Língua Portuguesa – Reportagens Reportagem 1

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Língua Portuguesa – Reportagens Reportagem 1
Língua Portuguesa – Reportagens
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Colégio Integral – 2014
Reportagem 1
Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Ciência / Janeiro 2013
2045: o ano em que os computadores assumirão o poder
Um computador vai escrever o melhor romance de todos os tempos em um segundo, resolver o
maior mistério da ciência em um décimo de segundo e descobrir o sentido da vida, do universo e
tudo o mais em menos tempo do que você leva para terminar este parágrafo.
por Reportagem Salvador Nogueira
Edição: Alexandre Versignassi
Um computador vai escrever o melhor romance de todos os tempos em um segundo, resolver
o maior mistério da ciência em um décimo de segundo e descobrir o sentido da vida, do universo e
tudo o mais em menos tempo do que você leva para terminar este parágrafo. Muitos de nós
provavelmente estarão vivos quando esse dia chegar. O problema é saber como será o dia
seguinte... É o que vamos ver agora. Bem-vindo à verdadeira Matrix.
Já faz 15 anos que o Deep Blue, um supercomputador da IBM, bateu Garry Kasparov, o
grande trunfo do xadrez do time da humanidade. Na época, houve quem desse pouco crédito à
inteligência daquela máquina pelo fato de o jogo ser altamente matemático – ciência para a qual os
computadores têm aptidão mais do que natural.
Na prática, não haveria uma grande “inteligência” ali. Só uma calculadora grande. Os
computadores, então, poderiam até ser geniais, mas nunca saberiam “pensar como um humano”.
Hoje essa visão não faz mais sentido. O Watson, outro supercomputador da IBM, conseguiu vencer
em 2011 os dois melhores jogadores humanos no Jeopardy, um game show da TV americana. Tratase de um jogo de perguntas e respostas que exige dos participantes uma baita habilidade com
linguagem. São questões do tipo “Esse objeto, mesmo quando quebra, está certo duas vezes por
dia. Qual é o objeto?”. “Um relógio”, respondeu Watson, com a mesma rapidez com que uma
calculadora dá um resultado. E foi assim com outras dezenas de perguntas nessa linha. “Isso não
aconteceu, note bem, porque algum cientista colocou aquela informação do jeito certo”, diz o
americano Ray Kurzweil, um dos mais célebres especialistas em inteligência artificial. De fato. Tudo
o que Watson fez antes de participar do jogo foi ler milhares de livros e enciclopédias – inclusive a
Wikipedia, embora ele não estivesse conectado à internet na hora de responder as perguntas. Tinha
de ser tudo “de cabeça” mesmo. Admirável. E o bastante para dizer que Watson está para o Deep
Blue como um cachorrinho está para uma formiga. Trata-se de uma inteligência infinitamente
superior – ainda que não chegue aos pés da humana.
Mas para alguns especialistas essa nossa vantagem não deve durar mais tanto tempo. É o
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caso de Kurzweil. Para ele, os chips devem nos ultrapassar até a metade do século. É quando
toparemos com o que ele e outros cientistas chamam de “singularidade tecnológica”. Vamos ver o
que é isso.
Na física, “singularidade” é o que acontece no interior de um buraco negro. Um buraco negro
se forma quando uma estrela implode e começa a ser destruída pela própria gravidade. Chega uma
hora em que não sobra mais estrela. Só gravidade. Na verdade, um pontinho no espaço onde a
gravidade tende ao infinito. Esse pontinho é o que os físicos chamam de “singularidade”. Com o
passar do tempo, a singularidade vai sugando tudo o que tem à sua volta. A massa e a energia dos
objetos que ela engole deixa o buraco negro “mais forte”. O poder de sucção dele aumenta, ele
engole mais coisas, fica mais forte... Em suma: o crescimento do buraco negro acontece numa
espiral infinita. Com a “singularidade tecnológica” seria a mesma coisa. Uma máquina mais
inteligente que a humanidade criaria ela mesma máquinas ainda mais sofisticadas, sem precisar de
programadores humanos. A inteligência artificial cresceria por conta própria, igual o poder de sucção
dos buracos negros. Esse processo tenderia ao infinito, com máquinas dando à luz máquinas
incríveis que depois criam máquinas ainda mais fantásticas. E nós ficaríamos só assistindo.
Isso é só uma possibilidade teórica. Mas talvez estejamos dando agora mesmo os primeiros
passos para chegar a essa realidade. E por um motivo simples: construímos máquinas cada vez
mais à imagem e semelhança do nosso cérebro. A inteligência humana foi produzida pela seleção
natural. Ao longo da evolução, nossa cabeça cresceu para lidar com desafios que nossos corpos não
teriam como vencer – tente correr de um leão na savana africana para ter uma referência mais
completa do que estamos falando.
A sobrevivência dos seres humanos dependeu basicamente do desenvolvimento da
capacidade de criar extensões dos nossos corpos – ferramentas – e ao mesmo tempo ter a chance
de nos especializarmos no uso delas. Podemos, portanto, resumir o cérebro humano em duas
qualidades básicas: capacidade de processamento (para imaginar a ferramenta certa) e plasticidade
(para se adaptar ao uso da tal ferramenta).
Primeiro vamos falar da capacidade de processamento. Qual é o desempenho computacional
dos nossos miolos? Pesquisadores da IBM fizeram essa conta e estimam que o cérebro é capaz de
atingir 36,8 petaflops – ou 36,8 quatrilhões de operações por segundo. Isso equivale a mais ou
menos 1 milhão de PCs trabalhando em conjunto.
Coordenar o trabalho de tantos chips ainda é algo impossível com a tecnologia de hoje. Mas os
supercomputadores têm avançado um bocado. Em 2012, o Sequoia, da IBM, conseguiu atingir 16,32
petaflops – quase metade da capacidade humana. Ainda assim, ele não faz nada tão incrível quanto
nós fazemos – coisas como pensar que estamos vivos. Por quê? Para responder a essa pergunta,
entra a segunda qualidade básica da sua cabeça: a plasticidade.
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Seu cérebro é altamente maleável, adaptável. Conforme o sistema nervoso vai se
desenvolvendo, diversas regiões cerebrais vão assumindo diferentes responsabilidades. Sabe-se,
por exemplo, que há áreas determinadas para o processamento da linguagem. Também há partes
específicas do cérebro que controlam partes diferentes do corpo, como os pés e as mãos.
Mas o melhor de tudo é que dá para adaptar o cérebro conforme o uso. É a plasticidade que
permite, por exemplo, que um sujeito se torne um grande pianista. As áreas do cérebro referentes às
mãos se expandem enormemente em quem treina piano durante muitos anos. “Nosso cérebro é um
sistema projetado para aprender, para se moldar na interação com o ambiente”, diz o psicólogo
Steven Pinker, de Harvard, um dos maiores especialistas no funcionamento da massa cinzenta. Os
melhores cérebros eletrônicos de hoje funcionam basicamente assim. Ou seja: eles conseguem
aprender. “As técnicas que evoluíram no campo da inteligência artificial são similares às técnicas que
o cérebro usa”, diz Kurzweil. “E isso não aconteceu porque esse campo de pesquisa estava copiando
o cérebro”. Ou seja: foi uma feliz coincidência. Uma coincidência que permitiu máquinas como o
Watson, capazes de aprender por conta própria quando leem um livro – que nem você.
Conforme a plasticidade dos cérebros eletrônicos aumente, é possível que uma hora eles
fiquem tão complexos quanto o cérebro que você carrega. Kurzweil, que é o maior arauto dessa tese,
estima que as máquinas chegarão a uma inteligência equivalente à humana em 2029. Sim,
exatamente 2029. Ele chegou a esse número com base em projeções matemáticas sobre a evolução
da capacidade de processamento. Claro que a previsão é polêmica – para muitos pesquisadores,
cravar o ano em que algo tão imprevisível e insólito deve surgir é loucura. Ponto. Seja como for,
pelas contas de Kurzweil, a singularidade propriamente dita começará em 2045, quando um único
computador será mais inteligente que a humanidade inteira.
Uma máquina com tamanho poder seria tão fascinante quanto perigosa. Por um lado, ela seria
capaz de coordenar e executar todas as atividades hoje atribuídas a nós, como escrever um grande
romance ou unificar numa só teoria a física quântica (que rege o universo subatômico) e a
relatividade (que dita as ordens no mundo das coisas grandes) – algo que Einstein morreu tentando
fazer. Tudo isso em questão de segundos. Lindo. Por outro lado, qual é o nível de respeito que uma
máquina assim teria pela gente? Estamos falando de um “sujeito” para quem um Einstein ou um
Dostoievski são só cachorrinhos – e nós, formigas. A gente não dá muito valor à habilidade
intelectual de uma formiga, certo? Isso dá a noção exata do tamanho do perigo. Estamos criando
uma possível “forma de vida” ultrapoderosa que pode ou não compartilhar nossos valores éticos e
morais. Para discutir essas implicações, aliás, Kurzweil criou um projeto ambicioso: a Singularity
University, no Vale do Silício. Trata-se de uma entidade fundada em 2008 que oferece cursos de
pós-graduação focados em “montar, educar e inspirar um grupo de líderes”. A esses líderes caberá
“guiar o desenvolvimento” dessa superinteligência artificial que estaria por vir. A esperança por trás
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da iniciativa é que essas máquinas já nasçam “cultivando” valores como democracia, liberdade de
expressão... Em suma, fazer com que elas, mesmo sendo vastamente mais poderosas que nós,
tenham “bom senso” suficiente para não nos destruir. “As pessoas dizem: ‘Ei: isso não soa como
uma estratégia infalível’’’, diz Kurzweil. “E não é mesmo. Mas é o melhor que podemos fazer.”
Upload de consciências
Se você não pode vencê-los, junte-se a eles. Esse ditado vai fazer mais sentido do que nunca
num mundo com máquinas bilhões de vezes mais inteligentes do que nós: juntar-se a elas pode ser
o futuro da humanidade. “Um dia poderemos descarregar nossas lembranças num computador e
preservá-las”, diz outro especialista em sistemas inteligentes: o brasileiro Miguel Nicolelis, que
trabalha no desenvolvimento de próteses capazes de conversar com cérebros humanos – e de
funcionar como se fossem braços ou pernas normais. Esse “descarregamento”, em tese, pode
significar o upload da sua consciência para dentro de uma máquina. A mente continuaria viva após a
morte do corpo. E acabaria deitada eternamente no berço esplêndido de um simulador de realidade...
Não deixa de ser uma forma de alcançar a vida eterna.
Bom, provavelmente caberá à máquina decidir se você vai saber que vive numa simulação. Ela
pode achar que é melhor você não saber de nada, e ir tocando a vida achando que tem um corpo,
que respira, que vai morrer um dia... Se for assim, inclusive, a singularidade pode já ter acontecido. E
nós estaríamos vivendo agora mesmo numa ilusão, numa “Matrix”. Essa hipótese, ao menos
filosoficamente, não tem como ser refutada, já que não dá para imaginar o que uma inteligência
superior é realmente capaz de fazer. Ou de já ter feito.
Para saber mais
How to Create a Mind
Ray Kurzweil, Penguin, 2012.
http://super.abril.com.br/ciencia/2045-ano-computadores-assumirao-poder-733011.shtml
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Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Capa / Fevereiro 2013
O mundo secreto do inconsciente
Ele ocupa a maior parte do cérebro e controla quase tudo o que fazemos. Mas a ciência já sabe
como domá-lo e usar os poderes dele para várias coisas, de guardar senhas a fazer espionagem
militar. Conheça as novas descobertas sobre o inconsciente – e veja como elas confirmam a principal
teoria de Freud.
por Reportagem: Alexandre de Santi e Sílvia Lisboa*
Edição: Bruno Garattoni
Quando tinha pouco mais de cinquenta anos, o médico africano T.N. sofreu dois derrames
cerebrais devastadores. Eles destruíram totalmente seu córtex visual, a região do cérebro que nos
permite enxergar. T.N. ficou completa e irremediavelmente cego. Mas, ainda no hospital, um grupo
de cientistas ingleses decidiu recrutá-lo para um estudo estranho. Colocaram um laptop na frente de
T.N. e pediram a ele que identificasse qual figura aparecia na tela, que poderia ser um círculo ou um
quadrado. O homem identificou corretamente 50% das figuras – o que é de se esperar num cego,
pois esse índice de acerto é o mesmo que se consegue fazendo escolhas aleatoriamente. T.N.
estava apenas chutando. Mas aí, num segundo teste, os pesquisadores trocaram as imagens
exibidas no laptop. Agora, aparecia uma sequência de rostos, alguns amigáveis e outros hostis. T.N.
deveria dizer se cada face era amiga ou inimiga. Para perplexidade geral, ele identificou
corretamente dois terços dos rostos. Sorte? Os cientistas repetiram o teste, mas o índice de acerto
se mantinha. T.N. estava tendo alguma reação aos rostos. Ele dizia que não estava vendo nada – e,
clinicamente, de fato era impossível que enxergasse. Como explicar isso, então? Um fenômeno
sobrenatural? Não.
Ser capaz de ler expressões faciais é uma habilidade extremamente importante. Para o homem
das cavernas, saber se um indivíduo era amistoso ou hostil poderia significar a diferença entre a vida
e a morte. E era preciso fazer isso no ato; não dava tempo de conversar e analisar racionalmente a
pessoa para saber se ela era boazinha ou não. Por isso, ao longo da evolução, uma região cerebral
se especializou em julgar rostos. Ela se chama área fusiforme e é um pedaço fininho e comprido da
parte de baixo do cérebro. Quando você vê uma pessoa pela primeira vez, sua área fusiforme
analisa o rosto dela. O processo dura frações de segundo e é inconsciente, ou seja, você não
percebe que está acontecendo. Sabe aquela primeira impressão instantânea, que parece puro
instinto e sempre temos ao conhecer alguém? É um julgamento feito pela área fusiforme.
No cérebro de T.N., esse pedaço estava intacto. O córtex dele não conseguia processar as
imagens enviadas pelos olhos, mas a área fusiforme sim. É por isso que, mesmo estando cego, T.N.
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ainda conseguia ver rostos. Seu cérebro consciente não enxergava mais nada. Mas o inconsciente
dele ainda conseguia ver – e, mais do que ver, julgar os rostos das pessoas.
Há diversos casos como o de T.N., tantos que a ciência até criou um termo para designá-los:
blindsight, ou visão cega. Todos seguem o mesmo padrão. Conscientemente, a pessoa está cega –
mas partes do cérebro dela ainda conseguem enxergar. A visão cega é apenas uma das
demonstrações do poder do inconsciente, que interessa cada vez mais aos cientistas.
Agora, o lado oculto da mente não é apenas um assunto de psicanalistas; ele também virou
uma das áreas mais interessantes da neurociência moderna. Essa transformação aconteceu porque
as técnicas de mapeamento cerebral finalmente estão permitindo que os cientistas comecem a
desbravar o inconsciente – um mundo inexplorado e muito maior que a consciência.
Quão maior? No ano passado, a emissora inglesa BBC fez essa pergunta a sete dos maiores
experts do mundo em cérebro e cognição, de quatro grandes universidades (Oxford, Montreal,
Columbia e Londres). Cada um deles deu seu palpite – sim, palpite, pois a ciência ainda está longe
de ter um catálogo completo dos processos cerebrais. Pelas estimativas dos especialistas, a
consciência ocupa no máximo 5% do cérebro. Todo o resto, 95%, é o reino do inconsciente.
Consciente x inconsciente
Quando você vê um rosto pela primeira vez, o seu inconsciente decide, em frações de segundo, se
aquela pessoa é amiga ou inimiga. É uma habilidade vital para a sobrevivência – e também permitiu
que um homem totalmente cego voltasse a enxergar.
Muito do que você faz, o tempo inteiro, é inconsciente. Falar, por exemplo. Você simplesmente
pensa no que quer dizer (as ideias), e não precisa selecionar conscientemente as palavras – elas
simplesmente aparecem. Isso acontece porque o seu inconsciente trabalha nos bastidores durante o
papo, vasculhando o seu vocabulário e abastecendo o consciente para ajudar você a se expressar.
Enquanto você escuta outra pessoa falar, acontece algo parecido. Você não precisa analisar e
decodificar conscientemente cada palavra do que ela está dizendo – porque o seu inconsciente se
encarrega de transformar em ideias os sons que estão saindo da boca dela. Quando você lê um
texto, é a mesma coisa: o inconsciente transforma automaticamente os símbolos gráficos (as letras e
palavras) da página em ideias, que só então são transmitidas para a sua consciência. É por isso que
é tão difícil aprender outro idioma. Quando você começa a falar ou ler textos em outra língua, só usa
a consciência – porque o inconsciente ainda não assumiu a tarefa (mais sobre isso daqui a pouco), e
você tem de escolher ou analisar as palavras uma por uma. “Falar outro idioma é quase
experimentar ser outra pessoa. Precisamos reunir os sentidos usando outra lógica”, diz Luiza
Surreaux, doutora em estudos da linguagem e professora da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS).
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O inconsciente se encarrega de tudo o que fazemos sem esforço perceptível, como andar na
rua ou escovar os dentes. Por causa disso, ele opera em potência máxima o tempo todo – e é uma
exceção no organismo. Se você se levantar e sair correndo, por exemplo, os seus músculos vão
gastar aproximadamente 100 vezes mais energia do que se você estivesse imóvel (e coração e
pulmão também serão mais exigidos). Mas o cérebro é diferente. Quando você faz alguma coisa
mentalmente intensa, como jogar xadrez, ele gasta apenas 1% a mais de energia do que se você
estivesse olhando para o teto, sem pensar em nada. Isso acontece graças ao inconsciente – que
trabalha freneticamente até quando estamos relaxados. “O cérebro é abastecido pelos olhos, ouvidos
e outros sentidos, e o inconsciente traduz tudo em imagens e palavras”, diz o psicólogo e
neurocientista Ran Hassin, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e um dos autores do
livro The New Unconscious (“O novo inconsciente”, ainda não lançado no Brasil). “Novo
inconsciente”, aliás, é o termo que os cientistas têm utilizado para definir essa nova abordagem –
que propõe uma explicação puramente neurológica para o lado oculto da mente. Mas também
confirma a principal ideia de Freud.
Ler x ver
Enquanto lê este texto, você vê uma sequência de símbolos: as letras. Mas é o seu inconsciente que
dá sentido a elas.
Psicanálise x ciência
Sigmund Freud não foi o “descobridor” do inconsciente. Já durante o Iluminismo, no século 18,
se discutia a existência dele – entendido como um pedaço da mente dotado de vontades que
escapavam ao controle consciente. A contribuição específica (e enorme) de Freud foi transformar
uma noção vaga num conjunto de ideias, teorias e técnicas: a psicanálise. Como explica o biógrafo
Peter Gay em Freud – Uma Vida para Nosso Tempo (Companhia das Letras, 2012), Freud
acreditava que o inconsciente era “uma prisão de segurança máxima” na qual os traumas sofridos na
infância ficavam aprisionados, e nisso estaria a raiz das infelicidades humanas.
A neurociência nunca deu muita bola para a psicanálise. Mas os novos estudos sobre
inconsciente trazem comprovação para um conceito central dela. Uma experiência liderada pelo
psiquiatra Eric Kandel, que ganhou o prêmio Nobel de Medicina de 2000 por estudos sobre
neurotransmissores, mostra como o inconsciente pode funcionar como amplificador das emoções.
Antes da experiência, os voluntários preencheram questionários que mediam seus níveis de
ansiedade. Depois, enquanto seu cérebro era monitorado pelos cientistas, cada voluntário via uma
série de rostos com expressões de medo. Foram duas sessões. Na primeira, as fotos passavam bem
devagar, com tempo suficiente para o voluntário analisar os detalhes de cada uma. Na segunda, as
imagens passavam tão rápido que os voluntários não conseguiam identificar nada – não tinham nem
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certeza de ter visto um rosto ou qualquer outra coisa. A intenção de Kandel e seus colegas era
provocar emoções conscientes e inconscientes. Quando a foto ficava por um bom tempo na tela, o
voluntário tinha tempo de perceber conscientemente a expressão de medo da imagem. No outro
experimento, era tudo tão rápido que não era possível ter uma reação consciente. Essas imagens
rápidas estimulavam diretamente o inconsciente, e provocavam atividade muito alta no núcleo
basolateral da amídala cerebral – área ligada às sensações de medo. Já as imagens lentas, que
eram interpretadas de forma consciente, não geravam nenhuma atividade nessa área. Quanto mais
ansiosa a pessoa era, maior a diferença entre a interpretação consciente e inconsciente da mesma
coisa (as imagens). Para Kandel, o estudo é a comprovação neurocientífica de uma teoria central da
psicanálise: a interpretação inconsciente de coisas negativas é a fonte de muitas das aflições
humanas. Freud tinha razão.
Experiência x influência
Você é o produto das situações que vive. Mas também sofre uma influência que vem de dentro – e é
tão potente quanto elas.
O inconsciente pode ser fonte de angústias – e também de algumas injustiças, cujos efeitos
são perceptíveis desde a infância. O queridinho do professor, provavelmente, será o aluno com as
melhores notas da classe. Não porque ele seja necessariamente o melhor, mas porque os
professores acreditam que seja – e acabam atuando inconscientemente a favor dele. Esse
fenômeno, que se chama incentivo inconsciente, tem respaldo em diversos estudos científicos. Um
dos mais engenhosos (e mais polêmicos também) foi conduzido na década de 1960 por Robert
Rosenthal, hoje um octogenário professor de psicologia da Universidade da Califórnia.
Na experiência, os alunos de uma escola americana foram submetidos a uma prova. Rosenthal
e sua equipe disseram aos 18 educadores do colégio que se tratava de um teste especial,
desenvolvido na Universidade Harvard para analisar o potencial de desenvolvimento de cada
criança. Mentira. Era apenas um reles teste de QI, sem nada de especial. O objetivo da lorota era
aumentar as expectativas dos professores. Os alunos fizeram a prova, e a grande sacada de
Rosenthal veio na hora de anunciar o resultado. Antes mesmo de calcular a pontuação de cada
aluno, os pesquisadores escolheram aleatoriamente três a seis crianças de cada série e disseram
aos professores que aqueles alunos haviam se destacado e teriam um desempenho extraordinário
nos anos seguintes. Era outra mentira.
No final do ano escolar, a equipe de Rosenthal voltou à escola e repetiu o teste. Os alunos que
haviam sido falsamente diagnosticados como gênios haviam ganho, em média, 3,8 pontos de QI a
mais que os demais. O resultado foi ainda mais surpreendente entre alunos da primeira série: a
diferença entre os ungidos e o resto foi de assombrosos 15,4 pontos de QI a mais. Ou seja: as
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crianças que haviam sido apresentadas como mais inteligentes de fato se tornaram mais inteligentes
– porque inconscientemente, sem querer, os professores haviam dado mais atenção e estímulo a
elas. “O resultado mais importante desse experimento foi mostrar como a expectativa dos
professores faz toda a diferença para o desenvolvimento dos alunos”, analisa Rosenthal. É
impossível ser completamente justo e imune a esse tipo de influência, mas existe um antídoto eficaz
contra as distorções induzidas pelo inconsciente: saber que ele sempre está pronto para nos
enganar.
Aprender sem saber
Se, por um lado, é impossível controlar o inconsciente de maneira consciente, é possível
influenciá-lo. “Podemos mudá-lo. Ele é tão maleável quanto a consciência, ou talvez mais”, afirma o
neurologista Ran Hassin. Como se faz isso? Praticando alguma coisa até que ela se torne uma
segunda natureza, ou seja, vire um processo automático. Qualquer profissional de elite, seja um
pianista profissional, um jogador da seleção brasileira de futebol, um médico-cirurgião ou uma
bailarina do Theatro Municipal, depende de anos de prática para chegar ao topo da carreira. Cerca
de dez anos de prática – ou 10 mil horas de treino, segundo uma famosa pesquisa do psicólogo
Anders Ericsson, da Universidade da Flórida. Ericsson estudou violinistas de uma das melhores
escolas de música de Berlim. Eles começaram com cinco anos de idade, todos no mesmo ritmo.
Mas, a partir dos oito anos, as horas de ensaio começaram a variar entre os estudantes. Quando
chegaram aos 20 anos, os melhores violinistas haviam somado 10 mil horas de treino, enquanto os
demais não passavam de 8 mil horas – e os piores da turma tinham apenas 4 mil horas de estudo.
Sentir x pensar
O consciente e o inconsciente reagem de modo diferente à mesma coisa. O primeiro é racional; o
segundo, carregado de emoção.
A dedicação trouxe recompensa porque, quando se pratica muito alguma coisa, ela fica
gravada num tipo especial de memória: a memória não-declarativa, que faz parte do inconsciente e
registra ações e movimentos do corpo. É ela que permite que o violinista consiga tocar bem. Se
dependesse apenas do consciente, ele não daria conta de todos os procedimentos envolvidos na
tarefa (ler a partitura, equilibrar o instrumento no ombro, posicionar os dedos, mover o arco, respirar
e, ainda por cima, tocar de maneira natural e relaxada). E ninguém conseguiria aprender a falar
fluentemente um segundo idioma. Em suma: a chave para ensinar uma nova habilidade ao próprio
inconsciente é treinar, treinar e treinar. É um processo bem demorado. Mas já existe gente tentando
deixá-lo mais rápido.
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Cria x fala
Você decide o que quer falar, mas não escolhe as palavras que vai usar – o seu inconsciente faz isso
por você. Ele pega as suas ideias e cria a sua fala. Quando você está aprendendo outro idioma, isso
não acontece: a consciência tem de se virar sozinha.
As senhas invisíveis
Elas são um problema típico do mundo moderno. Ou você acaba esquecendo as suas, ou
escolhe uma bem bobinha e usa pra tudo – até que, por causa disso, alguém acaba invadindo o seu
e-mail ou conta bancária. Um grupo de cientistas da Universidade Stanford tem uma solução melhor:
senhas ultrassecretas, que ficam armazenadas no inconsciente. Funciona assim. Primeiro, os
cientistas pedem a voluntários que joguem um joguinho no qual bolinhas caem, uma de cada vez, em
uma das seis colunas que aparecem na tela. O objetivo é apertar o botão do teclado correspondente
à posição da bolinha na tela. Se a bolinha cai do lado esquerdo, por exemplo, a pessoa aperta a letra
S (porque ela fica bem à esquerda no teclado). A ordem das bolinhas parece aleatória, mas não é. A
pessoa não percebe, mas existe uma sequência que se repete de tempos em tempos – cerca de 90
vezes ao longo de 30 minutos, a duração do jogo. Essa sequência é definida pelo computador e é
personalizada, ou seja, diferente para cada jogador. Ela é a senha. E, graças à repetição, acaba
sendo gravada no inconsciente da pessoa.
Na segunda etapa da experiência, a pessoa joga o joguinho novamente. E as bolinhas vão
caindo na tela do mesmo jeito: sua ordem parece aleatória, mas uma sequência específica (a senha)
se repete de tempos em tempos. Como as bolinhas caem bem depressa, o jogador erra muitas.
Exceto as bolinhas daquela sequência que ficou gravada no inconsciente dele. Sem perceber nem
saber o motivo, a pessoa acerta todas. Está digitada a senha. Ela é reconhecida pelo computador,
que libera o acesso. Além de ser conveniente (você nunca mais precisará se lembrar de uma senha),
a tecnologia é extremamente segura. “O sistema torna praticamente impossível para um assaltante
forçar a vítima a revelar sua senha bancária, por exemplo. Porque a senha está no cérebro da
pessoa, mas não está acessível conscientemente a ela”, explica Hristo Bojinov, um dos criadores da
tecnologia.
Segundo ele, o sistema de senhas inconscientes pode chegar ao mercado dentro de três anos,
mas ainda precisa ser aperfeiçoado. Por enquanto, ele é inviável para uso cotidiano – porque é
preciso jogar o joguinho durante 5 a 10 minutos até que a senha inconsciente seja digitada. Dez
minutos é bastante. Mas é bem menos do que as 10 mil horas do exemplo anterior. Ou seja: a nova
técnica mostra que é possível inserir informações simples no inconsciente muito mais depressa do
que se acreditava.
O Exército americano já percebeu, e está tentando tirar proveito disso. A ideia é ajudar os
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analistas de imagens aéreas, funcionários do Pentágono que olham as fotos tiradas pelos satélites
espiões dos EUA – e dizem quais delas contêm algo relevante (como um reator nuclear ou uma base
militar inimiga, por exemplo). É um trabalho cansativo e difícil, pois são milhares de fotos
aparentemente iguais, com diferenças minúsculas. Mas o cientista Paul Sajda, da Universidade
Columbia, teve a ideia de monitorar o cérebro de um analista enquanto ele olhava essas fotos. O
analista vestiu uma touca de eletroencefalograma (EEG), cheia de sensores que medem a atividade
elétrica em determinadas regiões do cérebro. Aí Sajda mostrou a ele uma foto relevante, ou seja, na
qual se via claramente uma construção suspeita. O eletroencefalograma registrou um pico de
atividade cerebral – pois aquela imagem havia despertado a curiosidade do analista. Normal.
Mas aí os pesquisadores resolveram acelerar as coisas, e começaram a exibir dez imagens por
segundo. Algumas das fotos eram relevantes, outras não, mas todas passavam rápido demais para
que o analista conseguisse prestar atenção em qualquer coisa. Mesmo assim, quando aparecia uma
foto relevante, algo incrível acontecia: o eletroencefalograma registrava um pico de atividade no
cérebro dele. O analista não conseguia perceber nada de diferente nas imagens, mas o inconsciente
dele sim – e estava identificando as fotos que tinham pontos interessantes. De acordo com Sajda, o
novo método permite aumentar em até 300 vezes a eficiência da análise de imagens militares. “Os
processos inconscientes são capazes de algum tipo de racionalidade, muito mais do que se pensa, e
essa racionalidade pode levar a boas decisões”, escreve o neurocientista Antonio Damasio no livro E
o Cérebro Criou o Homem.
Hans, o cavalo esperto
O inconsciente não é apenas um depósito de traumas reprimidos e habilidades incríveis. Ele
também é especialista em fazer o contrário: colocar tudo pra fora. O psicólogo Paul Ekman, da
Universidade da California, ficou famoso por ter catalogado mais de 10 mil conjuntos de
“microexpressões” – expressões faciais que fazemos inconscientemente enquanto conversamos, e
que podem revelar nossas verdadeiras emoções. Inclusive se o seu interlocutor for um cavalo.
Em 1904, o alemão Wilhelm von Oster ficou famoso por suas apresentações com Hans – um
cavalo que era capaz de “quase tudo, menos falar”. Segundo o dono, Hans fazia cálculos
matemáticos complexos. Quando perguntavam a raiz quadrada de quatro, o bicho respondia batendo
o casco duas vezes no chão. A conexão era tanta que Hans acertava o resultado mesmo quando seu
mestre não fazia as perguntas em voz alta – e apenas pensava nelas. Havia quem jurasse de pés
juntos que o cavalo lia a mente de Von Oster. A dupla rodou a Alemanha em apresentações
fantásticas, e deixou estudiosos debruçados sobre o mistério durante anos. Em 1907, o psicólogo
Oskar Pfungst publicou um estudo que solucionava a charada. Hans só acertava os resultados
quando seu entrevistador (no caso, Von Oster) já sabia a resposta certa. Pfungst descobriu um
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padrão: Von Oster se inclinava levemente para frente quando terminava de propor uma questão.
Esse era o sinal. Hans entendia e começava a bater o casco no chão. Quando atingia o número certo
de batidas, algum outro movimento do dono denunciava a hora de parar. Von Oster era um
charlatão, então? Talvez. Mas muitas outras pessoas, que não sabiam de nada, desafiaram Hans
com problemas matemáticos. O cavalo acertou todos. É que elas, sem saber, também coordenavam
com movimentos inconscientes as respostas dele. Ou seja: cavalos talvez não saibam fazer contas,
mas podem ser capazes de ler o inconsciente alheio com mais precisão do que muito humano.
Rotina x mudança
Um estudo neurológico provou que o inconsciente exagera as coisas ruins – e confrontá-lo pode ser
a chave para superar angústias.
Ainda não existe uma fórmula que permita controlar o que dizemos de forma inconsciente.
Emitimos sinais inconscientes o tempo todo – a ponto de sermos transparentes até para cavalos. É
por isso que é tão difícil fingir: todo mundo percebe quando achamos que uma festa está meio chata,
por exemplo. Mas não vá culpar o seu inconsciente por isso. Se não fosse ele, você sequer
conseguiria dançar e conversar ao mesmo tempo.
Memória subliminar
Como funciona o sistema que permite gravar senhas de computador no inconsciente
1. Você joga um game em que bolinhas caem na tela – e o objetivo é apertar a letra do teclado
correspondente à coluna na qual a bolinha está caindo.
2. A ordem das bolinhas parece aleatória, mas não é. Você não percebe, mas existe uma sequência
de 30 letras que se repete várias vezes durante o jogo. Ela é a senha – e, de tanto ser repetida, fica
gravada no seu inconsciente.
3. Para acessar o computador, você joga novamente o game. Como as bolinhas caem bem rápido,
você erra muitas delas – exceto aquela sequência de 30, que o seu inconsciente gravou, e por isso
você acerta. A máquina reconhece a senha e libera seu acesso.
Percepção acelerada
Exército dos EUA já sabe usar o poder do inconsciente para turbinar a visão humana
1. O militar veste uma touca de eletroencefalograma (EEG), aparelho que mede as correntes
elétricas do cérebro.
2. Uma tela mostra dez imagens por segundo. É rápido demais para que a pessoa tenha qualquer
reação consciente.
3. Mas quando aparece uma imagem relevante (mostrando uma base militar inimiga, por exemplo), o
inconsciente percebe – e o EEG registra um pico de atividade cerebral.
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4. A técnica permite que um analista militar processe até 36 mil imagens por hora – e com três vezes
mais precisão do que se estivesse usando a consciência.
Para saber mais
Subliminal
Leonard Mlodinow. Pantheon Books, 2012.
Em Busca da Memória
Eric Kandel. Companhia das Letras, 2009.
* Colaboração de Cristine Kist, Bianca Carneiroe e Ana Becker
http://super.abril.com.br/ciencia/mundo-secreto-inconsciente-741950.shtml
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Reportagem 3
Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Cultura / Fevereiro 2013
O boom amish
Famoso pela aversão à tecnologia e por viver como se ainda estivesse no século 18, o povo amish
nunca foi tão numeroso. E boa parte da responsabilidade dessa explosão demográfica é da própria
tecnologia que eles buscam evitar.
por Reportagem: Ana Prado
Edição: Felipe van Deursen
Não foi possível chamar a polícia depois que o atirador matou cinco crianças e se matou. Não
havia telefone no local, pois tratava-se de uma escola amish, e a restrição ao telefone é um preceito
da religião. O episódio, ocorrido na Pensilvânia em 2006, pôs em evidência a relação que esse povo
que vive nos Estados Unidos e no Canadá tem com a tecnologia. Com um estilo de vida simples e
procurando se diferenciar o máximo possível do resto do mundo, os amish evitaram o telefone por
muito tempo por razões práticas e simbólicas. Para eles, o aparelho é o contato direto com o lado de
fora da comunidade e ainda pode roubar o tempo que seria dedicado à família. Viver em uma
sociedade separada é uma das bases da crença amish, segundo o seu entendimento do texto bíblico
que diz: “não vivam como vivem as pessoas deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por
meio de uma completa mudança da mente de vocês” (Romanos 12:2).
Mas isso está mudando. “O telefone é um símbolo de como os amish têm sido afetados pelo
seu próprio crescimento populacional”, explica Joseph Donnermeyer, sociólogo da Universidade
Estadual de Ohio que estuda os amish. De acordo com um estudo realizado em 2012 pela sua
equipe, a população amish nunca foi tão grande: mais de 250 mil pessoas. É mais que o dobro do
registrado em 1989, e a tendência é que o número continue se duplicando a cada 20 anos. Como
esse aumento tem levado muitas famílias a morar em locais distantes, seus líderes abriram algumas
exceções e começaram a permitir outros meios de comunicação para mantê-las unidas. O telefone,
antes proibido, permitiu que muitos amish pudessem continuar tendo o que lhes é essencial: o
convívio em comunidade.
Carroças
Os amish começaram sua história em 1525, na Suíça, quando romperam com católicos e
protestantes. Por serem contra o batismo de crianças, acreditando que a adoção de uma religião
precisa ser uma escolha pessoal e consciente, ficaram conhecidos como anabatistas (palavra de
origem grega para “rebatizados”). Como era de se esperar, foram perseguidos na Europa e tiveram
de fugir para a América do Norte. A primeira família chegou em 1737 e se estabeleceu na
Pensilvânia. Em 1865, houve o primeiro cisma tecnológico amish. “Isso ocorreu basicamente por
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causa de diferenças no estilo de vida. Os progressistas permitiam, por exemplo, tirar fotografias,
tocar instrumentos musicais e usar roupas mais caras”, explica Donnermeyer.
As crenças amish se baseiam na Ordnung (“ordem”, em alemão), tradição oral baseada em
passagens bíblicas específicas que contêm as regras de seu estilo de vida. Mas há muitas Ordnung
distintas, graças a uma série de divisões que ocorreram entre eles ao longo do século 20. Por isso,
os grupos podem diferir em relação ao estilo de vida. “Eles estão continuamente mudando. Há cerca
de 40 linhas distintas na América do Norte e cada uma usa diferentes tipos de tecnologia”, diz Donald
B. Kraybill, do centro de estudos anabatistas da Elizabethtown College, na Pensilvânia. Os
Swartzentruber, por exemplo, são os mais radicais. Seus cultos religiosos são mais longos (podendo
durar mais de quatro horas) e sua restrição à tecnologia, muito maior. Eles não podem usar água
encanada ou aquecida – o que faz com que tomem banho com menos frequência que os outros
grupos – e não usam qualquer forma de energia. Carros: proibidos. E as carroças, veículo símbolo
dos amish, não têm retrovisores porque eles acreditam que não devem ter sua imagem registrada ou
refletida em nenhum lugar. Já grupos da chamada Nova Ordem permitem eletricidade em torno de
sua casa (mas não dentro dela) e até têm aparelhos telefônicos, além de permitir fotografias. Alguns
aspectos, porém, são comuns a todos, como as roupas em cores únicas, as famílias numerosas e o
idioma adotado – um dialeto da Alemanha. Fora os assentamentos, que têm sempre 20 ou 30
famílias.
Multiplicação humana
Em 1990, havia 179 comunidades amish no mundo. Em 2012, já eram 456 – cada uma com,
em média, 20 a 35 famílias e uma hierarquia mínima de líderes eclesiásticos, composta de um bispo,
um diácono e dois ministros. Diferentemente de outras religiões, que crescem graças à conversão de
novos membros, os amish não são adeptos da pregação. Poucas pessoas de fora se juntam a eles.
“A menos que sejam solicitados, eles não costumam expressar sua fé em palavras para pessoas que
nunca viram antes”, escreveram os pesquisadores Donald Kraybill, Steven Nolt e David WeaverZercher no livro The Amish Way (“O caminho amish”, sem versão no Brasil).
Muito desse crescimento, segundo Donnermeyer, vem da alta taxa de conversão familiar.
Cerca de 90% dos filhos de famílias amish optam por seguir a religião dos pais e costumam se
batizar logo aos 18 anos. Antes disso, eles podem experimentar a vida dos “ingleses” (como são
chamados os não-amish) em um período chamado Rumspringa, quando é permitido beber, fumar ou
até instalar sistemas de som com alto-falantes em seu buggy, tipo de carroça amish. “É engraçado
ouvir a música de um buggy cheio de adolescentes amish andando a 20 por hora”, diz Erik Wesner,
autor de livros sobre essa cultura e criador do site Amish America. “Durante o Rumspringa, os pais
não os proíbem de fazer coisas que normalmente proibiriam. É um período de ansiedade, de medo
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de que seus filhos se desviem”. Logo após o batismo, eles casam e começam suas próprias famílias,
quase sempre com mais de seis filhos – as crianças são vistas como uma bênção e famílias
numerosas são altamente valorizadas. Os amish levam a ordem “crescei e multiplicai-vos” a sério e
rejeitam todas as formas de controle de natalidade.
Como preferem assentamentos com apenas algumas dezenas de famílias e a terra nem
sempre é suficiente para todos, já que tudo que comem é produzido por eles próprios, o crescimento
da população faz com que seja necessária a busca de novos lugares para se instalar. Hoje, já
existem comunidades amish em cerca de 30 Estados americanos. Até em Nova York. Lá, são 47
assentamentos, 18 dos quais fundados depois de 2009. Curiosamente, é a tecnologia que tem
facilitado essa expansão. A grande responsável é a mecanização agrícola. Segundo Donnermeyer, a
industrialização do campo está tomando o lugar de pequenos fazendeiros, sejam produtores de leite
em Wisconsin ou fabricantes de tabaco em Kentucky. Isso faz com que eles vendam suas
propriedades, muitas vezes a preços baixos. Assim, os amish adquirem novas propriedades e têm
mais espaço para crescer. Wisconsin tinha 17 assentamentos até 1990 – agora, tem mais de 45. Em
Kentucky, o número dobrou. E essa expansão deve continuar: estima-se que um novo assentamento
se forme a cada três semanas e meia no país.
“O pequeno agricultor americano está desaparecendo. Os amish geralmente são bons para a
economia de uma região, pois acabam, muitas vezes, assumindo fazendas antigas que não estão
mais em uso e revivendo algumas dessas áreas com outras atividades econômicas”, diz Wesner.
Eles gostam do isolamento rural porque viver próximo a áreas urbanas intensificaria a interação com
pessoas de fora da comunidade. Mas os amish não estão só no campo. É cada vez maior o número
deles se estabelecendo em serrarias, lojas de móveis, tipografias e agências de turismo. “Na
verdade, só cerca de 40% dos domicílios amish recebem sua renda primária da agricultura”, diz
Kraybill.
Isso gerou novas necessidades comerciais que também tornam inevitável a absorção seletiva
de certas tecnologias. A solução encontrada para usar o telefone, por exemplo, foi permitir a sua
instalação em cabines públicas ou dentro de escritórios e estabelecimentos comerciais. Ter um
aparelho telefônico fora de casa ajuda a manter a separação com o mundo de fora e desencoraja
ligações desnecessárias. Calculadoras e lanternas impulsionadas por baterias ou energia solar
também são permitidas. Usar a energia da rede elétrica pública, porém, é proibido. Eles acreditam
que ter muita confiança no poder público é uma armadilha que pode deixá-los muito perto do mundo.
Basicamente, o que define se uma tecnologia pode ou não ser usada por um amish é a influência
que ela tem em seus valores, em seu lar. Assim, preferem não ter energia elétrica para evitar
televisão, rádio, computador e outros dispositivos que poderiam levar ideias de fora para dentro da
comunidade, contrariando o conselho bíblico.
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Algo semelhante ocorre com os meios de transporte. Os amish até podem aceitar uma carona
para trabalhar ou fazer compras na cidade, bem como tomar ônibus, trem ou avião para visitar
parentes distantes. Ter um carro, porém, é outra história: isso daria uma sensação muito grande de
liberdade e poderia incentivá-los a passear longe de casa.
Os “ingleses”
O contato de Erik Wesner com os amish começou de forma acidental. Em 2004, quando
trabalhava para uma empresa vendendo livros de casa em casa no Estado de Illinois, ele se deparou
com uma de suas comunidades. Como não havia qualquer tipo de fronteira física ou barreira que o
impedisse de entrar, decidiu visitar algumas casas, “só por diversão”. Acabou se surpreendendo com
a boa receptividade que teve, especialmente em relação aos livros infantis bíblicos que trazia. “Há
um estereótipo de que eles são desconfiados. Certamente algumas comunidades são menos
abertas, mas muitos deles têm amigos de fora e podem convidá-los para refeições em suas casas”,
explica. “O amish é capaz de ver o mundo exterior e interagir com ele, mas prefere mantê-lo a
distância. Um amigo amish que às vezes viaja para Nova York a trabalho certa vez me disse que
gosta de visitar a cidade, mas apenas por um dia. Esse exemplo mostra que eles são curiosos sobre
o mundo exterior, mas estão mais confortáveis em suas comunidades”. Donnermeyer acredita que,
embora possam se abrir para certas tecnologias, suas crenças fundamentais e organização social
devem permanecer inalteradas. Wesner completa: “Algumas tecnologias são tão poderosas que
provavelmente nunca serão aceitas nessas comunidades”. Outras serão assimiladas. Há 150 anos é
assim. O povo famoso por viver como no século retrasado tem também seu próprio dinamismo.
Os amish e o mundo
Eles não sabem nada sobre o mundo exterior? Mito. Erik Wesner, do site Amish America, garante:
“Conversamos sobre a maioria dos assuntos sobre os quais eu falo com as outras pessoas. Hoje
mesmo li uma mensagem de um amigo amish que fez referência a um grupo de música dos anos 80.
Eles também leem jornais – muitas vezes publicações amish, mas várias casas também assinam o
jornal local e têm uma ideia do que está acontecendo do lado de fora das comunidades”.
Os amish e o capitalismo
Existem amish ricos e pobres. “Há os milionários e aqueles que mal têm o que comer”, afirma
Wesner. Mas as casas e roupas seguem o mesmo padrão de simplicidade. “É possível perceber nos
detalhes: algumas casas têm mais bens materiais e melhores brinquedos para as crianças; algumas
pessoas têm cavalos melhores”. A grande diferença é que, embora seja capitalista em seus
negócios, a comunidade amish se ajuda. Os mais ricos (geralmente, proprietários de negócios
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envolvendo a construção de móveis e casas) contribuem com quantias maiores quando há pessoas
em necessidade.
Para saber mais
www.amishamerica.com
The Amish Way: Patient Faith in a Perilous World
De Donald Kraybill, Steven Nolt e David Weaver-Zercher. John Wiley & Sons, 2010.
http://super.abril.com.br/tecnologia/boom-amishi-740147.shtml
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Reportagem 4
Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Comportamento / Abril 2013
Dá para viver de graça?
Nossa repórter foi conhecer os adeptos do freeganismo, que catam comida no lixo para não
participar do mercado de consumo
por Reportagem: Carol Pires
Edição: Denis R. Burgierman
A primeira quarta-feira de fevereiro anoiteceu gelada, mas Gio Andollo andava pelas calçadas
de Nova York sem luvas. Acompanhado de outras cinco pessoas que havia acabado de conhecer, ia
abrindo grandes sacolas plásticas pretas depositadas na avenida Broadway, em Manhattan, e mexia
no lixo à procura de comida. Recomenda-se luvas para quem revira lixo, ainda mais no inverno. Gio,
um americano de 28 anos, branquelo, de óculos e dreadlocks, não usava porque, onde a maioria vê
sujeira, ele vê desperdício.
O grupo se conheceu por meio do Meetup.com, um site de organização de encontros, onde Gio
publicara, uma semana antes, um anúncio sobre o primeiro grupo de freegans do norte de
Manhattan, a chamada Uptown. Freegan vem de free (grátis, livre) + vegan (quem não consome
nenhum derivado de ou testado em animais). Adotando estratégias alternativas de vida, eles tentam
evitar participação no sistema econômico capitalista: plantar ou resgatar desperdícios em vez de ir ao
mercado, consertar em vez de jogar fora, caminhar ou usar bicicleta em vez de ter carro. Se o
freeganismo fosse uma religião, comprar seria o pecado capital.
Apesar de a excursão por lixeiras ser apelidada de dumpster diving (mergulho no lixo), o grupo
não chegava a entrar nos contêineres. Nessa parte de Nova York, os comerciantes deixam as
sacolas na calçada. Gio explicou que os sacos deveriam ser deixados tão ou mais organizados que
antes de serem desamarrados, e todos cumpriram a indicação.
Antes de abrir cada sacola, eles apalpavam o exterior para antecipar o que havia dentro. Se
notavam formas arredondadas e lisas, podia ser fruta. Se houvesse um monte de formas e texturas,
era provavelmente lixo comum que não merecia ser aberto. A estratégia foi bem-sucedida – nenhum
saco aberto continha algo nojento ou mal-cheiroso. Talvez por causa do frio, que conserva a comida,
ou talvez porque era lixo “fresco”, jogado fora a cada dia por estabelecimentos comerciais, e não lixo
caseiro, que passa dias decompondo antes que a lata vá para a rua.
Sair para resgatar comida no lixo é como procurar o que comer em uma floresta: é preciso
conhecer por onde anda e saber onde as boas coisas estão. O conhecimento vem com a prática. Gio
já sabe quais lojas desperdiçam mais, o que jogam fora e quando. A primeira parada foi a Morton
Williams, uma rede de supermercado, onde eles recolheram frutas e verduras. Em seguida, cruzaram
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a esquina e encontraram uma caixa de papelão aberta com 22 discos de vinil antigos. A maioria era
de música clássica e trilhas sonoras de filmes. Fiquei com um Concertos for Horn número 4 do
Mozart.
A Absolute Bagels, na 2788 da Broadway, só vende produtos frescos, e joga fora a cada noite
a sobra do dia. O grupo encontrou um saco cheio com nada além de bagels dentro – os mesmos que
estavam sendo vendidos a um dólar 15 minutos antes. Nada, porém, os deixou tão animados como
uma caixa cheia de donuts encontrada na frente de uma padaria. Uma mulher que pediu para ficar
anônima tirou da bolsa um potinho de álcool em gel e distribuiu entre os colegas, que ali mesmo
comeram os bolinhos depois de higienizar as mãos. É mais fácil evitar o sistema que recusar uma
sobremesa.
Além de Gio, faziam parte do grupo o amigo com quem divide o apartamento, a mulher do
álcool em gel, a estudante Lyz, e José, um equatoriano que veio para Nova York há 15 anos tratar
uma doença respiratória e nunca mais voltou. Completava o grupo uma senhora mal vestida, a única
que parecia estar ali mais por necessidade que por convicção. Cada um abria um saco e avisava aos
demais o que havia encontrado. “Achei a mão direita de uma luva”, diz Gio, “alguém quer? Às vezes
é só esperar e eventualmente você encontra a esquerda. Já aconteceu comigo.”
Alguns são mais exigentes que outros e preferem não levar para casa, por exemplo, uma
banana que já tenha marcas de amadurecimento. Outros não se importam em pegar biscoitos com
validade expirada alguns dias antes. O que ninguém quer volta para o lixo, como a luva solitária. Em
duas horas, o grupo não chegou a andar 500 metros – foram da rua 116 à 110, onde fizeram a última
parada no Westside Market, um supermercado. Um funcionário, imigrante russo, olhava enojado os
freegans tirarem do lixo o que ele tinha acabado de botar.
O grupo voltou para casa com os discos, os bagels, molho de tomate, duas caixas cheias de
água em garrafa dentro da validade, tomates, abacates, pepino, alface, manjericão, manga, limão,
maçãs e as frutas que mais cedo Gio tinha dito serem suas favoritas: romãs.
Os homens foram embora de metrô e eu voltei pelo mesmo caminho da ida com as mulheres.
Na esquina seguinte, encontramos duas malas abarrotadas de livros usados. Voltei para casa sem
comida, mas com O Estrangeiro, do Albert Camus, e duas biografias, uma do Kafka e outra do
ciclista Lance Armstrong.
A mulher anônima, branca e de olhos azuis, de mais ou menos 30 anos, contou que os avós
buscavam comida no lixo durante a Grande Depressão e os pais faziam o mesmo quando viveram a
filosofia de liberdade da década de 1960. Para ela, revirar lixo é uma afirmação política. Tudo que
encontra vai para doação ou é colocado em sites de troca e venda, como o Craigslist ou o
Freecycle.com. Já encontrou um porquinho com US$ 20 dentro e uma mochila cheia de roupas de
marca com as etiquetas ainda afixadas. Com as frutas e verduras, ela prepara lanches e dá para os
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moradores de rua. Ela não revela o nome porque prefere não colocar a carreira em risco. É mais fácil
deixar de ser reconhecida pela boa ação que tentar explicar por que passa as noites abrindo sacolas
de lixo.
Gio é filho de cubanos refugiados em Miami do regime de Fidel Castro. Estudou música em
Orlando, na Universidade da Flórida Central, e tinha 23 anos quando terminou a faculdade. Recémformado, levou três baques: deu-se conta de que tinha sido ingênuo ao pensar que viveria de
música, a namorada o deixou e foi atropelado de bicicleta. Das experiências, gravou as músicas do
primeiro CD, Life is a bike wreck (“a vida é um acidente de bicicleta”). Gio passou aquele ano
fazendo trabalho voluntário e cantando na rua por trocados. Quando juntou US$ 2 mil, mudou-se
para Nova York.
O primeiro apartamento que encontrou para morar ficava no Harlem. Quatro pessoas dormiam
num quarto e ele no futon da sala. Pagava US$ 375. Era 2009, o ano da crise econômica americana,
e ele procurava um emprego que nunca encontrou como professor, de música ou escolar. Vivia de
shows no metrô e aulas de violão. No segundo mês, o dinheiro acabou. Foi quando lembrou de uma
organização que conhecia na Flórida, que achava comida no lixo e preparava pratos vegetarianos
para os pobres. Pesquisou na internet e descobriu que catar lixo era parte de uma filosofia de vida
que tinha até nome: freeganismo.
O freeganismo empresta ideais do comunismo e do anarquismo, tem preocupações
ambientalistas e uma pitada de filosofia hedonista. É difícil calcular quantos freegans existem no
mundo, porque muitos se organizam em comunidades pequenas, em grupos que não estão na
internet. No Meetup.com há 15 grupos de dumpster diving ativos, com 5.207 membros no total. Há
outros 12.796 esperando para que um grupo se forme em suas respectivas cidades.
Entre os freegans há exceções, variações, limitações. Alguns levam a filosofia ao limite e
moram em casas invadidas como afirmação de que moradia deveria ser um direito gratuito. Sem ter
de pagar aluguel, nem comida, podem deixar de trabalhar e ter o que o freeganismo defende como
essencial: tempo para estar com a família e os amigos. Se o freeganismo fosse uma religião, o
tempo livre seria a hóstia.
Mas há também freegans que compram bens, até mesmo carros. Para minimizar o impacto
ambiental dessa escolha, dão carona e adaptam o motor para receber óleo vegetal. Quem não se
sente cômodo para mergulhar numa lixeira pode manter uma horta ou seguir indo ao mercado, mas
optando por feiras verdes e produtores comunitários. Existem até os meagans, os que são freegans
em outros sentidos, mas comem carne. Contanto que não paguem por ela.
No mundo inteiro, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação calcula
que um terço da comida produzida para consumo humano seja desperdiçada no caminho entre a
produção e o consumo. São 1,3 bilhão de toneladas por ano, o suficiente para acabar com a fome no
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mundo. Nova York é a capital mundial do consumo e, quanto mais consumo, mais desperdício.
Números de 2005 mostravam que os Estados Unidos jogam fora 245 toneladas de lixo sólido por dia
– 2 quilos por habitante, o dobro da média brasileira. Em Nova York, a média é mais alta: 2,7 quilos.
Só 15% são reciclados.
Nova York tem Wall Street, mas também tem, do outro lado do rio Hudson, a região mais pobre
dos Estados Unidos, no Bronx. “Existe uma doença na nossa sociedade, e os sintomas são esses,
pobreza, desperdício. O freeganismo é só uma das respostas”, diz Gio, durante um almoço no
restaurante onde trabalha das 7h às 14h lavando pratos, em Inwood, no extremo norte de Manhattan.
Aos 16 anos, na escola, Gio tinha o costume de pedir aos amigos a sobra do lanche e comia
tudo em vez de deixá-los jogar fora. “Eu não sabia justificar, mas o fazia pela minha consciência”. Até
aí, era só uma consciência social literalmente adolescente. De lá para cá, deixou de estar apenas
preocupado e passou a fazer algo a respeito. Deixou de escrever canções sobre desilusões
amorosas e compôs canções de protesto. Deixou de ser qualificado demais para certos empregos e
aceitou a vaga para lavar pratos.
Duas semanas depois do primeiro encontro, Gio marcou a reunião dos Uptown freegans no
seu prédio, também em Inwood. Três pessoas do primeiro dia apareceram: o equatoriano José, a
estudante Lyz e seu colega de apartamento. Entre os novos membros havia uma estudante de
antropologia de Connecticut e a amiga dela, que só foram observar, uma estudante de jornalismo
acompanhada do pai, e uma mulher da vizinhança, contrariando os conselhos do namorado.
Cada um disse seu nome, e sua fruta, verdura ou legume favoritos. Respondi manga e
aspargo, as primeiras coisas que me vieram à cabeça. Na porta do primeiro mercado por onde
passamos, pouco antes das 22h, eles tiraram de um contêiner cinco berinjelas em perfeito estado, 18
potes de iogurte com validade expirando naquele dia, duas caixas de biscoito água e sal com a
validade vencida há dois meses, três bandejas de cogumelos, várias verduras, laranja, maçã,
cenoura, alho e cinco bandejas de ovos. Para pegar os ovos inteiros, Gio e o amigo molhavam a mão
na clara e na gema que escorriam dos ovos que estavam quebrados. Procurar comida no lixo é uma
afirmação política, mas é, antes de tudo, a superação do nojo.
José Luis, um imigrante dominicano, funcionário responsável por fechar o mercado às 22h,
olhava a cena incrédulo. Em espanhol, comentou em voz alta: “não estou acreditando nisso”. Por
quê?, pergunto. “Porque isso é lixo”. É difícil entender por que pessoas bem vestidas comeriam
comida do lixo.
Ele observou Gio e o grupo tirar as frutas e verduras do contêiner e colocá-los expostos em
bandejas no chão e voltou atrás: “Na verdade, eu não tenho nojo. Essa comida aí está em perfeito
estado. A gente joga fora porque os clientes já não pagam se tiver um mínimo defeito, uma pontinha
da verdura já ficando escura”. Depois de baixar as grades do mercado, ele voltou e completou: “Eu
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uma vez fiquei preso numa selva e comi até lagarto. Eu comeria isso aí também”.
Na última parada, frente a outro mercado, o grupo encontrou mais verduras, várias maçãs,
cebola, pimentão vermelho e várias bananas já com grandes marcas marrons, mas ainda firmes. Em
15 minutos, dois vizinhos se aproximaram. Um jovem alto e loiro, que perguntou o que o grupo
estava fazendo, levou para casa as bananas. Uma dominicana que voltava do mercado com o
carrinho cheio pediu as maçãs. Gio achou três cachos de aspargos e perguntou: “alguém tinha dito
mais cedo que gostava de aspargos, quem foi?” Diante do meu silêncio, o menino loiro ficou com
eles.
Para a mulher anônima, era mais fácil pegar comida do lixo que explicar por que o faz. Para
mim, o contrário.
http://super.abril.com.br/alimentacao/viver-graca-745839.shtml
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Reportagem 5
Fonte: Revista Superinteressante / Abril 2013
Por dentro do TED
Uma vez por ano, CEOs de grandes empresas, presidentes de fundações, estrelas do rock e de
Hollywood, prêmios Nobel e nerds de todas as idades se encontram na conferência mais espetacular
do mundo. A SUPER não podia perder essa
por Denis Russo Burgierman
“Vivemos num mundo em que o show é importante”, explica Sebastião Salgado, sentado num
sofá dentro do Centro de Artes Cênicas de Long Beach, na Califórnia. Salgado tinha acabado de
terminar sua apresentação na edição de 2013 do TED, a conferência mais importante para a classe
criativa do mundo. Ao final da sua fala, todo o público do teatro levantou-se ao som crescente de um
uivo que explodiu em aplausos, gritos e assobios. Era o chamado “momento TED”, o equivalente na
conferência californiana ao que o gol é no futebol.
“É importante que haja um herói, um caubói”, diz Salgado, único brasileiro no TED de 2013,
sobre seu próprio papel. Estou sentado ao lado do fotógrafo mais reconhecido do Brasil, batendo
papo como quem conversa com o avô num almoço de domingo. Este é o tipo de coisa que acontece
no TED, uma conferência dedicada a espalhar ideias, cujo clima intimista é diferente de tudo que
existe no mundo.
Salgado me conta da crise de saúde que quase o matou uma década atrás. “Eu estava
morrendo. Meu trabalho de fotografia me levou a ver tanta morte que eu ia morrer também.” Para
escapar da morte, ele se mudou de Paris para a fazenda paradisíaca onde passou a infância, no
interior de Minas. Chegou lá, viu tudo devastado, quase nenhuma árvore em pé. Sua esposa, Lélia,
resolveu que iria reflorestar a área. Ela montou um instituto, contratou um engenheiro florestal e, dez
anos depois, a propriedade voltou a ser o que era há seis décadas, na infância do menino que viria a
ser fotógrafo. Salgado emocionou o público mostrando as fotos do “antes” e do “depois” e aproveitou
para pedir apoio para o instituto. Dada a reação do público, ele estava confiante de que ia conseguir.
Despeço-me do fotógrafo, deixando-o nas mãos do próximo que quisesse conversar com ele e
vou almoçar num dos trailers de comida que ficam estacionados do lado de fora do teatro onde o
TED acontece. Atrás de mim, na fila da comida, para um sujeito gordo e agitado. Olho para o grande
crachá pendurado no pescoço dele, que o identifica: Matt Groening.
No TED, todo mundo anda por aí com um crachazão de letras garrafais, informando o nome, o
cargo e o lugar onde trabalha. Todo mundo usa o crachá, ainda que o nome impresso seja Matt
Groening, Ben Affleck, Al Gore ou Bono. Segundo as regras do TED, o crachá deve ficar sempre à
mostra, convidando à interação. Ergo o meu entre meu polegar e indicador e me apresento para o
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Língua Portuguesa – Reportagens
Seleção de algumas reportagens
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criador dos Simpsons.
Enquanto esperamos a comida ficar pronta, damos risada do episódio dos Simpsons que tira
onda do Rio, retratando-o como uma metrópole selvícola dominada por uma gangue de macacos
ladrões. “Aquilo foi uma bobagem”, ele diz, e conta que sempre quis conhecer o Brasil, mas que
nunca dá tempo, porque continua envolvido com a feitura de cada episódio semanal do desenho
animado que é a série mais longeva da história da TV, com 23 anos no ar. Pergunto se ele não tira
férias. “Férias, para mim, é isto aqui”, diz, apontando para o gramado à nossa volta, cheio de CEOs,
movie stars, investidores e adolescentes prodígio. “É aqui que eu me inspiro.”
Não é a ideia de férias que a maioria das pessoas tem. O TED é exaustivo. São cinco dias
seguidos, que começam às 8h30 da manhã e avançam pela madrugada. A cada dia, ocorrem até 30
palestras, a maioria delas complicada e cabeçuda. A cada sete ou oito palestras, há um intervalo
como este no qual converso com Salgado e Groening, acompanhado por boa comida de dia e boas
bebidas de noite. Nessas pausas, o público é incentivado a interagir uns com os outros. Milhares de
cartões de visita mudam de bolsos.
Pego minha salada, me despeço amigavelmente do pai do Bart e vou caminhando em busca
de uma lugar para comer. Na primeira mesa, que não estava inteiramente cheia, a atriz Cameron
Diaz, vestida num poncho que a protege do frio ensolarado do inverno californiano, conversa
polidamente com alguns frequentadores do evento. A mesa ao lado estava bem mais animada, com
todas as cadeiras ocupadas e várias pessoas de pé em volta do jornalista Michael Pollan, que falava
da origem da comida que estava sendo servida. No TED, Michael Pollan, autor de livros como Em
Defesa da Comida, é uma celebridade maior que Cameron Diaz.
Olhando os crachás nos pescoços, dá para se ter uma ideia de quem é o público do TED.
Muita gente que trabalha em cargos altos de empresas de tecnologia, como Facebook, Microsoft,
Google. Muita gente cujo nome é o mesmo da empresa ou da fundação onde trabalha – fundadores,
CEOs, presidentes. Muitos sobrenomes tradicionais da aristocracia americana (Ford, Rockefeller,
Sagan) e também novos sobrenomes da nova aristocracia (como Bezos, a família do fundador da
Amazon). Muita gente representando instituições respeitadas da ciência ou da cultura, como a
Academia Nacional da Ciência, a Fundação McArthur, que dá dinheiro a gênios, o Lincoln Center,
que abriga as artes, a Encyclopedia Britannica.
Para assistir ao TED, é necessário se inscrever no site, preenchendo um longo formulário no
qual você é obrigado a responder por extenso perguntas como “o que lhe dá paixão?”, “quais suas
maiores conquistas?” e “pode nos contar uma anedota memorável de sua vida?”. Milhares de fichas
são preenchidas, mas o auditório só comporta 1.400 pessoas. A equipe do escritório do TED em
Nova York, então, seleciona entre as inscrições pessoas que são “líderes em seu campo e que
podem contribuir com a comunidade TED por meio de sua energia, influência e conexões para mudar
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Língua Portuguesa – Reportagens
Seleção de algumas reportagens
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Colégio Integral – 2014
o mundo”.
Só depois de passar por essa seleção, ganha-se o direito de pagar os US$ 7.500 do ingresso.
(Esclarecimento: o repórter da SUPER foi uma das 40 pessoas do mundo agraciadas com uma
credencial de imprensa, e portanto foi poupado desse gasto. Líderes de organizações do mundo em
desenvolvimento e jovens promissores também são convidados para entrar de graça.)
Há também um bom número de pessoas que preferem pagar US$ 15 mil ou mesmo US$ 125
mil dólares, para serem “doadores” ou “patronos” do TED. O doador tem alguns benefícios extras,
como assento guardado caso chegue atrasado. Já o patrono é convidado para jantares de recepção
para os palestrantes e pode ter uma sala privada para reuniões dentro da conferência.
Além do dinheiro dos frequentadores, o TED recebe de empresas que têm permissão para
discretamente anunciar sua marca para aquela audiência hiperinfluente. Há vários grandes
patrocinadores corporativos, como a Shell, que num texto avisa ao público que “estamos aqui para
ouvir, compartilhar e aprender”.
Mas muitos dos anunciantes são marcas pequenas, novas, lançando-se no mundo, tentando
ser notadas por um público que tem influência e dinheiro suficientes para mudar o rumo da história.
Numa mesa num canto, iPads fazem escaneamento tridimensional do rosto dos presentes para
depois encaixar nele, com perfeição, modelos virtuais de óculos escuros, das melhores marcas. Os
convidados do TED podiam escolher o par que ficasse melhor na sua própria imagem e pedir para
entregar em casa. De graça, como promoção de lançamento da Glasses.com.
Mas o que faz com que a entrada de US$ 7.500 valha a pena – e todas as pessoas para quem
perguntei garantem que vale – não são os brindes luxuosos (que são mesmo bem bons). São as
palestras. Ou, na linguagem do TED, as talks (“falas”). O efeito que elas têm nas pessoas é
impressionante. A sequência bem encadeada de falas rápidas, nunca maiores do que 18 minutos, às
vezes menores do que cinco, surpreendentes, inspiradoras, emocionantes, vai aos poucos colocando
todo mundo numa espécie de transe mental. Os sintomas podem ser notados em todos os cantos, na
hora dos intervalos: nos olhos vermelhos de choro, na empolgação das rodas de conversa.
Há as falas de celebridades, que obviamente são bastante esperadas e aplaudidas. Bono, do
U2, por exemplo, tirou seus óculos famosos, virou-os de ponta-cabeça e ficou com cara de nerd para
combinar melhor com o ambiente cheio de donos de empresas de tecnologia. Contrariando a
tradição do TED, ele leu um teleprompter. Fez uma boa palestra sobre a redução da pobreza
extrema do mundo nas últimas décadas e a possibilidade de erradicá-la nas próximas e foi
educadamente aplaudido por todos.
Três dias depois de ganhar o Oscar de melhor filme, o ator e diretor Ben Affleck fez uma
aparição-surpresa no palco principal do TED. Brincou com a audiência: “este é o Oscar das pessoas
inteligentes”, disse, antes de pedir desculpas por não ser capaz fazer uma palestra de “nível TED”.
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“Sou inteligente, mas inteligente nível Oscar.”
Celebridades do mundo empresarial também são presenças constantes, muitas vezes
anunciando novidades. Sergey Brin, fundador do Google, fez uma aparição-surpresa, usando os
esperadíssimos Google Glasses, que vão permitir checar os e-mails e trocar mensagens no próprio
campo visual, usando apenas o movimento das pupilas.
Mas a verdade é que, ano após ano, as falas que mais mexem com as pessoas e que geram
momentos TED mais intensos não são as das supercelebridades. São as de pessoas nas quais a
maioria nunca havia sequer ouvido falar.
Em 2013, aconteceu muito disso. O tema do ano – The young, the wise, the undiscovered (“os
jovens, os sábios, os desconhecidos”) – colaborou para isso. Um dos maiores momentos TED foi ao
final da fala de Richard Turere, um menino de 13 anos, da tribo Maasai, do Quênia. Turere vive em
um rancho e sempre odiou leões, porque eles comiam os bezerros que garantiam o sustento de sua
família. Um dia, ele notou que os leões evitavam se aproximar quando havia luzes acessas. Aí ele
inventou um sistema de luzes led instaladas sobre as cercas, piscando noite adentro. Os leões não
importunaram mais. Ele diz que não odeia mais os leões, porque os entende melhor.
Outro momento alto foi a fala de Amanda Palmer, ou Amanda “Fucking” Palmer, como ela
escreveu à caneta no próprio crachá. Amanda, uma cantora underground que mistura punk e cabaré,
fez uma fala emocionante sobre a importância de saber pedir ajuda – e ela sabe do que está falando,
já que só faz turnês se hospedando na casa de fãs e acabou de financiar sua última turnê num site
de crowdfunding que arrecadou US$ 1,2 milhão.
A fala de Amanda foi um desses clássicos instantâneos do TED. O vídeo foi ao ar antes
mesmo de a conferência acabar (o TED normalmente sobe os vídeos gradualmente, ao longo de
anos). O sucesso foi tanto que Amanda voltou ao palco duas vezes, para cantar (há várias
apresentações artísticas entre as palestras, que, segundo os organizadores, servem para “abrir as
mentes para as ideias”). Quando eu escrevi este texto, duas semanas depois do TED terminar, 1,5
milhão de pessoas já haviam assistido à fala de Amanda, que já tinha sido legendada
colaborativamente em oito línguas.
Na visão de Chris Anderson, curador, apresentador e principal executivo do TED, a conferência
é uma grande distribuidora de ideias “Amamos espalhar ideias e estamos felizes de ter encontrado
um modelo de negócios que nos permite fazer isso”, disse ele, numa entrevista coletiva durante a
conferência. O tal modelo de negócios do TED, segundo o próprio Chris, é muito simples de explicar:
“pegamos dinheiro de alguns ricos da Califórnia e gastamos com ideias no mundo inteiro.” No último
ano, foram US$ 45 milhões de dólares arrecadados para esse fim.
Não por acaso, o slogan da conferência é “ideias que merecem ser espalhadas”, uma sacada
de Chris Anderson depois que ele assumiu o controle do TED em 2001. Até então, a conferência era
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totalmente fechada e reunia apenas membros de três indústrias americanas: Tecnologia,
Entretenimento e Design (basicamente um encontro do Vale do Silício com Hollywood para ver
palestras de gente brilhante de todos os ramos). O TED, então, não espalhava ideias: apenas
cultivava-as, ao aproximar grandes pensadores dos chefões de algumas das indústrias mais
poderosas do mundo.
Chris resolveu mudar o espírito da coisa e começou a abrir a então fechadíssima conferência.
Em 2005, criou um segundo TED, o TED Global, que desde então tem acontecido no verão, todos os
anos, no Reino Unido. A partir de 2006, ele criou o ted.com, um site que oferece de graça a qualquer
um falas pelas quais o público havia pago caro para assistir ao vivo. As palestras online fizeram tanto
sucesso – já foram vistas mais de 1 bilhão de vezes – que milhares de pessoas mundo afora
passaram a trabalhar de graça para ajudar o TED na sua missão de espalhar ideias. Em 2009, o
TED passou a permitir que qualquer pessoa traduza qualquer palestra para qualquer língua e, em
quatro anos, 11 mil tradutores voluntários fizeram 37 mil traduções para 97 línguas. No mesmo ano,
criou-se o TEDx, uma espécie de TED que pode acontecer em qualquer lugar do mundo, organizado
por qualquer pessoa, com entrada grátis. De lá para cá, mais de 5 mil TEDx aconteceram em cada
canto remoto do mundo, incluindo o Iraque, o Irã, o Iêmen, a Antártida, o Afeganistão, favelas,
presídios, a muralha da China e um palco flutuando no Rio Negro, na Floresta Amazônica.
O TED de 2013, como sempre, pôs várias ideias poderosas para circular. O professor de
Harvard Larry Lessig propôs uma mudança radical no sistema de financiamento de campanhas, para
que os políticos trabalhem para a população, e não para meia dúzia de financiadores. O biólogo Allan
Savory, do Zimbábue, propôs um novo modo de olhar para a desertificação e afirmou que voltar a
soltar rebanhos nos pastos pode ser a solução para as mudanças climáticas. A ex-governadora do
Michigan, Jennifer Granholm, conclamou os empresários presentes a criarem a política de energia do
futuro sem passar pelos políticos. Houve até um momento em que o cantor pop Peter Gabriel subiu
ao palco junto com uma especialista em golfinhos, um designer de novas tecnologias e Vint Cerf, um
dos inventores da internet, e os quatro propuseram que se criasse uma nova internet que seja
também interespécies, para que pudéssemos mandar e-mails para macacos, golfinhos e elefantes.
Daí para frente, serão os méritos de cada ideia, registrada em vídeo, que vão determinar quais
delas sobreviverão e acabarão mudando o mundo. E quais virarão piada.
Um dos temas mais importantes do TED de 2013 foi educação. O palco esteve cheio de
adolescentes brilhantes contando como eles tiveram de driblar a rigidez do sistema educacional para
perseguir suas paixões. Um deles, Taylor Wilson, projetou um novo tipo de reator nuclear, movido a
bombas atômicas desativadas, antes de terminar o ensino médio. Outro, Jack Andraka,
provavelmente salvou milhares de vidas aos 15 anos, ao desenvolver um teste de câncer pancreático
centenas de vezes mais barato e eficaz. Os dois meninos eram fisicamente parecidos, magros e
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tímidos. A piada do TED foi que o menino era tão genial que resolveu a crise de energia num dia e,
no dia seguinte, curou o câncer.
Essas numerosas demonstrações de brilhantismo precoce contrastaram com a descrição
desanimadora do atual estado do sistema educacional do mundo, pintado pelo pesquisador indiano
Sugata Mitra, ganhador de 2013 do já tradicional Prêmio TED. Mitra foi o autor do experimento
clássico de educação conhecido como “o buraco na parede”: em 1999, ele colocou um computador
num buraco na parede numa favela indiana e deixou as crianças brincarem com ele, sem que
ninguém interferisse, notando que o aprendizado era surpreendente. A partir daí, ele passou a
defender um novo modelo de educação, “minimamente intrusivo”.
“A educação está obsoleta”, disse Mitra em sua fala, sorridente, enquanto aceitava o prêmio de
US$ 1 milhão de dólares – pouco mais que o Nobel. Segundo Chris Anderson, esse dinheiro deve
ser visto “não como um prêmio de reconhecimento, mas como o capital inicial para um novo
empreendimento”. Ou seja, a quantia será gasta construindo essa nova visão de educação, na qual
as crianças, em vez de serem permanentemente vigiadas e receberem pacotes de informação préselecionada, serão deixadas em paz com problemas para resolver e as ferramentas certas para
resolvê-los. Mitra acredita que esse sistema, em vez de “levar as crianças à submissão pelo tédio”,
criará uma geração mais capaz de se divertir enquanto aprende. Será que as escolas do futuro serão
um pouco mais como o TED, lugares de alta energia emocional, onde se vive intensamente enquanto
se aprende?
Na sexta-feira, aconteceu o churrasco de encerramento. Foi a despedida de Long Beach, após
quatro anos de TED lá (antes a conferência acontecia 500 quilômetros ao norte, na também
californiana Monterey). O próximo TED acontecerá em Vancouver, no Canadá. Enquanto o TED
americano muda-se para o norte, o TED Global, que sempre foi no Reino Unido, também parece
estar de malas prontas. O próximo será em junho em Edimburgo, a capital da Escócia, mas, segundo
a fofoca corrente no churrasco de despedida – que os organizadores não confirmaram –, o de 2014
acontecerá sobre areia fina. Diz o rumor que será na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A
comunidade TED está empolgadíssima com a viagem.
Passeando pelo churrasco, vejo Al Gore cruzar olhares com o espalhafatoso japonês Black,
campeão mundial de ioiô, uma das atrações artísticas da conferência. Richard Turere, o menino
queniano que espanta leões, reclama da saudade da comida do Quênia e conversa animado sobre
futebol (ele torce para o Chelsea e tratou com desdém o título corintiano). Estrelas de Hollywood se
confraternizam com cientistas famosos, sob o olhar de bilionários da internet. Mais um TED se
acaba. E agora vai todo mundo para casa, recarregado de inspiração, cheio de ideias para espalhar.
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Veja algumas ideias que o TED 2013 espalhou
“Descobri que leões têm medo de luzes que mexem. Agora quero levar isso ao Quênia todo.”
Richard Turere, 13 anos, inventor das luzes anti-leão
“Queríamos algo que liberte suas mãos. E liberte seus olhos.”
Sergey Brin, Fundador do Google, apresentando o óculos glass
“A educação está obsoleta. Ela não está quebrada – ainda funciona. Mas não faz o que precisamos.”
Sugata Mitra, Prêmio TED 2013
“Amamos espalhar ideias e encontramos um modelo de negócios que nos permite fazer isso.”
Chris Anderson, curador e apresentador do ted
“Informação pode reduzir desigualdade. Fatos, como pessoas, querem ser livres.”
Bono, rock star
“Eu estava cansado da fotografia. Aí minha mulher me disse: `vamos reconstruir o paraíso onde você
cresceu.”
Sebastião Salgado, fotógrafo
“Precisamos criar uma Nasa para explorar os oceanos.”
Edith Widder, bióloga que conseguiu filmar pela primeira vez a monstruosa lula gigante
“Terminei o ensino médio em maio e agora quero começar uma empresa de energia nuclear.”
Taylor Wilson, 14 anos
“Escolho meus projetos pensando no que precisa acontecer para o futuro ser mais empolgante.”
Elon Musk, fabricante de carros elétricos e foguetes espaciais
“Se animais pastarem em metade dos campos do mundo, será o fim das mudanças climáticas”
Allan Savory, biólogo
“Precisamos de um governo que funcione – para todos nós, e não só para quem paga a campanha.”
Larry Lessig, jurista
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“Não importa quem você é. O que importa são as suas ideias.”
Jack Andraka, 15 anos, inventor de um método de detecção de câncer
“Pedir ajuda nos conecta com as pessoas – e, conectadas, elas vão querer ajudar.”
Amanda Palmer, cantora
“Educação não é encher baldes. É acender fogos.”
Stuart Firestein, neurocientista, defendendo que, para o aprendizado, a ignorância é mais valiosa do
que o conhecimento
http://super.abril.com.br/cotidiano/dentro-ted-743845.shtml
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Reportagem 6
Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Capa / Junho 2013
Como lidar com a tristeza
Nunca tanta gente teve depressão no mundo. São 350 milhões de pessoas nessa condição – boa
parte nem sabe disso. O que está acontecendo conosco? O que devemos fazer a respeito?
por Reportagem: Carol Castro
Edição: Felipe van Deursen
* Com reportagem de Cristine Kist e Felipe van Deursen
A morte era iminente. E lenta. A notícia sobre a doença terminal do marido afogou Estela na
maior dor possível. Ela não sabia como agir. Cuidou dele todos os dias, por cinco anos. Mas era
mais do que podia suportar. Sentia raiva do mundo. Ninguém poderia entender de verdade – a dor
era dela. Ainda assim, queria a ajuda dos amigos, mas sem ter de pedir, sentia-se invadida. Se
tentassem ajudar, ficava brava. Se não tentavam, pior ainda. Aos poucos se afastou de todos,
isolando-se na própria e devastadora dor. A vida não tinha mais graça. E não era um momento
passageiro. Tudo era chato, sem cor, sem prazer. Os tempos de alegria haviam sido uma ilusão tola,
pensava. Estela sabia que nunca mais encontraria esse falso prazer. Depois piorou. Quando o
marido morreu, ela se sentiu aliviada. E esse alívio a destroçou com uma sensação de culpa do
tamanho do mundo. Queria morrer junto. A depressão se fincou nela.
Estela, que prefere usar um nome fictício, é uma entre as 350 milhões de pessoas com
depressão no mundo. Um número que só aumenta e que virou um problema de nossa era: só nos
Estados Unidos, o consumo de antidepressivos aumentou 400% em 20 anos. Mas, historicamente,
depressão é um conceito que surgiu outro dia. Por séculos, ela era uma doença misteriosa chamada
apenas de melancolia. “Perdi toda a alegria e descuidei-me dos meus exercícios habituais”, disse
Hamlet logo após o assassinato do pai. Se vivesse hoje, o personagem de Shakespeare certamente
entraria na mira dos médicos. Ele seria enquadrado no DSM-V, a bíblia da psiquiatria, que identifica
e diagnostica os transtornos mentais. Hamlet, sob os olhos da medicina contemporânea, teve
depressão.
Dos tempos de Shakespeare para cá, muita coisa mudou. Tristeza não é doença. Depressão é,
com sintomas reconhecidos, padronizados e tratamentos específicos. E uma indústria que
desenvolveu remédios para combater esse mal que deve crescer ainda mais. A Organização Mundial
da Saúde aposta que em 2030 a depressão já será a doença mais comum do mundo, à frente de
problemas cardíacos e câncer. Vivemos uma espécie de epidemia de mal-estar: há mais pessoas
deprimidas do que nunca. Ironicamente, justo em uma época em que a busca pela felicidade é algo
quase obrigatório. Você conhece alguém que não queira ser feliz? Soa bizarro e anacrônico. Nosso
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estilo de vida gera angústia e tristeza – que podem levar à depressão. É grave, ficamos vulneráveis a
ela, com o risco maior de cair no abismo: passar a barreira dos sintomas leves e entrar numa
depressão profunda. É como se a vida fosse uma calçada esburacada – nem todo mundo que
tropeça cai e se arrebenta. Dá para controlar a queda, se segurar etc. Mas quem desaba no chão
corre o risco de não se levantar mais: 15% das pessoas com depressão grave cometem suicídio.
O medo da depressão e a busca incessante por felicidade fizeram muita gente fugir da tristeza
como se ela fosse uma peste dos nossos tempos. Quem quer ter isso? Quem quer ficar perto de
alguém que tem? Isso impulsionou o desenvolvimento de remédios com efeitos colaterais cada vez
menos nocivos. Mas também levou a uma certa banalização. “Eu tenho a impressão de que todo
mal-estar virou depressão”, diz Mário Corso, psicanalista e autor do livro A Psicanálise na Terra do
Nunca. “É uma coisa da nossa época. Depressão é a palavra que serve para tudo, as pessoas não
sabem o que têm e dizem que estão deprimidas”, explica. Tanya Luhrmann, antropóloga
especializada em psicologia da Universidade Stanford, nos EUA, acha que há um clima de exagero.
“Estou certa de que nós damos muito remédio às pessoas e que tristeza comum é tratada com
medicação”, diz. Saber a diferença entre tristeza e depressão é essencial. “A tristeza tem motivos, a
depressão não tem motivo nenhum”, explica Corso. Na tristeza, choramos pela morte de alguém.
Ficamos tristes, mas a dor passa, por mais que a saudade não. Na depressão, a dor não passa. A
pessoa não sente mais prazer em nada. E foi nessa zona cinzenta de desinformação que nasceu a
farra das farmácias. A busca por um comprimido mágico que promete milagres, transformando dor
em felicidade, levou muita gente a desaprender a lidar com a tristeza.
Ranking da felicidade
Índice baseado em critérios como saúde, segurança, educação e oportunidades
Os mais felizes
1. Noruega
2. Dinamarca
3. Suécia
4. Austrália
5. Nova Zelândia
6. Canadá
7. Finlândia
8. Holanda
9. Suíça
10. Irlanda
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Os mais tristes
1. República Centro-Africana
2. Congo
3. Afeganistão
4. Chade
5. Haiti
6. Burundi
7. Togo
8. Zimbábue
9. Iêmen
10. Etiópia
No meio do caminho: Brasil, em 44º lugar entre 142 países.
Fontes Kantar Health (Reino Unido); Legatum Institute, 2012 (Reino Unido); Organização Mundial da Saúde (OMS); Universidade de
Warwick (Reino Unido).
A indústria da depressão
Sigmund Freud conhecia um remédio legal para curar depressão. Chamava-se cocaína.
Usuário e entusiasta da droga, ele a receitava para pacientes que sofriam de tristeza recorrente e
sem explicação. Antes disso, os estimulantes mais receitados eram morfina e heroína – até
descobrirem que ambas viciavam e tinham efeitos colaterais perigosos. Mas aí, veja só, viram que
cocaína também era um problema. Em 1914, os EUA foram o primeiro país a proibi-la. Só na década
de 1950 surgiu um substituto eficaz contra esse vazio da alma. Como na origem de tantos outros
remédios, miraram aqui e acertaram ali. O Marsilid surgiu como uma tentativa de encontrar a cura
para a tuberculose, mas quem o tomava ficava um tanto alegre. Ninguém sabia explicar por quê. Até
que em 1965 o psiquiatra americano Joseph J. Schildkraut elaborou a primeira teoria para explicar os
efeitos do remédio e, de quebra, as causas da depressão. Ele dizia que a tristeza é um descompasso
bioquímico no cérebro ligado à serotonina, dopamina e noradrenalina, os neurotransmissores que
regulam o humor e as sensações de prazer e recompensa. Se os níveis dessas substâncias
estivessem baixos, era indício de depressão. Bastaria então tomar algo que aumentasse a taxa, e
tudo ficaria lindo. E o princípio ativo do Marsilid era a iproniazida, que eleva, justamente, o nível de
serotonina.
Foi uma mina de ouro para a indústria farmacêutica. Tratar doenças mentais deixou de ser
coisa só de gente extremamente doente, à beira do hospício. O marketing dos laboratórios passou a
mirar também em mães estressadas, trabalhadores cansados e qualquer cidadão propenso a uma
fase deprê na vida. Desde a década de 1960, surgiram vários remédios que traziam bem-estar,
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sempre com ação direta na química cerebral. Mas as vendas nunca decolavam, porque os efeitos
colaterais eram muito fortes, como inquietação, insônia e dificuldade em urinar.
Só em 1988 surgiu um medicamento que não só mudou de vez as cifras da indústria como
conseguiu extravasar o universo das gôndolas das farmácias e virar um ícone cultural: o Prozac.
Com efeitos colaterais bem menores, a “pílula da felicidade”, como foi chamada na época, entrou
para a lista dos medicamentos mais vendidos no mundo. Desde então, surgiram cerca de 30
remédios destinados a combater a depressão. Mas nenhum deles ficou famoso como o Prozac, que,
segundo a fabricante Eli Lilly, foi vendido a 90 milhões de usuários nesses 25 anos, enchendo os
cofres da empresa. Em 2000, um ano antes de a patente expirar, ela faturou mais de US$ 2 bilhões
com o remédio, cerca de 50% a mais que a Pfizer ganhou no mesmo ano com o Viagra.
Dos anos 90 para cá, o antidepressivo ficou comum. Para toda tristeza ou desânimo, ele
passou a ser considerado um tratamento em potencial. Mas o Prozac não teria sido um megahit da
década tão grande quanto Carla Perez ou Jurassic Park se não houvesse quem o receitasse.
Tudo que era tipo de médico passou a indicar antidepressivos. Tristeza aqui, melancolia acolá,
tome remédio goela abaixo que melhora. Só que, como era de se esperar, nem sempre os
diagnósticos batiam com o problema. Foi o que aconteceu com o professor aposentado Antônio
Alves. Aos 45 anos, ele se sentia desanimado, sem vontade de fazer tarefas diárias. Procurou um
psiquiatra que logo o diagnosticou com depressão e indicou um remédio. O tratamento surtiu efeito
no início, mas depois perdeu a força. Desanimado, Antônio buscou uma segunda opinião. Ao se
consultar com um clínico geral, descobriu que seu problema era outro: a andropausa havia chegado
mais cedo. A contragosto do psiquiatra, Antônio abandonou os antidepressivos e passou a tomar
repositores de hormônios. Não teve mais crise.
Além do fato de antidepressivos nem sempre surtirem efeito, agora a própria teoria que explica
seu funcionamento está sendo questionada. Cinquenta anos depois, a teoria dos baixos níveis de
serotonina não é mais tão forte. Alguns desses remédios, em vez de elevar a concentração da
substância, abaixam ainda mais. Para complicar, nem todo cérebro deprimido tem pouca serotonina.
Mesmo assim, ainda se acredita que a depressão é, sim, um desequilíbrio químico. O problema é
que não se sabe ao certo quais são os neurotransmissores envolvidos.
Ou seja, não que fosse má-fé da classe médica receitar antidepressivo a torto e a direito. É que
depressão é uma doença conhecida há pouco tempo e ainda muito misteriosa. Ela não é como o
câncer, em que um exame de imagem mostra a regressão ou o aumento de um tumor, e uma biópsia
revela o estágio e o grau da doença. Não há resultados impressos para mostrar se o tratamento teve
resultado.
Existe a suspeita ainda que a culpa do caos químico no cérebro seja do estresse. Em resposta
à tensão do ambiente externo, o corpo produz mais cortisol e outros hormônios do estresse. O
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excesso pode alterar a bioquímica cerebral e causar depressão. Se o problema for mesmo esse,
então a infelicidade crônica pode ser uma resposta ao nosso estilo de vida. Estamos mais tristes,
também, por causa da nossa sociedade.
Principais tipos de anti-depressivos
Tricíclicos
O que fazem – aumentam os níveis de serotonina e noradrenalina.
Efeitos colaterais – sedação, boca e olhos secos, prisão de ventre, ganho de peso, sonolência.
Exemplos – Tryptan (amitriptilina), Anafranil (clomipramina), Sinequan (doxepina).
Inibidores da monoamina oxidase
O que fazem – Anulam a monoamina oxidase, que destrói a serotonina, dopamina e norepinefrina.
Efeitos colaterais – ganho de peso, inquietação, disfunção sexual e insônia.
Exemplos – Marsilid (iproniazida), Nardil (fenelzina), Eldepryl (selegilina).
Inibidores seletivos de recaptação da serotonina
O que fazem – aumentam os níveis de serotonina.
Efeitos colaterais – náusea, insônia e disfunção sexual.
Exemplos – Prozac (fluoxetina), Pondera (paroxetina), Zoloft (sertralina).
Atípicos
O que fazem – atuam, de maneiras diferentes, na serotonina, norepinefrina e dopamina.
Efeitos colaterais – cada um é um caso. Podem suscitar convulsão, confusão, disritmia cardíaca,
náusea, ansiedade, disfunção sexual e alergia.
Exemplos – Efexor (venlafaxina), Zetron (bupropiona), Cymbalta (duloxetina) e outros.
Fontes Anvisa; IMS Health / Estado de Minas.
Dor na alma
Os evolucionistas acreditam que a depressão é uma característica do nosso cérebro,
provocada por algo que nos ajudou a sobreviver: somos um bicho sociável. Esse instinto de
socialização e cooperação facilitou a vida dos nossos ancestrais – conseguir comida em grupo era
bem mais fácil. Mas ele abriu a porteira para a depressão, porque nosso humor sempre foi
influenciado por esse convívio em sociedade. Quando o cérebro se desenvolveu, 200 mil anos atrás,
ninguém precisava tomar grandes decisões. Ele foi adaptado para lidar com comunidades pequenas,
de até 70 membros. A pessoa não precisava se encontrar na vida, ela já nascia inserida em um
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contexto mais bem definido. Suas opções eram poucas, determinadas por etnia, grupo social, família
etc. Não havia tantas opções e decisões. E aí, quanto mais complexa a vida ficou, maior a propensão
à depressão. Hoje, são zilhões de escolhas, é difícil ter certeza sobre qual será a melhor – e qual
tomamos só para ser aceitos nessa vida em sociedade. Qual o melhor emprego, a melhor namorada,
a melhor cidade para se viver. O cérebro às vezes parece incapaz de lidar bem com isso. Não é à
toa que muitos depressivos se queixam de ter surtado por só atender às vontades alheias, em vez de
seguir os próprios desejos.
Em comunidades mais simples, os índices de depressão são menores. Um exemplo são os
kaluli, etnia da Papua-Nova Guiné que vive da caça, pesca e agricultura de subsistência. O
antropólogo Edward Schieffelin, da Universidade College de Londres, entrevistou 2 mil kaluli em dez
anos de pesquisa. Só uma pessoa apresentou sinais de depressão – uma taxa 20 vezes menor que
a do Brasil. Schieffelin acredita que a explicação esteja no estilo de vida. Os kaluli usam muito o
corpo, se alimentam de comidas naturais e se expõem mais ao Sol. A verdade é que todos
precisamos de ar livre. A luz solar aumenta a produção de hormônios que deixam você mais
disposto, mais animado. “Existe uma relação já comprovada entre a falta de sol e a depressão. Não é
à toa que nos países do norte europeu o índice de depressão é maior que aqui”, explica Raphael
Boechat, psiquiatra e professor da Universidade de Brasília. Ao mesmo tempo em que estão entre os
países mais felizes do mundo, graças à excelente qualidade de vida, os países escandinavos têm
altos índices de depressão.
A psicanálise leva a questão um pouco mais longe. No livro O Tempo e o Cão, a psicanalista
Maria Rita Kehl culpa nossa sociedade consumista pelo vazio da alma. A máxima do nosso tempo é
vencer. E vencer significa ser feliz. No meio do caminho, escolha uma profissão, tenha amigos,
compre um carro, financie uma casa, case, viaje, vá ao shopping, torça para um time, compre, use,
abuse, jogue, desfile, passeie, julgue, brilhe, dance, transe, descanse. A publicidade teria
transformado a felicidade em uma sucessão de frases imperativas que nos faz consumir. Só que isso
não preenche nada. E o vazio continua aqui dentro. O depressivo, descreve Kehl, não consegue ver
graça em nada disso, em nenhuma dessas conquistas. “A vida tinha um filtro cinza”, diz a publicitária
Rachel Juraschi, descrevendo o que sente um depressivo. “Não era só tristeza, era preguiça de
viver”. Ela suspeita que desde a adolescência, “uma época sem boas lembranças”, sofria de
depressão. Mas foi só aos 28 anos, com o casamento e o trabalho em crise, que a doença atacou
para valer. “Nem banho eu tomava mais”, lembra. Deveria se divertir, se informar, socializar,
conforme manda o protocolo. Mas, assim como em outros depressivos, nada disso fazia sentido. A
pessoa não se diverte – e se culpa por isso. Aí procura tratamento. “Junto com a medicação, o que
se vende é a esperança de que o depressivo possa rapidamente normalizar sua conduta sem ter de
se indagar sobre seu desejo”, escreve Kehl. É como se buscasse uma pílula para se ajustar à vida.
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Um desejo de ser normal.
O uso de antidepressivos pode ter se tornado algo banal e muitas vezes irresponsável. Mas
sua popularização derrubou parte do medo de tratar a depressão. Ficou mais fácil sair do armário e
aceitar isso como uma doença real. “Quando vi que tinha amigos da mesma idade tomando, perdi o
preconceito”, diz Rachel. Os remédios deram aos depressivos uma dose de esperança. E essa
esperança ajuda tanto que pessoas que tomam só água com açúcar achando que é antidepressivo
relatam melhora de humor. O psiquiatra americano Irving Kirsch analisou 38 testes clínicos com 3 mil
participantes que, separados em grupos, lidaram com a depressão de quatro formas distintas:
antidepressivos, remédio placebo, psicoterapia e nenhum de tratamento. Ele constatou que,
enquanto em média 75% dos sintomas de quem tomou remédio melhoraram, 50% dos efeitos nos
que só tomaram pílulas de açúcar foram reduzidos. Ou seja, só 25% da melhora seria mérito do
remédio. Ainda assim, a função dos remédios não pode ser ignorada: quando a tristeza foge do
controle, qualquer esperança serve como alento. O estilista Zanco Junior considera os
antidepressivos essenciais em sua vida. Ele toma há 13 de seus 30 anos, desde que teve uma crise
de pânico em um shopping de Presidente Prudente, São Paulo, onde morava. Zanco já tentou largar
os remédios, mas sentiu falta. Dormia mal, tinha indisposição. “Vivo bem com eles, me ajudam a
tocar minhas coisas”, diz. E, se tentou parar de tomar, é porque não quer passar o resto da vida sob
medicação. “Um dia quero deixar de tomar. Se ficar bem”. Não é fácil.
Afinal, outras questões da vida moderna também deixam o corpo mais cansado. A enxurrada
de informação com que lidamos todo dia não deixa o cérebro descansar, o que aumenta as chances
de pane. Viver em um ambiente desgastante, com mais tempo dedicado a trabalho que a lazer é um
atalho para a depressão. Para piorar, essas mudanças são acompanhadas cada vez mais pela
solidão. Segundo o IBGE, mais de 12% das casas brasileiras só tem um morador – há dez anos, era
menos de 9%. O número de solteiros também aumentou: 48% (ou 72 milhões) dos brasileiros acima
de 15 anos, uma alta de quase 16% em dois anos. Se somarmos a divorciadas e viúvos, a parcela
da população fora de um relacionamento sério chega a 60%. É muita gente. E os picos de depressão
estão nesses grupos mais solitários: solteiros, divorciados e viúvos. Em uma realidade tão propensa
à depressão, é preciso, antes de tudo, saber lidar com a tristeza.
O lado bom da tristeza
Vamos deixar claro uma coisa: nem toda tristeza é ruim. Muitas fazem parte desse jogo em que
você entra no momento em que nasce. Ficar sem presente no Natal, sofrer pelo galã da escola, ser
reprovado no vestibular, perder um emprego, levar um pé na bunda, brigar com um amigo, encarar a
morte de alguém e tantas outras mais fazem parte da vida. Todo mundo lida com elas, em maior e
menor escala. “Se existe um lado bom é que a tristeza nos torna um pouco mais sábios do que no
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momento da euforia, quando a gente fica meio abobado. É uma boa hora para fazer um balanço”, diz
o psicanalista Mário Corso. A crise nos obriga a sair da zona de conforto e abre o caminho para
avaliarmos a vida por novos ângulos e tomar rumos diferentes.
O problema é quando você não consegue superar a crise. Sem saber como reagir à dor,
mergulha numa tristeza que paralisa. É o caso de Estela. Durante a doença do marido, ela já havia
começado a fazer tratamento psicológico e psiquiátrico e participava de reuniões no grupo de apoio
mútuo Neuróticos Anônimos. Ia às reuniões só para vomitar a dor que sentia e sair aliviada. Mas o
efeito não durava muito, e a vida continuava um saco. Sentia dor mesmo quando algo bom
acontecia. Até que um dia ela decidiu não apenas falar, mas também prestar atenção aos desabafos
dos outros. Só aí percebeu que eles também tinham problemas e que ela não estava sozinha. Sentiu
carinho por elas. Recuperou o amor próprio e pelos outros, que a depressão havia levado embora.
Deixou de se preocupar com o pensamento e julgamento alheios e passou a se aceitar e a valorizar
suas vontades. “Tenho percebido que sanidade é quando você consegue admitir o seu lado B, os
seus defeitos”, conta. Ela frequenta as reuniões até hoje. Mas teve alta dos remédios.
Para conseguir isso, ela aprendeu a lidar com a situação e, principalmente, a reconhecer os
próprios limites. O primeiro passo para se levantar do chão, ainda machucada, foi reconhecer o
próprio descontrole emocional. Ela simplesmente deixava a raiva, o medo, a tristeza e outras
emoções decidirem seu rumo. Explodia. Mas isso só dificulta as coisas. Parou de sentir pena de si,
abandonou o papel de vítima. Nada poderia reverter seu trauma – mas a maneira de lidar com isso
poderia ser uma decisão dela. Voltou a ser protagonista da própria vida. Hoje, Estela aprendeu a
lidar com os dias ruins. “Eu respeito muito a depressão. Tenho tanto medo dela quanto tenho do mar.
Mas eu não deixo de entrar no mar, e também não deixo mais de viver”, diz.
Grupos de apoio são uma boa saída para aprender a encarar o lado amargo da vida – mesmo
que você não esteja numa depressão profunda. “Tem gente que entra aqui porque perdeu a
namorada e não consegue ficar feliz. Mas depois passa, fica bem, encontra outra pessoa e nunca
mais volta”, conta Estela. Essas terapias em grupo funcionam tão bem quanto sessões com
psicólogos que seguem a linha cognitiva-comportamental, que tenta ajudar o paciente a ver as coisas
de outra forma, ou interpessoal, que foca nos problemas do presente. Essas duas são as formas de
psicoterapia com os melhores resultados no tratamento da depressão. Ou seja, não dá para apostar
todas as fichas nos remédios. Eles podem resolver o lado bioquímico, mas o modo de lidar com os
problemas ainda é contigo.
Andrew Solomon, autor de O Demônio do Meio-Dia, um livro autobiográfico sobre depressão,
diz que tudo pode funcionar, até tomar remédio de ponta cabeça. Basta acreditar nos efeitos
positivos. E foi por isso que ele encarou diversas terapias alternativas, desde tomar chá de uma
planta chamada erva-de-são-joão, hipnose, homeopatia até participar de um ritual religioso em uma
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tribo africana. Alguns melhoraram o ânimo do escritor, outros nem tanto.
Além de Solomon, outras pessoas estão procurando alternativas para tratar a depressão. No
Brasil, um grupo de pesquisadores viu na ayahuasca uma oportunidade. O chá à base de plantas
amazônicas usadas em rituais religiosos, que dá um efeito de bem-estar e tranquilidade, tem
princípios ativos que agem direto no cérebro e pode render no futuro novas linhas de
antidepressivos. “Os efeitos terapêuticos observados com a ayahuasca são praticamente imediatos,
enquanto que as medicações disponíveis demoram duas semanas no mínimo”, explica Jaime Hallak,
professor de medicina da USP Ribeirão Preto e coordenador da pesquisa. Outra promessa
farmacêutica é a cetamina, usada como anestésico desde os anos 60. Os 120 pacientes do
psiquiatra americano Carlos Zarate que tomaram a droga tiveram melhoras rápidas e significativas.
Em vez de alterar os níveis de serotonina, dopamina e noradrenalina, a substância regula a
concentração de outro neurotransmissor, o glutamato – isso, por si só, já é inovador: seria o primeiro
antidepressivo, desde o Marsilid, a não interferir na taxa dos dos três neurotransmissores de sempre.
Além disso, há novas tecnologias que apresentam outras duas possibilidades: estimulação
magnética transcraniana, ondas eletromagnéticas que estimulam partes do cérebro – algo como o
filho prodígio do eletrochoque – e o neurofeedback, em que o paciente faz atividades para treinar o
cérebro, e sensores mostram em tempo real os efeitos que restauram o equilíbrio do órgão.
Mas não importam as técnicas, terapias ou remédios que você use, os perrengues da vida vão
voltar. Triste? Lembre-se: é assim com todo mundo (e muito mas mais intenso com os depressivos).
Tentar encarar as adversidades ainda é essencial para sair mais forte de cada crise. “Eu detestava
estar deprimido, mas foi também na depressão que aprendi os limites do meu próprio terreno, a
plena extensão da minha alma”, escreveu Andrew Solomon. “A experiência da dor, que é especial
em sua intensidade, é um dos sinais mais seguros da força da vida”. Conhecer seus próprios limites
e não ultrapassá-los torna a vida mais leve – você passa a viver no seu tempo, sem forçar a barra. É
encontrar uma rotina que se encaixe em você. E não o contrário.
Para saber mais
O Demônio do Meio-Dia
Andrew Solomon, Objetiva, 2010.
O Tempo e o Cão
Maria Rita Kehl, Editorial Boitempo, 2009.
The Emperor's New Drugs
Irving Kirsch, Basic Books, 2010.
http://super.abril.com.br/cotidiano/como-lidar-tristeza-753437.shtml
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Reportagem 7
Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Ideias / Junho 2013
O futuro da Internet (e do mundo) segundo o Google
Eric Schmidt, presidente do conselho administrativo do Google, e Jared Cohen, diretor de ideias da
empresa, escreveram um livro em que fazem algumas previsões surpreendentes para o futuro. Veja
quais são.
por Reportagem: Anna Carolina Rodrigues
Edição: Bruno Garattoni
Daqui a dez ou vinte anos, a internet será muito diferente do que é hoje. Mas como? Eric
Schmidt, presidente do conselho administrativo do Google, e Jared Cohen, diretor de ideias da
empresa, escreveram um livro em que tentam responder a essa pergunta: The New Digital Age,
recentemente lançado nos EUA. Nele, fazem algumas previsões surpreendentes, e nem sempre
otimistas, para o futuro. Veja quais são.
Comportamento
1. O passado vai nos condenar
No mundo físico, você sempre pode mudar. Pode mudar de cidade, de aparência, de estilo, de
profissão, de opinião. Na internet, não é assim: tudo o que você já fez ou disse fica gravado para
sempre. Cada vez mais, usamos a rede para nos relacionar uns com os outros. Isso está gerando
uma massa de dados tão grande, cobrindo tantos detalhes das nossas vidas, que no futuro será
muito difícil de controlar – e poderá nos comprometer. “Nunca mais escreva [na internet] nada que
você não queira ver estampado na capa de um jornal”, advertem Cohen e Schmidt.
A internet não esquece nada. E isso afetará a vida de todo mundo. Se uma criança chamar
uma colega de “gorda” na rede, por exemplo, poderá manchar a própria reputação pelo resto da vida
– pois todo mundo saberá que, um dia, ela praticou bullying. Inclusive potenciais empregadores, que
poderão deixar de contratá-la. Uma foto, um comentário, um post infeliz poderá trazer consequências
por muito tempo. “Os pais terão de conversar com os filhos sobre segurança e privacidade [online]
antes mesmo de falar sobre sexo”, dizem os autores. Schmidt diz que a internet deveria ter um botão
“delete”, que permitisse apagar para sempre eventuais erros que cometamos online. Isso é muito
difícil, pois alguém sempre poderá ter copiado a informação que queremos ver sumir. Mas surgirão
empresas especializadas em gerenciar a nossa reputação online, prometendo controlar ou eliminar
informações de que não gostamos, e empresas de seguro virtual, que vão oferecer proteção contra
roubo de identidade virtual e difamação na internet. “A identidade online será algo tão valioso que até
surgirá um mercado negro, onde as pessoas poderão comprar identidades reais ou inventadas”,
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dizem os autores.
O fim do esquecimento terá consequências profundas – que, para o Google, incluirão até a
escolha do nome das pessoas. Alguns casais batizarão seus filhos com nomes bem diferentes, que
não sejam comuns, e registrarão esses nomes nas redes sociais antes mesmo do nascimento da
criança, tudo para que ela se destaque. Outros preferirão nomes comuns e genéricos, do tipo “José
Carlos”, que sejam muito frequentes e tornem mais difícil identificar a pessoa, permitindo que se
esconda na multidão e mantenha algum grau de privacidade online. Hoje, esse tipo de coisa soa
meio estranho. No futuro, talvez não seja.
Política
2. Haverá um ataque terrorista envolvendo a internet
O vírus Stuxnet, supostamente criado por Israel, foi usado para atacar o programa nuclear
iraniano, e quase todas as semanas surge um novo caso de empresa ou universidade americana
que teve seus computadores invadidos por hackers chineses. Ou seja: a guerra digital já é uma
realidade. Ela tende a aumentar, tanto que o livro do Google fala no surgimento da Code War (guerra
de códigos, em inglês), um conflito que envolveria vários países atacando as redes de computadores
uns dos outros. Seria um conflito longo e cheio de pequenas sabotagens, sem declarações diretas de
guerra, semelhante à Guerra Fria. “Os países vão fazer coisas online uns com os outros que seriam
muito provocadoras [como sabotar usinas, espionar, derrubar o acesso à internet] de se fazer offline.
Isso vai permitir que os conflitos aconteçam no campo de batalha virtual, enquanto o resto
permanece calmo.”
Mas o fato de a guerra ser digital não significa que ela não vá derramar sangue. Os executivos
do Google imaginam um novo 11 de Setembro, que envolveria uma sequência de ações terroristas
online e offline. Um hacker poderia invadir o sistema de tráfego aéreo de algum país, por exemplo, e
induzir os aviões a voarem na altitude errada – para que eles se choquem uns contra os outros. Aí,
com a atenção mundial voltada para esse caos aéreo, viria a segunda fase do ataque: bombas
posicionadas estrategicamente em Nova York, Chicago e em São Francisco explodiriam. Nas horas
seguintes, uma nova onda de ataques virtuais atrapalharia a comunicação e a mobilização da polícia,
dos bombeiros e ambulâncias. Em seguida, outro ataque poderia prejudicar os sistemas de
distribuição de água, energia, óleo e gás do país. “No futuro, a força dos grupos terroristas não virá
da disposição de morrer por uma causa, e sim do domínio tecnológico que eles possuírem”, preveem
os autores.
3. O governo vai migrar para a web
Ir a uma repartição pública costuma ser uma experiência desagradável, cheia de burocracia e
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filas. Mas e se essa repartição fosse transformada num site – no qual você pudesse resolver todos
os seus problemas? Eric Schmidt e Jared Cohen propõem que o governo migre para a internet e seja
capaz de funcionar por meio dela. Isso tornaria a operação mais eficiente, permitindo dar um
atendimento melhor à população, e também seria uma vantagem em caso de desastres naturais. Se
o prédio de um ministério fosse destruído por um terremoto, por exemplo, a instituição poderia
continuar a funcionar online, com os funcionários se conectando de qualquer PC com acesso à
internet.
4. A rede vai se fragmentar
A internet foi criada, no final dos anos 60, para conectar as redes internas de universidades e
instituições do governo americano. Ou seja: ela é, por definição, uma união de pequenas redes (daí
seu nome, que significa “inter-rede”). É essa união que nos permite acessar qualquer site, de
qualquer lugar do mundo, e foi ela a grande responsável pela universalização da internet. Mas, no
futuro, não será assim. Com a desculpa de combater o terrorismo e os crimes online, e também por
questões culturais, alguns países criarão suas próprias regras – e, na opinião do Google, isso
acabará resultando em internets nacionais, com as características de cada lugar. E o que entra e sai
de cada uma delas será monitorado, com direito a censura. Mais ou menos como já acontece em
países como Irã e China – só que no mundo inteiro. Essa previsão pode parecer exagerada, mas tem
certo respaldo no mundo real. Em março deste ano, o Parlamento Europeu discutiu uma lei que iria
proibir o conteúdo pornográfico na internet (e acabou não sendo aprovada). É provável que, no
futuro, os Estados tentem exercer algum controle sobre a internet.
Outra tendência, segundo Cohen e Schmidt, é a formação de alianças digitais entre países que
tem costumes e opiniões semelhantes. Poderá surgir uma internet regional cobrindo vários países do
Oriente Médio, por exemplo, com conteúdo e regras determinadas por eles. Em contrapartida,
minorias ou insurgentes também poderão ter seu país online, como a criação de uma internet
palestina, por exemplo. “O que começou como a World Wide Web começará a se parecer mais com
o próprio mundo, cheio de divisões internas e interesses divergentes”, dizem os autores. Eles
imaginam até a criação de uma espécie de visto, que controlaria quem pode ou não entrar na internet
de cada país. “Isso poderia ser feito de forma rápida e eletronicamente, exigindo que os usuários se
registrem e concordem com certas condições de acesso à internet de um país.”
Sociedade
5. Um computador saberá tudo sobre você
Quer saber quais informações o Google tem sobre a seu respeito? Acesse o site
google.com/dashboard e você provavelmente irá se surpreender. São dezenas de informações, que
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incluem quais buscas você fez, quem são seus amigos, sua agenda de compromissos, seu
endereço, onde você vai e todo o conteúdo dos seus e-mails e documentos. O Google já sabe muita
coisa. Mas, no futuro, poderá saber ainda mais. Isso porque as informações que hoje ficam em
bancos de dados separados, como a sua identidade (RG), registros médicos e policiais e histórico de
comunicações, serão unificadas em um único – e gigantesco – arquivo. Com apenas uma busca,
será possível localizar todas as informações referentes à vida de uma pessoa. Algumas delas só
poderiam ser acessadas com autorização judicial, mas sempre existe a possibilidade (e o receio) de
que isso acabe sendo desrespeitado. Um exemplo recente: em maio, vazou na internet um
documento no qual o FBI autoriza seus agentes a grampear os e-mails de qualquer pessoa, mesmo
sem permissão de um juiz.
Lutar contra isso, e revelar poucas informações pessoais na internet, será visto como atitude
suspeita. Cohen e Schmidt acreditam que o governo vá criar uma lista de “pessoas offline”, gente
que não posta nada nas redes sociais – e por isso supostamente tem algo a esconder. “Elas poderão
ser submetidas a um conjunto de regras diferentes, como revista mais rigorosa no aeroporto ou até
não poder viajar para determinados locais”, dizem.
6. Um grupo vai desvendar as mentiras da internet
É comum que os governos falsifiquem ou adulterem informações. Era assim na URSS (Stálin
mandava apagar pessoas de fotos históricas) e é assim no Irã e na Coreia do Norte, que já foram
pegos usando Photoshop para manipular imagens militares. Por isso, os executivos do Google
preveem a criação de uma entidade, independente de qualquer governo, que seria responsável pela
fiscalização e investigação dos dados divulgados na internet, principalmente os que envolvessem
política e conflitos armados. Uma espécie de Cruz Vermelha virtual, que teria representantes de
vários países e funcionaria como referência para os órgãos de imprensa.
7. Mais pessoas terão (menos) poder
A internet permite que as pessoas se informem, se comuniquem e se organizem de forma livre
e independente. Ou seja, ela dá poder às pessoas. Com o acesso a novas ideias, populações vão
questionar mais seus líderes. Imagine o que acontecerá quando o habitante de uma tribo na África,
por exemplo, descobrir que aquilo que o curandeiro local diz ser um mau espírito na verdade não
passa de uma gripe. “Os governos autoritários vão perceber que suas populações serão mais difíceis
de controlar e influenciar. E os Estados democráticos serão forçados a incluir mais vozes em suas
decisões”, escrevem Jared Cohen e Eric Schmidt.
A Primavera Árabe é um bom exemplo disso. A internet teve um papel fundamental na
organização dos grupos populares que derrubaram os governos de quatro países (Tunísia, Egito,
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Líbia e Iêmen) e abalaram vários outros. No caso egípcio, o próprio Google acabou sendo envolvido
– pois Wael Ghonim, executivo da empresa no Egito, entrou por conta própria em mobilizações
online (e ficou 11 dias preso por causa disso).
Na era da internet, minorias antes reprimidas também passam a ter uma voz. Mas, na opinião
do Google, isso não terá necessariamente um grande efeito prático. É o chamado ativismo de sofá. A
pessoa pode até curtir e compartilhar conteúdo relacionado a uma causa, mas, na hora de ir para as
ruas, a coisa fica diferente. A mobilização virtual nem sempre se traduz em engajamento real. Além
disso, a internet permite que os movimentos sociais surjam e cresçam muito rápido, de forma
descentralizada e diluindo o poder entre muitas pessoas. Isso acaba fazendo com que esses
movimentos tenham muitos líderes fracos, em vez de poucos líderes fortes.
Para sustentar essa tese, Cohen e Schmidt citam a Primavera Árabe, em que os regimes
totalitários e os ditadores caíram, mas seu lugar acabou sendo tomado por governos muçulmanos,
que não são particularmente democráticos, em vez de lideranças egressas da internet. “Sem
estadistas, não haverá indivíduos qualificados o suficiente para levar um país adiante. Corre-se o
risco de substituir uma forma de autocracia por outra”, dizem os autores. Em suma: a internet
distribui o poder, mas isso não necessariamente resulta na formação de grandes líderes. Nelson
Mandela não era uma celebridade de Facebook.
Para saber mais
The New Digital Age
Eric Schmidt e Jared Cohen Knopf, 2013.
http://super.abril.com.br/tecnologia/futuro-internet-mundo-google-752917.shtml
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Reportagem 8
Fonte: Revista Superinteressante / Seção: Ciência / Julho 2013
A caça ao conhecimento perdido
Novas pesquisas mostram que tribos primitivas têm muito a nos ensinar sobre justiça, saúde e até na
criação dos filhos
por Reinaldo José Lopes
Viver em países com organização centralizada e centenas de milhões de cidadãos é algo que
torna as pessoas e as culturas bem homogêneas. E isso pode ser um problema. Nossos ancestrais
viviam em grupos de 100, 200 indivíduos. Bastava andar algumas dezenas de quilômetros para ir
parar em “terra estrangeira”, povoada por inimigos mortais que falavam uma língua bem diferente da
sua. Resultado: cada grupinho desenvolveu sua própria cultura. Única e peculiar. Alguns grupos
ainda vivem como os nossos antepassados da Idade da Pedra. É o que acontece na ilha da Nova
Guiné, por exemplo. Os povos tradicionais de lá foram os que ficaram mais tempo isolados da
civilização, então o lugar abriga mais de mil línguas diferentes num território pouco maior que o de
Minas Gerais. E a diversidade linguística é só parte da equação. Junto com ela vem uma incrível
variedade de usos e costumes. “Esse grupos representam milhares de experimentos naturais sobre
como construir uma sociedade”, diz o biólogo Jared Diamond. Ele é conhecido por ser o autor do
polêmico best-seller Armas, Germes e Aço, no qual propõe que o acaso seria a principal explicação
para o triunfo da civilização europeia, não a tecnologia. Agora ele está com um livro novo, e que
também chama a atenção pela originalidade: é o The World Until Yesterday (“O Mundo até Ontem”,
sem versão em português). Diamond argumenta ali que tribos supostamente primitivas têm muito a
nos ensinar.
“Eles descobriram milhares de soluções para problemas humanos. Soluções diferentes das
nossas”. Nas páginas a seguir, você confere algumas delas – boa parte delas bolada pelos povos da
Nova Guiné e de ilhas adjacentes, onde Diamond faz suas pesquisas de campo. De quebra,
aproveitamos para mostrar alguns pontos nos quais essas sociedades acabam escorregando.
1. Criação dos Filhos
A situação das crianças entre muitos povos de caçadores-coletores ou de agricultores
primitivos é paradoxal. Grosso modo, dá para dizer que os pequenos são muito mais mimados do
que os nossos bebês em várias dessas sociedades – e, ao mesmo tempo, ficam muito mais ao deusdará do que qualquer mamãe brasileira normal acharia seguro. Começando pela parte fofa da coisa:
entre as sociedades de caçadores-coletores mais bem estudadas pelos antropólogos – gente como
os Hadza, da Tanzânia, os Agta, das Filipinas, e os !Kung (o ponto de exclamação representa um
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som feito ao estalar a língua), da Namíbia e de Botsuana –, a idade média para desmamar os
pequenos fica em torno dos três anos. E as mamadas podem continuar por ainda mais tempo
(depois dos quatro anos de idade, no caso dos !Kung) se um irmãozinho não aparecer para cortar o
barato da criança. Entre os pigmeus Bofi e Aka, da África Central, o desmame é feito de forma
gradual e, muitas vezes, espera-se que o filho tome a iniciativa de largar o peito.
Dá-se de mamar ao bebê sempre que ele quiser, mesmo no meio da noite – por isso, os nenês
dormem junto com a mãe, podendo achar o peito sem necessariamente acordá-la. Não são apenas
os seios da mãe que ficam à disposição da criança 24 horas por dia. O normal é que os bebês, até
os dois ou três anos de idade, estejam quase sempre em contato físico muito próximo com um
adulto. São carregados para lá e para cá no colo sem medo de que a criança “fique folgada” ou,
então, passam o dia em “bolsas de canguru” ou trouxinhas amarradas ao adulto.
Diferentemente dos nossos “cangurus”, no entanto, toma-se sempre o cuidado de colocar a
criança numa posição voltada para a frente, de maneira que ela tenha o mesmo campo visual da
mãe diante de si, o que parece ter algumas vantagens para o desenvolvimento neurológico do
pequerrucho.
O bebê começa a diminuir seu contato corporal direto com os adultos também por vontade
própria, por volta de um ano de vida, quando começa a descer mais para o chão para brincar com
outras crianças. Outro aspecto importante do cuidado com os pequenos em boa parte das
sociedades tradicionais é que a tarefa é dividida entre um número muito maior de pessoas. Além dos
pais, claro, e dos avós, tios e irmãos mais velhos (que entre nós ainda dão uma mãozinha, mas
muito menos do que era usual décadas atrás, por exemplo), praticamente todos os membros do
grupo passam ao menos algum tempo com os bebês. Conforme as crianças crescem, podem ficar
dias ou até semanas na casa de parentes ou vizinhos. E há ainda o costume da adoção ritual – a
tradição de que meninos e meninas mais velhos passem anos na casa de outra pessoa,
completando sua educação. Resquícios dessa prática aparecem na literatura de sociedades
guerreiras um pouco menos “primitivas”, como os gregos de Homero ou os nobres medievais.
Mais importante: para muitos caçadores-coletores, palmada como instrumento educacional não
existe. O linguista americano Daniel Everett, que passou anos vivendo com a tribo dos Pirahã, no
Amazonas, conta que certo dia tentou punir sua filha Shannon na base da chinelada. Ele não
contava com os Pirahã, no entanto. A menina fez um escândalo, e os índios, que nunca batem em
seus filhos, simplesmente proibiram a surra. Entre os pigmeus Aka, da África subsaariana, é
parecido: se um dos membros de um casal bate nos filhos, o cônjuge pode usar isso como boa razão
para um divórcio.
O respeito pela individualidade da criança, contudo, também tem seu lado ruim. É comum que
grupos tradicionais deixem que garotos e garotas pequenos façam coisas um bocado perigosas – e
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paguem o pato por isso. Diamond conta que muitos de seus amigos das montanhas da Nova Guiné,
por exemplo, possuem cicatrizes feias causadas por queimaduras, simplesmente porque seus pais
não interferiram quando eles quiseram brincar com fogo quando crianças. Sobre os Pirahã,
aparentemente tão delicados com os pequenos, Everett conta uma história de arrepiar. Certo dia, um
menininho de dois anos estava brincando com uma faca, fazendo todo tipo de movimento perigoso
com o treco. “E a mãe, que estava conversando com outra pessoa, pegou a faca do chão e devolveu
à criança quando o menino deixou cair! Ninguém disse a ele para tomar cuidado para não se cortar.”
Também é importante lembrar que as dificuldades da vida nômade podem levar mães e pais a
tomarem decisões difíceis, que envolvem inclusive o sacrifício de recém-nascidos. Quando nascem
gêmeos numa família de caçadores-coletores, por exemplo, é comum que um deles seja sacrificado,
porque a mãe dificilmente será capaz de alimentar ambos.
2. Fazendo justiça
Ciclos de vingança muitas vezes tomam conta da vida dos povos tribais. É claro que isso tem a
ver com a inexistência de um Estado, capaz de monopolizar o uso da violência e de punir crimes por
meio de tribunais e prisões. Se o único jeito de fazer justiça é matar o sujeito que matou seu pai,
você vai considerar seriamente essa possibilidade. Só tem um complicador: em sociedades desse
tipo, os laços familiares costumam ser mais fortes do que entre nós. Seu primo de segundo grau tem
tanta obrigação de vingar você quanto seu filho. E, do outro lado da equação, uma vez vingado o
assassinato original, nada impede que o primo de segundo grau do assassino se sinta obrigado a
vingá-lo. Deu para ver onde isso vai parar.
Se o cenário parece desesperador, também há evidências de que as sociedades tradicionais
conseguem enfrentar de forma eficaz situações que, para nós, virariam um pesadelo judicial. É essa
a lição que Diamond tira de um incidente na Nova Guiné, a morte por atropelamento do menino Billy.
O garoto foi atingido enquanto voltava da escola. Ele desceu do micro-ônibus para atravessar a rua e
se encontrar com seu tio Genjimp, que estava esperando para levá-lo para casa, mas saiu correndo
por trás do micro-ônibus. Com isso, Malo, motorista de outro carro, não viu o menino e acabou por
atingi-lo.
Billy e Malo pertenciam a grupos étnicos diferentes, o que poderia ser a receita para um ciclo
de vinganças. Mas, graças à mediação do chefe da tribo, a família do menino reconheceu que tudo
tinha sido um acidente e aceitou o chamado sori money, ou “compensação” em tok pisin, língua
franca da Nova Guiné, derivada do inglês. E também ajudou a família a organizar o funeral de Billy.
No final, as partes se despediram com um aperto de mãos.
No Ocidente, lembra Diamond, a mesma situação estaria sendo enfrentada por meio de uma
disputa judicial impessoal, com os pais do menino simplesmente processando o motorista. Para o
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pesquisador, a vantagem do método da Nova Guiné é que ele tem um componente emocional
importante, dando aos pais e aos representantes do motorista uma chance de tentar reparar, ao
menos em alguma medida, o sofrimento trazido pelo caso. É o que os procedimentos recentes da
chamada justiça restaurativa – quando vítimas e criminosos ficam frente a frente para conversar, com
a ajuda de um mediador, por exemplo – estão tentando fazer.
3. Previdência social
Jared Diamond conta que, certa vez, passou vergonha ao bater um papo com um nativo de Viti
Levu, uma das ilhas do arquipélago de Fiji, no Pacífico. O sujeito tinha visitado os EUA anos antes e
acusou: “Vocês jogam seus idosos, e até seus próprios pais, no lixo!”.Em Fiji, os filhos chegam a prémastigar a comida dos pais idosos e desdentados, o que provavelmente explica a indignação do
nativo com o fato de alguns velhinhos americanos serem esquecidos em lares para idosos, sem
receber visitas da família. De fato, o respeito cerimonioso com os mais velhos é comum entre
sociedades tradicionais.
Mas, como acontece no caso das crianças, nem tudo são flores. Em situações de privação,
muitas tribos de caçadores-coletores acabam “sugerindo” que os velhinhos façam o favor de bater as
botas – ou praticam uma forma de eutanásia forçada (digamos) quando isso falha. Esse tipo de
prática se torna mais comum em dois contextos, diz Diamond: quando a tribo precisa mudar de
acampamento com frequência, o que dificulta a presença de pessoas com mobilidade reduzida; ou
quando o grupo habita ambientes nos quais a falta de recursos acontece de maneira cíclica (como os
desertos e o Ártico).
Grupos como os Inuit (esquimós) e os Hopi, dos desertos dos EUA, preferiam simplesmente
ignorar os idosos indesejáveis, deixando de cuidar deles e de lhes dar comida, até que eles acabem
morrendo. Uma tática mais ativa – e cruel – é abandonar a pessoa mais velha quando chega a hora
de mudar de acampamento e fica claro que ela não será capaz de acompanhar o grupo sozinha,
coisa que os Aché, do Paraguai, costumavam fazer. O método mais chocante, porém, talvez seja o
adotado para viúvas do povo Kaulong, da Nova Bretanha, ilha próxima da Nova Guiné: até os anos
50, era função dos filhos homens, ou dos irmãos da mulher, estrangulá-la assim que o marido morria.
A antropóloga Jane Goodale (não confunda com Jane Goodall, a famosa especialista em
chimpanzés) registrou a situação enfrentada pelo filho de uma dessas viúvas: “Quando hesitei, minha
mãe ficou de pé e, em voz alta, disse que eu só estava demorando porque queria fazer sexo com
ela”. Humilhado, o sujeito acabou cumprindo seu dever.
Se nada disso parece muito inspirador, é bom lembrar que, em condições normais, as
sociedades tradicionais sabem dar valor a seus membros mais velhos, em especial levando em
conta os contextos nos quais eles são capazes de deixar a garotada no chinelo. Embora não sejam
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mais capazes de caçar um elefante na base das lançadas, eles são os principais responsáveis por
interpretar marcas deixadas por um animal ou por planejar a caçada. São excelentes xamãs, pajés e
curandeiros, além de dominarem o artesanato de forma mais precisa e cuidadosa do que os jovens,
mais afoitos. E, em culturas que são orais e dependem de um conhecimento detalhado do ambiente,
seus cérebros funcionam como bibliotecas vivas, guardando segredos como o que comer quando
uma seca severa ou um furacão acabam com quase todas as fontes de alimento.
4. Paleo-dieta
Diamond lembra que, quando começou a trabalhar na Nova Guiné, na década de 1960, obesos
ou mesmo gente um pouco acima do peso pareciam simplesmente não existir na ilha. Musculosos,
esbeltos e cheios de fôlego, os nativos eram capazes de carregar pesos enormes no lombo durante
o dia inteiro sem se cansar. Problemas cardíacos, pressão alta, diabetes e câncer mal eram
registrados por lá – os idosos da Nova Guiné de então raramente eram afetados por esses males.
Hoje, porém, uma das maiores incidências de diabetes do mundo (37% da população) ocorre
justamente entre os Wanigela, da Nova Guiné. A conclusão parece ser óbvia: a dieta moderna, cheia
de açúcar refinado, farinha e sal conseguiu estragar a saúde deles. Os dados obtidos com os povos
tradicionais mostram como o nosso organismo poderia ser diferente se ainda seguíssemos uma dieta
parecida com a deles.
Veja o caso dos ianomâmis, por exemplo. A dieta dos índios, cuja base é a banana, contém
apenas 50 miligramas de sal por dia. Isso significa que um único Big Mac equivale a um mês inteiro
do consumo de sal deles. A vantagem disso é, claro, a diminuição do risco de pressão alta e de
todos os problemas cardiovasculares, como enfartos e derrames, que podem vir do consumo
excessivo de sal. Se o número mágico “12 por 8” vale como indicativo de pressão arterial saudável
para nós, é porque não estamos acostumados ao padrão ianomâmi: 9 por 6.
Logo atrás deles, numa amostragem de 52 populações mundo afora, vêm os índios do Xingu e
os nativos do vale Asaro, na Nova Guiné, com 10 por 6. Esses grupos, além disso, não mostram uma
tendência de aumento da pressão conforme a idade avança, diferentemente do que se vê entre nós.
Ninguém precisa adotar uma dieta de mandioca e capivara mal passada para reconhecer que,
durante muito tempo, as condições ambientais e a cultura dos indígenas permitiram que eles
evitassem doenças que hoje nos afetam. Do mesmo modo, não é preciso deixar seu bebê brincar
com facas de churrasco para tentar dar a ele a autonomia que parece funcionar com as crianças dos
caçadores-coletores. A vantagem da cultura moderna talvez seja a possibilidade de comparar os
vários sistemas de sobrevivência – e adotar o melhor que cada um deles tem a oferecer.
http://super.abril.com.br/historia/caca-ao-conhecimento-perdido-755516.shtml
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