Marxismo Vivo
Transcrição
Marxismo Vivo
Marxismo Vivo Revista de teoria e política internacional Nº 22 – 2009 Expediente Marxismo Vivo é uma revista do Instituto José Luís e Rosa Sundermann CGC 73282.907/0001-64 Atividade principal 61.81. Rua dos Caciques, 265 Saúde São Paulo – SP Tel (11) 5581-5776 Impressão Bartira Gráfica e Editora SA Jornalista responsável Maria Cecília Garcia MTb 12.471 Editor José Welmowicki Capa Martín Garcia Diagramação Ana Clara Ferrari Tradução e revisão Cecília Toledo Irinéia Vieira Marcos Margarido Conselho Editorial Alejandro Iturbe Bernardo Cerdeira Cecília Toledo José Welmowicki Marcos Margarido Martín Hernández Marxismo Vivo – Revista de teoria e política internacional São Paulo – Brasil – Instituto José Luís e Rosa Sundermann ISSN 1806-1591 2000, nº 1, julho/setembro 2001, nº 2, outubro/janeiro 2001, nº 3, maio 2001, nº 4, dezembro 2002, nº 5, abril 2002, nº 6, novembro 2003, nº 7, novembro 2004, nº 8, março 2004, nº 9, julho 2004, nº 10, novembro 2005, nº 11, junho 2005, nº 12, dezembro 2006, nº 13, maio 2006, nº 14, outubro 2007, Edição especial – fevereiro 2007, nº 15, julho 2007, nº 16, dezembro 2008, nº 17, maio 2008, nº 18, julho 2008, nº 19, novembro 2009, nº 20, abril 2009, nº 21, agosto www.litci.org Marxismo Vivo é uma revista de elaboração teórico-programática. Por isso, publica artigos de polêmica, que expressam diferentes posições políticas. O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos respectivos autores. 2 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Sumário Apresentação ................................................................................................................... 4 Añno 2009 A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya José Moreno Pau e José Welmowicki ............................................................................. 6 O diálogo de Guaymuras, a estratégia do presidente Mel Zelaya e a resistência Tomás Andino Mencía ..................................................................................................... 15 Do “Novo Século Americano” de Bush à nova tática política de Obama Alejandro Iturbe .............................................................................................................. 24 Dossiê Oriente Médio: um novo e imenso Vietnã para Obama Bernardo Cerdeira ............................................................................................................ Irã, 1979: uma revolução interrompida Marcos Margarido ............................................................................................................ Por uma nova revolução iraniana José Welmowicki e Tito Niegra ....................................................................................... Afeganistão: uma encruzilhada para o imperialismo Bernardo Cerdeira ........................................................................................................... A guerra, o imperialismo e a questão nacional polarizam o Paquistão Bernardo Cerdeira ............................................................................................................ 34 42 52 64 75 Estudos O sistema financeiro mundial e sua crise - Parte 3 Alejandro Iturbe .............................................................................................................. 83 Pontos de Vista Cuba ... não é uma ilha Martín Hernández ............................................................................................................ 91 IV Internacional De que Internacional precisamos? Clara Sousa ....................................................................................................................... 100 Isto é História China, 1949: uma revolução no país mais populoso da Terra Cecília Toledo e Marcos Margarido ................................................................................ 112 Espanha: Da ditadura à monarquia - Parte 2 Felipe Alegría e Teo Navarro ........................................................................................... 122 Cultura A arte morreu. Viva a arte! Cecília Toledo ................................................................................................................... 128 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 3 Apresentaçãçc~ao ´ Iman Maleki, pintor iraniano Este número de Marxismo Vivo sai quando a preocupação com as guerras que o imperialismo trava no Oriente Médio vai tomando as manchetes da imprensa burguesa e os grandes telejornais. Naquela região do mundo, há 30 anos a revolução iraniana abalou a ordem e deu origem a uma nova corrente nacionalista islâmica. Também há 30 anos, a invasão soviética ao Afeganistão colocou toda a região em uma situação de grande instabilidade e desencadeou uma grave crise no interior do então Estado operário burocrático, mudando o panorama da situação mundial, com uma série de consequências políticas que se estendem até hoje. Em 2009, 30 anos depois, a situação política e militar da região é o centro dos problemas e das preocupações atuais do imperialismo americano no mundo. Isso porque depois de ser golpeado pela resistência das massas, e ser obrigado a mudar de política e tentar uma saída do Iraque, os Estados Unidos continuam lutando duas guerras ao mesmo tempo. No Afeganistão, o governo de Barack Obama vive o dilema de incrementar a escalada militar, num processo em que sua situação só piora e cujas consequências no próprio moral do Exército dos EUA vêm sendo dramáticas, como atestam os informes sobre suicídios e o recente tiroteio na base de Fort Hood nos EUA. Os governos europeus que participam com peso das tropas de ocupação, através da OTAN, têm problemas crescentes pela oposição cada vez mais acirrada de suas populações a essa guerra, assim como piora a situação de Obama internamente para sustentar a ocupação. 4 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Apresentaçãçc~ao ´ O outro grande fato que atravessou o último período foi o golpe em Honduras e a resistência a ele. Houve um posicionamento generalizado de toda a esquerda contra o golpe; no entanto, não havia acordo sobre a caracterização e a política para a resistência. Uma polêmica se instalou no interior da esquerda: se a orientação do imperialismo norte-americano era a mesma dos anos 70 de apoiar todo tipo de golpes militares na América Latina ou estávamos diante de uma nova tática imposta pela realidade. Se Obama expressa ou não uma nova tática política resultante da derrota de Bush, a da reação democrática. Essa nova tática não é menos perigosa que a de Bush, pois trabalha com o engano e a colaboração das direções para atacar os trabalhadores, para implementar seus planos de colonização e dominação dos povos e das riquezas de todo o mundo. Essa polêmica tem muita importância pela consequência na política que dela decorre, como se vê na traição de Zelaya à luta da resistência hondurenha a partir de sua colaboração com a negociação patrocinada pelo imperialismo e governos latino-americanos. Dedicamos a esse tema dois artigos na seção Ano 2009. Nossa revista tem como objetivo as discussões teóricas, programáticas e políticas sobre os grandes temas da atualidade à luz do marxismo. Acreditamos que os debates sobre esses temas serão de interesse para nossos leitores. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 5 Aññno 2009 Uma análise do processo político em Honduras Quando fechávamos esta edição, os resultados da nefasta assinatura do acordo entre os golpistas e Zelaya já se faziam notar. O chamado Acordo de Tegucigalpa, entre Zelaya e os representantes de Micheletti e patrocinado pelo imperialismo, revelou-se um engano cruel imposto sobre o povo e a resistência. O objetivo central dos golpistas - começar a romper o isolamento internacional - foi atingido, sem que fosse concretizada a restituição formal e sem poder de Zelaya, quinze dias depois da assinatura. Além disso, os golpistas esperam que as eleições, previstas para 29 de novembro, ocorram com uma resistência debilitada, o que está sendo obtido com a colaboração direta de Zelaya e, infelizmente, com a aceitação por parte da maioria da direção da Frente Manifestação nas ruas de Tegucigalpa contra o Golpe, que considerava, até 10 de novembro passado, o Acordo de Guaymuras uma vitória. Agora, com a não restituição de Zelaya, considera o acordo rasgado e chamam a boicotar e a desconhecer o resultado eleitoral. A chama da resistência pode voltar a se acender, mas os que lutaram contra o golpe terão de fazer uma profunda reflexão sobre o que significou o papel de Zelaya e o da maioria da direção da Frente em todo o processo. Consideramos, então, que é um momento no qual se faz necessária uma análise do conjunto do processo para tirar conclusões que possam ajudar a luta da resistência e, em especial, daqueles que não aceitaram, desde o início, a traição de Zelaya. Ele fez um pacto com os golpistas em base a essas miseráveis condições (que nem sequer foram cumpridas). Estas forças da Resistência desde então defendem a continuidade da luta, dispostos a buscar uma alternativa independente e que não faça seguidismo ao vai-e-vem do presidente Zelaya. No contexto da confusão criada pela capitulação, podemos dizer que há uma notícia alentadora; existem setores de esquerda da resistência que estão defendendo uma política independente de Zelaya, afirmando que a luta deveria ser radicalizada até impor a derrota do golpe pelas massas. Neste número de Marxismo Vivo publicamos o material de crítica à orientação imposta pelo zelayismo, que Tomás Andino, deputado da UD e participante da Frente de Resistência contra o golpe, apresentou num fórum da resistência quando já se debatia a política que levou à capitulação e à assinatura do Acordo de Guaymuras. Também publicamos o texto, A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya, já que nos pareceu necessário fazer um balanço desde o início do golpe para que se possa avançar nas lições mais estratégicas. 6 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya José Moreno Pau Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-IT) - Espanha José Welmowicki Editor de Marxismo Vivo O golpe em Honduras foi produto de uma amplíssima frente reacionária de praticamente todos os setores da burguesia hondurenha: as tradicionais organizações políticas burguesas - o Partido Nacional (conservador) e o Partido Liberal (ao qual pertencia o próprio Zelaya) -, a Corte Suprema, o Congresso, os meios de comunicação, a Igreja Católica e as Forças Armadas. Manuel Zelaya é um dirigente burguês, proveniente da oligarquia latifundiária, que tomou algumas tímidas medidas progressistas e, frente à deterioração da situação econômica, aproximou-se do chavismo e entrou na Alba, para se beneficiar das ofertas de petróleo mais barato. Até aí, vinha sendo tolerado pela direita hondurenha. Mas, quando Zelaya declarou sua intenção de conseguir a reeleição, não prevista pelo atual regime político, e, para isso, de convocar uma assembleia constituinte, sofreu o rechaço da ampla maioria da burguesia. Ao insistir nisso, apelando a formas de mobilização popular, como o episódio da consulta para respaldar a “4ª urna”1, tornou sua permanência no poder intolerável para essa elite e as Forças Armadas. As contradições do golpe Os golpistas tinham bastante apoio da burguesia hondurenha, mas havia um problema muito sério na conjuntura internacional. O golpe ia na contramão da situação aberta com a derrota da política de Bush e a nova tática de Obama. A burguesia hondurenha é historicamente muito dependente e tradicional aliada do imperialismo estadunidense. Por exemplo, na década de 1980, permitiu que o país fosse utilizado como base pela “guerrilha contra” que atacava o governo sandinista da Nicarágua. Muito possivelmente, com base nesses favores, acreditou que teria o “direito” de eliminar um elemento “irritativo” do poder, em que Zelaya estava se transformando, e que, frente ao fato consumado, teria o apoio do governo norte-americano. Mas foi um grave erro de cálculo porque o golpe “ultrapassava os limites” da atual tática Tradução Marcos Margarido 1 A “quarta urna” era uma proposta de incluir nas próximas eleições de novembro uma consulta sobre a convocação a uma Assembleia Constituinte. Previamente, Zelaya havia convocado uma consulta popular (não autorizada pelo Congresso nem pela Corte Suprema) para respaldar a “quarta urna” nas futuras eleições. Foi nesse momento que o golpe de estado ocorreu. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 7 Aññno 2009 política de Obama. A burguesia hondurenha tinha certa consciência desta contradição. Por isso, apesar de ser um golpe bonapartista, não podia executar uma repressão genocida generalizada ao estilo de Pinochet ou Videla, como no passado da América Latina, numa conjuntura internacional completamente distinta dos anos 70. Os gorilas hondurenhos tinham que ser cautelosos em seus objetivos imediatos e nas formas institucionais. Neste sentido, para tentar ganhar o apoio do imperialismo dos EUA e das democracias burguesas, apresentaramse em defesa da constituição, “ameaçada” por Zelaya. No contexto da nova política do imperialismo norte-americano, buscaram dar uma cobertura de legalidade à ação, acusando Zelaya de diversos “crimes” e o destituindo “constitucionalmente”: foi o próprio Congresso que nomeou o novo “presidente civil”, Roberto Micheletti, pertencente ao mesmo Partido Liberal de Zelaya. O mais importante é que se apresentaram como uma “transição” para uma saída institucional no marco da democracia burguesa: desde o início propuseram a saída das eleições presidenciais de novembro, e a entrega do poder ao vencedor. Assim, queriam afirmar, frente às instituições internacionais, que não queriam instalar um regime semelhante ao do Chile com Pinochet ou ao dos militares argentinos de 1976, que esmagaram a população e tentaram manter-se por longos anos. O isolamento internacional dos golpistas Esta situação particular dos golpistas hondurenhos, devido à contradição do golpe com a nova tática do imperialismo expressada por Obama, que quer mostrar-se como o homem da “paz”, do diálogo, transformou o golpe num problema político, porque desautorizam a “nova cara” que o imperialismo quer mostrar. Por isso, apesar de apresentar-se como “institucional e legalista”, o golpe não foi apoiado por nenhuma das instituições dominadas pelo imperialismo como a OEA, a ONU ou a União Europeia. É claro que a embaixada norte-americana estimulou as dissidências contra Manuel Zelaya, antes do golpe, mas sua estratégia fundamental foi sempre o desgaste eleitoral e a chantagem. No entanto, quando a extrema-direita hondurenha, confiando no apoio dos EUA, executou o golpe de Estado, o governo de Obama não lhe deu nenhum apoio aberto. Essa situação contraditória desembocou no isolamento internacional dos golpistas, apesar de contar com o apoio de praticamente toda a elite hondurenha. Quando se compara o papel do imperialismo nas décadas anteriores, seu apoio total aos golpes de Pinochet e Videla e a seus regimes genocidas, deve-se explicar as diferenças nessa atitude. A não ser pela mudança de tática do imperialismo, não se pode entender o não reconhecimento do governo Micheletti pelo conjunto dos organismos imperialistas até que não se conseguisse um acordo. Inclusive houve uma pressão, por parte da OEA e do governo norte-americano, embora limitada, com algumas penalidades e suspensões de vistos a golpistas e seus parentes assim como a pressão e a exigência de um acordo firmado entre as duas partes para reconhecer o processo eleitoral. A intransigência do governo golpista à restituição de Zelaya 8 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 obrigou o governo de Obama a enviar sua própria delegação para impor um acordo, que finalmente conseguiu que a restituição de Zelaya fosse decidida pelo parlamento que o destituiu. Obviamente, existe um acordo de fundo para dar uma saída eleitoral à situação e para não castigar os golpistas. Ou seja, uma solução estável em base a um acordo, como demonstra a proposta de “governo de unidade nacional” e de aceitação do resultado eleitoral. Mas esta atitude, repetimos, é bastante distinta à que o imperialismo teve frente aos golpes nas décadas de 60, 70 e 80. Até mesmo um porta-voz dos golpistas chegou a declarar publicamente num momento de mais atrito que o governo de Obama estava “abandonando seus aliados e favorecendo os chavistas e... comunistas”. Uma resistência heroica evitou a rápida consolidação do golpe Em resposta ao golpe, foi produzido um dos maiores pocessos de luta da história de Honduras. Já após a primeira semana, a indignação foi dando lugar à ação e as massas entraram na luta. No dia 5 de julho passado, dezenas de milhares de pessoas marcharam até o aeroporto para garantir a volta de Zelaya. Outras dezenas de milhares foram impedidas de chegar e ficaram paradas nas estradas de todo o país. O povo hondurenho esteve a ponto de tomar o aeroporto e infligir uma duríssima derrota aos golpistas, mas havia sido dissuadido pelo próprio Zelaya de que o protesto devia ser “pacífico” e o avião que trazia o presidente deposto não pôde finalmente aterrisar. Em 22 de julho teve início uma greve de 48 horas com cerca de 80% de adesão, acompanhada por dezenas de bloqueios de estradas em todo o país, conseguindo paralisar os portos e os aeroportos. Apenas a grande greve bananeira de 1954 havia tido uma ação tão generalizada e unificada de todas as forças sindicais na história do país, acompanhada de mobilizações de rua. As marchas que paralisavam as principais vias de comunicação e as próprias cidades, incluindo a capital, Tegucigalpa, foram uma constante. Novamente foram maciças as mobilizações de 15 de setembro, mas temos que destacar as realizadas com a volta repentina de Zelaya para se refugiar na embaixada brasileira. Naqueles primeiros dias, as massas tomaram os bairros populares, principalmente à noite, enfrentando as forças repressoras com barricadas. Estávamos ante a própria radicalização que o imperialismo queria evitar e que abria a possibilidade de derrubar o golpe pela ação direta. O imperialismo e Zelaya puseram-se de acordo para frear este ascenso, redobrando o esforço de negociação. O Plano Arias O governo de Obama buscou uma velha figura de sua confiança: Oscar Arias, presidente da Costa Rica, diretamente designado como “mediador” pelo Departamento de Estado dos EUA. Com esse “mandato”, Arias tenta propor uma saída frente à desestabilização do país e à possibilidade de que atingisse toda a região, e ao temor de que a situação levasse a uma derrubada do governo golpista pela ação radicalizada das massas. O Plano Arias tinha o objetivo de fechar o conflito aberto pelo golpe por meio de um acordo entre os golpistas e Zelaya. O Plano Arias incluía a restituição de Zelaya à presidência de Honduras. Mas os outros pontos eram Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 9 Aññno 2009 categoricamente contra os interesses do movimento de resistência: evitar a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, garantir a impunidade aos golpistas e preservar todas as corruptas instituições que deram o golpe (Congresso, Tribunal Supremo, Forças Armadas, Igreja e um longo etc.). É importante destacar que o diálogo de Guaymuras, que se concretizou no Acordo de Tegucigalpa, é muito semelhante ao Plano Arias e, portanto, tem um claro perfil de acordo imposto pelo imperialismo e que contou com um amplo apoio de toda a OEA, incluídos os países da Alba. Zelaya apoia a negociação... Já na rodada de negociações realizadas na Costa Rica, a delegação de Zelaya aceitou todos os pontos do plano, abandonando bandeiras fundamentais levantadas pela Frente Nacional Contra o Golpe de Estado, como a convocação a uma Assembleia Constituinte. Aceitava, inclusive, a impunidade aos golpistas e a preservação da cúpula militar. Essa posição de Zelaya entregava na mesa de negociações os motivos de fundo pelos quais ocorreu a resistência popular. Pese a isso, as conversações iniciais fracassaram devido à oposição do setor mais direitista dos golpistas, que não aceitava de nenhuma forma o retorno de Zelaya, temendo que isto fosse visto pelas massas como um triunfo da mobilização popular e pelo medo de que, encorajadas por esse retorno, exigissem a cabeça da cúpula das Forças Armadas e dos golpistas civis. …e freia a resistência. A partir de seu apoio ao Plano Arias, Zelaya tentou convencer o movimento de resistência a aceitá-lo e aceitar também um “diálogo pacífico” com os militares e os golpistas civis. Um exemplo disto foi seu chamado à população para que fosse recebê-lo na fronteira com a Nicarágua em 24 de julho, durante a greve nacional de 48 horas, para recebê-lo e forçar seu retorno ao país. A maioria da direção da Frente Contra o Golpe apoiou aquele chamado e isso fez com que a esta ficasse sem vários de seus dirigentes nas principais cidades do país. Zelaya fez os manifestantes acreditarem que poderia convencer a cúpula militar a deixá-lo entrar pacificamente e, chegados à fronteira, viram Zelaya apelando pateticamente ao “patriotismo da cúpula militar”. Como, obviamente, os generais não o fizeram e organizaram a repressão em toda a região, Zelaya simplesmente voltou a sair, deixando milhares de pessoas presas numa armadilha. Assim, pôs em perigo a vida e a liberdade de milhares de ativistas e de muitos dirigentes da Frente de Resistência contra o Golpe, o que representava uma ameaça real de perda de dirigentes do movimento antigolpista. A orientação de Zelaya teve uma lógica de ferro: a necessidade de manter, a qualquer custo, o controle do movimento. Uma greve geral põe como centro a ação direta e faz a classe operária aparecer como direção e cabeça do movimento, o que ameaçava sua hegemonia. Para Zelaya, era fundamental que sua figura e suas iniciativas se impusessem ao movimento de massas. Só isso pode explicar que, nesse episódio, ele tentasse seu ingresso pela fronteira, convocando o movimento a trasladar-se até ali, em meio à greve mais contundente das últimas décadas. Ao mesmo tempo, buscava evitar 10 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 que a greve e os bloqueios de estradas desbordassem sua estratégia de “saída pacífica” e ameaçassem derrubar o regime golpista com a luta, abrindo o questionamento ao próprio Estado burguês. O papel dos chamados governos “anti-imperialistas” Apesar de toda a retórica dos membros da Alba, em especial de Chávez, não houve nenhuma “brigada de solidariedade” com Honduras nem, muito menos, ações ofensivas do movimento de massas em seus países, contentandose com resoluções no limite da OEA e da Unasul. As escassas mobilizações convocadas por Chávez na Venezuela ou o ato que realizou em El Salvador três meses depois do golpe não escondem o esforço que os governos da Alba realizaram para dar o protagonismo do processo às instituições do imperialismo e a seus principais porta-vozes, como Lula ante a ONU. Mas o que chama mais a atenção é a atitude traidora dos vizinhos “progressistas” centro-americanos. O exemplo mais vergonhoso veio do governo Funes, da FMLN, em El Salvador: depois de fechar por 48 horas as fronteiras com Honduras, recebeu fortes críticas das associações patronais e, imediatamente, capitulou em toda a linha e passou a permitir o livre trânsito das mercadorias produzidas em, e com destino a, Honduras. O presidente Funes prosseguiu sua política de abandono da resistência hondurenha e de legitimação dos golpistas: em 28 de julho, em plena luta da resistência, realizou uma reunião com representantes dos empresários golpistas hondurenhos e comprometeu-se a não prejudicar seus interesses e investimentos em El Salvador. Isso serviu para que a oligarquia golpista de Honduras pudesse afirmar que não estavam “tão isolados”, em especial na América Central. Afinal, até um governo de “esquerda” os estava recebendo. Funes justificou essa traição declarando “não poder negar-se” a receber empresários interessados em investir em seu país. Para ele, não importava a trajetória de massacres em que estiveram implicados esses oligarcas golpistas, inclusive na guerra dos anos 90 em El Salvador; para Funes, o fundamental é garantir os bons negócios de sua burguesia. Por seu lado, Daniel Ortega esteve formalmente contra o golpe: apareceu ao lado de Zelaya, permitiu que usasse a Nicarágua como refúgio e disse algumas bravatas contra os golpistas. Mas tampouco tomou alguma atitude séria para afetar os interesses da oligarquia hondurenha na Nicarágua. Ele também defendeu os interesses dos empresários nicaragüenses, que têm laços estreitos com a burguesia golpista de Honduras. Tampouco teve dúvida em comprometer-se com as manobras militares conjuntas latino-americanas (Panamax 2009) com os Estados Unidos e a Colômbia, nas quais se chegou a anunciar a participação dos militares golpistas hondurenhos (afinal, não puderam participar pelo não reconhecimento do governo dos EUA e da OEA). Essas manobras têm o objetivo de treinar a “defesa do canal do Panamá”, isto é, a defesa da dominação imperialista na região. Incluem, ademais, as Forças Armadas de El Salvador, Brasil, Argentina e Equador (do “bolivariano” Rafael Correa). Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 11 Aññno 2009 O erro da direção da Frente O apoio à política de negociação de Zelaya, inclusive à improvisada marcha à fronteira, mostrou o erro das principais direções da Frente de Resistência, de seguir acriticamente sua orientação política e decisões pessoais. Apesar da Frente não ter apoiado o acordo, não criticou Zelaya por apoiar publicamente o reacionário Plano Arias, nem tampouco denunciou sua política de chamar uma “mobilização pacífica”, sem nenhuma preparação para resistir à repressão militar, e que esta alimentava ilusões no caráter supostamente “patriótico e negociador” da cúpula militar e deixava as massas à mercê dos esbirros golpistas. Essa contradição esteve presente todo o tempo, como se viu graficamente no caso da marcha ao aeroporto, na mobilização à fronteira e, sobretudo pela participação de um dirigente da Frente nas primeiras semanas da negociação com os golpistas na capital hondurenha. Há poucos anos, a reação das massas derrotou os gorilas venezuelanos, e mostrou que, sem uma mobilização decidida e disposta ao enfrentamento com as forças golpistas, não se pode derrotá-los. Chegou-se, assim, a uma situação em que, por um lado os golpistas não podiam levar a cabo uma repressão genocida e deviam manter as formas institucionais pelo seu isolamento internacional; mas, por outro lado, as forças da resistência estavam amarradas pela orientação zelayista e pela falta de uma direção consequente. Era uma encruzilhada onde, à medida que passava o tempo, permitia a manutenção das rédeas do Estado nas mãos dos golpitas e a utilização da ânsia natural da população em retomar a “vida normal” para debilitar a resistência (por exemplo, incentivando a pressão da população a sobre os professores para terminar sua greve). A política conciliadora impediu que a resistência derrotasse o golpe A política de confiança nas negociações como via central para tirar os golpistas impediu que a resistência derrotasse o golpe. Era necessária uma disposição à ação radical, e ao enfrentamento insurrecional com a ditadura, algo que Zelaya estava e está contra fazer. Por isso, a resistência não conseguiu derrubar Micheletti quando teve condições para isso, devido à política da direção da Frente, que foi a reboque da política de Zelaya. E esse obstáculo tornou-se absoluto quando Zelaya retorna e novamente se abre a negociação para o Confronto na capital hondurenha (13/08/09) Acordo de Tegucigalpa. O Acordo de Tegucigalpa: consuma-se a traição de Zelaya Quando Zelaya entrou em Tegucigalpa e se instalou na embaixada brasileira, houve uma retomada muito forte da mobilização, mas em seguida Mel deu um novo respiro aos golpistas aceitando negociar com eles. Conclamou a mobilizações pacíficas, e sob pressão do governo brasileiro e de Obama tratou de desestimulá-las e acalmar os ativistas ao chamar permanentemente o “diálogo”. 12 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 A direção da Frente aceitou as indicações de Zelaya para que as mobilizações fossem pacíficas. Com isso, após mais de um mês de negociações em Honduras, as ações diminuíram sensivelmente em massificação e radicalização. Os atos de setores e de ativistas em frente à embaixada e mais recentemente em frente ao Congresso, apesar de sua combatividade, não impediram o funcionamento do país. Já não se produziam os bloqueios de estradas e as greves foram reduzidas. Esse foi o momento escolhido pelo enviado dos EUA, Thomas Shanon, para impor às duas partes o Acordo de Tegucigalpa. Nesse acordo, Zelya teria uma presidência totalmente recortada, governando com os golpistas e cedendo até a direção das Forças Armadas, designada ao presidente. Este acordo, ademais, não implicava uma restituição direta de Zelaya, a um mês do processo eleitoral, mas deixava a decisão ao próprio parlamento que aceitou sua destituição ao produzir-se o golpe de Estado. A assinatura do Acordo conseguiu o objetivo dos golpistas de ir rompendo com o isolamento internacional. Os golpistas, nesse marco, após contar com a colaboração de Zelaya para a desmobilização das massas, decidiu continuar adiando sua restituição para deixar claro que esta não teria efeito e com isso levar ao desprestígio de Mel Zelaya. A responsabilidade da direção da Frente Depois de cinco meses, a repressão dos golpistas e a política negociadora de Zelaya, além da atitude pacifista da Frente, criaram um ambiente de compasso de espera, que fez o movimento antigolpista retroceder, em sua força e em seus métodos de luta. Pode ser que, frente à recusa sequer de reintegrar Zelaya e a provável indignação popular, isso mude, mas já encontrará uma situação menos favorável para retomar a luta devido ao período de desmobilização que só favoreceu à oligarquia e aos golpistas. A Frente de Resistência ao Golpe de Estado tinha a obrigação de denunciar os acordos e romper com Zelaya, mas preferiu acompanhar sua política, embora dizendo que continuará “lutando nas ruas pela convocação de uma Assembleia Constituinte”. Emitiu um comunicado que, de fato, apoia o Acordo de Tegucigalpa e realiza algumas exigências ao Congresso golpista. Desta forma, lamentavelmente, a Frente legitimou o acordo, encobrindo a traição de Zelaya e, ao mesmo tempo, perdeu a oportunidade de surgir como uma alternativa de direção para a luta do conjunto do povo hondurenho. Adiou-se mais uma vez a restituição com as eleições “virando a esquina” Enquanto escrevíamos este texto, houve proclamações por parte da direção da Frente, afirmando que o acordo é letra morta devido à postergação da restituição de Zelaya. Inclusive levantaram novamente a exigência de Assembleia Constituinte e o rechaço às eleições de 29 de novembro por se dar sob o governo golpista. Mas, novamente, há uma declaração de apoio a Zelaya, por este haver considerado rasgado o acordo. Sabemos que foram as bases que exigiram a denúncia das eleições e que se desconhecesse o acordo, no entanto, a direção da Frente incluiu o apoio a Zelaya sem denunciar que a postura atual do presidente deposto não muda o fato de que firmou o documento aceitando os pontos mais importantes do Plano Arias e permitiu Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 13 Aññno 2009 que os golpistas manobrassem até perto das eleições, apenas com a promessa de uma possível restituição via Congresso, o que deixou a resistência muito debilitada. As eleições dos golpistas e as tarefas da esquerda da Frente Foi anunciada a retirada da candidatura independente encabeçada por Carlos H. Reyes das eleições, assim como o chamamento da Frente a que todas as candidaturas que apoiaram a resistência se retirem. A dezesseis dias das eleições, os candidatos da UD ainda não se haviam pronunciado, mas mesmo que acabassem se retirando, continuariam beneficiando o regime golpista e seu processo eleitoral. Mesmo que o presidente deposto pelo golpe fosse restituído nos últimos dias prévios aos comícios, esse fato já não pode legitimar uma eleição produzida sob um regime golpista, nos termos do Acordo de Tegucigalpa, que pretende enterrar a luta do povo hondurenho contra os golpistas, a oligarquia e por uma Assembleia Constituinte que rompa com o imperialismo. O governo de Obama esperava que, com o Acordo de Tegucigalpa, a instabilidade em Honduras terminasse e se chegasse às eleições sem problemas. Os golpistas, uma vez mais, não lhe facilitaram a tarefa; vendo-se cada vez mais fortes, com a colaboração de Zelaya, esperam que as eleições sejam reconhecidas sem ceder o mais mínimo. A assinatura do Acordo por parte de Zelaya, aceitando que a restituição fosse decidida pelo parlamento, permitiu ao governo de Obama dizer que pode aceitar o resultado eleitoral e seguramente declarará que o novo governo restabelecerá a legalidade. Apesar do forte debilitamento das massas e da confusão provocada pela manutenção do apoio da direção da Frente a Zelaya, é muito possível que se volte a produzir uma forte mobilização popular na luta contra estas eleições, pois o povo hondurenho já demonstrou durante muitos meses que é capaz de voltar a levantar-se e enfrentar o regime golpista. Fica uma tarefa pendente que, se avançar, pode ser a parte positiva de todo esse processo, em relação à organização dos trabalhadores e do povo de Honduras. O desenvolvimento de uma direção alternativa de classe baseada nos setores da esquerda da resistência que estão defendendo uma política independente de Zelaya e defendiam a radicalização da luta até impor a derrota ao golpe pelas massas. Neste sentido, vemos a publicação do texto de Tomás Andino como o início de uma discussão muito necessária que se deve abrir não somente entre os lutadores hondurenhos, mas também entre todos os que participaram e apoiam a resistência contra esse golpe, na América Latina e em todo o mundo. A luta contra as eleições, contra o governo vencedor (se esta eleição fraudulenta for consumada), e, portanto, a luta pelo seu não reconhecimento, serão as tarefas que terão o povo hondurenho, latino-americano e mundial nos próximos meses. 14 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 Proposta para avançcar até uma estratégia revolucionária ´ O Diálogo Guaymuras, a estratégia do presidente Mel Zelaya e a Resistência Tomás Andino Mencía Deputado pelo partido UD ao Congresso Nacional - Honduras Nos últimos dias temos sido testemunhas do “vai e vem” entre as Comissões de Mel e Micheletti no marco do Diálogo Guaymuras. Qualquer um que enxergue dois dedos à frente percebe que existe una tática protelatória por parte dos golpistas para ganhar tempo, ante a qual o Presidente Mel esmerase em continuar em tal “diálogo” com paciência franciscana. Enquanto isso, os golpistas avançam em sua campanha eleitoral e a maioria da liderança da Resistência continua centrando suas expectativas em que algo positivo surgirá desse diálogo. Minha tese é que o problema não reside apenas na tática protelatória dos golpistas, mas que, principalmente, o Acordo de San José, apresentado como a grande panacéia para resolver a crise atual, é em si mesmo uma armadilha do Departamento de Estado norte-americano para levar a cabo os objetivos do Golpe de Estado e que, portanto, Mel deveria retirar-se do mesmo e a Resistência não deveria manter suas esperanças nele. Os pontos de vista que exponho a seguir foram apresentados verbalmente em inumeráveis ocasiões no fórum apropriado da direção da Frente Nacional de Resistência, sem que houvesse una retificação do rumo atual. Isso me obriga a apresentá-los agora por escrito. Tradução Marcos Margarido O Acordo de San José e a estratégia imperialista Os objetivos e os beneficiários do Golpe Para fazer uma avaliação objetiva da estratégia norte-americana, devemos recordar primeiro quais foram os objetivos do Golpe: • Impedir que o Presidente Mel Zelaya estimulasse a mobilização do povo contra a oligarquia empresarial. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 15 Aññno 2009 • Frear a luta pela Assembleia Nacional Constituinte. • Cortar o vínculo internacional de Honduras com a Alba. • Conservar Honduras como plataforma militar norte-americana frente a governos pró-Alba na América Central e no Caribe. Do anterior deduz-se, em primeiro lugar, que os beneficiários mais imediatos do Golpe foram os empresários e a classe política vinculada a eles, pois conservam inalterados seus privilégios de classe e sua forma de dominação política baseada no bipartidarismo tradicional. O outro grande ganhador do Golpe foi o imperialismo norte-americano, do ponto de vista geoestratégico. Recordemos que a sede do Comando Sul saiu do Panamá e que a única base militar que os norte-americanos têm em solo centro-americano é a base aérea de Palmerola; nessas condições, o império não pode dar-se ao luxo de perder Honduras ante o avanço da Alba na Nicarágua e un governo da FMLN em El Salvador. Por isso, não é casual que distintas agências de Estado norte-americanas alentaram e promoveram o Golpe de Estado em Honduras, coincidentes ou afinados com a ultradireita gusana1 de Miami e da Venezuela. Agora fingem estar “contra”, mas é claro que as medidas tomadas para “penalizar” os golpistas são tão tímidas que é evidente que só se trata de poses teatrais para aparentar o que não são. A oligarquia e a cúpula militar hondurenha dificilmente teriam assumido tal aventura, nem teriam se entrincheirado como fizeram frente à avalanche diplomática internacional, se não tivessem contado com aprovação e apoio destes setores chaves do império norte-americano. Portanto, o Golpe de Estado em Honduras não é apenas produto do desespero da oligarquia ultramontana hondurenha que o executou, mas forma parte de uma conspiração internacional inspirada e promovida pelo imperialismo norte-americano, em linha com as fracassadas intentonas golpistas na Venezuela (2002), Bolívia (2008) e Guatemala (2009). Em outras palavras, o governo norte-americano não é aliado do povo hondurenho contra o Golpe, mas um de seus autores intelectuais. O Plano Arias ou Acordo de San José Como é de domínio público, o avião no qual o Presidente Zelaya foi sequestrado fez uma aterrisagem na base militar norte-americana de Palmerola para se abastecer em sua viajem à Costa Rica. Depois, ao chegar a San José, foi recebido pessoalmente pelo Presidente Oscar Arias, marionete dos norte-americanos na América Central. “Casualmente” foi este último quem apareceu com o chamado Plano Arias para a reconciliação entre as partes, elaborado não por ele, mas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Tantas “casualidades” indicam uma realidade inquestionável: Que os “norte-americanos” estão por trás do Plano Arias ou Acordo de San José desde o princípio. Que diz o Plano Arias? Em sua versão definitiva, este projeto de pacto político promove a restituição do Presidente e a reconciliação dos golpistas com o “melismo”2, mediante: • A conformação de um Governo de Unidade entre funcionários de Mel e dos golpistas, tirados dos cinco partidos políticos; 16 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Gusanos: cubanos emigrados inimigos da Revolução Cubana (NT). 2 Melismo: partidários de Mel Zelaya (NT). Añno 2009 • A garantia de eleições com a participação de todos os setores um mês antes da data preliminar de 29 de novembro deste ano; • A renúncia a promover uma Assembleia Constituinte ou uma consulta popular com esse fim; • Anistia pelos delitos políticos cometidos; • Remover Mel do comando das Forças Armadas um mês antes das eleições; • Retornar as instituições do Estado à sua situação antes do Golpe de 28 de junho; isto é, Mel voltaria à Presidência e Micheletti ao Congresso. Assim, Mel retomaria uma presidência sumamente limitado ou sem poder para impulsionar a Assembleia Constituinte, nem poderia tomar nenhuma outra iniciativa presidencial de peso; ademais perderia o controle sobre as Forças Armadas e teria a ameaça da Procuradoria Geral e da Corte Suprema, que já havia ordenado sua captura, intactas; Micheletti retomaria o poder do Congresso Nacional e além disso teria gente de sua confiança no Poder Executivo; os golpistas já “queimados” teriam garantidos um substituto com as eleições; e ninguém seria denunciado por motivos políticos, ao menos em território nacional.3 Isto é, se o Acordo de San José for firmado, contrário ao que nos foi feito acreditar, o império conseguiria seus objetivos com o Golpe de Estado e a burguesia sairia com as mesmas ou com maiores fatias de poder do que tinha antes do golpe. O papel cúmplice da OEA Neste jogo de xadrez político internacional, a OEA também está jogando seu papel a favor da estratégia norte-americana. Nos primeiros dias do golpe, teve uma reação consequente com a Carta Democrática que lhe serve de base jurídica. Exigiu, então, a restituição imediata e incondicional do Presidente Zelaya ao cargo. E em sua primeira visita, o Secretário Geral da OEA, José Miguel Insulza, tratou Micheletti e sua quadrilha como o que são: delinquentes políticos. Deu-lhes a seguinte mensagem: “Ou deixam o poder ou os desconhecemos”. Mas, à medida que o Departamento de Estado norte-americano foi exercendo sua liderança a favor do Plano Arias e da negociação, a OEA prendeu-se totalmente a este e agora parece dizer junto aos norte-americanos: “Sentem-se para negociar e ponham-se de acordo para que os reconheçamos”. Esta mudança implica uma violação da Resolução da Assembleia Geral da OEA por parte de Insulza, que só se explica pelo peso da representação dos Estados Unidos nesse organismo. Novamente, repete-se a validez da célebre frase de Che Guevara quando qualificou a OEA como “Ministério das Relações exteriores do Imperialismo”. O Diálogo Guaymuras e a negociação O Acordo de San José implica em uma negociação. Negociar em si não é incorreto. O incorreto é submeter os objetivos da luta direta nas ruas, com muitas possibilidades de êxito, a uma negociação na qual só há possibilidades de perder. Isso é claramente inconveniente para a Resistência, mas é o que sucede com o chamado Diálogo Guaymuras. 3 Embora o ponto da Anistia tenha sido eliminado do acordo preliminar por ambas as comissões, o certo é que nada impede legalmente que o Congresso Nacional a outorgue aos militares se essa for sua vontade. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 17 Aññno 2009 Em primeiro lugar, aceitar negociar com golpistas é um mal precedente. Em nome de que, é válido que um Presidente eleito democraticamente tenha que negociar quotas de poder com bandidos políticos como Micheletti e Romeo Vásquez, que usurparam-no à força? O mais triste é que aqueles que pressionam por isso são os que dizem defender a democracia nas Américas (a OEA) e no mundo (os norte-americanos). Agora, qualquer pilantra poderá derrubar um governo democrático, com a certeza de que cedo ou tarde terão que negociar com ele. Em segundo lugar, não se negocia com uma faca no pescoço. Enquanto as comissões estão reunidas, a repressão contra a resistência é mantida, e, embora o Decreto de Estado de Sítio tenha sido revogado e a Rádio Globo e o Canal 36 sejam reabertos sob ameaça, continua o assassinato de ativistas da Resistência, há dezenas de presos políticos nas prisões da ditadura, e continuam a militarização e a tortura eletrônica na Embaixada do Brasil. Em terceiro lugar, a lógica de toda negociação para se chegar a um acordo é que as partes devem ceder algo. Se o Acordo de San José, por si próprio, é uma base de negociação desvantajosa, o resultado final só pode ser pior para a causa da Resistência. Por exemplo, no ponto central da restituição do presidente, o acordo de San José diz que a decisão cabe ao Congresso Nacional, mas os golpistas pressionaram para que fosse a Corte Suprema de Justiça, e finalmente a Comissão de Mel recuou, aceitando que fosse “o Congresso em consulta à Corte Suprema de Justiça”, arriscando-se a um resultado negativo e adiando as decisões. Em quarto lugar, não há transparência no que se negocia, porque as propostas nas negociações não são submetidas à aprovação da base da Resistência; na realidade são secretas. A base fica ao par delas pela imprensa quando já foram apresentadas. Não há maneira de reagir antes. Tudo resulta ser uma imposição. Em quinto lugar, não há nada que impeça os golpistas de apresentar propostas absurdas para manter sua estratégia de dilatar o tempo da negociação. A OEA, que supostamente é garantia do diálogo, faz vista grossa frente a essa descarada tática dilatória, alegando que eles não vão intervir porque é un “assunto entre hondurenhos”. Dessa forma, os golpistas ganham tempo à medida que nos aproximamos da data das eleições e a intranquilidade cinde a base da Frente de Resistência. Em sexto lugar, e este talvez seja o pior aspecto, é que o processo de negociação contribui para a desmobilização ou para desviar a mobilização da Resistência do que deveria ser seu objetivo central. Na atualidade o eixo da luta já não é a rua mas a mesa de negociação. Enquanto o Diálogo está vigente, a luta se faz, não para tirar o governo de Micheletti, mas para fortalecer a posição política da Comissão Negociadora do presidente Mel. Ademais, o diálogo tem um efeito psicológico real na base; nossos companheiros se perguntam: “para que vamos expor nossa segurança se ao final sairão acordos no diálogo; é melhor esperar”. O Diálogo está cumprindo assim o objetivo de desestimular a mobilização social. Quem se mostra muito otimista sobre este processo argumenta que a restituição do presidente poderá mudar as coisas “porque uma vez no poder”, 18 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 dizem, “Mel terá possibilidades distintas das que tem agora”. É uma ilusão! Se o Presidente for restituído por essa via, não me cabe a menor dúvida de que os golpistas, que têm as armas e os meios de comunicação à sua disposição, poderão impor suas condições ao presidente e poderão tê-lo onde e quando quiserem, inclusive na prisão (recordemos que há uma “ordem de captura” emitida pela Corte Suprema), para se assegurar de que estará incomunicável e que suas ordens não serão conhecidas, cumpridas ou sejam obstaculizadas. Se isso é assim, que vantagem teria a Resistência de ter um presidente prisioneiro em seu cargo? Mesmo com todas as desvantagens assinaladas, o presidente mantém-se na negociação para chegar à assinatura do Acordo de San José, confiando na bondade dos organismos internacionais e no governo norte-americano, autor intelectual do golpe. Nada mais equivocado. Pior ainda, o presidente tem uma estratégia suicida de ceder em todos os pontos (governo de integração com os golpistas, renúncia à Constituinte, aceitar as eleições, etc.) sabendo que, se a restituição ocorrer, ele teria que cumprir todas as condições que forem aceitas, o que a meu ver é indigno. Tudo indica que o presidente busca a restituição a todo custo - embora seja apenas simbólica - porque “o importante é reverter o golpe”. Lamento discrepar do senhor presidente, mas devo dizer que uma restituição assim é inservível para o povo e, em troca, é útil para legitimar as eleições dos golpistas que, afinal de contas, são seu objetivo principal. Conseguir uma restituição desta forma não significaria uma reversão do golpe, não seria nenhum triunfo para o povo - porque nosso inimigo alcançaria seu propósito e nós não - mas seria uma espécie de “normalização do golpe”, ante cujas consequências negativas já não teríamos a mesma solidariedade internacional porque esta reconheceria o governo golpista “legalizado” por obra e graças a este acordo. Por conseguinte, um processo desse tipo não poderia constituir nenhum modelo digno de ser imitado por nenhum país do mundo, mas um bom exemplo de como não se deve “solucionar” um Golpe de Estado. Vale a pena que o presidente e a Resistência mantenhamos essa estratégia? A Frente e a estratégia da resistência pacífica Frente ao panorama desolador da negociação e do Acordo de San José, há uma alternativa: a luta pela derrubada da ditadura com as forças da Resistência. Parece tão difícil, mas é possível consegui-lo, e o primeiro passo para isso é corrigir nossos erros. A Resistência é un movimento social colossal. Nunca ocorreu em Honduras algo igual. Nem sequer a greve de 1954 foi semelhante. Milhões de pessoas saíram às ruas dirigidas pela Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado, a qual propôs os seguintes objetivos: 1) O retorno da ordem constitucional, 2) a restituição de Manuel Zelaya Rosales a seu cargo; e, 3) a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. É tão poderoso que os estrategistas das Forças Armadas tiveram que recorrer a tudo o que têm para contê-la. Mas, vale a pena perguntar-se: acaso pode haver restituição enquanto Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 19 Aññno 2009 Micheletti e sua quadrilha permanecerem no poder? Pode haver restituição à ordem constitucional se os mesmos golpistas continuarem nas instituições chaves como o Congresso, a Corte Suprema, etc.? Poderá haver convocação a uma Constituinte se os golpistas atuais ou seus sucessores, que surgirem da farsa eleitoral de novembro, permanecerem? A experiência demonstrou que sem a queda do regime golpista é impossível uma restituição digna e útil do presidente, e muito menos será possível a convocação de uma Assembleia Constituinte como o povo espera. Então a pergunta é obrigatória: se a Resistência teve tanta força social, como é que em três meses e meio de luta não conseguimos a queda do governo usurpador de Micheletti e Romeo Vásquez? A queda do governo golpista deve ser o primeiro objetivo e o centro da estratégia A resposta a essa pergunta não é simples. Após a ruptura de todos os obstáculos ideológicos e políticos que mantinham o povo na obscuridade, o atual regime só se sustenta pela força das armas. O enorme dispositivo militar mostra o que nós enfrentamos. Mas todo o povo, liberado de suas amarras, teve que enfrentar o mesmo desafio. Em geral, não são as armas, mas a disposição ao sacrifício de um povo que leva à vitória das revoluções. Não há exército que possa contra um povo completamente levantado, que multiplica em dezenas de milhares as frentes de luta, em cada aldeia, bairro, esquina e casa. Assim se sucedeu em Cuba e na Nicarágua. É a lei de toda revolução. Agora, se bem que não resulta fácil organizar algo assim, podemos dizer que em Honduras estão dadas as condições para fazê-lo. O povo quer e é a maioria. É questão de propô-la. Minha tese é que este governo não caiu porque a condução da Frente Nacional contra o Golpe de Estado não propôs o objetivo de derrotá-lo. Por incrível que pareça, a direção da Frente evitou avançar à revolução. Desde o princípio, a Frente apostou que Mel seria restituído, não por uma insurreição popular verdadeira, mas pela ação da diplomacia internacional, encabeçada pela OEA e os Estados Unidos. A frente assumiu que seu papel neste esquema é pôr a mobilização de massas como uma força de pressão social a serviço da negociação do Pacto de San José, e não em função da derrubada do governo usurpador. De fato, a queda do governo não aparece como um dos três objetivos centrais da Frente, quando deveria ser o primeiro. Apenas o povo parece ter claro a ordem correta das tarefas políticas do momento, quando grita nas ruas “qual é o caminho”4. O problema da forma de luta A falta desse objetivo é traduzida, por sua vez, em problemas de estratégia: Tanto o presidente Manuel Zelaya como a direção da Frente Nacional de Resistência definiram-na como uma “resistência pacífica”, “não violenta”, que se baseia na desobediência civil e nas ações de protesto sem o uso de armas. De fato, o método invariavelmente usado nestes 115 dias de resistência foi a marcha diária. Não questiono que um movimento de massas, que não conta com recursos para derrotar o exército da oligarquia no início, utilize a tática da “resistência 20 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 4 Nas marchas diárias, os manifestantes gritavam a seguinte palavra de ordem: “Cuál es la ruta. Sacar a ese hijoeputa”. Añno 2009 pacífica”, não armada, para evitar ser massacrado. Mas já levamos três meses e meio das maiores mobilizações de nossa história, e com menos que isso já caíram vários governos em nosso país. Então algo não anda bem com essa tática. A resistência pacífica, da mesma forma que qualquer outra tática, não deve ser considerada uma forma de luta permanente e estática. Se o que se necessita é a derrubada de um regime opressor, a estratégia deve ser adequada a esse objetivo, levando em conta a correlação de forças. A uma correlação de forças favorável e uma maior disposição na consciência do povo – como sucedeu em Honduras desde 28 de junho - devem corresponder formas de luta mais duras e radicais, começando por marchas, ocupações, greves parciais, culminando com a greve geral insurrecional e as milícias populares, como as forma mais elevadas de mobilização revolucionária. Mas isso não é o que ocorreu em nosso caso porque a forma de luta continuou sendo a mesma todos os dias… durante 115 dias. Este “pacifismo radical” e estático não é casual, porque nesta estratégia se busca não entorpecer a saída negociada e não se busca a saída revolucionária. Enquanto o presidente Mel esteve no exterior, tal estratégia serviu-lhe para sustentar sua pressão diplomática para que o regime de fato negociasse o Plano Arias. Uma vez em Honduras, Mel continua alentando a mobilização da Frente Nacional de Resistência como un meio para pressionar na mesa de negociação, como o mostra seu recente chamado à luta quando o Diálogo Guaymuras ameaçava fracassar pelas posições intransigentes dos golpistas. Mas já não se trata de que a Resistência siga sendo um instrumento, mas que seja o autor da mudança. Necessidade de que a base seja escutada Isso requer uma mudança de atitude de nossa direção. Apesar de que a base exija a gritos uma mudança de estratégia, essa reivindicação chega a ouvidos surdos. E ainda se deforma esta inquietude dizendo que quem reclama essa mudança defende a luta armada, a guerrilha e coisas pelo estilo, para fazê-la aparecer como muito difícil. Para mim, as atividades de combatentes guerrilheiros isolados das massas não são úteis, mas prejudiciais porque justificam a repressão. Qualquer forma de luta não serve de nada se não conta com a participação ativa da maioria do povo. Simplesmente dizemos que a direção deve saber quando a base está disposta a avançar mais além de seus esquemas pré-concebidos. A que tipo de luta estarão dispostas? Que elas o decidam, consultemo-las! O problema é que não são escutadas e as castramos de antemão dizendo-lhes que quem se põe beligerante é um “provocador”. Quem somos os dirigentes para crer saber de tudo? Necessidade de independência e complementariedade da Frente em relação ao presidente Voltando à estratégia do presidente, pode-se entender a partir de sua realidade. Recordemos que o presidente Mel e seus acompanhantes na Embaixada do Brasil encontram-se em condições de cativeiro muito precárias; sobrevivendo dia a dia, comendo às vezes, num absoluto confinamento e Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 21 Aññno 2009 submetidos a tratamento torturante pelos corpos policiais e militares. É compreensível porque se aferra tanto à negociação, dependente dos organismos internacionais. Mas outra coisa é que a Frente aceite esta estratégia como própria. Mesmo que tenhamos objetivos comuns com o presidente, encontramo-nos em condições muito díspares, dependemos de, e nos devemos a, forças muito distintas, e por isso é necessário que a Frente mantenha una relação de independência e ao mesmo tempo de complementariedade com ele. Nem podemos exigir que faça algo mais do que pode, nem ele tampouco pode pretender que a Frente Nacional de Resistência faça algo que não esteja em nossas possibilidades ou que nos limite a não fazer algo que possamos fazer. Não é a primeira vez que as decisões do presidente, mal assessorado e com evidente desconhecimento das condições em que realizamos a luta, afetaram o movimento da Resistência, a qual, devido a sua lealdade a ele, seguiu-o incondicionalmente. Isso sucedeu quando fez o chamado a tomar o Aeroporto Toncontin em 5 de julho; ou seu chamado para que o povo fosse recebê-lo na fronteira com a Nicarágua, que conduziu milhares de companheiros a uma ratoeira; ou o chamado à “ofensiva final” em 22 de setembro para a qual não havia condições objetivas. Com essas iniciativas aventureiras e, devo dizê-lo, irresponsáveis, expôs o povo a uma maior repressão e seguidamente se produziu um declínio da mobilização social. Com muito esforço, a Resistência conseguiu recuperar-se dessas conjunturas. E agora resulta que o Presidente nos meteu em outra: o Diálogo Guaymuras. Por sorte, Juan Barahona pôde sair a tempo antes que tivesse de assinar o inaceitável. En ocasiões teremos opiniões divergentes sobre a rota a seguir nesta luta, mas para chegar a sua maioridade, a Resistência deve aprender a não se deixar impor decisões de seus aliados e a tomar as próprias, em função de sua realidade. Se o presidente for respeitoso a seu povo, deverá aceitar as decisões estratégicas que sua organização representativa estabelecer, que é a Frente Nacional de Resistência. Além disso, a direção da Frente deve escutar mais sua base, com mente aberta, e menos aos hóspedes da Embaixada do Brasil. Com certeza, necessitamos também coordenar com o presidente, porque em meio a uma luta contra a ditadura e o imperialismo é necessária a mais ampla unidade de ação. A fórmula deve ser: independência e unidade de ação naquilo em que coincidamos. Apenas se conseguirmos um equilíbrio entre essas duas tendências, poderemos avançar até o objetivo comum; se não, os erros de um arrastarão o outro ao abismo. Propostas para avançar Em base a todo o anterior, permito-me propor: Que o Presidente Manuel Zelaya: • Retire-se de imediato do Diálogo Guaymuras, justificando-o na mais que evidente falta de vontade dos golpistas em ceder o poder e no não cumprimento de condições mínimas para realizar um diálogo sem repressão nem meios de coação. 22 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Añno 2009 • Dê por terminada a gestão do Acordo de San José por não ajustar-se a uma saída justa da crise gerada pelo Golpe de Estado e exija à OEA prenderse à resolução de sua Assembleia Geral que ordena seu Secretário Geral a defesa da restituição imediata e incondicional do presidente. • Denunciar o papel sinistro e confabulado com os golpistas que joga o governo dos Estados Unidos. • Chame a recuperar uma aliança estratégica com a Alba para contribuir desde o plano internacional com a derrubada da ditadura, aproveitando sua manifesta disposição em tal sentido, expressada em sua recente cúpula na Bolívia. Que a Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado: • Denuncie o Diálogo Guaymuras como una estratégia dilatória da ditadura para ganhar tempo à espera do processo eleitoral e chame o presidente Manuel Zelaya a retirar-se do mesmo. • Denuncie o Acordo de San José como um instrumento do imperialismo norte-americano para impor uma falsa saída à crise gerada pelo Golpe de Estado, manietando o presidente Zelaya a condições inaceitáveis. • Defina em sua estratégia geral a derrubada do governo usurpador como o primeiro objetivo de nossa luta, ao redor do qual organizar toda a estratégia operativa. • Estabeleça uma estratégia de acumulação de forças progressiva para gerar condições para uma insurreição popular no médio prazo, cuja primeira meta seja conseguir a não realização da farsa eleitoral de novembro. Para isso, poderia começar a desenhar e executar ações que golpeiem a economia dos golpistas, em especial, preparando as condições para um “Paro” Cívico Nacional e para uma Greve Geral insurrecional. • Incorpore a autodefesa das mobilizações na estratégia geral da luta de rua. • Estabeleça as Mesas Comunitárias em todas as frentes locais da Resistência, como mecanismo de consulta às bases sobre o Acordo de San José, a Constituinte, as eleições e as estratégias de luta. • Dialogue com o presidente sobre a necessidade de que ele não tome iniciativas que possam comprometer a Resistência, sem que esta seja informada ou sem lhe dar a oportunidade de expressar sua opinião. Além disso, que respeite a decisão que a respeito tome a direção da Frente. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 23 Aññno 2009 Do “Novo Século Americano” de Bush à nova tática política de Obama Alejandro Iturbe Frente Obrero Socialista (FOS) - Argentina O golpe de Estado em Honduras abriu um debate na esquerda latinoamericana sobre o papel de Barack Obama nele e se o novo governo dos EUA representa ou não uma profunda mudança na tática política do imperialismo norte-americano para enfrentar a situação mundial. Vários setores, em especial alguns influenciados pelo chavismo, afirmam que, em sua essência, Obama mantém a mesma política de Bush. Recentemente foi publicado A “Doutrina Obama” ante a maior depressão da história1, que analisa as características da atual crise econômica, suas perspectivas e seu impacto na situação mundial e na política do imperialismo norte-americano. Em sua parte econômica, o material analisa com profundidade a atual crise e suas perspectivas. Neste terreno, temos vários acordos, em especial quando caracteriza a fragilidade da “recuperação” em curso. Mas estas coincidências terminam quando aborda as conseqüências da crise econômica sobre a política do imperialismo norte-americano. Tradução Marcos Margarido Um projeto neofascista? Em sua introdução, o material afirma: Governos e elites do primeiro mundo… estavam conscientes do que vinha ocorrendo enquanto faziam preparativos para impor seus interesses através de uma doutrina de guerra permanente […] É por isso que, apesar do fim da guerra fria, o gasto militar, sobretudo nos EUA, continuou crescendo até as cifras alucinantes da atualidade (…) um novo holocausto para a humanidade está sendo preparado para controlar o mundo, recolonizá-lo, destruir os avanços democráticos e impor o neofascismo a nível planetário. Nesse marco, as perspectivas para a América Latina são analisadas: O golpe militar em Honduras não pode ser visto como mais um golpe tradicional num pequeno país dos tempos da guerra fria. Precedido pela volta da 4ª Frota dos EUA para a América Latina em 2008, de um ataque militar da Colômbia a território do Equador e, simultaneamente, ao acordo de instalação de sete bases militares dos EUA 24 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Wim Dierckxsens (Holanda); Antonio Jarquin T. (Nicarágua); Reinaldo Carcanholo (Brasil); Jorge Beinstein (Argentina); Paulo Nakatani (Brasil) e Rémy Herrera (França), membros da equipe do Observatorio Internacional de la Crise. Citações em wwwobservatoriodelacrisis.org/readarticle.php?article_ id=265. Añno 2009 na Colômbia, são eventos que não podem ser desconectados um do outro; eles podem ser considerados como um ataque militar dos EUA contra “toda a América Latina”. Esses fatos devem de ser analisados não só no contexto local e regional, mas, também, dentro do contexto da estratégia global pós-guerra fria dos EUA sobre a Eurásia e o resto do mundo e no contexto da grave crise econômica atual. E conclui que o golpe de Honduras: Longe de ser um anacronismo, marca, na opinião de Rick Rozoff, “um precedente para o futuro. Assim como o Afeganistão transformou-se na principal frente de guerra durante o último ano (incluindo os sete meses de Obama), também parece haver planos de agressão militar à América Latina, relativamente isolada desses conflitos nos últimos dez anos” (Rick Rozoff, US escalates war plans in Latin America). O motivo geopolítico é a eventual ampliação da guerra às proximidades com a China e a Rússia. Isso exige uma segurança maior na oferta de petróleo e recursos naturais aos EUA. Em tempos de guerra é arriscado e inseguro o transporte pelos oceanos. Os EUA necessitam... assegurar-se dos recursos naturais... da América Latina. O perigo, na conjuntura da crise, foi que o continente estava definindo cada vez mais seu próprio rumo com a autodeterminação sobre tais recursos. Os EUA queriam dar um basta e apoiou o golpe militar no elo mais fraco do continente. Em outras palavras, para os autores, Obama não só não representou nenhuma mudança em relação à política de Bush, mas também, pressionado pelas consequências da crise econômica sobre seu país, estenderá geograficamente os conflitos bélicos e aprofundará sua metodologia de guerras, agressões e golpes. Mudanças na realidade, mudanças na tática Cremos ser uma análise profundamente equivocada. Opinamos que, em relação a Bush, Obama expressa uma grande mudança na tática política do imperialismo para enfrentar a situação mundial, devido a alterações da realidade: a derrota do projeto de Bush frente à luta do movimento de massas e os riscos de explosões sociais que a atual crise econômica implica. Trataremos de demonstrar esse equívoco e fundamentar nossas opiniões. Não porque queiramos embelezar Obama e sua política (deixamos isso a quem lhe outorgou recentemente o Premio Nobel da Paz e outros que, como Fidel Castro, saudaram esta decisão), mas porque, como marxistas, para modificar a realidade devemos compreendê-la tal qual é. Para evitar falsas discussões, não temos nenhuma dúvida de que Obama, como presidente dos EUA, defende os interesses imperialistas da mesma forma que Bush. Isto é, sua estratégia continua sendo a recolonização da maioria do planeta. Tampouco cremos que seja um pacifista que abandona a “ação militar” (basta ver sua política na guerra do Afeganistão, a manutenção da ocupação de Haiti ou seu plano de utilização das bases militares da Colômbia). Mas a derrota que o projeto de Bush sofreu no Iraque e na Venezuela, e Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 25 Aññno 2009 o curso desfavorável da situação no Afeganistão e no Oriente Médio, etc., obrigaram o imperialismo a mudar sua tática. Foi a luta das massas e as derrotas infligidas à política do imperialismo, não a “boa vontade” de Obama, que impuseram esta mudança de tática, acentuada pelos riscos da situação social derivada da pior crise econômica capitalista desde 1929. Se Obama e Bush defendem os mesmos interesses imperialistas, as condições em que devem fazê-lo são diferentes e o imperialismo necessita adaptar-se a isso. O próprio Bush já havia sido obrigado a começar este ajuste, mas o atual presidente expressa essa mudança com muito mais clareza. O Projeto para um Novo Século Americano Parece-nos necessário voltar um pouco aos objetivos do projeto defendido por Bush para entender melhor o impacto de sua derrota para o imperialismo norte-americano. O Projeto para um Novo Século Americano (PNAC em inglês) iniciou-se formalmente em 3 de junho de 1997 com sua constituição por parte de uma corrente de extrema direita do Partido Republicano2. Em sua declaração de princípios, o PNAC afirma que seu principal objetivo é manter “a liderança, os interesses e os valores americanos no mundo”, no próximo século XXI, com seus desafios e as mudanças ocorridas no mundo. Critica o governo de Bill Clinton (A política exterior e de defesa americanas estão à deriva) e também os setores conservadores republicanos tradicionais porque “não propuseram decididamente uma visão estratégica do papel da América no mundo… nem lutaram por um orçamento de defesa para manter a segurança americana e o avanço dos interesses americanos no novo século”. Mais adiante, afirma: Enquanto o século XX aproxima-se de seu fim, os EUA permanecem como a principal potência mundial. […] Estamos pondo em risco a capacidade da nação de enfrentar ameaças presentes e de lidar com desafios potencialmente maiores no futuro. […] Terão os EUA a resolução para desenvolver um novo século favorável aos interesses e princípios americanos? Como resposta, apresenta suas propostas: • Uma política exterior que, audaz e intencionalmente, promova os princípios americanos no exterior, e uma liderança nacional que aceite as responsabilidades globais dos EUA. • Aumentar significativamente os gastos com defesa… • Fortalecer nossos laços com os aliados democráticos e desafiar os regimes hostis a nossos interesses e valores... • Aceitar a responsabilidade do papel especial dos EUA em preservar e estender uma ordem internacional favorável a nossa segurança, nossa prosperidade e nossos princípios. Esta declaração ia acompanhada de uma análise completa da situação política, econômica e militar das distintas regiões do mundo e os interesses norte-americanos em cada uma delas. Assinam-na, entre outros, Jeb Bush (irmão de George W. e governador do estado da Flórida na época); Dick Cheney (futuro vice-presidente), Donald Rumsfeld (futuro secretário de Defesa) e Paul Wolfowitz (o arquiteto da política de Bush para o Iraque). 26 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 2 Em www.newamericancentury.org Añno 2009 Isto é, não se tratava de um projeto improvisado nem de uma resposta conjuntural aos atentados de 11 de setembro de 2001, mas de um projeto muito ambicioso e de alcances estratégicos para consolidar e ampliar por um século a hegemonia econômica-política-militar dos EUA no mundo. Para isso, era necessário intervir militarmente em qualquer lugar do mundo onde os interesses e os “valores” dos EUA (leia-se direito ao saque de recursos naturais, como petróleo e gás, e a extração de mais-valia) fossem questionados ou onde houvesse um “regime hostil” que ousasse desafiar essa hegemonia. Alguns analistas qualificaram este projeto como “neofascista”. Parece-nos mais exato chamá-lo de “bonapartista”, de reafirmação da hegemonia mundial e propenso ao amplo uso da “opção militar”, avançando na disposição de criar novas situações coloniais em alguns países. A guerra contra o terror e a luta contra o “eixo do mal” O governo de Bush nasceu débil: sua eleição estava questionada (teve menos votos populares que Al Gore) e os EUA viviam uma crise econômica. Embora o projeto não surgisse com os atentados de 11 de setembro, estes criaram as condições para seu respaldo pelo conjunto da burguesia norteamericana e um forte apoio popular para desenvolvê-lo em grande escala, por poder apresentá-lo como a política de “defesa” de um país que estava sendo “agredido” (75% da população apoiava a invasão do Afeganistão). A partir dos atentados, Bush incorpora dois conceitos chaves. No discurso de 21 de setembro de 2001 ao Congresso, fala, pela primeira vez, da “guerra contra o terror”, uma virtual declaração de guerra contra o regime talibã afegão, acusado de ser o centro de uma “rede terrorista mundial”3. O ataque ao Afeganistão seria só o início desta guerra: Nossa guerra contra o terror começa com o Al Qaeda, mas não termina aí. Não terminará até que cada grupo terrorista tenha sido encontrado, detido e vencido. […] Nossa resposta envolve muito mais que uma represália instantânea e golpes isolados. Os norte-americanos não devem esperar una batalha, mas uma longa campanha como jamais viram antes. […] Deste dia em diante, qualquer nação que continue dando refúgio ou apoiando o terrorismo será considerada um regime hostil pelos EUA. O rápido triunfo obtido no Afeganistão (outubro de 2001) fez com que Bush subisse um degrau e incorporasse (em 29 de janeiro de 2002) o conceito de “eixo do mal”. Isto é, aqueles países que mantinham algum grau de autonomia dos EUA. A desculpa, desta vez, não só era o “apoio aos terroristas”, mas também a posse de armas nucleares e de “destruição em massa” (ou supostas intenções de desenvolvê-las) e, por isso, representavam uma “ameaça”. Bush afirmou que o “eixo do mal” era integrado pelo Iraque, Irã e Coreia do Norte. Depois, a Líbia e a Síria foram agregadas e, em algumas declarações, representantes de seu governo também incluíram a Venezuela, Bielorrússia e até a Bolívia. Bush termina seu discurso com uma clara ameaça: “Países como estes, e seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal que se arma para ameaçar a paz mundial”. 3 Foi certamente uma ironia da história, já que a criação da organização talibã havia sido impulsionada pela própria CIA para combater a invasão soviética nesse país, na década de 1980. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 27 Aññno 2009 A próxima ação de Bush foi a invasão ao Iraque e a derrubada de Sadam Hussein (março-maio de 2003), considerado um passo prévio a um ataque ao regime iraniano dos aiatolás (com o qual tinha contas pendentes desde 1979). Embora não fossem realizados por tropas norte-americanas, consideramos que o golpe contra o governo de Hugo Chávez (12 de abril de 2002); a invasão do exército israelense ao Líbano (julho de 2006) e os reiterados ataques à Faixa de Gaza foram parte da luta contra o “eixo do mal”. Vejamos então, quais foram os resultados destas batalhas e da “guerra contra o terror”. O fracasso do golpe na Venezuela Apesar de seu primeiro e rápido triunfo na derrubada do regime talibã, a LIT-QI assinalou, desde o início, que a resistência do movimento de massas era o principal obstáculo ao projeto de Bush: “No entanto, e apesar da vitória no Afeganistão, o imperialismo não conseguiu derrotar o conjunto do movimento de massas e a reação destas exacerbou-se em vários pontos do planeta criando um quadro crescente de polarização da luta de classes”4. A primeira derrota de Bush ocorreu na Venezuela. Em 11 de abril de 2002, um golpe cívico-militar, incentivado e respaldado por seu governo, derrubou Hugo Chávez e instalou um governo presidido pelo líder burguês Pedro Carmona. No entanto, uma grande mobilização de massas, combinada com a divisão nas Forças Armadas, removeu o governo golpista e obrigou-o a restituir Chávez, como a única maneira de controlar a situação. Meses depois, houve uma nova tentativa de “quebrar” o governo de Chávez, por meio de um lock out patronal e pelos gerentes pró-imperialistas da petrolífera estatal PDVSA, mas também foi derrotado pela mobilização das massas. A partir desta derrota, Bush viu-se obrigado a mudar sua política para a Venezuela. Embora os enfrentamentos retóricos fossem mantidos, Bush deixou de apoiar a derrubada de Chávez; as empresas norte-americanas (e a própria burguesia golpista venezuelana) começaram a fazer negócios com seu governo, aumentaram fortemente seus investimentos (especialmente nas áreas de petróleo e automobilística) e passaram a apostar num futuro desgaste eleitoral de Chávez. Iraque: o Vietnã de Bush Mas foi no Iraque onde Bush apostou mais forte e jogou a sorte de seu projeto. As forças imperialistas invasoras conseguiram um rápido triunfo com a derrota do regime de Sadam Hussein. Mas essa rápida guerra de ocupação, aparentemente triunfante, transformou-se rapidamente numa guerra de liberação do povo iraquiano contra as tropas ocupantes, cada vez mais desfavorável para o imperialismo, até tornar-se “uma guerra impossível de ganhar”. Os sucessivos planos para estabilizar e controlar o país foram fracassando até chegar à decisão atual de retirar as tropas e deixar o combate ao caos em que o país se converteu a cargo um governo iraquiano e suas Forças Armadas. Existem questionamentos à comparação do resultado da guerra do Vietnã com a do Iraque. A derrota imperialista no Vietnã ficou marcada pela imagem dos helicópteros dos EUA abandonando apressadamente Saigon e muitos funcionários do governo títere do Vietnã do Sul tentando desesperadamente fugir com eles. E esta retirada levou a que o exército doe Vietnã do Norte 28 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 4 WELMOWICKI, J. Situación Mundial: meses después la cinchada se tensa. Marxismo Vivo N. 5, abril 2002. Añno 2009 derrotasse rapidamente os restos do governo títere e reunificasse o país. No Iraque, em troca, não há uma “fuga” apressada das tropas estadunidenses, mas uma saída ordenada e um deslocamento de vários milhares de homens a “superbases” no Kuwait e outros países da região. E não há um inimigo centralizado e unificado que tome o poder, mas a divisão de fato de um país caótico em três regiões autônomas, entregues à burguesia xiita no sul, à sunita no centro e à curda no norte. Um governo central seria mantido para controlar as fontes de petróleo e as Forças Armadas. Não está claro se este precário equilíbrio será mantido quando as tropas dos Estados Unidos se retirarem e, portanto, se será possível cumprir os planos e as promessas de Obama. Embora importantes, estas diferenças são secundárias, porque o imperialismo norte-americano não conseguiu nenhum dos objetivos políticos, militares e econômicos estabelecidos ao invadir o país e, por isso, retira-se claramente derrotado. Por outro lado, o impacto da derrota no Iraque é muito superior à sofrida no Vietnã. No sudeste asiático, estava em jogo essencialmente um problema político-militar, já que a região não tinha um valor econômico nem geopolítico estratégico para a dominação imperialista. Mas o Iraque, e o Oriente Médio de conjunto, têm uma importância econômica e geopolítica estratégica qualitativamente superior por suas riquezas em petróleo e gás. Por isso, a derrota é muito mais dura e se transformou em um ponto de inflexão do curso da “guerra contra o terror” e de todo o projeto de Bush, voltando-se como um bumerangue sobre os EUA, pois gerou a derrota de Bush nas eleições legislativas de novembro de 2006 e a dos republicanos nas presidenciais, em novembro de 2008. Frente à situação no Iraque e o recrudescimento da guerra no Afeganistão, o imperialismo tentou dar um golpe de força para reverter a situação: a invasão israelense ao Líbano, em julho de 2008. Com o pretexto de recuperar um soldado israelense capturado, as Forças Armadas israelenses tentaram destruir o Hezbollah. Mas, frente à heroica resistência das massas libanesas, este objetivo terminou numa dura derrota para o então primeiro ministro israelense, Ehud Olmert, e o próprio Bush. Israel saiu muito enfraquecido do Líbano e o projeto de Bush sofreu outra dura derrota que agravou sua situação. Eles próprios afirmam A definição de que a guerra de Iraque terminou numa derrota, e sua comparação com Vietnã, não é somente nossa, mas dos próprios analistas políticos da imprensa imperialista. Um editor do New York Times, no início de 2007, via assim a situação militar no Iraque e suas consequências políticas: O problema é que ninguém mais quer apostar em Bush. O que mudou na guerra do Iraque, nos últimos meses, foi a situação nos Estados Unidos. (...) Existe hoje um consenso entre os políticos republicanos e democratas que não existia nem sequer nos momentos finais da guerra do Vietnã. (…) No momento da derrota, Bush está se tornando ainda mais perigoso, aumentando as apostas quando qualquer outro reconheceria que é hora de retirar-se da mesa5. 5 WAACK, W. George W. Bush: Gambler Who Has Run Out of Luck, publicado em 29/01/2207 emwww. wa t ch i n g a m e r i c a . com/oglobo000015. shtml. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 29 Aññno 2009 Uma das primeiras consequências da situação foi o abandono da intenção de Bush de invadir o Irã: a própria Condoleeza Rice declarara, em 2006: “Irã não é o Iraque”6. Por outro lado, a ajuda do regime iraniano transformava-se numa questão fundamental para “estabilizar” o Iraque, por sua influência nas organizações políticas xiitas iraquianas que participavam dos governos títeres. Afeganistão: o Iraque de Obama? A situação do imperialismo ficou agravada pelo curso cada vez mais desfavorável na guerra do Afeganistão. Longe de marchar até a vitória, esta guerra parece encaminhar-se até una nova derrota militar do imperialismo. Consciente deste perigo, Obama tenta una política de fortalecer sua posição militar para conseguir uma saída para a guerra, negociada com o Talibã. A guerra “contra o terror” teve início com a promessa de “apagar o Talibã da face da Terra” e liquidar o regime iraniano. Seu resultado final é que este regime é hoje uma peça chave para o desejo imperialista de “estabilizar” a região além de se buscar negociações com o próprio Talibã. Como se pode qualificar o resultado desta guerra se não como uma clara derrota do imperialismo? Neste marco, falar de uma “eventual ampliação da guerra nas proximidades da China e Rússia” parece um exercício de ficção política. Alguém imagina que os EUA possam atacar a China, destino dos maiores investimentos imperialistas nas últimas décadas? Tampouco se vislumbra um conflito com a Rússia, além dos choques ocorridos no conflito entre a Geórgia e a Ossétia. Pelo contrário, a política de Obama é a de pactuar com Putin e, por isso, liquidou o projeto de instalação do escudo antimísseis na Europa Central. A crise econômica e as contradições do imperialismo Outra das razões que os autores dão para o recrudescimento de um projeto neofascista é o impacto da atual crise econômica nos países imperialistas e sua política para enfrentá-la: O nacionalismo está de regresso nas diferentes políticas dos países centrais. O mesmo representa uma atitude coletiva nacional de salvar-se à custa eventual das demais nações. Estas tendências protecionistas, xenofóbicas e nacionalistas são ingredientes para fomentar o neofascismo. Aqui se misturam questões corretas e equivocadas. É totalmente certo que a crise econômica faz com que os governos dos países imperialistas alimentem tendências xenófobas em sua população e façam duras leis contra os trabalhadores imigrantes. É uma forma de descarregar a crise sobre o setor mais frágil de suas classes operárias. Ao mesmo tempo, tenta desviar a bronca dos trabalhadores “nacionais” contra as empresas e os governos em direção aos trabalhadores imigrantes que lhes “roubam” o trabalho e os salários, como se vê com clareza em países como a Itália, França ou a Inglaterra. Mas, nas últimas duas décadas, deu-se um processo de “internacionalização” da produção com um crescente volume de investimentos na China, Índia, os tigres asiáticos e outros países, buscando menores custos trabalhistas e maiores taxas de lucro. Hoje, grande parte da produção industrial das empresas imperialistas ocorre nesses países e se vende nos países centrais, em um circuito essencial para seus lucros. Por isso, é praticamente impossível que os 30 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 6 PORTER, Gareth. Historia oculta del fracaso de Bush e Rice, publicado pela Agência IPS, 14/06/2006. Añno 2009 países imperialistas, ou os países periféricos mais fortes, girem para políticas isolacionistas ou protecionistas, como ocorreu depois da crise de 1929. Esta realidade apresenta-se como uma contradição muito grave ao imperialismo. Se seguir a lógica de reduzir custos trabalhistas e lucros, deve manter e aprofundar o atual circuito econômico, enquanto aumenta os ataques a suas próprias classes operárias. Foi o que fez a GM ao fechar várias fábricas e demitir 20 mil de seus 60 mil trabalhadores nos EUA, enquanto mantinha suas fábricas e pessoal na China e no Brasil. Se o fator principal que considera, por outro lado, for o temor aos enfrentamentos com suas próprias classes operárias, atuará como Sarkozy, na França, que forneceu empréstimos à Renault com a condição de que as fábricas no país fossem mantidas e, em último caso, fechasse a Dacia na Romênia. Ou como Merkel, na Alemanha, que pôs dinheiro para comprar a Opel, tentando salvar as fábricas e o pessoal do país em detrimento das plantas da Suécia e Bélgica. Pesando tais contradições, os governos e empresas imperialistas atacam seus próprios trabalhadores, mas o fazem de modo cuidadoso, tentando evitar um enfrentamento frontal e global, em especial na Europa, precisamente pelo contexto político desfavorável que lhes deixou a derrota do governo Bush. Assim, junto às demissões e reduções salariais, aplicam-se medidas como a extensão do prazo do seguro desemprego. Tanto as contradições quanto essas medidas são o resultado da debilidade do imperialismo e não de sua força. América Latina: golpes por todos os lados? Analisemos agora a situação da América Latina. Segundo os autores, a combinação da necessidade de assegurar o abastecimento dos recursos naturais do continente, ante “uma ampliação da guerra” na Ásia; a conjuntura de crise econômica e o fato de que “o continente estava definindo cada vez mais seu próprio rumo com autodeterminação sobre tais recursos”, abre a perspectiva de que o governo dos EUA impulsione golpes de Estado em toda a América Latina (supomos que principalmente contra aqueles governos que estariam resistindo e defendendo “a autodeterminação”). Novamente, elementos corretos misturam-se com outros que não o são para uma conclusão equivocada. É certo afirmar que o imperialismo norteamericano necessita assegurar o abastecimento dos recursos naturais da América Latina, acentuada pela situação militar no Oriente Médio e a crise econômica. Mas é equivocado dizer que o abastecimento será garantido por meio de uma política geral de apoiar golpes de Estado. E por duas razões. A primeira é que, como temos analisado, a derrota do projeto de Bush fez com que o imperialismo não busque atualmente novas frentes de conflito ou de enfrentamento. Ao contrário, busca defender seus interesses através da negociação e do “consenso”. Por isso, levou países como o Brasil, México ou a Argentina ao G-20 (na ficção de que intervirão nas “grandes decisões econômicas mundiais”). E, nas situações de conflito, impulsiona saídas “negociadas” que lhe sejam favoráveis. Por isso, no recente golpe de Honduras, sua política foi promover o Pacto de San José e depois o Acordo de Guaymuras. Antes, na Bolívia, vimos como sua linha não foi incentivar a queda de Evo Morales, mas um acordo entre Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 31 Aññno 2009 seu governo e a burguesia da Meia Lua através da Unasul (nova peça chave para defender seus interesses na América do Sul com uma “cara regional”). Nesta política, o Brasil e Lula (o “homem” de Obama na região) jogam o papel principal para encontrar as melhores saídas para o imperialismo. A segunda razão completa a primeira, contra o que dizem os autores do trabalho, não existem no continente latino-americano governos realmente anti-imperialistas ou que defendam uma real “autodeterminação sobre seus recursos naturais”, más além de suas retóricas ou de alguma medida parcial. É o próprio governo venezuelano de Chávez que assegura constitucionalmente os investimentos estrangeiros e entrega 50% do petróleo venezuelano às grandes petroleiras imperialistas; é o governo boliviano de Evo Morales que entrega a exploração do gás, petróleo e do minério de ferro bolivianos a empresas estrangeiras, é o de Correa, no Equador, que governa para as multinacionais mineiras. Por isso, a política do imperialismo para assegurar esses recursos naturais e conseguir seus objetivos hoje não é de golpes de Estado, mas de negociação e “consenso”. Hoje não busca derrotar os governos de Chávez, Evo e Correa, mas cooptá-los e associá-los no saque de seus países, dando-lhes, em troca, algumas migalhas para que possam desenvolver alguns “planos sociais”. Ao mesmo tempo, se bem que as bases da Colômbia, e outras no continente, ou a reativação da 4ª Frota representem um “posicionamento estratégico”, a atual política militar do imperialismo para a América Latina é atuar através de, ou com, a colaboração das Forças Armadas de países com governos surgidos de eleições, incluídos alguns daqueles que supostamente estariam ameaçados por perspectivas de golpes, como a Bolívia, Equador ou Nicarágua. Um primeiro exemplo é o Haiti, onde, com a cobertura da ONU, a Minustah é comandada pelo Brasil e integrada por tropas da Argentina, Chile, Uruguai e até a Bolívia, para reprimir o povo haitiano e garantir às multinacionais têxteis americanas os salários mais baixos do continente. Outro exemplo menos conhecido é o do exercício das Forças Aliadas Panamax 2009, realizado em setembro passado, com a desculpa de simular “a defesa do Canal do Panamá” frente a um suposto “ataque externo”. Dirigidos pelo Comando Sul do exército estadunidense, participaram 4500 soldados provenientes de 20 países (Argentina, Belize, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, EEUU, França, Guatemala, Holanda, Nicarágua, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai)7. A reação democrática A política aplicada atualmente por Obama não é nova. Na década de 1980, a LIT-QI a definiu como “reação democrática”. Isto é, a utilização das ferramentas da democracia burguesa (eleições, Parlamento) e das negociações e pactos para frear, desviar e inclusive derrotar ascensos do movimento de massas, com a ação militar passando a jogar um papel secundário e auxiliar. Embora se trate de una política defensiva, pois responde a determinadas condições da luta de classes mais desfavoráveis ao imperialismo, suas táticas podem ser muito ofensivas e conseguir importantes êxitos para o imperialismo. Assim ocorreu na década de 1980, depois da derrota no Vietnã e dos 32 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 7 Dados extraídos de www.southcom. mil/appssc/factfles. php?id=126 Añno 2009 triunfos das revoluções no Irã e na Nicarágua, e em meio aos processos que derrubavam as ditaduras latino-americanas. Os processos latino-americanos foram desviados através da reação democrática, tanto naqueles países que haviam vivido revoluções democráticas (como a Argentina e o Brasil) ou para evitá-las. O processo revolucionário centro-americano, aberto com a queda de Somoza, foi freado com os Acordos de Contadora (mesmo que aqui o aspecto militar estivesse mais presente). Finalmente, a restauração capitalista no Leste da Europa não foi o resultado de guerras e invasões, mas teve como componente central uma política de reação democrática. O que queremos enfatizar é que o imperialismo nem sempre aplica una política de guerras, golpes e invasões para manter seu domínio colonizador. Pelo contrário, que pode defender seus interesses e assegurar este domínio também através da política de reação democrática. Especialmente quando, como na atualidade, conta com a colaboração dos governos e das direções do movimento de massas. Novamente, qual é a atual política do imperialismo? Em resumo, como resultado da derrota do projeto Bush e da guerra contra o terror, Obama representou uma mudança na tática política com que o imperialismo norte-americano enfrenta os problemas da situação mundial. Passou da “unilateralidade agressiva” de Bush à “multilateralidade consensuada” representada por Obama. Isto é, uma ampliação da ação diplomática e dos âmbitos de tomada de decisões para “convencer” e conseguir o “consenso” para as políticas a serviço do imperialismo que, nestes momentos, simplesmente não podem se impor pela força. Uma mudança que determina agora um novo equilíbrio entre as negociações e a política militar ou de ameaças para alcançar os objetivos imperialistas. O centro passou a ser a “cenoura” (as negociações) enquanto o “garrote” é empregado como um fator auxiliar e coadjuvante. Por isso, os âmbitos diplomáticos, de negociação e de consenso recebem agora uma importância muito maior. Este é o verdadeiro segredo do “pacifismo” de Obama. Para todo os que lutamos contra o imperialismo é muito importante compreender estas mudanças porque, como dissemos, para mudar a realidade é necessário analisá-la tal qual é. E, o que é mais importante, porque a visão dos autores do trabalho que estudamos nos desarma para combater a verdadeira política de Obama e os profundos riscos que esta política “enganosamente pacifista” implica para os trabalhadores e os povos do mundo. Em Honduras, com o Acordo de Guaymuras, que roubou do povo hondurenho a possibilidade de derrotar os golpistas com sua luta, acabamos de ver um exemplo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 33 Dossiê Oriente Médio Um novo e imenso Vietna~ para o imperialismo Azerbaijão Uzbequistão Turquia Líbano Jordânia Turcomenistão Síria Iraque Irã Afeganistão Israel Paquistão bernardo cerdeira ediTor de MarxisMo vivo Arábia Saudita O Dossiê deste número de Marxismo Vivo está dedicado a uma vasta região do planeta que é o Oriente Médio, que vive uma aguda situação da luta de classes. O tema não poderia ser mais atual, e abordá-lo exige explicar alguns dos principais aspectos da situação mundial: a derrota da ofensiva Bush, a política atual do imperialismo, o governo Obama, o fundamentalismo islâmico e outros. Em 2009, ano pródigo em datas históricas do calendário revolucionário (60 anos da revolução chinesa, 50 anos da revolução cubana e 30 anos da nicaraguense), também se comemoram trinta anos da revolução iraniana que em janeiro de 1979 derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Em dezembro daquele mesmo ano, pouco depois da revolução, a União Soviética invadiu o Afeganistão. Em setembro de 1980, o Iraque, armado e incentivado pelos Estados Unidos, declarou guerra ao Irã. Estes três acontecimentos, estreitamente ligados entre si, continuam a marcar a situação no Oriente Médio até os dias de hoje. A situação política e militar da região é o centro dos problemas e das preocupações atuais do imperialismo americano no mundo. Os Estados Unidos continuam lutando duas guerras ao mesmo tempo. No Afeganistão, o governo de Barack Obama vive o dilema de incrementar a escalada militar, ou correr o risco de perder a guerra para o Talibã. Enquanto isso, a situação militar piora a cada dia. Além disso, a guerra atravessou a fronteira do Afeganistão com o Paquistão, quando o Talibã estendeu sua organização para aquele país. Não há dúvidas de que a guerra vem provocando a desestabilização da situação interna do Paquistão. Por outro lado, a guerra do Iraque não terminou. Os recentes atentados 34 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê ao ministério da Justiça em plena Zona Verde, a mais protegida da capital, mataram mais de 100 pessoas e são uma amostra viva da instabilidade do país. Os soldados norte-americanos continuam ocupando o Iraque e, mesmo que não patrulhem mais as cidades e que uma boa parte se retire em 2010, deixarão como “garantia” 50 mil soldados aquartelados em grandes bases militares. E isso só para falar nos três países polarizados pela guerra. Mas a luta de classes na região não para por aí. A questão palestina também não sai de cena. Israel, um agente direto do imperialismo americano, atacou a Faixa de Gaza em 2008 e o Líbano em 2006, de onde saiu derrotado pelo Hezbollah. Por outro lado, relacionado com a situação em todos estes países, intensifica-se dia a dia a pressão americana contra o Irã, um país relativamente independente das ordens de Washington e que ameaça produzir armas nucleares. A importância do Oriente Médio para o imperialismo A região que chamamos de Oriente Médio na verdade é tão vasta que se compõe de diferentes sub-regiões que vão desde o Norte da África e a margem leste do Mediterrâneo até a fronteira do Paquistão com a Índia, em seu extremo oeste e a Ásia Central até a fronteira da União Soviética. O próprio imperialismo cunhou a expressão Grande Oriente Médio, hoje utilizada pelo G-8 e que abarca toda esta extensão. Podemos dividir o Oriente Médio em 4 regiões. O Magreb (norte da África): Egito, Líbia, Sudão, Tunísia, Argélia, Marrocos e Saara Ocidental. O chamado Crescente Fértil (ou Oriente Próximo, se a Turquia for considerada) composto por Síria, Líbano, Iraque, Palestina, Israel e Jordânia. A Península Arábica: Arábia Saudita, Iêmen, Bahrein, Omã, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait. O Oriente Médio propriamente dito: Irã, Afeganistão, Paquistão e as antigas Repúblicas do Sul da ex-URSS, hoje países independentes: Turcomenistão, Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Quirquistão. Historicamente os países do Oriente Médio foram parte do império do Islã e mantêm influências culturais e religiosas entre si, sendo em sua maioria países islâmicos. Politicamente, a região tem sido o centro das preocupações, das agressões militares e também de derrotas do imperialismo norte-americano pelo menos nestas últimas três décadas. A atual prioridade do Oriente Médio na ação contrarrevolucionária do imperialismo é evidente tanto em termos militares quanto políticos e diplomáticos. Esta é a parte do planeta que concentra o maior deslocamento de tropas norte americanas, aproximadamente 50% dos cerca de 350 mil soldados norte-americanos em atividade no estrangeiro. Por fim, a prioridade diplomática fica clara com o recente número de enviados especiais do governo Obama e da secretária de Estado Hillary Clinton à região. A preocupação do imperialismo americano não é casual. Esta é a parte do mundo que concentra 60% das reservas conhecidas do petróleo do planeta. O imperialismo não só necessita controlar o acesso e a garantia de saque do petróleo, como também a possibilidade de transportá-lo em forma segura até os locais de refino e consumo. Além disso, esta é uma região estratégica que tem fronteiras e laços étnicos e culturais com três dos maiores países do mundo. Calcula-se que existam Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 35 Dossiê entre 15 a 20 milhões de muçulmanos dentro das atuais fronteiras da Rússia, sem contar os laços econômicos e culturais com os países da Ásia Central que faziam parte da ex-URSS. Na China - que tem cerca de 105 milhões de habitantes pertencentes a 56 etnias minoritárias oprimidas pelo governo da maioria han - existem várias nacionalidades muçulmanas como os cazaques, uigures e mongóis. E, finalmente, a Índia tem uma “minoria” de 165 milhões de muçulmanos e uma disputa de décadas com o Paquistão pelo controle da Caxemira, região de maioria muçulmana reivindicada pelo país vizinho. Mas o problema fundamental para o imperialismo é que, como fruto destes problemas estruturais e também da exploração e agressões imperialistas, esta região tem sido o centro da resistência revolucionária das massas, o centro da luta de classes no mundo, pelo menos nas últimas três décadas. Uma guerra permanente do imperialismo contra o Islã A partir do fim da Segunda Guerra Mundial – quando se tornou a potência dominante no mundo, superando a hegemonia dos imperialismos inglês e francês no Oriente Médio – os Estados Unidos vêm travando uma guerra permanente contra o mundo islâmico para saquear suas riquezas, principalmente o petróleo. Um marco nesta guerra foi a criação do Estado de Israel em 1948, um enclave de população européia e um verdadeiro “porta-aviões” ancorado no Oriente Médio, armado e financiado pelos EUA. Sua função é a de reprimir a resistência dos povos e atacar e invadir países islâmicos que tentem rebelarse contra a exploração e romper o jugo do imperialismo. A maior de suas agressões é, sem dúvida, a expulsão dos palestinos de suas terras e a ocupação, colonização e selvagem repressão sobre os territórios de Gaza e Cisjordânia ocupados desde 1967 e hoje transformados em verdadeiros guetos para mais de 3,5 milhões de habitantes. A criação do Estado de Israel significou uma grande derrota para os povos islâmicos. Não é casual que os árabes refiram-se a este acontecimento como a Naqba, ou a Desgraça. No entanto, contraditoriamente, as monstruosas ações e a própria existência do Estado de Israel, geraram uma resistência permanente dos povos árabes. Esta luta foi encabeçada, nas décadas de 50 e 60, pelo nacionalismo pan-árabe (cujo máximo expoente foi Nasser, presidente do Egito) que dominou a maioria dos países da região, principalmente Síria, Iraque, Líbia e Argélia. Mas o nacionalismo pan-árabe entrou em decadência depois de sucessivas derrotas e capitulações diante de Israel e, a partir do fim dos anos 60 até meados dos anos 80, uma variante deste nacionalismo, representado pela OLP de Yasser Arafat e uma guerrilha palestina muito progressista, tornouse a maior referência da resistência anti-imperialista. Atualmente, a maior expressão desta luta contra Israel são o Hezbollah no Líbano e o Hamas nos territórios palestinos ocupados. Um marco: a Revolução de 1979 no Irã Esta luta de resistência dos povos islâmicos teve um marco em 1979: a revolução iraniana que derrubou a sangrenta ditadura do Xá Reza Pahlevi. A revolução desencadeou uma série de novas forças na região. Por um lado, 36 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê enfraqueceu o imperialismo americano e seu agente Israel, por outro, criou um país relativamente independente que hoje influencia vários outros, do Iraque, através dos xiitas, até o Líbano, por meio do Hezbollah e Gaza, onde atua o Hamas. No entanto, a revolução iraniana foi marcada desde o seu início por uma contradição: uma direção nacionalista burguesa, mas de ideologia religiosa islâmica, composta por uma burocracia de clérigos muçulmanos, os aiatolás. Esta burocracia assumiu o poder e transformou o Irã numa república islâmica, que apesar de manter uma relativa independência do imperialismo, assumia características extremamente reacionárias e repressivas em relação aos trabalhadores, às mulheres e às minorias nacionais. Em pouco tempo, o regime dos aiatolás reprimiu o movimento de massas no Irã e prendeu e assassinou milhares de ativistas operários e oposicionistas em geral. A revolução iraniana marcou a ascensão de um novo movimento nacionalista no Oriente Médio: o fundamentalismo islâmico. Este se aproveitou da decadência do velho nacionalismo laico pan-árabe de Nasser, da OLP de Yasser Arafat e do partido Baas que governava o Iraque e governa até hoje a Síria. No entanto, a força da revolução iraniana e a relativa independência do país provocaram a reação imediata do imperialismo americano que armou, financiou e estimulou o Iraque governado por Sadam Hussein a atacar o Irã, levando a uma guerra de oito anos de duração entre os dois países. A invasão soviética do Afeganistão Entre suas muitas repercussões, a revolução iraniana também foi um dos fatores fundamentais para provocar a invasão do Afeganistão pela ex-União Soviética. A burocracia stalinista, que governava este último país, apavorou-se com a possibilidade de que a revolução islâmica se estendesse ao Afeganistão e daí às repúblicas da Ásia Central, que naquela época faziam parte da URSS, constituindo sua fronteira sul. Este foi um dos motivos fundamentais da invasão da URSS ao Afeganistão em fins de 1979, colocando um governo títere à frente do país. O exército soviético teve de enfrentar a resistência armada dos mujaheddines, os chamados “guerreiros da liberdade”, que começaram como uma guerrilha que lutava contra o invasor, mas depois passaram a ser armados e controlados pelo imperialismo americano. Milhares de combatentes muçulmanos de vários países foram combater no Afeganistão, entre eles Osama Bin Laden. Outros atores principais da guerrilha foram os “senhores da guerra”, oligarcas que dirigem as principais nacionalidades do país. A URSS foi finalmente derrotada e retirou-se do país em 1989. A guerrilha islâmica tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram a se enfrentar e o país mergulhou na guerra civil. O Afeganistão foi chamado com razão de “o Vietnã da URSS”, pela semelhança com a longa guerra e a derrota militar e política dos Estados Unidos no Extremo Oriente. Certamente, o desgaste da guerra e a derrota do exército soviético ajudaram a enfraquecer a União Soviética e aceleraram a decisão da burocracia de restaurar o capitalismo no país. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 37 Dossiê A ofensiva imperialista e a ocupação militar do Iraque e Afeganistão Durante os quinze anos que se seguiram à sua derrota militar no Vietnã em 1975, o imperialismo americano tentou retomar a ofensiva contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o mundo. A restauração do capitalismo na ex-URSS, na China e em todos os ex-estados operários burocráticos abriu a possibilidade de concretizar esta contraofensiva. A primeira grande oportunidade apresentou-se no Oriente Médio em 1991com a Guerra do Golfo. Sadam Hussein, que havia atuado como um agente dos Estados Unidos contra o Irã na guerra Irã-Iraque, invadiu o Kuwait esperando que a reação do imperialismo não chegasse à guerra. Mas os Estados Unidos não podiam permitir que a situação saísse de controle, principalmente por se tratar de um país, o Kuwait, detentor da quarta maior reserva conhecida de petróleo do mundo. Os EUA organizaram uma coalizão de todos os países imperialistas, que contou com o apoio da ex-URSS, e derrotaram o Iraque, iniciando doze anos de bloqueio econômico e militar ao país. A década de 90 caracterizou-se por uma ofensiva recolonizadora do imperialismo em todo o mundo, que culminou na tentativa do governo de George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfel, Paul Wolfewitz e outros de impor um “século americano” de domínio mundial. A doutrina que dava base a este projeto fundava-se no suposto direito de intervenção militar dos Estados Unidos, inclusive de forma preventiva, em qualquer país que representasse uma “ameaça” aos interesses americanos. Ou seja, o objetivo era impor uma espécie de regime bonapartista mundial. A oportunidade para executar este plano surgiu com os atentados de 11 de setembro de 2001, pois deram ao governo Bush um pretexto para desatar uma “guerra contra o terror”, que na verdade disfarçava uma “guerra contra os povos”. As maiores expressões da ofensiva militar de Bush foram as invasões e ocupações militares do Afeganistão e do Iraque. Em outubro de 2001, usando como pretexto que o governo do Talibã abrigava Osama Bin Laden, Bush ordenou a invasão do Afeganistão. Finalmente, em março de 2003, Bush invadiu o Iraque, acusando o governo de Sadam Hussein de deter armas de destruição em massa a partir de provas forjadas. Desde então, 128 mil soldados americanos se mantêm no Iraque e 68 mil no Afeganistão (de um total de cerca de 100 mil soldados da OTAN). As invasões do Afeganistão e, principalmente, do Iraque representaram uma tremenda derrota para os povos islâmicos. Hoje em dia, são países ocupados por tropas dos Estados Unidos e seus governos não passam de fantoches manipulados por Washington, que trata de encobri-los através de processos eleitorais farsescos. Os dois países retrocederam à situação de verdadeiras colônias. Além disso, a ofensiva de Bush possibilitou a presença de tropas americanas na região durante um longo período. A reação das massas e a derrota da ofensiva militar de Bush Contraditoriamente, se, por um lado, as ocupações do Iraque e do Afeganistão constituíram uma grande derrota, por outro, atearam fogo na região e hoje constituem o maior pesadelo do imperialismo americano. As invasões desencadearam guerras de libertação nacional em ambos os 38 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê países. No Iraque, a resistência encabeçada pela resistência sunita levou os Estados Unidos a sofrerem pesadas perdas que chegaram ao auge em 2006. A longa ocupação militar tem sido um fator de crise porque as Forças Armadas dos Estados Unidos se meteram em um “atoleiro” do qual não sabem como sair. Não só perdem homens e dinheiro, como também não têm perspectivas de ganhar a guerra nem podem se retirar. Desta maneira, esgotam-se soldados que são obrigados a servir no front por até três anos, já que o contingente do exército profissional dos EUA, que já não emprega o recrutamento obrigatório, é limitado. Os Estados Unidos foram obrigados, então, a fazer concessões às organizações xiitas, entregando o governo do país a uma coalizão entre estes e os principais partidos curdos. Hoje o presidente do país é curdo, Jamal Talabani da União Patriótica do Kurdistão, e o primeiro ministro é xiita, Nuri Al-Maliki, representante do Partido Islâmico Dawa, da coalizãoxiita Aliança Popular Iraquiana. Mas, a principal concessão do governo americano que permitiu uma trégua nos combates e uma “estabilidade” relativa no país, foi feita à resistência sunita. O imperialismo foi obrigado a pagar somas que se calculam em 60 milhões de dólares ao mês para que as milícias sunitas não ataquem as tropas americanas. Mesmo assim, esta política só funcionou sob a perspectiva de que os Estados Unidos marcassem a data para a retirada do Iraque. Esta foi a promessa de Obama, ainda em sua campanha eleitoral, assumindo na prática uma derrota na guerra do Iraque. Depois de assumir, Obama ordenou que as tropas norte-americanas se recolhessem às suas bases, não patrulhassem mais as cidades e marcou para agosto de 2010 a retirada definitiva do país. Mas, a instabilidade atual do país, que pode se complicar à medida que se aproxime a data da retirada, ameaça o cumprimento deste cronograma e o próprio compromisso de Obama. A hipótese de prolongar a permanência da maioria do contingente militar é, sem dúvida um cenário de crise para o imperialismo. Mas o problema não termina aí: a situação do Afeganistão também virou um atoleiro para os Estados Unidos. O Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma guerra de guerrilhas contra as tropas de ocupação. Este país é hoje é o centro das dores de cabeça de Obama e do Pentágono. E, como dissemos ao princípio, a guerra agora se estendeu ao país vizinho, o Paquistão. Por último, mas não menos importante, a ofensiva bonapartista do governo Bush potencializou o problema das nacionalidades no Oriente Médio, muitos deles provocados artificialmente, desde o domínio britânico. Povos oprimidos e divididos rebelam-se e as guerras atingem diferentes etnias. Um exemplo é o dos pashtuns no Paquistão, divididos artificialmente do resto de seu povo no Afeganistão. Por outro lado, há vasos comunicantes dos povos que vivem no Afeganistão e nas repúblicas da Ásia central com as minorias muçulmanas na China: uzbeques, cazaques, uigures e quirguizes. A conclusão é clara: não só fracassou o projeto do “século americano” e da grande ofensiva bonapartista de George W. Bush e seus “neocons”, como as invasões e ocupações militares incendiaram a região e o atoleiro das guerras enfraqueceu o imperialismo. Este é o motivo das novas táticas de negociação Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 39 Dossiê e das indecisões, ou seja, da debilidade do governo Obama. Uma situação crítica: ficar não é recomendável, mas não é possível sair O imperialismo americano enfrenta uma situação crítica na maior parte dos países deste Grande Oriente Médio. A resistência das massas, as guerras e os problemas nacionais não resolvidos geraram uma relação estreita e uma combinação entre processos de distintos países. O imperialismo enfrenta duas guerras simultâneas. Não resolveu ainda a situação do Iraque e ainda não se retirou. E a guerra do Afeganistão está no seu ponto mais alto desde 2001. Esta situação gera um impasse para o governo de Barack Obama. A prudência recomenda sair o mais rápido possível, antes que a situação destas guerras impopulares piore e gere uma crise interna nos Estados Unidos. No entanto, a própria possibilidade de uma derrota vergonhosa, que provoque uma situação de instabilidade em dois ou três países do Oriente Médio, não só impede o imperialismo de retirar-se totalmente como até pode fazer com que aumente o número de suas tropas no Afeganistão. Neste Dossiê abordamos três países que nos parecem hoje os centros da luta de classes na região. O problema central para o imperialismo é a guerra do Afeganistão. Obama encontra-se em uma encruzilhada: precisa encontrar uma saída negociada com o Talibã, mas não pode negociar em uma posição de fraqueza como a atual. Por outro lado, para fortalecer sua posição e não perder a guerra precisaria de muito mais soldados. Mas uma escalada militar teria sérias repercussões internas nos Estados Unidos onde a guerra já é tremendamente impopular. Por outro lado, a guerra atravessou a fronteira com o Paquistão e está desestabilizando o país vizinho. A guerra está em curso num país tremendamente instável, com um governo débil e em crise. Por fim, um país chave para todo o Oriente Médio é o Irã, o mais poderoso econômica e militarmente da região. Sua influência política estende-se a países fundamentais do Oriente Médio tais como o Iraque (onde a maioria do governo baseado em partidos xiitas tem ligações com o Irã); Líbano, onde apóia o também xiita Hezbollah e inclusive na Palestina, onde apóia o movimento sunita Hamas. Os planos de “paz” de Obama A nova tática do governo Obama para toda a região, e para o mundo é tentar frear e depois fazer retroceder situações explosivas através de negociações e planos de paz. Em especial, o governo dos EUA tenta um acordo com o regime dos aiatolás para aceitar o desenvolvimento da indústria nuclear do país, mas impondo um controle internacional que não permita que este desenvolva armas nucleares. A outra cara desta negociação tem como objetivo obter a colaboração do regime iraniano para ajudar a estabilizar a região, por exemplo, pressionando o Hamas para negociar com Israel um acordo de paz na Palestina e o Hezbollah para chegar a um acordo que estabilize o Líbano. A atual política dos EUA, não é a de invasão do Irã tal como se planejou na época de George W. Bush e Dick Cheney. Ao contrário, o imperialismo tenta atrair a burguesia e o governo iranianos para que estes cumpram o papel 40 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê de estabilizador da região. Tenta o mesmo com o Hezbollah. E tem conseguido avanços do ponto de vista imperialista. O governo iraniano aceitou negociar o beneficiamento do seu urânio na Rússia, sob controle da AIEA. E o Hezbollah já faz parte do governo do Líbano há um ano e tem sido um fator de estabilidade para a burguesia do país. No entanto, o grande problema do imperialismo é que a política de negociação e acordos de paz está cruzada pela guerra no Afeganistão, que por sua vez influencia a situação no Paquistão. E aí reside o dilema do governo Obama. Não aumentar qualitativamente o número de suas tropas significa arriscar a ser derrotado militarmente e não ter condições de negociar nada. Mas, se aceitar dobrar o número de soldados, como pedem seus generais, envolver-se-á ainda mais no conflito e provavelmente sofrerá um aumento da oposição à guerra nos Estados Unidos. Um envolvimento mais longo do que já foi até agora (oito anos) e numa escala tão ampla ameaça transformar-se num novo e enorme Vietnã do Século XXI para os EUA. É, portanto, no terreno político, social e militar da guerra que se resolverá a luta de classes na região. As guerras e revoluções no Oriente Médio exigem uma direção revolucionária As massas de trabalhadores e camponeses dos diferentes países do Oriente Médio – que há décadas enfrentam heroicamente o imperialismo americano e seus agentes, com enormes sacrifícios contados em milhões de vidas humanas e enormes riquezas naturais saqueadas – vivem um drama. Durante várias décadas, sucessivas direções nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas mostraram-se incapazes de enfrentar o imperialismo até o fim e terminaram por capitular a ele. A atual direção colaboracionista de Abbas e da OLP é a mais grotesca das caricaturas destas lideranças oportunistas. A situação atual não é melhor. As direções islâmicas, atualmente à frente dos mais importantes movimentos de resistência, já deram mostras de que são uma direção burguesa que não hesita em reprimir os trabalhadores e seus aliados populares, inclusive seus setores mais explorados, como as mulheres e as nacionalidades oprimidas. E também, como toda classe privilegiada, podem capitular ao imperialismo a qualquer momento. Por isso, mais do que nunca, o problema da independência da classe operária diante das organizações burguesas e pequeno-burguesas é fundamental para que esta assuma a vanguarda da luta para expulsar o imperialismo do Oriente Médio. E, para orientar a classe operária neste combate e dirigi-lo rumo a uma Revolução Socialista, que acabe com a exploração dos trabalhadores e a opressão dos povos, é imprescindível construir uma direção revolucionária socialista em toda a região. Este é um grande desafio para os revolucionários de todo o mundo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 41 Dossiê ~ ~ Ira, 1979: uma revolucao ´ interrompida Marcos Margarido Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil O início da década de 1970 conheceu a primeira recessão simultânea e generalizada nos países imperialistas no póssegunda guerra. Os 20 anos do boom da economia, iniciados por volta de 1950, haviam chegado ao fim. O ano de 1975 foi marcado pela queda assombrosa do PIB dos Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Inglaterra. A produção industrial no segundo trimestre de 1975 caiu 14% nos EUA, 20% no Japão e 10% na Inglaterra. Depois de duas décadas de “pleno emprego”, chegou-se a um total oficial de 17 milhões de desempregados no conjunto dos países imperialistas, além de uma alta da inflação que atingiu níveis insuportáveis em todos os países do mundo. Na década de 70, os EUA sofreram sua primeira derrota militar clara no Vietnam. A revolução portuguesa de abril de 1974 abriu um processo que além de derrotar a ditadura salazarista possibilitou a libertação de suas colônias da África e incendiou o continente negro. No Oriente Médio, sucediam-se os enfrentamentos com Israel, em que os países arabes foram derrotados, como na guerra do Yom Kipur, enquanto a guerrilha palestina seguia resistindo e o Líbano ardia em plena guerra civil. A década assistiu ainda ao seu final as revoluções nicaraguense e iraniana. Neste cenário, os países árabes membros da OPEP resolvem quadruplicar o preço do petróleo em 1973, como retaliação à derrota na guerra do Yom Kipur para Israel, gerando uma renda extra aos países exportadores de petróleo, os petrodólares, estimados em US$ 180 bilhões em 19801. O Irã, assim como os demais países produtores de petróleo, inseria-se na divisão mundial do trabalho como exportador de matérias primas - o petróleo - e com um desenvolvimento capitalista totalmente subordinado aos interesses imperialistas. A renda do petróleo aumenta a cobiça imperialista e os conflitos interburgueses pela sua posse, gerando o aumento da miséria da população paralelamente à acumulação capitalista. No Irã, essa combinação atingiu níveis explosivos, que passamos a analisar. O rei dos reis Mohammad Reza Pahlevi foi o segundo Xá da dinastia Pahlevi. Foi empossado após a ocupação do país pelos exércitos da Inglaterra e da União Soviética em 1941, em substituição a seu pai, Reza Khan, soldado do exército 42 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1979: manifestação contra o Xá 1 Os valores em dólares são nominais, relativos ao ano mencionado. Para se obter os valores equivalentes em 2009, deve-se multiplicar o valor dado por 4 se o ano for 1975, 3,3 se for 1978 e 2,6 para 1980. 2 MANDEL, E. A crise do capital. São Paulo: Ed. Ensaio, 1990, p. 39 Dossiê iraniano, que também havia subido ao poder através de um golpe contra o reinado da dinastia Oajar em 1921. O início da década de 50 assistia ao crescimento de uma onda nacionalista que varreu o Oriente Médio e desembocou no nasserismo, o movimento liderado pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que buscava uma independência relativa em relação ao imperialismo, para estabelecer melhores condições de negociação com ele. No Irã, tal movimento era liderado por Mohammed Mossadegh, eleito primeiro-ministro em 1951, um mês depois da nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company pelo parlamento iraniano, um golpe ao principal imperialismo da região. Por essa ousadia, os governos imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, através de seus serviços secretos, planejaram a queda de Mossadegh, conseguida após uma primeira tentativa frustrada, que resultou na queda e exílio do Xá. O general Fazlollah Zahedi foi nomeado primeiro-ministro e Reza Pahlevi reempossado, selando sua submissão aos desígnios norte-americanos. Em 1963 institui a Revolução Branca3, com o objetivo de transformar o Irã na quinta potência mundial e aproximá-lo ao mundo ocidental. A “modernização” buscada pelo Xá seguia a lógica da dominação imperialista de um país semicolonial, com sua abertura ao capital estrangeiro, ávido pela renda do petróleo. Cerca de US$ 250 bilhões acumulados pelo Irã entre 1974 e 1980 pela alta do petróleo foram utilizados na importação de bens de capital e de consumo. Enquanto isso, a burguesia nacional comerciante, conhecida como burguesia do bazar, era reduzida ao papel de “mendigo” que se alimenta dos restos do banquete da exploração capitalista. A expansão industrial do país garantiu a presença maciça de empresas norte-americanas - cerca de 500 segundo a revista Fortune – e a expansão das Forças Armadas iranianas, com 475 mil soldados, para a proteção de sua propriedade. Os Estados Unidos conseguiam, assim, impor seu controle da região a partir do enclave israelense e do Irã, o único país do mundo muçulmano que reconhecia o Estado de Israel. A associação com o capital estrangeiro foi levada a cabo por meio do controle da oposição e do uso da força contra a população. Em 1975 os partidos políticos foram extintos e um regime de partido único, o Partido da Ressurreição, foi fundado, justificado de maneira clara pelo Xá: Uma pessoa que não entrar no novo partido político e não acreditar nos três princípios cardeais tem apenas duas opções. Ou ele é um indivíduo que pertence a uma organização ilegal ou está ligado ao clandestino Partido Tudeh, em outras palavras, é um traidor. Pahlevi dizia que o lugar dos traidores era a prisão ou o exílio, e a Savak, uma das polícias políticas mais cruéis do mundo, desdobrava-se dia e noite para identificá-los, prendê-los, torturá-los e executá-los. Estima-se que cem mil pessoas estavam presas em 1976, mas o regime reconhecia a existência de “apenas” 3500 presos políticos. A situação de miséria e desemprego das massas, gerada pela Revolução Branca, foi agravada pela crise iniciada em 1974. A capitalização do campo causou o êxodo de milhões de camponeses às cidades onde o desemprego e 3 Revolução branca: revolução realizada “por cima”, em oposição às revoluções populares ou socialistas, consideradas “vermelhas”. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 43 Dossiê a inflação os esperava. Estas sequer possuíam redes de água e esgoto, apesar das enormes somas obtidas pela renda do petróleo. Os salários dos trabalhadores foram congelados e até um “passaporte interno” para controlá-los foi instituído. A burguesia do bazar foi prejudicada com o aumento dos impostos. O clero xiita, da religião muçulmana, beneficiava-se politicamente dessa situação ao capitalizar o descontentamento de amplas camadas da população, reunidas nas chamadas cidades santas, como Qom, que se transformavam nos redutos da oposição ao Xá. A revolução dá seus primeiros passos As primeiras mobilizações, realizadas pela juventude e intelectuais, ocorreram em 1977, exigindo o respeito à constituição de 1906 ainda em vigor, a defesa da liberdade de imprensa e da independência do poder Judiciário. Os protestos seriam intensificados em 1978, quando ocorre o Massacre de Qom em 9 de janeiro, a cidade santa que se tornaria a morada oficial do aiatolá Khomeini. A manifestação de 4 mil estudantes e líderes religiosos contra o jornal Ettela’at controlado pelo Xá, que acusava o aiatolá, exilado desde 1963, de ser homossexual, terminou numa repressão brutal com o resultado de pelo menos 10 mortos. A tentativa de calar as vozes da oposição surtiu um efeito contrário; em 18 de fevereiro comemorou-se o arba’een - o luto xiita de 40 dias - com manifestações de massas em todo o país. Em Tabriz, a população de maioria curda ocupa a cidade sem que os militares locais a reprimissem. Pahlevi foi obrigado a deslocar tropas para executar outro banho de sangue. Estima-se em cem pessoas mortas e, mais uma vez, as manifestações alastraram-se, desta vez para Ahwaz, importante centro petrolífero do Irã. Novas manifestações voltam a ocorrer em Isfahan, onde foi imposta a lei marcial em 16 de agosto, após os primeiros sinais de fraqueza do regime ditatorial. O chefe da Savak era substituído por Nasser Moghadam em junho e o próprio Xá prometia a realização de eleições gerais em 1979. Dez dias depois o primeiro-ministro é substituído por Jafar Sharif-Emami, que abole o calendário imperial4 instituído pelo Xá e declara a legalidade de todos os partidos políticos. Era a primeira vitória democrática das massas, embora o núcleo repressor do regime - as Forças Armadas e a Savak - continuasse intacto. O imperialismo mantinha seu apoio a Reza Pahlevi. Numa coletiva à imprensa, o presidente dos EUA, Jimmy Carter, declara que “eu espero que o Xá mantenha o poder... o Xá tem nosso apoio e também tem nossa confiança” e o diretor da CIA, Stansfield Turner, afirma que “recebi um relatório da assessoria onde é dito que o Xá vai sobreviver por mais dez anos” no poder. Morte ao Xá! O grito de guerra da revolução - Morte ao Xá! - foi escutado pela primeira vez em Tabriz e espalhou-se a todas as manifestações do país. Em 4 de setembro uma manifestação de 4 a 5 milhões é realizada em Teerã para comemorar o Eid ul-Fitr, o feriado do fim do Ramadã5, e se transforma num gigantesco protesto político. A lei marcial é decretada em 12 cidades no dia 8, mas, ainda assim, milhares de pessoas voltam a sair às ruas de Teerã para reunir-se na Praça Jaleh, onde as tropas reais começam a atirar contra a multidão, de helicópteros e do solo, assassinando centenas de pessoas6 no 44 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 4 O calendário imperial substituiu o antigo calendário persa, causando a ira do clero xiita. 5 Ramadã: nono mês do calendário islâmico, onde os muçulmanos praticam o jejum. É considerado o mês em que foi revelado o Corão. 6 Este número é motivo de muitas controvérsias, pois na época o clero xiita falava de dezenas de milhares de mortos. Emad al-Din Baghi, historiador da Fundação dos Mártires do Irã, estabeleceu o número de 88 em suas pesquisas. Michel Foulcaut, testemunha ocular, falou em 2 a 3 mil mortos. O número exato nunca será conhecido, mas as imagens do massacre indicam a possibilidade de centenas de mortos. Dossiê massacre conhecido como “sexta-feira negra”. No dia seguinte, Khomeini, do exílio, chama a realização de uma greve geral. Além das mobilizações populares, os métodos e reivindicações típicos da classe operária passam a ser incluídos na agenda revolucionária. As greves começam a pipocar envolvendo milhares de operários e culminam numa greve geral dos petroleiros no fim do mês que, por sua vez, incendiou a população em manifestações e rebeliões de apoio por todo o país. Durante o mês de outubro as greves se sucedem. São bancários, funcionários públicos, mineiros, trabalhadores têxteis, dos correios e telégrafos, transportes e rádio e televisão. Os jornalistas param no dia 11 de outubro. Os bancários paralisam o sistema financeiro do país, com a greve do Banco Central, seguida do incêndio de cerca de 400 agências bancárias pelas massas. Os bancários revelaram que 178 pessoas ligadas ao Xá haviam transferido um bilhão de libras ao exterior. Mas não só seus amigos. Segundo David Rockfeller, presidente do Chase Manhattan Bank, Pahlevi possuía depósitos de US$ 2 bilhões, cuja retirada poderia levar o sistema bancário norte-americano à bancarrota. Finalmente, depois de mobilizações permanentes enfrentando a repressão armada e a prisão de líderes, uma greve geral de petroleiros iniciada em 21 de outubro sela o destino do Xá. Negam-se a produzir petróleo sob a ditadura. O primeiro-ministro Sharif-Emami renuncia em 4 de novembro e o Xá faz um pronunciamento na TV dizendo que “ouvi a voz de sua revolução ... Como Xá do Irã e como cidadão iraniano, eu devo apoiar sua revolução”. Sucedem-se a nomeação do general Reza Azhari para primeiro-ministro que, no entanto, impõe a lei marcial. No início de dezembro, cerca de 9 milhões, num país com 35 milhões de habitantes, saem às ruas exigindo a “morte ao Xá”. Uma declaração de 17 pontos é apresentada com a exigência de “independência, liberdade, república islâmica” e a afirmação de que o aiatolá Khomeini é o líder dos iranianos. Os comandantes não conseguem ordenar a repressão e os manifestantes sobem nos tanques e caminhões para se solidarizar com os soldados, entregandolhes flores. A última jogada do Xá foi a indicação de um antigo líder oposicionista para primeiro-ministro, Shapour Bakhtiar, em 29 de dezembro. Ele tentaria uma transição pacífica ao novo regime em acordo com Mehdi Bazargan, futuro chefe do governo revolucionário provisório de Khomeini. “O roteiro da transição seria: a partida do Xá, a instauração de um Conselho da Coroa, convocação de eleições gerais e livres, instalação de uma Assembléia Constituinte e, por fim, a transferência do poder”7. Mas o retorno de Khomeini em 1º de fevereiro de 1979 e uma gigantesca manifestação de mais de um milhão de pessoas nas ruas de Teerã em 8 de fevereiro exigindo a renúncia de Bahtiar impede qualquer acordo. Em 11 de fevereiro de 1979 completa-se a dissolução da monarquia, com a ocupação de Teerã por forças guerrilheiras, a população armada e tropas rebeldes. Reza Pahlevi não presenciou a queda de seu próprio império, pois em 16 de janeiro de 1979 havia embarcado num Boeing pilotado por ele próprio rumo ao Kuwait, primeiro, e aos Estados Unidos, definitivamente, para “tirar férias e tratar de uma doença”, onde 7 COGGIOLA, O. O Irã no centro do mundo. www.blog.controversia.com.br, acessado em 20/10/2009 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 45 Dossiê morreria em 1981. Uma revolução operária A revolução do Irã foi marcada por grandes manifestações, convocadas pela hierarquia xiita e organizações sindicais e políticas de várias tendências. O protesto de dezembro, com 9 milhões de pessoas nas ruas, é considerado a maior concentração popular da história das revoluções. Mas é necessário olhar para a ação operária para entender a dimensão dessa grandiosa revolução. Nos últimos 15 anos da ditadura, com a “modernização”, uma classe operária poderosa seria formada a partir dos investimentos imperialistas, enquanto a burguesia nacional perdia sua força relativa. Havia, em 1978, dois milhões de operários industriais, além de 750 mil trabalhadores nos setores de transportes e outros serviços, concentrados em bairros da periferia das grandes cidades. A maioria das empresas era de pequeno porte, com 35 a 50 empregados, ao lado de fábricas gigantes que dominavam a cena, principalmente do setor petroquímico, automobilístico e da construção civil, algumas delas com dezenas de milhares de trabalhadores. Pode-se fazer um paralelo com a Rússia na revolução de 1917, que possuía uma classe operária de 4 milhões para 150 milhões de habitantes, enquanto no Irã havia quase o mesmo número de operários para 35 milhões. Foi este contingente que marcou o fim do reinado do Xá, ao paralisar a economia do país com suas greves, principalmente da categoria petroleira. É como afirmava uma declaração da Ala Militante dos Trabalhadores de Indústrias Petrolíferas do Irã de 5 de junho de 1979: Os trabalhadores da indústria petrolífera foram os que derrubaram o regime de 2500 anos de monarquia e despotismo. Quando sua heróica greve deteve o fluxo do petróleo, cortaram a veia jugular da monarquia. E ao romper a barreira representada pela monarquia, abriram as portas à liberdade e à abundância para uma sociedade atrasada como a nossa. As esperanças numa nova liberdade eram enormes, e as massas começaram a exercê-la com a constituição de comitês revolucionários, os shoras. Foram criados para ocuparem-se da distribuição de alimento e combustível à população, durante a greve geral que decretou a queda do Xá, e posteriormente adquiriram um caráter militar, prendendo membros do antigo regime e executando os agentes da odiada Savak. Espalharam-se por todas as cidades do país e na capital, Teerã, chegaram a existir 14 grandes comitês e outros 1500 de menor alcance. Após a queda do Xá, multiplicaram-se e se desenvolveram de forma independente em relação à burguesia, constituindo-se em embriões de duplo poder. O jornal New York Times de 24 de fevereiro de 1979 publicava uma matéria de seu enviado especial, onde se podia ler: Além dessas autoridades centrais há grupos que têm boas conexões e podem conseguir coisas, como os aiatolás e os mulás. Finalmente, quase todos os ministérios, bancos, escritórios ou fábricas têm um comitê de trabalhadores pelos quais todas as ordens devem passar para ter alguma chance de aprovação. O membro do gabinete do primeiro46 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê ministro, Abbas Amir Entezam, reclamou na última quarta-feira que “apesar do comando do Aiatolá, nenhuma das grandes indústrias estão operando porque os operários gastam todo seu tempo realizando reuniões políticas”. Tais reuniões tinham como objetivo organizar a produção sob o controle dos trabalhadores, a conquista de reivindicações econômicas, e a construção de sindicatos. Segundo um jornal da época, “os petroleiros ... formaram recentemente uma organização nacional, o Sindicato Nacional dos Petroleiros. Estão reivindicando jornada semanal imediata de 42 horas e a abertura dos livros de contabilidade das empresas petrolíferas. Se o governo [de Khomeini] não responder em três dias, entrarão em greve”. A burguesia e a hierarquia xiita desejavam a normalização imediata do país e o fim dos comitês revolucionários, mas as condições políticas lhes eram desfavoráveis. Mehdi Barzagan, o primeiro-ministro indicado por Khomeini, reclamava que os comitês estavam se constituindo num “poder paralelo ao meu próprio governo provisório”. Ideologia e realidade O fato de a revolução iraniana ter sido dirigida por líderes religiosos, como o aiatolá Khomeini, levou os propagandistas do imperialismo a afirmar que sua causa fundamental foi religiosa, com muçulmanos fanáticos que repudiavam a modernização ocidental e desejavam retornar à idade média para construir uma República Islâmica, submetida às leis do Corão. Seria, em essência, uma revolução reacionária. É verdade que as medidas de ampliação dos direitos da mulher adotadas pelo Xá, como a permissão para frequentar a universidade, o direito ao voto e ao divórcio8, sofreram a oposição do reacionário clero xiita. É verdade, também, que essa a propaganda religiosa era difundida a todo o mundo por Khomeini desde Paris, seu local de moradia desde 6 de outubro de 1978. Porém, como disse Marx, “cada época acredita piamente no que a época em questão diz de si própria e nas ilusões que cria sobre si própria”9, e isso vale perfeitamente para os ideólogos da República Islâmica. Mas é necessário fazer a distinção entre o que cada um pensa ser e o que realmente é. Vejamos: A República Islâmica defendida por Khomeini tinha duas instituições principais: os poderes executivo e judiciário. Estas instituições teriam a obrigação fundamental de aplicar e defender as leis divinas, escritas no Corão. O sistema judiciário seria composto por pessoas com conhecimento profundo destas leis, o clero xiita. E “no alto do poder temporal encontra-se o imã, em sua função de intérprete supremo das leis divinas, de guia espiritual e de coordenador dos aparelhos judiciário e executivo”10. Khomeini seria confirmado imã após a aprovação da constituição islâmica no plebiscito de 1º de abril de 1979. Para conhecermos o significado concreto de sua investidura, basta remover o manto religioso que encobre a constituição para verificar sua condição de Bonaparte11, com a missão de reconstruir o Estado burguês. Da mesma forma, a burguesia nacional iraniana não entrou em choque com o imperialismo para defender uma hipotética superioridade do islã sobre o cristianismo ocidental, mas para tomar posse da renda do petróleo. Tratava-se 8 A revogação do uso do chador já havia sido adotada por Reza Khan, pai de Pahlevi. 9 MARX, K., ENGELS, F. Feuerbach, a oposição entre as concepções materialista e idealista. Capítulo 1 de A ideologia alemã Lisboa: Ed. Estampa, 1975, p. 72. 10 Declaração de Khomeini em Paris. 11Bonapar tismo: regime de caráter ditatorial, apoiado diretamente nas Forças Armadas e executado pela burocracia estatal. Seu governo “da ordem” apela sempre a um “árbitro inapelável”, capaz de arbitrar entre os distintos setores e classes sociais, com o objetivo de derrotar o movimento operário e estabilizar o Estado burguês. Porém, o governo Khomeini nos primeiros meses da revolução, quando os Comitês Revolucionários exerciam um duplo poder, pode ser caracterizado como kerensquista. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 47 Dossiê de uma burguesia frágil de conjunto, que perdera força perante o movimento de massas com a capitulação do nasserismo ao imperialismo na década de 60 e via nascer “uma nova corrente de massas, que organizava camadas inteiras da pequena burguesia e setores desclassificados”12, através de uma rede de 180 mil mulás que controlavam o movimento através de uma ideologia religiosa. Sem condições de impedir a revolução e temendo muito mais a insurreição operária do que a dominação imperialista, a burguesia volta-se ao islamismo, “que rechaça simetricamente o imperialismo e a emancipação do proletariado”13, para derrotar o processo revolucionário. Por isso, assim que Khomeini assumiu o poder, a indústria petrolífera foi nacionalizada, bem como todo ramo energético e bancário. As propriedades do Xá foram expropriadas e o comércio exterior ficou sob controle estatal. São políticas muito mais próprias de uma burguesia nacional em luta contra o imperialismo para manter sua parte na mais-valia extraída e sob o peso de um processo revolucionário gigantesco, do que de um anticapitalismo reacionário ávido por um retorno à época feudal. A contrarrevolução A queda do Xá causou a liberação das forças revolucionárias da população. Os shoras surgiam em todas as partes, revelando a força do movimento operário. No campo eram criadas organizações semelhantes para a ocupação das terras. As organizações de esquerda saiam da clandestinidade e publicavam inúmeros jornais, enquanto as minorias nacionais de língua árabe, turcomana e curda exigiam autonomia em suas regiões. A burguesia dividia-se, com o surgimento de um setor contrário ao controle total do aparato estatal pelo clero xiita, representado por Bazargan e Bani Sadr. Este setor refletia interesses diversos em relação ao imperialismo e quanto aos métodos utilizados para controlar o movimento operário. Preferia desviar a revolução para o rumo da democracia burguesa, com suas instituições “representativas” e eleições regulares. Mas tais instituições eram inexistentes no Irã, o que debilitou suas posições. Apenas um Bonaparte, capaz de colocar-se “acima” das classes pela sua posição de imã, poderia manobrar adequadamente entre as pressões do imperialismo de um lado e do movimento de massas de outro. Sua ideologia reacionária, posta a serviço da defesa irredutível da propriedade privada, combinada com a repressão brutal foram as formas encontradas pela burguesia do bazar para a defesa de seus interesses históricos de classe. Em junho de 1979 uma nova lei de imprensa foi aprovada, dando o sinal verde para a perseguição aos jornais de esquerda. E agosto a redação do Ayandegan foi fechada, seguindo-se o fechamento de 34 jornais de oposição no mesmo mês. Em setembro os dois maiores jornais burgueses do país, Kayhan e Ettela’at, foram expropriados e transferidos para a Fundação dos Deserdados, controlada pelo clero. Os partidos oposicionistas foram postos na clandestinidade, como o Mujahedeen-e Khalq (Mujadines ou Lutadores do Povo), guerrilha pequenoburguesa de ideologia muçulmana, e o Hezb-e Kargaran-e Sosialist (HKS ou Partido Socialista dos Trabalhadores), trotsquista. Massoud Rajavi, líder dos 48 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 2 D I V È S, Je a n Phillippe. Uma guerra contra os pueblos de Irak e Irán. Correo Internacional, n. 7, 1985. 13 Idem Dossiê Mujadines, foi obrigado a exilar-se na França, enquanto 14 dirigentes do HKS foram presos, doze dos quais condenados à morte. O único partido operário que permaneceu legalizado durante três anos foi o Tudeh (Partido Comunista Iraniano), de orientação stalinista, por declarar lealdade a Khomeini e apoiar o clero xiita em sua repressão às organizações de esquerda. Apenas em 1982, devido à ocupação do Afeganistão pela burocracia soviética, os membros do Tudeh foram considerados agentes de uma potência estrangeira e postos na ilegalidade. Em fevereiro do ano seguinte Nureddin Kianuri, principal dirigente do Tudeh, foi preso. Kianuri, como bom stalinista, confessou na televisão ser espião da União Soviética. O levante da minoria curda pela autodeterminação foi o mais importante e adquiriu um caráter de massas. Os curdos, dirigidos pelo Partido Democrático, exigiam a autonomia administrativa do Cordestão, o direito à sua própria língua e cultura, uma participação específica na receita nacional e a responsabilidade pelas forças locais de segurança. O descontentamento da minoria curda ficou demonstrado no plebiscito constitucional, rejeitado pela imensa maioria da população sob a palavra de ordem de “abaixo o plebiscito, primeiro a autodeterminação”. Os choques com as forças armadas de Khomeini começaram em agosto de 1979, sob o governo de Bazargan. A guerrilha curda chegou a controlar parte de seu território, até que o exército iniciou uma ofensiva, ocupando a cidade de Bukan em novembro de 1981 e todo o território em 1983. A repressão também atingia os shoras que não se sujeitaram às novas instituições da república islâmica. Segundo a Anistia Internacional, pelo menos 900 pessoas foram executadas entre janeiro de 1980 e junho de 1981, em sua maioria lutadores da esquerda e da minoria curda. Nos doze meses seguintes, mais 2974 mortes foram computadas. Estima-se em 20 mil o número de prisioneiros políticos durante 1981 e, conforme a revista Time, cerca de cem mil em 198414. São números que nada deixam a desejar da época do terror imperial. As forças khomeinistas conseguiram, finalmente, consolidar sua posição em fins de 1981, tomar o controle absoluto do poder e estabilizar relativamente o Estado burguês. Além da sangrenta repressão interna, a invasão do Irã pelo Iraque muito contribuiu para isso. A guerra Irã-Iraque Em 22 de setembro de 1980, Saddam Hussein invade o Irã para impedir que o processo revolucionário avançasse para o território iraquiano através da comunidade xiita, que compõe 70% da população iraquiana, e do levante curdo. O exército iraniano consegue repelir o invasor e no início de 1982 o território iraniano estava liberado. Khomeini, no entanto, decide continuar a guerra, que duraria mais seis anos, ao custo de pelo menos 500 mil vidas. O ataque da ditadura de Hussein ocorreu num momento vital do processo revolucionário. “O movimento independente dos shoras, depois de uma reativação ao calor de uma onda de lutas econômicas da classe operária era o alvo de uma ofensiva frontal por parte do regime. A campanha de “união nacional” que o regime islâmico pôde encarar frente ao ataque iraquiano, 14 Idem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 49 Dossiê permitiu-lhe dar golpes decisivos contra toda expressão independente da classe operária”15. Apesar de uma guerra sem país vencedor, pois acabou por um acordo na ONU, ela atingiu o objetivo que os Estados Unidos e a burocracia soviética perseguiam ao dar apoio a Hussein: ajudar a derrotar a onda revolucionária. Nesse sentido, pode-se dizer que o maior beneficiado pelo resultado, além do próprio Khomeini, foi o imperialismo, pois esgotava a energia anti-imperialista das massas iranianas e impunha limites ao grau de independência política conseguida pelo Irã com a queda de Pahlevi. As contradições da luta anti-imperialista A revolução iraniana tinha um caráter democrático e anti-imperialista, que estava se transformando em revolução social pelo impulso das massas contra a exploração capitalista. Além de arbitrar o conflito entre a burguesia nacional e a classe operária, Khomeini desempenhava o papel de um bonapartismo sui generis, pois manobrava entre a mobilização das massas e a pressão imperialista para não perder o controle do processo, ao mesmo tempo em que zelava pela manutenção da propriedade privada. Este duplo papel limitava a luta pela independência nacional, devido ao caráter dependente da burguesia. Esta contradição ficou claramente demonstrada quando, em 4 de novembro de 1979, estudantes, incentivados pelo chamado de Khomeini para uma “mobilização geral contra o grande Satanás, os Estados Unidos”, invadiram a embaixada norte-americana sem sua prévia autorização, para exigir a extradição de Reza Pahlevi e a devolução de sua fortuna depositada nos bancos dos EUA. Com a lembrança ainda recente da derrota no Vietnã e a campanha pelos “direitos humanos” do presidente Carter, os Estados Unidos não ousaram invadir o Irã. E ficaram desmoralizados ao realizar uma operação secreta para o resgate dos 66 reféns - a Operação Garra da Águia -, que terminou com a morte de oito soldados no choque de um helicóptero com um avião norteamericanos em território iraniano. Mas a “crise dos reféns”, em vez de uma vitória contra o “grande Satanás”, desembocou numa capitulação vergonhosa do governo iraniano. Os reféns foram libertados em 20 de janeiro de 1981 por um acordo com o novo governo de Ronald Reagan16, pelo qual os EUA liberavam US$11 bilhões de fundos iranianos retidos pelos bancos norte-americanos em troca do pagamento de US$ 5,1 bilhões de empréstimos fraudulentos realizados por Reza Pahlevi. A crise da direção revolucionária Apesar de antiga tradição marxista – a delegação iraniana no Congresso dos Povos do Oriente, organizada pela III Internacional em 1920, era a segunda em tamanho, com 192 membros17 – o longo período da ditadura dos Pahlevi havia impedido seu desenvolvimento. Apenas o Tudeh, de origem stalinista, encontrava-se em condições de organizar uma parcela dos trabalhadores no período revolucionário. Mas seu papel traidor durante seu período de legalidade, seu histórico de capitulações, como o apoio à Revolução Branca do Xá, e sua submissão incondicional à burocracia soviética impediram que se transformasse numa alternativa para a classe operária. 50 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 15 Idem. Para uma análise completa da guerra Irã-Iraque, o artigo referenciado pode ser encontrado em www.archivoleontrotsky.org. 16 A eleição presidencial norte-americana ocorreu em novembro de 1980. Um dos principais fatores que contribuiu para a derrota de Carter em sua tentativa de reeleição foi a crise dos reféns e o fracasso da Operação Garra de Águia. 17 BROUÉ, P. História da Internacional Comunista. São Paulo: Ed. Sundermann, 2008 Dossiê Os jovens partidos marxistas, como o HKS, sofreram uma perseguição implacável e as variantes pequeno-burguesas do islamismo, como os fedaines e os mujadines, embora tenham sido oposição ao regime de Khomeini, apoiavam a República Islâmica e não defendiam a independência de classe em seus programas. Outros grupos, como o Paykar (uma dissidência marxista dos mujadines) e a União dos Comunistas tiveram seus líderes assassinados em 1983, além da prisão e execução de milhares de militantes. Ao drama da revolução, soma-se o da ausência de um partido revolucionário que não pôde ser construído no calor de uma luta tão complexa como a que se deu no Irã, um país muçulmano em que: O combate contra as direções islâmicas [deve ser feito]... pondo no centro as necessidades da luta de classes, o combate ao imperialismo e aos governos lacaios. Desmascarar sua inconsequência, seu palavrório, sua submissão aos interesses burgueses, seu falso igualitarismo, é parte do combate e o fazemos deste ângulo, o da luta dos trabalhadores por cima das crenças religiosas, e não do combate à religião.18 Uma revolução interrompida Com a consolidação do poder por Khomeini em fins de 1981 e uma relativa estabilidade das instituições islâmicas a partir de 1985, com a transformação da burguesia do bazar o do próprio clero xiita numa grande burguesia industrial e financeira, o Irã continua refém de suas contradições internas, com as mais elementares tarefas democráticas não resolvidas. A burguesia iraniana, com seus atuais chefes islâmicos demonstraram na prática esse limite estrutural, histórico, das burguesias coloniais e semicoloniais que são incapazes de realizar até o fim as tarefas democráticas que historicamente as revoluções burguesas cumpriram na aurora do capitalismo, a saber, a independência nacional, a reforma agrária e as liberdades democráticas. Em relação ao imperialismo, o Irã consegue sua independência política com a revolução de 1979. Mas, a partir do momento em que a revolução é congelada nos marcos do capitalismo, quando a burguesia nada tem a oferecer, nem mesmo a realização de suas próprias tarefas históricas, o retrocesso é sempre iminente. Como veremos no artigo seguinte, a tendencia à abertura ao capital estrangeiro e à acomodação ao sistema imperialista vem se intensificando desde a consolidação do novo regime. A revolução iraniana passa à história como uma das mais importantes que a humanidade já conheceu, mas ao não expropriar a burguesia para a construção de uma sociedade socialista sua tarefa não foi terminada, tivemos uma extraordinária revolução desviada e abortada, ao permanecer o domínio capitalista. 18 PARRAS, Angel Luis. Islamismo, expressão distorcida do nacionalismo. Em: O Oriente Médio na perspectiva marxista. São Paulo: Editora Sundermann, 2007, p. 167 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 51 Dossiê ~ Por uma nova revolucao ´ iraniana José Welmowicki Editor de Marxismo Vivo Tito Niegra Partido Socialista dos Trabalhadores (PSTU) - Brasil 2009: Manifestações contra a fraude eleitoral Em 12 de junho passado ocorreram as eleições para a presidência do Irã. Mal havia se encerrado a votação, foram divulgados os resultados oficiais, dando a vitória ao presidente Mahmoud Ahmadinejad, que buscava a reeleição, por 62,3% contra 33,7% de seu principal adversário, Mir-Hossein Mousavi. Imediatamente após a divulgação iniciou-se uma gigantesca onda de mobilizações populares denunciando a fraude. Estima-se em mais de três milhões os manifestantes que ocuparam as ruas de Teerã e de outras importantes cidades por vários dias, desafiando a forte repressão do Estado e dos grupos paramilitares leais ao regime. Esta, que foi a maior revolta popular após a revolução de 1979, retrocedeu em um primeiro momento, após a violenta repressão que assassinou ao menos 17 ativistas e prendeu centenas, mas logo depois, em 18 de setembro, as massas deram provas de que não estavam derrotadas, e aproveitando-se dos atos convocados oficialmente no Dia de Jerusalém, ação anual pró-Palestina e contra Israel, participaram das manifestações, mas com suas próprias bandeiras e slogans contra o regime, desafiando os organizadores, todos vinculadas à hierarquia. Ainda em setembro assistimos a novas manifestações, desta vez contra as prisões políticas e as severas penas que a ditadura quer impor aos que foram detidos nos atos anteriores. No momento em que escrevemos este texto, a imprensa internacional noticia que as forças de segurança cumpriram suas ameaças e reprimiram manifestantes convocados pela oposição, que iriam participar da comemoração, neste 4 de novembro, do 30º aniversário da ocupação da Embaixada americana em Teerã. A burguesia internacional, por meio de seus agentes, os governos, a grande mídia, a União Européia, coerente com seus objetivos geopolíticos e econômicos (que de fato são tão somente econômicos), explora ao máximo 52 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê essas mobilizações, denuncia a fraude e a repressão e exige a “democratização”; interessa-lhe o enfraquecimento do regime para que possa negociar em condições mais vantajosas, acelerar a abertura econômica, as privatizações, e aumentar sua influência na região. E quanto à esquerda? Apoiamos Ahmadinejad e seu discurso antissionista e anti-imperialista? Ou talvez Mousavi com suas promessas de democratização e reforma política? Apoiamos e nos solidarizamos com a mobilização popular que vem sendo violentamente reprimida? Ou essa onda de protestos é coisa das classes médias abastadas, pró-imperialistas e manipuladas pela CIA? Queremos discutir qual o caráter de classe do regime iraniano, e a partir daí nos posicionarmos frente à realidade atual. É de fundamental importância para os trabalhadores iranianos e de toda a região que não se cometa os erros de 30 anos atrás, que levaram à derrota da revolução e à implantação de uma ditadura teocrática. É possível e necessário que se construa uma saída de classe para a crise atual. O regime dos aiatolás Estes recentes protestos populares no Irã são o ápice de um processo que vem sendo fermentado há anos, e para sermos mais exatos, são parte de uma luta que vem sendo travada desde 1979, há 30 anos, portanto, pelos protagonistas de uma das mais impressionantes revoluções do século 20, a classe trabalhadora iraniana, que na origem dirigia-se contra monarquia repressiva corrupta do Xá, e hoje se dirige contra a burguesia encabeçada por um clero islâmico reacionário, que assumiu o poder após a derrubada do Xá, e se impôs principalmente às custas de uma violenta repressão contra os opositores. Uma das questões que ajuda a criar confusão sobre o caráter do regime iraniano é sua origem na revolução de 79. Assumindo o poder à frente desta tremenda revolução e obrigado a utilizar um discurso anti-imperialista pela dimensão da luta e pelos ataques impiedosos que o imperialismo deflagrou desde o início, o clero xiita utilizou expressões típicas da esquerda e das correntes de libertação nacional e nacionalizou a indústria petrolífera e o comércio exterior. Mas, desde o início, a política deste setor que assumiu o poder depois da queda do Xá era reconstruir o poder burguês, estabilizar o capitalismo para terminar com a situação revolucionária e colocar os trabalhadores como seu apêndice, reprimindo-os, caso necessário. O regime teocrático criou, desde o início, dois fortes instrumentos repressores, diretamente vinculados ao Líder Supremo. O primeiro é a Guarda Revolucionária Islâmica (Pasdaran), com a função de preservar a segurança nacional e defender a revolução, atuando na defesa contra ataques externos, e na repressão à oposição interna, seja dos trabalhadores, da juventude, ou das minorias étnicas. O segundo instrumento de repressão são grupos paramilitares não-regulares, conhecidos como milícias Basij, formados principalmente por jovens recrutados na zona rural e entre o lumpesinato. Constitui-se de um efetivo de 90 mil na ativa e dois milhões de reservistas. São uma “força de intervenção popular rápida” e têm como função “combater os inimigos internos da Revolução e fazer respeitar os códigos islâmicos”. São conhecidos pela violência e crueldade na repressão às manifestações de Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 53 Dossiê protesto internas, sendo os responsáveis pelos assassinatos nas manifestações após as eleições deste ano. Tanto os membros da Guarda Revolucionária quanto os das milícias Basij vêm sendo mantidos sob rígido controle por meio de benefícios financeiros e favores, sendo que atualmente as Guardas Revolucionárias expandiram sua atuação também para áreas de indústria e comércio de armamentos, telecomunicações, etc., por meio de fundações, como será visto a seguir. Apesar da violenta repressão por parte do Estado, a classe trabalhadora iraniana não parou de lutar, até porque os ataques às suas condições de vida e aos seus direitos nunca permitiram que as experiências da revolução de 1979 fossem esquecidas. A luta dos trabalhadores e oprimidos Apesar da repressão permanente, o movimento operário iraniano é dos mais fortes e combativos da região. Como descrito em artigo nesta mesma revista1, os Comitês Operários (Shoras) foram a base fundamental da revolução de 79, sendo por isso atacados e reprimidos duramente pela hierarquia xiita. Logo nos primeiros anos no poder, os aiatolás impuseram um modelo repressivo de sindicato, pelo qual os trabalhadores são pretensamente representados pelas Casas de Trabalho, entidades totalmente controladas pelo regime. No entanto, desde o final dos anos 90, apesar da repressão, os operários vêm retomando suas lutas e construindo instrumentos independentes de organização. Desde 2003, os trabalhadores vêm participando dos atos de 1° de maio, procurando dar aos mesmos um caráter de manifestações não oficiais, de reivindicações e de protestos. Mesmo com o regime reprimindo com prisões e demissões, a cada ano mais e mais setores aderem a estas manifestações de protesto, levantando as bandeiras por melhores condições de vida, por liberdade e contra o regime. Na cidade de Tabriz, segunda maior concentração industrial do Irã, o sindicato oficial decidiu que a manifestação do 1º de maio de 2006 seria a favor do programa nuclear iraniano. Os manifestantes (cem mil pessoas, segundo algumas fontes) passaram dos lemas oficiais, a gritar palavras de ordem com suas reivindicações trabalhistas. Alguns setores construíram seus sindicatos ou comitês de empresa independentes: um exemplo são os condutores de ônibus de Teerã. Este vem sendo um sindicato independente muito ativo, que organizou várias greves e lutas vitoriosas contra a prefeitura e o regime. Seu dirigente, Mansur Osanloo, está há vários anos na prisão. A comissão da fábrica de automóveis Khodro é outra vanguarda da reorganização. Há anos eles lutam e resistem às pressões do regime. Recentemente, em maio último, estes trabalhadores obtiveram uma importante vitória quando entraram em greve pelo recebimento de salários atrasados, conseguindo também que os operários temporários fossem efetivados. Aliás, chama a atenção o fato de cada vez mais trabalhadores sairem à luta para, simplesmente, receber os seus salários. Os efeitos da crise econômica mundial, que a burguesia tenta jogar nas costas dos trabalhadores, fez com que ocorressem cada vez mais lutas, nas mais diversas categorias: a mídia 54 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Ver Irã,1979: uma revolução interrompida nesta edição. Dossiê internacional noticia que 1700 operários da Wagon Pars Company, grande empresa construtora de vagões ferroviários e recentemente privatizada, localizada em Arak, um dos principais centros industriais do Irã, entraram em greve de fome por não receberem seus salários há mais de 75 dias (a empresa admite atraso de dois meses), e por estes atrasos serem constantes. A greve de fome teve início depois que a empresa demitiu parte dos grevistas. Os operários da Wagon Pars receberam a solidariedade dos trabalhadores da Iran Khodro, cujos operários têm longa tradição de luta. Dentre estas várias greves ocorridas em 2009 contra o atraso dos salários, podemos ainda citar a dos trabalhadores da fábrica de pneus Alborz, com salários atrasados há 5 meses, e a dos trabalhadores de várias fábricas têxteis. Por fim, queremos citar a luta dos professores, dos quais 80% são mulheres, com salários extremamente baixos, que vêm construindo manifestações massivas por melhorias salariais, e são um dos setores de ponta na luta contra o regime. Os trabalhadores e a juventude vêm encontrando interessantes formas de burlar a repressão: participam de manifestações organizadas oficialmente e a partir de um determinado momento começam a gritar as suas próprias palavras de ordem antiregime. Isso ocorreu, além do 1º de Maio, no Dia de Jerusalém e, agora, na comemoração do 30º aniversário da ocupação da embaixada americana em Teerã. Juntamente com as lutas dos trabalhadores, há as lutas por liberdades democráticas dos estudantes e das mulheres, como as que ocorreram em 1999 e foram fortemente reprimidas sob o governo de Khatami. Por fim, as minorias étnicas lutam por seus direitos (e em alguns casos por seus territórios), como os curdos e azeris na região norte e os baluches no sul do Irã. A estrutura econômica do Irã O Irã possui uma população de aproximadamente 67 milhões de habitantes bastante jovem, com uma idade média de 27 anos, sendo 68% concentrada nas cidades. Sua força de trabalho é estimada em 25 milhões de trabalhadores, distribuídos nos setores da agricultura (25%), indústria (31%) e serviços (45%). A taxa de desemprego oficial é de 12,5%, mas estimativas não-oficiais dão números superiores a 20%. A taxa oficial de inflação - certamente subestimada - foi de 25,6% em 2008, uma das mais altas do mundo, e 25% da população vive abaixo do nível de pobreza, segundo o Ministro do Bem Estar Social. A economia iraniana é capitalista, ainda que sua forma de gestão possa confundir um observador desavisado, pois é composta por um emaranhado de empresas estatais, diversas fundações islâmicas (as chamadas Boniads) e empresas privadas. Esta estrutura expressa a forte relação de dependência e interesses mútuos entre a burguesia (a tradicional e a composta pelos altos escalões do Estado) e o clero islâmico, que parasita o Estado, acumulando fortunas incalculáveis. O exemplo das Boniads é bastante ilustrativo: foram criadas no governo do Aiatolá Khomeini, com o objetivo de “redistribuir a riqueza” confiscada do regime do Xá, por meio da construção de casas populares, clínicas de saúde, etc. Atualmente são em torno de 100 grandes fundações (Fundação dos desamparados, Fundação dos mártires, Fundação Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 55 Dossiê dos oprimidos e inválidos de guerra, etc.), que atuam em praticamente todos os ramos da economia iraniana, e movimentam uma fração impressionante do PIB, entre 30 % e 50%. Estas fundações são consideradas entidades privadas, e eram até há pouco tempo isentas de impostos, de taxas de importação, além de gozarem de enormes benefícios e privilégios, de forma que acabam por monopolizar os setores da economia em que atuam. Além disso, o tráfico de influência e a corrupção não permitem que grandes negócios sejam realizados sem a participação ou intermediação de uma fundação. Não há controle algum sobre seus negócios e sua contabilidade, pois só devem prestar contas ao Líder Supremo, que indica e afasta os dirigentes. Por trás destas fundações encontraremos as lideranças religiosas (os mulás e aiatolás), os máximos dirigentes do Estado, os comandantes da Guarda Nacional, e uma rede de aliados, ou seja, a nova burguesia que se formou e se consolidou com o regime islâmico, cujos negócios e acúmulo de riqueza dependem de suas relações com o aparato do Estado. Tomemos como exemplo a Mostazafan & Jambazan Foundation (Fundação para os Oprimidos e Inválidos da Guerra), o segundo maior empreendimento comercial do país, perdendo apenas para a gigante estatal National Iranian Oil Co. Ela emprega mais de 400 mil trabalhadores, possuindo ativos superiores a US$ 10 bilhões, em setores tão díspares como a antiga rede de hotéis Hilton, a companhia de refrigerantes Zam-Zam, sucessora da Pepsi, uma companhia de transportes marítimos, petroquímicas, indústrias de cimento, propriedades rurais e imóveis urbanos. Criada originalmente como uma fundação de assistência social, capitalizada com elevadas somas expropriadas das riquezas do Xá, em 1996 começou a requerer fundos governamentais para cobrir os gastos assistenciais, ao passo que começava a abandonar suas funções para se dedicar exclusivamente às atividades comerciais. Esta fundação esteve até há pouco tempo nas mãos de Mohsen Rafiqdoost, Ministro da Guarda Revolucionária nos tempos de Khomeini e transferido para a Fundação em 1989, quando o aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani assumiu a presidência do país. Atualmente, Rafiqdoost, filho de modestos comerciantes de frutas e verduras à época da revolução, é um dos homens mais ricos e poderosos do regime, e está à frente de outra Fundação, a Noor Foundation, que constrói blocos de apartamentos e atua na importação de produtos farmacêuticos, açúcar, materiais de construção, etc. O poder no Estado Iraniano Os protestos que levaram multidões às ruas, contra os resultados eleitorais no Irã, e que ainda continuam, expõem as profundas divisões na sociedade daquele país. A mídia internacional procura caracterizar as eleições como uma disputa entre o Bem (Mir-Hossein Mousavi) e o Mal (Mahmoud Ahmadinejad), sendo que o primeiro representaria a democracia, a liberdade, e a modernidade enquanto o segundo seria a continuidade de uma ditadura, de um país ligado ao terrorismo internacional. Alguns setores da esquerda entendem de outra forma: Mousavi seria um agente a serviço do imperialismo, um entreguista neoliberal, enquanto Ahmadinejad seria a garantia de um país 56 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê independente, antissionista e que manteria acesa a chama anti-imperialista. Afinal, quem e o que representam e defendem estes personagens? O clero xiita foi a direção política de um setor burguês que se insurgiu contra a espoliação exacerbada realizada pelo imperialismo por meio de seu agente, o Xá. Para isso, o clero se apoiou no protesto das massas. Mas assim que se sentiu fortalecida o suficiente, tratou, conforme seus interesses de classe, de reconstruir o Estado burguês e submeter os trabalhadores. Hoje, o clero segue sendo expressão de setores burgueses que lutam por um espaço próprio no mercado, frente à ofensiva recolonizadora e às limitações impostas pela crise econômica mundial. O Estado iraniano é burguês e tem um regime bonapartista. De tal forma que as disputas eleitorais se dão por dentro das instituições e são um jogo de cartas marcadas. As eleições no Irã são totalmente controladas pelo poder central (o Líder Supremo e o Conselho de Guardiões) que não permite candidaturas independentes, de mulheres, e muito menos de opositores de esquerda. Não há liberdade de organização política. Com isso, as disputas eleitorais vêm se resumindo a embates entre representantes das frações burguesas que dão sustentação ao regime. Antes de analisarmos estas disputas entre os setores da burguesia iraniana, vejamos um pouco da biografia de seus representantes: • Aiatolá Ali Khamenei: teve importante papel na implantação da República islâmica, sendo um colaborador bastante próximo de Khomeini. Foi presidente do Irã de 1981 a 1989, ano em que foi eleito Líder Supremo pelo Conselho de Especialistas, em substituição à Khomeini que falecera. É, portanto, o centro do poder hoje, mas é criticado por vários setores do regime que já começam a discutir sua sucessão • Aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani: presidiu o parlamento iraniano entre 1980 e 1989, sendo posteriormente eleito Presidente do Irã de 1989 a 1997, sucedendo Ali Khamenei. É acusado por vários setores de corrupto e de utilizar seu poder para beneficiar os negócios familiares. Em 2003 foi citado pela revista Forbes como um dos homens mais ricos do Irã. Voltou à cena em 2005 quando disputou a presidência com Ahmadinejad, que o derrotou no segundo turno. Rafsanjani ocupa a presidência do Conselho de Especialistas desde 2007. • Mohammad Khatami: antes de ser eleito presidente, Khatami foi membro do Parlamento (de 80 a 82), Ministro da Cultura e ocupou vários cargos no governo. Exerceu o cargo de presidente por dois mandatos, de 1997 a 2005. Sua primeira eleição, em 1997 foi um marco no processo político iraniano, pois 80% do eleitorado compareceu às urnas (o voto não é obrigatório no Irã) e destes, 70% votaram em Khatami, atraídos pelas propostas que o identificavam como um político reformista. No plano econômico, Khatami deu continuidade ao projeto neoliberal de seu antecessor, Rafsanjani, financiando o setor privado, abrindo a economia e acelerando as privatizações. • Mir-Hossein Mousavi: foi primeiro-ministro do Irã de 1981 a 1989, o período da guerra Irã-Iraque. Teve importante papel nos acordos secretos com os EUA, conhecido como o escândalo Irã-Contras. Após a morte de Khomeini, que lhe dava sustentação política, seu grupo ficou enfraquecido Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 57 Dossiê e ele se afastou da vida pública, retornando nas últimas eleições como o candidato a presidência do setor reformista, derrotado por Ahmadinejad. • Mahmoud Ahmadinejad: após a revolução, fez parte da Agência para a Consolidação da Unidade (OSU), entidade estudantil criada para combater os grupos de esquerda que tradicionalmente atuavam nas universidades. Durante a investida contra as universidades, chamada por Khomeini de Revolução Cultural Islâmica, os militantes da OSU promoveram o expurgo de um grande número de professores e estudantes dissidentes, muitos dos quais foram presos e executados. Ocupou cargos de governador em pequenas províncias, até que em 2003 assumiu a prefeitura da cidade de Teerã. Em 2005 foi eleito presidente com um discurso populista, dizendo-se defensor dos pobres. Como se pode constatar são todos políticos com origem no clero ou em organizações ligadas à hierarquia e que fizeram suas carreiras por dentro do regime, ocupando importantes cargos na estrutura de poder iraniano nos últimos 30 anos. Nenhum destes personagens representa um rompimento com o regime teocrático, continuam fiéis à República Islâmica, colocam-se como seus defensores e disputam posições aceitando suas regras. Na essência, Ahmadinejad e Mousavi representam dois grandes blocos da burguesia que disputam eleitoralmente o controle do aparato estatal para melhor se beneficiarem economicamente. Nesse ponto há muita semelhança com as disputas interburguesas tão comuns na maioria dos países e que se expressam em distintos partidos. Esta disputa tornou-se mais acirrada nas últimas eleições, como consequência da crise econômica e da queda do preço do petróleo, o que significa uma diminuição do tamanho do “bolo” e menos oportunidades de negócio. Reflexo disso foi Ahmadinejad acusar publicamente a Rafsanjani de corrupto, enquanto este defendeu o fim da figura do Líder Supremo, que deveria ser substituído por um Conselho de Aiatolás. Há outra componente, relacionada ao tratamento dado aos movimentos sociais (lutas sindicais, juventude, mulheres, minorias étnicas e religiosas), sobre qual é a melhor tática para não fugirem do controle, e assim não questionem ou enfraqueçam o regime islâmico, mas que também deem sustentação eleitoral a uma ou outra ala. Este é um tema extremamente importante e muito atual, já que o governo vem procurando jogar as consequências da atual crise econômica nas costas dos trabalhadores, aumentando os conflitos e tensões sociais. A ala de Ahmadinejad e de Ali Khamenei investe na repressão, no aparato policial e nas milícias fascistas; atacam as lutas sindicais e por liberdades políticas, prendem seus dirigentes; não reconhecem os direitos das mulheres e das minorias étnicas. E trata de compensar essa posição opressiva com populismo, prometendo mais comida aos pobres, e políticas assistencialistas e compensatórias, embalados por um forte discurso anti-imperialista, utilizado para justificar, tanto as “dificuldades econômicas” quanto a repressão aos “agentes desestabilizadores infiltrados”. O discurso anti-imperialista tem ainda a função de elevar, interna e externamente, o regime iraniano como liderança regional, que se coloca contra os interesses americanos na região, fortalecendo-se e aumentando sua importância nas negociações internacionais. 58 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê A ala reformista, representada por Mousavi, defende um regime com algumas aberturas, com maiores liberdades e, que alivie ou desvie as tensões sociais, evitando que fuja do controle, pois teme uma explosão social que possa derrubar os alicerces do regime, como já ocorreu em situações semelhantes. Apresenta-se como liberal, tanto política como economicamente. A campanha de Mousavi baseou-se em promessas vagas como a justiça social, a igualdade, a liberdade de expressão, o combate à corrupção, etc. Com isso, recuperou a simpatia dos movimentos sociais, particularmente da juventude e de setores da classe média, que haviam se decepcionado com o governo de seu aliado Khatami, que há dez anos uniu-se a Khamenei na repressão violenta às manifestações estudantis por liberdades democráticas, liberdades que iam além dos limites aceitáveis para o regime. Esta é uma ala da burguesia iraniana com maiores ligações com o imperialismo europeu, com o qual tem fortes vínculos comerciais em várias áreas, e por isso defende maior abertura econômica e a aceleração das privatizações. Já vimos que estas alas da burguesia iraniana movem-se em defesa de seus interesses na apropriação das riquezas do Estado, mas se unem quando veem qualquer ameaça ao regime teocrático, numa clara indicação de quão limitada é a “democratização” defendida pela ala de Mousavi. E quanto à gestão da economia? Ainda que haja diferenças nos ritmos que cada um quer impor, não há uma disputa entre os defensores da privatização e os que defendem uma economia estatizada. Ou entre aqueles que querem mais relações comerciais com o imperialismo, e aqueles que as rejeitam. Qualquer análise das medidas tomadas por Ahmadinejad mostram que foi em seu governo, considerado estatizante e anti-imperialista por parte da esquerda, que ocorreu o maior número de privatizações, e quando as relações comerciais com o imperialismo, inclusive o americano, mais se intensificaram. Na página oficial da Organização Iraniana de Privatização é apresentada, como oportunidade de investimento para o mercado internacional, a lista das empresas a serem privatizadas em 2009, por meio da venda de suas ações ou pelo recebimento de ofertas2. A lista envolve petroquímicas, siderúrgicas, companhias de gás, de refino de petróleo, companhias aéreas, bancos, a Companhia Iraniana de Telecomunicações. Somado a isso, tem-se o anúncio do atual Ministro do Comercio do Irã, Masoud Mir-Kazemi, de que o Irã atraiu, em 2008, 300% mais investimentos externos que nos dois anos anteriores; ou ainda o anúncio do Ministério de Assuntos Econômicos e Finanças, de que na gestão Ahmadinejad as privatizações já haviam superado em mais de três vezes as ocorridas nos quinze anos anteriores. Por fim, dados oficiais revelam que, apesar dos choques e da hostilidade no discurso, os governos Bush e Ahmadinejad foram extremamente pragmáticos em termos de parceria comercial: as transações comerciais entre EUA e Irã aumentaram cerca de 600% nos quatro anos do primeiro mandato do presidente iraniano. Como vimos, estas duas alas do regime iraniano são semelhantes, e o que levou o acirramento das disputas entre as mesmas atingir um nível inédito nestas eleições é a crise econômica, que como dissemos, reduz as “oportunidades”. Para se manterem, estas alas têm que, necessariamente, uma tomar 2 www.guardian.com. u k / wo r l d / 2 0 0 9 / oct/12/us-irantrade-mahmoudahmadinejad #historybyline, acessada em 26/10/09 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 59 Dossiê o espaço da outra, e isso enfraquece o regime, provoca fissuras. O problema para eles é que a crise tem outras consequências: ao procurar transferir a conta para os trabalhadores, leva-os a reagirem, a se defenderem, a lutarem... e é isso o que explica o aumento das greves no último período. As massas, ao entrarem em cena na luta por seus interesses, intervêm no processo eleitoral, e acirram ainda mais as contradições do regime bonapartista, levando a uma crise nas alturas. É muito difícil, dado o grau de crise e enfraquecimento do regime, que mesmo com a violenta repressão seja possível voltar ao status anterior, como almeja Ahamadinejad, ou apenas com pequenas aberturas como querem Mousavi e Rafsanajani. A experiência da revolução de 79 poderia servir de lição aos ditadores de hoje, e talvez seja a origem dos fantasmas de suas noites mal dormidas. Esta revolução certamente continua nas mentes e corações dos trabalhadores, que foram novamente despertados para a ação política de massas. Os acordos do Irã com o imperialismo para a estabilização da região Não se pode entender a posição dos imperialismos na crise que vem se arrastando desde junho, sem analisarmos o papel que ultimamente o Irã vem cumprindo na situação regional: se por um lado o imperialismo tenta, desde a revolução de 79, liquidar definitivamente qualquer traço de independência do regime (e isso explica, por exemplo, a pressão que vem fazendo contra o programa nuclear), por outro reconhece a importância do Irã na solução dos vários problemas regionais causados pela desastrosa política da “guerra contra o terror” de Bush, que reduziu significativamente a força de pressão militar dos EUA, apesar das centenas de milhares de soldados enviados ao Iraque e Afeganistão sem conseguir estabilizar a situação. Some-se a isso a derrota de Israel no Líbano em 2006, além de outro componente explosivo, que foi a abertura da “caixa de pandora” das lutas inter-étnicas na região. Hoje os americanos já não podem contar com aliados de peso na região: já não contam mais com ex-aliados, como Sadam Hussein em 1980, antes de ser descartado, nem com a influência que o Egito já teve, hoje governado por Mubarak cada vez mais desmoralizado perante as massas, pelo seu giro à direita; Israel é odiado e saiu enfraquecido do Líbano, e não se pode contar com a monarquia corrupta da Arábia Saudita. O Irã tornou-se o único país com peso suficiente sobre as direções e sobre as massas para desempenhar um papel significativo na estabilização da região. Sua influência sobre o Hezbollah, e nos últimos tempos sobre o Hamas, o fortalece como um fator real de poder na área. Mesmo a Síria, até hoje governada pelo Baas, tem se colocado em uma parceria com os iranianos para subsistir frente à pressão de Israel e dos EUA. O imperialismo viu-se então obrigado a negociar e contar com algum tipo de relação com o mesmo regime acusado de “fora-da-lei”, “terrorista”, etc. E estas negociações começaram ainda durante o governo de Bush, para garantir minimamente a estabilidade no Iraque, com o governo títere de Jaafari e depois de Al Maliki, dirigentes da burguesia xiita iraquiana que eram e são até hoje homens de confiança do Irã. Como explicar que os governos de Jaafari e agora de Al Maliki, totalmente vinculados politicamente ao Irã, 60 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê sejam o braço da ocupação se não por uma aliança prática entre Irã e EUA na sustentação desse “governo”? As negociações entre EUA e Irã desenvolveram-se ainda mais com a mudança da realidade após a derrota da política de guerra contra o terror de G. W. Bush. Apesar dos conflitos com os EUA, estes não impediram que a direção da república islâmica negociasse e colaborasse ativamente com a dominação imperialista na região, sempre que isso permitisse tirar algum proveito, conseguir ao menos uma pequena parte dos despojos da rapina imperialista. Além do exemplo já citado dos acordos para a sustentação dos governos títeres no Iraque, é um fato já documentado que o Irã vem colaborando com os EUA em sua ocupação do Afeganistão. Como os talibãs não estão sob sua esfera de influência, e sob o argumento de que o Talibã pode vir a se tornar um problema para a estabilização da região, o Irã permite que armas americanas atravessem seu território para abastecer as tropas que ocupam o Afeganistão. Além disso, o Irã tem pressionado política e financeiramente o Hezbollah para que se incorpore ao governo burguês do Líbano. Assim, o Irã contribuiu para uma relativa estabilização regional, por acalmar uma das principais organizações que enfrentam militarmente Israel, permitindo um respiro ao Estado sionista. O governo Obama, diante da crítica situação deixada por Bush no Oriente Médio, definiu-se por intensificar as negociações com as forças da região, buscando uma saída honrosa para a retirada de seus soldados, ao mesmo tempo em que tenta uma relativa estabilização da região. Para isso, dispõe-se a uma maior interação com o Irã, o que explica em parte a mudança no tom das negociações. Os EUA mostram-se dispostos a reavaliar uma colaboração com os aiatolás, desde que o regime aceite alguns limites, como o abandono do projeto de enriquecimento de urânio e suas pretensões de produzir armas nucleares. Não por acaso, Obama fez questão de dizer que abriria o diálogo com o regime do Irã em sua campanha eleitoral, apesar de suas diatribes contra Israel. E estimulou abertamente Lula a receber Ahmadinejad em dezembro no Brasil, para convencê-lo a ser mais flexível. O Programa Nuclear Iraniano: mais uma capitulação ao imperialismo Apesar de todas “propostas de diálogo” feitas ao Irã, o imperialismo é muito claro nas negociações referentes ao acordo nuclear: não aceitará que o Irã se dote de uma tecnologia que lhe permita desenvolver armas nucleares, pois isso provocaria muito mais instabilidade da região, particularmente com Israel. No entanto não conseguem demonstrar que o Irã esteja infringindo alguma das regras das convenções internacionais, mesmo considerando-se o Tratado de Não Proliferação vigente, que serve aos interesses das grandes potências. Apesar disso os EUA exigem o fim do programa nuclear iraniano, sob o argumento de que o país não necessita de usinas nucleares para a produção de eletricidade. Esquecem-se que anos antes usaram argumento inverso para poder vender reatores ao Irã, quando esse era dirigido pelo governo fantoche dos americanos. Os EUA têm uma política seletiva para a questão nuclear: apoiou e colaborou com o programa nuclear de Israel e do Paquistão, sem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 61 Dossiê que estes países, juntamente com a Índia (outra aliada), assinassem o Tratado de Não Proliferação. Nestes anos todos, o Irã tem denunciado publicamente a discriminação pela qual vem passando, e afirmado que não abrirá mão de seu direito de enriquecer urânio. Defendemos o direito do Irã à posse e desenvolvimento da tecnologia nuclear, inclusive a de produzir armas nucleares para defender-se do imperialismo e de Israel. No entanto, a tendência do regime nesse campo também tem sido a de capitular, mantendo o discurso anti-imperialista para seu público interno, e buscando conseguir melhores condições nas negociações conduzidas pela AIEA e pelo Conselho de Segurança da ONU. O Irã vem cedendo cada vez mais sua autonomia, chegando ao ponto de aceitar, mesmo com idas e vindas, abrir mão de seu programa de enriquecimento, e enviar seu urânio estocado (enriquecido a 3,5%) para ser enriquecido na Rússia e França ao nível de 18,5%, retornando já como elementos combustíveis montados em reator nuclear para a produção de radio-fármacos utilizados no diagnóstico e tratamento de câncer. Assim, o Irã não teria urânio em quantidade suficiente para promover o enriquecimento nos níveis necessários para a construção de armas nucleares. Qual a saída para o Irã sob a ótica da classe trabalhadora? A única saída viável para o Irã é uma revolução que derrube o Estado vigente e aponte a tomada do poder pela classe operária aliada aos camponeses e setores populares. Os diversos processos de luta que vêm ocorrendo ultimamente se enfrentam diretamente com o inimigo verdadeiro: a ditadura teocrática, que reprime os trabalhadores, a juventude, as mulheres, as minorias étnicas e religiosas, e todos os opositores de um modo geral. Como dissemos no início deste texto, as manifestações de junho foram as maiores desde 79, e fez com que todos se recordassem daquele processo. Mas muitos detratores do movimento dizem que eram apenas manifestações da “classe média” urbana, manipuladas pelo imperialismo. Qualquer análise séria mostra que nas manifestações de junho havia uma participação do movimento operário organizado, seja através de presença física de trabalhadores ou de manifestos como o da Iran Khodro e dos condutores de Teerã. Por isso, houve fortes manifestações não somente em Teerã, mas também em cidades industriais como Isfahan, ou Tabriz (na região azerbaijã). Por outro lado, houve uma participação importante dos professores, das mulheres, do movimento estudantil e de intelectuais. Isso se deu porque a classe operária e os setores populares estão fartos de serem reprimidos e sofrerem as consequências da exploração capitalista, avalizada pela hierarquia xiita. Ou seja, foi de fato um levante operário e popular contra um regime burguês repressivo, apesar de sua direção ser capitalizada por uma ala da burguesia. Em um enfrentamento entre as massas e esse regime, não pode haver nenhuma dúvida quanto ao lado que nos posicionamos: do lado das massas que exigem seus direitos democráticos, ao mesmo tempo em que denunciamos a direção política burguesa e pró-imperialista, representada por Mousavi. Não se pode permitir que os mesmos erros de 79 se repitam, e que a burguesia, (seja a governante, ou as frações opositoras), tome a direção deste 62 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê processo de lutas; isso novamente levaria as massas a um beco sem saída. É preciso que a classe operária iraniana avance em suas instâncias e métodos de organização, postule-se como direção dos demais setores oprimidos, e construa uma saída classista para o Irã, oposta ao regime dos aiatolás, e contra a oposição burguesa e o imperialismo; uma saída que aponte para uma sociedade socialista. A defesa das liberdades democráticas não pode ficar nas mãos do imperialismo O governo Ahmadinejad continua a perseguição aos opositores após as manifestações de junho, sob o pretexto de que são organizados pelo imperialismo. Infelizmente, uma parte significativa da esquerda, particularmente a ligada aos partidos stalinistas e aos chavistas, alinha-se a esta posição e defende o governo de Ahmadinejad, classificando os protestos como uma “conspiração da CIA”. Dessa forma, acabam defendendo a sangrenta repressão do governo iraniano sobre as massas, alegando que é justificável a repressão ao povo para defender-se do imperialismo. Essa postura, na prática, é uma valiosa contribuição ao imperialismo, pois deixa em suas mãos sujas de sangue a bandeira da defesa das liberdades democráticas e da denúncia da repressão. Estas bandeiras devem estar nas mãos das organizações dos trabalhadoresàs quais é destinado o papel de capitanear o processo de luta dos oprimidos, chamando a mais ampla unidade de ação em defesa dos direitos democráticos. Por liberdade de expressão e de imprensa, eleições livres, liberdade de organização política, por uma Assembleia Constituinte e laica, pelo direito a organizar sindicatos livres, pelos direitos de organização e expressão das minorias, e pelo fim de todas as instituições bonapartistas típicas do regime teocrático. E devem, neste processo, colocar suas bandeiras de classe contra a exploração capitalista e por seu direito à organização independente. Esse é o caminho para desmascarar Mousavi e sua ala, que têm como limite a defesa do regime. É preciso combatê-la por dentro do processo de mobilização para que não canalizem as legítimas aspirações das massas iranianas para o beco sem saída da reforma do regime e da abertura cada vez maior ao imperialismo. Repetimos que, se os trabalhadores e a esquerda mundial não assumirem a bandeira das liberdades democráticas no Irã, estas serão arrebatadas por setores da burguesia e do imperialismo, que acabarão ganhando o respaldo das massas. Defender a repressão às manifestações em nome de uma suposta natureza anti-imperialista de Ahmadinejad e do regime é repetir a traição do Tudeh iraniano e da esquerda anti-Khomeini após 79, o que permitiu o fortalecimento do regime, e a repressão ao desenvolvimento de uma alternativa independente de classe no Irã. A esquerda revolucionária deve impulsionar a luta contra a ditadura dos aiatolás, e ao mesmo tempo denunciar qualquer ilusão na oposição burguesa e no imperialismo. A tomada do poder pela classe trabalhadora é o único caminho para expulsar de vez o imperialismo e acabar com a exploração capitalista no Irã. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 63 Dossiê Afeganistã~ao: Uma encruzilhada para o imperialismo Bernardo Cerdeira Editor de Marxismo Vivo 2001: ocupação do Afeganistão pelos EUA A atual situação do Afeganistão está marcada por três problemas fundamentais. O primeiro é, obviamente, a guerra, que já dura oito anos, entre os mais de cem mil soldados das forças de ocupação imperialista e a guerrilha do Talibã. O segundo é a crise do governo e do regime político colonial, montados e sustentados pelos EUA, afundados em corrupção, tráfico de drogas e fraudes eleitorais. O terceiro é o dilema da política global do imperialismo, que deve decidir entre aumentar a escalada militar de envio de tropas e armamentos ou se arriscar a que o Talibã tome outra vez o poder. Partindo da análise destes três aspectos, queremos chegar às questões mais importantes que estão em jogo na guerra do Afeganistão. A guerra No Correio Internacional de setembro deste ano, a LIT resumia assim a atual situação militar dos Estados Unidos neste conflito: Tropas dos Estados Unidos ocupam o Afeganistão há oito anos, um período quase 50% mais longo que o envolvimento do país nas duas Guerras Mundiais. No entanto, depois de todo este tempo, o Talibã, que foi deposto do governo no momento da ocupação em 2001, mantém uma atividade guerrilheira permanente em quase todo o país. Segundo o centro de estudos britânico International Council on Security and Development (citado pelo Estado de São Paulo de 11/09/2009) o Talibã age em 97% do território afegão. Em 80% do país a presença de insurgentes seria permanente. Esta porcentagem vem crescendo 64 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê rapidamente, já que em novembro de 2007 era de 54% e em 2008, 72%, segundo o mesmo estudo. Um mapa produzido pelo instituto mostra que quase metade do país está sob controle dos Talibãs ou sob risco de ataque. Nos últimos meses, os insurgentes aumentaram seus ataques no norte do país, uma região que até então era considerada pacífica. As baixas americanas e dos outros países da OTAN vêm crescendo constantemente e atingiram seu número mais alto este ano. As tropas de ocupação controlam apenas a região da capital Cabul, mas mesmo assim não conseguem evitar os ataques do Talibã, inclusive um atentado a bomba em frente ao quartel-general da OTAN que matou 7 pessoas.1 A situação descrita acima não só se confirmou como se agravou sensivelmente nos últimos dois meses. Em outubro morreram 55 soldados americanos, o maior número de baixas em um único mês desde o início da guerra. Por outro lado, o Talibã intensificou os ataques aos caminhões que abastecem regularmente as tropas imperialistas com combustíveis, alimentos e suprimentos. Vários comboios que vêm do Paquistão, atravessando as montanhas pela rota do Passo Khyber, têm sido atacados e destruídos. O aumento de ações do Talibã prossegue apesar do governo Obama ter procurado fortalecer sua posição militar este ano: enviou mais 30 mil soldados ao país e deslocou quatro mil deles para a província de Helmand, para combater a presença dos insurgentes na região, uma das mais conflagradas do Afeganistão. Atualmente, 68 mil soldados dos Estados Unidos e 32 mil de outros países da OTAN ocupam o país, totalizando 100 mil militares, o maior número desde o começo da guerra. As forças da OTAN, além dos EUA, são compostas principalmente por soldados de países imperialistas europeus: a Inglaterra com 8300 homens; a Alemanha tem 3600; França, 3300; Espanha, 2400; Itália 2800. Mesmo assim, o general Stanley McChrystal, comandante das forças de ocupação no Afeganistão, pediu ao governo o envio de mais 40 mil soldados, sem os quais, segundo ele, os EUA estariam sob risco de sair derrotados desta guerra. Não é necessária tal declaração para se concluir que os Estados Unidos e a OTAN estão com graves problemas do ponto de vista militar. A maior evidência é o próprio pedido de aumentar as tropas americanas em 60%, o que significa um esforço de guerra extraordinário, com o equivalente em armas e suprimentos. Com as Forças Armadas dos EUA esgotadas depois de combater durante oito anos em duas guerras simultâneas, é fácil entender que não se apelaria para tal medida se esta não fosse decisiva. O imperialismo não pode se dar ao luxo de sofrer outra derrota militar, desta vez no Afeganistão. A derrota no Vietnã custou anos de crise até que os Estados Unidos pudessem retomar sua ofensiva contra os povos explorados do mundo. A derrota no Iraque, ainda que o governo dos EUA tente atenuar seus efeitos e busque uma retirada “honrosa”, significou o fim do projeto de um novo “século americano” e da ofensiva bonapartista que o acompanhava. Uma derrota no Afeganistão pode abrir uma nova crise de grandes proporções. 1 Correio Internacional, n. 152, setembro 2009 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 65 Dossiê O Talibã e a extensão da guerra ao Paquistão Outro aspecto fundamental da situação militar é a facilidade geográfica que o Talibã encontra para desenvolver sua atividade guerrilheira. Como todos os movimentos de guerrilha bem-sucedidos, o Talibã se fortalece porque tem um país vizinho, neste caso o Paquistão, que pode utilizar como refúgio para seus militantes. Os insurgentes do Talibã atravessam a fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, porosa e com muito pouca vigilância, e se abrigam no país vizinho. Aproveitam-se dos laços étnicos, culturais e até familiares, já que sua principal base de apoio encontra-se entre o mesmo povo, os pashtun, que vive dos dois lados da fronteira. O povo pashtun, que constitui a maior etnia do Afeganistão com 40% da população, também está presente em grande número no Paquistão, principalmente na chamada Província da Fronteira Noroeste, nas Áreas Tribais e no norte da Província do Baluquistão. Além disso, no Paquistão existem mais de cinco milhões de refugiados afegãos, a maioria de pashtuns, uma grande parte concentrada ao redor da cidade de Peshawar. No total, 26 milhões de pashtuns vivem no Paquistão. O Talibã chegou a dominar uma região, o Vale do Swat na Província da Fronteira Noroeste, onde implantaram a Lei muçulmana da sharia2, com o acordo implícito do governo paquistanês. Recentemente, o governo rompeu o acordo e atacou o Talibã, expulsando-o do Vale. No entanto, a ofensiva do exército paquistanês gerou mais de dois milhões de refugiados paquistaneses em seu próprio país. Nos últimos dias de outubro, o exército paquistanês começou outra ofensiva, desta vez para tentar desalojar o Talibã do Waziristão do Sul, uma região das chamadas Áreas Tribais do Paquistão. Para se ter uma idéia do que significa a presença do Talibã nesta área, é interessante ver o depoimento do jornalista David Rohde do New York Times. Rohde foi sequestrado no Afeganistão e mantido como refém durante sete meses pelos Haqqani, uma das facções do Talibã. Depois foi levado para o Waziristão do Sul e mais tarde para o Waziristão do Norte. Ali, o Talibã criou um mini-Estado, um “emirado islâmico” no feitio do que havia no Afeganistão antes da invasão das tropas dos EUA. O jornalista afirma: “A perda de milhares de vidas afegãs, paquistanesas e americanas e bilhões de dólares em ajuda americana apenas deslocaram o Estado alguns quilômetros para o leste, não o eliminaram”.3 O que fica evidente com as campanhas do exército paquistanês no Vale do Swat e no Waziristão é que a guerra estendeu-se ao Paquistão. As razões são políticas e sociais, facilitadas pela geografia. Os dois países compartilham 2400 quilômetros de fronteira, mas esta linha existe somente nos mapas. Ou seja, como pano de fundo da extensão do conflito ao Paquistão está uma questão nacional muito presente nesta região: a divisão artificial do povo pashtun promovida pelo imperialismo britânico em 1893, quando estabeleceu a Linha Durand, uma fronteira traçada entre a Índia Britânica e o território afegão. Durante décadas, nacionalistas pashtuns defenderam a criação do Pashtunistão como um país independente, constituído pelas áreas sob domínio desta etnia no Afeganistão e Paquistão. 66 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 2 Corpo de Direito islâmico, adotado pela maioria dos mussulmanos. Constitui um código detalhado de conduta, na qual se incluem também as normas relativas aos modos do culto, os critérios da moral e da vida, as coisas permitidas ou proibidas, as regras separadoras entre o bem e o mal. 3 The New York Times, artigo reproduzido pela Folha de S. Paulo (02/11/2009) Dossiê Esse processo, portanto, deve ser entendido no seu contexto regional e mundial. A guerra do Afeganistão é uma guerra de libertação nacional contra a ocupação militar imperialista. Por isso une diferentes etnias de países da região, que também lutam contra a opressão do imperialismo e seus agentes nacionais e a divisão promovida pelo imperialismo. A guerra não só já está desestabilizando o Paquistão como pode chegar a desestabilizar toda a região, porque, além disso, o Afeganistão tem uma posição estratégica no Oriente Médio: está localizado entre o Irã, a Ásia Central e o subcontinente indiano e tem laços étnicos com os povos iranianos, turcos e indianos de vários países da região. Porém, o mais importante é que esta guerra de libertação nacional se insere no contexto geral da luta dos povos islâmicos contra o imperialismo. Por isso, assistimos ao fenômeno de combatentes de diferentes nacionalidades islâmicas apoiando a insurgência. Por fim, ao golpear e enfraquecer diretamente o imperialismo, a guerra de libertação nacional do povo afegão transforma-se em um fato de repercussão mundial para os trabalhadores e os povos de todo o mundo. Antes, porém, de abordar a situação política da ocupação militar e a política de Obama, parece-nos útil aportar alguns dados que permitam compreender melhor o Afeganistão e alguns elementos de sua história recente. O que é o Afeganistão? O Afeganistão é um país com 85% do seu território formado por montanhas, numa área de 647,5 mil km². Sua população estava estimada em cerca de 32 milhões de habitantes em 2008. É um dos países mais pobres do mundo. A taxa de mortalidade infantil é de 160,23 mortes a cada 1000 nascimentos. A expectativa de vida é de 43 anos. A instabilidade política e os conflitos internos arruinaram a já débil economia e infra-estrutura. Hoje, cerca de 1/3 da população afegã já abandonou o país. No Afeganistão convivem diferentes grupos étnicos que em sua maioria são povos iranianos, ou seja, falam idiomas indo-europeus do subgrupo das línguas iranianas (os pashtuns, os tadjiques e os balúchis, por exemplo). Outras etnias falam línguas do grupo turco (como os uzbeques e turcomanos). O idioma dari, também chamado de persa oriental ou farsi oriental, é falado em 50% do país e utilizado como língua franca de comunicação entre os diferentes povos iranianos. Como não há um censo sistemático no país, não existem estatísticas exatas do tamanho e da composição dos variados grupos étnicos. Segundo o CIA World FactBook4, uma distribuição aproximada é a seguinte: pashtuns, 42%, tadjiques 27%, hazaras 9%, uzbeques 9%, aimaks 4%, turcomanos 3% e balúchis 2%.5 Estes grupos étnicos vivem também em vários dos países com os quais o Afeganistão faz fronteira. Por exemplo, existem cerca de 26 milhões de pashtuns no Paquistão, segundo o último censo. A maioria vive na Província da Fronteira Noroeste, cuja capital é Peshawar, mas também existem 3,5 milhões de pashtuns em Karachi, a maior cidade do Paquistão e que abriga a maior concentração da etnia pashtun em uma única cidade. Outras etnias 4 Espécie de anuário da CIA onde analisam dados geográficos, econômicos e sociais de todos os países do mundo. 5 CIA World FactBook, 2007. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 67 Dossiê são majoritárias em países vizinhos, como Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão. As bases históricas da guerra atual Os elementos da história recente do Afeganistão que explicam as raízes da guerra atual começaram a ser gerados há três décadas: a Revolução iraniana e a invasão soviética do Afeganistão. Em 1979, uma revolução operária e popular no Irã derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Este acontecimento teve um tremendo impacto sobre os povos islâmicos oprimidos pelo imperialismo. Também teve repercussão entre as então Repúblicas de maioria islâmica da fronteira sul da ex-União Soviética (Uzbequistão, Cazaquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirquistão)6, assim como entre as etnias islâmicas dentro da Rússia (como os chechenos), todas oprimidas pelo “chauvinismo” grão russo, incentivado pela burocracia stalinista. O Afeganistão tinha um governo próximo ao da União Soviética, mas ameaçado por uma crescente oposição islâmica e problemas internos. Temendo a constituição de uma república islâmica na sua fronteira e a possível extensão da revolução islâmica a suas repúblicas da Ásia Central, a União Soviética invadiu o Afeganistão. A invasão soviética desencadeou uma luta guerrilheira de resistência. Os Estados Unidos aproveitaram-se da insatisfação gerada pela invasão para combater a influência soviética nessa parte do mundo e desgastar a burocracia comunista. Para isso, apoiaram e armaram uma guerrilha muçulmana, os “mujaheddin”, à qual se uniram combatentes islâmicos de vários países, entre os quais Osama Bin Laden e boa parte das organizações islâmicas fundamentalistas atuais. Alguns dos principais atores da guerrilha foram os “senhores da guerra”, oligarcas que hoje dirigem as principais nacionalidades do país. Depois de dez anos, a guerrilha islâmica expulsou os soviéticos em 1989 e tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram a se enfrentar e o país mergulhou na guerra civil. Diante desta situação, os Estados Unidos, agindo por meio de seu aliado, a ditadura militar que governava o Paquistão, buscaram criar um instrumento para estabilizar o país. O ISI (organismo de segurança do governo paquistanês) incentivou a formação de uma organização de estudantes das Madrassas (escolas islâmicas) da região onde predomina a etnia pashtun. Seus membros ficaram conhecidos como Talibãs, palavra emprestada do árabe talib (estudante ou quem estuda o livro, isto é, o Corão) e utilizada no plural Talibã (em farsi e em pashtun). O Talibã entrou na guerra civil e, depois de uma campanha militar vitoriosa, conseguiu tomar o poder e governar o país de 1996 a 2001. No princípio, o Talibã foi visto com muita simpatia porque trazia ordem a um país mergulhado no caos e na destruição devido aos confrontos entre os “senhores da guerra”. Depois, no entanto, foi se desgastando, à medida que foi instituindo uma república islâmica das mais reacionárias e repressivas do mundo, especialmente em relação às mulheres. No entanto, por mais reacionário que fosse, o governo do Talibã não gozava da confiança dos Estados Unidos, pois não estava sob seu controle. O 68 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 6 O nome desses países é formado pela adição do sufixo ostan (que quer dizer “lugar” em farsi ou persa) e o nome da etnia principal do país. Assim, Uzbequistão significa “lugar ou terra dos uzbeques”, Tadjiquistão, “lugar ou terra dos tadjiques” etc. Afeganistão significa “lugar, terra ou país dos afegãos”, que é o nome pelo qual eram conhecidos os pashtuns. Dossiê atentado de 11 de setembro de 2001 e o objetivo declarado de capturar Osama Bin Laden, aliado do governo Talibã, foi o pretexto para Bush invadir o país. Mas as verdadeiras razões da guerra eram econômicas e geopolíticas. Um dos objetivos centrais do imperialismo é o escoamento da produção das principais empresas petrolíferas dos países da Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão) por um oleoduto que atravessaria todo o Afeganistão até um porto no Paquistão. Desta maneira, aquele teria o controle total sobre os oleodutos e gasodutos, ou seja, o transporte do petróleo que atualmente está nas mãos da Rússia. Além disso, o Afeganistão tem uma posição geográfica estratégica para a estabilidade da região. Está localizado entre o Oriente Médio, região detentora das maiores reservas de petróleo do mundo, a Ásia Central, que também tem importantes reservas, e o subcontinente indiano. Um dos objetivos da ocupação era manter bases militares permanentes dos EUA no Afeganistão. Expulso do governo, o Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma guerra de guerrilha contra as tropas de ocupação. O imperialismo, mais uma vez, atuou como “aprendiz de feiticeiro”, criando um instrumento que mais tarde voltou-se contra ele. Contraditoriamente, um movimento reacionário atualmente luta de armas na mão contra o imperialismo. A crise política da dominação colonial Com a ocupação militar por tropas do imperialismo norte-americano e seus aliados, o Afeganistão transformou-se numa verdadeira colônia, sem independência política ou econômica. Como na maioria das colônias, a ”metrópole” procura transferir para um regime político e um governo “local” algumas tarefas da administração da máquina estatal civil e, inclusive, uma parte da repressão interna (embora, no caso do Afeganistão, a guerra de libertação nacional force a que a maior parte da repressão seja assumida pelas forças de ocupação). Os Estados Unidos nomearam diretamente o governo de Hamid Karzai para cumprir este papel no Afeganistão. É um governo colonial fantoche que depende totalmente das tropas de ocupação. E se baseia em um regime de democracia colonial farsesco, em que todas as instituições se apoiam nas tropas de ocupação ou em organismos internacionais para poder existir. Mas, apesar disso, o imperialismo tenta conferir ao regime uma aparência democrática e ao governo um reconhecimento internacional que justifique a ocupação militar. No entanto, os Estados Unidos enfrentam uma dificuldade enorme não só para montar este regime e governo coloniais locais como para organizar o próprio Estado. O aparato estatal e a própria infraestrutura do país são muito débeis devido ao atraso, às dificuldades geográficas e aos quase trinta anos de guerras permanentes desde a invasão pela União Soviética. O próprio exército afegão, a mais importante instituição de qualquer Estado, não passa de uma junção dos exércitos dos “senhores da guerra”, que controlam as principais etnias do país (tadjiques, uzbeques e hazaras). A polícia afunda-se em incompetência e corrupção e o tráfico de ópio e heroína atinge os principais escalões do governo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 69 Dossiê A produção de drogas é um dos elementos não só de corrupção, mas também de fragilização do Estado. E não é um problema qualquer: no Afeganistão, o ópio, proveniente das plantações de papoula, é o principal produto de exportação, com um valor estimado em US$ 5 bilhões anuais. O país produz 93% da matéria-prima mundial necessária para a fabricação da heroína. O imperialismo utiliza frequentemente as drogas como uma arma política. Mas, neste caso, existe um grande risco, nos dois sentidos. Por um lado, não há como controlar as plantações de papoula, principalmente nas regiões mais conflagradas. Por isso, o dinheiro da droga é uma das principais fontes de financiamento do Talibã. A província de Helmand, com forte presença do Talibã, produz 70% do ópio afegão. Por outro lado, o narcotráfico infiltra-se diretamente no aparato do Estado fantoche. Um dos principais traficantes do país é Walid Karzai, irmão do atual presidente e denunciado como sendo um agente pago pela CIA desde 2001. Neste aspecto, a situação no Afeganistão se parece cada vez mais com o Vietnã, onde os principais traficantes do país chegaram a ser Nguyen Van Thieu e Cao Ky, respectivamente presidente e vice-presidente do governo fantoche do Vietnã do Sul. O perigo para Karzai é terminar como Cao Ky ou Ngo Dinh Diem, alijados do poder por disputas internas entre os grupos de traficantes do governo. Esses problemas estruturais do regime colonial, que têm a ver com uma produção econômica e uma burguesia local extremamente frágeis e com o apoio maciço à insurgência guerrilheira, constituem o pano de fundo da atual crise política do processo eleitoral e do governo de Karzai. Em setembro, o Correio Internacional já assinalava a crise do processo eleitoral e os problemas que isso trazia para o objetivo do imperialismo de tentar dar uma aparência de legitimidade à ocupação militar e à guerra. Esta conclusão tornou-se evidente com as últimas eleições presidenciais no país, realizadas em 21 de agosto. O processo eleitoral custou 300 milhões de dólares e muito esforço para seus organizadores, mas o desfecho é de crise. Calcula-se que somente compareceram às urnas cerca de 40% a 50% dos 15,6 milhões de eleitores em condições de votar. O resultado é bem inferior à eleição anterior, realizada em 2004, quando a participação, segundo os organizadores, chegou a 70% dos eleitores. A abstenção eleitoral mostrou a fragilidade do governo afegão e das “instituições” criadas pelo imperialismo. Um só dado mostra bem esta situação: em Kandahar, província e cidade do mesmo nome, localizada no sul do país e santuário do Talibã, a abstenção pode ter chegado à incrível porcentagem de 95% de um milhão de eleitores registrados, segundo observadores internacionais independentes. O processo de votação esteve marcado pelas denúncias de fraude que favoreceram o presidente Karzai, que tenta ganhar no primeiro turno para evitar o prolongamento da campanha eleitoral até 1º de outubro, quando se daria o segundo turno.7 Das eleições para cá, a crise e o desmascaramento da farsa só aumentaram. As denúncias de fraude nas eleições foram tão grandes que obrigaram os organismos internacionais a pedirem a anulação de mais de um milhão de votos. 70 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 7 Correio Internacional, 152, setembro de 2009. Dossiê A pressão obrigou a Comissão Eleitoral Independente (sic), ligada a Karzai, a anular estes votos. Com a anulação, Karzai não atingiu a maioria para ser eleito no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno. O imperialismo, que antes das eleições já percebia a ineficiência do governo de Karzai para cumprir seu papel de fantoche com um mínimo de credibilidade, pressionava para um acordo para a participação de Abdullah Abdullah e outros candidatos no novo governo. O segundo turno chegou a ser anunciado, mas o candidato de oposição Abdullah Abdullah, que deveria enfrentar Karzai, renunciou da segunda, denunciando que não havia garantias mínimas para uma eleição democrática. Com isso, Karzai foi declarado finalmente vencedor (sic), depois de dois meses de crise que só confirmaram a fraude do sistema eleitoral e do regime. Ou seja, um verdadeiro desastre político. A conclusão a que chegava o Correio Internacional há dois meses é mais válida que nunca: “(...) as eleições serviram muito pouco ao propósito do imperialismo de criar a imagem de um regime democrático e de uma situação mais estável, apesar da guerra”8. Esta crise política do regime colonial de dominação faz recair mais ainda sobre as tropas de ocupação o peso do combate à insurgência guerrilheira. A política de Obama A estratégia e as táticas do atual governo dos Estados Unidos para a guerra do Afeganistão só podem ser consideradas no marco da política geral do imperialismo contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o mundo. Esta política é analisada por Alejandro Iturbe em outro artigo deste número da Marxismo Vivo, que explica a mudança de tática do imperialismo para continuar enfrentando a luta dos trabalhadores e povos do mundo no novo cenário criado pela derrota da ofensiva militar do governo Bush. A nova política do imperialismo está marcada por duas orientações gerais. Por um lado, continua sendo imperialismo e, por isso, mesmo com um presidente negro que utiliza um discurso conciliador, democrático, que prega a união de povos e classes, continua tendo como objetivo principal explorar a classe operária de todo o mundo e saquear as riquezas dos países explorados. Para isso, continua disposto a utilizar todos os recursos e a violência necessária e possível na atual situação mundial. Mas, por outro lado, a derrota do projeto de Bush enfraqueceu o imperialismo e obrigou-o a adotar uma tática preferencial de negociações, planos de “paz” e manobras “democráticas” para desviar e derrotar revoluções e processos de insurgência armada. Isso não significa que o imperialismo abandone as guerras e as ações armadas, mas que prioriza a tática das negociações, utilizando a força para pressionar os inimigos e obrigá-los a claudicar, capitular e a colaborar em troca de concessões “democráticas”. Mas, quando passamos da análise da tática mundial do imperialismo para abordar a situação concreta do Afeganistão, parece haver uma contradição: o novo governo de Barack Obama vem intensificando a intervenção militar neste país. Desde a campanha eleitoral, Obama vem defendendo que é no Afeganistão que se trava a principal batalha contra o terrorismo e que agora, 8 Idem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 71 Dossiê ao contrário da guerra do Iraque, as tropas americanas podem sair vitoriosas. Depois da posse, Obama mandou mais 30 mil soldados ao país e prometeu transformar o Afeganistão no centro da “guerra contra o terrorismo”. Utiliza os mesmos argumentos de Bush, de que esta seria uma “guerra justa” porque é contra o terrorismo, e prometeu “destruir, desmantelar e derrotar a Al-Qaeda e seus aliados extremistas”, inclusive os talibãs. Este discurso e estas iniciativas poderiam indicar que o presidente dos EUA estaria preparando uma volta à ofensiva guerreira de Bush, senão em todo o planeta, pelo menos no Afeganistão? Em nossa opinião é o contrário: este é um dos países onde o governo Obama mais busca aplicar sua nova tática. O problema é que também é o lugar onde o imperialismo está em piores condições de aplicar qualquer política. Obama sabe que o curso desta guerra não pode ser mudado com o envio de mais tropas, a não ser em uma escala que não seria aceita pela opinião pública norte-americana. Um ex-agente da CIA chegou a afirmar que seriam necessários um milhão de soldados para derrotar o Talibã e estabilizar o país. Por quê? Porque é evidente que a insurgência guerrilheira tem apoio de massas entre a população. Se não, não seria possível para o Talibã desenvolver uma ação permanente em 80% do país. E por que os insurgentes têm apoio? Porque a ocupação militar piorou muito a situação do país. Produziu bombardeios constantes que atingem indiscriminadamente a população e já mataram dezenas de milhares de civis. Só em 2008, os EUA realizaram 3572 ataques aéreos, boa parte por meio de drones, aviões sem piloto. O regime político, agora supostamente “democrático”, governa baseado na corrupção, na fraude eleitoral, na violência e, principalmente, nas tropas estrangeiras. A situação de atraso do país, que gera a violência contra a mulher, não mudou, mantendo-se inclusive o amplo uso da burka. Em resumo, o Talibã recebe apoio simplesmente porque as massas não aceitam mais a presença das tropas de ocupação. Uma das ironias desta guerra é que o reacionário Talibã encabece a luta armada contra o imperialismo. Esta contradição não é casual. A política sistemática de recolonização dos países periféricos e o ataque militar brutal protagonizado pelo governo Bush acabaram levando a que uma força aliada do imperialismo até pouco tempo atrás terminasse se enfrentando com ele. Diante desta situação extremamente difícil, o governo Obama e a burguesia norte-americana estão discutindo possíveis saídas. E existem divergências, como seria previsível face à delicada posição dos Estados Unidos na guerra. Há setores do imperialismo - inclusive conservadores como o conhecido colunista reacionário do Washington Post, George Will, que escreveu um artigo com o sugestivo título É preciso saber quando se deve parar – que começam a se declarar contra a continuidade da intervenção no Afeganistão. Entre os setores que defendem a continuidade da ocupação e da guerra e no próprio governo Obama existe uma divergência interna, ou pelo menos duas tendências, sobre a estratégia a seguir. Segundo a informação vazada por integrantes do governo para a imprensa americana9, haveria dois grandes esquemas em discussão e em disputa. Um, encabeçado pelo comandante americano no Afeganistão, Stanley McChrystal, prevê manter a tática atual e um 72 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 9 Noticiado por Sérgio Dávila, correspondente em Washington da Folha de S. Paulo (11/10/2009). Dossiê acréscimo de 40 ou até 60 mil homens na força militar. O outro, defendido pelo vice-presidente Joe Biden, manteria o atual contingente, mas substituiria uma parte dos soldados por oficiais treinadores que teriam o objetivo de formar uma força de segurança afegã. Mas, segundo a mesma notícia, a discussão mais importante seria sobre uma nova estratégia para a guerra. O foco, ou seja, os alvos da ação militar norte-americana dividir-se-iam em dois. A prioridade passaria a ser eliminar os líderes do Al Qaeda, vistos por Washington como uma rede global jihadista que procura atacar os EUA. Esta é, evidentemente, uma declaração pró-forma, porque o Al Qaeda não tem nenhuma influência no movimento de resistência. Quanto ao Talibã, que constitui a organização central do movimento de resistência e tem apoio de massas, continuaria a sofrer ataques do imperialismo e do exército paquistanês, “mas não estaria descartada a negociação com o baixo clero da organização e até a possibilidade de se negociar uma trégua”10. Analisando essas diferentes posições e variantes, fica claro que nenhuma tem como estratégia conseguir uma vitória militar nesta guerra, isto é, que as tropas de ocupação esmaguem a resistência e destruam o Talibã. Isso porque, obviamente, a situação da luta de classes em todos os seus aspectos – a insatisfação das massas com a guerra e a ocupação, o repúdio às tropas invasoras, o apoio ou neutralidade em relação ao Talibã, a debilidade do governo fantoche – torna impossível a vitória. A própria posição do general McChrystal assemelha-se à política do Surge11 no Iraque, da qual ele foi o principal executor militar. Esta política consistiu num aumento de tropas, mas com o objetivo de pressionar a resistência sunita a um acordo baseado em concessões políticas e econômicas. O aumento de tropas explica por que o imperialismo americano não pode aceitar, pelo menos num primeiro momento, a posição do setor burguês que propõe uma retirada imediata. Uma decisão desse tipo provavelmente teria como conseqüência uma vitória rápida da resistência e a volta do Talibã ao poder. Um fato desta dimensão significaria, sem dúvida, um golpe no imperialismo e abriria uma crise no governo Obama. Esse dilema do governo Obama reflete a própria situação da guerra e do imperialismo. Mas, justamente por isso, reafirmamos o que dissemos anteriormente: o imperialismo não só tenta aplicar no Afeganistão sua tática de negociações como esta é a melhor tática de que dispõe para tentar derrotar a insurgência. E será neste país que esta política será submetida ao seu mais duro teste. Neste contexto, pode ser até que o governo Obama envie ainda mais tropas, mas sempre com o objetivo de negociar um acordo com o Talibã para estabilizar o país e permitir uma saída negociada das tropas imperialistas. A ofensiva militar subordina-se ao aspecto principal da política, isto é, a ação militar busca pressionar o Talibã a negociar, obter uma posição mais vantajosa para o imperialismo e, se possível, a capitulação da resistência. Na verdade, tudo indica que esta política de negociação já está em curso. Segundo a Red IslamOnline.net, um alto funcionário do governo afegão informou a este órgão, sob a condição de permanecer anônimo, que o governo dos EUA já teria feito uma primeira proposta ao Talibã, por meio dos governos da Arábia Saudita e Turquia. A proposta consistiria em ceder a este movimento 10 Idem. 11 Surge: Política de Bush en 2007 para aumentar as tropas no Iraque. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 73 Dossiê o governo de seis províncias (Kandahar, Zabul, Helmand, Orazgan, no sul, e Nuristán e Kunar, no nordeste do país). Em troca, o Talibã aceitaria a presença das forças da OTAN e a existência permanente de oito grandes bases militares imperialistas no país.12 É certo que, aparentemente, o Talibã rechaçou a proposta, mas o mais importante é constatar qual é a verdadeira política do imperialismo. Outras notícias informam que Hillary Clinton, em sua recente viagem ao Paquistão, teria acertado com os militares deste país que seriam eles os interlocutores das negociações com o Talibã. Se non è vero... Os revolucionários não são neutros nesta guerra: lutamos pela vitória da resistência e pela derrota do imperialismo A guerra do Afeganistão estará cada vez mais no centro dos acontecimentos mundiais e, portanto, exigirá dos revolucionários, das organizações de esquerda e de todos os ativistas dos movimentos sociais tomar uma posição. Isso é ainda mais importante porque grande parte da esquerda, inclusive uma parte da que se reivindica trotsquista, tomou uma posição de “neutralidade” quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão há oito anos. Na época, a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) posicionou-se na trincheira militar do reacionário Talibã contra os Estados Unidos “democráticos”. Acreditamos que o balanço desses oito anos de guerra nos deu razão. Mas agora a situação é ainda mais evidente: trata-se de uma guerra de libertação nacional contra um exército imperialista de ocupação formado por mais de 100 mil homens. Nenhum ativista anti-imperialista do mundo pode vacilar quanto ao lado da trincheira em que deve estar. Neste sentido, a posição recente da LIT resume o que está em jogo nesta luta. O destino da guerra do Afeganistão interessa a todos os trabalhadores e povos explorados do mundo. Uma derrota do imperialismo americano nesta guerra pode significar um golpe tremendo contra o opressor. É preciso lutar para que esta guerra termine sendo o Vietnã de Barack Obama. Por isso, a LIT chama todas as organizações populares e democráticas do mundo a denunciar a ocupação militar do Afeganistão e exigir a retirada das tropas invasoras. Chamamos especialmente os trabalhadores de países imperialistas que mantêm tropas de ocupação no país, como é o caso da Inglaterra, Alemanha e Espanha, entre outros, a mobilizarem-se para exigir de seus governos a retirada imediata de seus soldados. Nós não somos neutros na guerra que está sendo travada nas montanhas daquele país. Estamos do lado dos oprimidos e agredidos pela invasão e ocupação imperialista. A luta do povo afegão é para expulsar as tropas imperialistas de ocupação e conseguir a verdadeira independência nacional do Afeganistão. Por isso, sem que signifique qualquer tipo de apoio político às posições do Talibã, a LIT declara seu apoio às ações militares da resistência. A luta guerrilheira que enfrenta o imperialismo, ainda que dirigida por uma organização burguesa reacionária, é um dos fatores fundamentais para as baixas e o desgaste das tropas, para a crescente queda de popularidade do governo Obama e para a crise da ocupação militar. É esta luta militar de resistência, junto às mobilizações e à pressão da opinião pública principalmente dos países imperialistas, que pode infligir uma derrota ao imperialismo.13 74 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 12 LATIFF, Aamir. Los talibanes rechazan la oferta de EE.UU. de 6 provincias por 8 bases. www.IslamOnline.net, 05/11/2009, reproduzido por Rebelión.org. 13 Correio Internacional, n. 152, setembro de 2009 Dossiê A guerra, o imperialismo e a questaã~o nacional polarizam o Paquistaã~o Bernardo Cerdeira Editor de Marxismo Vivo A guerra do Afeganistão estendeu-se de tal maneira ao Paquistão que hoje o mais correto seria falar de uma só guerra do Afeganistão-Paquistão. O próprio imperialismo já fala de uma só “entidade”, que ele denomina Afpak, e tem uma política de conjunto para ela. Chegou a designar um enviado especial do Departamento de Estado, Richard Holbrook, para dar atenção aos dois países. A guerra está presente em toda a situação política do Paquistão, desde o crescimento da insurgência guerrilheira até as tremendas pressões do imperialismo sobre o governo Zardari, que forçaram a atual ofensiva do exército sobre a região de influência do Talibã em aliança com grupos locais. No entanto, a realidade da guerra se ergue sobre enormes contradições que o país alberga desde sua fundação em 1947, especialmente a questão nacional, que atinge algumas de suas diferentes etnias. A ofensiva do exército paquistanês O Paquistão está envolvido nesta guerra desde seu princípio em 2001. Com o fluxo de refugiados e combatentes do Afeganistão que atravessaram a fronteira buscando refúgio dos ataques militares das tropas norte-americanas veio também a guerra. Os refugiados guardam laços étnicos com a população paquistanesa da região – são do povo pashtun que vive nos dois países – e também relações políticas e religiosas, já que a constituição do Talibã, organização que dirigia o Estado afegão, deu-se nas escolas islâmicas do Paquistão (Madrassas), estimulados por uma política do governo e do ISI, serviço paquistanês de segurança e informação. Uma aliança do Talibã com grupos islâmicos insurgentes locais desenvolveu uma forte presença no Waziristão do Norte e do Sul, regiões localizadas nas Áreas Tribais do Paquistão, assim como na Província da Fronteira Noroeste, onde chegaram a estabelecer a sharia (lei islâmica) na região do vale do Swat, com a própria anuência do governo. O exército paquistanês, pressionado pelos EUA, vem reagindo com intensas e amplas ofensivas militares nestas regiões. Esta intensificação da guerra vem acompanhada por métodos brutais utilizados pelo exército do Paquistão, Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 75 Dossiê que provocaram a fuga de milhões de refugiados civis em seu próprio país. Em abril e maio deste ano, o exército paquistanês empreendeu um importante ataque ao Vale do Swat, na Província da Fronteira Noroeste, tentando esmagar o movimento islâmico pashtun Teheek-e-Nafaz-e-Shariate-Mohammadi (TNSM), que tem ligações com o Talibã e cuja crescente influência reflete o apoio que a organização afegã tem entre a população pashtun do Paquistão. O ataque foi uma exigência de Washington, que temia que a trégua assinada em princípios deste ano entre o TNSM e o governo paquistanês permitisse que muitos militantes passassem ao Afeganistão para se unir à resistência. Durante os combates, segundo o exército paquistanês, foram mortos 1800 combatentes do TNSM e outros 900 foram capturados. O ataque provocou a fuga de dois milhões de civis, devido aos ataques aéreos e bombardeios do exército. Centenas de milhares ainda não voltaram, por medo ou porque suas casas estão destruídas. O Vale do Swat continua ocupado por uns cinquenta mil soldados e policiais. A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão afirma que as forças de segurança estão assassinando partidários do TNSM. Foram descobertas fossas comuns que continham corpos de supostos militantes executados pelo exército. Depois se encontraram outros 75 corpos perto do povoado de Kabal. Mais recentemente, em fins de outubro, trinta mil soldados paquistaneses, apoiados pela Força Aérea, iniciaram nova ofensiva no Waziristão do Sul, na região das Áreas Tribais autônomas, bastiões do Tehrik-e-Taliban paquistanês, um movimento islâmico pashtun que proporciona um refúgio seguro aos insurgentes afegãos que lutam na fronteira contra a ocupação dos Estados Unidos e da OTAN. A ofensiva está concentrada na área da tribo Mehsud que também é o quartel-general do Tehrik-e-Taliban Pakistan (TTP). A zona tribal, pobre e abandonada pelo governo central, sofreu um duro castigo com as diferentes operações militares das Forças Armadas paquistanesas. A economia entrou em colapso com os bloqueios econômicos e a existência de dois milhões de refugiados internos e, por outro lado, aumentou o tráfico de armas e drogas. No entanto, a eficácia das operações militares é duvidosa. A maioria dos insurgentes escapou da região em meio às centenas de milhares de refugiados. Em contrapartida, os grupos militantes ampliaram suas ações em todo o país: ataques contra o quartel-general do exército, um importante comboio militar, diferentes edifícios policiais de Lahore, os escritórios da ONU na capital, etc. Somente na primeira semana de novembro morreram mais de 200 pessoas em atentados a bomba em diferentes cidades e regiões do Paquistão. Esta polarização abre a possibilidade de que o TTP (que é uma aliança de grupos) chegue a um acordo com grupos jihadistas do Punjab ou da Caxemira, não só fortalecendo sua ação militar na região (o que parece já estar acontecendo) como a ampliando ao conjunto do país. Por outro lado, existe uma ação direta das Forças Armadas dos Estados Unidos dentro do Paquistão que ajuda a exacerbar a situação. Os EUA têm um “programa” de assassinatos de dirigentes dos talibãs e da resistência em geral, que visa também aterrorizar a população civil. O instrumento utilizado 76 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê para esta verdadeira campanha de terror são aviões sem piloto teledirigidos, os drones Predator. Em 5 de agosto, mísseis lançados por um Predator mataram o ex-chefe do Tehrik-e-Taliban, Baitullah Mehsud, assim como sua mulher e outras 17 pessoas. Desde agosto deste ano, os ataques aéreos dos Estados Unidos mataram mais de 700 civis paquistaneses. O vicepresidente Joe Biden é um dos defensores deste tipo de ações e quer pôr mais ênfase nos ataques aéreos com drones e nas forças de operações especiais. No entanto, este tipo de intervenção direta dos EUA com uma clara agressão militar dentro do Paquistão provoca repúdio geral. Uma recente pesquisa americana no país apontou que “76% dos entrevistados opunhamse a que o Paquistão se associasse aos EUA nos ataques com mísseis contra extremistas por aviões drones norte-americanos” Frente a esta reação, o governo paquistanês também se viu obrigado a protestar contra os ataques de mísseis dos Estados Unidos, lançados a partir de aviões sem tripulantes contra alvos talibãs dentro do Paquistão. Ou seja, as ofensivas combinadas das tropas imperialistas no Afeganistão e do Exército paquistanês provocaram uma reação de atentados, resistência popular e muito ódio à ocupação e às agressões militares imperialistas. A segunda conclusão é que esta reação das massas – que se dá principalmente nos territórios pashtun do Paquistão – ameaça servir de catalisador das insatisfações populares do resto do país e da crescente oposição ao governo de Zardari. E, por último, a resistência guerrilheira às tropas imperialistas e seus aliados vem se colocando cada vez mais como o polo aglutinador dos combatentes não só no Afeganistão, mas também no Paquistão. A pressão brutal do imperialismo Quanto mais os Estados Unidos se metem no “atoleiro” da Guerra no Afeganistão, mais são obrigados a intervir no Paquistão, política e militarmente. Esta intervenção ocorre em forma direta (bombardeios, assessores militares, espionagem) e indireta (através de violentas pressões sobre o governo, as Forças Armadas e outras instituições do país) para que combatam o Talibã e seus aliados deste lado da fronteira. Do ponto de vista militar, o imperialismo vem intensificando sua presença no Paquistão. O General Stanley McChrystal, comandante das tropas norte-americanas no Afeganistão e o General David Petraeus, comandante em chefe das tropas norte-americanas, estão frequentemente no país. As Forças Armadas dos EUA mostraram-se especialmente satisfeitas com a ofensiva do exército. O general Petraeus expressou seu apoio à brutal campanha e elogiou as “firmes operações militares paquistanesas” que “limparam de militantes” o vale do Swat e outras zonas da Província da Fronteira Noroeste. No Pentágono foi criado um programa de especialistas afegãos e uma Célula de Coordenação Paquistão-Afeganistão, duas unidades concentradas na melhoria do rendimento militar no teatro de operações Af-Pak durante os próximos três a cinco anos. Por outro lado, o Pentágono revelou que mais de 70 conselheiros militares dos EUA trabalharam no Paquistão. Também estão presentes os mercenários da Blackwater na Província da Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 77 Dossiê Fronteira Noroeste. Blackwater é formalmente uma companhia de segurança, mas, na prática é um exército mercenário, formado por vários milhares de exmilitares, que trabalha sob ordens das Forças Armadas dos Estados Unidos e da CIA, fazendo seu “trabalho sujo”. Segundo denúncias, a Blackwater estaria operando em Peshawar, a partir do escritório de uma ONG americana, Creative Associates International Inc., CAII, que trabalha em projetos nas agências tribais perto do Paquistão, vinculados com o governo dos EUA. Do ponto de vista político e diplomático, os Estados Unidos aprovaram o pacote Kerry-Lugar (promovido pelo senador John Kerry, da Comissão de Relações Externas do Senado norte-americano) de “ajuda” de US$ 7,5 bilhões ao Paquistão para os próximos cinco anos. É a maior soma de dinheiro com fins não-militares já recebido pelo Paquistão. Este pacote, que consiste em uma ajuda “civil” para fins sociais, estipula dois condicionantes: um, que o orçamento militar esteja subordinado ao orçamento nacional e dois, que não exista mais intervenção militar em assuntos políticos e judiciais. Ou seja, condiciona a ajuda a que o governo do presidente Zardari controle as Forças Armadas, o que provocou uma reação dos militares e um escândalo político sobre a ingerência dos Estados Unidos na vida política interna do país. O Departamento de Estado americano nomeou o enviado especial Richard Holbrook para o Paquistão e o Afeganistão. Um jornalista americano descrevia assim a atitude de Holbrook durante uma recente passagem pelo Afeganistão: “Parecia menos um emissário de visita que um pró-cônsul inspecionando uma vasta operação sobre a qual tem uma parte da autoridade”. A própria secretária de Estado, Hillary Clinton, visitou o Paquistão e cobrou, publicamente e da forma mais arrogante, a necessidade do governo paquistanês incrementar o combate ao Talibã e à Al-Qaeda. Como símbolo desta intervenção crescente, os EUA estão construindo o que será a maior embaixada-fortaleza dos Estados Unidos no mundo e que deve servir de ponta de lança para a presença norte-americana no Paquistão. Mil marines chegaram a Islamabad para defendê-la. O custo total da presença dos “marines” será de US$ 112,5 milhões. Segundo a embaixadora Anne W. Patterson, “US$ 5 milhões serão para alojamento dos marines, US$ 53,5 milhões para infra-estrutura de alojamento, US$ 18 milhões para a melhoria da área dos escritórios de serviços gerais e US$ 36 milhões para alojamentos temporários e instalações de apoio comum”. A explicação de Patterson para a gigantesca expansão da embaixada é que esta “...reflete o compromisso de longo prazo dos Estados Unidos com o Paquistão. Além disso, disse, a quadruplicação da ajuda social, econômica e militar chegaria a US$ 4 bilhões por ano durante os próximos 18 meses, e requer um aumento de pessoal.” Toda esta pressão do imperialismo, e a subserviência do governo do PPP (Partido do Povo do Paquistão de Ali Zardari) às suas exigências, têm exacerbado ao máximo não só os enfrentamentos diretos na luta de classes, principalmente na guerra, mas também as tensões entre a burguesia e os setores do aparato de Estado. Estas tensões expressam-se em elementos de insatisfação e de crise no 78 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê Exército paquistanês. Um exemplo foi a reação aos condicionantes da Lei Kerry-Lugar mencionada acima. Também a decisão dos Estados Unidos de construir mais bases no Paquistão com permissão do governo irritou o exército. Por trás destas tensões estão dois problemas estruturais. O imperialismo está pressionando para que o exército ataque seu próprio povo, pashtuns paquistaneses muçulmanos, com métodos de guerra civil. Vinte e seis milhões de pashtuns vivem no Paquistão, muitos em grandes cidades e outros tantos estão no exército. Por isso, há cada vez mais notícias de jovens que desertam. Por outro lado, existe um problema político na superestrutura do Exército. O ISI, com o aval da cúpula do Exército (e sob a orientação do imperialismo naquela época) foi um dos responsáveis diretos pela organização e fundação da milícia do Talibã no princípio da década de 90, a partir dos estudantes das Madrassas das áreas pashtun no Paquistão. Desde então, o Talibã sempre esteve ligado ao ISI e ao Exército paquistanês. Hoje, a cúpula do exército está de acordo em combater o Talibã paquistanês, mas reluta em combater o Talibã afegão com quem continua mantendo vínculos. O problema é que estas organizações estão cada vez mais ligadas e, à medida que a guerra avança, tendem a ser uma coisa só. As contradições no Exército (e entre este e o governo do país) refletem a debilidade do Estado e do regime de um país semicolonial, tremendamente acossado pelo imperialismo. Mas, além disso, o fraco desenvolvimento da economia do Paquistão, a debilidade de sua burguesia, a pressão do imperialismo norte-americano por um lado e a URSS e a Índia por outro, levaram a burguesia paquistanesa a apelar tradicionalmente para regimes fortes, apoiados nas Forças Armadas, que denominamos de maneira geral regimes bonapartistas. Nos 62 anos de existência do país, nunca houve um período mais ou menos longo de funcionamento de um regime democrático-burguês minimamente estável. A norma foi de governos militares. Nas poucas vezes em que os civis governaram, o regime político sempre teve características marcadamente autoritárias, bonapartistas. O próprio Estado paquistanês reflete estas características. Apesar de ser um país pobre, o Paquistão tem a sexta maior força militar do mundo em número de soldados, contando com setecentos mil homens. O país possui armas nucleares e mísseis balísticos. Mas, a contradição da situação atual é que as Forças Armadas saíram bastante debilitadas depois da queda do governo do general Pervez Musharraf, no poder por oito anos (1999 a 2008). A ditadura de Musharraf terminou em uma situação que combinava o desgaste com o envolvimento do Paquistão na guerra do Afeganistão e as mobilizações populares por reivindicações democráticas, tais como o fim da suspensão do juiz Muhammad Chaudhry, presidente da Suprema Corte, pelo governo. O imperialismo e a questão nacional Um dos elementos centrais que transparece tanto na questão da guerra quanto na presença do imperialismo e no desenvolvimento da luta de classes no Paquistão é a questão nacional ou da autodeterminação nacional das Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 79 Dossiê diversas etnias, que também é um elemento presente em todo o Grande Oriente Médio e o subcontinente indiano. No entanto, o problema nacional no Paquistão é especialmente explosivo, devido às condições em que o país foi fundado. Para compreender as contradições atuais do problema nacional é preciso entender os elementos estruturais que têm sua base na própria formação do país. Não é possível, até por razões de espaço, estender-nos longamente sobre este tema, mas podemos assinalar, grosso modo, os seguintes elementos. Até sua independência em 1947, a região onde fica hoje o Paquistão fazia parte da Índia Britânica ou mais precisamente do domínio colonial do império britânico sobre a Índia. Antes desta dominação, o atual Paquistão constituía uma região de maioria muçulmana, parte do antigo Império Mongol (1526 até meados do Século XIX) que compreendia também o norte da atual Índia (por exemplo, as cidades de Déli e Agra). A dominação britânica sobre a Índia abarcava todo o subcontinente indiano, isto é, a região formada hoje pelo Paquistão, a atual Índia, Bangladesh, Sri Lanka (na época, Ceilão), Nepal e Butão. O Paquistão, assim como toda a região, foi marcado pela dominação colonial imperialista britânica e a luta pela independência nacional. O imperialismo britânico teve uma política permanente de “dividir os povos para melhor reinar”, promovendo várias divisões artificiais. Esta política começou já no século XIX, por exemplo, com a divisão da província de Bengala entre Ocidental e Oriental (hoje Bangladesh). Outro exemplo foi o da região dos Pashtuns (Pashtunistão) dividida pela chamada linha Durand em 1893 (e que hoje pertence parte ao Afeganistão e parte ao Paquistão). Mas esta política chegou ao seu ponto máximo no processo de independência da Índia, resultado de uma longa luta do povo indiano. O imperialismo britânico, diante da certeza de perder sua maior colônia, impulsionou artificialmente a divisão do subcontinente para enfraquecer a Índia e fazer com que o processo de independência gerasse vários países mais fracos, que permanecessem na Commonwealth1 com o status de Dominions2. Esta política obteve resultado por meio do estímulo à política separatista da burguesia muçulmana, dirigida pelo partido Liga Muçulmana, de Muhamad Ali Jinnah. O Paquistão constituiu-se então, em 1947, como um país islâmico, dirigido pela Liga Muçulmana nas províncias do Sindh e no Punjab. O Baluquistão e o Pashtunistão, regiões de etnias irânicas (baluches e pashtuns), foram divididos entre o Paquistão e o Afeganistão. Bengala Oriental integrou-se ao país na sua fundação com o nome de Paquistão Oriental. Em 1971, declararia sua independência, passando a chamar-se Bangladesh. A Caxemira, antigo principado, foi dividida entre a Índia e o Paquistão, gerando uma disputa que dura até os dias atuais. Portanto, o Paquistão concentra vários problemas nacionais explosivos desde a sua fundação, que tendem a polarizar o país. No Pashtunistão, cada vez mais os movimentos insurgentes que lutam contra a ocupação imperialista unem-se e retomam seus laços étnicos e políticos. No Baluquistão, existe um movimento independentista que luta por um país constituído pelos territórios baluches do Irã, Afeganistão e Paquistão. 80 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Commonwealth of Nations: Comunidade de países que substituiu o Império Britânico, formada pela Grã-Bretanha com suas ex-colônias. O objetivo britânico era manter estes países em sua órbita, como semicolônias. 2 Nações independentes, membros da Commonwealth, mas que mantinham a Rainha da Inglaterra como Chefe de seus Estados. Paquistão, Ceilão e Quênia, por exemplo, tiveram este status. Dossiê E na fronteira com a Índia, a guerra no Vale da Caxemira já dura 20 anos e custou umas 70 mil vidas. Dezenas de milhares de pessoas foram torturadas e milhares “desapareceram”. Quinhentos mil soldados indianos patrulham o vale da Caxemira, convertendo-o na zona mais militarizada do mundo. No verão de 2008, uma disputa por terra designada para o Comitê do Santuário Amarnath converteu-se num levante maciço e não-violento. Dia após dia, centenas de milhares de pessoas desafiaram soldados e policiais e encheram as ruas. As tropas dispararam diretamente contra as multidões, matando muita gente. As multidões gritavam: Azadi! Azadi! (Liberdade). Os protestos duraram vários dias. Arundhati Roy, uma escritora indiana afirma: …a Caxemira irá converter-se no conduto pelo qual toda a violência que se desenvolve no Afeganistão e no Paquistão derramar-se-á em direção à Índia, onde encontrará aceitação na cólera dos jovens entre os 150 milhões de muçulmanos da Índia que foram brutalizados, humilhados e marginalizados. O aviso foi dado pela série de ataques terroristas que culminaram nos ataques de Mumbai de 2008.3 Todos estes problemas nacionais, que vão desde a luta pela unificação de povos ou por sua autodeterminação e inclusive sua independência, estão atravessados pela ação política e militar do imperialismo norte-americano na região. Depois de sua fundação, o Paquistão tornou-se uma semicolônia dos Estados Unidos, transformando-se num importante país auxiliar da potência imperialista em sua política de pressão e controle da Índia e da URSS durante a Guerra Fria. Atualmente, esta intervenção do imperialismo é elevada à enésima potência, principalmente pela guerra do Afeganistão-Paquistão. A resistência das massas hoje se concentra em três processos: a luta para expulsar o imperialismo do Afeganistão e do Paquistão, que se combina com a luta pela autodeterminação nacional dos diferentes povos e a luta contra o regime do Exército e o governo de Zardari, subserviente ao imperialismo. A grande tarefa dos povos do Paquistão, do Grande Oriente Médio e do subcontinente indiano é expulsar o imperialismo da região o que significa em primeiro lugar a luta para derrotar o imperialismo na guerra do AfeganistãoPaquistão. Mas, ao mesmo tempo, é necessário levantar a bandeira da autodeterminação nacional dos povos de todos os países da região e o direito a se separarem dos Estados aos quais se encontram submetidos atualmente e a se organizarem em novos Estados nacionais se assim o preferirem. Os socialistas revolucionários reconhecem e apoiam o direito à autodeterminação de todas as etnias. Mas, ao mesmo tempo, assinalamos que a única possibilidade de que estes povos se livrem de toda a exploração e desenvolvam suas riquezas e potencialidades humanas em liberdade é a construção do socialismo e a unidade de todos os povos em Federações de Repúblicas Soviéticas em regiões como o Oriente Médio e o subcontinente indiano. 3 ROY, Arundhati. Una nueva guerra fría en Cachemira. A autora é uma escritora, atriz e roteirista de cinema que vive em Nova Déli. Escreveu, entre outras coisas, o romance O Deus das coisas pequenas pelo qual recebeu o Prêmio de Booker de 1997. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 81 Dossiê Alguns dados sobre o Paquistãa~o O nome Paquistão (ou Pakistan em urdu) significa “terra (ostan) dos puros (pak)” em Urdu e em farsi (ou persa). Mas também, em sua origem, foi um nome composto pelas iniciais de quatro das cinco províncias de maioria muçulmana da Índia britânica mais o sufixo stan. O nome foi cunhado em 1934 por Choudhary Rahmat Ali, um nacionalista muçulmano, que em seu folheto Agora ou nunca referiu-se aos “trinta milhões de muçulmanos do Paquistão (Pakistan) que vivem nas cinco províncias do Raj Britânico – Punjab, Afghan (hoje Província da Fronteira Noroeste), Kashmir (Caxemira), Sind e Balochistan (Baluquistão)”. A população do Paquistão está estimada em 168 milhões, o que o torna o sexto país mais populoso do mundo. Sua área é de 803.940 km2. Estima-se que o PIB paquistanês (PPC) seja de US$ 475,4 bilhões e a renda per capita de US$ 2942. A taxa de pobreza é estimada entre 23% e 28% da população. O Paquistão é uma federação com quatro províncias: Punjab, Sind, Baluquistão e Província da Fronteira Noroeste. Além disso, existe um distrito federal onde está a capital Islamabad, e áreas tribais administradas pelo governo federal. O governo paquistanês exerce jurisdição de facto sobre partes da Caxemira, a chamada Caxemira Livre (Azad Kashmir), e as Áreas do Norte, uma parte da Caxemira também reivindicada pela Índia. O Paquistão também reivindica o estado de Jammu e Caxemira, controlado pela Índia. As etnias punjabi e sind são povos hindus, sendo que a etnia punjab é a mais populosa do país. No entanto, parte da população do país é composta por etnias de idiomas e culturas irânicas ou indo-arianas: os pashtuns (15,4% da população) e os baluches (3,6%). Os baluches vivem ao sudoeste do país e os pashtuns ao noroeste. O urdu é uma língua franca utilizada como idioma de comunicação entre as diversas etnias e é o idioma oficial do país. Mas, para apenas 7,57% da população é o idioma materno. Os estudiosos consideram que o urdu é basicamente o mesmo idioma híndi (o mais falado na Índia), porém escrito com o alfabeto árabe (em sua versão persa). Províncias 2 6 5 3 1 4 82 8 7 e territórios do Paquistão Províncias: 1. Baluquistão 2. Província da Fronteira Noroeste 3. Punjab 4. Sindh Territórios: 5. Distrito Federal - Capital Islamabad 6. Áreas Tribais 7. Azad Jammu e Kashmir (ocupada pela Índia) 8. Gilgit-Baltistan Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Estudos O sistema financeiro mundial e sua crise - Parte 3 alejandro iturbe Frente Operária Socialista (FOS) - Argentina EUA, epicentro da crise atual O epicentro da crise atual encontra-se, sem dúvida, nos EUA, a principal economia do mundo. Em um capítulo anterior, vimos o caráter cada vez mais “rentista” que o país foi adquirindo, e sua expressão na desindustrialização e “financeirização” de sua economia. Um processo que é o resultado combinado de políticas conscientes da burguesia estadunidense (transferir para outros países as indústrias de maior consumo de energia e toda uma parte de indústrias de produtos de consumo), por um lado, e da dinâmica objetiva de crescimento do setor especulativo, por outro. A economia estadunidense dos últimos anos tem se construído sobre os chamados “déficits gêmeos” da balança de comércio exterior e do orçamento estatal. O déficit comercial é o resultado do grande aumento do volume de importações de produtos industriais de consumo e, também, do aumento do preço do petróleo. Em 2006, alcançou a cifra recorde de US$755,7 bilhões, em 2007 reduziu-se a US$ 711,6 bilhões (sua primeira queda em vários anos, já refletindo o início da recessão). Cerca de um terço deste déficit é produzido pelo intercâmbio com a China. O déficit fiscal é o resultado combinado de vários fatores. O primeiro é a redução de impostos para as grandes empresas. O segundo é o aumento dos gastos no setor militar (incluídos os ocasionados pelas guerras do Iraque e Afeganistão). O terceiro, como já vimos, é o financiamento da especulação através da dívida pública. Desta forma, passou-se de um superávit anual de US$128 bilhões em 2001, herança da era Clinton, para um déficit de US$337 bilhões (237 bilhões do balanço de contas correntes e cerca de 100 bilhões adicionais para as guerras). Em 2007, graças à boa receita do imposto sobre os lucros, o governo Bush conseguiu reduzir o balanço de contas correntes para US$163 bilhões. Mas em 2008, o resgate de vários bancos o elevou para mais de US$400 bilhões, com a previsão de chegar a US$447 bilhões em 20091. A soma dos dois déficits significava que, em 2007, para funcionar normalmente e não começar a parar, a economia estadunidense precisava do ingresso de US$3 bilhões diários em média, do exterior, através de receitas Tradução Marcos Margarido 1 Em julho de 2008, o resgate dos gigantes hipotecários triplica o déficit fiscal dos EUA. Em www. libertaddigital.com Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 83 Estudos pela venda de títulos do tesouro, outros empréstimos, investimentos diretos, remessas de lucros e royalties de filiais de empresas no exterior etc. Como vimos, através de distintos mecanismos, a economia dos EUA atua como um “aspirador” de uma parte da mais-valia extraída em outras regiões do mundo. Neste sentido, é muito interessante analisar como vem funcionando, nos últimos anos, o binômio EUA-China. A burguesia estadunidense realizou gigantescos investimentos na China, país que vende seus produtos industriais a todo o mundo, mas especialmente aos próprios EUA. Por outro lado, grande parte dos lucros obtidos volta aos EUA, principalmente para a compra de títulos do Tesouro norte-americano. Desta forma, uma parte do déficit estatal é financiada e o circuito econômico dos EUA é realimentado. A bolha do consumo Na realidade, nos EUA, não apenas o Estado, mas também as empresas e consumidores estão superendividados, isto é, devem mais que sua real capacidade de pagamento e, muitas vezes, mais que o valor real de suas propriedades. Neste sentido, no caso das famílias, a bolha imobiliária não era mais do que a base que sustentava a bolha muito maior do consumo. O poder aquisitivo do salário dos trabalhadores estadunidenses vem caindo de modo quase constante desde a década de 1980. Em primeiro lugar, porque os novos empregos nos serviços fornecem salários mais baixos que os industriais. Em segundo, porque houve uma queda nos próprios salários industriais. Por exemplo, um mecânico antigo da fábrica de aviões Boeing ganha US$50 mil ao ano, enquanto um novo recebe apenas US$28 mil, cifra que se localiza apenas pouco acima do custo das necessidades básicas. Isto é, uma vez cobertas essas necessidades, a maioria das famílias trabalhadoras estadunidenses quase não tem possibilidades de consumo para manter a tradicional renovação periódica de automóveis, eletrodomésticos etc. A partir de 2002, o extremo barateamento e a abundância de crédito começaram a ser financiados, essencialmente, com os empréstimos hipotecários, graças à diferença positiva que obtinham a cada ano em sua renovação pela subida artificial dos preços dos imóveis. Mas, ao mesmo tempo, isto aumentava seu endividamento. O New York Times estimou, em julho de 2008, que cada família estadunidense devia uma média de cerca de US$100 mil (US$80 mil da hipoteca, US$12 mil do carro e US$8 mil do cartão de crédito). Se considerarmos a existência de 75 milhões de famílias, isto nos dá a incrível cifra de US$7,5 trilhões de “dívida familiar”, mais da metade do PIB do país. Com o fim da bolha imobiliária e o começo da queda dos preços das casas, esse mecanismo foi cortado. O New York Times (23/12/2008) informa que em novembro de 2008 a venda de casas havia caído 8,6%, e seu preço médio, 13%. Desde o máximo preço médio alcançado (US$230,2 mil em julho de 2006) ao atual (US$181,3 mil), acumula-se uma queda de mais de 21%. Além disso, estima-se que, em 2009, haverá uma nova queda próxima aos 20%. Por isso, agora o montante da dívida hipotecária de cada família é maior que o preço de mercado do imóvel. Isto é, ao renovar a hipoteca, já não recebem uma diferença a seu favor, e, além disso, devem pagar a diferença negativa entre a dívida adquirida e o novo crédito (baseado no preço mais baixo da 84 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Estudos casa). Desta forma, milhões de famílias perderão suas casas, estourando a grande bolha do consumo. A “bicicleta imobiliária” Na segunda metade da década de 1970, na Argentina, chamou-se de “bicicleta financeira” ao circuito especulativo que jogava com a dívida externa, a cotação peso-dólar e as altas taxas de juros para os depósitos bancários. Era uma “bicicleta” porque, igual a toda bolha ou sistema especulativo, o circuito só funcionava caso continuassem “pedalando” (injetando novos fundos); em caso contrário, caía. Atualmente, podemos falar da queda de uma “bicicleta financeira imobiliária” nos EUA. Já vimos como foi financiado o consumo das famílias trabalhadoras. Um segundo aspecto, como foi impulsionado o crescimento econômico em seu conjunto, foi sintetizado pelo economista Joseph Stiglitz: “Aproximadamente 80% do aumento do emprego e quase dois terços do aumento do PIB dos EUA, nos últimos anos, originaram-se direta ou indiretamente no setor imobiliário”2. Agora nos referiremos a como, em base aos créditos hipotecários, foise construindo um circuito especulativo cada vez maior, artificial e fictício, isolado de toda base real. Especialmente, a partir do momento em que, para “manter-se pedalando”, apelou-se aos créditos subprime (ou “créditos vassoura”), fornecidos a pessoas ou famílias que já se sabia não terem condições de pagar no momento de aquisição. O processo começava quando uma empresa especializada em operações imobiliárias, como a Countrywide, outorgava um crédito hipotecário; sobre esse ativo financeiro, era contratado um “seguro de resgate” em uma grande seguradora como a AIG. A partir daí, passava a ser um crédito ou dívida “segurada”, transferida ou negociada com um banco especializado (como Fannie Mae, Freddie Mac ou o ramo hipotecário do Bear Sterns). Os agora títulos garantidos por hipotecas são vendidos aos grandes bancos de investimento, como Goldman Sachs, Lehman Brothers ou Merryll Lynch, que os “cortam em partes”, mesclam-nos, transformam-nos em “obrigações de garantias de dívidas” (CDOs, em inglês) e então são vendidos a diferentes investidores. Estes papéis, já quase totalmente desligados da “operação subjacente”, eram camuflados com boas qualificações de risco, outorgadas por empresas como a Moody’s e a Standard & Poor’s. São assim negociados inúmeras vezes no mercado, numa cadeia quase sem limites. Tudo isso, num processo em que cada elo da cadeia, por um lado, recebia comissões sobre comissões e, por outro, ajudava a “bicicleta” a não cair. Os operadores recebiam comissões dos bancos e das empresas imobiliárias para outorgar hipotecas sem verificar as receitas ou a capacidade de pagamento do cliente. Os corretores inflavam o valor das casas porque, a maior preço, maiores comissões. Os bancos de investimento pagavam grandes comissões às empresas especializadas para que qualificassem com boas notas de “grau de investimento” títulos derivativos cada vez mais “podres”, porque ganhavam fortunas com sua comercialização que, logo, era duplicava ou triplicava em outras operações. De fato, a “bicicleta financeira imobiliária” já havia chegado 2 STIGLITZ, Joseph. How to stop the downturn. New York Times, 23/01/2008 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 85 Estudos a seu ponto de saturação no final de 2006. Era um gigantesco castelo de cartas que, inevitavelmente, seria derrubado, principalmente ao se combinar com a crescente crise política do governo Bush. Uma “pirâmide” moderna Este sistema de multiplicação de derivativos, chamado eufemisticamente de “alavancagem”, permitiu que, utilizando pouco capital próprio, os grandes bancos de investimento obtivessem um volume de “ativos financeiros” totalmente desproporcional em relação à “base subjacente”. Por exemplo, a Goldman Sachs usou cerca de US$ 40 bilhões de seu capital para lançar US$ 1,1 trilhão em títulos, e a Merrill Lynch lançou US$ 30 bilhões tendo como base um bilhão de dólares. Entre 2000 e inícios de 2008, o conjunto do mercado desregulado de CDOs cresceu de US$ 900 bilhões para US$ 62 trilhões, o dobro do valor total das ações no mercado dos EUA e dez vezes a quantidade de todos os títulos de dívida que podiam ser protegidos por seguro3. Isto é, a soma de capital especulativo e fictício decuplicava sua base real. Em 1920, um imigrante italiano nos EUA idealizou um sistema fraudulento que seria conhecido como a pirâmide de Ponzi: com a promessa de altos rendimentos, alguém inicia a “pirâmide” conseguindo dois “investidores”, estes, por sua vez, devem conseguir outros dois e assim sucessivamente. O crescimento exponencial dos “novos investidores” vai assegurando os “lucros” de toda a cadeia, até que a pirâmide deixa de crescer e os últimos que ingressaram perdem todo o seu dinheiro. Desde então, o sistema piramidal é ilegal em quase todos os países do mundo. Recentemente, acaba de estourar um escândalo por um abuso cometido com um esquema similar, pelo norte-americano Bernard Madoff, uma das grandes estrelas do mercado financeiro dos EUA, ex-presidente da Nasdaq (índice das empresas de informática na Bolsa de Nova York). Madoff burlou, num valor de US$ 50 bilhões, investidores tão diferentes como a União de Bancos Suíços e xeiques árabes petroleiros. Em sua época, Carlo Ponzi passou vários anos na prisão. Madoff só ficou detido um curto tempo, esperará seu julgamento em liberdade sob fiança e talvez termine preso. Esta é uma das poucas diferenças entre seu esquema piramidal e o dos “derivativos em cadeia” dos grandes bancos de investimento. De conteúdo, ambos são quase iguais, mais ainda a partir das hipotecas subprimes. Não é casual que o próprio Wall Street Journal se perguntasse, no início de 2007, até onde chegaria a “pirâmide de derivativos exóticos”. A situação atual: a quebra do sistema bancário-financeiro dos EUA e Europa 3 GALL, N. A festa do crédito e a economia mundial- Dinheiro, ganância, tecnologia, em www.braudel.org.br, Braudel Papers 43, acesso em 2009. Este castelo de cartas tinha que cair. Vários economistas assinalaram que, já em 2006, houve uma queda da taxa média de lucros nos EUA e uma retração dos investimentos4. Mas isto foi maquiado e adiado pelos bancos e empresas. O estouro da bolha imobiliária nos EUA e em outros países manifestouse abertamente em meados de 2007, com a crise do ramo hipotecário do Bear Stearns, a quebra da American Home Mortgage e da Countrywide, nos EUA, e a necessidade de resgate, por parte de seus governos, do banco francês BNP 4 GONZÁLEZ, José Luis González, Tendencia histórica de la tasa de ganancia en EE.UU - 1929-2006, em www. geocities.com/redculturalin/tasadeganancia2007.html 86 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Estudos Paribas e do inglês Northern Rock. Esta sequência inexorável combinou-se e foi potencializada pela agudização da crise do governo Bush, garantia última do processo. Finalmente, apesar das gigantescas injeções de dinheiro e ajudas dos Bancos Centrais imperialistas, em setembro de 2008 os gigantescos bancos imobiliários Fannie Mae e Freddie Mac, o Lehman Brothers, um dos grandes bancos de investimentos, e o gigante dos seguros AIG quebraram nos EUA, enquanto ocorriam situações similares em instituições financeiras europeias (como o banco belga-holandês Fortis, o britânico Bradford & Bingley, o Hypo Real State da Alemanha, o islandês Glitnir Bank, o franco-belga Dexia e o dinamarquês Roskilde Bank). De fato, assistimos à quebra do sistema bancário-financeiro dos EUA e Europa, atenuada apenas pela intervenção dos governos. Está ocorrendo uma rápida reconversão e centralização do sistema bancário-financeiro nos EUA, com a virtual estatização do Fannie Mae, Freddie Mac e AIG; a quebra do Lehman Brothers e as absorções do Merryll Lynch por parte do Bank of America e do Wachovia por parte do JP Morgan Chase, enquanto o Citigroup divide-se em várias partes para ser vendido. Desta forma, reduz-se à metade o número de grandes bancos de investimentos do país que, ao mesmo tempo, transformam-se em bancos comerciais para receber ajudas do governo e serem incluídos no sistema estatal de garantias bancárias. Enquanto isso, os executivos que levaram suas empresas à falência autoconcedem-se bônus milionários (como os da Lehman Brothers) ou festejam com caríssimas festas o resgate estatal, como os da AIG. As mega-ajudas governamentais não param o processo Quanto dinheiro os governos dos países imperialistas já injetaram nos mercados, ou estão injetando, desde meados de 2007? Inicialmente, os bancos centrais dos EUA, Canadá, Japão e Europa “derramaram” em conjunto cerca de US$ 500 bilhões. Posteriormente, agregaram outros US$ 300 bilhões e, a partir de setembro de 2008, o governo dos EUA anunciou um novo “pacote anticrise” de US$ 700 bilhões e os países da União Europeia pacotes que totalizam cerca de US$ 1 trilhão. Se somarmos os pacotes anticrise da China, da Rússia e do Brasil5, aproximamo-nos da cifra total de US$ 4 trilhões, calculada recentemente por vários economistas e equivalente a quase 10% do PIB mundial. Estas grandes ajudas mostram que se antes o Estado burguês atuou como impulsionador e sustentador do circuito especulativo, atua agora como uma espécie de “companhia seguradora” que cobre as perdas dos bancos especuladores, numa espécie de “keynesianismo financeiro”. No entanto, apesar destes grandes pacotes, a crise não apenas continua, mas também acelerou seus ritmos. Isto porque estamos na primeira fase da queima de capitais e o volume de capital especulativo e/ou fictício, como vimos, é muito grande em relação ao capital ativo. Por isso, as medidas anticrise apenas servem para atenuar levemente este processo de queima e não têm possibilidade de revertê-lo. Por exemplo, o FMI reajustou, em outubro passado, seu cálculo total das perdas sofridas nos empréstimos e outros ativos financeiros dos EUA, de US$ 945 bilhões de dólares para US$ 1,4 trilhão. 5 Os pacotes de ajuda da China, Rússia e Brasil foram, respectivamente, de cerca de US$600 bilhões, mais de US$300 bilhões e mais de US$200 bilhões. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 87 Estudos Uma cifra curiosamente similar à ajuda que o governo injetou ou vai injetar e também equivalente a 10% do PIB deste país6. E se considerarmos a queda na produção, as perdas globais já chegam aos US$ 4 trilhões. A crise e a queima não afetam apenas os capitais especulativos e/ou fictícios. As ações da General Motors caíram para a décima parte de seu melhor preço histórico, o ponto mais baixo nos últimos 60 anos. A empresa está de fato quebrada, esperando, como as outras grandes automotrizes do país (Ford e Chrysler), ajuda do governo para sobreviver. Considerado em conjunto, o índice Dow Jones mostra uma perda acumulada do preço das ações de quase 36% durante 2008, acelerada a partir de setembro. Todas as grandes empresas industriais do mundo veem cair o preço de suas ações e anunciam planos de redução da produção e demissões em massa. Elementos de comparação entre a crise de 1929 e a atual Muito se tem falado, a favor e contra, sobre a comparação entre esta crise e a de 1929. Já está claro que a atual é a mais grave desde aquela, muito mais profunda que as recessões de 1990-91 e 2000-2002. Mas nos parece importante avançar nesta comparação, inclusive para elaborar as perspectivas presentes. Não vamos repetir aqui que, para nós, as crises capitalistas originam-se na queda da taxa de lucro e que, atualmente, este processo se vê agravado pelo caráter cada vez mais especulativo do capitalismo imperialista e da hipertrofia do sistema financeiro. Neste sentido, a crise de 1929 e a atual são similares, já que ambas foram precedidas por uma grande acumulação de capital especulativo e pela criação de grandes volumes de capital fictício. Sem dúvida, deste ponto de vista, a crise atual é mais grave e mais profunda que a de 1929. Temos visto que o volume total de ativos financeiros é quatro vezes o PIB mundial ao passo que, em 1929, essa proporção era a metade da atual. Se olharmos o coração das bolhas especulativas que estouraram no início de cada crise, a comparação é ainda mais desfavorável. Em 1929, a relação entre o preço das ações das empresas industriais dos EUA e seu capital era de 5 para 1,5 (3,3 vezes). Atualmente, como vimos, os ativos financeiros derivados dos créditos hipotecários decuplicaram em relação à sua base real. Proporção que, na realidade, não mostra toda a realidade porque se baseia em preços sobrevalorizados dos imóveis e em uma parte de “créditos podres” que nunca seriam pagos. Isso significa que a queima de capital especulativo e fictício deveria ser, no mínimo, quase três vezes superior à de 1929. Ao mesmo tempo, no entanto, diferente de 1929, hoje existe uma capacidade de intervenção muito maior dos Estados e governos para evitar a quebra de bancos e empresas e lançar pacotes anticrises. Não obstante, como temos assinalado, parece-nos que tal intervenção governamental (da qual já se gastaram vários “disparos” importantes) pode amortizar e tornar mais lento o processo, mas não pode freá-lo nem, muito menos, revertê-lo. Não traçamos esta perspectiva de um ponto de vista catastrofista. Sabemos que, se a luta de classes e a revolução não o impedirem, o capitalismo imperialista sobreviverá e tentará reciclar-se. No marco da luta de classes, toda sobrevivência do capitalismo se fará ao custo de grandes sofrimentos para os trabalhadores e as massas. Neste sentido, as consequências da crise de 1929, 88 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 6 El costo global de la crisis. Agencia Reuters, 07/10/2008. Estudos incluídos o fascismo e a Segunda Guerra Mundial, são uma amostra, embora a história não necessariamente tenha que se repetir com estas características. Um último debate sobre a “regulação” Existe um debate com os keynesianistas e neokeynesianistas (tradicionais ou de esquerda) que consideram que a crise atual se deve à falta de regulamentação dos mercados financeiros, o que permitiu seu crescimento descontrolado e gerou uma crise que agora impacta o conjunto da economia. Por exemplo, Paul Krugman analisa que a origem da crise atual é “um sistema financeiro paralelo, que faz os negócios do banco, mas sem as regulamentações do tradicional banco de mármore”7. Uma conclusão similar é a do trabalho de Norman Gall, que citamos, e outros, como Ignace Ramonet do Le Monde Diplomatique. É evidente que o sistema financeiro mundial está hipertrofiado e que a falta de regulamentações contribuiu para essa hipertrofia, além da especulação desenfreada e da criação de enormes volumes de capital fictício que, se durante alguns anos impulsionaram a economia capitalista, agora ameaçam afogá-la. É evidente também que este processo teria sido mais lento com normas mais rígidas que regulassem a atividade financeira. Mas reduzir a crise atual a um mero problema de regulação significa não compreender três aspectos importantes do atual sistema capitalista imperialista. • A origem das crises está na queda da taxa de lucro. A especulação financeira agrava esta tendência, mas não a cria. • Como resultado da “excessiva maturidade”, o capitalismo imperialista não cessa de gerar “superabundância de capitais” e, com isso, permanentes tendências especulativas e parasitárias. Por isso, os principais especuladores são os grandes bancos de mármore e as principais empresas industriais e comerciais. • Têm sido os próprios Estados que deveriam regular a especulação os que a impulsionaram e sustentaram. Em outras palavras, as regulamentações vão contra estas tendências crescentes. Poderiam, no melhor dos casos, “ordená-las”, mas nunca irão eliminá-las, muito menos suas consequências mais profundas sobre a taxa de lucros. A modo de epílogo Pareceu-me útil terminar este trabalho com um epílogo que, de modo sintético, apresente as ideias que pretendi que fossem seu “fio condutor”. • O ponto de partida é, claro, a lei do valor-trabalho de Marx. Ou seja, a concepção de que só a força de trabalho cria novo valor na produção e que a mais-valia é o trabalho ou produto excedentes apropriados pela burguesia na produção e realizada monetariamente no mercado; • Disso, passamos à concepção de que o lucro de todos os setores da burguesia surge da divisão, ou da apropriação desta mais-valia social gerada na produção; • O terceiro elemento é o conceito marxista de dinheiro como “a forma mais acabada do valor”. Algo que, ao mesmo tempo, significa que o conjunto da massa de dinheiro deve ser equivalente ao conjunto da massa de 7 Clarín, 16/12/2008. Bancos de mármore são os bancos comerciais tradicionais. Levam esse nome devido ao material utilizado no acabamento de seus prédios. (NT) Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 89 Estudos valor existente, em um momento determinado; • O quarto elemento é o conceito de comercialização da mercadoriacapital, própria da atividade bancária, emprestada a uma taxa de juros como forma de receber uma parte da mais-valia; • Continua com a tendência à queda da taxa de lucro como resultado do aumento da composição orgânica do capital; • O último conceito que tomamos de Marx é a tendência à monopolização como resultado combinado dos processos de concentração e centralização; • Começamos com Hilferding e o surgimento do capital financeiro, como resultado da fusão do capital bancário e do industrial; • Conceito que Lênin aprimora mostrando que os capitais excedentes geraram a exportação do capital financeiro e sua internacionalização, como a característica central do imperialismo; • Lênin analisa também o surgimento do Estado-rentista como tendência cada vez mais acentuada dos países imperialistas e como uma expressão do parasitismo e da decomposição do capitalismo; • A permanente criação de “capitais financeiros excedentes” (que não encontram destino na produção no país de origem nem na exportação de capitais estudada por Lênin) é o que gera a crescente tendência especulativa e parasitária do capitalismo imperialista. Alguns autores consideram, inclusive, que o capital especulativo deveria ser considerado uma categoria diferente do tradicional capital financeiro definido por Hilferding e Lênin; • A crescente quantidade de capital especulativo, agravada pela criação de capital fictício, provoca a hipertrofia do sistema financeiro, tanto no volume de operações como na complexidade que adquirem estas operações; • O próprio Estado burguês, principalmente nos países imperialistas, transforma-se, através de diversos mecanismos, primeiro em seu impulsionador e sustentador, e depois na “companhia de seguros” dos grandes bancos especuladores; • Embora inicialmente este processo alimente o crescimento da economia (com efeitos similares ao da expansão do crédito), de modo mais profundo, agrava a tendência à queda da taxa de lucros, o que temos denominado de superincremento da composição orgânica do capital; • As crises precedidas por uma grande acumulação de capital especulativo e fictício são próprias da época imperialista (embora já existisse um antecedente em 1873). É um tipo de crise que requer a queima de um grande volume de capital; • A crise de 1929 e a atual têm muitos elementos em comum. A atual é mais grave devido ao maior volume de capital especulativo e/ou fictício. Mas seus ritmos se veem atenuados parcialmente pela intervenção dos governos e dos Bancos Centrais, embora estas não consigam reverter a dinâmica mais geral da crise e tampouco sua profundidade; • A eclosão da atual crise do sistema financeiro, sua virulência e profundidade, explicam-se, não só pelo analisado no ponto anterior, mas também por sua combinação com a crise política da principal potência imperialista. 90 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Pontos de vista Polêmica com Roberto Ramírez, do Novo MAS ~ Cuba…nao Éé uma ilha Martín Hernández Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) No final do ano passado, Roberto Ramírez, do Novo MAS, da Argentina, publicou um extenso artigo chamado: 1959: entrada da guerrilha em Havana Um debate crucial na esquerda. Cuba em uma encruzilhada1 onde defende que o capitalismo foi restaurado no mundo todo, menos na ilha caribenha. Cuba, dessa forma, seria uma ilha, não apenas em relação à sua localização geográfica. A conclusão de Roberto Ramírez não acrescenta nada de novo ao que Tradução Cecília Toledo vem dizendo a maioria das organizações de esquerda. No entanto, os argumentos utilizados para justificar essa conclusão, assim como o programa que propõe para fazer o que ele denomina como “uma nova revolução cubana” são inéditos. Cuba: um longo debate no movimento trotsquista O caráter do Estado cubano e de sua direção sempre foi um tema polêmico no movimento trotsquista. Na década de 60, depois da vitória da Revolução Cubana, e especialmente depois da expropriação da burguesia, houve uma intensa discussão. A IV Internacional, fundada por Leon Trotsky em 1938, dividiu-se em 1953. De um lado estava o Secretariado Internacional (SI), onde atuavam Ernest Mandel (Bélgica), Pierre Frank (França) e Livio Maitán (Itália). Do outro estava o Comitê Internacional (encabeçado pelo SWP dos EUA) no qual, além da direção americana, estavam Pierre Lambert (França), Nahuel Moreno (Argentina) e Gerry Healy (Inglaterra). A Revolução Cubana causou um grande impacto nos dois setores e ocorreu uma importante discussão entre os que consideravam que Cuba continuava sendo um Estado capitalista e os que, pelo contrário, achavam que, com a Revolução Cubana, surgia o primeiro Estado operário do continente americano. Esse debate culminou com a reunificação da IV Internacional em 1963 entre os que defendiam a segunda posição. Nascia assim o Secretariado Unificado da IV Internacional. No entanto, esse acordo e essa reunificação não impediram novos debates sobre Cuba no interior do movimento trotsquista. Durante boa parte da década de 60 e 70 ocorreu uma violenta batalha política entre as correntes que achavam que a grande tarefa dos trotskistas era construir o partido revo- 1 Revista Socialismo ou Barbárie, Novembro de 2008 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 91 Pontos de vista lucionário na classe operária e os que, pelo contrário, defendiam o “modelo cubano” de partidos-exércitos, para levar adiante a luta guerrilheira. Também durante parte da década de 70 ocorreu uma aguda polêmica, já não mais sobre o caráter de classe do Estado cubano, mas sobre sua direção. De um lado estavam os que consideravam que a direção castrista era consequentemente revolucionária, comparável, e inclusive superior a Lenin e Trotsky, e os que consideravam o castrismo como uma direção burocrática que minava as bases do Estado operário cubano. Por fim, durante a década de 90 e até hoje, vem sendo travado um novo debate entre os que consideram que em Cuba, como na ex-URSS e no restante do Leste europeu e China, o capitalismo foi restaurado e os que consideravam (e consideram) que em Cuba não se restaurou o capitalismo. As posições de Roberto Ramírez e nossas respostas fazem parte desse novo debate que, como veremos, tem profundas consequências programáticas e políticas. Restauração e revolução: anos de confusão Trotsky havia previsto que, se a burocracia não fosse expulsa do poder pela classe operária, a restauração do capitalismo seria inevitável. (“De certa maneira, a degeneração acaba, inevitavelmente, na destruição”2). Por isso, defendia como centro do programa para a URSS uma revolução política que teria como objetivo (mantendo as bases econômicas do Estado operário) expulsar a burocracia do poder para recolocar em seu lugar as organizações da classe operária. A classe operária fez várias tentativas (na Alemanha Oriental, Hungria, Checoslováquia, Polônia) de expulsar a burocracia do poder, mas não conseguiu. Por isso o capitalismo acabou sendo restaurado pelas próprias burocracias governantes. A restauração do capitalismo confirmou o prognóstico de Trotsky. Mas, contraditoriamente, quando isso ocorreu o movimento trotskista foi surpreendido por esse acontecimento, e uma enorme confusão tomou conta de todas as suas organizações. Essa confusão demonstrou algo que Nahuel Moreno3 já havia observado várias vezes: a enorme contradição que existia (e existe) entre a imensa herança programática e teórica do trotsquismo e a extrema debilidade de suas organizações e dirigentes. A maior confusão expressou-se no fato de que a maioria das organizações trotsquistas levou vários anos para perceber que a restauração era um fato na China (a partir de 1978) e também na ex–URSS (a partir de 1986). Foi essa debilidade que nos impediu de entender em toda a sua profundidade, em seu devido momento, dois novos processos (a restauração do capitalismo e a queda do aparato stalinista) que, se bem foram previstos por Trotsky, eram inéditos para todos os seus seguidores. Dois elementos favoreceram essa enorme confusão. Por um lado, importantes dirigentes trotsquistas, entre eles Ernest Mandel, revisando as posições de Trotsky, chegaram à conclusão de que a restauração do capitalismo estava descartada. Mas, por outro lado, um elemento do prognóstico de Trotsky gerou muita confusão, inclusive naquelas organizações que combatiam, com posições principistas, as posições revisionistas de Mandel. 92 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 2 TROTSKY, Leon. Em Defesa do Marxismo. 3 Nahuel Moreno (1924-1987), dirigente trotsquista argentino, fundador e principal dirigente da LIT-QI (Liga Internacional dos Trabalhadores, Quarta Internacional). Pontos de vista Trotsky havia previsto que a restauração do capitalismo só poderia ocorrer por meio de uma repressão sangrenta. Mas a burocracia desmontou o que restava dos Estados operários e restaurou o capitalismo sem necessidade de uma repressão desse tipo. Não é que não houve repressão, e sim que ela ocorreu muitos anos antes (a partir da segunda metade da década de 20) quando o aparato stalinista, para expulsar a classe operária e os revolucionários do poder, perpetrou um verdadeiro genocídio que preparou, historicamente, o terreno para a restauração do capitalismo, consumada na URSS na segunda metade da década de 80. Dessa forma, a realidade se mostrou-se, novamente, mais rica que as previsões. A consumação da restauração sem necessidade de uma violenta repressão, apesar de não ter dado razão ao prognóstico de Trotsky, deu razão à sua caracterização sobre o regime stalinista: era similar ao fascismo e, por isso, não precisou de uma nova repressão para restaurar o capitalismo. E o mesmo valeu para os outros Estados. Nesses casos, para restaurar o capitalismo tampouco a burocracia precisou de uma nova e violenta repressão, porque nesses Estados a repressão já existia desde o seu surgimento. Eram Estados operários, mas burocratizados, justamente pelo fato de que, mediante a repressão, a classe operária nunca teve o controle político dos mesmos. A reflexão anterior, sobre o prognóstico de Trotsky, continua sendo um tema muito polêmico. De qualquer forma, para entender a questão que estamos abordando é preciso destacar que o fato da previsão de Trotsky, nesse aspecto, não se ter concretizado, gerou uma enorme confusão, que deu origem a duas conclusões diferentes, ambas equivocadas, no interior do movimento trotsquista. Por um lado, uma parte das organizações, quando veio a restauração, aferraram-se ao prognóstico de Trotsky e tentaram negar a realidade: como não houve uma repressão violenta, não se podia falar em restauração. Por outro lado, várias organizações constataram corretamente que o capitalismo havia sido restaurado mas, a partir daí, chegaram à conclusão de que não tinha havido repressão porque os operários não tinham defendido esses Estados, o que demonstraria que eles não eram Estados operários. Por razões de espaço e porque já analisamos isso em outros artigos publicados nesta mesma revista, não vamos nos deter nesse aspecto. De qualquer forma, é necessário esclarecer que esse tipo de postura fez com que esse setor concluísse que esses Estados não eram nem burgueses, nem operários. Essa posição foi duramente combatida por Trotsky no final da década de 30.4 Roberto Ramírez, o autor do artigo sobre Cuba que estamos analisando, faz parte dos intelectuais que chegaram a esse tipo de conclusão, o que os levou a pensar que o programa trotsquista não havia passado pela prova dos fatos. A maioria das organizações trotsquistas reconheceu a restauração Passados os primeiros anos de maior confusão, a maioria das organizações trotskistas começou a reconhecer que o capitalismo havia sido restaurado na ex-URSS e no Leste europeu. No entanto, foram poucas as organizações que também reconheceram, nesse momento, que o mesmo havia ocorrido na China, no Vietnã e em Cuba. Mas qual era a diferença entre esses três últimos países e os demais? A diferença estava em que nesses três países os regimes de partido único dos PCs 4 Ver artigo de León Trotsky, de 1937, intitulado ¿Ni un estado obrero, ni un estado burgués? incluído na obra En defensa del marxismo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 93 Pontos de vista continuavam intactos e isso foi visto, de forma equivocada, como um obstáculo para a restauração do capitalismo quando, na verdade, era o contrário. Em todos os países a restauração foi impulsionada pelas burocracias governantes. Por isso, naqueles países onde os partidos comunistas se mantiveram no poder porque não houve uma insurreição de massas (Cuba e Vietnã) ou porque essa insurreição foi derrotada (China), a restauração avançou com mais facilidade. De qualquer forma, com o passar do tempo, a maioria das organizações trotsquistas também se viram obrigadas a reconhecer que na China o capitalismo havia sido restaurado, mas não chegaram à mesma conclusão em relação a Cuba. Cuba foi definida como o último bastião de luta contra a restauração. Os argumentos usados para tentar demonstrar essa tese foram os mais variados, mas ninguém até hoje havia conseguido encontrar uma explicação tão sofisticada como a que Roberto Ramírez expõe em seu artigo. Cuba, um rumo histórico excepcional? Como dizíamos anteriormente, Roberto Ramírez faz parte daquele setor originário do movimento trotsquista que depois de constatar a restauração do capitalismo nos Estados operários burocratizados, chegou à conclusão de que o programa trotskista estava equivocado. Para ele, esses Estados não eram operários, mas também não eram burgueses. Em uma curiosa, ainda que nada nova, análise de cunho “marxista” duvidoso, chegou à conclusão que esses Estados não teriam um caráter de classe. Seriam “burocráticos”. Hoje em dia Roberto Ramírez continua opinando o mesmo, mas agora chegou à conclusão de que suas antigas análises sobre a vitória da restauração capitalista valem para todos os Estados onde se havia expropriado a burguesia… menos para Cuba. No texto já citado diz: Cuba passou por vários anos de terríveis dificuldades e penúrias, só comparável à dos países que sofreram uma dura guerra. Mas, para surpresa do mundo, não seguiu imediatamente o mesmo curso da URSS e dos países do Leste europeu, nem tampouco o da China... Nesses anos, não só a União Soviética mas todos os países da Europa e Ásia, que na segunda metade do século XX se autodefiniam como “socialistas”, estavam em plena restauração do capitalismo…Mas em Cuba tudo ficou em suspenso… Cuba conseguiu resistir em meio à derrocada dos “ex–países socialistas”. Valorosamente, a ilha permaneceu como uma exceção. O texto reconhece que em Cuba foram feitas algumas reformas mas, segundo o autor, Fidel Castro teve de “…aceitá-las com reticência”, mas, de qualquer maneira, essas reformas seriam “isoladas” e “parciais”. Em outras palavras, para o autor, em Cuba não só não se restaurou o capitalismo como as poucas medidas pró-capitalistas tomadas foram feitas contra a vontade de Fidel. Segundo Ramírez, para encontrar uma explicação para essa situação excepcional seria necessário remontar-se ao século XIX, já que Cuba teria seguido um “curso histórico excepcional”. A partir daí Ramírez deixa de lado 94 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Pontos de vista as posições do trotsquismo e passa a adotar como suas as elaborações de uma série de autores dos meios acadêmicos, especialmente o britânico Richard Gott e o americano Sam Farber, citados à exaustão. Entre as afirmações de Roberto Ramírez e dos outros autores, diz-se que as raízes da “excepcionalidade” da Revolução Cubana estão no curso histórico, também excepcional, da ilha em comparação com o restante da América hispânica”. Junto com a menor ilha, Porto Rico – hoje colônia direta dos EUA sob o eufemismo de “estado livre associado” – Cuba foi a única região do império espanhol que não conseguiu a independência. E quando finalmente as tropas espanholas retiraram-se dali, foi apenas para serem substituídas pela ocupação militar dos Estados Unidos. Por que o Império espanhol, expulso de todo o continente pelos movimentos de independência, conseguiu manter seu domínio em Cuba? O decisivo foi a atitude das elites cubanas (proprietários de engenhos e plantações de cana, comerciantes, funcionários, padres etc.) que em grande proporção, ao contrário do continente, não eram partidários da independência. Essa estreita relação entre as elites cubanas e os impérios (primeiro o espanhol e depois o norte-americano) é citada como “um importante ingrediente daquilo que ocorrerá nas duas grandes revoluções que sacudiram Cuba no século XX”. No marco dessa suposta situação excepcional, na segunda metade da década de 50 surgira um movimento, em 26 de Julho, encabeçado por Fidel Castro, que também seria excepcional. Segundo o artigo, esse movimento, ao contrário do que sempre afirmou a maioria do trotsquismo, não teria um caráter pequeno-burguês e sim seria “uma liderança política revolucionária que, longe de ser pequeno-burguesa radical…era ‘sem classe’ no sentido de que não teria fortes laços orgânicos ou institucionais, nem com a pequena burguesia nem com as outras principais classes sociais”. Para Roberto Ramírez, é necessário caracterizar o Movimento 26 de Julho da mesma forma que se caracteriza o movimento estudantil, que não é uma classe social e, por isso, sob o impacto de certos problemas gerais da sociedade “pode muitas vezes orientar-se em outros sentidos e defender outros interesses que não os de sua classe originária”. Dentro dessa tese, para Roberto Ramírez também seria equivocada a análise trotsquista segundo a qual o Movimento 26 de Julho, para responder aos ataques do imperialismo, teria sido obrigado a avançar mais além de suas intenções originais. Segundo ele, Fidel Castro e o Movimento 26 de Julho tiveram, desde o primeiro momento, um objetivo claro: tornar Cuba independente do imperialismo americano. Fidel começou atacando o grande problema herdado de 1898-1902: a independência nacional de Cuba. Em contraste com as análises que retratam os líderes cubanos como apenas reagindo diante da política dos EUA e suas ações, afirmo que esses líderes foram atores fortemente influenciados por suas próprias predisposições políticas e inclinações ideológicas... Castro era um caudilho, mas um caudilho com idéias. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 95 Pontos de vista Por fim, toda essa excepcionalidade histórica cubana é o que explicaria porque o capitalismo foi restaurado no mundo todo, menos em Cuba. “Em Cuba, por um conjunto de fatores excepcionais, esse lamentável final da restauração capitalista foi adiado”. Uma longa análise para justificar uma realidade que não existe As correntes castristas afirmam que em Cuba não se restaurou o capitalismo porque, à frente do Estado cubano existe um grande dirigente revolucionário: Fidel Castro. Roberto Ramírez não tem a mesma opinião, mas a conclusão igual à dos castristas. Fidel impediu a restauração do capitalismo e portanto estaria cumprindo, objetivamente, um papel revolucionário. Como já vimos, para Ramírez, essa postura excepcional de Fidel em relação aos outros líderes dos ex-Estados operários seria explicada por uma suposta história excepcional de Cuba. Mas isso não é assim. É verdade que Cuba, ao não obter a independência da Espanha, seguiu, junto a Porto Rico, um curso diferente do restante da América Latina, mas não excepcional. Em Cuba, como em todo o continente, houve uma violenta luta pela independência e isso foi possível porque importantes setores da burguesia colocaram-se à frente dessa luta. Também é verdade que Cuba passou de colônia do império espanhol para uma colônia dos EUA, mas esse é o mesmo processo que ocorreu no restante do continente, onde os países que conseguiram a independência do império espanhol em pouco tempo passaram a ser colonizados pelo império inglês, primeiro, e pelos EUA depois. Também é verdade que essa dependência de Cuba em relação aos dois impérios foi possível pelo papel das “elites cubanas”, mas não é verdade que o restante das elites latino-americanas teve um comportamento muito diferente. Também é equivocado falar do Movimento 26 de Julho como um movimento não classista. A comparação com o movimento estudantil não tem sentido. O que é correto para o movimento estudantil (que é uma fase da vida das pessoas) não pode ser usado para caracterizar uma corrente políticomilitar que tem, ao contrário do movimento estudantil, um programa, uma estrutura, uma política e uma direção. Tampouco é correto afirmar que o Movimento 26 de Julho tinha como objetivo, desde o primeiro momento, enfrentar o imperialismo para conseguir a liberação nacional de Cuba. Não há nenhum fato da realidade que comprove isso. O único fato que o texto menciona é a reforma agrária votada em maio de 1959, que teria sido “...inaceitável para os EUA e a oligarquia cubana”. Mas a realidade é que essa reforma agrária foi sumamente limitada e só beneficiava uns 300 mil produtores (burgueses e pequenos burgueses) que já eram proprietários de terras. Por outro lado, Fidel Castro, depois de ter recebido o apoio de setores burgueses dos EUA, e inclusive da própria CIA5, em sua luta contra Batista, viajou para os EUA em abril de 1959, pouco tempo depois da tomada do poder, para tentar estreitar as relações com esse país e ali declarou: “Eu disse de maneira clara e definitiva que não somos comunistas. As portas estão abertas aos investimentos privados que contribuam para desenvolver a indústria 96 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 5 Ver estudo de John Lee Anderson no livro “Che Guevara. Una vida revolucionaria”, Ed. Anagrama. Pontos de vista em Cuba. É absolutamente impossível que façamos progressos se não nos entendermos com os EUA”6. Não havia um plano predeterminado para enfrentar o imperialismo, como diz Roberto Ramírez. O problema foi que os EUA assustaram-se com o processo revolucionário que se havia instalado em Cuba e, ao invés de ter uma política para cooptar sua direção, começou a atacar todas as medidas progressistas, por menores que fossem, e isso gerou uma reação por parte da direção castrista que viu-se obrigada, tal como previu Trotsky7, a ir mais além de suas intenções, pressionada pela revolução em curso. Sim, o processo cubano teve um elemento excepcional, mas não o que aponta Roberto Ramírez. Esse elemento de excepcionalidade foi o comportamento do imperialismo em relação a uma direção pequeno-burguesa que havia tomado o poder. Em lugar de tentar cooptá-la, exigiu sua rendição incondicional, o que acabou provocando a radicalização dessa direção. A restauração O texto de Roberto Ramírez tem importantes limitações do ponto de vista histórico: a suposta excepcionalidade histórica de Cuba e a suposta luta contra o imperialismo, desde o início, por parte do Movimento 26 de Julho. Também tem várias limitações teóricas: uma corrente guerrilheira que toma o poder e que não responde a nenhuma classe social e um Estado que não é nem operário nem burguês. No entanto, a principal limitação do texto é que este conjunto de histórias e teorias é formulado para tentar explicar um fato que não existe, ou seja, que Fidel Castro, à frente do Estado cubano, estaria defendendo as conquistas da revolução de 59: a expropriação da burguesia e a independência nacional. Porque não só Fidel Castro não está fazendo isso, como essas conquistas não existem mais. Roberto Ramírez diz que Fidel Castro só fez reformas econômicas “isoladas” e “parciais”. Realmente, em Cuba foi feita uma série de reformas pró-capitalistas isoladas e parciais, que não significaram a restauração do capitalismo. Mas isso ocorreu entre 1977 e 1983. Nesse período foram legalizadas as cooperativas (de 44 em 1977 para 1472 em 1983) e se liberaram uma série de trabalhos autônomos mas, no início dos anos 90, as reformas “isoladas” a que Ramírez se refere foram deixadas de lado para dar lugar a profundas reformas na estrutura econômica, o que significou uma mudança qualitativa no caráter do Estado cubano. É bom ressaltar que nem os economistas cubanos (castristas) concordam com Ramírez. Eles não falam de reformas parciais. Um estudo de três economistas do CEA (Centro de Estudos sobre América) de Havana, com o sugestivo título de Cuba: a reestruturação da economia8 trata das profundas mudanças feitas pelo governo em 1995. Esses economistas, reproduzindo o discurso do governo cubano, dizem que não se restaurou o capitalismo, mas demonstram ser sérios, já que não ocultam as profundas reformas estruturais. Segundo seus informes, Cuba está completamente aberta ao capital estrangeiro; “…no final de outubro de 1994 o governo cubano anunciou que nenhum setor produtivo da economia nacional estaria fechado ao investimento externo”. Também destacam a 6 GONZÁLEZ, Ernesto. El trotskismo obrero e internacionalista en la Argentina. Ed. Antídoto, Tomo 3, vol.1. 7 No Programa de Transição, Trotsky disse: ”No entanto, não se pode negar categoricamente, por antecipação, a possibilidade teórica de que, sob a influência de circunstâncias completamente excepcionais (guerra, derrotas, crack financeiro, pressão revolucionária das massas etc.) os partidos pequeno burgueses, incluindo a stalinistas, possam ir mais longe do que eles mesmos queiram na via de uma ruptura com a burguesia”. 8 CARRANZA, Julio, GUTIERREZ, Luis e MONREAL, Pedro. Madri: Impala Editorial, 1995. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 97 Pontos de vista crescente presença das sociedades anônimas: “Em 1994 existiam em torno de 200… Também existem cerca de 140 com capital Estatal cubano”. Sobre o monopólio do comércio exterior, esses economistas são muito claros: “A atividade do comércio exterior, antes controlada totalmente pelo Ministério do Comércio Exterior… passou a ser assumida diretamente por um número cada vez maior de empresas (pertencentes a organismos estatais, sociedades mercantis de capital cubano, mistas e representações de firmas estrangeiras)”. Como é bem conhecido, Cuba continua sendo um país baseado na monocultura do açúcar. Pois bem, o estudo citado informa que já em 1994 praticamente a totalidade da produção de cana de açúcar era feita por particulares: “Até julho de 1994, as UBPC (Unidades Básicas de Produção Cooperativa) de cana eram 1555 e cobriam toda a área estatal dedicada à cana, ou seja, 80% de todos os terrenos com esse cultivo. Os produtores associados na UBPC… são os donos do produto e, claro, repartem os lucros”. Esses economistas também destacam que os produtos industriais já são vendidos nos mercados e que “…eles permitirão a relação direta entre os compradores e vendedores e os preços são estabelecidos pela relação oferta e procura.” Por fim, é preciso lembrar que o governo cubano, em 1992, dissolveu a Junta de Planificação Econômica Central e nesse mesmo ano o parlamento (Assembleia Nacional) votou a reforma da Constituição Nacional, com o objetivo de legalizar a propriedade privada dos meios de produção. Como se pode ver, ao contrário do que Roberto Ramírez diz, em Cuba ocorreu o mesmo de tipo de reformas na estrutura da economia que no restante dos ex–Estados operários. No entanto, o autor do artigo parece ignorar esses fatos, reconhecidos publicamente pelo governo cubano. Não acreditamos que Roberto Ramírez não tenha tido acesso a esse tipo de informação. Na verdade, parece-nos que ele oculta, deliberadamente, esse tipo de informação para tentar “demonstrar” sua indemonstrável tese de que o capitalismo foi restaurado no mundo inteiro, menos em Cuba. A poderosa pressão das correntes castro-chavistas na América Latina é o único fato que pode explicar esse tipo de atitude. O programa para a nova revolução cubana Roberto Ramírez termina seu extenso artigo formulando um programa para uma “nova revolução cubana”. A idéia é muito importante porque, realmente, o que falta em Cuba é uma nova revolução. No entanto, infelizmente, a “revolução” defendida por Ramírez só fica no enunciado. Como não podia deixar de ser, as análises e as caracterizações do autor, que pouco ou nada têm a ver com a atual realidade cubana, não o levam a apresentar um programa revolucionário, mas sim, de reformas O programa começa dizendo “Pela defesa das conquistas revolucionárias de 1959, em primeiro lugar a independência nacional e a expropriação do capitalismo e também os avanços que ainda se mantêm em relação à saúde, educação, emprego, aposentadoria etc.” Mas como defender conquistas que já não existem? Os serviços de saúde e educação, desde a restauração, pioraram enormemente. O pleno emprego não 98 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Pontos de vista existe mais (há mais de 400 mil desempregados) e isso tudo se deve à destruição das três conquistas básicas da Revolução Cubana no terreno econômico. A revolução cubana expropriou a burguesia nacional e estrangeira e colocou os meios de produção em mãos do Estado. Mas hoje esses meios de produção, em sua maioria, estão em mãos de uma nova burguesia nacional e, sobretudo, dos capitalistas estrangeiros. A outra grande conquista, o monopólio do comércio exterior por parte do Estado, como já vimos, também não existe mais. E, por fim, com a conquista que engloba as duas anteriores, a planificação econômica central, ocorre o mesmo. Mas Roberto Ramírez, como pretende ignorar esses fatos, apresenta um programa para uma nova revolução que nem sequer propõe as tarefas mais elementares, como por exemplo, a expropriação da burguesia ou, no mínimo, a expropriação da burguesia imperialista (europeia). Mas o programa para uma “nova revolução” de Ramírez não é reformista só porque ignora a restauração do capitalismo. Seria igualmente reformista mesmo que Ramírez estivesse correto quando afirma que tal restauração não existe. Seu programa defende o fim do regime de partido único, democracia operária e socialista e que as organizações de massas operárias, camponesas, estudantis e populares, com funcionamento absolutamente democrático, designem o governo de Cuba. Mas todas essas reivindicações, com certeza muito corretas, são feitas sem propor a necessidade de que as massas expulsem a burocracia do poder. Ou seja, não propõe uma revolução política, como a que Trotsky propunha para a ex-URSS. Em síntese, o programa para “uma nova revolução” é um programa reformista, seja Cuba um Estado capitalista, como dizemos nós, seja um “Estado burocrático”, no qual o capitalismo não foi restaurado, como diz Roberto Ramírez. Por fim, uma última reflexão sobre as posições de Roberto Ramírez. Em uma parte de seu texto, criticando nossas posições, ele diz: Da mesma forma, isto pode gerar confusões políticas ainda piores. Se amanhã os grupos dissidentes de centro-direita, alentados e financiados por Miami e a Oficina de Negócios dos EUA em Havana, ganharem força em um setor de massas, já estamos vendo os companheiros do PSTU-LIT falar da “luta democrática” contra a “ditadura do Estado burguês cubano”. Cremos que essa preocupação e essa hipótese do autor do artigo estão mal formuladas. A hipótese a ser levantada é outra. Se em Cuba, da mesma forma que ocorreu no Leste europeu, ocorrer uma insurreição contra o governo restauracionista (que quase seguramente contará com a participação ativa dos gusanos), perguntamos: de que lado estará Roberto Ramírez? Do lado das massas, apesar dos gusanos, ou do lado do governo, sob o pretexto dos gusanos? Devido às suas caracterizações e seu programa, ficamos com essa dúvida. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 99 IV Internacional Uma polêmica com o Secretariado Unificado da IV Internacional De que Internacional precisamos hoje? Clara Sousa Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) A crise econômica atual demonstra a total incapacidade do capitalismo de dar resposta às necessidades dos trabalhadores e dos povos. Ao mesmo tempo, a “globalização” tornou mais claro o caráter internacional do capitalismo. Para aqueles que consideram necessário acabar com o capitalismo ficou, portanto, mais visível a necessidade de construir uma organização internacional para lutar contra este sistema. Hoje, muitos dos ativistas que procuram uma alternativa ao capitalismo encontram pela frente o projeto dos partidos anticapitalistas e simpatizam com ele: alguns porque acham que eles são realmente revolucionários, outros porque lhes parece correto juntar todos os que querem mudar o mundo, independentemente de serem reformistas ou revolucionários. Ao mesmo tempo, muitos dos partidos da antiga esquerda revolucionária que durante anos defenderam a construção de partidos revolucionários, hoje saúdam e empenham-se em construir partidos anticapitalistas, unindo reformistas e revolucionários. O Secretariado Unificado da IV Internacional (SU) – que tem origem no trotskismo e se intitula como “a IV internacional” - tem sido um dos grandes impulsionadores dessa política de construção de partidos anticapitalistas. Por isso mesmo, hoje defendem a construção de uma Nova Internacional, composta por diversos partidos anticapitalistas, com um programa amplo (leia-se reformista). Esse projeto político contradiz, no entanto, os pilares centrais que deram origem à IV Internacional, que se propunha a ser o “partido mundial da revolução socialista” para superar a crise de direção revolucionária e baseava-se no Programa de Transição para a “mobilização sistemática das massas para a revolução proletária”1. O projeto do SU é construir “uma Internacional anticapitalista ampla” No documento preparatório ao Congresso Mundial do SU2, a ser realizado em março de 2010, encontramos bem explícito o projeto internacional que propõe para o próximo período: 5. (…) Confirmamos o essencial das nossas escolhas do último congresso Mundial de 2003 no que concerne à construção de partidos 100 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Trotsky. Programa de Transição. Edições Antidoto. Lisboa, 1978 2 Papel e Tarefas da Quarta Internacional: Resolução preliminar do Comitê Internacional. Em www.combate. info. anticapitalistas amplos. A Quarta Internacional (QI) confronta-se, de forma geral, com uma nova fase. Militantes marxistas revolucionários, núcleos, correntes e organizações devem colocar a questão da construção de formações políticas anticapitalistas, revolucionárias, com a perspectiva de estabelecerem uma nova representação política independente da classe trabalhadora. Tal aplica-se ao nível de cada país e ao nível internacional. (…) Não se trata apenas de recuperar as velhas fórmulas de reagrupamento de correntes revolucionárias. A ambição é de juntar forças para além das simplesmente revolucionárias. Estas podem ser um apoio no processo de junção de forças desde que sejam claramente pela construção de partidos anticapitalistas. (…) O projeto do SU não passa por construir partidos revolucionários nacionais, mas por construir “partidos anticapitalistas” que juntem revolucionários e reformistas. A IV Internacional seria demasiado restrita como polo de atração, pelo que seria necessário construir uma Internacional mais ampla: 7. (…) A existência dessa estrutura internacional que torna possível “pensar sobre a política” é um bem indispensável para a intervenção dos revolucionários. (…) No entanto, a QI, por razões históricas, já por si analisadas, não possui a legitimidade para representar ou ser a nova Internacional de massas de que necessitamos. (…) Na presente relação de forças, a política de avançar no sentido de uma Internacional de massas deve tomar o caminho da realização de conferências abertas e periódicas sobre questões políticas centrais - atividade, temas específicos ou discussões - que tornem possível a convergência e a emergência de polos anticapitalistas e revolucionários. Nos novos partidos anticapitalistas que se possam formar nos próximos anos, e que exprimem a fase atual de combatividade, experiência e consciência dos setores mais comprometidos com a procura de uma alternativa anticapitalista, a questão de uma nova internacional existe e continuará a ser colocada. Nós agimos e continuaremos a agir de forma a que esta questão não seja colocada em termos de escolhas ideológicas ou históricas, que poderão gerar divisões e cisões. Deve ser colocada a um duplo nível, por um lado em termos de real convergência política nas tarefas de intervenção internacional, no pluralismo de novas formações políticas, que deverá poder juntar correntes de diversas origens: trotskistas de diversas origens, libertários, sindicalistas revolucionários, nacionalistas revolucionários, reformistas de esquerda. (…) À primeira vista pode parecer que, segundo o SU, é preciso abandonar a IV porque esta não pode ser uma Internacional de massas. No entanto, a questão é mais profunda. Para juntar reformistas e revolucionários é preciso encontrar um modelo de Internacional e, consequentemente um programa, que comporte visões do mundo reformistas. A IV e o seu programa não comportam isso. O abandono da IV dá-se não porque esta não possa ser de massas, mas porque a sua história - por mais distorcida que seja nas mãos do SU – é uma história revolucionária. As forças não revolucionárias, não Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 101 IV Internacional aceitam aderir sequer ao nome de “IV”, que ficou associada historicamente à necessidade de um Partido mundial da revolução socialista. Internacional ampla ou Partido Mundial da Revolução Socialista? O projeto proposto pelo SU não é uma novidade histórica, apesar de ser apresentado como tal. Na realidade, o objetivo de juntar reformistas e revolucionários num mesmo partido e na mesma Internacional foi uma etapa histórica superada com degeneração da II Internacional, a partir da explosão da I Guerra Mundial e da sua capitulação aos governos burgueses e imperialistas. Essa experiência histórica demonstrou que a convivência de revolucionários e não revolucionários numa mesma organização leva os primeiros a ficarem atados a uma estratégia reformista de conciliação de classes, que só trouxe até hoje derrotas para a classe operária. É essa clareza que leva Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros a romper com a II, e levantar a necessidade de construir um novo instrumento revolucionário para a classe operária mundial. A III Internacional, fundada em 1919, apoiada na experiência de tomada do poder na Rússia em 1917, é a concretização, em duas organizações opostas, da estratégia dos reformistas (a II) e da estratégia dos revolucionários (a III). O projeto da III estava ancorado numa análise fundamental da realidade a partir de 1914, feita por Lênin: o capitalismo tinha entrado na sua fase imperialista de decadência, onde não era possível alcançar reformas estáveis e duradouras. Tal como a III, a IV Internacional parte dessa análise, que abre o Programa de Transição: A condição econômica necessária para a revolução proletária já alcançou, no geral, o mais alto grau de maturação possível sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos já não conduzem a um crescimento da riqueza material. Sob as condições da crise social de todo o sistema capitalista, as crises conjunturais sobrecarregam as massas com privações e sofrimentos cada vez maiores. O crescimento do desemprego aprofunda, por sua vez, a crise financeira do Estado e enfraquece os sistemas monetários instáveis. (…) Todo o falatório segundo o qual as condições históricas não estariam “maduras” para o socialismo é apenas produto da ignorância ou de um engano consciente.3 Abria-se, portanto, uma época histórica marcada por guerras e revoluções. A construção da Internacional enquanto Partido Mundial da Revolução Socialista – que era o projeto da III e da IV – responde diretamente à decadência do capitalismo e à consequente necessidade de tomada do poder pela classe operária para acabar com a barbárie, sofrimento e destruição provocados pelo capitalismo e agudizados na sua fase imperialista. A Internacional proposta pelo SU, que não tem um programa revolucionário claro que unifique os seus membros e não se constitui como um partido mundial para a revolução socialista é, portanto, o oposto do que foi o projeto da IV. Nos estatutos aprovados na sua fundação em 1938 podemos ler: 1. Todos os militantes proletários e revolucionários do mundo que aceitam e aplicam os princípios e o programa da IV Internacional estão 102 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 3 TROTSKY, L. A agonia mortal do capitalismo e as tarefas da IV Internacional (Programa de Transição). Em: Documentos de fundação da IV Internacional. São Paulo: Editora Sunderman, 2008 juntos numa única organização mundial, sob uma direção internacional centralizada e uma disciplina única. Esta organização tem o nome de IV Internacional (Partido Mundial da Revolução Socialista) e é governada pelo presente estatuto.4 Ao mesmo tempo, a proposta do SU de juntar revolucionários e reformistas num mesmo partido não corresponde à tarefa da época histórica atual: a revolução socialista mundial. Para cumprir essa tarefa não bastam partidos e uma Internacional amplos. Isto porque a época imperialista atual, marcada por “guerra e revoluções”, é diametralmente oposta ao momento em que se fundou a I ou a II Internacional, onde o capitalismo ainda vivia a sua fase ascendente e podia outorgar algumas reformas à classe trabalhadora. Hoje, nem a “Frente única” da I Internacional, nem o projeto reformista e parlamentar da II podem responder à necessidade da tomada do poder pela classe trabalhadora. Sem um Partido Mundial da Revolução Socialista será impossível destruir o capitalismo com as suas instituições políticas, econômicas e militares, extremamente fortes, centralizadas e internacionalizadas. Por isso, são necessários partidos voltados para a ação, inseridos na classe operária e democraticamente centralizados (com a maior amplitude na discussão e maior unidade e disciplina na ação), tanto a nível nacional, como a nível internacional. Se o SU propõe um projeto de Internacional que una revolucionários e reformistas com base no programa destes últimos, que quer dizer quando fala de anticapitalismo e socialismo do século XXI? Qual a estratégia socialista que necessitamos hoje? Daniel Bensaïd, um dos principais dirigentes do SU, escreveu em 2006 um artigo5 onde afirmava a necessidade de voltar ao debate estratégico e ser mais específico “relativamente ao mundo «possível» e, acima de tudo, explorar como lá chegar”. Bensaïd reafirma a mesma necessidade de passar da etapa utópica e definir a estratégia numa entrevista recente no jornal Público da Espanha (www.publico.es)6. Apesar disto, Bensaïd persiste em ser pouco explícito nas conclusões que tira sobre o socialismo e a estratégia. Por trás dessa aparente confusão emerge, todavia, um projeto claro. Bensaïd defende a necessidade de que o socialismo passe por fazer coexistir diferentes tipos de representação e de legitimidades, o que tenderia a concretizar-se na existência de uma Dupla Câmara. O que significa essa dupla representação? Segundo Bensaïd: Poderemos até, em algum momento, ter ficado perturbados ou chocados com a idéia de Ernest Mandel7 de ‘democracia mista’ após ter reavaliado a relação entre os sovietes e a Assembleia Constituinte na Rússia. No entanto não é possível imaginar um processo revolucionário de outra forma que não seja através da transferência de legitimidade que confira preponderância ao ‘socialismo pela base’ mas que interaja com formas de representação, principalmente em países com longas tradições parlamentares e onde o principio do sufrágio universal esteja firmemente enraizado.8 No socialismo deveria, assim, coexistir a legitimidade proveniente das 4 Documentos de fundação da IV Internacional. São Paulo: Editora Sunderman. 2008. 5 BENSAÏD, D. O início de um novo debate: O regresso da Estratégia. Publicação original em Rouge (revista da LCR Francesa). Versão em português em www. combate.info. 6 BENSAÏD, D. Ha llegado el momento de definir la estrategia. Entrevista a Andrés Pérez, Jornal Público, Madrid, 2-10-2009. Em www.publico.es. 7 Ernest Mandel, economista belga, foi o principal dirigente do SU até 1995, quando faleceu. 8 BENSAÏD, D. O início de um novo debate: O regresso da Estratégia. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 103 IV Internacional instituições parlamentares (burguesas) com a legitimidade “de base”, dos sovietes ou outros organismos de duplo poder. Como um bom exemplo, o autor coloca a coexistência entre as “instituições municipais” e as “instituições participativas” em Porto Alegre no Brasil. Por isso é que a secção do SU no Brasil, que esteve à frente da Prefeitura de Porto Alegre em 1996-2000, dizia que o Orçamento Participativo era o início de um processo de democratização radical do Estado via a construção do socialismo9. Esta perspectiva de Bensaïd - que não pressupõe qualquer ruptura revolucionária, mas coexistência pacífica entre instituições da democracia burguesa e da democracia operária – fica mais clara quando fala sobre a revolução hoje: A noção de “atualidade da revolução” tem um duplo significado: um sentido amplo (“a época de guerras e revoluções”) e um sentido imediato e conjectural. No momento defensivo em que o movimento se encontra, tendo recuado durante mais de vinte anos na Europa, ninguém poderá reclamar a atualidade da revolução num sentido imediato. Por outro lado, seria arriscado e não de somenos importância eliminar a sua perspectiva dos horizontes da nossa época. (…) Mas uma idéia suscetível de debate é a de manter o objetivo da conquista do poder como um símbolo de radicalismo, mas admitir que a sua realização encontra-se atualmente longe dos nossos horizontes. Para Bensaïd, a revolução manter-se-ia atual como projeto histórico, isto é, apenas para um futuro longínquo e não como tarefa concreta para os nossos dias. À primeira vista, poderia parecer que este adiamento da Revolução por Bensaïd dever-se-ia apenas a uma análise de que estaríamos numa conjuntura da luta de classes desfavorável ao projecto revolucionário. No entanto, não é uma diferença da conjuntura que subjaz a esta diferença face à revolução. Em primeiro lugar, é no contexto de um debate sobre a estratégia e não conjuntural que Bensaïd afirma que a revolução não está colocada hoje. Por outro lado, relembremos que, se os anos 90 foram marcados pela ofensiva da burguesia a nível mundial e pelo retrocesso das lutas da classe trabalhadora, a década de 2000 iniciou-se com os processos revolucionários na Argentina, Bolívia, Venezuela, Equador: a revolução foi colocada na ordem do dia pelas massas, quando os “revolucionários” do SU diziam e dizem até hoje que a revolução não tem atualidade num sentido imediato. Finalmente, lembremos que a IV Internacional foi fundada por Trotsky num período de importantes retrocessos da luta de classes, como a subida ao fascismo em países centrais como a Alemanha, a Itália e a Espanha, e a burocratização do Estado operário na Russia. Apesar disso, o Programa de Transição propunha-se como tarefa central mobilizar as massas para a revolução, porque, apesar das derrotas históricas que marcavam o período, “a estratégia da IV Internacional, não consiste em reformar o capitalismo, mas em derrubá-lo”. A atualidade da preparação da revolução não podia, portanto, deixar de ser uma constante. Com a desculpa de uma conjuntura que, segundo Bensaïd, a revolução seria inviável, este abdica na verdade da tarefa histórica para toda uma época: a revolução socialista mundial. A ausência de referência no texto de Bensaïd 104 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 9 Para aprofundar a critica a esta perspectiva, no caso especifico de Porto Alegre no Brasil, ver Presupuesto Participativo: en los limites del orden burgués de Mariucha Fontana e Julio Flores. In Marxismo Vivo nº 3. 2001 (e nos do SU) sobre a questão do Estado e a sua relação com a revolução é o aspecto que demonstra verdadeiramente o projeto estratégico do SU. Revisitando “O Estado e a Revolução” No livro O Estado e a Revolução10, Lênin retoma as elaborações de Marx e Engels sobre o Estado como produto do antagonismo irreconciliável entre as classes. O Estado existiria para conciliar a existência de duas classes opostas, mantendo a submissão de uma pela outra. Para manter essa submissão, a classe mais poderosa e dominante economicamente utiliza o Estado para também se tornar politicamente dominante. Suas várias instituições garantiriam a dominação, com destaque para as Forças Armadas. Daí, Lênin sintetiza o Estado como “uma força especial de repressão” e deduz que “a libertação da classe oprimida só é possível por meio de uma revolução violenta e da supressão do aparelho governamental criado pela classe dominante (...)” (O Estado e a Revolução, p. 11). Na sociedade capitalista, o Estado também não seria neutro, mas burguês, e suas instituições seriam o sustentáculo do sistema, ao servirem para a manutenção da dominação da burguesia e a sua exploração da classe trabalhadora. É nesse sentido que Lênin retoma Engels nas suas considerações sobre o sufrágio universal (aparentemente a garantia da democracia para “todos os cidadãos”) como um instrumento da burguesia, e critica aqueles que o defendem como expressão da vontade da maioria: Os democratas pequenos-burgueses, do gênero dos nossos socialistasrevolucionários e mencheviques, e os seus irmãos, os sociais-patriotas e oportunistas da Europa ocidental, esperam precisamente, “mais alguma coisa” do sufrágio universal. Partilham e fazem o povo partilhar da falsa concepção de que o sufrágio universal, “no Estado atual”, é capaz de manifestar verdadeiramente e impor a vontade da maioria dos trabalhadores. (O Estado e a Revolução, p. 18) A partir dessa concepção do caráter classe do Estado, Lênin reforça a idéia de que para construir o socialismo é necessária uma revolução violenta que derrube o Estado burguês (e suas instituições) e construa o Estado operário – a ditadura do proletariado. Para Trotsky, a ditadura do proletariado concretizava todo o programa da IV. De forma oposta, Bensaïd considera que foi até uma “decisão justa” que a LCR tenha retirado a ditadura do proletariado do seu programa, visto que o termo ditadura teria uma conotação pejorativa hoje. Mas não é simplesmente a expressão ditadura do proletariado que está ausente do programa do SU, e sim a sua concretização: a necessidade de que a classe operária destrua o Estado burguês e construa um Estado operário. Segundo as palavras de Bensaïd, esta nova estratégia socialista, sem a revolução no horizonte, adviria da necessidade de responder à juventude “mais prática”, ao predomínio da derrota histórica dos anos 80 ou à falta de uma perspectiva de “emancipação” que ainda predominaria nos nossos dias. No entanto, a defesa do “socialismo” sem destruição do Estado burguês é uma posição antiga defendida pelas correntes reformistas, encabeçadas dentro da II Internacional por Bernstein e Kautsky e combatidas por Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo. Da mesma forma, a tentativa de associar aqueles que 10 Utilizamos aqui como referência para as citações a versão publicada pela Editora Hucitec (São Paulo, 1979). Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 105 IV Internacional defendem uma ruptura violenta com o sistema capitalista aos “ditadores” por contraposição aos “democratas” que defendem o socialismo “na base” e no parlamento é um ataque histórico dessas correntes contra as correntes revolucionárias. Em 1918, Kautsky, dirigente da II Internacional, escreveu uma brochura intitulada A ditadura do proletariado onde atacava o regime soviético surgido da Revolução Russa e as análises do Estado e da Revolução defendidas pelos bolcheviques. No texto A revolução proletária e o renegado Kautsky, Lênin analisa e se contrapõe aos vários argumentos de Kautsky, denunciando sua deformação do marxismo. No 1º Congresso da Internacional Comunista 1919, Lênin apresenta as Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado onde se sintetiza esta discussão. Retomamos alguns dos argumentos desse debate que se assemelha em muito àquele que mantemos com Bensaïd. Ditadura e democracia “em geral” ou de classe? A argumentação de Kautsky para atacar a ditadura do proletariado centrava-se na oposição entre dois métodos diferentes: o democrático e o ditatorial. Sob este aspecto, respondiam Lênin e a III Internacional: 2. (...) este argumento se apóia nas concepções de ‘democracia em geral’ e de ‘ditadura em geral’, sem precisar a questão da classe. Colocar assim o problema, fora da questão das classes, pretendendo considerar o conjunto da nação, é zombar da doutrina fundamental do socialismo - a doutrina da luta de classes - aceita nas palavras, mas esquecida na prática pelos socialistas que passaram para o campo da burguesia. Pois em nenhum país civilizado, em nenhum país capitalista existe democracia em geral: existe apenas democracia burguesa. (…) 3. (…) Esta defesa atual da democracia burguesa em meio a discursos sobre a ‘ditadura em geral’ (…) são uma verdadeira traição ao socialismo, (…) uma negação do direito do proletariado à sua revolução proletária. É defender o reformismo burguês (…). 4. Todos os socialistas, demonstrando o caráter de classe da civilização burguesa, da democracia burguesa, do parlamento burguês, expressam a idéia já formulada com o máximo de exatidão científica por Marx e Engels, que a mais democrática das repúblicas burguesas não sabe ser outra coisa que uma máquina de oprimir a classe operária à mercê da burguesia, a massa de trabalhadores à mercê de um punhado de capitalistas. (…) e agora que o proletariado revolucionário está em fermentação e movimento, que se encaminha para destruir esta máquina de opressão e para conquistar a ditadura do proletariado, esses traidores socialistas desejam fazer crer que a burguesia deu aos trabalhadores a ‘democracia pura’, como se a burguesia tivesse renunciado a toda a resistência e estivesse prestes a obedecer à maioria dos trabalhadores, como se, numa república democrática, não houvesse uma máquina governamental feita para operar o esmagamento do trabalho pelo capital.11 106 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 11 Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado. Em: III Internacional Comunista: Manifestos, Teses e Resoluções do 1º Congresso. São Paulo: Brasil Debates Editora. 1988 Qualquer regime dentro do Estado burguês (seja uma ditadura ou uma democracia) seria então uma ditadura da burguesia sobre a classe operária, porque continuava assente nas instituições que permitem à burguesia (minoria da população) continuar a explorar a classe trabalhadora (a maioria da população). A ditadura do proletariado seria mais democrática (e superior à democracia burguesa), porque é uma democracia para a maioria da população (a classe operária) e uma ditadura apenas sobre a minoria exploradora da população (a burguesia). Essa oposição entre democracia e ditadura em geral e sem caráter de classe é utilizada hoje pelo SU para atacar como antidemocráticas e autoritárias as correntes que até hoje se reivindicam da necessidade de que a classe trabalhadora faça a revolução socialista e instaure a ditadura do proletariado. Tal como Kautsky, em nenhum momento o SU denuncia a democracia atual como uma ditadura encapotada da burguesia e, pelo contrário, defende constantemente que “a democracia” precisaria apenas de ser aprofundada, radicalizada ou completada com o “socialismo de base”, como se vê pela defesa de Bensaïd do sufrágio universal e da dupla legitimidade. Esse discurso do SU é ainda mais nefasto que o de Kautsky, à medida que associa a ditadura do proletariado ao que foi a ditadura stalinista, da mesma forma que o faz a burguesia, com o objetivo de desprestigiar o projeto socialista. Como corrente que provém do trotskismo, o SU sabe bem que a ditadura stalinista foi uma degeneração burocrática da ditadura do proletariado contra a qual Trotsky e outros bolcheviques lutaram até a morte. Ao fazer este discurso nos nossos dias, o SU não apenas deforma o marxismo como afirmava Lênin relativamente a Kaustky, como também fortalece a campanha da burguesia e varre para baixo do tapete da história a ampliação da democracia para os trabalhadores na Rússia depois da tomada do poder e o que foi a luta heróica de muitos revolucionários contra a burocratização do regime na URSS. É possível acabar com o capitalismo sem destruir o Estado burguês? Por outro lado, Kautsky dizia que os sovietes eram órgãos muito importantes, mas que deveriam manter-se como órgãos de combate da classe operária, e não elevar-se a órgãos estatais, ou seja, não se tornarem instituições de poder alternativo às burguesas. Por isso mesmo, apesar de todo o Estado operário estar construído sobre o poder dos sovietes, que permitiam ampla democracia à maioria da população, Kautsky atacava os bolcheviques por dissolverem a Assembléia Constituinte e defendia a suposta coexistência entre estes dois organismos. Segundo Lênin, Kautsky tentava dessa forma combinar dois sistemas opostos: a Assembléia Constituinte, enquanto organismo da ditadura burguesa, e o sistema dos sovietes, enquanto organismos da ditadura do proletariado. Desta forma, Kautsky pretendia, segundo Lênin, esconder a sua oposição à destruição das instituições do Estado burguês e à construção de um Estado operário, com base nos sovietes. Kautsky recusava, assim, a própria ditadura do proletariado. Nas teses aprovadas no 1º Congresso da Internacional Comunista a oposição à concepção de Kautsky fica bem clara: Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 107 IV Internacional (...) a ditadura do proletariado não é apenas absolutamente legítima, enquanto instrumento adequado à destruição dos exploradores e ao esmagamento de sua resistência, mas também absolutamente indispensável para toda a massa trabalhadora, como único meio de defesa contra a ditadura da burguesia que causou a guerra e prepara novas guerras. O ponto mais importante, que os socialistas não compreendem e que constitui sua miopia teórica, seu apego aos preconceitos burgueses e traição política para com o proletariado, é que na sociedade burguesa, quando se acentua a luta de classes, não há meio termo entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado. Todos os sonhos de uma solução intermediária são apenas lamentações reacionárias de pequenos burgueses.12 Também Bensaïd procura a dupla legitimidade ou representação, defendendo a combinação entre os organismos “de base” com as instituições burguesas (sufrágio universal, instituições municipais, etc.). Com essa conciliação, Bensaïd, tal como Kautsky, procura esconder um programa político que se opõe à destruição do Estado burguês e à elevação dos organismos da classe a organismos de poder, e portanto à construção de um estado operário. O projeto de Bensaïd, como o de Kautsky é, assim, a negação da revolução socialista e da ditadura do proletariado e, como tal, a negação do programa da IV Internacional. O SU abandona a ditadura do proletariado e ultrapassa a fronteira de classe O abandono da ditadura do proletariado pelo SU significa o abandono não apenas conjuntural da revolução, mas estratégico. Nesse sentido, a estratégia do SU passa a ser, objetivamente, alcançar reformas nos limites do sistema capitalista. É no marco dessa visão estratégica onde está ausente a revolução que devemos compreender a defesa de Bensaïd de que a participação nos governos burgueses é uma questão de tática, e não de princípios. Haveria portanto critérios que definiriam se é positivo ou não participar em governos burgueses: a) a questão da participação surge numa situação de crise ou pelo menos de um significativo ascenso nas mobilizações sociais, e não no vazio; b) o governo em causa deverá estar comprometido com o início de uma dinâmica de ruptura com a ordem estabelecida; c) finalmente, que a relação de forças permita aos revolucionários assegurar que, mesmo que não consigam garantir que os não-revolucionários no governo cumpram as suas promessas, estes paguem um elevado preço pelo seu incumprimento.13 À luz desses critérios, Bensaïd critica a participação da DS no governo Lula no Brasil, não por colaborar com a burguesia e trair a classe trabalhadora, mas apenas por ter aplicado uma tática correta de forma incorreta. Ao defender e participar de governos burgueses, o SU ultrapassa a fronteira de classe, defendendo a colaboração direta com a burguesia para dar algumas migalhas à classe trabalhadora. 108 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 12 Tese 11 das Teses da III Internacional sobre a democracia burguesa e ditadura do proletariado. 13 BENSAÏD, D. O início de um novo debate: O regresso da Estratégia. A experiência recente da participação do SU em governos burgueses na Itália e no Brasil com o objetivo de alcançar reformas no marco do sistema apenas reforçou as lições que há muito o SU deveria ter aprendido da história do movimento operário: a classe trabalhadora não viu a sua vida melhorada e fomentaram-se as ilusões no sistema capitalista e na colaboração de classes. A única coisa que o SU conseguiu com a sua estratégia reformista foi ajudar a burguesia a manter a estabilidade do regime em momentos que esta estava mais questionada. A independência de classe e o combate aos governos burgueses, e em especial aos de colaboração de classes (ou de frente popular), sempre foi um definidor claro do programa da IV, que a diferenciava das demais correntes. A participação em governos da burguesia dividiu águas entre a II e a III Internacionais. A oposição às frentes populares foi, em particular, um definidor de águas do trotskismo com o stalinismo. Como podemos ler no Programa de Transição: A passagem definitiva da Internacional Comunista para o lado da ordem burguesa, o seu papel cinicamente contrarrevolucionário em todo o mundo (…) criou dificuldades suplementares ao proletariado mundial. Usurpando a bandeira da Revolução de Outubro, o Komintern, pela política conciliadora das ‘Frentes Populares’, vota a classe operária à impotencia e abre o caminho ao fascismo. As ‘Frentes Populares’ por um lado, o fascismo por outro, sao os últimos recursos politicos do imperialismo na luta contra a revolução proletária. Mais uma vez, o SU coloca-se na barricada oposta à da III e da IV Internacional. Mais uma vez, também, repete os erros históricos da II Internacional. O “anticapitalismo” do SU e o “socialismo do século XXI” são a negação do socialismo Na realidade, toda esta revisão do programa da IV Internacional e do seu projeto de construção do Partido Mundial da Revolução Socialista ganha nomes bonitos na boca do SU: fala-se de partidos “anticapitalistas”, de uma “Internacional Ampla” e do “socialismo do século 21”. Bensaïd, quando se refere à estratégia anticapitalista na atualidade, reivindica a dialética entre reforma e revolução e a necessidade de reivindicações transitórias que façam a ponte “entre um programa mínimo (antineoliberal) e programa máximo (anticapitalista)”. Todavia, o programa máximo de Bensaïd (e do SU) não inclui, como vimos, a perspectiva de destruir o Estado burguês. O “anticapitalismo” do SU resume-se, por isso, a diminuir “excesssos” do capitalismo neoliberal através da luta por reformas. Sem uma estratégia para a revolução e para a ditadura do proletariado, o anticapitalismo do SU não passa na verdade do antineoliberalismo. O mesmo poderiamos dizer da defesa do SU sobre o “socialismo do século 21”. Na verdade, embora o socialismo do século 21, tal como o “anticapitalismo”, seja formalmente uma recusa do capitalismo, ele é a negação do socialismo, enquanto rejeição do projeto de poder autônomo da classe operária: a ditadura do proletariado. É bastante ilustrativo que o grande promotor do socialismo do século 21 - Chávez - seja o presidente de um Estado Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 109 IV Internacional burguês – a Venezuela. Por outro lado, o socialismo do século 21 e o “anticapitalismo” são também a recusa da experiência do socialismo do século 20, em particular da Revolução Russa. Como dissemos antes, o SU e outras organizações de esquerda dão cobertura ao discurso da burguesia de que Estado operário é o mesmo que stalinismo. Pelo contrário, a ditadura burocrática stalinista da URSS foi o oposto da ditadura revolucionária do proletariado na Rússia. O SU, que critica aqueles que continuam a defender a ditadura do proletariado como uma necessidade, alia-se a setores stalinistas reciclados nos partidos anticapitalistas (como é o exemplo da Refundação Comunista) e apóia os setores claramente bonapartistas, como Chávez. O socialismo do século 21, que pretende ser um “novo projeto de socialismo”, não faz mais que repetir as revisões do marxismo há muito rebatidas pela história. A experiência das revoluções do século XX mostram que, para construir o socialismo não basta apoiar-se nas “mobilizações e auto-atividade das classes populares”. Como demonstrou a revolução russa, é preciso destruir o Estado burguês e construir um Estado operário, a partir dos organismos de duplo poder que surjam nos processos revolucionários em curso, é preciso instaurar a ditadura do proletariado. Qualquer solução intermédia leva à manutenção do capitalismo como sistema e à continuação da dominação da burguesia. A necessidade de reconstruir a IV e atualizar o Programa de Transição Ao contrário do que querem fazer parecer, o projeto do SU retrocede mais de 100 anos na história do movimento operário, pois significa rejeitar a oposição estratégica entre revolucionários e reformistas, que os levou, durante décadas, a ter organizações separadas. O SU quer, assim, reeditar a experiência histórica da II Internacional. A história do século XX deixou bem claro para onde levou a estratégia reformista de Bernstein e Kaustky, que tanto se assemelha à de Bensaïd e do SU. Com esta proposta, o SU dá um marco organizativo à sua política de conciliação de classes (de que sua participação em governos burgueses é apenas o exemplo mais extremo) e prepara novas capitulações ao imperialismo (como a defesa de intervenções “humanitárias” promovidas pela ONU), novas derrotas para a classe operária e retrocessos na construção do socialismo. Tal como foi no caso da II Internacional, a política de abandono do projeto revolucionário por parte do SU é produto da adaptação aos aparatos reformistas que esta corrente vem levando a cabo há várias décadas, e que a corrente que hoje se organiza na LIT-QI combateu ainda dentro da IV Internacional, por considerar que esta levava à destruição da IV e não à sua reconstrução. Essa adaptação do SU deu um salto depois da restauração do capitalismo nos antigos Estados operários. Nesse sentido, a capitulação do SU insere-se num processo mais geral em que a política imperialista de reação democrática triunfou em cooptar a antiga esquerda revolucionária por meio dos aparatos sindicais e dos aparatos burgueses. Como produto desse processo, o SU busca hoje apenas ser a ala esquerda do regime em vários países e não a alternativa socialista revolucionária que necessitamos. Ou seja, apesar de ainda ostentar o nome de IV Internacional, seu projeto é o oposto ao de 110 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Trotsky quando chamou à fundação da IV. Contra essa revisão profunda, reafirmamos a necessidade da luta pelo socialismo e da estratégia da revolução mundial para destruir o capitalismo, o seu Estado e as suas instituições. Esse projeto só pode ser o da IV Internacional, a partir de suas bases fundacionais. Por isso, a LIT-QI coloca-se ao serviço da tarefa central: a reconstrução da IV Internacional. Este projeto não é para nós um fetiche produto de dogmas, mas uma necessidade que decorre da análise da realidade e da constatação da atualidade do Programa de Transição – o programa da IV. Podemos dizer que esta atualidade concretiza-se em quatro aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, porque o capitalismo mostrou a sua falência como sistema que não traz solução para nenhum problema de fundo do mundo de hoje. Por isso, continua a ser necessária uma “(…) luta sem piedade contra o capitalismo até derrotá-lo, para impor uma nova ordem econômica e social no mundo, que não pode ser outra que não o socialismo”14. Em segundo lugar, porque o Programa de Transição colocou sempre a democracia operária como uma questão central. Por isso defendia que nos antigos Estados operários não havia saída sem realizar uma revolução política para derrubar a burocracia que tinha usurpado o poder aos trabalhadores. Já nos países capitalistas colocava-se por dar uma batalha mortal contra a burocracia sindical e os partidos que se reivindicavam da classe trabalhadora e se corromperam. Em terceiro lugar, pela clareza de que a revolução e a construção do socialismo são uma tarefa de caráter mundial. Como diz Moreno: “O socialismo não pode ser nada mais que mundial. Todas as tentativas de se fazer um socialismo nacional fracassaram, porque a economia é mundial e não pode haver solução sócio-econômica dos problemas dentro das estreitas fronteiras nacionais de um país”15. Finalmente, por batalhar pela construção de uma Internacional que seja o Partido Mundial da Revolução Socialista, que sintetiza a nível da organização o programa da IV e procura superar a razão da crise histórica da humanidade: a crise de direcção revolucionária. Apesar da atualidade do Programa de Transição, desde 1938 houve muitos acontecimentos no mundo que precisam de novas respostas. Consideramos necessário ir a fundo na explicação do que significou o fim dos Estados operários. Por outro lado, a atual crise econômica implica em novas respostas por parte dos revolucionários. É necessário compreender qual é a politica concreta do imperialismo hoje e quais as suas relações econômicas, políticas e sociais. Está colocada a tarefa de atualizar o Programa de Transição frente às novas realidades, às grandes mudanças por que passamos nesses últimos anos. Essa atualização programática é central para responder a essas novas realidades, mas ela deve basear-se nos alicerces sólidos deixados pela elaboração estratégica da III dos tempos de Lênin e da IV de Trotsky contra a burocracia stalinista. Para a LIT, essa tarefa é decisiva e tem que estar extremamente ligada à reconstrução da IV, tarefa que não passa pela união de todos os que se consideram trotskistas ou marxistas, mas por agrupar os revolucionários de distintas tradições sobre a base de um acordo sólido em torno ao programa marxista e revolucionário para o mundo atual. 14 MORENO, N. Ser trotsquista hoje. Em: www.marxists.org. 15 Idem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 111 Isto é História China, 1949: uma Revolucaç~ão no ´ país mais populoso da Terra cecília Toledo e Marcos Margarido ParTido socialisTa dos Trabalhadores uniFicado (PsTu) - brasil Há 60 anos, no dia 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-tung anunciava a fundação da República Popular da China. A vitória da Revolução Chinesa foi a culminação de um longo processo revolucionário que sacudiu a China desde 1911, com a queda do império manchu, a revolução nacionalista de 1925-27, a guerra contra o imperialismo japonês nos anos 30 e finalmente a vitória do Exército de Libertação Popular em 1949. Dois grandes acontecimentos mundiais – a primeira guerra mundial de 1914 a 18 e a revolução russa de 1917 - determinaram todo o processo chinês. A primeira guerra teve como causa a disputa pelas colônias entre as potências imperialistas, devido às pretensões expansionistas da Alemanha e Japão, e uma nova divisão mundial do trabalho; a revolução russa impôs a ditadura do proletariado no país capitalista mais atrasado da Europa, dando dali em diante um novo marco para os movimentos de libertação nacional e anticoloniais. Hoje pouco resta dessa grandiosa revolução. Exemplo máximo disso é que o povo chinês foi proibido de assistir aos festejos de aniversário de uma revolução pela qual deu a vida e na qual depositou todas as suas esperanças. A luta contra o imperialismo A primeira fase da revolução chinesa, em 1911, apesar de ter derrubado o império manchu, não conseguiu cumprir tarefas fundamentais, como fazer a reforma agrária e, sobretudo, expulsar as potências imperialistas e realizar a unificação nacional. A Primeira Guerra Mundial, em 1914, colocou o país diante da necessidade de romper com seu passado pré-capitalista e definirse como um país independente. O mesmo propósito que levara as potências ocidentais às revoluções dos séculos XVIII e XIX agora sacudia a China. Mas o mundo já era outro. O capitalismo já estabilizara a divisão internacional do trabalho e um mundo colonial já se estabelecia, do qual a China fazia parte. Harold Isaacs definiu a situação complicada da China na época: “A China, como o restante dos países dependentes do Leste, teve de tentar se transformar em uma nação no mesmo momento em que a nação, como tal, havia se esgotado como instrumento adequado para o progresso humano”.1 A política norte-americana que emergiu da guerra causou enorme impacto, sobretudo na Ásia, que buscava emancipar-se do atraso em relação às potências capitalistas ocidentais. A China teve de aceitar, no Tratado de Versalhes, que 112 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Xangai, 1957 1 ISAACS, Harold R. The Tragedy of the Chinese Revolution. Stanford University Press, 1961. Isto é História o Japão, um sócio menor das potências imperialistas, evacuasse a província chinesa de Shandong, mas mantivesse o controle sobre a Manchúria. A esperança, portanto, vinha da Rússia. A Revolução Russa, de outubro de 1917, significou para as massas chinesas um horizonte possível e as bandeiras da ditadura do proletariado e do internacionalismo, as idéias do marxismo e do socialismo, penetraram com força em toda a China. Em 1919 ocorrem poderosas lutas anti-imperialistas, e em 1921 Sun Yat-sen, fundador e líder do Kuomintang, o maior partido burguês da China, é eleito presidente da república e proclama sua determinação em continuar a luta contra os “senhores da guerra” e de realizar a unificação do país. Mas os trabalhadores chineses já estavam protagonizando um enorme ascenso nas mais importantes cidades do país; no campo, os milhões de camponeses, homens e mulheres viviam em uma situação de pobreza e exploração imensas (80% das terras cultiváveis estavam em mãos de latifundiários ou estrangeiros). Em meio a esse ascenso, em 12 de julho de 1921, é fundado o Partido Comunista Chinês em Xangai, e em 27 de janeiro de 1923 Sun Yat-sen assina um acordo com o governo soviético, cujo objetivo era a ajuda da URSS ao Kuomintang e a cooperação entre este e o PCCh na luta anti-imperialista. No entanto, essa segunda onda revolucionária (entre 1925 e 1927) explode justamente no momento em que ocorre a morte de Lênin e a subida ao poder de Stalin e sua camarilha na União Soviética. Numa guinada contra a expansão mundial da revolução, o Comintern orienta-se para a teoria do “socialismo num só país”2. A política de coexistência pacífica com o imperialismo, a partir da divisão do mundo em esferas de influência, marcaria a orientação comunista dali em diante. Na China, cresce a organização da classe trabalhadora com grandes lutas, como a poderosa greve dos marinheiros e estivadores de Hong Kong entre janeiro e março de 1922, inúmeras manifestações estudantis, e as greves nas fábricas têxteis japonesas instaladas na China. Esse processo desemboca na greve geral em Xangai em junho de 1925, na greve em Hong Kong e no boicote às mercadorias inglesas em Cantão. Todas essas lutas foram duramente reprimidas. Em 30 de maio de 1925, a polícia anglo-americana de Xangai abre fogo sobre uma enorme manifestação antijaponesa e mata doze estudantes e operários chineses. Em 11 de junho do mesmo ano, os marinheiros britânicos atiram sobre manifestantes chineses em Hankow e dez dias depois, em Cantão, uma manifestação de operários chineses é metralhada por soldados ingleses e franceses. Em 1927, após libertarem Xangai, as forças revolucionárias são massacradas pelo exército do próprio Kuomitang liderado por Chiang Kai-chek, com o qual a III Internacional mantinha relações políticas, em nome da suposta liderança da burguesia na conquista da unidade nacional. O PCCh recebera, por isso, a orientação de dissolver-se no Kuomitang, perdendo sua independência política, o que foi motivo de um debate intenso na União Soviética entre a Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky, e a direção stalinista. Do oportunismo mais nefasto aplicado durante o levante revolucionário de 1925 a 1927, “os comunistas chineses passaram ao extremo oposto do aventureirismo no período da contrarrevolução do Kuomitang”3, que culminou 2 A idéia antimarxista de que o socialismo poderia ser construído dentro das fronteiras do Estado nacional. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 113 Isto é História na trágica sublevação de Cantão, sufocada em dezembro de 1927, selando a derrota da segunda revolução. Chiang Kai-chek instaura uma ditadura de ferro, reprime todas as organizações sindicais e políticas dos trabalhadores, persegue os camponeses e permite o fortalecimento do imperialismo japonês, demonstrando o caráter pró-imperialista e reacionário da burguesia chinesa e a impossibilidade de sua aliança com o proletariado, tão sonhada por Stalin. A razão da derrota de Cantão deve ser creditada, não à força da burguesia chinesa, mas ao “curso triunfante da contrarrevolução mundial e seu reflexo no movimento operário internacional: o stalinismo”4. Mas, apesar disso, Trotsky – em discussão com a Oposição comunista chinesa em 1929 – previu a continuidade do processo revolucionário. “É impossível prever a duração do período inter-revolucionário, já que depende de muitos fatores internos e externos. Mas o surgimento de uma terceira revolução é inevitável; deriva-se absoluta e totalmente das circunstâncias criadas pela derrota da segunda revolução”.5 Com o isolamento da classe operária causado pela derrota da segunda revolução, o PCCh, liderado pela tendência de Mao Tsé-tung, que privilegiava o movimento camponês, parte para o interior rural, no episódio conhecido como a Longa Marcha. Lá, coloca-se à frente das guerrilhas camponesas, iniciando a formação de Comunas Populares, inspiradas nos sovietes russos, com experiências bem sucedidas de exploração coletiva da terra, mas isolados do proletariado urbano. Entre 1934 e 1935, porém, Chiang Kai-chek consegue dizimar as Comunas, apesar da resistência heróica das massas camponesas. A guerra contra o Japão O Japão, que controlava a Manchúria, passou a uma ofensiva em 1937, em direção ao norte da China e ao vale do rio Yang-tsé. Os camponeses, que voltavam a levantar a cabeça, reagiram com a ocupação de terras a partir da guerra de guerrilhas. Esta reação popular deu-se por fora do controle do PCCh, que, por abraçar a política das Frentes Populares de Stalin, continuava sua aliança com Chiang Kai-chek, considerado pelos comunistas o único governo da China, e abandonava a luta pela reforma agrária. A Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, fortalecera a ingerência do Japão na China. Na Primeira Guerra, o Japão ocupara partes do território chinês, e queria consolidar suas posições contra os interesses da França e da Inglaterra. A situação econômica da China era crítica, e no aspecto político estava totalmente dividida. Para evitar o colapso econômico do país e que ele caísse sob o controle japonês, os Estados Unidos concederam ao Kuomintang empréstimos entre US$25 e 50 milhões entre 1938 e 19416. O governo Roosevelt também enviou pilotos para treinar os chineses e combater ao lado dos “nacionalistas”, além de caças P-40 para engrossar a força aérea de Chiang Kai-chek. 1949: a vitória da revolução chinesa A destruição provocada pelos japoneses durante a ocupação exacerbou a pobreza e a miséria no campo, entre os trabalhadores das cidades e inclusive da pequena-burguesia. Mas o fim da 2ª Guerra combina essa situação com o enfraquecimento do imperialismo no Oriente: a derrota do imperialismo japo114 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 3 TROTSKY, L. A guerra no extremo Oriente e as perspectivas revolucionárias. Em Documentos de fundação da IV Internacional. São Paulo: Ed. Sundermann, 2008, p. 109. 4 MORENO, N. Las revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973. Este livro pode ser encontrado em www. archivoleontrotsky.org 5 TROTSKY. A situação política na China e as tarefas da oposição bolchevique leninista. Junho de 1929. 6 Estes valores correspondem aproximadamente a 386 e 772 milhões de dólares em 2009. Isto é História nês, a preocupação dos europeus com a reconstrução de seus próprios países e do norte-americano frente à necessidade de apoiar política e financeiramente os imperialismos europeus e evitar a revolução social no velho continente. Os EUA não enviam dinheiro nem soldados para apoiar Chiang Kai-chek. Este, que passava a representar o setor mais reacionário das classes dominantes - os latifundiários - exercia um governo ditatorial, contrário a qualquer modificação da estrutura social do campo e, portanto, à reforma agrária e às ocupações das terras que, através das comunas camponesas, já atingiam 100 milhões de pessoas nas zonas liberadas ao norte do país, cerca de 20% da população na época, promovendo uma ruptura de fato entre a direção política que o Kuomitang exercera até então e as massas camponesas revoltosas. Na Europa, os dirigentes soviéticos “evoluíam” da política de frente popular com a burguesia democrática para a de aliança com o próprio imperialismo “democrático” e assinavam os acordos de Yalta e Potsdam, para devolver a Europa ocidental ao domínio capitalista. Na China, um acordo com os Estados Unidos permite a entrega da Manchúria ao Kuomitang, enquanto Stalin exerce pressão sobre Mao para que aceite a formação de um governo de coalizão nacional com Chiang Kai-chek. Um acordo nesse sentido foi assinado em 11 de outubro de 1945 onde uma Conferência Consultiva Popular “adotou uma série de resoluções sobre a organização de um governo de coalizão, a reconstrução do país, os problemas militares, a convocação de uma assembléia constituinte... e a unificação das Forças Armadas”.7 Mas Chiang não respeita o acordo e lança um ataque contra os territórios liberados. Finalmente, após um ano de vacilações, o PCCh lança a política de expropriação e repartição das terras dos latifundiários no verão de 1946. Esse processo de confisco dos latifúndios espalhou-se por toda a China e o entusiasmo revolucionário toma conta do país: Lutando pela terra o camponês cria seus próprios organismos dirigentes, sindicatos camponeses, associações de arrendatários... Tal partição da terra, ao suprimir as leis do senhor, abriu as portas às eleições e pôs assim os governos das aldeias nas mãos de pessoas favoráveis à causa comunista.8 O confisco de terras ultrapassa os limites impostos pelos comunistas e atinge a burguesia e os camponeses ricos. Segundo Li Shao Chi, “as massas camponesas e nossos militantes rurais não puderam, ao fazer a reforma agrária, seguir as diretivas publicadas em 4 de maio de 1946 pelo CC do Partido Comunista, as quais exigiam considerar invioláveis no essencial a terra e os bens dos camponeses ricos”. No início de 1948, a situação do Kuomintang já era desesperadora. Submerso em uma imensa crise econômica e política, o governo entra em colapso, e Chiang Kai-chek renuncia à presidência no início de 1949. Em 1º de outubro, Mao Tsé-tung declara a fundação da República Popular da China: O povo de toda a China ficou submerso em tribulações e num amargo sofrimento desde que o governo reacionário do Kuomitang de Chaing Kai-chek traiu a pátria, conspirou com os imperialistas e lançou a Guerra contrarrevolucionária... Agora, a guerra popular de libertação 7 CHI, Liu Shao. Discurso proferido ao C.N. do Conselho Consultivo Político em 14/06/1950. 8 BELDEN, citado por Moreno. Las revoluciones china e indochina. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 115 Isto é História está praticamente ganha e a maioria do povo do país foi libertado... Representando a vontade de toda a nação, a primeira sessão da Conferência Consultiva Política do Povo da China... sancionou a lei orgânica do Governo Central da República Popular da China.9 Fundava-se, assim, um Estado operário no país mais populoso do planeta. O papel da classe operária Maioria absoluta da população, os camponeses e trabalhadores rurais foram os grandes protagonistas da Revolução Chinesa. Mas a classe operária, mesmo minoritária, teve um papel importante, sobretudo nos momentos decisivos. Se na insurreição de 1925-27 os operários foram massacrados em Cantão e Xangai, graças à política ultraesquerdista de Stalin, e tiveram seus sindicatos ferreamente controlados pelo Kuomintang no período da Segunda Guerra Mundial, nos anos 40 a classe operária chinesa entrou em uma poderosa onda grevista que acabou por desestabilizar de vez o governo burguês e abrir o caminho para a vitória de Mao. A partir do final da guerra, a China entrou em uma crise econômica e financeira profunda, com a inflação chegando às alturas e o desemprego em larga escala, resultante da redução da indústria bélica e a desmobilização de muitos soldados. Cerca de 30% da população economicamente ativa perdeu seus empregos, os salários foram congelados e os preços dos alimentos dispararam. Para se ter uma idéia, um saco de arroz era vendido por 6,7 milhões de yuans no início de junho de 1948 e em agosto já custava 63 milhões. No mesmo período, um saco de 22 quilos de farinha passou de 1,95 milhão a 21,8 milhões de yuans e um barril de óleo de cozinha subiu de 18,5 milhões para 190 milhões de yuans. (Os preços desses produtos em 1937 eram 12, 42 e 22 yuans respectivamente)10. A situação tornou-se insustentável, e a classe operária explodiu. Em 1946 houve 1716 greves e uma sequência de conflitos trabalhistas. Apesar do férreo controle burocrático, os comunistas conseguiram se infiltrar nos sindicatos e nas empresas. Membros do partido tinham se instalado às ocultas na Indústria Têxtil Nacional de Xangai Número 12, na Coletoria da Alfândega de Xangai, na Fábrica de Máquinas Dalong, na Companhia Francesa de Água, Energia e Bondes, no Cotonifício Número 9, na Companhia de Energia Elétrica de Xangai e em várias lojas de departamentos da cidade. Esquemas semelhantes desenvolveram-se em outras cidades com concentração industrial, como Tianjin, Wuhan e Cantão.11 A primeira greve significativa do pós-guerra ocorreu na Companhia de Energia Elétrica de Xangai. O movimento começou no final de janeiro de 1946, depois da demissão de representantes dos trabalhadores. Ao protestar, seus companheiros foram mantidos fora da usina, mas conseguiram impedir que outros trabalhadores colocassem a central elétrica em funcionamento. Sem energia, as negociações foram feitas à luz de velas. Quarenta sindicatos locais uniram-se em uma manifestação de protesto no início de fevereiro, seguida por uma demonstração de solidariedade envolvendo representantes de 70 empresas e lojas. A greve foi vitoriosa e os demitidos voltaram ao trabalho. 116 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 9 ZEDONG, Mao. Proclamation of the Central People’s Government of the PRC. Em www. marxists.org, acesso em 15/10/09. 10 SPENCE, Jonathan D. Em Busca da China Moderna. Editora Companhia das Letras 2000, p.477. 11 Idem, p.476. Isto é História A luta das mulheres Em muitas dessas empresas, grande parte da mão-de-obra era feminina. Com frequência, o número de mulheres trabalhadoras superava o dos homens, compondo 65% da mão-de-obra de certas indústrias têxteis, com salários ainda mais baixos. Parte importante da pequena classe operária chinesa, as mulheres tiveram um papel fundamental em todo o processo revolucionário. Submetidas a costumes retrógrados, como amarrar os pés desde criança para que se mantivessem pequenos (na verdade, para que não fugissem de casa!), o casamento arranjado desde o berço, ser tratada como propriedade do pai e do marido, as mulheres chinesas viram no estudo do marxismo e na vitória da Revolução Socialista na Rússia uma forma concreta de conquistar a libertação. Conforme o ELP avançava, surgiam nas aldeias as associações de mulheres que, entre outras tarefas, eram as encarregadas de punir os homens que maltratavam as mulheres, e que ao mesmo tempo organizavam e treinavam as mulheres para deixar suas casas e trabalhar no campo como forma de participar do esforço revolucionário, ajudando o ELP. Essas associações também costumavam organizar “greves” de mulheres contra os homens que não as deixavam trabalhar ou demonstravam covardia e se negavam a alistar-se no ELP. Assim, as mulheres foram impondo seus direitos na prática: escolher o parceiro, divorciar, trabalhar fora de casa, comer a mesma comida que o marido e o sogro, participar das eleições das aldeias, fazer treinamento com armas. A conscientização das mulheres foi um apoio fundamental à revolução. O Governo Central Popular Em janeiro de 1949, Chiang Kai-Shek renuncia (seis meses depois, instala-se em Taiwan) e é substituído na presidência pelo militarista Guangxi Li Zongren, que resiste até outubro. Por fim, forma-se o “Governo Central Popular”, de coalizão com outros 14 partidos políticos e Mao na presidência. Pequim foi designada a capital do país. A política de colaboração de classes, conhecida como “bloco das quatro classes”, foi aplicada por Mao desde o início, e ficou estampada na bandeira nacional, com a estrela dourada de cinco pontas e suas quatro estrelas secundárias. A estrela grande representava o PCCh e as quatro menores as quatro classes que formavam o novo governo: a burguesia nacional, a pequena burguesia, os operários e os camponeses. Mas, empurrada pelas massas, a burocracia se vê obrigada a ir mais longe do que pretendia, e passa a tomar medidas no sentido de criar as bases do Estado operário na China. O primeiro ato do novo governo garante a todos, exceto os chamados “reacionários políticos”, liberdade total. Concentra os esforços na industrialização e traça um plano de reforma agrária, que foi concluída nos anos 5012. Nas cidades, o governo tenta evitar os confrontos advindos da crise econômica e do desemprego. Cria novos sindicatos, controlados pelo PCCh, bem como uma rede de comitês de rua, grupos compostos por vizinhos que trabalham na limpeza das ruas, suprimento de água, programas de saúde e vacinação, para controlar as epidemias, além de funcionarem como patrulhas locais para a segurança pública. Esses comitês deflagraram campanhas maciças contra a prostituição e o ópio. Sob a direção de Mao e do PCCh, a China adota o seu Primeiro Plano 12 Os grandes latifúndios foram confiscados e redistribuídos, mas em muitos casos as terras dos camponeses ricos não foram tocadas. Mao justificou essa política como essencial para garantir o desenvolvimento econômico. Estimase que 40% da terra cultivada tenha sido desapropriada e redistribuída e que 60% da população tenha se beneficiado de alguma maneira. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 117 Isto é História Quinquenal para reestruturar a economia conforme o modelo soviético. Apesar de várias crises dentro da estrutura bonapartista de poder, a economia planificada mostrou seu potencial como única forma de fazer com que a China vencesse a fome secular. Com a colaboração de milhares de assessores técnicos soviéticos, muitas fábricas destruídas pela guerra são reconstruídas e voltam a produzir segundo um planejamento industrial, conseguindo um boom na produção jamais visto. Também se dedicam esforços ao melhor aproveitamento da energia elétrica, a rede ferroviária é aumentada e até mesmo a arquitetura urbana merece atenção. O plano incluiu também um programa especial para os camponeses, que passaram a vender mais de um quarto de sua produção total de grãos ao Estado. No campo, os camponeses foram agrupados em cooperativas de produção com a introdução de técnicas mecanizadas na lavoura. Em 1953, Mao preparava o terreno para a nacionalização da indústria privada, deixando a China com apenas duas formas de organização industrial: a estatal e a mista estatal-privada, afirmando que a transformação socialista da indústria privada seria conseguida através do capitalismo de estado, procurando sempre o “equilíbrio” entre as classes: Alguns capitalistas mantêm uma grande distância do Estado e não mudaram sua mentalidade de lucro-acima-de-tudo. Alguns operários estão avançando muito rápido e não permitem que os capitalistas tenham qualquer lucro. Nós precisamos educar estes operários e capitalistas e ajudá-los a adaptar-se gradualmente à política de Estado... no rumo do capitalismo de Estado.13 Todos esses avanços na economia, que permitiram fazer com que o país produzisse mais alimentos, fortalecesse a industrialização e melhorasse as condições de vida da população, enfrentavam as contradições da política de colaboração de classes de Mao e do caráter bonapartista do regime maoísta. Nesse sentido, diferenciava-se do regime da burocracia stalinista, resultante do ascenso da contrarrevolucão mundial a partir de 1923 e da destruição do Partido Bolchevique de Lênin. O maoísmo, ao contrário, é produto da luta e da vitória das massas camponesas revolucionárias sobre o invasor japonês, primeiro, e os latifundiários e camponeses ricos, depois. Forma-se, porém, sob o peso da ideologia stalinista, da revolução por etapas, da colaboração de classes e do socialismo em um só país. E constrói um partido-exército de caráter stalinista14, com uma burocracia dirigente e sem nenhuma democracia interna. É, no entanto, independente do imperialismo e da burocracia soviética, com a qual tem atritos permanentes, até a ruptura completa em 1963. Moreno chamava o regime maoísta, devido a estas características, de “bonapartista revolucionário”, “árbitro entre o stalinismo, as massas e as distintas classes do campo”15, que adquire um caráter sui generis ao apelar para a mobilização para enfrentar o imperialismo. O Grande Salto adiante Estas contradições logo se fazem sentir. Em janeiro de 1956 é lançada a campanha das Cem Flores. O chamado do governo era: “Aos artistas e escritores dizemos: que floresçam cem flores. Aos cientistas, dizemos: que surjam cem escolas de pensamento”. Era uma defesa explícita da liberdade 118 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 13 ZEDONG, Mao. The only road for the transformation of capitalist industry and commerce. Discurso de 7/09/53. Em www. marxists.org, acesso em 15/10/09. 14 Entre 1921, ano da fundação do PCCh, e 1928, foram realizados seis congressos. O próximo congresso após o de 1928, realizado em Moscou, que marcou a ascensão de Mao no partido, ocorreu apenas em 1945, que se reuniria novamente em 1956, sete anos após a tomada do poder, em 1949. 15 MORENO, N. Las revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973. Isto é História de expressão, mas quando as críticas atingiram a burocracia partidária e o movimento operário começou a formar “Comitês Fabris de Administração” desatou-se uma onda de prisões e de autocríticas públicas humilhantes por intelectuais e estudantes em 1957. Esta repressão não pode ser separada da insurreição ocorrida em 1956 na Hungria, violentamente esmagada pelos tanques enviados por Moscou, cujos tiros foram saudados entusiasticamente por Mao. Na economia, Mao lançava campanhas de incentivo e convencimento ideológico, inspiradas em grandes feitos heróicos e voluntaristas, sem uma avaliação concreta das possibilidades reais das massas. Os trabalhadores e camponeses eram submetidos a pressões, perseguições e práticas militaristas de produção. Mas mesmo assim a produção agrícola nas fazendas cooperativas não avançava (a produção de grãos aumentou apenas 1% no ano de 1957, para um crescimento de 2% da população) e a produção industrial tampouco. Em 1958 é lançado o “Grande Salto Adiante” durante o Segundo Plano Quinquenal, para transformar a China num grande país industrial. Mas a opção de construir indústrias rurais organizadas pelas Comunas para atender as necessidades locais da população levou o plano ao fracasso. Embora algumas metas de produção tenham sido atingidas, como a de carvão mineral, que ultrapassou a da Inglaterra, experimentou-se uma queda brutal na agricultura, com a queda da colheita por três anos seguidos, entre 1958 e 1960. Contribuíram para essa queda o deslocamento de camponeses para o trabalho nas indústrias rurais e a seca nestes anos. A requisição forçada de grãos foi responsável pela morte de 16 milhões de camponeses em três anos16 e a utilização das reservas financeiras para a importação de alimentos levou à falta de investimentos na indústria nos anos seguintes. O conflito sino-soviético Se a situação interna era de crise econômica, a política externa chinesa não era menos atribulada. Para os comunistas chineses, os países atrasados eram “o foco de todas as contradições do mundo capitalista, o elo mais fraco da corrente imperialista e o centro nervoso da revolução mundial”17, o que os levou a apoiar os movimentos de libertação dos países coloniais, como as guerras da Coreia e do Vietnã. No início da década de 1960, os EUA iniciam um bombardeio aéreo sem precedentes sobre o Vietnã e ameaçam invadir a China para destruir suas instalações nucleares. A tímida resposta da burocracia soviética, com um suprimento limitado de armas ao Vietkong e sua negativa em declarar publicamente a defesa da China em caso de um ataque imperialista, leva Mao ao rompimento definitivo com a URSS, cuja disputa remonta à denúncia dos crimes de Stalin por Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1956. O que era uma disputa ideológica, em torno à primazia de construir o “comunismo num só país” e à defesa do stalinismo, transformou-se numa divisão entre os dois maiores Estados operários, favorecendo enormemente o imperialismo. Mao recusa-se a participar de uma frente única dos Estados operários em defesa do Vietnã, sob o pretexto de que os soviéticos eram revisionistas e negociavam com os Estados Unidos, o que era verdade. 16 LI, Minqi. The rise of China and the demise of the capitalist world economy. New York: Monthly Review Press, 2008. 17 Citado por NOVACK, George. New Judgment on the Sino-Soviet Rift: Monthly Review and the Great Debate. International Socialist Review, v. 34, n. 3, 1963. Em www.marxists.org, acesso em 15/10/09. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 119 Isto é História O PCCh também foi duramente atingido pelo massacre executado pelo exército do regime nacionalista burguês de Sukarno, ocorrido na Indonésia em 196518. A política de apoio a Sukarno e de recusa à luta pelo poder por parte do PC indonésio, o terceiro maior do mundo, era ativamente apoiada por Mao. Sua posição ultraesquerdista em relação à frente única contra os EUA e oportunista na Indonésia deixaram-no completamente isolado frente ao imperialismo mundial e as crises internas começaram a aflorar. A Revolução Cultural Em 1966, tem início na China uma das fases mais violentas desde que Mao assumiu o poder: a Revolução Cultural. A esquerda mundial teve conhecimento dela através da imprensa, como o New York Times, que estampava na primeira página de sua edição de 26 de junho de 1966: “Luta titânica na China vermelha”. E ficou conhecida como uma campanha de denúncias, purgas, prisões e humilhações de todo o tipo contra supostos renegados e traidores, fossem eles intelectuais, professores, vizinhos, familiares, pequenos proprietários. Vários dirigentes comunistas foram perseguidos e expulsos do partido, como Peng Chen, prefeito de Pequim e membro do Comitê Político do PCCh19. De fato, jornais controlados pelo PCCh, como o Bandeira Vermelha do ELP, afirmavam que “centenas de milhões de operários, camponeses e soldados... armados com o pensamento de Mao Tse-tung, engajaram-se no desmascaramento dos agentes escondidos da classe inimiga”. Mas ela era consequência direta dos fracassos de Mao em sua política externa: A Revolução Cultural é a tentativa desesperada de frear as contradições provocadas pelo curso da revolução mundial, os avanços contrarrevolucionários do imperialismo norte-americano no Vietnã como consequência do triunfo reacionário na Indonésia e os problemas internos originados pelo fortalecimento do proletariado e a crise sem saída do campesinato pobre”.20 Agrega-se a estas causas a disputa de Mao contra os setores burocráticos pró-Moscou, “desejosos de uma política mais ‘realista’ que se apóie num acordo técnico econômico militar com a URSS e em um governo direto da burocracia”21. Mao apela para a mobilização da juventude e joga o país numa guerra civil que durou dez anos. Em 1976 o país está exaurido, imerso numa imensa fome, e sua indústria paralisada. Mas o setor da burocracia comandado por Deng Shiaoping sai como o grande vencedor da guerra interna após a prisão da “gangue dos quatro”, o quarteto que tenta suceder Mao. Contraditoriamente, a explicação para a derrota de Mao não é a força da ala “reformista”, mas sua própria fraqueza política. Embora adepto da “revolução permanente”22, no sentido de avanços graduais permanentes, Mao nunca rompeu com a política stalinista, o que o aproximava da burocracia soviética. Defensor irredutível da colaboração de classes, a ponto de inscrevêla na bandeira chinesa, e do socialismo em um só país, nunca ofereceu como alternativa aos trabalhadores chineses a luta pela revolução mundial sob a direção de uma nova Internacional revolucionária, mesmo que o maoísmo 120 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 18 Na noite de 30/09/65 um golpe de estado mata 6 generais do exército indonésio. O general Suharto depõe Sukarno e desata um massacre aos membros do PC da Indonésia. Estima-se em 500 mil o número de mortos, mas a perseguição durou por mais dez anos, nos quais pelo menos 1,5 milhão de pessoas foram presas. 19 Além de Peng Shen os primeiros acusados foram o historiador Wu Han, delegado da prefeitura de Pequim, Teng To, secretário do Comitê Municipal do PCCh em Pequim, e Liao Mo-sha, exmembro do Comitê Municipal do PCCh em Pequim. 20 MORENO, N. Las revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973. 21 MORENO, N. Carta a Livio Maitan, em www.archivoleontrotsky.org, acesso em 15/10/09. 22 Mao defendia a revolução permanente, mas fazia questão de declarar que sua concepção era diferente que a de Trotsky. Ver seu discurso Speech at the Supreme State Conference, de 28/01/58. Em www.marxists.org, acesso em 10/10/09. Isto é História tivesse adeptos em todo o mundo. A busca do socialismo (ou comunismo, após 1958) apenas na China, isolado inclusive do movimento comunista internacional, selou sua sentença de morte política. Sua disputa com a União Soviética chegou a tal ponto que inicia uma aproximação com os EUA em 1971 para associar-se ao imperialismo contra o “principal inimigo”. Em 1972, Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, viaja à China para reunir-se com Mao. As relações diplomáticas entre os dois países são restabelecidas e Mao assina vários acordos de importação de tecnologia americana. A coexistência pacífica com os EUA, tão criticada por Mao, é também abraçada por ele, consequência inevitável da política do “socialismo num só país”. O imperialismo sai como grande vencedor. A restauração capitalista Em 1976, no mesmo ano em que morrem Zhou Enlai e Mao Tsé-tung, explodem em Pequim enormes manifestações populares, as primeiras espontâneas desde 1949. Milhares de pessoas saem às ruas exigindo liberdades democráticas e o retorno do verdadeiro espírito do marxismo-leninismo. A luta interna acirra-se. Em 1978, durante a sessão plenária do PCCh, Deng Xiaoping anuncia as primeiras reformas capitalistas batizadas de As Quatro Modernizações: na agricultura, na indústria, defesa nacional e nas áreas de ciência e tecnologia. No campo, as famílias receberam permissão para aumentar a quantidade de terra que podiam cultivar como lotes privados e para vender a produção no mercado aberto, a preços não tabelados. Na cidade, foram estimuladas as iniciativas privadas para abertura de negócios. A restauração capitalista começa a gerar desigualdades sociais impensáveis no período anterior e o governo é assolado por uma enxurrada de denúncias de corrupção. Nos anos 80, a China entra numa crise econômica e política sem precedentes, com a exploração brutal da classe operária e a fome se espalhando pelo campo. Em 1989 ocorrem novas manifestações de massas. Em maio, milhares de estudantes, exigindo liberdades democráticas e o fim da corrupção no governo, ocupam a Praça Tiananmen, em Pequim. Aos poucos, as manifestações se espalham por todo o país, e no momento em que elas começam a envolver a classe trabalhadora, nas fábricas e outros locais de trabalho, a burocracia do PCCh desata uma repressão sem precedentes, deixando centenas de mortos, feridos e presos. A maior reação à restauração capitalista é derrotada pelo governo chinês, que se converte em ditadura burguesa. O heroísmo das massas chinesas não conseguiu evitar que o conjunto da burocracia chinesa, incluída a ala bonapartista de Mao Tsé-tung, fizesse a China retroceder 40 anos e a levasse de volta às terríveis condições da exploração capitalista. Se foi Deng Shiaoping o artífice da restauração, a impossibilidade da política maoísta de levar o país ao socialismo, que será mundial ou não será, preparou o terreno. Mas as traições e inconsequências dos dirigentes não nos podem fazer esquecer uma das maiores revoluções de toda a história do socialismo mundial, protagonizada pelas massas camponesas e operárias chinesas. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 121 Isto é História Espanha Da ditadura à monarquia. ~ História de uma traiçãçcao - Parte 2 ´ Felipe Alegría e Teo Navarro Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-IT) - Espanha A repressão como mecanismo para conter a “maré revolucionária” mostrara-se insuficiente, estimulando ainda mais a radicalização. Setores cada vez maiores da burguesia entendiam que era preciso apostar em um governo formado exclusivamente por “reformistas”. O governo Suárez, formado em julho de 1976, tinha como principal tarefa levar a cabo uma reforma pactuada, ou seja, negociar com a oposição para garantir o apoio dos líderes operários aos planos da burguesia. Mas as mobilizações exigindo a anistia total foram crescendo, assim como a exigência de direitos democráticos das nacionalidades históricas. Ocorrem novos crimes por parte da polícia e bandos fascistas em Hondarribia, Madri e Tenerife. Uma onda de assembleias, manifestações e greves agita o país em resposta à repressão e contra o regime. Em 12 de novembro de 1976 a Coordenação de Organizações Sindicais, formada pela CCOO, UGT e USO convocou uma greve geral do Estado contra o projeto do governo de impor tetos salariais e maiores facilidades de demissões. Mais de dois milhões de trabalhadores cruzaram os braços. Em 10 de setembro Suárez apresentou o projeto de reforma política. O PCE (que não tinha sua legalização assegurada) denunciou o projeto, acusando-o de ser uma “fraude antidemocrática”, porque não colocava a destituição do governo Suárez e a formação de um governo provisório que convocasse eleições constituintes abertas a todas as organizações. Por seu lado, o PSOE1 e as forças burguesas de oposição relativizaram suas críticas e foram compreensivos com Suárez, que permitia certa liberdade de imprensa, não punha obstáculos à sua atividade e cujo governo já era reconhecido como o dirigente do processo da reforma franquista. O projeto foi aprovado em meados de novembro nas Cortes franquistas, com a resistência minoritária do bunker representado por Blas Piñar2. Nascia assim o projeto de autorreforma do regime, de cima para baixo. Em 15 de dezembro realizou-se o Referendo para a Reforma Política (“Se quer democracia, vota”, era o lema oficial) sem as mínimas garantias democráticas. As organizações operárias, ilegalizadas, defenderam a abstenção, 122 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Tradução Irinéia Vieira 1 PSOE: Par tido Socialista Operário Espanhol. 2 Blas Piñar representava a resistência do aparelho franquista a qualquer mudança. Estes setores eram conhecidos como o bunker pelo seu imobilismo. Isto é História com muita vacilação por parte do PSOE. Segundo o governo, o referendo foi aprovado por 94% dos votos. O bunker franquista obteve 26% de votos contrários. A abstenção foi maciça nos centros industriais. Em dezembro ocorreu o XXVII Congresso do PSOE que, apesar de manter ainda formalmente um bom número de postulados marxistas em seu programa, iniciou um claro giro à direita, aceitando de fato a reforma de Suárez e iniciando a perseguição contra a dissidência interna. A matança de Atocha, uma nova oportunidade perdida No início de janeiro de 1977, um setor do aparato de Estado, em colaboração com organizações fascistas como Força Nova e Guerrilheiros de Cristo Rei, decidiu iniciar uma campanha de assassinatos com o objetivo de criar um clima de terror que justificasse um golpe de Estado militar para restituir a ordem ditatorial. No dia 23 de janeiro um reconhecido fascista assassina o estudante Arturo Ruiz em uma manifestação pró-anistia. Os GRAPO sequestram o tenente general Villaescusa nesse mesmo dia. Na manifestação contra o assassinato de Arturo Ruiz no dia seguinte é assassinada pela polícia outra estudante, enquanto bandos fascistas percorriam Madri agredindo as pessoas na rua. No mesmo dia 24, pistoleiros ultradireitistas assassinaram cinco advogados trabalhistas das CCOO, na Rua Atocha. A tensão das massas ameaçava explodir ao se conhecer os novos crimes. Todo mundo estava aguardando a convocação de uma greve geral. No entanto, Carrillo e os dirigentes do PCE manifestaram que “o governo devia ser apoiado” e “não responder à provocação”. Apesar disso, mais de 300 mil trabalhadores declararam-se em greve no dia 26 em Madri, coincidindo com o enterro das vítimas, bem como em Euskadi e outros lugares. O PCE organizou uma espetacular coluna com milhares de militantes na multitudinária manifestação, silenciosa, de solidariedade. Como há nove meses, nos assassinatos de Vitoria, voltavam a dar-se as condições para suscitar um movimento geral de luta que derrubasse o regime. O governo estava encurralado e na defensiva, e amplos setores da classe trabalhadora, e com ela outros setores sociais antifranquistas como o movimento estudantil e as nacionalidades, dispostos a ir até o final. Mas uma delegação de dirigentes da oposição negociou com Suárez e, em troca de promessas de atuação contra o bunker, ofereceu uma declaração conjunta governo-oposição denunciando o terrorismo e fazendo um chamado ao povo para que apoiasse o Governo. Os dirigentes operários não só abortaram o movimento, mas legitimaram expressamente o governo Suárez, encabeçado por um franquista que tinha sido eleito por um rei coroado por Franco. A repressão policial continuou durante os meses seguintes. Em maio, foi convocada em Euskadi uma semana pró-anistia total, que teve um saldo de seis ativistas mortos. Os dirigentes do PSOE e do PCE, em lugar de apoiar a mobilização e exigir a dissolução das forças repressivas, voltaram a chamar a calma. Os trabalhadores e as organizações da esquerda basca convocaram uma greve geral que teve uma participação maciça. Com estas atuações o PCE obteve méritos para ser reconhecido como uma Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 123 Isto é História força da ordem pela burguesia, convencida da necessidade de legalizá-lo, apesar dos protestos da hierarquia militar, para que pudesse controlar o movimento operário “desde a legalidade”. O Financial Time, o jornal do capital financeiro britânico, não se equivocava em dezembro de 1978, quando escrevia: O apoio do PCE, tanto à primeira como à segunda administração Suárez, foi aberto e sincero. O senhor Carrillo foi o primeiro líder que deu apoio aos Pactos de Moncloa, e inevitavelmente o PCE apoiou o Governo no Parlamento. Mas, como partido que controla a central sindical majoritária CCOO e o partido político melhor organizado na Espanha, seu apoio durante os momentos mais tensos da transição foi crucial. A moderação ativa dos comunistas, durante e depois do massacre dos trabalhadores de Vitória em março de 1976, do metralhamento de cinco advogados comunistas em janeiro de 1977, e da greve geral basca em maio de 1977, para dar só três exemplos, foi provavelmente decisiva para evitar que a Espanha caísse em um abismo de agitação civil importante e permitisse a continuação da reforma. A legalização da esquerda e as eleições gerais de junho de 1977 Os sindicatos foram definitivamente legalizados em fevereiro de 1977, da mesma forma que o PSOE. O PCE o foi em abril. Em troca da legalização do PCE, Carrillo aceitou reconhecer a monarquia, adotou a bandeira monárquica e a unidade da Espanha e ofereceu sua cooperação para alcançar um futuro pacto social. No dia 9 de abril, quando a maioria da elite política e militar achava-se fora de Madri para as férias de Semana Santa, Suárez anunciou a legalização do PCE. Mesmo que tenha ocorrido a demissão do ministro da Marinha e alguns movimentos de descontentamento entre a alta hierarquia militar, finalmente o Conselho Superior do Exército absorveu a notícia da legalização com uma demonstração de “disciplina e patriotismo”. Afinal, o rei estava por trás. Uma comissão conjunta da oposição e do governo elaborou a lei eleitoral e Suárez convocou as eleições gerais no mês de abril. O parlamento ficou organizado em duas câmaras, com um senado onde todas as províncias escolhiam o mesmo número de representantes e com a função de ratificar ou rejeitar os acordos do Congresso. Só tinham direito ao voto os maiores de 21 anos, excluindo mais de dois milhões de jovens entre os 18 e 21 anos e em torno de um milhão de imigrantes. A principal opção da burguesia, a UCD de Suárez, que agrupava os “novos democratas” procedentes do franquismo, obteve 34,2% dos votos. A AP, encabeçada por Fraga e que agrupou a maior parte da “velha guarda” franquista, 8,2%. A burguesia financiou generosamente estas opções, além de dispor dos meios de comunicação controlados pela UCD desde o governo. Os votos de esquerda superaram amplamente os de direita nos grandes centros urbanos e industriais: o PSOE obteve 30%, o PCE, 9,2% e o PSP, 4,5%. Um ano e meio depois da morte de Franco, a monarquia instituída por ele e a “democracia” surgida da reforma do franquismo, conduzida pelos próprios franquistas convertidos em democratas, com o rei à cabeça, tinham ganho a batalha política, depois de longos meses de impressionantes mobi124 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Isto é História lizações e de momentos em que estiveram dadas as condições para derrubar o regime franquista (especialmente em março de 76 e em janeiro de 77). A lei de anistia de outubro de 1977 fechava o círculo: verdadeira lei de “Ponto Final”, garantia completa impunidade aos crimes e espoliações franquistas. A derrota eleitoral do PCE nestas primeiras eleições gerais e o processo de autodestruição que lhe seguiu foram o preço que pagou pela sua traição. O nacionalismo burguês em Euskadi e na Catalunha (CiU, PNV) obtiveram importantes resultados, em boa parte como consequência da renúncia do PSOE e do PCE à luta pelos direitos nacionais da Catalunha e do País Basco. Os Pactos de Moncloa e a subordinação aos interesses da patronal Com uma situação de profunda crise econômica internacional iniciada em 1973, a economia espanhola refletia sua pouca competitividade num mercado internacional de concorrência feroz entre as diferentes burguesias. A inflação, que era a resposta patronal aos aumentos salariais que não podiam evitar, chegou a 25% em fins de 1977. Suárez desvalorizou a moeda em 20 % para estimular as exportações, aumentando o preço das importações e a inflação. Mas para o capital, a desvalorização só teria eficácia se fosse acompanhada de um plano de ajuste que reduzisse os salários o que, dada a força do movimento operário, requeria a colaboração de seus dirigentes. Depois das eleições, o governo Suárez pôs mãos à obra. O conteúdo dos Pactos de Moncloa abrangia temas políticos, sociais e econômicos. Pela primeira vez, obteve-se um consenso geral entre o poder e a oposição sobre a necessidade de fazer com que todos os fatores: salários, condições trabalhistas e emprego dependessem do “crescimento econômico” (isto é, da recuperação do lucro patronal). Assim, os salários cresceriam abaixo da inflação e os aumentos seriam guiados pelo IPC previsto, dando por entendido que os aumentos na produtividade passariam a engordar os excedentes empresariais. Abre-se a possibilidade de regular a folha de pagamentos, permitindo a demissão de 5% do pessoal nas empresas em que o aumento salarial superasse 20%; aprova-se a contratação temporária e o ajuste de pessoal nas empresas em crise. Os Pactos de Moncloa constituíram a alavanca que facilitou a passagem do modelo de acumulação anterior ao regulamento liberal da economia, criando as condições sociais para a Constituição de 1978, que consagraria a inviolabilidade da propriedade privada dos meios de produção e de economia de mercado. Os dirigentes do PCE (o principal porta-voz), o PSOE e as CCOO apoiaram os Pactos desde o princípio e só a UGT opôs-se inicialmente, para acabar apoiando-os. Os planos que a burguesia não havia imposto durante a agonia da ditadura foram aplicados graças ao apoio dos principais dirigentes operários3. No entanto, a oposição dos trabalhadores foi muito ampla. Durante o mês de novembro se produziram manifestações contra o Pacto, em defesa do nível de vida e contra o aumento do desemprego nas principais cidades, convocadas pela UGT e outros sindicatos. Muitas seções de base das CCOO pronunciaram-se contra os Pactos4. Este foi o primeiro de uma longa série de pactos sociais que serviram - além de aumentar a taxa de lucro do capital e reduzir o nível de vida dos 3 Carrillo afirmava que “com estas medidas, em 18 meses acabaremos com a crise”. A realidade, no entanto, foi que depois desse tempo o desemprego superava um milhão e meio de trabalhadores e o poder aquisitivo dos salários havia sido reduzido em mais de 10%. 4 Nesta época começou a se consolidar a incipiente burocracia dos sindicatos como aparatos de poder dispostos a impedir qualquer dissensão séria que ameaçasse seus privilégios. Por causa da aceitação dos Pactos de Moncloa gerou-se um amplo movimento interno de oposição nas CCOO que acabou em muitos casos com expulsões de dirigentes e seções sindicais inteiras. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 125 Isto é História trabalhadores - para desmoralizar a classe trabalhadora cuja capacidade de luta tinha posto a seu alcance uma transformação profunda da sociedade e a via afastar-se pela política de colaboração de classes de seus dirigentes. As reivindicações nacionais O franquismo, após sua vitória militar, esmagou com violência sanguinária as reivindicações nacionais dos povos catalão, basco e galego, convertendo com isso a luta contra a opressão nacional em uma das alavancas fundamentais da luta antifranquista. A Transição tratou de dar uma saída ao problema por meio do “Estado das Autonomias”, um tipo de pacto entre o aparelho de Estado, a esquerda oficial e as burguesias periféricas pelo qual o primeiro cedia algumas atribuições de governo aos governos territoriais em troca do reconhecimento da unidade da Espanha e da proeminência do poder central. O abandono descarado da reivindicação do direito de autodeterminação por parte do PCE, do PSOE e da burguesia nacionalista, unido à brutal repressão sobre o povo basco, onde as mobilizações alcançavam maior radicalidade e combatividade, foi o caldo de cultivo para o desenvolvimento do ETA. A morte e a tortura de muitos de seus ativistas pelas forças repressoras franquistas e sua inserção social lhes granjeava um grande apoio popular. No outono de 1977 produziram-se multitudinárias mobilizações pelos direitos nacionais. As manifestações eram de centenas de milhares no país Basco. Em Barcelona, a Diada5 Nacional catalã de 11 de setembro de 1977 congregou um milhão de manifestantes. Inclusive em zonas onde o nacionalismo não tinha tradição histórica como a Andaluzia houve manifestações maciças em defesa da Autonomia. No dia 4 de dezembro em Málaga um jovem trabalhador foi assassinado pela polícia enquanto participava da manifestação, que reuniu 200 mil pessoas. Os enfrentamentos dos trabalhadores com a polícia alcançaram tal virulência que o governo decretou durante três dias o “estado de exceção” em Málaga. As eleições sindicais No início de 1978 realizaram-se as primeiras eleições para comitês de empresa, com os sindicatos já legalizadas. As CCOO e a UGT obtiveram em conjunto mais de 70% dos delegados. Nesta época, estas duas centrais alcançaram níveis desconhecidos de afiliação, cinco milhões entre as duas organizações, cerca de 50% da classe operária de então. Através do financiamento estatal que receberiam pela representação obtida, os privilégios concedidos como “sindicatos mais representativos” e a restrição crescente dos direitos democráticos dos filiados, uma burocracia dirigente se fortaleceu, cada vez mais independente da base afiliada e dos trabalhadores e mais dependente do aparelho estatal e da patronal. As eleições sindicais de 1978 representaram a consolidação da divisão sindical em duas grandes centrais (CCOO vinculada ao PCE - do qual, mais tarde, iria progressivamente se desvinculando – e a UGT, vinculada ao PSOE) e a marginalidade da central anarquista CNT, que não tomou parte no processo eleitoral. As greves, ao contrário do período anterior, dão-se agora só por motivos econômicos e, apesar de que as direções sindicais tinham aceitado os tetos salariais, ocorreram muitas mobilizações contra a perda do poder aquisitivo 126 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 5 Diada: dia em que se celebra a festa nacional catalã. Isto é História provocada pelos Pactos de Moncloa. Produziram-se várias greves gerais na construção civil e em metalúrgicos. No entanto, o número de jornadas de greve diminuiu sensivelmente em relação aos anos anteriores6. A Constituição é aprovada O PSOE em 1977 ainda se pronunciava a boca pequena pela República, mesmo que a princípios de 1978 já aceitava plenamente a “monarquia constitucional” dos Bourbon. Os dirigentes do PSOE e do PCE defendiam a Constituição, de cuja elaboração participaram, como a melhor garantia para as liberdades democráticas, para acabar com os golpes de estado e para assegurar os direitos sociais como o trabalho, a moradia, a educação ou a saúde. No entanto, a Constituição, que seria aprovada por grande maioria no referendo de 6 de dezembro de 1978 (mas que em Euskadi só foi apoiada por uma terça parte do censo eleitoral) consagrava a inviolabilidade da economia de mercado e da propriedade capitalista, a restauração na cúpula do Estado monárquico estabelecida por Franco, a unidade forçada da Espanha, garantida pelo Exército franquista e as vias para declarar o “estado de exceção e de sítio” se a “segurança nacional” fosse ameaçada. As eleições legislativas e municipais de 1979 e o abandono formal do marxismo pelo PSOE Durante o primeiro semestre de 1979 aconteceu uma nova onda de mobilizações operárias, apesar da política conciliadora das direções das CCOO e da UGT, comprometidas com os Pactos de Moncloa. O contínuo aumento do custo de vida e as tentativas da patronal de passar à ofensiva ante o estancamento da luta operária, deram lugar a um movimento de resistência que se propagou a praticamente todos os setores7. Mas a maioria das lutas fracassaram pela intervenção da burocracia sindical, que aceitava os tetos salariais, negociava e assinava frequentemente pelas costas dos trabalhadores. Neste contexto, realizaram-se as eleições gerais de 1º de março de 1979. A UCD voltou a ganhar contra todo prognóstico. O fracasso da esquerda era o reflexo, no terreno eleitoral, de sua política de submissão à patronal e à Monarquia, que fez com que setores importantes da classe trabalhadora e da juventude optassem, frustrados, pela abstenção. As eleições municipais de 3 de abril - que a UCD segurou durante quase dois anos, temerosa de ter um revés eleitoral que condicionasse as eleições gerais - deram desta vez a vitória às organizações da esquerda nas principais cidades, sendo o primeiro triunfo eleitoral claro sobre a UCD. O PSOE, o principal partido de eleitorado operário (como partido histórico da classe trabalhadora espanhola), estava chamado a ser o futuro gerente governamental dos interesses da burguesia quando a UCD passasse à oposição e, para isso, devia adequar seu programa para esse papel. Por isso, Felipe González havia declarado em maio que “não era mais marxista” e que proporia que essa definição desaparecesse dos Estatutos do Partido. O XXVIII Congresso do PSOE rejeitou esta proposta da direção, para aceitá-la poucos meses depois em um Congresso Extraordinário que endeusou Felipe González e outorgou todo o poder de decisão ao aparelho do partido. 6 O número de trabalhadores que fizeram greve em 1978 foi de 3,8 milhões, 32% dos assalariados. 7 O número de grevistas foi de 5,7 milhões, quase 60% do total de assalariados, uma média de 171 horas de trabalho por cada grevista. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 127 Cultura A arte morreu. Viva a arte! Cecília Toledo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil O que é arte? Qual a sua função? Ainda é necessária a sua defesa, a sua democratização? Ainda é válido defender a cultura de um povo? Essa discussão parece secundária diante da enorme complexidade dos conflitos humanos, numa época de barbárie e alienação crescentes que atingem todos os trabalhadores. No entanto, ela ganha muito destaque justamente nesses momentos. E também nos grandes processos revolucionários. Só para ficar nas duas revoluções mais conhecidas e estudadas – a Revolução Russa e a Revolução Chinesa – é surpreendente como a questão da arte e a cultura em geral tiveram um papel essencial em todo o processo, seja para o bem, seja para o mal. O certo é que a arte parece caminhar na contramão da história. Como já disse Walter Benjamin, a obra de arte é a resposta do homem a uma provocação que lhe faz a sociedade, às condições adversas da vida. Para entender os problemas históricos, entre eles o problema da arte, recorremos a Marx, que levantou a idéia da arte e da cultura como reservas de humanidade, mostras da resistência humana em entregar-se ao capital, à sua coisificação. Na sociedade dividida em classes, em que a burguesia recruta a arte e a coloca a serviço de seus próprios interesses; neste momento chamado pós-moderno, em que a arte, contaminada pelo capital até suas raízes mais profundas, está servindo para “embelezar” a exploração capitalista e a extração de mais-valia, é justo pensar que a arte morreu. É justo pensar que não há nada a defender nesse terreno, já que tudo está contaminado pelo capital e, portanto, condenado ao fracasso. Mas será assim? A arte ainda tem salvação? A arte e o homem futuro As opiniões de Marx sobre arte derivam de sua visão revolucionária do mundo. Daí seu imenso otimismo em relação às suas possibilidades futuras. Uma leitura de La Filosofia del Arte de Karl Marx1, de Mijail Lifshitz, dá uma idéia do raciocínio que o levou a esse otimismo. Apesar do título de seu livro, Lifshitz demonstra justamente o contrário: que não há uma “filosofia da arte” em Marx, pelo menos não uma filosofia que seja desvinculada de todo o processo histórico e social; ou uma “arte marxista”, ou mesmo uma “estética 128 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 LIFSHITZ, M. La filosofia del arte de Karl Marx. Colección Mínima. México: Siglo Veintiuno Editores, 1981. A primeira edição em inglês é de 1938. Cultura marxista”, como pretendem alguns autores2. Jamais Marx teve semelhante pretensão. Lifshitz também combate a idéia de que os comentários de Marx sobre arte e literatura, dispersos no corpo de sua obra, reflitam um interesse meramente casual sobre o tema, colocando a economia em primeiro lugar. Pelo contrário. Revela que a arte sempre esteve entre as preocupações de Marx. Ela foi fundamental em suas polêmicas com Hegel, em suas análises das sociedades pré-capitalistas, em suas críticas à visão religiosa e idealista do mundo, em sua denúncia da sociedade burguesa e do capitalismo e também de sua interpretação da sociedade futura. O que Lifshitz abstrai das opiniões estéticas de Marx é que a arte tem sua autonomia relativa, mas por si mesma é impotente para emancipar os homens da sociedade de classes. No entanto, já hoje, no presente, ela pode oferecer imagens dessa emancipação e nesse sentido é uma antecipação do futuro, do vir a ser. De fato, nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx via na arte uma prefiguração dos sentidos refinados e intensificados do homem liberado da alienação histórica. E insistia em que só mediante o desenvolvimento objetivo da natureza humana poderá liberar-se essa “riqueza da sensualidade humana subjetiva”. Nos momentos em que o homem está mais questionado, quando os sentidos humanos estão mais oprimidos é que a necessidade de emancipação fica mais evidente. Estudada historicamente, o que a arte demonstra é a resistência humana em entregar-se, uma forma de expressar a angústia e antecipar para nós, hoje, o que o homem será capaz de fazer quando totalmente liberado da alienação histórica. Essa idéia de que a arte é fruto do desequilíbrio humano levou o pintor Mondrian a falar sobre o possível desaparecimento da arte. “A arte desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio”3. Em todo o caso, seja como uma espécie de “substituto da vida”, ou como expressão de conflitos ou mesmo um espelho do homem futuro, liberto de tudo o que o aliena e destrói, o fato é que a arte – em todas as suas formas e manifestações – sempre será necessária e sempre será parte integrante da vida humana. A arte como forma de trabalho A idéia da arte como trabalho, ligada ao processo de transformação da natureza é o ponto de partida de Marx: O processo de trabalho é a condição necessária para que se efetue um intercâmbio entre o homem e a natureza; é a condição permanente imposta pela natureza à vida humana e, portanto, independe das formas da vida social, já que é comum a todas as formas sociais.4 Mediante o trabalho o homem se apodera da natureza, porque a transforma de acordo com suas necessidades e propósitos. Nesse apoderar-se há também uma grande dose de magia. Ernst Fischer lembra que: O homem também sonha com um trabalho mágico que transforme a natureza, sonha com a capacidade de mudar os objetos e dar-lhes nova forma por meios mágicos. Trata-se de um equivalente na imaginação àquilo que o trabalho significa na realidade. O homem é, por princípio, um mágico.5 Além de real, concreta e funcional, a transformação da natureza é mágica, 2 SODRÉ, Nelson Werneck. Fundamentos da Estética Marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. LUKÁCS, Georg. Introdução a uma Estética Marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, para citar alguns exemplos. 3 Citado por FISCHER, Ernst, em A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2007, p. 11 4 MARX, K. O Capital, Vol.1. 5 FISCHER, E. A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: LTC, p.21. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 129 Cultura porque o homem cria ferramentas e adapta inclusive o seu próprio corpo às necessidades do trabalho. Muitos veem a mão como o órgão essencial da cultura, o iniciador da humanização6. O trabalho é inerente à espécie humana, a única espécie que tem a capacidade de planificar suas ações. Marx tem uma frase famosa sobre isso: Uma aranha realiza operações que se assemelham às de um tecelão; e muitos arquitetos hão de se sentir encabulados em face da habilidade com que as abelhas constroem suas colméias. Porém, o que, desde o início, distingue o mais inepto dos arquitetos da mais eficiente das abelhas é que o arquiteto constrói a célula na sua cabeça antes de construí-la na cera. O processo de trabalho resulta na criação de algo que desde o princípio existia na imaginação do trabalhador, existia numa forma ideal. Não ocorre apenas uma mudança de forma provocada pelo trabalhador nos objetos naturais; ocorre, ao mesmo tempo, a realização de propósitos humanos em objetos que existiam na natureza, independentemente do homem. Em tais objetos, o homem realiza seus propósitos, os propósitos que estabelecem as leis da sua atividade, os propósitos aos quais devem subordinar-se os seus próprios desejos.7 Nessa interação consciente do homem com a natureza está a verdadeira origem da arte. Que ela venha carregada de magia ou não, é o que menos importa. Alguns vêem como mágica essa habilidade do homem para transformar a natureza e os primeiros homens a construir as ferramentas foram os pioneiros, os pais da arte8. Arte e luta de classes A idéia da raiz da arte ser a mesma do trabalho é fundamental para o marxismo. Se essa é a sua raiz, a arte faz parte da estrutura social como uma atividade (e uma necessidade) humana, condicionada de uma forma dialética pelas condições materiais de vida. No entanto, a arte é ao mesmo tempo um processo altamente consciente e racional, é o resultado de uma construção. Para conseguir ser um artista é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um artista não é tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído pela besta-fera, mas a doma.9 Essa idéia de construção na arte, de maestria, de domínio técnico, é extremamente dialética, porque a distancia da natureza, daquela sua origem primitiva, e temporariamente desfaz os laços da vida, deixa a realidade em suspenso para que o homem se divirta e sinta prazer com ela. É o que diz Bertold Brecht10, um artista profundamente ligado ao marxismo, que vê nesse prazer a qualidade libertadora da arte: 130 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 6 Ver mais em CHILDE, Vere Gordon. O que aconteceu na história. 7 MARX, K. O Capital, Vol.1. 8 Essa ideia foi bem desenvolvida por FISCHER, Ernst, em A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2007, p.42 9 Idem, p.14. (itálicos do autor). 10 Bertold Brecht foi um dos maiores dramaturgos e encenadores do século XX. A citação foi extraída de seu livro Escritos sobre Teatro. Cultura Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência e instruir o povo no prazer de mudar a realidade. Nossas platéias precisam não apenas saber que Prometeu foi libertado, mas também precisam familiarizar-se com o prazer de libertá-lo. Para Brecht, numa sociedade submetida à luta de classes, o teatro feito pela classe dominante busca suprimir as diferenças sociais existentes na platéia, em nome de uma suposta “coletividade universalmente humana”. Para contraporse a isso, o teatro épico, preconizado por Brecht, buscava justamente dividir e esclarecer a platéia, apoderar-se dela não por meio da identificação passiva, mas de um apelo à razão que leve à ação e decisão. Com extrema maestria, Brecht construiu seu teatro dialético, sem eliminar a magia e a emoção. Mas os propósitos da arte nunca são os mesmos em todos os tempos e em todas as situações. No entanto, ela sempre tem algo de permanente. E isso é o que faz com que os homens de hoje se emocionem com a arte dos homens de ontem. O segredo não está no fato de que a arte esteja ligada a certas formas de desenvolvimento social. Mas então por que as obras de ontem ainda nos proporcionam um prazer artístico e ainda nos servem de modelos? Para Marx: O fascínio que a arte grega ainda exerce sobre nós não está em contradição com o estágio social pouco ou nada desenvolvido em que surgiu essa arte. Ele é justamente o produto de tal situação; deve-se justamente ao fato de que as condições sociais primitivas sem as quais aquela arte não poderia ter surgido jamais poderão voltar”.11 Ou seja, nessa arte historicamente condicionada por um estágio social não desenvolvido perdurava um momento de humanidade, e nisso Marx reconheceu o poder da arte de se sobrepor ao momento histórico e exercer um fascínio permanente. Fischer resume da seguinte forma: Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento. (...) E isso é assim porque traços constantes do ser humano são fixados mesmo na arte historicamente condicionada. Enquanto se limitarem a refletir as condições rudimentares de uma sociedade baseada na escravidão, Homero, Ésquilo e Sófocles são marcos envelhecidos, pertencem ao passado. Todavia, à medida que, no interior daquela sociedade, descobriram a grandeza do homem, deram forma artística aos seus conflitos e às suas paixões e exprimiram potencialidades ilimitadas, permanecerão sempre modernos, atuais.12 O fetichismo e a arte Uma idéia que teve muita significação em Marx foi a de “fetichismo”. Quando falou do fetichismo da mercadoria, ele buscou uma comparação com o mundo da religião: “o caráter fetichista da religião está demonstrado 11 Citado por FISCHER, Ernst, em A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2007, p. 16 12 FISCHER, E. op.cit.p.18 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 131 Cultura pelo fato de que adora o aspecto material das coisas, dotando-as com as qualidades do próprio homem”.13 O fetichismo atribui qualidades humanas aos objetos e às coisas para valorizá-los. E os objetos do culto religioso não são meros símbolos nos quais os adoradores encontram um significado, mas são vistos como realidades verdadeiras; não são formas, mas coisas reais. Em sua materialidade como tal, o homem percebe uma fonte de bem-estar. Sua imagem natural é uma expressão de seu próprio poder. Essa característica, a de atribuir poder aos objetos, está presente em grande parte da arte religiosa, sobretudo nas imagens e estatuetas de santos. Para Marx, essa arte é contrária a toda realização verdadeiramente artística, porque a arte verdadeira é alheia ao fetichismo. Marx via que a tosca praticidade e o naturalismo do mundo fetichista se contrapunham à atividade criativa do homem. Nessa época, ele ainda não associava o fetichismo a um modo de produção definido; e por isso não se encontra nada que se pareça às opiniões posteriores de Marx sobre a desproporção histórica entre o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e o desenvolvimento artístico. Pelo contrário, aqui a arte e a habilidade técnica aparecem unidas em sua oposição à barbárie arcaica e moderna. A arte e os antagonismos humanos Para Marx, a oposição entre a arte e as condições históricas desfavoráveis é na verdade expressão do eterno antagonismo entre espírito e natureza, entre a imaginação e a realidade material. Eliminar a concretude fetichista das relações humanas que obstaculiza o desenvolvimento da arte significa superar os fundamentos materiais da vida social. Por isso, a luta contra as condições fetichistas não é uma luta entre “a carne e o sangue” mas uma luta contra a dominação da consciência do homem pela carne e pelo sangue. Para Marx: Qualquer tema tratado em um escrito impresso, seja favorável ou desfavoravelmente, se converte por si só em tema de discussão literária. Esse é justamente o significado da imprensa como poderosa alavanca para a educação cultural e espiritual do povo. Transforma os conflitos materiais em conflitos ideais, as lutas de carne e osso em lutas espirituais, as batalhas de apetite, cobiça e prática em batalhas de teoria, razão e forma.14 Para Marx, os problemas políticos e estéticos derivavam do complexo de problemas surgidos das revoluções democrático-burguesas e da propriedade privada. Ele compreendia que o problema dos direitos históricos da arte vem depois do problema do direito das massas a melhorar sua existência material sensorial. E estava convencido de que a única solução da contradição entre a necessidade econômica e a liberdade política formal reside na abolição da propriedade privada. E a única força social capaz de resolver esse problema é o proletariado. O desenvolvimento de todos os aspectos da realidade social está determinado em última instância pelo desenvolvimento autônomo da produção e reprodução materiais. Por isso, o papel da arte também aparece sob uma nova 132 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 13 MARX, K. O Capital, Vol.1. 14 Sobre os comitês de estado na Prússia. Citado por M.Lifshitz, op.cit.p.73. Cultura ótica. A arte, como a lei ou o Estado, não tem uma história independente, pois está condicionada por todo o desenvolvimento histórico da sociedade. Disso não se deve deduzir que para o materialismo dialético a arte cumpra um papel secundário. Pelo contrário. É a exaltação idealista da arte por cima da realidade material o que desemboca no rebaixamento da arte ao nível de sua mera relação sensorial com a vida. Enquanto Hegel atribuía a decadência da arte à sua natureza sensorial, Marx explicava esse fenômeno em termos de circunstâncias históricas desfavoráveis e defendia os direitos da arte, os direitos da sensorialidade enquanto tal. Contra esse conceito que dissolve a arte em pensamento abstrato, Feuerbach disse o homem se apropria do mundo não apenas por meio das faculdades do raciocínio, mas do uso de todas as suas possibilidades. Marx concorda, e diz que “O homem se afirma a si mesmo no mundo material não apenas por meio do pensamento, mas também por meio de todos os seus sentidos”15. Os sentidos têm sua própria história. Nem o objeto da arte nem o sujeito capaz de uma experiência estética surgem por si, mas do processo de atividade criativa. Assim como a música desperta o sentido musical do homem e a mais bela das músicas carece de sentido e de objeto para o ouvido não musical (...) e por isso os sentidos do homem social são outros que os do homem não social, assim também é a riqueza objetivamente derivada da essência humana a que determina a riqueza dos sentidos subjetivos do homem, o ouvido musical, o olho capaz de captar a beleza da forma, em uma palavra: é assim como se desenvolvem e, em parte, como nascem os sentidos capazes de prazeres humanos, os sentidos que atuam como forças essenciais humanas. (...) Portanto, é necessária a objetivação da essência humana, tanto no aspecto teórico como no prático, tanto para transformar em humano o sentido do homem como para criar o sentido humano adequado a toda riqueza da essência humana e natural.16 Logo, o impulso estético não é algo biológico, anterior ao desenvolvimento social, mas um produto histórico, resultado de uma longa seqüência de produção material e intelectual. “O objeto da arte, assim como qualquer outro produto, cria um público sensível para a arte, capaz de prazer estético. Assim, a produção, escreve Marx, não somente produz um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” 17. Arte e riqueza material À primeira vista poderia parecer que o desenvolvimento das forças produtivas materiais da sociedade caminha paralelamente ao desenvolvimento artístico: quanto mais elevado o estado geral da produção, maior e mais rica a arte. Na verdade, existe uma relação desigual entre a produção material e a arte: Já se sabe que certas épocas de florescimento artístico não estão de maneira alguma em relação com o desenvolvimento geral da sociedade nem tampouco com a base material, com o esqueleto, digamos assim, de sua organização. Por exemplo, os gregos, comparados com os mo- 15 MARX, K. A Ideologia Alemã. 16 MARX, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. 17 MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 133 Cultura dernos ou também Shakespeare.18 A formação e o desenvolvimento das necessidades humanas é um processo que não ocorre de maneira uniforme com o processo histórico de “assimilação” do mundo dos objetos. O mundo é “assimilado” por meio da “alienação” das forças humanas; junto com o aumento da liberdade, aumenta a força da necessidade natural. “O desenvolvimento histórico, diz Hegel, não é um ascenso harmonioso, mas “um cruel e repugnante esforço contra si mesmo”. O espírito vive em estado de luta interior constante. Realiza-se a si mesmo por meio da contradição com, e a alienação de, ele mesmo. Os períodos de felicidade, portanto, são páginas vazias da história, e o progresso é inseparável da decomposição em campos inteiros da empresa humana. Esse é, por exemplo, o destino da arte na qual o espírito contempla sua própria essência de forma inadequada. Em A ideologia alemã (1845-46), Marx fala da história como um processo de formação e desenvolvimento de antagonismos, cujas origens se remontam aos tempos pré-históricos, e cuja única solução é a revolução comunista da classe trabalhadora. A etapa pré-histórica da sociedade humana é uma história de divisão do trabalho, separação de cidade e campo etc. A divisão do trabalho só se converte em verdadeira divisão a partir do momento em que se separam o trabalho físico e o intelectual. Já que com a divisão do trabalho se dá a possibilidade, mais ainda, a realidade de que as atividades espirituais e materiais, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo, se destinem a indivíduos diferentes. Este fenômeno gera uma contradição entre os três elementos do processo social: forças produtivas, relações sociais e consciência. Elas entram em contradição entre si, e a única solução para essas contradições é que a divisão do trabalho seja abolida de novo. Por causa da separação entre os ramos da produção social se produzem melhor as mercadorias, os diversos impulsos e talentos dos homens escolhem os campos de ação que lhes convêm, e sem limitação é impossível fazer algo importante em qualquer campo. Produto e produtor, portanto, melhoram devido à divisão do trabalho. Sob a antiga forma da divisão do trabalho, o qualitativo e o quantitativo eram mensuráveis relativamente: as atividades e capacidades humanas ainda não estavam subordinadas ao princípio abstrato-quantitativo da acumulação de capital. Só isso ajuda a explicar o alto grau de desenvolvimento alcançado pela arte antiga (Teorias da Mais-Valia). Para Marx, o segredo da arte grega estava em seu modo de intercâmbio não desenvolvido, forma simples e até mesmo ingênua. A base econômica da cultura antiga em seu ponto mais alto consistia em uma agricultura camponesa em pequena escala e ofícios independentes. A proporcionalidade relativa da economia simples da produção não desenvolvida cede às desproporções e antagonismos gigantes do capitalismo ascendente. A concentração da propriedade nas mãos de poucos e a “terrível e dolorosa expropriação das massas” são o prelúdio da história do capital. Em consequência, todas as relações patriarcais e todos os laços familiares e comunais se desintegram, e em seu lugar surge um vínculo forte: o impiedo134 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 18 Idem Cultura so “pagamento à vista” (Manifesto Comunista). No dinheiro, “o nivelador radical”, todas as diferenças qualitativas se extinguem. Qualidade, forma, individualidade, tudo se subordina a uma força quantitativa impessoal. A burguesia e a arte Pouco depois da Revolução Francesa de 1789, a filosofia clássica alemã fez uma crítica estética da realidade, e o mesmo ocorreu nas décadas de 1830 e 1840, durante a segunda Revolução Industrial. Essas críticas expressavam dúvidas sobre a possibilidade de uma autêntica criatividade artística sob as novas relações burguesas. Foram momentos muito parecidos aos que vivemos hoje. Uma sociedade assentada na cega luta de interesses materiais, onde os homens vivem unicamente sob a pressão das carências, não pode haver uma produtividade artística autêntica. Mesmo reconhecendo que o capitalismo era o fundamento essencial do progresso, Hegel via que os efeitos paralisantes da divisão do trabalho, a crescente mecanização de todas as formas de atividade humana, a diluição da qualidade na quantidade, todas essas características típicas da sociedade burguesa eram inimigas da poesia, adversas à arte. A concepção dialética geral da história (as forças destrutivas do capitalismo são ao mesmo tempo grandes forças produtivas) determinava a visão de Marx sobre a arte. A decadência da criação artística é inseparável do progresso da civilização burguesa. O próprio desprezo pela arte, característico da sociedade burguesa, se converte em poderoso fator revolucionário. As afirmações de Marx e Engels contidas no Manifesto Comunista são muito adequadas a essa idéia. Mesmo quando a burguesia destrói todas as relações idílicas, quando prostitui tudo, quando despoja de sua aura a todas as profissões até então veneradas e dignas de um piedoso respeito, incluindo o trabalho do poeta, ainda assim o niilismo do modo burguês de produção é, ao mesmo tempo, seu maior mérito histórico. Tudo o que sagrado é profanado, e os homens, por fim, se vêm forçados a considerar serenamente suas condições de existência e suas relações recíprocas. Marx e Engels viam nessa destruição das ilusões e dos vínculos que unem o homem às antigas formas sociais como uma das condições necessárias para o surgimento uma cultura humana verdadeiramente universal. Na sociedade capitalista se estabelece uma interdependência universal entre as nações. E isso se refere tanto à produção material como intelectual. A produção intelectual de uma nação se converte em patrimônio comum de todas. A estreiteza e o exclusivamente nacional resultam cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais se forma uma literatura universal19. Portanto, Marx via que aí surge uma enorme contradição, porque a sociedade burguesa cria riqueza material e poderosos meios de desenvolvimento cultural só para demonstrar na forma mais evidente sua incapacidade de utilizar esses meios, as limitações do desenvolvimento cultural em uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem. Sob o domínio da burguesia atinge sua culminação uma contradição historicamente condicionada (e, portanto, transitória) entre o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e suas realizações artísticas, entre a tecnologia e a arte, entre a ciência e a poesia, entre enormes possibilidades 19 MARX, K. e ENGELS, F. O Manifesto Comunista. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 135 Cultura culturais e uma vida espiritual sumamente pobre. Arte e coletivismo A dialética marxista se baseia não apenas na doutrina da unidade de todos os aspectos da vida social, mas também no reconhecimento de sua relação e desenvolvimento contraditórios. Toda transição para formas mais elevadas e mais desenvolvidas é acompanhada por uma negação; a compreensão desse aspecto destrutivo do progresso explica o que poderia parecer pessimismo nos comentários de Marx sobre a arte grega. Mas a dialética do desenvolvimento histórico não dá um resultado negativo. Na opinião estética de Marx não há nem vestígio dessa imaginária tragédia da arte sobre a qual se apóiam muitos pensadores de todos os matizes, sobretudo nos dias de hoje. A visão de Marx era totalmente otimista em relação à arte. Para ele, na sociedade comunista, as disparidades entre as pessoas altamente dotadas e as massas desaparecem. A concentração exclusiva do talento artístico em indivíduos únicos e a consequente supressão desses dotes na grande massa é uma conseqüência da divisão do trabalho. O coletivismo, longe de suprimir a originalidade pessoal, oferece o único terreno sólido para um desenvolvimento total da personalidade. A idéia central em Marx e Engels é que a sociedade comunista elimina não apenas as contradições abstratas entre trabalho e prazer, mas também entre sentimento e razão, entre as habilidades físicas e mentais do homem. Junto com a abolição das classes e a gradual desaparição da contradição entre trabalho físico e trabalho espiritual, vem o desenvolvimento geral do indivíduo completo que os máximos pensadores sociais até agora só puderam sonhar. Só a sociedade comunista, na qual “os produtores associados regulem esse metabolismo seu com a natureza colocando-o sob seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego”, pode estabelecer as bases materiais para “o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade [...] A redução da jornada de trabalho é a condição básica”20. Com isso, Lifshitz conclui seu livro. Mas antes, faz uma síntese necessária de tudo o que foi dito: Segundo a teoria de Marx, portanto, o comunismo cria condições para o crescimento da cultura e da arte que, comparadas às limitadas oportunidades que a democracia de escravos oferece a uns poucos privilegiados, estas devem necessariamente parecer muito mesquinhas. A arte morreu! Viva a arte!, este é o lema da estética de Marx. 136 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 20 MARX, K. O Capital, vol.III