para
identificar ou impor à atenção, acabam afastando as pessoas, no caso dos adolescentes em conflito
com a lei, seus atributos negativos são tão evidenciados com autoria do seu ato infracional, que
eliminar as possibilidades da sociedade enxergar seus atributos positivos.
Em seu artigo, Entre a Frieza, o Cálculo e a “Vida Loka”: violência e sofrimento no trajeto
de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa (2011), Paulo Artur Malvasi,
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apresenta uma interpretação do termo, a partir da letra do rap intitulado Vida Loka Parte 2, do
Grupo Racionais M’cs, como explica:
Especificamente no cotidiano de jovens que participam do “crime”, a expressão
“vida loka” sintetiza o assombro e a dor daqueles que estão situados como a vida
matável preferencial na sociedade brasileira contemporânea. A complexidade da
“vida loka” no interior do “crime” leva o jovem a um dilema: sair dele e procurar
viver como um “Zé”, realizando trabalhos enfadonhos e mal remunerados, comuns
aos moradores das periferias paulistas, sem acesso ao mundo de bens desejados, ou
continuar vivendo como “Rei”, ainda que de maneira fugaz e perigosa.
(MALVASI, 2011, p. 165).
O termo “vida loka” se apresenta também, como uma categorização dos indivíduos que
ocupam posições de comando dentro do mundo do crime, especialmente no tráfico de drogas, como
explica Malvasi (2011) “Um traficante, em qualquer posição na hierarquia do negócio, pode perder
tudo de um dia para o outro. O “amanhã pertence a Deus”, nesse ramo profissional. Quem trabalha
com o tráfico é um “vida loka”, pois seu trabalho é altamente errático e arriscado” (p. 349).
Esse dilema que coloca o adolescente entre o Rei (Vida loka) e o Zé (trabalhador mal
remunerado), é marcado por dores, sofrimento e dramas sociais. Uma enxurrada de sentimentos e
angústias giram em torno do adolescente, bem como consequências dos seus atos e o prejuízo
emocional que é causado a ele mesmo e aos familiares, especialmente a mãe, como relata Zamora:
Sentimentos de arrependimento quanto aos rumos de suas vidas, culpa por ter
decepcionado a mãe, planos futuros com ela e preocupações com sua saúde e bemestar foram relatos comuns. Meninos e meninas acreditam no poder da família em
ajudá-los a reconstruir suas trajetórias de vida, mesmo que o vínculo seja precário,
para nossos padrões (2004 p. 11).
E acreditam na possibilidade de um futuro melhor fora da vida do crime e “apontam o
interesse de conseguir um bom emprego, para colaborar com o sustento da família e alcançar a
independência financeira, anteriormente alcançada por meio da criminalidade” (LEITE & PRADO,
2012. p. 52).
Considerações
A partir desse estudo etnográfico, que consistiu na descrição e explicação dos cenários
sociais que envolvem mãe e filho privado de liberdade, com objetivo de evidenciar as
consequências sociais provocadas pelo vínculo entre mãe e filho no contexto de privação de
liberdade do filho adolescente.
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E para chegarmos na resposta para a seguinte pergunta: Por que recai sobre a figura
feminina a responsabilidade de acompanhar o filho adolescentes?. Foi necessário aprofundarmos
nosso entendimento sobre os aspectos culturais, históricos e sociais da maternidade, buscando
compreender a relação entre mito do amor materno e a expressão “amor só de mãe” à luz das teorias
de Badinter, Forna e Kitzinger, buscando compreender os significados atribuídos pelos filhos
através desta expressão.
Dessa forma, foi fundamental entender o envolvimento desses jovens com a
criminalidade, tendo em vista a necessidade de contextualizar o que são medidas socioeducativas e
compreender o sentindo da “vida loka”, um expressão adotada por eles para indicar um momento
tão delicado de suas vidas.
E para chegar ao objetivo da pesquisa, a necessidade de desenvolvê-la como um
artesanato intelectual como aconselha Wright Mills, tornou-se um exercício desafiador, e, portanto
repleto de dualidades. E assim, como todas as pesquisas, afinal, na pesquisa social, como diria
Bourdieu (1989, p. 18) nada é mais universal e universalizável que as dificuldades.
Assim, o desafio de realizar uma pesquisa etnográfica do cenário urbano, tornou-se
através do campo meu ritual de passagem de graduanda para graduada possível. De tal modo que
cada relato contado por uma mãe era como uma peça de um quebra cabeça, que às vezes parecia ter
sentido e em outros momentos eram confusos, causando dúvidas e reflexões. Contudo, percebi o
quanto essa aparente confusão é próprio de quem encarar a pesquisa de campo.
A experiência de campo proporcionou-me uma experiência única, marcada por momentos
excepcionais de aprendizado e descobertas, que propiciou o contato com as mães, os adolescentes,
servidores e unidade, ampliando meus olhares diante da pesquisa, sendo possível contextualizá-los
através de descrição de suas dimensões sociais, informações e dados, relatos, imagens e vivências.
A realização da pesquisa por meio do contato mencionado torna visível o descompasso
entre o proposto pela legislação de proteção da criança e adolescente (ECA e SINASE) e a realidade
da unidade socioeducativa, que no lugar de promover um processo socioeducativo, de caráter
predominantemente pedagógico, priorizam a vigilância e reclusão dos adolescentes, relevando-se
assim, sua posição enquanto instituição total.
Provocando a necessidade de entender o que está na base dessas medidas socioeducativas,
que em primeiro momento, apresentam-se como uma política pública que ainda é estigmatizadora
das juventudes45 das classes mais pobres.
Os significados por trás da frase “amor só de mãe” mostram o drama e o estigma que
Recentemente no Brasil tem-se enfatizado a utilização do termo no plural – juventudes – como forma de assumir que
o termo é plural, que há inúmeros movimentos de juventude com temas de interesse, estratégias de atuação e formas de
organização diferentes entre si. (BRASIL. Coletivos Jovens de Meio Ambiente, 2006, p. 11).
45
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marcam a vida dessas mães e de seus filhos, presentes na dicotomia da relação que o filho
estabelece em seu meio social, pois ao mesmo tempo que expressa todo seu amor e devoção pela
mãe , ele se identifica como um “vida loka”, fato, que acarretam a ele e a própria mãe sentimentos
de angústia e sofrimentos.
E que são em parte, agravados por vários setores da sociedade que defendem
fervorosamente a redução da maioridade penal, sobre os pilares da falsa ilusão de impunidade dos
adolescentes infratores no Brasil. Demonstrando o quanto é necessário que as pesquisas sociais e
humanas, sobre medidas socioeducativas busquem mostrar a realidade externa e interna dessas
unidades de internação, dos adolescentes e seus familiares.
Assim, cheguei à resposta que recai sobre a mãe, a responsabilidade de acompanhar o filho
durante todo o processo de execução da medida, devido uma consciência coletiva que projeta sobre
a figura feminina a responsabilidade materna de cuidar dos filhos, principalmente quando estão em
situação de vulnerabilidade.
Sendo as mães, diante desse entendimento, obrigadas a passar por todas as condições
impostas pela unidade para visitar seu filho, sendo a revista íntima uma representação da violência
simbólica na qual essas mães são submetidas. Que consiste em um ato de imposição simbólica, que
conforme Bourdieu trata-se de uma ação que “tem a seu favor toda a força do coletivo, do consenso,
do senso comum, porque ela é operada por um mandatário do Estado, detentor do monopólio da
violência simbólica legítima”(1989, p. 146).
Deste modo, espero que esse estudo desperte nas instituições de defesa dos direitos
humanos para necessidade de implantar políticas públicas efetivas, que busquem de fato humanizar
o atendimento socioeducativo e a estrutura física das unidades de internação, tornando a família
protagonista do processo de socioeducação desses adolescentes.
Almejo ainda, que essa pesquisa auxilie na construção de mecanismos que excluam essas
violências simbólicas presentes durante a execução do atendimento socioeducativo e que
contribuem para construção de estigmas do adolescente e seus familiares. Enquanto não
desconstruímos esses estigmas sociais que cercam mãe e filho, não podemos promover uma
transformação social na vida dessas pessoas, e esse drama sempre estará presente em nossa
sociedade.
Diante dessa breve leitura do mundo que envolve mães, filhos e unidade socioeducativa,
busquei contribuir para uma ciência social que segundo Giddens (2009) empenhem-se em primeiro
lugar e acima de tudo, na reelaboração de concepções do ser humano e de fazer humano,
reprodução social e transformação social. E para finalizar, lembro à importância que devemos dar as
seguintes palavras de Florestan Fernandes (1976, p. 26): “Em nossa época, o cientista social precisa
tomar consciência da utilização social e do destino prático reservado a suas descobertas”.
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_________. Sistema Nacional De Atendimento Sócioeducativo -SINASE. Secretaria Especial
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Ensaios
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A ditadura em que vivemos
Rafael Ademir Oliveira de Andrade
Cientista Social e Mestre em Educação
“O problema de hoje em dia é que as pessoas inteligentes estão cheias de
dúvidas e as idiotas, cheias de certeza”.
Charles Bukowski
Resumo
Este ensaio preocupa-se em elucidar algumas questões teóricas e reflexivas acerca de eventos ocorridos nas
últimas eleições no Brasil e que desenham um panorama das reflexões políticas realizadas nas redes sociais e nas
grandes mídias em geral que, por sua vez, influenciam as decisões e discursos dos indivíduos que tem acesso a estes
veículos de massa. Para realizar tal atividade, foram realizadas reflexões acerca de conceitos de Adorno, Gramsci,
Ortega y Gasset sobre a sociedade moderna e o posicionamento das massas em conjunto com a observação do autor
acerca das ações sociais supracitadas. A discussão foi norteada pela reflexão acerca da ditadura da opinião e suas
vicissitudes na sociedade brasileira moderna.
Abstract
This essay is concerned with elucidating some theoretical questions and reflective about events that occurred in
the last elections in Brazil and drawing a picture of political considerations made on social networks and major media in
general that, in turn, influence decisions and speeches of individuals who have access to these mass media. To perform
this activity, reflections were made about concepts of Adorno, Gramsci, Ortega y Gasset about modern society and the
position of the masses together with the author's observation on the above social actions. The discussion was guided by
reflection on the dictatorship of opinion and its vicissitudes in modern Brazilian society.
Na pesquisa de mestrado que realizei, fiz leitura de um autor liberal e culturalista chamado
Pedro Ortega y Gasset. Existem algumas afirmações políticas do autor que eu discordo totalmente,
mas acreditamos, eu e minha orientadora, que manter um intelectual que não fosse marxista, que
defendesse uma perspectiva diferente sobre a sociedade seria importante para o desenvolvimento do
texto e para uma realização prática daquilo que propúnhamos na pesquisa: o ensino de Sociologia
como possibilidade de crítica/construção da crítica sobre a sociedade de massas.
Theodor Adorno irá trazer uma discussão sobre a educação após o evento catastrófico do
nazismo: de que o consenso do discurso é um caminho para que o mesmo conceitua como barbárie,
a ausência da humanidade, algo que vimos na história do nazismo e outras formas de ditaduras – o
mesmo para a URSS, afirmo, para desgosto dos marxistas mais ortodoxos.
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Logo, podemos compreender que a multiplicidade dos discursos é importante para a
manutenção de uma intenção de existência futura daquilo que chamamos de democracia. Ou até
mesmo para o que chamamos de humanidade. A presença de Ortega y Gasset, liberal e culturalista,
dentro de um trabalho acadêmico que organiza conceitos de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros
pensadores que nascem dentro da escola marxista do pensamento é uma intenção – prática – de
manter o dissenso dentro do que deveria ser puro consenso e, quem sabe, um erro político.
Durante a construção do trabalho, pensei estar cometendo um erro teórico, trazer para a
“berlinda” das discussões teóricas um autor que, apesar de concordar com o conceito de massas, dá
uma origem histórica e uma prática cultural totalmente diferente do que a teoria crítica apontava.
Creio então que o trabalho ser aprovado e esta escolha ter sido elogiada pela banca coroou uma
certeza política que tinha mesmo frente a incerteza teórica e metodológica. Mais um acerto de
muitos de minha orientadora.
Qual é o ponto desta introdução? Para a Escola Crítica, a massa é fruto de uma intenção da
classe dominante, ela nasce um conjunto de valores que associa a situação econômica das classes
não proprietárias com o direcionamento ideológico da classe dominante, em outras palavras, somase miséria, desemprego, desinformação e outras instabilidades sociais com o desejo de uma classe
se manter no poder.
Claro que esta informação pode ser associada ao Partido dos Trabalhadores (que está
atualmente na presidência do Brasil) ao passo que ele representa os interesses de uma classe social
privilegiada e não promove a emancipação cultural daqueles que auxilia com seus programas
sociais. Gramsci provavelmente analisaria da seguinte forma: existem dois tipos de intelectuais,
uma elite de pensamentos burgueses e a militância petista, e há dois tipos de homens-massa (e que
surgem da mesma natureza), os que são abarcados pelos programas sociais do PT, concordam com
isto e com sua propaganda, e os que não precisam ser (ou até precisam) dos programas sociais e
acreditam que “estão sustentando vagabundos”.
Nesta sociedade formada por intelectuais dirigentes e homens massa (uma forma de
organizar o pensamento sobre a mesma), não se pode esquecer que, sem certo autoconhecimento
político, teórico e existencial, somos todos transformados em homem-massa: cooptados pelos
intelectuais, assumimos o posicionamento de uma das classes sociais que estão em conflito pelo
poder social e nem sempre somos beneficiados pelas escolhas que fazemos.
Passamos a defender esta classe com todo afinco e é nesta que surgem os militantes petistas
que não conseguem ver corrupção na velha guarda do partido e os militantes da “direita” que
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buscam a volta a ditadura militar, afirmam que o povo nordestino é uma raça inferior (pensamento
eugenista que faria Hitler dar gritos de felicidade), dentre outras atrocidades, de todos os lados.
Para Ortega y Gasset, a massa se compõe de uma grande parcela da sociedade que, ao se
livrando dos padrões culturais e econômicos da elite, se torna incontrolável, rebelando-se contra a
ordem que poderia existir naquela sociedade. Este pensamento do filósofo espanhol aponta um
distanciamento da sociedade de classes, organizando os indivíduos pelo acesso e recebimento de
uma cultura escolhida por certo grupo de indivíduos – sofre do mesmo mal de todos os liberais:
quer transformar em magia tudo aquilo que é sólido.
Há uma crítica gritante sobre “A Rebelião das Massas”: em nenhum momento o autor
aponta que a massa é fruto de interesses sociais, da elite ou mesmo aponta o surgimento das massas
como fruto do desenvolvimento dos meios de comunicação em massa, mas creio que afirmar isso
seria o mesmo que dizer que as massas são fruto do capital, pois tanto hoje quanto no século
passado, é a elite que domina as formas de comunicação em massa. Há um vazio (ou “gap”), um
espaço, no discurso deste autor.
Ortega y Gasset trás, dentro deste viés que apontei acima, algumas características da massa
que considero reflexões da massa no Brasil e essencialmente suas manifestações na última eleição e
nos dias que se seguem. Discordo do espanhol essencialmente na “origem histórica” e função da
massa, vou concordar com Adorno e Horkheimer, ou seja, com a Teoria Crítica e sua revisão do
marxismo.
A primeira questão é sobre o filisteu46 da cultura. Neste conceito, o autor vai apontar aqueles
indivíduos que são grandes defensores e que seguram o estandarte das massas, das culturas que
adotam. Este filisteu da cultura é o líder da exploração, ele desconhece a origem de suas crenças, ele
a reproduz violentamente e ao mesmo tempo, subordina os que estão a sua volta à estas crenças
sempre que possível, sempre que ocupa espaços de poder.
Pode-se afirmar que este filisteu assume uma posição dentro do conflito de classes, mas não
como um intelectual consciente, mas como o grande reprodutor da massificação. Temos como
exemplo deste o indivíduo que afirma “eu sou um burguês, eu amo a burguesia”, podemos amar os
benefícios de uma sociedade burguesa, mas o burguês é aquele que detém os meios de produção
material, este filisteu da cultura é um defensor dos valores morais e éticos de uma classe social,
mesmo sem participar dos benefícios de pertencer a esta classe. O filisteu da cultura é o agente
responsável por manter as pessoas dentro da engrenagem.
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Sei que este termo não é apropriado e demonstra um pensamento arcaico, mas estou mantendo o conceito como
ele é escrito em respeito ao autor.
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Na Alemanha Nazista antes de 1933, a SS (a polícia especial do governo) contava com
poucos membros em comparação aos indivíduos das cidades em que atuava: essencialmente ele
contava com informantes beneficiados diretamente pelo partido nacional socialista e do filisteu da
cultura, aqueles indivíduos que tinham dentro de si antissemitismo e que defendiam os interesses do
Fuhrer mesmo sem terem benefícios diretos.
No capitalismo, o filisteu vai difundir a necessidade do consumo, do trabalho em qualquer
condição, da educação técnica e direcionada, o machismo (ou falocentrismo), o preconceito
religioso (colocando certas religiões sobre as outras, essencialmente a sua), dentre outras formas de
discurso que vão beneficiar a classe dos empresários no que cerne ao controle ideológico e material
das massas.
Podemos ver outras formas de atuação do filisteu da cultura: ele é o reprodutor do
etnocentrismo! Só sua cultura é a correta, só ela pode salvar a alma, ou o Brasil! A cultura do outro
é excêntrica em dois tipos: ou ela é boa para se visitar ou deve ser mantida longe. Os imigrantes
haitianos que estão trabalhando no Brasil podem ser bons ou ruins para o filisteu da cultura: quando
ele dança, se converte ao cristianismo e trabalha recebendo menos do que um brasileiro, ele é bom,
mas quando “rouba meu emprego” ou é praticante de Vodu, ele é mal e deve ser “devolvido ao seu
país de origem”, o filisteu compra as intenções da elite, sendo ele um dos mais explorados.
Tanto Adorno quanto Ortega y Gasset não presenciaram o amplo desenvolvimento das redes
sociais na modernidade. É preciso levar os conceitos que eles cunharam além do jornal, rádio e
cinema e tenho compreensão que este simples ensaio não esgotarás as possibilidades de análise,
mas proponho uma singela apresentação. O sentido desta parte do texto é apresentar o que seria
uma rebelião da massas e como esta se apresenta agora como uma ditadura das massas – não como
Ortega y Gasset pensa – mas amparada pelos interesses da classe dominante.
Para o filósofo espanhol, a rebelião das massas é quando estas saem do poder da elite
dominante cultural e economicamente. Assim, esta rebelião leva à degradação da cultura e do país
como um todo, pois vivemos a “imposição da opinião”. A massa é ignorante e não reflete
intelectualmente sobre o que vai afirmar: afirma de acordo com seus gostos, impondo sua vontade.
Nessa questão, estudando e observando as redes sociais, só posso discordar de uma coisa: as massas
não saem do julgo das classes dominantes, mas se emergem no discurso da mesma, que é elitista e
segregacionista.
Assim, na segunda metade do século XX nós temos a imposição da opinião como força
primeira e última da massa, como preceitua o filósofo espanhol, mas qual seriam o alcance e a força
motriz dessas afirmações que são tão afirmativas quanto pessoais sobre a generalidade social. Para
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esta forma de rebelião das massas, a ciência e a reflexão filosófica não são fatos à serem levados em
consideração na definição do que é certo ou errado.
Com o desenvolvimento das redes sociais, o alcance da imposição da verdade é cada vez
mais amplo, atinge a todos e os resultados são óbvios: chegamos ao brasileiro que reclama da
ditadura populista pedindo pela ditadura militar, como se esta fosse solução para aquela, como se a
tortura e morte fosse a solução para a tortura e a morte que o brasileiro comum sofre diariamente.
Tudo começou com os vlogs (blogs de vídeos, ao invés de escrever, os autores postam
vídeos) do “youtube”. Na época, em uma discussão sobre a sociedade um dos que pertenciam a
mesa citara tal de “Felipe Neto” ao falar de política, economia e mercados. Foi infecunda a
possibilidade de citar Marx, Smith (apelei para o lado liberal filisteu da cultura) ou outros autores: o
cara que aparece fazendo caretas no Facebook era a autoridade intelectual da mesa. Aí que nós
temos um grande problema: a internet 2.0 possibilitou que todos colocassem suas opiniões sobre
todos os assuntos e ao invés de uma democratização dos conhecimentos, chegamos ao que chamo
de ditadura das opiniões, esta sim, a ditadura que já vivemos.
Este movimento da ditadura da opinião criou diversos monstros desde a primeira década do
século XXI. Seu espaço não é na academia, a não ser como objeto de estudo, mas vai proliferar nas
redes sociais e nas manifestações de opinião. Ela gera Felipe Neto e Pedro Bial, ela dá o tom e retira
das catacumbas o Poderoso Olavo de Carvalho – professor sem ter diploma ou experiência, filósofo
sem refletir – dando para estes e outros o poder sobre a opinião. Mas a ditadura que vivemos não se
instaura aí, neste começo: no inicio estes “intelectuais da massa” vão se preocupar em afirmar sobre
sagas de filmes e livros, sobre o conteúdo de refrigerantes e outras questões inerentes à cultura de
massas.
Pouco a pouco o espaço para a leitura e crítica de livros se restringe à Academia e a espaços
mais obscuros da rede mundial de computadores: o estudioso (o nerd de antigamente) não é mais
um estudioso, mas um curioso de tudo. A opinião toma conta da rede e dos indivíduos servindo
como um reforço, e agora, como um substituto ao antigo poder da televisão. Assim como os
intelectuais judeus foram sumariamente trocados por intelectuais eugenistas na Alemanha nazista, o
acadêmico e o pesquisador foram trocados pelos “compartilhamentos”, pelas “frases feitas” das
redes sociais, belos vídeo-blogs, jornais eletrônicos e outras formas de comunicação em massa. É
uma evolução distópica da função que a televisão realizava, o mesmo que a propaganda nazista,
propagando ódio e violência quase que na mesma medida.
Não quero parecer com Balzac (nem poderia ter a grandeza do mesmo) em “Ilusões
Perdidas” e na introdução de “Comédia Humana”, sendo um intelectual que se opõe as novas
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formas de manifestação da cultura, Balzac foi contra o jornalismo até ser assimilado pelo mesmo
em seus trabalhos.
É preciso compreender que há uma diferença metodológica e de objetivos entre Roberto
DaMatta e Olavo de Carvalho, Sakamoto ou Reinaldo de Azevedo, o primeiro tem uma
preocupação em verificar, como cientista, o que uma sociedade é ou apresenta ser e os outros dois
tem um grande canal de comunicação a seu serviço para expor sua simples, preconceituosa e
direcionada opinião, sendo aclamados pelas massas, que vão concordar com eles pois está dentro do
rol de suas crenças aquilo que eles falam: a opinião dá força a opinião e, geralmente, ao preconceito
e ao ódio ao outro.
Proponho-me como cientista ou como alguém que reflete sobre o tema, tentar atribuir aos
bois os nomes certos, como eu fiz no começo deste ensaio: a culpa é de todos os partidos e quem
ganha com isto não é o brasileiro, é um interesse de classes e minoritário, claro que, dentro dos
partidos, existem indivíduos que possam pensar no coletivo e conseguir certas vitórias, mas minha
opinião sobre o tema é distópica.
Voltando ao objeto diretamente. Em 2012-2014, por força impulsionadora da grande mídia e
das redes sociais foi possível observar a entrada massiva destes agentes da opinião no conflito de
classes, no período de eleição, antes e após o mesmo. Artistas e “(v)blogueiros” foram utilizados
amplamente como opiniões assertivas e definitivas sobre as questões sociais e políticas no Brasil e
no mundo. Muitos se posicionaram diretamente e colocaram suas opiniões a serviço do
convencimento para um partido x ou y.
Esta relação arte-sociedade não é exatamente nova, mas a minha opinião sobre a necessidade
de uma reflexão crítica e científica sobre a sociedade também não: cito principalmente Weber e
Mannheim, para sair do eixo marxista-liberal como exemplo, a sociologia da educação dos mesmos
(ou objetivos para a educação) é a racionalização da sociedade.
A ditadura que nós vivemos, da opinião, se solidifica com os espaços ganhos pela opinião
dos seus ditadores: homens embebidos das vontades de uma classe social, defendendo estes
posicionamentos a todo custo e difundindo estas ideias com a afirmação de uma verdade religiosa –
sem saber ou sabendo – estes “mestres da opinião” levam as massas, ao homem-massa, incapaz de
refletir e sedento por acomodação (pelo “sono gostoso” social, como dizia um professor meu, ou
pelo “calor acolhedor do rebanho” como diria outro) a seguir todas as tendências: até mesmo querer
a volta da tortura e a certeza de que o nordestino é um ser inferior.
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Se nos posicionamos contra a ditadura “bolivariana-petista-bolchevique-maoísta” no Brasil,
primeiro deveríamos saber o que realmente é uma ditadura e seus estágios: numa ditadura direta,
não poderíamos submeter nossa opinião contra elas.
Se vivemos numa ditadura socialista velada, então podemos dizer que vivemos uma ditadura
capitalista velada: se pode olhar para a proteção social exacerbada do Estado, pode-se ver também o
consumismo cada vez mais presente em nossas crianças, mas como massas, “psdbistas ou petistas”
só vemos um lado, o lado de onde estamos e mudamos de opinião de acordo com o que é veiculado
nas mídias e não paramos para refletir sobre a veracidade de nenhum dos dados. Refaço uma
pergunta de um amigo, estudante de direito: quem de nós aqui fiscalizou o portal da transparência
nos últimos dias? Mas todos nós temos uma opinião, que vai concordar com Reinaldos, Lobões,
Sakamotos, e outros.
Já afirmo: sou contra toda forma de ditadura: do capital, socialista (que historicamente tem
sido assassina), de raça ou da opinião. Volto ao conceito do começo do texto: a divergência do
pensamento surge da reflexão de cada indivíduo sobre seu condicionamento social, quem disse isso
foi Freire, se apropriando de Marx. A sociedade de massas é uma evolução do pensamento
capitalista e de outras formas de ditadura: foi presente no nazismo, no socialismo e é presente no
capitalismo, é a essência da dominação dos povos, lição que Aristóteles ensinou à Alexandre o
Grande, melhor é vencer pela cultura, a vitória pela simples força levaria às revoltas.
Só aquilo que eu gostaria de chamar de “conhecimento de sua condição social” pode levar à
uma reflexão (esclarecimento) sobre seu posicionamento. Isso requer: olhar pelo olhar do outro e ter
as mais diversas lentes para olhar a realidade, que não a da sua classe social apenas. Isso requer,
essencialmente, conhecimento sobre a sociedade nas mais variadas ciências (economia, política,
sociologia, filosofia), sobre sua construção social e corporal (psicologia, história, educação física) e
uma formação para o mercado de trabalho (matemática, química, metodologias de ensino, pesquisa,
dentre outras), ou seja, requer a formação de um homem completo, não a de um escravo: basta
lembrar que a dulcéia (educação de escravos) remetia ao trabalho direto e a paidéia (formação do
cidadão) envolvia uma grande gama de conhecimentos.
Em uma sociedade como a nossa em que se ensinam os indivíduos a serem escravos e as
eleições são uma disputa pela cooptação dos olhares destes escravos prontos para obedecer, a
ditadura se reforça pela opinião dos igualmente ignorantes.
Desejamos uma sociedade de homens livres, de raças iguais, de economia menos desigual.
Desejamos uma sociedade onde músicos e jogadores de futebol sejam tratados como intelectuais e
professores tratados como lixo. Esta sociedade só pode existir com a formação de seres políticos,
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corporais e laborais, ou seja, capazes de refletir sobre a sociedade política e cultural, que tenham
conhecimento de seu corpo e que estejam aptos para estar no mercado de trabalho, dentro de seus
direitos. Mais uma vez, isto não é novidade: minha ideia é a soma de minhas reflexões com Platão,
Marx e Freire.
Além de uma educação completa, é necessária a reforma do sistema político que ai se
encontra: contra o povo, por uma manutenção ou chegada ao poder, apoiando os que já são muito
ricos, numa dualidade sem fim. Isso não quer dizer que não existam progressos nos últimos 12 anos,
mas também não quer dizer que não existiram progressos nos 04 anteriores, não estou comprando
lados, estou refletindo.
Não aceito a ditadura da opinião sobre o povo, nos transformando em uma massa maleável,
hora a favor, hora contra, ao bel prazer do vento ideológico. Eu quero uma democracia de fato, onde
homens conscientes votam e escolhem suas falas, sem que nenhum artista falido do século passado
venha dizer em quem devo votar.
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Notas preliminares sobre como escrever nas ciências sociais
Maryelle Inacia Morais Ferreira
Resumo: A proposta deste ensaio se norteia por uma breve discussão de vários argumentos que pode nos fazer pensar a
legitimidade da escrita nas ciências sociais. Com ajuda de autores antropológicos, sociológicos e ativistas busquei trazer
reflexões acerca da forma de escrita que um autor e pesquisador pode exercer. O pensamento inicial é incitar uma
possível identidade para a escrita dentro dessa área das ciências humanas, uma escrita de caráter legítimo que coloca em
sutis evidências a personalidade crítica, científica e pesquisadora do autor.
As motivações que me levaram tecer essa rápida discussão se iniciaram após uma palestra de
um antropólogo. O palestrante que compartilhava conosco suas experiências científicas, foi
questionado sobre o seu posicionamento, enquanto cientista e etnólogo, a respeito do infanticídio
em etnias indígenas. A resposta, não tão pouco me surpreendeu e intencionou uma problematização
de questões acerca do papel de um pesquisador e cientista social diante das clivagens do contato
com seu objeto de pesquisa. Não exatamente com essas palavras o palestrante argumentou que um
pesquisador não pode se curvar diante das ações emergentes da cultura local de seu objeto de
pesquisa, e que naquele momento dentro de uma etnia indígena o que se deve prevalecer é a
neutralidade do pesquisador. Enfim, após a palestra busquei propor questões iniciais sobre de qual
maneira um cientista social deve instrumentalizar sua atuação científica, de modo que a gênese de
sua pesquisa não seja algo meramente objetivo e técnico, mas que contenham elementos políticos
sobre a qual questão que ele irá levantar. Para isso, este artigo bebeu das ideias propostas por Max
Weber ao criticar a objetividade total nas ciências humanas.
Portanto, a tese principal deste ensaio foi trazer realces de como um cientista social pode
atuar em sua escrita, uma vez que podemos supor que a escrita seria um dos maiores instrumentos
que o pesquisador social detém.
Escrever dentro e sobre uma área tão abrangente como a Ciências Sociais, além de não ser
uma tarefa fácil e bastante amplificada, exige no mínimo qualidade de escrita e poder sintético. De
modo geral esse campo de estudos instiga as mais diversas reflexões: estudo das origens, do
desenvolvimento, da organização e do funcionamento das sociedades e culturas humanas. O
cientista social pode se quiser estudar os fenômenos, as estruturas e as relações que caracterizam as
organizações sociais e culturais, os movimentos e os conflitos populacionais, a construção e
desconstrução de identidades e a formação das opiniões. Ele pode pesquisar os costumes e hábitos
Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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investigando as relações entre indivíduos, famílias, grupos e instituições. Desenvolve e utiliza um
conjunto variado de técnicas e métodos de pesquisa tanto para o estudo das coletividades humanas
quanto para metateoria. Assim ele pode interpretar os problemas da sociedade, da política e da
cultura.
Diante da proporção de possibilidades de estudos, o cientista social é considerado um
pesquisador. Ele investiga, vai a campo e vivencia uma multiplicidade de realidades, de modo que
depois do processo sistemático de investigação, o pesquisador, é claro, terá que expor seus
resultados e a pertinência de seu trabalho. Afinal, estudar as organizações dialéticas dos homens é
de extrema importância e, portanto, exige do estudioso dessa ciência uma intervenção escrita, pois é
através dela que se legitimam os estudos nas ciências sociais – enquanto campo de pesquisa
(CALDEIRA, 1988).
O ideal das ciências sociais está em primeiro plano na sua capacidade de teorizar e, em
outro plano, no ativismo crítico, isto é, questionar aquilo que é dado e complexificar tudo aquilo
que parece elementar no social. Nesse sentido o cientista social deverá possuir uma verossimilhança
no modo de agir, e usar seu atributo legítimo “a escrita”, para exercer sua autonomia.
Escrever não é apenas uma questão de profissionalismo, e nem pode se conjecturar somente
no pólo acadêmico. A escrita requer do autor um sentimento político, um histórico de vivências
enquanto consciência crítica e não meramente uma reprodução. O cientista social no ato de sua
escrita pode aparecer como uma figura intelectualizada, que ao expor os resultados de sua pesquisa
tem a autonomia de exercer um caráter político e social e não apenas se prender nas técnicas
profissionais. Este exercício de transitar entre uma escrita normativa e ao mesmo tempo crítica, com
a problematização dos resultados de pesquisa, faz dele um intelectual, uma pessoa de caráter
político e técnico. É neste contexto que se faz pertinente uma analogia entre a figura do intelectual e
a instrumentalização da escrita. Said (1994) analisa a figura deste intelectual e discuti suas
representações. Desse modo o autor contribui para o entendimento e proposição do que deve ou do
que deveria fazer um cientista social em sua escrita.
Há o perigo de que a figura ou imagem do intelectual possa desaparecer num amontoado de
detalhe, e que ele possa tornar-se apenas mais um profissional ou uma figura numa tendência
social. O que vou discutir nestas conferencias tem como certas essas realidades do final do
século XX, originalmente sugeridas por Gramsci, mas quero também insistir no fato de o
intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido
simplesmente a um profissional sem rosto, um membro componente de uma classe, que só
quer cuidar de suas coisas e seus interesses. A questão central para mim, penso, é o fato de o
intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular
uma mensagem, um ponto de vista (SAID, 1994: p. 25).
Said reitera o verdadeiro papel do intelectual, não muito diferente disso é a atuação da
escrita e consequentemente atuação do provedor desta. Não quero delinear aqui o arquétipo de um
escritor nas ciências sociais, nem quero também montar um modelo de autor. Mas é de extrema
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importância e legitimidade que a escrita neste campo contenha elementos que desconstrua a
extrema objetividade. Pois, o pesquisador e em seguida escritor, irá expor os resultados de suas
pesquisas, resultados esses que, como já dizia Weber (1992), não estão ausentes dos valores dos
fenômenos sociais. Essa escrita estará sempre em contato com estes fenômenos e por isso não
deixará de lado as representações daquele espaço estudado. É neste momento que o sujeito
conhecedor exerce sua autonomia, tanto de produtor de resultados de pesquisa quanto como ser
político e social. A teorização ao ser estampada de significados desconstrói as fronteiras que a plena
neutralidade impõe. As palavras filosóficas de Foucault (2001) nos ajudam a reforçar essa imagem
do autor e cientista social que está sendo discutido neste texto.
Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: ela se
basta a si mesma, e, por conseqüência, não está obrigada à forma da interioridade; ela se
identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de
signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do
significante; e também que essa regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido de
seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita
e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além
de suas regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou da
exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem;
trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer.
(FOUCAULT, 1969: p.6).
Seguindo essa linha de raciocínio, a escrita seria um “jogo de signos” que contenha um
conjunto de ralações entre o que propriamente está dizendo no corpo do texto, a personalidade do
autor – sujeito de conhecimento – e a funcionalidade textual. A funcionalidade pode ser uma
provocação ao próprio autor, uma crítica a algo externo ou os resultados de uma pesquisa. No
entanto, o mais importante, precisaria ser algo além de resultados neutros de uma pesquisa empírica
e não estar extremamente presa ao profissionalismo acadêmico (SAID, 2000). É importante destacar
que a escrita não pode deixar totalmente de lado as regularidades, mas deve se sustentar em um
campo libertário, de liberdade do autor e liberdade do leitor – seria algo bem politizado e ao mesmo
tempo reconhecido pelo seu campo de atuação.
O autor pode também utilizar da criação teórica para desconstruir certos conceitos que foram
cristalizados por uma forma de conhecimento dominante. Assim, poderá dar abertura para novos
lócus de conhecimento e reinventar a epistemologia a partir de conceitos e teorias que abram
espaços às margens, que derrubem fronteiras entre povos e desmonte a linha crescente do saber
evolucionista. Mignolo (2003) em sua metateoria argumenta que a teoria pode ser utilizada para dar
uma nova versão à razão subalterna, podendo se manifestar um novo sujeito que pense o póscolonialismo fora da epistemologia ocidental.
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O que estou argumentando neste capítulo e no resto do livro é que deveríamos desvincular o
conceito de teoria de sua versão epistemológica moderna (explicando ou fazendo sentido a
partir de fatos ou dados isolados), ou de sua versão pós-moderna, a desconstrução de redes
conceituais reificadas. Segundo entendo, um dos objetivos da teorização póscolonial/colonial é reinscrever na história da humanidade o que foi reprimido pela razão
moderna, em sua versão de missão civilizadora ou em sua versão de pensamento teórico
negado aos não-civilizados (Gilroy, 1993). (MIGNOLO, 2003: p. 158).
Este ensaio propõe o início de uma conversa que poderá provocar questionamentos e
investigações futuras. Através desse início de discussão e com a contribuição de alguns autores,
podemos apresentar elementos que devem compor a escrita nas ciências sociais. Mas é importante
lembrar que não coube a este trabalho identificar e apontar os caminhos de uma escrita correta, mas
sim levantar uma breve discussão sobre a construção da autonomia de um cientista social perante o
objeto de materialização do seu trabalho. Procurei de forma sucinta, dialogar com as possibilidades
que o autor nas ciências sociais tem para demarcar sua personalidade de pesquisador, de se sentir
próximo do que ele é, do que ele fez e da pessoa externa – o leitor. Seja no formato que for, o autor,
pesquisador e cientista seria uma figura dual no ato de sua escrita, isto é, levaria ao campo científico
os resultados de um trabalho laboratorial e ao mesmo apresentaria sua identidade política, o ser
social que ele é e que seus pesquisados também são. A escrita nas ciências sociais seria o
instrumento que o tornaria um intelectual.
Enfim, para conter esta discussão, podemos trazer a escritora e ativista Glória Anzaldúa, que
ao dedicar uma carta as mulheres escritoras, expressou através do feminismo pós-colonial o
conhecimento e o desejo de desconstruir as fronteiras que retrata a subalternidade. Anzaldúa (2000)
utiliza a literatura feminista para debater a diferença dentro do próprio movimento e defender que as
mulheres podem buscar sua autonomia através da escrita, fazendo surgir novas teorias.
O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a
realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão. O que nos
valida como seres humanos, nos valida como escritoras. O que importa são as relações
significativas, seja com nós mesmas ou com os outros. Devemos usar o que achamos
importante para chegarmos à escrita. Nenhum assunto é muito trivial. O perigo é ser muito
universal e humanitária e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular, o feminino e o
momento histórico específico. (ANZALDÚA, 2000: p. 233).
Todos esses argumentos trazidos durante o texto tiveram como base de seguimento a linha
de alguns autores antropólogos pós-modernistas que criticavam a teorização das experiências
etnográficas da década de 1920. Esses autores lançam mão de uma abordagem que aponta a falta de
senso crítico pelos antropólogos modernistas (CALDEIRA, 1988). Essas críticas também já haviam
sido discutidas por Geertz em sua linha hermenêutica. Tereza Caldeira (1988), afirma a necessidade
do caráter político de um escritor antropólogo. De acordo com a autora, não se deve ignorar o
conhecimento que os antropólogos produzem no contato com as relações de poder e desigualdade,
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os antropólogos não podem ser ausentes em seus textos (CALDEIRA, 1988). Desse modo, as ideias
de Caldeira (1988) fornecem vários elementos para reforçar a ideia deste texto, onde a figura do
cientista social não deve ser extinta durante a escrita, seus conhecimentos políticos devem ser
utilizados para debater e contestar essas relações de poder e subalternidade existentes dentro das
relações humanas.
Referências
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro
mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.
CALDEIRA, Tereza. P. do Rio. A presença do autor e a pós-modernidade. In: Novos Estudos
CEBRAP,
n.21,
1988.
Disponível
em:
http://novosestudos.uol.com.br/indice/indice.asp?idEdicao=55#311.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: _______ Ditos e Escritos: Estética – literatura e
pintura, música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 264-298.
SAID, Edward W. Representações do intelectual. Lisboa: Edições Colibri, 2000.
MIGNOLO, Walter. D. A razão pós-ocidental. A crise do ocidentalismo e a emergência do
pensamento liminar. In: História Locais/Projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UMFG, 2003.
WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política.
In:______. Metodologia das ciências sociais. Parte I. São Paulo: Cortez, 1992 [1904].
2
Palavra enfatizada pela autora.
3
Expressão de Foucault em uma sessão aberta no College de France. Em O que é um autor? Página 6.
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Tradução
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A autoridade em desejo. Algumas reflexões sobre sujeição e sexualidades47
Aina Pérez Fontdevila (Universitat Autònoma de Barcelona)
Tradução de Brena Barros (Graduanda Arqueologia UNIR)
Resumo: Este artigo se propõe a refletir sobre as discussões em torno da autoridade do desejo sobre o sujeito
e a ficção da singularidade, procurando reivindicar, principalmente no que se refere à expressão das
sexualidades não-hegemônicas, a desconstrução de discursos normativos e o exercício de nossa agência
transformadora.
“Sabemos del amor por lo que alumbra, (...) por su modo de estar en la penumbra”, como
diz o poema de Manuel Alcántara (e a canção de Mayte Martín) e nos apraz esta imagem segundo a
qual nunca vemos diretamente o rosto, e sim os efeitos, as marcas. Apaixonar-se é justamente isso:
encontrar-nos esboçando um gesto que nos ponha no encalço de um rasto sem tempo para
questioná-lo, é permitir que a mão direita ignore o que faz a esquerda. Sem muitas explicações, sem
muitas decisões, como se uma intervenção decidida do eu, como se uma interferência da razão,
desvirtuassem o amor, subtraindo-lhe autenticidade. Senhorear o desejo, ser demasiadamente ama
de si mesma no querer, ou seja (para introduzir a comparação que usarei no momento), ter sobre ele
demasiada autoridade, parece atestar sua falsidade. Como se dominar, neste âmbito, quisesse
sempre dizer sujeitar, reprimir, com ou sem o reflexivo: Isto é, conter por um coup de force do eu,
algo que não sou eu, e por sua vez, por um coup de force do eu, conter-se, conter o eu, aquele que é
mais genuíno, isso que constituiria sua única firma verdadeiramente autêntica, precisamente aquela
que, de fato, não pode traçar do todo porque não pode firmá-la sozinha.
Frequentemente pensamos no desejo, no prazer, na paixão sob um paradigma similar aos
que servem também para pensar a criação artística48. Isto é, como aquilo que, provindo de instância
alheia e superior – a fonte de inspiração (as musas, as divindades, a Arte em maiúsculo) - nos aflige,
nos arrasta, nos ultrapassa, sem que o possamos – e com frequência, sem que o queiramos – evitar.
Entendidas desde esse ponto de vista, criatividade e paixão tracejam uma figura ambígua para a
subjetividade: espaços de desagenciamento nos quais não sou eu (ou não apenas eu), quem esboça
Este artigo se insere no projeto “¿CORPUS AUCTORIS? Análisis téorico-práctico de los procesos de autorización de
la obra artístico-literaria como materialización de la figura autorial" (FFI2012-3337I), do grupo de pesquisa consolidado
Corpo e Textualidade (Universitat Autònoma de Barcelona). Foi publicado originalmente em língua catalã com o título
“L'autoritat en desig. Algunes reflexions sobre subjecció i sexualitats” na revista Quadern de les idees, les arts i les
lletres (ISSN 1695-9396), 193, Dezembro 2013 / Janeiro 2014.
48
Como mostram Berensmeyer, Buelens e Demoor, ao longo da história da arte e da literatura encontramos uma
alternância entre concepções “fortes” e “fracas” da autoria, que dependem precisamente do grau de agência,
propriedade, autoridade, etc., que se atribui ao autor/a. Sou consciente, pois, de que descrevo somente um dos
paradigmas através dos quais se compreende a autoria artística.
47
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um gesto ou um escrito, e, por sua vez, espaço de singularização, porque é a mim a quem esta
instância fala (sou eu o/a escolhido/a: tenho talento, tenho dom), e porque este esboço (o gesto que
faço como se fosse uma marionete) torna-se, paradoxalmente, a assinatura do que me é mais
próprio. Já não tanto – ou não tão somente – do que me pertence e sim do que me é mais genuíno,
idiossincrático.
Tanto em um caso como no outro, essa autenticidade não depende, pois, de um sujeito
plenamente soberano, e sim da abertura à alteridade, a um outro concreto e encarnado – o/a amante,
o/a amado/a de um lado; o/a leitor/a da obra de outro, mas, sobretudo, a esta alteridade sem rosto
que é a instância que move os fios acima de nós. Para além disso, outra característica comum enlaça
estas concepções de desejo e criação: o fato de que esta instância desagenciadora não é pensada
nunca como uma instância social, porque se o fosse, perderia sua capacidade singularizadora.
De fato, o paradigma que estou tentando descrever – sem subscrever – reforça a dicotomia
público/privado, cultural/natural, sociedade/indivíduo: a força que nos ultrapassa no desejo e na
criação oriunda de um lugar selvagem, instintivo, natural, biológico, indomesticável; ou então, de
um lugar divino, atemporal, universal, ideal. Em todo o caso, de um lugar imaginário que se opõe
sempre ao espaço social entendido como espaço de homogeneização, repetição, normatividade,
domesticidade, tradição ou reprodução.
Visitá-lo ou - mais precisamente- ter a sorte de sermos visitados por uma instância oriunda
dele, nos permite produzir algo que seja único, irrepetível, singular, e nos tornarmos assim, únicos,
irrepetíveis, singulares, isto é, plenamente humanos. É justamente porque não participa do âmbito
do comum (em ambos os sentidos: do compartilhado e do corrente), porque tem a ver com a
comunicação com instâncias que excedem ao indivíduo – pelo menos como indivíduo social – mas,
sobretudo, a comunidade, que o produto deste encontro pode ler-se como expressão genuína da
interioridade de um sujeito – embora este não possa sempre considerar-se sua fonte ou origem –
frente às forças alienadoras e – insisto – homogeneizadoras do espaço social, público, exterior.
Neste sentido, essa comunicação na realidade constitui ou, no mínimo, ratifica (certifica,
afirma, firma) o receptor como sujeito/indivíduo entendido como entidade vinculada à unicidade, à
indivisibilidade ou à irrepetibilidade, e dotado de um interior capaz de estabelecê-la, para além das
interferências exteriores. A verdade ou autenticidade que se descobre neste encontro pode ler-se
como intrínseca ou extrínseca do sujeito, ou seja, como uma essência interior velada pelo involtório
cultural que se deve desnudar de contingência, ou como uma verdade imutável proveniente de uma
instância ideal. Em ambos os casos, o afastamento e o recolhimento em si, seja na solidão total do
artista ou na comunidade fechada dos/das amantes, torna-se condição deste descobrimento.
Se no âmbito da criação esta ficção ainda opera no modo como construímos algumas das
figuras do artista ou do escritor, no âmbito do desejo, do prazer ou da paixão é evidentemente
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insustentável que sintamos sem padrões, alheios a narrativas previas e compartilhadas, e menos
ainda que os gestos que a isso se vinculam nos confiram um caráter singular ou irrepetível. Apesar
disso, algumas resistências a considerar sua natureza social, cultural, construída ou textual talvez
possam entender-se também desde esta resistência a abandonar esta ficção paradigmática, que,
como víamos, é também ou sobretudo uma ficção sobre o que quer dizer ser eu.
Há um momento atrás eu escrevia sobre o lugar imaginário do qual brota a fonte do desejo e da
criatividade e o caracterizei com duas enumerações que, justapostas, bem que poderiam enumerarse caóticas: um lugar instintivo, natural, biológico; ou um lugar atemporal, universal, ideal. De um
lado, o corpo, entendido como realidade inevitável e impermeável à cultura (onde a cultura
subtrairia idiossincrasia distorcendo a verdade única deste corpo); do outro, precisamente a
possibilidade de transcendê-lo se o consideramos aquilo que nos ata à animalidade, à repetição e a
reprodução (que se opõem à singularidade ou a individualidade). Diria que ambos funcionam tanto
na ficção do desejo ou a sexualidade, como na ficção da criatividade. Sobre a última, só quero
apontar que, embora historicamente se associe ao segundo conjunto de características e, portanto, a
um sujeito capaz de sobrepor-se ao jugo do corpo (precário, contingente, sexual, concreto, mortal,
enganoso, distorcionante), também buscou em âmbitos que tradicionalmente se lhe associem – a
natureza selvagem e indomesticável – o fundamento de sua reivindicação daquilo original,
inovador, excepcional, etc., sempre em oposição a uma influência social castradora por anódina,
tradicional, repetitiva e normativa: este seria, por exemplo, o paradigma de algumas vanguardas e
de suas derivações posteriores49. Quanto aos discursos sobre o desejo – dentre os quais me ocuparei
só de alguns dos que pretendem reivindicar as sexualidades não hegemônicas -, a tensão entre o
singular e o social, mais que na experiência da relação sexual ou amorosa – onde é evidente a
existência de narrativas culturais-, se manifesta na consideração de sua orientação como traço
identitário, e o faz – eu diria - em discursos politicamente divergentes.
Para começar, as propostas essencialistas ou biologistas, de herança decimonônica,
concebem o corpo como espaço de uma verdade natural e original (seja genética, hormonal,
cerebral, etc), que as coerções sociais podem oprimir ou mascarar, mas jamais modificar: a agência
do sujeito reside aqui, pois, na libertação do jugo social que reprime uma sexualidade verdadeira
através do seu descobrimento e de sua reivindicação, mas não na possibilidade de intervir nela50.
49
Significativamente, a feminilidade mudou de rosto conforme as flutuações na concepção da criatividade: quando esta
se entendeu como transcendência do corpo, aquela se construiu em relação à natureza e a reprodução, vetando assim o
acesso das mulheres à legitimidade criativa; quando se entendeu, em câmbio, como espaço do selvagem, a feminilidade
se construiu ligada à domesticidade e a reprodução cultural – o paradigma do qual seria, frente a arte, o artesanato -.
Para aprofundamento nestes aspectos, recomendo o livro de Michelle Coquillat La poetique du mâle.
50
Na medida em que é um dos discursos que atravessa as representações das sexualidades não hegemônicas,
poderíamos dar centenas de exemplos dele, mas proponho, para ilustração, a página da web Born this way, que se
apresenta como “a photo/essay project for gay adults (of all genders) to submit childhood pictures and stories (...)
reflecting memories and early beginnings of their innate LGBTQ selves. Nurture allows what nature endows. It’s their
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Neste caso, a/firmar o sujeito frente ao entorno social ou a influência cultural implica subordiná-lo a
uma instância que, por outro lado, obtém sua legitimidade de seu caráter imutável, ao menos
enquanto dure um corpo efêmero51. Este discurso esconde reversos politicamente questionáveis,
porque exime de responsabilidade tanto o indivíduo como o entorno social52. De um lado,
produzindo alguns efeitos similares aos da patologização trans, escusa os sujeitos tirando-lhes a
capacidade de agência e, portanto, de eleição: se toda desculpa pressupõe a culpa, se sanciona um
discurso hegemônico no qual as categorias sexuais aparecem claramente hierarquizadas,
justificando a pertinência à categoria inferiorizada.
Ademais, possibilita uma inclusão dentro do marco social que garante a sobrevivência de
categorias estancas e puras (homossexual/heterossexual) e, no geral, a continuidade dos termos nos
que este marco se apresenta: a visibilidade do desejo homossexual não questiona a hegemonia da
heterossexualidade, já que, enquanto expressão de uma verdade natural, a diversidade de
representações incide relativamente na experiência dos indivíduos. Na melhor das hipóteses,
contribui a libertar aqueles que já estão marcados de antemão por uma diferença que se inscreve em
um corpo impermeável a aquilo que o rodeia.
Outros discursos sobre o desejo não normativo colocam ênfase na pressão alienante de um
entorno hegemônico que, agora, é claramente identificado como patriarcal: reivindicam uma
instância interior portadora de uma identidade autêntica cuja libertação e cuja possibilidade de
expressão se associa com o acesso a uma suposta plenitude como seres humanos, que há que se
conseguir mediante o isolamento de uma sociedade coercitiva53. A agência do eu em relação ao
desejo fica aqui subordinada. Uma verdade interior a ser descoberta “na privacidade de nossas
psiques”, como reza um manifesto de 1970; a autonomia ou a soberania reside uma vez mais na
possibilidade de libertar esta verdade de um entorno que nos obriga a mascará-la inclusive quando
nos encontramos frente ao espelho. No contexto feminista, onde não é possível menosprezar a
importância política de postular que a biologia não é o destino, estes discursos não reivindicam o
corpo como origem de uma verdade do desejo, mas não deixam de reforçar as dicotomias
indivíduo/sociedade e público/privado, esquecendo, pois, pelo menos em parte, essa outra premissa
feminista: que o pessoal é político. Considera-se a sociedade como uma trama normativa, mas se
nature, their truth!”. Convido-lhes também a escutar as canções homônimas de Bobby Valentino (1975) e Lady Gaga
(2011).
51
E, segundo o olhar, mais além, já que a genética é um vínculo do indivíduo com a espécie, a estirpe, a herança e,
portanto, com uma instância em certa medida atemporal ou, no mínimo, que transcende a precariedade do corpo.
52
Para aprofundamento na análise das consequências políticas destes discursos, recomendo o livro de Gerard CollPlanas La voluntad y el Deseo.
53
Refiro-me, por exemplo, a alguns dos discursos que conformam o feminismo lésbico dos anos 70, como mostra o
documentário Lesbiana. Une revolution parallele, que reflete sobre os movimentos separatistas, ou a alguns dos
manifestos que Rafael Mérida recolhe em Manifiestos Gays, Lesbianos, Queer, como o que assina o coletivo
Radicalesbians. As duas citações que aparecem na continuação, no corpo do texto, foram extraídas deste manifesto
intitulado “Woman Identified Woman”.
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preserva um núcleo privado e autêntico que permanece alheio a ela e que pode recuperar-se. A
agência do sujeito se arrisca neste gesto de recuperação, que o singulariza na medida em que o
diferencia de uma massa social que leva as máscaras de umas “identidades coercitivas”, que são –
estas sim- construídas e, portanto, segundo esta lógica, falsas.
Apesar de estarem muito distanciadas, desde um ponto de vista tanto genealógico como
ideológico, das propostas expostas até aqui, as leituras voluntaristas da teoria queer54 nos permitem
estabelecer um diálogo com os postulados sobre a subjetividade que, como tentei mostrar,
estruturam aquelas. Graças a uma (enviesada) interpretação da performatividade de gênero proposta
por Judith Butler, estas leituras se livram do corpo (que é interpretado agora como materialização
discursiva) e da noção de interioridade ligada a uma verdade que se tem que descobrir e expressar
(uma interioridade que é, aqui, o efeito do processo de subjetivação e não o seu princípio), e
subsumam assim, no primeiro, o segundo termo dos binômios cultural/natural, público/privado,
exterior/interior. Não obstante, o menosprezo ao social não é menor que nas outras propostas: em
uma consideração do cultural como absolutamente maleável55, o produto destas leituras é -agora
sim- um sujeito plenamente soberano, que já não deve nada a uma instância que o co-firme, nem
corporal nem idealmente. Como se a compreensão do caráter construído do gênero, a sexualidade e,
em última instância, a identidade em todos seus aspectos – uma compreensão que singulariza a
aqueles que acessam a ela frente a uma massa que vive na ficção da natureza-; como se o
descobrimento da ausência de uma origem ou de uma verdade para o desejo dotassem o sujeito de
plena autoridade com respeito a suas encenações.
Deste modo, a ficção de uma singularidade a qual se acesse através do exercício da
soberania – mais ou menos plena, mais ou menos ligada a autoridade como origem ou como
possibilidade de acesso a uma origem alheia – funciona tanto neste como nos outros discursos que
tentei analisar anteriormente, sustentando uma bajuladora fantasia do eu, um eu que, de algum
modo, continua esforçando-se em preservar um espaço distante do “mundo comum”, como reza o
título de Marina Garcés; um espaço onde situar o que é mais próprio, aquele que, em última
instância, o faz quem é.
Longe deste imaginário, uma leitura atenta das propostas queer – como a que faz boa parte
do ativismo e da teoria -, toma nota do vínculo vital da subjetividade como uma trama normativa
que não só a restringe ou a oprime, e sim que a habilita e da qual não se pode desfazer sem
desfazer-se, embora possa negociar com ela ao negociar-se.
54
Para uma leitura crítica dessas propostas, recomendo o livro de Gerard Coll-Planas, La Carne y La Metáfora. Ali
serão encontrados alguns exemplos.
55
Consideração que é herdeira do binômio cultural/natural que, neste sentido, fica por desconstruir. Embora o natural se
leia aqui como construção discursiva, entender o cultural como maleável continua remetendo a um oposto imutável.
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A interioridade, agora, é verdadeiramente um produto da exterioridade, sem esconderijos
onde encastelar-se. Por sua vez, a exterioridade, o mundo comum, tampouco sai ileso deste
reconhecimento, porque a agência do sujeito (que o discurso social habilita como agente,
precisamente) reside em sua capacidade para transformá-lo ao transformar-se e vice-versa, sem a
possibilidade de que sobrevenha uma transformação a margem da outra. Mas com a possibilidade –
e com a responsabilidade que suceda alguma transformação, embora não nos faça excepcionais,
únicos, irrepetíveis se isso significa desvincular-nos do compartilhado e do corrente. O
reconhecimento de que nos tornamos sujeitos, e sujeitos do desejo, através da sujeição a normativas
de poder e aos discursos culturais onde se materializam, não nos impossibilita como agentes
capazes de diversificar, flexibilizar ou desviar estas normas que nos sujeitam apesar de que não as
tenhamos ditado nós mesmos; não nos impede de ampliar o âmbito daquilo que podemos imaginar,
entender e viver, transformando alguns discursos que, não obstante, continuam interpelando-nos e
construindo-nos. Do mesmo modo que não poder considerar-nos donas e amos de nosso desejo,
autores do gesto que nos conduz, não nos exime de assumir suas consequências nem de pensar-nos
e praticarmos para alargar os limites do que podemos fazer e, sobretudo, nos deixar fazer; os limites
do espaço em que a escritura pode traçar-se, embora continuemos sem poder e, por favor, sem
querer firmá-la sozinhos.
Referências
Berensmeyer, Ingo; Buelens, Geert; Demoor, Marysa. “Autorship as Cultural Performance: New
Perspectives in Autorship Studies”. ZAA: Zeitschrift für Anglistik und Americanistik. A
Quartely of Language, Literature and Culture, 60.1, 2012.
Coll-Planas, Gerard. La Voluntad y el Deseo. La Construcción Social del Gênero y la Sexualidad:
El caso de Lesbianas, Gays y Trans. Madrid: Egales, 2010.
_________, La Carn i la Metàfora. Una Reflexió Sobre el Cos en la Teoria Queer. Barcelona:
Ediloc, 2011.
Coquillat, Michelle. La Poetique du Mâle. Paris: Gallimard, 1982.
Garcés, Marina. Un mundo común, Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013.
Mérida, Rafael. M. Manifiestos Gays, Lesbianos, Queer. Testimonios de uma lucha (1969-1994).
Barcelona: Icaria, 2009.
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Ensaio Fotográfico
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Glacial Perito Moreno: um olhar sobre o gélido azul na Patagônia
Simone Gomes Marques
El Calafate, uma pacata cidade turística argentina está situada na Província de Santa Cruz às
margens do lago Argentino, o maior lago da Patagônia Argentina, na fronteira com o Chile. De lá se
chega ao Glacial Perito Moreno localizado nas coordenadas 47º e 51º de latitude sul, sendo um dos
glaciares do Parque Nacional los Glaciares, pertencente ao banco de gelo continental sul, uma das
maiores reservas de água doce do planeta.
Ao observar sua majestosa imponência, frente ao paredão gélido azulado com seus 80
metros de altura, ouvimos seu rugido. Avançando numa velocidade de 2 metros/dia, os imensos
blocos de gelo chocam entre si empurrando, rachando e provocando rugidos estrondosos.
O glacial Perito Moreno produz gelo na mesma proporção em que o perde, mantendo assim
o equilíbrio. Quando a produção é maior que a perda, o glacial avança tocando o continente e
represando o lago a sua frente. Trava-se uma batalha silenciosa entre o gelo e a água, com o passar
do tempo, que pode ser dias ou mês, a pressão da água fura a resistência do gelo ocorrendo um
fenômeno chamado “rompimento do glaciar”. Numa rápida sequência se forma um pequeno túnel
no bloco, que com o atrito da água vai aumentando através do gelo. Formando-se por vezes uma
gigantesca ponte de gelo que finalmente colapsa com enorme estrondo atirando pedaços enormes de
gelo no entorno.
O enorme estrondo provocado pelo impacto do gelo com a água, em contraste com o
silêncio que reina no local é impressionante e ao mesmo tempo fascinante. Há uma passarela para
observação do fenômeno a uma distância segura.
As informações sobre a geleira foram cedidas pelos guias do Parque Nacional los
Glaciares. E as fotos tiradas durante um passeio pela Patagônia Argentina em janeiro de 2014.
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Foto 01: Visão panorâmica do Glacial Perito Moreno com 32 km de extensão e 5 km de largura.
Seu nome foi dado em homenagem ao explorador Francisco Moreno que fez o estudo da região no
século XIX.
Foto 02: O bloco de gelo chega ao continente.
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Foto 03: Observa-se o túnel já com dimensões suficiente para derrubar o gelo e desbloquear o fluxo
de água do lago.
Foto 04: Desprendimento e queda dos blocos de gelo no túnel.
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Foto 05: Os glaciares são formados basicamente de neve compactada, possuindo várias nuances do
branco ao azul.
Foto 06: Paredões de gelo compactado com cerca de 80 mts de altura e 100 mts abaixo da água.
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Foto 07: A água descongela e escorre pela geleira abastecendo o grande lago.
Foto 08: Paisagem singular que encanta os olhos e a alma.
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Foto 09: Blocos de gelo desprendem-se, provocando estrondos ao cair nas águas do Canal de los
Témpanos (Canal dos Icebergs).
Foto 10: Visão do glacial Perito Moreno na perspectiva angular das passarelas.
Fotografia por: Simone Gomes Marques
Camêra Digital Canon Power Shot SX50 HS
Data: 13/01/2014
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Sobre as autoras e os autores
Brena Caroline Barros. de S. Miranda. Graduanda em Arqueologia, Universidade Federal de
Rondônia (UNIR).
Carlos Miguel Teixeira Ott Estudante do Curso Técnico de Química Integrado ao Ensino Médio.
IFRO – Câmpus Porto Velho Calama. [email protected]
Catarina Casimiro Trindade possui licenciatura em Sociologia pela Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, Portugal, tendo feito a sua pesquisa de monografia sobre microcrédito e
mulheres em Maputo, Moçambique, na área da Sociologia do Trabalho e do Emprego. Em Maputo,
trabalhou como oficial de programas numa ONG feminina para a promoção e defesa dos direitos
humanos da mulher, e mais tarde numa rede de escolas e centros profissionais, onde desempenhou o
cargo de técnica de género. Faz parte da rede de formadores do Fórum Mulher, rede da sociedade
civil que congrega várias organizações comprometidas com a defesa dos direitos humanos das
mulheres e igualdade de género. É atualmente mestranda do programa de pós-graduação em
Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, pesquisando associações de poupança
e crédito rotativo também em Maputo, Moçambique, mais especificamente a prática do xitique.
Iranira Geminiano de Melo Mestre em Ciências (Educação Rural) pela Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro. [email protected]
Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológico NEPA
José Ítalo Oliveira dos Santos Estudante do Curso Técnico de Química Integrado ao Ensino Médio.
IFRO – Câmpus Porto Velho Calama. [email protected]
Josenaldo Santos Porto Docente do Instituto Federal de Rondônia – Câmpus Calama.
[email protected]
Laura Borges Nogueira Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal de
Rondônia. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia.
[email protected]
Liliane Barreira Sanchez Dra. em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[email protected]
Lourismar da Silva Barroso Professor da Rede Estadual de educação, Licenciado em História –
UNIR - Especialista em Arqueologia da Amazônia – Faculdade São Lucas e Mestrando pela
PUCRS-FCR, [email protected]
Lucas Mariano Dias Estudante do curso técnico de Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio –
IFRO/Câmpus Porto Velho Calama. [email protected]
Luciano Bezerra Agra Filho [email protected] Graduado em Licenciatura em História
pela Universidade Estadual da Paraíba [UEPB] e Graduando em Licenciatura Plena em Filosofia
pela Universidade Estadual da Paraíba [UEPB].
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Madson Silva de Souza Junior Estudante do curso Técnico de Informática integrado ao Ensino
Médio do IFRO – Câmpus Porto Velho Calama. [email protected]
Maria Enísia Soares de Souza Mestre em Linguística pela UNIR. Docente da Faculdade
Metropolitana. [email protected]
Maryelle Inacia Morais Ferreira Graduada em Ciências Sociais com Habilitação em Políticas
Públicas pela Faculdade de Ciências Sociais – UFG. Email: [email protected]
Rafael Ademir Oliveira de Andrade é Cientista Social e Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Rondônia. Atualmente leciona as disciplinas de Sociologia, Antropologia e Sociologia
da Educação na rede privada de ensino superior, na cidade de Porto Velho, Rondônia.
Reginaldo Martins da Silva de Souza Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia.
Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – IFRO.
[email protected]
Ricardo Moreno de Melo Professor de Artes do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro; Professor do CBM – Conservatório Brasileiro de Música, onde
leciona as disciplinas “Cultura Popular” e “Fundamentos da Antropologia Cultural”. Graduado em
Música pela UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, e Mestre pela mesma
universidade com a pesquisa: “Tambor de Machadinha: devir e descontinuidade de uma tradição
musical em Quissamã”. Atualmente faz doutorado em Antropologia no PPGA da UFF –
Universidade Federal Fluminense.
Simeia de Oliveira Vaz Silva Aluna do curso de Mestrado em História pela PUCRS-FCR é
professora da rede estadual e municipal do Estado de Rondônia, formada em história pela
Universidade Federal de Rondônia e pós-graduada em História Regional e Gestão Escolar. E-mail:
[email protected].
Simone Mestre Bacharel e licenciada m Ciências Sociais/UNIR Mestranda em Antropologia
social/FAFICH/UFMG
Tiago Lins de Lima. Especialista em Java pela FATEC/RO. Analista de TI do IFRO. Acadêmico do
curso de Direito – UNIR. [email protected]
Uílian Nogueira Lima Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Rondônia. Mestrando em História e Estudos Culturais pela Universidade Federal de Rondônia.
[email protected]
Xênia de Castro Barbosa Mestre em História Social pela USP. Doutorando em Geografia (DINTER
UFPR/UNIR). Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia –
IFRO. [email protected]
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