Documento PDF - Cuadernos de Arte Rupestre

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Cuadernos de Arte Rupestre • Número 4 • Año 2007 • Páginas 81-116
Os períodos iniciais da arte
do Vale do Tejo (Paleolítico e
Epipaleolítico)
Mário Varela Gomes
*
RESUMO
As cerca de 20.000 gravuras que se calcula constituirem a arte
rupestre do Vale do Tejo, descoberta em 1971, mostram evolução
cronoestilística, correspondendo a longo ciclo artístico iniciado nos
começos do Paleolítico Superior e que alcança os tempos proto-históricos.
Ali identificou o autor, a partir do estudo das sobreposições, das
associações, das diferenças técnicas e de pátinas, como dos comportamentos de antropomorfos e de zoomorfos, ou da representação de
artefactos, sete grandes períodos artísticos, que reflectem importantes alterações económicas, sociais, ideológico-culturais e cognitivas.
Aqueles três primeiros períodos correspondem a sociedades de
caçadores-recolectores do Paleolítico Superior (estilo arcaico), do
Epipaleolítico (estilo subnaturalista) e do Epipaleolítico na transição para o Neolítico (estilo estilizado-estático). Foi, ainda, possível
determinar duas fases, a antiga e a evolucionada, para o estilo subnaturalista e duas outras fases, a inicial e a plena, para o estilo estilizado-estático, reflectindo, a evolução cognitiva das sociedades responsáveis por, certamente, complexas actividades de carácter sócioreligioso e de que as gravuras são os únicos testemunhos chegados
até nós.
* Departamento de História. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Universidade Nova de Lisboa. Membro da Academia da História e da Academia
Nacional de Belas-Artes (Av. de Berna, 26 C; 1069 – 061 Lisboa).
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Tais documentos são constituídos por imagens, gravadas principalmente através de picotagem e com grandes dimensões, de cervídeos, caprinos, de um auroque e de um equídeo, não se tendo detectado representações antropomórficas ou ideogramas. Os animais
surgem isolados e, no período mais tardio, associados aos pares ou
em bando, reconhecendo-se evolução onde se observa tendência
tanto para a diminuição das dimensões, como para a sintetização
morfológica.
PALAVRAS-CHAVE
Arte rupestre, estilo arcaico, estilo subnaturalista, estilo estilizado-estático.
ABSTRACT
The 20,000 or so engravings discovered in 1971 which constitute the rock art of the Tagus Valley reveal a chronostylistic evolution
corresponding to a long artistic cycle initiated at the beginning of the
Upper Palaeolithic and extending to protohistoric times. From a
study of superimpositions, associations, differences in technique
and patination, the behaviour of anthropomorphic and zoomorphic
figures as well as the representations of artefacts, we have identified
seven major artistic periods which reflect important economic,
social, cultural-ideological and cognitive changes. The first three
periods correspond to hunter-gatherer societies from the Upper
Palaeolithic (archaic style), the Epipalaeolithic (sub-naturalistic
style) and the Epipalaeolithic in transition to the Neolithic (stylised-static style). It was also possible to determine two phases for the
sub-naturalistic style – early and developed – and two other phases
for the stylised-static style – initial and late. These phases primarily
reflect the cognitive evolution of societies which were responsible
for complex activities of a socio-religious nature and for which the
only testimony to have reached us are these engravings. This documentary evidence comprises very large depictions of cervids, caprids,
an aurochs and an equid which were engraved mainly by pecking.
No anthropomorphic representations or ideograms have been detected. The animals appear in isolation but in the later period are associated in pairs or in groups. We can recognise an evolution when a
tendency for a reduction in size and for morphological synthesisation is observed.
KEY WORDS
Rock art, archaic style, sub-naturalistic style, stylised-static style.
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
1. Descobertas e primeiras problemáticas
Quando nos finais de 1972 iniciámos a nossa colaboração nos trabalhos de levantamento e estudo da arte rupestre do Vale do Tejo,
depressa verificámos que sob os nossos olhos se aglomeravam, em
não poucas superfícies, gravuras com técnicas, graus de pátina e iconografia diferentes, algumas das quais sobrepondo outras ou associando-se entre si, demonstrando longa diacronia. Todavia, a datação de tais testemunhos não foi simples de determinar, pelo que
alguns estilos e formas, permitem discussão cronológica.
Naqueles tempos, informados pelo livro de E. Anati intitulado
Arte Rupestre nelle Regioni Occidentali della Penisola Iberica, investigador com quem haveríamos ulteriormente de trabalhar, estabelecendo forte empatia e amizade que ainda hoje se mantêm, classificámos
como epipaleolíticas as grandes representações de cervídeos e de
caprinos, executadas através de sucessões de negativos ou picotados,
formando linhas contínuas, por vezes profundas e, em alguns exemplares, regularizadas por abrasão, mostrando grandes dimensões e o
corpo segmentado. Correspondiam a estas características veados e
caprinos do Cachão do Algarve, Fratel ou Chão da Velha Jusante, tal
como equídeo e touro, daquele segundo arqueossítio, e dois outros
zoomorfos, de difícil classificação específica, da Lomba da Barca.
Tal atribuição fazia recuar significativamente a datação que no
início havia sido conferida às gravuras, da autoria do responsável
científico pelos trabalhos de levantamento, E. da Cunha Serrão e dos
seus colaboradores, a quem se deve a identificação das primeiras
ocorrências da arte do Vale do Tejo. De facto, se um primeiro texto
apresentava cronologia muito abrangente e quase em nada argumentada, do Neolítico Médio à Romanização, ainda no mesmo ano
se defenderia que as gravuras foram produzidas em dois momentos,
do Neolítico ao Calcolítico e durante as Idades do Bronze e do Ferro
(Soromenho, Serrão e Lemos, 1972; Serrão et alii, 1972: 71). A datação circunscrita à Idade do Bronze surgiu no ano seguinte, retomando-se, em seguida, cronologia mais alargada, do Neolítico Final à
Idade do Ferro (Serrão et alii, 1973: 166, 167; Serrão, 1974: 50).
Aquela situação, em que a atribuição cronológica se comportava
como uma espécia de harmónio, ora fechado ora aberto, deveu-se,
como parece evidente, por um lado à inexperiência dos intervenientes no tipo de estudos que iniciavam e, por outro lado, tanto à falta
de trabalhos, monográficos ou de síntese, realizados sobre a arte
rupestre portuguesa e que ultrapassassem a simples descrição dos
testemunhos, tratando as metodologias de levantamento a aplicar,
tal como as problemáticas de carácter arqueológico e histórico. Para
esta conjuntura muito contribuiu a ausência de diálogo com outros
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investigadores, nacionais e estrangeiros, daquela área do conhecimento e a inexistência do seu ensino nos programas universitários.
Durante visita, que ajudámos a promover e que teve lugar em
1974, E. Anati confirmava a presença de características técnicas e
morfoestilísticas, nas grandes figurações zoomórficas do Vale do
Tejo, permitindo integrá-las no estilo subnaturalista e atribuí-las aos
primeiros tempos holocénicos (Anati, 1975: 157, 158, fig. 76).
A concepção de grandes estádios da evolução humana, definidos
pelas vertentes económica, social e ideológica, reflectindo-se nas
expressões artísticas, enforma modelo fenomenológico em que
Anati tem fundamentado grande parte da sua obra no que concerne,
sobretudo, às interpretações cronoestilísticas. Estas, apesar de pontualmente contestadas por alguns autores têm, designadamente para
os ciclos artísticos pós-paleolíticos europeus, encontrado suporte na
informação empírica oferecida pela documentação disponível, tal
como pela sua contextualização, reflectindo bem estruturada formulação científica. Todavia, E. Anati (1974: 72) deixou bem claro que
a existência de um mesmo estilo não exige contactos entre populações dado que a analogia estilística e figurativa reflectem similitudes na
concepção, na ideologia, no nível cultural, no modo de vida e na base económica.
À arte epipaleolítica ou das últimas sociedades de caçadoresrecolectores da Europa, dedicou aquele mesmo investigador importante artigo onde reconheceu a sua existência na Península Ibérica,
nomeadamente no Levante e no Noroeste Peninsular, concluindo
sobre a presença de mais de uma fase artística para o estilo subnaturalista daquele último ciclo e sobre a sua longa duração (Anati,
1974: 78,79). Mais tarde, incluirá em outros trabalhos referências
aos animais de estilo subnaturalista do Vale do Tejo.
Em artigo que tivémos a oportunidade de redigir para a
Enciclopédia Verbo de Cultura, com grande divulgação, apresentámos,
pela primeira vez, a evolução cronoestilística da arte do Vale do Tejo,
considerando seis grandes períodos pré-históricos com expressão
estilística e cultural, reflectindo alterações no desenvolvimento económico, social e cognitivo das comunidades humanas que produziram tais testemunhos. O primeiro daqueles correspondia às figuras
zoomórficas de estilo subnaturalista, onde pudémos identificar duas
fases (plena e evolucionada) e o segundo, que denominámos estilizado-estático, ainda epipaleolítico mas na transição para os primeiros tempos neolíticos, pode igualmente, ser subdividido em duas
fases (inicial e plena) (Gomes, 1980). Este modelo, fruto do estudo
de centenas de rochas e de milhares de gravuras, das 20.000 que se
calcula terem existido no complexo do Vale do Tejo, encontra-se
suportado por numerosos exemplos de sobreposições, de associa84
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ções, diferentes graus de pátina, variações técnicas, morfológico-estilísticas e comportamentais das imagens gravadas. Ele tem vindo a ser
completado e matizado em diversos trabalhos (Gomes, 1983; 1987;
1989; 1990; 2000; 2001;2002; 2004; Gomes e Cardoso, 1989).
Com a identificação, em 2000, das primeiras figuras paleolíticas
do ciclo artístico tagano, tivemos de considerar a existência de um
Período 0, ou Arcaico, no quadro que tínhamos detectado. Importa,
no entanto, considerar que aquele não deve ser interpretado como
correspondendo a periodização estanque mas, bem pelo contrário,
a modelo evolutivo, contando com frequências e continuidades
diversas, a par de recorrências.
A documentação agora publicada foi em grande parte obtida através do decalque de moldes, elaborados com borracha líquida (látex),
das gravuras, bem como a partir de decalques directos daquelas e,
mais raramente, utilizaram-se diapositivos ou fotografias (fig. 1).
2. Arte Paleolítica (período arcaico)
No Verão de 2000 surgiram no vale do rio Ocresa, afluente da margem direita do curso médio do Tejo, pelo menos duas superfícies
contendo iconografia paleolítica, uma delas dada a conhecer por P.
Bahn (2000).
Aquelas encontravam-se não longe das gravuras holocénicas,
tendo utilizado-se como suporte superfícies subverticais de xisto
grauváquico, o que ali acontece mais raramente com gravuras póspaleolíticas, onde foram principalmente usados painéis horizontais,
bem polidos pela acção das águas do rio ao longo dos milénios.
Uma das rochas apresenta diversas linhas incisas, de tipo filiforme, não tendo sido possível reconhecer qualquer figura.
A segunda superfície mostra imagem de equídeo acéfalo, dado
que a cabeça apenas foi esboçada, representada de perfil e dirigida
para o lado direito do observador, através de picotagem, constituindo linhas largas, profundas e contínuas. A linha cérvico-dorsal é bem
ondulada, a ventral acentuadamente convexa, foi figurado apenas
um membro dianteiro e outro traseiro, em forma de V e sem mostrarem os cascos, pelo menos naquele primeiro, dado não se poder
apreciar no segundo por se encontrar amputado, devido a fractura
do suporte. A cauda é longa e arqueada, encontrando-se semi-erguida. As crinas altas fariam ângulo recto com a testa, contribuindo
para melhor caracterizar, talvez um dos estilos cujos convencionalismos gráficos são não só dos mais evidentes como recorrentes, da
arte paleolítica europeia, tendo vindo a ser atribuído ao Gravetense
e ao Solutrense Antigo (fig. 2).
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Figura 1. Dispersão da arte do Vale do Tejo (seg. M. V. Gomes).
Na ribeira do Pracana, afluente do rio Ocresa, observámos conjuntos de incisões filiformes, talvez paleolíticas, situadas em grande
afloramento de xisto grauváquico e junto de superfícies repletas de
covinhas, abertas em momentos ulteriores (Monteiro e Gomes,
1974-1977: 98, est. II-B).
Campanha de levantamentos que realizámos no ano 2000, no
sítio de Gardete, na margem direita do rio Tejo e imediatamente a
jusante da barragem de Fratel, conduziu à descoberta de conjunto de
traços filiformes paralelos na rocha G 11, tal como de painel subvertical (rocha G 27), contendo incisões lineares, ainda de tipo filiforme (Gomes, 2004: 83, 106, 109, 110) (fig. 3).
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Figura 2. Ocresa. Cavalo de estilo arcaico (foto CNART) (comp. 0,30 m).
A análise de diapositivos de rochas decoradas de Fratel, efectuados nos anos setenta da passada centúria, permitiu que identificássemos, na rocha F 196, incisões filiformes, por certo paleolíticas,
algumas das quais sob gravuras obtidas por picotagem, com carácter
esquemático e atribuíveis ao Calcolítico.
3. Arte Epipaleolítica (períodos subnaturalista e estilizado-estático)
O acervo iconográfico que, na arte do Vale do Tejo, podemos atribuir
aos tempos epipaleolíticos é constítuido apenas por representações
animalistas, de grandes quadrúpedes, como o veado, a cabra montês, o auroque e o cavalo.
Aquela primeira espécie foi a mais figurada, tanto através de exemplares masculinos como femininos, e tais imagens devem integrar dois
estilos distintos, da nossa proposta de evolução cronoestilística para a arte
do Vale do Tejo, o subnaturalista, nas suas fases antiga ou evolucionada, e
o estilizado-estático, possuindo igualmente duas fases, a inicial e a plena.
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Figura 3. Gardete. Filiformes (G11.149) (seg. M. V. Gomes).
3.1. Alagadouro
Jazida rupestre localizada na margem esquerda do Tejo, a cerca de
3 km para jusante da barragem de Cedillo.
Identificaram-se dois zoomorfos, cujas características estilísticas
permitem que os atribuamos à fase evolucionada do estilo subnaturalista.
Na rocha AL 45 observa-se veado fêmea (AL 45.1), cuja cabeça
está encimada pelas duas orelhas arrebitadas, possuindo corpo de
forma ovalada, assente em quatro membros lineares e oblíquos em
relação ao eixo maior daquele. No interior do corpo detecta-se parte
de linha paralela à linha ventral e alguns negativos dispersos. Mede
0,295m de comprimento (fig. 4).
Possivelmente outra fêmea de veado (AL 43.7), cuja caracterização específica não conta com a cabeça, devido a esta se encontrar
amputada por fractura do suporte, regista-se na rocha AL 43.
A cabeça mostrava as orelhas levantadas, o corpo apresenta as
linhas cérvico-dorsal e ventral pouco convexas, enquanto o peito e
os quartos traseiros são inclinados, o que a par dos dois pares de
membros se encontrarem encurvados e oblíquos, em relação ao eixo
do corpo imprime à figura algum movimento. Os quartos traseiros
mostram mancha de picotados, que também, embora de forma dispersa, se estendem ao interior do corpo. Mede, actualmente, 0,30 m
de comprimento (fig. 4).
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Figura 4. Alagadouro (AL 45; AL 43). Chão da Velha Jusante (CVJ 11; CVJ 7).
Ocresa (OC 2) (seg. M. V. Gomes).
3.2. Lomba da Barca
Situa-se na margem esquerda do rio Tejo, imediatamente a jusante
do Alagadouro.
Grande rocha (LB 37) em forma de mesa, cuja superfície superior
foi profusamente gravada ao longo dos milénios, e guarda duas representações, muito pátinadas, de grandes quadrúpedes, cuja classificação específica não é, para nós, clara (LB 37.22; LB 37.28) (fig. 5).
As cabeças de ambos mostram perfil triangular alongado e são
desprovidas de armação, os corpos oferecem contorno quase trapezoidal, sendo um deles largo, e as caudas curtas. Os quartos traseiros de ambos apresentam perspectiva e os membros, lineares, são
perpendiculares aos corpos.
Trata-se, muito possivelmente, de casal de cervídeos, no período
em que o macho se encontra desprovido de armação. No interior do
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Figura 5. Lomba da Barca (LB 37). Zoomorfos subnaturalistas evolucionados e
figuras ulteriores (seg. M. V. Gomes).
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corpo de ambos observam-se linhas e picotados dispersos. Devem
integrar o estilo subnaturalista evolucionado. Medem 0,43 m e
0,50 m de comprimento.
3.3. Cachão do Algarve
Localiza-se na margem direita do rio Tejo, quase frente à Lomba da
Barca, em zona onde aquele curso de água alarga e onde existia
pequena cachoeira. A seguir à estação de Fratel é a que maior número de zoomorfos guardava, tanto de estilo subnaturalista como estilizado-estático.
A rocha CAL 59 mostra enorme figuração de veado (CAL 59.19),
possuindo a cabeça e o corpo em perspectiva, encontrando-se sobreposta por diversas gravuras (fig. 6). A pequena cabeça ovalada assenta em pescoço longo, sustenta armação bem desenvolvida, de forma
oval e exibindo alguns galhos. O corpo apresenta a linha cérvicodorsal côncava, os quartos traseiros angulosos, talvez simulando
perspectiva, e a linha ventral ligeiramente convexa. O interior do
corpo oferece reticulado, constituído por linhas transversais e longitudinais, tal como abundantes picotados. A cauda, caída, é algo
longa, para a espécie que se quis reproduzir. Os dois pares de membros, lineares e verticais, encontram-se representados e são perpendiculares ao corpo. Mede 0,50 m de comprimento e 0,60 m de altura máxima. Integra a fase antiga do estilo subnaturalista (fig. 7).
Na rocha CAL 54 observa-se caprino macho, sob figuras gravadas em data bem mais recente, reproduzido em perspectiva. Oferece
pequena cabeça de perfil triangular, encimada por longa armação
formada por duas hastes sub-paralelas. A linha cérvico-dorsal é côncava e a ventral convexa, mostrando os quartos traseiros algo perspectivados. O corpo, totalmente preenchido por picotados, assenta
em dois pares de membros lineares, sendo os dianteiros algo encurvados e oblíquos, o que lhe confere algum movimento. A cauda é
curta. Mede 0,28 m de comprimento. Deve pertencer à fase evolucionada do estilo subnaturalista (fig. 7).
Enorme cervídeo da rocha CAL 60, com corpo alongado e algo
disforme, apresenta pequena cabeça de perfil triangular, encimada por
desenvolvida armação disposta em perspectiva. A linha cérvico-dorsal
é quase recta e os quartos traseiros, exagerados, estão bem arredondados, talvez tentando simular perspectiva. No interior do corpo observa-se linha vertical, que demarca os quartos dianteiros, e linha mediana, curva, talvez a linha da vida. A cauda é curta. Os dois pares de membros são lineares, encontram-se dispostos na vertical e perpendicularmente ao eixo maior do corpo. Mede 0,56 m de comprimento.
Corresponde ao estilo subnaturalista evolucionado (fig. 8).
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Figura 6. Cachão do Algarve (CAL 59). Veado subnaturalista antigo, sobreposto
por figuras muito ulteriores (seg. M. V. Gomes).
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Figura 7. Cachão do Algarve (CAL 59; CAL 54) (seg. M. V. Gomes).
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Possível veado fêmea da rocha CAL 25, mostra tanto a cabeça,
como o corpo e as pernas de perfil (CAL 25.2). Apenas as duas orelhas apresentam perspectiva. O pescoço alarga no volume mesial,
encontrando-se preenchido por picotados, e o corpo é subrectangular, contendo linha paralela à ventral, tal como negativos dispersos.
A cauda é curta e foi, apenas, representado um membro dianteiro e
outro traseiro. Mede 0,43 m de comprimento e pertence ao estilo
estilizado-estático inicial (fig. 8).
Duas prováveis figurações de cervídeos, da rocha CAL 04, protagonizam cena de pré-acasalamento, onde o macho, perseguindo a
fêmea, toca nos quartos traseiros desta com a cabeça. Ambos zoomorfos foram representados de perfil, com corpos de forma ovalada,
no interior dos quais se observam restos de linhas horizontais e
Figura 8. Cachão do Algarve (CAL 60; CAL 25; CAL 04; CAL 61; CAL 56) (seg. M.
V. Gomes).
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picotados dispersos. Apenas os membros, lineares e paralelos, mostram perspectiva, tendo sido gravados os dois pares pertencentes a
cada animal, embora dispostos algo obliquamente em relação ao
eixo dos respectivos corpos. O comprimento desta composição é de
0,465 m, medindo o macho 0,34 m de comprimento e a fêmea
0,28 m. Integram a fase inicial do estilo estilizado-estático (fig. 8).
Regista-se a presença de veado, sobreposto por podomorfo
proto-histórico, na rocha CAL 61. Trata-se de figura com cabeça de
perfil triangular, assente em pescoço estreito e longo, que ostenta
alta armação de forma triangular, vista de frente, constituída por
duas hastes, ramificadas no topo e providas de diversos galhos. O
corpo oferece forma ovalada, linha mediana e densa mancha de
picotados nos quartos traseiros. A cauda é curta. Foram figurados os
dois pares de membros, lineares, um deles algo curvo e os dianteiros
oblíquos em relação ao eixo do corpo. Mede 0,345 m de comprimento e deve ser incluído no estilo estilizado-estático inicial (fig. 8).
Na rocha CAL 56 observam-se dois veados da fase plena do estilo estilizado-estático, embora com acentuadas variações morfológicas entre ambos (fig. 8).
Um deles, mostra cabeça de perfil triangular alongado, com altas
hastes, providas de galhos, em perspectiva. O corpo oferece forma oval,
apresenta linha central, sugerindo continuar na curta cauda, que se
encontra levantada. Os dois pares de membros figurados são lineares e
verticais, em relação ao eixo do corpo. Ao centro do dorso mostra cravada longa arma de arremesso barbelada. Trata-se de aspecto raro na
arte do Vale do Tejo, que devemos valorizar com ocorrência reconhecida em rocha de Fratel (F 453). Mede 0,29 m de comprimento.
O segundo veado, oferece cabeça, distinguindo-se a boca aberta,
encimada por armação em forma de V, figurada de frente e onde cada
haste exibe quatro galhos laterais. O corpo é trapezoidal, com a linha
cérvico-dorsal algo convexa e a ventral recta. No seu interior observam-se linha vertical, que demarca os quartos dianteiros, e mancha de
picotados cobrindo aquela zona. A cauda é curta e encontra-se levantada. Foram figurados ambos pares de membros, lineares e verticais,
em relação ao eixo do corpo. Mede 0,29 m de comprimento.
3.4. Fratel
Neste arqueossítio existe uma das maiores concentrações de gravuras rupestres do Vale do Tejo, estendendo-se por cerca de 1,5 km da
margem direita daquele rio. Este é o primeiro núcleo de gravuras
situado a jusante do monumental acidente natural conhecido por
Portas do Ródão, estreita garganta existente em altivo maciço quartzítico, que o rio abriu ao longo dos milénios.
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A rocha F 155 corresponde à superfície contendo maior número
de representações subnaturalistas do Vale do Tejo, contando-se dez,
completas ou parcialmente figuradas, sete cervídeos, um cavalo e
dois animais indeterminados, embora com diferenças estilísticas,
dimensionais, técnicas e até de graus de pátina, permitindo reconhecer, pelo menos, dois grandes momentos ou fases de realização
daquelas, tal como quatro imagens de estilo estilizado-estático, dois
cervídeos e dois caprinos, também evidenciando duas fases de execução. Algumas de tais gravuras foram subrepostas por outras mais
tardias, designadamente por espirais, círculos e linhas, da Idade do
Bronze (figs. 9 e 10).
Trata-se de enorme afloramento que se eleva acima de caos de
blocos de xisto grauváquico, oferecendo típica forma de mesa, onde
a face superior, profundamente fracturada, foi aproveitada para a
realização das gravuras.
Junto a um dos lados maiores daquela, zona mais elevada contém
metade das figurações epipaleolíticas detectadas, observando-se, ao
centro, enorme cervídeo, figurado de pé, com o corpo de perfil e voltado para o lado esquerdo do observador. A cabeça, pequena e levantada, tal como a respectiva armação e os membros, foram representados em perspectiva. A armação, ovalada, é desenvolvida e o pescoço
esbelto. A linha cérvico-dorsal encontra-se ligeiramente ondulada e a
ventral apresenta pequena convexidade. Figuraram-se os dois pares de
membros, lineares, verticais e perpendiculares ao corpo. O interior
deste zoomorfo foi subdividido, através de linhas, longitudinais,
transversais e oblíquas. Tanto a cabeça como o pescoço encontram-se
preenchidos por picotados. A cauda é curta. Mede 0,61 m de comprimento. Pertence à fase antiga do estilo subnaturalista (fig. 10, a).
Ligeiramente abaixo da figura que acabámos de descrever, identifica–se representação de equídeo, sobrepondo os membros traseiros daquela e figurado de perfil, voltado para o lado direito do
observador. A cabeça é curta, mostrando o olho e curva mandibular
acusada, sendo o pescoço longo e largo, observando-se as crinas,
serrilhadas, fazendo ângulo recto com a testa e confundindo-se com
as orelhas. A linha cérvico-dorsal é ligeiramente ondulada e a ventral, tal como ambos pares de membros, desapareceram devido a
fractura do bordo do suporte. A cauda é longa. Tanto a cabeça como
o pescoço e o peito foram preenchidos por picotagem, enquanto o
corpo contém reticulado, formado por linhas transversais e longitudinais, uma das quais parece ligar o pescoço à zona genital, a denominada linha da vida. Mede 0,62 m de comprimento. Integra a fase
antiga do estilo subnaturalista (fig. 10, b).
A norte das duas imagens mencionadas reconhece-se zoomorfo
incompleto, de que foi figurada a cabeça e parte do corpo (fig. 10, m),
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Figura 9. Fratel (F 155). Figurações subnaturalistas e estilizado-estáticas, sobrepostas por outras ulteriores (seg. M. V. Gomes).
tal como expressiva cabeça de cervídeo, assente em pescoço longo e
provida de armação ramificada, em perspectiva, parecendo sair de
fractura que delimita o suporte. Mede 0,30 m de altura. Deve ser atribuida à fase antiga do estilo subnaturalista (fig. 10, g).
A sul das primeiras imagens descritas, foi gravado cervídeo, com o
corpo, os membros e a cabeça de perfil, enquanto a armação ramificada oferece perspectiva . A linha cérvico-dorsal é ondulada e a ventral
recta. Mostra, apenas, um membro dianteiro e outro traseiro, oferecendo o interior do corpo reticulado. A cauda é curta. Mede 0,38 m de comprimento. Pertence à fase antiga do estilo subnaturalista (fig. 10, h).
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Figura 10. Fratel (F 155). Zoomorfos subnaturalistas e estilizado-estáticos (seg. M.
V. Gomes).
No extremo sul da superfície decorada, dois outros cervídeos, que os
caracteres anatómicos deixam proceder à diagnose sexual, representam
casal, embora mostrem estilos bem diferentes; um deles, o macho, pode
ser atribuido à fase mais antiga do estilo subnaturalista, enquanto que a
fêmea deve integrar a fase mais recuada do estilo estilizado-estático.
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
O veado anteriormente referido oferece cabeça de perfil triangular, armação ramificada em perspectiva, linha cérvico-dorsal ondulada e a ventral ligeiramente convexa. O interior do corpo encontra-se
reticulado, mostrando dupla linha ventral. A cauda é curta e os membros, lineares, foram gravados obliquamente em relação ao eixo do
corpo. Mede 0,41 m de comprimento (fig. 10, c).
A fêmea, que se associa ao macho acabado de descrever, e cujos
membros traseiros sobrepõem os membros do mesmo lado daquele,
apresenta cabeça pequena, encimada por duas orelhas, corpo sub-rectangular, com o arranque de linha mediana e preenchido por picotados dispersos. Foi figurado apenas um dos membros de cada lado, rectilíneos e perpendiculares em relação ao eixo do corpo. Mede 0,325 m
de comprimento. Além da sobreposição dos membros traseiros, existe linha que liga as zonas genitais dos dois animais.
A poente da zona da rocha onde se encontram os zoomorfos descritos, observa-se veado, com cabeça de perfil triangular e armação
ramificada, em perspectiva semi-torcida, possuindo corpo trapezoidal,
somente esboçado e apenas um membro de cada par. A cabeça e o
pescoço foram preenchidos por picotado. Mede 0,52 m de comprimento. Trata-se de figuração subnaturalista antiga (fig. 10, d).
A noroeste da imagem acima referida reconhecem-se zoomorfo
inacabado (fig. 10, n) e cervídeo. Este oferece pescoço longo, cabeça
pequena e desenvolvida armação, provida de numerosos galhos. O
corpo é trapezoidal e encontra-se reticulado, mostrando os dois
pares de membros mal definidos, rectilíneos e perpendiculares ao
eixo daquele. Mede 0,50 m de comprimento e integra a fase antiga
do estilo subnaturalista (fig. 10, e).
No sector norte da rocha cuja iconografia mais antiga temos
vindo a descrever, encontra-se figurada a metade dianteira de caprino, com cabeça triangular e longa armação, dirigida para trás, que
parece surgir de fractura do suporte, medindo 0,25 m de comprimento. Pertence à fase plena do estilo estilizado-estático (fig. 10, l).
Ali se observam, ainda, outro caprino, um veado e cabeça de animal desta mesma espécie.
O caprino mostra longa armação, algo encurvada para trás, linha
cérvico-dorsal convexa e linha ventral recta, contendo linha mediana no interior do corpo. Este assenta em dois pares de membros,
curtos, rectilíneos e perpendiculares, em relação ao eixo do corpo.
Mede 0,37 m de comprimento e corresponde ao estilo estilizadoestático inicial (fig. 10, i).
O veado possui cabeça com longa armação em perspectiva semitorcida e corpo trapezoidal, subdividido por linha mediana. A cabeça, preenchida por picotados, apresenta estilo subnaturalista antigo,
indicando que o corpo foi gravado mais tarde, tal como os dois curM. Varela
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CUADERNOS DE ARTE RUPESTRE
tos membros dianteiros, podendo atribuir-se à fase inicial do estilo
estilizado-estático. Mede 0,45 m de comprimento (fig. 10, k).
Por fim, o prótomo de veado, apresenta armação ramificada e em
perspectiva, tal como longo pescoço e a linha do peito, encontrandose associado a fissura do suporte. Mede 0,38 m de altura e deve integrar a fase antiga do estilo subnaturalista (fig. 10, f).
As características estilísticas, tal como as sobreposições e associações detectadas nesta rocha permitem considerarmos quatro
grandes momentos de gravação na iconografia descrita, pertencentes
dois ao estilo subnaturalista e os dois outros ao estilizado-estático.
Os grandes cervídeos e o equídeo, todos com o interior dos corpos reticulados, integram aquele primeiro momento (estilo subnaturalista antigo), enquanto veado de corpo algo geometrizado, com
dois membros figurados, embora ainda com o interior do corpo reticulado, pertence a um segundo momento (estilo subnaturalista evolucionado). A corça, que se associa a um dos veados mais antigos, a
cabra e o veado com cabeça antiga e corpo mais recente, todos possuindo corpos rectangulares e, contendo linha mediana, devem ser
atribuídos à fase inicial do período estilizado-estático. E a metade
dianteira de cabra, mais realista, à segunda ou plena, daquele
mesmo período .
Além do importante conjunto de zoomorfos que acabámos de
descrever, identificou-se em Fratel, pelo menos, mais uma representação, de auroque, que deve incluir-se na primeira fase de gravação referida. Trata-se da imagem patente na rocha F 103, com cabeça levantada, de perfil triangular, possuindo armação alta e em perspectiva. O
corpo apresenta a linha cérvico-dorsal côncava e a ventral, dupla e
convexa. A cauda foi figurada e os dois pares de membros são rectilíneos, embora os dianteiros sejam oblíquos e os traseiros verticais, em
relação ao eixo do corpo. Mede 0,27 m de comprimento (fig. 11).
Aquela é a única representação de auroque claramente reconhecida na arte rupestre do Vale do Tejo, lembrando a sua armação a de
alguns animais da mesma espécie figurados nos inícios do
Paleolítico Superior.
Devemos incluir no estilo estilizado-estático os cervídeos das
rochas F 491C e F 453, tal como o caprino da rocha F 211B.
Um dos cervídeos mencionados (F 491C), apresenta cabeça,
assente em pescoço longo e, dirigida para o solo, corpo de perfil,
preenchido por picotados, embora se reconheça linha, mais profunda, que liga a cabeça aos quartos traseiros, a “linha da vida”. Sobre a
cabeça mostra armação curta e algo encurvada que, não fora os dois
galhos basilares sugeria pertencer a auroque. Ambos pares de membros são altos e rectilíneos, quase verticais em relação ao eixo do
corpo. Mede 0,29 m de comprimento (fig. 11).
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Figura 11. Fratel (F 103; F 491C; F 453; F 211B) (seg. M. V. Gomes).
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O segundo cervídeo (F 453), uma fêmea, dada a ausência de
armação e a forma, mais larga, do corpo, apresenta este totalmente
preenchido por picotados, assentando em membros rectilíneos e
quase perpendiculares. Todavia, foi apenas figurado um dos membros traseiros, aliás amputado por fractura do bordo do suporte. No
interior do corpo observam-se três curtos traços fusiformes, gravados
através de abrasão, que devem figurar armas de arremesso, muito
provavelmente zagaias. Mede 0,27 m de comprimento (fig. 11).
O caprino da rocha F 211B, bem caracterizado em termos específicos, dada a longa armação de hastes sub-paralelas que exibe em
perspectiva, mostra corpo longo, de aspecto ovalado, onde se observa parte de linha mediana, arrancando dos quartos traseiros. Os dois
membros dianteiros, parcialmente desaparecidos devido a fractura
do suporte, encontram-se dirigidos para diante, enquanto foi figurado apenas um dos traseiros, tal como acontecia com o cervídeo da
rocha F 453. Mede 0,336 m de comprimento (fig. 11).
Na rocha F 491, a cota alta e longe do leito normal do rio Tejo,
identificou-se bando formado por seis veados, dispostos em três
linhas horizontais, possuindo cabeças pequenas e de perfil triangular, armações desenvolvidas, em perspectiva, mostrando corpos
longos, mas ovalados, no interior dos quais se observa a linha
mediana ou duas ou três linhas horizontais. Um dos cervídeos contém linha longitudinal, demarcando os quartos dianteiros. As caudas são curtas e em alguns deles observam-se zonas picotadas nos
quartos traseiros. Foram sempre figurados ambos pares de membros, lineares, dispostos verticalmente ou na oblíqua, em relação ao
eixo do corpo. Estas representações de cervídeos medem entre 0,50
m e 0,30 m de comprimento e ilustram as principais características
da fase plena do estilo estilizado-estático da arte tagana. Elas foram
sobrepostas por veados, de menores dimensões, correndo na oblíqua e de estilo estilizado-dinâmico, com cronologia claramente
neolítica (fig. 12).
3.5. Chão da Velha Jusante
Nesta estação de arte rupestre, situada na margem esquerda do rio
Tejo, a sul de Fratel e não longe da barragem que a submergiu, obtiveram-se apenas fotografias de alguns dos motivos gravados. Tal
ficou a dever-se ao facto de as bancadas de xisto que lhes serviam de
suporte terem sido prematuramente cobertas com as águas do regolfo da albufeira da barragem mencionada, subidas até uma primeira
cota de enchimento à data da descoberta das gravuras.
Entre a documentação chegada até nós identificam-se dois zoomorfos de estilo estilizado-estático pleno.
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
Figura 12. Fratel (F 491). Representações estilizado-estáticas, sobrepostas por outras estilizado-dinâmicas (seg. M. V. Gomes).
Na rocha CVJ 11 observa-se possível figuração de caprino, provida de duas hastes verticais sobre a testa, em perpectiva, com corpo
de forma oval alongada, reconhecendo-se, no interior, linha mediana algo difusa. Apresenta cauda curta e foram gravados os quatro
membros, verticais e lineares, parcialmente amputados por fractura
do bordo do suporte. Mede 0,23 m comprimento (fig. 4).
A rocha CVJ 7 contém magnífica imagem de veado, com armação
ramificada e em perspectiva, assente em cabeça comprida, com focinho largo. O corpo oferece forma ovalada, no interior do qual se detectam duas linhas tranversais paralelas. Foram figurados os dois pares de
membros, subverticais em relação ao eixo do corpo e a cauda, curta e
encurvada. Mede 0,345 m de comprimento máximo (fig. 4).
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3.6. Ocresa
Na margem direita do rio Ocresa, afluente do Tejo, encontra-se,
representação de caprino (OC 2), do estilo subnaturalista evolucionado, possuindo a cabeça dirigida para o solo. Esta é longa, trapezoidal, encimada por armação constituída por duas curtas hastes
verticais e sub-paralelas. O corpo é ovalado e alongado, mostrando
a linha cérvico-dorsal algo ondulada e a ventral convexa, tal como,
no seu interior, esboço da linha mediana e aglomeração de picotados nos quartos traseiros. A cauda é curta. Foram figurados os dois
pares de membros, perpendiculares ao eixo do corpo, embora um
dos dianteiros tenha sido apenas esboçado. A forma do corpo deste
animal recorda a do veado da rocha CAL 60. Mede 0,29 m de comprimento (fig. 4).
4. Algumas considerações
As gravuras dos três primeiros períodos artísticos do Vale do Tejo,
arcaico (Paleolítico Superior), subnaturalista (Epipaleolítico) e estilizado-estático (Epipaleolítico/Neolítico), mostram diversas técnicas de
execução, tal como variações dimensionais e, sobretudo, morfológicas
ou estilísticas, a par de diferentes graus de pátina ou desgaste, provocados pela exposição aos agentes meteóricos e às águas fluviais.
A incisão filiforme, produzindo finas linhas, difíceis de observar,
foi apenas utilizada durante o Paleolítico Superior e é, por ora, mal
conhecida no Vale do Tejo, onde, conforme registámos, a encontrámos em Fratel, Gardete e Ocresa, não figurando imagens reconhecíveis.
A percussão directa e, sobretudo, a indirecta foi a técnica mais
utilizada na obtenção de gravuras dos períodos referidos, variando
as formas e as dimensões dos negativos ou picotados que as constitu em , originando, em geral, linhas mais ou menos largas e contínuas ou manchas, de densidade variável.
Tanto no cavalo paleolítico do Ocresa, como nas imagens da fase
antiga do estilo subnaturalista, observam-se sucessões de negativos,
com contorno circular ou oval e de dimensões grandes ou médias, formando linhas largas, profundas e contínuas. Algumas raras linhas que
integram figuras daquela fase foram aprofundadas e regularizadas por
abrasão. Tais animais mostram a cabeça, o pescoço e/ou o peito, preenchidos por picotados, aspecto que pode tanto relacionar-se com a
pelagem mais escura daquelas zonas corporais, designadamente nos
cervídeos e equídeos, como com a intenção de as valorizar. Na fase
seguinte e em figuras de estilo estilizado-estático, observam-se manchas de picotados nos quartos traseiros de alguns zoomorfos e linhas
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
nem sempre contínuas, elaboradas a partir de negativos com dimensões médias a grandes. Também surgiram, com o estilo estilizado-estático, figurações cujo corpo está totalmente preenchido por picotados.
Embora se tenha, certamente, utilizado a percussão directa, a
maneira notável como foram reproduzidos alguns pormenores anatómicos, sobretudo de pequenas dimensões, como exemplificam as
ramificadas armações dos cervídeos, permite perceber que foram
elaboradas com o concurso da percussão indirecta, usando artefacto
incisor e percutor.
Por fim, a abrasão foi reconhecida através das três curtas incisões fusiformes, abertas sobre o corpo de veado fêmea acima descrito,
que julgamos figurarem armas de arremesso, dardos ou zagaias.
A abordagem dimensional, por ora vedada à arte paleolítica do
Vale do Tejo, devido à falta de informação, revela acentuada diminuição no comprimento e altura entre os zoomorfos de estilo subnaturalista e os de estilo estilizado-estático. De facto, observam-se
comprimentos que pouco ultrapassam 0,60 m, em veado e cavalo da
F 155, ambos de estilo subnaturalista antigo, mostrando o veado de
CAL 60, ainda no mesmo estilo mas pertencendo à sua fase evolucionada, 0,56 m de comprimento. Veado da rocha CAL 59 e dois
outros da F 155 atingem 0,50 m de comprimento ou dimensão algo
superior, sendo menores algumas representações de estilo subnaturalista evolucionado, como os zoomorfos da rocha LB 37 e outro do
Ocresa.
No estilo estilizado-estático não só se observa a redução das
dimensões médias em relação ao período anterior, como aquelas se
acentuam na sua fase, mais tardia ou plena. De facto, na fase inicial
do estilo estilizado-estático, cervídeo fêmea de CAL 25 oferece 0,43 m
de comprimento, embora o caprino de F 155 alcance 0,37 m e dois
zoomorfos do Alagadouro possuam 0,30 m de comprimento,
enquanto um dos animais de CAL 04 mede 0,28 m. Para a fase plena
do estilo estilizado-estático as dimensões variam entre 0,50 m e
0,30 m na F 491, embora caprino de CVJ 11 apresente apenas 0,23 m
de comprimento, tendência que se irá acentuar no período seguinte
da evolução cronoestilística da arte do Vale do Tejo, o estilizadodinâmico, já plenamente neolítico e onde a grande maioria dos zoomorfos oferece comprimentos inferiores a 0,15 m.
O surgimento de gravuras paleolíticas, no complexo do Vale do
Tejo, veio não só alargar a distribuição de tais manifestações ao ar
livre, no Ocidente Peninsular, como fazer recuar aquele ciclo artístico ao Plistocénico.
À dispersão da arte paleolítica ao ar livre na Beira Baixa devemos
somar os testemunhos identificados, em 2003, no Poço do Caldeirão
(Barroca do Zêzere, Fundão), localizado na margem direita do rio
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Zêzere, afluente da margem norte do Tejo, a jusante do Ocresa e situado a cerca de meia centena de quilómetros, em linha recta, do conjunto de petróglifos paleolíticos daquele último curso de água.
Ali se reconheceram quatro equídeos, gravados por picotagem
sobre superfícies de xisto grauváquico, encontrando-se três deles
incompletos, mostrando características que permitem atribuí-los ao
Magdalenense (Gomes, 2006: 135).
Conforme acima mencionámos, aos seis períodos cronoestilísticos que identificámos na arte holocénica do Vale do Tejo devemos
agora admitir um período 0 ou Arcaico, correspondendo ás suas
manifestações paleolíticas. De acordo com as características técnicas
e estilísticas dos testemunhos existentes, aquelas deverão corresponder ao Gravetense-Solutrense Antigo (cavalo do Ocresa) e ao Solutrense Superior-Magdalenense Inicial ou, ainda, ao Magdalenense
Final, conforme sugere o conjunto de curtos traços filiformes dispostos em paralelo da rocha 11 de Gardete.
Aqueles motivos encontram-se bem representados na Gruta do
Escoural (Montemor-o-Novo), onde foi possível conferir-lhes cronologia paleolítica, mais precisamente nas suas etapas finais
(Magdalenense) ou a período de transição para os primeiros tempos
holocénicos e a que não serão estranhos muitos dos reportórios gravados, sobre seixos e placas, azilenses (Santos, Gomes e Monteiro,
1980: 235-238; Gomes, 1994: 7,8; D’Errico, 1994).
A mesma temática regista-se na arte do Vale do Côa, onde a
pudémos classificar no Solutrense Médio-Final e, sobretudo, no
Magdalenense (Baptista e Gomes, 1997: 280).
As séries de incisões paralelas, as raspagens e os conjuntos de traços filiformes não figuram construções ou artefactos, pelo que não
sugerem símbolos com significado preciso (pictogramas ou ideogramas), devendo ser considerados actos primários de participação iconográfica, possivelmente integrados em rituais onde os suportes
detinham significado preponderante em relações às imagens.
Podem, também, traduzir o resultado de simples descargas de energia, reflectindo diferentes emoções ou estados de espírito, como alegria, raiva, angústia, sendo classificadas como psicogramas. No
entanto,não esqueçamos que ideogramas em forma de escala são
bem conhecidos, tanto na arte parietal como móvel do Paleolítico
Superior europeu, desde o Gravetense (Isturitz) ao Magdalenense e
atingindo o Azilense, podendo constituirem registos, de carácter
numérico ou, até, calendários.
As grandes representações subnaturalistas de cervídeos, de cavalo e
de auroque, do Vale do Tejo, recordam, pela temática, estilo e as dimensões, a arte dos últimos caçadores do Paleolítico Superior. Apresentam
desenho elegante e realização cuidada, oferecendo os pormenores ana106
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
tómicos admiravelmente reproduzidos, sobretudo nas cabeças. Estas,
pequenas, foram figuradas de perfil, embora as armações, desenvolvidas e de forma oval, tal como os quartos traseiros de alguns destes animais, estejam representados em perspectiva sendo, por vezes e conforme também acontece com os pescoços, preenchidas por picotagem,
que igualmente se pode estender ao peito. As linhas cérvico-dorsais são
ligeiramente onduladas e, os pescoços esbeltos. Os membros são lineares e em geral verticais, representando-se os dois pares.
Os zoomorfos mencionados foram figurados como que em
pose, na atitude também denominada por movimento congelado e, na
maioria dos casos, os corpos encontram-se segmentados, por reticulas irregulares, talvez indicando órgãos internos, no estilo raios-X de
alguns autores e onde, por vezes, se distingue a denominada linha da
vida que, partindo da boca, passa pela zona do coração e dos pulmões, atingindo o sexo ou o ânus.
O único equídeo subnaturalista por ora conhecido no Vale do Tejo,
com morfologia brevilínea e cabeça curta, possuindo a curva mandibular acusada e as crinas erguidas verticalmente sobre a testa, evidenciou, através da comparação de diversos índices métricos seus, com os
obtidos em representações paleolíticas, estreitas afinidades com estas,
nomeadamente com imagens do estilo IV, de Leroi-Gourhan, aproximando-se, também, dos cavalos tarpânicos reconstituídos (Gomes e
Cardoso, 1989).
Figuras zoomórficas, como as da rocha LB 37, talvez um macho e
uma fêmea, ou o veado da CAL 60, com desenhos mais frustes, menos
elegantes e até algo desproporcionados, apresentando alguns traços
ou manchas no interior dos corpos, possuindo as armações e os quartos traseiros em perspectiva, constituem a fase mais tardia deste período da arte do Tejo (período subnaturalista evolucionado).
Os corpos segmentados e a perspectiva parcial dos zoomorfos
subnaturalistas do Vale do Tejo recordam aspectos dos períodos
mais recuados da arte rupestre árctica (hunter’s art) e o seu estilo
aproxima-se do dos animais detectados na base da estratigrafia de
outros grandes ciclos artísticos pós-paleolíticos, considerados marginais em relação à área da grande arte franco-cantábrica, como os do
Arco Alpino (Totes Gebirge e Valcamonia) ou da Península Ibérica,
onde se encontram, com variantes, alguns paralelos, tanto nas pinturas levantinas (Albarracín, Cogul, Calapatá, Minateda, Solana de
las Covachas, com corça de corpo segmentado), como nas gravuras
do Noroeste (Laxe da Rotea de Mendo, Outeiro de Cogoludo,
Parada, Laxe dos Cebros, Laxe das Lebres).
Na arte rupestre do norte da Escandinávia, própria de sociedades
de caçadores-recolectores, também se distinguem vários períodos e
fases estilísticas, iniciando-se aquela com grandes animais subnatuM. Varela
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ralistas, em contorno, progredindo em direcção à sintetização formal, facto que, segundo G. Gjessing (1932), se terá ficado a dever a
tais manifestações passarem a ser produzidas por xamãs, cada vez
mais afastados das actividades cinegéticas e, por isso, desconhecedores da anatomia animal (Simonsen, 1979: 142-144). Esta explicação pode, igualmente, responder a fenómeno idêntico que, conforme descrevemos, ocorreu na arte do Vale do Tejo.
Achados de grandes conjuntos de gravuras rupestres paleolíticas
ao ar livre, como as de Foz Côa e Siega Verde, tal como as epipaleolíticas daquela primeira região, ajudam a melhor compreendermos
aspectos da problemática que respeita à existência e aos antecedentes
dos complexos artísticos pós-plistocénicos. Podemos agora melhor
afirmar que a arte subnaturalista, é própria de comunidades de caçadores-recolectores que prolongaram, em tempos pós-glaciares, economia, concepção figurativa e vida cognitiva de origem paleolítica.
Naquela observa-se a preocupação do Homem em conhecer a
Natureza, conseguindo estudar e reproduzir, fielmente, as zonas vitais
dos animais, e até do seu interior, aspecto inegavelmente próprio do
mundo de caçadores especializados, de todas as regiões onde a sobrevivência dependia, ou ainda depende, em boa parte, do conhecimento preciso da anatomia e dos ritmos naturais dos animais que se pretendia abater. Todavia, neste novo contexto não surge a figura humana ou os ideogramas, que tanto caracterizam a arte paleolítica, designadamente em grutas, dado que ao ar livre eles quase não se registam,
como demonstram as gravuras de Foz Côa ou Siega Verde.
Um processo crescente de estilização enformou conjunto de representações de cervídeos e de caprinos pertencentes ao estilo estilizadoestático. Algumas possuem ainda dimensões que atingem os 0,50 m de
comprimento, mostrando os corpos de perfil, geometrizados, de forma
sub-rectangular ou ovalada, contendo linha mediana que contínua a
traduzir a concepção da linha da vida, por vezes também mostrando
várias listas horizontais ou sendo preenchidos, parcial ou totalmente,
por picotagem, mas perdendo elegância e volumetria, afastando-se do
realismo. Não obstante, as cabeças continuam a receber tratamento
cuidado, observando-se o uso da perspectiva nas armações. Estas figuras foram realizadas com picotados de negativos de menores dimensões que os utilizados no período anterior, detectando-se linhas descontínuas ou outras mais densas nos contornos.
Foi possível determinar duas fases, a inicial e a plena, para este
estilo, reconhecendo-se, como é lógico, maior aproximação daquela
primeira ao estilo subnaturalista.
Este período artístico parece, pois, constituir a evolução natural do
período precedente, não evidenciando grandes alterações ideológicas
ou sociais, prosseguindo-se economia predadora, assente na caça.
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
Além de animais isolados, identificou-se bando de veados, na
rocha F 491 e reconhecemos cenas, de pré-acasalamento e de cópula,
respectivamente nas rochas CAL 04 e F 155.
Conforme descrevemos, naquela última associação, a corça estilizado-estática sobrepõe as patas traseiras de veado subnaturalista
antigo, encontrando-se ainda ligados por linha que une o baixo-ventre de ambos, repetindo rara composição onde são igualmente protagonistas cervídeos, de estilo estilizado-estático, da Laxe das Lebres,
no Noroeste (García Alén e Peña Santos, 1980: 94) (fig. 13, a).
Na rocha CAL 04 o macho toca com o focinho nos quartos traseiros da fêmea como, igualmente, se observa no ciclo artístico do
Noroeste (Laxe do Cuco) (García Alén e Peña Santos,1980: 43), ou
na rocha 36, da Canada do Inferno (Baptista e Gomes, 1997: 297)
(figs. 13, a; 14, b). Este comportamento, que também se encontra
documentado na arte paleolítica europeia, mostra a captação do
odor produzido pelas grândulas uro-genitais, durante o cio
(Guthrie, 2005: 67).
As associações de temática sexual, detectadas tanto na grande
rocha de Fratel, como no Cachão do Algarve ou Lomba da Barca, onde
se reconhece casal de zoomorfos, reflectem, em última análise, a
aprendizagem dos ciclos naturais e os aspectos míticos da fertilidade,
sejam eles conotados com a magia simpática ou com rituais xamânicos, porventura desenvolvidos junto às margens do Tejo e que, sobretudo, os zoomorfos de corpos reticulados parecem denunciar.
O veado de CAL 56, com o corpo atravessado pela linha da vida,
exibindo, cravada no dorso, lança ou dardo barbelado, e a corça de
F 453, mostrando possíveis representações de outras armas de arremesso sobre o corpo, constituem os mais antigos testemunhos, deste
ciclo artístico, directamente relacionados com a actividade cinegética. Este aspecto suporta afinidades com o enorme cervo, subnaturalista, de Paredes, em Pontevedra, ou com o veado, do mesmo estilo,
de Vale de Cabrões no Côa-Douro. Este, atingido por arma de arremesso, no ventre, tem a cabeça voltada para trás e a boca aberta,
onde se observa a língua, registando o momento em que foi atingido (Baptista,1999: 139) (fig. 14, a).
Ainda no Vale do Côa, no sítio da Canada do Inferno (r. 4), também se observa caprino, de estilo estilizado-estático, com arma cravada no dorso ( Baptista e Gomes, 1997: 268) (fig. 14, c).
Identificaram-se outras gravuras zoomórficas, tanto de estilo
subnaturalista como estilizado-estático, no Vale do Côa, algumas
destas mostrando, tal qual as do Vale do Tejo, a “linha da vida”, duas
das quais acima referidas, integrando cena de pré-acasalamento,
reforçando a continuação entre a arte plistocénica e a holocénica,
que o Vale do Tejo tinha primeiramente demonstrado (fig. 14).
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Figura 13. Noroeste Peninsular. Laxe das Lebres (A e B); Outeiro de Cogoludo (B);
As Tenxiñas (C) (seg. A. García Alén e A. de la Peña Santos, 1980: 26, 89, 94, figs.
15, 95, 99).
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Figura 14. Vale do Côa.Vale de Cabrões (r.1) (A); Canada do Inferno: r.36 (B);
r.4(C); r.3(D) (A, seg. A. M. Baptista, 1999: 139; B-D, seg. A. M. Baptista e M. V.
Gomes, 1997: 268, 269, 297).
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CUADERNOS DE ARTE RUPESTRE
A descoberta de restos de acampamentos, contendo indústrias
líticas epipaleolíticas, nos arredores de Vila Velha de Ródão, não
longe dos arqueossítios com gravuras daquela idade, confirma, em
termos de testemunhos da cultura material, o estabelecimento de
comunidades humanas em tal período histórico.
Por certo que o rio Tejo, com o seu caudal interminável, que
corre penetrando e fecundando a terra, constituiu desde sempre
enorme reserva biológica, originando zona rica em recursos alimentares, capaz de atrair animais e as sociedades humanas, transformando-se em excepcional território de caça, tão essencial à subsistência de então, como em meio privilegiado de interacção cultural,
podendo materializar o conceito de rio civilizador, conforme acontecen com outros grandes cursos de água ao longo da História.
5. Principais conclusões
A arte rupestre do Vale do Tejo integra longo ciclo artístico-cultural,
cujos inícios remontam ao período graveto-solutrense, conforme
demonstra o equídeo do Ocresa, e que, trabalhos anteriores deixam
aceitar que se desenvolveu até à Proto-História.
A localização das gravuras denuncia forte ligação com a água,
tanto do Tejo como do seu afluente Ocresa, capaz de propocionar
excelentes territórios de caça, mas também de permitir a interacção
cultural, como a criação e o desenvolvimento de mitos, ligados com
o seu caudal, profundidade, etc…
Igualmente os santuários com arte rupestre dos caçadores árcticos, do norte da Escandinávia, da Carélia e da Sibéria, oferecem
estreita dependência em relação à água, dos mares ou dos grandes
lagos e rios, o mesmo acontecendo em ciclos artísticos rupestres
peninsulares, como no Vale do Côa, Vale do Guadiana e, de modo
algo diferente, no Noroeste.
A presença de testemunhos artísticos paleolíticos ao ar livre, no
Vale do Tejo, vem alargar a distribuição daqueles no Ocidente
Peninsular e confirmar que, sobretudo depois da descoberta dos
complexos de Foz Côa e Siega Verde, na Meseta Ocidental, tal localização deixa questionar se a excepção que inicialmente ela parecia
constituir, não corresponderá, afinal, à arte parietal em grutas.
As gravuras do Vale do Tejo, classificadas como pertencentes aos
estilos subnaturalista e estilizado-estático, reflectem tanto aspectos
artísticos como sociedades de transição, entre as dos caçadores especializados do Paleolítico Superior (estilo arcaico) e as das comunidades produtoras de alimentos, perfeitamente neolitizadas. Os dois
estilos referidos devem integrar o Epipaleolítico, embora o segundo
possa atingir os primórdios do Neolítico.
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Os períodos iniciais da arte do Vale do Tejo (Paleolítico e Epipaleolítico)
A partir da análise técnica e morfológica, mas também comportamental, dos animais reproduzidos, foi possível identificar duas
fases para o estilo subnaturalista (antiga e evolucionada) (8.0006.000 a.C.) e outras duas para o estilo estilizado-estático (inicial e
plena) (6.000-5.000 a.C.). Recordemos que as manifestações artísticas dolménicas iniciaram-se, na região das Beiras, ainda na segunda
metade do V milénio a.C.
Os animais figurados traduzem, pelo menos em parte, a constituição dos solos da região, o clima e, sobretudo, o coberto vegetal, tal
como algumas alterações então ocorridas. A raridade de representações de auroques e de equídeos indica reaquecimento climático e o desenvolvimento de bosques, onde melhor se desenvolveriam os cervídeos, em detrimento daquelas duas espécies. Todavia, a segunda, julgada extinta na Europa pós-plistocénica, haveria de perviver na
Península Ibérica, conforme documenta a imagem de estilo subnaturalista antigo ou outras ulteriores, também detectadas no Vale do Tejo,
aspecto confirmado por restos osteológicos exumados em diversas
jazidas arqueológicas, do Epipaleolítico ao Calcolítico.
A maior percentagem de imagens de caprinos, de estilo estilizado-estático, indica as alterações climáticas referidas, tal como a presença de solos pedregosos e alcantilados, perto das margens do Tejo,
onde tais animais encontravam refúgio.
Embora a ausência de figurações humanas seja uma das características dos períodos iniciais da arte do Vale do Tejo, a presença dos
caçadores fez-se sentir no estado de alerta com que foram figurados
muitos dos animais e, sobretudo, na reprodução, em dois exemplares, de armas de arremesso cravadas no dorso.
Os zoomorfos dos períodos que temos vindo a referir encontram-se,
no que concerne ao estilo subnaturalista, isolados ou em grupos, embora nestes sem aparente relação. No estilo subsequente, reconhecem-se
bando de veados e cenas de pré-acasalamento ou de cópula. Estes e
outros sinais de carácter social deixam perceber que a maior parte dos
cervídeos foram representados nos finais do Verão e no Outono, durante o cio, quando ainda não tinham perdido a suas vistosas armações.
Parecem corresponder a excepção os dois quadrúpedes da Lomba da
Barca. Entre os caprinos o cio ocorre nos inícios de Novembro.
Embora a arte do Vale do Tejo mostre evolução própria e seja tão
heterogénea e complexa como as culturas que sucessivamente a produziram, o seu primeiro período artístico (arcaico) evidencia convencionalismos comuns à arte rupestre paleolítica europeia enquanto mantém, em tempos pós-paleolíticos, ainda afinidades com aquela, não
obstante encontra mais amplos paralelos nos períodos iniciais de outros
ciclos artísticos peninsulares seus contemporâneos, nomeadamente na
arte do Vale do Côa, na do Noroeste ou, até, na do Levante.
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CUADERNOS DE ARTE RUPESTRE
As representações zoomórficas dos períodos iniciais da arte tagana devem reflectir contextos de sobrevivência, ligados aos aspectos
míticos da fertilidade, tanto conotados com formas de magia simpática ou com rituais xamânicos, onde o rio assumiria significativo
desempenho nos discursos simbólicos, constituindo via de acesso
ao mundo sobrenatural, com o qual se desejava comunicar tendo
em vista alcançar o bem-estar da comunidade. As imagens dos animais, normalmente as reticulares ou possuindo linha da vida, no estilo raios-X, bem podem corresponder à tentativa de conservar as substâncias vitais daqueler, mortos na caça, para os trazer de novo à vida,
conforme foi recorrente nas práticas xamânicas.
Os períodos artísticos subnaturalista e estilizado-estático, do
Vale do Tejo, também identificados no Vale do Côa, na arte do
Noroeste e no Levante Peninsular, demonstram a continuidade da
tradição figurativa paleolítica ao ar livre em tempos holocénicos,
embora com sucessivas adaptações e transformações. Eles revelam a
ausência de hiato artístico-cultural e de novos praradigmas na tradição sócio-religiosa, pelo menos até à presença, naquelas regiões, de
comunidades com plena economia de produção, agro-pastoris,
detentoras de nova atitude perante a Natureza e o Sagrado.
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M. Varela
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