Marxismo Vivo

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Marxismo Vivo
Marxismo Vivo
Revista de teoria e política internacional
Nº 22 – 2009
Expediente
Marxismo Vivo é uma revista do
Instituto José Luís e Rosa Sundermann
CGC 73282.907/0001-64
Atividade principal 61.81.
Rua dos Caciques, 265 Saúde
São Paulo – SP
Tel (11) 5581-5776
Impressão
Bartira Gráfica e Editora SA
Jornalista responsável
Maria Cecília Garcia
MTb 12.471
Editor
José Welmowicki
Capa
Martín Garcia
Diagramação
Ana Clara Ferrari
Tradução e revisão
Cecília Toledo
Irinéia Vieira
Marcos Margarido
Conselho Editorial
Alejandro Iturbe
Bernardo Cerdeira
Cecília Toledo
José Welmowicki
Marcos Margarido
Martín Hernández
Marxismo Vivo – Revista de
teoria e política internacional
São Paulo – Brasil – Instituto
José Luís e Rosa Sundermann
ISSN 1806-1591
2000, nº 1, julho/setembro
2001, nº 2, outubro/janeiro
2001, nº 3, maio
2001, nº 4, dezembro
2002, nº 5, abril
2002, nº 6, novembro
2003, nº 7, novembro
2004, nº 8, março
2004, nº 9, julho
2004, nº 10, novembro
2005, nº 11, junho
2005, nº 12, dezembro
2006, nº 13, maio
2006, nº 14, outubro
2007, Edição especial – fevereiro
2007, nº 15, julho
2007, nº 16, dezembro
2008, nº 17, maio
2008, nº 18, julho
2008, nº 19, novembro
2009, nº 20, abril
2009, nº 21, agosto
www.litci.org
Marxismo Vivo é uma revista
de elaboração teórico-programática. Por isso, publica artigos
de polêmica, que expressam
diferentes posições políticas. O
conteúdo dos artigos é de inteira
responsabilidade dos respectivos
autores.
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Sumário
Apresentação ................................................................................................................... 4
Añno 2009
A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya
José Moreno Pau e José Welmowicki ............................................................................. 6
O diálogo de Guaymuras, a estratégia do presidente Mel Zelaya e a resistência
Tomás Andino Mencía ..................................................................................................... 15
Do “Novo Século Americano” de Bush à nova tática política de Obama
Alejandro Iturbe .............................................................................................................. 24
Dossiê
Oriente Médio: um novo e imenso Vietnã para Obama
Bernardo Cerdeira ............................................................................................................
Irã, 1979: uma revolução interrompida
Marcos Margarido ............................................................................................................
Por uma nova revolução iraniana José Welmowicki e Tito Niegra .......................................................................................
Afeganistão: uma encruzilhada para o imperialismo
Bernardo Cerdeira ...........................................................................................................
A guerra, o imperialismo e a questão nacional polarizam o Paquistão
Bernardo Cerdeira ............................................................................................................
34
42
52
64
75
Estudos
O sistema financeiro mundial e sua crise - Parte 3
Alejandro Iturbe ..............................................................................................................
83
Pontos de Vista
Cuba ... não é uma ilha
Martín Hernández ............................................................................................................ 91
IV Internacional
De que Internacional precisamos?
Clara Sousa ....................................................................................................................... 100
Isto é História
China, 1949: uma revolução no país mais populoso da Terra
Cecília Toledo e Marcos Margarido ................................................................................ 112
Espanha: Da ditadura à monarquia - Parte 2
Felipe Alegría e Teo Navarro ........................................................................................... 122
Cultura
A arte morreu. Viva a arte!
Cecília Toledo ................................................................................................................... 128
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Apresentaçãçc~ao
´
Iman Maleki, pintor iraniano
Este número de Marxismo Vivo sai quando a preocupação com as
guerras que o imperialismo trava no Oriente Médio vai tomando as
manchetes da imprensa burguesa e os grandes telejornais. Naquela
região do mundo, há 30 anos a revolução iraniana abalou a ordem e
deu origem a uma nova corrente nacionalista islâmica. Também há
30 anos, a invasão soviética ao Afeganistão colocou toda a região
em uma situação de grande instabilidade e desencadeou uma grave
crise no interior do então Estado operário burocrático, mudando
o panorama da situação mundial, com uma série de consequências
políticas que se estendem até hoje.
Em 2009, 30 anos depois, a situação política e militar da região é o
centro dos problemas e das preocupações atuais do imperialismo
americano no mundo. Isso porque depois de ser golpeado pela
resistência das massas, e ser obrigado a mudar de política e tentar
uma saída do Iraque, os Estados Unidos continuam lutando duas
guerras ao mesmo tempo. No Afeganistão, o governo de Barack
Obama vive o dilema de incrementar a escalada militar, num
processo em que sua situação só piora e cujas consequências no
próprio moral do Exército dos EUA vêm sendo dramáticas, como
atestam os informes sobre suicídios e o recente tiroteio na base de
Fort Hood nos EUA. Os governos europeus que participam com
peso das tropas de ocupação, através da OTAN, têm problemas
crescentes pela oposição cada vez mais acirrada de suas populações
a essa guerra, assim como piora a situação de Obama internamente
para sustentar a ocupação.
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Apresentaçãçc~ao
´
O outro grande fato que atravessou o último período foi o golpe
em Honduras e a resistência a ele. Houve um posicionamento
generalizado de toda a esquerda contra o golpe; no entanto, não
havia acordo sobre a caracterização e a política para a resistência.
Uma polêmica se instalou no interior da esquerda: se a orientação
do imperialismo norte-americano era a mesma dos anos 70 de apoiar
todo tipo de golpes militares na América Latina ou estávamos diante
de uma nova tática imposta pela realidade. Se Obama expressa ou
não uma nova tática política resultante da derrota de Bush, a da
reação democrática. Essa nova tática não é menos perigosa que a
de Bush, pois trabalha com o engano e a colaboração das direções
para atacar os trabalhadores, para implementar seus planos de
colonização e dominação dos povos e das riquezas de todo o
mundo. Essa polêmica tem muita importância pela consequência na
política que dela decorre, como se vê na traição de Zelaya à luta da
resistência hondurenha a partir de sua colaboração com a negociação
patrocinada pelo imperialismo e governos latino-americanos.
Dedicamos a esse tema dois artigos na seção Ano 2009.
Nossa revista tem como objetivo as discussões teóricas, programáticas
e políticas sobre os grandes temas da atualidade à luz do marxismo.
Acreditamos que os debates sobre esses temas serão de interesse
para nossos leitores.
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Aññno 2009
Uma análise do processo
político em Honduras
Quando fechávamos esta edição, os resultados da
nefasta assinatura do acordo entre os golpistas e Zelaya
já se faziam notar. O chamado Acordo de Tegucigalpa,
entre Zelaya e os representantes de Micheletti e
patrocinado pelo imperialismo, revelou-se um engano
cruel imposto sobre o povo e a resistência. O objetivo
central dos golpistas - começar a romper o isolamento
internacional - foi atingido, sem que fosse concretizada
a restituição formal e sem poder de Zelaya, quinze dias
depois da assinatura. Além disso, os golpistas esperam
que as eleições, previstas para 29 de novembro, ocorram
com uma resistência debilitada, o que está sendo obtido
com a colaboração direta de Zelaya e, infelizmente, com
a aceitação por parte da maioria da direção da Frente
Manifestação nas ruas de Tegucigalpa
contra o Golpe, que considerava, até 10 de novembro
passado, o Acordo de Guaymuras uma vitória. Agora,
com a não restituição de Zelaya, considera o acordo rasgado e chamam a boicotar
e a desconhecer o resultado eleitoral. A chama da resistência pode voltar a se
acender, mas os que lutaram contra o golpe terão de fazer uma profunda reflexão
sobre o que significou o papel de Zelaya e o da maioria da direção da Frente em
todo o processo.
Consideramos, então, que é um momento no qual se faz necessária uma análise do
conjunto do processo para tirar conclusões que possam ajudar a luta da resistência
e, em especial, daqueles que não aceitaram, desde o início, a traição de Zelaya. Ele
fez um pacto com os golpistas em base a essas miseráveis condições (que nem
sequer foram cumpridas). Estas forças da Resistência desde então defendem a
continuidade da luta, dispostos a buscar uma alternativa independente e que não
faça seguidismo ao vai-e-vem do presidente Zelaya.
No contexto da confusão criada pela capitulação, podemos dizer que há
uma notícia alentadora; existem setores de esquerda da resistência que estão
defendendo uma política independente de Zelaya, afirmando que a luta deveria
ser radicalizada até impor a derrota do golpe pelas massas.
Neste número de Marxismo Vivo publicamos o material de crítica à orientação
imposta pelo zelayismo, que Tomás Andino, deputado da UD e participante
da Frente de Resistência contra o golpe, apresentou num fórum da resistência
quando já se debatia a política que levou à capitulação e à assinatura do Acordo
de Guaymuras.
Também publicamos o texto, A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel
de Zelaya, já que nos pareceu necessário fazer um balanço desde o início do golpe
para que se possa avançar nas lições mais estratégicas.
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Añno 2009
A heroica resistência contra
o golpe e o nefasto papel de
Zelaya
José Moreno Pau
Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-IT) - Espanha
José Welmowicki
Editor de Marxismo Vivo
O golpe em Honduras foi produto de uma amplíssima frente reacionária
de praticamente todos os setores da burguesia hondurenha: as tradicionais
organizações políticas burguesas - o Partido Nacional (conservador) e o
Partido Liberal (ao qual pertencia o próprio Zelaya) -, a Corte Suprema, o
Congresso, os meios de comunicação, a Igreja Católica e as Forças Armadas.
Manuel Zelaya é um dirigente burguês, proveniente da oligarquia latifundiária, que tomou algumas tímidas medidas progressistas e, frente à
deterioração da situação econômica, aproximou-se do chavismo e entrou
na Alba, para se beneficiar das ofertas de petróleo mais barato. Até aí, vinha
sendo tolerado pela direita hondurenha.
Mas, quando Zelaya declarou sua intenção de conseguir a reeleição, não
prevista pelo atual regime político, e, para isso, de convocar uma assembleia
constituinte, sofreu o rechaço da ampla maioria da burguesia. Ao insistir nisso,
apelando a formas de mobilização popular, como o episódio da consulta para
respaldar a “4ª urna”1, tornou sua permanência no poder intolerável para essa
elite e as Forças Armadas.
As contradições do golpe
Os golpistas tinham bastante apoio da burguesia hondurenha, mas havia
um problema muito sério na conjuntura internacional. O golpe ia na contramão da situação aberta com a derrota da política de Bush e a nova tática
de Obama.
A burguesia hondurenha é historicamente muito dependente e tradicional aliada do imperialismo estadunidense. Por exemplo, na década de 1980,
permitiu que o país fosse utilizado como base pela “guerrilha contra” que
atacava o governo sandinista da Nicarágua. Muito possivelmente, com base
nesses favores, acreditou que teria o “direito” de eliminar um elemento
“irritativo” do poder, em que Zelaya estava se transformando, e que, frente
ao fato consumado, teria o apoio do governo norte-americano. Mas foi um
grave erro de cálculo porque o golpe “ultrapassava os limites” da atual tática
Tradução
Marcos Margarido
1 A “quarta urna”
era uma proposta de
incluir nas próximas
eleições de novembro
uma consulta sobre a
convocação a uma Assembleia Constituinte.
Previamente, Zelaya
havia convocado uma
consulta popular (não
autorizada pelo Congresso nem pela Corte
Suprema) para respaldar a “quarta urna”
nas futuras eleições.
Foi nesse momento
que o golpe de estado
ocorreu.
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Aññno 2009
política de Obama.
A burguesia hondurenha tinha certa consciência desta contradição. Por
isso, apesar de ser um golpe bonapartista, não podia executar uma repressão
genocida generalizada ao estilo de Pinochet ou Videla, como no passado da
América Latina, numa conjuntura internacional completamente distinta dos
anos 70. Os gorilas hondurenhos tinham que ser cautelosos em seus objetivos
imediatos e nas formas institucionais. Neste sentido, para tentar ganhar o
apoio do imperialismo dos EUA e das democracias burguesas, apresentaramse em defesa da constituição, “ameaçada” por Zelaya.
No contexto da nova política do imperialismo norte-americano, buscaram
dar uma cobertura de legalidade à ação, acusando Zelaya de diversos “crimes”
e o destituindo “constitucionalmente”: foi o próprio Congresso que nomeou
o novo “presidente civil”, Roberto Micheletti, pertencente ao mesmo Partido
Liberal de Zelaya.
O mais importante é que se apresentaram como uma “transição” para uma
saída institucional no marco da democracia burguesa: desde o início propuseram a saída das eleições presidenciais de novembro, e a entrega do poder ao
vencedor. Assim, queriam afirmar, frente às instituições internacionais, que
não queriam instalar um regime semelhante ao do Chile com Pinochet ou
ao dos militares argentinos de 1976, que esmagaram a população e tentaram
manter-se por longos anos.
O isolamento internacional dos golpistas
Esta situação particular dos golpistas hondurenhos, devido à contradição
do golpe com a nova tática do imperialismo expressada por Obama, que quer
mostrar-se como o homem da “paz”, do diálogo, transformou o golpe num
problema político, porque desautorizam a “nova cara” que o imperialismo
quer mostrar. Por isso, apesar de apresentar-se como “institucional e legalista”, o golpe não foi apoiado por nenhuma das instituições dominadas pelo
imperialismo como a OEA, a ONU ou a União Europeia.
É claro que a embaixada norte-americana estimulou as dissidências contra
Manuel Zelaya, antes do golpe, mas sua estratégia fundamental foi sempre
o desgaste eleitoral e a chantagem. No entanto, quando a extrema-direita
hondurenha, confiando no apoio dos EUA, executou o golpe de Estado, o
governo de Obama não lhe deu nenhum apoio aberto. Essa situação contraditória desembocou no isolamento internacional dos golpistas, apesar de
contar com o apoio de praticamente toda a elite hondurenha.
Quando se compara o papel do imperialismo nas décadas anteriores,
seu apoio total aos golpes de Pinochet e Videla e a seus regimes genocidas,
deve-se explicar as diferenças nessa atitude. A não ser pela mudança de
tática do imperialismo, não se pode entender o não reconhecimento do
governo Micheletti pelo conjunto dos organismos imperialistas até que não
se conseguisse um acordo. Inclusive houve uma pressão, por parte da OEA
e do governo norte-americano, embora limitada, com algumas penalidades
e suspensões de vistos a golpistas e seus parentes assim como a pressão e a
exigência de um acordo firmado entre as duas partes para reconhecer o processo eleitoral. A intransigência do governo golpista à restituição de Zelaya
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Añno 2009
obrigou o governo de Obama a enviar sua própria delegação para impor um
acordo, que finalmente conseguiu que a restituição de Zelaya fosse decidida
pelo parlamento que o destituiu.
Obviamente, existe um acordo de fundo para dar uma saída eleitoral à
situação e para não castigar os golpistas. Ou seja, uma solução estável em base
a um acordo, como demonstra a proposta de “governo de unidade nacional”
e de aceitação do resultado eleitoral. Mas esta atitude, repetimos, é bastante
distinta à que o imperialismo teve frente aos golpes nas décadas de 60, 70 e
80. Até mesmo um porta-voz dos golpistas chegou a declarar publicamente
num momento de mais atrito que o governo de Obama estava “abandonando
seus aliados e favorecendo os chavistas e... comunistas”.
Uma resistência heroica evitou a rápida consolidação do golpe
Em resposta ao golpe, foi produzido um dos maiores pocessos de luta
da história de Honduras. Já após a primeira semana, a indignação foi dando
lugar à ação e as massas entraram na luta. No dia 5 de julho passado, dezenas
de milhares de pessoas marcharam até o aeroporto para garantir a volta de
Zelaya. Outras dezenas de milhares foram impedidas de chegar e ficaram
paradas nas estradas de todo o país. O povo hondurenho esteve a ponto de
tomar o aeroporto e infligir uma duríssima derrota aos golpistas, mas havia
sido dissuadido pelo próprio Zelaya de que o protesto devia ser “pacífico” e
o avião que trazia o presidente deposto não pôde finalmente aterrisar.
Em 22 de julho teve início uma greve de 48 horas com cerca de 80% de
adesão, acompanhada por dezenas de bloqueios de estradas em todo o país,
conseguindo paralisar os portos e os aeroportos. Apenas a grande greve
bananeira de 1954 havia tido uma ação tão generalizada e unificada de todas
as forças sindicais na história do país, acompanhada de mobilizações de rua.
As marchas que paralisavam as principais vias de comunicação e as próprias
cidades, incluindo a capital, Tegucigalpa, foram uma constante.
Novamente foram maciças as mobilizações de 15 de setembro, mas temos
que destacar as realizadas com a volta repentina de Zelaya para se refugiar
na embaixada brasileira. Naqueles primeiros dias, as massas tomaram os
bairros populares, principalmente à noite, enfrentando as forças repressoras
com barricadas. Estávamos ante a própria radicalização que o imperialismo
queria evitar e que abria a possibilidade de derrubar o golpe pela ação direta.
O imperialismo e Zelaya puseram-se de acordo para frear este ascenso, redobrando o esforço de negociação.
O Plano Arias
O governo de Obama buscou uma velha figura de sua confiança: Oscar
Arias, presidente da Costa Rica, diretamente designado como “mediador”
pelo Departamento de Estado dos EUA. Com esse “mandato”, Arias tenta
propor uma saída frente à desestabilização do país e à possibilidade de que
atingisse toda a região, e ao temor de que a situação levasse a uma derrubada
do governo golpista pela ação radicalizada das massas.
O Plano Arias tinha o objetivo de fechar o conflito aberto pelo golpe
por meio de um acordo entre os golpistas e Zelaya. O Plano Arias incluía a
restituição de Zelaya à presidência de Honduras. Mas os outros pontos eram
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categoricamente contra os interesses do movimento de resistência: evitar a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, garantir a impunidade
aos golpistas e preservar todas as corruptas instituições que deram o golpe
(Congresso, Tribunal Supremo, Forças Armadas, Igreja e um longo etc.).
É importante destacar que o diálogo de Guaymuras, que se concretizou no
Acordo de Tegucigalpa, é muito semelhante ao Plano Arias e, portanto, tem
um claro perfil de acordo imposto pelo imperialismo e que contou com um
amplo apoio de toda a OEA, incluídos os países da Alba.
Zelaya apoia a negociação...…
Já na rodada de negociações realizadas na Costa Rica, a delegação de
Zelaya aceitou todos os pontos do plano, abandonando bandeiras fundamentais levantadas pela Frente Nacional Contra o Golpe de Estado, como a
convocação a uma Assembleia Constituinte. Aceitava, inclusive, a impunidade aos golpistas e a preservação da cúpula militar. Essa posição de Zelaya
entregava na mesa de negociações os motivos de fundo pelos quais ocorreu
a resistência popular.
Pese a isso, as conversações iniciais fracassaram devido à oposição do setor
mais direitista dos golpistas, que não aceitava de nenhuma forma o retorno
de Zelaya, temendo que isto fosse visto pelas massas como um triunfo da
mobilização popular e pelo medo de que, encorajadas por esse retorno, exigissem a cabeça da cúpula das Forças Armadas e dos golpistas civis.
…e freia a resistência.
A partir de seu apoio ao Plano Arias, Zelaya tentou convencer o movimento de resistência a aceitá-lo e aceitar também um “diálogo pacífico” com os
militares e os golpistas civis. Um exemplo disto foi seu chamado à população
para que fosse recebê-lo na fronteira com a Nicarágua em 24 de julho, durante a greve nacional de 48 horas, para recebê-lo e forçar seu retorno ao país.
A maioria da direção da Frente Contra o Golpe apoiou aquele chamado
e isso fez com que a esta ficasse sem vários de seus dirigentes nas principais
cidades do país. Zelaya fez os manifestantes acreditarem que poderia convencer a cúpula militar a deixá-lo entrar pacificamente e, chegados à fronteira,
viram Zelaya apelando pateticamente ao “patriotismo da cúpula militar”.
Como, obviamente, os generais não o fizeram e organizaram a repressão
em toda a região, Zelaya simplesmente voltou a sair, deixando milhares de
pessoas presas numa armadilha. Assim, pôs em perigo a vida e a liberdade de
milhares de ativistas e de muitos dirigentes da Frente de Resistência contra
o Golpe, o que representava uma ameaça real de perda de dirigentes do movimento antigolpista.
A orientação de Zelaya teve uma lógica de ferro: a necessidade de manter, a qualquer custo, o controle do movimento. Uma greve geral põe como
centro a ação direta e faz a classe operária aparecer como direção e cabeça do
movimento, o que ameaçava sua hegemonia. Para Zelaya, era fundamental
que sua figura e suas iniciativas se impusessem ao movimento de massas.
Só isso pode explicar que, nesse episódio, ele tentasse seu ingresso pela
fronteira, convocando o movimento a trasladar-se até ali, em meio à greve
mais contundente das últimas décadas. Ao mesmo tempo, buscava evitar
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que a greve e os bloqueios de estradas desbordassem sua estratégia de “saída
pacífica” e ameaçassem derrubar o regime golpista com a luta, abrindo o
questionamento ao próprio Estado burguês.
O papel dos chamados governos “anti-imperialistas”
Apesar de toda a retórica dos membros da Alba, em especial de Chávez,
não houve nenhuma “brigada de solidariedade” com Honduras nem, muito
menos, ações ofensivas do movimento de massas em seus países, contentandose com resoluções no limite da OEA e da Unasul. As escassas mobilizações
convocadas por Chávez na Venezuela ou o ato que realizou em El Salvador
três meses depois do golpe não escondem o esforço que os governos da Alba
realizaram para dar o protagonismo do processo às instituições do imperialismo e a seus principais porta-vozes, como Lula ante a ONU.
Mas o que chama mais a atenção é a atitude traidora dos vizinhos “progressistas” centro-americanos. O exemplo mais vergonhoso veio do governo
Funes, da FMLN, em El Salvador: depois de fechar por 48 horas as fronteiras
com Honduras, recebeu fortes críticas das associações patronais e, imediatamente, capitulou em toda a linha e passou a permitir o livre trânsito das
mercadorias produzidas em, e com destino a, Honduras. O presidente Funes
prosseguiu sua política de abandono da resistência hondurenha e de legitimação dos golpistas: em 28 de julho, em plena luta da resistência, realizou
uma reunião com representantes dos empresários golpistas hondurenhos e
comprometeu-se a não prejudicar seus interesses e investimentos em El Salvador. Isso serviu para que a oligarquia golpista de Honduras pudesse afirmar
que não estavam “tão isolados”, em especial na América Central. Afinal, até
um governo de “esquerda” os estava recebendo. Funes justificou essa traição
declarando “não poder negar-se” a receber empresários interessados em investir em seu país. Para ele, não importava a trajetória de massacres em que
estiveram implicados esses oligarcas golpistas, inclusive na guerra dos anos
90 em El Salvador; para Funes, o fundamental é garantir os bons negócios
de sua burguesia.
Por seu lado, Daniel Ortega esteve formalmente contra o golpe: apareceu ao lado de Zelaya, permitiu que usasse a Nicarágua como refúgio e disse
algumas bravatas contra os golpistas. Mas tampouco tomou alguma atitude
séria para afetar os interesses da oligarquia hondurenha na Nicarágua. Ele
também defendeu os interesses dos empresários nicaragüenses, que têm laços
estreitos com a burguesia golpista de Honduras. Tampouco teve dúvida em
comprometer-se com as manobras militares conjuntas latino-americanas
(Panamax 2009) com os Estados Unidos e a Colômbia, nas quais se chegou a anunciar a participação dos militares golpistas hondurenhos (afinal,
não puderam participar pelo não reconhecimento do governo dos EUA
e da OEA). Essas manobras têm o objetivo de treinar a “defesa do canal
do Panamá”, isto é, a defesa da dominação imperialista na região. Incluem,
ademais, as Forças Armadas de El Salvador, Brasil, Argentina e Equador (do
“bolivariano” Rafael Correa).
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Aññno 2009
O erro da direção da Frente
O apoio à política de negociação de Zelaya, inclusive à improvisada
marcha à fronteira, mostrou o erro das principais direções da Frente de Resistência, de seguir acriticamente sua orientação política e decisões pessoais.
Apesar da Frente não ter apoiado o acordo, não criticou Zelaya por
apoiar publicamente o reacionário Plano Arias, nem tampouco denunciou
sua política de chamar uma “mobilização pacífica”, sem nenhuma preparação
para resistir à repressão militar, e que esta alimentava ilusões no caráter supostamente “patriótico e negociador” da cúpula militar e deixava as massas
à mercê dos esbirros golpistas.
Essa contradição esteve presente todo o tempo, como se viu graficamente
no caso da marcha ao aeroporto, na mobilização à fronteira e, sobretudo pela
participação de um dirigente da Frente nas primeiras semanas da negociação
com os golpistas na capital hondurenha. Há poucos anos, a reação das massas derrotou os gorilas venezuelanos, e mostrou que, sem uma mobilização
decidida e disposta ao enfrentamento com as forças golpistas, não se pode
derrotá-los.
Chegou-se, assim, a uma situação em que, por um lado os golpistas não
podiam levar a cabo uma repressão genocida e deviam manter as formas institucionais pelo seu isolamento internacional; mas, por outro lado, as forças
da resistência estavam amarradas pela orientação zelayista e pela falta de uma
direção consequente. Era uma encruzilhada onde, à medida que passava o
tempo, permitia a manutenção das rédeas do Estado nas mãos dos golpitas
e a utilização da ânsia natural da população em retomar a “vida normal” para
debilitar a resistência (por exemplo, incentivando a pressão da população a
sobre os professores para terminar sua greve).
A política conciliadora impediu que a resistência derrotasse o golpe
A política de confiança nas negociações como
via central para tirar os golpistas impediu que
a resistência derrotasse o golpe. Era necessária
uma disposição à ação radical, e ao enfrentamento insurrecional com a ditadura, algo que Zelaya
estava e está contra fazer. Por isso, a resistência
não conseguiu derrubar Micheletti quando teve
condições para isso, devido à política da direção da
Frente, que foi a reboque da política de Zelaya. E
esse obstáculo tornou-se absoluto quando Zelaya
retorna e novamente se abre a negociação para o
Confronto na capital hondurenha (13/08/09)
Acordo de Tegucigalpa.
O Acordo de Tegucigalpa: consuma-se a traição de Zelaya
Quando Zelaya entrou em Tegucigalpa e se instalou na embaixada brasileira, houve uma retomada muito forte da mobilização, mas em seguida Mel
deu um novo respiro aos golpistas aceitando negociar com eles. Conclamou
a mobilizações pacíficas, e sob pressão do governo brasileiro e de Obama
tratou de desestimulá-las e acalmar os ativistas ao chamar permanentemente
o “diálogo”.
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A direção da Frente aceitou as indicações de Zelaya para que as mobilizações fossem pacíficas. Com isso, após mais de um mês de negociações em
Honduras, as ações diminuíram sensivelmente em massificação e radicalização. Os atos de setores e de ativistas em frente à embaixada e mais recentemente em frente ao Congresso, apesar de sua combatividade, não impediram
o funcionamento do país. Já não se produziam os bloqueios de estradas e
as greves foram reduzidas. Esse foi o momento escolhido pelo enviado dos
EUA, Thomas Shanon, para impor às duas partes o Acordo de Tegucigalpa.
Nesse acordo, Zelya teria uma presidência totalmente recortada, governando com os golpistas e cedendo até a direção das Forças Armadas, designada
ao presidente. Este acordo, ademais, não implicava uma restituição direta
de Zelaya, a um mês do processo eleitoral, mas deixava a decisão ao próprio
parlamento que aceitou sua destituição ao produzir-se o golpe de Estado.
A assinatura do Acordo conseguiu o objetivo dos golpistas de ir rompendo
com o isolamento internacional. Os golpistas, nesse marco, após contar com
a colaboração de Zelaya para a desmobilização das massas, decidiu continuar
adiando sua restituição para deixar claro que esta não teria efeito e com isso
levar ao desprestígio de Mel Zelaya.
A responsabilidade da direção da Frente
Depois de cinco meses, a repressão dos golpistas e a política negociadora
de Zelaya, além da atitude pacifista da Frente, criaram um ambiente de compasso de espera, que fez o movimento antigolpista retroceder, em sua força
e em seus métodos de luta. Pode ser que, frente à recusa sequer de reintegrar
Zelaya e a provável indignação popular, isso mude, mas já encontrará uma
situação menos favorável para retomar a luta devido ao período de desmobilização que só favoreceu à oligarquia e aos golpistas. A Frente de Resistência
ao Golpe de Estado tinha a obrigação de denunciar os acordos e romper com
Zelaya, mas preferiu acompanhar sua política, embora dizendo que continuará
“lutando nas ruas pela convocação de uma Assembleia Constituinte”. Emitiu
um comunicado que, de fato, apoia o Acordo de Tegucigalpa e realiza algumas
exigências ao Congresso golpista. Desta forma, lamentavelmente, a Frente
legitimou o acordo, encobrindo a traição de Zelaya e, ao mesmo tempo,
perdeu a oportunidade de surgir como uma alternativa de direção para a luta
do conjunto do povo hondurenho.
Adiou-se mais uma vez a restituição com as eleições “virando a
esquina”
Enquanto escrevíamos este texto, houve proclamações por parte da direção da Frente, afirmando que o acordo é letra morta devido à postergação
da restituição de Zelaya. Inclusive levantaram novamente a exigência de
Assembleia Constituinte e o rechaço às eleições de 29 de novembro por se
dar sob o governo golpista. Mas, novamente, há uma declaração de apoio a
Zelaya, por este haver considerado rasgado o acordo. Sabemos que foram as
bases que exigiram a denúncia das eleições e que se desconhecesse o acordo,
no entanto, a direção da Frente incluiu o apoio a Zelaya sem denunciar que
a postura atual do presidente deposto não muda o fato de que firmou o documento aceitando os pontos mais importantes do Plano Arias e permitiu
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que os golpistas manobrassem até perto das eleições, apenas com a promessa
de uma possível restituição via Congresso, o que deixou a resistência muito
debilitada.
As eleições dos golpistas e as tarefas da esquerda da Frente
Foi anunciada a retirada da candidatura independente encabeçada por
Carlos H. Reyes das eleições, assim como o chamamento da Frente a que
todas as candidaturas que apoiaram a resistência se retirem. A dezesseis dias
das eleições, os candidatos da UD ainda não se haviam pronunciado, mas
mesmo que acabassem se retirando, continuariam beneficiando o regime
golpista e seu processo eleitoral. Mesmo que o presidente deposto pelo
golpe fosse restituído nos últimos dias prévios aos comícios, esse fato já não
pode legitimar uma eleição produzida sob um regime golpista, nos termos
do Acordo de Tegucigalpa, que pretende enterrar a luta do povo hondurenho
contra os golpistas, a oligarquia e por uma Assembleia Constituinte que
rompa com o imperialismo.
O governo de Obama esperava que, com o Acordo de Tegucigalpa, a instabilidade em Honduras terminasse e se chegasse às eleições sem problemas.
Os golpistas, uma vez mais, não lhe facilitaram a tarefa; vendo-se cada vez
mais fortes, com a colaboração de Zelaya, esperam que as eleições sejam reconhecidas sem ceder o mais mínimo. A assinatura do Acordo por parte de
Zelaya, aceitando que a restituição fosse decidida pelo parlamento, permitiu
ao governo de Obama dizer que pode aceitar o resultado eleitoral e seguramente declarará que o novo governo restabelecerá a legalidade.
Apesar do forte debilitamento das massas e da confusão provocada pela
manutenção do apoio da direção da Frente a Zelaya, é muito possível que se
volte a produzir uma forte mobilização popular na luta contra estas eleições,
pois o povo hondurenho já demonstrou durante muitos meses que é capaz
de voltar a levantar-se e enfrentar o regime golpista.
Fica uma tarefa pendente que, se avançar, pode ser a parte positiva de
todo esse processo, em relação à organização dos trabalhadores e do povo de
Honduras. O desenvolvimento de uma direção alternativa de classe baseada
nos setores da esquerda da resistência que estão defendendo uma política independente de Zelaya e defendiam a radicalização da luta até impor a derrota
ao golpe pelas massas. Neste sentido, vemos a publicação do texto de Tomás
Andino como o início de uma discussão muito necessária que se deve abrir
não somente entre os lutadores hondurenhos, mas também entre todos os
que participaram e apoiam a resistência contra esse golpe, na América Latina
e em todo o mundo.
A luta contra as eleições, contra o governo vencedor (se esta eleição
fraudulenta for consumada), e, portanto, a luta pelo seu não reconhecimento,
serão as tarefas que terão o povo hondurenho, latino-americano e mundial
nos próximos meses.
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Proposta para avançcar até uma estratégia revolucionária
´
O Diálogo Guaymuras, a
estratégia do presidente
Mel Zelaya
e a Resistência
Tomás Andino Mencía
Deputado pelo partido UD ao Congresso Nacional - Honduras
Nos últimos dias temos sido testemunhas do “vai e vem” entre as Comissões de Mel e Micheletti no marco do Diálogo Guaymuras. Qualquer um que
enxergue dois dedos à frente percebe que existe una tática protelatória por
parte dos golpistas para ganhar tempo, ante a qual o Presidente Mel esmerase em continuar em tal “diálogo” com paciência franciscana. Enquanto isso,
os golpistas avançam em sua campanha eleitoral e a maioria da liderança da
Resistência continua centrando suas expectativas em que algo positivo surgirá
desse diálogo.
Minha tese é que o problema não reside apenas na tática protelatória dos
golpistas, mas que, principalmente, o Acordo de San José, apresentado como
a grande panacéia para resolver a crise atual, é em si mesmo uma armadilha
do Departamento de Estado norte-americano para levar a cabo os objetivos
do Golpe de Estado e que, portanto, Mel deveria retirar-se do mesmo e a
Resistência não deveria manter suas esperanças nele.
Os pontos de vista que exponho a seguir foram apresentados verbalmente
em inumeráveis ocasiões no fórum apropriado da direção da Frente Nacional
de Resistência, sem que houvesse una retificação do rumo atual. Isso me
obriga a apresentá-los agora por escrito.
Tradução
Marcos Margarido
O Acordo de San José e a estratégia imperialista
Os objetivos e os beneficiários do Golpe
Para fazer uma avaliação objetiva da estratégia norte-americana, devemos
recordar primeiro quais foram os objetivos do Golpe:
• Impedir que o Presidente Mel Zelaya estimulasse a mobilização do
povo contra a oligarquia empresarial.
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• Frear a luta pela Assembleia Nacional Constituinte.
• Cortar o vínculo internacional de Honduras com a Alba.
• Conservar Honduras como plataforma militar norte-americana frente a governos pró-Alba na América Central e no Caribe.
Do anterior deduz-se, em primeiro lugar, que os beneficiários mais imediatos do Golpe foram os empresários e a classe política vinculada a eles, pois
conservam inalterados seus privilégios de classe e sua forma de dominação
política baseada no bipartidarismo tradicional.
O outro grande ganhador do Golpe foi o imperialismo norte-americano,
do ponto de vista geoestratégico. Recordemos que a sede do Comando Sul
saiu do Panamá e que a única base militar que os norte-americanos têm em
solo centro-americano é a base aérea de Palmerola; nessas condições, o império não pode dar-se ao luxo de perder Honduras ante o avanço da Alba na
Nicarágua e un governo da FMLN em El Salvador.
Por isso, não é casual que distintas agências de Estado norte-americanas
alentaram e promoveram o Golpe de Estado em Honduras, coincidentes ou
afinados com a ultradireita gusana1 de Miami e da Venezuela. Agora fingem estar “contra”, mas é claro que as medidas tomadas para “penalizar” os golpistas
são tão tímidas que é evidente que só se trata de poses teatrais para aparentar
o que não são. A oligarquia e a cúpula militar hondurenha dificilmente teriam
assumido tal aventura, nem teriam se entrincheirado como fizeram frente à
avalanche diplomática internacional, se não tivessem contado com aprovação
e apoio destes setores chaves do império norte-americano.
Portanto, o Golpe de Estado em Honduras não é apenas produto do desespero da oligarquia ultramontana hondurenha que o executou, mas forma
parte de uma conspiração internacional inspirada e promovida pelo imperialismo norte-americano, em linha com as fracassadas intentonas golpistas na
Venezuela (2002), Bolívia (2008) e Guatemala (2009). Em outras palavras,
o governo norte-americano não é aliado do povo hondurenho contra o
Golpe, mas um de seus autores intelectuais.
O Plano Arias ou Acordo de San José
Como é de domínio público, o avião no qual o Presidente Zelaya foi
sequestrado fez uma aterrisagem na base militar norte-americana de Palmerola para se abastecer em sua viajem à Costa Rica. Depois, ao chegar a San
José, foi recebido pessoalmente pelo Presidente Oscar Arias, marionete dos
norte-americanos na América Central. “Casualmente” foi este último quem
apareceu com o chamado Plano Arias para a reconciliação entre as partes,
elaborado não por ele, mas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.
Tantas “casualidades” indicam uma realidade inquestionável: Que os
“norte-americanos” estão por trás do Plano Arias ou Acordo de San José
desde o princípio.
Que diz o Plano Arias? Em sua versão definitiva, este projeto de pacto
político promove a restituição do Presidente e a reconciliação dos golpistas
com o “melismo”2, mediante:
• A conformação de um Governo de Unidade entre funcionários de
Mel e dos golpistas, tirados dos cinco partidos políticos;
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1 Gusanos: cubanos
emigrados inimigos
da Revolução Cubana
(NT).
2 Melismo: partidários
de Mel Zelaya (NT).
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• A garantia de eleições com a participação de todos os setores um mês
antes da data preliminar de 29 de novembro deste ano;
• A renúncia a promover uma Assembleia Constituinte ou uma consulta popular com esse fim;
• Anistia pelos delitos políticos cometidos;
• Remover Mel do comando das Forças Armadas um mês antes das
eleições;
• Retornar as instituições do Estado à sua situação antes do Golpe de
28 de junho; isto é, Mel voltaria à Presidência e Micheletti ao Congresso.
Assim, Mel retomaria uma presidência sumamente limitado ou sem poder
para impulsionar a Assembleia Constituinte, nem poderia tomar nenhuma
outra iniciativa presidencial de peso; ademais perderia o controle sobre as
Forças Armadas e teria a ameaça da Procuradoria Geral e da Corte Suprema,
que já havia ordenado sua captura, intactas; Micheletti retomaria o poder
do Congresso Nacional e além disso teria gente de sua confiança no Poder
Executivo; os golpistas já “queimados” teriam garantidos um substituto com
as eleições; e ninguém seria denunciado por motivos políticos, ao menos em
território nacional.3
Isto é, se o Acordo de San José for firmado, contrário ao que nos foi feito
acreditar, o império conseguiria seus objetivos com o Golpe de Estado e
a burguesia sairia com as mesmas ou com maiores fatias de poder do que
tinha antes do golpe.
O papel cúmplice da OEA
Neste jogo de xadrez político internacional, a OEA também está jogando seu papel a favor da estratégia norte-americana. Nos primeiros dias do
golpe, teve uma reação consequente com a Carta Democrática que lhe serve
de base jurídica. Exigiu, então, a restituição imediata e incondicional do
Presidente Zelaya ao cargo. E em sua primeira visita, o Secretário Geral da
OEA, José Miguel Insulza, tratou Micheletti e sua quadrilha como o que são:
delinquentes políticos. Deu-lhes a seguinte mensagem: “Ou deixam o poder
ou os desconhecemos”.
Mas, à medida que o Departamento de Estado norte-americano foi exercendo sua liderança a favor do Plano Arias e da negociação, a OEA prendeu-se
totalmente a este e agora parece dizer junto aos norte-americanos: “Sentem-se
para negociar e ponham-se de acordo para que os reconheçamos”.
Esta mudança implica uma violação da Resolução da Assembleia Geral
da OEA por parte de Insulza, que só se explica pelo peso da representação
dos Estados Unidos nesse organismo. Novamente, repete-se a validez da
célebre frase de Che Guevara quando qualificou a OEA como “Ministério
das Relações exteriores do Imperialismo”.
O Diálogo Guaymuras e a negociação
O Acordo de San José implica em uma negociação. Negociar em si não
é incorreto. O incorreto é submeter os objetivos da luta direta nas ruas,
com muitas possibilidades de êxito, a uma negociação na qual só há possibilidades de perder. Isso é claramente inconveniente para a Resistência,
mas é o que sucede com o chamado Diálogo Guaymuras.
3 Embora o ponto
da Anistia tenha sido
eliminado do acordo
preliminar por ambas
as comissões, o certo
é que nada impede
legalmente que o Congresso Nacional a outorgue aos militares se
essa for sua vontade.
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Em primeiro lugar, aceitar negociar com golpistas é um mal precedente.
Em nome de que, é válido que um Presidente eleito democraticamente tenha
que negociar quotas de poder com bandidos políticos como Micheletti e
Romeo Vásquez, que usurparam-no à força? O mais triste é que aqueles que
pressionam por isso são os que dizem defender a democracia nas Américas (a
OEA) e no mundo (os norte-americanos). Agora, qualquer pilantra poderá
derrubar um governo democrático, com a certeza de que cedo ou tarde terão
que negociar com ele.
Em segundo lugar, não se negocia com uma faca no pescoço. Enquanto
as comissões estão reunidas, a repressão contra a resistência é mantida, e,
embora o Decreto de Estado de Sítio tenha sido revogado e a Rádio Globo
e o Canal 36 sejam reabertos sob ameaça, continua o assassinato de ativistas
da Resistência, há dezenas de presos políticos nas prisões da ditadura, e continuam a militarização e a tortura eletrônica na Embaixada do Brasil.
Em terceiro lugar, a lógica de toda negociação para se chegar a um acordo
é que as partes devem ceder algo. Se o Acordo de San José, por si próprio,
é uma base de negociação desvantajosa, o resultado final só pode ser pior
para a causa da Resistência. Por exemplo, no ponto central da restituição
do presidente, o acordo de San José diz que a decisão cabe ao Congresso
Nacional, mas os golpistas pressionaram para que fosse a Corte Suprema
de Justiça, e finalmente a Comissão de Mel recuou, aceitando que fosse “o
Congresso em consulta à Corte Suprema de Justiça”, arriscando-se a um
resultado negativo e adiando as decisões.
Em quarto lugar, não há transparência no que se negocia, porque as
propostas nas negociações não são submetidas à aprovação da base da Resistência; na realidade são secretas. A base fica ao par delas pela imprensa
quando já foram apresentadas. Não há maneira de reagir antes. Tudo resulta
ser uma imposição.
Em quinto lugar, não há nada que impeça os golpistas de apresentar
propostas absurdas para manter sua estratégia de dilatar o tempo da negociação. A OEA, que supostamente é garantia do diálogo, faz vista grossa
frente a essa descarada tática dilatória, alegando que eles não vão intervir
porque é un “assunto entre hondurenhos”. Dessa forma, os golpistas ganham
tempo à medida que nos aproximamos da data das eleições e a intranquilidade
cinde a base da Frente de Resistência.
Em sexto lugar, e este talvez seja o pior aspecto, é que o processo de
negociação contribui para a desmobilização ou para desviar a mobilização
da Resistência do que deveria ser seu objetivo central. Na atualidade o eixo
da luta já não é a rua mas a mesa de negociação. Enquanto o Diálogo está vigente, a luta se faz, não para tirar o governo de Micheletti, mas para fortalecer
a posição política da Comissão Negociadora do presidente Mel. Ademais,
o diálogo tem um efeito psicológico real na base; nossos companheiros se
perguntam: “para que vamos expor nossa segurança se ao final sairão acordos
no diálogo; é melhor esperar”. O Diálogo está cumprindo assim o objetivo
de desestimular a mobilização social.
Quem se mostra muito otimista sobre este processo argumenta que a
restituição do presidente poderá mudar as coisas “porque uma vez no poder”,
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dizem, “Mel terá possibilidades distintas das que tem agora”. É uma ilusão! Se
o Presidente for restituído por essa via, não me cabe a menor dúvida de que
os golpistas, que têm as armas e os meios de comunicação à sua disposição,
poderão impor suas condições ao presidente e poderão tê-lo onde e quando
quiserem, inclusive na prisão (recordemos que há uma “ordem de captura”
emitida pela Corte Suprema), para se assegurar de que estará incomunicável
e que suas ordens não serão conhecidas, cumpridas ou sejam obstaculizadas.
Se isso é assim, que vantagem teria a Resistência de ter um presidente prisioneiro em seu cargo?
Mesmo com todas as desvantagens assinaladas, o presidente mantém-se
na negociação para chegar à assinatura do Acordo de San José, confiando na
bondade dos organismos internacionais e no governo norte-americano, autor
intelectual do golpe. Nada mais equivocado. Pior ainda, o presidente tem uma
estratégia suicida de ceder em todos os pontos (governo de integração com
os golpistas, renúncia à Constituinte, aceitar as eleições, etc.) sabendo que,
se a restituição ocorrer, ele teria que cumprir todas as condições que forem
aceitas, o que a meu ver é indigno.
Tudo indica que o presidente busca a restituição a todo custo - embora
seja apenas simbólica - porque “o importante é reverter o golpe”. Lamento
discrepar do senhor presidente, mas devo dizer que uma restituição assim é
inservível para o povo e, em troca, é útil para legitimar as eleições dos golpistas
que, afinal de contas, são seu objetivo principal.
Conseguir uma restituição desta forma não significaria uma reversão do
golpe, não seria nenhum triunfo para o povo - porque nosso inimigo alcançaria
seu propósito e nós não - mas seria uma espécie de “normalização do golpe”,
ante cujas consequências negativas já não teríamos a mesma solidariedade
internacional porque esta reconheceria o governo golpista “legalizado” por
obra e graças a este acordo. Por conseguinte, um processo desse tipo não
poderia constituir nenhum modelo digno de ser imitado por nenhum país
do mundo, mas um bom exemplo de como não se deve “solucionar” um
Golpe de Estado.
Vale a pena que o presidente e a Resistência mantenhamos essa estratégia?
A Frente e a estratégia da resistência pacífica
Frente ao panorama desolador da negociação e do Acordo de San José, há
uma alternativa: a luta pela derrubada da ditadura com as forças da Resistência.
Parece tão difícil, mas é possível consegui-lo, e o primeiro passo para isso é
corrigir nossos erros.
A Resistência é un movimento social colossal. Nunca ocorreu em Honduras algo igual. Nem sequer a greve de 1954 foi semelhante. Milhões de
pessoas saíram às ruas dirigidas pela Frente Nacional de Resistência contra
o Golpe de Estado, a qual propôs os seguintes objetivos: 1) O retorno da
ordem constitucional, 2) a restituição de Manuel Zelaya Rosales a seu cargo;
e, 3) a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. É tão poderoso
que os estrategistas das Forças Armadas tiveram que recorrer a tudo o que
têm para contê-la.
Mas, vale a pena perguntar-se: acaso pode haver restituição enquanto
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Micheletti e sua quadrilha permanecerem no poder? Pode haver restituição
à ordem constitucional se os mesmos golpistas continuarem nas instituições
chaves como o Congresso, a Corte Suprema, etc.? Poderá haver convocação
a uma Constituinte se os golpistas atuais ou seus sucessores, que surgirem
da farsa eleitoral de novembro, permanecerem?
A experiência demonstrou que sem a queda do regime golpista é impossível uma restituição digna e útil do presidente, e muito menos será
possível a convocação de uma Assembleia Constituinte como o povo espera.
Então a pergunta é obrigatória: se a Resistência teve tanta força social,
como é que em três meses e meio de luta não conseguimos a queda do governo
usurpador de Micheletti e Romeo Vásquez?
A queda do governo golpista deve ser o primeiro objetivo e o centro da
estratégia
A resposta a essa pergunta não é simples. Após a ruptura de todos os
obstáculos ideológicos e políticos que mantinham o povo na obscuridade, o
atual regime só se sustenta pela força das armas. O enorme dispositivo militar
mostra o que nós enfrentamos. Mas todo o povo, liberado de suas amarras,
teve que enfrentar o mesmo desafio. Em geral, não são as armas, mas a disposição ao sacrifício de um povo que leva à vitória das revoluções. Não há
exército que possa contra um povo completamente levantado, que multiplica
em dezenas de milhares as frentes de luta, em cada aldeia, bairro, esquina e
casa. Assim se sucedeu em Cuba e na Nicarágua. É a lei de toda revolução.
Agora, se bem que não resulta fácil organizar algo assim, podemos dizer
que em Honduras estão dadas as condições para fazê-lo. O povo quer e é a
maioria. É questão de propô-la.
Minha tese é que este governo não caiu porque a condução da Frente
Nacional contra o Golpe de Estado não propôs o objetivo de derrotá-lo.
Por incrível que pareça, a direção da Frente evitou avançar à revolução.
Desde o princípio, a Frente apostou que Mel seria restituído, não por
uma insurreição popular verdadeira, mas pela ação da diplomacia internacional, encabeçada pela OEA e os Estados Unidos. A frente assumiu que
seu papel neste esquema é pôr a mobilização de massas como uma força
de pressão social a serviço da negociação do Pacto de San José, e não em
função da derrubada do governo usurpador. De fato, a queda do governo
não aparece como um dos três objetivos centrais da Frente, quando deveria
ser o primeiro. Apenas o povo parece ter claro a ordem correta das tarefas
políticas do momento, quando grita nas ruas “qual é o caminho”4.
O problema da forma de luta
A falta desse objetivo é traduzida, por sua vez, em problemas de estratégia: Tanto o presidente Manuel Zelaya como a direção da Frente Nacional de
Resistência definiram-na como uma “resistência pacífica”, “não violenta”, que
se baseia na desobediência civil e nas ações de protesto sem o uso de armas.
De fato, o método invariavelmente usado nestes 115 dias de resistência foi
a marcha diária.
Não questiono que um movimento de massas, que não conta com recursos
para derrotar o exército da oligarquia no início, utilize a tática da “resistência
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4 Nas marchas diárias,
os manifestantes gritavam a seguinte palavra
de ordem: “Cuál es
la ruta. Sacar a ese
hijoeputa”.
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pacífica”, não armada, para evitar ser massacrado. Mas já levamos três meses
e meio das maiores mobilizações de nossa história, e com menos que isso já
caíram vários governos em nosso país. Então algo não anda bem com essa
tática.
A resistência pacífica, da mesma forma que qualquer outra tática, não
deve ser considerada uma forma de luta permanente e estática. Se o que se
necessita é a derrubada de um regime opressor, a estratégia deve ser adequada
a esse objetivo, levando em conta a correlação de forças. A uma correlação
de forças favorável e uma maior disposição na consciência do povo – como
sucedeu em Honduras desde 28 de junho - devem corresponder formas de
luta mais duras e radicais, começando por marchas, ocupações, greves parciais,
culminando com a greve geral insurrecional e as milícias populares, como
as forma mais elevadas de mobilização revolucionária. Mas isso não é o que
ocorreu em nosso caso porque a forma de luta continuou sendo a mesma
todos os dias… durante 115 dias.
Este “pacifismo radical” e estático não é casual, porque nesta estratégia se
busca não entorpecer a saída negociada e não se busca a saída revolucionária.
Enquanto o presidente Mel esteve no exterior, tal estratégia serviu-lhe para
sustentar sua pressão diplomática para que o regime de fato negociasse o
Plano Arias. Uma vez em Honduras, Mel continua alentando a mobilização
da Frente Nacional de Resistência como un meio para pressionar na mesa
de negociação, como o mostra seu recente chamado à luta quando o Diálogo
Guaymuras ameaçava fracassar pelas posições intransigentes dos golpistas.
Mas já não se trata de que a Resistência siga sendo um instrumento, mas
que seja o autor da mudança.
Necessidade de que a base seja escutada
Isso requer uma mudança de atitude de nossa direção. Apesar de que a base
exija a gritos uma mudança de estratégia, essa reivindicação chega a ouvidos
surdos. E ainda se deforma esta inquietude dizendo que quem reclama essa
mudança defende a luta armada, a guerrilha e coisas pelo estilo, para fazê-la
aparecer como muito difícil. Para mim, as atividades de combatentes guerrilheiros isolados das massas não são úteis, mas prejudiciais porque justificam
a repressão. Qualquer forma de luta não serve de nada se não conta com a
participação ativa da maioria do povo.
Simplesmente dizemos que a direção deve saber quando a base está
disposta a avançar mais além de seus esquemas pré-concebidos. A que tipo
de luta estarão dispostas? Que elas o decidam, consultemo-las! O problema
é que não são escutadas e as castramos de antemão dizendo-lhes que quem
se põe beligerante é um “provocador”. Quem somos os dirigentes para crer
saber de tudo?
Necessidade de independência e complementariedade da Frente em
relação ao presidente
Voltando à estratégia do presidente, pode-se entender a partir de sua
realidade. Recordemos que o presidente Mel e seus acompanhantes na Embaixada do Brasil encontram-se em condições de cativeiro muito precárias;
sobrevivendo dia a dia, comendo às vezes, num absoluto confinamento e
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submetidos a tratamento torturante pelos corpos policiais e militares. É
compreensível porque se aferra tanto à negociação, dependente dos organismos internacionais.
Mas outra coisa é que a Frente aceite esta estratégia como própria. Mesmo que tenhamos objetivos comuns com o presidente, encontramo-nos em
condições muito díspares, dependemos de, e nos devemos a, forças muito
distintas, e por isso é necessário que a Frente mantenha una relação de independência e ao mesmo tempo de complementariedade com ele. Nem
podemos exigir que faça algo mais do que pode, nem ele tampouco pode
pretender que a Frente Nacional de Resistência faça algo que não esteja em
nossas possibilidades ou que nos limite a não fazer algo que possamos fazer.
Não é a primeira vez que as decisões do presidente, mal assessorado e com
evidente desconhecimento das condições em que realizamos a luta, afetaram
o movimento da Resistência, a qual, devido a sua lealdade a ele, seguiu-o incondicionalmente. Isso sucedeu quando fez o chamado a tomar o Aeroporto
Toncontin em 5 de julho; ou seu chamado para que o povo fosse recebê-lo na
fronteira com a Nicarágua, que conduziu milhares de companheiros a uma
ratoeira; ou o chamado à “ofensiva final” em 22 de setembro para a qual não
havia condições objetivas. Com essas iniciativas aventureiras e, devo dizê-lo,
irresponsáveis, expôs o povo a uma maior repressão e seguidamente se produziu um declínio da mobilização social. Com muito esforço, a Resistência
conseguiu recuperar-se dessas conjunturas. E agora resulta que o Presidente
nos meteu em outra: o Diálogo Guaymuras. Por sorte, Juan Barahona pôde
sair a tempo antes que tivesse de assinar o inaceitável.
En ocasiões teremos opiniões divergentes sobre a rota a seguir nesta
luta, mas para chegar a sua maioridade, a Resistência deve aprender a não
se deixar impor decisões de seus aliados e a tomar as próprias, em função
de sua realidade.
Se o presidente for respeitoso a seu povo, deverá aceitar as decisões
estratégicas que sua organização representativa estabelecer, que é a Frente
Nacional de Resistência. Além disso, a direção da Frente deve escutar mais
sua base, com mente aberta, e menos aos hóspedes da Embaixada do Brasil.
Com certeza, necessitamos também coordenar com o presidente, porque
em meio a uma luta contra a ditadura e o imperialismo é necessária a mais
ampla unidade de ação. A fórmula deve ser: independência e unidade de
ação naquilo em que coincidamos.
Apenas se conseguirmos um equilíbrio entre essas duas tendências, poderemos avançar até o objetivo comum; se não, os erros de um arrastarão o
outro ao abismo.
Propostas para avançar
Em base a todo o anterior, permito-me propor:
Que o Presidente Manuel Zelaya:
• Retire-se de imediato do Diálogo Guaymuras, justificando-o na mais
que evidente falta de vontade dos golpistas em ceder o poder e no não cumprimento de condições mínimas para realizar um diálogo sem repressão nem
meios de coação.
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• Dê por terminada a gestão do Acordo de San José por não ajustar-se a
uma saída justa da crise gerada pelo Golpe de Estado e exija à OEA prenderse à resolução de sua Assembleia Geral que ordena seu Secretário Geral a
defesa da restituição imediata e incondicional do presidente.
• Denunciar o papel sinistro e confabulado com os golpistas que joga
o governo dos Estados Unidos.
• Chame a recuperar uma aliança estratégica com a Alba para contribuir desde o plano internacional com a derrubada da ditadura, aproveitando
sua manifesta disposição em tal sentido, expressada em sua recente cúpula
na Bolívia.
Que a Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado:
• Denuncie o Diálogo Guaymuras como una estratégia dilatória da ditadura para ganhar tempo à espera do processo eleitoral e chame o presidente Manuel Zelaya a retirar-se do mesmo.
• Denuncie o Acordo de San José como um instrumento do imperialismo norte-americano para impor uma falsa saída à crise gerada pelo Golpe de
Estado, manietando o presidente Zelaya a condições inaceitáveis.
• Defina em sua estratégia geral a derrubada do governo usurpador
como o primeiro objetivo de nossa luta, ao redor do qual organizar toda a
estratégia operativa.
• Estabeleça uma estratégia de acumulação de forças progressiva para
gerar condições para uma insurreição popular no médio prazo, cuja primeira
meta seja conseguir a não realização da farsa eleitoral de novembro. Para
isso, poderia começar a desenhar e executar ações que golpeiem a economia
dos golpistas, em especial, preparando as condições para um “Paro” Cívico
Nacional e para uma Greve Geral insurrecional.
• Incorpore a autodefesa das mobilizações na estratégia geral da luta
de rua.
• Estabeleça as Mesas Comunitárias em todas as frentes locais da Resistência, como mecanismo de consulta às bases sobre o Acordo de San José,
a Constituinte, as eleições e as estratégias de luta.
• Dialogue com o presidente sobre a necessidade de que ele não tome
iniciativas que possam comprometer a Resistência, sem que esta seja informada ou sem lhe dar a oportunidade de expressar sua opinião. Além disso,
que respeite a decisão que a respeito tome a direção da Frente.
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Do “Novo Século Americano”
de Bush à nova tática política
de Obama
Alejandro Iturbe
Frente Obrero Socialista (FOS) - Argentina
O golpe de Estado em Honduras abriu um debate na esquerda latinoamericana sobre o papel de Barack Obama nele e se o novo governo dos EUA
representa ou não uma profunda mudança na tática política do imperialismo
norte-americano para enfrentar a situação mundial. Vários setores, em especial
alguns influenciados pelo chavismo, afirmam que, em sua essência, Obama
mantém a mesma política de Bush.
Recentemente foi publicado A “Doutrina Obama” ante a maior depressão da história1, que analisa as características da atual crise econômica, suas
perspectivas e seu impacto na situação mundial e na política do imperialismo
norte-americano. Em sua parte econômica, o material analisa com profundidade a atual crise e suas perspectivas. Neste terreno, temos vários acordos,
em especial quando caracteriza a fragilidade da “recuperação” em curso.
Mas estas coincidências terminam quando aborda as conseqüências da crise
econômica sobre a política do imperialismo norte-americano.
Tradução
Marcos Margarido
Um projeto neofascista?
Em sua introdução, o material afirma:
Governos e elites do primeiro mundo… estavam conscientes do
que vinha ocorrendo enquanto faziam preparativos para impor seus
interesses através de uma doutrina de guerra permanente […] É por
isso que, apesar do fim da guerra fria, o gasto militar, sobretudo nos
EUA, continuou crescendo até as cifras alucinantes da atualidade (…)
um novo holocausto para a humanidade está sendo preparado para
controlar o mundo, recolonizá-lo, destruir os avanços democráticos
e impor o neofascismo a nível planetário.
Nesse marco, as perspectivas para a América Latina são analisadas:
O golpe militar em Honduras não pode ser visto como mais um golpe
tradicional num pequeno país dos tempos da guerra fria. Precedido
pela volta da 4ª Frota dos EUA para a América Latina em 2008, de
um ataque militar da Colômbia a território do Equador e, simultaneamente, ao acordo de instalação de sete bases militares dos EUA
24
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1 Wim Dierckxsens
(Holanda); Antonio
Jarquin T. (Nicarágua); Reinaldo Carcanholo (Brasil); Jorge
Beinstein (Argentina);
Paulo Nakatani (Brasil) e Rémy Herrera
(França), membros
da equipe do Observatorio Internacional
de la Crise. Citações
em wwwobservatoriodelacrisis.org/readarticle.php?article_
id=265.
Añno 2009
na Colômbia, são eventos que não podem ser desconectados um do
outro; eles podem ser considerados como um ataque militar dos EUA
contra “toda a América Latina”. Esses fatos devem de ser analisados
não só no contexto local e regional, mas, também, dentro do contexto
da estratégia global pós-guerra fria dos EUA sobre a Eurásia e o resto
do mundo e no contexto da grave crise econômica atual.
E conclui que o golpe de Honduras:
Longe de ser um anacronismo, marca, na opinião de Rick Rozoff, “um
precedente para o futuro. Assim como o Afeganistão transformou-se
na principal frente de guerra durante o último ano (incluindo os sete
meses de Obama), também parece haver planos de agressão militar à
América Latina, relativamente isolada desses conflitos nos últimos
dez anos” (Rick Rozoff, US escalates war plans in Latin America). O
motivo geopolítico é a eventual ampliação da guerra às proximidades
com a China e a Rússia. Isso exige uma segurança maior na oferta de
petróleo e recursos naturais aos EUA. Em tempos de guerra é arriscado e inseguro o transporte pelos oceanos. Os EUA necessitam...
assegurar-se dos recursos naturais... da América Latina. O perigo, na
conjuntura da crise, foi que o continente estava definindo cada vez
mais seu próprio rumo com a autodeterminação sobre tais recursos.
Os EUA queriam dar um basta e apoiou o golpe militar no elo mais
fraco do continente.
Em outras palavras, para os autores, Obama não só não representou
nenhuma mudança em relação à política de Bush, mas também, pressionado
pelas consequências da crise econômica sobre seu país, estenderá geograficamente os conflitos bélicos e aprofundará sua metodologia de guerras,
agressões e golpes.
Mudanças na realidade, mudanças na tática
Cremos ser uma análise profundamente equivocada. Opinamos que, em
relação a Bush, Obama expressa uma grande mudança na tática política do
imperialismo para enfrentar a situação mundial, devido a alterações da realidade: a derrota do projeto de Bush frente à luta do movimento de massas e
os riscos de explosões sociais que a atual crise econômica implica.
Trataremos de demonstrar esse equívoco e fundamentar nossas opiniões.
Não porque queiramos embelezar Obama e sua política (deixamos isso a quem
lhe outorgou recentemente o Premio Nobel da Paz e outros que, como Fidel
Castro, saudaram esta decisão), mas porque, como marxistas, para modificar
a realidade devemos compreendê-la tal qual é.
Para evitar falsas discussões, não temos nenhuma dúvida de que Obama,
como presidente dos EUA, defende os interesses imperialistas da mesma forma que Bush. Isto é, sua estratégia continua sendo a recolonização da maioria
do planeta. Tampouco cremos que seja um pacifista que abandona a “ação
militar” (basta ver sua política na guerra do Afeganistão, a manutenção da
ocupação de Haiti ou seu plano de utilização das bases militares da Colômbia).
Mas a derrota que o projeto de Bush sofreu no Iraque e na Venezuela, e
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25
Aññno 2009
o curso desfavorável da situação no Afeganistão e no Oriente Médio, etc.,
obrigaram o imperialismo a mudar sua tática. Foi a luta das massas e as derrotas infligidas à política do imperialismo, não a “boa vontade” de Obama,
que impuseram esta mudança de tática, acentuada pelos riscos da situação
social derivada da pior crise econômica capitalista desde 1929.
Se Obama e Bush defendem os mesmos interesses imperialistas, as condições em que devem fazê-lo são diferentes e o imperialismo necessita adaptar-se
a isso. O próprio Bush já havia sido obrigado a começar este ajuste, mas o
atual presidente expressa essa mudança com muito mais clareza.
O Projeto para um Novo Século Americano
Parece-nos necessário voltar um pouco aos objetivos do projeto defendido
por Bush para entender melhor o impacto de sua derrota para o imperialismo
norte-americano. O Projeto para um Novo Século Americano (PNAC em
inglês) iniciou-se formalmente em 3 de junho de 1997 com sua constituição
por parte de uma corrente de extrema direita do Partido Republicano2.
Em sua declaração de princípios, o PNAC afirma que seu principal objetivo é manter “a liderança, os interesses e os valores americanos no mundo”, no
próximo século XXI, com seus desafios e as mudanças ocorridas no mundo.
Critica o governo de Bill Clinton (A política exterior e de defesa americanas
estão à deriva) e também os setores conservadores republicanos tradicionais
porque “não propuseram decididamente uma visão estratégica do papel da
América no mundo… nem lutaram por um orçamento de defesa para manter
a segurança americana e o avanço dos interesses americanos no novo século”.
Mais adiante, afirma:
Enquanto o século XX aproxima-se de seu fim, os EUA permanecem
como a principal potência mundial. […] Estamos pondo em risco a
capacidade da nação de enfrentar ameaças presentes e de lidar com
desafios potencialmente maiores no futuro. […] Terão os EUA a
resolução para desenvolver um novo século favorável aos interesses e
princípios americanos?
Como resposta, apresenta suas propostas:
• Uma política exterior que, audaz e intencionalmente, promova os
princípios americanos no exterior, e uma liderança nacional que aceite as
responsabilidades globais dos EUA.
• Aumentar significativamente os gastos com defesa…
• Fortalecer nossos laços com os aliados democráticos e desafiar os
regimes hostis a nossos interesses e valores...
• Aceitar a responsabilidade do papel especial dos EUA em preservar e
estender uma ordem internacional favorável a nossa segurança, nossa prosperidade e nossos princípios.
Esta declaração ia acompanhada de uma análise completa da situação
política, econômica e militar das distintas regiões do mundo e os interesses
norte-americanos em cada uma delas. Assinam-na, entre outros, Jeb Bush
(irmão de George W. e governador do estado da Flórida na época); Dick
Cheney (futuro vice-presidente), Donald Rumsfeld (futuro secretário de
Defesa) e Paul Wolfowitz (o arquiteto da política de Bush para o Iraque).
26
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
2 Em www.newamericancentury.org
Añno 2009
Isto é, não se tratava de um projeto improvisado nem de uma resposta
conjuntural aos atentados de 11 de setembro de 2001, mas de um projeto
muito ambicioso e de alcances estratégicos para consolidar e ampliar por um
século a hegemonia econômica-política-militar dos EUA no mundo.
Para isso, era necessário intervir militarmente em qualquer lugar do
mundo onde os interesses e os “valores” dos EUA (leia-se direito ao saque
de recursos naturais, como petróleo e gás, e a extração de mais-valia) fossem
questionados ou onde houvesse um “regime hostil” que ousasse desafiar essa
hegemonia.
Alguns analistas qualificaram este projeto como “neofascista”. Parece-nos
mais exato chamá-lo de “bonapartista”, de reafirmação da hegemonia mundial
e propenso ao amplo uso da “opção militar”, avançando na disposição de criar
novas situações coloniais em alguns países.
A guerra contra o terror e a luta contra o “eixo do mal”
O governo de Bush nasceu débil: sua eleição estava questionada (teve
menos votos populares que Al Gore) e os EUA viviam uma crise econômica.
Embora o projeto não surgisse com os atentados de 11 de setembro, estes
criaram as condições para seu respaldo pelo conjunto da burguesia norteamericana e um forte apoio popular para desenvolvê-lo em grande escala, por
poder apresentá-lo como a política de “defesa” de um país que estava sendo
“agredido” (75% da população apoiava a invasão do Afeganistão).
A partir dos atentados, Bush incorpora dois conceitos chaves. No discurso de 21 de setembro de 2001 ao Congresso, fala, pela primeira vez, da
“guerra contra o terror”, uma virtual declaração de guerra contra o regime
talibã afegão, acusado de ser o centro de uma “rede terrorista mundial”3.
O ataque ao Afeganistão seria só o início desta guerra:
Nossa guerra contra o terror começa com o Al Qaeda, mas não termina
aí. Não terminará até que cada grupo terrorista tenha sido encontrado,
detido e vencido. […] Nossa resposta envolve muito mais que uma
represália instantânea e golpes isolados. Os norte-americanos não
devem esperar una batalha, mas uma longa campanha como jamais
viram antes. […] Deste dia em diante, qualquer nação que continue
dando refúgio ou apoiando o terrorismo será considerada um regime
hostil pelos EUA.
O rápido triunfo obtido no Afeganistão (outubro de 2001) fez com que
Bush subisse um degrau e incorporasse (em 29 de janeiro de 2002) o conceito
de “eixo do mal”. Isto é, aqueles países que mantinham algum grau de autonomia dos EUA. A desculpa, desta vez, não só era o “apoio aos terroristas”, mas
também a posse de armas nucleares e de “destruição em massa” (ou supostas
intenções de desenvolvê-las) e, por isso, representavam uma “ameaça”.
Bush afirmou que o “eixo do mal” era integrado pelo Iraque, Irã e Coreia
do Norte. Depois, a Líbia e a Síria foram agregadas e, em algumas declarações,
representantes de seu governo também incluíram a Venezuela, Bielorrússia e
até a Bolívia. Bush termina seu discurso com uma clara ameaça: “Países como
estes, e seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal que se arma para
ameaçar a paz mundial”.
3 Foi certamente uma
ironia da história, já
que a criação da organização talibã havia
sido impulsionada
pela própria CIA para
combater a invasão
soviética nesse país, na
década de 1980.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Aññno 2009
A próxima ação de Bush foi a invasão ao Iraque e a derrubada de Sadam
Hussein (março-maio de 2003), considerado um passo prévio a um ataque
ao regime iraniano dos aiatolás (com o qual tinha contas pendentes desde
1979). Embora não fossem realizados por tropas norte-americanas, consideramos que o golpe contra o governo de Hugo Chávez (12 de abril de 2002);
a invasão do exército israelense ao Líbano (julho de 2006) e os reiterados
ataques à Faixa de Gaza foram parte da luta contra o “eixo do mal”. Vejamos
então, quais foram os resultados destas batalhas e da “guerra contra o terror”.
O fracasso do golpe na Venezuela
Apesar de seu primeiro e rápido triunfo na derrubada do regime talibã,
a LIT-QI assinalou, desde o início, que a resistência do movimento de massas era o principal obstáculo ao projeto de Bush: “No entanto, e apesar da
vitória no Afeganistão, o imperialismo não conseguiu derrotar o conjunto
do movimento de massas e a reação destas exacerbou-se em vários pontos
do planeta criando um quadro crescente de polarização da luta de classes”4.
A primeira derrota de Bush ocorreu na Venezuela. Em 11 de abril de
2002, um golpe cívico-militar, incentivado e respaldado por seu governo,
derrubou Hugo Chávez e instalou um governo presidido pelo líder burguês
Pedro Carmona. No entanto, uma grande mobilização de massas, combinada
com a divisão nas Forças Armadas, removeu o governo golpista e obrigou-o a
restituir Chávez, como a única maneira de controlar a situação. Meses depois,
houve uma nova tentativa de “quebrar” o governo de Chávez, por meio de
um lock out patronal e pelos gerentes pró-imperialistas da petrolífera estatal
PDVSA, mas também foi derrotado pela mobilização das massas.
A partir desta derrota, Bush viu-se obrigado a mudar sua política para
a Venezuela. Embora os enfrentamentos retóricos fossem mantidos, Bush
deixou de apoiar a derrubada de Chávez; as empresas norte-americanas (e
a própria burguesia golpista venezuelana) começaram a fazer negócios com
seu governo, aumentaram fortemente seus investimentos (especialmente
nas áreas de petróleo e automobilística) e passaram a apostar num futuro
desgaste eleitoral de Chávez.
Iraque: o Vietnã de Bush
Mas foi no Iraque onde Bush apostou mais forte e jogou a sorte de seu
projeto. As forças imperialistas invasoras conseguiram um rápido triunfo com
a derrota do regime de Sadam Hussein. Mas essa rápida guerra de ocupação,
aparentemente triunfante, transformou-se rapidamente numa guerra de liberação do povo iraquiano contra as tropas ocupantes, cada vez mais desfavorável
para o imperialismo, até tornar-se “uma guerra impossível de ganhar”.
Os sucessivos planos para estabilizar e controlar o país foram fracassando
até chegar à decisão atual de retirar as tropas e deixar o combate ao caos em
que o país se converteu a cargo um governo iraquiano e suas Forças Armadas.
Existem questionamentos à comparação do resultado da guerra do Vietnã
com a do Iraque. A derrota imperialista no Vietnã ficou marcada pela imagem
dos helicópteros dos EUA abandonando apressadamente Saigon e muitos
funcionários do governo títere do Vietnã do Sul tentando desesperadamente
fugir com eles. E esta retirada levou a que o exército doe Vietnã do Norte
28
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
4 WELMOWICKI,
J. Situación Mundial:
meses después la cinchada se tensa. Marxismo Vivo N. 5, abril
2002.
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derrotasse rapidamente os restos do governo títere e reunificasse o país.
No Iraque, em troca, não há uma “fuga” apressada das tropas estadunidenses, mas uma saída ordenada e um deslocamento de vários milhares de
homens a “superbases” no Kuwait e outros países da região. E não há um
inimigo centralizado e unificado que tome o poder, mas a divisão de fato de
um país caótico em três regiões autônomas, entregues à burguesia xiita no
sul, à sunita no centro e à curda no norte. Um governo central seria mantido
para controlar as fontes de petróleo e as Forças Armadas. Não está claro se
este precário equilíbrio será mantido quando as tropas dos Estados Unidos
se retirarem e, portanto, se será possível cumprir os planos e as promessas
de Obama.
Embora importantes, estas diferenças são secundárias, porque o imperialismo norte-americano não conseguiu nenhum dos objetivos políticos,
militares e econômicos estabelecidos ao invadir o país e, por isso, retira-se
claramente derrotado.
Por outro lado, o impacto da derrota no Iraque é muito superior à sofrida
no Vietnã. No sudeste asiático, estava em jogo essencialmente um problema
político-militar, já que a região não tinha um valor econômico nem geopolítico estratégico para a dominação imperialista. Mas o Iraque, e o Oriente
Médio de conjunto, têm uma importância econômica e geopolítica estratégica
qualitativamente superior por suas riquezas em petróleo e gás.
Por isso, a derrota é muito mais dura e se transformou em um ponto de
inflexão do curso da “guerra contra o terror” e de todo o projeto de Bush,
voltando-se como um bumerangue sobre os EUA, pois gerou a derrota de
Bush nas eleições legislativas de novembro de 2006 e a dos republicanos nas
presidenciais, em novembro de 2008.
Frente à situação no Iraque e o recrudescimento da guerra no Afeganistão, o imperialismo tentou dar um golpe de força para reverter a situação: a
invasão israelense ao Líbano, em julho de 2008. Com o pretexto de recuperar
um soldado israelense capturado, as Forças Armadas israelenses tentaram
destruir o Hezbollah. Mas, frente à heroica resistência das massas libanesas,
este objetivo terminou numa dura derrota para o então primeiro ministro
israelense, Ehud Olmert, e o próprio Bush. Israel saiu muito enfraquecido do
Líbano e o projeto de Bush sofreu outra dura derrota que agravou sua situação.
Eles próprios afirmam
A definição de que a guerra de Iraque terminou numa derrota, e sua
comparação com Vietnã, não é somente nossa, mas dos próprios analistas
políticos da imprensa imperialista. Um editor do New York Times, no início
de 2007, via assim a situação militar no Iraque e suas consequências políticas:
O problema é que ninguém mais quer apostar em Bush. O que mudou
na guerra do Iraque, nos últimos meses, foi a situação nos Estados
Unidos. (...) Existe hoje um consenso entre os políticos republicanos
e democratas que não existia nem sequer nos momentos finais da
guerra do Vietnã. (…) No momento da derrota, Bush está se tornando
ainda mais perigoso, aumentando as apostas quando qualquer outro
reconheceria que é hora de retirar-se da mesa5.
5 WAACK, W. George W. Bush: Gambler
Who Has Run Out of
Luck, publicado em
29/01/2207 emwww.
wa t ch i n g a m e r i c a .
com/oglobo000015.
shtml.
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29
Aññno 2009
Uma das primeiras consequências da situação foi o abandono da intenção
de Bush de invadir o Irã: a própria Condoleeza Rice declarara, em 2006: “Irã
não é o Iraque”6. Por outro lado, a ajuda do regime iraniano transformava-se
numa questão fundamental para “estabilizar” o Iraque, por sua influência nas
organizações políticas xiitas iraquianas que participavam dos governos títeres.
Afeganistão: o Iraque de Obama?
A situação do imperialismo ficou agravada pelo curso cada vez mais
desfavorável na guerra do Afeganistão. Longe de marchar até a vitória, esta
guerra parece encaminhar-se até una nova derrota militar do imperialismo.
Consciente deste perigo, Obama tenta una política de fortalecer sua posição
militar para conseguir uma saída para a guerra, negociada com o Talibã.
A guerra “contra o terror” teve início com a promessa de “apagar o Talibã
da face da Terra” e liquidar o regime iraniano. Seu resultado final é que este regime é hoje uma peça chave para o desejo imperialista de “estabilizar” a região
além de se buscar negociações com o próprio Talibã. Como se pode qualificar
o resultado desta guerra se não como uma clara derrota do imperialismo?
Neste marco, falar de uma “eventual ampliação da guerra nas proximidades
da China e Rússia” parece um exercício de ficção política. Alguém imagina
que os EUA possam atacar a China, destino dos maiores investimentos imperialistas nas últimas décadas? Tampouco se vislumbra um conflito com a
Rússia, além dos choques ocorridos no conflito entre a Geórgia e a Ossétia.
Pelo contrário, a política de Obama é a de pactuar com Putin e, por isso,
liquidou o projeto de instalação do escudo antimísseis na Europa Central.
A crise econômica e as contradições do imperialismo
Outra das razões que os autores dão para o recrudescimento de um projeto
neofascista é o impacto da atual crise econômica nos países imperialistas e
sua política para enfrentá-la:
O nacionalismo está de regresso nas diferentes políticas dos países
centrais. O mesmo representa uma atitude coletiva nacional de salvar-se
à custa eventual das demais nações. Estas tendências protecionistas, xenofóbicas e nacionalistas são ingredientes para fomentar o neofascismo.
Aqui se misturam questões corretas e equivocadas. É totalmente certo
que a crise econômica faz com que os governos dos países imperialistas alimentem tendências xenófobas em sua população e façam duras leis contra os
trabalhadores imigrantes. É uma forma de descarregar a crise sobre o setor
mais frágil de suas classes operárias. Ao mesmo tempo, tenta desviar a bronca
dos trabalhadores “nacionais” contra as empresas e os governos em direção
aos trabalhadores imigrantes que lhes “roubam” o trabalho e os salários, como
se vê com clareza em países como a Itália, França ou a Inglaterra.
Mas, nas últimas duas décadas, deu-se um processo de “internacionalização” da produção com um crescente volume de investimentos na China,
Índia, os tigres asiáticos e outros países, buscando menores custos trabalhistas
e maiores taxas de lucro. Hoje, grande parte da produção industrial das empresas imperialistas ocorre nesses países e se vende nos países centrais, em um
circuito essencial para seus lucros. Por isso, é praticamente impossível que os
30
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6 PORTER, Gareth.
Historia oculta del fracaso
de Bush e Rice, publicado pela Agência IPS,
14/06/2006.
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países imperialistas, ou os países periféricos mais fortes, girem para políticas
isolacionistas ou protecionistas, como ocorreu depois da crise de 1929.
Esta realidade apresenta-se como uma contradição muito grave ao imperialismo. Se seguir a lógica de reduzir custos trabalhistas e lucros, deve manter
e aprofundar o atual circuito econômico, enquanto aumenta os ataques a
suas próprias classes operárias. Foi o que fez a GM ao fechar várias fábricas
e demitir 20 mil de seus 60 mil trabalhadores nos EUA, enquanto mantinha
suas fábricas e pessoal na China e no Brasil.
Se o fator principal que considera, por outro lado, for o temor aos enfrentamentos com suas próprias classes operárias, atuará como Sarkozy, na França,
que forneceu empréstimos à Renault com a condição de que as fábricas no país
fossem mantidas e, em último caso, fechasse a Dacia na Romênia. Ou como
Merkel, na Alemanha, que pôs dinheiro para comprar a Opel, tentando salvar
as fábricas e o pessoal do país em detrimento das plantas da Suécia e Bélgica.
Pesando tais contradições, os governos e empresas imperialistas atacam
seus próprios trabalhadores, mas o fazem de modo cuidadoso, tentando evitar
um enfrentamento frontal e global, em especial na Europa, precisamente pelo
contexto político desfavorável que lhes deixou a derrota do governo Bush.
Assim, junto às demissões e reduções salariais, aplicam-se medidas como a
extensão do prazo do seguro desemprego. Tanto as contradições quanto essas
medidas são o resultado da debilidade do imperialismo e não de sua força.
América Latina: golpes por todos os lados?
Analisemos agora a situação da América Latina. Segundo os autores, a
combinação da necessidade de assegurar o abastecimento dos recursos naturais
do continente, ante “uma ampliação da guerra” na Ásia; a conjuntura de crise
econômica e o fato de que “o continente estava definindo cada vez mais seu
próprio rumo com autodeterminação sobre tais recursos”, abre a perspectiva
de que o governo dos EUA impulsione golpes de Estado em toda a América
Latina (supomos que principalmente contra aqueles governos que estariam
resistindo e defendendo “a autodeterminação”).
Novamente, elementos corretos misturam-se com outros que não o são
para uma conclusão equivocada. É certo afirmar que o imperialismo norteamericano necessita assegurar o abastecimento dos recursos naturais da
América Latina, acentuada pela situação militar no Oriente Médio e a crise
econômica. Mas é equivocado dizer que o abastecimento será garantido por
meio de uma política geral de apoiar golpes de Estado.
E por duas razões. A primeira é que, como temos analisado, a derrota do
projeto de Bush fez com que o imperialismo não busque atualmente novas
frentes de conflito ou de enfrentamento. Ao contrário, busca defender seus
interesses através da negociação e do “consenso”.
Por isso, levou países como o Brasil, México ou a Argentina ao G-20 (na
ficção de que intervirão nas “grandes decisões econômicas mundiais”). E, nas
situações de conflito, impulsiona saídas “negociadas” que lhe sejam favoráveis.
Por isso, no recente golpe de Honduras, sua política foi promover o Pacto de
San José e depois o Acordo de Guaymuras. Antes, na Bolívia, vimos como
sua linha não foi incentivar a queda de Evo Morales, mas um acordo entre
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Aññno 2009
seu governo e a burguesia da Meia Lua através da Unasul (nova peça chave
para defender seus interesses na América do Sul com uma “cara regional”).
Nesta política, o Brasil e Lula (o “homem” de Obama na região) jogam o
papel principal para encontrar as melhores saídas para o imperialismo.
A segunda razão completa a primeira, contra o que dizem os autores do
trabalho, não existem no continente latino-americano governos realmente
anti-imperialistas ou que defendam uma real “autodeterminação sobre seus
recursos naturais”, más além de suas retóricas ou de alguma medida parcial.
É o próprio governo venezuelano de Chávez que assegura constitucionalmente os investimentos estrangeiros e entrega 50% do petróleo venezuelano
às grandes petroleiras imperialistas; é o governo boliviano de Evo Morales
que entrega a exploração do gás, petróleo e do minério de ferro bolivianos
a empresas estrangeiras, é o de Correa, no Equador, que governa para as
multinacionais mineiras.
Por isso, a política do imperialismo para assegurar esses recursos naturais
e conseguir seus objetivos hoje não é de golpes de Estado, mas de negociação
e “consenso”. Hoje não busca derrotar os governos de Chávez, Evo e Correa,
mas cooptá-los e associá-los no saque de seus países, dando-lhes, em troca,
algumas migalhas para que possam desenvolver alguns “planos sociais”.
Ao mesmo tempo, se bem que as bases da Colômbia, e outras no continente, ou a reativação da 4ª Frota representem um “posicionamento estratégico”, a atual política militar do imperialismo para a América Latina é atuar
através de, ou com, a colaboração das Forças Armadas de países com governos
surgidos de eleições, incluídos alguns daqueles que supostamente estariam
ameaçados por perspectivas de golpes, como a Bolívia, Equador ou Nicarágua.
Um primeiro exemplo é o Haiti, onde, com a cobertura da ONU, a Minustah é comandada pelo Brasil e integrada por tropas da Argentina, Chile,
Uruguai e até a Bolívia, para reprimir o povo haitiano e garantir às multinacionais têxteis americanas os salários mais baixos do continente.
Outro exemplo menos conhecido é o do exercício das Forças Aliadas
Panamax 2009, realizado em setembro passado, com a desculpa de simular “a
defesa do Canal do Panamá” frente a um suposto “ataque externo”. Dirigidos
pelo Comando Sul do exército estadunidense, participaram 4500 soldados
provenientes de 20 países (Argentina, Belize, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia,
Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, EEUU, França,
Guatemala, Holanda, Nicarágua, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai)7.
A reação democrática
A política aplicada atualmente por Obama não é nova. Na década de
1980, a LIT-QI a definiu como “reação democrática”. Isto é, a utilização das
ferramentas da democracia burguesa (eleições, Parlamento) e das negociações
e pactos para frear, desviar e inclusive derrotar ascensos do movimento de
massas, com a ação militar passando a jogar um papel secundário e auxiliar.
Embora se trate de una política defensiva, pois responde a determinadas
condições da luta de classes mais desfavoráveis ao imperialismo, suas táticas
podem ser muito ofensivas e conseguir importantes êxitos para o imperialismo. Assim ocorreu na década de 1980, depois da derrota no Vietnã e dos
32
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7 Dados extraídos
de www.southcom.
mil/appssc/factfles.
php?id=126
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triunfos das revoluções no Irã e na Nicarágua, e em meio aos processos que
derrubavam as ditaduras latino-americanas.
Os processos latino-americanos foram desviados através da reação democrática, tanto naqueles países que haviam vivido revoluções democráticas
(como a Argentina e o Brasil) ou para evitá-las. O processo revolucionário
centro-americano, aberto com a queda de Somoza, foi freado com os Acordos
de Contadora (mesmo que aqui o aspecto militar estivesse mais presente).
Finalmente, a restauração capitalista no Leste da Europa não foi o resultado
de guerras e invasões, mas teve como componente central uma política de
reação democrática.
O que queremos enfatizar é que o imperialismo nem sempre aplica una
política de guerras, golpes e invasões para manter seu domínio colonizador.
Pelo contrário, que pode defender seus interesses e assegurar este domínio
também através da política de reação democrática. Especialmente quando,
como na atualidade, conta com a colaboração dos governos e das direções
do movimento de massas.
Novamente, qual é a atual política do imperialismo?
Em resumo, como resultado da derrota do projeto Bush e da guerra
contra o terror, Obama representou uma mudança na tática política com que
o imperialismo norte-americano enfrenta os problemas da situação mundial.
Passou da “unilateralidade agressiva” de Bush à “multilateralidade consensuada” representada por Obama. Isto é, uma ampliação da ação diplomática e dos
âmbitos de tomada de decisões para “convencer” e conseguir o “consenso”
para as políticas a serviço do imperialismo que, nestes momentos, simplesmente não podem se impor pela força.
Uma mudança que determina agora um novo equilíbrio entre as negociações e a política militar ou de ameaças para alcançar os objetivos imperialistas.
O centro passou a ser a “cenoura” (as negociações) enquanto o “garrote”
é empregado como um fator auxiliar e coadjuvante. Por isso, os âmbitos
diplomáticos, de negociação e de consenso recebem agora uma importância
muito maior. Este é o verdadeiro segredo do “pacifismo” de Obama.
Para todo os que lutamos contra o imperialismo é muito importante compreender estas mudanças porque, como dissemos, para mudar a realidade é
necessário analisá-la tal qual é. E, o que é mais importante, porque a visão dos
autores do trabalho que estudamos nos desarma para combater a verdadeira
política de Obama e os profundos riscos que esta política “enganosamente
pacifista” implica para os trabalhadores e os povos do mundo. Em Honduras,
com o Acordo de Guaymuras, que roubou do povo hondurenho a possibilidade de derrotar os golpistas com sua luta, acabamos de ver um exemplo.
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33
Dossiê
Oriente Médio
Um novo e imenso
Vietna~ para o
imperialismo
Azerbaijão
Uzbequistão
Turquia
Líbano
Jordânia
Turcomenistão
Síria
Iraque
Irã
Afeganistão
Israel
Paquistão
bernardo cerdeira
ediTor de MarxisMo vivo
Arábia
Saudita
O Dossiê deste número de Marxismo Vivo está dedicado a uma vasta
região do planeta que é o Oriente Médio, que vive uma aguda situação da
luta de classes. O tema não poderia ser mais atual, e abordá-lo exige explicar
alguns dos principais aspectos da situação mundial: a derrota da ofensiva
Bush, a política atual do imperialismo, o governo Obama, o fundamentalismo
islâmico e outros.
Em 2009, ano pródigo em datas históricas do calendário revolucionário
(60 anos da revolução chinesa, 50 anos da revolução cubana e 30 anos da
nicaraguense), também se comemoram trinta anos da revolução iraniana que
em janeiro de 1979 derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Em dezembro
daquele mesmo ano, pouco depois da revolução, a União Soviética invadiu
o Afeganistão. Em setembro de 1980, o Iraque, armado e incentivado pelos
Estados Unidos, declarou guerra ao Irã. Estes três acontecimentos, estreitamente ligados entre si, continuam a marcar a situação no Oriente Médio
até os dias de hoje.
A situação política e militar da região é o centro dos problemas e das
preocupações atuais do imperialismo americano no mundo. Os Estados
Unidos continuam lutando duas guerras ao mesmo tempo. No Afeganistão,
o governo de Barack Obama vive o dilema de incrementar a escalada militar,
ou correr o risco de perder a guerra para o Talibã. Enquanto isso, a situação
militar piora a cada dia.
Além disso, a guerra atravessou a fronteira do Afeganistão com o Paquistão, quando o Talibã estendeu sua organização para aquele país. Não
há dúvidas de que a guerra vem provocando a desestabilização da situação
interna do Paquistão.
Por outro lado, a guerra do Iraque não terminou. Os recentes atentados
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
ao ministério da Justiça em plena Zona Verde, a mais protegida da capital,
mataram mais de 100 pessoas e são uma amostra viva da instabilidade do país.
Os soldados norte-americanos continuam ocupando o Iraque e, mesmo que
não patrulhem mais as cidades e que uma boa parte se retire em 2010, deixarão
como “garantia” 50 mil soldados aquartelados em grandes bases militares.
E isso só para falar nos três países polarizados pela guerra. Mas a luta
de classes na região não para por aí. A questão palestina também não sai de
cena. Israel, um agente direto do imperialismo americano, atacou a Faixa de
Gaza em 2008 e o Líbano em 2006, de onde saiu derrotado pelo Hezbollah.
Por outro lado, relacionado com a situação em todos estes países, intensifica-se dia a dia a pressão americana contra o Irã, um país relativamente independente das ordens de Washington e que ameaça produzir armas nucleares.
A importância do Oriente Médio para o imperialismo
A região que chamamos de Oriente Médio na verdade é tão vasta que se
compõe de diferentes sub-regiões que vão desde o Norte da África e a margem leste do Mediterrâneo até a fronteira do Paquistão com a Índia, em seu
extremo oeste e a Ásia Central até a fronteira da União Soviética. O próprio
imperialismo cunhou a expressão Grande Oriente Médio, hoje utilizada pelo
G-8 e que abarca toda esta extensão.
Podemos dividir o Oriente Médio em 4 regiões. O Magreb (norte da
África): Egito, Líbia, Sudão, Tunísia, Argélia, Marrocos e Saara Ocidental. O
chamado Crescente Fértil (ou Oriente Próximo, se a Turquia for considerada)
composto por Síria, Líbano, Iraque, Palestina, Israel e Jordânia. A Península
Arábica: Arábia Saudita, Iêmen, Bahrein, Omã, Qatar, Emirados Árabes
Unidos, Kuwait. O Oriente Médio propriamente dito: Irã, Afeganistão, Paquistão e as antigas Repúblicas do Sul da ex-URSS, hoje países independentes:
Turcomenistão, Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Quirquistão.
Historicamente os países do Oriente Médio foram parte do império
do Islã e mantêm influências culturais e religiosas entre si, sendo em sua
maioria países islâmicos. Politicamente, a região tem sido o centro das preocupações, das agressões militares e também de derrotas do imperialismo
norte-americano pelo menos nestas últimas três décadas.
A atual prioridade do Oriente Médio na ação contrarrevolucionária do
imperialismo é evidente tanto em termos militares quanto políticos e diplomáticos. Esta é a parte do planeta que concentra o maior deslocamento de
tropas norte americanas, aproximadamente 50% dos cerca de 350 mil soldados norte-americanos em atividade no estrangeiro. Por fim, a prioridade
diplomática fica clara com o recente número de enviados especiais do governo
Obama e da secretária de Estado Hillary Clinton à região.
A preocupação do imperialismo americano não é casual. Esta é a parte do
mundo que concentra 60% das reservas conhecidas do petróleo do planeta.
O imperialismo não só necessita controlar o acesso e a garantia de saque do
petróleo, como também a possibilidade de transportá-lo em forma segura
até os locais de refino e consumo.
Além disso, esta é uma região estratégica que tem fronteiras e laços étnicos
e culturais com três dos maiores países do mundo. Calcula-se que existam
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
entre 15 a 20 milhões de muçulmanos dentro das atuais fronteiras da Rússia,
sem contar os laços econômicos e culturais com os países da Ásia Central
que faziam parte da ex-URSS. Na China - que tem cerca de 105 milhões de
habitantes pertencentes a 56 etnias minoritárias oprimidas pelo governo da
maioria han - existem várias nacionalidades muçulmanas como os cazaques,
uigures e mongóis. E, finalmente, a Índia tem uma “minoria” de 165 milhões
de muçulmanos e uma disputa de décadas com o Paquistão pelo controle
da Caxemira, região de maioria muçulmana reivindicada pelo país vizinho.
Mas o problema fundamental para o imperialismo é que, como fruto destes
problemas estruturais e também da exploração e agressões imperialistas, esta
região tem sido o centro da resistência revolucionária das massas, o centro
da luta de classes no mundo, pelo menos nas últimas três décadas.
Uma guerra permanente do imperialismo contra o Islã
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial – quando se tornou a potência
dominante no mundo, superando a hegemonia dos imperialismos inglês e
francês no Oriente Médio – os Estados Unidos vêm travando uma guerra
permanente contra o mundo islâmico para saquear suas riquezas, principalmente o petróleo.
Um marco nesta guerra foi a criação do Estado de Israel em 1948, um
enclave de população européia e um verdadeiro “porta-aviões” ancorado no
Oriente Médio, armado e financiado pelos EUA. Sua função é a de reprimir
a resistência dos povos e atacar e invadir países islâmicos que tentem rebelarse contra a exploração e romper o jugo do imperialismo. A maior de suas
agressões é, sem dúvida, a expulsão dos palestinos de suas terras e a ocupação,
colonização e selvagem repressão sobre os territórios de Gaza e Cisjordânia
ocupados desde 1967 e hoje transformados em verdadeiros guetos para mais
de 3,5 milhões de habitantes.
A criação do Estado de Israel significou uma grande derrota para os povos
islâmicos. Não é casual que os árabes refiram-se a este acontecimento como
a Naqba, ou a Desgraça. No entanto, contraditoriamente, as monstruosas
ações e a própria existência do Estado de Israel, geraram uma resistência permanente dos povos árabes. Esta luta foi encabeçada, nas décadas de 50 e 60,
pelo nacionalismo pan-árabe (cujo máximo expoente foi Nasser, presidente
do Egito) que dominou a maioria dos países da região, principalmente Síria,
Iraque, Líbia e Argélia.
Mas o nacionalismo pan-árabe entrou em decadência depois de sucessivas derrotas e capitulações diante de Israel e, a partir do fim dos anos 60
até meados dos anos 80, uma variante deste nacionalismo, representado pela
OLP de Yasser Arafat e uma guerrilha palestina muito progressista, tornouse a maior referência da resistência anti-imperialista. Atualmente, a maior
expressão desta luta contra Israel são o Hezbollah no Líbano e o Hamas nos
territórios palestinos ocupados.
Um marco: a Revolução de 1979 no Irã
Esta luta de resistência dos povos islâmicos teve um marco em 1979: a
revolução iraniana que derrubou a sangrenta ditadura do Xá Reza Pahlevi.
A revolução desencadeou uma série de novas forças na região. Por um lado,
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Dossiê
enfraqueceu o imperialismo americano e seu agente Israel, por outro, criou
um país relativamente independente que hoje influencia vários outros, do
Iraque, através dos xiitas, até o Líbano, por meio do Hezbollah e Gaza, onde
atua o Hamas.
No entanto, a revolução iraniana foi marcada desde o seu início por uma
contradição: uma direção nacionalista burguesa, mas de ideologia religiosa
islâmica, composta por uma burocracia de clérigos muçulmanos, os aiatolás.
Esta burocracia assumiu o poder e transformou o Irã numa república
islâmica, que apesar de manter uma relativa independência do imperialismo,
assumia características extremamente reacionárias e repressivas em relação
aos trabalhadores, às mulheres e às minorias nacionais. Em pouco tempo,
o regime dos aiatolás reprimiu o movimento de massas no Irã e prendeu e
assassinou milhares de ativistas operários e oposicionistas em geral.
A revolução iraniana marcou a ascensão de um novo movimento nacionalista no Oriente Médio: o fundamentalismo islâmico. Este se aproveitou da
decadência do velho nacionalismo laico pan-árabe de Nasser, da OLP de Yasser
Arafat e do partido Baas que governava o Iraque e governa até hoje a Síria.
No entanto, a força da revolução iraniana e a relativa independência do
país provocaram a reação imediata do imperialismo americano que armou,
financiou e estimulou o Iraque governado por Sadam Hussein a atacar o Irã,
levando a uma guerra de oito anos de duração entre os dois países.
A invasão soviética do Afeganistão
Entre suas muitas repercussões, a revolução iraniana também foi um dos
fatores fundamentais para provocar a invasão do Afeganistão pela ex-União
Soviética. A burocracia stalinista, que governava este último país, apavorou-se
com a possibilidade de que a revolução islâmica se estendesse ao Afeganistão
e daí às repúblicas da Ásia Central, que naquela época faziam parte da URSS,
constituindo sua fronteira sul. Este foi um dos motivos fundamentais da
invasão da URSS ao Afeganistão em fins de 1979, colocando um governo
títere à frente do país.
O exército soviético teve de enfrentar a resistência armada dos mujaheddines, os chamados “guerreiros da liberdade”, que começaram como uma
guerrilha que lutava contra o invasor, mas depois passaram a ser armados e
controlados pelo imperialismo americano. Milhares de combatentes muçulmanos de vários países foram combater no Afeganistão, entre eles Osama Bin
Laden. Outros atores principais da guerrilha foram os “senhores da guerra”,
oligarcas que dirigem as principais nacionalidades do país.
A URSS foi finalmente derrotada e retirou-se do país em 1989. A guerrilha
islâmica tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram
a se enfrentar e o país mergulhou na guerra civil.
O Afeganistão foi chamado com razão de “o Vietnã da URSS”, pela
semelhança com a longa guerra e a derrota militar e política dos Estados
Unidos no Extremo Oriente. Certamente, o desgaste da guerra e a derrota
do exército soviético ajudaram a enfraquecer a União Soviética e aceleraram
a decisão da burocracia de restaurar o capitalismo no país.
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Dossiê
A ofensiva imperialista e a ocupação militar do Iraque e Afeganistão
Durante os quinze anos que se seguiram à sua derrota militar no Vietnã em
1975, o imperialismo americano tentou retomar a ofensiva contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o mundo. A restauração do capitalismo
na ex-URSS, na China e em todos os ex-estados operários burocráticos abriu
a possibilidade de concretizar esta contraofensiva.
A primeira grande oportunidade apresentou-se no Oriente Médio em
1991com a Guerra do Golfo. Sadam Hussein, que havia atuado como um
agente dos Estados Unidos contra o Irã na guerra Irã-Iraque, invadiu o Kuwait
esperando que a reação do imperialismo não chegasse à guerra. Mas os Estados
Unidos não podiam permitir que a situação saísse de controle, principalmente
por se tratar de um país, o Kuwait, detentor da quarta maior reserva conhecida
de petróleo do mundo. Os EUA organizaram uma coalizão de todos os países
imperialistas, que contou com o apoio da ex-URSS, e derrotaram o Iraque,
iniciando doze anos de bloqueio econômico e militar ao país.
A década de 90 caracterizou-se por uma ofensiva recolonizadora do
imperialismo em todo o mundo, que culminou na tentativa do governo de
George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfel, Paul Wolfewitz e outros de
impor um “século americano” de domínio mundial. A doutrina que dava base a
este projeto fundava-se no suposto direito de intervenção militar dos Estados
Unidos, inclusive de forma preventiva, em qualquer país que representasse
uma “ameaça” aos interesses americanos. Ou seja, o objetivo era impor uma
espécie de regime bonapartista mundial. A oportunidade para executar este
plano surgiu com os atentados de 11 de setembro de 2001, pois deram ao
governo Bush um pretexto para desatar uma “guerra contra o terror”, que
na verdade disfarçava uma “guerra contra os povos”.
As maiores expressões da ofensiva militar de Bush foram as invasões e
ocupações militares do Afeganistão e do Iraque. Em outubro de 2001, usando
como pretexto que o governo do Talibã abrigava Osama Bin Laden, Bush
ordenou a invasão do Afeganistão. Finalmente, em março de 2003, Bush
invadiu o Iraque, acusando o governo de Sadam Hussein de deter armas de
destruição em massa a partir de provas forjadas. Desde então, 128 mil soldados americanos se mantêm no Iraque e 68 mil no Afeganistão (de um total
de cerca de 100 mil soldados da OTAN).
As invasões do Afeganistão e, principalmente, do Iraque representaram
uma tremenda derrota para os povos islâmicos. Hoje em dia, são países
ocupados por tropas dos Estados Unidos e seus governos não passam de
fantoches manipulados por Washington, que trata de encobri-los através
de processos eleitorais farsescos. Os dois países retrocederam à situação de
verdadeiras colônias. Além disso, a ofensiva de Bush possibilitou a presença
de tropas americanas na região durante um longo período.
A reação das massas e a derrota da ofensiva militar de Bush
Contraditoriamente, se, por um lado, as ocupações do Iraque e do Afeganistão constituíram uma grande derrota, por outro, atearam fogo na região
e hoje constituem o maior pesadelo do imperialismo americano.
As invasões desencadearam guerras de libertação nacional em ambos os
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Dossiê
países. No Iraque, a resistência encabeçada pela resistência sunita levou os
Estados Unidos a sofrerem pesadas perdas que chegaram ao auge em 2006.
A longa ocupação militar tem sido um fator de crise porque as Forças
Armadas dos Estados Unidos se meteram em um “atoleiro” do qual não
sabem como sair. Não só perdem homens e dinheiro, como também não
têm perspectivas de ganhar a guerra nem podem se retirar. Desta maneira,
esgotam-se soldados que são obrigados a servir no front por até três anos, já
que o contingente do exército profissional dos EUA, que já não emprega o
recrutamento obrigatório, é limitado.
Os Estados Unidos foram obrigados, então, a fazer concessões às organizações xiitas, entregando o governo do país a uma coalizão entre estes
e os principais partidos curdos. Hoje o presidente do país é curdo, Jamal
Talabani da União Patriótica do Kurdistão, e o primeiro ministro é xiita,
Nuri Al-Maliki, representante do Partido Islâmico Dawa, da coalizãoxiita
Aliança Popular Iraquiana.
Mas, a principal concessão do governo americano que permitiu uma trégua
nos combates e uma “estabilidade” relativa no país, foi feita à resistência sunita.
O imperialismo foi obrigado a pagar somas que se calculam em 60 milhões de
dólares ao mês para que as milícias sunitas não ataquem as tropas americanas.
Mesmo assim, esta política só funcionou sob a perspectiva de que os
Estados Unidos marcassem a data para a retirada do Iraque. Esta foi a promessa de Obama, ainda em sua campanha eleitoral, assumindo na prática uma
derrota na guerra do Iraque.
Depois de assumir, Obama ordenou que as tropas norte-americanas se
recolhessem às suas bases, não patrulhassem mais as cidades e marcou para
agosto de 2010 a retirada definitiva do país. Mas, a instabilidade atual do país,
que pode se complicar à medida que se aproxime a data da retirada, ameaça
o cumprimento deste cronograma e o próprio compromisso de Obama. A
hipótese de prolongar a permanência da maioria do contingente militar é,
sem dúvida um cenário de crise para o imperialismo.
Mas o problema não termina aí: a situação do Afeganistão também virou
um atoleiro para os Estados Unidos. O Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma guerra de guerrilhas contra as tropas de ocupação. Este país
é hoje é o centro das dores de cabeça de Obama e do Pentágono. E, como
dissemos ao princípio, a guerra agora se estendeu ao país vizinho, o Paquistão.
Por último, mas não menos importante, a ofensiva bonapartista do governo Bush potencializou o problema das nacionalidades no Oriente Médio,
muitos deles provocados artificialmente, desde o domínio britânico.
Povos oprimidos e divididos rebelam-se e as guerras atingem diferentes
etnias. Um exemplo é o dos pashtuns no Paquistão, divididos artificialmente
do resto de seu povo no Afeganistão. Por outro lado, há vasos comunicantes
dos povos que vivem no Afeganistão e nas repúblicas da Ásia central com
as minorias muçulmanas na China: uzbeques, cazaques, uigures e quirguizes.
A conclusão é clara: não só fracassou o projeto do “século americano” e
da grande ofensiva bonapartista de George W. Bush e seus “neocons”, como
as invasões e ocupações militares incendiaram a região e o atoleiro das guerras
enfraqueceu o imperialismo. Este é o motivo das novas táticas de negociação
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
e das indecisões, ou seja, da debilidade do governo Obama.
Uma situação crítica: ficar não é recomendável, mas não é possível sair
O imperialismo americano enfrenta uma situação crítica na maior parte
dos países deste Grande Oriente Médio. A resistência das massas, as guerras
e os problemas nacionais não resolvidos geraram uma relação estreita e uma
combinação entre processos de distintos países.
O imperialismo enfrenta duas guerras simultâneas. Não resolveu ainda a
situação do Iraque e ainda não se retirou. E a guerra do Afeganistão está no
seu ponto mais alto desde 2001.
Esta situação gera um impasse para o governo de Barack Obama. A
prudência recomenda sair o mais rápido possível, antes que a situação destas
guerras impopulares piore e gere uma crise interna nos Estados Unidos. No
entanto, a própria possibilidade de uma derrota vergonhosa, que provoque
uma situação de instabilidade em dois ou três países do Oriente Médio, não
só impede o imperialismo de retirar-se totalmente como até pode fazer com
que aumente o número de suas tropas no Afeganistão.
Neste Dossiê abordamos três países que nos parecem hoje os centros da
luta de classes na região. O problema central para o imperialismo é a guerra
do Afeganistão. Obama encontra-se em uma encruzilhada: precisa encontrar
uma saída negociada com o Talibã, mas não pode negociar em uma posição
de fraqueza como a atual. Por outro lado, para fortalecer sua posição e não
perder a guerra precisaria de muito mais soldados. Mas uma escalada militar
teria sérias repercussões internas nos Estados Unidos onde a guerra já é
tremendamente impopular.
Por outro lado, a guerra atravessou a fronteira com o Paquistão e está
desestabilizando o país vizinho. A guerra está em curso num país tremendamente instável, com um governo débil e em crise.
Por fim, um país chave para todo o Oriente Médio é o Irã, o mais poderoso econômica e militarmente da região. Sua influência política estende-se
a países fundamentais do Oriente Médio tais como o Iraque (onde a maioria
do governo baseado em partidos xiitas tem ligações com o Irã); Líbano,
onde apóia o também xiita Hezbollah e inclusive na Palestina, onde apóia o
movimento sunita Hamas.
Os planos de “paz” de Obama
A nova tática do governo Obama para toda a região, e para o mundo é
tentar frear e depois fazer retroceder situações explosivas através de negociações e planos de paz. Em especial, o governo dos EUA tenta um acordo
com o regime dos aiatolás para aceitar o desenvolvimento da indústria nuclear
do país, mas impondo um controle internacional que não permita que este
desenvolva armas nucleares. A outra cara desta negociação tem como objetivo
obter a colaboração do regime iraniano para ajudar a estabilizar a região, por
exemplo, pressionando o Hamas para negociar com Israel um acordo de paz
na Palestina e o Hezbollah para chegar a um acordo que estabilize o Líbano.
A atual política dos EUA, não é a de invasão do Irã tal como se planejou
na época de George W. Bush e Dick Cheney. Ao contrário, o imperialismo
tenta atrair a burguesia e o governo iranianos para que estes cumpram o papel
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
de estabilizador da região. Tenta o mesmo com o Hezbollah. E tem conseguido avanços do ponto de vista imperialista. O governo iraniano aceitou
negociar o beneficiamento do seu urânio na Rússia, sob controle da AIEA.
E o Hezbollah já faz parte do governo do Líbano há um ano e tem sido um
fator de estabilidade para a burguesia do país.
No entanto, o grande problema do imperialismo é que a política de negociação e acordos de paz está cruzada pela guerra no Afeganistão, que por
sua vez influencia a situação no Paquistão. E aí reside o dilema do governo
Obama. Não aumentar qualitativamente o número de suas tropas significa
arriscar a ser derrotado militarmente e não ter condições de negociar nada.
Mas, se aceitar dobrar o número de soldados, como pedem seus generais,
envolver-se-á ainda mais no conflito e provavelmente sofrerá um aumento
da oposição à guerra nos Estados Unidos.
Um envolvimento mais longo do que já foi até agora (oito anos) e numa
escala tão ampla ameaça transformar-se num novo e enorme Vietnã do Século
XXI para os EUA. É, portanto, no terreno político, social e militar da guerra
que se resolverá a luta de classes na região.
As guerras e revoluções no Oriente Médio exigem uma direção
revolucionária
As massas de trabalhadores e camponeses dos diferentes países do Oriente
Médio – que há décadas enfrentam heroicamente o imperialismo americano e
seus agentes, com enormes sacrifícios contados em milhões de vidas humanas
e enormes riquezas naturais saqueadas – vivem um drama. Durante várias
décadas, sucessivas direções nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas
mostraram-se incapazes de enfrentar o imperialismo até o fim e terminaram
por capitular a ele. A atual direção colaboracionista de Abbas e da OLP é a
mais grotesca das caricaturas destas lideranças oportunistas.
A situação atual não é melhor. As direções islâmicas, atualmente à frente
dos mais importantes movimentos de resistência, já deram mostras de que
são uma direção burguesa que não hesita em reprimir os trabalhadores e seus
aliados populares, inclusive seus setores mais explorados, como as mulheres e
as nacionalidades oprimidas. E também, como toda classe privilegiada, podem
capitular ao imperialismo a qualquer momento.
Por isso, mais do que nunca, o problema da independência da classe operária diante das organizações burguesas e pequeno-burguesas é fundamental
para que esta assuma a vanguarda da luta para expulsar o imperialismo do
Oriente Médio.
E, para orientar a classe operária neste combate e dirigi-lo rumo a uma
Revolução Socialista, que acabe com a exploração dos trabalhadores e a
opressão dos povos, é imprescindível construir uma direção revolucionária
socialista em toda a região. Este é um grande desafio para os revolucionários
de todo o mundo.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
~
~
Ira,
1979: uma revolucao
´
interrompida
Marcos Margarido
Partido Socialista
dos
Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil
O início da década de 1970 conheceu a primeira recessão
simultânea e generalizada nos países imperialistas no póssegunda guerra. Os 20 anos do boom da economia, iniciados
por volta de 1950, haviam chegado ao fim. O ano de 1975 foi marcado pela
queda assombrosa do PIB dos Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e
Inglaterra. A produção industrial no segundo trimestre de 1975 caiu 14% nos
EUA, 20% no Japão e 10% na Inglaterra. Depois de duas décadas de “pleno
emprego”, chegou-se a um total oficial de 17 milhões de desempregados no
conjunto dos países imperialistas, além de uma alta da inflação que atingiu
níveis insuportáveis em todos os países do mundo.
Na década de 70, os EUA sofreram sua primeira derrota militar clara no
Vietnam. A revolução portuguesa de abril de 1974 abriu um processo que além
de derrotar a ditadura salazarista possibilitou a libertação de suas colônias da
África e incendiou o continente negro. No Oriente Médio, sucediam-se os
enfrentamentos com Israel, em que os países arabes foram derrotados, como
na guerra do Yom Kipur, enquanto a guerrilha palestina seguia resistindo e
o Líbano ardia em plena guerra civil. A década assistiu ainda ao seu final as
revoluções nicaraguense e iraniana.
Neste cenário, os países árabes membros da OPEP resolvem quadruplicar o preço do petróleo em 1973, como retaliação à derrota na guerra do
Yom Kipur para Israel, gerando uma renda extra aos países exportadores de
petróleo, os petrodólares, estimados em US$ 180 bilhões em 19801.
O Irã, assim como os demais países produtores de petróleo, inseria-se
na divisão mundial do trabalho como exportador de matérias primas - o petróleo - e com um desenvolvimento capitalista totalmente subordinado aos
interesses imperialistas. A renda do petróleo aumenta a cobiça imperialista e
os conflitos interburgueses pela sua posse, gerando o aumento da miséria da
população paralelamente à acumulação capitalista. No Irã, essa combinação
atingiu níveis explosivos, que passamos a analisar.
O rei dos reis
Mohammad Reza Pahlevi foi o segundo Xá da dinastia Pahlevi. Foi empossado após a ocupação do país pelos exércitos da Inglaterra e da União
Soviética em 1941, em substituição a seu pai, Reza Khan, soldado do exército
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1979: manifestação
contra o Xá
1 Os valores em dólares são nominais,
relativos ao ano mencionado. Para se obter
os valores equivalentes em 2009, deve-se
multiplicar o valor
dado por 4 se o ano
for 1975, 3,3 se for
1978 e 2,6 para 1980.
2 MANDEL, E. A
crise do capital. São
Paulo: Ed. Ensaio,
1990, p. 39
Dossiê
iraniano, que também havia subido ao poder através de um golpe contra o
reinado da dinastia Oajar em 1921.
O início da década de 50 assistia ao crescimento de uma onda nacionalista que varreu o Oriente Médio e desembocou no nasserismo, o movimento
liderado pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que buscava uma independência relativa em relação ao imperialismo, para estabelecer melhores
condições de negociação com ele. No Irã, tal movimento era liderado por
Mohammed Mossadegh, eleito primeiro-ministro em 1951, um mês depois
da nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company pelo parlamento iraniano,
um golpe ao principal imperialismo da região.
Por essa ousadia, os governos imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, através de seus serviços secretos, planejaram a queda de Mossadegh,
conseguida após uma primeira tentativa frustrada, que resultou na queda e exílio do Xá. O general Fazlollah Zahedi foi nomeado primeiro-ministro e Reza
Pahlevi reempossado, selando sua submissão aos desígnios norte-americanos.
Em 1963 institui a Revolução Branca3, com o objetivo de transformar o
Irã na quinta potência mundial e aproximá-lo ao mundo ocidental. A “modernização” buscada pelo Xá seguia a lógica da dominação imperialista de um
país semicolonial, com sua abertura ao capital estrangeiro, ávido pela renda do
petróleo. Cerca de US$ 250 bilhões acumulados pelo Irã entre 1974 e 1980
pela alta do petróleo foram utilizados na importação de bens de capital e de
consumo. Enquanto isso, a burguesia nacional comerciante, conhecida como
burguesia do bazar, era reduzida ao papel de “mendigo” que se alimenta dos
restos do banquete da exploração capitalista.
A expansão industrial do país garantiu a presença maciça de empresas
norte-americanas - cerca de 500 segundo a revista Fortune – e a expansão
das Forças Armadas iranianas, com 475 mil soldados, para a proteção de sua
propriedade. Os Estados Unidos conseguiam, assim, impor seu controle da
região a partir do enclave israelense e do Irã, o único país do mundo muçulmano que reconhecia o Estado de Israel.
A associação com o capital estrangeiro foi levada a cabo por meio do
controle da oposição e do uso da força contra a população. Em 1975 os partidos políticos foram extintos e um regime de partido único, o Partido da
Ressurreição, foi fundado, justificado de maneira clara pelo Xá:
Uma pessoa que não entrar no novo partido político e não acreditar nos
três princípios cardeais tem apenas duas opções. Ou ele é um indivíduo
que pertence a uma organização ilegal ou está ligado ao clandestino
Partido Tudeh, em outras palavras, é um traidor.
Pahlevi dizia que o lugar dos traidores era a prisão ou o exílio, e a Savak,
uma das polícias políticas mais cruéis do mundo, desdobrava-se dia e noite
para identificá-los, prendê-los, torturá-los e executá-los. Estima-se que cem
mil pessoas estavam presas em 1976, mas o regime reconhecia a existência
de “apenas” 3500 presos políticos.
A situação de miséria e desemprego das massas, gerada pela Revolução
Branca, foi agravada pela crise iniciada em 1974. A capitalização do campo
causou o êxodo de milhões de camponeses às cidades onde o desemprego e
3 Revolução branca:
revolução realizada
“por cima”, em oposição às revoluções
populares ou socialistas, consideradas
“vermelhas”.
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Dossiê
a inflação os esperava. Estas sequer possuíam redes de água e esgoto, apesar
das enormes somas obtidas pela renda do petróleo. Os salários dos trabalhadores foram congelados e até um “passaporte interno” para controlá-los foi
instituído. A burguesia do bazar foi prejudicada com o aumento dos impostos. O clero xiita, da religião muçulmana, beneficiava-se politicamente dessa
situação ao capitalizar o descontentamento de amplas camadas da população,
reunidas nas chamadas cidades santas, como Qom, que se transformavam nos
redutos da oposição ao Xá.
A revolução dá seus primeiros passos
As primeiras mobilizações, realizadas pela juventude e intelectuais, ocorreram em 1977, exigindo o respeito à constituição de 1906 ainda em vigor,
a defesa da liberdade de imprensa e da independência do poder Judiciário.
Os protestos seriam intensificados em 1978, quando ocorre o Massacre
de Qom em 9 de janeiro, a cidade santa que se tornaria a morada oficial do
aiatolá Khomeini. A manifestação de 4 mil estudantes e líderes religiosos contra o jornal Ettela’at controlado pelo Xá, que acusava o aiatolá, exilado desde
1963, de ser homossexual, terminou numa repressão brutal com o resultado
de pelo menos 10 mortos. A tentativa de calar as vozes da oposição surtiu
um efeito contrário; em 18 de fevereiro comemorou-se o arba’een - o luto
xiita de 40 dias - com manifestações de massas em todo o país. Em Tabriz, a
população de maioria curda ocupa a cidade sem que os militares locais a reprimissem. Pahlevi foi obrigado a deslocar tropas para executar outro banho de
sangue. Estima-se em cem pessoas mortas e, mais uma vez, as manifestações
alastraram-se, desta vez para Ahwaz, importante centro petrolífero do Irã.
Novas manifestações voltam a ocorrer em Isfahan, onde foi imposta a
lei marcial em 16 de agosto, após os primeiros sinais de fraqueza do regime
ditatorial. O chefe da Savak era substituído por Nasser Moghadam em junho
e o próprio Xá prometia a realização de eleições gerais em 1979. Dez dias
depois o primeiro-ministro é substituído por Jafar Sharif-Emami, que abole
o calendário imperial4 instituído pelo Xá e declara a legalidade de todos os
partidos políticos. Era a primeira vitória democrática das massas, embora o núcleo repressor do regime - as Forças Armadas e a Savak - continuasse intacto.
O imperialismo mantinha seu apoio a Reza Pahlevi. Numa coletiva à
imprensa, o presidente dos EUA, Jimmy Carter, declara que “eu espero que
o Xá mantenha o poder... o Xá tem nosso apoio e também tem nossa confiança” e o diretor da CIA, Stansfield Turner, afirma que “recebi um relatório da
assessoria onde é dito que o Xá vai sobreviver por mais dez anos” no poder.
Morte ao Xá!
O grito de guerra da revolução - Morte ao Xá! - foi escutado pela primeira vez em Tabriz e espalhou-se a todas as manifestações do país. Em 4
de setembro uma manifestação de 4 a 5 milhões é realizada em Teerã para
comemorar o Eid ul-Fitr, o feriado do fim do Ramadã5, e se transforma
num gigantesco protesto político. A lei marcial é decretada em 12 cidades
no dia 8, mas, ainda assim, milhares de pessoas voltam a sair às ruas de Teerã
para reunir-se na Praça Jaleh, onde as tropas reais começam a atirar contra a
multidão, de helicópteros e do solo, assassinando centenas de pessoas6 no
44
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
4 O calendário imperial substituiu o antigo calendário persa,
causando a ira do
clero xiita.
5 Ramadã: nono mês
do calendário islâmico,
onde os muçulmanos
praticam o jejum. É
considerado o mês
em que foi revelado
o Corão.
6 Este número é motivo de muitas controvérsias, pois na
época o clero xiita
falava de dezenas de
milhares de mortos.
Emad al-Din Baghi,
historiador da Fundação dos Mártires
do Irã, estabeleceu
o número de 88 em
suas pesquisas. Michel Foulcaut, testemunha ocular, falou
em 2 a 3 mil mortos. O número exato
nunca será conhecido, mas as imagens
do massacre indicam
a possibilidade de
centenas de mortos.
Dossiê
massacre conhecido como “sexta-feira negra”.
No dia seguinte, Khomeini, do exílio, chama a realização de uma greve
geral. Além das mobilizações populares, os métodos e reivindicações típicos
da classe operária passam a ser incluídos na agenda revolucionária. As greves
começam a pipocar envolvendo milhares de operários e culminam numa greve
geral dos petroleiros no fim do mês que, por sua vez, incendiou a população
em manifestações e rebeliões de apoio por todo o país.
Durante o mês de outubro as greves se sucedem. São bancários, funcionários públicos, mineiros, trabalhadores têxteis, dos correios e telégrafos,
transportes e rádio e televisão. Os jornalistas param no dia 11 de outubro.
Os bancários paralisam o sistema financeiro do país, com a greve do Banco
Central, seguida do incêndio de cerca de 400 agências bancárias pelas massas.
Os bancários revelaram que 178 pessoas ligadas ao Xá haviam transferido um
bilhão de libras ao exterior. Mas não só seus amigos. Segundo David Rockfeller, presidente do Chase Manhattan Bank, Pahlevi possuía depósitos de US$
2 bilhões, cuja retirada poderia levar o sistema bancário norte-americano à
bancarrota.
Finalmente, depois de mobilizações permanentes enfrentando a repressão
armada e a prisão de líderes, uma greve geral de petroleiros iniciada em 21 de
outubro sela o destino do Xá. Negam-se a produzir petróleo sob a ditadura.
O primeiro-ministro Sharif-Emami renuncia em 4 de novembro e o Xá faz
um pronunciamento na TV dizendo que “ouvi a voz de sua revolução ...
Como Xá do Irã e como cidadão iraniano, eu devo apoiar sua revolução”.
Sucedem-se a nomeação do general Reza Azhari para primeiro-ministro que,
no entanto, impõe a lei marcial.
No início de dezembro, cerca de 9 milhões, num país com 35 milhões de
habitantes, saem às ruas exigindo a “morte ao Xá”. Uma declaração de 17
pontos é apresentada com a exigência de “independência, liberdade, república
islâmica” e a afirmação de que o aiatolá Khomeini é o líder dos iranianos. Os
comandantes não conseguem ordenar a repressão e os manifestantes sobem
nos tanques e caminhões para se solidarizar com os soldados, entregandolhes flores.
A última jogada do Xá foi a indicação de um antigo líder oposicionista
para primeiro-ministro, Shapour Bakhtiar, em 29 de dezembro. Ele tentaria
uma transição pacífica ao novo regime em acordo com Mehdi Bazargan,
futuro chefe do governo revolucionário provisório de Khomeini. “O roteiro
da transição seria: a partida do Xá, a instauração de um Conselho da Coroa,
convocação de eleições gerais e livres, instalação de uma Assembléia Constituinte e, por fim, a transferência do poder”7. Mas o retorno de Khomeini
em 1º de fevereiro de 1979 e uma gigantesca manifestação de mais de um
milhão de pessoas nas ruas de Teerã em 8 de fevereiro exigindo a renúncia de
Bahtiar impede qualquer acordo. Em 11 de fevereiro de 1979 completa-se a
dissolução da monarquia, com a ocupação de Teerã por forças guerrilheiras,
a população armada e tropas rebeldes. Reza Pahlevi não presenciou a queda
de seu próprio império, pois em 16 de janeiro de 1979 havia embarcado num
Boeing pilotado por ele próprio rumo ao Kuwait, primeiro, e aos Estados
Unidos, definitivamente, para “tirar férias e tratar de uma doença”, onde
7 COGGIOLA, O.
O Irã no centro do mundo. www.blog.controversia.com.br, acessado em 20/10/2009
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45
Dossiê
morreria em 1981.
Uma revolução operária
A revolução do Irã foi marcada por grandes manifestações, convocadas
pela hierarquia xiita e organizações sindicais e políticas de várias tendências.
O protesto de dezembro, com 9 milhões de pessoas nas ruas, é considerado
a maior concentração popular da história das revoluções.
Mas é necessário olhar para a ação operária para entender a dimensão dessa
grandiosa revolução. Nos últimos 15 anos da ditadura, com a “modernização”, uma classe operária poderosa seria formada a partir dos investimentos
imperialistas, enquanto a burguesia nacional perdia sua força relativa.
Havia, em 1978, dois milhões de operários industriais, além de 750 mil
trabalhadores nos setores de transportes e outros serviços, concentrados
em bairros da periferia das grandes cidades. A maioria das empresas era de
pequeno porte, com 35 a 50 empregados, ao lado de fábricas gigantes que
dominavam a cena, principalmente do setor petroquímico, automobilístico e
da construção civil, algumas delas com dezenas de milhares de trabalhadores.
Pode-se fazer um paralelo com a Rússia na revolução de 1917, que possuía
uma classe operária de 4 milhões para 150 milhões de habitantes, enquanto
no Irã havia quase o mesmo número de operários para 35 milhões.
Foi este contingente que marcou o fim do reinado do Xá, ao paralisar a
economia do país com suas greves, principalmente da categoria petroleira. É
como afirmava uma declaração da Ala Militante dos Trabalhadores de Indústrias
Petrolíferas do Irã de 5 de junho de 1979:
Os trabalhadores da indústria petrolífera foram os que derrubaram o
regime de 2500 anos de monarquia e despotismo. Quando sua heróica
greve deteve o fluxo do petróleo, cortaram a veia jugular da monarquia.
E ao romper a barreira representada pela monarquia, abriram as portas
à liberdade e à abundância para uma sociedade atrasada como a nossa.
As esperanças numa nova liberdade eram enormes, e as massas começaram a exercê-la com a constituição de comitês revolucionários, os shoras.
Foram criados para ocuparem-se da distribuição de alimento e combustível
à população, durante a greve geral que decretou a queda do Xá, e posteriormente adquiriram um caráter militar, prendendo membros do antigo regime
e executando os agentes da odiada Savak. Espalharam-se por todas as cidades
do país e na capital, Teerã, chegaram a existir 14 grandes comitês e outros
1500 de menor alcance.
Após a queda do Xá, multiplicaram-se e se desenvolveram de forma independente em relação à burguesia, constituindo-se em embriões de duplo
poder. O jornal New York Times de 24 de fevereiro de 1979 publicava uma
matéria de seu enviado especial, onde se podia ler:
Além dessas autoridades centrais há grupos que têm boas conexões
e podem conseguir coisas, como os aiatolás e os mulás. Finalmente,
quase todos os ministérios, bancos, escritórios ou fábricas têm um
comitê de trabalhadores pelos quais todas as ordens devem passar para
ter alguma chance de aprovação. O membro do gabinete do primeiro46
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
ministro, Abbas Amir Entezam, reclamou na última quarta-feira que
“apesar do comando do Aiatolá, nenhuma das grandes indústrias estão operando porque os operários gastam todo seu tempo realizando
reuniões políticas”.
Tais reuniões tinham como objetivo organizar a produção sob o controle
dos trabalhadores, a conquista de reivindicações econômicas, e a construção
de sindicatos. Segundo um jornal da época, “os petroleiros ... formaram recentemente uma organização nacional, o Sindicato Nacional dos Petroleiros.
Estão reivindicando jornada semanal imediata de 42 horas e a abertura dos
livros de contabilidade das empresas petrolíferas. Se o governo [de Khomeini]
não responder em três dias, entrarão em greve”.
A burguesia e a hierarquia xiita desejavam a normalização imediata do
país e o fim dos comitês revolucionários, mas as condições políticas lhes eram
desfavoráveis. Mehdi Barzagan, o primeiro-ministro indicado por Khomeini,
reclamava que os comitês estavam se constituindo num “poder paralelo ao
meu próprio governo provisório”.
Ideologia e realidade
O fato de a revolução iraniana ter sido dirigida por líderes religiosos, como
o aiatolá Khomeini, levou os propagandistas do imperialismo a afirmar que sua
causa fundamental foi religiosa, com muçulmanos fanáticos que repudiavam
a modernização ocidental e desejavam retornar à idade média para construir
uma República Islâmica, submetida às leis do Corão. Seria, em essência, uma
revolução reacionária.
É verdade que as medidas de ampliação dos direitos da mulher adotadas
pelo Xá, como a permissão para frequentar a universidade, o direito ao voto
e ao divórcio8, sofreram a oposição do reacionário clero xiita. É verdade,
também, que essa a propaganda religiosa era difundida a todo o mundo por
Khomeini desde Paris, seu local de moradia desde 6 de outubro de 1978.
Porém, como disse Marx, “cada época acredita piamente no que a época
em questão diz de si própria e nas ilusões que cria sobre si própria”9, e isso
vale perfeitamente para os ideólogos da República Islâmica. Mas é necessário
fazer a distinção entre o que cada um pensa ser e o que realmente é. Vejamos:
A República Islâmica defendida por Khomeini tinha duas instituições
principais: os poderes executivo e judiciário. Estas instituições teriam a obrigação fundamental de aplicar e defender as leis divinas, escritas no Corão. O
sistema judiciário seria composto por pessoas com conhecimento profundo
destas leis, o clero xiita. E “no alto do poder temporal encontra-se o imã,
em sua função de intérprete supremo das leis divinas, de guia espiritual e de
coordenador dos aparelhos judiciário e executivo”10. Khomeini seria confirmado imã após a aprovação da constituição islâmica no plebiscito de 1º de
abril de 1979. Para conhecermos o significado concreto de sua investidura,
basta remover o manto religioso que encobre a constituição para verificar
sua condição de Bonaparte11, com a missão de reconstruir o Estado burguês.
Da mesma forma, a burguesia nacional iraniana não entrou em choque
com o imperialismo para defender uma hipotética superioridade do islã sobre o
cristianismo ocidental, mas para tomar posse da renda do petróleo. Tratava-se
8 A revogação do
uso do chador já havia sido adotada por
Reza Khan, pai de
Pahlevi.
9 MARX, K., ENGELS, F. Feuerbach,
a oposição entre as concepções materialista e
idealista. Capítulo 1
de A ideologia alemã
Lisboa: Ed. Estampa,
1975, p. 72.
10 Declaração de
Khomeini em Paris.
11Bonapar tismo:
regime de caráter
ditatorial, apoiado
diretamente nas Forças Armadas e executado pela burocracia
estatal. Seu governo
“da ordem” apela
sempre a um “árbitro
inapelável”, capaz
de arbitrar entre os
distintos setores e
classes sociais, com
o objetivo de derrotar o movimento
operário e estabilizar
o Estado burguês.
Porém, o governo
Khomeini nos primeiros meses da revolução, quando os
Comitês Revolucionários exerciam um
duplo poder, pode
ser caracterizado
como kerensquista.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
47
Dossiê
de uma burguesia frágil de conjunto, que perdera força perante o movimento
de massas com a capitulação do nasserismo ao imperialismo na década de 60 e
via nascer “uma nova corrente de massas, que organizava camadas inteiras da
pequena burguesia e setores desclassificados”12, através de uma rede de 180
mil mulás que controlavam o movimento através de uma ideologia religiosa.
Sem condições de impedir a revolução e temendo muito mais a insurreição
operária do que a dominação imperialista, a burguesia volta-se ao islamismo,
“que rechaça simetricamente o imperialismo e a emancipação do proletariado”13, para derrotar o processo revolucionário.
Por isso, assim que Khomeini assumiu o poder, a indústria petrolífera foi
nacionalizada, bem como todo ramo energético e bancário. As propriedades
do Xá foram expropriadas e o comércio exterior ficou sob controle estatal.
São políticas muito mais próprias de uma burguesia nacional em luta contra o
imperialismo para manter sua parte na mais-valia extraída e sob o peso de um
processo revolucionário gigantesco, do que de um anticapitalismo reacionário
ávido por um retorno à época feudal.
A contrarrevolução
A queda do Xá causou a liberação das forças revolucionárias da população. Os shoras surgiam em todas as partes, revelando a força do movimento
operário. No campo eram criadas organizações semelhantes para a ocupação
das terras. As organizações de esquerda saiam da clandestinidade e publicavam
inúmeros jornais, enquanto as minorias nacionais de língua árabe, turcomana
e curda exigiam autonomia em suas regiões.
A burguesia dividia-se, com o surgimento de um setor contrário ao
controle total do aparato estatal pelo clero xiita, representado por Bazargan
e Bani Sadr. Este setor refletia interesses diversos em relação ao imperialismo e quanto aos métodos utilizados para controlar o movimento operário.
Preferia desviar a revolução para o rumo da democracia burguesa, com suas
instituições “representativas” e eleições regulares. Mas tais instituições eram
inexistentes no Irã, o que debilitou suas posições. Apenas um Bonaparte,
capaz de colocar-se “acima” das classes pela sua posição de imã, poderia manobrar adequadamente entre as pressões do imperialismo de um lado e do
movimento de massas de outro. Sua ideologia reacionária, posta a serviço da
defesa irredutível da propriedade privada, combinada com a repressão brutal
foram as formas encontradas pela burguesia do bazar para a defesa de seus
interesses históricos de classe.
Em junho de 1979 uma nova lei de imprensa foi aprovada, dando o sinal
verde para a perseguição aos jornais de esquerda. E agosto a redação do
Ayandegan foi fechada, seguindo-se o fechamento de 34 jornais de oposição
no mesmo mês. Em setembro os dois maiores jornais burgueses do país,
Kayhan e Ettela’at, foram expropriados e transferidos para a Fundação dos
Deserdados, controlada pelo clero.
Os partidos oposicionistas foram postos na clandestinidade, como o
Mujahedeen-e Khalq (Mujadines ou Lutadores do Povo), guerrilha pequenoburguesa de ideologia muçulmana, e o Hezb-e Kargaran-e Sosialist (HKS ou
Partido Socialista dos Trabalhadores), trotsquista. Massoud Rajavi, líder dos
48
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1 2 D I V È S, Je a n
Phillippe. Uma guerra
contra os pueblos de Irak
e Irán. Correo Internacional, n. 7, 1985.
13 Idem
Dossiê
Mujadines, foi obrigado a exilar-se na França, enquanto 14 dirigentes do HKS
foram presos, doze dos quais condenados à morte.
O único partido operário que permaneceu legalizado durante três anos foi
o Tudeh (Partido Comunista Iraniano), de orientação stalinista, por declarar
lealdade a Khomeini e apoiar o clero xiita em sua repressão às organizações
de esquerda. Apenas em 1982, devido à ocupação do Afeganistão pela burocracia soviética, os membros do Tudeh foram considerados agentes de uma
potência estrangeira e postos na ilegalidade. Em fevereiro do ano seguinte
Nureddin Kianuri, principal dirigente do Tudeh, foi preso. Kianuri, como
bom stalinista, confessou na televisão ser espião da União Soviética.
O levante da minoria curda pela autodeterminação foi o mais importante e adquiriu um caráter de massas. Os curdos, dirigidos pelo Partido
Democrático, exigiam a autonomia administrativa do Cordestão, o direito à
sua própria língua e cultura, uma participação específica na receita nacional
e a responsabilidade pelas forças locais de segurança. O descontentamento
da minoria curda ficou demonstrado no plebiscito constitucional, rejeitado
pela imensa maioria da população sob a palavra de ordem de “abaixo o plebiscito, primeiro a autodeterminação”. Os choques com as forças armadas
de Khomeini começaram em agosto de 1979, sob o governo de Bazargan. A
guerrilha curda chegou a controlar parte de seu território, até que o exército
iniciou uma ofensiva, ocupando a cidade de Bukan em novembro de 1981 e
todo o território em 1983.
A repressão também atingia os shoras que não se sujeitaram às novas
instituições da república islâmica. Segundo a Anistia Internacional, pelo
menos 900 pessoas foram executadas entre janeiro de 1980 e junho de 1981,
em sua maioria lutadores da esquerda e da minoria curda. Nos doze meses
seguintes, mais 2974 mortes foram computadas. Estima-se em 20 mil o número de prisioneiros políticos durante 1981 e, conforme a revista Time, cerca
de cem mil em 198414. São números que nada deixam a desejar da época do
terror imperial.
As forças khomeinistas conseguiram, finalmente, consolidar sua posição
em fins de 1981, tomar o controle absoluto do poder e estabilizar relativamente o Estado burguês. Além da sangrenta repressão interna, a invasão do
Irã pelo Iraque muito contribuiu para isso.
A guerra Irã-Iraque
Em 22 de setembro de 1980, Saddam Hussein invade o Irã para impedir
que o processo revolucionário avançasse para o território iraquiano através
da comunidade xiita, que compõe 70% da população iraquiana, e do levante
curdo. O exército iraniano consegue repelir o invasor e no início de 1982 o
território iraniano estava liberado. Khomeini, no entanto, decide continuar
a guerra, que duraria mais seis anos, ao custo de pelo menos 500 mil vidas.
O ataque da ditadura de Hussein ocorreu num momento vital do processo revolucionário. “O movimento independente dos shoras, depois de uma
reativação ao calor de uma onda de lutas econômicas da classe operária era
o alvo de uma ofensiva frontal por parte do regime. A campanha de “união
nacional” que o regime islâmico pôde encarar frente ao ataque iraquiano,
14 Idem
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
49
Dossiê
permitiu-lhe dar golpes decisivos contra toda expressão independente da
classe operária”15.
Apesar de uma guerra sem país vencedor, pois acabou por um acordo na
ONU, ela atingiu o objetivo que os Estados Unidos e a burocracia soviética
perseguiam ao dar apoio a Hussein: ajudar a derrotar a onda revolucionária.
Nesse sentido, pode-se dizer que o maior beneficiado pelo resultado, além do
próprio Khomeini, foi o imperialismo, pois esgotava a energia anti-imperialista
das massas iranianas e impunha limites ao grau de independência política
conseguida pelo Irã com a queda de Pahlevi.
As contradições da luta anti-imperialista
A revolução iraniana tinha um caráter democrático e anti-imperialista,
que estava se transformando em revolução social pelo impulso das massas
contra a exploração capitalista. Além de arbitrar o conflito entre a burguesia
nacional e a classe operária, Khomeini desempenhava o papel de um bonapartismo sui generis, pois manobrava entre a mobilização das massas e a pressão
imperialista para não perder o controle do processo, ao mesmo tempo em que
zelava pela manutenção da propriedade privada. Este duplo papel limitava a
luta pela independência nacional, devido ao caráter dependente da burguesia.
Esta contradição ficou claramente demonstrada quando, em 4 de novembro de 1979, estudantes, incentivados pelo chamado de Khomeini para
uma “mobilização geral contra o grande Satanás, os Estados Unidos”, invadiram a embaixada norte-americana sem sua prévia autorização, para exigir
a extradição de Reza Pahlevi e a devolução de sua fortuna depositada nos
bancos dos EUA.
Com a lembrança ainda recente da derrota no Vietnã e a campanha pelos
“direitos humanos” do presidente Carter, os Estados Unidos não ousaram
invadir o Irã. E ficaram desmoralizados ao realizar uma operação secreta para
o resgate dos 66 reféns - a Operação Garra da Águia -, que terminou com a
morte de oito soldados no choque de um helicóptero com um avião norteamericanos em território iraniano.
Mas a “crise dos reféns”, em vez de uma vitória contra o “grande Satanás”,
desembocou numa capitulação vergonhosa do governo iraniano. Os reféns
foram libertados em 20 de janeiro de 1981 por um acordo com o novo governo
de Ronald Reagan16, pelo qual os EUA liberavam US$11 bilhões de fundos
iranianos retidos pelos bancos norte-americanos em troca do pagamento de
US$ 5,1 bilhões de empréstimos fraudulentos realizados por Reza Pahlevi.
A crise da direção revolucionária
Apesar de antiga tradição marxista – a delegação iraniana no Congresso
dos Povos do Oriente, organizada pela III Internacional em 1920, era a segunda em tamanho, com 192 membros17 – o longo período da ditadura dos
Pahlevi havia impedido seu desenvolvimento. Apenas o Tudeh, de origem
stalinista, encontrava-se em condições de organizar uma parcela dos trabalhadores no período revolucionário. Mas seu papel traidor durante seu período
de legalidade, seu histórico de capitulações, como o apoio à Revolução Branca
do Xá, e sua submissão incondicional à burocracia soviética impediram que
se transformasse numa alternativa para a classe operária.
50
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
15 Idem. Para uma
análise completa da
guerra Irã-Iraque, o
artigo referenciado
pode ser encontrado
em www.archivoleontrotsky.org.
16 A eleição presidencial norte-americana
ocorreu em novembro de 1980. Um dos
principais fatores que
contribuiu para a derrota de Carter em sua
tentativa de reeleição
foi a crise dos reféns
e o fracasso da Operação Garra de Águia.
17 BROUÉ, P. História
da Internacional Comunista. São Paulo: Ed.
Sundermann, 2008
Dossiê
Os jovens partidos marxistas, como o HKS, sofreram uma perseguição
implacável e as variantes pequeno-burguesas do islamismo, como os fedaines e os mujadines, embora tenham sido oposição ao regime de Khomeini,
apoiavam a República Islâmica e não defendiam a independência de classe em
seus programas. Outros grupos, como o Paykar (uma dissidência marxista
dos mujadines) e a União dos Comunistas tiveram seus líderes assassinados
em 1983, além da prisão e execução de milhares de militantes.
Ao drama da revolução, soma-se o da ausência de um partido revolucionário que não pôde ser construído no calor de uma luta tão complexa como
a que se deu no Irã, um país muçulmano em que:
O combate contra as direções islâmicas [deve ser feito]... pondo no
centro as necessidades da luta de classes, o combate ao imperialismo e
aos governos lacaios. Desmascarar sua inconsequência, seu palavrório,
sua submissão aos interesses burgueses, seu falso igualitarismo, é parte
do combate e o fazemos deste ângulo, o da luta dos trabalhadores por
cima das crenças religiosas, e não do combate à religião.18
Uma revolução interrompida
Com a consolidação do poder por Khomeini em fins de 1981 e uma relativa estabilidade das instituições islâmicas a partir de 1985, com a transformação da burguesia do bazar o do próprio clero xiita numa grande burguesia
industrial e financeira, o Irã continua refém de suas contradições internas,
com as mais elementares tarefas democráticas não resolvidas.
A burguesia iraniana, com seus atuais chefes islâmicos demonstraram
na prática esse limite estrutural, histórico, das burguesias coloniais e semicoloniais que são incapazes de realizar até o fim as tarefas democráticas que
historicamente as revoluções burguesas cumpriram na aurora do capitalismo, a
saber, a independência nacional, a reforma agrária e as liberdades democráticas.
Em relação ao imperialismo, o Irã consegue sua independência política
com a revolução de 1979. Mas, a partir do momento em que a revolução é
congelada nos marcos do capitalismo, quando a burguesia nada tem a oferecer,
nem mesmo a realização de suas próprias tarefas históricas, o retrocesso é
sempre iminente. Como veremos no artigo seguinte, a tendencia à abertura
ao capital estrangeiro e à acomodação ao sistema imperialista vem se intensificando desde a consolidação do novo regime.
A revolução iraniana passa à história como uma das mais importantes
que a humanidade já conheceu, mas ao não expropriar a burguesia para a
construção de uma sociedade socialista sua tarefa não foi terminada, tivemos
uma extraordinária revolução desviada e abortada, ao permanecer o domínio
capitalista.
18 PARRAS, Angel
Luis. Islamismo, expressão distorcida do
nacionalismo. Em:
O Oriente Médio na
perspectiva marxista.
São Paulo: Editora
Sundermann, 2007,
p. 167
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
51
Dossiê
~
Por uma nova revolucao
´
iraniana
José Welmowicki
Editor de Marxismo Vivo
Tito Niegra
Partido Socialista dos Trabalhadores (PSTU) - Brasil
2009: Manifestações contra a fraude eleitoral
Em 12 de junho passado ocorreram as eleições para a presidência do Irã.
Mal havia se encerrado a votação, foram divulgados os resultados oficiais,
dando a vitória ao presidente Mahmoud Ahmadinejad, que buscava a reeleição,
por 62,3% contra 33,7% de seu principal adversário, Mir-Hossein Mousavi.
Imediatamente após a divulgação iniciou-se uma gigantesca onda de
mobilizações populares denunciando a fraude. Estima-se em mais de três
milhões os manifestantes que ocuparam as ruas de Teerã e de outras importantes cidades por vários dias, desafiando a forte repressão do Estado e dos
grupos paramilitares leais ao regime. Esta, que foi a maior revolta popular
após a revolução de 1979, retrocedeu em um primeiro momento, após a
violenta repressão que assassinou ao menos 17 ativistas e prendeu centenas,
mas logo depois, em 18 de setembro, as massas deram provas de que não
estavam derrotadas, e aproveitando-se dos atos convocados oficialmente
no Dia de Jerusalém, ação anual pró-Palestina e contra Israel, participaram
das manifestações, mas com suas próprias bandeiras e slogans contra o
regime, desafiando os organizadores, todos vinculadas à hierarquia. Ainda
em setembro assistimos a novas manifestações, desta vez contra as prisões
políticas e as severas penas que a ditadura quer impor aos que foram detidos
nos atos anteriores. No momento em que escrevemos este texto, a imprensa
internacional noticia que as forças de segurança cumpriram suas ameaças e
reprimiram manifestantes convocados pela oposição, que iriam participar
da comemoração, neste 4 de novembro, do 30º aniversário da ocupação da
Embaixada americana em Teerã.
A burguesia internacional, por meio de seus agentes, os governos, a
grande mídia, a União Européia, coerente com seus objetivos geopolíticos e
econômicos (que de fato são tão somente econômicos), explora ao máximo
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essas mobilizações, denuncia a fraude e a repressão e exige a “democratização”; interessa-lhe o enfraquecimento do regime para que possa negociar em
condições mais vantajosas, acelerar a abertura econômica, as privatizações, e
aumentar sua influência na região.
E quanto à esquerda? Apoiamos Ahmadinejad e seu discurso antissionista
e anti-imperialista? Ou talvez Mousavi com suas promessas de democratização
e reforma política? Apoiamos e nos solidarizamos com a mobilização popular
que vem sendo violentamente reprimida? Ou essa onda de protestos é coisa
das classes médias abastadas, pró-imperialistas e manipuladas pela CIA?
Queremos discutir qual o caráter de classe do regime iraniano, e a partir
daí nos posicionarmos frente à realidade atual. É de fundamental importância
para os trabalhadores iranianos e de toda a região que não se cometa os erros
de 30 anos atrás, que levaram à derrota da revolução e à implantação de uma
ditadura teocrática. É possível e necessário que se construa uma saída de
classe para a crise atual.
O regime dos aiatolás
Estes recentes protestos populares no Irã são o ápice de um processo que
vem sendo fermentado há anos, e para sermos mais exatos, são parte de uma
luta que vem sendo travada desde 1979, há 30 anos, portanto, pelos protagonistas de uma das mais impressionantes revoluções do século 20, a classe
trabalhadora iraniana, que na origem dirigia-se contra monarquia repressiva
corrupta do Xá, e hoje se dirige contra a burguesia encabeçada por um clero
islâmico reacionário, que assumiu o poder após a derrubada do Xá, e se impôs
principalmente às custas de uma violenta repressão contra os opositores.
Uma das questões que ajuda a criar confusão sobre o caráter do regime
iraniano é sua origem na revolução de 79. Assumindo o poder à frente desta
tremenda revolução e obrigado a utilizar um discurso anti-imperialista pela
dimensão da luta e pelos ataques impiedosos que o imperialismo deflagrou
desde o início, o clero xiita utilizou expressões típicas da esquerda e das
correntes de libertação nacional e nacionalizou a indústria petrolífera e o
comércio exterior. Mas, desde o início, a política deste setor que assumiu o
poder depois da queda do Xá era reconstruir o poder burguês, estabilizar o
capitalismo para terminar com a situação revolucionária e colocar os trabalhadores como seu apêndice, reprimindo-os, caso necessário.
O regime teocrático criou, desde o início, dois fortes instrumentos repressores, diretamente vinculados ao Líder Supremo. O primeiro é a Guarda
Revolucionária Islâmica (Pasdaran), com a função de preservar a segurança
nacional e defender a revolução, atuando na defesa contra ataques externos,
e na repressão à oposição interna, seja dos trabalhadores, da juventude,
ou das minorias étnicas. O segundo instrumento de repressão são grupos
paramilitares não-regulares, conhecidos como milícias Basij, formados
principalmente por jovens recrutados na zona rural e entre o lumpesinato.
Constitui-se de um efetivo de 90 mil na ativa e dois milhões de reservistas.
São uma “força de intervenção popular rápida” e têm como função “combater
os inimigos internos da Revolução e fazer respeitar os códigos islâmicos”.
São conhecidos pela violência e crueldade na repressão às manifestações de
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Dossiê
protesto internas, sendo os responsáveis pelos assassinatos nas manifestações
após as eleições deste ano. Tanto os membros da Guarda Revolucionária
quanto os das milícias Basij vêm sendo mantidos sob rígido controle por
meio de benefícios financeiros e favores, sendo que atualmente as Guardas
Revolucionárias expandiram sua atuação também para áreas de indústria e
comércio de armamentos, telecomunicações, etc., por meio de fundações,
como será visto a seguir.
Apesar da violenta repressão por parte do Estado, a classe trabalhadora
iraniana não parou de lutar, até porque os ataques às suas condições de vida
e aos seus direitos nunca permitiram que as experiências da revolução de
1979 fossem esquecidas.
A luta dos trabalhadores e oprimidos
Apesar da repressão permanente, o movimento operário iraniano é dos
mais fortes e combativos da região. Como descrito em artigo nesta mesma
revista1, os Comitês Operários (Shoras) foram a base fundamental da revolução de 79, sendo por isso atacados e reprimidos duramente pela hierarquia
xiita. Logo nos primeiros anos no poder, os aiatolás impuseram um modelo
repressivo de sindicato, pelo qual os trabalhadores são pretensamente representados pelas Casas de Trabalho, entidades totalmente controladas pelo
regime. No entanto, desde o final dos anos 90, apesar da repressão, os operários vêm retomando suas lutas e construindo instrumentos independentes
de organização.
Desde 2003, os trabalhadores vêm participando dos atos de 1° de maio,
procurando dar aos mesmos um caráter de manifestações não oficiais, de
reivindicações e de protestos. Mesmo com o regime reprimindo com prisões
e demissões, a cada ano mais e mais setores aderem a estas manifestações de
protesto, levantando as bandeiras por melhores condições de vida, por liberdade e contra o regime. Na cidade de Tabriz, segunda maior concentração
industrial do Irã, o sindicato oficial decidiu que a manifestação do 1º de maio
de 2006 seria a favor do programa nuclear iraniano. Os manifestantes (cem
mil pessoas, segundo algumas fontes) passaram dos lemas oficiais, a gritar
palavras de ordem com suas reivindicações trabalhistas.
Alguns setores construíram seus sindicatos ou comitês de empresa independentes: um exemplo são os condutores de ônibus de Teerã. Este vem
sendo um sindicato independente muito ativo, que organizou várias greves e
lutas vitoriosas contra a prefeitura e o regime. Seu dirigente, Mansur Osanloo,
está há vários anos na prisão.
A comissão da fábrica de automóveis Khodro é outra vanguarda da
reorganização. Há anos eles lutam e resistem às pressões do regime. Recentemente, em maio último, estes trabalhadores obtiveram uma importante
vitória quando entraram em greve pelo recebimento de salários atrasados,
conseguindo também que os operários temporários fossem efetivados.
Aliás, chama a atenção o fato de cada vez mais trabalhadores sairem à luta
para, simplesmente, receber os seus salários. Os efeitos da crise econômica
mundial, que a burguesia tenta jogar nas costas dos trabalhadores, fez com
que ocorressem cada vez mais lutas, nas mais diversas categorias: a mídia
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1 Ver Irã,1979: uma
revolução interrompida
nesta edição.
Dossiê
internacional noticia que 1700 operários da Wagon Pars Company, grande
empresa construtora de vagões ferroviários e recentemente privatizada, localizada em Arak, um dos principais centros industriais do Irã, entraram em
greve de fome por não receberem seus salários há mais de 75 dias (a empresa
admite atraso de dois meses), e por estes atrasos serem constantes. A greve
de fome teve início depois que a empresa demitiu parte dos grevistas. Os
operários da Wagon Pars receberam a solidariedade dos trabalhadores da Iran
Khodro, cujos operários têm longa tradição de luta. Dentre estas várias greves
ocorridas em 2009 contra o atraso dos salários, podemos ainda citar a dos
trabalhadores da fábrica de pneus Alborz, com salários atrasados há 5 meses,
e a dos trabalhadores de várias fábricas têxteis. Por fim, queremos citar a luta
dos professores, dos quais 80% são mulheres, com salários extremamente
baixos, que vêm construindo manifestações massivas por melhorias salariais,
e são um dos setores de ponta na luta contra o regime.
Os trabalhadores e a juventude vêm encontrando interessantes formas
de burlar a repressão: participam de manifestações organizadas oficialmente
e a partir de um determinado momento começam a gritar as suas próprias
palavras de ordem antiregime. Isso ocorreu, além do 1º de Maio, no Dia
de Jerusalém e, agora, na comemoração do 30º aniversário da ocupação da
embaixada americana em Teerã.
Juntamente com as lutas dos trabalhadores, há as lutas por liberdades
democráticas dos estudantes e das mulheres, como as que ocorreram em
1999 e foram fortemente reprimidas sob o governo de Khatami. Por fim, as
minorias étnicas lutam por seus direitos (e em alguns casos por seus territórios), como os curdos e azeris na região norte e os baluches no sul do Irã.
A estrutura econômica do Irã
O Irã possui uma população de aproximadamente 67 milhões de habitantes bastante jovem, com uma idade média de 27 anos, sendo 68%
concentrada nas cidades. Sua força de trabalho é estimada em 25 milhões de
trabalhadores, distribuídos nos setores da agricultura (25%), indústria (31%)
e serviços (45%). A taxa de desemprego oficial é de 12,5%, mas estimativas
não-oficiais dão números superiores a 20%. A taxa oficial de inflação - certamente subestimada - foi de 25,6% em 2008, uma das mais altas do mundo,
e 25% da população vive abaixo do nível de pobreza, segundo o Ministro do
Bem Estar Social.
A economia iraniana é capitalista, ainda que sua forma de gestão possa
confundir um observador desavisado, pois é composta por um emaranhado
de empresas estatais, diversas fundações islâmicas (as chamadas Boniads) e
empresas privadas. Esta estrutura expressa a forte relação de dependência e
interesses mútuos entre a burguesia (a tradicional e a composta pelos altos
escalões do Estado) e o clero islâmico, que parasita o Estado, acumulando
fortunas incalculáveis. O exemplo das Boniads é bastante ilustrativo: foram
criadas no governo do Aiatolá Khomeini, com o objetivo de “redistribuir
a riqueza” confiscada do regime do Xá, por meio da construção de casas
populares, clínicas de saúde, etc. Atualmente são em torno de 100 grandes
fundações (Fundação dos desamparados, Fundação dos mártires, Fundação
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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dos oprimidos e inválidos de guerra, etc.), que atuam em praticamente todos
os ramos da economia iraniana, e movimentam uma fração impressionante do
PIB, entre 30 % e 50%. Estas fundações são consideradas entidades privadas,
e eram até há pouco tempo isentas de impostos, de taxas de importação,
além de gozarem de enormes benefícios e privilégios, de forma que acabam
por monopolizar os setores da economia em que atuam. Além disso, o tráfico de influência e a corrupção não permitem que grandes negócios sejam
realizados sem a participação ou intermediação de uma fundação. Não há
controle algum sobre seus negócios e sua contabilidade, pois só devem prestar
contas ao Líder Supremo, que indica e afasta os dirigentes. Por trás destas
fundações encontraremos as lideranças religiosas (os mulás e aiatolás), os
máximos dirigentes do Estado, os comandantes da Guarda Nacional, e uma
rede de aliados, ou seja, a nova burguesia que se formou e se consolidou com
o regime islâmico, cujos negócios e acúmulo de riqueza dependem de suas
relações com o aparato do Estado.
Tomemos como exemplo a Mostazafan & Jambazan Foundation (Fundação para os Oprimidos e Inválidos da Guerra), o segundo maior empreendimento comercial do país, perdendo apenas para a gigante estatal National
Iranian Oil Co. Ela emprega mais de 400 mil trabalhadores, possuindo
ativos superiores a US$ 10 bilhões, em setores tão díspares como a antiga
rede de hotéis Hilton, a companhia de refrigerantes Zam-Zam, sucessora da
Pepsi, uma companhia de transportes marítimos, petroquímicas, indústrias
de cimento, propriedades rurais e imóveis urbanos. Criada originalmente
como uma fundação de assistência social, capitalizada com elevadas somas
expropriadas das riquezas do Xá, em 1996 começou a requerer fundos governamentais para cobrir os gastos assistenciais, ao passo que começava a abandonar suas funções para se dedicar exclusivamente às atividades comerciais.
Esta fundação esteve até há pouco tempo nas mãos de Mohsen Rafiqdoost,
Ministro da Guarda Revolucionária nos tempos de Khomeini e transferido
para a Fundação em 1989, quando o aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani
assumiu a presidência do país.
Atualmente, Rafiqdoost, filho de modestos comerciantes de frutas e
verduras à época da revolução, é um dos homens mais ricos e poderosos do
regime, e está à frente de outra Fundação, a Noor Foundation, que constrói
blocos de apartamentos e atua na importação de produtos farmacêuticos,
açúcar, materiais de construção, etc.
O poder no Estado Iraniano
Os protestos que levaram multidões às ruas, contra os resultados eleitorais
no Irã, e que ainda continuam, expõem as profundas divisões na sociedade
daquele país. A mídia internacional procura caracterizar as eleições como
uma disputa entre o Bem (Mir-Hossein Mousavi) e o Mal (Mahmoud Ahmadinejad), sendo que o primeiro representaria a democracia, a liberdade,
e a modernidade enquanto o segundo seria a continuidade de uma ditadura,
de um país ligado ao terrorismo internacional. Alguns setores da esquerda
entendem de outra forma: Mousavi seria um agente a serviço do imperialismo,
um entreguista neoliberal, enquanto Ahmadinejad seria a garantia de um país
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independente, antissionista e que manteria acesa a chama anti-imperialista.
Afinal, quem e o que representam e defendem estes personagens?
O clero xiita foi a direção política de um setor burguês que se insurgiu
contra a espoliação exacerbada realizada pelo imperialismo por meio de seu
agente, o Xá. Para isso, o clero se apoiou no protesto das massas. Mas assim
que se sentiu fortalecida o suficiente, tratou, conforme seus interesses de
classe, de reconstruir o Estado burguês e submeter os trabalhadores. Hoje,
o clero segue sendo expressão de setores burgueses que lutam por um espaço
próprio no mercado, frente à ofensiva recolonizadora e às limitações impostas
pela crise econômica mundial.
O Estado iraniano é burguês e tem um regime bonapartista. De tal forma
que as disputas eleitorais se dão por dentro das instituições e são um jogo de cartas marcadas. As eleições no Irã são totalmente controladas pelo poder central
(o Líder Supremo e o Conselho de Guardiões) que não permite candidaturas
independentes, de mulheres, e muito menos de opositores de esquerda. Não
há liberdade de organização política. Com isso, as disputas eleitorais vêm se
resumindo a embates entre representantes das frações burguesas que dão
sustentação ao regime. Antes de analisarmos estas disputas entre os setores
da burguesia iraniana, vejamos um pouco da biografia de seus representantes:
• Aiatolá Ali Khamenei: teve importante papel na implantação da República islâmica, sendo um colaborador bastante próximo de Khomeini.
Foi presidente do Irã de 1981 a 1989, ano em que foi eleito Líder Supremo
pelo Conselho de Especialistas, em substituição à Khomeini que falecera.
É, portanto, o centro do poder hoje, mas é criticado por vários setores do
regime que já começam a discutir sua sucessão
• Aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani: presidiu o parlamento iraniano entre 1980 e 1989, sendo posteriormente eleito Presidente do Irã de 1989
a 1997, sucedendo Ali Khamenei. É acusado por vários setores de corrupto
e de utilizar seu poder para beneficiar os negócios familiares. Em 2003 foi
citado pela revista Forbes como um dos homens mais ricos do Irã. Voltou
à cena em 2005 quando disputou a presidência com Ahmadinejad, que o
derrotou no segundo turno. Rafsanjani ocupa a presidência do Conselho de
Especialistas desde 2007.
• Mohammad Khatami: antes de ser eleito presidente, Khatami foi
membro do Parlamento (de 80 a 82), Ministro da Cultura e ocupou vários
cargos no governo. Exerceu o cargo de presidente por dois mandatos, de
1997 a 2005. Sua primeira eleição, em 1997 foi um marco no processo político iraniano, pois 80% do eleitorado compareceu às urnas (o voto não
é obrigatório no Irã) e destes, 70% votaram em Khatami, atraídos pelas
propostas que o identificavam como um político reformista. No plano econômico, Khatami deu continuidade ao projeto neoliberal de seu antecessor,
Rafsanjani, financiando o setor privado, abrindo a economia e acelerando as
privatizações.
• Mir-Hossein Mousavi: foi primeiro-ministro do Irã de 1981 a 1989,
o período da guerra Irã-Iraque. Teve importante papel nos acordos secretos
com os EUA, conhecido como o escândalo Irã-Contras. Após a morte de
Khomeini, que lhe dava sustentação política, seu grupo ficou enfraquecido
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Dossiê
e ele se afastou da vida pública, retornando nas últimas eleições como o
candidato a presidência do setor reformista, derrotado por Ahmadinejad.
• Mahmoud Ahmadinejad: após a revolução, fez parte da Agência para
a Consolidação da Unidade (OSU), entidade estudantil criada para combater os grupos de esquerda que tradicionalmente atuavam nas universidades.
Durante a investida contra as universidades, chamada por Khomeini de Revolução Cultural Islâmica, os militantes da OSU promoveram o expurgo
de um grande número de professores e estudantes dissidentes, muitos dos
quais foram presos e executados. Ocupou cargos de governador em pequenas províncias, até que em 2003 assumiu a prefeitura da cidade de Teerã. Em
2005 foi eleito presidente com um discurso populista, dizendo-se defensor
dos pobres.
Como se pode constatar são todos políticos com origem no clero ou em
organizações ligadas à hierarquia e que fizeram suas carreiras por dentro do
regime, ocupando importantes cargos na estrutura de poder iraniano nos
últimos 30 anos. Nenhum destes personagens representa um rompimento
com o regime teocrático, continuam fiéis à República Islâmica, colocam-se
como seus defensores e disputam posições aceitando suas regras.
Na essência, Ahmadinejad e Mousavi representam dois grandes blocos
da burguesia que disputam eleitoralmente o controle do aparato estatal para
melhor se beneficiarem economicamente. Nesse ponto há muita semelhança
com as disputas interburguesas tão comuns na maioria dos países e que se
expressam em distintos partidos. Esta disputa tornou-se mais acirrada nas
últimas eleições, como consequência da crise econômica e da queda do preço
do petróleo, o que significa uma diminuição do tamanho do “bolo” e menos
oportunidades de negócio. Reflexo disso foi Ahmadinejad acusar publicamente a Rafsanjani de corrupto, enquanto este defendeu o fim da figura do
Líder Supremo, que deveria ser substituído por um Conselho de Aiatolás.
Há outra componente, relacionada ao tratamento dado aos movimentos
sociais (lutas sindicais, juventude, mulheres, minorias étnicas e religiosas),
sobre qual é a melhor tática para não fugirem do controle, e assim não questionem ou enfraqueçam o regime islâmico, mas que também deem sustentação eleitoral a uma ou outra ala. Este é um tema extremamente importante
e muito atual, já que o governo vem procurando jogar as consequências da
atual crise econômica nas costas dos trabalhadores, aumentando os conflitos e tensões sociais. A ala de Ahmadinejad e de Ali Khamenei investe na
repressão, no aparato policial e nas milícias fascistas; atacam as lutas sindicais e por liberdades políticas, prendem seus dirigentes; não reconhecem
os direitos das mulheres e das minorias étnicas. E trata de compensar essa
posição opressiva com populismo, prometendo mais comida aos pobres, e
políticas assistencialistas e compensatórias, embalados por um forte discurso
anti-imperialista, utilizado para justificar, tanto as “dificuldades econômicas”
quanto a repressão aos “agentes desestabilizadores infiltrados”. O discurso
anti-imperialista tem ainda a função de elevar, interna e externamente, o
regime iraniano como liderança regional, que se coloca contra os interesses
americanos na região, fortalecendo-se e aumentando sua importância nas
negociações internacionais.
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A ala reformista, representada por Mousavi, defende um regime com
algumas aberturas, com maiores liberdades e, que alivie ou desvie as tensões
sociais, evitando que fuja do controle, pois teme uma explosão social que
possa derrubar os alicerces do regime, como já ocorreu em situações semelhantes. Apresenta-se como liberal, tanto política como economicamente. A
campanha de Mousavi baseou-se em promessas vagas como a justiça social,
a igualdade, a liberdade de expressão, o combate à corrupção, etc. Com isso,
recuperou a simpatia dos movimentos sociais, particularmente da juventude
e de setores da classe média, que haviam se decepcionado com o governo
de seu aliado Khatami, que há dez anos uniu-se a Khamenei na repressão
violenta às manifestações estudantis por liberdades democráticas, liberdades
que iam além dos limites aceitáveis para o regime. Esta é uma ala da burguesia
iraniana com maiores ligações com o imperialismo europeu, com o qual tem
fortes vínculos comerciais em várias áreas, e por isso defende maior abertura
econômica e a aceleração das privatizações.
Já vimos que estas alas da burguesia iraniana movem-se em defesa de seus
interesses na apropriação das riquezas do Estado, mas se unem quando veem
qualquer ameaça ao regime teocrático, numa clara indicação de quão limitada
é a “democratização” defendida pela ala de Mousavi. E quanto à gestão da
economia? Ainda que haja diferenças nos ritmos que cada um quer impor, não
há uma disputa entre os defensores da privatização e os que defendem uma
economia estatizada. Ou entre aqueles que querem mais relações comerciais
com o imperialismo, e aqueles que as rejeitam. Qualquer análise das medidas
tomadas por Ahmadinejad mostram que foi em seu governo, considerado
estatizante e anti-imperialista por parte da esquerda, que ocorreu o maior
número de privatizações, e quando as relações comerciais com o imperialismo,
inclusive o americano, mais se intensificaram.
Na página oficial da Organização Iraniana de Privatização é apresentada,
como oportunidade de investimento para o mercado internacional, a lista das
empresas a serem privatizadas em 2009, por meio da venda de suas ações ou
pelo recebimento de ofertas2. A lista envolve petroquímicas, siderúrgicas,
companhias de gás, de refino de petróleo, companhias aéreas, bancos, a Companhia Iraniana de Telecomunicações. Somado a isso, tem-se o anúncio do
atual Ministro do Comercio do Irã, Masoud Mir-Kazemi, de que o Irã atraiu,
em 2008, 300% mais investimentos externos que nos dois anos anteriores;
ou ainda o anúncio do Ministério de Assuntos Econômicos e Finanças, de
que na gestão Ahmadinejad as privatizações já haviam superado em mais de
três vezes as ocorridas nos quinze anos anteriores.
Por fim, dados oficiais revelam que, apesar dos choques e da hostilidade
no discurso, os governos Bush e Ahmadinejad foram extremamente pragmáticos em termos de parceria comercial: as transações comerciais entre EUA
e Irã aumentaram cerca de 600% nos quatro anos do primeiro mandato do
presidente iraniano.
Como vimos, estas duas alas do regime iraniano são semelhantes, e o que
levou o acirramento das disputas entre as mesmas atingir um nível inédito
nestas eleições é a crise econômica, que como dissemos, reduz as “oportunidades”. Para se manterem, estas alas têm que, necessariamente, uma tomar
2 www.guardian.com.
u k / wo r l d / 2 0 0 9 /
oct/12/us-irantrade-mahmoudahmadinejad #historybyline, acessada
em 26/10/09
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o espaço da outra, e isso enfraquece o regime, provoca fissuras. O problema
para eles é que a crise tem outras consequências: ao procurar transferir a conta
para os trabalhadores, leva-os a reagirem, a se defenderem, a lutarem... e é
isso o que explica o aumento das greves no último período. As massas, ao
entrarem em cena na luta por seus interesses, intervêm no processo eleitoral,
e acirram ainda mais as contradições do regime bonapartista, levando a uma
crise nas alturas.
É muito difícil, dado o grau de crise e enfraquecimento do regime, que
mesmo com a violenta repressão seja possível voltar ao status anterior, como
almeja Ahamadinejad, ou apenas com pequenas aberturas como querem Mousavi e Rafsanajani. A experiência da revolução de 79 poderia servir de lição
aos ditadores de hoje, e talvez seja a origem dos fantasmas de suas noites mal
dormidas. Esta revolução certamente continua nas mentes e corações dos trabalhadores, que foram novamente despertados para a ação política de massas.
Os acordos do Irã com o imperialismo para a estabilização da região
Não se pode entender a posição dos imperialismos na crise que vem se
arrastando desde junho, sem analisarmos o papel que ultimamente o Irã vem
cumprindo na situação regional: se por um lado o imperialismo tenta, desde
a revolução de 79, liquidar definitivamente qualquer traço de independência
do regime (e isso explica, por exemplo, a pressão que vem fazendo contra
o programa nuclear), por outro reconhece a importância do Irã na solução
dos vários problemas regionais causados pela desastrosa política da “guerra
contra o terror” de Bush, que reduziu significativamente a força de pressão
militar dos EUA, apesar das centenas de milhares de soldados enviados ao
Iraque e Afeganistão sem conseguir estabilizar a situação. Some-se a isso a
derrota de Israel no Líbano em 2006, além de outro componente explosivo,
que foi a abertura da “caixa de pandora” das lutas inter-étnicas na região.
Hoje os americanos já não podem contar com aliados de peso na região: já
não contam mais com ex-aliados, como Sadam Hussein em 1980, antes de
ser descartado, nem com a influência que o Egito já teve, hoje governado
por Mubarak cada vez mais desmoralizado perante as massas, pelo seu giro
à direita; Israel é odiado e saiu enfraquecido do Líbano, e não se pode contar
com a monarquia corrupta da Arábia Saudita. O Irã tornou-se o único país
com peso suficiente sobre as direções e sobre as massas para desempenhar
um papel significativo na estabilização da região. Sua influência sobre o
Hezbollah, e nos últimos tempos sobre o Hamas, o fortalece como um fator
real de poder na área. Mesmo a Síria, até hoje governada pelo Baas, tem se
colocado em uma parceria com os iranianos para subsistir frente à pressão
de Israel e dos EUA.
O imperialismo viu-se então obrigado a negociar e contar com algum
tipo de relação com o mesmo regime acusado de “fora-da-lei”, “terrorista”,
etc. E estas negociações começaram ainda durante o governo de Bush, para
garantir minimamente a estabilidade no Iraque, com o governo títere de Jaafari e depois de Al Maliki, dirigentes da burguesia xiita iraquiana que eram
e são até hoje homens de confiança do Irã. Como explicar que os governos
de Jaafari e agora de Al Maliki, totalmente vinculados politicamente ao Irã,
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sejam o braço da ocupação se não por uma aliança prática entre Irã e EUA
na sustentação desse “governo”?
As negociações entre EUA e Irã desenvolveram-se ainda mais com a
mudança da realidade após a derrota da política de guerra contra o terror de
G. W. Bush. Apesar dos conflitos com os EUA, estes não impediram que a
direção da república islâmica negociasse e colaborasse ativamente com a dominação imperialista na região, sempre que isso permitisse tirar algum proveito,
conseguir ao menos uma pequena parte dos despojos da rapina imperialista.
Além do exemplo já citado dos acordos para a sustentação dos governos
títeres no Iraque, é um fato já documentado que o Irã vem colaborando
com os EUA em sua ocupação do Afeganistão. Como os talibãs não estão
sob sua esfera de influência, e sob o argumento de que o Talibã pode vir a se
tornar um problema para a estabilização da região, o Irã permite que armas
americanas atravessem seu território para abastecer as tropas que ocupam o
Afeganistão. Além disso, o Irã tem pressionado política e financeiramente
o Hezbollah para que se incorpore ao governo burguês do Líbano. Assim, o
Irã contribuiu para uma relativa estabilização regional, por acalmar uma das
principais organizações que enfrentam militarmente Israel, permitindo um
respiro ao Estado sionista.
O governo Obama, diante da crítica situação deixada por Bush no Oriente
Médio, definiu-se por intensificar as negociações com as forças da região,
buscando uma saída honrosa para a retirada de seus soldados, ao mesmo
tempo em que tenta uma relativa estabilização da região. Para isso, dispõe-se
a uma maior interação com o Irã, o que explica em parte a mudança no tom
das negociações. Os EUA mostram-se dispostos a reavaliar uma colaboração
com os aiatolás, desde que o regime aceite alguns limites, como o abandono
do projeto de enriquecimento de urânio e suas pretensões de produzir armas
nucleares. Não por acaso, Obama fez questão de dizer que abriria o diálogo
com o regime do Irã em sua campanha eleitoral, apesar de suas diatribes contra
Israel. E estimulou abertamente Lula a receber Ahmadinejad em dezembro
no Brasil, para convencê-lo a ser mais flexível.
O Programa Nuclear Iraniano: mais uma capitulação ao imperialismo
Apesar de todas “propostas de diálogo” feitas ao Irã, o imperialismo é
muito claro nas negociações referentes ao acordo nuclear: não aceitará que o
Irã se dote de uma tecnologia que lhe permita desenvolver armas nucleares,
pois isso provocaria muito mais instabilidade da região, particularmente com
Israel. No entanto não conseguem demonstrar que o Irã esteja infringindo
alguma das regras das convenções internacionais, mesmo considerando-se
o Tratado de Não Proliferação vigente, que serve aos interesses das grandes
potências.
Apesar disso os EUA exigem o fim do programa nuclear iraniano, sob o
argumento de que o país não necessita de usinas nucleares para a produção
de eletricidade. Esquecem-se que anos antes usaram argumento inverso para
poder vender reatores ao Irã, quando esse era dirigido pelo governo fantoche
dos americanos. Os EUA têm uma política seletiva para a questão nuclear:
apoiou e colaborou com o programa nuclear de Israel e do Paquistão, sem
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que estes países, juntamente com a Índia (outra aliada), assinassem o Tratado
de Não Proliferação.
Nestes anos todos, o Irã tem denunciado publicamente a discriminação
pela qual vem passando, e afirmado que não abrirá mão de seu direito de enriquecer urânio. Defendemos o direito do Irã à posse e desenvolvimento da
tecnologia nuclear, inclusive a de produzir armas nucleares para defender-se
do imperialismo e de Israel. No entanto, a tendência do regime nesse campo
também tem sido a de capitular, mantendo o discurso anti-imperialista para seu
público interno, e buscando conseguir melhores condições nas negociações
conduzidas pela AIEA e pelo Conselho de Segurança da ONU.
O Irã vem cedendo cada vez mais sua autonomia, chegando ao ponto de
aceitar, mesmo com idas e vindas, abrir mão de seu programa de enriquecimento, e enviar seu urânio estocado (enriquecido a 3,5%) para ser enriquecido na Rússia e França ao nível de 18,5%, retornando já como elementos
combustíveis montados em reator nuclear para a produção de radio-fármacos
utilizados no diagnóstico e tratamento de câncer. Assim, o Irã não teria
urânio em quantidade suficiente para promover o enriquecimento nos níveis
necessários para a construção de armas nucleares.
Qual a saída para o Irã sob a ótica da classe trabalhadora?
A única saída viável para o Irã é uma revolução que derrube o Estado
vigente e aponte a tomada do poder pela classe operária aliada aos camponeses e setores populares. Os diversos processos de luta que vêm ocorrendo
ultimamente se enfrentam diretamente com o inimigo verdadeiro: a ditadura
teocrática, que reprime os trabalhadores, a juventude, as mulheres, as minorias
étnicas e religiosas, e todos os opositores de um modo geral.
Como dissemos no início deste texto, as manifestações de junho foram as
maiores desde 79, e fez com que todos se recordassem daquele processo. Mas
muitos detratores do movimento dizem que eram apenas manifestações da
“classe média” urbana, manipuladas pelo imperialismo. Qualquer análise séria
mostra que nas manifestações de junho havia uma participação do movimento
operário organizado, seja através de presença física de trabalhadores ou de
manifestos como o da Iran Khodro e dos condutores de Teerã. Por isso, houve
fortes manifestações não somente em Teerã, mas também em cidades industriais como Isfahan, ou Tabriz (na região azerbaijã). Por outro lado, houve
uma participação importante dos professores, das mulheres, do movimento
estudantil e de intelectuais. Isso se deu porque a classe operária e os setores
populares estão fartos de serem reprimidos e sofrerem as consequências da
exploração capitalista, avalizada pela hierarquia xiita. Ou seja, foi de fato um
levante operário e popular contra um regime burguês repressivo, apesar de
sua direção ser capitalizada por uma ala da burguesia. Em um enfrentamento
entre as massas e esse regime, não pode haver nenhuma dúvida quanto ao lado
que nos posicionamos: do lado das massas que exigem seus direitos democráticos, ao mesmo tempo em que denunciamos a direção política burguesa
e pró-imperialista, representada por Mousavi.
Não se pode permitir que os mesmos erros de 79 se repitam, e que a
burguesia, (seja a governante, ou as frações opositoras), tome a direção deste
62
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
processo de lutas; isso novamente levaria as massas a um beco sem saída. É
preciso que a classe operária iraniana avance em suas instâncias e métodos
de organização, postule-se como direção dos demais setores oprimidos, e
construa uma saída classista para o Irã, oposta ao regime dos aiatolás, e contra a oposição burguesa e o imperialismo; uma saída que aponte para uma
sociedade socialista.
A defesa das liberdades democráticas não pode ficar nas mãos do
imperialismo
O governo Ahmadinejad continua a perseguição aos opositores após as
manifestações de junho, sob o pretexto de que são organizados pelo imperialismo. Infelizmente, uma parte significativa da esquerda, particularmente
a ligada aos partidos stalinistas e aos chavistas, alinha-se a esta posição e
defende o governo de Ahmadinejad, classificando os protestos como uma
“conspiração da CIA”. Dessa forma, acabam defendendo a sangrenta repressão
do governo iraniano sobre as massas, alegando que é justificável a repressão
ao povo para defender-se do imperialismo. Essa postura, na prática, é uma
valiosa contribuição ao imperialismo, pois deixa em suas mãos sujas de sangue
a bandeira da defesa das liberdades democráticas e da denúncia da repressão.
Estas bandeiras devem estar nas mãos das organizações dos trabalhadoresàs quais é destinado o papel de capitanear o processo de luta dos oprimidos,
chamando a mais ampla unidade de ação em defesa dos direitos democráticos. Por liberdade de expressão e de imprensa, eleições livres, liberdade de
organização política, por uma Assembleia Constituinte e laica, pelo direito
a organizar sindicatos livres, pelos direitos de organização e expressão das
minorias, e pelo fim de todas as instituições bonapartistas típicas do regime
teocrático. E devem, neste processo, colocar suas bandeiras de classe contra
a exploração capitalista e por seu direito à organização independente.
Esse é o caminho para desmascarar Mousavi e sua ala, que têm como
limite a defesa do regime. É preciso combatê-la por dentro do processo
de mobilização para que não canalizem as legítimas aspirações das massas
iranianas para o beco sem saída da reforma do regime e da abertura cada vez
maior ao imperialismo.
Repetimos que, se os trabalhadores e a esquerda mundial não assumirem
a bandeira das liberdades democráticas no Irã, estas serão arrebatadas por
setores da burguesia e do imperialismo, que acabarão ganhando o respaldo
das massas. Defender a repressão às manifestações em nome de uma suposta
natureza anti-imperialista de Ahmadinejad e do regime é repetir a traição do
Tudeh iraniano e da esquerda anti-Khomeini após 79, o que permitiu o fortalecimento do regime, e a repressão ao desenvolvimento de uma alternativa
independente de classe no Irã.
A esquerda revolucionária deve impulsionar a luta contra a ditadura dos
aiatolás, e ao mesmo tempo denunciar qualquer ilusão na oposição burguesa
e no imperialismo. A tomada do poder pela classe trabalhadora é o único
caminho para expulsar de vez o imperialismo e acabar com a exploração
capitalista no Irã.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
63
Dossiê
Afeganistã~ao:
Uma encruzilhada para o
imperialismo
Bernardo Cerdeira
Editor de Marxismo Vivo
2001: ocupação do Afeganistão pelos EUA
A atual situação do Afeganistão está marcada por três problemas fundamentais. O primeiro é, obviamente, a guerra, que já dura oito anos, entre os
mais de cem mil soldados das forças de ocupação imperialista e a guerrilha do
Talibã. O segundo é a crise do governo e do regime político colonial, montados e sustentados pelos EUA, afundados em corrupção, tráfico de drogas e
fraudes eleitorais. O terceiro é o dilema da política global do imperialismo,
que deve decidir entre aumentar a escalada militar de envio de tropas e armamentos ou se arriscar a que o Talibã tome outra vez o poder. Partindo da
análise destes três aspectos, queremos chegar às questões mais importantes
que estão em jogo na guerra do Afeganistão.
A guerra
No Correio Internacional de setembro deste ano, a LIT resumia assim a
atual situação militar dos Estados Unidos neste conflito:
Tropas dos Estados Unidos ocupam o Afeganistão há oito anos, um
período quase 50% mais longo que o envolvimento do país nas duas
Guerras Mundiais. No entanto, depois de todo este tempo, o Talibã, que
foi deposto do governo no momento da ocupação em 2001, mantém
uma atividade guerrilheira permanente em quase todo o país.
Segundo o centro de estudos britânico International Council on Security and Development (citado pelo Estado de São Paulo de 11/09/2009)
o Talibã age em 97% do território afegão. Em 80% do país a presença
de insurgentes seria permanente. Esta porcentagem vem crescendo
64
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
rapidamente, já que em novembro de 2007 era de 54% e em 2008, 72%,
segundo o mesmo estudo. Um mapa produzido pelo instituto mostra
que quase metade do país está sob controle dos Talibãs ou sob risco de
ataque. Nos últimos meses, os insurgentes aumentaram seus ataques
no norte do país, uma região que até então era considerada pacífica.
As baixas americanas e dos outros países da OTAN vêm crescendo
constantemente e atingiram seu número mais alto este ano. As tropas
de ocupação controlam apenas a região da capital Cabul, mas mesmo
assim não conseguem evitar os ataques do Talibã, inclusive um atentado
a bomba em frente ao quartel-general da OTAN que matou 7 pessoas.1
A situação descrita acima não só se confirmou como se agravou sensivelmente nos últimos dois meses. Em outubro morreram 55 soldados
americanos, o maior número de baixas em um único mês desde o início da
guerra. Por outro lado, o Talibã intensificou os ataques aos caminhões que
abastecem regularmente as tropas imperialistas com combustíveis, alimentos e suprimentos. Vários comboios que vêm do Paquistão, atravessando as
montanhas pela rota do Passo Khyber, têm sido atacados e destruídos.
O aumento de ações do Talibã prossegue apesar do governo Obama ter
procurado fortalecer sua posição militar este ano: enviou mais 30 mil soldados ao país e deslocou quatro mil deles para a província de Helmand, para
combater a presença dos insurgentes na região, uma das mais conflagradas
do Afeganistão.
Atualmente, 68 mil soldados dos Estados Unidos e 32 mil de outros
países da OTAN ocupam o país, totalizando 100 mil militares, o maior número desde o começo da guerra. As forças da OTAN, além dos EUA, são
compostas principalmente por soldados de países imperialistas europeus: a
Inglaterra com 8300 homens; a Alemanha tem 3600; França, 3300; Espanha,
2400; Itália 2800.
Mesmo assim, o general Stanley McChrystal, comandante das forças de
ocupação no Afeganistão, pediu ao governo o envio de mais 40 mil soldados,
sem os quais, segundo ele, os EUA estariam sob risco de sair derrotados
desta guerra.
Não é necessária tal declaração para se concluir que os Estados Unidos
e a OTAN estão com graves problemas do ponto de vista militar. A maior
evidência é o próprio pedido de aumentar as tropas americanas em 60%, o
que significa um esforço de guerra extraordinário, com o equivalente em
armas e suprimentos. Com as Forças Armadas dos EUA esgotadas depois
de combater durante oito anos em duas guerras simultâneas, é fácil entender
que não se apelaria para tal medida se esta não fosse decisiva.
O imperialismo não pode se dar ao luxo de sofrer outra derrota militar,
desta vez no Afeganistão. A derrota no Vietnã custou anos de crise até que os
Estados Unidos pudessem retomar sua ofensiva contra os povos explorados
do mundo. A derrota no Iraque, ainda que o governo dos EUA tente atenuar
seus efeitos e busque uma retirada “honrosa”, significou o fim do projeto de
um novo “século americano” e da ofensiva bonapartista que o acompanhava.
Uma derrota no Afeganistão pode abrir uma nova crise de grandes proporções.
1 Correio Internacional, n. 152, setembro
2009
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
65
Dossiê
O Talibã e a extensão da guerra ao Paquistão
Outro aspecto fundamental da situação militar é a facilidade geográfica
que o Talibã encontra para desenvolver sua atividade guerrilheira. Como todos os movimentos de guerrilha bem-sucedidos, o Talibã se fortalece porque
tem um país vizinho, neste caso o Paquistão, que pode utilizar como refúgio
para seus militantes. Os insurgentes do Talibã atravessam a fronteira entre o
Afeganistão e o Paquistão, porosa e com muito pouca vigilância, e se abrigam
no país vizinho. Aproveitam-se dos laços étnicos, culturais e até familiares, já
que sua principal base de apoio encontra-se entre o mesmo povo, os pashtun,
que vive dos dois lados da fronteira.
O povo pashtun, que constitui a maior etnia do Afeganistão com 40% da
população, também está presente em grande número no Paquistão, principalmente na chamada Província da Fronteira Noroeste, nas Áreas Tribais e no
norte da Província do Baluquistão. Além disso, no Paquistão existem mais
de cinco milhões de refugiados afegãos, a maioria de pashtuns, uma grande
parte concentrada ao redor da cidade de Peshawar. No total, 26 milhões de
pashtuns vivem no Paquistão.
O Talibã chegou a dominar uma região, o Vale do Swat na Província da
Fronteira Noroeste, onde implantaram a Lei muçulmana da sharia2, com o
acordo implícito do governo paquistanês. Recentemente, o governo rompeu
o acordo e atacou o Talibã, expulsando-o do Vale. No entanto, a ofensiva do
exército paquistanês gerou mais de dois milhões de refugiados paquistaneses
em seu próprio país.
Nos últimos dias de outubro, o exército paquistanês começou outra
ofensiva, desta vez para tentar desalojar o Talibã do Waziristão do Sul, uma
região das chamadas Áreas Tribais do Paquistão.
Para se ter uma idéia do que significa a presença do Talibã nesta área, é
interessante ver o depoimento do jornalista David Rohde do New York Times.
Rohde foi sequestrado no Afeganistão e mantido como refém durante sete
meses pelos Haqqani, uma das facções do Talibã. Depois foi levado para o
Waziristão do Sul e mais tarde para o Waziristão do Norte. Ali, o Talibã criou
um mini-Estado, um “emirado islâmico” no feitio do que havia no Afeganistão antes da invasão das tropas dos EUA. O jornalista afirma: “A perda
de milhares de vidas afegãs, paquistanesas e americanas e bilhões de dólares
em ajuda americana apenas deslocaram o Estado alguns quilômetros para o
leste, não o eliminaram”.3
O que fica evidente com as campanhas do exército paquistanês no Vale
do Swat e no Waziristão é que a guerra estendeu-se ao Paquistão. As razões
são políticas e sociais, facilitadas pela geografia. Os dois países compartilham
2400 quilômetros de fronteira, mas esta linha existe somente nos mapas.
Ou seja, como pano de fundo da extensão do conflito ao Paquistão
está uma questão nacional muito presente nesta região: a divisão artificial
do povo pashtun promovida pelo imperialismo britânico em 1893, quando
estabeleceu a Linha Durand, uma fronteira traçada entre a Índia Britânica
e o território afegão. Durante décadas, nacionalistas pashtuns defenderam a
criação do Pashtunistão como um país independente, constituído pelas áreas
sob domínio desta etnia no Afeganistão e Paquistão.
66
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
2 Corpo de Direito
islâmico, adotado pela
maioria dos mussulmanos. Constitui um
código detalhado de
conduta, na qual se
incluem também as
normas relativas aos
modos do culto, os
critérios da moral e
da vida, as coisas permitidas ou proibidas,
as regras separadoras
entre o bem e o mal.
3 The New York Times,
artigo reproduzido
pela Folha de S. Paulo
(02/11/2009)
Dossiê
Esse processo, portanto, deve ser entendido no seu contexto regional
e mundial. A guerra do Afeganistão é uma guerra de libertação nacional
contra a ocupação militar imperialista. Por isso une diferentes etnias de
países da região, que também lutam contra a opressão do imperialismo e seus
agentes nacionais e a divisão promovida pelo imperialismo.
A guerra não só já está desestabilizando o Paquistão como pode chegar a
desestabilizar toda a região, porque, além disso, o Afeganistão tem uma posição estratégica no Oriente Médio: está localizado entre o Irã, a Ásia Central
e o subcontinente indiano e tem laços étnicos com os povos iranianos, turcos
e indianos de vários países da região.
Porém, o mais importante é que esta guerra de libertação nacional se
insere no contexto geral da luta dos povos islâmicos contra o imperialismo.
Por isso, assistimos ao fenômeno de combatentes de diferentes nacionalidades
islâmicas apoiando a insurgência.
Por fim, ao golpear e enfraquecer diretamente o imperialismo, a guerra de
libertação nacional do povo afegão transforma-se em um fato de repercussão
mundial para os trabalhadores e os povos de todo o mundo.
Antes, porém, de abordar a situação política da ocupação militar e a
política de Obama, parece-nos útil aportar alguns dados que permitam compreender melhor o Afeganistão e alguns elementos de sua história recente.
O que é o Afeganistão?
O Afeganistão é um país com 85% do seu território formado por montanhas, numa área de 647,5 mil km². Sua população estava estimada em cerca
de 32 milhões de habitantes em 2008.
É um dos países mais pobres do mundo. A taxa de mortalidade infantil é
de 160,23 mortes a cada 1000 nascimentos. A expectativa de vida é de 43 anos.
A instabilidade política e os conflitos internos arruinaram a já débil economia
e infra-estrutura. Hoje, cerca de 1/3 da população afegã já abandonou o país.
No Afeganistão convivem diferentes grupos étnicos que em sua maioria
são povos iranianos, ou seja, falam idiomas indo-europeus do subgrupo das
línguas iranianas (os pashtuns, os tadjiques e os balúchis, por exemplo). Outras etnias falam línguas do grupo turco (como os uzbeques e turcomanos).
O idioma dari, também chamado de persa oriental ou farsi oriental, é falado
em 50% do país e utilizado como língua franca de comunicação entre os
diferentes povos iranianos.
Como não há um censo sistemático no país, não existem estatísticas
exatas do tamanho e da composição dos variados grupos étnicos. Segundo o
CIA World FactBook4, uma distribuição aproximada é a seguinte: pashtuns,
42%, tadjiques 27%, hazaras 9%, uzbeques 9%, aimaks 4%, turcomanos 3%
e balúchis 2%.5
Estes grupos étnicos vivem também em vários dos países com os quais
o Afeganistão faz fronteira. Por exemplo, existem cerca de 26 milhões de
pashtuns no Paquistão, segundo o último censo. A maioria vive na Província
da Fronteira Noroeste, cuja capital é Peshawar, mas também existem 3,5
milhões de pashtuns em Karachi, a maior cidade do Paquistão e que abriga
a maior concentração da etnia pashtun em uma única cidade. Outras etnias
4 Espécie de anuário
da CIA onde analisam
dados geográficos,
econômicos e sociais
de todos os países do
mundo.
5 CIA World FactBook, 2007.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
67
Dossiê
são majoritárias em países vizinhos, como Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão.
As bases históricas da guerra atual
Os elementos da história recente do Afeganistão que explicam as raízes da
guerra atual começaram a ser gerados há três décadas: a Revolução iraniana e a
invasão soviética do Afeganistão. Em 1979, uma revolução operária e popular
no Irã derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Este acontecimento teve um
tremendo impacto sobre os povos islâmicos oprimidos pelo imperialismo.
Também teve repercussão entre as então Repúblicas de maioria islâmica
da fronteira sul da ex-União Soviética (Uzbequistão, Cazaquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirquistão)6, assim como entre as etnias islâmicas
dentro da Rússia (como os chechenos), todas oprimidas pelo “chauvinismo”
grão russo, incentivado pela burocracia stalinista.
O Afeganistão tinha um governo próximo ao da União Soviética, mas
ameaçado por uma crescente oposição islâmica e problemas internos. Temendo a constituição de uma república islâmica na sua fronteira e a possível
extensão da revolução islâmica a suas repúblicas da Ásia Central, a União
Soviética invadiu o Afeganistão.
A invasão soviética desencadeou uma luta guerrilheira de resistência.
Os Estados Unidos aproveitaram-se da insatisfação gerada pela invasão para
combater a influência soviética nessa parte do mundo e desgastar a burocracia comunista. Para isso, apoiaram e armaram uma guerrilha muçulmana, os
“mujaheddin”, à qual se uniram combatentes islâmicos de vários países, entre
os quais Osama Bin Laden e boa parte das organizações islâmicas fundamentalistas atuais. Alguns dos principais atores da guerrilha foram os “senhores
da guerra”, oligarcas que hoje dirigem as principais nacionalidades do país.
Depois de dez anos, a guerrilha islâmica expulsou os soviéticos em 1989
e tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram a se
enfrentar e o país mergulhou na guerra civil.
Diante desta situação, os Estados Unidos, agindo por meio de seu aliado,
a ditadura militar que governava o Paquistão, buscaram criar um instrumento
para estabilizar o país. O ISI (organismo de segurança do governo paquistanês) incentivou a formação de uma organização de estudantes das Madrassas
(escolas islâmicas) da região onde predomina a etnia pashtun. Seus membros
ficaram conhecidos como Talibãs, palavra emprestada do árabe talib (estudante ou quem estuda o livro, isto é, o Corão) e utilizada no plural Talibã
(em farsi e em pashtun).
O Talibã entrou na guerra civil e, depois de uma campanha militar
vitoriosa, conseguiu tomar o poder e governar o país de 1996 a 2001. No
princípio, o Talibã foi visto com muita simpatia porque trazia ordem a um
país mergulhado no caos e na destruição devido aos confrontos entre os
“senhores da guerra”. Depois, no entanto, foi se desgastando, à medida que
foi instituindo uma república islâmica das mais reacionárias e repressivas do
mundo, especialmente em relação às mulheres.
No entanto, por mais reacionário que fosse, o governo do Talibã não
gozava da confiança dos Estados Unidos, pois não estava sob seu controle. O
68
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
6 O nome desses países é formado pela
adição do sufixo ostan (que quer dizer
“lugar” em farsi ou
persa) e o nome da
etnia principal do país.
Assim, Uzbequistão
significa “lugar ou
terra dos uzbeques”,
Tadjiquistão, “lugar
ou terra dos tadjiques”
etc. Afeganistão significa “lugar, terra ou
país dos afegãos”, que
é o nome pelo qual
eram conhecidos os
pashtuns.
Dossiê
atentado de 11 de setembro de 2001 e o objetivo declarado de capturar Osama
Bin Laden, aliado do governo Talibã, foi o pretexto para Bush invadir o país.
Mas as verdadeiras razões da guerra eram econômicas e geopolíticas.
Um dos objetivos centrais do imperialismo é o escoamento da produção
das principais empresas petrolíferas dos países da Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão) por um oleoduto que atravessaria todo o Afeganistão até
um porto no Paquistão. Desta maneira, aquele teria o controle total sobre
os oleodutos e gasodutos, ou seja, o transporte do petróleo que atualmente
está nas mãos da Rússia.
Além disso, o Afeganistão tem uma posição geográfica estratégica para a
estabilidade da região. Está localizado entre o Oriente Médio, região detentora das maiores reservas de petróleo do mundo, a Ásia Central, que também
tem importantes reservas, e o subcontinente indiano. Um dos objetivos da
ocupação era manter bases militares permanentes dos EUA no Afeganistão.
Expulso do governo, o Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma
guerra de guerrilha contra as tropas de ocupação. O imperialismo, mais uma
vez, atuou como “aprendiz de feiticeiro”, criando um instrumento que mais
tarde voltou-se contra ele. Contraditoriamente, um movimento reacionário
atualmente luta de armas na mão contra o imperialismo.
A crise política da dominação colonial
Com a ocupação militar por tropas do imperialismo norte-americano e
seus aliados, o Afeganistão transformou-se numa verdadeira colônia, sem
independência política ou econômica.
Como na maioria das colônias, a ”metrópole” procura transferir para um
regime político e um governo “local” algumas tarefas da administração da
máquina estatal civil e, inclusive, uma parte da repressão interna (embora,
no caso do Afeganistão, a guerra de libertação nacional force a que a maior
parte da repressão seja assumida pelas forças de ocupação).
Os Estados Unidos nomearam diretamente o governo de Hamid Karzai
para cumprir este papel no Afeganistão. É um governo colonial fantoche
que depende totalmente das tropas de ocupação. E se baseia em um regime
de democracia colonial farsesco, em que todas as instituições se apoiam nas
tropas de ocupação ou em organismos internacionais para poder existir.
Mas, apesar disso, o imperialismo tenta conferir ao regime uma aparência
democrática e ao governo um reconhecimento internacional que justifique
a ocupação militar.
No entanto, os Estados Unidos enfrentam uma dificuldade enorme não
só para montar este regime e governo coloniais locais como para organizar o
próprio Estado. O aparato estatal e a própria infraestrutura do país são muito
débeis devido ao atraso, às dificuldades geográficas e aos quase trinta anos de
guerras permanentes desde a invasão pela União Soviética.
O próprio exército afegão, a mais importante instituição de qualquer
Estado, não passa de uma junção dos exércitos dos “senhores da guerra”,
que controlam as principais etnias do país (tadjiques, uzbeques e hazaras). A
polícia afunda-se em incompetência e corrupção e o tráfico de ópio e heroína
atinge os principais escalões do governo.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
69
Dossiê
A produção de drogas é um dos elementos não só de corrupção, mas
também de fragilização do Estado. E não é um problema qualquer: no Afeganistão, o ópio, proveniente das plantações de papoula, é o principal produto de
exportação, com um valor estimado em US$ 5 bilhões anuais. O país produz
93% da matéria-prima mundial necessária para a fabricação da heroína.
O imperialismo utiliza frequentemente as drogas como uma arma política. Mas, neste caso, existe um grande risco, nos dois sentidos. Por um lado,
não há como controlar as plantações de papoula, principalmente nas regiões
mais conflagradas. Por isso, o dinheiro da droga é uma das principais fontes
de financiamento do Talibã. A província de Helmand, com forte presença do
Talibã, produz 70% do ópio afegão. Por outro lado, o narcotráfico infiltra-se
diretamente no aparato do Estado fantoche. Um dos principais traficantes
do país é Walid Karzai, irmão do atual presidente e denunciado como sendo
um agente pago pela CIA desde 2001.
Neste aspecto, a situação no Afeganistão se parece cada vez mais com
o Vietnã, onde os principais traficantes do país chegaram a ser Nguyen Van
Thieu e Cao Ky, respectivamente presidente e vice-presidente do governo
fantoche do Vietnã do Sul. O perigo para Karzai é terminar como Cao Ky
ou Ngo Dinh Diem, alijados do poder por disputas internas entre os grupos
de traficantes do governo.
Esses problemas estruturais do regime colonial, que têm a ver com uma
produção econômica e uma burguesia local extremamente frágeis e com o
apoio maciço à insurgência guerrilheira, constituem o pano de fundo da atual
crise política do processo eleitoral e do governo de Karzai. Em setembro, o
Correio Internacional já assinalava a crise do processo eleitoral e os problemas
que isso trazia para o objetivo do imperialismo de tentar dar uma aparência
de legitimidade à ocupação militar e à guerra.
Esta conclusão tornou-se evidente com as últimas eleições presidenciais
no país, realizadas em 21 de agosto. O processo eleitoral custou 300 milhões
de dólares e muito esforço para seus organizadores, mas o desfecho é de crise.
Calcula-se que somente compareceram às urnas cerca de 40% a 50% dos
15,6 milhões de eleitores em condições de votar. O resultado é bem inferior
à eleição anterior, realizada em 2004, quando a participação, segundo os
organizadores, chegou a 70% dos eleitores.
A abstenção eleitoral mostrou a fragilidade do governo afegão e das “instituições” criadas pelo imperialismo. Um só dado mostra bem esta situação:
em Kandahar, província e cidade do mesmo nome, localizada no sul do país
e santuário do Talibã, a abstenção pode ter chegado à incrível porcentagem
de 95% de um milhão de eleitores registrados, segundo observadores internacionais independentes.
O processo de votação esteve marcado pelas denúncias de fraude que
favoreceram o presidente Karzai, que tenta ganhar no primeiro turno para
evitar o prolongamento da campanha eleitoral até 1º de outubro, quando se
daria o segundo turno.7
Das eleições para cá, a crise e o desmascaramento da farsa só aumentaram.
As denúncias de fraude nas eleições foram tão grandes que obrigaram os organismos internacionais a pedirem a anulação de mais de um milhão de votos.
70
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
7 Correio Internacional, 152, setembro de
2009.
Dossiê
A pressão obrigou a Comissão Eleitoral Independente (sic), ligada a Karzai,
a anular estes votos. Com a anulação, Karzai não atingiu a maioria para ser
eleito no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno.
O imperialismo, que antes das eleições já percebia a ineficiência do
governo de Karzai para cumprir seu papel de fantoche com um mínimo de
credibilidade, pressionava para um acordo para a participação de Abdullah
Abdullah e outros candidatos no novo governo.
O segundo turno chegou a ser anunciado, mas o candidato de oposição
Abdullah Abdullah, que deveria enfrentar Karzai, renunciou da segunda,
denunciando que não havia garantias mínimas para uma eleição democrática.
Com isso, Karzai foi declarado finalmente vencedor (sic), depois de dois
meses de crise que só confirmaram a fraude do sistema eleitoral e do regime.
Ou seja, um verdadeiro desastre político.
A conclusão a que chegava o Correio Internacional há dois meses é mais
válida que nunca: “(...) as eleições serviram muito pouco ao propósito do
imperialismo de criar a imagem de um regime democrático e de uma situação mais estável, apesar da guerra”8. Esta crise política do regime colonial
de dominação faz recair mais ainda sobre as tropas de ocupação o peso do
combate à insurgência guerrilheira.
A política de Obama
A estratégia e as táticas do atual governo dos Estados Unidos para a
guerra do Afeganistão só podem ser consideradas no marco da política geral
do imperialismo contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o
mundo. Esta política é analisada por Alejandro Iturbe em outro artigo deste
número da Marxismo Vivo, que explica a mudança de tática do imperialismo
para continuar enfrentando a luta dos trabalhadores e povos do mundo no
novo cenário criado pela derrota da ofensiva militar do governo Bush.
A nova política do imperialismo está marcada por duas orientações gerais.
Por um lado, continua sendo imperialismo e, por isso, mesmo com um presidente negro que utiliza um discurso conciliador, democrático, que prega a
união de povos e classes, continua tendo como objetivo principal explorar a
classe operária de todo o mundo e saquear as riquezas dos países explorados.
Para isso, continua disposto a utilizar todos os recursos e a violência necessária
e possível na atual situação mundial.
Mas, por outro lado, a derrota do projeto de Bush enfraqueceu o imperialismo e obrigou-o a adotar uma tática preferencial de negociações, planos
de “paz” e manobras “democráticas” para desviar e derrotar revoluções e
processos de insurgência armada. Isso não significa que o imperialismo abandone as guerras e as ações armadas, mas que prioriza a tática das negociações,
utilizando a força para pressionar os inimigos e obrigá-los a claudicar, capitular
e a colaborar em troca de concessões “democráticas”.
Mas, quando passamos da análise da tática mundial do imperialismo para
abordar a situação concreta do Afeganistão, parece haver uma contradição:
o novo governo de Barack Obama vem intensificando a intervenção militar
neste país. Desde a campanha eleitoral, Obama vem defendendo que é no
Afeganistão que se trava a principal batalha contra o terrorismo e que agora,
8 Idem
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
71
Dossiê
ao contrário da guerra do Iraque, as tropas americanas podem sair vitoriosas.
Depois da posse, Obama mandou mais 30 mil soldados ao país e prometeu transformar o Afeganistão no centro da “guerra contra o terrorismo”.
Utiliza os mesmos argumentos de Bush, de que esta seria uma “guerra justa”
porque é contra o terrorismo, e prometeu “destruir, desmantelar e derrotar
a Al-Qaeda e seus aliados extremistas”, inclusive os talibãs.
Este discurso e estas iniciativas poderiam indicar que o presidente dos
EUA estaria preparando uma volta à ofensiva guerreira de Bush, senão em
todo o planeta, pelo menos no Afeganistão? Em nossa opinião é o contrário:
este é um dos países onde o governo Obama mais busca aplicar sua nova tática. O problema é que também é o lugar onde o imperialismo está em piores
condições de aplicar qualquer política.
Obama sabe que o curso desta guerra não pode ser mudado com o envio
de mais tropas, a não ser em uma escala que não seria aceita pela opinião
pública norte-americana. Um ex-agente da CIA chegou a afirmar que seriam
necessários um milhão de soldados para derrotar o Talibã e estabilizar o país.
Por quê? Porque é evidente que a insurgência guerrilheira tem apoio de
massas entre a população. Se não, não seria possível para o Talibã desenvolver
uma ação permanente em 80% do país. E por que os insurgentes têm apoio?
Porque a ocupação militar piorou muito a situação do país. Produziu
bombardeios constantes que atingem indiscriminadamente a população e já
mataram dezenas de milhares de civis. Só em 2008, os EUA realizaram 3572
ataques aéreos, boa parte por meio de drones, aviões sem piloto. O regime
político, agora supostamente “democrático”, governa baseado na corrupção,
na fraude eleitoral, na violência e, principalmente, nas tropas estrangeiras. A
situação de atraso do país, que gera a violência contra a mulher, não mudou,
mantendo-se inclusive o amplo uso da burka. Em resumo, o Talibã recebe
apoio simplesmente porque as massas não aceitam mais a presença das tropas
de ocupação.
Uma das ironias desta guerra é que o reacionário Talibã encabece a luta
armada contra o imperialismo. Esta contradição não é casual. A política
sistemática de recolonização dos países periféricos e o ataque militar brutal
protagonizado pelo governo Bush acabaram levando a que uma força aliada
do imperialismo até pouco tempo atrás terminasse se enfrentando com ele.
Diante desta situação extremamente difícil, o governo Obama e a burguesia norte-americana estão discutindo possíveis saídas. E existem divergências,
como seria previsível face à delicada posição dos Estados Unidos na guerra.
Há setores do imperialismo - inclusive conservadores como o conhecido
colunista reacionário do Washington Post, George Will, que escreveu um artigo
com o sugestivo título É preciso saber quando se deve parar – que começam a
se declarar contra a continuidade da intervenção no Afeganistão.
Entre os setores que defendem a continuidade da ocupação e da guerra
e no próprio governo Obama existe uma divergência interna, ou pelo menos
duas tendências, sobre a estratégia a seguir. Segundo a informação vazada
por integrantes do governo para a imprensa americana9, haveria dois grandes
esquemas em discussão e em disputa. Um, encabeçado pelo comandante americano no Afeganistão, Stanley McChrystal, prevê manter a tática atual e um
72
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9 Noticiado por Sérgio Dávila, correspondente em Washington
da Folha de S. Paulo
(11/10/2009).
Dossiê
acréscimo de 40 ou até 60 mil homens na força militar. O outro, defendido
pelo vice-presidente Joe Biden, manteria o atual contingente, mas substituiria uma parte dos soldados por oficiais treinadores que teriam o objetivo de
formar uma força de segurança afegã.
Mas, segundo a mesma notícia, a discussão mais importante seria sobre
uma nova estratégia para a guerra. O foco, ou seja, os alvos da ação militar
norte-americana dividir-se-iam em dois. A prioridade passaria a ser eliminar
os líderes do Al Qaeda, vistos por Washington como uma rede global jihadista
que procura atacar os EUA. Esta é, evidentemente, uma declaração pró-forma,
porque o Al Qaeda não tem nenhuma influência no movimento de resistência.
Quanto ao Talibã, que constitui a organização central do movimento de
resistência e tem apoio de massas, continuaria a sofrer ataques do imperialismo
e do exército paquistanês, “mas não estaria descartada a negociação com o
baixo clero da organização e até a possibilidade de se negociar uma trégua”10.
Analisando essas diferentes posições e variantes, fica claro que nenhuma
tem como estratégia conseguir uma vitória militar nesta guerra, isto é, que
as tropas de ocupação esmaguem a resistência e destruam o Talibã. Isso porque, obviamente, a situação da luta de classes em todos os seus aspectos – a
insatisfação das massas com a guerra e a ocupação, o repúdio às tropas invasoras, o apoio ou neutralidade em relação ao Talibã, a debilidade do governo
fantoche – torna impossível a vitória.
A própria posição do general McChrystal assemelha-se à política do
Surge11 no Iraque, da qual ele foi o principal executor militar. Esta política
consistiu num aumento de tropas, mas com o objetivo de pressionar a resistência sunita a um acordo baseado em concessões políticas e econômicas.
O aumento de tropas explica por que o imperialismo americano não pode
aceitar, pelo menos num primeiro momento, a posição do setor burguês que
propõe uma retirada imediata. Uma decisão desse tipo provavelmente teria
como conseqüência uma vitória rápida da resistência e a volta do Talibã ao
poder. Um fato desta dimensão significaria, sem dúvida, um golpe no imperialismo e abriria uma crise no governo Obama.
Esse dilema do governo Obama reflete a própria situação da guerra e do
imperialismo. Mas, justamente por isso, reafirmamos o que dissemos anteriormente: o imperialismo não só tenta aplicar no Afeganistão sua tática de
negociações como esta é a melhor tática de que dispõe para tentar derrotar
a insurgência. E será neste país que esta política será submetida ao seu mais
duro teste. Neste contexto, pode ser até que o governo Obama envie ainda
mais tropas, mas sempre com o objetivo de negociar um acordo com o Talibã
para estabilizar o país e permitir uma saída negociada das tropas imperialistas.
A ofensiva militar subordina-se ao aspecto principal da política, isto é,
a ação militar busca pressionar o Talibã a negociar, obter uma posição mais
vantajosa para o imperialismo e, se possível, a capitulação da resistência.
Na verdade, tudo indica que esta política de negociação já está em curso.
Segundo a Red IslamOnline.net, um alto funcionário do governo afegão informou a este órgão, sob a condição de permanecer anônimo, que o governo dos
EUA já teria feito uma primeira proposta ao Talibã, por meio dos governos da
Arábia Saudita e Turquia. A proposta consistiria em ceder a este movimento
10 Idem.
11 Surge: Política de
Bush en 2007 para
aumentar as tropas
no Iraque.
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Dossiê
o governo de seis províncias (Kandahar, Zabul, Helmand, Orazgan, no sul,
e Nuristán e Kunar, no nordeste do país). Em troca, o Talibã aceitaria a presença das forças da OTAN e a existência permanente de oito grandes bases
militares imperialistas no país.12
É certo que, aparentemente, o Talibã rechaçou a proposta, mas o mais
importante é constatar qual é a verdadeira política do imperialismo. Outras
notícias informam que Hillary Clinton, em sua recente viagem ao Paquistão,
teria acertado com os militares deste país que seriam eles os interlocutores
das negociações com o Talibã. Se non è vero...
Os revolucionários não são neutros nesta guerra: lutamos pela vitória da
resistência e pela derrota do imperialismo
A guerra do Afeganistão estará cada vez mais no centro dos acontecimentos mundiais e, portanto, exigirá dos revolucionários, das organizações de
esquerda e de todos os ativistas dos movimentos sociais tomar uma posição.
Isso é ainda mais importante porque grande parte da esquerda, inclusive
uma parte da que se reivindica trotsquista, tomou uma posição de “neutralidade” quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão há oito anos. Na
época, a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) posicionou-se na
trincheira militar do reacionário Talibã contra os Estados Unidos “democráticos”. Acreditamos que o balanço desses oito anos de guerra nos deu razão.
Mas agora a situação é ainda mais evidente: trata-se de uma guerra de
libertação nacional contra um exército imperialista de ocupação formado
por mais de 100 mil homens. Nenhum ativista anti-imperialista do mundo
pode vacilar quanto ao lado da trincheira em que deve estar. Neste sentido,
a posição recente da LIT resume o que está em jogo nesta luta.
O destino da guerra do Afeganistão interessa a todos os trabalhadores e
povos explorados do mundo. Uma derrota do imperialismo americano nesta
guerra pode significar um golpe tremendo contra o opressor. É preciso lutar
para que esta guerra termine sendo o Vietnã de Barack Obama. Por isso,
a LIT chama todas as organizações populares e democráticas do mundo a
denunciar a ocupação militar do Afeganistão e exigir a retirada das tropas
invasoras. Chamamos especialmente os trabalhadores de países imperialistas
que mantêm tropas de ocupação no país, como é o caso da Inglaterra, Alemanha e Espanha, entre outros, a mobilizarem-se para exigir de seus governos
a retirada imediata de seus soldados.
Nós não somos neutros na guerra que está sendo travada nas montanhas
daquele país. Estamos do lado dos oprimidos e agredidos pela invasão e
ocupação imperialista. A luta do povo afegão é para expulsar as tropas imperialistas de ocupação e conseguir a verdadeira independência nacional do
Afeganistão. Por isso, sem que signifique qualquer tipo de apoio político às
posições do Talibã, a LIT declara seu apoio às ações militares da resistência.
A luta guerrilheira que enfrenta o imperialismo, ainda que dirigida por uma
organização burguesa reacionária, é um dos fatores fundamentais para as
baixas e o desgaste das tropas, para a crescente queda de popularidade do
governo Obama e para a crise da ocupação militar. É esta luta militar de resistência, junto às mobilizações e à pressão da opinião pública principalmente
dos países imperialistas, que pode infligir uma derrota ao imperialismo.13
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12 LATIFF, Aamir.
Los talibanes rechazan
la oferta de EE.UU.
de 6 provincias por 8
bases. www.IslamOnline.net, 05/11/2009,
reproduzido por Rebelión.org.
13 Correio Internacional, n. 152, setembro
de 2009
Dossiê
A guerra, o imperialismo e a
questaã~o nacional polarizam o
Paquistaã~o
Bernardo Cerdeira
Editor de Marxismo Vivo
A guerra do Afeganistão estendeu-se de tal maneira ao Paquistão que
hoje o mais correto seria falar de uma só guerra do Afeganistão-Paquistão.
O próprio imperialismo já fala de uma só “entidade”, que ele denomina Afpak, e tem uma política de conjunto para ela. Chegou a designar um enviado
especial do Departamento de Estado, Richard Holbrook, para dar atenção
aos dois países.
A guerra está presente em toda a situação política do Paquistão, desde o
crescimento da insurgência guerrilheira até as tremendas pressões do imperialismo sobre o governo Zardari, que forçaram a atual ofensiva do exército
sobre a região de influência do Talibã em aliança com grupos locais.
No entanto, a realidade da guerra se ergue sobre enormes contradições
que o país alberga desde sua fundação em 1947, especialmente a questão
nacional, que atinge algumas de suas diferentes etnias.
A ofensiva do exército paquistanês
O Paquistão está envolvido nesta guerra desde seu princípio em 2001.
Com o fluxo de refugiados e combatentes do Afeganistão que atravessaram a
fronteira buscando refúgio dos ataques militares das tropas norte-americanas
veio também a guerra. Os refugiados guardam laços étnicos com a população
paquistanesa da região – são do povo pashtun que vive nos dois países – e
também relações políticas e religiosas, já que a constituição do Talibã, organização que dirigia o Estado afegão, deu-se nas escolas islâmicas do Paquistão
(Madrassas), estimulados por uma política do governo e do ISI, serviço
paquistanês de segurança e informação.
Uma aliança do Talibã com grupos islâmicos insurgentes locais desenvolveu uma forte presença no Waziristão do Norte e do Sul, regiões localizadas
nas Áreas Tribais do Paquistão, assim como na Província da Fronteira Noroeste, onde chegaram a estabelecer a sharia (lei islâmica) na região do vale
do Swat, com a própria anuência do governo.
O exército paquistanês, pressionado pelos EUA, vem reagindo com intensas e amplas ofensivas militares nestas regiões. Esta intensificação da guerra
vem acompanhada por métodos brutais utilizados pelo exército do Paquistão,
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
75
Dossiê
que provocaram a fuga de milhões de refugiados civis em seu próprio país.
Em abril e maio deste ano, o exército paquistanês empreendeu um
importante ataque ao Vale do Swat, na Província da Fronteira Noroeste,
tentando esmagar o movimento islâmico pashtun Teheek-e-Nafaz-e-Shariate-Mohammadi (TNSM), que tem ligações com o Talibã e cuja crescente
influência reflete o apoio que a organização afegã tem entre a população
pashtun do Paquistão. O ataque foi uma exigência de Washington, que temia
que a trégua assinada em princípios deste ano entre o TNSM e o governo
paquistanês permitisse que muitos militantes passassem ao Afeganistão para
se unir à resistência.
Durante os combates, segundo o exército paquistanês, foram mortos 1800
combatentes do TNSM e outros 900 foram capturados. O ataque provocou
a fuga de dois milhões de civis, devido aos ataques aéreos e bombardeios do
exército. Centenas de milhares ainda não voltaram, por medo ou porque suas
casas estão destruídas.
O Vale do Swat continua ocupado por uns cinquenta mil soldados e policiais. A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão afirma que as forças
de segurança estão assassinando partidários do TNSM. Foram descobertas
fossas comuns que continham corpos de supostos militantes executados pelo
exército. Depois se encontraram outros 75 corpos perto do povoado de Kabal.
Mais recentemente, em fins de outubro, trinta mil soldados paquistaneses,
apoiados pela Força Aérea, iniciaram nova ofensiva no Waziristão do Sul, na
região das Áreas Tribais autônomas, bastiões do Tehrik-e-Taliban paquistanês,
um movimento islâmico pashtun que proporciona um refúgio seguro aos
insurgentes afegãos que lutam na fronteira contra a ocupação dos Estados
Unidos e da OTAN. A ofensiva está concentrada na área da tribo Mehsud
que também é o quartel-general do Tehrik-e-Taliban Pakistan (TTP).
A zona tribal, pobre e abandonada pelo governo central, sofreu um duro
castigo com as diferentes operações militares das Forças Armadas paquistanesas. A economia entrou em colapso com os bloqueios econômicos e a
existência de dois milhões de refugiados internos e, por outro lado, aumentou
o tráfico de armas e drogas.
No entanto, a eficácia das operações militares é duvidosa. A maioria dos
insurgentes escapou da região em meio às centenas de milhares de refugiados.
Em contrapartida, os grupos militantes ampliaram suas ações em todo o país:
ataques contra o quartel-general do exército, um importante comboio militar,
diferentes edifícios policiais de Lahore, os escritórios da ONU na capital, etc.
Somente na primeira semana de novembro morreram mais de 200 pessoas em
atentados a bomba em diferentes cidades e regiões do Paquistão.
Esta polarização abre a possibilidade de que o TTP (que é uma aliança
de grupos) chegue a um acordo com grupos jihadistas do Punjab ou da Caxemira, não só fortalecendo sua ação militar na região (o que parece já estar
acontecendo) como a ampliando ao conjunto do país.
Por outro lado, existe uma ação direta das Forças Armadas dos Estados
Unidos dentro do Paquistão que ajuda a exacerbar a situação. Os EUA têm
um “programa” de assassinatos de dirigentes dos talibãs e da resistência em
geral, que visa também aterrorizar a população civil. O instrumento utilizado
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Dossiê
para esta verdadeira campanha de terror são aviões sem piloto teledirigidos,
os drones Predator.
Em 5 de agosto, mísseis lançados por um Predator mataram o ex-chefe
do Tehrik-e-Taliban, Baitullah Mehsud, assim como sua mulher e outras 17
pessoas. Desde agosto deste ano, os ataques aéreos dos Estados Unidos
mataram mais de 700 civis paquistaneses. O vicepresidente Joe Biden é um
dos defensores deste tipo de ações e quer pôr mais ênfase nos ataques aéreos
com drones e nas forças de operações especiais.
No entanto, este tipo de intervenção direta dos EUA com uma clara
agressão militar dentro do Paquistão provoca repúdio geral. Uma recente
pesquisa americana no país apontou que “76% dos entrevistados opunhamse a que o Paquistão se associasse aos EUA nos ataques com mísseis contra
extremistas por aviões drones norte-americanos”
Frente a esta reação, o governo paquistanês também se viu obrigado a
protestar contra os ataques de mísseis dos Estados Unidos, lançados a partir
de aviões sem tripulantes contra alvos talibãs dentro do Paquistão.
Ou seja, as ofensivas combinadas das tropas imperialistas no Afeganistão
e do Exército paquistanês provocaram uma reação de atentados, resistência
popular e muito ódio à ocupação e às agressões militares imperialistas. A
segunda conclusão é que esta reação das massas – que se dá principalmente
nos territórios pashtun do Paquistão – ameaça servir de catalisador das insatisfações populares do resto do país e da crescente oposição ao governo
de Zardari. E, por último, a resistência guerrilheira às tropas imperialistas e
seus aliados vem se colocando cada vez mais como o polo aglutinador dos
combatentes não só no Afeganistão, mas também no Paquistão.
A pressão brutal do imperialismo
Quanto mais os Estados Unidos se metem no “atoleiro” da Guerra no
Afeganistão, mais são obrigados a intervir no Paquistão, política e militarmente. Esta intervenção ocorre em forma direta (bombardeios, assessores
militares, espionagem) e indireta (através de violentas pressões sobre o governo, as Forças Armadas e outras instituições do país) para que combatam
o Talibã e seus aliados deste lado da fronteira.
Do ponto de vista militar, o imperialismo vem intensificando sua presença no Paquistão. O General Stanley McChrystal, comandante das tropas
norte-americanas no Afeganistão e o General David Petraeus, comandante em
chefe das tropas norte-americanas, estão frequentemente no país. As Forças
Armadas dos EUA mostraram-se especialmente satisfeitas com a ofensiva do
exército. O general Petraeus expressou seu apoio à brutal campanha e elogiou
as “firmes operações militares paquistanesas” que “limparam de militantes”
o vale do Swat e outras zonas da Província da Fronteira Noroeste.
No Pentágono foi criado um programa de especialistas afegãos e uma
Célula de Coordenação Paquistão-Afeganistão, duas unidades concentradas
na melhoria do rendimento militar no teatro de operações Af-Pak durante os
próximos três a cinco anos. Por outro lado, o Pentágono revelou que mais de
70 conselheiros militares dos EUA trabalharam no Paquistão.
Também estão presentes os mercenários da Blackwater na Província da
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Fronteira Noroeste. Blackwater é formalmente uma companhia de segurança,
mas, na prática é um exército mercenário, formado por vários milhares de exmilitares, que trabalha sob ordens das Forças Armadas dos Estados Unidos
e da CIA, fazendo seu “trabalho sujo”. Segundo denúncias, a Blackwater
estaria operando em Peshawar, a partir do escritório de uma ONG americana,
Creative Associates International Inc., CAII, que trabalha em projetos nas
agências tribais perto do Paquistão, vinculados com o governo dos EUA.
Do ponto de vista político e diplomático, os Estados Unidos aprovaram
o pacote Kerry-Lugar (promovido pelo senador John Kerry, da Comissão de
Relações Externas do Senado norte-americano) de “ajuda” de US$ 7,5 bilhões
ao Paquistão para os próximos cinco anos. É a maior soma de dinheiro com
fins não-militares já recebido pelo Paquistão.
Este pacote, que consiste em uma ajuda “civil” para fins sociais, estipula
dois condicionantes: um, que o orçamento militar esteja subordinado ao
orçamento nacional e dois, que não exista mais intervenção militar em assuntos políticos e judiciais. Ou seja, condiciona a ajuda a que o governo do
presidente Zardari controle as Forças Armadas, o que provocou uma reação
dos militares e um escândalo político sobre a ingerência dos Estados Unidos
na vida política interna do país.
O Departamento de Estado americano nomeou o enviado especial Richard Holbrook para o Paquistão e o Afeganistão. Um jornalista americano
descrevia assim a atitude de Holbrook durante uma recente passagem pelo
Afeganistão: “Parecia menos um emissário de visita que um pró-cônsul
inspecionando uma vasta operação sobre a qual tem uma parte da autoridade”. A própria secretária de Estado, Hillary Clinton, visitou o Paquistão e
cobrou, publicamente e da forma mais arrogante, a necessidade do governo
paquistanês incrementar o combate ao Talibã e à Al-Qaeda.
Como símbolo desta intervenção crescente, os EUA estão construindo
o que será a maior embaixada-fortaleza dos Estados Unidos no mundo e que
deve servir de ponta de lança para a presença norte-americana no Paquistão.
Mil marines chegaram a Islamabad para defendê-la.
O custo total da presença dos “marines” será de US$ 112,5 milhões.
Segundo a embaixadora Anne W. Patterson, “US$ 5 milhões serão para alojamento dos marines, US$ 53,5 milhões para infra-estrutura de alojamento,
US$ 18 milhões para a melhoria da área dos escritórios de serviços gerais e
US$ 36 milhões para alojamentos temporários e instalações de apoio comum”.
A explicação de Patterson para a gigantesca expansão da embaixada é
que esta “...reflete o compromisso de longo prazo dos Estados Unidos com
o Paquistão. Além disso, disse, a quadruplicação da ajuda social, econômica
e militar chegaria a US$ 4 bilhões por ano durante os próximos 18 meses, e
requer um aumento de pessoal.”
Toda esta pressão do imperialismo, e a subserviência do governo do
PPP (Partido do Povo do Paquistão de Ali Zardari) às suas exigências, têm
exacerbado ao máximo não só os enfrentamentos diretos na luta de classes,
principalmente na guerra, mas também as tensões entre a burguesia e os
setores do aparato de Estado.
Estas tensões expressam-se em elementos de insatisfação e de crise no
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Dossiê
Exército paquistanês. Um exemplo foi a reação aos condicionantes da Lei
Kerry-Lugar mencionada acima. Também a decisão dos Estados Unidos
de construir mais bases no Paquistão com permissão do governo irritou o
exército.
Por trás destas tensões estão dois problemas estruturais. O imperialismo
está pressionando para que o exército ataque seu próprio povo, pashtuns paquistaneses muçulmanos, com métodos de guerra civil. Vinte e seis milhões
de pashtuns vivem no Paquistão, muitos em grandes cidades e outros tantos
estão no exército. Por isso, há cada vez mais notícias de jovens que desertam.
Por outro lado, existe um problema político na superestrutura do Exército. O ISI, com o aval da cúpula do Exército (e sob a orientação do imperialismo naquela época) foi um dos responsáveis diretos pela organização
e fundação da milícia do Talibã no princípio da década de 90, a partir dos
estudantes das Madrassas das áreas pashtun no Paquistão. Desde então, o
Talibã sempre esteve ligado ao ISI e ao Exército paquistanês. Hoje, a cúpula
do exército está de acordo em combater o Talibã paquistanês, mas reluta
em combater o Talibã afegão com quem continua mantendo vínculos. O
problema é que estas organizações estão cada vez mais ligadas e, à medida
que a guerra avança, tendem a ser uma coisa só.
As contradições no Exército (e entre este e o governo do país) refletem
a debilidade do Estado e do regime de um país semicolonial, tremendamente
acossado pelo imperialismo. Mas, além disso, o fraco desenvolvimento da economia do Paquistão, a debilidade de sua burguesia, a pressão do imperialismo
norte-americano por um lado e a URSS e a Índia por outro, levaram a burguesia paquistanesa a apelar tradicionalmente para regimes fortes, apoiados nas
Forças Armadas, que denominamos de maneira geral regimes bonapartistas.
Nos 62 anos de existência do país, nunca houve um período mais ou menos
longo de funcionamento de um regime democrático-burguês minimamente
estável. A norma foi de governos militares. Nas poucas vezes em que os civis
governaram, o regime político sempre teve características marcadamente
autoritárias, bonapartistas.
O próprio Estado paquistanês reflete estas características. Apesar de ser
um país pobre, o Paquistão tem a sexta maior força militar do mundo em
número de soldados, contando com setecentos mil homens. O país possui
armas nucleares e mísseis balísticos.
Mas, a contradição da situação atual é que as Forças Armadas saíram bastante debilitadas depois da queda do governo do general Pervez Musharraf,
no poder por oito anos (1999 a 2008). A ditadura de Musharraf terminou em
uma situação que combinava o desgaste com o envolvimento do Paquistão
na guerra do Afeganistão e as mobilizações populares por reivindicações
democráticas, tais como o fim da suspensão do juiz Muhammad Chaudhry,
presidente da Suprema Corte, pelo governo.
O imperialismo e a questão nacional
Um dos elementos centrais que transparece tanto na questão da guerra
quanto na presença do imperialismo e no desenvolvimento da luta de classes
no Paquistão é a questão nacional ou da autodeterminação nacional das
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Dossiê
diversas etnias, que também é um elemento presente em todo o Grande
Oriente Médio e o subcontinente indiano.
No entanto, o problema nacional no Paquistão é especialmente explosivo, devido às condições em que o país foi fundado. Para compreender as
contradições atuais do problema nacional é preciso entender os elementos
estruturais que têm sua base na própria formação do país. Não é possível, até
por razões de espaço, estender-nos longamente sobre este tema, mas podemos
assinalar, grosso modo, os seguintes elementos.
Até sua independência em 1947, a região onde fica hoje o Paquistão fazia
parte da Índia Britânica ou mais precisamente do domínio colonial do império
britânico sobre a Índia. Antes desta dominação, o atual Paquistão constituía
uma região de maioria muçulmana, parte do antigo Império Mongol (1526
até meados do Século XIX) que compreendia também o norte da atual Índia
(por exemplo, as cidades de Déli e Agra).
A dominação britânica sobre a Índia abarcava todo o subcontinente indiano, isto é, a região formada hoje pelo Paquistão, a atual Índia, Bangladesh,
Sri Lanka (na época, Ceilão), Nepal e Butão. O Paquistão, assim como toda
a região, foi marcado pela dominação colonial imperialista britânica e a luta
pela independência nacional.
O imperialismo britânico teve uma política permanente de “dividir os
povos para melhor reinar”, promovendo várias divisões artificiais. Esta política começou já no século XIX, por exemplo, com a divisão da província de
Bengala entre Ocidental e Oriental (hoje Bangladesh). Outro exemplo foi o
da região dos Pashtuns (Pashtunistão) dividida pela chamada linha Durand
em 1893 (e que hoje pertence parte ao Afeganistão e parte ao Paquistão).
Mas esta política chegou ao seu ponto máximo no processo de independência da Índia, resultado de uma longa luta do povo indiano. O imperialismo britânico, diante da certeza de perder sua maior colônia, impulsionou
artificialmente a divisão do subcontinente para enfraquecer a Índia e fazer
com que o processo de independência gerasse vários países mais fracos, que
permanecessem na Commonwealth1 com o status de Dominions2.
Esta política obteve resultado por meio do estímulo à política separatista
da burguesia muçulmana, dirigida pelo partido Liga Muçulmana, de Muhamad
Ali Jinnah. O Paquistão constituiu-se então, em 1947, como um país islâmico,
dirigido pela Liga Muçulmana nas províncias do Sindh e no Punjab. O Baluquistão e o Pashtunistão, regiões de etnias irânicas (baluches e pashtuns), foram
divididos entre o Paquistão e o Afeganistão. Bengala Oriental integrou-se ao
país na sua fundação com o nome de Paquistão Oriental. Em 1971, declararia
sua independência, passando a chamar-se Bangladesh. A Caxemira, antigo
principado, foi dividida entre a Índia e o Paquistão, gerando uma disputa que
dura até os dias atuais.
Portanto, o Paquistão concentra vários problemas nacionais explosivos
desde a sua fundação, que tendem a polarizar o país. No Pashtunistão, cada
vez mais os movimentos insurgentes que lutam contra a ocupação imperialista
unem-se e retomam seus laços étnicos e políticos. No Baluquistão, existe um
movimento independentista que luta por um país constituído pelos territórios
baluches do Irã, Afeganistão e Paquistão.
80
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1 Commonwealth of
Nations: Comunidade
de países que substituiu o Império Britânico, formada pela
Grã-Bretanha com
suas ex-colônias. O
objetivo britânico era
manter estes países
em sua órbita, como
semicolônias.
2 Nações independentes, membros da Commonwealth, mas que
mantinham a Rainha
da Inglaterra como
Chefe de seus Estados.
Paquistão, Ceilão e
Quênia, por exemplo,
tiveram este status.
Dossiê
E na fronteira com a Índia, a guerra no Vale da Caxemira já dura 20 anos
e custou umas 70 mil vidas. Dezenas de milhares de pessoas foram torturadas
e milhares “desapareceram”. Quinhentos mil soldados indianos patrulham
o vale da Caxemira, convertendo-o na zona mais militarizada do mundo.
No verão de 2008, uma disputa por terra designada para o Comitê do
Santuário Amarnath converteu-se num levante maciço e não-violento. Dia
após dia, centenas de milhares de pessoas desafiaram soldados e policiais e
encheram as ruas. As tropas dispararam diretamente contra as multidões,
matando muita gente. As multidões gritavam: Azadi! Azadi! (Liberdade). Os
protestos duraram vários dias. Arundhati Roy, uma escritora indiana afirma:
…a Caxemira irá converter-se no conduto pelo qual toda a violência
que se desenvolve no Afeganistão e no Paquistão derramar-se-á em
direção à Índia, onde encontrará aceitação na cólera dos jovens entre
os 150 milhões de muçulmanos da Índia que foram brutalizados,
humilhados e marginalizados. O aviso foi dado pela série de ataques
terroristas que culminaram nos ataques de Mumbai de 2008.3
Todos estes problemas nacionais, que vão desde a luta pela unificação
de povos ou por sua autodeterminação e inclusive sua independência, estão
atravessados pela ação política e militar do imperialismo norte-americano na
região. Depois de sua fundação, o Paquistão tornou-se uma semicolônia dos
Estados Unidos, transformando-se num importante país auxiliar da potência
imperialista em sua política de pressão e controle da Índia e da URSS durante
a Guerra Fria.
Atualmente, esta intervenção do imperialismo é elevada à enésima potência, principalmente pela guerra do Afeganistão-Paquistão. A resistência
das massas hoje se concentra em três processos: a luta para expulsar o imperialismo do Afeganistão e do Paquistão, que se combina com a luta pela
autodeterminação nacional dos diferentes povos e a luta contra o regime do
Exército e o governo de Zardari, subserviente ao imperialismo.
A grande tarefa dos povos do Paquistão, do Grande Oriente Médio e do
subcontinente indiano é expulsar o imperialismo da região o que significa em
primeiro lugar a luta para derrotar o imperialismo na guerra do AfeganistãoPaquistão.
Mas, ao mesmo tempo, é necessário levantar a bandeira da autodeterminação nacional dos povos de todos os países da região e o direito a se separarem
dos Estados aos quais se encontram submetidos atualmente e a se organizarem
em novos Estados nacionais se assim o preferirem.
Os socialistas revolucionários reconhecem e apoiam o direito à autodeterminação de todas as etnias. Mas, ao mesmo tempo, assinalamos que a única
possibilidade de que estes povos se livrem de toda a exploração e desenvolvam suas riquezas e potencialidades humanas em liberdade é a construção
do socialismo e a unidade de todos os povos em Federações de Repúblicas
Soviéticas em regiões como o Oriente Médio e o subcontinente indiano.
3 ROY, Arundhati.
Una nueva guerra fría
en Cachemira. A autora é uma escritora,
atriz e roteirista de
cinema que vive em
Nova Déli. Escreveu,
entre outras coisas, o
romance O Deus das
coisas pequenas pelo qual
recebeu o Prêmio de
Booker de 1997.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
81
Dossiê
Alguns dados sobre o Paquistãa~o
O nome Paquistão (ou Pakistan em urdu) significa “terra (ostan) dos puros
(pak)” em Urdu e em farsi (ou persa). Mas também, em sua origem, foi um
nome composto pelas iniciais de quatro das cinco províncias de maioria
muçulmana da Índia britânica mais o sufixo stan. O nome foi cunhado em
1934 por Choudhary Rahmat Ali, um nacionalista muçulmano, que em seu
folheto Agora ou nunca referiu-se aos “trinta milhões de muçulmanos do
Paquistão (Pakistan) que vivem nas cinco províncias do Raj Britânico – Punjab,
Afghan (hoje Província da Fronteira Noroeste), Kashmir (Caxemira), Sind e
Balochistan (Baluquistão)”.
A população do Paquistão está estimada em 168 milhões, o que o torna o
sexto país mais populoso do mundo. Sua área é de 803.940 km2. Estima-se
que o PIB paquistanês (PPC) seja de US$ 475,4 bilhões e a renda per capita
de US$ 2942. A taxa de pobreza é estimada entre 23% e 28% da população.
O Paquistão é uma federação com quatro províncias: Punjab, Sind, Baluquistão
e Província da Fronteira Noroeste. Além disso, existe um distrito federal onde
está a capital Islamabad, e áreas tribais administradas pelo governo federal. O
governo paquistanês exerce jurisdição de facto sobre partes da Caxemira, a
chamada Caxemira Livre (Azad Kashmir), e as Áreas do Norte, uma parte da
Caxemira também reivindicada pela Índia. O Paquistão também reivindica o
estado de Jammu e Caxemira, controlado pela Índia.
As etnias punjabi e sind são povos hindus, sendo que a etnia punjab é a mais
populosa do país. No entanto, parte da população do país é composta por
etnias de idiomas e culturas irânicas ou indo-arianas: os pashtuns (15,4%
da população) e os baluches (3,6%). Os baluches vivem ao sudoeste do país
e os pashtuns ao noroeste.
O urdu é uma língua franca utilizada como idioma de comunicação entre
as diversas etnias e é o idioma oficial do país. Mas, para apenas 7,57% da
população é o idioma materno. Os estudiosos consideram que o urdu é
basicamente o mesmo idioma híndi (o mais falado na Índia), porém escrito
com o alfabeto árabe (em sua versão persa).
Províncias
2
6
5
3
1
4
82
8
7
e territórios do
Paquistão
Províncias:
1. Baluquistão
2. Província da Fronteira Noroeste
3. Punjab
4. Sindh
Territórios:
5. Distrito Federal - Capital Islamabad
6. Áreas Tribais
7. Azad Jammu e Kashmir (ocupada pela Índia)
8. Gilgit-Baltistan
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Estudos
O sistema financeiro mundial
e sua crise - Parte 3
alejandro iturbe
Frente Operária Socialista (FOS) - Argentina
EUA, epicentro da crise atual
O epicentro da crise atual encontra-se, sem dúvida, nos EUA, a principal
economia do mundo. Em um capítulo anterior, vimos o caráter cada vez mais
“rentista” que o país foi adquirindo, e sua expressão na desindustrialização
e “financeirização” de sua economia. Um processo que é o resultado combinado de políticas conscientes da burguesia estadunidense (transferir para
outros países as indústrias de maior consumo de energia e toda uma parte
de indústrias de produtos de consumo), por um lado, e da dinâmica objetiva
de crescimento do setor especulativo, por outro.
A economia estadunidense dos últimos anos tem se construído sobre os
chamados “déficits gêmeos” da balança de comércio exterior e do orçamento
estatal. O déficit comercial é o resultado do grande aumento do volume de
importações de produtos industriais de consumo e, também, do aumento do
preço do petróleo. Em 2006, alcançou a cifra recorde de US$755,7 bilhões, em
2007 reduziu-se a US$ 711,6 bilhões (sua primeira queda em vários anos, já
refletindo o início da recessão). Cerca de um terço deste déficit é produzido
pelo intercâmbio com a China.
O déficit fiscal é o resultado combinado de vários fatores. O primeiro é a
redução de impostos para as grandes empresas. O segundo é o aumento dos
gastos no setor militar (incluídos os ocasionados pelas guerras do Iraque e
Afeganistão). O terceiro, como já vimos, é o financiamento da especulação
através da dívida pública.
Desta forma, passou-se de um superávit anual de US$128 bilhões em 2001,
herança da era Clinton, para um déficit de US$337 bilhões (237 bilhões do
balanço de contas correntes e cerca de 100 bilhões adicionais para as guerras).
Em 2007, graças à boa receita do imposto sobre os lucros, o governo Bush
conseguiu reduzir o balanço de contas correntes para US$163 bilhões. Mas
em 2008, o resgate de vários bancos o elevou para mais de US$400 bilhões,
com a previsão de chegar a US$447 bilhões em 20091.
A soma dos dois déficits significava que, em 2007, para funcionar normalmente e não começar a parar, a economia estadunidense precisava do
ingresso de US$3 bilhões diários em média, do exterior, através de receitas
Tradução
Marcos Margarido
1 Em julho de 2008,
o resgate dos gigantes hipotecários triplica o déficit fiscal
dos EUA. Em www.
libertaddigital.com
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
83
Estudos
pela venda de títulos do tesouro, outros empréstimos, investimentos diretos,
remessas de lucros e royalties de filiais de empresas no exterior etc. Como
vimos, através de distintos mecanismos, a economia dos EUA atua como um
“aspirador” de uma parte da mais-valia extraída em outras regiões do mundo.
Neste sentido, é muito interessante analisar como vem funcionando, nos
últimos anos, o binômio EUA-China. A burguesia estadunidense realizou
gigantescos investimentos na China, país que vende seus produtos industriais
a todo o mundo, mas especialmente aos próprios EUA. Por outro lado, grande
parte dos lucros obtidos volta aos EUA, principalmente para a compra de
títulos do Tesouro norte-americano. Desta forma, uma parte do déficit estatal
é financiada e o circuito econômico dos EUA é realimentado.
A bolha do consumo
Na realidade, nos EUA, não apenas o Estado, mas também as empresas e
consumidores estão superendividados, isto é, devem mais que sua real capacidade de pagamento e, muitas vezes, mais que o valor real de suas propriedades.
Neste sentido, no caso das famílias, a bolha imobiliária não era mais do que
a base que sustentava a bolha muito maior do consumo.
O poder aquisitivo do salário dos trabalhadores estadunidenses vem
caindo de modo quase constante desde a década de 1980. Em primeiro lugar,
porque os novos empregos nos serviços fornecem salários mais baixos que
os industriais. Em segundo, porque houve uma queda nos próprios salários
industriais. Por exemplo, um mecânico antigo da fábrica de aviões Boeing
ganha US$50 mil ao ano, enquanto um novo recebe apenas US$28 mil, cifra
que se localiza apenas pouco acima do custo das necessidades básicas. Isto
é, uma vez cobertas essas necessidades, a maioria das famílias trabalhadoras
estadunidenses quase não tem possibilidades de consumo para manter a tradicional renovação periódica de automóveis, eletrodomésticos etc.
A partir de 2002, o extremo barateamento e a abundância de crédito começaram a ser financiados, essencialmente, com os empréstimos hipotecários,
graças à diferença positiva que obtinham a cada ano em sua renovação pela
subida artificial dos preços dos imóveis. Mas, ao mesmo tempo, isto aumentava seu endividamento. O New York Times estimou, em julho de 2008, que
cada família estadunidense devia uma média de cerca de US$100 mil (US$80
mil da hipoteca, US$12 mil do carro e US$8 mil do cartão de crédito). Se
considerarmos a existência de 75 milhões de famílias, isto nos dá a incrível
cifra de US$7,5 trilhões de “dívida familiar”, mais da metade do PIB do país.
Com o fim da bolha imobiliária e o começo da queda dos preços das casas,
esse mecanismo foi cortado. O New York Times (23/12/2008) informa que
em novembro de 2008 a venda de casas havia caído 8,6%, e seu preço médio,
13%. Desde o máximo preço médio alcançado (US$230,2 mil em julho de
2006) ao atual (US$181,3 mil), acumula-se uma queda de mais de 21%. Além
disso, estima-se que, em 2009, haverá uma nova queda próxima aos 20%.
Por isso, agora o montante da dívida hipotecária de cada família é maior
que o preço de mercado do imóvel. Isto é, ao renovar a hipoteca, já não recebem uma diferença a seu favor, e, além disso, devem pagar a diferença negativa
entre a dívida adquirida e o novo crédito (baseado no preço mais baixo da
84
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Estudos
casa). Desta forma, milhões de famílias perderão suas casas, estourando a
grande bolha do consumo.
A “bicicleta imobiliária”
Na segunda metade da década de 1970, na Argentina, chamou-se de “bicicleta financeira” ao circuito especulativo que jogava com a dívida externa,
a cotação peso-dólar e as altas taxas de juros para os depósitos bancários. Era
uma “bicicleta” porque, igual a toda bolha ou sistema especulativo, o circuito
só funcionava caso continuassem “pedalando” (injetando novos fundos); em
caso contrário, caía.
Atualmente, podemos falar da queda de uma “bicicleta financeira imobiliária” nos EUA. Já vimos como foi financiado o consumo das famílias
trabalhadoras. Um segundo aspecto, como foi impulsionado o crescimento
econômico em seu conjunto, foi sintetizado pelo economista Joseph Stiglitz:
“Aproximadamente 80% do aumento do emprego e quase dois terços do
aumento do PIB dos EUA, nos últimos anos, originaram-se direta ou indiretamente no setor imobiliário”2.
Agora nos referiremos a como, em base aos créditos hipotecários, foise construindo um circuito especulativo cada vez maior, artificial e fictício,
isolado de toda base real. Especialmente, a partir do momento em que, para
“manter-se pedalando”, apelou-se aos créditos subprime (ou “créditos vassoura”), fornecidos a pessoas ou famílias que já se sabia não terem condições
de pagar no momento de aquisição.
O processo começava quando uma empresa especializada em operações
imobiliárias, como a Countrywide, outorgava um crédito hipotecário; sobre
esse ativo financeiro, era contratado um “seguro de resgate” em uma grande
seguradora como a AIG. A partir daí, passava a ser um crédito ou dívida
“segurada”, transferida ou negociada com um banco especializado (como
Fannie Mae, Freddie Mac ou o ramo hipotecário do Bear Sterns).
Os agora títulos garantidos por hipotecas são vendidos aos grandes bancos
de investimento, como Goldman Sachs, Lehman Brothers ou Merryll Lynch,
que os “cortam em partes”, mesclam-nos, transformam-nos em “obrigações
de garantias de dívidas” (CDOs, em inglês) e então são vendidos a diferentes investidores. Estes papéis, já quase totalmente desligados da “operação
subjacente”, eram camuflados com boas qualificações de risco, outorgadas
por empresas como a Moody’s e a Standard & Poor’s. São assim negociados
inúmeras vezes no mercado, numa cadeia quase sem limites.
Tudo isso, num processo em que cada elo da cadeia, por um lado, recebia
comissões sobre comissões e, por outro, ajudava a “bicicleta” a não cair. Os
operadores recebiam comissões dos bancos e das empresas imobiliárias para
outorgar hipotecas sem verificar as receitas ou a capacidade de pagamento
do cliente. Os corretores inflavam o valor das casas porque, a maior preço,
maiores comissões. Os bancos de investimento pagavam grandes comissões
às empresas especializadas para que qualificassem com boas notas de “grau de
investimento” títulos derivativos cada vez mais “podres”, porque ganhavam
fortunas com sua comercialização que, logo, era duplicava ou triplicava em
outras operações. De fato, a “bicicleta financeira imobiliária” já havia chegado
2 STIGLITZ, Joseph. How to stop the
downturn. New York
Times, 23/01/2008
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
85
Estudos
a seu ponto de saturação no final de 2006. Era um gigantesco castelo de cartas
que, inevitavelmente, seria derrubado, principalmente ao se combinar com a
crescente crise política do governo Bush.
Uma “pirâmide” moderna
Este sistema de multiplicação de derivativos, chamado eufemisticamente
de “alavancagem”, permitiu que, utilizando pouco capital próprio, os grandes bancos de investimento obtivessem um volume de “ativos financeiros”
totalmente desproporcional em relação à “base subjacente”. Por exemplo, a
Goldman Sachs usou cerca de US$ 40 bilhões de seu capital para lançar US$ 1,1
trilhão em títulos, e a Merrill Lynch lançou US$ 30 bilhões tendo como base
um bilhão de dólares. Entre 2000 e inícios de 2008, o conjunto do mercado
desregulado de CDOs cresceu de US$ 900 bilhões para US$ 62 trilhões, o
dobro do valor total das ações no mercado dos EUA e dez vezes a quantidade
de todos os títulos de dívida que podiam ser protegidos por seguro3. Isto é,
a soma de capital especulativo e fictício decuplicava sua base real.
Em 1920, um imigrante italiano nos EUA idealizou um sistema fraudulento que seria conhecido como a pirâmide de Ponzi: com a promessa de altos
rendimentos, alguém inicia a “pirâmide” conseguindo dois “investidores”,
estes, por sua vez, devem conseguir outros dois e assim sucessivamente. O
crescimento exponencial dos “novos investidores” vai assegurando os “lucros” de toda a cadeia, até que a pirâmide deixa de crescer e os últimos que
ingressaram perdem todo o seu dinheiro. Desde então, o sistema piramidal
é ilegal em quase todos os países do mundo.
Recentemente, acaba de estourar um escândalo por um abuso cometido
com um esquema similar, pelo norte-americano Bernard Madoff, uma das
grandes estrelas do mercado financeiro dos EUA, ex-presidente da Nasdaq
(índice das empresas de informática na Bolsa de Nova York). Madoff burlou,
num valor de US$ 50 bilhões, investidores tão diferentes como a União de
Bancos Suíços e xeiques árabes petroleiros.
Em sua época, Carlo Ponzi passou vários anos na prisão. Madoff só ficou
detido um curto tempo, esperará seu julgamento em liberdade sob fiança e
talvez termine preso. Esta é uma das poucas diferenças entre seu esquema
piramidal e o dos “derivativos em cadeia” dos grandes bancos de investimento. De conteúdo, ambos são quase iguais, mais ainda a partir das hipotecas
subprimes. Não é casual que o próprio Wall Street Journal se perguntasse,
no início de 2007, até onde chegaria a “pirâmide de derivativos exóticos”.
A situação atual: a quebra do sistema bancário-financeiro dos
EUA e Europa
3 GALL, N. A festa
do crédito e a economia
mundial- Dinheiro, ganância, tecnologia, em
www.braudel.org.br,
Braudel Papers 43,
acesso em 2009.
Este castelo de cartas tinha que cair. Vários economistas assinalaram que,
já em 2006, houve uma queda da taxa média de lucros nos EUA e uma retração
dos investimentos4. Mas isto foi maquiado e adiado pelos bancos e empresas.
O estouro da bolha imobiliária nos EUA e em outros países manifestouse abertamente em meados de 2007, com a crise do ramo hipotecário do Bear
Stearns, a quebra da American Home Mortgage e da Countrywide, nos EUA,
e a necessidade de resgate, por parte de seus governos, do banco francês BNP
4 GONZÁLEZ, José
Luis González, Tendencia histórica de la tasa
de ganancia en EE.UU
- 1929-2006, em www.
geocities.com/redculturalin/tasadeganancia2007.html
86
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Estudos
Paribas e do inglês Northern Rock.
Esta sequência inexorável combinou-se e foi potencializada pela agudização da crise do governo Bush, garantia última do processo.
Finalmente, apesar das gigantescas injeções de dinheiro e ajudas dos
Bancos Centrais imperialistas, em setembro de 2008 os gigantescos bancos
imobiliários Fannie Mae e Freddie Mac, o Lehman Brothers, um dos grandes
bancos de investimentos, e o gigante dos seguros AIG quebraram nos EUA,
enquanto ocorriam situações similares em instituições financeiras europeias
(como o banco belga-holandês Fortis, o britânico Bradford & Bingley, o
Hypo Real State da Alemanha, o islandês Glitnir Bank, o franco-belga Dexia
e o dinamarquês Roskilde Bank). De fato, assistimos à quebra do sistema
bancário-financeiro dos EUA e Europa, atenuada apenas pela intervenção
dos governos.
Está ocorrendo uma rápida reconversão e centralização do sistema bancário-financeiro nos EUA, com a virtual estatização do Fannie Mae, Freddie
Mac e AIG; a quebra do Lehman Brothers e as absorções do Merryll Lynch
por parte do Bank of America e do Wachovia por parte do JP Morgan Chase, enquanto o Citigroup divide-se em várias partes para ser vendido. Desta
forma, reduz-se à metade o número de grandes bancos de investimentos
do país que, ao mesmo tempo, transformam-se em bancos comerciais para
receber ajudas do governo e serem incluídos no sistema estatal de garantias
bancárias. Enquanto isso, os executivos que levaram suas empresas à falência autoconcedem-se bônus milionários (como os da Lehman Brothers) ou
festejam com caríssimas festas o resgate estatal, como os da AIG.
As mega-ajudas governamentais não param o processo
Quanto dinheiro os governos dos países imperialistas já injetaram nos
mercados, ou estão injetando, desde meados de 2007? Inicialmente, os bancos
centrais dos EUA, Canadá, Japão e Europa “derramaram” em conjunto cerca
de US$ 500 bilhões. Posteriormente, agregaram outros US$ 300 bilhões e, a
partir de setembro de 2008, o governo dos EUA anunciou um novo “pacote
anticrise” de US$ 700 bilhões e os países da União Europeia pacotes que
totalizam cerca de US$ 1 trilhão. Se somarmos os pacotes anticrise da China,
da Rússia e do Brasil5, aproximamo-nos da cifra total de US$ 4 trilhões,
calculada recentemente por vários economistas e equivalente a quase 10% do
PIB mundial. Estas grandes ajudas mostram que se antes o Estado burguês
atuou como impulsionador e sustentador do circuito especulativo, atua agora
como uma espécie de “companhia seguradora” que cobre as perdas dos bancos
especuladores, numa espécie de “keynesianismo financeiro”.
No entanto, apesar destes grandes pacotes, a crise não apenas continua,
mas também acelerou seus ritmos. Isto porque estamos na primeira fase
da queima de capitais e o volume de capital especulativo e/ou fictício, como
vimos, é muito grande em relação ao capital ativo. Por isso, as medidas anticrise apenas servem para atenuar levemente este processo de queima e não
têm possibilidade de revertê-lo. Por exemplo, o FMI reajustou, em outubro
passado, seu cálculo total das perdas sofridas nos empréstimos e outros ativos
financeiros dos EUA, de US$ 945 bilhões de dólares para US$ 1,4 trilhão.
5 Os pacotes de ajuda
da China, Rússia e
Brasil foram, respectivamente, de cerca de
US$600 bilhões, mais
de US$300 bilhões e
mais de US$200 bilhões.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
87
Estudos
Uma cifra curiosamente similar à ajuda que o governo injetou ou vai injetar
e também equivalente a 10% do PIB deste país6. E se considerarmos a queda
na produção, as perdas globais já chegam aos US$ 4 trilhões.
A crise e a queima não afetam apenas os capitais especulativos e/ou fictícios. As ações da General Motors caíram para a décima parte de seu melhor
preço histórico, o ponto mais baixo nos últimos 60 anos. A empresa está de
fato quebrada, esperando, como as outras grandes automotrizes do país (Ford
e Chrysler), ajuda do governo para sobreviver. Considerado em conjunto, o
índice Dow Jones mostra uma perda acumulada do preço das ações de quase
36% durante 2008, acelerada a partir de setembro. Todas as grandes empresas
industriais do mundo veem cair o preço de suas ações e anunciam planos de
redução da produção e demissões em massa.
Elementos de comparação entre a crise de 1929 e a atual
Muito se tem falado, a favor e contra, sobre a comparação entre esta crise
e a de 1929. Já está claro que a atual é a mais grave desde aquela, muito mais
profunda que as recessões de 1990-91 e 2000-2002. Mas nos parece importante
avançar nesta comparação, inclusive para elaborar as perspectivas presentes.
Não vamos repetir aqui que, para nós, as crises capitalistas originam-se na
queda da taxa de lucro e que, atualmente, este processo se vê agravado pelo
caráter cada vez mais especulativo do capitalismo imperialista e da hipertrofia
do sistema financeiro. Neste sentido, a crise de 1929 e a atual são similares,
já que ambas foram precedidas por uma grande acumulação de capital
especulativo e pela criação de grandes volumes de capital fictício. Sem
dúvida, deste ponto de vista, a crise atual é mais grave e mais profunda que
a de 1929. Temos visto que o volume total de ativos financeiros é quatro vezes
o PIB mundial ao passo que, em 1929, essa proporção era a metade da atual.
Se olharmos o coração das bolhas especulativas que estouraram no início
de cada crise, a comparação é ainda mais desfavorável. Em 1929, a relação
entre o preço das ações das empresas industriais dos EUA e seu capital era
de 5 para 1,5 (3,3 vezes). Atualmente, como vimos, os ativos financeiros
derivados dos créditos hipotecários decuplicaram em relação à sua base real.
Proporção que, na realidade, não mostra toda a realidade porque se baseia em
preços sobrevalorizados dos imóveis e em uma parte de “créditos podres”
que nunca seriam pagos. Isso significa que a queima de capital especulativo
e fictício deveria ser, no mínimo, quase três vezes superior à de 1929.
Ao mesmo tempo, no entanto, diferente de 1929, hoje existe uma capacidade de intervenção muito maior dos Estados e governos para evitar a
quebra de bancos e empresas e lançar pacotes anticrises. Não obstante, como
temos assinalado, parece-nos que tal intervenção governamental (da qual já se
gastaram vários “disparos” importantes) pode amortizar e tornar mais lento
o processo, mas não pode freá-lo nem, muito menos, revertê-lo.
Não traçamos esta perspectiva de um ponto de vista catastrofista. Sabemos que, se a luta de classes e a revolução não o impedirem, o capitalismo
imperialista sobreviverá e tentará reciclar-se. No marco da luta de classes, toda
sobrevivência do capitalismo se fará ao custo de grandes sofrimentos para os
trabalhadores e as massas. Neste sentido, as consequências da crise de 1929,
88
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
6 El costo global de la
crisis. Agencia Reuters,
07/10/2008.
Estudos
incluídos o fascismo e a Segunda Guerra Mundial, são uma amostra, embora
a história não necessariamente tenha que se repetir com estas características.
Um último debate sobre a “regulação”
Existe um debate com os keynesianistas e neokeynesianistas (tradicionais ou de esquerda) que consideram que a crise atual se deve à falta de
regulamentação dos mercados financeiros, o que permitiu seu crescimento
descontrolado e gerou uma crise que agora impacta o conjunto da economia.
Por exemplo, Paul Krugman analisa que a origem da crise atual é “um
sistema financeiro paralelo, que faz os negócios do banco, mas sem as regulamentações do tradicional banco de mármore”7. Uma conclusão similar é a
do trabalho de Norman Gall, que citamos, e outros, como Ignace Ramonet
do Le Monde Diplomatique.
É evidente que o sistema financeiro mundial está hipertrofiado e que a
falta de regulamentações contribuiu para essa hipertrofia, além da especulação desenfreada e da criação de enormes volumes de capital fictício que, se
durante alguns anos impulsionaram a economia capitalista, agora ameaçam
afogá-la. É evidente também que este processo teria sido mais lento com
normas mais rígidas que regulassem a atividade financeira. Mas reduzir a
crise atual a um mero problema de regulação significa não compreender três
aspectos importantes do atual sistema capitalista imperialista.
• A origem das crises está na queda da taxa de lucro. A especulação
financeira agrava esta tendência, mas não a cria.
• Como resultado da “excessiva maturidade”, o capitalismo imperialista não cessa de gerar “superabundância de capitais” e, com isso, permanentes tendências especulativas e parasitárias. Por isso, os principais especuladores são os grandes bancos de mármore e as principais empresas industriais
e comerciais.
• Têm sido os próprios Estados que deveriam regular a especulação os
que a impulsionaram e sustentaram. Em outras palavras, as regulamentações vão contra estas tendências crescentes. Poderiam, no melhor dos casos,
“ordená-las”, mas nunca irão eliminá-las, muito menos suas consequências
mais profundas sobre a taxa de lucros.
A modo de epílogo
Pareceu-me útil terminar este trabalho com um epílogo que, de modo
sintético, apresente as ideias que pretendi que fossem seu “fio condutor”.
• O ponto de partida é, claro, a lei do valor-trabalho de Marx. Ou seja,
a concepção de que só a força de trabalho cria novo valor na produção e que
a mais-valia é o trabalho ou produto excedentes apropriados pela burguesia
na produção e realizada monetariamente no mercado;
• Disso, passamos à concepção de que o lucro de todos os setores da
burguesia surge da divisão, ou da apropriação desta mais-valia social gerada
na produção;
• O terceiro elemento é o conceito marxista de dinheiro como “a forma mais acabada do valor”. Algo que, ao mesmo tempo, significa que o
conjunto da massa de dinheiro deve ser equivalente ao conjunto da massa de
7 Clarín, 16/12/2008.
Bancos de mármore são
os bancos comerciais
tradicionais. Levam
esse nome devido ao
material utilizado no
acabamento de seus
prédios. (NT)
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
89
Estudos
valor existente, em um momento determinado;
• O quarto elemento é o conceito de comercialização da mercadoriacapital, própria da atividade bancária, emprestada a uma taxa de juros como
forma de receber uma parte da mais-valia;
• Continua com a tendência à queda da taxa de lucro como resultado do
aumento da composição orgânica do capital;
• O último conceito que tomamos de Marx é a tendência à monopolização como resultado combinado dos processos de concentração e
centralização;
• Começamos com Hilferding e o surgimento do capital financeiro,
como resultado da fusão do capital bancário e do industrial;
• Conceito que Lênin aprimora mostrando que os capitais excedentes
geraram a exportação do capital financeiro e sua internacionalização, como a
característica central do imperialismo;
• Lênin analisa também o surgimento do Estado-rentista como tendência cada vez mais acentuada dos países imperialistas e como uma expressão
do parasitismo e da decomposição do capitalismo;
• A permanente criação de “capitais financeiros excedentes” (que não
encontram destino na produção no país de origem nem na exportação de
capitais estudada por Lênin) é o que gera a crescente tendência especulativa e
parasitária do capitalismo imperialista. Alguns autores consideram, inclusive, que o capital especulativo deveria ser considerado uma categoria diferente do tradicional capital financeiro definido por Hilferding e Lênin;
• A crescente quantidade de capital especulativo, agravada pela criação
de capital fictício, provoca a hipertrofia do sistema financeiro, tanto no volume de operações como na complexidade que adquirem estas operações;
• O próprio Estado burguês, principalmente nos países imperialistas,
transforma-se, através de diversos mecanismos, primeiro em seu impulsionador e sustentador, e depois na “companhia de seguros” dos grandes bancos
especuladores;
• Embora inicialmente este processo alimente o crescimento da economia (com efeitos similares ao da expansão do crédito), de modo mais
profundo, agrava a tendência à queda da taxa de lucros, o que temos denominado de superincremento da composição orgânica do capital;
• As crises precedidas por uma grande acumulação de capital especulativo e fictício são próprias da época imperialista (embora já existisse um
antecedente em 1873). É um tipo de crise que requer a queima de um grande
volume de capital;
• A crise de 1929 e a atual têm muitos elementos em comum. A atual
é mais grave devido ao maior volume de capital especulativo e/ou fictício.
Mas seus ritmos se veem atenuados parcialmente pela intervenção dos governos e dos Bancos Centrais, embora estas não consigam reverter a dinâmica mais geral da crise e tampouco sua profundidade;
• A eclosão da atual crise do sistema financeiro, sua virulência e profundidade, explicam-se, não só pelo analisado no ponto anterior, mas também
por sua combinação com a crise política da principal potência imperialista.
90
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Pontos de vista
Polêmica com Roberto Ramírez, do Novo MAS
~
Cuba…nao
Éé uma ilha
Martín Hernández
Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI)
No final do ano passado, Roberto Ramírez, do Novo
MAS, da Argentina, publicou um extenso artigo chamado:
1959: entrada da guerrilha em Havana
Um debate crucial na esquerda. Cuba em uma encruzilhada1
onde defende que o capitalismo foi restaurado no mundo todo, menos na
ilha caribenha. Cuba, dessa forma, seria uma ilha, não apenas em relação à
sua localização geográfica.
A conclusão de Roberto Ramírez não acrescenta nada de novo ao que
Tradução
Cecília Toledo
vem dizendo a maioria das organizações de esquerda. No entanto, os argumentos utilizados para justificar essa conclusão, assim como o programa que
propõe para fazer o que ele denomina como “uma nova revolução cubana”
são inéditos.
Cuba: um longo debate no movimento trotsquista
O caráter do Estado cubano e de sua direção sempre foi um tema polêmico
no movimento trotsquista. Na década de 60, depois da vitória da Revolução
Cubana, e especialmente depois da expropriação da burguesia, houve uma
intensa discussão.
A IV Internacional, fundada por Leon Trotsky em 1938, dividiu-se em
1953. De um lado estava o Secretariado Internacional (SI), onde atuavam
Ernest Mandel (Bélgica), Pierre Frank (França) e Livio Maitán (Itália). Do
outro estava o Comitê Internacional (encabeçado pelo SWP dos EUA) no
qual, além da direção americana, estavam Pierre Lambert (França), Nahuel
Moreno (Argentina) e Gerry Healy (Inglaterra).
A Revolução Cubana causou um grande impacto nos dois setores e
ocorreu uma importante discussão entre os que consideravam que Cuba
continuava sendo um Estado capitalista e os que, pelo contrário, achavam que,
com a Revolução Cubana, surgia o primeiro Estado operário do continente
americano. Esse debate culminou com a reunificação da IV Internacional em
1963 entre os que defendiam a segunda posição. Nascia assim o Secretariado
Unificado da IV Internacional.
No entanto, esse acordo e essa reunificação não impediram novos debates sobre Cuba no interior do movimento trotsquista. Durante boa parte da
década de 60 e 70 ocorreu uma violenta batalha política entre as correntes
que achavam que a grande tarefa dos trotskistas era construir o partido revo-
1 Revista Socialismo ou
Barbárie, Novembro
de 2008
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
91
Pontos de vista
lucionário na classe operária e os que, pelo contrário, defendiam o “modelo
cubano” de partidos-exércitos, para levar adiante a luta guerrilheira.
Também durante parte da década de 70 ocorreu uma aguda polêmica, já
não mais sobre o caráter de classe do Estado cubano, mas sobre sua direção.
De um lado estavam os que consideravam que a direção castrista era consequentemente revolucionária, comparável, e inclusive superior a Lenin e
Trotsky, e os que consideravam o castrismo como uma direção burocrática
que minava as bases do Estado operário cubano.
Por fim, durante a década de 90 e até hoje, vem sendo travado um novo
debate entre os que consideram que em Cuba, como na ex-URSS e no restante
do Leste europeu e China, o capitalismo foi restaurado e os que consideravam
(e consideram) que em Cuba não se restaurou o capitalismo. As posições
de Roberto Ramírez e nossas respostas fazem parte desse novo debate que,
como veremos, tem profundas consequências programáticas e políticas.
Restauração e revolução: anos de confusão
Trotsky havia previsto que, se a burocracia não fosse expulsa do poder
pela classe operária, a restauração do capitalismo seria inevitável. (“De certa
maneira, a degeneração acaba, inevitavelmente, na destruição”2). Por isso,
defendia como centro do programa para a URSS uma revolução política que
teria como objetivo (mantendo as bases econômicas do Estado operário)
expulsar a burocracia do poder para recolocar em seu lugar as organizações
da classe operária.
A classe operária fez várias tentativas (na Alemanha Oriental, Hungria, Checoslováquia, Polônia) de expulsar a burocracia do poder, mas não
conseguiu. Por isso o capitalismo acabou sendo restaurado pelas próprias
burocracias governantes.
A restauração do capitalismo confirmou o prognóstico de Trotsky. Mas,
contraditoriamente, quando isso ocorreu o movimento trotskista foi surpreendido por esse acontecimento, e uma enorme confusão tomou conta
de todas as suas organizações. Essa confusão demonstrou algo que Nahuel
Moreno3 já havia observado várias vezes: a enorme contradição que existia
(e existe) entre a imensa herança programática e teórica do trotsquismo e a
extrema debilidade de suas organizações e dirigentes.
A maior confusão expressou-se no fato de que a maioria das organizações
trotsquistas levou vários anos para perceber que a restauração era um fato na
China (a partir de 1978) e também na ex–URSS (a partir de 1986). Foi essa
debilidade que nos impediu de entender em toda a sua profundidade, em
seu devido momento, dois novos processos (a restauração do capitalismo e
a queda do aparato stalinista) que, se bem foram previstos por Trotsky, eram
inéditos para todos os seus seguidores.
Dois elementos favoreceram essa enorme confusão. Por um lado, importantes dirigentes trotsquistas, entre eles Ernest Mandel, revisando as posições
de Trotsky, chegaram à conclusão de que a restauração do capitalismo estava
descartada. Mas, por outro lado, um elemento do prognóstico de Trotsky
gerou muita confusão, inclusive naquelas organizações que combatiam, com
posições principistas, as posições revisionistas de Mandel.
92
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
2 TROTSKY, Leon.
Em Defesa do Marxismo.
3 Nahuel Moreno
(1924-1987), dirigente
trotsquista argentino,
fundador e principal
dirigente da LIT-QI
(Liga Internacional
dos Trabalhadores,
Quarta Internacional).
Pontos de vista
Trotsky havia previsto que a restauração do capitalismo só poderia ocorrer
por meio de uma repressão sangrenta. Mas a burocracia desmontou o que
restava dos Estados operários e restaurou o capitalismo sem necessidade de
uma repressão desse tipo.
Não é que não houve repressão, e sim que ela ocorreu muitos anos antes
(a partir da segunda metade da década de 20) quando o aparato stalinista,
para expulsar a classe operária e os revolucionários do poder, perpetrou um
verdadeiro genocídio que preparou, historicamente, o terreno para a restauração do capitalismo, consumada na URSS na segunda metade da década de 80.
Dessa forma, a realidade se mostrou-se, novamente, mais rica que as previsões.
A consumação da restauração sem necessidade de uma violenta repressão,
apesar de não ter dado razão ao prognóstico de Trotsky, deu razão à sua caracterização sobre o regime stalinista: era similar ao fascismo e, por isso, não
precisou de uma nova repressão para restaurar o capitalismo. E o mesmo valeu
para os outros Estados. Nesses casos, para restaurar o capitalismo tampouco a
burocracia precisou de uma nova e violenta repressão, porque nesses Estados
a repressão já existia desde o seu surgimento. Eram Estados operários, mas
burocratizados, justamente pelo fato de que, mediante a repressão, a classe
operária nunca teve o controle político dos mesmos.
A reflexão anterior, sobre o prognóstico de Trotsky, continua sendo
um tema muito polêmico. De qualquer forma, para entender a questão que
estamos abordando é preciso destacar que o fato da previsão de Trotsky,
nesse aspecto, não se ter concretizado, gerou uma enorme confusão, que
deu origem a duas conclusões diferentes, ambas equivocadas, no interior do
movimento trotsquista. Por um lado, uma parte das organizações, quando
veio a restauração, aferraram-se ao prognóstico de Trotsky e tentaram negar
a realidade: como não houve uma repressão violenta, não se podia falar em
restauração. Por outro lado, várias organizações constataram corretamente
que o capitalismo havia sido restaurado mas, a partir daí, chegaram à conclusão
de que não tinha havido repressão porque os operários não tinham defendido
esses Estados, o que demonstraria que eles não eram Estados operários.
Por razões de espaço e porque já analisamos isso em outros artigos publicados nesta mesma revista, não vamos nos deter nesse aspecto. De qualquer
forma, é necessário esclarecer que esse tipo de postura fez com que esse setor
concluísse que esses Estados não eram nem burgueses, nem operários. Essa
posição foi duramente combatida por Trotsky no final da década de 30.4
Roberto Ramírez, o autor do artigo sobre Cuba que estamos analisando,
faz parte dos intelectuais que chegaram a esse tipo de conclusão, o que os levou
a pensar que o programa trotsquista não havia passado pela prova dos fatos.
A maioria das organizações trotsquistas reconheceu a restauração
Passados os primeiros anos de maior confusão, a maioria das organizações
trotskistas começou a reconhecer que o capitalismo havia sido restaurado
na ex-URSS e no Leste europeu. No entanto, foram poucas as organizações
que também reconheceram, nesse momento, que o mesmo havia ocorrido
na China, no Vietnã e em Cuba.
Mas qual era a diferença entre esses três últimos países e os demais? A
diferença estava em que nesses três países os regimes de partido único dos PCs
4 Ver artigo de León
Trotsky, de 1937, intitulado ¿Ni un estado
obrero, ni un estado
burgués? incluído na
obra En defensa del marxismo.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
93
Pontos de vista
continuavam intactos e isso foi visto, de forma equivocada, como um obstáculo para a restauração do capitalismo quando, na verdade, era o contrário.
Em todos os países a restauração foi impulsionada pelas burocracias governantes. Por isso, naqueles países onde os partidos comunistas se mantiveram
no poder porque não houve uma insurreição de massas (Cuba e Vietnã) ou
porque essa insurreição foi derrotada (China), a restauração avançou com
mais facilidade.
De qualquer forma, com o passar do tempo, a maioria das organizações
trotsquistas também se viram obrigadas a reconhecer que na China o capitalismo havia sido restaurado, mas não chegaram à mesma conclusão em
relação a Cuba.
Cuba foi definida como o último bastião de luta contra a restauração. Os
argumentos usados para tentar demonstrar essa tese foram os mais variados,
mas ninguém até hoje havia conseguido encontrar uma explicação tão sofisticada como a que Roberto Ramírez expõe em seu artigo.
Cuba, um rumo histórico excepcional?
Como dizíamos anteriormente, Roberto Ramírez faz parte daquele setor
originário do movimento trotsquista que depois de constatar a restauração
do capitalismo nos Estados operários burocratizados, chegou à conclusão
de que o programa trotskista estava equivocado. Para ele, esses Estados não
eram operários, mas também não eram burgueses. Em uma curiosa, ainda
que nada nova, análise de cunho “marxista” duvidoso, chegou à conclusão
que esses Estados não teriam um caráter de classe. Seriam “burocráticos”.
Hoje em dia Roberto Ramírez continua opinando o mesmo, mas agora
chegou à conclusão de que suas antigas análises sobre a vitória da restauração
capitalista valem para todos os Estados onde se havia expropriado a burguesia… menos para Cuba. No texto já citado diz:
Cuba passou por vários anos de terríveis dificuldades e penúrias, só
comparável à dos países que sofreram uma dura guerra. Mas, para
surpresa do mundo, não seguiu imediatamente o mesmo curso da
URSS e dos países do Leste europeu, nem tampouco o da China...
Nesses anos, não só a União Soviética mas todos os países da Europa
e Ásia, que na segunda metade do século XX se autodefiniam como
“socialistas”, estavam em plena restauração do capitalismo…Mas em
Cuba tudo ficou em suspenso… Cuba conseguiu resistir em meio à
derrocada dos “ex–países socialistas”. Valorosamente, a ilha permaneceu como uma exceção.
O texto reconhece que em Cuba foram feitas algumas reformas mas,
segundo o autor, Fidel Castro teve de “…aceitá-las com reticência”, mas, de
qualquer maneira, essas reformas seriam “isoladas” e “parciais”.
Em outras palavras, para o autor, em Cuba não só não se restaurou o
capitalismo como as poucas medidas pró-capitalistas tomadas foram feitas
contra a vontade de Fidel.
Segundo Ramírez, para encontrar uma explicação para essa situação
excepcional seria necessário remontar-se ao século XIX, já que Cuba teria
seguido um “curso histórico excepcional”. A partir daí Ramírez deixa de lado
94
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Pontos de vista
as posições do trotsquismo e passa a adotar como suas as elaborações de uma
série de autores dos meios acadêmicos, especialmente o britânico Richard
Gott e o americano Sam Farber, citados à exaustão. Entre as afirmações de
Roberto Ramírez e dos outros autores, diz-se que as raízes da “excepcionalidade” da Revolução Cubana estão no curso histórico, também excepcional,
da ilha em comparação com o restante da América hispânica”.
Junto com a menor ilha, Porto Rico – hoje colônia direta dos EUA
sob o eufemismo de “estado livre associado” – Cuba foi a única região
do império espanhol que não conseguiu a independência. E quando
finalmente as tropas espanholas retiraram-se dali, foi apenas para serem
substituídas pela ocupação militar dos Estados Unidos.
Por que o Império espanhol, expulso de todo o continente pelos movimentos de independência, conseguiu manter seu domínio em Cuba?
O decisivo foi a atitude das elites cubanas (proprietários de engenhos
e plantações de cana, comerciantes, funcionários, padres etc.) que em
grande proporção, ao contrário do continente, não eram partidários
da independência.
Essa estreita relação entre as elites cubanas e os impérios (primeiro o
espanhol e depois o norte-americano) é citada como “um importante ingrediente daquilo que ocorrerá nas duas grandes revoluções que sacudiram
Cuba no século XX”.
No marco dessa suposta situação excepcional, na segunda metade da
década de 50 surgira um movimento, em 26 de Julho, encabeçado por Fidel
Castro, que também seria excepcional. Segundo o artigo, esse movimento,
ao contrário do que sempre afirmou a maioria do trotsquismo, não teria um
caráter pequeno-burguês e sim seria “uma liderança política revolucionária
que, longe de ser pequeno-burguesa radical…era ‘sem classe’ no sentido de
que não teria fortes laços orgânicos ou institucionais, nem com a pequena
burguesia nem com as outras principais classes sociais”.
Para Roberto Ramírez, é necessário caracterizar o Movimento 26 de Julho
da mesma forma que se caracteriza o movimento estudantil, que não é uma
classe social e, por isso, sob o impacto de certos problemas gerais da sociedade “pode muitas vezes orientar-se em outros sentidos e defender outros
interesses que não os de sua classe originária”.
Dentro dessa tese, para Roberto Ramírez também seria equivocada a
análise trotsquista segundo a qual o Movimento 26 de Julho, para responder
aos ataques do imperialismo, teria sido obrigado a avançar mais além de suas
intenções originais. Segundo ele, Fidel Castro e o Movimento 26 de Julho
tiveram, desde o primeiro momento, um objetivo claro: tornar Cuba independente do imperialismo americano.
Fidel começou atacando o grande problema herdado de 1898-1902:
a independência nacional de Cuba. Em contraste com as análises que
retratam os líderes cubanos como apenas reagindo diante da política
dos EUA e suas ações, afirmo que esses líderes foram atores fortemente
influenciados por suas próprias predisposições políticas e inclinações
ideológicas... Castro era um caudilho, mas um caudilho com idéias.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
95
Pontos de vista
Por fim, toda essa excepcionalidade histórica cubana é o que explicaria
porque o capitalismo foi restaurado no mundo todo, menos em Cuba. “Em
Cuba, por um conjunto de fatores excepcionais, esse lamentável final da
restauração capitalista foi adiado”.
Uma longa análise para justificar uma realidade que não existe
As correntes castristas afirmam que em Cuba não se restaurou o capitalismo porque, à frente do Estado cubano existe um grande dirigente revolucionário: Fidel Castro. Roberto Ramírez não tem a mesma opinião, mas a
conclusão igual à dos castristas. Fidel impediu a restauração do capitalismo
e portanto estaria cumprindo, objetivamente, um papel revolucionário.
Como já vimos, para Ramírez, essa postura excepcional de Fidel em
relação aos outros líderes dos ex-Estados operários seria explicada por uma
suposta história excepcional de Cuba. Mas isso não é assim.
É verdade que Cuba, ao não obter a independência da Espanha, seguiu,
junto a Porto Rico, um curso diferente do restante da América Latina, mas
não excepcional. Em Cuba, como em todo o continente, houve uma violenta
luta pela independência e isso foi possível porque importantes setores da
burguesia colocaram-se à frente dessa luta.
Também é verdade que Cuba passou de colônia do império espanhol para
uma colônia dos EUA, mas esse é o mesmo processo que ocorreu no restante
do continente, onde os países que conseguiram a independência do império
espanhol em pouco tempo passaram a ser colonizados pelo império inglês,
primeiro, e pelos EUA depois. Também é verdade que essa dependência de
Cuba em relação aos dois impérios foi possível pelo papel das “elites cubanas”, mas não é verdade que o restante das elites latino-americanas teve um
comportamento muito diferente.
Também é equivocado falar do Movimento 26 de Julho como um movimento não classista. A comparação com o movimento estudantil não tem
sentido. O que é correto para o movimento estudantil (que é uma fase da
vida das pessoas) não pode ser usado para caracterizar uma corrente políticomilitar que tem, ao contrário do movimento estudantil, um programa, uma
estrutura, uma política e uma direção. Tampouco é correto afirmar que o
Movimento 26 de Julho tinha como objetivo, desde o primeiro momento,
enfrentar o imperialismo para conseguir a liberação nacional de Cuba. Não
há nenhum fato da realidade que comprove isso.
O único fato que o texto menciona é a reforma agrária votada em maio
de 1959, que teria sido “...inaceitável para os EUA e a oligarquia cubana”.
Mas a realidade é que essa reforma agrária foi sumamente limitada e só beneficiava uns 300 mil produtores (burgueses e pequenos burgueses) que já
eram proprietários de terras.
Por outro lado, Fidel Castro, depois de ter recebido o apoio de setores
burgueses dos EUA, e inclusive da própria CIA5, em sua luta contra Batista,
viajou para os EUA em abril de 1959, pouco tempo depois da tomada do
poder, para tentar estreitar as relações com esse país e ali declarou: “Eu disse
de maneira clara e definitiva que não somos comunistas. As portas estão abertas aos investimentos privados que contribuam para desenvolver a indústria
96
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
5 Ver estudo de John
Lee Anderson no livro
“Che Guevara. Una
vida revolucionaria”,
Ed. Anagrama.
Pontos de vista
em Cuba. É absolutamente impossível que façamos progressos se não nos
entendermos com os EUA”6.
Não havia um plano predeterminado para enfrentar o imperialismo,
como diz Roberto Ramírez. O problema foi que os EUA assustaram-se com
o processo revolucionário que se havia instalado em Cuba e, ao invés de ter
uma política para cooptar sua direção, começou a atacar todas as medidas
progressistas, por menores que fossem, e isso gerou uma reação por parte
da direção castrista que viu-se obrigada, tal como previu Trotsky7, a ir mais
além de suas intenções, pressionada pela revolução em curso.
Sim, o processo cubano teve um elemento excepcional, mas não o que
aponta Roberto Ramírez. Esse elemento de excepcionalidade foi o comportamento do imperialismo em relação a uma direção pequeno-burguesa que
havia tomado o poder. Em lugar de tentar cooptá-la, exigiu sua rendição
incondicional, o que acabou provocando a radicalização dessa direção.
A restauração
O texto de Roberto Ramírez tem importantes limitações do ponto de
vista histórico: a suposta excepcionalidade histórica de Cuba e a suposta luta
contra o imperialismo, desde o início, por parte do Movimento 26 de Julho.
Também tem várias limitações teóricas: uma corrente guerrilheira que toma
o poder e que não responde a nenhuma classe social e um Estado que não é
nem operário nem burguês.
No entanto, a principal limitação do texto é que este conjunto de histórias
e teorias é formulado para tentar explicar um fato que não existe, ou seja, que
Fidel Castro, à frente do Estado cubano, estaria defendendo as conquistas
da revolução de 59: a expropriação da burguesia e a independência nacional.
Porque não só Fidel Castro não está fazendo isso, como essas conquistas
não existem mais.
Roberto Ramírez diz que Fidel Castro só fez reformas econômicas
“isoladas” e “parciais”. Realmente, em Cuba foi feita uma série de reformas
pró-capitalistas isoladas e parciais, que não significaram a restauração do capitalismo. Mas isso ocorreu entre 1977 e 1983. Nesse período foram legalizadas
as cooperativas (de 44 em 1977 para 1472 em 1983) e se liberaram uma série
de trabalhos autônomos mas, no início dos anos 90, as reformas “isoladas”
a que Ramírez se refere foram deixadas de lado para dar lugar a profundas
reformas na estrutura econômica, o que significou uma mudança qualitativa
no caráter do Estado cubano.
É bom ressaltar que nem os economistas cubanos (castristas) concordam com Ramírez. Eles não falam de reformas parciais. Um estudo de três
economistas do CEA (Centro de Estudos sobre América) de Havana, com
o sugestivo título de Cuba: a reestruturação da economia8 trata das profundas
mudanças feitas pelo governo em 1995.
Esses economistas, reproduzindo o discurso do governo cubano, dizem
que não se restaurou o capitalismo, mas demonstram ser sérios, já que não
ocultam as profundas reformas estruturais. Segundo seus informes, Cuba
está completamente aberta ao capital estrangeiro; “…no final de outubro de
1994 o governo cubano anunciou que nenhum setor produtivo da economia
nacional estaria fechado ao investimento externo”. Também destacam a
6 GONZÁLEZ, Ernesto. El trotskismo
obrero e internacionalista
en la Argentina. Ed. Antídoto, Tomo 3, vol.1.
7 No Programa de
Transição, Trotsky
disse: ”No entanto,
não se pode negar
categoricamente, por
antecipação, a possibilidade teórica de
que, sob a influência de circunstâncias
completamente excepcionais (guerra, derrotas, crack financeiro,
pressão revolucionária das massas etc.)
os partidos pequeno
burgueses, incluindo
a stalinistas, possam
ir mais longe do que
eles mesmos queiram
na via de uma ruptura
com a burguesia”.
8 CARRANZA, Julio,
GUTIERREZ, Luis e
MONREAL, Pedro.
Madri: Impala Editorial, 1995.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Pontos de vista
crescente presença das sociedades anônimas: “Em 1994 existiam em torno
de 200… Também existem cerca de 140 com capital Estatal cubano”.
Sobre o monopólio do comércio exterior, esses economistas são muito
claros: “A atividade do comércio exterior, antes controlada totalmente pelo
Ministério do Comércio Exterior… passou a ser assumida diretamente por
um número cada vez maior de empresas (pertencentes a organismos estatais,
sociedades mercantis de capital cubano, mistas e representações de firmas
estrangeiras)”.
Como é bem conhecido, Cuba continua sendo um país baseado na monocultura do açúcar. Pois bem, o estudo citado informa que já em 1994 praticamente a totalidade da produção de cana de açúcar era feita por particulares:
“Até julho de 1994, as UBPC (Unidades Básicas de Produção Cooperativa)
de cana eram 1555 e cobriam toda a área estatal dedicada à cana, ou seja, 80%
de todos os terrenos com esse cultivo. Os produtores associados na UBPC…
são os donos do produto e, claro, repartem os lucros”.
Esses economistas também destacam que os produtos industriais já são
vendidos nos mercados e que “…eles permitirão a relação direta entre os
compradores e vendedores e os preços são estabelecidos pela relação oferta
e procura.”
Por fim, é preciso lembrar que o governo cubano, em 1992, dissolveu a
Junta de Planificação Econômica Central e nesse mesmo ano o parlamento
(Assembleia Nacional) votou a reforma da Constituição Nacional, com o
objetivo de legalizar a propriedade privada dos meios de produção.
Como se pode ver, ao contrário do que Roberto Ramírez diz, em Cuba
ocorreu o mesmo de tipo de reformas na estrutura da economia que no
restante dos ex–Estados operários. No entanto, o autor do artigo parece
ignorar esses fatos, reconhecidos publicamente pelo governo cubano. Não
acreditamos que Roberto Ramírez não tenha tido acesso a esse tipo de informação. Na verdade, parece-nos que ele oculta, deliberadamente, esse tipo
de informação para tentar “demonstrar” sua indemonstrável tese de que o
capitalismo foi restaurado no mundo inteiro, menos em Cuba. A poderosa
pressão das correntes castro-chavistas na América Latina é o único fato que
pode explicar esse tipo de atitude.
O programa para a nova revolução cubana
Roberto Ramírez termina seu extenso artigo formulando um programa
para uma “nova revolução cubana”. A idéia é muito importante porque, realmente, o que falta em Cuba é uma nova revolução. No entanto, infelizmente,
a “revolução” defendida por Ramírez só fica no enunciado.
Como não podia deixar de ser, as análises e as caracterizações do autor,
que pouco ou nada têm a ver com a atual realidade cubana, não o levam a
apresentar um programa revolucionário, mas sim, de reformas
O programa começa dizendo “Pela defesa das conquistas revolucionárias
de 1959, em primeiro lugar a independência nacional e a expropriação do
capitalismo e também os avanços que ainda se mantêm em relação à saúde,
educação, emprego, aposentadoria etc.”
Mas como defender conquistas que já não existem? Os serviços de saúde e
educação, desde a restauração, pioraram enormemente. O pleno emprego não
98
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Pontos de vista
existe mais (há mais de 400 mil desempregados) e isso tudo se deve à destruição das três conquistas básicas da Revolução Cubana no terreno econômico.
A revolução cubana expropriou a burguesia nacional e estrangeira e colocou os meios de produção em mãos do Estado. Mas hoje esses meios de
produção, em sua maioria, estão em mãos de uma nova burguesia nacional
e, sobretudo, dos capitalistas estrangeiros. A outra grande conquista, o monopólio do comércio exterior por parte do Estado, como já vimos, também
não existe mais. E, por fim, com a conquista que engloba as duas anteriores,
a planificação econômica central, ocorre o mesmo.
Mas Roberto Ramírez, como pretende ignorar esses fatos, apresenta um
programa para uma nova revolução que nem sequer propõe as tarefas mais
elementares, como por exemplo, a expropriação da burguesia ou, no mínimo,
a expropriação da burguesia imperialista (europeia).
Mas o programa para uma “nova revolução” de Ramírez não é reformista
só porque ignora a restauração do capitalismo. Seria igualmente reformista
mesmo que Ramírez estivesse correto quando afirma que tal restauração não
existe. Seu programa defende o fim do regime de partido único, democracia
operária e socialista e que as organizações de massas operárias, camponesas,
estudantis e populares, com funcionamento absolutamente democrático,
designem o governo de Cuba. Mas todas essas reivindicações, com certeza
muito corretas, são feitas sem propor a necessidade de que as massas expulsem
a burocracia do poder. Ou seja, não propõe uma revolução política, como a
que Trotsky propunha para a ex-URSS.
Em síntese, o programa para “uma nova revolução” é um programa
reformista, seja Cuba um Estado capitalista, como dizemos nós, seja um
“Estado burocrático”, no qual o capitalismo não foi restaurado, como diz
Roberto Ramírez.
Por fim, uma última reflexão sobre as posições de Roberto Ramírez. Em
uma parte de seu texto, criticando nossas posições, ele diz:
Da mesma forma, isto pode gerar confusões políticas ainda piores. Se
amanhã os grupos dissidentes de centro-direita, alentados e financiados
por Miami e a Oficina de Negócios dos EUA em Havana, ganharem
força em um setor de massas, já estamos vendo os companheiros do
PSTU-LIT falar da “luta democrática” contra a “ditadura do Estado
burguês cubano”.
Cremos que essa preocupação e essa hipótese do autor do artigo estão
mal formuladas. A hipótese a ser levantada é outra. Se em Cuba, da mesma
forma que ocorreu no Leste europeu, ocorrer uma insurreição contra o governo restauracionista (que quase seguramente contará com a participação
ativa dos gusanos), perguntamos: de que lado estará Roberto Ramírez? Do
lado das massas, apesar dos gusanos, ou do lado do governo, sob o pretexto
dos gusanos? Devido às suas caracterizações e seu programa, ficamos com
essa dúvida.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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IV Internacional
Uma polêmica com o Secretariado Unificado da IV Internacional
De que Internacional
precisamos hoje?
Clara Sousa
Liga Internacional
dos
Trabalhadores (LIT-QI)
A crise econômica atual demonstra a total incapacidade do capitalismo
de dar resposta às necessidades dos trabalhadores e dos povos. Ao mesmo
tempo, a “globalização” tornou mais claro o caráter internacional do capitalismo. Para aqueles que consideram necessário acabar com o capitalismo
ficou, portanto, mais visível a necessidade de construir uma organização
internacional para lutar contra este sistema. Hoje, muitos dos ativistas que
procuram uma alternativa ao capitalismo encontram pela frente o projeto
dos partidos anticapitalistas e simpatizam com ele: alguns porque acham
que eles são realmente revolucionários, outros porque lhes parece correto
juntar todos os que querem mudar o mundo, independentemente de serem
reformistas ou revolucionários. Ao mesmo tempo, muitos dos partidos da
antiga esquerda revolucionária que durante anos defenderam a construção de
partidos revolucionários, hoje saúdam e empenham-se em construir partidos
anticapitalistas, unindo reformistas e revolucionários.
O Secretariado Unificado da IV Internacional (SU) – que tem origem no
trotskismo e se intitula como “a IV internacional” - tem sido um dos grandes
impulsionadores dessa política de construção de partidos anticapitalistas.
Por isso mesmo, hoje defendem a construção de uma Nova Internacional,
composta por diversos partidos anticapitalistas, com um programa amplo
(leia-se reformista). Esse projeto político contradiz, no entanto, os pilares
centrais que deram origem à IV Internacional, que se propunha a ser o “partido
mundial da revolução socialista” para superar a crise de direção revolucionária
e baseava-se no Programa de Transição para a “mobilização sistemática das
massas para a revolução proletária”1.
O projeto do SU é construir “uma Internacional anticapitalista ampla”
No documento preparatório ao Congresso Mundial do SU2, a ser realizado em março de 2010, encontramos bem explícito o projeto internacional
que propõe para o próximo período:
5. (…) Confirmamos o essencial das nossas escolhas do último congresso Mundial de 2003 no que concerne à construção de partidos
100
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1 Trotsky. Programa
de Transição. Edições
Antidoto. Lisboa,
1978
2 Papel e Tarefas da
Quarta Internacional:
Resolução preliminar do
Comitê Internacional.
Em www.combate.
info.
anticapitalistas amplos. A Quarta Internacional (QI) confronta-se,
de forma geral, com uma nova fase. Militantes marxistas revolucionários, núcleos, correntes e organizações devem colocar a questão da
construção de formações políticas anticapitalistas, revolucionárias,
com a perspectiva de estabelecerem uma nova representação política
independente da classe trabalhadora. Tal aplica-se ao nível de cada país e
ao nível internacional. (…) Não se trata apenas de recuperar as velhas
fórmulas de reagrupamento de correntes revolucionárias. A ambição
é de juntar forças para além das simplesmente revolucionárias. Estas
podem ser um apoio no processo de junção de forças desde que sejam
claramente pela construção de partidos anticapitalistas. (…)
O projeto do SU não passa por construir partidos revolucionários nacionais, mas por construir “partidos anticapitalistas” que juntem revolucionários
e reformistas. A IV Internacional seria demasiado restrita como polo de
atração, pelo que seria necessário construir uma Internacional mais ampla:
7. (…) A existência dessa estrutura internacional que torna possível
“pensar sobre a política” é um bem indispensável para a intervenção
dos revolucionários. (…) No entanto, a QI, por razões históricas, já
por si analisadas, não possui a legitimidade para representar ou ser
a nova Internacional de massas de que necessitamos. (…)
Na presente relação de forças, a política de avançar no sentido de uma
Internacional de massas deve tomar o caminho da realização de conferências abertas e periódicas sobre questões políticas centrais - atividade,
temas específicos ou discussões - que tornem possível a convergência
e a emergência de polos anticapitalistas e revolucionários. Nos novos
partidos anticapitalistas que se possam formar nos próximos anos, e
que exprimem a fase atual de combatividade, experiência e consciência
dos setores mais comprometidos com a procura de uma alternativa
anticapitalista, a questão de uma nova internacional existe e continuará a ser colocada. Nós agimos e continuaremos a agir de forma a
que esta questão não seja colocada em termos de escolhas ideológicas
ou históricas, que poderão gerar divisões e cisões. Deve ser colocada a
um duplo nível, por um lado em termos de real convergência política
nas tarefas de intervenção internacional, no pluralismo de novas formações políticas, que deverá poder juntar correntes de diversas origens:
trotskistas de diversas origens, libertários, sindicalistas revolucionários,
nacionalistas revolucionários, reformistas de esquerda. (…)
À primeira vista pode parecer que, segundo o SU, é preciso abandonar
a IV porque esta não pode ser uma Internacional de massas. No entanto, a
questão é mais profunda. Para juntar reformistas e revolucionários é preciso
encontrar um modelo de Internacional e, consequentemente um programa,
que comporte visões do mundo reformistas. A IV e o seu programa não
comportam isso. O abandono da IV dá-se não porque esta não possa ser de
massas, mas porque a sua história - por mais distorcida que seja nas mãos
do SU – é uma história revolucionária. As forças não revolucionárias, não
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
101
IV Internacional
aceitam aderir sequer ao nome de “IV”, que ficou associada historicamente
à necessidade de um Partido mundial da revolução socialista.
Internacional ampla ou Partido Mundial da Revolução Socialista?
O projeto proposto pelo SU não é uma novidade histórica, apesar de
ser apresentado como tal. Na realidade, o objetivo de juntar reformistas e
revolucionários num mesmo partido e na mesma Internacional foi uma etapa
histórica superada com degeneração da II Internacional, a partir da explosão da
I Guerra Mundial e da sua capitulação aos governos burgueses e imperialistas.
Essa experiência histórica demonstrou que a convivência de revolucionários
e não revolucionários numa mesma organização leva os primeiros a ficarem
atados a uma estratégia reformista de conciliação de classes, que só trouxe
até hoje derrotas para a classe operária.
É essa clareza que leva Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros a
romper com a II, e levantar a necessidade de construir um novo instrumento
revolucionário para a classe operária mundial. A III Internacional, fundada
em 1919, apoiada na experiência de tomada do poder na Rússia em 1917, é a
concretização, em duas organizações opostas, da estratégia dos reformistas
(a II) e da estratégia dos revolucionários (a III).
O projeto da III estava ancorado numa análise fundamental da realidade
a partir de 1914, feita por Lênin: o capitalismo tinha entrado na sua fase imperialista de decadência, onde não era possível alcançar reformas estáveis e
duradouras. Tal como a III, a IV Internacional parte dessa análise, que abre
o Programa de Transição:
A condição econômica necessária para a revolução proletária já alcançou, no geral, o mais alto grau de maturação possível sob o capitalismo. As
forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e
os novos progressos técnicos já não conduzem a um crescimento da riqueza
material. Sob as condições da crise social de todo o sistema capitalista, as
crises conjunturais sobrecarregam as massas com privações e sofrimentos
cada vez maiores. O crescimento do desemprego aprofunda, por sua vez, a
crise financeira do Estado e enfraquece os sistemas monetários instáveis. (…)
Todo o falatório segundo o qual as condições históricas não estariam
“maduras” para o socialismo é apenas produto da ignorância ou de um engano
consciente.3
Abria-se, portanto, uma época histórica marcada por guerras e revoluções.
A construção da Internacional enquanto Partido Mundial da Revolução Socialista – que era o projeto da III e da IV – responde diretamente à decadência
do capitalismo e à consequente necessidade de tomada do poder pela classe
operária para acabar com a barbárie, sofrimento e destruição provocados pelo
capitalismo e agudizados na sua fase imperialista.
A Internacional proposta pelo SU, que não tem um programa revolucionário claro que unifique os seus membros e não se constitui como um partido
mundial para a revolução socialista é, portanto, o oposto do que foi o projeto
da IV. Nos estatutos aprovados na sua fundação em 1938 podemos ler:
1. Todos os militantes proletários e revolucionários do mundo que
aceitam e aplicam os princípios e o programa da IV Internacional estão
102
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
3 TROTSKY, L. A
agonia mortal do capitalismo e as tarefas
da IV Internacional
(Programa de Transição). Em: Documentos
de fundação da IV Internacional. São Paulo:
Editora Sunderman,
2008
juntos numa única organização mundial, sob uma direção internacional
centralizada e uma disciplina única. Esta organização tem o nome de IV
Internacional (Partido Mundial da Revolução Socialista) e é governada
pelo presente estatuto.4
Ao mesmo tempo, a proposta do SU de juntar revolucionários e reformistas num mesmo partido não corresponde à tarefa da época histórica
atual: a revolução socialista mundial. Para cumprir essa tarefa não bastam
partidos e uma Internacional amplos. Isto porque a época imperialista atual,
marcada por “guerra e revoluções”, é diametralmente oposta ao momento
em que se fundou a I ou a II Internacional, onde o capitalismo ainda vivia a
sua fase ascendente e podia outorgar algumas reformas à classe trabalhadora.
Hoje, nem a “Frente única” da I Internacional, nem o projeto reformista e
parlamentar da II podem responder à necessidade da tomada do poder pela
classe trabalhadora. Sem um Partido Mundial da Revolução Socialista será
impossível destruir o capitalismo com as suas instituições políticas, econômicas e militares, extremamente fortes, centralizadas e internacionalizadas.
Por isso, são necessários partidos voltados para a ação, inseridos na classe
operária e democraticamente centralizados (com a maior amplitude na discussão e maior unidade e disciplina na ação), tanto a nível nacional, como
a nível internacional. Se o SU propõe um projeto de Internacional que una
revolucionários e reformistas com base no programa destes últimos, que quer
dizer quando fala de anticapitalismo e socialismo do século XXI?
Qual a estratégia socialista que necessitamos hoje?
Daniel Bensaïd, um dos principais dirigentes do SU, escreveu em 2006
um artigo5 onde afirmava a necessidade de voltar ao debate estratégico e ser
mais específico “relativamente ao mundo «possível» e, acima de tudo, explorar
como lá chegar”. Bensaïd reafirma a mesma necessidade de passar da etapa
utópica e definir a estratégia numa entrevista recente no jornal Público da
Espanha (www.publico.es)6. Apesar disto, Bensaïd persiste em ser pouco
explícito nas conclusões que tira sobre o socialismo e a estratégia. Por trás
dessa aparente confusão emerge, todavia, um projeto claro.
Bensaïd defende a necessidade de que o socialismo passe por fazer coexistir diferentes tipos de representação e de legitimidades, o que tenderia
a concretizar-se na existência de uma Dupla Câmara. O que significa essa
dupla representação? Segundo Bensaïd:
Poderemos até, em algum momento, ter ficado perturbados ou chocados com a idéia de Ernest Mandel7 de ‘democracia mista’ após ter
reavaliado a relação entre os sovietes e a Assembleia Constituinte na
Rússia. No entanto não é possível imaginar um processo revolucionário
de outra forma que não seja através da transferência de legitimidade
que confira preponderância ao ‘socialismo pela base’ mas que interaja
com formas de representação, principalmente em países com longas
tradições parlamentares e onde o principio do sufrágio universal esteja
firmemente enraizado.8
No socialismo deveria, assim, coexistir a legitimidade proveniente das
4 Documentos de
fundação da IV Internacional. São Paulo:
Editora Sunderman.
2008.
5 BENSAÏD, D. O
início de um novo debate:
O regresso da Estratégia.
Publicação original em
Rouge (revista da LCR
Francesa). Versão em
português em www.
combate.info.
6 BENSAÏD, D. Ha
llegado el momento de
definir la estrategia. Entrevista a Andrés Pérez, Jornal Público,
Madrid, 2-10-2009.
Em www.publico.es.
7 Ernest Mandel, economista belga, foi o
principal dirigente do
SU até 1995, quando
faleceu.
8 BENSAÏD, D. O
início de um novo debate: O regresso da
Estratégia.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
103
IV Internacional
instituições parlamentares (burguesas) com a legitimidade “de base”, dos
sovietes ou outros organismos de duplo poder. Como um bom exemplo, o
autor coloca a coexistência entre as “instituições municipais” e as “instituições
participativas” em Porto Alegre no Brasil. Por isso é que a secção do SU no
Brasil, que esteve à frente da Prefeitura de Porto Alegre em 1996-2000, dizia
que o Orçamento Participativo era o início de um processo de democratização
radical do Estado via a construção do socialismo9.
Esta perspectiva de Bensaïd - que não pressupõe qualquer ruptura revolucionária, mas coexistência pacífica entre instituições da democracia burguesa
e da democracia operária – fica mais clara quando fala sobre a revolução hoje:
A noção de “atualidade da revolução” tem um duplo significado: um
sentido amplo (“a época de guerras e revoluções”) e um sentido imediato e conjectural. No momento defensivo em que o movimento se
encontra, tendo recuado durante mais de vinte anos na Europa, ninguém poderá reclamar a atualidade da revolução num sentido imediato.
Por outro lado, seria arriscado e não de somenos importância eliminar
a sua perspectiva dos horizontes da nossa época. (…) Mas uma idéia
suscetível de debate é a de manter o objetivo da conquista do poder
como um símbolo de radicalismo, mas admitir que a sua realização
encontra-se atualmente longe dos nossos horizontes.
Para Bensaïd, a revolução manter-se-ia atual como projeto histórico, isto
é, apenas para um futuro longínquo e não como tarefa concreta para os nossos
dias. À primeira vista, poderia parecer que este adiamento da Revolução por
Bensaïd dever-se-ia apenas a uma análise de que estaríamos numa conjuntura
da luta de classes desfavorável ao projecto revolucionário. No entanto, não
é uma diferença da conjuntura que subjaz a esta diferença face à revolução.
Em primeiro lugar, é no contexto de um debate sobre a estratégia e não
conjuntural que Bensaïd afirma que a revolução não está colocada hoje. Por
outro lado, relembremos que, se os anos 90 foram marcados pela ofensiva da
burguesia a nível mundial e pelo retrocesso das lutas da classe trabalhadora,
a década de 2000 iniciou-se com os processos revolucionários na Argentina,
Bolívia, Venezuela, Equador: a revolução foi colocada na ordem do dia pelas
massas, quando os “revolucionários” do SU diziam e dizem até hoje que a
revolução não tem atualidade num sentido imediato.
Finalmente, lembremos que a IV Internacional foi fundada por Trotsky
num período de importantes retrocessos da luta de classes, como a subida
ao fascismo em países centrais como a Alemanha, a Itália e a Espanha, e a
burocratização do Estado operário na Russia. Apesar disso, o Programa de
Transição propunha-se como tarefa central mobilizar as massas para a revolução, porque, apesar das derrotas históricas que marcavam o período, “a
estratégia da IV Internacional, não consiste em reformar o capitalismo, mas
em derrubá-lo”. A atualidade da preparação da revolução não podia, portanto,
deixar de ser uma constante.
Com a desculpa de uma conjuntura que, segundo Bensaïd, a revolução
seria inviável, este abdica na verdade da tarefa histórica para toda uma época:
a revolução socialista mundial. A ausência de referência no texto de Bensaïd
104
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
9 Para aprofundar a
critica a esta perspectiva, no caso especifico
de Porto Alegre no
Brasil, ver Presupuesto Participativo: en
los limites del orden
burgués de Mariucha
Fontana e Julio Flores.
In Marxismo Vivo nº
3. 2001
(e nos do SU) sobre a questão do Estado e a sua relação com a revolução é o
aspecto que demonstra verdadeiramente o projeto estratégico do SU.
Revisitando “O Estado e a Revolução”
No livro O Estado e a Revolução10, Lênin retoma as elaborações de Marx e
Engels sobre o Estado como produto do antagonismo irreconciliável entre as
classes. O Estado existiria para conciliar a existência de duas classes opostas,
mantendo a submissão de uma pela outra. Para manter essa submissão, a classe
mais poderosa e dominante economicamente utiliza o Estado para também
se tornar politicamente dominante. Suas várias instituições garantiriam a
dominação, com destaque para as Forças Armadas. Daí, Lênin sintetiza o
Estado como “uma força especial de repressão” e deduz que “a libertação
da classe oprimida só é possível por meio de uma revolução violenta e da
supressão do aparelho governamental criado pela classe dominante (...)” (O
Estado e a Revolução, p. 11).
Na sociedade capitalista, o Estado também não seria neutro, mas burguês, e suas instituições seriam o sustentáculo do sistema, ao servirem para
a manutenção da dominação da burguesia e a sua exploração da classe trabalhadora. É nesse sentido que Lênin retoma Engels nas suas considerações
sobre o sufrágio universal (aparentemente a garantia da democracia para
“todos os cidadãos”) como um instrumento da burguesia, e critica aqueles
que o defendem como expressão da vontade da maioria:
Os democratas pequenos-burgueses, do gênero dos nossos socialistasrevolucionários e mencheviques, e os seus irmãos, os sociais-patriotas
e oportunistas da Europa ocidental, esperam precisamente, “mais alguma coisa” do sufrágio universal. Partilham e fazem o povo partilhar
da falsa concepção de que o sufrágio universal, “no Estado atual”, é
capaz de manifestar verdadeiramente e impor a vontade da maioria dos
trabalhadores. (O Estado e a Revolução, p. 18)
A partir dessa concepção do caráter classe do Estado, Lênin reforça a idéia
de que para construir o socialismo é necessária uma revolução violenta que
derrube o Estado burguês (e suas instituições) e construa o Estado operário
– a ditadura do proletariado. Para Trotsky, a ditadura do proletariado concretizava todo o programa da IV. De forma oposta, Bensaïd considera que foi
até uma “decisão justa” que a LCR tenha retirado a ditadura do proletariado
do seu programa, visto que o termo ditadura teria uma conotação pejorativa
hoje. Mas não é simplesmente a expressão ditadura do proletariado que está
ausente do programa do SU, e sim a sua concretização: a necessidade de que
a classe operária destrua o Estado burguês e construa um Estado operário.
Segundo as palavras de Bensaïd, esta nova estratégia socialista, sem a revolução no horizonte, adviria da necessidade de responder à juventude “mais
prática”, ao predomínio da derrota histórica dos anos 80 ou à falta de uma
perspectiva de “emancipação” que ainda predominaria nos nossos dias. No
entanto, a defesa do “socialismo” sem destruição do Estado burguês é uma
posição antiga defendida pelas correntes reformistas, encabeçadas dentro da
II Internacional por Bernstein e Kautsky e combatidas por Lênin, Trotsky
e Rosa Luxemburgo. Da mesma forma, a tentativa de associar aqueles que
10 Utilizamos aqui
como referência para
as citações a versão
publicada pela Editora
Hucitec (São Paulo,
1979).
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
105
IV Internacional
defendem uma ruptura violenta com o sistema capitalista aos “ditadores”
por contraposição aos “democratas” que defendem o socialismo “na base”
e no parlamento é um ataque histórico dessas correntes contra as correntes
revolucionárias.
Em 1918, Kautsky, dirigente da II Internacional, escreveu uma brochura intitulada A ditadura do proletariado onde atacava o regime soviético
surgido da Revolução Russa e as análises do Estado e da Revolução defendidas
pelos bolcheviques. No texto A revolução proletária e o renegado Kautsky,
Lênin analisa e se contrapõe aos vários argumentos de Kautsky, denunciando
sua deformação do marxismo. No 1º Congresso da Internacional Comunista
1919, Lênin apresenta as Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do
proletariado onde se sintetiza esta discussão. Retomamos alguns dos argumentos desse debate que se assemelha em muito àquele que mantemos com
Bensaïd.
Ditadura e democracia “em geral” ou de classe?
A argumentação de Kautsky para atacar a ditadura do proletariado
centrava-se na oposição entre dois métodos diferentes: o democrático e o
ditatorial. Sob este aspecto, respondiam Lênin e a III Internacional:
2. (...) este argumento se apóia nas concepções de ‘democracia em geral’ e de ‘ditadura em geral’, sem precisar a questão da classe. Colocar
assim o problema, fora da questão das classes, pretendendo considerar
o conjunto da nação, é zombar da doutrina fundamental do socialismo - a doutrina da luta de classes - aceita nas palavras, mas esquecida
na prática pelos socialistas que passaram para o campo da burguesia.
Pois em nenhum país civilizado, em nenhum país capitalista existe
democracia em geral: existe apenas democracia burguesa. (…)
3. (…) Esta defesa atual da democracia burguesa em meio a discursos
sobre a ‘ditadura em geral’ (…) são uma verdadeira traição ao socialismo, (…) uma negação do direito do proletariado à sua revolução
proletária. É defender o reformismo burguês (…).
4. Todos os socialistas, demonstrando o caráter de classe da civilização
burguesa, da democracia burguesa, do parlamento burguês, expressam
a idéia já formulada com o máximo de exatidão científica por Marx
e Engels, que a mais democrática das repúblicas burguesas não sabe
ser outra coisa que uma máquina de oprimir a classe operária à mercê
da burguesia, a massa de trabalhadores à mercê de um punhado de
capitalistas. (…) e agora que o proletariado revolucionário está em
fermentação e movimento, que se encaminha para destruir esta máquina
de opressão e para conquistar a ditadura do proletariado, esses traidores
socialistas desejam fazer crer que a burguesia deu aos trabalhadores
a ‘democracia pura’, como se a burguesia tivesse renunciado a toda a
resistência e estivesse prestes a obedecer à maioria dos trabalhadores,
como se, numa república democrática, não houvesse uma máquina
governamental feita para operar o esmagamento do trabalho pelo
capital.11
106
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
11 Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura
do proletariado. Em:
III Internacional Comunista: Manifestos,
Teses e Resoluções
do 1º Congresso. São
Paulo: Brasil Debates
Editora. 1988
Qualquer regime dentro do Estado burguês (seja uma ditadura ou uma
democracia) seria então uma ditadura da burguesia sobre a classe operária,
porque continuava assente nas instituições que permitem à burguesia (minoria da população) continuar a explorar a classe trabalhadora (a maioria da
população). A ditadura do proletariado seria mais democrática (e superior à
democracia burguesa), porque é uma democracia para a maioria da população
(a classe operária) e uma ditadura apenas sobre a minoria exploradora da
população (a burguesia).
Essa oposição entre democracia e ditadura em geral e sem caráter de classe
é utilizada hoje pelo SU para atacar como antidemocráticas e autoritárias as
correntes que até hoje se reivindicam da necessidade de que a classe trabalhadora faça a revolução socialista e instaure a ditadura do proletariado. Tal como
Kautsky, em nenhum momento o SU denuncia a democracia atual como uma
ditadura encapotada da burguesia e, pelo contrário, defende constantemente
que “a democracia” precisaria apenas de ser aprofundada, radicalizada ou
completada com o “socialismo de base”, como se vê pela defesa de Bensaïd
do sufrágio universal e da dupla legitimidade.
Esse discurso do SU é ainda mais nefasto que o de Kautsky, à medida que
associa a ditadura do proletariado ao que foi a ditadura stalinista, da mesma forma que o faz a burguesia, com o objetivo de desprestigiar o projeto
socialista. Como corrente que provém do trotskismo, o SU sabe bem que
a ditadura stalinista foi uma degeneração burocrática da ditadura do proletariado contra a qual Trotsky e outros bolcheviques lutaram até a morte. Ao
fazer este discurso nos nossos dias, o SU não apenas deforma o marxismo
como afirmava Lênin relativamente a Kaustky, como também fortalece a
campanha da burguesia e varre para baixo do tapete da história a ampliação
da democracia para os trabalhadores na Rússia depois da tomada do poder
e o que foi a luta heróica de muitos revolucionários contra a burocratização
do regime na URSS.
É possível acabar com o capitalismo sem destruir o Estado burguês?
Por outro lado, Kautsky dizia que os sovietes eram órgãos muito importantes, mas que deveriam manter-se como órgãos de combate da classe
operária, e não elevar-se a órgãos estatais, ou seja, não se tornarem instituições
de poder alternativo às burguesas. Por isso mesmo, apesar de todo o Estado
operário estar construído sobre o poder dos sovietes, que permitiam ampla
democracia à maioria da população, Kautsky atacava os bolcheviques por
dissolverem a Assembléia Constituinte e defendia a suposta coexistência
entre estes dois organismos.
Segundo Lênin, Kautsky tentava dessa forma combinar dois sistemas
opostos: a Assembléia Constituinte, enquanto organismo da ditadura
burguesa, e o sistema dos sovietes, enquanto organismos da ditadura do
proletariado. Desta forma, Kautsky pretendia, segundo Lênin, esconder a
sua oposição à destruição das instituições do Estado burguês e à construção
de um Estado operário, com base nos sovietes. Kautsky recusava, assim, a
própria ditadura do proletariado. Nas teses aprovadas no 1º Congresso da
Internacional Comunista a oposição à concepção de Kautsky fica bem clara:
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
107
IV Internacional
(...) a ditadura do proletariado não é apenas absolutamente legítima,
enquanto instrumento adequado à destruição dos exploradores e ao
esmagamento de sua resistência, mas também absolutamente indispensável para toda a massa trabalhadora, como único meio de defesa contra
a ditadura da burguesia que causou a guerra e prepara novas guerras.
O ponto mais importante, que os socialistas não compreendem e que
constitui sua miopia teórica, seu apego aos preconceitos burgueses e
traição política para com o proletariado, é que na sociedade burguesa,
quando se acentua a luta de classes, não há meio termo entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado. Todos os sonhos
de uma solução intermediária são apenas lamentações reacionárias de
pequenos burgueses.12
Também Bensaïd procura a dupla legitimidade ou representação, defendendo a combinação entre os organismos “de base” com as instituições
burguesas (sufrágio universal, instituições municipais, etc.). Com essa conciliação, Bensaïd, tal como Kautsky, procura esconder um programa político
que se opõe à destruição do Estado burguês e à elevação dos organismos da
classe a organismos de poder, e portanto à construção de um estado operário.
O projeto de Bensaïd, como o de Kautsky é, assim, a negação da revolução
socialista e da ditadura do proletariado e, como tal, a negação do programa
da IV Internacional.
O SU abandona a ditadura do proletariado e ultrapassa a fronteira de
classe
O abandono da ditadura do proletariado pelo SU significa o abandono
não apenas conjuntural da revolução, mas estratégico. Nesse sentido, a estratégia do SU passa a ser, objetivamente, alcançar reformas nos limites do
sistema capitalista.
É no marco dessa visão estratégica onde está ausente a revolução que
devemos compreender a defesa de Bensaïd de que a participação nos governos
burgueses é uma questão de tática, e não de princípios. Haveria portanto critérios que definiriam se é positivo ou não participar em governos burgueses:
a) a questão da participação surge numa situação de crise ou pelo menos
de um significativo ascenso nas mobilizações sociais, e não no vazio; b)
o governo em causa deverá estar comprometido com o início de uma
dinâmica de ruptura com a ordem estabelecida; c) finalmente, que a
relação de forças permita aos revolucionários assegurar que, mesmo
que não consigam garantir que os não-revolucionários no governo
cumpram as suas promessas, estes paguem um elevado preço pelo seu
incumprimento.13
À luz desses critérios, Bensaïd critica a participação da DS no governo
Lula no Brasil, não por colaborar com a burguesia e trair a classe trabalhadora, mas apenas por ter aplicado uma tática correta de forma incorreta. Ao
defender e participar de governos burgueses, o SU ultrapassa a fronteira de
classe, defendendo a colaboração direta com a burguesia para dar algumas
migalhas à classe trabalhadora.
108
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
12 Tese 11 das Teses
da III Internacional
sobre a democracia
burguesa e ditadura do
proletariado.
13 BENSAÏD, D. O
início de um novo debate:
O regresso da Estratégia.
A experiência recente da participação do SU em governos burgueses na
Itália e no Brasil com o objetivo de alcançar reformas no marco do sistema
apenas reforçou as lições que há muito o SU deveria ter aprendido da história
do movimento operário: a classe trabalhadora não viu a sua vida melhorada e
fomentaram-se as ilusões no sistema capitalista e na colaboração de classes.
A única coisa que o SU conseguiu com a sua estratégia reformista foi ajudar
a burguesia a manter a estabilidade do regime em momentos que esta estava
mais questionada.
A independência de classe e o combate aos governos burgueses, e em
especial aos de colaboração de classes (ou de frente popular), sempre foi
um definidor claro do programa da IV, que a diferenciava das demais correntes. A participação em governos da burguesia dividiu águas entre a II e
a III Internacionais. A oposição às frentes populares foi, em particular, um
definidor de águas do trotskismo com o stalinismo. Como podemos ler no
Programa de Transição:
A passagem definitiva da Internacional Comunista para o lado da ordem
burguesa, o seu papel cinicamente contrarrevolucionário em todo o
mundo (…) criou dificuldades suplementares ao proletariado mundial.
Usurpando a bandeira da Revolução de Outubro, o Komintern, pela
política conciliadora das ‘Frentes Populares’, vota a classe operária à
impotencia e abre o caminho ao fascismo.
As ‘Frentes Populares’ por um lado, o fascismo por outro, sao os últimos
recursos politicos do imperialismo na luta contra a revolução proletária. Mais
uma vez, o SU coloca-se na barricada oposta à da III e da IV Internacional.
Mais uma vez, também, repete os erros históricos da II Internacional.
O “anticapitalismo” do SU e o “socialismo do século XXI” são a negação
do socialismo
Na realidade, toda esta revisão do programa da IV Internacional e do
seu projeto de construção do Partido Mundial da Revolução Socialista ganha
nomes bonitos na boca do SU: fala-se de partidos “anticapitalistas”, de uma
“Internacional Ampla” e do “socialismo do século 21”.
Bensaïd, quando se refere à estratégia anticapitalista na atualidade, reivindica a dialética entre reforma e revolução e a necessidade de reivindicações
transitórias que façam a ponte “entre um programa mínimo (antineoliberal) e
programa máximo (anticapitalista)”. Todavia, o programa máximo de Bensaïd
(e do SU) não inclui, como vimos, a perspectiva de destruir o Estado burguês.
O “anticapitalismo” do SU resume-se, por isso, a diminuir “excesssos” do
capitalismo neoliberal através da luta por reformas. Sem uma estratégia para
a revolução e para a ditadura do proletariado, o anticapitalismo do SU não
passa na verdade do antineoliberalismo.
O mesmo poderiamos dizer da defesa do SU sobre o “socialismo do
século 21”. Na verdade, embora o socialismo do século 21, tal como o “anticapitalismo”, seja formalmente uma recusa do capitalismo, ele é a negação
do socialismo, enquanto rejeição do projeto de poder autônomo da classe
operária: a ditadura do proletariado. É bastante ilustrativo que o grande promotor do socialismo do século 21 - Chávez - seja o presidente de um Estado
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
109
IV Internacional
burguês – a Venezuela.
Por outro lado, o socialismo do século 21 e o “anticapitalismo” são
também a recusa da experiência do socialismo do século 20, em particular
da Revolução Russa. Como dissemos antes, o SU e outras organizações de
esquerda dão cobertura ao discurso da burguesia de que Estado operário é
o mesmo que stalinismo. Pelo contrário, a ditadura burocrática stalinista da
URSS foi o oposto da ditadura revolucionária do proletariado na Rússia. O
SU, que critica aqueles que continuam a defender a ditadura do proletariado
como uma necessidade, alia-se a setores stalinistas reciclados nos partidos
anticapitalistas (como é o exemplo da Refundação Comunista) e apóia os
setores claramente bonapartistas, como Chávez. O socialismo do século 21,
que pretende ser um “novo projeto de socialismo”, não faz mais que repetir
as revisões do marxismo há muito rebatidas pela história. A experiência das
revoluções do século XX mostram que, para construir o socialismo não basta
apoiar-se nas “mobilizações e auto-atividade das classes populares”. Como
demonstrou a revolução russa, é preciso destruir o Estado burguês e construir
um Estado operário, a partir dos organismos de duplo poder que surjam nos
processos revolucionários em curso, é preciso instaurar a ditadura do proletariado. Qualquer solução intermédia leva à manutenção do capitalismo
como sistema e à continuação da dominação da burguesia.
A necessidade de reconstruir a IV e atualizar o Programa de Transição
Ao contrário do que querem fazer parecer, o projeto do SU retrocede
mais de 100 anos na história do movimento operário, pois significa rejeitar
a oposição estratégica entre revolucionários e reformistas, que os levou,
durante décadas, a ter organizações separadas. O SU quer, assim, reeditar
a experiência histórica da II Internacional. A história do século XX deixou
bem claro para onde levou a estratégia reformista de Bernstein e Kaustky,
que tanto se assemelha à de Bensaïd e do SU.
Com esta proposta, o SU dá um marco organizativo à sua política de
conciliação de classes (de que sua participação em governos burgueses é apenas o exemplo mais extremo) e prepara novas capitulações ao imperialismo
(como a defesa de intervenções “humanitárias” promovidas pela ONU), novas
derrotas para a classe operária e retrocessos na construção do socialismo.
Tal como foi no caso da II Internacional, a política de abandono do
projeto revolucionário por parte do SU é produto da adaptação aos aparatos
reformistas que esta corrente vem levando a cabo há várias décadas, e que
a corrente que hoje se organiza na LIT-QI combateu ainda dentro da IV
Internacional, por considerar que esta levava à destruição da IV e não à sua
reconstrução. Essa adaptação do SU deu um salto depois da restauração do
capitalismo nos antigos Estados operários. Nesse sentido, a capitulação do
SU insere-se num processo mais geral em que a política imperialista de reação
democrática triunfou em cooptar a antiga esquerda revolucionária por meio
dos aparatos sindicais e dos aparatos burgueses. Como produto desse processo, o SU busca hoje apenas ser a ala esquerda do regime em vários países
e não a alternativa socialista revolucionária que necessitamos. Ou seja, apesar
de ainda ostentar o nome de IV Internacional, seu projeto é o oposto ao de
110
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Trotsky quando chamou à fundação da IV.
Contra essa revisão profunda, reafirmamos a necessidade da luta pelo
socialismo e da estratégia da revolução mundial para destruir o capitalismo,
o seu Estado e as suas instituições. Esse projeto só pode ser o da IV Internacional, a partir de suas bases fundacionais. Por isso, a LIT-QI coloca-se ao
serviço da tarefa central: a reconstrução da IV Internacional. Este projeto não
é para nós um fetiche produto de dogmas, mas uma necessidade que decorre
da análise da realidade e da constatação da atualidade do Programa de Transição – o programa da IV. Podemos dizer que esta atualidade concretiza-se
em quatro aspectos fundamentais.
Em primeiro lugar, porque o capitalismo mostrou a sua falência como
sistema que não traz solução para nenhum problema de fundo do mundo de
hoje. Por isso, continua a ser necessária uma “(…) luta sem piedade contra o
capitalismo até derrotá-lo, para impor uma nova ordem econômica e social no
mundo, que não pode ser outra que não o socialismo”14. Em segundo lugar,
porque o Programa de Transição colocou sempre a democracia operária como
uma questão central. Por isso defendia que nos antigos Estados operários
não havia saída sem realizar uma revolução política para derrubar a burocracia que tinha usurpado o poder aos trabalhadores. Já nos países capitalistas
colocava-se por dar uma batalha mortal contra a burocracia sindical e os
partidos que se reivindicavam da classe trabalhadora e se corromperam. Em
terceiro lugar, pela clareza de que a revolução e a construção do socialismo
são uma tarefa de caráter mundial. Como diz Moreno: “O socialismo não
pode ser nada mais que mundial. Todas as tentativas de se fazer um socialismo
nacional fracassaram, porque a economia é mundial e não pode haver solução
sócio-econômica dos problemas dentro das estreitas fronteiras nacionais de
um país”15. Finalmente, por batalhar pela construção de uma Internacional
que seja o Partido Mundial da Revolução Socialista, que sintetiza a nível da
organização o programa da IV e procura superar a razão da crise histórica da
humanidade: a crise de direcção revolucionária.
Apesar da atualidade do Programa de Transição, desde 1938 houve muitos
acontecimentos no mundo que precisam de novas respostas. Consideramos
necessário ir a fundo na explicação do que significou o fim dos Estados operários. Por outro lado, a atual crise econômica implica em novas respostas por
parte dos revolucionários. É necessário compreender qual é a politica concreta
do imperialismo hoje e quais as suas relações econômicas, políticas e sociais.
Está colocada a tarefa de atualizar o Programa de Transição frente às novas
realidades, às grandes mudanças por que passamos nesses últimos anos. Essa
atualização programática é central para responder a essas novas realidades, mas
ela deve basear-se nos alicerces sólidos deixados pela elaboração estratégica
da III dos tempos de Lênin e da IV de Trotsky contra a burocracia stalinista.
Para a LIT, essa tarefa é decisiva e tem que estar extremamente ligada
à reconstrução da IV, tarefa que não passa pela união de todos os que se
consideram trotskistas ou marxistas, mas por agrupar os revolucionários de
distintas tradições sobre a base de um acordo sólido em torno ao programa
marxista e revolucionário para o mundo atual.
14 MORENO, N. Ser
trotsquista hoje. Em:
www.marxists.org.
15 Idem
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
111
Isto é História
China, 1949: uma Revolucaç~ão no
´
país mais populoso da Terra
cecília Toledo e Marcos Margarido
ParTido socialisTa dos Trabalhadores uniFicado (PsTu) - brasil
Há 60 anos, no dia 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-tung anunciava a
fundação da República Popular da China. A vitória da Revolução Chinesa
foi a culminação de um longo processo revolucionário que sacudiu a China
desde 1911, com a queda do império manchu, a revolução nacionalista de
1925-27, a guerra contra o imperialismo japonês nos anos 30 e finalmente
a vitória do Exército de Libertação Popular em 1949. Dois grandes acontecimentos mundiais – a primeira guerra mundial de 1914 a 18 e a revolução
russa de 1917 - determinaram todo o processo chinês. A primeira guerra teve
como causa a disputa pelas colônias entre as potências imperialistas, devido
às pretensões expansionistas da Alemanha e Japão, e uma nova divisão mundial do trabalho; a revolução russa impôs a ditadura do proletariado no país
capitalista mais atrasado da Europa, dando dali em diante um novo marco
para os movimentos de libertação nacional e anticoloniais.
Hoje pouco resta dessa grandiosa revolução. Exemplo máximo disso é
que o povo chinês foi proibido de assistir aos festejos de aniversário de uma
revolução pela qual deu a vida e na qual depositou todas as suas esperanças.
A luta contra o imperialismo
A primeira fase da revolução chinesa, em 1911, apesar de ter derrubado
o império manchu, não conseguiu cumprir tarefas fundamentais, como fazer
a reforma agrária e, sobretudo, expulsar as potências imperialistas e realizar
a unificação nacional. A Primeira Guerra Mundial, em 1914, colocou o país
diante da necessidade de romper com seu passado pré-capitalista e definirse como um país independente. O mesmo propósito que levara as potências
ocidentais às revoluções dos séculos XVIII e XIX agora sacudia a China. Mas
o mundo já era outro. O capitalismo já estabilizara a divisão internacional
do trabalho e um mundo colonial já se estabelecia, do qual a China fazia
parte. Harold Isaacs definiu a situação complicada da China na época: “A
China, como o restante dos países dependentes do Leste, teve de tentar se
transformar em uma nação no mesmo momento em que a nação, como tal,
havia se esgotado como instrumento adequado para o progresso humano”.1
A política norte-americana que emergiu da guerra causou enorme impacto,
sobretudo na Ásia, que buscava emancipar-se do atraso em relação às potências
capitalistas ocidentais. A China teve de aceitar, no Tratado de Versalhes, que
112
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Xangai, 1957
1 ISAACS, Harold R.
The Tragedy of the Chinese Revolution. Stanford
University Press, 1961.
Isto é História
o Japão, um sócio menor das potências imperialistas, evacuasse a província
chinesa de Shandong, mas mantivesse o controle sobre a Manchúria.
A esperança, portanto, vinha da Rússia. A Revolução Russa, de outubro de
1917, significou para as massas chinesas um horizonte possível e as bandeiras
da ditadura do proletariado e do internacionalismo, as idéias do marxismo
e do socialismo, penetraram com força em toda a China. Em 1919 ocorrem
poderosas lutas anti-imperialistas, e em 1921 Sun Yat-sen, fundador e líder
do Kuomintang, o maior partido burguês da China, é eleito presidente da
república e proclama sua determinação em continuar a luta contra os “senhores
da guerra” e de realizar a unificação do país. Mas os trabalhadores chineses já
estavam protagonizando um enorme ascenso nas mais importantes cidades
do país; no campo, os milhões de camponeses, homens e mulheres viviam
em uma situação de pobreza e exploração imensas (80% das terras cultiváveis
estavam em mãos de latifundiários ou estrangeiros). Em meio a esse ascenso,
em 12 de julho de 1921, é fundado o Partido Comunista Chinês em Xangai,
e em 27 de janeiro de 1923 Sun Yat-sen assina um acordo com o governo
soviético, cujo objetivo era a ajuda da URSS ao Kuomintang e a cooperação
entre este e o PCCh na luta anti-imperialista.
No entanto, essa segunda onda revolucionária (entre 1925 e 1927) explode justamente no momento em que ocorre a morte de Lênin e a subida
ao poder de Stalin e sua camarilha na União Soviética. Numa guinada contra
a expansão mundial da revolução, o Comintern orienta-se para a teoria do
“socialismo num só país”2. A política de coexistência pacífica com o imperialismo, a partir da divisão do mundo em esferas de influência, marcaria a
orientação comunista dali em diante.
Na China, cresce a organização da classe trabalhadora com grandes lutas,
como a poderosa greve dos marinheiros e estivadores de Hong Kong entre
janeiro e março de 1922, inúmeras manifestações estudantis, e as greves nas
fábricas têxteis japonesas instaladas na China. Esse processo desemboca na
greve geral em Xangai em junho de 1925, na greve em Hong Kong e no boicote às mercadorias inglesas em Cantão. Todas essas lutas foram duramente
reprimidas. Em 30 de maio de 1925, a polícia anglo-americana de Xangai abre
fogo sobre uma enorme manifestação antijaponesa e mata doze estudantes e
operários chineses. Em 11 de junho do mesmo ano, os marinheiros britânicos atiram sobre manifestantes chineses em Hankow e dez dias depois, em
Cantão, uma manifestação de operários chineses é metralhada por soldados
ingleses e franceses.
Em 1927, após libertarem Xangai, as forças revolucionárias são massacradas pelo exército do próprio Kuomitang liderado por Chiang Kai-chek, com
o qual a III Internacional mantinha relações políticas, em nome da suposta
liderança da burguesia na conquista da unidade nacional. O PCCh recebera,
por isso, a orientação de dissolver-se no Kuomitang, perdendo sua independência política, o que foi motivo de um debate intenso na União Soviética
entre a Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky, e a direção stalinista.
Do oportunismo mais nefasto aplicado durante o levante revolucionário
de 1925 a 1927, “os comunistas chineses passaram ao extremo oposto do aventureirismo no período da contrarrevolução do Kuomitang”3, que culminou
2 A idéia antimarxista de que o socialismo poderia ser
construído dentro
das fronteiras do Estado nacional.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
113
Isto é História
na trágica sublevação de Cantão, sufocada em dezembro de 1927, selando
a derrota da segunda revolução. Chiang Kai-chek instaura uma ditadura de
ferro, reprime todas as organizações sindicais e políticas dos trabalhadores,
persegue os camponeses e permite o fortalecimento do imperialismo japonês,
demonstrando o caráter pró-imperialista e reacionário da burguesia chinesa e
a impossibilidade de sua aliança com o proletariado, tão sonhada por Stalin.
A razão da derrota de Cantão deve ser creditada, não à força da burguesia
chinesa, mas ao “curso triunfante da contrarrevolução mundial e seu reflexo
no movimento operário internacional: o stalinismo”4.
Mas, apesar disso, Trotsky – em discussão com a Oposição comunista
chinesa em 1929 – previu a continuidade do processo revolucionário. “É
impossível prever a duração do período inter-revolucionário, já que depende
de muitos fatores internos e externos. Mas o surgimento de uma terceira
revolução é inevitável; deriva-se absoluta e totalmente das circunstâncias
criadas pela derrota da segunda revolução”.5
Com o isolamento da classe operária causado pela derrota da segunda
revolução, o PCCh, liderado pela tendência de Mao Tsé-tung, que privilegiava
o movimento camponês, parte para o interior rural, no episódio conhecido
como a Longa Marcha. Lá, coloca-se à frente das guerrilhas camponesas,
iniciando a formação de Comunas Populares, inspiradas nos sovietes russos,
com experiências bem sucedidas de exploração coletiva da terra, mas isolados
do proletariado urbano. Entre 1934 e 1935, porém, Chiang Kai-chek consegue
dizimar as Comunas, apesar da resistência heróica das massas camponesas.
A guerra contra o Japão
O Japão, que controlava a Manchúria, passou a uma ofensiva em 1937,
em direção ao norte da China e ao vale do rio Yang-tsé. Os camponeses, que
voltavam a levantar a cabeça, reagiram com a ocupação de terras a partir da
guerra de guerrilhas. Esta reação popular deu-se por fora do controle do
PCCh, que, por abraçar a política das Frentes Populares de Stalin, continuava sua aliança com Chiang Kai-chek, considerado pelos comunistas o único
governo da China, e abandonava a luta pela reforma agrária.
A Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, fortalecera a ingerência
do Japão na China. Na Primeira Guerra, o Japão ocupara partes do território
chinês, e queria consolidar suas posições contra os interesses da França e da
Inglaterra. A situação econômica da China era crítica, e no aspecto político
estava totalmente dividida. Para evitar o colapso econômico do país e que ele
caísse sob o controle japonês, os Estados Unidos concederam ao Kuomintang empréstimos entre US$25 e 50 milhões entre 1938 e 19416. O governo
Roosevelt também enviou pilotos para treinar os chineses e combater ao
lado dos “nacionalistas”, além de caças P-40 para engrossar a força aérea de
Chiang Kai-chek.
1949: a vitória da revolução chinesa
A destruição provocada pelos japoneses durante a ocupação exacerbou a
pobreza e a miséria no campo, entre os trabalhadores das cidades e inclusive
da pequena-burguesia. Mas o fim da 2ª Guerra combina essa situação com o
enfraquecimento do imperialismo no Oriente: a derrota do imperialismo japo114
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
3 TROTSKY, L. A
guerra no extremo
Oriente e as perspectivas revolucionárias.
Em Documentos de fundação da IV Internacional. São Paulo: Ed.
Sundermann, 2008,
p. 109.
4 MORENO, N. Las
revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973.
Este livro pode ser
encontrado em www.
archivoleontrotsky.org
5 TROTSKY. A situação política na China
e as tarefas da oposição
bolchevique leninista. Junho de 1929.
6 Estes valores correspondem aproximadamente a 386 e
772 milhões de dólares
em 2009.
Isto é História
nês, a preocupação dos europeus com a reconstrução de seus próprios países e
do norte-americano frente à necessidade de apoiar política e financeiramente
os imperialismos europeus e evitar a revolução social no velho continente.
Os EUA não enviam dinheiro nem soldados para apoiar Chiang Kai-chek.
Este, que passava a representar o setor mais reacionário das classes dominantes - os latifundiários - exercia um governo ditatorial, contrário a qualquer
modificação da estrutura social do campo e, portanto, à reforma agrária e às
ocupações das terras que, através das comunas camponesas, já atingiam 100
milhões de pessoas nas zonas liberadas ao norte do país, cerca de 20% da
população na época, promovendo uma ruptura de fato entre a direção política que o Kuomitang exercera até então e as massas camponesas revoltosas.
Na Europa, os dirigentes soviéticos “evoluíam” da política de frente
popular com a burguesia democrática para a de aliança com o próprio imperialismo “democrático” e assinavam os acordos de Yalta e Potsdam, para
devolver a Europa ocidental ao domínio capitalista. Na China, um acordo
com os Estados Unidos permite a entrega da Manchúria ao Kuomitang,
enquanto Stalin exerce pressão sobre Mao para que aceite a formação de um
governo de coalizão nacional com Chiang Kai-chek. Um acordo nesse sentido
foi assinado em 11 de outubro de 1945 onde uma Conferência Consultiva
Popular “adotou uma série de resoluções sobre a organização de um governo
de coalizão, a reconstrução do país, os problemas militares, a convocação de
uma assembléia constituinte... e a unificação das Forças Armadas”.7
Mas Chiang não respeita o acordo e lança um ataque contra os territórios
liberados. Finalmente, após um ano de vacilações, o PCCh lança a política
de expropriação e repartição das terras dos latifundiários no verão de 1946.
Esse processo de confisco dos latifúndios espalhou-se por toda a China e o
entusiasmo revolucionário toma conta do país:
Lutando pela terra o camponês cria seus próprios organismos dirigentes, sindicatos camponeses, associações de arrendatários... Tal partição
da terra, ao suprimir as leis do senhor, abriu as portas às eleições e pôs
assim os governos das aldeias nas mãos de pessoas favoráveis à causa
comunista.8
O confisco de terras ultrapassa os limites impostos pelos comunistas e
atinge a burguesia e os camponeses ricos. Segundo Li Shao Chi, “as massas
camponesas e nossos militantes rurais não puderam, ao fazer a reforma agrária, seguir as diretivas publicadas em 4 de maio de 1946 pelo CC do Partido
Comunista, as quais exigiam considerar invioláveis no essencial a terra e os
bens dos camponeses ricos”.
No início de 1948, a situação do Kuomintang já era desesperadora.
Submerso em uma imensa crise econômica e política, o governo entra em
colapso, e Chiang Kai-chek renuncia à presidência no início de 1949. Em 1º
de outubro, Mao Tsé-tung declara a fundação da República Popular da China:
O povo de toda a China ficou submerso em tribulações e num amargo
sofrimento desde que o governo reacionário do Kuomitang de Chaing
Kai-chek traiu a pátria, conspirou com os imperialistas e lançou a
Guerra contrarrevolucionária... Agora, a guerra popular de libertação
7 CHI, Liu Shao.
Discurso proferido
ao C.N. do Conselho
Consultivo Político
em 14/06/1950.
8 BELDEN, citado
por Moreno. Las revoluciones china e indochina.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
115
Isto é História
está praticamente ganha e a maioria do povo do país foi libertado...
Representando a vontade de toda a nação, a primeira sessão da Conferência Consultiva Política do Povo da China... sancionou a lei orgânica
do Governo Central da República Popular da China.9
Fundava-se, assim, um Estado operário no país mais populoso do planeta.
O papel da classe operária
Maioria absoluta da população, os camponeses e trabalhadores rurais
foram os grandes protagonistas da Revolução Chinesa. Mas a classe operária,
mesmo minoritária, teve um papel importante, sobretudo nos momentos
decisivos. Se na insurreição de 1925-27 os operários foram massacrados
em Cantão e Xangai, graças à política ultraesquerdista de Stalin, e tiveram
seus sindicatos ferreamente controlados pelo Kuomintang no período da
Segunda Guerra Mundial, nos anos 40 a classe operária chinesa entrou em
uma poderosa onda grevista que acabou por desestabilizar de vez o governo
burguês e abrir o caminho para a vitória de Mao. A partir do final da guerra, a
China entrou em uma crise econômica e financeira profunda, com a inflação
chegando às alturas e o desemprego em larga escala, resultante da redução da
indústria bélica e a desmobilização de muitos soldados.
Cerca de 30% da população economicamente ativa perdeu seus empregos,
os salários foram congelados e os preços dos alimentos dispararam. Para se ter
uma idéia, um saco de arroz era vendido por 6,7 milhões de yuans no início
de junho de 1948 e em agosto já custava 63 milhões. No mesmo período, um
saco de 22 quilos de farinha passou de 1,95 milhão a 21,8 milhões de yuans
e um barril de óleo de cozinha subiu de 18,5 milhões para 190 milhões de
yuans. (Os preços desses produtos em 1937 eram 12, 42 e 22 yuans respectivamente)10.
A situação tornou-se insustentável, e a classe operária explodiu. Em
1946 houve 1716 greves e uma sequência de conflitos trabalhistas.
Apesar do férreo controle burocrático, os comunistas conseguiram se
infiltrar nos sindicatos e nas empresas. Membros do partido tinham se
instalado às ocultas na Indústria Têxtil Nacional de Xangai Número
12, na Coletoria da Alfândega de Xangai, na Fábrica de Máquinas
Dalong, na Companhia Francesa de Água, Energia e Bondes, no Cotonifício Número 9, na Companhia de Energia Elétrica de Xangai e
em várias lojas de departamentos da cidade. Esquemas semelhantes
desenvolveram-se em outras cidades com concentração industrial,
como Tianjin, Wuhan e Cantão.11
A primeira greve significativa do pós-guerra ocorreu na Companhia de
Energia Elétrica de Xangai. O movimento começou no final de janeiro de
1946, depois da demissão de representantes dos trabalhadores. Ao protestar,
seus companheiros foram mantidos fora da usina, mas conseguiram impedir
que outros trabalhadores colocassem a central elétrica em funcionamento.
Sem energia, as negociações foram feitas à luz de velas. Quarenta sindicatos
locais uniram-se em uma manifestação de protesto no início de fevereiro,
seguida por uma demonstração de solidariedade envolvendo representantes de
70 empresas e lojas. A greve foi vitoriosa e os demitidos voltaram ao trabalho.
116
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
9 ZEDONG, Mao.
Proclamation of the Central People’s Government
of the PRC. Em www.
marxists.org, acesso
em 15/10/09.
10 SPENCE, Jonathan D. Em Busca da
China Moderna. Editora Companhia das
Letras 2000, p.477.
11 Idem, p.476.
Isto é História
A luta das mulheres
Em muitas dessas empresas, grande parte da mão-de-obra era feminina.
Com frequência, o número de mulheres trabalhadoras superava o dos homens,
compondo 65% da mão-de-obra de certas indústrias têxteis, com salários
ainda mais baixos. Parte importante da pequena classe operária chinesa, as
mulheres tiveram um papel fundamental em todo o processo revolucionário.
Submetidas a costumes retrógrados, como amarrar os pés desde criança para
que se mantivessem pequenos (na verdade, para que não fugissem de casa!),
o casamento arranjado desde o berço, ser tratada como propriedade do pai e
do marido, as mulheres chinesas viram no estudo do marxismo e na vitória da
Revolução Socialista na Rússia uma forma concreta de conquistar a libertação.
Conforme o ELP avançava, surgiam nas aldeias as associações de mulheres que, entre outras tarefas, eram as encarregadas de punir os homens que
maltratavam as mulheres, e que ao mesmo tempo organizavam e treinavam
as mulheres para deixar suas casas e trabalhar no campo como forma de participar do esforço revolucionário, ajudando o ELP. Essas associações também
costumavam organizar “greves” de mulheres contra os homens que não as
deixavam trabalhar ou demonstravam covardia e se negavam a alistar-se no
ELP. Assim, as mulheres foram impondo seus direitos na prática: escolher
o parceiro, divorciar, trabalhar fora de casa, comer a mesma comida que o
marido e o sogro, participar das eleições das aldeias, fazer treinamento com
armas. A conscientização das mulheres foi um apoio fundamental à revolução.
O Governo Central Popular
Em janeiro de 1949, Chiang Kai-Shek renuncia (seis meses depois,
instala-se em Taiwan) e é substituído na presidência pelo militarista Guangxi
Li Zongren, que resiste até outubro. Por fim, forma-se o “Governo Central
Popular”, de coalizão com outros 14 partidos políticos e Mao na presidência.
Pequim foi designada a capital do país. A política de colaboração de classes,
conhecida como “bloco das quatro classes”, foi aplicada por Mao desde o
início, e ficou estampada na bandeira nacional, com a estrela dourada de cinco
pontas e suas quatro estrelas secundárias. A estrela grande representava o
PCCh e as quatro menores as quatro classes que formavam o novo governo:
a burguesia nacional, a pequena burguesia, os operários e os camponeses.
Mas, empurrada pelas massas, a burocracia se vê obrigada a ir mais longe do
que pretendia, e passa a tomar medidas no sentido de criar as bases do Estado
operário na China. O primeiro ato do novo governo garante a todos, exceto
os chamados “reacionários políticos”, liberdade total. Concentra os esforços
na industrialização e traça um plano de reforma agrária, que foi concluída nos
anos 5012. Nas cidades, o governo tenta evitar os confrontos advindos da crise
econômica e do desemprego. Cria novos sindicatos, controlados pelo PCCh,
bem como uma rede de comitês de rua, grupos compostos por vizinhos que
trabalham na limpeza das ruas, suprimento de água, programas de saúde e
vacinação, para controlar as epidemias, além de funcionarem como patrulhas
locais para a segurança pública. Esses comitês deflagraram campanhas maciças
contra a prostituição e o ópio.
Sob a direção de Mao e do PCCh, a China adota o seu Primeiro Plano
12 Os grandes latifúndios foram confiscados e redistribuídos,
mas em muitos casos
as terras dos camponeses ricos não foram
tocadas. Mao justificou essa política como
essencial para garantir
o desenvolvimento
econômico. Estimase que 40% da terra
cultivada tenha sido
desapropriada e redistribuída e que 60%
da população tenha se
beneficiado de alguma
maneira.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
117
Isto é História
Quinquenal para reestruturar a economia conforme o modelo soviético.
Apesar de várias crises dentro da estrutura bonapartista de poder, a economia planificada mostrou seu potencial como única forma de fazer com que a
China vencesse a fome secular. Com a colaboração de milhares de assessores
técnicos soviéticos, muitas fábricas destruídas pela guerra são reconstruídas
e voltam a produzir segundo um planejamento industrial, conseguindo um
boom na produção jamais visto. Também se dedicam esforços ao melhor
aproveitamento da energia elétrica, a rede ferroviária é aumentada e até
mesmo a arquitetura urbana merece atenção. O plano incluiu também um
programa especial para os camponeses, que passaram a vender mais de um
quarto de sua produção total de grãos ao Estado. No campo, os camponeses
foram agrupados em cooperativas de produção com a introdução de técnicas
mecanizadas na lavoura. Em 1953, Mao preparava o terreno para a nacionalização da indústria privada, deixando a China com apenas duas formas
de organização industrial: a estatal e a mista estatal-privada, afirmando que
a transformação socialista da indústria privada seria conseguida através do
capitalismo de estado, procurando sempre o “equilíbrio” entre as classes:
Alguns capitalistas mantêm uma grande distância do Estado e não mudaram sua mentalidade de lucro-acima-de-tudo. Alguns operários estão
avançando muito rápido e não permitem que os capitalistas tenham
qualquer lucro. Nós precisamos educar estes operários e capitalistas
e ajudá-los a adaptar-se gradualmente à política de Estado... no rumo
do capitalismo de Estado.13
Todos esses avanços na economia, que permitiram fazer com que o país
produzisse mais alimentos, fortalecesse a industrialização e melhorasse as
condições de vida da população, enfrentavam as contradições da política de
colaboração de classes de Mao e do caráter bonapartista do regime maoísta.
Nesse sentido, diferenciava-se do regime da burocracia stalinista, resultante do ascenso da contrarrevolucão mundial a partir de 1923 e da destruição
do Partido Bolchevique de Lênin. O maoísmo, ao contrário, é produto da luta
e da vitória das massas camponesas revolucionárias sobre o invasor japonês,
primeiro, e os latifundiários e camponeses ricos, depois. Forma-se, porém,
sob o peso da ideologia stalinista, da revolução por etapas, da colaboração
de classes e do socialismo em um só país. E constrói um partido-exército
de caráter stalinista14, com uma burocracia dirigente e sem nenhuma democracia interna. É, no entanto, independente do imperialismo e da burocracia
soviética, com a qual tem atritos permanentes, até a ruptura completa em
1963. Moreno chamava o regime maoísta, devido a estas características, de
“bonapartista revolucionário”, “árbitro entre o stalinismo, as massas e as
distintas classes do campo”15, que adquire um caráter sui generis ao apelar
para a mobilização para enfrentar o imperialismo.
O Grande Salto adiante
Estas contradições logo se fazem sentir. Em janeiro de 1956 é lançada
a campanha das Cem Flores. O chamado do governo era: “Aos artistas e
escritores dizemos: que floresçam cem flores. Aos cientistas, dizemos: que
surjam cem escolas de pensamento”. Era uma defesa explícita da liberdade
118
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
13 ZEDONG, Mao.
The only road for the
transformation of capitalist industry and commerce. Discurso de
7/09/53. Em www.
marxists.org, acesso
em 15/10/09.
14 Entre 1921, ano da
fundação do PCCh, e
1928, foram realizados seis congressos.
O próximo congresso
após o de 1928, realizado em Moscou, que
marcou a ascensão
de Mao no partido,
ocorreu apenas em
1945, que se reuniria
novamente em 1956,
sete anos após a tomada do poder, em 1949.
15 MORENO, N. Las
revoluciones china e indochina. Buenos Aires:
Ed.Pluma, 1973.
Isto é História
de expressão, mas quando as críticas atingiram a burocracia partidária e o
movimento operário começou a formar “Comitês Fabris de Administração”
desatou-se uma onda de prisões e de autocríticas públicas humilhantes por
intelectuais e estudantes em 1957. Esta repressão não pode ser separada da
insurreição ocorrida em 1956 na Hungria, violentamente esmagada pelos
tanques enviados por Moscou, cujos tiros foram saudados entusiasticamente
por Mao.
Na economia, Mao lançava campanhas de incentivo e convencimento
ideológico, inspiradas em grandes feitos heróicos e voluntaristas, sem uma
avaliação concreta das possibilidades reais das massas. Os trabalhadores e
camponeses eram submetidos a pressões, perseguições e práticas militaristas
de produção. Mas mesmo assim a produção agrícola nas fazendas cooperativas
não avançava (a produção de grãos aumentou apenas 1% no ano de 1957,
para um crescimento de 2% da população) e a produção industrial tampouco.
Em 1958 é lançado o “Grande Salto Adiante” durante o Segundo Plano
Quinquenal, para transformar a China num grande país industrial. Mas a
opção de construir indústrias rurais organizadas pelas Comunas para atender as necessidades locais da população levou o plano ao fracasso. Embora
algumas metas de produção tenham sido atingidas, como a de carvão mineral, que ultrapassou a da Inglaterra, experimentou-se uma queda brutal na
agricultura, com a queda da colheita por três anos seguidos, entre 1958 e
1960. Contribuíram para essa queda o deslocamento de camponeses para o
trabalho nas indústrias rurais e a seca nestes anos. A requisição forçada de
grãos foi responsável pela morte de 16 milhões de camponeses em três anos16
e a utilização das reservas financeiras para a importação de alimentos levou
à falta de investimentos na indústria nos anos seguintes.
O conflito sino-soviético
Se a situação interna era de crise econômica, a política externa chinesa
não era menos atribulada. Para os comunistas chineses, os países atrasados
eram “o foco de todas as contradições do mundo capitalista, o elo mais fraco
da corrente imperialista e o centro nervoso da revolução mundial”17, o que
os levou a apoiar os movimentos de libertação dos países coloniais, como as
guerras da Coreia e do Vietnã.
No início da década de 1960, os EUA iniciam um bombardeio aéreo
sem precedentes sobre o Vietnã e ameaçam invadir a China para destruir
suas instalações nucleares. A tímida resposta da burocracia soviética, com
um suprimento limitado de armas ao Vietkong e sua negativa em declarar
publicamente a defesa da China em caso de um ataque imperialista, leva Mao
ao rompimento definitivo com a URSS, cuja disputa remonta à denúncia dos
crimes de Stalin por Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista da
URSS, em 1956.
O que era uma disputa ideológica, em torno à primazia de construir o
“comunismo num só país” e à defesa do stalinismo, transformou-se numa
divisão entre os dois maiores Estados operários, favorecendo enormemente
o imperialismo. Mao recusa-se a participar de uma frente única dos Estados
operários em defesa do Vietnã, sob o pretexto de que os soviéticos eram
revisionistas e negociavam com os Estados Unidos, o que era verdade.
16 LI, Minqi. The rise
of China and the demise
of the capitalist world
economy. New York:
Monthly Review
Press, 2008.
17 Citado por NOVACK, George. New Judgment on the Sino-Soviet
Rift: Monthly Review and
the Great Debate. International Socialist Review, v. 34, n. 3, 1963.
Em www.marxists.org,
acesso em 15/10/09.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
119
Isto é História
O PCCh também foi duramente atingido pelo massacre executado pelo
exército do regime nacionalista burguês de Sukarno, ocorrido na Indonésia
em 196518. A política de apoio a Sukarno e de recusa à luta pelo poder por
parte do PC indonésio, o terceiro maior do mundo, era ativamente apoiada
por Mao. Sua posição ultraesquerdista em relação à frente única contra os
EUA e oportunista na Indonésia deixaram-no completamente isolado frente
ao imperialismo mundial e as crises internas começaram a aflorar.
A Revolução Cultural
Em 1966, tem início na China uma das fases mais violentas desde que
Mao assumiu o poder: a Revolução Cultural. A esquerda mundial teve conhecimento dela através da imprensa, como o New York Times, que estampava
na primeira página de sua edição de 26 de junho de 1966: “Luta titânica na
China vermelha”. E ficou conhecida como uma campanha de denúncias,
purgas, prisões e humilhações de todo o tipo contra supostos renegados e
traidores, fossem eles intelectuais, professores, vizinhos, familiares, pequenos
proprietários. Vários dirigentes comunistas foram perseguidos e expulsos do
partido, como Peng Chen, prefeito de Pequim e membro do Comitê Político
do PCCh19.
De fato, jornais controlados pelo PCCh, como o Bandeira Vermelha
do ELP, afirmavam que “centenas de milhões de operários, camponeses e
soldados... armados com o pensamento de Mao Tse-tung, engajaram-se no
desmascaramento dos agentes escondidos da classe inimiga”. Mas ela era
consequência direta dos fracassos de Mao em sua política externa:
A Revolução Cultural é a tentativa desesperada de frear as contradições
provocadas pelo curso da revolução mundial, os avanços contrarrevolucionários do imperialismo norte-americano no Vietnã como consequência do triunfo reacionário na Indonésia e os problemas internos
originados pelo fortalecimento do proletariado e a crise sem saída do
campesinato pobre”.20
Agrega-se a estas causas a disputa de Mao contra os setores burocráticos
pró-Moscou, “desejosos de uma política mais ‘realista’ que se apóie num
acordo técnico econômico militar com a URSS e em um governo direto da
burocracia”21. Mao apela para a mobilização da juventude e joga o país numa
guerra civil que durou dez anos.
Em 1976 o país está exaurido, imerso numa imensa fome, e sua indústria
paralisada. Mas o setor da burocracia comandado por Deng Shiaoping sai
como o grande vencedor da guerra interna após a prisão da “gangue dos
quatro”, o quarteto que tenta suceder Mao.
Contraditoriamente, a explicação para a derrota de Mao não é a força da
ala “reformista”, mas sua própria fraqueza política. Embora adepto da “revolução permanente”22, no sentido de avanços graduais permanentes, Mao
nunca rompeu com a política stalinista, o que o aproximava da burocracia
soviética. Defensor irredutível da colaboração de classes, a ponto de inscrevêla na bandeira chinesa, e do socialismo em um só país, nunca ofereceu como
alternativa aos trabalhadores chineses a luta pela revolução mundial sob a
direção de uma nova Internacional revolucionária, mesmo que o maoísmo
120
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
18 Na noite de
30/09/65 um golpe de estado mata 6
generais do exército
indonésio. O general
Suharto depõe Sukarno e desata um massacre aos membros
do PC da Indonésia.
Estima-se em 500 mil
o número de mortos,
mas a perseguição durou por mais dez anos,
nos quais pelo menos
1,5 milhão de pessoas
foram presas.
19 Além de Peng Shen
os primeiros acusados
foram o historiador
Wu Han, delegado da
prefeitura de Pequim,
Teng To, secretário
do Comitê Municipal
do PCCh em Pequim,
e Liao Mo-sha, exmembro do Comitê
Municipal do PCCh
em Pequim.
20 MORENO, N. Las
revoluciones china e indochina. Buenos Aires:
Ed.Pluma, 1973.
21 MORENO, N.
Carta a Livio Maitan,
em www.archivoleontrotsky.org, acesso em
15/10/09.
22 Mao defendia a revolução permanente,
mas fazia questão de
declarar que sua concepção era diferente
que a de Trotsky. Ver
seu discurso Speech at
the Supreme State Conference, de 28/01/58.
Em www.marxists.org,
acesso em 10/10/09.
Isto é História
tivesse adeptos em todo o mundo. A busca do socialismo (ou comunismo,
após 1958) apenas na China, isolado inclusive do movimento comunista
internacional, selou sua sentença de morte política.
Sua disputa com a União Soviética chegou a tal ponto que inicia uma
aproximação com os EUA em 1971 para associar-se ao imperialismo contra o
“principal inimigo”. Em 1972, Richard Nixon, então presidente dos Estados
Unidos, viaja à China para reunir-se com Mao. As relações diplomáticas entre
os dois países são restabelecidas e Mao assina vários acordos de importação
de tecnologia americana. A coexistência pacífica com os EUA, tão criticada
por Mao, é também abraçada por ele, consequência inevitável da política do
“socialismo num só país”. O imperialismo sai como grande vencedor.
A restauração capitalista
Em 1976, no mesmo ano em que morrem Zhou Enlai e Mao Tsé-tung,
explodem em Pequim enormes manifestações populares, as primeiras espontâneas desde 1949. Milhares de pessoas saem às ruas exigindo liberdades
democráticas e o retorno do verdadeiro espírito do marxismo-leninismo. A
luta interna acirra-se.
Em 1978, durante a sessão plenária do PCCh, Deng Xiaoping anuncia
as primeiras reformas capitalistas batizadas de As Quatro Modernizações: na
agricultura, na indústria, defesa nacional e nas áreas de ciência e tecnologia.
No campo, as famílias receberam permissão para aumentar a quantidade de
terra que podiam cultivar como lotes privados e para vender a produção no
mercado aberto, a preços não tabelados. Na cidade, foram estimuladas as
iniciativas privadas para abertura de negócios.
A restauração capitalista começa a gerar desigualdades sociais impensáveis
no período anterior e o governo é assolado por uma enxurrada de denúncias
de corrupção. Nos anos 80, a China entra numa crise econômica e política
sem precedentes, com a exploração brutal da classe operária e a fome se
espalhando pelo campo.
Em 1989 ocorrem novas manifestações de massas. Em maio, milhares de
estudantes, exigindo liberdades democráticas e o fim da corrupção no governo, ocupam a Praça Tiananmen, em Pequim. Aos poucos, as manifestações se
espalham por todo o país, e no momento em que elas começam a envolver a
classe trabalhadora, nas fábricas e outros locais de trabalho, a burocracia do
PCCh desata uma repressão sem precedentes, deixando centenas de mortos,
feridos e presos.
A maior reação à restauração capitalista é derrotada pelo governo chinês,
que se converte em ditadura burguesa. O heroísmo das massas chinesas não
conseguiu evitar que o conjunto da burocracia chinesa, incluída a ala bonapartista de Mao Tsé-tung, fizesse a China retroceder 40 anos e a levasse de
volta às terríveis condições da exploração capitalista. Se foi Deng Shiaoping
o artífice da restauração, a impossibilidade da política maoísta de levar o país
ao socialismo, que será mundial ou não será, preparou o terreno. Mas as traições e inconsequências dos dirigentes não nos podem fazer esquecer uma das
maiores revoluções de toda a história do socialismo mundial, protagonizada
pelas massas camponesas e operárias chinesas.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
121
Isto é História
Espanha
Da ditadura à monarquia.
~
História de uma traiçãçcao
- Parte 2
´
Felipe Alegría e Teo Navarro
Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-IT) - Espanha
A repressão como mecanismo para conter a “maré revolucionária”
mostrara-se insuficiente, estimulando ainda mais a radicalização. Setores cada
vez maiores da burguesia entendiam que era preciso apostar em um governo
formado exclusivamente por “reformistas”. O governo Suárez, formado em
julho de 1976, tinha como principal tarefa levar a cabo uma reforma pactuada,
ou seja, negociar com a oposição para garantir o apoio dos líderes operários
aos planos da burguesia.
Mas as mobilizações exigindo a anistia total foram crescendo, assim como
a exigência de direitos democráticos das nacionalidades históricas. Ocorrem
novos crimes por parte da polícia e bandos fascistas em Hondarribia, Madri
e Tenerife. Uma onda de assembleias, manifestações e greves agita o país
em resposta à repressão e contra o regime. Em 12 de novembro de 1976 a
Coordenação de Organizações Sindicais, formada pela CCOO, UGT e USO
convocou uma greve geral do Estado contra o projeto do governo de impor
tetos salariais e maiores facilidades de demissões. Mais de dois milhões de
trabalhadores cruzaram os braços.
Em 10 de setembro Suárez apresentou o projeto de reforma política.
O PCE (que não tinha sua legalização assegurada) denunciou o projeto,
acusando-o de ser uma “fraude antidemocrática”, porque não colocava a
destituição do governo Suárez e a formação de um governo provisório que
convocasse eleições constituintes abertas a todas as organizações. Por seu
lado, o PSOE1 e as forças burguesas de oposição relativizaram suas críticas e
foram compreensivos com Suárez, que permitia certa liberdade de imprensa,
não punha obstáculos à sua atividade e cujo governo já era reconhecido como
o dirigente do processo da reforma franquista. O projeto foi aprovado em
meados de novembro nas Cortes franquistas, com a resistência minoritária do
bunker representado por Blas Piñar2. Nascia assim o projeto de autorreforma
do regime, de cima para baixo.
Em 15 de dezembro realizou-se o Referendo para a Reforma Política (“Se
quer democracia, vota”, era o lema oficial) sem as mínimas garantias democráticas. As organizações operárias, ilegalizadas, defenderam a abstenção,
122
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Tradução
Irinéia Vieira
1 PSOE: Par tido
Socialista Operário
Espanhol.
2 Blas Piñar representava a resistência
do aparelho franquista a qualquer mudança. Estes setores
eram conhecidos
como o bunker pelo
seu imobilismo.
Isto é História
com muita vacilação por parte do PSOE. Segundo o governo, o referendo
foi aprovado por 94% dos votos. O bunker franquista obteve 26% de votos
contrários. A abstenção foi maciça nos centros industriais.
Em dezembro ocorreu o XXVII Congresso do PSOE que, apesar de
manter ainda formalmente um bom número de postulados marxistas em
seu programa, iniciou um claro giro à direita, aceitando de fato a reforma de
Suárez e iniciando a perseguição contra a dissidência interna.
A matança de Atocha, uma nova oportunidade perdida
No início de janeiro de 1977, um setor do aparato de Estado, em colaboração com organizações fascistas como Força Nova e Guerrilheiros de Cristo
Rei, decidiu iniciar uma campanha de assassinatos com o objetivo de criar
um clima de terror que justificasse um golpe de Estado militar para restituir
a ordem ditatorial.
No dia 23 de janeiro um reconhecido fascista assassina o estudante Arturo
Ruiz em uma manifestação pró-anistia. Os GRAPO sequestram o tenente
general Villaescusa nesse mesmo dia. Na manifestação contra o assassinato
de Arturo Ruiz no dia seguinte é assassinada pela polícia outra estudante,
enquanto bandos fascistas percorriam Madri agredindo as pessoas na rua.
No mesmo dia 24, pistoleiros ultradireitistas assassinaram cinco advogados trabalhistas das CCOO, na Rua Atocha. A tensão das massas ameaçava
explodir ao se conhecer os novos crimes. Todo mundo estava aguardando
a convocação de uma greve geral. No entanto, Carrillo e os dirigentes do
PCE manifestaram que “o governo devia ser apoiado” e “não responder à
provocação”. Apesar disso, mais de 300 mil trabalhadores declararam-se em
greve no dia 26 em Madri, coincidindo com o enterro das vítimas, bem como
em Euskadi e outros lugares. O PCE organizou uma espetacular coluna
com milhares de militantes na multitudinária manifestação, silenciosa, de
solidariedade.
Como há nove meses, nos assassinatos de Vitoria, voltavam a dar-se as
condições para suscitar um movimento geral de luta que derrubasse o regime.
O governo estava encurralado e na defensiva, e amplos setores da classe trabalhadora, e com ela outros setores sociais antifranquistas como o movimento
estudantil e as nacionalidades, dispostos a ir até o final. Mas uma delegação
de dirigentes da oposição negociou com Suárez e, em troca de promessas de
atuação contra o bunker, ofereceu uma declaração conjunta governo-oposição
denunciando o terrorismo e fazendo um chamado ao povo para que apoiasse
o Governo. Os dirigentes operários não só abortaram o movimento, mas
legitimaram expressamente o governo Suárez, encabeçado por um franquista
que tinha sido eleito por um rei coroado por Franco.
A repressão policial continuou durante os meses seguintes. Em maio, foi
convocada em Euskadi uma semana pró-anistia total, que teve um saldo de
seis ativistas mortos. Os dirigentes do PSOE e do PCE, em lugar de apoiar
a mobilização e exigir a dissolução das forças repressivas, voltaram a chamar
a calma. Os trabalhadores e as organizações da esquerda basca convocaram
uma greve geral que teve uma participação maciça.
Com estas atuações o PCE obteve méritos para ser reconhecido como uma
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
123
Isto é História
força da ordem pela burguesia, convencida da necessidade de legalizá-lo, apesar
dos protestos da hierarquia militar, para que pudesse controlar o movimento
operário “desde a legalidade”. O Financial Time, o jornal do capital financeiro
britânico, não se equivocava em dezembro de 1978, quando escrevia:
O apoio do PCE, tanto à primeira como à segunda administração Suárez, foi aberto e sincero. O senhor Carrillo foi o primeiro líder que
deu apoio aos Pactos de Moncloa, e inevitavelmente o PCE apoiou
o Governo no Parlamento. Mas, como partido que controla a central
sindical majoritária CCOO e o partido político melhor organizado na
Espanha, seu apoio durante os momentos mais tensos da transição foi
crucial. A moderação ativa dos comunistas, durante e depois do massacre dos trabalhadores de Vitória em março de 1976, do metralhamento
de cinco advogados comunistas em janeiro de 1977, e da greve geral
basca em maio de 1977, para dar só três exemplos, foi provavelmente
decisiva para evitar que a Espanha caísse em um abismo de agitação
civil importante e permitisse a continuação da reforma.
A legalização da esquerda e as eleições gerais de junho de 1977
Os sindicatos foram definitivamente legalizados em fevereiro de 1977, da
mesma forma que o PSOE. O PCE o foi em abril. Em troca da legalização do
PCE, Carrillo aceitou reconhecer a monarquia, adotou a bandeira monárquica
e a unidade da Espanha e ofereceu sua cooperação para alcançar um futuro
pacto social. No dia 9 de abril, quando a maioria da elite política e militar
achava-se fora de Madri para as férias de Semana Santa, Suárez anunciou a
legalização do PCE. Mesmo que tenha ocorrido a demissão do ministro da
Marinha e alguns movimentos de descontentamento entre a alta hierarquia
militar, finalmente o Conselho Superior do Exército absorveu a notícia da
legalização com uma demonstração de “disciplina e patriotismo”. Afinal, o
rei estava por trás.
Uma comissão conjunta da oposição e do governo elaborou a lei eleitoral
e Suárez convocou as eleições gerais no mês de abril. O parlamento ficou
organizado em duas câmaras, com um senado onde todas as províncias escolhiam o mesmo número de representantes e com a função de ratificar ou
rejeitar os acordos do Congresso. Só tinham direito ao voto os maiores de
21 anos, excluindo mais de dois milhões de jovens entre os 18 e 21 anos e
em torno de um milhão de imigrantes.
A principal opção da burguesia, a UCD de Suárez, que agrupava os “novos
democratas” procedentes do franquismo, obteve 34,2% dos votos. A AP, encabeçada por Fraga e que agrupou a maior parte da “velha guarda” franquista,
8,2%. A burguesia financiou generosamente estas opções, além de dispor dos
meios de comunicação controlados pela UCD desde o governo. Os votos de
esquerda superaram amplamente os de direita nos grandes centros urbanos e
industriais: o PSOE obteve 30%, o PCE, 9,2% e o PSP, 4,5%.
Um ano e meio depois da morte de Franco, a monarquia instituída por
ele e a “democracia” surgida da reforma do franquismo, conduzida pelos
próprios franquistas convertidos em democratas, com o rei à cabeça, tinham
ganho a batalha política, depois de longos meses de impressionantes mobi124
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Isto é História
lizações e de momentos em que estiveram dadas as condições para derrubar
o regime franquista (especialmente em março de 76 e em janeiro de 77). A
lei de anistia de outubro de 1977 fechava o círculo: verdadeira lei de “Ponto
Final”, garantia completa impunidade aos crimes e espoliações franquistas.
A derrota eleitoral do PCE nestas primeiras eleições gerais e o processo
de autodestruição que lhe seguiu foram o preço que pagou pela sua traição.
O nacionalismo burguês em Euskadi e na Catalunha (CiU, PNV) obtiveram
importantes resultados, em boa parte como consequência da renúncia do
PSOE e do PCE à luta pelos direitos nacionais da Catalunha e do País Basco.
Os Pactos de Moncloa e a subordinação aos interesses da patronal
Com uma situação de profunda crise econômica internacional iniciada em
1973, a economia espanhola refletia sua pouca competitividade num mercado
internacional de concorrência feroz entre as diferentes burguesias. A inflação,
que era a resposta patronal aos aumentos salariais que não podiam evitar,
chegou a 25% em fins de 1977. Suárez desvalorizou a moeda em 20 % para
estimular as exportações, aumentando o preço das importações e a inflação.
Mas para o capital, a desvalorização só teria eficácia se fosse acompanhada de
um plano de ajuste que reduzisse os salários o que, dada a força do movimento
operário, requeria a colaboração de seus dirigentes.
Depois das eleições, o governo Suárez pôs mãos à obra. O conteúdo
dos Pactos de Moncloa abrangia temas políticos, sociais e econômicos.
Pela primeira vez, obteve-se um consenso geral entre o poder e a oposição
sobre a necessidade de fazer com que todos os fatores: salários, condições
trabalhistas e emprego dependessem do “crescimento econômico” (isto é,
da recuperação do lucro patronal). Assim, os salários cresceriam abaixo da
inflação e os aumentos seriam guiados pelo IPC previsto, dando por entendido que os aumentos na produtividade passariam a engordar os excedentes
empresariais. Abre-se a possibilidade de regular a folha de pagamentos, permitindo a demissão de 5% do pessoal nas empresas em que o aumento salarial
superasse 20%; aprova-se a contratação temporária e o ajuste de pessoal nas
empresas em crise. Os Pactos de Moncloa constituíram a alavanca que facilitou a passagem do modelo de acumulação anterior ao regulamento liberal
da economia, criando as condições sociais para a Constituição de 1978, que
consagraria a inviolabilidade da propriedade privada dos meios de produção
e de economia de mercado.
Os dirigentes do PCE (o principal porta-voz), o PSOE e as CCOO
apoiaram os Pactos desde o princípio e só a UGT opôs-se inicialmente, para
acabar apoiando-os. Os planos que a burguesia não havia imposto durante
a agonia da ditadura foram aplicados graças ao apoio dos principais dirigentes operários3. No entanto, a oposição dos trabalhadores foi muito ampla.
Durante o mês de novembro se produziram manifestações contra o Pacto,
em defesa do nível de vida e contra o aumento do desemprego nas principais
cidades, convocadas pela UGT e outros sindicatos. Muitas seções de base das
CCOO pronunciaram-se contra os Pactos4.
Este foi o primeiro de uma longa série de pactos sociais que serviram
- além de aumentar a taxa de lucro do capital e reduzir o nível de vida dos
3 Carrillo afirmava
que “com estas medidas, em 18 meses
acabaremos com a
crise”. A realidade,
no entanto, foi que
depois desse tempo o
desemprego superava um milhão e meio
de trabalhadores e o
poder aquisitivo dos
salários havia sido
reduzido em mais
de 10%.
4 Nesta época começou a se consolidar a
incipiente burocracia
dos sindicatos como
aparatos de poder
dispostos a impedir
qualquer dissensão
séria que ameaçasse
seus privilégios. Por
causa da aceitação
dos Pactos de Moncloa gerou-se um
amplo movimento
interno de oposição
nas CCOO que acabou em muitos casos
com expulsões de
dirigentes e seções
sindicais inteiras.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
125
Isto é História
trabalhadores - para desmoralizar a classe trabalhadora cuja capacidade de
luta tinha posto a seu alcance uma transformação profunda da sociedade e a
via afastar-se pela política de colaboração de classes de seus dirigentes.
As reivindicações nacionais
O franquismo, após sua vitória militar, esmagou com violência sanguinária
as reivindicações nacionais dos povos catalão, basco e galego, convertendo
com isso a luta contra a opressão nacional em uma das alavancas fundamentais da luta antifranquista. A Transição tratou de dar uma saída ao problema
por meio do “Estado das Autonomias”, um tipo de pacto entre o aparelho
de Estado, a esquerda oficial e as burguesias periféricas pelo qual o primeiro
cedia algumas atribuições de governo aos governos territoriais em troca do
reconhecimento da unidade da Espanha e da proeminência do poder central.
O abandono descarado da reivindicação do direito de autodeterminação
por parte do PCE, do PSOE e da burguesia nacionalista, unido à brutal
repressão sobre o povo basco, onde as mobilizações alcançavam maior radicalidade e combatividade, foi o caldo de cultivo para o desenvolvimento do
ETA. A morte e a tortura de muitos de seus ativistas pelas forças repressoras
franquistas e sua inserção social lhes granjeava um grande apoio popular.
No outono de 1977 produziram-se multitudinárias mobilizações pelos
direitos nacionais. As manifestações eram de centenas de milhares no país
Basco. Em Barcelona, a Diada5 Nacional catalã de 11 de setembro de 1977
congregou um milhão de manifestantes.
Inclusive em zonas onde o nacionalismo não tinha tradição histórica
como a Andaluzia houve manifestações maciças em defesa da Autonomia.
No dia 4 de dezembro em Málaga um jovem trabalhador foi assassinado pela
polícia enquanto participava da manifestação, que reuniu 200 mil pessoas.
Os enfrentamentos dos trabalhadores com a polícia alcançaram tal virulência
que o governo decretou durante três dias o “estado de exceção” em Málaga.
As eleições sindicais
No início de 1978 realizaram-se as primeiras eleições para comitês de
empresa, com os sindicatos já legalizadas. As CCOO e a UGT obtiveram
em conjunto mais de 70% dos delegados. Nesta época, estas duas centrais
alcançaram níveis desconhecidos de afiliação, cinco milhões entre as duas organizações, cerca de 50% da classe operária de então. Através do financiamento
estatal que receberiam pela representação obtida, os privilégios concedidos
como “sindicatos mais representativos” e a restrição crescente dos direitos
democráticos dos filiados, uma burocracia dirigente se fortaleceu, cada vez
mais independente da base afiliada e dos trabalhadores e mais dependente do
aparelho estatal e da patronal. As eleições sindicais de 1978 representaram a
consolidação da divisão sindical em duas grandes centrais (CCOO vinculada
ao PCE - do qual, mais tarde, iria progressivamente se desvinculando – e a
UGT, vinculada ao PSOE) e a marginalidade da central anarquista CNT, que
não tomou parte no processo eleitoral.
As greves, ao contrário do período anterior, dão-se agora só por motivos
econômicos e, apesar de que as direções sindicais tinham aceitado os tetos
salariais, ocorreram muitas mobilizações contra a perda do poder aquisitivo
126
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
5 Diada: dia em que
se celebra a festa nacional catalã.
Isto é História
provocada pelos Pactos de Moncloa. Produziram-se várias greves gerais na
construção civil e em metalúrgicos. No entanto, o número de jornadas de
greve diminuiu sensivelmente em relação aos anos anteriores6.
A Constituição é aprovada
O PSOE em 1977 ainda se pronunciava a boca pequena pela República,
mesmo que a princípios de 1978 já aceitava plenamente a “monarquia constitucional” dos Bourbon. Os dirigentes do PSOE e do PCE defendiam a
Constituição, de cuja elaboração participaram, como a melhor garantia para
as liberdades democráticas, para acabar com os golpes de estado e para assegurar os direitos sociais como o trabalho, a moradia, a educação ou a saúde.
No entanto, a Constituição, que seria aprovada por grande maioria no
referendo de 6 de dezembro de 1978 (mas que em Euskadi só foi apoiada por
uma terça parte do censo eleitoral) consagrava a inviolabilidade da economia
de mercado e da propriedade capitalista, a restauração na cúpula do Estado
monárquico estabelecida por Franco, a unidade forçada da Espanha, garantida
pelo Exército franquista e as vias para declarar o “estado de exceção e de sítio”
se a “segurança nacional” fosse ameaçada.
As eleições legislativas e municipais de 1979 e o abandono formal do
marxismo pelo PSOE
Durante o primeiro semestre de 1979 aconteceu uma nova onda de mobilizações operárias, apesar da política conciliadora das direções das CCOO
e da UGT, comprometidas com os Pactos de Moncloa. O contínuo aumento do custo de vida e as tentativas da patronal de passar à ofensiva ante o
estancamento da luta operária, deram lugar a um movimento de resistência
que se propagou a praticamente todos os setores7. Mas a maioria das lutas
fracassaram pela intervenção da burocracia sindical, que aceitava os tetos
salariais, negociava e assinava frequentemente pelas costas dos trabalhadores.
Neste contexto, realizaram-se as eleições gerais de 1º de março de 1979.
A UCD voltou a ganhar contra todo prognóstico. O fracasso da esquerda
era o reflexo, no terreno eleitoral, de sua política de submissão à patronal e
à Monarquia, que fez com que setores importantes da classe trabalhadora e
da juventude optassem, frustrados, pela abstenção.
As eleições municipais de 3 de abril - que a UCD segurou durante quase
dois anos, temerosa de ter um revés eleitoral que condicionasse as eleições
gerais - deram desta vez a vitória às organizações da esquerda nas principais
cidades, sendo o primeiro triunfo eleitoral claro sobre a UCD.
O PSOE, o principal partido de eleitorado operário (como partido
histórico da classe trabalhadora espanhola), estava chamado a ser o futuro
gerente governamental dos interesses da burguesia quando a UCD passasse
à oposição e, para isso, devia adequar seu programa para esse papel. Por isso,
Felipe González havia declarado em maio que “não era mais marxista” e
que proporia que essa definição desaparecesse dos Estatutos do Partido. O
XXVIII Congresso do PSOE rejeitou esta proposta da direção, para aceitá-la
poucos meses depois em um Congresso Extraordinário que endeusou Felipe
González e outorgou todo o poder de decisão ao aparelho do partido.
6 O número de trabalhadores que fizeram
greve em 1978 foi de
3,8 milhões, 32% dos
assalariados.
7 O número de grevistas foi de 5,7 milhões, quase 60% do
total de assalariados,
uma média de 171
horas de trabalho por
cada grevista.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
127
Cultura
A arte morreu.
Viva a arte!
Cecília Toledo
Partido Socialista
dos
Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil
O que é arte? Qual a sua função? Ainda é necessária a sua defesa, a
sua democratização? Ainda é válido defender a cultura de um povo? Essa
discussão parece secundária diante da enorme complexidade dos conflitos
humanos, numa época de barbárie e alienação crescentes que atingem todos
os trabalhadores. No entanto, ela ganha muito destaque justamente nesses
momentos. E também nos grandes processos revolucionários. Só para ficar
nas duas revoluções mais conhecidas e estudadas – a Revolução Russa e a
Revolução Chinesa – é surpreendente como a questão da arte e a cultura em
geral tiveram um papel essencial em todo o processo, seja para o bem, seja
para o mal.
O certo é que a arte parece caminhar na contramão da história. Como já
disse Walter Benjamin, a obra de arte é a resposta do homem a uma provocação que lhe faz a sociedade, às condições adversas da vida. Para entender os
problemas históricos, entre eles o problema da arte, recorremos a Marx, que
levantou a idéia da arte e da cultura como reservas de humanidade, mostras da
resistência humana em entregar-se ao capital, à sua coisificação. Na sociedade
dividida em classes, em que a burguesia recruta a arte e a coloca a serviço de
seus próprios interesses; neste momento chamado pós-moderno, em que a
arte, contaminada pelo capital até suas raízes mais profundas, está servindo
para “embelezar” a exploração capitalista e a extração de mais-valia, é justo
pensar que a arte morreu. É justo pensar que não há nada a defender nesse
terreno, já que tudo está contaminado pelo capital e, portanto, condenado
ao fracasso. Mas será assim? A arte ainda tem salvação? A arte e o homem futuro
As opiniões de Marx sobre arte derivam de sua visão revolucionária do
mundo. Daí seu imenso otimismo em relação às suas possibilidades futuras.
Uma leitura de La Filosofia del Arte de Karl Marx1, de Mijail Lifshitz, dá uma
idéia do raciocínio que o levou a esse otimismo. Apesar do título de seu livro,
Lifshitz demonstra justamente o contrário: que não há uma “filosofia da
arte” em Marx, pelo menos não uma filosofia que seja desvinculada de todo o
processo histórico e social; ou uma “arte marxista”, ou mesmo uma “estética
128
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1 LIFSHITZ, M. La
filosofia del arte de Karl
Marx. Colección Mínima. México: Siglo
Veintiuno Editores,
1981. A primeira edição em inglês é de
1938.
Cultura
marxista”, como pretendem alguns autores2. Jamais Marx teve semelhante
pretensão. Lifshitz também combate a idéia de que os comentários de Marx
sobre arte e literatura, dispersos no corpo de sua obra, reflitam um interesse
meramente casual sobre o tema, colocando a economia em primeiro lugar.
Pelo contrário. Revela que a arte sempre esteve entre as preocupações de
Marx. Ela foi fundamental em suas polêmicas com Hegel, em suas análises
das sociedades pré-capitalistas, em suas críticas à visão religiosa e idealista do
mundo, em sua denúncia da sociedade burguesa e do capitalismo e também
de sua interpretação da sociedade futura. O que Lifshitz abstrai das opiniões
estéticas de Marx é que a arte tem sua autonomia relativa, mas por si mesma
é impotente para emancipar os homens da sociedade de classes. No entanto,
já hoje, no presente, ela pode oferecer imagens dessa emancipação e nesse
sentido é uma antecipação do futuro, do vir a ser. De fato, nos Manuscritos
econômico-filosóficos, Marx via na arte uma prefiguração dos sentidos refinados e intensificados do homem liberado da alienação histórica. E insistia
em que só mediante o desenvolvimento objetivo da natureza humana poderá
liberar-se essa “riqueza da sensualidade humana subjetiva”.
Nos momentos em que o homem está mais questionado, quando os sentidos humanos estão mais oprimidos é que a necessidade de emancipação fica
mais evidente. Estudada historicamente, o que a arte demonstra é a resistência
humana em entregar-se, uma forma de expressar a angústia e antecipar para
nós, hoje, o que o homem será capaz de fazer quando totalmente liberado
da alienação histórica.
Essa idéia de que a arte é fruto do desequilíbrio humano levou o pintor
Mondrian a falar sobre o possível desaparecimento da arte. “A arte desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio”3. Em todo o caso, seja
como uma espécie de “substituto da vida”, ou como expressão de conflitos
ou mesmo um espelho do homem futuro, liberto de tudo o que o aliena e
destrói, o fato é que a arte – em todas as suas formas e manifestações – sempre
será necessária e sempre será parte integrante da vida humana.
A arte como forma de trabalho
A idéia da arte como trabalho, ligada ao processo de transformação da
natureza é o ponto de partida de Marx:
O processo de trabalho é a condição necessária para que se efetue um
intercâmbio entre o homem e a natureza; é a condição permanente
imposta pela natureza à vida humana e, portanto, independe das formas
da vida social, já que é comum a todas as formas sociais.4
Mediante o trabalho o homem se apodera da natureza, porque a transforma de acordo com suas necessidades e propósitos. Nesse apoderar-se há
também uma grande dose de magia. Ernst Fischer lembra que:
O homem também sonha com um trabalho mágico que transforme a natureza, sonha com a capacidade de mudar os objetos e dar-lhes nova forma
por meios mágicos. Trata-se de um equivalente na imaginação àquilo que
o trabalho significa na realidade. O homem é, por princípio, um mágico.5
Além de real, concreta e funcional, a transformação da natureza é mágica,
2 SODRÉ, Nelson
Werneck. Fundamentos
da Estética Marxista.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968. LUKÁCS, Georg. Introdução a uma
Estética Marxista. Rio
de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970, para
citar alguns exemplos.
3 Citado por FISCHER, Ernst, em A
Necessidade da Arte. Rio
de Janeiro: LTC, 2007,
p. 11
4 MARX, K. O Capital,
Vol.1.
5 FISCHER, E. A
Necessidade da Arte. Rio
de Janeiro: LTC, p.21.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
129
Cultura
porque o homem cria ferramentas e adapta inclusive o seu próprio corpo às
necessidades do trabalho. Muitos veem a mão como o órgão essencial da
cultura, o iniciador da humanização6. O trabalho é inerente à espécie humana,
a única espécie que tem a capacidade de planificar suas ações. Marx tem uma
frase famosa sobre isso:
Uma aranha realiza operações que se assemelham às de um tecelão; e
muitos arquitetos hão de se sentir encabulados em face da habilidade
com que as abelhas constroem suas colméias. Porém, o que, desde o
início, distingue o mais inepto dos arquitetos da mais eficiente das
abelhas é que o arquiteto constrói a célula na sua cabeça antes de
construí-la na cera. O processo de trabalho resulta na criação de algo
que desde o princípio existia na imaginação do trabalhador, existia
numa forma ideal. Não ocorre apenas uma mudança de forma provocada pelo trabalhador nos objetos naturais; ocorre, ao mesmo tempo, a
realização de propósitos humanos em objetos que existiam na natureza,
independentemente do homem. Em tais objetos, o homem realiza seus
propósitos, os propósitos que estabelecem as leis da sua atividade, os
propósitos aos quais devem subordinar-se os seus próprios desejos.7
Nessa interação consciente do homem com a natureza está a verdadeira
origem da arte. Que ela venha carregada de magia ou não, é o que menos
importa. Alguns vêem como mágica essa habilidade do homem para transformar a natureza e os primeiros homens a construir as ferramentas foram
os pioneiros, os pais da arte8.
Arte e luta de classes
A idéia da raiz da arte ser a mesma do trabalho é fundamental para o
marxismo. Se essa é a sua raiz, a arte faz parte da estrutura social como uma
atividade (e uma necessidade) humana, condicionada de uma forma dialética
pelas condições materiais de vida.
No entanto, a arte é ao mesmo tempo um processo altamente consciente
e racional, é o resultado de uma construção.
Para conseguir ser um artista é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria
em forma. A emoção para um artista não é tudo; ele precisa também
saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas,
recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora
– pode ser dominada e sujeitada à concentração da arte. A paixão que
consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído
pela besta-fera, mas a doma.9
Essa idéia de construção na arte, de maestria, de domínio técnico, é extremamente dialética, porque a distancia da natureza, daquela sua origem
primitiva, e temporariamente desfaz os laços da vida, deixa a realidade em
suspenso para que o homem se divirta e sinta prazer com ela. É o que diz
Bertold Brecht10, um artista profundamente ligado ao marxismo, que vê
nesse prazer a qualidade libertadora da arte:
130
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
6 Ver mais em CHILDE, Vere Gordon. O
que aconteceu na história.
7 MARX, K. O Capital,
Vol.1.
8 Essa ideia foi bem
desenvolvida por FISCHER, Ernst, em A
Necessidade da Arte.
Rio de Janeiro: LTC,
2007, p.42
9 Idem, p.14. (itálicos
do autor).
10 Bertold Brecht foi
um dos maiores dramaturgos e encenadores do século XX.
A citação foi extraída
de seu livro Escritos
sobre Teatro.
Cultura
Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência e instruir o povo
no prazer de mudar a realidade. Nossas platéias precisam não apenas
saber que Prometeu foi libertado, mas também precisam familiarizar-se
com o prazer de libertá-lo.
Para Brecht, numa sociedade submetida à luta de classes, o teatro feito pela
classe dominante busca suprimir as diferenças sociais existentes na platéia, em
nome de uma suposta “coletividade universalmente humana”. Para contraporse a isso, o teatro épico, preconizado por Brecht, buscava justamente dividir
e esclarecer a platéia, apoderar-se dela não por meio da identificação passiva,
mas de um apelo à razão que leve à ação e decisão. Com extrema maestria,
Brecht construiu seu teatro dialético, sem eliminar a magia e a emoção.
Mas os propósitos da arte nunca são os mesmos em todos os tempos e
em todas as situações. No entanto, ela sempre tem algo de permanente. E
isso é o que faz com que os homens de hoje se emocionem com a arte dos
homens de ontem. O segredo não está no fato de que a arte esteja ligada a
certas formas de desenvolvimento social. Mas então por que as obras de ontem
ainda nos proporcionam um prazer artístico e ainda nos servem de modelos?
Para Marx:
O fascínio que a arte grega ainda exerce sobre nós não está em contradição com o estágio social pouco ou nada desenvolvido em que surgiu
essa arte. Ele é justamente o produto de tal situação; deve-se justamente
ao fato de que as condições sociais primitivas sem as quais aquela arte
não poderia ter surgido jamais poderão voltar”.11
Ou seja, nessa arte historicamente condicionada por um estágio social
não desenvolvido perdurava um momento de humanidade, e nisso Marx reconheceu o poder da arte de se sobrepor ao momento histórico e exercer um
fascínio permanente. Fischer resume da seguinte forma:
Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade
em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo,
a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria
também um momento de humanidade que promete constância no
desenvolvimento. (...) E isso é assim porque traços constantes do
ser humano são fixados mesmo na arte historicamente condicionada.
Enquanto se limitarem a refletir as condições rudimentares de uma
sociedade baseada na escravidão, Homero, Ésquilo e Sófocles são
marcos envelhecidos, pertencem ao passado. Todavia, à medida que,
no interior daquela sociedade, descobriram a grandeza do homem,
deram forma artística aos seus conflitos e às suas paixões e exprimiram
potencialidades ilimitadas, permanecerão sempre modernos, atuais.12
O fetichismo e a arte
Uma idéia que teve muita significação em Marx foi a de “fetichismo”.
Quando falou do fetichismo da mercadoria, ele buscou uma comparação
com o mundo da religião: “o caráter fetichista da religião está demonstrado
11 Citado por FISCHER, Ernst, em A
Necessidade da Arte. Rio
de Janeiro: LTC, 2007,
p. 16
12 FISCHER, E.
op.cit.p.18
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
131
Cultura
pelo fato de que adora o aspecto material das coisas, dotando-as com as
qualidades do próprio homem”.13 O fetichismo atribui qualidades humanas
aos objetos e às coisas para valorizá-los. E os objetos do culto religioso não
são meros símbolos nos quais os adoradores encontram um significado, mas
são vistos como realidades verdadeiras; não são formas, mas coisas reais. Em
sua materialidade como tal, o homem percebe uma fonte de bem-estar. Sua
imagem natural é uma expressão de seu próprio poder.
Essa característica, a de atribuir poder aos objetos, está presente em grande
parte da arte religiosa, sobretudo nas imagens e estatuetas de santos. Para
Marx, essa arte é contrária a toda realização verdadeiramente artística, porque
a arte verdadeira é alheia ao fetichismo. Marx via que a tosca praticidade e
o naturalismo do mundo fetichista se contrapunham à atividade criativa do
homem. Nessa época, ele ainda não associava o fetichismo a um modo de
produção definido; e por isso não se encontra nada que se pareça às opiniões
posteriores de Marx sobre a desproporção histórica entre o desenvolvimento
das forças produtivas da sociedade e o desenvolvimento artístico. Pelo contrário, aqui a arte e a habilidade técnica aparecem unidas em sua oposição à
barbárie arcaica e moderna.
A arte e os antagonismos humanos
Para Marx, a oposição entre a arte e as condições históricas desfavoráveis
é na verdade expressão do eterno antagonismo entre espírito e natureza,
entre a imaginação e a realidade material. Eliminar a concretude fetichista
das relações humanas que obstaculiza o desenvolvimento da arte significa
superar os fundamentos materiais da vida social.
Por isso, a luta contra as condições fetichistas não é uma luta entre “a
carne e o sangue” mas uma luta contra a dominação da consciência do homem
pela carne e pelo sangue.
Para Marx:
Qualquer tema tratado em um escrito impresso, seja favorável ou desfavoravelmente, se converte por si só em tema de discussão literária.
Esse é justamente o significado da imprensa como poderosa alavanca
para a educação cultural e espiritual do povo. Transforma os conflitos
materiais em conflitos ideais, as lutas de carne e osso em lutas espirituais, as batalhas de apetite, cobiça e prática em batalhas de teoria,
razão e forma.14
Para Marx, os problemas políticos e estéticos derivavam do complexo de
problemas surgidos das revoluções democrático-burguesas e da propriedade
privada. Ele compreendia que o problema dos direitos históricos da arte vem
depois do problema do direito das massas a melhorar sua existência material
sensorial. E estava convencido de que a única solução da contradição entre
a necessidade econômica e a liberdade política formal reside na abolição da
propriedade privada. E a única força social capaz de resolver esse problema
é o proletariado.
O desenvolvimento de todos os aspectos da realidade social está determinado em última instância pelo desenvolvimento autônomo da produção e
reprodução materiais. Por isso, o papel da arte também aparece sob uma nova
132
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
13 MARX, K. O Capital, Vol.1.
14 Sobre os comitês
de estado na Prússia.
Citado por M.Lifshitz,
op.cit.p.73.
Cultura
ótica. A arte, como a lei ou o Estado, não tem uma história independente,
pois está condicionada por todo o desenvolvimento histórico da sociedade.
Disso não se deve deduzir que para o materialismo dialético a arte cumpra
um papel secundário. Pelo contrário. É a exaltação idealista da arte por cima
da realidade material o que desemboca no rebaixamento da arte ao nível de
sua mera relação sensorial com a vida. Enquanto Hegel atribuía a decadência
da arte à sua natureza sensorial, Marx explicava esse fenômeno em termos
de circunstâncias históricas desfavoráveis e defendia os direitos da arte, os
direitos da sensorialidade enquanto tal. Contra esse conceito que dissolve
a arte em pensamento abstrato, Feuerbach disse o homem se apropria do
mundo não apenas por meio das faculdades do raciocínio, mas do uso de
todas as suas possibilidades. Marx concorda, e diz que “O homem se afirma
a si mesmo no mundo material não apenas por meio do pensamento, mas
também por meio de todos os seus sentidos”15.
Os sentidos têm sua própria história. Nem o objeto da arte nem o sujeito capaz de uma experiência estética surgem por si, mas do processo de
atividade criativa.
Assim como a música desperta o sentido musical do homem e a mais
bela das músicas carece de sentido e de objeto para o ouvido não musical (...) e por isso os sentidos do homem social são outros que os do
homem não social, assim também é a riqueza objetivamente derivada da
essência humana a que determina a riqueza dos sentidos subjetivos do
homem, o ouvido musical, o olho capaz de captar a beleza da forma, em
uma palavra: é assim como se desenvolvem e, em parte, como nascem
os sentidos capazes de prazeres humanos, os sentidos que atuam como
forças essenciais humanas. (...) Portanto, é necessária a objetivação da
essência humana, tanto no aspecto teórico como no prático, tanto para
transformar em humano o sentido do homem como para criar o sentido humano adequado a toda riqueza da essência humana e natural.16
Logo, o impulso estético não é algo biológico, anterior ao desenvolvimento social, mas um produto histórico, resultado de uma longa seqüência
de produção material e intelectual. “O objeto da arte, assim como qualquer
outro produto, cria um público sensível para a arte, capaz de prazer estético.
Assim, a produção, escreve Marx, não somente produz um objeto para o
sujeito, mas também um sujeito para o objeto” 17.
Arte e riqueza material
À primeira vista poderia parecer que o desenvolvimento das forças produtivas materiais da sociedade caminha paralelamente ao desenvolvimento
artístico: quanto mais elevado o estado geral da produção, maior e mais rica
a arte.
Na verdade, existe uma relação desigual entre a produção material e a arte:
Já se sabe que certas épocas de florescimento artístico não estão de
maneira alguma em relação com o desenvolvimento geral da sociedade
nem tampouco com a base material, com o esqueleto, digamos assim,
de sua organização. Por exemplo, os gregos, comparados com os mo-
15 MARX, K. A Ideologia Alemã.
16 MARX, K. Manuscritos Econômicos e
Filosóficos.
17 MARX, K. Contribuição à Crítica da
Economia Política.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
133
Cultura
dernos ou também Shakespeare.18
A formação e o desenvolvimento das necessidades humanas é um processo que não ocorre de maneira uniforme com o processo histórico de
“assimilação” do mundo dos objetos. O mundo é “assimilado” por meio da
“alienação” das forças humanas; junto com o aumento da liberdade, aumenta
a força da necessidade natural. “O desenvolvimento histórico, diz Hegel,
não é um ascenso harmonioso, mas “um cruel e repugnante esforço contra
si mesmo”. O espírito vive em estado de luta interior constante. Realiza-se
a si mesmo por meio da contradição com, e a alienação de, ele mesmo. Os
períodos de felicidade, portanto, são páginas vazias da história, e o progresso
é inseparável da decomposição em campos inteiros da empresa humana. Esse
é, por exemplo, o destino da arte na qual o espírito contempla sua própria
essência de forma inadequada.
Em A ideologia alemã (1845-46), Marx fala da história como um processo
de formação e desenvolvimento de antagonismos, cujas origens se remontam
aos tempos pré-históricos, e cuja única solução é a revolução comunista da
classe trabalhadora.
A etapa pré-histórica da sociedade humana é uma história de divisão do
trabalho, separação de cidade e campo etc. A divisão do trabalho só se
converte em verdadeira divisão a partir do momento em que se separam
o trabalho físico e o intelectual. Já que com a divisão do trabalho se dá
a possibilidade, mais ainda, a realidade de que as atividades espirituais e
materiais, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo, se destinem
a indivíduos diferentes. Este fenômeno gera uma contradição entre os
três elementos do processo social: forças produtivas, relações sociais
e consciência. Elas entram em contradição entre si, e a única solução
para essas contradições é que a divisão do trabalho seja abolida de novo.
Por causa da separação entre os ramos da produção social se produzem
melhor as mercadorias, os diversos impulsos e talentos dos homens escolhem
os campos de ação que lhes convêm, e sem limitação é impossível fazer algo
importante em qualquer campo. Produto e produtor, portanto, melhoram
devido à divisão do trabalho.
Sob a antiga forma da divisão do trabalho, o qualitativo e o quantitativo
eram mensuráveis relativamente: as atividades e capacidades humanas ainda
não estavam subordinadas ao princípio abstrato-quantitativo da acumulação de
capital. Só isso ajuda a explicar o alto grau de desenvolvimento alcançado pela
arte antiga (Teorias da Mais-Valia). Para Marx, o segredo da arte grega estava
em seu modo de intercâmbio não desenvolvido, forma simples e até mesmo
ingênua. A base econômica da cultura antiga em seu ponto mais alto consistia
em uma agricultura camponesa em pequena escala e ofícios independentes.
A proporcionalidade relativa da economia simples da produção não desenvolvida cede às desproporções e antagonismos gigantes do capitalismo
ascendente. A concentração da propriedade nas mãos de poucos e a “terrível
e dolorosa expropriação das massas” são o prelúdio da história do capital.
Em consequência, todas as relações patriarcais e todos os laços familiares e
comunais se desintegram, e em seu lugar surge um vínculo forte: o impiedo134
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
18 Idem
Cultura
so “pagamento à vista” (Manifesto Comunista). No dinheiro, “o nivelador
radical”, todas as diferenças qualitativas se extinguem. Qualidade, forma,
individualidade, tudo se subordina a uma força quantitativa impessoal.
A burguesia e a arte
Pouco depois da Revolução Francesa de 1789, a filosofia clássica alemã
fez uma crítica estética da realidade, e o mesmo ocorreu nas décadas de 1830
e 1840, durante a segunda Revolução Industrial. Essas críticas expressavam
dúvidas sobre a possibilidade de uma autêntica criatividade artística sob as
novas relações burguesas. Foram momentos muito parecidos aos que vivemos
hoje. Uma sociedade assentada na cega luta de interesses materiais, onde os
homens vivem unicamente sob a pressão das carências, não pode haver uma
produtividade artística autêntica. Mesmo reconhecendo que o capitalismo era
o fundamento essencial do progresso, Hegel via que os efeitos paralisantes da
divisão do trabalho, a crescente mecanização de todas as formas de atividade
humana, a diluição da qualidade na quantidade, todas essas características
típicas da sociedade burguesa eram inimigas da poesia, adversas à arte.
A concepção dialética geral da história (as forças destrutivas do capitalismo são ao mesmo tempo grandes forças produtivas) determinava a visão de
Marx sobre a arte. A decadência da criação artística é inseparável do progresso
da civilização burguesa.
O próprio desprezo pela arte, característico da sociedade burguesa, se
converte em poderoso fator revolucionário. As afirmações de Marx e Engels
contidas no Manifesto Comunista são muito adequadas a essa idéia. Mesmo
quando a burguesia destrói todas as relações idílicas, quando prostitui tudo,
quando despoja de sua aura a todas as profissões até então veneradas e dignas
de um piedoso respeito, incluindo o trabalho do poeta, ainda assim o niilismo do modo burguês de produção é, ao mesmo tempo, seu maior mérito
histórico. Tudo o que sagrado é profanado, e os homens, por fim, se vêm
forçados a considerar serenamente suas condições de existência e suas relações
recíprocas. Marx e Engels viam nessa destruição das ilusões e dos vínculos
que unem o homem às antigas formas sociais como uma das condições necessárias para o surgimento uma cultura humana verdadeiramente universal.
Na sociedade capitalista se estabelece uma interdependência universal
entre as nações. E isso se refere tanto à produção material como intelectual.
A produção intelectual de uma nação se converte em patrimônio comum de
todas. A estreiteza e o exclusivamente nacional resultam cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais se forma uma literatura
universal19. Portanto, Marx via que aí surge uma enorme contradição, porque
a sociedade burguesa cria riqueza material e poderosos meios de desenvolvimento cultural só para demonstrar na forma mais evidente sua incapacidade
de utilizar esses meios, as limitações do desenvolvimento cultural em uma
sociedade baseada na exploração do homem pelo homem.
Sob o domínio da burguesia atinge sua culminação uma contradição
historicamente condicionada (e, portanto, transitória) entre o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e suas realizações artísticas, entre
a tecnologia e a arte, entre a ciência e a poesia, entre enormes possibilidades
19 MARX, K. e ENGELS, F. O Manifesto
Comunista.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
135
Cultura
culturais e uma vida espiritual sumamente pobre.
Arte e coletivismo
A dialética marxista se baseia não apenas na doutrina da unidade de todos
os aspectos da vida social, mas também no reconhecimento de sua relação e
desenvolvimento contraditórios. Toda transição para formas mais elevadas e
mais desenvolvidas é acompanhada por uma negação; a compreensão desse
aspecto destrutivo do progresso explica o que poderia parecer pessimismo nos
comentários de Marx sobre a arte grega. Mas a dialética do desenvolvimento
histórico não dá um resultado negativo. Na opinião estética de Marx não há
nem vestígio dessa imaginária tragédia da arte sobre a qual se apóiam muitos
pensadores de todos os matizes, sobretudo nos dias de hoje.
A visão de Marx era totalmente otimista em relação à arte. Para ele, na
sociedade comunista, as disparidades entre as pessoas altamente dotadas e
as massas desaparecem. A concentração exclusiva do talento artístico em
indivíduos únicos e a consequente supressão desses dotes na grande massa é
uma conseqüência da divisão do trabalho.
O coletivismo, longe de suprimir a originalidade pessoal, oferece o
único terreno sólido para um desenvolvimento total da personalidade. A
idéia central em Marx e Engels é que a sociedade comunista elimina não
apenas as contradições abstratas entre trabalho e prazer, mas também entre
sentimento e razão, entre as habilidades físicas e mentais do homem. Junto
com a abolição das classes e a gradual desaparição da contradição entre trabalho físico e trabalho espiritual, vem o desenvolvimento geral do indivíduo
completo que os máximos pensadores sociais até agora só puderam sonhar.
Só a sociedade comunista, na qual “os produtores associados regulem esse
metabolismo seu com a natureza colocando-o sob seu controle coletivo, em
vez de serem dominados por ele como por um poder cego”, pode estabelecer
as bases materiais para “o desenvolvimento das forças humanas, considerado
como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade [...] A redução
da jornada de trabalho é a condição básica”20.
Com isso, Lifshitz conclui seu livro. Mas antes, faz uma síntese necessária
de tudo o que foi dito:
Segundo a teoria de Marx, portanto, o comunismo cria condições
para o crescimento da cultura e da arte que, comparadas às limitadas
oportunidades que a democracia de escravos oferece a uns poucos
privilegiados, estas devem necessariamente parecer muito mesquinhas.
A arte morreu! Viva a arte!, este é o lema da estética de Marx.
136
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
20 MARX, K. O Capital, vol.III

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