Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural

Transcrição

Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Programa de Pós-Graduação em Geografia
Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural:
a resistência camponesa e a luta pela terra no
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba
RENATA MAINENTI GOMES
Orientador: Prof. Dr. João Cleps Junior
2004
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Programa de Pós-Graduação em Geografia
CAPA: Foto 1 – Trabalhadores Rurais Sem-Terra em conflito na Fazenda Barreiro
(Limeira do Oeste). Fonte: Arquivo APR (Animação Pastoral e Social no Meio Rural) –
1995.
Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural:
a resistência camponesa e a luta pela terra no
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação
em
Geografia,
da
Universidade Federal de Uberlândia,
como requisito para a conclusão do curso
de mestrado.
Área de Concentração: Geografia e
Gestão do Território
Linha de Pesquisa: Análise, Planejamento
e Gestão dos Espaços Rural e Urbano.
.
RENATA MAINENTI GOMES
Orientador: Prof. Dr. João Cleps Junior
2004
II
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de
Catalogação e Classificação / mg / 10/04
G633o Gomes, Renata Mainenti, 1980Ofensiva do capital e transformações no mundo rural : a resistência camponesa e a luta pela terra no Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba / Renata Mainenti Gomes. - Uberlândia, 2004.
251f. : il.
Orientador: João Cleps Júnior.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Geografia.
Inclui bibliografia.
1.Geografia agrícola - Triângulo Mineiro - Teses. 2. Reforma
agrária - Triângulo Mineiro (MG) - Teses. 3. Movimentos sociais
Teses. 4. Assentamentos humanos - Teses. 5. Posse da Terra Teses. I. Cleps Júnior, João. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Geografia. III. Título.
CDU: 911.3:631(851.12*TRIANG)
Banca Examinadora
Dissertação de mestrado apresentada em 26 de março de 2004 e aprovada
pela seguinte banca examinadora:
___________________________________________________
Prof. Dr. João Cleps Junior
(orientador)
___________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Ricardo Micheloto
___________________________________________________
Prof. Dr. Bernardo Mançano Fernandes
III
À minha família, que me inspira sempre
um mundo com mais amor:
Paulo, Regina, Mariana, Vicente, Deyse
e Murilo.
IV
AGRADECIMENTOS
Por mais solitária que por vezes se apresente a elaboração de uma
dissertação de mestrado, são muitas as pessoas que, ao nosso redor, tornam
possível, enriquecem e enchem de sentido os caminhos que percorremos para
a construção do trabalho. Agradeço a todos aqueles que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a realização desta pesquisa, em especial:
Ao meu orientador, professor João Cleps Junior, toda a minha admiração, o
meu respeito e o meu agradecimento. Por este e todos os trabalhos que
realizamos juntos, que sempre foram marcados por uma relação de confiança e
amizade. Pelo apoio sempre presente, que contribuiu sobremaneira para as
minhas realizações. A este que é, certamente, um dos grandes responsáveis
pelos caminhos que eu estou trilhando, o meu sincero e profundo muito
obrigado.
Ao professor Antonio Ricardo Micheloto, sempre disposto a contribuir nas
minhas “empreitadas” acadêmicas, com a seriedade e a competência que
fazem dele uma referência para nós, aprendizes nas ciências sociais.
Ao professor Bernardo Mançano Fernandes, pelas suas contribuições
fundamentais para os caminhos deste trabalho, através da sua participação na
banca de qualificação e dos seus escritos que muito nos guiaram.
À professora Vera Lúcia Salazar Pessoa, que participou da defesa do projeto
desta dissertação, pela contribuição oferecida ao processo de pesquisa, bem
como pela convivência cotidiana, sempre agradável e enriquecedora.
Aos amigos do Laboratório de Geografia Agrária e de mestrado: Sidivan,
Cristina, Djalma, Luíza Maria, Luíza Dall’Osto, Luciene, Patrícia, Tatiana e
Paulo e, em especial, a Wanderléia e a Luciane – amigas de todas as horas.
Aos amigos da APG: Cristiane, Fernando, Larissa, Gabriela e, em especial, a
Karla.
V
Aos meus pais, Paulo e Regina, que sempre me ensinaram a buscar
inspirações em um mundo melhor. Por todo o apoio, incondicional, aos
caminhos buscados. Pela vivência compartilhada das angústias e alegrias do
mundo acadêmico. E por todo o amor.
Aos meus irmãos, Mariana e Vicente, e a minha cunhada Deyse. Pela feliz
oportunidade de compartilharmos todos os momentos.
Aos meus avós, Jorge e Guida, Paulo (in memorian) e Zezé, meus exemplos
de vida, de respeito e de amor. Aos meus tios e primos. À tia Rita pelo carinho
e apoio sempre constantes inclusive através da revisão deste trabalho. Ao
Tiago, Fabrício e Caio, pela alegria da vida.
Ao Murilo, amigo e companheiro. Pela presença em todos os momentos deste
trabalho, das viagens aos assentamentos e acampamentos às reflexões
compartilhadas. Pelo apoio e pelo carinho, todo o meu amor.
A Capes, pela concessão da bolsa de estudo por dois anos, sem a qual
dificilmente este trabalho poderia viabilizar-se.
E, finalmente, a todas as famílias acampadas e assentadas que nos ajudaram
a compreender nossas inquietações e, sobretudo, a todos os trabalhadores
rurais sem terra que, em seu cotidiano, nos ensinam a buscar um outro mundo.
VI
Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
(Trecho de Morte e Vida Severina,
de João Cabral de Melo Neto)
VII
RESUMO
A proposta deste trabalho e analisar a questão agrária brasileira, através
da reflexão sobre o processo contraditório do capitalismo, e na perspectiva das
lutas sociais travadas no campo, tendo como foco privilegiado de analise a
região do Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba, localizada no estado de Minas
Gerais. A região do Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba teve o seu cenário
econômico radicalmente transformado a partir da década de 1970, frente ao
processo de modernização da agricultura. A incorporação das áreas de cerrado
ao processo produtivo capitalista impulsionou sobremaneira a economia
agroexportadora e a formação de alguns dos maiores empreendimentos
agroindustriais do país. Por outro lado, esse processo promoveu o acirramento
das contradições inerentes ao movimento constante de autoexpansão e
reprodução do capital, a medida que fez-se acompanhado da
desterritorialização do camponês e do aprofundamento das formas de
exploração do trabalho no campo. No entanto, e fruto desse mesmo processo,
os trabalhadores rurais da região fizeram avançar as suas organizações, e hoje
esta e uma das mais conflituosas do país. Buscamos refletir neste trabalho
justamente sobre esse avanço da luta pela terra no Triangulo Mineiro/ Alto
Paranaíba, considerando em especial, nesse processo, o papel da
sindicalização rural, a formação dos movimentos sociais rurais, a atuação da
Igreja, e a histórica violência empreendida pelos latifundiários locais em
repressão as organizações dos trabalhadores rurais. Discutimos, ainda, na
perspectiva da territorialização da luta pela terra, a realidade dos
acampamentos rurais da região que, construídos a partir da ocupação de
grandes propriedades improdutivas, tornam-se referencias de luta e
organização na formação e espacialização dos movimentos sociais de luta pela
terra. Da mesma forma, empreendemos uma reflexão sobre os assentamentos
rurais do Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba, considerando alguns dos
elementos sociais, políticos e produtivos que envolvem esses territórios,
enquanto formas de organização e resistência, num processo que representa,
para alem da possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais e de
trabalho, um (re) dimensionamento da luta pela transformação da realidade do
campo.
Palavras-chave: reforma agrária, luta pela terra, movimentos sociais,
acampamentos rurais, assentamentos rurais e Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba.
VIII
ABSTRACT
The present research seeks to analyze the agrarian problem in Brazil,
through reflexion on contradictory capitalism development and the social
struggle engaged in the region of Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, in Minas
Gerais State. The Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba region had its economic
scene changed by the agriculture modernization from the 1970’s. The inclusion
of the Cerrado area in capitalist agriculture process drove on the increasing of
agriculture enterprise in Brazil. On the other hand, this process encouraged the
increase of capital contradictions as it brought along the expulsion of rural
peasants from their land and deepen of rural workers exploration. Otherwise,
rural workers from Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba region used this period to
organize their movements and, nowadays, this region is one of the most
conflictive in Brazil. We seek to understand on this research the land struggle
development in Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba region, specially, the role of
rural trade unionism, landless movement formation, church role on agrarian
reform and the historic violence undertake by the local large farmers in
repression to the landless movement organizations. We discuss the territoriality
of landless struggle and the reality of landless camps in the studied region.
These landless camps become a reference of social movement’s construction
and organization. It is still studied the landless settlements in Triângulo Mineiro/
Alto Paranaíba where we look on social, politic and productive elements while
organizations and resistance forms. All this process represents a new
dimension of the struggle for agrarian change in Brazil.
Keywords: agrarian reform, landless struggle, social movements, landless
camps, landless rural settlements, Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.
IX
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................
1
CAPÍTULO 1 – A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL: a
territorialização do capital no campo e a resistência camponesa ..
13
A magnitude do problema agrário no Brasil ......................................................
13
A formação da propriedade privada da terra no Brasil – da colonização à
proclamação da república .................................................................................
18
A questão da terra na primeira república do Brasil ...........................................
23
A questão agrária do período getulista ao golpe militar ....................................
26
O debate teórico sobre a agricultura brasileira e o desenvolvimento do
capitalismo nas décadas de 1950 a 1970 .........................................................
33
O período militar e a modernização conservadora – a militarização da
questão agrária .................................................................................................
42
As questões agrária e agrícola a partir dos anos 1980 – a mundialização do
capital e as transformações no meio rural ........................................................
50
Os governos democráticos do pós-regime militar e a reforma agrária .............
59
O governo FHC na questão da reforma agrária ...............................................
63
O governo Lula na questão da Reforma Agrária ..............................................
71
O debate atual sobre a reforma agrária ............................................................
75
A luta pela terra no Brasil hoje ..........................................................................
81
CAPÍTULO 2 – A REALIDADE AGRÁRIA DO TRIÂNGULO
MINEIRO/ ALTO PARANAÍBA (MG): o processo de modernização
do campo e a luta pela terra ................................................................
86
O desenvolvimento agrário do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba .................
86
O processo de modernização do setor agrícola no Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba: reestruturação produtiva e impactos no mundo do trabalho
rural....................................................................................................................
90
A luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – as formas
embrionárias de organização e resistência dos trabalhadores rurais frente à
ofensiva do capital ............................................................................................
102
A reemergência do movimento de trabalhadores rurais no Triângulo Mineiro
e Alto Paranaíba: os anos 1980 ........................................................................
111
X
A luta pela terra na Fazenda Barreiro – o primeiro projeto de assentamento
115
de reforma agrária da região ............................................................................
Fazenda Santo Inácio-Ranchinho: referência regional de luta e conquista da
terra ...................................................................................................................
118
Ampliação dos movimentos sociais rurais e intensificação da luta pela terra
no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – dos anos 1990 ao início dos anos
2000 ..................................................................................................................
123
A vertente sindical da organização dos trabalhadores rurais e o STR de
Araxá .................................................................................................................
124
A formação do MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade .......................
129
A regional Triângulo do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra .................................................................................................................
130
Outros movimentos de trabalhadores rurais atuantes na região ......................
132
A organização dos ruralistas e a violência no campo: a criminalização da luta
pela terra e a formação das milícias armadas na região ..................................
135
O papel da Igreja no processo de luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba .........................................................................................................
143
CAPÍTULO 3 – OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR: os
acampamentos dos trabalhadores rurais em luta pela terra no
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ......................................................
151
A ocupação como forma de acesso à terra ......................................................
151
O acampamento Emiliano Zapata: a luta do MST no Triângulo Mineiro ..........
158
A construção do acampamento Emiliano Zapata ....................................
159
Organização social e política do acampamento Emiliano Zapata............
165
Organização produtiva do acampamento Emiliano Zapata .....................
169
O acampamento Tangará: referência regional de luta e resistência ................
174
Organização social, política e produtiva do acampamento Tangará .......
182
Algumas reflexões acerca dos acampamentos rurais de sem-terra no
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ....................................................................
189
CAPÍTULO 4 – OS ASSENTAMENTOS RURAIS DO TRIÂNGULO
MINEIRO/ ALTO PARANAÍBA: a territorialização da luta pela terra
192
Sobre os impactos locais dos assentamentos rurais ........................................
205
A organização produtiva nos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/ Alto
Paranaíba .........................................................................................................
209
XI
As dificuldades do processo produtivo nos assentamentos rurais do
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ....................................................................
212
A frágil organicidade dos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/ Alto
Paranaíba .........................................................................................................
217
Contradições vivenciadas após a conquista da terra .......................................
223
Assentamentos rurais: a territorialização da luta pela terra ..............................
225
O assentamento Paulo Freire: contradições da luta e possibilidades de
resistência .........................................................................................................
230
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................
241
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................
247
XII
LISTA DE TABELAS
1.1 – Evolução da estrutura fundiária brasileira – 1966-1992 ........................
14
1.2 – Ociosidade das terras no Brasil – 1988 .................................................
14
1.3 – Áreas passíveis de desapropriação segundo o Estatuto da Terra ........
15
1.4 – Dados sobre os conflitos no campo no Brasil – 1991-2002 ..................
16
1.5 – Concentração da terra no Brasil – 1960-1980 .......................................
48
1.6 – Participação relativa da PEA rural na força de trabalho total – 19401990 ................................................................................................................
o
48
1.7 - Reforma agrária no governo Sarney, segundo o 1 PNRA – 1985/1990
61
1.8 – Brasil – dados sobre os assentamentos rurais (até 1994) ....................
61
2.1 – Distribuição dos créditos do Polocentro ................................................
93
2.2 – Evolução da produção de café e soja – Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba (1970-1995) ..................................................................................
94
2.3 – Concentração da terra: Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba – Índice de
Gini (1970-1985) .............................................................................................
99
2.4 – Movimentos e organizações de luta pela terra – Triângulo Mineiro/
Alto Paranaíba (2003) ....................................................................................
133
3.1 – Número de acampamentos e famílias acampadas no Estado de
Minas Gerais, por região ................................................................................
152
3.2 – Número de acampamentos e famílias acampadas no Estado de
Minas Gerais, por movimento .........................................................................
152
3.3 – Total de acampamentos e famílias acampadas – Triângulo Mineiro ....
154
3.4 – Total de acampamentos e famílias acampadas – Alto Paranaíba ........
154
4.1 – Total de projetos de assentamento em Minas Gerais, por ano .............
193
4.2 – Projetos de assentamento no Triângulo Mineiro – 2003........................
194
4.3 – Projetos de assentamento no Alto Paranaíba – 2003 ...........................
195
4.4 – Total de projetos de assentamento, famílias assentadas e áreas
utilizadas – Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba – 2003 ...................................
196
4.5 – Alguns indicativos sócio-econômicos dos assentamentos – 1992 ........
203
4.6 – Assentamento Nova Santo Inácio-Ranchinho: dados anteriores e
posteriores a sua implementação ...................................................................
206
XIII
LISTA DE FOTOS
1.1 – Trabalhadores rurais sem-terra em conflito na Fazenda Barreiro .............
capa
2.1 – Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – barracos e faixas
116
2.2 – Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – fila para refeição
116
2.3 – Acampamento “Esperança do Trabalhador” - mulheres lavando roupas ..
117
2.4 – Caminhada de sem-terra: ação político-religiosa em Iturama ...................
145
2.5 – 25a Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: participação dos povos
indígenas .............................................................................................................
148
a
2.6 - 25 Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: homenagem a lideranças
sem-terra mortas na luta .....................................................................................
149
3.1 – Barracos do acampamento Emiliano Zapata .............................................
158
3.2 – Barraco onde funciona a escola do acampamento Emiliano Zapata .........
165
3.3 – Quintal de um acampado no Emiliano Zapata ...........................................
169
3.4 – Criação de porcos e galinhas para subsistência – Emiliano Zapata ..........
170
3.5 – Produção de milho e mandioca no acampamento Emiliano Zapata ..........
171
3.6 – Acampada da Fazenda Tangará na área coletiva de produção de
maracujá .............................................................................................................
184
3.7 – Acampado da Fazenda Tangará com produção colhida de maracujá .......
185
3.8 – Produção do grupo de artesanato do Acampamento Tangará ..................
186
3.9 – Estrutura da rádio comunitária do Acampamento Tangará .......................
187
3.10 – Escola Família Agrícola 25 de Julho no Acampamento Tangará ............
188
4.1 – Criança ordenhando em curral no P.A. Nova Jubran (Santa Vitória) .......
210
4.2 – Fabricação de farinha de mandioca no assentamento Santa Luzia
(Perdizes) ............................................................................................................
211
4.3 – Lote individual com horta e pomar ao lado da casa/ Assentamento
Pontal do Arantes (União de Minas) ...................................................................
212
4.4 – Manifestação do MTL em visita do presidente Lula ao assentamento
Nova Santo Inácio-Ranchinho (Campo Florido) .................................................
220
4.5 – Estrutura da Cooperativa Agropecuária do assentamento Iturama
(Limeira do Oeste) ..............................................................................................
221
4.6 – Mutirão para a construção de um galpão para armazenar o leite ..............
236
4.7 – O mesmo galpão da foto 4.6, agora já construído e armazenando o leite
produzido no assentamento Paulo Freire ...........................................................
236
4.8 – Criação coletiva de porcos e raça, assentamento Paulo Freire .................
237
4.9 – Criação coletiva de porcos de raça, assentamento Paulo Freire ...............
238
XIV
LISTA DE MAPAS
1 – Mesorregião Geográfica Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ...........................
87
2 – Localização dos acampamentos rurais de sem-terra do Triângulo Mineiro/
Alto Paranaíba (2004) ...........................................................................................
155
XV
CAPÍTULO 1
A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL:
a territorialização do capital no campo e a resistência camponesa
A Magnitude do Problema Agrário no Brasil
Já no primeiro século de colonização, formou-se no Brasil um sistema
que garantiu o predomínio da grande propriedade subexplorada, que
caracterizou a vida rural na quase totalidade do território nacional. A sociedade
brasileira foi marcada, assim, desde os seus primórdios, por uma intensa
concentração de terra e de renda. O latifúndio consolidou-se no Brasil como
estrutura básica de distribuição de terras, associando-se à histórica ausência
de uma política efetiva de reestruturação fundiária.
Segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil é o
segundo país do mundo com maior concentração de terras (só perdendo para
o Paraguai), onde 1% dos estabelecimentos fundiários controla quase a
metade de todas as áreas legalizadas.
O Brasil possui uma extensão territorial imensa também em terras
agricultáveis. Até 1992, segundo o Cadastro do INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária), cerca de 600 milhões de hectares dos
aproximadamente 850 milhões que compõem o território brasileiro já haviam
sido ocupados (ainda que nem sempre economicamente). Haveria, assim, 250
milhões de hectares que são terras públicas, das quais 95 milhões pertencem
aos povos indígenas, distribuídos em 545 reservas. Já dados do INCRA de
2003 demonstram que 132.615.122 hectares são ocupados por propriedades
acima de 2 mil hectares, o que corresponde a 15,6% do território brasileiro, que
está concentrado nas mãos de 26.000 pessoas, ou seja, 0,015% da população
de 170 milhões (INCRA, 2003).
Ao analisar a evolução dos dados sobre a estrutura fundiária do país
percebemos também que a concentração da propriedade da terra é um
fenômeno que permanece crescente, como podemos observar na tabela a
seguir:
Tabela 1.1: Evolução da Estrutura Fundiária Brasileira – 1966-1992
Distribuição das Terras rurais (ha)
Propriedades com menos de 100
Propriedades com mais de 1.000
1966
1972
1978
1992
Porcentagem sobre o total das Terras do Brasil
20,4%
16,4%
13,5%
15,4%
45,1%
47,0%
53,3%
55,2%
Fonte: INCRA. In: STÉDILE, 1997, p.22.
O alto grau de concentração da propriedade também é refletido na forma
como são usadas as terras no Brasil. Stédile apresenta dados que revelam que
as propriedades mais produtivas estão na faixa de 30 a 100 hectares. Abaixo
dessa faixa, há uma série de dificuldades relacionadas ao aumento da
produtividade e, acima, praticamente desaparecem as atividades agrícolas,
retratando a má utilização das terras e o problema da ociosidade: apenas 14%
do total das terras são dedicados à agricultura (STÉDILE, 1997).
Os dados apresentados na tabela 1.2 revelam que há, no Brasil, cerca
de 81 milhões de hectares totalmente ociosos, ao que corresponde o fato de
que 42% do total das terras aproveitáveis estão ociosas e que 88,7% destas
áreas ociosas se encontram em latifúndios. Vale ressaltar que o alto grau de
ociosidade das terras no Brasil está relacionado, em parte, aos fins
especulativos a que está subordinada. A aquisição de terras por razões não
diretamente ligadas à sua função produtiva, e sim como reserva de valor, é
uma tradição no Brasil, transformando grandes extensões em propriedades
privadas de muitos agentes financeiros, vários deles internacionais, que não
têm o menor vínculo com a produção agropecuária.
Tabela 1.2: Ociosidade das terras no Brasil – 1988
Regiões
(porcentagem
sobre o total)
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Brasil
Nível de ociosidade
(porcentagem sobre o
total)
65,8
54,4
21,1
15,2
42,6
42,6
Incidência dos
latifúndios na área
ociosa (porcentagem)
Área total ociosa
(em hectares)
88,4
85,9
84,0
74,1
95,5
88,7
7.425.806
28.883.864
10.445.506
4.403.184
30.659.654
81.818.014
Obs.: Áreas ociosas referem-se àquelas sem nenhuma utilização.
Fonte: Mirad, 1988 (Censo Agropecuário IBGE – 1985). In: STÉDILE, 1997, p.27.
14
Frente a todas as controvérsias que existem sobre a legislação brasileira
acerca da reforma agrária, José Gomes da Silva (1994) nos apresenta dados
referentes à quantidade de terra que poderia ser desapropriada aplicando-se a
lei em vigor (tabela 1.3).
Tabela 1.3: Áreas passíveis de desapropriação segundo o Estatuto da
Terra
Categoria
Latifúndios
(Segundo Estatuto da Terra)(1)
Grandes propriedades improdutivas
(acima de 15 módulos fiscais)(3)
Lei 8.624, de 25/2/93
Grandes propriedades
Com limite mínimo(4)
%(5)
Área
(em mil hectares)
Número de
(2)
proprietários
95.380
284.418
63.587
3,1
85.781
115.054
57.188
2,8
70.833
120.975
47.222
2,3
Imóveis
rurais
(1) O cadastro de 1992 revelou um total de 5 milhões de imóveis rurais com 639 milhões de hectares.
Destes, 1.219.167 imóveis com 424 milhões de hectares foram classificados como “latifúndios”.
Tomaram-se apenas os latifúndios acima de 1.500 hectares na região Norte; de 1 mil hectares na
região Centro-Oeste; e de 500 na Nordeste, Sudeste e Sul (área média de 2.604 hectares).
(2) Média de 1,5 imóvel rural por proprietário.
(3) De um total de 3 milhões de imóveis rurais recadastrados em 1992, 85 mil, acima de 15 módulos
fiscais (grandes propriedades), foram classificados como “improdutivos” (área média de 1.341
hectares). Esses 85 mil imóveis rurais são apropriados por cerca de 57 mil proprietários.
(4) Trabalhando com o limite mínimo adotado de 1.500 hectares (Norte), 1 mil hectares (Centro-Oeste) e
500 hectares (Sul, Sudeste e Nordeste), aparecem como “improdutivos” 70 mil imóveis rurais com
120 milhões de hectares (área média de 1.708 hectares), apropriados por cerca de 47 mil
proprietários.
(5) Porcentagem sobre o total de proprietários do Brasil.
Fonte: INCRA. In: STÉDILE, 1997, p.32.
Segundo Stédile:
Pela tabela, seria possível desapropriar no Brasil, segundo o Estatuto
da Terra, até 284 milhões de hectares classificados, na época, como
„latifúndios’. Com a nova Lei Agrária nº 8.624, de 1993, que
determina a desapropriação das grandes propriedades improdutivas,
o governo poderia dispor de 115 milhões de hectares que se
enquadram nessa classificação. Seriam atingidos por essa Lei
57.188 proprietários, correspondendo a 2,8% do total.
Com a disponibilidade de 115 milhões de hectares, tomando-se por
base um módulo médio de 15 hectares, mais de 5 milhões de
famílias de trabalhadores, ou seja, a totalidade de sem-terra
existentes, poderiam ser beneficiadas sem que fosse afetado
nenhum hectare de terra produtiva (STÉDILE, 1997, p.31,32).
No que se refere à demanda de terra para a reforma agrária, ou seja, do
público em potencial a ser atendido num processo de reestruturação fundiária,
os estudos são controversos e não há uma unanimidade referente a essa
quantificação. No entanto, a magnitude do problema fundiário no país está
15
retratada nas mais diversas metodologias, de tal forma que, mesmo que
diferenciados, os números são sempre alarmantes: o MST divulgou, em 1993,
estudo que mostra a necessidade de se assentar 4.800.000 famílias. A
proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária, de 1985, declarava a
existência de 7.100.000 beneficiários potenciais. Em 1998, Gasques e
Conceição, baseados em dados do Censo Agropecuário de 1995/96,
estimaram em 4.515.000 o número de famílias a serem beneficiadas, entre
pequenos proprietários, arrendatários, parceiros, ocupantes e assalariados
(GASQUES & CONCEIÇÃO, 1998, p.6).
Quanto aos conflitos sociais, os dados da tabela abaixo mostram a
magnitude do problema da violência rural envolvendo as lutas pela terra (tabela
1.4). Os dados são apresentados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra),
vinculada à Igreja Católica e que, desde 1975, tem registrado sistematicamente
os conflitos sociais que ocorrem no campo.
Tabela 1.4: Dados sobre os Conflitos no Campo no Brasil – 1991-2002
Conflitos de Terra
Número
Assassinatos
Pessoas envolvidas
Hectares em conflito
Trabalho escravo
Número
Assassinatos
Pessoas envolvidas
1991
1993
1995
1997
1999
2001
2002
383
49
242.196
7.037.722
361
42
252.236
3.221.252
440
39
318.458
3.250.731
658
29
477.105
3.034.706
870
27
536.220
3.683.020
681
29
419.165
2.214.930
743
43
425.780
3.066.436
27
29
21
17
16
45
147
4883
19.940
26.047
872
1.099
2.416
5.559
49
1
24.788
28
25
22
4.133
5.087
5.586
Conflitos Trabalhistas
Número
Assassinatos
Pessoas envolvidas
Outros
Número
Assassinatos
Pessoas envolvidas
43
5
307.123
155
10
118.952
93
2
36.581
12
69
129
14
3.288
164.909
106.104
14.352
Total
Número
Assassinatos
Pessoas envolvidas
Hectares em conflito
453
54
554.202
7.037.722
545
52
391.128
3.221.252
554
41
381.086
3.250.731
736
30
506.053
3.034.706
983
27
706.361
3.683.020
880
29
532.772
2.214.930
925
43
451.277
3.066.436
Observações: 1 - O número de conflitos é a soma das ocorrências de conflitos por terra,
ocupações e acampamentos.
2 - Conflitos trabalhistas referem-se ao desrespeito à Legislação Trabalhista e casos de
superexploração do trabalho.
3 - Outros: até 1996 estão incluídos os conflitos trabalhistas. Após 1996 registram-se conflitos
em tempos de seca, conflitos pela água, sindicais e em áreas de garimpo.
Fonte: Setor de Documentação da Comissão Pastoral da Terra. In: CPT, 2003, p.13.
16
Além do alto número de conflitos, é importante observar a constante
ocorrência de assassinatos de trabalhadores rurais. Essa face bárbara do
campo deve ser associada, também, à atuação do judiciário, que deixa impune
a maior parte desses crimes. Entre 1985 e 1996, por exemplo, “foram
assassinados 976 trabalhadores rurais. Desses crimes, apenas 56 foram
levados a julgamento e só 14 mandantes foram julgados. Daí, foram 7
condenações, sendo que 2 desses 7 estão foragidos” (BALDUÍNO, 2003, p.8).
A constatação primordial que podemos colocar aqui, de acordo com as
análises de Stédile (1999) é que a reforma agrária nunca encontrou a sua
efetiva implementação, nunca encontrou um respaldo político entre as forças
que controlam as ações do poder público federal no Brasil. Isso significa que,
mesmo promovendo ações de natureza legal, formal, institucional, e até
mesmo, em pequena escala, operacional, os grandes proprietários rurais e os
segmentos a eles ligados têm conseguido garantir a não efetivação de um real
programa de reestruturação fundiária.
A apresentação inicial dos dados acerca da realidade agrária brasileira
foi realizada com o intuito de apresentar, em caráter introdutório a este
trabalho, a magnitude do problema agrário no país, cuja dimensão atinge todas
as esferas da vida nacional. A outra face deste processo, caracterizado pela
exclusão, está no acirramento da luta pela reforma agrária no país, através da
intensificação das ações de mobilização e resistência dos trabalhadores rurais
e da ampliação dos agentes e das organizações envolvidas na luta pela terra.
Aliás, o campo brasileiro é historicamente marcado por conflitos em torno da
utilização da terra. Sua história é uma história de exclusão, mas também é uma
história de resistência, de fortes mobilizações do campesinato em oposição à
lógica do capital. E, especialmente a partir da década de 1980, de uma luta
crescente pela reforma agrária.
A proposta deste capítulo é, assim, apresentar um histórico da questão
agrária brasileira, com base em fontes bibliográficas e documentais. Por um
lado, procuramos refletir sobre a formação e o desenvolvimento da propriedade
privada da terra e sobre o processo de territorialização do capital no campo.
Por outro, e paralelamente, buscamos empreender um resgate das formas de
resistência camponesa, apontando algumas das principais manifestações de
17
construção da sua organização, buscando refletir sobre os avanços da luta pela
terra no país.
A Formação da Propriedade Privada da Terra no Brasil – da Colonização à
Proclamação da República
Até a conquista européia, os habitantes do continente americano tinham
a terra como um bem comunal. No território brasileiro, por volta de 5 milhões de
indígenas, aglutinados em mais de 200 povos, utilizavam a terra de forma
coletiva.
A chegada do europeu colonizador significou uma ruptura nesse
sistema, já que seu interesse era justamente explorar as riquezas naturais do
meio, ou seja, apropriar-se da terra e de outros bens existentes na Colônia.
Tendo a Coroa Portuguesa se apropriado das terras brasileiras, a
primeira forma de distribuição destas consistiu na concessão de uso para
aqueles que se dispusessem a explorá-la, tendo recursos e condições para tal.
Nesse sistema denominado “capitanias hereditárias”, a Coroa destinava
enormes extensões de terra (as sesmarias) a donatários que, em sua quase
totalidade, eram membros da nobreza portuguesa ou prestadores de serviço à
Coroa.
A estrutura fundiária do País nasce, assim, sob os pilares da grande
propriedade rural – o latifúndio.
A exploração econômica das sesmarias, face às circunstâncias do
mercado mundial, e à subordinação da colônia à Portugal (o
monopólio comercial da coroa, também chamado o exclusivo
metropolitano), impõe o cultivo de um só produto (no caso a
monocultura da cana-de-açúcar) que vai se desenvolver com base
na exploração da mão de obra escrava importada da África. Fechase assim o quadro que vai dominar a economia brasileira durante
alguns séculos: a grande propriedade, monocultora, com base na
mão-de-obra escrava, voltada para o exterior (PINTO, 1995, p.65).
Para Celso Furtado, a marca distintiva e fundamental da formação da
estrutura agrária brasileira foi o seu tipo de colonização, ligado ao capitalismo
comercial: “nunca se insistirá suficientemente sobre o fato de que a
implementação portuguesa na América teve como base a empresa agrícola18
comercial. O Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo
capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola (FURTADO, 1973,
p.93).
A
formação
da
empresa
agromercantil
dependia
de
vultosos
investimentos. Portanto, a concessão de terras, desde a sua origem, era
destinada aos homens economicamente poderosos, que irão compor a classe
dirigente, haja visto que, numa economia agrícola, posse concentrada de terra
é posse concentrada de renda e de poder. Assim, mesmo sendo a terra de
ínfimo valor monetário no início da ocupação, é na sua posse que esta classe
manterá a sua dominação. As demais categorias de produtores foram
marginalizadas e/ou disponibilizadas para a grande produção mercantil, de tal
forma que, o que Furtado chama de comunidade camponesa, no Brasil –
quando e onde chegou a se formar –, não teve forte influência no processo de
acumulação do País (FURTADO, 1973).
O problema de mão-de-obra na Colônia foi parcialmente “resolvido” por
uns cem anos, pelo menos, com a escravização de indígenas. Nos séculos XVI
e XVII, trabalhavam na economia cerca de 350 mil indígenas (FERNANDES,
2000). A resistência indígena à sua escravização, entretanto, manteve-se
presente em toda a história da colonização, como atestam a formação da
Confederação dos Tamoios e as Guerras dos Bárbaros e dos Guaranis.
A escravização de indígenas foi sendo substituída, especialmente a
partir do século XVII, pela escravização de africanos. Paralelamente a esse
processo, a maior parte dos grupos indígenas foi quase que totalmente
dizimada.
Já em 1584, trabalhavam nas fazendas de cana-de-açúcar em torno de
15 mil africanos. A resistência dos escravos africanos, que já chegavam ao
Brasil nesta condição, mostrava-se através da fuga e, a partir daí, da
construção dos quilombos. Os quilombos constituíam territórios de resistência à
sociedade colonial, condutores do enfrentamento ao sistema escravocrata e
símbolos da luta contra o cativeiro. Formados em vários pontos do Brasil, os
quilombos refugiavam não só escravos foragidos, mas também índios e
pobres.
19
Palmares é considerado o maior quilombo da história do país. Estima-se
que tenha reunido vinte mil habitantes, a partir de uma junção de outros
povoados socialmente organizados (FERNANDES, 2000).
Calcula-se que tenha se formado em 1629. Localizava-se numa serra
situada entre Pernambuco e Alagoas e era governado por um rei e
por um conselho formado pelos chefes dos quilombos.
Contam que o primeiro rei dos Palmares foi Ganga-Zumba,
assassinado por quilombolas, habitantes dos quilombos, devido ao
fato de ter se mostrado disposto a negociar com as autoridades
coloniais. Ele foi substituído por Zumbi, nome esse de origem
africana, que não se sabe ao certo se era o dele ou de sua função. O
que se sabe é que tinha a disposição para a resistência. Manteve-se
no comando da luta por cerca de dezesseis anos, vencendo diversas
incursões feitas na tentativa de destruir Palmares. Foi morto em
1695, quando o reduto foi arrasado por mercenários sob o comando
do bandeirante Domingos Jorge Velho (MORISSAWA, 2001, p.65).
No ano de 1822, com a Independência, a Coroa brasileira passou a ter o
domínio da enorme extensão de terras colonizadas por Portugal. Em 1831,
com a abdicação de Pedro I, o Brasil ficou sob o governo de uma Regência, até
1840, com a coroação de Pedro II. Foi um momento de grande agitação social
e política, em que estavam em voga as idéias liberais – provenientes inclusive
das Revoluções Francesa e Industrial que sacudiam a Europa –, marcado por
intensas revoltas populares, entre as quais destacam-se a Cabanagem, a
Sabinada e a Balaiada. Essas revoltas podem ser compreendidas “como uma
resistência à forma como foi feita a independência em favor dos grupos
dominantes e com exclusão das camadas populares” (ANDRADE, 2000, p.14).
Entre 1840 e 1889, sob o reinado de Pedro II, houve uma relativa
estabilidade política no País devido, de um lado, ao crescimento econômico
proveniente do café – que tornou-se no século XIX a principal atividade
econômica do país – e do apoio dos cafeicultores ao imperador, diminuindo as
tensões políticas e, por outro, à forte repressão instaurada contra as últimas
revoltas.
É nesse período, frente às grandes transformações por que passava o
Brasil, com a intensificação das pressões externas e internas pelo fim do tráfico
negreiro e da escravidão, que a Coroa determinou a primeira legislação que
tratava do processo de posse da terra, assegurando, no entanto, um acesso
20
restrito a este processo e a conseqüente permanência dos escravos libertos e
dos pobres como trabalhadores das fazendas.
A Lei n. 601, conhecida como a Primeira Lei de Terras, foi promulgada
por Dom Pedro II, em 18 de setembro de 1850. Essa lei determinava que a
propriedade privada da terra só se constituiria através da sua legalização nos
cartórios, mediante certo pagamento em dinheiro para a Coroa. Aqueles que
tinham recebido as sesmarias regularizaram suas posses assegurando a
continuidade de seu domínio, enquanto os escravos libertos e os pobres, sem
recursos para a regularização de terras, permaneceram despossuídos de seu
principal meio de trabalho. Institucionaliza-se a propriedade privada da terra no
Brasil, de forma a garantir a permanência e a consolidação legal da
concentração fundiária.
Como conseqüências sociais dessa lei, tivemos uma forte imigração dos
ex-escravos para as grandes cidades, passando a viver em precárias situações
de vida à custa do subemprego ou da mendicância e a consolidação do
latifúndio como estrutura básica de distribuição de terras. Nesse sentido, é
relevante notar como, no Brasil, a consolidação do latifúndio enquanto base da
produção agrícola do País, teve como incentivo a própria constituição da base
legal da propriedade da terra.
Além disso, no longo processo de abolição da escravatura, que culminou
com a Lei Áurea, em 1888, o governo imperial criou as bases para a
substituição da mão-de-obra escrava pela dos imigrantes europeus, através
dos processos de formação de núcleos de colonização implementados nesse
período. Tais processos, entretanto, foram, em boa medida, desencadeados
pela própria elite escravocrata, com o intuito de resolver o problema da mãode-obra1, com exceção de certas regiões – em especial o extremo sul do país –
onde a imigração foi promovida pelo Estado por razões estratégicas de
povoamento. “O cativeiro do homem chegara ao fim quarenta anos depois de
ter começado o cerco a terra: o cativeiro da terra” (FERNANDES, 2000, p.28).
1
De acordo com Poli (1999), observa-se nesse período um intenso processo de substituição da
mão de obra escrava pela imigrante: “O conceito de inaptidão dos camponeses nativos para o
trabalho, presente na ideologia racial, juntamente com a ideologia do branqueamento,
determinou a importação de mão de obra européia, através de correntes migratórias” (Poli,
1999, p.26).
21
De acordo com Furtado (1973), o fim da escravidão não alterou
significativamente as bases da empresa agromercantil nem a situação
submissa das comunidades camponesas: “no caso brasileiro, a propriedade da
terra foi utilizada para formar e moldar um certo tipo de comunidade, que já
nasce tutelada e a serviço dos objetivos da empresa agromercantil. A formação
dessas comunidades tuteladas preparou a empresa agromercantil para
prescindir da escravidão” (FURTADO, 1973, p.102).
De qualquer forma, o fim da escravidão e a instituição do trabalho livre
como predominante determinam a disseminação de uma outra relação social: a
venda da força de trabalho. “Com a formação do trabalhador livre, conservouse a separação entre o trabalhador e os meios de produção. Agora a
subordinação aconteceria pela venda de sua força de trabalho ao fazendeiro,
ao capitalista” (FERNANDES, 2000, p. 27). Esse processo, de acordo com
Martins, “revelou também a contradição que separava os exploradores dos
explorados. Sendo a terra a mediação desse antagonismo, em torno dela
passa a girar o confronto e o conflito de fazendeiros e camponeses”
(MARTINS, 1981).
Conforme Andrade, até o século XIX, de forma geral, “a pequena
produção,
feita
em
porções
marginais
da
grande
propriedade,
por
trabalhadores sem-terra – foreiros e meeiros – tinha uma função suplementar,
garantiam o abastecimento local e retinham a força de trabalho, permitindo a
sua convocação quando se fizesse necessária à grande lavoura” (ANDRADE,
2002, p.14).
Verifica-se, ainda, um intenso processo de grilagem de terras e uma
expropriação cada vez mais intensa daqueles que trabalhavam a terra – como
posseiros, sitiantes ou agregados –, que passam a tornar-se “sem-terra”.
Consolidam-se os latifúndios, sob a base legal da propriedade privada da terra.
Dessa forma, dá-se, em grande medida, o processo de territorialização da
propriedade capitalista no Brasil (FERNANDES, 2000). Trabalhadores, exescravos e imigrantes, homens livres e pobres, bastardos, agregados,
posseiros, rendeiros, foreiros, parceiros, arrendatários e sitiantes – uma
diversidade de situações que compõem o campesinato brasileiro, marcado por
uma
história
de
perambulação
e
resistência.
Um
campesinato
que
representava e representa uma situação marginal em termos econômicos,
22
políticos e culturais, excluído do processo produtivo e da vida social como um
todo. Um campesinato constituído com a expansão capitalista – em seu
movimento contraditório. E que, mais que lutar para permanecer na terra, “é um
campesinato que quer entrar na terra” (MARTINS, 1981, p.16).
Assim, como afirma Pinto (1995), no decorrer do século XIX, o país
passa por momentos significativos de sua história, sem qualquer alteração
substantiva na estrutura agrária: a Independência, em 1822; o fim do tráfico
negreiro, em 1851; a libertação dos escravos, em 1888; a Proclamação da
República, em 1889... “De fato, estamos diante de um processo onde os
grupos dominantes na sociedade brasileira se anteciparam e conduziram, de
acordo com seus interesses, as mudanças acima mencionadas” (PINTO, 1995,
p.66).
A Proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de 1889,
representa o primeiro golpe militar da nossa história, que, além de oficiais do
Exército, contou com os poderosos cafeicultores paulistas.
A Questão da Terra na Primeira República do Brasil
A então chamada Primeira República foi marcada, assim, por uma forte
dominação da oligarquia cafeeira, bem como pelo aumento de áreas
trabalhadas e pela relevância do papel de imigrantes no processo produtivo. A
estrutura agrária, entretanto, em sua essência, manteve-se inalterada. Vigorou
o mesmo modelo de capitalismo dependente até então dominante, fundado na
monocultura exportadora sob as raízes da grande propriedade.
Várias lutas foram empreendidas no campo, sob as mais diversas
formas. Entre as mais elementares está o banditismo, presente desde os
tempos da colônia, mais essencialmente a partir do coronelismo da república.
Aqui não se verifica uma clara concepção de mundo. Ao contrário, chegou a
constituir, muitas vezes, por exemplo, a base dos exércitos privados dos
coronéis – os chamados “jagunços”. Já o cangaço mantinha a sua autonomia,
ainda que “prestando serviços”. Também sem clareza de projetos e com
atuações contraditórias, tinha um caráter, de certa forma, classista, posto que,
normalmente, tratava-se de pequenos proprietários ou posseiros expropriados
23
ou violentados pela classe opressora, que buscavam vingança, representando
um questionamento do poder dos coronéis. Aliás, tanto o banditismo quanto o
cangaço eram, em sua maioria, formados por camponeses expropriados de
suas terras.
Entretanto, as lutas pela terra propriamente ditas – situadas entre a
proclamação da república e 1930 –, apresentavam um caráter marcadamente
messiânico: “em torno das lutas pela terra havia sempre um líder messiânico.
Isso significa que a fé era a ligação entre ele e seus seguidores. O líder
colocava-se como um intermediário na comunicação de Deus com o povo”
(MORISSAWA, 2001, p.86).
Os movimentos messiânicos tinham um caráter menos pessoal e mais
coletivo, com uma certa concepção de mundo “que os contrapunha
objetivamente à república dos coronéis, à transação do poder entre o Estado e
a ordem privada, representada pelos fazendeiros e comerciantes” (MARTINS,
1981, p.58).
O misticismo e o isolamento em relação ao mundo urbano, através da
criação de seus territórios sagrados, eram características desses movimentos.
O que precisa ser destacado é que a causa primeira, tanto do
banditismo, quanto dos movimentos messiânicos, parece ter sido as
injustiças, a violência, a expropriação e a exclusão dos camponeses
pela ordem instituída, em favor da grande propriedade, em especial
no que tange à propriedade e ao uso da terra (POLI, 1999, p.45).
Os movimentos mais importantes desse período, que envolveram
milhares de camponeses e somente foram derrotados pela brutal repressão
das tropas federais, foram Canudos e Contestado, que representam, de acordo
com Poli, “o desenvolvimento, pelos camponeses, da consciência da existência
de uma oposição em relação à sociedade externa, o que implica na construção
de uma identidade, mesmo que elementar e permeada de misticismo” (POLI,
1999, p.45).
Canudos foi liderado por Antônio Conselheiro, no período de 1893 a
1897, na Bahia.
Final do século XIX. Trabalhadores rurais e ex-escravos
peregrinavam pelo sertão, atrás do beato Antônio Conselheiro, um
líder messiânico, até se estabelecerem no Arraial dos Canudos, no
sertão da Bahia. O lugar foi rebatizado e recebeu o nome de Belo
24
Monte. Criou-se ali um povoado em que o trabalho cooperado foi
essencial para a preservação da comunidade. Todos tinham direito à
terra e desenvolviam a agricultura familiar. Havia um fundo comum
destinado à assistência aos velhos e aos doentes.
Conselheiro proclamava o começo de um “nova era”, criticava a
Igreja e a República recém-fundada e recusava-se a pagar impostos.
Em 5 anos, Canudos chegou a ter cerca de 10 mil habitantes, que na
época era a população das maiores cidades da Bahia. Conselheiro
foi acusado de defender a volta da monarquia e sua comunidade foi
atacada por expedições militares vindas de quase todas as partes do
Brasil. Entre outubro de 1896 e outubro de 1897, mais de 5 mil
soldados do Exército e armamentos pesados de guerra foram
envolvidos nos ataques do arraial, até o cerco total e massacre final.
Restaram 400 pessoas, entre velhos, mulheres e crianças (CUNHA
apud MORISSAWA, 2001, p.86).
A Guerra do Contestado foi liderada pelo monge José Maria, entre 1912
e 1916, na região em litígio entre o Paraná e Santa Catarina. Agrupava cerca
de 20 mil pessoas, predominantemente camponeses, que lutavam contra os
coronéis, as companhias de terras e as autoridades governamentais. No
embate final, contra mais da metade dos efetivos do exército brasileiro e uma
tropa de aproximadamente mil combatentes enviados por fazendeiros, em sua
maioria jagunços, restaram 3 mil. É considerada a maior guerra popular da
história contemporânea do Brasil (MARTINS, 1981; POLI, 1999).
De acordo com Martins:
Tanto o messianismo quanto o cangaço indicam uma situação de
desordem nos vínculos tradicionais de dependência no sertão. (...) A
característica violência pessoal e direta, que confrontava os
camponeses entre si e entre eles e os fazendeiros, começa a se
transformar numa resistência de classe. Daí que formas tão
parecidas de resistência ocorram em áreas tão distantes e tão
diferentes em muitos aspectos, como Canudos e Contestado. (...)
Mesmo que nos redutos e nos bandos se instituíssem outras formas
de dependência pessoal, elas se baseavam em critérios
contestadores da ordem social (MARTINS, 1981, p.62,63).
Poucos anos mais tarde, o Tenentismo também constituiu-se como um
movimento importante, que levantou a questão da concentração fundiária,
ainda que de forma não muita definida. Liderado por Miguel Costa, envolvia
setores militares em luta contra os governos, na década de 1920, aliando-se,
em 1925, à Coluna Prestes, organizada pelo Capitão Luís Carlos Prestes, e
iniciada no Rio Grande do Sul.
25
A Coluna Prestes era um contingente de 1500 homens. Passou para
o atual Mato Grosso do Sul, subiu até o Maranhão, cruzou uma parte
do Nordeste e Minas Gerais, retornou ao Mato Grosso do Sul e
atravessou a fronteira com a Bolívia em fevereiro de 1927. Nesse
trajeto, enfrentou tropas do Exército, forças policiais dos estados,
jagunços e cangaceiros contratados pelos “coronéis”, sem nunca ser
abatida. Por onde passava promovia comícios e distribuía panfletos
contra o regime oligárquico e o autoritarismo do governo.
A marcha de 25 mil quilômetros feita pela coluna pode não ter
derrubado o governo, mas aumentou o prestígio político do
Tenentismo e ajudou a preparar a trama que levou Getúlio Vargas ao
poder (MORISSAWA, 2001, p.77,78).
Faz-se relevante destacar ainda que, durante as quatro décadas da 1 a
República, acontecimentos mundiais importantes repercutem no campo político
brasileiro. Estamos falando da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da
quebra da bolsa de Nova York (que interferiram sobremaneira nas exportações
agrícolas), da Revolução Russa de 1917 e dos estopins revolucionários que
ecoavam no mundo. No Brasil, verifica-se, em destaque, a efervescência do
movimento anarquista e a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
O anarquismo chegou ao Brasil com os imigrantes europeus,
principalmente italianos. Sua ideologia de uma sociedade igualitária, da
propriedade coletiva e da supressão do Estado e das instituições repressoras
ocupou o cenário do movimento operário do início da República, principalmente
em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Suas federações
comandaram as grandes greves operárias de 1917 a 1919. O Partido
Comunista foi fundado em 1922, em grande parte por ex-anarquistas
estimulados pela Revolução Russa. Ambos exercerão influência considerável,
também, no período trabalhado a seguir.
A Questão Agrária do Período Getulista ao Golpe Militar
A partir do início do século XX, o modelo agroexportador, até então
implementado, desencadeou no país uma crise resultante da sua incapacidade
de sustentar o desenvolvimento brasileiro. As razões dessa crise são
geralmente apontadas como uma conjugação de fatores, entre os quais estão
a crise da Primeira Guerra Mundial, que reduziu as exportações agrícolas, a
26
queda no preço internacional do café e o fato daquele modelo não conseguir
mais produzir os bens necessários para as demandas da sociedade brasileira.
A crise resultou na chamada “Revolução de 30”, que implementou um
novo modelo econômico baseado na industrialização do país: liderada por
Getúlio Vargas – que vai manter-se no poder até 1945 –, a “Revolução de 30”
dá um impulso ao processo de industrialização, introduz a legislação trabalhista
e dá ao Estado um papel proeminente no processo econômico.
Porém, tais esforços empreendidos e concentrados no processo de
industrialização se desenvolveram de forma a não romper com as raízes da
formação econômica do país, ou seja, sem intervir na ordem agrária.
Autores como Stédile (1999) afirmam ter-se instituído mesmo uma
parceria entre as oligarquias rurais e a elite industrial, de forma a aparecer,
além da oligarquia rural agroexportadora de origem colonial, uma espécie de
burguesia agrária, que mescla seus interesses entre a agricultura, o comércio,
as finanças e a indústria.
Entretanto, com o fim da „era getulista’ e frente ao processo de
redemocratização do país, a elaboração da Nova Constituição, em 1946,
garante à questão agrária uma ênfase cada vez maior.
Foi nesta Assembléia Constituinte que se falou pela primeira vez – via
institucional e de forma efetiva – da necessidade da reforma agrária no Brasil,
através da proposta de projeto de lei apresentada pelo então senador Luís
Carlos Prestes. Apesar da derrota de suas teses pela bancada ruralista e
conservadora – que representava a maioria dos votos, o debate apresentou
“um avanço em termos da compreensão de que havia um problema agrário e
que o governo dispunha de um mecanismo constitucional para solucioná-lo, se
isso fosse de interesse da sociedade” (STÉDILE, 1997, p.14).
De qualquer forma, a ausência de uma política de distribuição de terras
gerava fortes conflitos sociais, além da intensificação dos movimentos
migratórios de camponeses pobres habitantes de regiões superpovoadas que,
impedidos de ter acesso a terra em suas regiões, migravam para regiões de
colonização, ocupando-as como posseiros, na esperança de terem no futuro a
sua propriedade. Assim, proliferavam também os conflitos, muitos deles
violentos, envolvendo posseiros e grileiros (aqueles que falsificam títulos de
propriedade nos cartórios e se atribuem o direito à propriedade da terra), como
27
os de Trombas e Formoso (1949), os de Teófilo Otoni, em Minas Gerais e os
do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, entre outros.
Eclodem, assim, entre as décadas de 1930 e meados da década de
1950, em quase todo o território nacional, lutas radicais pela terra, mas de
forma predominantemente espontânea e localizada, ou seja, enquanto eventos
relativamente isolados.
A partir da década de 1950, entretanto, desenvolvem-se no Brasil lutas
mais articuladas, com forte caráter ideológico e de alcance nacional. Novas
formas de organização camponesa se impõem no cenário político brasileiro –
juntamente com o debate sobre a reforma agrária –, principalmente sob a
forma das Ligas Camponesas, dos sindicatos e das várias mobilizações
calcadas especificamente sobre a questão da terra e da exploração do homem
do campo.
Os anos 1950 vão constituir-se como o início do processo de
modernização
da
agricultura
brasileira,
caracterizando-se
através
do
desenvolvimento intensivo do capitalismo no campo e das contradições que lhe
são inerentes. Nesse momento, o debate político e acadêmico se fortalecia, e o
movimento camponês expressava suas lutas em todo o território nacional, de
forma cada vez mais intensa, consolidando em muitas instituições a concepção
classista da luta pela terra.
Há, nesse período, um reordenamento econômico provocado pelo
crescimento do mercado interno e da industrialização, bem como por novas
condições do mercado externo,
levando
a um amplo processo de
expropriações e expulsões. Isso se verifica bem na formação das Ligas:
No Nordeste, a crise da cana levara muitos senhores de engenho a
arrendar suas terras a pequenos produtores. Porém, a nova
valorização do açúcar, durante a Segunda Guerra Mundial, levou os
grandes proprietários a requisitarem novamente as terras para o
plantio da cana. Com isso, muitas famílias foram expulsas ou
forçadas a destruir outras lavouras para concentrar-se no plantio da
cana. Foi nesse contexto que surgiu, em 1955, um dos movimentos
mais marcantes da história de lutas dos camponeses: as Ligas
Camponesas (POLI, 1999, p.47).
Assim, a primeira Liga Camponesa da Galiléia surge, em 1955, quando
os donos do Engenho Galiléia tentaram aumentar o preço do foro (uma espécie
de aluguel) e expulsar os foreiros da terra, que passaram a se mobilizar, sendo
28
representados pelo deputado e advogado Francisco Julião, do PSB (Partido
Socialista Brasileiro). Em alguns anos, várias novas ligas foram formadas em
mais de trinta municípios de Pernambuco, em outros estados do Nordeste e em
outras regiões do País.
Em 1962 vários encontros e congressos foram realizados reunindo
representantes das diversas ligas. A essa altura, a consciência
camponesa estava formada no sentido da luta em torno de uma
reforma agrária radical. Os camponeses resistiam na terra e
chegavam a realizar ocupações de terras. Eles tinham por lema
„Reforma Agrária na lei ou na marra”. A posição do PCB e da Igreja
Católica era, no entanto, por uma reforma agrária por etapas, com
indenização em dinheiro e título aos proprietários (MORISSAWA,
2001, p.92).
As Ligas constituíram um amplo processo de mobilização e resistência
organizada dos camponeses, que trouxe à tona a discussão da questão agrária
e da reforma agrária em todo o país. A intervenção do Estado populista
nacional, entretanto, que passou a estimular a criação de sindicatos de
trabalhadores rurais, atrelados ao
Ministério
do
Trabalho, converteu,
posteriormente, a maioria das Ligas em sindicatos. Essa retração, associada a
divergências internas quanto à orientação das lutas, tornou difícil a unificação
de sua direção, sobretudo a partir de 1961.
Esse enfraquecimento das ligas camponesas e sua transformação
em sindicatos significou a passagem de uma proposta de reforma
agrária radical, para uma reforma agrária por etapas. Ocorre que as
ligas representavam uma proposta de revolução camponesa,
enquanto os sindicatos, influenciados pela nova política do PCB,
defendiam a convivência pacífica com a burguesia, num processo
que deveria culminar numa revolução democrático-burguesa (POLI,
1999, p.48).
O PCB constituiu talvez a presença mais efetiva na condução das lutas
no período, promovendo encontros e congressos e a criação de organizações
de trabalhadores em nível local e em nível nacional, no caso a ULTAB (União
dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas), em 1954. Fez um grande trabalho
de politização das revoltas camponesas e de definição da reforma agrária
como uma bandeira nacional, buscando unificar a luta entre os diversos grupos
existentes no campo e articulá-la com outras formas de luta, colocando-a na
ordem do dia das discussões. Considerando o latifúndio expressão das
29
sobrevivências feudais no país, “que impedia que milhões de camponeses se
constituíssem em mercado interno para a indústria que se ampliava, o PCB
elegeu a ação no campo como uma de suas prioridades” (POLI, 1999, p.48).
A ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas) tinha
por finalidade coordenar as associações camponesas e criar as
condições para uma aliança política entre os operários e os
trabalhadores rurais. Em geral seus líderes eram camponeses, mas
havia uns poucos indicados pelo PCB. Essa organização foi criada
aos poucos em todos os Estados, com exceção do Rio Grande do
Sul, onde havia o Master (...), e em Pernambuco, onde havia as
Ligas Camponesas.
Seus principais líderes foram Lindolfo Silva e Nestor Veras. Este
último foi seqüestrado pelos órgãos da ditadura militar em são Paulo
e jamais foi encontrado (MORISSAWA, 2001, p.94).
A partir de 1958, o PCB, orientado pelos partidos comunistas de outros
países, reformula a sua estratégia, buscando uma política conciliatória com
outros setores, como a burguesia nacional e setores da oligarquia rural, na luta
contra o imperialismo norte-americano. Ou seja, com uma proposta moderada
de reforma agrária, tentava atrair os „setores progressistas da burguesia’,
colocando a luta pela terra como um componente da revolução democráticoburguesa. A adoção de táticas mais cautelosas explica a sua crescente
dificuldade de relacionamento com as Ligas (que enfatizavam o caráter
revolucionário da luta pela terra, com propostas mais radicais, colocando na
ordem do dia a luta pelo socialismo), o que é apontado como uma das causas
do enfraquecimento destas no início dos anos 1960.
A Igreja católica também esteve efetivamente organizada junto aos
trabalhadores rurais a partir de 1960, tendo criado diversos setores e serviços
voltados para a luta no campo. O MEB (Movimento de Educação de Base),
criado em 1961, teve atuação importante. “A orientação da CNBB 6 para as
diversas organizações e ações eclesiais era no sentido da criação de um
sindicalismo cristão, afastado das lutas de classe, mas defensor dos direitos
dos trabalhadores e de uma reforma agrária baseada na propriedade familiar”
(POLI, 1999, p.53). Por essa perspectiva é que brigava com o PCB –
comunista e classista – pela direção dos sindicatos rurais. Grupos ligados à
igreja, mas mais independentes, entretanto, como a Ação Popular (dissidência
6
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.
30
da Juventude Universitária Católica – JUC), que teve presença política
importante junto aos camponeses, construíram propostas mais radicais que
culminaram na conhecida Teologia da Libertação. Assim, a atuação da Igreja
se dava tanto por setores mais moderados, com uma pregação legalista dos
direitos dos trabalhadores, defendendo uma
reforma agrária
com a
desapropriação de terras abandonadas e sua „venda suave’ aos camponeses;
quanto por católicos radicais que, com uma filosofia humanista, acreditavam,
por exemplo, que a participação dos trabalhadores nos sindicatos iria
desenvolver sua consciência de classe fazendo-os agir como tal.
Outro movimento importante no período foi o MASTER (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-terra), no Rio Grande do Sul, entre os anos de
1960 e 1964. Nasceu de lutas pela terra no estado, através de lideranças
envolvidas na luta pela reforma agrária, sobretudo ligadas ao PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro) e ao então governador Leonel Brizola. Com o tempo,
conseguiu formar algumas lideranças de base, conseguindo maior penetração
junto aos camponeses (a crítica comumente feita ao movimento é a de que foi
conduzido principalmente por lideranças políticas, mantendo um certo
distanciamento da base). “O ponto culminante do MASTER, segundo Wagner
(1989), ocorreu entre os anos de 1962 e 1963, quando foram montados
diversos acampamentos de sem-terra (35 ao todo) e realizadas várias
manifestações públicas pela reforma agrária, movimentando mais de cem mil
camponeses” (POLI, 1999, p.48). Aliás, o MASTER iniciou os acampamentos uma forma particular de organizar suas ações. “Diferentemente dos foreiros de
Pernambuco, que resistiam para não serem expulsos da terra, a luta dos
integrantes do MASTER era para entrar na terra” (MORISSAWA, 2001, p.94).
O acampamento de Passo Feio, no município de Nonoai, é apontado
como a ação mais importante do MASTER. Em 1963, cerca de 5 mil famílias,
organizadas por Jair Calixto, ex-prefeito de Nonoai, ocuparam a área e
resistiram no local por mais de um ano, contrariando a direção do movimento,
sob o cerco duro do então governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti
(PSB), que havia derrotado o PTB nas eleições de 1962. Ao final, entraram na
reserva indígena dos índios Kaingangues de Nonoai, que os expulsaram 15
anos mais tarde. A partir de então, após vários conflitos, ocupações e
despejos, participaram do acampamento de Encruzilhada Natalino, em Ronda
31
Alta, que foi uma das primeiras ocupações que deram origem ao MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra).
O MASTER, ainda que influenciado pelas Ligas, tinha uma proposta de
reforma agrária diferente: “a diferença básica era que as ligas propunham a
reforma agrária através da luta revolucionária, enquanto o MASTER queria
fazê-la de forma pacífica através de formas legais de luta e organização”
(POLI, 1999, p.48). Essa posição era proveniente do ideário do PTB, que
representava a proposta populista trabalhista nacionalista, com forte inserção
no Rio Grande do Sul e que defendia, da mesma forma, “a „reforma agrária
radical’, porém por via pacífica e com estratégias de luta situadas dentro dos
limites legais” (POLI, 1999, p.54).
No que tange à sindicalização rural, esta foi regulamentada, em 1962, no
governo de Jango. Com o reconhecimento dos sindicatos já existentes e a
formação de novos, abriu-se a perspectiva de formação das federações e
confederações dos trabalhadores rurais. No geral, entretanto, esse processo
acontecia apenas entre as cúpulas das organizações, especialmente da Igreja
Católica e da ULTAB, principais orientadoras dos sindicatos, que brigavam pelo
direcionamento do movimento. A CONTAG (Confederação dos Trabalhadores
na Agricultura) surgiu, em dezembro de 1963, a partir de um acordo entre as
duas instituições, que formaram uma lista única com candidatos de ambas,
depois de um longo processo de negociação. A CONTAG representou a
institucionalização das associações de trabalhadores rurais e a sua vinculação
ao Estado, desembocando num enfraquecimento do movimento camponês, até
porque a maioria dos trabalhadores estava à margem desse processo de
disputa,
que
acontecia
no
âmbito
das
cúpulas
das
organizações
(FERNANDES, 2000).
De maneira geral, o período de 1940 a 1964 representou a eclosão de
movimentos que trouxeram à cena política a luta dos trabalhadores em quase
todo o território nacional. Realizam-se aqui os primeiros congressos nacionais
e estaduais de
trabalhadores rurais, embora as lutas sejam ainda
consideravelmente localizadas, com forte presença dos agentes externos
urbanos enquanto atuação majoritária de lideranças, especificamente, como
vimos, a Igreja e partidos – especialmente o PCB e o PTB – além de
32
intelectuais e políticos. Aliás, de acordo com Poli, era característica marcante
dessas organizações:
a presença de uma concepção política que priorizava a
representação política dos camponeses, mais do que a sua
participação direta. (...) Apesar da preocupação manifestada com a
problemática das populações no campo, percebe-se uma maior
propensão a buscar o controle e a tutela de seus movimentos e
organizações, do que estimular a sua autonomia (POLI, 1999, p.54).
Também se amplia, em especial dos anos 1950 aos 70, o debate sobre
os rumos do desenvolvimento do País, envolvendo a questão agrária, do qual
participam inúmeros intelectuais. Esta questão e suas diferentes soluções eram
apontadas no âmbito da visão geral de cada autor do desenvolvimento
capitalista da economia brasileira. Os principais esquemas explicativos da
agricultura brasileira preocupavam-se em compreender os papéis que a esta
eram atribuídos – buscando perceber se os cumpria ou não – no processo de
moderna industrialização.
O Debate Teórico Sobre a Agricultura Brasileira e o Desenvolvimento do
Capitalismo nas décadas de 1950 a 1970
No final dos anos 1950, a economia entra em crise, e a taxa de
crescimento industrial, que acabara de passar por um período de intenso
crescimento, entra em declínio. A causa é constantemente associada à
agricultura e ao processo de concentração de terras, que passaria a ser
encarado como um fator de impedimento ao desenvolvimento do capitalismo,
visto que este impossibilitaria a agricultura de cumprir o seu papel necessário,
como nos países desenvolvidos, especialmente no que tange à produção de
alimentos baratos, como forma de reduzir o custo da mão de obra industrial.
Tal idéia é sustentada pelo argumento de que uma agricultura como a
nossa, baseada no latifúndio, é incapaz de produzir permanentemente mais, e
a exclusão da maior parte dos trabalhadores do acesso à terra faz com que
esses produzam pouco e consumam pouco, encontrando-se à margem do
mercado.
33
Ricardo Abramovay esclarece essa tese: nessa perspectiva, essa
realidade constituiria um “obstáculo ao desenvolvimento econômico como um
todo, pois, se os trabalhadores rurais tivessem acesso à terra, passariam a
gerar renda através da qual poderiam incorporar-se ao mercado interno
nacional e contribuir, assim, ao próprio desenvolvimento capitalista do país
(ABRAMOVAY, 1994, p.96).
Ganha força também a perspectiva dualista, difundida inicialmente por
Jacques Lambert e Roger Bastide, segundo a qual o Brasil seria marcado pela
existência de acentuada dualidade econômico-social, devido à existência de
uma estrutura aberta e moderna – o urbano, e um setor fechado e arcaico – o
rural. Alberto Passos Guimarães associa-se a esta análise quando afirma que
os resquícios feudais presentes na estrutura fundiária brasileira seriam
verdadeiros entraves ao desenvolvimento econômico e industrial do país. Para
este – diferentemente de Bastide e Lambert, entretanto, que desaconselhavam
o estímulo à agricultura familiar – a reforma agrária era tida como forma de
minar as relações semifeudais até então existentes, desde que destruísse os
latifúndios e fosse promovida por uma aliança entre burguesia nacional e
camponeses,
ampliando
o
mercado
consumidor
e
impulsionando
a
industrialização (CASTRO, A.C., 1979; CASTRO, A.B.,1979; GUIMARÃES,
1977).
Ignácio Rangel (2000) apontaria também para a existência de elementos
feudais na organização interna da estrutura agrária brasileira, vinculada a uma
organização macroeconômica capitalista. Defendia, entretanto, que a reforma
agrária não seria necessária para alavancar o processo de industrialização
brasileira, situação que já se delineava com mais clareza no final dos anos
1960.
Rangel apresentava a tese de que a transição do complexo rural para a
agricultura capitalista, no Brasil, teria gerado fortes descompassos que
desencadearam uma violenta crise agrária.
A incapacidade de absorção da mão-de-obra rural liberada nesse
processo pelos novos setores da economia produz uma
„superpopulação’ que permanecerá estruturalmente em condições
precárias de emprego ou ocupação: „Um descompasso entre os dois
processos – da liberação da mão-de-obra pelo complexo rural ou
autarcia familiar e de integração dessa mesma mão-de-obra no
34
quadro da economia social (de mercado ou socialista) – é
precisamente o traço dominante do fenômeno estudado como crise
agrária (RANGEL apud KAGEYAMA, 1993, p.6/7).
Como já foi dito, também para Alberto Passos Guimarães (1977) a
questão agrária configurava-se, devido às dificuldades que a implementação do
sistema capitalista encontrava frente à estrutura arcaica da agricultura, de tal
forma que a superação da problemática agrária pressuporia a superação dos
obstáculos ao pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Ambos
os autores, assim, compartilham a idéia da herança de restos feudais da
economia colonial, apesar de possuírem métodos de análise distintos. Para
Guimarães, “o problema agrário surge não da transformação rápida e
desequilibrada da agricultura – ao passar de uma economia de subsistência
para uma economia de mercado –, mas sim devido aos obstáculos a essa
transformação, representados pela herança do latifúndio feudal/colonial em
nosso país” (KAGEYAMA, 1993, p.7), quais sejam, os resíduos das relações
arcaicas de produção associados à rigidez da estrutura fundiária.
Para Celso Furtado, o problema agrário do Brasil estaria diretamente
relacionado à sua herança histórica, que condiciona a transição para uma
economia industrial, marcando uma grande heterogeneidade de formas de
trabalho e um sistema de baixos salários, que desemboca na marginalização
dos trabalhadores e na precariedade de emprego, respectivamente, nas
regiões mais atrasadas e no núcleo mais dinâmico da agricultura. Para o
teórico, como o Brasil caracterizava-se pela abundância de terras, pela mãode-obra barata e pela concentração fundiária, o estímulo à tecnificação era
baixo, atravancando a industrialização do país. A solução para este problema
estaria em uma reorganização da agricultura brasileira, eliminando a tutela que
a empresa agromercantil exerce sobre a massa da população rural. O aumento
da produtividade (através da tecnificação) e do poder aquisitivo dos pobres
seria condição sine qua non para a industrialização (FURTADO, 1973).
Para este autor, e de forma geral para os economistas da CEPAL
(Comissão Econômica para a América Latina, da Organização das Nações
Unidas), a reforma agrária era tida como “condição necessária para a solução
do problema da produção de alimentos, a baixo preço, para o mercado interno,
e a ampliação do consumo de bens industriais” (CASTRO, A.C., 1979, p. 34).
35
Esta tese – que defendia uma reforma agrária para desenvolver o mercado
interno e a economia nacional
– considerava que o processo de
subdesenvolvimento vivido pelo país se devia à inexistência de um mercado
interno capaz de sustentar um processo amplo de industrialização, baseado na
produção de bens de consumo não duráveis, a serem adquiridos por amplas
camadas da população. “A solução para esse problema seria promover uma
reforma agrária que transformasse milhares de camponeses pobres em
proprietários e consumidores, formando um enorme mercado interno para o
desenvolvimento de uma economia nacional capitalista” (STÉDILE, 1997,
p.15).
Hélio Jaguaribe e outros teóricos do ISEB (Instituto Superior de Estudos
Brasileiros), criado no governo Kubitschek, vão impulsionar, no debate, a
ideologia nacional-desenvolvimentista – ou o chamado nacional-capitalismo
(como pensamento pretensamente combativo ao imperialismo colonial) – que
se pretendia promotora do desenvolvimento numa visão ecumênica das
classes sociais:
Compreendia Jaguaribe como nacional-capitalismo o conjunto de
políticas adotadas por Vargas, Kubitschek, Quadros e (até meados
de 1963) Goulart; estas tinham em comum o esforço pelo
desenvolvimento, autônomo e endógeno, sob a direção dos
„empreendedores nacionais’, dentro do sistema de iniciativa privada e
tendo no Estado a instância de planejamento, coordenação e
suplementação (CASTRO, A.C., 1979, p. 36).
Grosso modo, as análises dualistas centravam-se na idéia de que a
agricultura brasileira seria ineficiente no contexto do desenvolvimento nacional,
posto que o setor agrícola não reagiria adequadamente aos estímulos
presentes nas mudanças ocorridas na estrutura da demanda seria incapaz de
transformar-se no sentido de absorver tecnologia moderna em proporções
significativas e não geraria um mercado para os produtos da indústria em geral,
além de limitar a constituição de um mercado amplo (CASTRO, A.C., 1979). A
essas afirmações sobrepuseram-se as suas críticas.
De acordo com Castro, A.C.,:
Os esquemas desenvolvimentistas partiam da constatação de um
dualismo estrutural cujos pressupostos teóricos – as origens feudais
das estruturas sócio-econômicas do passado colonial e o
36
nacionalismo como instrumento de luta do capitalismo interno contra
o imperialismo externo – não foram comprovados empiricamente
(CASTRO, A.C., 1979, p.42).
Nessa perspectiva, Caio Prado Junior ressalta as origens capitalistas do
Brasil, vinculadas à empresa colonial portuguesa e à expansão do capital
mercantil, negando o caráter supostamente feudal da estrutura agrária
brasileira defendido pelas teorias dualistas e nacional-desenvolvimentistas:
faltou aqui a base em que assenta o sistema agrário feudal, e que
essencial e fundamentalmente o constitui, a saber, uma economia
camponesa (...), e que vem a ser a exploração parcelária da terra
ocupada e trabalhada individualmente e tradicionalmente por
camponeses, isto é, pequenos produtores. A grande propriedade
rural brasileira tem origem histórica diferente e se constitui na base
da exploração comercial em larga escala, isto é, não parcelária,
realizada com o braço escravo introduzido conjuntamente com essa
exploração, e por ela e para ela (CASTRO, A. B., 1979, p. 86).
O autor tece ainda críticas ao esquema evolutivo linear dos modos de
produção, que é seguido por Alberto Passos Guimarães e foi popularizado nas
publicações soviéticas, segundo o qual ao feudalismo deveria suceder-se,
necessariamente, o capitalismo, em todas as evoluções históricas. Para Prado
Júnior, “tal posição não leva em conta processos históricos concretos, nem
admite alteração na ordem de sucessão dos modos de produção no tempo,
muito menos reconheceria a possibilidade de outros sistemas produtivos além
daqueles já previstos” (CASTRO, A.C., 1979, p. 47). Nessa perspectiva, a
reforma agrária é tida como forma de elevação dos padrões de vida da
população rural, cuja miséria constituiria o maior problema para o
desenvolvimento real do País em qualquer outro setor (PRADO JUNIOR,
1979). A reestruturação fundiária pretendida pelo autor se enquadrava nos
limites do regime capitalista, até porque, de acordo com o seu referencial
marxista, a transformação socialista da sociedade só se efetivaria com a
evolução das forças produtivas capitalistas que, por sua vez, de acordo com
Prado Junior, só poderiam se desenvolver com a reforma agrária. As relações
sociais de produção constituem elemento central em sua análise da questão
agrária, que desdobra-se em três aspectos principais:
1 – o aprofundamento do desenvolvimento capitalista é o responsável
pela deterioração dos padrões de vida dos trabalhadores rurais;
37
2 – essa deterioração é incompatível com o desenvolvimento nacional,
pois restringe o mercado entravando a industrialização que representa o
fundamento de uma economia nacional;
3 – a solução da questão agrária estaria na superação do que sobra de
colonialismo nas relações de emprego e trabalho, no interior do próprio
capitalismo. O problema central estaria, não na questão da terra diretamente,
mas nas relações de emprego na grande exploração, cujas contradições
constituem o motor básico da economia capitalista. Assim, num primeiro
momento, a solução estaria na melhoria das condições de emprego da
população rural, para, num segundo, alterar toda a estrutura econômica da
sociedade.
André Gunder Frank, inspirado no grupo marxista americano da Monthly
Review, reforça a contestação da existência de „restos feudais’ na estrutura
agrária latino-americana, explicando o caráter capitalista da colonização
moderna (séculos XVI e XVII) através da teoria da subordinação interna ao
imperialismo (CASTRO, A.C., 1979 e CASTRO, A.B., 1979).
Delfim Netto e Ruy Miller Paiva também afirmam que a agricultura não é
um obstáculo para o desenvolvimento do País, mas compõem a ala
conservadora da crítica ao dualismo. Descarta-se aqui a necessidade de
reformas radicais ou de base, inclusive a reforma agrária.
Para Delfim Netto, a chave do processo de desenvolvimento
econômico reside, fundamentalmente, numa melhoria de
produtividade do setor agrícola, o que, a um só tempo, libera mão de
obra e eleva o nível de rendimento dos que ficaram no campo, sem
gerar uma crise de abastecimento ou de fornecimento de matériasprimas.
Em última instância, a agricultura financiaria o desenvolvimento
industrial do país, à custa de uma transferência da mão de obra do
setor agrícola para os demais (fato possibilitado pelos ganhos de
produtividade neste setor). O caminho pelo qual se realizaria esta
transferência seria precisamente a baixa do rendimento monetário
dos produtos agrícolas.
Dessa forma, a agricultura desempenharia, ainda, duas importantes
funções no desenvolvimento: fornecer divisas e recursos via confisco
cambial (CASTRO A.C., 1979, p.50).
Para Antônio Barros de Castro, a agricultura estava a cumprir
adequadamente suas funções no processo de desenvolvimento econômico
brasileiro, quais sejam, geração e permanente ampliação de um excedente de
38
matéria primas e alimentos, liberação de mão de obra, criação de mercado e
transferência de capital, com caráter e intensidade, entretanto, diferentes de
outras
experiências
históricas,
e
compatível
com
o
nosso
tipo
de
industrialização. Mas sua análise diferia da de Miller Paiva e Delfim Netto, por
considerar não apenas variáveis econômicas e por afirmar que o universo rural
não age passivamente, apenas cumprindo „funções’ num processo de
desenvolvimento. Para Castro, a agricultura, além de atender aos requisitos da
industrialização brasileira, na forma e intensidade em que eles foram
formulados, se „projetou’ no desenvolvimento urbano-industrial que, grosso
modo, condicionado – e possibilitado – pelas condições de miséria do campo,
reforçou, ainda mais, tais condições também nas cidades (CASTRO, A. B,
1979; CASTRO, A..C., 1979).
Um outro autor, Jacob Gorender, promove, através de suas teses, uma
certa ligação entre o debate da década de 70 e o que se iniciara na década de
80, desenvolvendo uma visão própria da gênese do desenvolvimento
capitalista no campo.
Gorender aplica à agricultura a definição de produção capitalista, qual
seja, um
modo de produção em que exista a subsunção real da produção ao
capital (...), em que a contradição fundamental do modo de produção
é a contradição entre o caráter social da produção e a forma privada
de apropriação, em que a contradição fundamental de classes se
verifica entre operários assalariados e capitalistas (GORENDER,
1994, p.17).
Entretanto, mesmo colocando que a origem do capitalismo brasileiro se
dá ainda no escravismo brasileiro (porque nele houve acumulação originária de
capital e o surgimento de um setor industrial), defende que, no campo, já no
período pós-abolição, o Brasil ficou subordinado ao que chama de modo de
produção “plantacionista latifundiário” por algumas décadas. Apoiado em
formas camponesas dependentes, com baixa produtividade, técnica atrasada,
e fraca divisão social do trabalho, tal modo de produção chega a constituir, no
final do século XIX e início do século XX, um obstáculo ao avanço do
capitalismo, na medida em que não permite acelerar o grau de acumulação do
capital. A gênese do capitalismo reside fundamentalmente na transformação da
39
renda da terra em capital agrário e no adensamento do mercado de mão-deobra livre, inteiramente despossuída, mão-de-obra que pode ser assalariada
temporariamente (GORENDER, 1994).
Para o autor, o desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira é
marcado por um forte impulso do Estado (na política de preços mínimos,
créditos a juros baixos, fornecimento de pesquisas, etc), que se dá de maneira
rigorosamente discriminatória, beneficiando os grandes proprietários; por uma
conjugação com o interesse da indústria de equipamentos, insumos agrícolas e
de transformação das matérias primas agrícolas, setores nos quais
predominam amplamente as grandes multinacionais imperialistas; pela
subsunção real da produção ao capital, de maneira que a tecnologia passa a
constituir a base técnica para a produção de mais-valia relativa, com a
consequente queda drástica de emprego nas propriedades maiores e mais
avançadas.
A partir dessa análise, e contrariando boa parte das teorias
desenvolvimentistas da época, o autor insere a idéia da impossibilidade de uma
aliança entre burgueses e trabalhadores, em defesa da reforma agrária,
embasada na tese de que o capitalismo teria já superado as barreiras para o
seu desenvolvimento, e sobre as bases da grande propriedade rural no Brasil.
Finalizando esta seção, pode-se afirmar que, nas décadas de 1950 a 70,
o tema do desenvolvimento foi o mais presente nas discussões acerca da
problemática agrária. O nacional-desenvolvimentismo e o dualismo estrutural,
que marcaram fortemente o debate acerca do processo da moderna
industrialização,
foram
criticados
veementemente,
e
ainda
com
mais
intensidade a partir dos anos 1970.
Consideramos que o Brasil teve o seu próprio desenvolvimento
capitalista, ao ser gerado no contexto da expansão do capitalismo mundial,
marcado pela dependência internacional. Como mostra Castro (1979), o
desenvolvimento
desse
capitalismo
necessitava
(re)criar
formas
não
capitalistas de relações de produção, o que significa que a existência, por
exemplo, de manifestações de atraso técnico e de não generalização do
assalariamento do campo não seriam uma comprovação de um obstáculo do
setor agrícola ao desenvolvimento capitalista. Tais manifestações não se
explicariam “como resultante de uma sobrevivência colonial, mas sim como
40
uma refuncionalização dentro da própria racionalidade do capitalismo
dependente ou periférico” (CASTRO, A.C., 1979, p.54).
No que tange à reforma agrária, como veremos mais à frente, a
reorientação política, a partir de 1964, com o empreendimento da chamada
“modernização conservadora”, veio comprovar que a estrutura agrária não
constituía um empecilho para o desenvolvimento industrial brasileiro, e
nenhuma alteração radical nesta seria necessária para a evolução das forças
produtivas capitalistas, tanto no setor agrícola quanto nos demais. Além disso,
como nos mostra Martins (1981), não fazia muito sentido a tão propalada
aliança camponesa – operária – burguesa contra os fazendeiros, visto que
estes últimos não constituíam, no Brasil, uma classe necessariamente
antiburguesa. Aliás, burgueses e latifundiários confundiam-se, personificandose, muitas vezes, em proprietários de terra que eram, da mesma forma,
capitalistas.
De qualquer forma, toda essa mobilização social aqui demonstrada,
advinda tanto do debate travado entre os mais diversos setores da sociedade,
quanto da importante luta empreendida pelos movimentos sociais na época,
como veremos mais à frente, acarretou determinadas ações governamentais.
Em 1962, pela Lei Delegada nº 11, cria-se a Superintendência de Política
Agrária – SUPRA, com o objetivo de planejar e promover a reforma agrária no
país. Em 1963, pela Lei 4.214, é sancionado o Estatuto do Trabalhador Rural,
normatizando as relações de trabalho agora no campo, até então à margem da
legislação trabalhista.
Em 1964, o então presidente João Goulart inclui a reforma agrária entre
as reformas de base prioritárias para o desenvolvimento nacional e envia ao
Congresso uma proposta de lei de reforma agrária com o objetivo de
desapropriar as grandes propriedades mal utilizadas que se localizassem a até
100 km de cada lado das rodovias federais.
Entretanto, em 31 de março do mesmo ano, o governo de Jango foi
derrubado pelo golpe militar que, como veremos, na próxima seção, no
decorrer da ditadura que implementou nos 21 anos seguintes, promoveu outros
contornos à questão agrária no Brasil.
41
O Período Militar e a ‘Modernização Conservadora’ – a militarização da
questão agrária
Na década de 1960, intensificam-se, ainda mais, os problemas sociais
no campo, pela pressão de enormes contingentes de camponeses pobres e a
inexistência de uma política governamental para resolvê-los. Os movimentos
camponeses se fortaleceram sobremaneira com a melhor organização de
classe e sob a influência de organizações políticas e partidárias. Suas
propostas
tornaram-se
mais
bem
definidas
e
consolidadas,
sendo
acompanhadas, muitas vezes, da exigência de uma reforma agrária imediata.
Jânio Quadros assume a presidência do Brasil em 1960, mas renuncia
logo depois e João Goulart assume o poder em setembro de 1961.
O clima no país era de efervescência das lutas camponesas e
operárias.
A economia tinha poucos índices favoráveis, a inflação aumentava
cada vez mais. Era necessário tomar um conjunto de medidas nas
quais estavam implícitos benefícios à população mais pobre do país.
O governo teria de implementar reformas de base, ou seja, mexer
nas estruturas econômicas e sociais. A principal delas era a reforma
agrária. Parecia inacreditável. Finalmente um governo se lembrava
do trabalhador rural? Era óbvio que o movimento camponês a esta
altura fervilhava em todo o país. Que tal fazer alguma coisa então
para evitar que o Brasil se tornasse um país socialista? A Revolução
Cubana estava ainda fresquinha, criando adeptos em toda a América
Latina.
O plano de reforma agrária de Jango previa a desapropriação de 100
quilômetros de cada lado de todas as rodovias federais. O governo
tomaria terras improdutivas, isto é, pedaços de terra que os
latifundiários, mesmo sendo donos, nunca tinham aproveitado e as
distribuiria aos camponeses.
Essa idéia não foi tirada do nada. Ela fazia parte do plano de
desenvolvimento brasileiro do ministro Celso Furtado. Previa, com os
novos pequenos proprietários, aumentar o mercado interno, porque,
sendo donos e produzindo na terra, eles teriam condições de
consumir. Assim, a indústria também cresceria e, com ela, a
economia do país (MORISSAWA, 2001, p.83,84).
Outras reformas de base eram defendidas pelo governo Jango, como a
tributária e a educacional. Com uma concepção nacionalista, as reformas
mobilizavam, de certa forma, as esquerdas em sua defesa, preocupando os
interesses
dos
poderosos
nacionais
e
internacionais
–
latifundiários,
banqueiros, empresários e militares.
42
Em meio à turbulência, Jango convocou um comício na Central do
Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 13 de março de 1964, para anunciar suas
reformas de base, na busca pelo apoio popular, necessário para a continuidade
do seu governo. As elites responderam com a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, outra manifestação também consistente. Mas não pararam por
aí.
No dia 31 daquele mesmo mês, Jango foi deposto, e tropas militares
deslocaram-se para vários pontos estratégicos do país. O golpe de estado, em
1964, ocorreu com o apoio das forças armadas e dos segmentos
conservadores da sociedade brasileira. Sob a liderança de governos militares,
o modelo adotado baseou-se no estímulo ao desenvolvimento do capitalismo
no campo, através da subordinação aos interesses do capital estrangeiro e do
processo acelerado de industrialização.
Numa conjuntura de “perigo iminente” do comunismo (em que a reforma
agrária era sempre um dos primeiros atos dos governos revolucionários), o
golpe militar de 1964 tratou de empreender uma violenta repressão contra os
movimentos de luta pela terra – bem como aos movimentos em geral que
visassem a alguma transformação social. Vivencia-se, nesse momento, a
militarização da questão agrária - as lideranças camponesas foram presas,
exiladas ou assassinadas; as organizações de trabalhadores rurais foram
fechadas. Alguns sindicatos que restaram acabaram por adotar uma política
meramente assistencialista, como em 1971, “quando o presidente-general
Médici criou o Funrural, órgão de previdência voltado para o campo e deu aos
sindicatos a responsabilidade pelas suas atividades burocráticas. Muitos
trabalhadores rurais confundiam os sindicatos com o Funrural” (MORISSAWA,
2001, p.95).
Em 30-11-1964, é sancionada a Lei nº 4.504 que dispõe sobre o
Estatuto da Terra e dá outras providências, incorporando, de forma separada,
medidas de reforma agrária e medidas de política agrícola (ou de
desenvolvimento rural) e criando, paralelamente, dois órgãos distintos: o
Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA (em substituição à SUPRA), para
cuidar da reforma agrária, e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário –
INDA, para executar a política de desenvolvimento rural.
43
De acordo com Pinto, “podemos afirmar que, do ponto de vista
estritamente legal, o Brasil estava dotado do instrumental jurídico e institucional
necessário para desencadear um programa nacional de reforma agrária”
(PINTO, 1995, p.69).
O Estatuto da Terra – em vigor até hoje, apesar das muitas modificações
sofridas –, aprovado no primeiro ano do regime militar e símbolo da correlação
de forças existentes à época, representava, em termos legais, um avanço sem
precedentes no que se refere a leis agrárias. Em termos práticos, entretanto,
não se pode dizer o mesmo.
O Estatuto da Terra não foi apenas uma resposta às lutas, mas também
uma
proposta
conciliatória
da
burguesia
industrial
para
acelerar
o
desenvolvimento capitalista no campo.
A pressão de associações patronais e líderes rurais resultou na
incorporação de medidas agrícolas que criaram os mecanismos indispensáveis
para a modernização conservadora que se seguiria no pós-1965, agrupados no
Título III do Estatuto da Terra. Este foi implementado em larga escala,
enquanto o Título II, relativo à reforma agrária, não saiu do papel: esta foi
colocada, na prática, não como desapropriação, mas como tributação,
colonização, assistência técnica, cooperativismo, etc.
Vale ressaltar, também, que o “pacote” de leis agrárias e as ações
governamentais pautaram-se, ao menos em parte, pelas orientações norteamericanas expressas na política da Aliança para o Progresso, que propunha
medidas de reforma agrária como meio de aliviar tensões ou evitar revoluções,
frente à “ameaça do socialismo”.
Em 1970, esses dois órgãos – o IBRA e o INDA – são extintos e
substituídos pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária. É notória a criação de programas de colonização ou „programas
especiais de desenvolvimento regional’ que apresentam-se como substitutivos
da reforma agrária. Entre estes, temos o Programa de Integração Nacional –
PIN (1970), o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à
Agroindústria do Norte e Nordeste – PROTERRA (1971), o Programa Especial
para o Vale do São Francisco – PROVALE (1972), O Programa de Pólos
Agropecuários e Agrominerais da Amazônia – POLAMAZÔNIA (1974), o
44
Programa
de
Desenvolvimento
de
Áreas
Integradas
do
Nordeste
–
POLONORDESTE (1974), entre outros.
O PIN e o PROTERRA foram os programas mais significativos e aos
quais foi destinada uma alta soma de recursos. O PIN tinha como objetivo a
ocupação de uma parte da Amazônia, ao longo da Rodovia Transamazônica.
Baseado em projetos de colonização em torno de agrovilas, “buscava integrar
os homens sem-terra do Nordeste com as terras sem homens da Amazônia”
(PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1997, p.2).
Na prática, verificou-se que a maior parte das cerca de 5.000 famílias
deslocadas para a região eram procedentes do extremo Sul do país,
principalmente, dos estados do Rio Grande de Sul e de Santa
Catarina, e não do Nordeste. Estudos posteriores demonstraram que
os custos do programa foram altos, o número de famílias
beneficiadas reduzido e o impacto sobre a região insignificante.
O desempenho do PROTERRA também deixou a desejar: o
programa desapropriava áreas escolhidas pelos próprios donos,
pagava à vista, em dinheiro, e liberava créditos altamente
subsidiados aos fazendeiros. Apenas cerca de 500 famílias foram
assentadas depois de quatro anos da criação do programa
(PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1997, p.2).
Pinto (1995) desenvolve uma análise sobre os resultados surtidos pelo
Estatuto da Terra e conclui que, mesmo depois da constituição de inúmeros
dispositivos legais e da instalação de uma máquina administrativa para a
execução da reforma agrária, os efeitos são insignificantes, permanecendo a
estrutura agrária inalterada. De acordo com o autor, tal fato se deve, por um
lado, à não aplicação da lei em seu título relativo à reforma agrária e, por outro,
à intensa implementação de seu título relativo à política agrícola, em especial
no que se relaciona ao crédito rural, que favorecia não só os proprietários de
terra, como também especialmente, os grandes proprietários.
Em números, o regime militar (1964-1984) assentou 350.836 famílias,
sendo 85.181 em projetos de colonização, 122.114 por meio de ações
fundiárias estaduais e 143.514 em projetos de reforma agrária do governo
federal (Presidência da República, 1997). Números consideravelmente
irrisórios, frente aos milhões de trabalhadores sem-terra ou com pouca terra,
que vivem e trabalham em condições desumanas.
O período militar foi marcado, assim, por um fortalecimento das
oligarquias rurais e pela expulsão de trabalhadores das propriedades, em
45
função do barateamento de outras formas de utilização do trabalho assalariado,
como o dos trabalhadores volantes, e da intensificação do uso da tecnologia
em substituição ao trabalho humano. Ocorre um processo acelerado de
quimificação e mecanização poupadores de trabalho, cujas causas se prendem
a uma conjunção de interesses dos grandes proprietários e das indústrias de
insumos e equipamentos agrícolas que acabavam de se instalar no país
durante o Plano de Metas.
Nas palavras de Romeiro:
Assim, as motivações profundas e reacionárias, que levaram os
grandes proprietários a modernizar suas lavouras, se transmutaram
aos olhos da sociedade em motivações progressistas fortemente
apoiadas pelo Estado através de toda a sorte de subsídios e
incentivos. Em resumo, a história mostrou que a estrutura agrária
concentrada não foi obstáculo para a continuidade do processo de
crescimento econômico. Foi, sim, obstáculo ao processo de
desenvolvimento sócio-econômico que eleva a qualidade de vida da
população em geral (ROMEIRO, 1994, p.123).
De acordo com Castro (1979), o desenvolvimento industrial do Brasil foi
diferente dos casos clássicos europeus, em que a indústria surgia como um
complemento das atividades do campo. Aqui, as indústrias nasceram e
expandiram-se
de
forma
mais
desvinculada
do
setor
agropecuário
(fundamentalmente ligada a outros ramos, como siderurgia, mecânica e
extração mineral). Isso posto, a chamada „modernização conservadora’
empreendida, a partir da década de 1960, foi suficiente para resolver o
problema do aumento da produção agrícola, necessário para atender às
demandas do setor urbano-industrial.
No que se refere ao mercado consumidor, ainda segundo Castro (1979),
é possível afirmar que a ampliação deste em grandes proporções não se
colocou como necessária para o crescimento industrial no Brasil – afirmação
recorrente no debate dos anos 1950 a 1970 –, posto que os investimentos
industriais do País foram baseados principalmente na substituição de
importações, voltada para as classes com médio e alto poder aquisitivo (de
acordo com o modelo norte-americano de consumo de bens duráveis de tipo
moderno), ou seja, um mercado, ao menos parcialmente, já constituído. Tais
fatores, associados à profunda participação do Estado, fizeram com que a
industrialização apresentasse, visto pela perspectiva da agricultura, um relativo
46
grau de autonomia, de tal forma que a economia capitalista brasileira encontrou
caminhos para crescer sem precisar reformular a sua estrutura fundiária.
De qualquer forma, entretanto, a dinâmica da agricultura vai estar ligada,
de forma cada vez mais intensa, à lógica determinante da economia do país.
Nesse sentido, Graziano da Silva (1987) faz uma análise das transformações
que ocorreram na dinâmica da agricultura brasileira no decorrer da
modernização conservadora dos anos 70 em termos do que chama a
passagem do complexo rural para os complexos agroindustriais, explicada da
seguinte forma:
A dinâmica do complexo rural era determinada pelas flutuações do
comércio exterior. Mas a produção de exportação ocupava apenas
parte dos meios de produção disponíveis, sendo a outra parte
destinada à produção de bens de consumo para a população local e
dos próprios bens de produção utilizados nas fazendas. Dessa
maneira, a divisão social do trabalho era muito incipiente, as
atividades agrícolas e manufatureiras (num sentido amplo)
encontravam-se ainda indissoluvelmente ligadas; e grande parte dos
bens produzidos nas fazendas só tinham valor de uso, não se
destinando ao mercado. Em resumo, o mercado interno praticamente
inexistia (SILVA, 1987, p.18).
A lógica do complexo rural, de acordo com Graziano da Silva, passa a
ser substituída simultaneamente ao processo de industrialização, o que traduzse na constituição do mercado interno de bens industriais voltados para a
agricultura e no desenvolvimento da divisão do trabalho.
Foi um longo processo que ganhou impulso a partir de 1850 (...) e se
consolidou nos anos 50 com a internalização do setor produtor de
bens de capital (D1). A partir daí, completada a industrialização
propriamente dita, se inicia nos anos 60 a industrialização da própria
agricultura: constitui-se um segmento específico do Di destinado a
fornecer máquinas e insumos para o campo; e transformam-se as
relações de trabalho, consolidando-se o assalariamento nos setores
mais dinâmicos da agricultura do Centro-Sul do país. A agricultura já
perdera a auto-suficiência de que dispunha no complexo rural para
produzir os próprios meios de produção de que necessitava e os
bens de consumo final; já deixara de produzir valores de uso para se
dedicar a uma atividade específica, determinada, que produz
mercadorias, ou seja, valores de troca. E agora a agricultura passa a
operar como se fosse ela mesma uma indústria de um ramo qualquer
da produção: ela não apenas compra a força de trabalho e os
insumos que necessita de certas indústrias como também vende
seus produtos os quais se converterão em sua grande maioria, em
matérias primas para outras indústrias. (...) Trata-se agora de uma
dinâmica conjunta do tripé „indústria para a agricultura – agricultura –
47
agroindústria’, que remete ao domínio do capital industrial e
financeiro e ao processo global de acumulação. É a fase de
constituição dos complexos agro-industriais (SILVA, 1987, p.19,20).
Ainda segundo o autor, o processo de modernização capitalista da
agricultura fez avançar o processo de proletarização e de utilização do trabalho
assalariado, hoje predominante na agricultura brasileira, em detrimento do
papel produtivo da pequena produção, embora este ainda se mantenha
relevante do ponto de vista da participação dos pequenos estabelecimentos no
valor total da produção.
Para Graziano da Silva, se a superioridade do desempenho da
agricultura modernizada é inequívoca, são igualmente notáveis os efeitos
perversos de tal desempenho, sejam eles, essencialmente: o aumento da
concentração fundiária (tabela 1.5) e de renda, do êxodo rural (que tem na
diminuição da PEA rural, como se vê na tabela 1.6, uma de suas faces) e da
superexploração dos trabalhadores rurais. Em outras palavras, a modernização
agrícola se deu de forma a excluir a satisfação das necessidades mínimas de
boa parte da população, até porque o aumento da produção agrícola não é
condição suficiente para que haja desenvolvimento sócio-econômico.
Tabela 1.5 – Concentração da Terra no Brasil– 1960-1980 (índice de Gini)
1960
0,842
Anos
Brasil
1970
0,844
1980
0,859
Obs: O índice de Gini – indicador que mede o grau de concentração das terras, variando de
zero (sem desigualdade) a um (plenamente desigual) – do Brasil foi marcado pela FAO
(organismo das Nações Unidas responsável pela agricultura e pela alimentação mundial) e
indicou que este é o segundo país do mundo em nível de concentração da propriedade da
terra.
Fonte: POLI, 1979, p.36.
Tabela 1.6 - Participação Relativa da PEA Rural na Força de Trabalho
Total – 1940-1990
Anos
1940
66,7
1950
60,5
1960
54,5
1970
44,6
1980
30,1
1985
28,5
1990
24,0
Fonte: FIBGE. In: ROMEIRO, 1994, p.127.
48
Nesse sentido, o processo de modernização da agricultura brasileira é
parte integrante do processo capitalista mais geral a que está submetido o
nosso país e que se exprime, contraditoriamente, pela riqueza e pela pobreza
que gera. E as propostas de reforma agrária burguesas, elaboradas antes de
1964, tiveram, em grande parte, seus objetivos superados pelo próprio
processo de modernização da agricultura, já que, mesmo sem a realização da
reforma agrária, criou-se um amplo mercado para a indústria nascente,
aumentou-se a produção e a produtividade e o grande capital se territorializou,
integrando
os
interesses
agrários
e
urbanos
nos
novos
complexos
agroindustriais.
De qualquer forma, o período de crescimento acelerado, também
chamado „milagre econômico’, teve sua decadência. Segundo Graziano da
Silva:
De 1974 em diante a economia brasileira deixa de apresentar os
elevados índices de crescimento do período anterior, e no triênio
1975/1977 começa a se delinear claramente outra situação de crise.
É muito interessante observar que em 1978 muitas coisas voltam a
ser discutidas, com o início de uma relativa abertura política no país.
E, entre elas, retoma-se com pleno vigor o debate sobre a questão
agrária, novamente dentro do contexto mais geral das crises do
sistema econômico capitalista (SILVA, 1980, p.9).
Assim, passado o período de auge do “milagre econômico” (1967/1973),
clarearam-se os seus frutos: de maneira geral, tinham privilegiado uma minoria
e penalizado os trabalhadores.
Ou seja, o silêncio foi imposto aos camponeses, mas as contradições da
realidade que serviram de base para as suas lutas não foram eliminadas. Ao
contrário, a modernização, empreendida na agricultura, impõe novas e
profundas transformações no campo, integrando a agricultura cada vez mais ao
circuito industrial e agravando as contradições presentes no campo. Como foi
colocado, a utilização intensiva de tecnologia poupadora de mão-de-obra e o
rebaixamento dos preços reais dos produtos, fruto da tecnificação da produção,
geraram um processo de empobrecimento gradativo dos pequenos produtores
rurais. Verifica-se um alto êxodo rural e uma reconcentração de terras,
associados a novas formas de exploração do homem do campo.
49
Por isso, embora as organizações que representassem os trabalhadores
rurais tenham sido esmagadas pela ditadura, a luta pela terra não cessou, em
especial nas regiões sul, norte e centro-oeste do País, sendo fortemente
apoiada por alas da Igreja Católica.
No início da década de 1960, a Igreja Católica criou as CEBs
(Comunidades Eclesiais de Base) que, já em meados da década de
1970, existiam em todo o país. Baseadas nos princípios da Teologia
da Libertação, elas se tornaram importantes espaços para os
trabalhadores rurais e urbanos se organizarem e lutarem contra as
injustiças e por seus direitos. Os teólogos da libertação fazem uma
releitura das Sagradas Escrituras da perspectiva dos oprimidos e
condenam o capitalismo, considerando-o um sistema anti-humano e
anti-cristão.
Em 1975, surgiu a CPT (Comissão Pastoral da Terra), também da
Igreja Católica, que, juntamente com as paróquias das periferias das
cidades e das comunidades rurais, passou a dar assistências aos
camponeses durante o regime militar. No início, a CPT esteve mais
voltada para os posseiros do Centro-Oeste e Norte. Mais tarde, com
a eclosão de conflitos pela terra em todo o país, ela se tornou uma
instituição de alcance nacional (MORISSAWA, 2001, p.99).
Dessa forma, apesar de todo o retrocesso que houve na construção da
organização camponesa, durante o período dos governos militares, a
intensificação das contradições provocou, no final dos anos 70, uma eclosão de
conflitos no campo, inaugurando um novo marco, a partir da redemocratização
política brasileira, na história da luta pela terra no Brasil, como veremos na
próxima seção.
As Questões Agrária e Agrícola a partir dos Anos 1980 – a mundialização
do capital e as transformações no meio rural
A partir do período de redemocratização, a questão agrária ganha um
novo e forte ímpeto, marcado pela retomada do debate político e acadêmico
sobre o tema e pela “reefervescência” dos movimentos sociais camponeses,
apesar da permanência da forte resistência dos latifundiários e de seus
representantes políticos. O debate, entretanto, renasce sob outras perspectivas
frente às novas transformações sociais. A predominância do capitalismo nas
relações sociais – questão altamente polêmica nas décadas anteriores – é
50
aceita praticamente de forma consensual. A redução do papel da pequena
produção nesse processo de desenvolvimento capitalista se dá, paralela e
contraditoriamente, ao mesmo tempo em que o trabalho familiar camponês
sofre um processo de revalorização, já que, como afirma Oliveira (1994), o
capital não expande de forma absoluta o trabalho assalariado, sua relação
típica, mas, em seu desenvolvimento contraditório, o próprio capital cria e se
utiliza de relações não capitalistas para sua própria (re) produção.
De
maneira geral, as décadas
de 1980
e 1990 marcam o
aprofundamento de uma série de tendências que vinham sendo delineadas,
desde o término do período militar, e que são passíveis de compreensão
apenas no interior do processo global de reestruturação capitalista, ou seja,
tendo em vista as novas situações impostas pelo processo de globalização e
pela hegemonia neoliberal. O meio rural, especificamente, vem passando, nas
últimas décadas, por transformações significativas, abrangendo novas
dinâmicas que vêm ocorrendo em nível planetário. Isso significa que a
agricultura, como parte integrante do processo produtivo, não está imune aos
efeitos dessas mudanças; ao contrário, vem sendo altamente atingida, em
diversas de suas fases, pela mundialização do capital.
Nesse olhar para além das fronteiras regionais, ancorado nas análises
de Flores e Silva (1994) e Ramon et alli (1995), destaca-se o papel central da
ciência e da tecnologia para o desenvolvimento da agricultura, assim como os
processos desiguais de desenvolvimento de ciência e tecnologia agropecuária
nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. A chamada
Revolução Verde, engendrada pela lógica da política externa dos EUA, e que
balizou os rumos da nossa modernização agrícola, alterou significativamente
as bases econômicas e sócio-técnicas da agricultura mundial.
Com relação à ciência e tecnologia agropecuária, esta era produzida
nos Centros Internacionais de Pesquisa Agrícola (CIPAs).
Localizados nas regiões de maior diversidade genética do planeta, os
CIPAs nasceram refletindo mais as características e os interesses da
agricultura dos países desenvolvidos do que dos países em
desenvolvimento (...). Foram os CIPAs que lideraram a difusão dos
pacotes tecnológicos da Revolução Verde, basicamente um „projeto
químico’ (...) que serviu principalmente para aumentar o mercado
americano de fertilizantes, pesticidas, máquinas agrícolas,
equipamentos de irrigação e outros equipamentos agrícolas
(FLORES & SILVA, 1994, p.25).
51
Tida por vários anos como uma possível resolução dos problemas da
fome, a Revolução Verde trouxe, na realidade, um agravamento das
desigualdades e da dependência tecnológica entre os países, além de acentuar
a deteriorização do meio ambiente. Atraiu para o setor capitais internacionais e
acentuou o interesse dos grandes proprietários pela exploração direta e pela
intensa mecanização, com a conseqüente expulsão de trabalhadores rurais,
parceiros e arrendatários, bem como o aumento das desigualdades de
condições de produção e produtividade, e de acesso aos circuitos de
financiamento e comercialização entre pequenos e grandes produtores,
acentuando a concentração de terras e a marginalização do campesinato. Tal
dinâmica vai desencadear, atualmente, como um de seus pilares fundamentais,
a globalização do sistema agroalimentar, ou seja, de seus processos de
produção e consumo, o que representa, fortemente, a inserção das
macromudanças desta virada de século no campo da agricultura.
Assim como produção flexível – a possibilidade de se produzir a
maioria das mercadorias com origem na agricultura em diferentes
localidades do mundo – tornou-se a palavra de ordem para os
produtores globais, consumo flexível – a existência de uma
multiplicidade de nichos de consumo – está se tornando o elemento
crítico das estratégias de globalização do consumo. Assim, a maioria
das mercadorias agrícolas são produzidas numa variedade de
localidades do planeta para distribuição e venda numa similar
variedade de localidades em todo o globo (FLORES & SILVA, 1994,
p.31,32).
Está claro que nesse processo, marcado, em termos de produção, de
acordo com Flores & Silva, pela necessidade de maior flexibilidade, de
investimento/adoção constantes de novas tecnologias e de maior mobilidade
de capital, tem-se, na realidade, uma ascensão sem precedentes das
multinacionais e um fortalecimento de organismos internacionais, como o FMI
(Fundo Monetário Internacional), bem como a criação de mecanismos
transnacionais, como o extinto GATT (General Agreement of Tarifs and Trade)
e a atual OMC (Organização Mundial do Comércio), que privilegiam
obviamente os países desenvolvidos, ou seja, aqueles que mais contribuem
com apoio financeiro e político para a criação e manutenção dessas
instituições.
52
Nessa conjuntura, estimou-se, segundo dados da FAO de 1980, que
17% da população dos países subdesenvolvidos estavam abaixo da taxa
mínima de nutrição, o que correspondia a 535 milhões de pessoas. E eis o
paradoxo: no Sul, o peso da agricultura na balança econômica é muito maior,
devido inclusive à menor intensidade da industrialização com relação aos
países do Norte, mas corresponde a um consumo consideravelmente menor de
calorias por habitante (RAMON et alli, 1995).
Nessa perspectiva, o avanço da biotecnologia, muito em voga nesta
virada de milênio, representa, ao menos por enquanto, um processo similar ao
da Revolução Verde, já que praticamente limitado às multinacionais, portanto,
ao capital privado internacional, e baseado na exploração da diversidade
genética encontrada, fundamentalmente, nos países em desenvolvimento,
reforçando as relações de desigualdade e de dependência entre os países no
atual cenário global. Tais considerações, tecidas de acordo com o debate
teórico empreendido pelos autores aqui utilizados, remetem para a afirmação
de que a agricultura permanece influenciando os projetos de sociedade,
intensificando, inclusive, a sua participação estratégica na economia das
nações e nas relações internacionais.
Vinculando-se a este processo global, observam-se novas tendências
desencadeadas pelo processo acelerado de modernização da agricultura
brasileira, como o aprofundamento de uma integração entre os capitais,
representado pela consolidação dos complexos agroindustriais (CAIs), aos
quais já fizemos referência na seção anterior, posto que já estão presentes na
cena histórica brasileira, com certa relevância, desde a década de 1970.
Entretanto, é nesta última década que os CAIs se apresentam como parte
decisiva no processo atual de reestruturação produtiva agrícola, inseridos
numa condução política global de reestruturação capitalista.
A constituição dos complexos agroindustriais faz com que o processo de
produzir ligado à agricultura torne-se cada vez mais dependente da produção
de outros setores da economia. De acordo com Sorj (1987), o CAI constitui-se
no conjunto formado pelos setores produtores de insumos e maquinarias
agrícolas, de transformação industrial dos produtos agropecuários e de
distribuição, e de comercialização e financiamento nas diversas fases do
processo. Nessa perspectiva, a dinâmica da agricultura passa a ser passível de
53
compreensão “a partir da dinâmica conjunta da indústria para a agricultura/
agricultura/ agroindústria, o que remete ao domínio do capital industrial e
financeiro e ao sistema global de acumulação” (KAGEYAMA, 1990, p.122,
grifos nossos).
Esse padrão mais recente de desenvolvimento da agricultura é marcado
profundamente pelo processo conhecido como territorialização do capital, em
que a penetração do capital financeiro, no setor agropecuário, atribui um novo
caráter à propriedade fundiária. O mercado de terras passa a ter papel de
destaque nesse processo devido à possibilidade de ganhos especulativos com
a propriedade da terra, tornando-se um ativo alternativo para o grande capital.
Tal processo liga-se ao movimento dinâmico da economia que, atualmente,
tem como uma de suas grandes marcas a fusão de capitais em torno de
determinados ramos, inclusive – e com força considerável –, do agropecuário.
A penetração maciça das multinacionais agroindustriais no Brasil,
fundamentalmente a partir da década de 1970, ao passo em que simboliza
esse processo, representa, dentro dos limites da concorrência oligopólica, o
acirramento da luta entre esses grandes conglomerados pelo mercado
brasileiro. As características que o desenvolvimento do CAI assumiu, de
maneira geral, são as mesmas verificáveis nos outros ramos da produção
industrial no Brasil: “alto grau de concentração, concorrência oligopólica,
controle pelo capital monopólico estrangeiro e nacional, com a diferença de ser
um setor onde a empresa estatal geralmente não ocupa um lugar importante”
(SORJ, 1987, p.32). Segundo estudo apresentado por Sorj, há, nesse processo
de integração, uma tendência à subordinação do produtor rural aos esquemas
de controle da produção agrícola colocados pelas empresas industriais e de
comercialização, mesmo que a produção seja realizada em estabelecimento
próprio, através de mecanismos financeiros e controle técnico da produção,
que marcam a transferência dos excedentes do setor agrícola para o capital
comercial e industrial. Nesse contexto, a forte dependência vertical do produtor
em relação à agroindústria dificulta, ainda mais – somada às adversidades já
conhecidas –, a possibilidade dos produtores de se organizarem em
cooperativas ou associações com certa autonomia e capacidade econômica
real.
54
Tal fenômeno relaciona-se, inclusive, ao que Belik (1994) chama de
consolidação do toyotismo no sistema agroalimentar, que marca uma mudança
radical de uma forma de produção rígida para uma produção flexível. Essa
mudança se traduz num processo de reestruturação produtiva baseado mais
em inovações de cunho organizacional que tecnológico e emerge através de
fortes elos da cadeia agroalimentar com atividades de distribuição e logística, já
que o conhecimento do mercado e domínio dos fluxos de venda tornam-se
elemento essencial para uma produção flexível vinculada a um consumo
segmentado, num esquema “just-in-time”.
Esses novos esquemas de integração, baseados na flexibilização, têm
como importantes estratégias a terceirização e a formação de parcerias, numa
tentativa de redução de custos e acúmulo de forças num cenário de
competição internacional, o que coloca a necessidade da aceleração da
internacionalização dos grupos agroalimentares nacionais:
Nos anos 90, com a formação do MERCOSUL, intensifica-se esta
internacionalização através de parcerias, joint-ventures e franchising
entre empresas nacionais brasileiras e outras do Cone Sul. (...) Por
outro lado, os maiores envolvidos nesse tipo de transação ainda são
„firmas multinacionais que, na maioria dos casos, criam ou expandem
parcerias
comerciais
entre
subsidiárias
ou
integram-se
verticalmente’. Nesse particular, como era de se esperar, os acordos
de livre comércio tem beneficiado mais empresas de fora da região
que os próprios capitais nacionais (BELIK, 1994, p.78).
Quanto ao financiamento da produção agrícola, na década de 1990,
Belik e Paulillo (2001) demonstram que os mecanismos de crédito tradicional
subsidiado, ligado ao setor público, decisivos no processo de modernização
dos anos 1960 e 1970,
foram sendo esvaziados e preenchidos de maneira gradativa pelo
crédito privado, proveniente da indústria, de trading companies e de
outros agentes. Comprova-se que os setores mais bem organizados
lograram construir mecanismos de apoio e financiamento que não
passam diretamente pela regulação do Estado (BELIK & PAULILLO,
2001, p. 96).
Isso significa que a crescente perda de regulação estatal, iniciada já no
final dos anos 1970 e intensificada nos anos 1990, ligada fundamentalmente à
abertura comercial com a queda de barreiras à importação, bem como à
55
globalização das operações financeiras – políticas próprias do modelo de
desenvolvimento econômico neoliberal adotado no país –, beneficiou
diretamente, e somente, aqueles segmentos que conseguiram criar novas
formas de financiamento não dependentes do Estado para o desenvolvimento
de seus negócios, quais sejam, aqueles com formas de governança privada e
alavancados principalmente por grupos de interesses não agrários, vinculados
aos segmentos financeiro e industrial. Em outras palavras, os benefícios desse
processo ficaram concentrados em um grupo altamente reduzido de
agricultores que conseguiram acumular recursos utilizados para a implantação
de novas tecnologias – inclusive beneficiários do financiamento subsidiado
estatal de décadas anteriores – e hoje são capazes de sobreviver
independentemente do crédito rural. “Nesse novo sistema de financiamento, o
objetivo é o de atendimento à agricultura moderna („eficiente’), isto é, para
aquelas culturas que apresentam algum tipo de integração com um
encadeamento agroindustrial ou estão inseridas nos corredores de exportação”
(BELIK & PAULILLO, 2001, p. 108).
É no bojo desse processo que as agroindústrias se sobrepõem, através
do lançamento de pacotes de integração, formando-se campos organizacionais
nos quais as novas formas privadas de financiamento atuam como ferramentas
de controle e dominação. Essas formas atuais de organização podem ser
vislumbradas através do que os autores chamam de subsistemas, ligados a
rotinas especificamente regionais, onde se verifica claramente a introdução das
novas formas de financiamento privado.
A mudança na orientação do financiamento para a agricultura
brasileira salienta a clara separação entre a agricultura empresarial,
articulada para frente junto à indústria, exportadores e distribuição e
a pequena agricultura (familiar, na maioria das vezes) amparada
apenas pelos mecanismos „sociais’ de sustentação. Fica evidente
que, com a perda do poder de regulação por parte do Estado,
expresso através da administração dos velhos mecanismos do
crédito rural, a distância entre essas duas agriculturas só tende a
aumentar no futuro (BELIK & PAULILLO, 2001, p. 118, grifos
nossos).
É importante atentar para o fato de que, no entanto, o Estado não deixa
de ser figura central nesse processo de reestruturação produtiva agrícola,
como
nos
apresentam
os
apologistas
da
teoria
do
Estado-mínimo.
56
Contrariamente, como nos mostra Sorj, o Estado coloca-se como regulador e
incentivador da dinâmica de expansão agrícola e de desenvolvimento do
complexo agroindustrial, inserida dentro do contexto dos processos de
acumulação do conjunto da economia. Segundo o autor, sua forma de
intervenção é múltipla: ora na regulação de preços, ora na distribuição de
créditos e subsídios; ora no favorecimento ao desenvolvimento
das
cooperativas, ora no apoio à expansão das multinacionais; ora subsidiando o
capital para permitir a criação de complexos agroindustriais, ora não praticando
nenhuma intervenção (SORJ, 1987).
Todo esse processo de reestruturação agrícola traduz-se no acirramento
das contradições engendradas pelo desenvolvimento capitalista, expresso, nos
termos utilizados por Oliveira, pelas duas faces da modernidade no campo: o
agronegócio e a barbárie. O tão propalado agronegócio, que se apresenta
como representante de um setor competitivo do campo, responsável pelas
exportações de commodities, que resultam num “espetacular” superávit na
balança comercial, simboliza a mundialização da economia brasileira.
O Brasil do campo moderno, dessa forma, vai transformando a
agricultura em um negócio rentável regulado pelo lucro e pelo
mercado mundial. Agronegócio é sinônimo de produção para o
mundo. Para o mercado mundial o país exportou: papel e celulose,
carnes; o complexo soja como gostam de nominá-lo; madeira e
suas obras; sucos de frutas; algodão e fibras têxteis vegetais;
frutas, hortaliças e preparações. Mas quis a ironia que o Brasil
tivesse que importar arroz, algodão e milho, além, evidentemente,
do trigo. Assim, o mesmo Brasil moderno do agronegócio que
exporta, tem que importar arroz e milho (alimentos básicos dos
trabalhadores brasileiros) e teve que importar também algodão,
matéria-prima industrial de larga possibilidade de produção no país.
Mas o mercado é implacável. Ele cada vez mais não se regula pelo
nacional. Mundializado ele mundializa o nacional. Destrói suas
bases e lança o país nas teias da rede capitalista mundial. Assim,
ele se torna moderno, logo destituído da lógica que faz dos
brasileiros um povo diferente no mundo. Não se trata de exaltar fora
de hora o nacionalismo, mas trata-se de na lógica do mercado olhar
a balança comercial e seus efeitos para a nação. À medida que o
país exporta determinados produtos obriga-se a importar outros.
(...) Quando observa-se a pauta de exportações e importações do
Brasil e das regiões ou estados, verifica-se esta lógica perversa do
mercado. O país produz e exporta a comida que falta nos pratos da
maioria dos trabalhadores brasileiros (OLIVEIRA, 2004, p.13 e 14).
57
E acrescenta:
Assim, o agronegócio moderniza o país, já não dependemos mais
apenas do trigo, agora também do leite. Está-se pois, diante de
uma terrível contradição. Quem produz, produz para quem paga
mais, não importa onde ele esteja na face do planeta. Logo, a
volúpia dos que seguem o agronegócio vai deixando o país
vulnerável no que se refere à soberania alimentar. Como as
commodities garantem saldo na balança comercial o Estado
financia mais, as ditas cujas. Então, mais agricultores capitalistas
vão tentar produzi-las. Dessa forma, produz-se o saldo da balança
comercial que vai pagar os juros da dívida externa. É o cachorro
correndo atrás do próprio rabo. Ou como preferem os
companheiros, é o neoliberalismo em sua plena volúpia (OLIVEIRA,
2004, p.14 e 15).
Os altos níveis de competitividade, produtividade e emprego tecnológico
do agronegócio brasileiro convivem e, ao mesmo tempo, reforçam, as faces da
“barbárie” no campo: o ataque à soberania alimentar, a degradação ambiental,
e a pobreza. Conseqüentemente, intensificam-se os conflitos.
Grosso modo, a maneira como o Brasil conseguiu aumentar sua
produção agropecuária tem causado impactos altamente negativos sobre o
nível de renda e de emprego da sua população rural e, indiretamente, da
população urbana. Isso
posto,
é
fato
que
todo
esse
processo
de
reestruturação agrícola traz em si, paralelamente, outras tendências ligadas à
questão agrária, que também se intensificam no pós-regime militar, com
especial configuração nos anos 1990, como a crescente lumpenização do
homem do campo que, expulso da terra, vivencia a degradação de suas
condições sociais e humanas, expressa nos crescentes índices de migrações e
subemprego, além da mendicância, prostituição e criminalidade das metrópoles
do nosso país.
Como sugere Graziano da Silva, em 1980, “a força com que a questão
agrária brasileira ressurge hoje não advém apenas da maior liberdade com que
podemos discuti-la. Mas também do fato de que ela vem sendo agravada pelo
modo como têm se expandido as relações capitalistas de produção no campo”
(SILVA, 1980, p.11).
Isso decorre do fato de que o sentido das transformações capitalistas é
justamente elevar a produtividade do trabalho, tornar a produção mais intensiva
sob o controle do capital, o que só ocorre através do aumento da jornada e do
58
ritmo de trabalho das pessoas, e intensificando, no caso rural, a produção e a
produtividade
agropecuária.
Expressam-se,
assim,
no
desenvolvimento
contraditório e desigual do capitalismo no campo, “as duas faces da mesma
moeda. De um lado, está o agronegócio e sua roupagem da modernidade. De
outro, está o campo em conflito” (OLIVEIRA, 2004, p.6).
Os Governos Democráticos do Pós-Regime Militar e a Reforma Agrária
Mesmo com todas as características nefastas da situação agrária no
pós-regime militar, vistas claramente através do aumento da violência no
campo, da concentração fundiária e da pobreza rural, as condições para a
realização de uma reforma agrária ainda se mostraram, ao menos no campo
institucional, bastante desfavoráveis. O poder executivo e o legislativo contam,
desde então, e ainda hoje, com uma forte presença de proprietários de terra
que constituem as bancadas ruralistas. O poder judiciário sofre de uma relativa
carência em formação em Direito Agrário, além de estar tradicionalmente ligado
ao conservadorismo e ao poder local. As forças armadas e militares mantêm
seu posicionamento de guardiãs da segurança e tuteladoras da propriedade
privada e do processo fundiário. Grande parte da imprensa e dos meios de
comunicação ainda é ligada a grupos econômicos com fortes interesses
fundiários, mantendo uma nítida postura conservadora. Ao longo dos governos
subseqüentes ao período militar, a reforma agrária até esteve presente nos
programas de gestão, mas não foi muito além.
Em 1985, com a posse do presidente civil José Sarney, após 21 anos de
governos militares, cria-se o MIRAD – Ministério da Reforma e do
Desenvolvimento Agrário, ao qual passa a subordinar-se o INCRA. Este
ministério desenvolve o chamado “Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária
da Nova República” – o 1o PNRA.
O 1o PNRA, porém, não foi o primeiro da história do Brasil – já tinham
sido decretados ao menos outros dois com o mesmo nome: o PNRA de 1966, e
o PNRA de 1968, ambos enfatizando a tributação e a colonização, sem realizar
nada próximo a uma real reforma agrária. Certamente o de 1985 foi o que teve
maior destaque:
59
A grande diferença com planos anteriores é que este escolheu a
„desapropriação por interesse social’ como instrumento principal a
ser usado no processo de reforma agrária. Este instrumento, previsto
na nossa Constituição, dá ao Estado o direito não só de desapropriar
terras que não estejam cumprindo a sua função social, como também
de indenizar o valor dessas terras em TDA (Títulos da Dívida
Agrária), pagando em dinheiro tão somente as benfeitorias (SILVA,
1985, p.76)2.
Sacramentado pelo Decreto nº 91.766, de 10 de outubro de 1985, sob a
coordenação do MIRAD, o Primeiro PNRA da Nova República foi elaborado
com base no Estatuto da Terra, que estabelece que a Reforma Agrária “será
realizada por meio de planos periódicos, nacionais e regionais, com prazos e
objetivos determinados, de acordo com projetos específicos” (PINHEIRO, 1999,
p.16).
O objetivo geral do PNRA era descrito como sendo o de alterar a
estrutura fundiária do país, de forma a eliminar tanto o latifúndio quanto o
minifúndio, assegurando a realização sócio-econômica do trabalhador rural.
As metas do PNRA partem das “Estatísticas Cadastrais” de 1978 e das
“Estatísticas Tributárias” de 1984, que apontam um contingente de 10,6
milhões de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra (minifundistas).
Desses beneficiários potenciais, estima-se que 3,5 milhões estão ou
serão retidos em seus empregos pela dinâmica da agricultura
empresarial brasileira, como assalariados permanentes ou
temporários (...)
Dessa forma, os beneficiários potenciais da Reforma Agrária seriam
cerca de 7,1 milhões de trabalhadores rurais. A proposta do
MIRAD/INCRA prevê o assentamento desses trabalhadores em 15
anos, ou seja, até o ano 2000 (SILVA, 1985, p.78).
Como veremos posteriormente, tanto o objetivo (alterar a estrutura
fundiária), quanto às metas, não chegaram nem perto de se realizar
efetivamente.
Somente nos primeiros cinco anos, as metas do PNRA eram de assentar
1 milhão e 400 mil famílias. Entretanto, o governo Sarney, que permaneceu até
1990, deixou como saldo um número extremamente reduzido de projetos de
A título de esclarecimento, cumpre sua 'função social' o imóvel rural que, simultaneamente,
seja produtivo, utilize adequadamente os recursos naturais e preserve o meio ambiente,
observe a legislação trabalhista, e promova a exploração de modo a favorecer o bem estar dos
proprietários e dos trabalhadores.
2
60
reforma agrária: após 5 anos, foram assentadas apenas 90.000 famílias,
menos de 10% da meta original (tabela 1.7).
Tabela 1.7: Reforma Agrária no Governo Sarney, segundo o 1o PNRA –
1985/1990
METAS PROGRAMADAS
METAS EXECUTADAS
1.400.000
43.000.000
90.000
4.500.000
Assentamento (nº famílias)
Desapropriação (área em ha)
Fonte: INCRA. In: PINTO, 1995, p.75.
O governo Collor (1990/92) apresentou como proposta o assentamento
de 500.000 famílias. Entretanto, frente a uma política de desmantelamento da
administração pública, acelera o processo de desgaste, ao qual já vinha se
submetendo o INCRA, e assenta um número inferior a 30 mil famílias
(OLIVEIRA, 2001).
Já o governo Itamar (1992/94) chegou a aprovar um Programa
Emergencial para o assentamento de 80.000 famílias, das quais, entretanto,
apenas 23.000 foram atendidas com a implantação de 152 projetos numa área
de 1.228.999 ha (PINTO, 1995, p.76).
Tabela 1.8: Brasil – Dados sobre os Assentamentos Rurais (até 1994)
Tipos de Assentamento
De reforma agrária (gov. federal)
De ações fundiárias estaduais
De colonizações (gov. federal)
TOTAL
Nº
Área (milhões
ha)
Nº de
Famílias
850
726
49
1.626
8,1
5,0
14,1
27,2
143.514
122.114
85.181
350.836
Fonte: INCRA. In: PINTO, 1995, p.77.
A elaboração da Constituição de 1988 também foi palco para inúmeras
polêmicas que rondam a questão agrária, ocorrendo intensa mobilização das
forças interessadas, destacando-se as atividades desenvolvidas pela UDR
(União Democrática Ruralista), que articulava os setores patronais e
conservadores da sociedade e conseguiu, através de variadas manobras, fazer
prevalecer o seu ponto de vista.
61
Para autores como José Gomes da Silva (1994), a Constituição
Brasileira de 1988 representou um retrocesso em relação ao que já existia
sobre política agrária, constituindo-se a pior carta para os trabalhadores rurais
desde 1946.
Entre os recuos apresentados pelo autor, destacam-se:
– o afrouxamento do instituto de desapropriação por interesse social,
rebaixando de 100 para 50 ha o limite do instituto do usucapião, mantendo
praticamente inalterado o limite para alienação ou concessão de terras
públicas;
– a impossibilidade de desapropriação por interesse para fins de
reforma agrária em todas as chamadas propriedades produtivas.
Compartilhando da mesma idéia, Pinto afirma:
Tudo o que se incorporou à Constituição em termos da função social
da propriedade rural e desapropriação por interesse social foi
anulado pela introdução do inciso II do artigo 185, que diz que „a
propriedade produtiva’ é insuscetível de desapropriação para fins de
reforma agrária, não definindo o que entende por propriedade
produtiva. Tal dispositivo, como se previa, tem dado margem a
infindáveis disputas judiciais (PINTO, 1995, p.75).
Dentre os poucos avanços da Constituição de 1988 estariam a
inauguração de um capítulo especial dedicado à reforma agrária, a explicitação
da função social e a determinação de uma reavaliação de todos os incentivos
fiscais e de uma demarcação das terras públicas no prazo de cinco anos.
Entretanto, o saldo é considerado altamente negativo. Nas palavras de
Gomes da Silva, sobre a referida Constituição, considera-se que:
os trabalhadores rurais pagaram o preço de alguns avanços sociais
contidos na Carta de 1988. A pobreza de conteúdo, as contradições
do texto, os recuos notórios e o destaque ao supérfluo, constituem
algumas das marcas negativas do Capítulo III do Título VII do texto
constitucional que pretendeu regular as relações homem/terra no
Brasil” (SILVA, 1994, p.177).
Em 1993 foi aprovada a Lei Agrária, que reclassificou as propriedades
de terra no Brasil, em pequenas propriedades (até 5 módulos), médias
62
propriedades (entre 5 e 15 módulos) e grandes propriedades (maiores que 15
módulos)3.
O objetivo da Lei Agrária era, dessa forma, definir os principais conceitos
necessários à implementação da Reforma Agrária prevista na Constituição.
Esta colocou como imóveis passíveis de desapropriação todos aqueles que
não cumprirem a função social, exceto a pequena e a média propriedade,
desde que seu proprietário não possua outra.
Em
outras
palavras,
seriam
“sacrificadas”
apenas
as
grandes
propriedades que não atingissem determinado grau de produtividade, atenta à
sua 'função social', o que é veementemente criticado por autores como Stédile:
Independente do conceito de vernáculo e das classificações legais,
devemos considerar que são latifúndios todas as grandes
propriedades privadas de terras que existem em nosso país, as
quais, por se apropriar de um bem da natureza, cercar, impor um
falso conceito de direito absoluto da propriedade, e subjugar-se
apenas à vontade do seu proprietário legal, se caracteriza como um
pecado, na forma de organização dos bens da natureza, em nossa
sociedade (STÉDILE, 1999, p.166,167).
De qualquer forma, a Lei Agrária de 1993 vem servindo, na falta de
dispositivos legais mais contundentes e coerentes, como embasamento jurídico
relevante para a conquista de desapropriações de terras.
O Governo FHC na Questão da Reforma Agrária
O Governo de Fernando Henrique Cardoso, de 1994 a 2002,
caracterizou-se
por
uma
orientação
marcadamente
neoliberal
na
implementação da política econômica, fundamentada em elementos que
provocaram o aumento substancial da dependência externa do país, quais
sejam:
Eliminação praticamente absoluta das restrições às importações
(inclusive de produtos agrícolas); abertura para a entrada maciça do
capital estrangeiro, particularmente os de natureza especulativa,
provocando forte vulnerabilidade; crescimento da dívida externa,
O módulo rural representa o tamanho mínimo de terra que uma família necessita para o seu
sustento e progresso, sendo variável regionalmente.
3
63
apesar do pagamento de juros crescentes; entrega do patrimônio
nacional ao capital estrangeiro através do processo de privatização.
Somados, estes processos se traduzem num aumento da
vulnerabilidade brasileira frente às grandes empresas transnacionais
e às principais potências estrangeiras, particularmente, os EUA
(ALENTEJANO, 2002, p.1).
De maneira geral, verificava-se a tentativa de enquadramento da política
agrária do governo FHC às determinações do FMI, seguindo as indicações do
chamado Consenso de Washington. Nessa mesma perspectiva, de acordo com
Gerson Teixeira, que empreende uma análise sobre os primeiros 4 anos do
governo FHC, foram sendo implementados, no Brasil, os procedimentos
básicos da política agrícola neoliberal:
a diretriz, sem relativizações e compensações, de inserir a agricultura
no processo de plena liberalização comercial, tem resultado na forte
aceleração da transferência, para o plano externo, dos determinantes
de sua dinâmica. (...)
Significa que a desestatização da política agrícola, em curso, retrata,
na verdade, um processo de desnacionalização do poder de
regulação
sobre
a
economia
agrícola
brasileira
que,
progressivamente, passa a subordinar-se, de forma direta, aos
interesses dos países ricos e dos grandes grupos transnacionais que
mono/oligopolizam a produção e o comércio dos insumos e produtos
(TEIXEIRA, 1997, p.1,2).
Conforme Stédile, foi através deste modelo de produção agrícola
implementado que, de forma geral, “as grandes empresas internacionais e
financeiras chegaram na agricultura e tomaram conta do nosso comércio
agrícola” (STÉDILE, 2003, p.5):
Quem controla o comércio do milho no Brasil é a Cargill, a Bunge e a
Monsanto; no caso da soja é praticamente só a Bunge e a Monsanto;
e assim por diante. Das grandes agroindústrias brasileiras só sobrou
a Sadia, todas as outras foram desnacionalizadas: Chapecó,
Perdigão, Arisco. Aquele leite Itambé, de Minas Gerais, que era
famoso, um patrimônio da cultura mineira, não é mais nosso, a
Cooperativa Batavo dos produtores do Paraná foi desnacionalizada
para a Parmalat... Enfim, há muitos exemplos de como o Brasil
entregou a agricultura para as grandes empresas estrangeiras
(STÉDILE, 2003, p.5).
A política agrícola voltou-se, assim, prioritariamente, para a promoção
das exportações, com apoio diferencial para aqueles produtos com melhor
mercado internacional, e com uma política de importação dos demais, em
64
detrimento de um apoio efetivo à agricultura familiar. Caso exemplar deste
processo refere-se às linhas de crédito subsidiadas. Conforme cálculos do
economista Fernando Homem de Mello, “comparando-se os custos de
financiamento e a evolução da inflação, observamos que a taxa de juros para
os agricultores familiares que era 20% inferior à inflação em 1995 passou a ser
260% maior em 1998. Além disso, a oferta de crédito tem diminuído”
(ALENTEJANO, 2002, p.1).
Este direcionamento político do governo FHC trouxe sérios obstáculos
ao processo de reforma agrária, ainda que esta tenha sido colocada como
prioridade em seu plano de ação desde o 1o mandato. Na realidade, o governo
seguiu um percurso radicalmente antidemocrático, através da política agrícola
implementada, e da promoção, através de ações extemporâneas que desafiam
as lógicas política e econômica, de iniciativas celulares e restritas de
assentamentos rurais. As áreas selecionadas, em sua grande maioria,
configuravam-se em ambiente de conflito e luta pela terra, onde os
trabalhadores estavam coletivamente organizados em movimentos sociais,
segundo as informações do próprio governo:
Das 62.044 famílias assentadas, 45.471 estavam em áreas de
conflito (...). Dessas famílias assentadas em áreas de conflito, 27.453
eram posseiros e 18.018, acampados – grupos de pessoas que não
têm acesso à terra e permanecem dentro de uma propriedade rural
ou em suas redondezas, à beira das estradas, em situação provisória
e precária, mas organizados pelos movimentos sociais e vivendo de
forma coletiva (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1997, p.3).
Em função das pressões exercidas pelas entidades representativas dos
trabalhadores rurais e dos movimentos sociais organizados, o governo federal
instituiu o Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária que,
posteriormente, transformou-se em Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao
qual o INCRA passou a ser vinculado. Criou também três programas centrais
que, de acordo com os documentos oficiais, visavam garantir a sobrevivência
da pequena agricultura. São eles: o PRONAF – Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar; o PROGER RURAL – Programa de
Geração de Emprego e Renda Rural; a Previdência Rural. Desses, o PRONAF,
65
institucionalizado em 1996, foi o que teve maior repercussão, e sobre o qual
detalharemos um pouco mais.
De acordo com documentos fornecidos pelo INCRA, o “PRONAF é um
programa de apoio ao desenvolvimento rural, a partir do fortalecimento da
agricultura familiar, como segmento gerador de postos de trabalho e renda. O
programa é executado de forma descentralizada e tem como protagonistas os
agricultores familiares e suas organizações” (INCRA, 2000, p.1).
De acordo com a análise feita por Teixeira (1997), o PRONAF constitui,
na realidade, uma medida compensatória, lançada no bojo das medidas para o
financiamento da safra 1996/97. Muitos problemas foram detectados na
execução do programa, dentre os quais: apenas pouco mais de 50% dos
recursos prometidos (R$1 bilhão) para o ano de 1996 -
que já eram
insuficientes – foram investidos (R$570 milhões); os financiamentos de custeio
com recursos do programa – divulgados para a opinião pública como um
esforço do governo em direcionar linha favorecida de empréstimos para a
agricultura familiar – apresentaram encargos totais muito superiores a todas as
taxas que aferem o processo inflacionário; o posicionamento da maioria dos
próprios bancos oficiais na execução dos programas que, além de
descumprirem muitas de suas regras, só financiam os produtores integrados a
empresas agroindustriais, ou a cooperativas por elas controladas. “Quer dizer,
além de um evidente desvio de finalidade por estimular a forma mais moderna
de exploração da pequena produção, os recursos do PRONAF vêm, na
verdade,
servindo
para
desobrigar
as
empresas
agroindustriais
do
financiamento dos seus „produtores terceirizados’. Um belo presente!”
(TEIXEIRA, 1997, p.3).
Outro documento – do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça
no Campo – divulga, baseado em estudos de especialistas do próprio governo,
como o do professor Guilherme Dias, dados que atestam as nefastas
conseqüências geradas pelo modelo agrícola implementado pelo governo FHC:
Nos últimos anos, 900.000 pequenas propriedades, com menos de
100 hectares, foram à falência. Das 700 mil propriedades do setor
PATRONAL, apenas 88 mil estão se viabilizando. Dos 4 milhões de
agricultores familiares, apenas 700 mil terão viabilidade. Há um
empobrecimento generalizado e na média, nenhuma propriedade até
50 hectares consegue ter uma renda mensal superior a um salário
66
mínimo. Dois milhões de assalariados rurais perderam seu trabalho.
O crédito rural que atingia, na década de 80, aproximadamente 18
bilhões de dólares anuais, agora se limita a 8 bilhões de reais. E
continua cada vez mais escasso e longe dos agricultores familiares.
A produção de grãos está estagnada, há dez anos, na faixa de 80
milhões de toneladas (FÓRUM NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA
E JUSTIÇA NO CAMPO, 2000, p.1).
De maneira geral, o governo FHC buscou implementar, nesses oito anos
de governo, o programa que denominou “Novo Mundo Rural”, no qual
reconhece a relevância dos pequenos agricultores para o desenvolvimento do
campo e cria uma série de medidas para tratar da questão agrária. De acordo
com Fernandes, entretanto,
essas políticas têm o capital e o mercado como principais
referências, de modo que procura destituir de sentido as formas
históricas de luta dos trabalhadores. A luta pela terra, que tem como
princípio o enfrentamento ao capital, defronta-se com esse programa,
por meio do qual pretende convencer os pequenos agricultores e os
sem-terra a aceitarem uma política em que a integração ao capital
seria a melhor forma de amenizar os efeitos da questão agrária
(FERNANDES, 2001, p.21).
Acordado com essa perspectiva, em março de 1999, o Governo Federal
lançou o documento “Agricultura Familiar, Reforma Agrária e Desenvolvimento
Local para um Novo Mundo Rural”, alvo posterior de uma série de críticas à
política agrícola implementada pelo governo FHC. Alentejano (2000) aponta,
por exemplo, para o fato de que o documento associa a importância da
agricultura familiar e o desenvolvimento sustentável como complementares,
mas insere, no centro da questão, a visão liberal de eficiência econômica,
baseada
numa
ótica
produtivista
excludente
e
numa
concepção
mercadocêntrica que se reflete na acentuada preocupação de modernização
técnica e desenvolvimento da capacidade de gestão. Em outras palavras, os
moldes tradicionais do padrão tecnológico da Revolução Verde permanecem
nos projetos governamentais, inclusive para os agricultores familiares que
forem incluídos no programa, mesmo frente às severas críticas relativas ao seu
caráter social e ambientalmente danoso, além do alto custo econômico:
muito provavelmente, o resultado será a reprodução de processos
característicos desse modelo como: tendência a concentração da
propriedade, aumento crescente de custos, redução da produtividade
67
a longo prazo, redução do volume de mão de obra empregado,
favorecendo o êxodo rural, a contaminação de solos, lençóis
freáticos, alimentos e agricultores, ou seja, tudo, menos
desenvolvimento sustentável (ALENTEJANO, 2000, p. 90).
Além disso, as propostas de modernização apresentadas no documento
voltam-se para aquela parcela de agricultores familiares considerados em
situação intermediária, ou seja, possuem um caráter estruturalmente
excludente. Assim, mostra-nos Alentejano (2000), o conjunto da agricultura
familiar do Brasil é trabalhada junto à proposta do negócio rural, seguindo a
lógica do mercado, o que é um contra-senso, posto que exclui uma ampla
gama de pequenos produtores, já que a realidade do campo é muito mais a da
miséria dos agricultores familiares e da especulação dos grandes proprietários
do que a da modernidade do negócio rural. Aliás, o próprio paradigma teórico
da agricultura familiar, que tem se sobressaído nos estudos contemporâneos
em detrimento do paradigma teórico da agricultura camponesa, vincula-se à
tese de que esta deve estar inserida na lógica do desenvolvimento capitalista.
O Banco da Terra, criado no 2o mandato de FHC, é símbolo desse
processo. De acordo com Alentejano, constituía um mecanismo de compra e
venda de terras para fins de reforma agrária. No entanto, seu processo de
arrecadação de terras e seleção das famílias era descentralizado, ficando a
cargo dos municípios, fortalecendo o poder das elites locais e dificultando a
pressão popular. O Banco da Terra representa a afirmação da reforma agrária
de mercado como mecanismo para distribuir terra no campo, acordada na
perspectiva da qualificação para a disputa de mercado como saída para a
agricultura familiar. Aliás, conforme Alentejano, os mecanismos de compra de
terras, por vezes, acabam por premiar os interesses especulativos,
transformando o INCRA, num momento em que o mercado de terras está
desaquecido, em “agente fundamental de valorização da propriedade fundiária
no
país,
transferindo
recursos
públicos
para
grandes
empresas
e
especuladores” (ALENTEJANO, 2002, p.3).
Conforme depoimento de um membro do movimento sindical dos
trabalhadores rurais mineiro:
68
Quando o governo passado implantou o sistema Banco da Terra, foi outro sistema,
infelizmente, outro projeto, simplesmente pra desmobilizar e desarticular os
trabalhadores, da qual ele acabou desarticulando, e muito. E no entanto os
trabalhadores hoje ta lá jogado no... não vamo dizer tá jogado no mato, mas está lá
dentro dum pedacinho de terra que não tem condição de sobrevivência de acordo com
o projeto Banco da Terra. Porque a condição de trabalhar é pouca... Muitas das vezes
é chamado filho sem pai e sem mãe. E a partir da hora que os trabalhadores dentro
das terras da qual super faturou o valor da terra, das terras, praticamente dobraram o
valor, ficou muito bom pro latifúndio, pra valorizar suas terras, e com isso pôs o
trabalhador lá dentro sem nenhuma condição financeira, sem nenhuma condição é...
técnica, a ponto de que vários trabalhadores que tão lá, e eu tenho várias pessoas que
eu conheço que tão esse sistema e que infelizmente tão lá meio sem saber o caminho
a seguir (diretor da FETAEMG, entrevistado em junho de 2003).
De forma geral, especialmente em seu 2o mandato, o governo FHC
adotou, na prática, uma política de enfrentamento aos movimentos sociais
rurais, em especial contra o MST. Através de tentativas claras de conter o
avanço da organização dos trabalhadores rurais sem-terra – através, por
exemplo, da possibilidade de assentamento de famílias não organizadas via
correio, da impossibilidade da desapropriação em terras ocupadas, do
enquadramento de vários líderes em processos de formação de quadrilha,
entre outras medidas de criminalização das ações dos movimentos –, as ações
governistas da era FHC foram tomadas no sentido de descentralizar a reforma
agrária, transferindo boa parte das responsabilidades para o poder municipal –
haja vista o PRONAF –, ao mesmo tempo em que reforçava a repressão aos
movimentos.
Por sua vez, os assentamentos rurais são, em grande maioria,
promovidos em áreas de conflito, onde existe forte pressão dos movimentos
sociais organizados. As desapropriações não são fruto de um processo geral e
estrategicamente programado. Não há um planejamento em nível nacional, que
vise alterar definitivamente a estrutura fundiária do país, democratizando o
acesso à terra. Ao contrário, a política agrícola implementada caminha em
outras direções. E a questão agrária foi tratada pelo governo FHC de forma
pontual, parcial, regionalmente localizada. Tal governo, que se "orgulha" do
fato de ter assentado o maior número de famílias que todos os outros (e
69
realmente o fez, o que não significa ter sido muito frente ao histórico brasileiro
e à intensa expulsão de trabalhadores rurais, em contraposição), “consegue”
manter “intocada” a injusta, desigual e excludente distribuição de terras e
rendas do nosso país, se não, agravando-a ainda mais. Aliás, há que se
considerar que o total de áreas desapropriadas corresponde a apenas “7% de
todas as terras ociosas do país, segundo o próprio INCRA, e somente 2,7% de
todas as terras em poder do latifúndio no Brasil” (ALENTEJANO, 2002, p.2).
Além disso, boa parte dos assentamentos rurais criados foi fruto de um
processo de regularização fundiária, ou seja, “não se trata de desapropriação
de terras para assentar pessoas que não tenham acesso a esta, mas
concessão de títulos para posseiros que há muito ocupavam tais áreas”
(ALENTEJANO, 2002, p.2). O governo, ao fim do mandato, divulgou que tinha
assentado 580.000 famílias – número esse bastante questionado, uma vez que
cerca de 67% delas na região da Amazônia Legal, “ou seja, foi um projeto de
colonização de terras públicas, e, no caso das desapropriadas, o grande
benefício foi para o fazendeiro desapropriado, que era grileiro de uma terra
pública e ganhou um dinheirão para devolver ao governo a terra que tinha
grilado” (STÉDILE, 2003, p.6).
Acrescente-se o fato de que a criação dos assentamentos não se faz
acompanhada do necessário apoio para a consolidação destes, no que se
refere ao apoio de infra-estrutura produtiva e social.
Não há uma reformulação da política agrícola que passe a privilegiar
a pequena produção familiar, perpetuando-se, portanto, as condições
que produzem a concentração fundiária e reafirmando-se o modelo
da grande produção, para onde convergem os recursos públicos de
financiamento da agricultura. Como comprovação disso, vemos que
entre 1989 e 1996 a área cultivada diminuiu 8 milhões de hectares, a
produção agrícola cresceu menos 11% que a população,
aumentando a fome, o crédito caiu de 19 bilhões ao ano para 8
bilhões, só 10% da produção é financiada e particularmente só os
grandes têm acesso a crédito, a venda de tratores caiu de 37 para 17
mil ao ano, o governo liberou 45 bilhões para os usineiros, 2,5
bilhões para as grandes cooperativas, parcelou em 20 anos com 9%
de juros/ano as dívidas de 3 mil grandes proprietários com o Banco
do Brasil, num total de 4,5 bilhões e está investindo 20 bilhões em
corredores de exportação de soja e outros grãos (ALENTEJANO,
2002, p.3).
70
Ao término dos dois mandatos do governo FHC, a questão agrária tornase ainda mais urgente. Conforme Stédile, baseado em dados do INCRA, a
política adotada configurou-se num processo implementado na “contramão” de
uma real reforma agrária:
Os 26.000 maiores proprietários de terra no Brasil têm fazendas com
áreas superiores a 2.000 hectares, uma enorme fazenda. Esses
proprietários tinham, no início da década de 80, 128 milhões de
hectares, o patrimônio deles somado; quando terminou o governo
FHC, estavam com 178 milhões de hectares. Ou seja, em dez anos,
coincide com o período Collor-FHC, eles acumularam um patrimônio
de 50 milhões de hectares. E do outro lado da moeda, nesse mesmo
período, 920.000 propriedades com menos de 100 hectares foram à
falência, desapareceram. Então, o governo FHC não deixou apenas
de fazer a reforma agrária, mas aumentou a concentração da
propriedade (STÉDILE, 2003, p.6).
É neste contexto que Luiz Inácio Lula da Silva assumirá, em 1o de
janeiro de 2003, a presidência do Brasil. Eleito sob bases populares,
representará uma nova correlação de forças, reconhecidamente favorável à
reforma agrária.
O Governo Lula na questão da Reforma Agrária
A vitória do PT nas eleições de 2002 – partido historicamente vinculado
às lutas dos trabalhadores e defensor de uma efetiva reforma agrária, trouxe
novos contornos para o debate acerca da questão agrária no país.
O Programa Vida Digna no Campo estabeleceu as diretrizes do projeto
de política agrária do governo Lula, através da fixação de quatro objetivos
centrais: “a garantia do abastecimento alimentar em quantidade para toda a
população; a geração de divisas para o país através da agricultura exportadora;
a recuperação e a manutenção dos recursos nacionais integradas ao
desenvolvimento agrícola; a implementação de um programa de reforma
agrária amplo” (TORRES, 2003, p.11). Com relação a este último item,
referente ao programa de reforma agrária, foram apontados oito objetivos
principais:
71
1. Estabelecer as “zonas reformadas” principalmente através da
desapropriação de terras improdutivas; 2. Viabilizar financeiramente
o programa mediante a utilização dos TDAs (títulos de dívidas
agrárias), que passariam a ser resgatados pelo prazo constitucional
(até vinte anos), ao contrário do que vem acontecendo desde o
governo FHC (resgate entre dois e cinco anos), para reduzir os
custos das indenizações; 3. Garantir os direitos humanos com
promoção de ações específicas e permanentes de fiscalização do
trabalho rural, de combate à violência no campo e com o fim da
repressão institucional (supressão de leis) aos trabalhadores rurais e
suas entidades de representação; 4. Recuperar os assentamentos já
efetuados, garantindo infra-estrutura social e econômica, assistência
técnica, acesso a crédito rural e comercialização em parceria com
estados e municípios; 5. Elaborar os planos de desenvolvimento dos
assentamentos em sintonia com os objetivos da preservação do meio
ambiente; 6. Desenvolver ações específicas para índios e
quilombolas; 7. Implantar o cadastramento de imóveis rurais em que
áreas griladas sejam devolvidas ao Estado e utilizadas na reforma
agrária; 8. Confiscar as propriedades que pratiquem trabalho escravo
(TORRES, 2003, p. 11).
Obviamente, não há como fazer, ainda, uma avaliação aprofundada do
governo Lula, no tocante à reforma agrária, tendo em vista que apenas o
primeiro ano de mandato foi concluído. Limitar-nos-emos aqui, dessa forma, a
tecer algumas breves considerações.
Ainda que representando, pela primeira vez na história do Brasil, um
governo marcadamente popular, construído em décadas, através das
organizações dos trabalhadores, a ampla coligação feita no processo eleitoral
determinou um curso político ainda nebuloso e controverso. Conforme Teixeira,
que coordenou, inclusive, a elaboração do Programa Vida Digna no Campo,
acima mencionado, “a opção política do governo, que o levou a uma base
política de amplo espectro e a uma conduta conservadora na economia,
repercutiu no plano institucional e repercute na performance do programa
agrário” (TEIXEIRA, 2003, p.10). Além da sua ampla e diversificada base de
sustentação, a bancada ruralista (que em parte, inclusive, compõe a sua base
no Executivo), constitui ainda um relevante entrave para medidas mais efetivas
em se tratando da problemática rural. Exemplo disto é a ressonância que
encontra nos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento e Interior, frente
à indicação dos atuais ministros Roberto Rodrigues e Luiz Fernando Furlan,
respectivamente.
72
O primeiro ano do governo Lula não significou, assim, grandes avanços
na questão agrária no Brasil. O orçamento destinado para 2003 não foi maior
que o de 2002, impossibilitando o necessário reaparelhamento do INCRA e o
assentamento de um maior número de famílias.
Segundo anunciou o atual presidente do INCRA, Rolf Hackbart, durante
o ano de 2003 foram assentadas 36.300 famílias. O MST contesta os números
e afirma o assentamento de apenas 17 mil famílias. De qualquer forma, os
números são bem inferiores aos 60 mil prometidos (Folha on line, 16-01-2004).
O orçamento para 2004, destinado ao Ministério do Desenvolvimento
Agrário, é de R$ 1,005 bilhão. De acordo com cálculos de pesquisadores,
seriam necessários R$ 4,6 bilhões para assentar as 166 mil famílias de semterra cadastradas, durante o ano de 2003, nos acampamentos (Folha on line,
1º-12-2003). Vale lembrar, ainda, que o governo pagou 10 bilhões só em juros
da dívida externa em 2003 – nove vezes mais que o orçamento do MDA.
Com relação ao aparato normativo criado na gestão FHC, como a
medida provisória que impede vistorias em terras ocupadas, o governo evitou
adotar uma postura mais firme: “para não melindrar a sensível porção
conservadora da sua base de sustentação, manteve-se o aparato normativo
que impõe óbices legais inadmissíveis ao processo de reforma agrária e o
instrumental repressivo aos trabalhadores instituído pelo governo FHC, ainda
que, na prática, o governo venha ignorando tais instrumentos” (TEIXEIRA,
2003, p. 10).
Aliás, de forma geral, o governo tem evitado adotar uma postura mais
ofensiva para a implementação da reforma agrária no país, deixando de
promover, inclusive, medidas com um impacto político relativamente menor que
um processo amplo de reestruturação fundiária, como a revisão dos prazos de
resgate dos TDAs, a determinação do fim dos juros compensatórios em
processos de desapropriação, ou o confisco de propriedades em que se utiliza
o trabalho escravo.
De acordo com entrevista concedida à Agência Carta Maior por João
Paulo Rodrigues, membro da coordenação nacional do MST:
um importante embate neste primeiro ano de governo Lula se deu
em torno da concepção do modelo agrícola do país. Para o MST, a
reforma agrária não pode ser parte de uma política de
73
compensação social, mas deve ser vista como um projeto
econômico de geração de empregos e produção de alimentos.
Neste sentido, apesar da atenção maior à agricultura familiar em
termos de alocação de recursos (foram destinados cerca de R$ 5
bilhões ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf), além de R$ 400 milhões do Fome Zero para a
compra antecipada da produção de assentamentos pela Conab), o
agribusiness, viabilizado pela agricultura extensiva e latifundiária,
continua prioridade tanto das políticas internas quanto das políticas
externas do país, na medida em que a agricultura para exportação
este ano pautou as discussões do governo em fóruns como a
Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Alca. (Verena Glass
– 16/12/2003 Agência Carta Maior).
No entanto, não há como negar, no entanto, que houve uma alteração
real na correlação de forças, de forma tal que há hoje uma articulação mais
consolidada entre os diversos atores ligados à temática agrária, como os
movimentos sociais, a Igreja e as universidades, e destes com o próprio
governo, o que pode ser observado como uma certa abertura para a discussão
dos pleitos das organizações dos trabalhadores rurais, bem como dos projetos
governamentais a serem implementados. Este processo remete a outra medida
positiva do governo Lula, que tem a ver com o reconhecimento, por parte do
governo, da legitimidade dessas organizações. Ao contrário do que ocorria no
governo FHC, que buscava minar as formas de organização dos movimentos, o
Plano de Emergência para os acampados garante cesta básica e prioriza o
assentamento destas famílias.
Por seu turno, os movimentos sociais, ainda que mantendo uma linha de
apoio ao governo, têm ampliado suas ações na luta pela terra, mesmo frente à
ampliada organização armada dos fazendeiros e seus jagunços – só entre
janeiro e agosto de 2003 foram registrados, pela CPT, 60 assassinatos de
trabalhadores rurais.
Ainda assim, conforme Teixeira, apesar da tímida atuação do governo
Lula até então, no tocante à reforma agrária:
Acho que temos dois fatores favoráveis que, combinados, projetam
um cenário favorável: o compromisso histórico do PT e do presidente
Lula pela reforma agrária e a força dos movimentos sociais,
principalmente do MST. Essa combinação de forças é, na minha
opinião, determinante para que acreditemos na realização de uma
reforma agrária massiva e de qualidade durante o governo Lula
(TEIXEIRA, 2003, p. 11).
74
Em novembro de 2003, o governo Lula lançou o seu Plano Nacional de
Reforma Agrária, que tem como meta o assentamento de 400 mil famílias até
2006, sendo 115 mil até o fim de 2004. “Estamos preparados para cumprir
integralmente todas as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária e criar
mais de 2 milhões de empregos no campo”, afirmou o ministro do
desenvolvimento agrário Miguel Rosseto, em janeiro de 2004 (Estado de Minas
on line).
A perspectiva aqui tomada por referência é a de que a intervenção e a
pressão exercidas pelas mobilizações e organizações de trabalhadores rurais
na luta pela terra consistem em fatores fundamentais na correlação de forças
envolvidas num processo de transformação da realidade prevalecente no meio
rural, e que, ainda hoje, e com a mesma força, são determinantes para os
rumos da política agrária no país, mesmo frente a uma situação inédita e, por
vezes contraditória, de se ter no Estado, histórica e estruturalmente ligado às
elites dominantes, uma coligação de frente popular, liderada por um partido
vinculado, desde a sua origem, a demandas dos trabalhadores, tais como a
reforma agrária.
O Debate Atual sobre a Reforma Agrária
Tentaremos, nesta parte do trabalho, apontar, de forma sucinta, as
principais posições em pauta no debate dos últimos anos sobre a reforma
agrária, ressaltando que este parece ser um momento de concretização das
novas definições, fruto das transformações nas relações internacionais e da
modernização da agricultura brasileira, que elevam o tema a outros patamares
levando os seus protagonistas a reformular os termos da questão.
A grande questão que se coloca, hoje, neste debate, é a natureza da
reforma agrária: há inúmeras diferenças quanto à forma de aplicação, o
alcance, a legislação e até quanto às razões da reforma agrária.
De maneira simplificada, Alentejano (1996) classifica as formas básicas
de se encarar a reforma agrária, presentes no cenário político e intelectual do
Brasil, apresentando três tipos:
75
I - como política social compensatória – Essa tese defende a idéia de
que a estratégia de modernização agrícola resolveu os problemas do ponto de
vista econômico-produtivo do país, não cabendo uma ampla reformulação no
setor. Entretanto, justamente pelo seu caráter conservador, refletido num
crescimento da concentração fundiária e de renda, faz-se necessária uma
política social compensatória, voltada para os excluídos do processo de
modernização. A reforma agrária é encarada como uma política social, cujo
papel seria o de corrigir as distorções sociais causadas pelo processo de
modernização e que o mercado não pode resolver, ao contrário, agrava. Seria
a mais barata e eficaz forma de gerar emprego e renda. Entre os defensores
dessa tese está Graziano da Silva:
creio que se justifica um programa de Reforma Agrária „vigoroso e
massivo’ como uma política capaz de gerar milhões de empregos no
campo e reduzir o êxodo rural, evitando o inchamento das grandes
metrópoles. (...) a reforma agrária brasileira se justifica nos anos 80
como „uma política social’, independente dos reflexos produtivos que
possa vir a ter. Isso significa que, antes de resolver o problema do
feijão e do arroz, precisamos decidir se os milhões de trabalhadores
rurais deste país têm direito ou não de ser cidadãos brasileiros
(SILVA, 1985, p.100,101).
II - como política distributiva – Essa corrente defende que a adoção da
reforma agrária deve ser vinculada a uma política de caráter distributivo,
destinada a garantir a segurança alimentar da população e a sustentar a
retomada do crescimento econômico do país. A diretriz central seria o apoio e o
fomento à agricultura familiar. A reforma agrária deveria ser uma política de
democratização do capitalismo brasileiro, embutida, aqui, de um forte sentido
econômico. Essa corrente tem em Veiga (1994) um de seus representantes:
Com base na experiência histórica dos países do Primeiro Mundo,
deve-se pensar que a passagem da economia brasileira para uma
fase socialmente articulada de desenvolvimento dificilmente poderá
prescindir de um conjunto de políticas públicas que venha a
fortalecer, aqui também, a agricultura familiar. (...) E é esse objetivo
estratégico que dá sentido econômico à reforma agrária. Precisamos
de uma reforma agrária que desafogue os minifundistas, oferecendolhes a oportunidade de se tornarem agricultores familiares viáveis;
uma reforma agrária que transforme arrendatários em proprietários;
uma reforma agrária que ofereça terra aos filhos dos pequenos
proprietários; enfim, numa reforma agrária cuja diretriz central seja o
fomento e o apoio à nossa agricultura familiar (VEIGA, 1994, p.91).
76
III - como uma política voltada para a transformação do modelo de
desenvolvimento vigente – A reforma agrária é tida aqui como o próprio
questionamento da ordem social vigente, sendo apenas parte de um conjunto
de reformas que abarque os mais diversos setores e redirecione o modelo de
desenvolvimento, para que este seja efetivamente mais democrático. Tal
proposta é defendida, entre outros, por Stédile (1999), que enfatiza a
necessidade de se realizar uma reforma agrária sob a ótica dos trabalhadores,
que atenda às suas necessidades, o que requer uma amplitude bem maior que
a simples distribuição da terra como forma de democratizar a sociedade no
meio rural:
Tal processo de reforma agrária, além da democratização da
propriedade da terra, deverá promover também a democratização do
comércio agrícola, dos processos agroindustriais, do acesso ao
capital e também do conhecimento, da educação. Esse seria o
significado de uma reforma agrária dos trabalhadores (STÉDILE,
1999, p.194,195).
Esta perspectiva, de uma reforma agrária para além do capital, difere
radicalmente da chamada reforma agrária de mercado – que ganhou força no
governo FHC e vincula-se às diretrizes políticas do Banco Mundial, que tem, no
capital e no mercado, as suas principais referências. Nessa proposta, conforme
Medeiros, o processo de obtenção de terras é regulado pelo mercado. Da
mesma forma, o assentado é visto como “um empreendedor que deve se
ajustar ao mundo dos negócios e nele se mostrar competitivo”, de maneira que,
após um período curto de consolidação dos assentamentos, o mercado deve
tornar-se “o regulador maior das atividades desse contingente recém-chegado
à terra” (MEDEIROS, 2002, p.69).
Conforme já fizemos referência anteriormente, a proposta de reforma
agrária implementada através de mecanismos de mercado teve no Banco da
Terra a sua maior expressão e está sinalizada no programa Novo Mundo Rural,
bem como no paradigma da agricultura familiar por ele difundido. No entanto,
ela não vem sendo assumida apenas por setores mais conservadores da
sociedade. Ao contrário, tem tido grande repercussão no meio acadêmico e,
inclusive, no seio de algumas organizações de trabalhadores rurais, como a
CONTAG.
77
De acordo, no entanto, com a terceira forma apresentada de se encarar
a reforma agrária, a necessidade de enfrentamento à ideologia da reforma
agrária de mercado coloca-se como ponto fundamental para os movimentos
de luta pela terra. Segundo Alentejano, estes têm como desafios:
retomar o princípio de que os especuladores devem ser punidos por
manterem a terra improdutiva, dados os custos que isso gera para a
sociedade e a injustiça presente neste fato; recolocar em pauta o
confisco das terras improdutivas, exploradas com base em trabalho
escravo e outras formas ilegais, negando as desapropriações e a
compra de terras, por seu caráter de prêmio aos especuladores e
aos latifundiários; retomar o debate acerca do estabelecimento de
limites máximos para o tamanho das propriedades, como base para
a geração de uma melhor distribuição de riqueza e renda no país;
recolocar o debate acerca da melhor forma de titulação da terra,
negando a proposta imposta de forma unilateral pelo governo FHC
de distribuição de títulos de propriedade, e afirmando o princípio da
garantia da terra pública e de seu usufruto em benefício da
sociedade (ALENTEJANO, 2002, p.5).
Nesse sentido, Stédile (1999) propõe um balanço crítico do que chama
de política de assentamentos rurais e de colonização, que não teriam o caráter
real de uma reforma agrária, no sentido de resolver efetivamente a questão
agrária no Brasil, mas que são propagandeadas como tal pelos governos que
as implementam.
A política de assentamentos rurais baseia-se em assentar famílias de
sem-terra em terras desapropriadas, compradas pelo governo. Essa política,
entretanto, é parcial e localizada, geralmente aplicada em áreas de conflito,
não se destinando a corrigir a concentração da propriedade como um todo.
Pode ser considerada como uma política de compensação social, não
significando democratização do acesso à terra.
Nos processos de colonização, o Estado distribui terras ainda
inexploradas de sua propriedade para famílias de colonos. Mesmo o Brasil
ainda possuindo uma vasta extensão de terras públicas a serem utilizadas,
essa política de colonização nada tem a ver com a democratização do acesso
à terra, pois a distribuição de terras públicas em áreas de fronteira agrícola não
afeta e não significa distribuição da propriedade da terra já ocupada. No Brasil,
os processos de colonização foram ainda mais perversos porque, em geral, a
política de colonização seguiu a mesma lógica de concentração capitalista,
78
tendo em vista que o Estado distribuiu enormes extensões de terra a alguns
proprietários, ou regularizou áreas griladas irregularmente.
Por outro lado, as críticas à reforma agrária são certamente muito
comuns, haja vista as constantes vitórias das forças sociais conservadoras,
ligadas às grandes propriedades rurais – o que é facilmente observável frente à
permanência quase “intocada” da estrutura fundiária do país.
No campo teórico, Geraldo Muller e Graziano Neto são representantes
da tese que coloca a reforma agrária, enquanto distribuição de terras, como um
processo já desnecessário e até mesmo inviável num país como o Brasil.
Para Muller (1994), o Brasil possui uma excelente máquina agrária, com
elevados índices de produção e produtividade e com perspectiva de produzir
muito mais sem incorporar mais ninguém, nem como proprietário, nem como
trabalhador. A distribuição de terras e a formação de novos proprietários
agrários seria, nesse sentido, algo consideravelmente ultrapassado. O
fundamental para quantificar e qualificar ainda mais o excedente agrário reside,
nessa perspectiva, em dispor de um padrão financeiro que permita intensificar
a exploração do trabalho e da terra e a incorporação de progresso técnico.
Para o autor, a geração de empregos não reside nas atividades agrárias,
mas nos serviços requeridos pelo complexo agroindustrial e, especialmente,
pelos serviços sociais indispensáveis à população.
Graziano Neto (1994) centra suas teses em três argumentações
primordiais: 1 – inexiste farta disponibilidade de terras ociosas para programas
de reforma agrária: “o estoque de terras disponível para programas de
assentamento rural é bem menor que aquele apregoado, inadvertidamente,
pelos entusiastas do distributivismo agrário” (GRAZIANO NETO, 1998, p.164);
2 – não há interessados o suficiente: é falso crer que todo o trabalhador aspira
a ter uma propriedade de terra – sonho este pequeno burguês; o que todos
querem é melhorar suas condições de vida e trabalho (GRAZIANO NETO,
1994); e 3 – um programa de reforma agrária seria consideravelmente ineficaz
em seu objetivo principal que é atacar o problema da miséria no país: além de
reduzido resultado econômico, os assentamentos rurais apresentam um custo
muito elevado de implantação e manutenção (GRAZIANO NETO, 1998).
Outro vasto conjunto de argumentação contrário, ao menos, a uma
reforma agrária efetiva e massiva, é utilizado por vários segmentos sociais
79
atrelados, direta ou indiretamente, à grande propriedade rural. Entre eles,
podemos citar várias entidades patronais, como a Confederação Nacional da
Agricultura (CNA), a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Organização das
Cooperativas do Brasil, a União Democrática Ruralista (UDR), a Associação
Nacional de Criadores de Gado Zebu, o Sindicato Nacional de Pecuaristas,
entre vários outros sindicatos e associações, que defendem “o direito sagrado
de propriedade garantido pela Constituição”.
Também os artigos, publicados na grande imprensa – em geral ligada de
alguma forma aos grandes proprietários de terra ou à própria bancada ruralista,
e que constitui um poderoso meio de „formação de opinião’ – reforçam
constantemente a sua tradição conservadora. Nestes espaços, os movimentos
sociais são, constantemente, alvos de ataques diretos.
Toda essa resistência à reforma agrária, além do histórico controle
político, econômico e social que é associado à posse da terra no Brasil,
vincula-se hoje a um novo problema, com o qual os movimentos sociais na luta
pela terra já se defrontaram: o projeto de reforma agrária dominante, até
praticamente o fim do regime militar, consistia numa aliança entre burguesia
nacional e classe trabalhadora, como forma de impulsionar o desenvolvimento
das forças produtivas. O interesse da burguesia era baseado no rompimento da
instabilidade da antiga estrutura coronelista para se instituir um ambiente mais
favorável ao desenvolvimento dos negócios capitalistas. Já para os
trabalhadores, seria um passo rumo ao socialismo. Como o capitalismo
encontrou “suas maneiras” de se desenvolver sem precisar promover a
distribuição de terras, a classe trabalhadora se encontrou frente à
“responsabilidade” de conquistar, “sozinha”, a reforma agrária.
Por seu turno, entretanto, os movimentos sociais na luta pela terra, que
estiveram sempre presentes na história brasileira, vêm conquistando uma
visibilidade cada vez maior frente ao conjunto da sociedade, se articulando e se
mobilizando de forma cada vez mais intensa e expressando, simultaneamente,
um
questionamento da
estrutura fundiária
e
do
próprio padrão
de
desenvolvimento vigente. É o que discutiremos no próximo item.
80
A Luta Pela Terra no Brasil Hoje
Certamente, como vimos, o Estado autoritário inaugurado em 1964
apoiou-se numa evidente tentativa de neutralização política dos setores
subalternos rurais, no sentido de eliminar os seus avanços organizativos de até
então. Promoveu,
dessa forma,
uma verdadeira
desorganização dos
trabalhadores face à militarização do campo, apesar de jamais ter conseguido
eliminar todas as formas de resistência camponesa. É certo que também os
dias atuais são marcados por uma forte ofensiva do capital em relação aos
movimentos sociais, expressa na hegemonia da política neoliberal em nível
mundial, que reforça a fragmentação e a individualização social. Mas, ainda
assim, não se apagaram as ações coletivas desencadeadas pelos movimentos
sociais. Ao contrário, a formação de identidades coletivas no interior dos
movimentos de luta pela terra, no Brasil, contrariam essa ofensiva e
questionam o próprio modo de produção capitalista em curso, através,
inclusive, da construção de novas formas de sociabilidade e de organização do
trabalho.
Dessa forma, o fim da ditadura até os dias atuais marca um forte
crescimento e desenvolvimento de formas de organização mais autônomas e
articuladas, empreendidas por diversos movimentos sociais na luta pela
reforma agrária. Tal fator pode ser observado pela mobilização dos
trabalhadores em movimentos que se organizam em nível nacional, com forte
poder de pressão e grande expressão social. Destes, o MST – Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra - é, sem dúvida, o mais significativo.
Originado do avanço das lutas e da organização dos trabalhadores no campo,
no sul do país, no final da década de 70, o movimento foi oficialmente fundado
em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel (PR), organizando-se como um
movimento nacional de luta pela reforma agrária.
O MST está hoje organizado em praticamente todos os estados da
federação e possui uma ampla proposta de democratização do acesso à terra,
que visa alterar substancialmente a estrutura fundiária do país. De fundamental
importância é a luta travada pelo movimento no campo social, via ocupações
de terras e prédios públicos, manifestações, campanhas de conscientização da
população, entre outros, paralelamente ao embate via institucional – que já se
81
mostrou, historicamente, incapaz de resolver, por si só, o problema da terra no
Brasil.
Com uma sólida estrutura organizacional, possui uma série de frentes de
trabalho que incentivam a participação direta e a descentralização dos
processos de decisão. No movimento de construção e expansão do MST,
foram surgindo diversas comissões, equipes, núcleos, setores e outras formas
de
atividade,
que
se
configuram
bases
de
reflexão,
discussão
e
encaminhamento das questões ligadas à luta pela terra em todas as suas
dimensões. Promove, por exemplo, o setor de educação (prioridade do
movimento, inspirado na teoria de Paulo Freire), o setor de produção (com o
desenvolvimento da cooperação agrícola como forma de resistência e
desenvolvimento econômico dos assentados); o setor de formação (trabalhos
que buscam uma sólida formação sócio-política dos militantes, haja vista que o
estudo e a reflexão são práticas permanentes no interior do movimento);
frentes de massa (trabalhos de base e conscientização); além de programas
que incentivam a participação da mulher, da criança e do jovem, entre outras
atividades que buscam combater as diversas dimensões da exclusão
vivenciadas pelos seus integrantes.
Os princípios do MST podem ser representados pelas seguintes
palavras de ordem, assumidas em congressos nacionais do movimento: “Terra
para quem nela trabalha” (1979); “Sem reforma agrária não há democracia”
(1984), “Ocupação é a única solução” (1985); “Ocupar, Resistir e Produzir”
(1990); “Reforma agrária, uma luta de todos” (1995); e “Por um Brasil sem
latifúndio” (1999). A marca registrada do MST está na ocupação de terras,
estratégia que está no cerne do movimento, desde a sua gênese, e que reflete
o novo dimensionamento que adquire a luta pela terra hoje, bem como
simboliza o avanço da organização camponesa no Brasil, na busca por um
movimento social autônomo e sob o controle dos trabalhadores rurais.
Além do MST, são várias as organizações presentes no cenário atual de
luta pela reforma agrária, entre inúmeros movimentos que Fernandes define
como territorializados (aqueles que têm objetivos mais amplos que os
interesses imediatos da comunidade, que territorializam o movimento e a luta),
como a Comissão Pastoral da Terra (CPT); o Movimento Camponês de
Corumbiara (MCC) e a Liga Operário-Camponesa (LOC), em Roraima; o
82
Movimento dos Agricultores Sem-Terra (MAST), em São Paulo (Pontal do
Paranapanema) e no Rio Grande do Norte; o Departamento Rural da Central
Única dos Trabalhadores (CUT-MS) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais
(MTR) no Mato Grosso do Sul; o Movimento dos Trabalhadores do Brasil
(MTB), em Pernambuco; o Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL),
organizado principalmente em Minas Gerais, Goiás e Pernambuco, entre
outros. Verifica-se, ainda, uma série de movimentos sociais localizados ou,
conforme denominado por Fernandes, isolados, ou seja, aqueles que se
organizam em um município ou em um pequeno número de municípios, com
vistas a realizar, normalmente, uma ocupação (FERNANDES, 2001).
O surgimento e a força desses movimentos sociais hoje vêm colocando
em xeque antigas estruturas sindicais cujo corpo era diretamente atrelado ao
Estado.
O sindicalismo rural permanece sendo representado nacionalmente pela
CONTAG – Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura. Possui 21
federações em nível estadual (além da delegacia no Acre) e mais de 2.000
sindicatos em nível nacional. A ação da CONTAG, historicamente, tem sido a
de „encaminhar as questões às autoridades competentes’, através de uma
postura legalista e atrelada ao Estado. De qualquer forma, no entanto,
constituiu-se em importante referência nacional, e representou avanços
importantes, mantendo em cena aberta a luta dos trabalhadores rurais desde
quando foi fundada, em 1963.
Há que se ressaltar, ainda, que a emergência de críticas à ação sindical
da CONTAG, especialmente a partir da década de 1980, levou não só a
debates e disputas no interior da Confederação, como também à emergência
de “oposições” sindicais. A influência da CPT e da CUT foram fundamentais
nesse processo, à medida que criavam novos campos de disputa com a
CONTAG e tornavam-se referências mais combativas aos sindicatos de
trabalhadores rurais que, por vezes, constituem-se em “portadores de críticas
não só à estrutura sindical vigente, mas também às práticas cotidianas
dominantes no sindicalismo” (MEDEIROS, 2002, p.47).
Além destas, outras inúmeras entidades participam da luta pela reforma
agrária no Brasil, entre movimentos sociais autônomos, sindicatos locais,
ONG’s e pastorais católicas, sem contar as várias organizações, associações e
83
sindicatos que, mesmo sem estar diretamente envolvidos com a questão
agrária, contribuem fortemente com a luta pela democratização do acesso à
terra.
O que está aqui colocado, grosso modo, é que a luta pela reforma
agrária ganhou contornos mais sólidos e definidos nas décadas de 1980 e
1990, garantindo avanços substanciais no embate contra os governos
posteriores à ditadura militar – que permaneceram com uma orientação antidemocrática no que tange à questão agrária – e acumulando conquistas
significativas para os trabalhadores rurais, em especial no que se refere à
conquista da terra.
Conforme nos apresenta Grzybowski, são lutas contra a expropriação,
como as dos posseiros, dos sem-terra e dos atingidos por barragens; lutas
contra a exploração, como as dos trabalhadores rurais assalariados; lutas
contra a subordinação do trabalho ao capital, como as dos camponeses
integrados; além de novas frentes de luta no campo, como os movimentos de
mulheres agricultoras e de grupos que buscam alternativas de produção, como
as cooperativas (GRZYBOWSKI, 1987). Os avanços da organização
camponesa
estão
presentes
na
expressão
que
esta
adquiriu
hoje,
dimensionando a luta mais ampla pela reforma agrária e colocando-a em
posição de destaque no debate político; na articulação interna e externa que os
movimentos sociais rurais vêm adquirindo em nível nacional; nas formas de
atuação que se tornam predominantes nos seus embates, quais sejam,
aquelas ligadas à maior mobilização e à pressão direta. Verifica-se, assim, o
crescimento de formas de organização consciente e articuladas, que têm como
um de seus pilares a constante busca pela maior autonomia dos setores
subalternos rurais, inclusive na orientação de seus movimentos.
A história nos mostra, assim, que o caminho da questão agrária no Brasil
dependerá das forças sociais em jogo, devendo ser fundamental a ação dos
trabalhadores rurais (e urbanos) na realização da efetiva distribuição da terra,
além de fazer com que, posteriormente, se tenha condições de gestar na terra
novas formas de produção. A ocupação de terras configura hoje a principal e
mais eficaz forma de luta dos movimentos sociais rurais, traduzindo-se na
conquista de assentamentos rurais de trabalhadores sem-terra por todo o país,
fato que vem promovendo novos contornos à luta e ao debate acerca da
84
reforma agrária. No limite, a participação em movimentos sociais organizados,
a conquista da terra e a construção dos assentamentos rurais refletem a luta
pela inclusão social, econômica, política e econômica de uma ampla parcela da
sociedade brasileira, historicamente marcada pela exclusão. Considerando que
o modo de produção capitalista constitui necessariamente um modelo
excludente, a luta contra a exclusão já traz em si um caráter anticapitalista,
ainda que, por vezes, embrionário.
85
CAPÍTULO 2
A REALIDADE AGRÁRIA DO TRIÂNGULO MINEIRO/ALTO PARANAÍBA
(MG):o processo de modernização do campo e a luta pela terra
A mesorregião geográfica do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba 1 é tida
como a de maior número de conflitos por terra do Estado de Minas Gerais, em
especial a região do Pontal do Triângulo, que está entre as mais violentas do
país. A luta pela terra se faz hoje expressiva em todo o território do cerrado
mineiro, envolvendo uma série de agentes que, mais ou menos articulados,
dimensionam o tema da reforma agrária, ampliam as suas experiências e
territorializam as suas lutas, na conquista dos assentamentos rurais. É este
processo que buscamos analisar neste capítulo, através da recuperação
histórica das principais lutas aqui travadas, por meio de pesquisas teóricas e
documentais. Para tal, faz-se necessário, inicialmente, apresentarmos o
cenário em que se movimenta essa luta crescente pela reforma agrária, à
medida em que esta se insere num contexto bastante peculiar – em
decorrência das especificidades do desenvolvimento histórico-econômico do
cerrado mineiro – que, por sua vez, insere-se e está orientado pelas tendências
gerais e estruturais do sistema capitalista de produção.
O Desenvolvimento Agrário do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba
Com relevância política e econômica no cenário nacional, a mesorregião
do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba concentra um dos principais pólos do
complexo agro-industrial do país. Estrategicamente localizada, situa-se,
respectivamente, na parte extremo oeste e oeste de Minas Gerais. Agrupa 64
municípios, distribuídos, segundo o IBGE, entre as microrregiões de
Uberlândia, Uberaba, Patrocínio, Patos de Minas, Frutal, Araxá e Ituiutaba,
numa área total de 94.241 km2, o que corresponde a 16,17% do total do
estado (PESSOA e SILVA, 1999; GUIMARÃES, 2002).
1
Utilizamos neste trabalho tanto a classificação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), que considera a mesorregião Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba como unidade de
análise, quanto a do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que referese às regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba em separado para efeito de sistematização
dos dados.
MESORREGIÃO GEOGRÁFICA TRIÂNGULO MINEIRO / ALTO PARANAÍBA
N
CACHOEIRA
DOURADA
IPIAÇU
CAPINÓPOLIS
ARAPORÃ
TUPACIGUARA
ARAGUARI
CENTRALINA
CANÁPOLIS
MONTE ALEGRE DE
MINAS
ABADI
A DOS
DOUR
DOUR ADOS
ADOQ
GRUPIAR
UARA
A
CASC
ALHO
MONTE
RICO
CARMELO
ESTRELA
DO SUL
COROMANDEL
PATOS DE
MINAS
LAGO
GUIMARÂNIA
PATROCÍNIO
INDIANÓPOLIS
ITUIUTABA
UBERLÂNDIA
IRAÍ DE
MINAS
GURINHATÃ
PEDRINÓPOLIS
CAMPINA VERDE
CARNEIRINHO
NOVA
PONT
E
PRATA
LIMEIRA DO OESTE
UNIÃO DE
MINAS
PERDIZES
ITAPAGIPE
UBERABA
PATO
S DE
MINA
S
RIO
PARA
NAÍBA
ARAP
ORÃ
MATU
TINA
FRUTAL
PERDIZ
ES
CONQUISTA
SACRA
MENTO
DELTA
CONCEIÇÃO DAS
ALAGOAS ÁGUA COMPRIDA
CONCEIÇÃO DAS
PLANURA
ALAGOAS
20 KM
0
20 KM
40 KM
TAPIR
A
SÃO
GOTA
RDO
SANT
ARAX
Á
CAMPO FLORIDO
FRUTAL
ORGANIZAÇÃO: GOMES, R. M., 2004.
DESENHO: LIMA, F. R. , 2004
[email protected]
FONTE: www.geominas.mg.gov.br
SANT
CRUZ
EIRO
DA
FORT
ALEZ
SERRA DO
A
SALITRE
VERÍSSIMO
COMENDADOR
GOMES
ITURAMA
TIROS
ROMARIA
SANTA VITÓRIA
PRATI
NHA
CAMP
OS
ALTO
S
A ocupação populacional e econômica do Triângulo Mineiro vai
desenvolver-se, sobretudo, a partir da decadência da economia de mineração,
atividade que está no bojo do processo de ocupação do estado de Minas
Gerais – inicialmente em sua região central e, posteriormente, durante o séc.
XVIII, marcando uma exploração, ainda que em bem menor grau, das terras do
chamado Sertão da Farinha Podre. Terras essas, aliás, até então pertencentes
à capitania de Goiás – e divididas em sesmarias –, posto que, apenas em
1816, passam para o domínio da antiga província de Minas Gerais.
Conforme Cavalini e Gerardi, “com a decadência da mineração, a
agricultura exportadora surge como alternativa para a sobrevivência da
economia nacional. É nesse momento histórico, final do século XVIII, que a
região do Triângulo é inserida nesta economia, através da agropecuária
mercantil” (CAVALINI e GERARDI, 1996, p.94).
A região passa a constituir-se economicamente em bases agropecuárias
– inicialmente pela população aí já instalada pela atividade mineradora –,
atraindo uma corrente migratória interessada na obtenção de terras. De acordo
com Prado Junior:
Na sua marcha para o Sudoeste, os mineiros ocuparão primeiro o
chamado Triângulo Mineiro, o território situado no ângulo formado
pela confluência dos rios Paranaíba e Grande, formadores do Paraná.
Esta região, que em meados do século não contava com mais de
6.000 habitantes, compreendidos 4.000 índios2 semicivilizados,
reunirá em fins do Império acima de 200.000 indivíduos, com um
centro urbano já de certa importância: Uberaba (PRADO JUNIOR,
1979, p.204).
Essa ocupação econômica contou com determinados incentivos e
aparatos por parte do Estado que, “somados à localização geográfica e o
momento histórico em que a região se insere na economia brasileira,
permitiram a organização de uma agropecuária mercantil que se coloca como o
novo
sustentáculo
histórico
desta
economia”,
e
que
“fomentou
o
desdobramento de um setor que forma a frente no processo de acumulação de
capital até a nossa atualidade” (SAMPAIO, 1984, p.3 apud PESSÔA e SILVA,
1999, p17).
2
Índios Caiapós, habitantes da região.
88
Em fins do século XIX, tem-se um avanço no sistema de transporte
ferroviário, no Alto Paranaíba e, em especial, no Triângulo Mineiro, que
redefine o papel de suas atividades na divisão inter-regional do trabalho, ao
permitir o escoamento da sua produção, em especial para os mercados do Rio
de Janeiro e São Paulo, e que, somado às bases políticas da região, inserem a
área definitivamente no contexto econômico nacional. Paralela à pecuária, a
produção de cereais amplia-se, “com a incorporação das melhores terras,
cobertas de mata, e com o desenvolvimento da parceria, que substitui nas
fazendas o trabalho do antigo agregado” (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.61).
Durante o governo Vargas (1930-1945), o Triângulo Mineiro também
será “‟locus‟ indireto de grandes realizações governamentais. Assim, o governo
Vargas, em seu programa de integração e colonização – „Marcha para o
Oeste‟, para cumprir os objetivos propostos, precisava dotar o Triângulo
Mineiro de uma infra-estrutura, possibilitando a penetração rumo ao CentroOeste” (PESSÔA e SILVA, 1999, p.19). Amplia-se aqui o potencial de
aproveitamento econômico da área, que passa a efetuar, ainda, especialmente
a partir dos anos 1930, papel complementar na expansão urbana e industrial
de São Paulo.
Geograficamente privilegiado, o Triângulo Mineiro contou assim com
marcante ação estatal na criação de infra-estrutura e em numerosos incentivos
à iniciativa capitalista. De acordo com Micheloto:
A função de entreposto comercial assumida pela região permitiu uma
sólida acumulação de capitais que, já nos anos 50, e com mais
intensidade nos anos 60, se transformaria em investimentos
modernizadores da atividade agrária, bem como financiaria em parte
a industrialização regional ocorrida na década de 70 (MICHELOTO,
1990, p.64).
A partir da década de 1970, o Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba são
inseridos nos planos econômicos governamentais (I PND – 1972-1974 e II PND
– 1975-1979), tendo como resultado o surto de modernização agrícola que
atingiu as áreas de cerrado.
89
O Processo de Modernização do Setor Agrícola no Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba: reestruturação produtiva e impactos no mundo do
trabalho rural
No interior do processo mais amplo de modernização agrícola vivido
pelo Brasil, a partir da década de 1960 e, em especial, durante a década de
1970, o cenário econômico do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba foi
radicalmente transformado, frente à incorporação das áreas de cerrado ao
processo produtivo. Até então predominantemente utilizadas como pastagens
naturais, tais áreas – extensos chapadões com topografia plana – passam a
ser intensamente aproveitadas,
mediante a disponibilidade de capitais (programas governamentais),
de recursos técnicos (máquinas), de tecnologia (desenvolvimento de
pesquisas científicas) e do apoio na construção de infra-estrutura
pelo Estado brasileiro, como forma de viabilizar os interesses do
capital privado nacional e transnacional (MENDONÇA e THOMAZ
JUNIOR, 2003, p.662).
Aliás, todo o estado de Minas Gerais sofre importantes transformações
no campo econômico durante o período militar, em especial na década de
1970. O setor industrial dá um salto, gerido pelo Estado e por grupos
internacionais, que faz com que Minas, no período 1970-77, absorva 25% dos
investimentos industriais do país. Da mesma forma, o setor agrícola torna-se
cada vez mais atraente ao investimento capitalista, através de incentivos
fiscais, linhas de crédito e facilidades outorgadas pelo Estado.
No caso de Minas, o INDI e o BDMG, fundamentais nas
transformações industriais, também foram promotores de atração de
vários dos maiores empreendimentos agroindustriais que vieram
para o Brasil na década de 70. Ao lado da agroindústria, o Estado
experimentará a formação de grandes empresas capitalistas de
reflorestamento,
pecuária,
soja,
café,
cana-de-açúcar
(POMPERMAYER, 1987, p.11).
Dessa forma, “os setores que mais se beneficiaram por esse processo
foram aqueles cuja produção estava voltada à exportação, em detrimento da
redução das culturas consideradas tradicionais” (PESSÔA e SILVA, 1999,
90
p.21), sendo o cerrado mineiro marcado especialmente pela introdução da soja
e do café.
É certo que estas transformações no campo se darão de forma
diversificada nas regiões do estado, com a incidência de diferentes programas
governamentais e de estratégias variadas de capitais, o que se reflete numa
diversidade regional de situações agrárias.
A região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba passa a ser reconhecida
como uma área que, localizada junto aos grandes mercados urbanos do país,
constituía uma grande fronteira a ser ocupada. Além disso, as características
naturais dessas áreas – marcadas pela topografia plana e por solos até então
considerados improdutivos –, favoreciam a mecanização e a aplicação de
quantidades consideráveis de corretivos e fertilizantes, atendendo às
necessidades de expansão econômica geradas pelo modelo capitalista. Ora, as
estratégias desenvolvimentistas e integracionistas do governo militar tinham,
entre os seus objetivos primordiais, o desenvolvimento industrial e a expansão
da fronteira agrícola. A ocupação do cerrado mineiro constituiu, assim, parte
integrante dessas estratégias, inclusa no Plano Nacional de Desenvolvimento,
concebido neste período. Várias iniciativas governamentais se configuraram
para apoiar este processo, destacando-se o PCI (Programa de Crédito
Integrado
e
Incorporação
dos
Cerrados),
o
PADAP
(Programa
de
Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba), o POLOCENTRO (Programa de
Desenvolvimento dos Cerrados), e o PRODECER (Programa de Cooperação
Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados), programas públicos
implementados na região do cerrado mineiro que se caracterizaram por seu
caráter “monopolista, conservador e excludente” (SILVA, 2002, p.2). A
intensificação da proletarização do homem no campo, como veremos mais a
frente, se deu justamente a partir da integração da região nesses grandes
projetos de desenvolvimento do cerrado, “projetos estes calcados no modelo
empresarial e voltados para a formação de corredores de exportação”
(MICHELOTO, 1990, p.64).
O PCI surgiu em 1972, criado pelo BDMG (Banco de Desenvolvimento
de Minas Gerais), e teve como objetivo estimular a expansão da agricultura
modernizada nos cerrados, promovendo, em especial, o incremento da
91
produção de soja e café, tendo como resultados a ampliação do consumo de
maquinário e insumos agrícolas modernos e a incorporação produtiva de uma
vasta quantidade de terras a agropecuária no Estado. “Foi concebido para
articular-se ao programa federal denominado Corredores de Exportação, que
se constituía num dos principais desdobramentos da política agrícola no âmbito
do I Plano Nacional de Desenvolvimento” (CLEPS JUNIOR, 1998, p.126).
Atingiu uma área de 111.025 ha (entre as regiões do Triângulo Mineiro, Alto
Paranaíba, Paracatu, Alto Médio São Francisco e Metalúrgica), financiando 230
projetos, sendo que a área média de cada beneficiado foi de 483 ha, ou seja,
atendeu aos grandes e médios proprietários, além de impulsionar o setor
industrial. Atingiu 53,7 mil km2, na região do Triângulo Mineiro, e 34,9 mil km2,
no Alto Paranaíba, e foi finalizado em 1975. Constituiu o primeiro plano de
desenvolvimento dos cerrados, representando “um marco para os programas
federais subseqüentes, em escala federal, para incrementar a utilização de
grãos exportáveis das áreas do cerrado brasileiro” (ibidem).
O PADAP, implementado nos anos de 1973 e 1974, residiu no
assentamento de agricultores descendentes de imigrantes japoneses, em
terras desapropriadas pelo Estado, nos municípios de Rio Paranaíba, Campos
Altos, São Gotardo e Ibiá (Alto Paranaíba), incluindo, ainda, crédito subsidiado,
construção de estradas e habitações, entre outros. O programa foi resultado de
uma articulação entre o governo estadual de Minas Gerais e a Cooperativa
Agrícola de Cotia, com ligações com o governo japonês. Atingiu uma área de
60.000 ha, em áreas médias de 250 ha. Constituiu o primeiro plano de
colonização dirigida para a conquista do cerrado mineiro, expandindo a
produção agrícola capitalista de soja, café e trigo, e sendo eleito como
programa-modelo, ainda que tenha se dado de forma a marginalizar a
população da área em relação ao processo produtivo (CLEPS JUNIOR, 1998;
PESSÔA & SILVA, 1999).
O POLOCENTRO foi criado em 1975, no interior das estratégias
propostas no II PND, tendo, entre os seus beneficiários, fundamentalmente os
grandes proprietários. Objetivava a ocupação e a ampliação da produção
modernizada e empresarial do cerrado, conjugando fatores de incentivo ao
desenvolvimento da produção e da pesquisa. Incorporando uma área de
248.410,1 ha só no cerrado mineiro (atingiu também outras áreas do Centro92
Oeste), foi desativado a partir de 1980, por apresentar baixo crescimento da
produção e da produtividade em relação aos recursos investidos, o que pode
ser explicado pela grande aplicação dos financiamentos em fins especulativos,
e não produtivos. Os vultosos créditos, subsidiados pelo Banco do Brasil, foram
distribuídos da seguinte forma:
Tabela 2.1: Distribuição dos Créditos do POLOCENTRO
Extratos de Área
- de 100 ha
100 a 200 ha
+ de 500 ha
Recursos de Crédito Liberado (%)
0,38
1,78
76,45
Fonte: IBASE, 1986, p.7 (In: PESSÔA e SILVA, 1999, p.41).
Dessa forma, as pesquisas agropecuárias desenvolvidas, bem como os
recursos distribuídos, via financiamento público, em sua quase totalidade para
grandes proprietários, favoreceram o melhoramento genético da cultura de
exportação e, consequentemente, diferentes setores industriais, definindo a
soja e o café, nesse período, como “os principais produtos que viabilizaram a
agricultura comercial no cerrado” (PESSÔA e SILVA, 1999, p.43).
O PRODECER, criado em 1978 e em vigor até hoje, foi resultado de
negociações entre os governos brasileiro e japonês para a exploração conjunta
do cerrado, cujo objetivo era a exportação de soja, milho e sorgo. Envolveu
inicialmente os municípios de Iraí de Minas, Coromandel e Paracatu,
ampliando-se posteriormente para outras áreas do cerrado mineiro e do
Centro-Oeste. Financiou a compra de terras, investimentos, custeios e
comercialização da produção agrícola, sob a responsabilidade da CAMPO –
Companhia de Produção Agrícola, fundada em 1978, “através da constituição
de duas holdings: a BRASAGRO – Companhia Brasileira de Participação
Agroindustrial, com 51% do controle acionário e a JADECO – Japan-Brasil
Agricultural Development Corporation, formada por empresas como a
Mitsubishi, Mitsui e Banco de Tóquio, com 49% do controle acionário”
(PESSÔA e SILVA, 1999, p.44). As terras adquiridas pelo programa foram
divididas em lotes de porte médio (250 a 500 ha), num total de 70.000 ha, no
93
caso dos cerrados mineiros destinadas a colonos (em sua maioria sulistas) de
um conjunto de projetos de assentamento dirigido.
Um dos pontos marcantes de tais projetos foi o de que os seus
participantes não foram os proprietários tradicionais, residentes nos referidos
municípios, mas colonos tidos como predispostos a adotarem as tecnologias
propostas (visto que boa parte era proveniente do Sul do Brasil), bem como os
grandes proprietários da região – também em “condições” de adotarem o
modelo empresarial de produção.
Os reflexos da modernização agrícola, impulsionada por esses projetos
de desenvolvimento do cerrado, podem ser observados no aumento da
produção e da área produzida de dois dos principais produtos responsáveis por
essa transformação de caráter empresarial das frentes de expansão capitalista:
a soja e o café, como mostra a tabela a seguir:
Tabela 2.2: Evolução da Produção de Café e Soja – Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba (1970-1995)
Ano
1970
1975
1980
1985
1990
1995
Triângulo Mineiro
Café
Soja
Área(ha)
259
892
8.745
14.345
29.808
17.606
Ton.
Área(ha)
160
2.562
1.529
27.013
19.252
80.832
32.903 156.898
23.810 243.020
43.831 218.455
Alto Paranaíba
Café
Soja
Ton.
Área(ha)
1.902
15.626
31.482
12.363
139.569
40.079
257.534
42.062
291.672 115.296
398.925 100.334
Ton.
Área(ha)
13.615
92
8.157
15.317
48.407
36.852
99.201 110.641
184.817 154.600
132.049 175.072
Ton.
83
12.896
68.497
194.987
271.980
397.053
Fonte: IBGE – Censos Agropecuários – 1970/75/80/85; Levantamento Sistemático da
Produção Agrícola 1988/1996. In: PESSÔA & SILVA, 1999, p.57.
De modo geral, tais projetos voltaram-se para a monocultura
exportadora, a pecuária extensiva e a constituição de agroindústrias, com forte
presença do modelo tecnológico disseminado pela Revolução Verde – que
promoveu profundas alterações na base técnica da produção agrícola, com a
adoção de um novo padrão tecnológico, baseado na utilização integrada de
mecanização e insumos químicos. Todo este processo, marcado ainda pela
constituição do crédito agrícola subsidiado, contou, como já colocado, com a
atuação decisiva do Estado. Aliás, o crédito rural cumpre o papel de
impulsionar os investimentos produtivos ao mesmo tempo em que atua como
94
definidor dos beneficiários desse processo, na medida em que os mecanismos
de seleção, implementado pelos bancos, privilegiam “estabelecimentos de
grande e médio porte, algumas regiões em detrimento de outras e os
empresários que se dedicam à produção para exportação e transformação
agroindustrial” (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.58). De acordo com a análise
empreendida por Custódio:
O passo fundamental para a consolidação do papel do Estado como
catalisador da modernização foi a concepção e execução de
programas governamentais de desenvolvimento, em que uma das
principais metas era a ocupação de vastas áreas tidas como
improdutivas, por meio das frentes de expansão. Com isso, o Estado
ocupava áreas pouco povoadas e permitia ao capital expandir-se
pela incorporação de novas terras ao processo produtivo. É nesse
sentido que se desenvolveram os programas de ocupação dos
cerrados
pelas
lavouras
de
grãos
e
reflorestamento,
empreendimentos que mobilizaram o setor industrial de maquinários,
corretivos, fertilizantes, processamento de grãos, além do setor
financeiro, de armazenamento e comercialização (CUSTÓDIO, 2000,
p.56).
Essa dinamização econômica vai consolidar o modelo de produção
agroindustrial como agente fundamental do capital no cerrado mineiro:
No aspecto econômico ele (o CAI) conseguiu inserir esta região,
competitivamente, no mercado mundial de exportação de grãos. Ele
também promoveu um avanço significativo na infra-estrutura regional
para o escoamento de produção, proporcionou o incremento
tecnológico e científico nas propriedades e desencadeou, direta e
indiretamente, a implantação de setores comerciais e financeiros
voltados a atender as demandas da agricultura moderna (SILVA,
2001, p.19).
Dessa forma, os créditos agrícolas, subsidiados pelo Estado, no decorrer
dos anos 1970, constituíram uma das mais importantes fontes indiretas de
financiamento ao desenvolvimento agroindustrial, na medida em que criou “as
condições para o estreitamento das relações entre agricultura e indústria,
dando suporte à compra de tratores, implementos e máquinas agrícolas, além
dos insumos químicos” (CLEPS JUNIOR, 1998, p.141). As grandes jazidas de
fosfato e calcário, existentes no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, atraíram
para a região, por exemplo, a indústria de fertilizantes – “o maior projeto
agroindustrial do estado de Minas Gerais, na segunda metade da década de
70, (...) idealizada para atender à grande demanda interna de insumos
95
agrícolas e às elevações do preço do produto importado” (ibidem, p.173).
Instalam-se na região a Valefértil e a Fosfértil (indústrias de fosfato) e a Arafértil
(indústria de fertilizantes), cujos investimentos necessários ultrapassaram os
US$ 300 milhões. Acrescente-se aqui, ainda, a “instalação de grandes
empresas do setor de laticínios, sucro-alcooleiro, frigoríficos, óleos vegetais,
rações, avicultura, sementes, fumo, frutas, entre outras” (ibidem, p.176).
A reestruturação produtiva das áreas de cerrado insere-se num contexto
de crise do modo de regulação capitalista, que vai provocar profundas
reformulações no processo geral de produção capitalista. Conforme análises de
Harvey (1993), Mészáros (2001; 2003) e Chesnais (1996), promove-se uma
verdadeira ofensiva do capital, em termos mundiais, que retrata, em especial,
uma ascensão sem precedentes do capitalismo financeiro, ou seja, da
realização do valor de caráter especulativo. Há que se verificar, nessa
perspectiva, que os principais indicadores das mudanças, na política agrícola,
nas áreas de cerrado, em seu processo de modernização agrícola, estão no
estímulo à sojicultura, nos anos 1970 e 80, e na consolidação de agroindústrias
na região, commodities que resultaram em grande geração de receitas de
exportação da balança comercial brasileira, com uma atividade intensiva em
capital e tecnologia.
O processo de reestruturação produtiva na agricultura brasileira,
impulsionado por todo um aparato científico e financeiro, disponibilizado pelo
Estado, pode ser verificado, segundo Mendonça e Thomaz Junior, da seguinte
forma:
A busca pela competitividade, principalmente nos mercados externos,
promoveu um reordenamento na agricultura brasileira comercial agroexportadora alterando sobremaneira as formas organizacionais de
produção. A necessidade de reduzir custos na produção e na
comercialização, assegurada quase sempre pela adoção de
inovações tecnológicas, possibilitou uma maior integração entre as
empresas (cadeias produtivas), culminando em uma verticalização da
produção com o intuito de centralizar e concentrar esforços, ações e
decisões em vários territórios mundiais-nacionais. Essa flexibilidade –
mobilidade espacial – atende as demandas exigidas pelo mercado e
assegura eficiência e produtividade (MENDONÇA e THOMAZ
JUNIOR, 2003, p.667).
Dessa forma, a modernização da agricultura das áreas do cerrado
mineiro representa a modernização capitalista no movimento constante de
96
auto-expansão e reprodução do capital. Utilizamos aqui, nessa perspectiva, a
noção de modernização conservadora para referirmo-nos a este processo, pelo
seu caráter excludente e conservador, que “expressa a lógica de produção e
reprodução do capital no processo de implantação das condições objetivas e
subjetivas com o intuito de assegurar a produção do valor, carregando consigo
todas as contradições inerentes ao modo de produção”, ou seja, “a
modernização conservadora expressa e é a própria lógica destrutiva do capital”
(MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.665).
Em outras palavras, o processo de modernização do Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba, que promoveu uma elevação inquestionável da produção e da
produtividade, veio acompanhado, como em todo o território nacional, do
acirramento das contradições sócio-econômicas, tendo em vista que não
privilegiou todos os segmentos envolvidos.
As modificações no âmbito da pequena produção ocorreram no
sentido de estabelecer uma dependência cada vez maior às
estruturas de mercado. A aquisição de máquinas, sementes
melhoradas, adubos, agrotóxicos, de um lado, e o financiamento
bancário e a comercialização, de outro, acabaram subordinando a
pequena produção ao capital (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.54)
Esta intensificação da subordinação da pequena produção camponesa
ao capital vai refletir-se na progressiva descapitalização dos pequenos
produtores:
Através dos financiamentos do crédito rural, parte de sua renda é
transferida ao capital financeiro. Outra parte é transferida para as
indústrias, ao serem adquiridos insumos e implementos agrícolas.
Finalmente, outra parte é retirada no processo de comercialização
pelos “atravessadores” e até mesmo pelas cooperativas.
A subordinação da pequena produção ao capital tem como
conseqüências a superexploração do trabalho familiar (incorporação
de mulheres e crianças na produção e o prolongamento da jornada de
trabalho), a perda da autonomia e a pauperização da unidade
camponesa (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.58).
Esse processo fez-se acompanhado, ainda, da desterritorialização do
camponês, ou seja, da exclusão/ expropriação de uma parcela da população
rural, além da exploração violenta dos recursos naturais, típica da produção
necessariamente destrutiva do capital, bem como do aprofundamento das
formas de exploração do trabalho. Aliás, a precarização do trabalho
97
(representada, por exemplo, pelo aumento do desemprego, do subemprego, da
informalidade e da desregulamentação das leis trabalhistas) é característica
marcante do processo de reestruturação produtiva do capital, em termos gerais
(em todos os setores), de acordo com análises de Boito Junior (2001), Antunes
(1999) e Alves (2002).
O processo de modernização trouxe, assim, fortes impactos ao mundo
do trabalho rural, em especial pela destruição massiva de formas tradicionais
de produção, como os arrendamentos para agricultores (com a transformação
de áreas do cerrado em pastagens) e a parceria, com um conseqüente
aumento do desemprego e do êxodo rural.
A parceria (cuja base é o trabalho familiar), por exemplo, que teve um
papel importante no processo de ocupação econômica do cerrado mineiro e
que era muito utilizada até então para o cultivo de cereais e o trabalho com o
gado, tornou-se, com o processo de capitalização da agricultura, dispensável
em sua quase totalidade. O número de parceiros, segundo dados do IBGE,
sofre uma redução drástica: de 13.311 existentes em 1970, cai para 8.552 em
1975, 1.830 em 1980, 907 em 1985 e, finalmente, 842 em 1995. No Alto
Paranaíba a tendência é a mesma: 10.461 parceiros em 1970, 7.652 em 1975,
7.442 em 1980, 5.870 em 1985, e apenas 728 em 1995 (PESSÔA e SILVA,
1999, p.73). Destaca-se aqui o crescimento de formas de trabalho assalariadas
permanentes, bem como uma intensificação das formas de contratação
temporária (modalidade altamente vantajosa, segundo a racionalidade
capitalista), o que evidencia uma crescente proletarização da força de trabalho.
Ainda de acordo com dados do IBGE, em 1970, há 28.387 trabalhadores
temporários no Triângulo Mineiro e 8.763 no Alto Paranaíba. Em 1985 esses
números aumentam, respectivamente, para 39.025 e 24.928. Já em 1995/96,
esses números são reduzidos cerca de 60% e 45%, como veremos mais à
frente, devido a uma nova onda de mecanização das lavouras de café, com a
adoção intensiva de colheitadeiras mecânicas, em substituição à força humana,
multiplicando ainda mais o número de desempregados no campo (SILVA,
2001).
98
Segundo fichas cadastrais do MLST de Luta3, por exemplo, “o sem-terra
antes arrendatário, posseiro, pequeno proprietário rural, hoje é o bóia-fria, o
motorista, o pedreiro, o eletricista, o mecânico, o desempregado das cidades
como Uberlândia, cuja população cresceu 293% nos últimos 30 anos, segundo
a Prefeitura Municipal, com base nos dados do IBGE” (FONSECA, 2001,
p.123). Essas transformações no mundo do trabalho são analisadas por
Mendonça e Thomaz Junior da seguinte forma:
O processo crescente de controle do capital sobre o trabalho se
efetiva a partir da intensificação da divisão técnica do trabalho e do
aparato técnico-científico, fundamentais para compreendermos o
processo de modernização da agricultura, porém o cerne da questão
está nas múltiplas formas de produção e nas distintas modalidades de
trabalho sob intensa subordinação e precarização. Está ocorrendo
uma (re)articulação entre os trabalhadores desterreados que, agora
assumem novas funções na cidade, mas continuam como reserva de
mercado para os empresários rurais, possibilitando repensar a
relação cidade-campo. Não há dúvida de que se tem um novo
conteúdo na relação cidade-campo, um novo desenho societal, a
partir das novas questões colocadas pela reestruturação produtiva do
capital, que ao se territorializar redefine a relação cidade-campo,
assim como seus atores sociais (MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR,
2003, p.668).
Tais mudanças traduziram-se na concentração de terras e riquezas, na
separação entre o trabalhador rural e os meios de produção e na maior
mobilidade campo-cidade. Na tabela abaixo, é possível verificar, através dos
resultados obtidos pelo Índice de Gini, que a concentração fundiária,
historicamente alta, devido às formas de ocupação da região, amplia-se ainda
mais no período 1970-1985:
Tabela 2.3: Concentração da Terra: Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba –
Índice de Gini (1970-1985)
Ano
1970
1975
1980
1985
Triângulo Mineiro
0,667
0,674
0,683
0,692
Alto Paranaíba
0,651
0,668
0,666
0,670
Fonte: IBGE – Censos Agropecuários – 1970-1975-1980-1985 (In: PESSÔA e SILVA, 1999,
p.23).
3
Movimento de Libertação dos Sem-Terra de Luta, atuante na região, que em 2002 tornou-se
MTL – Movimento Terra Trabalho e Liberdade.
99
Acrescente-se, ainda, o fato de que, no decorrer das décadas de 1970 e
1980, a economia brasileira caracterizava-se por inflação alta e grandes
investimentos, em especial no mercado de terras, de tal forma que o cerrado
mineiro tornou-se “„locus‟ dessa valorização de terras, que beneficiou,
sobretudo,
os
grandes
proprietários
e
empresas
agropecuárias,
que
procuravam essa área para nela estabelecerem novos investimentos”
(PESSÔA e SILVA, 1999, p.23).
A partir da década de 1980, sobretudo pela crise fiscal e cambial vivida
pelo país, há um enfraquecimento da atuação do Estado no investimento rural
e agroindustrial. No âmbito da ideologia liberalizante do mercado – hegemônica
a partir de então –, novas formas de financiamento da produção agrícola e da
agroindústria são disseminadas frente à escassez de recursos do crédito rural
estatal, de tal forma que “aumentou significativamente a participação de
recursos privados no custeio da safra e no próprio investimento, em
contrapartida à diminuição dos recursos públicos” (CLEPS JUNIOR, 1998,
p.143). Não que o Estado não cumpra mais funções decisivas no processo, ao
contrário do que erroneamente divulga a chamada ideologia do Estado Mínimo.
A guerra fiscal entre os estados para atrair investimentos, por exemplo, resulta
em uma série de incentivos para a instalação de grandes fábricas nacionais e
multinacionais (privadas), inclusive do setor agroindustrial – como o caso da
instalação da Monsanto Corporation, na cidade de Uberlândia em 1997, em
que a empresa norte-americana recebeu o terreno para a construção do seu
centro de pesquisa além de serviços de infra-estrutura. Em Minas Gerais, de
forma geral, a produção da agroindústria, na década de 1980, teve uma
expansão de 15,8% (acima da média nacional, que foi de 13,7%), e a produção
mineira de produtos utilizados pela agricultura, os insumos agropecuários,
cresceu duas vezes e meia, mesmo frente ao nível de produção industrial
brasileiro, que apresentou decréscimo após 1988 (CLEPS JUNIOR, 1998,
p.177). Dessa forma, os incentivos fiscais e creditícios, bem como o patrocínio
na construção de infra-estrutura e no desenvolvimento técnico-científico dos
momentos anteriores garantiram uma acumulação de capital em determinados
setores – aqueles privilegiados pela atuação estatal de décadas passadas –
que permanecem impulsionando o modelo empresarial de produção no campo,
100
o agribusiness e, conseqüentemente, reproduzindo as distorções sociais que
lhes são intrínsecas.
Tanto é que a década de 1990 marcou, além da instalação de grandes
empresas
agroindustriais
nas
áreas
de
cerrado,
uma
retomada
da
mecanização da agricultura, em especial das lavouras cafeeiras, uma das
maiores geradoras de emprego rural, transformando-se agora numa grande
ameaça também à mão-de-obra temporária. A busca pelo incremento dos
lucros e pela maior competitividade no mercado elevou o emprego e o
desempenho das máquinas na cafeicultura, em especial pelo uso mais
intensivo de colheitadeiras, ao mesmo passo em que reduziu o número de
trabalhadores empregados nas lavouras. Conforme noticia a Folha de São
Paulo, em 1998:
Pelo menos 24 mil empregos deixam de existir, devido o processo de
mecanização da colheita de café no cerrado mineiro. Nunca o cerrado
teve tanta máquina em operação como nesta safra. São 160
colheitadeiras em ação. É a maior região do mundo com colheita de
café mecanizada. Cada máquina, que custa em média U$ 150 mil,
chega a substituir 150 trabalhadores (Folha de São Paulo, 1998, p.4
apud PESSÔA e SILVA, 1999, p. 81).
Aliás, conforme atesta Cleps Junior, já desde a década de 1980, em
Minas Gerais, “assiste-se a um esgotamento da expansão da fronteira do
cerrado. Com isso, a tendência é a intensificação dos cultivos em Minas
Gerais, realizada através de uma concentração, cada vez maior, da
propriedade e da produção agrícola” (CLEPS JUNIOR, 1998, p.141).
Mesmo frente a todo esse processo, não poderíamos deixar de
mencionar que a agricultura familiar se traduz, ainda que numa região onde é
relativamente pouca expressiva, em uma importante fonte de produção,
emprego e renda:
O Triângulo Mineiro sempre foi tido como uma região de grandes
propriedades rurais, representadas pelo sistema de agricultura
patronal de soja e pecuária de corte (...). Os dados do censo de
1995/96 mostram que a agricultura familiar, diferente do que ocorre
nas regiões Sul e Nordeste, possui pouca expressividade na região,
correspondendo a 53,3% do número de estabelecimentos totais,
embora ocupe menos de 20% da área total dos estabelecimentos.
(...) A agricultura familiar gera uma renda de R$ 83,38 por hectare,
ao passo que a agricultura patronal gera apenas R$ 53,55 por
hectare. (...) Além disso, a agricultura familiar no Triângulo Mineiro
tem uma capacidade de gerar um maior número de postos de
trabalho. (...) Verifica-se que a agricultura familiar ocupa um
101
trabalhador a cada 23,28 ha ao passo que a agricultura patronal
emprega um trabalhador para cada 56,39 ha (PCT/ INCRA/ FAO,
2001, p.11 e 12).
De maneira geral, a análise da modernização do espaço rural do cerrado
mineiro permite-nos afirmar que, assim como em todo o território brasileiro,
esta se deu de maneira a privilegiar a economia agrário-exportadora e a
atender aos interesses do capital mercantil e do monopolista. Balizada no
pacote tecnológico da Revolução Verde e no papel decisivo do Estado, a
intensiva apropriação pelo capital desse espaço – em seu movimento
necessário e contraditório de auto-expansão e reprodução – caracterizou-se
pelo seu caráter destrutivo e excludente.
Isto posto, há que se verificar que o agravamento da realidade agrária
na região, induzido pela implementação da modernização conservadora no
cerrado mineiro, por sua vez, traduziu-se na intensificação dos conflitos de
classe na área rural.
O resultado desta desterritorialização provocada pelo capital e pela
tecnologia se exprimiu, a partir da década de 1980, nos
assentamentos rurais na mesorregião do Triângulo Mineiro / Alto
Paranaíba. É nesse mesmo período que ações sindicalistas e
atuações de grupos católicos progressistas começam a organizar
politicamente os trabalhadores rurais da região (SILVA, 2002, p.3).
Isso significa, nesse sentido, que a própria territorialização do capital cria
as condições para a sua superação, mediante a possibilidade da agudização
da luta de classes efetivada através das ações das organizações dos
trabalhadores rurais. Dessa forma, o sentido contraditório do conflito “capital
versus trabalho” e de sua territorialização nas áreas de cerrado, intensificado
no processo já exposto de modernização da agricultura, pode ser apreendido
na perspectiva das lutas sociais aqui travadas.
A Luta Pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – as formas
embrionárias de organização e resistência dos trabalhadores rurais frente
à ofensiva do capital
Frente ao processo de democratização, marcado pelo fim da ditadura
militar, e ao agravamento da situação dos trabalhadores rurais, fruto das
102
conseqüências nefastas da modernização conservadora da agricultura
implementada por este mesmo regime, verificou-se, nesse período, e de forma
crescente até os dias atuais, a ocorrência de uma série de movimentos sociais
em defesa da reforma agrária. Tais movimentos, orientados para a alteração
das condições coletivas de existência dos seus integrantes, fazem emergir,
como sugere Micheloto “os interesses, valores e demandas específicas dos
setores subalternos rurais” (MICHELOTO, 1990, p.61). Como explicita Santos:
“os camponeses começam a construir sua identidade histórica como
participantes das classes subalternas da sociedade brasileira, unidas pela
vivência comum da dominação e exploração pelo capital” (SANTOS, 1978,
p.175).
Entretanto, datam de momentos anteriores mesmo ao regime militar os
primeiros registros de manifestações coletivas de trabalhadores rurais no
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. De maneira geral, a organização em Minas
Gerais dos trabalhadores rurais teve origem com a fundação dos Sindicatos e
Ligas Camponesas, nos anos 1950 e 60, época em que a luta pela terra já
eclodia em vários municípios, ainda que de forma isolada.
Até o início dos anos 1960, o PCB (Partido Comunista Brasileiro) era o
principal mediador dos processos de organização dos trabalhadores rurais em
Minas Gerais, controlando, através da ULTAB (União dos Lavradores e
Trabalhadores da Agricultura do Brasil), inúmeras associações do meio rural. A
ULTAB foi criada em 1954, na 2a Conferência Nacional de Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas. Nesta ocasião, já participaram arrendatários e
assalariados do Triângulo Mineiro e do Sul de Minas (regiões em que o PCB
atuava desde 1951), onde, a partir de então, começaram a ser fundadas
algumas Associações de Trabalhadores Agrícolas. Já em 1956 realiza-se, em
Belo Horizonte, a 1a Conferência de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do
Estado de Minas Gerais, onde é criada a ATAMG – Associação dos
Trabalhadores Agrícolas de Minas Gerais. Dentre os principais municípios do
Triângulo
Mineiro
que
enviaram
representantes
ao
evento,
estavam
Capinópolis, Centralina, Ituiutaba, Cascalho Rico, Araguari e Uberlândia. Aliás,
neste mesmo ano, no Triângulo Mineiro, é criada a ULTAM – União dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Minas, também sob a influência do
PCB.
103
Apesar do caráter ainda marcadamente disperso e isolado das lutas,
iniciava-se o processo de organização institucional dos trabalhadores rurais do
estado. A ATAMG contava com o apoio da Igreja Católica e, ainda, do poder
público estadual e até de setores do patronato rural, que esperavam que “a
constituição da ATAMG funcionasse como um mecanismo que possibilitasse
um controle institucional das demandas apresentadas pelos trabalhadores
rurais” (FERREIRA NETO, 1999, p.172). De qualquer forma, mesmo inserida
num contexto em que a tentativa de cooptação e controle dos trabalhadores
rurais é clara, a 1a Conferência de Lavradores e Trabalhadores do Estado de
Minas Gerais marcou um avanço importante no processo de organização dos
trabalhadores rurais:
Apesar de os estatutos da ATAMG não apresentarem, explicitamente,
a possibilidade de organização política dos trabalhadores rurais, uma
vez que a intenção do poder público era levar a “harmonia” ao campo,
estava criado o mecanismo institucional que possibilitava a
organização dos trabalhadores para a defesa de seus direitos e que,
posteriormente, daria origem à atual estrutura sindical dos
trabalhadores rurais em Minas Gerais (FERREIRA NETO, 1999,
p.173).
A partir de então, intensificam-se as ações do PCB, no sentido de
dimensionar o papel da ATAMG e de promover a criação de STRs (Sindicatos
de Trabalhadores Rurais), tendo em vista que a opção de ação da ULTAB era,
notadamente, a intensificação da luta pela sindicalização dos trabalhadores
rurais; desencadeando, assim, um processo considerável de organização no
campo. Foi em Belo Horizonte (MG), inclusive, que se realizou, em novembro
de 1961, o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas,
ocasião em que as teses das Ligas Camponesas derrotaram as propostas mais
moderadas do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
As Ligas Camponesas atuaram em Minas Gerais, em fins da década de
1950 e início da década de 1960, através da criação de um Conselho Estadual
das Ligas Camponesas, sob a liderança de Francisco Julião, que foi fechado
em 1963. De acordo com Ferreira Neto (1999), a ação das Ligas em Minas
também volta-se, em parte, para o processo de sindicalização rural. Apenas a
partir de 1960, começa a constituir um aparato organizacional voltado para a
luta armada, sendo que, já em 1962, seus principais centros de treinamento,
104
instalados em Goiás, serão desmantelados pelo Governo Federal. O PCB, que
se constituiu como o mediador mais evidente na organização dos trabalhadores
rurais em Minas Gerais, tem, a partir daí, garantida a predominância das suas
teses no estado.
A opção pela sindicalização rural se manifestará, inclusive, na
transformação das Ligas Camponesas em STRs, e o Estado será encarado
como “o principal ponto de apoio, jurídico e financeiro, ao processo de
organização dos trabalhadores rurais” (FERREIRA NETO, 1999, p.177).
De acordo com a avaliação de Ferreira Neto:
A opção pela sindicalização, como estratégia de luta, significava,
implícita e explicitamente, o reconhecimento do Estado como o
principal articulador da organização social e, portanto, a aceitação do
espaço jurídico como referência básica para a organização e ação
dos trabalhadores rurais, ou seja, significava assumir uma opção de
lutar pelos direitos dos trabalhadores, de acordo com as regras
impostas pelo Estado. É bem verdade que, naquela conjuntura
política em que vivia o país, a possibilidade de manutenção de um
espaço juridicamente regulado para o tratamento dos interesses dos
trabalhadores rurais já significava certo avanço” (FERREIRA NETO,
1999, p.182).
A partir do I Congresso Nacional de Belo Horizonte – identificado como o
momento em que o MSTR (Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais)
inicia seu processo de consolidação, que culminará com a constituição da
CONTAG (Confederação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas
Gerais), em 1963 –, há uma radicalização nas reivindicações por reforma
agrária em todo o país. Da mesma forma, o MSTR mineiro desencadeia um
processo marcado pela constituição de vários sindicatos e pela ampliação da
visibilidade da organização dos trabalhadores rurais.
No que se refere à formação do MSTR mineiro, de acordo com Ferreira
Neto:
A construção da estrutura de organização sindical dos trabalhadores
rurais, em Minas Gerais, ocorreu a partir da existência de um conjunto
de condições estruturais – a histórica e crescente exploração dos
trabalhadores, a ausência de políticas públicas para o meio rural e a
excessiva concentração fundiária; e condições conjunturais, como
relativa estabilidade política, necessidade que o PCB tinha de
afirmação e ampliação de suas bases, repercussão da atuação das
Ligas Camponesas tanto em relação às expectativas dos
trabalhadores quanto em relação à reação por parte do Estado e,
105
finalmente, existência de uma legislação trabalhista que abria espaço
para o processo de organização dos trabalhadores (FERREIRA
NETO, 1999, p.166).
No que se refere a este último ponto, entretanto, o autor complementa:
Contudo, se por um lado essa legislação trabalhista representava a
possibilidade de os trabalhadores rurais se organizarem para
reivindicar seus direitos, por outro, criava os mecanismos de controle
do movimento sindical, bem como os entraves à organização política
desses trabalhadores (FERREIRA NETO, 1999, p.166).
De qualquer forma, o Golpe Militar de 1964 irá frear esse processo,
desarticulando o processo ainda embrionário de organização. Apesar da
existência de uma rede de sindicatos – já haviam sido criados 24 no Estado,
sendo que o Triângulo Mineiro contava com sete: os STRs de Araguari,
Centralina, Uberlândia, Uberaba, Campo Florido, Monte Alegre de Minas e
Monte Carmelo – e duas federações (nenhuma delas reconhecida pelo
Ministério do Trabalho), o MSTR passa por um período de considerável
retração. As federações foram fechadas, sindicatos sofreram intervenções e
lideranças foram presas e torturadas. Acrescente-se aqui o fato de que Minas
Gerais foi um “estado onde a sanha anticomunista foi particularmente violenta
devido
à
mobilização
conservadora
em
favor
do
golpe
de
1964”
(POMPERMAYER, 1987, p.9), com destaque para o apoio dado pelos
ruralistas, em especial os do Triângulo Mineiro. A estrutura sindical, no entanto,
foi mantida. Tratava-se de consolidar o papel do sindicato como “instrumento
de mediação entre Estado e os trabalhadores, viabilizando a política econômica
através do controle de suas bases e, de outro, canalizar as reivindicações de
seus membros e resolvê-las pela mediação de órgãos do aparelho do Estado,
sob o lema da colaboração de classes” (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.52). A
reativação do MSTR ficou, sobretudo, a cargo da ala conservadora da Igreja
Católica – precisamente os Círculos Operários Cristãos, que se incumbiram de
reabrir as portas dos sindicatos de linha mais moderada logo após o golpe.
Nesse sentido, é possível afirmar que, conforme Grzybowski:
A maior parte dos sindicatos e federações não tem origem histórica
sindical, isto é, nas lutas dos trabalhadores, mas na política
assistencialista do Estado. Durante o período autoritário,
multiplicaram-se os sindicatos de trabalhadores rurais com funções
106
assistencialistas.
Constituiu-se,
assim,
uma
retaguarda
conservadora e paralisante de sindicatos em muitas regiões.
(GRZYBOWSKI, 1987, p.63).
Nesse contexto é criada a FETAEMG (Federação dos Trabalhadores da
Agricultura do Estado de Minas Gerais), em abril de 1968, que terá um
expressivo e rápido crescimento, devido a “existência de expressiva rede de
sindicatos já em efetivação, a relativa disponibilidade de recursos oficiais e a
opção por atuar dentro dos limites impostos pela legislação” (FERREIRA
NETO, 1999, p.205).
Com uma forma de atuação pouca autônoma e altamente vinculada ao
Estado, a FETAEMG só trará a reforma agrária para o campo efetivo das suas
prioridades de luta em meados da década de 1980. As primeiras diretorias da
entidade, fortemente vinculadas aos Círculos Operários Cristãos, restringiamse a tentativas de aplicação do Estatuto da Terra e a denúncias de
arbitrariedades no campo (como formas de violência e grilagem de terras). Nos
anos 1970, acentua-se o caráter assistencialista imprimido ao movimento, que
passou a dar prioridade a convênios com órgãos de Estado, em especial no
que se refere à operacionalização do FUNRURAL (Fundo de Assistência Social
ao Trabalhador Rural):
Os novos rumos tomados pela FETAEMG sintonizavam-se com a
política do Estado autoritário que procurava esvaziar o caráter
representativo dos Sindicatos com o Pró-Rural, programa que
estendeu a assistência previdenciária ao trabalhador do campo e
definiu o sindicato como órgão de colaboração na sua implantação e
execução. O sindicato, já atrelado ao Estado através de uma
legislação corporativista, assumiu, no meio rural, um caráter
fundamentalmente assistencialista. Inúmeros sindicatos foram criados
em Minas Gerais como mera extensão do FUNRURAL (GADELHA e
SGRECIA, 1987, p.52).
Esta linha de atuação da federação mineira, que marcou a sobreposição
do sindicalismo oficial em detrimento da incipiente organização autônoma dos
trabalhadores rurais do período anterior – destruída pela repressão militar –
distanciava-se
inclusive
“da
orientação
do
Movimento
Sindical
dos
Trabalhadores Rurais, em nível nacional, que elegera a luta pelos direitos
trabalhistas e o fortalecimento dos sindicatos existentes como diretriz básica de
sua ação” (POMPERMAYER, 1987, p.10).
107
Tendo sido a sindicalização rural a tendência dominante da luta no
campo, em Minas, observa-se que, além da possibilidade da tutela da
sindicalização rural e da contenção das tensões sociais no campo – interesses
dos setores dominantes representados no Estado, “a ênfase na criação de
sindicatos também modifica a posição da reforma agrária no processo de
organização dos trabalhadores rurais, à medida que a sindicalização, além dos
limites impostos pelo estado, aglutina um conjunto de atores e de lutas não
necessariamente sintonizados com a luta pela terra” (FERREIRA NETO, 1999,
p.182).
De acordo com Ferreira Neto:
A estrutura de dependência do MSTR para com o Estado, ao mesmo
tempo que garantia ampla margem de estabilidade ao Movimento,
restringia drasticamente a sua autonomia e, conseqüentemente, a sua
legitimidade. É justamente nesse sentido que a FETAEMG e todo o
MSTR nacional, representado pela CONTAG, não conseguiam, de
modo efetivo, dar respostas ao crescente número de demandas,
vindas da base, de um sindicalismo mais atuante e mais
comprometido com os interesses dos trabalhadores (FERREIRA
NETO, 1999, p.231).
Aliás, de maneira geral, de sua criação até meados da década de 1970,
a federação tinha a reforma agrária quase como um tema proibido: “o Estatuto
da Terra era a única referência para suas ações que envolviam a temática
fundiária, as quais se davam de forma pontual e individualizada” (FERREIRA
NETO, 1999, p.341).
Nesse contexto, os movimentos mineiros, existentes anteriormente ao
golpe militar, permanecerão essencialmente desmobilizados pela repressão até
meados dos anos 1970, período que marca a reemergência dos movimentos
sociais rurais no estado. Durante ainda o período de isolamento surgem
diversas iniciativas de contatos, encontros, reuniões de grupos com os mais
diversos objetivos.
Em 1979, realiza-se o III Congresso Nacional, que vai marcar a história
do MSTR, que “impulsionado externamente por uma conjuntura de ascenso do
movimento sindical e dos movimentos populares e, internamente, pela
intensificação dos conflitos pela posse da terra e pela ação da Comissão
Pastoral da Terra, passou a estimular as lutas coletivas dos trabalhadores”
(GADELHA e SGRECIA, 1987, p.53). Entre as diretrizes de luta aprovadas
108
neste Congresso destacam-se o incentivo à organização da resistência na terra
e à mobilização dos trabalhadores no sentido de ocuparem terras improdutivas.
A FETAEMG, no entanto, frente às diretrizes do III Congresso,
redimensionou a sua ação, mas limitando-se a apoiar os processos de
ocupação e encaminhar as reivindicações dos trabalhadores ao Estado (sem
assumir a organização efetiva dos trabalhadores para a ocupação), com um
encaminhamento administrativo, institucional e isolado dos conflitos. Aliás, de
forma geral, até o final dos anos 1970, o MSTR mineiro não interferia
significativamente nos conflitos por terra que ocorriam no estado, no sentido de
organizar e defender os trabalhadores. Conforme análise de Gadelha e
Sgrecia:
O movimento sindical não conseguiu articular os diferentes
movimentos pela posse da terra numa luta mais ampla, visando à
solução imediata dos conflitos e à integração dos assalariados e
pequenos proprietários em torno da reforma agrária.
A ação do movimento sindical caracterizou-se pelo imediatismo, pela
inexistência de uma estratégia, visando ao fortalecimento das lutas, e
pela incapacidade de estabelecer alianças com outros setores da
sociedade, sem os quais se tornam remotas as possibilidades de
confronto com os latifundiários na disputa pela terra (GADELHA e
SGRECIA, 1987, p.81).
No entanto, apesar de manter seu controle quase absoluto sobre o
conjunto dos sindicatos do Estado, a FETAEMG começa a concorrer com a
ação mais efetiva de outras organizações no direcionamento das lutas dos
trabalhadores rurais do estado, como a CPT, a CUT e o MST.
No que tange, em específico, à região do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba, é possível afirmar que, conforme Mendonça e Thomaz Junior, “a
incorporação das áreas de cerrado aos interesses da economia transnacional
não apenas complexificou, como também promoveu diferenciações na classeque-vive-do-trabalho e substancialmente na sua forma de ser e de se
expressar politicamente” (MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.664).
Dessa forma, intrínseco a este processo de reestruturação produtiva, está o
crescimento considerável de trabalhadores com relações de trabalho
assalariado permanente ou, em especial, temporário, em detrimento das
formas tradicionais de parceria para a exploração da terra - fato fundamental
109
para a compreensão da ascensão do movimento de luta pela terra na região do
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. De acordo com Silva:
A territorialização dessa mão-de-obra no Cerrado Mineiro é
considerada um marco na reorganização das relações sociais no
espaço agrário local. Através dessa categoria de trabalhadores nas
atividades agrícolas regionais é que as instituições políticoideológicas – STRs e APR, mediadoras da luta pela reforma agrária –
encontraram espaço para se territorializarem (SILVA, 2002, p.38).
Foi justamente neste período, inclusive, marcado pelo auge da
modernização agrícola e da implementação dos projetos governamentais na
região, que a maior parte dos sindicatos de trabalhadores rurais começaram a
ser criados nos municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, ainda que
uma atuação mais forte, entretanto, tenha se dado apenas a partir dos anos
1980.
A ameaça de expulsão dos trabalhadores ainda moradores nas
fazendas, a não aplicação da legislação trabalhista em grande parte dos
contratos de trabalho permanentes e a situação incerta dos bóias-frias
caracterizam um processo de intensa exploração dos assalariados, marcado
pela intensificação e prolongamento da jornada de trabalho. Assim, como já
apontado, os anos 1970 são marcados, com a implementação do processo de
modernização da agricultura, pela intensificação da exploração do trabalho
rural
e
da
expropriação
dimensionamento
dos
camponesa,
conflitos
o
fundiários.
que
Nesse
traduz-se
sentido,
num
novo
também
a
subordinação da pequena produção camponesa ao capital, engendrada pelo
processo de expansão do capital, que tem como conseqüências a perda da
autonomia e a pauperização da unidade camponesa, levam os pequenos
agricultores a assumirem um novo papel no cenário das lutas no campo.
Apesar da fragilidade das organizações dos pequenos agricultores, estas
apresentam avanços ao questionarem os mecanismos que causam o
endividamento e a perda de terras e, conseqüentemente, buscarem um novo
modelo de organização da produção agrícola. Afinal, “a subordinação da
unidade camponesa ao capital, reforçada pela política agrícola, continua
colocando em permanente risco sua reprodução como pequenos produtores”
(GADELHA e SGRECIA, 1987, p.58).
110
A Reemergência do Movimento de Trabalhadores Rurais no Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba: os anos 1980
A busca por um sindicalismo mais atuante e representativo reflete-se, já
nas eleições de 1977, para a composição da 4a diretoria da FETAEMG, que vai
marcar novas formas de atuação da federação, a partir da década de 1980.
Refletindo uma série de transformações conjunturais no país, as novas formas
de atuação estarão refletidas na busca de alternativas ao caráter meramente
assistencialista que predominava na estrutura do MSTR (Movimento Sindical
dos Trabalhadores Rurais), na ampliação das discussões políticas na
federação, no esforço de coletivização das diversas frentes de luta dos
trabalhadores rurais e na rediscussão e busca de estratégias de luta pela
reforma agrária – bandeira esta que é mais concretamente assumida durante o
III Congresso da CONTAG, realizado em 1979. É certo, entretanto, que o que
vai predominar entre as bandeiras do MSTR é a luta dos assalariados, e não
da reforma agrária, com a tentativa de implantação da Convenção Coletiva do
Trabalho, mantendo-se o Estatuto da Terra como a principal referência de
atuação.
O chamado Grupo Montalvão, encabeçado por André Montalvão, que
passa então a controlar a FETAEMG – e que vai permanecer na sua direção
por algumas gestões consecutivas –, buscou reproduzir, em certa medida, o
modelo de ação sindical adotado pela CONTAG, inspirado na greve dos
canavieiros de Pernambuco de 1979, que consistia na “ampla mobilização e
paralisação
dos
trabalhadores
com
base
em
parâmetros
legalmente
estabelecidos” (FERREIRA NETO, 1999, p.251). Ou seja, a greve passa a ser
encarada como um legítimo recurso de pressão, frente às novas possibilidades
de negociação e ação política sugeridas pelo processo de abertura política. Em
1985, por exemplo, ocorre a primeira grande manifestação dos trabalhadores
rurais bóias-frias da cafeicultura do cerrado mineiro. Reivindicando o
cumprimento das leis trabalhistas, melhores salários e condições de trabalho,
com o apoio do STR e da FETAEMG, um número considerável de
trabalhadores paralisou as atividades durante, aproximadamente, uma semana,
na cidade de Araguari.
111
Assim, vinculadas às campanhas salariais apoiadas pela FETAEMG,
intensificaram-se as paralisações na região do Triângulo Mineiro – como, além
da dos bóias-frias da cafeicultura, as dos canavieiros de Uberaba e de
Fronteira, no ano de 1984, e a dos trabalhadores rurais de Centralina.
Esta última, por exemplo, marcou um avanço significativo no
direcionamento das lutas travadas no município e coordenadas pelo sindicato.
O STR de Centralina, que foi fundado em 1963 – sendo um dos mais antigos
da região –, manteve uma linha meramente assistencialista até 1987, quando
vence as eleições um grupo de oposição. Este grupo, constituído em 1984 e
formado
essencialmente
nos
trabalhos
católicos
que
vinham
sendo
desenvolvidos, na região, por irmãs da ordem franciscana brasileira, vai
coordenar, entre os dias 16 e 21 de março de 1987, uma greve dos
trabalhadores rurais de Centralina, que reivindicavam o aumento da
remuneração pela arroba colhida de algodão. Piquetes foram organizados para
barrar os caminhões de trabalhadores e mais de mil bóias-frias aderiram à
greve. De acordo com a avaliação de Micheloto, apesar de não ter trazido
grandes conquistas imediatas, a greve marcou um grande avanço político,
consolidando a imagem da oposição sindical, que venceu as eleições para a
diretoria do STR neste mesmo ano, com um programa que avançava muito,
politicamente, em relação ao que estava posto, incluindo, por exemplo, a luta
pela reforma agrária. Dessa forma, e somando-se o respaldo prestado pela
CPT regional à greve, especialmente na articulação com outras instâncias, “ao
mesmo tempo que cresceram, em termos de organização e consciência do seu
próprio caminho sindical, os trabalhadores de Centralina abriram espaço,
também, para articulações mais abrangentes, como a CUT e o PT
(MICHELOTO, 1990, p.72).
De forma geral, as campanhas salariais desenvolvidas, no Triângulo
Mineiro, provocaram mudanças no interior do próprio movimento sindical, de tal
forma que alguns sindicatos deixaram em segundo plano o trabalho
assistencialista para intervir de forma mais sistemática na defesa coletiva dos
assalariados. Esse fato nos remete à reflexão empreendida por Grzybowski de
que “o caráter mais ou menos combativo dos sindicatos é, em grande parte,
resultado do movimento e não condição prévia das lutas no campo”
(GRZYBOWSKI, 1987, p.63).
112
O Pontal do Triângulo passa a constituir uma das regiões do Estado que
intensifica as lutas pela implementação da Convenção Coletiva do Trabalho,
buscando incorporar os trabalhadores vinculados à crescente cultura de soja
na região, intensificada, em especial, a partir da instituição do POLOCENTRO
e do PRODECER.
As avaliações posteriormente realizadas da luta pela implementação do
Contrato Coletivo de Trabalho, em Minas Gerais, sugerem que, em certo
sentido, essa nova forma de luta despertou uma grande mobilização entre os
sindicatos associados, mas não conseguiu consolidar as conquistas no sentido
da real efetivação do Contrato Coletivo. Esta dificuldade do MSTR mineiro é
associada ao fato de que, por um lado, “ainda naquele momento, a maioria dos
STRs tinha, como forma de atuação, a resolução de problemas de forma
restrita a casos específicos e pontuais, mantendo o estilo tradicional de
atuação implementado pelas primeiras diretorias da FETAEMG” (FERREIRA
NETO, 1999, p.254) e, por outro, a própria FETAEMG, apesar das mudanças
no discurso oficial, não conseguia dar resposta às transformações que
ocorriam no campo nem encaminhar efetivamente as lutas que estas
produziam,
mantendo
sua
verticalidade
na
estrutura
sindical
e
um
distanciamento da base (ibidem).
Na tentativa, entretanto, de criar mecanismos de descentralização da
estrutura sindical, como forma de ampliar sua base de atuação, a FETAEMG
inicia, em 1978, a instalação de Delegacias e Pólos Regionais, tendo sido a
Delegacia Regional do Triângulo Mineiro (situada em Uberaba) uma das
primeiras.
Já a partir da segunda metade da década de 1980, a FETAEMG passa a
adotar uma postura mais agressiva na condução da luta pela terra, o que é
impulsionado, inclusive, pelo surgimento de novos atores no processo de
organização dos trabalhadores rurais do estado, como o MST e a CPT, que
promovem uma luta de ocupação e enfrentamento, que vai exigir uma nova
postura da federação que, ao contrário de algumas regiões do país, onde o
MSTR ficou meio adormecido frente às novas ações, busca incorporar algumas
dessas novas estratégias de luta. Inicialmente, essa incorporação se dá de
forma muito limitada, com a federação envolvendo-se apenas nas lutas de
resistência para, posteriormente, em especial nos anos 1990, ligar-se mais
113
diretamente às ocupações e aos conflitos fundiários. Marco desse processo é a
realização do 1o Congresso Estadual dos Trabalhadores Rurais de Minas
Gerais, realizado pela FETAEMG em 1984. Inserido num contexto em que a
sociedade passa por um processo de reorganização política e econômica, o
evento representará a abertura de um novo ciclo no processo de organização
dos trabalhadores do estado, sinalizando para uma luta mais incisiva e
dinâmica pela reforma agrária, ao mesmo tempo em que se ampliam as
disputas políticas travadas entre a federação e a articulação CPT/CUT –
disputa esta que se manifestará em várias eleições para a direção da
FETAEMG.
Entretanto, nesse momento, há que se ressaltar que, nessa época,
apesar da FETAEMG já estar diretamente envolvida com a luta pela terra em
Minas Gerais, esta era na verdade produto de uma articulação entre as ações e
as demandas da base sindical. A ação da FETAEMG restringia-se ao
acompanhamento e à divulgação dos fatos e conflitos, através de
encaminhamentos legais e ainda atrelados ao Estado, e não como uma ação
de mediação efetiva, visto se tratar de um acompanhamento de ações que se
originavam sem a contribuição direta da federação (FERREIRA NETO, 1999).
Os STRs, criados como uma estratégia governamental para exercer o
controle sobre as organizações de trabalhadores rurais, institucionalizando-os,
ao passo que enfraquecia os movimentos sociais, passam, nos anos 1980, por
uma significativa reformulação política. O sindicalismo rural da região do
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, fortemente vinculado a uma política
assistencialista e atrelada às elites locais, no decorrer da década de 1970,
passa a priorizar, na década de 1980, “a democratização da terra, a politização
dos trabalhadores rurais e a manutenção e ampliação dos direitos trabalhistas
da classe” (SILVA, 2002, p.41). Inicia-se, assim, o processo de ocupações de
terra na região, com destacado papel do sindicalismo local.
De maneira geral, a década de 1980 registra uma ascensão, sem
precedentes, da luta pela terra propriamente dita, no estado de Minas Gerais,
seguindo a tendência nacional. Em 1981, por exemplo, o MSTR registrou 16
conflitos pela posse da terra, envolvendo 2.685 famílias, nas regiões de
Paracatu, Norte de Minas e Jequitinhonha. Em 1983, o número salta para 53
conflitos, que se espalham também para a Zona Metalúrgica, Vale do Mucuri,
114
região do Rio Doce, Alto São Francisco e Pontal do Triângulo, envolvendo mais
de 7.000 famílias. Em 1985, o número de conflitos registrados chega a 150,
com cerca de 68.000 pessoas (GADELHA e SGRECIA, 1987). A violência
também se faz progressiva nos conflitos por terra no estado: de 1 assassinato
registrado em 1980 para 26 em 1985.
Entre os anos de 1983 e 1984, inicia-se o 1o conflito de maior
repercussão pela posse da terra, ocorrido no Triângulo Mineiro. É o caso da
Fazenda Barreiro, localizada no município de Iturama.
A luta pela terra na Fazenda Barreiro – o primeiro projeto de
assentamento de reforma agrária da região
Em princípios da década de 1980, a fazenda Barreiro, em Iturama,
abrigava cerca de 120 posseiros que, através de contrato verbal com o
proprietário (Sr. Dídimo), plantavam milho, arroz, algodão e mandioca, por três
anos, com o compromisso de, após o término do 3 o ano, transformar as terras
cultivadas em pastagens. Com a morte do proprietário, seu sucessor (Sr. Izahú
Rodrigues de Lima) tenta impor o rompimento dos contratos em curso,
oferecendo novas glebas, nas quais os posseiros pagariam uma renda de 20%
do resultado das colheitas. Os trabalhadores reagem coletivamente e, com o
apoio do STR-Iturama, ingressam em juízo com o pedido de Usucapião. O
fazendeiro, na busca pela criação de condições para a apropriação da renda
capitalista da terra, recorre à Justiça e garante a expulsão das famílias, que
resistem na luta pela desapropriação do imóvel, frente à possibilidade da
expropriação e da precarização do trabalho. Nesse processo de luta, em
novembro de 1984, é assassinada uma das lideranças dos posseiros – Juraci
José Alves. Em dezembro do ano seguinte, Izahú é morto numa tocaia.
Paralela à luta na Barreiro, outra ocupação era realizada no mesmo
município: em agosto de 1985, cerca de 50 famílias de trabalhadores sem-terra
ocupam a fazenda Bartira. Ambas as fazendas são vistoriadas pelo INCRA e
consideradas improdutivas.
Poucos dias depois da ocupação, as famílias da Fazenda Bartira são
despejadas pela polícia, sem mandado judicial e transferem o acampamento
para a frente do STR de Iturama, onde outras famílias engrossam a luta. Ao
115
final de oito meses, o então nomeado acampamento “Esperança do
Trabalhador” contava com 80 famílias de trabalhadores rurais.
Foto 2.1: Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – barracos e faixas.
Fonte: arquivo APR. Agosto de 1985.
Foto 2.2: Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – fila para refeição.
Fonte: arquivo APR. Agosto de 1985.
116
Foto 2.3: Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – mulheres lavando roupas.
Fonte: arquivo APR. Agosto de 1985.
Essas famílias vão somar-se as da Fazenda Barreiro, constituindo aí,
após um intenso processo de pressão e negociação, o primeiro assentamento
da região, com 131 famílias – o P. A. (Projeto de Assentamento) Iturama. O
STR de Iturama, um dos mais atuantes da região, teve um importante papel de
mobilização e de articulação externa nesse processo, que contou ainda com
forte apoio da CPT – Comissão Pastoral da Terra (FONSECA, 2001).
A experiência de Iturama transformou-se numa referência fundamental
para a crescente mobilização dos sem-terra no Triângulo Mineiro, registrando
um marco importante na história da luta pela terra na região: “nas discussões
dos círculos bíblicos e das CEBs, por exemplo, essa experiência é valorizada
como um exemplo do „fruto conquistado‟ através da fé e da luta concreta”
(MICHELOTO, 1990, p.78).
Uma das lideranças da luta da Barreiro, aí assentado e que
posteriormente contribuiu com a espacialização da luta pela terra na região,
apoiando outras organizações e ocupações de sem-terra, reforça em sua fala a
importância, nesse sentido, da experiência da Barreiro:
117
Depois da Barreiro, o sindicato de Iturama ocupava terra direto. Muito município que
não tinha luta pela terra começou pela nossa luta, e hoje até avançou mais que nós
aqui, como Araxá. Foi o povo daqui que foi ocupar a Sonho Azul e a Guariba
(primeiros assentamentos da microrregião de Araxá). Na Sonho Azul tinha mais polícia
que sem-terra. As 4l famílias que tavam lá era do Pontal. Eu dei aula pra muita gente:
Sindicato de Araxá, Araguari, Frutal, Limeira... No meu tempo, sindicato nenhum fazia
luta pela terra. Só o nosso. Araxá, Araguari, Planura, Carmo do Paranaíba, Ituiutaba...
tudo veio depois, só por causa da nossa luta (Seu Tião, assentado no P.A. Iturama).
Fazenda Santo Inácio-Ranchinho: referência regional de luta e conquista
da terra
Após a conquista da Fazenda Barreiro, uma nova ocupação ocorre em
1986, numa área da CEMIG (Companhia de Luz e Energia de Minas Gerais),
no município de Santa Vitória. Através da resistência e da perseverança, os
trabalhadores rurais sem-terra, após um intenso processo de negociação,
conseguiram, em 1988, a desapropriação da Fazenda Cruz e Macaúbas, que
constitui o 2o projeto de assentamento da região do Triângulo Mineiro.
Mas é em 1989 que terá início uma das maiores experiências de luta da
região, inspirada na luta e com o apoio de lideranças da Fazenda Barreiro, cuja
conquista serviu como importante motivação para a organização coletiva dos
trabalhadores. Originada em Limeira D‟Oeste, teve como um dos seus
principais coordenadores Zé Pretinho, em cuja casa passaram a se reunir
centenas de trabalhadores sem-terra do Pontal do Triângulo. Conforme a
caracterização de Fonseca, “bóia-fria, biscateiro, desempregado, desesperado
e delegado sindical de Limeira D‟Oeste” (FONSECA, 2001, p.109), Zé Pretinho,
no depoimento feito a Guimarães, em seu estudo do caso da Fazenda Santo
Inácio-Ranchinho,
expõe
a
gênese
do
movimento,
relacionando-o
à
precariedade das condições de trabalho no campo:
A gente chegava da roça, a gente tava cansado! A gente trabaiava o
dia inteirinho e de tarde a gente tinha que andá treis horas em pé
(refere-se à carroceria do caminhão). Foi aí, que no dia trinta de abril
eu falei pra minha mulhé: - Eu quiria tá agora no meio daquele rio,
com uma corda amarrada no pescoço e uma pedra amarrada nela,
pra mergulhá, pra nunca mais aboiá. Aí, a Maria tava atrás de mim e
118
falô: - Mais pra que cê tá falano isso? Eu falei: - Disisperado com a
vida e de sabê que eu vou ficá velhinho subino no caminhão de bóiafria pra defendê o pão de cada dia! Então, pra levá essa vida, antes
morrê. Foi justamente na hora que me deu um tino! Lutá pela reforma
agrária! (...) Aí, eu convidei os companheiro... Dia 14 de maio de 89 ia
Ter uma reunião lá em casa. Eles perguntaro: pra quê? – Uai, pra
nóis começá a discutir sobre a questão da reforma agrária, fazê
ocupação de terra! (depoimento de Zé Pretinho, apud GUIMARÃES,
2002, p. 61).
As reuniões foram sendo organizadas de forma espontânea pelos
trabalhadores rurais locais, que buscavam uma forma alternativa para superar
a situação de exclusão e subordinação a que foram submetidos como
assalariados. Em meados de 1989, já contavam com o apoio da CPT, da CUT,
do PT e do MST (que começava a se estruturar no estado), além de outras
entidades locais. Essa articulação exprimia a opção pela ocupação como
estratégia principal de luta, posto que a concepção da CONTAG regia-se pela
crença na necessidade de dialogar com o Estado no processo de
desapropriação, priorizando caminhos institucionais. CUT, CPT e MST
defendiam já, abertamente, a pressão direta, as ocupações massivas e a
resistência nos acampamentos como diretrizes de luta. “Em torno de 50
representações de entidades sindicais, populares, religiosas, partidos políticos
declaram apoio à ocupação” (FONSECA, 2001, p.110).
Em 23 de janeiro de 1990, a fazenda Colorado é ocupada, de onde as
famílias são, logo no dia seguinte, despejadas, sem ordem judicial, pela Polícia
Militar e por membros da UDR. Recém-criada, a UDR já demonstrava seu
poder de pressão e de articulação local e nacional, inclusive via imprensa,
desqualificando e criminalizando o movimento, não permitindo sequer a
realização de vistorias em fazendas da região pelo INCRA. Vários apoiadores
presentes (entre sindicalistas, estudantes, advogados e religiosos) são presos
e levados para a Delegacia de Iturama. Os sem-terra montam acampamento
no distrito de Vila União, transferindo-o, depois de um mês, para a BR-497, a
12 km de Iturama, assim como na sede do INCRA em Belo Horizonte.
Após nove meses de negociações infrutíferas, cerca de 200 pessoas
ocupam a Fazenda Varginha, em Vila União, sendo daí novamente expulsas
pela polícia, mas agora à base de muita violência – física e psicológica. Aliás,
as ações violentas, desencadeadas pelos policiais, permaneceram sob a forma
119
de torturas sofridas pelos sem-terra que foram levados, novamente, para a
Delegacia de Iturama.
A violência exercida pela polícia contra os trabalhadores marcou a
presença dos fazendeiros, declarando a luta aberta contra os
ocupantes da terra. Nesse sentido, a ação do Estado sobre os
conflitos no campo foi permeada por práticas repressivas sobre os
movimentos, ora abertas como as intervenções policiais nos conflitos,
ora veladas, pela omissão quanto às ações das milícias privadas dos
grandes proprietários. No caso das práticas violentas desencadeadas
pelo aparato policial em Iturama, ficou visível a tentativa de semear o
medo entre os trabalhadores, como forma de impedir a continuidade
de suas lutas. De fato, a violência praticada pela polícia, com a
conivência do Poder Judiciário, deixou marcas indeléveis na memória
dos trabalhadores (GUIMARÃES, 2002, p.77).
O que ocorreu, no entanto, não foi suficiente para desmotivar os
trabalhadores. Ao contrário, os sem-terra voltaram para o acampamento às
margens da BR-497, reiniciando um processo de intensa mobilização,
denunciando a violência praticada pela polícia, ocupando órgãos públicos e
realizando audiências, “como forma de expressar suas lutas e demonstrar a
resistência e organização dos acampados, por meio de ações reivindicatórias
de desapropriação de terras para fins de reforma agrária” (GUIMARÃES, 2002,
p.77).
Esse processo culminou na indicação da Fazenda Nova Santo Inácio
Ranchinho – 3.958,62 ha pertencentes a um único proprietário –, em dezembro
de 1990, como área passível de desapropriação, o que veio a ocorrer em abril
de 1991. A partir daí, no entanto, deu-se início a uma longa trajetória judicial,
frente às contestações dos herdeiros da fazenda. Os sem-terra, numa
demonstração de resistência e perseverança, mesmo frente às pressões
contrárias exercidas especialmente pela prefeitura de Iturama e pelos
fazendeiros, que tentavam boicotar a sustentação dos acampados (por
exemplo, desviando cestas básicas encaminhadas pelo INCRA aos sem-terra,
no caso da Prefeitura, e negando-lhes empregos, no caso dos fazendeiros),
permaneceram acampados na BR-497 até maio de 1993.
O longo período do acampamento ficou marcado na memória das
pessoas como um momento de resistência e de esperança. Apoiados pelos
agentes pastorais da CPT e da APR e por membros do MST e da CUT, os
acampados desenvolveram aí formas diferenciadas de organização interna,
120
baseadas na participação ativa de todos no processo de tomada de decisões e
permeadas por reflexões sobre a realidade que os cercava, místicas e
celebrações. Esse processo contribuiu para o fortalecimento da identidade
coletiva dos sem-terra, mas também foi permeado por conflitos e tensões,
culminando posteriormente, por exemplo, no rompimento dos acampados com
o MST. A CUT, que já possuía um trabalho de assessoria junto aos
movimentos rurais na região, por intermédio dos sindicatos a ela ligados,
permaneceu na organização dos trabalhadores rurais.
Em maio de 1993, após inúmeras negociações e promessas não
cumpridas, frente a ambigüidades da justiça que, paralelamente a imissão de
posse da área desapropriada concedia liminares favoráveis aos antigos
proprietários, os sem-terra (acampados já há 3 anos e 4 meses) ocuparam a
fazenda Santo Inácio Ranchinho, que ficava a mais de 250 km de onde
estavam.
O processo de ocupação da terra em Campo Florido constituiu-se (...)
como fato político de grande relevância, tornando-se um marco divisor
no imaginário da luta pela terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba.
A entrada na fazenda deu-se de forma pacífica (...). A ocupação
ganhou visibilidade nos meios de comunicação, principalmente na
mídia impressa, que passou a fazer cobertura das ações
desencadeadas pelos trabalhadores na tentativa de efetivar a
desapropriação da fazenda.
Os jornais da região cobriram o processo de ocupação na Santa
Inácio Ranchinho por um período de dois meses, acompanhando
quase que diariamente as ações de disputa do latifúndio improdutivo
(GUIMARÃES, 2002, p.93).
O modelo de organização interna do acampamento foi mantido.
Passaram a produzir, coletivamente, arroz e feijão, além de uma horta – tudo
para o consumo interno. Garantiram, ainda na condição de acampados, a
implementação de uma escola na fazenda, bem como a designação de
professores da rede municipal, através de ocupações na prefeitura. Além disso,
de acordo com Guimarães,
o que revelou a determinação dos trabalhadores em efetivar o
controle do território apropriado foi a expulsão dos carvoeiros que
estavam instalados na área ocupada, bem como a retirada do gado
das pastagens de braquiária, área que a herdeira da fazenda
mantinha arrendada para fazendeiros da região, como forma de
mascarar a produtividade do latifúndio (GUIMARÃES, 2002, p.98).
121
A vitória dos trabalhadores concretizou-se em outubro de 1993, quando
a liminar favorável aos antigos proprietários foi derrubada, com base na Lei
Agrária promulgada em fevereiro do mesmo ano, em que eram estabelecidos
mecanismos desapropriatórios. Em maio de 1994, finalmente, o INCRA criou,
naquele espaço, o Projeto de Assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho,
assentando 115 famílias: “o espaço conquistado pelos trabalhadores foi
reconfigurado e transformado em território escolhido para nele constituírem
novas
maneiras
de
produzir,
novas
formas
de
organização,
novas
sociabilidades, enfim, um novo modo de vida” (GUIMARÃES, 2002, p.103).
A experiência dos trabalhadores rurais de Campo Florido dimensionou a
luta pela terra na região, simbolizando a consagração da ocupação como
principal forma de conquista da terra, e a pressão direta e a mobilização
massiva como os recursos mais eficazes na garantia de seus pleitos.
Todo esse processo de intensificação da luta pela terra, como em todo
território nacional, nos permite afirmar que, conforme Fernandes:
Não cabe aos sem-terra a alusão de que a década de 1980 foi uma
década perdida. Ao contrário, por meio de suas lutas mantiveram a
reforma agrária na pauta política. Essa questão ocupou espaços no
campo e na cidade, espacializando a luta pela terra. As conquistas
dos sem-terra foram frutos das lutas plantadas no campo com as
ocupações, e só dessa forma obtiveram vitórias nas negociações na
cidade. Os acampamentos nas beiras das estradas só foram
superados com as ocupações de terra. Foi com essas ações que os
sem-terra fizeram avançar a luta e sua organização, construindo
realidades e desdobrando-as (FERNANDES, 2000, p.198).
Os anos 1980 são marcados, assim, por avanços decisivos no que tange
à organização dos trabalhadores rurais no Triângulo Mineiro. Esses avanços
estarão representados nas ocupações de grandes propriedades improdutivas –
ações essas que passaram a consolidar uma nova forma de atuação, que tem
na reforma agrária a bandeira prioritária de luta. Novas concepções, que
aglutinam práticas mais ofensivas e diretas e menos burocratizadas e atreladas
ao Estado, começam a ser disseminadas com mais intensidade. A crescente
busca pela construção de seus próprios meios organizativos e pela autonomia
do movimento de trabalhadores rurais reduzirá, ainda que de forma
relativamente lenta e parcial, os fatores de imobilismo e heteronomia social e
122
política que, por vezes, pesam sobre os setores subalternos do campo e suas
organizações.
São essas as tendências que permanecerão vigorando, a partir dos anos
1990, com, ainda, maior intensidade e solidez, acrescidas do surgimento de
novos movimentos sociais rurais na região, considerando que “a emergência
de novos projetos associados aos trabalhadores do campo se faz acompanhar
de formas igualmente renovadas de organização coletiva” (MICHELOTO, 1990,
p.63).
Ampliação dos Movimentos Sociais Rurais e Intensificação da Luta pela
Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – dos anos 1990 ao início dos
anos 2000.
As experiências desenvolvidas no decorrer dos anos 1980 terão efeito
multiplicador no processo de luta pela terra, sendo a conquista da Nova Santo
Inácio-Ranchinho um marco desse processo:
A luta de Iturama havia se tornado uma referência no Estado para os
trabalhadores rurais. Nessa ocasião o STR de Araxá passou a visitar
a Santo Inácio Ranchinho na busca de experiências para dar início a
ocupações no Alto Paranaíba. Em meados de 1993, um importante
seminário sobre reforma agrária é realizado nas dependências da
FETAEMG em Uberaba. Participam diversos sindicatos de
trabalhadores rurais e urbanos, ONGs, partidos, lideranças regionais
e de outros estados (SP, PE e GO). Os sem-terra de Campo Florido,
com suas experiências de luta, destacam-se no evento e passam a
ter importantíssimo papel na organização dos sem-terra da região
(FONSECA, 2001, p.112).
Novas ocupações são realizadas. As experiências de luta são
disseminadas entre os trabalhadores rurais e amplificam o seu poder de
organização e mobilização. Vários são os relatos de ocupações; despejos;
acampamentos em propriedades e em beiras de estrada com produção
comunitária em muitos deles; reuniões; ocupações de prédios públicos;
manifestações. Histórias de resistência, de persistência, de conflitos internos e
externos, de negociações pacíficas e de violências de toda a sorte, de derrotas
e de vitórias. Mas, sobretudo, histórias que marcam novos rumos para
123
centenas de trabalhadores rurais sem-terra, que passam a atuar de forma mais
organizada, consciente e articulada, rompendo com o isolamento e o localismo
característicos até então. Que buscam se afirmar como sujeitos portadores de
projetos alternativos de sociedade e de desenvolvimento rural. Que redefinem
relações, que alteram jogos de força e (re)constroem territórios, com a
conquista e a transformação de parcelas de áreas rurais.
É fortalecido, nesse processo, o caráter classista das lutas, que exprime,
na defesa prioritária da reforma agrária, um sentido contrário àquele vinculado
aos interesses dos setores dominantes regionais e manifesto na noção de
propriedade privada da terra.
Simboliza esse processo a disseminação do conceito de sem-terra como
referência de identidade política, como forma de (auto)denominação daqueles
trabalhadores rurais, arrendatários, meeiros, pequenos proprietários, enfim,
expropriados e explorados no movimento excludente do capitalismo, que
organizam-se para, de alguma maneira, fazer frente à ofensiva do capital.
A intensificação da mecanização das grandes lavouras na região
estudada, a partir dos anos 1990, é uma das faces dessa ofensiva, que reforça
a territorialização do capital. Inspirada na racionalidade capitalista de busca
constante de ampliação dos lucros, a utilização em larga escala da
mecanização serve ainda como redutor dos desgastes burocráticos das
relações trabalhistas. No entanto, a ampliação da desterritorialização desses
trabalhadores rurais, somada à dos pequenos produtores, parceiros, posseiros,
meeiros e arrendatários, dimensiona ainda mais a luta pela terra, fazendo
eclodir inúmeras disputas territoriais.
É este o cenário que se apresentará a partir dos anos 1990 no Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba, marcado por uma intensificação da luta pela terra, e
pela incorporação de novos atores e roteiros.
A vertente sindical da organização dos trabalhadores rurais e o STR de
Araxá
Em fins de 1994, famílias de Araxá, Planura e Frutal juntam-se a outras
remanescentes do assentamento de Campo Florido e realizam a 1ª ocupação
124
do Alto Paranaíba, na Fazenda São Bartolomeu, em Ibiá. Despejadas, montam
acampamento em Araxá, apoiadas pelo sindicato dos trabalhadores rurais de
Araxá que, a partir de então, dá início a um intenso processo de mobilização
(FONSECA, 2001).
Atuando como representante da categoria desde 1985, este sindicato
foi fundado no Encontro Regional dos Trabalhadores Rurais, realizado
em Araxá, no dia 27/03/1999. A área de atuação ou a base territorial
do STR de Araxá e Região abrange oito municípios da microrregião
de Araxá: Araxá, Tapira, Sacramento, Perdizes, Pedrinópolis, Santa
Juliana, Ibiá e Pratinha, podendo ser ampliado para outros
municípios, desde que tenha aprovação dos trabalhadores destes
(SILVA, 2002, p.42).
O STR de Araxá e região constitui o sindicato mais atuante da região do
Alto Paranaíba, tendo um forte peso na organização política dos trabalhadores
rurais locais e sendo responsável pela maioria das ocupações aí realizadas,
contribuindo com a conquista de vários assentamentos.
É importante ressaltar que o período inicial de criação desses
assentamentos coincide com o “momento em que a retomada da mecanização
se intensifica nas lavouras cafeeiras do Alto Paranaíba. Assim, em detrimento
da redução da mão-de-obra na cafeicultura, no período de pré e pós-colheita, o
uso da tecnologia multiplicou o número de desempregados nos seus
municípios” (SILVA, 2002, p.51), fator este já citado, que contribui para a
compreensão do aumento local de mobilização social.
Uma das primeiras áreas conquistadas no Alto Paranaíba foi uma antiga
propriedade da Companhia Vale do Rio Doce, que mantinha a área ociosa,
como reserva de valor. Durante muitos anos, esta vinha sendo utilizada,
ilegalmente, por fazendeiros da região para a criação de gado. Cerca de 62
famílias ocuparam a área, em maio de 1996, que foi desapropriada já em junho
do mesmo ano, o que resultou na criação do Projeto de Assentamento Nova
Bom Jardim, beneficiando 20 famílias (SILVA, 2002)4. Foi o STR de Araxá que
coordenou o processo de mobilização e de ocupação. Com uma linha mais
combativa, está diretamente ligado à CUT, apesar de associado à FETAEMG.
4
Para mais informações ver Silva (2002), dissertação baseada em estudo de caso sobre o P.A.
Nova Bom Jardim.
125
Aliás, a emergência de várias lutas no campo, tanto no Triângulo Mineiro
quanto no Alto Paranaíba, se deu, em parte considerável, com a iniciativa ou o
apoio dos sindicatos filiados à CUT, que realiza um trabalho de assessoria
junto aos movimentos rurais na região. Pelo seu próprio caráter, tem uma linha
de atuação direcionada para a promoção de alianças mais amplas –
especialmente urbanas, além de historicamente mais combativa que a da
CONTAG.
Entre os outros sindicatos de trabalhadores rurais mais atuantes na
região em termos de luta pela terra, que têm experiências na realização de
ocupações, temos os STRs de Iturama, Centralina, Ituiutaba e Araguari.
A própria FETAEMG, impulsionada pelas ações de sua base, passou,
nos anos 1990, a adotar uma orientação um pouco mais combativa. A
intensificação das ações conjuntas entre a federação, a CUT e a CPT, inclusive
via inserção nas diretorias de membros ligados a estas entidades, contribuiu
para uma ampliação considerável do conteúdo ideológico do movimento e para
uma transformação na estrutura sindical, de forma a dotá-la de maior
autonomia e eficiência em suas ações5. Em 1993 são criadas coordenações
regionais e temáticas, entre essas a Diretoria de Política e Reforma Agrária –
um importante passo ilustrativo da ampliação da luta pela reforma agrária no
estado. Neste mesmo ano, pela primeira vez, um grupo de lideranças sem-terra
consegue assumir postos de comando na estrutura da Federação, dominada
até então pela categoria de pequenos proprietários. Aqui começa a se dar a
transformação de uma luta de resistência para uma luta de enfrentamento –
marcada pela ampliação das ações de ocupação e da construção dos
assentamentos rurais conquistados, apesar de, na prática, esses avanços
terem sido resultados muito mais do processo de atuação efetiva de alguns
STRs na luta pela terra.
Nesse sentido, são os sindicalistas que, a partir dos STRs, passam a
organizar os trabalhadores para ocupação de terras produtivas e para
5
Nesse momento, inclusive, iniciam-se as discussões sobre a possível filiação da FETAEMG à
CUT, o que significaria “a consolidação de uma perspectiva centrada na inter-relação do
movimento sindical e a política partidária mais à esquerda (...), em detrimento de uma
perspectiva em que o Estado permanecia como potencial aliado, onde os trabalhadores
poderiam buscar benefícios a partir de ações mais concertadas e menos conflituosas” (Ferreira
Neto, 1999, p.323). Os setores contrários às propostas cutistas, e ainda com respaldo
considerável no seio da federação, no entanto, vêm conseguindo barrar, até hoje, a filiação.
126
resistência em suas áreas de posse. (...) a definição das áreas a
serem ocupada, bem como a seleção dos trabalhadores para
participar desse processo, continuou nas mãos dos sindicatos que,
finalmente, passaram a contar com apoio logístico e operacional da
Federação (FERREIRA NETO, 1999, p.315).
Disso decorre que, mesmo registrando certos avanços em sua política
de atuação, as maiores transformações ocorridas no âmbito do MSTR, no
sentido de uma priorização da luta pela reforma agrária, resultam da atuação
específica de determinados sindicatos locais. Alguns destes permanecem com
uma postura extremamente legalista e distante da luta pela terra. É o caso do
Sindicato de Patrocínio, situado na região do Alto Paranaíba. Este sindicato foi
um dos primeiros criados no Estado e constitui hoje um dos maiores, com
cerca de 4.200 associados. Conforme entrevista realizada com um de seus
diretores, o sindicato não se envolve muito com a luta pela terra. Se solicitado,
oferece apoio logístico, como telefonemas e ofícios necessários, além de fazer
a mediação com a FETAEMG que, por sua vez, faz a mediação junto aos
órgãos governamentais encarregados. Entretanto: “o sindicato não apóia
nenhuma ocupação, posto que esta descaracteriza o movimento. Apóia, no
máximo, acampamentos em beira da estrada. É a mesma linha política da
FETAEMG que a gente segue aqui. É uma postura legalista, nos limites da lei
mesmo” (diretor do sindicato: entrevista realizada em dezembro de 2003).
Entre as maiores conquistas do sindicato, de acordo com a sua diretoria, está o
Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista, criado conjuntamente pelo
Sindicato dos Trabalhadores Rurais e pelo Sindicato Patronal: “o núcleo é
favorável tanto pros trabalhadores permanentes quanto temporários. Quase
todas as ações são resolvidas aqui. O próprio poder judiciário não aceita as
ações que não passaram inicialmente pelo núcleo, manda pra cá, apesar dele
ser autônomo, sem nenhuma interferência do poder judiciário ou de qualquer
outro órgão. As negociações são sempre boas, pros dois lados” (ibidem).
Apesar da agilidade no processo, consideramos que o núcleo favorece mais os
empregadores, que vêem reduzidos os seus custos e as possibilidades de
conflito, do que os trabalhadores rurais, que sofrem um retrocesso político à
medida que negociam direitos já garantidos.
O próprio discurso da federação, conforme depoimento abaixo, se
mostra bem mais cauteloso que as posturas assumidas pelos sindicatos mais
127
combativos, além de retirar da entidade o papel de organizar e mobilizar os
trabalhadores rurais em suas bases:
Olha, a Federação tem um princípio o seguinte: nós atendemos a vontade dos
trabalhadores, a partir da hora que os trabalhadores se mobilizem. Jamais a
FETAEMG orientou ou orienta alguém a ocupar uma terra. Nós orientamos, sim, ao
trabalhador, que há uma necessidade dele se organizar, em grupo é claro. E a partir
da hora que ele se organize, os sindicatos de trabalhadores rurais juntamente com a
federação, nós temos o papel que é de dar suporte, dar apoio, e desde que o
trabalhador se decide, se decidem a ocupar uma área, nós estamos junto, estamos
abraçando aquela causa. Mas sempre partindo pela vontade deles. Os trabalhadores é
que têm o princípio, né, de tá se organizando pra se ocupar. E a federação na
condição de federação, sindicato na condição de sindicato, é... nada mais nada menos
do que um grupo de apoio (diretor da FETAEMG, entrevista concedida em junho de
2003).
Ferreira Neto acrescenta ainda que, nesse processo de consolidação do
MSTR mineiro, marcado mais pela atuação dos STRs locais, não há uma
organicidade que o apresente como um bloco coeso, o que reflete uma
regionalização das prioridades e uma falta de unidade existente na direção do
movimento e da sua base. No que tange à reforma agrária, para o autor, essa
falta de unidade explicitará o caráter ambíguo da formação do MSTR mineiro:
por um lado, ela representa a fragmentação das intervenções do movimento,
uma distribuição heterogênea dos assentamentos rurais pelo estado, bem
como uma baixa influência nestas áreas. Por outro lado, talvez tenha sido essa
mesma falta de unidade que possibilitou a consolidação da luta pela terra via
sindicatos em algumas regiões do estado: “se houvesse uma unidade sólida
em torno de certas propostas, com certeza, em razão do perfil de atuação e da
composição das diretorias da federação, a reforma agrária não faria parte
dessa unidade” (FERREIRA NETO, 1999, p.373).
De qualquer forma, a intensificação das ações do MSTR, na luta pela
reforma agrária, estará representada na predominância do movimento sindical,
na mediação da luta pela terra e na implementação dos assentamentos rurais
em Minas Gerais.
128
Na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, o MSTR vai ser
responsável pela constituição de 69% dos assentamentos rurais. No entanto, o
surgimento de novos movimentos sociais rurais, no decorrer dos anos 1990, vai
pôr em xeque essa predominância, ao mesmo tempo em que introduzirá novas
linhas de atuação e dinamizará ainda mais a luta pela terra.
A formação do MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade
Em meados dos anos 1990, no interior do processo de intensificação da
luta pela terra na região, lideranças de Campo Florido, de Santa Vitória e da
APR articularam a criação do primeiro movimento social rural, estruturado
como tal, da região. Fundado em 1995 e, provisoriamente, nomeado de MDST
– Movimento Democrático dos Sem-Terra, o movimento apresentava os
seguintes postulados:
A organização se reivindica de massas, autônoma, independente,
democrática e socialista. Propõe a articulação de um novo movimento
nacional de luta pela reforma agrária no país, de caráter político,
intimamente articulado com os setores urbanos. Com um programa
“antilatifundiário, antiimperialista e antimonopolista”, invoca a
transformação social do país (FONSECA, 2001, p.113).
Posteriormente, também em caráter provisório, a organização passa a
se chamar MLT – Movimento de Luta pela Terra e promove várias ocupações
em toda a região, entre elas a primeira do município de Uberlândia, em abril de
1997, na Fazenda Rio das Pedras, ação que amplia a sua visibilidade na
região.
Em agosto de 1997, o MLT funde-se com movimentos de outros estados
e “participa com a maior delegação (40%) do lançamento do MLST –
Movimento de Libertação dos Sem-Terra, num encontro nacional em Brasília,
onde participaram em torno de 700 delegados” (FONSECA, 2001, p.114).
O MLST torna-se o movimento que vai realizar o maior número de
ocupações, especialmente no Triângulo Mineiro, desde o período de sua
criação até novembro de 2000, quando o MLST regional rompe com a direção
nacional e passa a se denominar MLST de Luta. Apenas um grupo reduzido da
região permanecerá, ainda hoje, vinculado ao MLST nacional.
129
O maior conflito empreendido pelo MLST de Luta terá como cenário a
Fazenda Tangará, propriedade da CIF – Companhia de Integração Florestal,
em Uberlândia, ao qual faremos referência no terceiro capítulo. A área foi
ocupada, pela primeira vez, em agosto de 1999, por 450 famílias, quando o
movimento ainda estava vinculado ao MLST nacional. Dá-se início a uma
duradoura batalha judicial, permeada por ações de intimidação da polícia militar
e dos fazendeiros, e de ações de resistência dos sem-terra, até que, em
novembro de 2001, o proprietário se dispõe a negociar com o INCRA a
desapropriação do imóvel.
De acordo com Fonseca:
Importante mencionar que a ocupação da Tangará é uma inovação do
movimento, no que diz respeito ao padrão de propriedades ocupadas,
pois até então predominou a ocupação de áreas de pecuária, de
pessoas físicas. Trata-se de uma fazenda de propriedade de uma
empresa de exploração de eucalipto (CIF – Companhia de Integração
Florestal), que desde a década de 70 e por mais de 20 anos, se
beneficiou de incentivo fiscal e vultosos recursos públicos do extinto
FISET (Fundo de Investimentos setoriais). Essa disputa assumiu uma
extraordinária dimensão envolvendo o governo federal, estadual e
municipal, entidades de classe, Igreja, empresários, movimentos
sociais, partidos políticos, Polícia Militar, Ministérios Públicos e Poder
Judiciário (FONSECA, 2001, p.121).
A fazenda foi desapropriada e as famílias aguardam, ainda acampadas,
a demarcação dos lotes.
Em 2002, o MLST de Luta funde-se novamente com outros dois
movimentos (o MLS – Movimento de Luta Socialista e o MT – Movimento dos
Trabalhadores) e passa a constituir o MTL – Movimento Terra, Trabalho e
Liberdade – presença constante no cenário da luta pela terra na região que,
atualmente, dentre os movimentos sociais rurais, é o que tem o maior número
de acampamentos, especialmente no Triângulo Mineiro.
A Regional Triângulo do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) nasceu, em
Minas Gerais, nos vales do Mucuri e do Jequitinhonha, em 1984, participando
de reuniões promovidas pela CPT, já tendo enviado dois delegados para o 1 o
130
Congresso em 1985. Neste mesmo ano, o MST realizou um Encontro Estadual,
em Belo Horizonte, com representantes das regiões do Vale do Mucuri, Norte
de Minas, Jequitinhonha e Zona da Mata, em que surgiu uma série de
divergências a respeito das formas de luta. Predominava a concepção de que
deveriam apoiar as lutas dos posseiros e dos assalariados, não tendo sido
contemplada, nas deliberações, a ocupação de terra, o que dificultava o
processo de construção do MST (FERNANDES, 2000).
Esse impacto inicial simboliza o difícil processo de consolidação do MST
em Minas Gerais, o que pode ser observado pelos dados de assentamentos do
estado, que mostram que é aqui que o movimento tem a menor porcentagem
de áreas por ele coordenadas. Em algumas regiões, a territorialização do
movimento está hoje bem avançada. No Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, no
entanto, a formação do movimento encontra uma série de barreiras para a sua
consolidação – desde a ofensiva das tradicionais e conhecidas classes
ruralistas e conservadoras, que por vezes encontram eco em vários setores da
população, até conflitos e contradições internos ao próprio movimento geral de
organização dos trabalhadores rurais da região, que freqüentemente geram
tensões relacionadas a práticas, ideologias ou metodologias diferenciadas
assumidas pelos diversos atores em questão.
O MST iniciou seus trabalhos no Triângulo Mineiro, no final de 1989, por
ocasião do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra de Iturama, que
culminou na conquista da Nova Santo Inácio Ranchinho. O MST atuou na fase
de acampamento, assessorando e contribuindo para o desenvolvimento de
práticas de organização e mobilização, até meados de 1991, quando a
articulação foi rompida. Mas é somente em 1997 que é criada a regional do
MST do Triângulo Mineiro. Neste ano, o movimento, que representa a maior
articulação nacional em torno da luta pela reforma agrária no país, promoveu a
histórica marcha a Brasília, em cuja trajetória estava marcada a passagem por
algumas cidades da região, nas quais promoveu debates, reuniões e atos
públicos, ampliando as discussões sobre reforma agrária e articulando
importantes apoios (em especial do PT, da APR e de alguns sindicatos locais) 6.
Pouco tempo depois, retorna para o Triângulo Mineiro, fixando sua secretaria
6
Neste período já se estabelece a vinculação do MST com o grupo de sem-terra que hoje está
assentado no P.A. Paulo Freire, ao qual faremos referência no último capítulo deste trabalho.
131
em Uberlândia e deslocando para cá militantes de outras regiões, que
contribuem no seu processo de formação e dinamizam ainda mais a luta pela
terra na região.
Além das ocupações de terra, o movimento promove a espacialização
de outras práticas que envolvem a luta pela terra, mas que refletem o caráter
mais amplo de suas premissas. Entre estas ações, podemos citar a ocupação,
durante o primeiro semestre de 2002, da área onde será construído o
Complexo Hidrelétrico Capim Branco, um vultoso investimento de caráter
majoritariamente privado que, além dos danos ambientais, tem como objetivo a
geração de energia para um grupo reduzido de empresas associadas. O
Complexo, após um considerável embate judicial, teve garantida a reintegração
de posse da área. Apesar de não terem obtido maiores ganhos objetivos para
as famílias, a ocupação serviu como importante forma de ampliar o nível de
informação e discussão em diversos setores da sociedade acerca da
construção da usina.
A cidade de Uberlândia abriga, também, atualmente, um dos cursos de
formação política da Via Campesina, com duração de dois anos, em parceria
com a Universidade Federal de Uberlândia, direcionado para os movimentos da
região sudeste que estão articulados em torno da organização. Coordenado
principalmente pela Regional Triângulo do MST, reflete os postulados relativos
à importância da educação e da formação dos militantes como parte
fundamental de um processo de transformação social, defendidos pelo
movimento.
Outros movimentos de trabalhadores rurais atuantes na região
Além desses movimentos sociais rurais, outros intensificam a luta pela
terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, a partir de meados da década de
1990. São os chamados, conforme Fernandes, movimentos isolados,
articulados em torno de ações específicas e espaços mais delimitados, ou seja,
que constituem, cada qual, “uma organização social que se realiza em uma
base territorial determinada. Que tem o seu território de atuação definido por
circunstâncias inerentes aos movimentos” (FERNANDES, 2001, p.64).
Atualmente, verifica-se, na região, a atuação do CLST – Caminho de
132
Libertação dos Sem-Terra, fundado em 2002, que coordena uma ocupação em
Uberlândia, na COALBRA; do MPRA – Movimento pela Reforma Agrária,
fundado em 2003, que atua na cidade de Ituiutaba; do MTR – Movimento dos
Trabalhadores Rurais, fundado em 2003, como o “braço rural” do MSTD –
Movimento dos Sem-Teto Desempregado, que atua na cidade de Uberlândia;
da UNLC – União Nacional de Luta Camponesa, fundado em 2004, a partir de
um “racha” com o MLT no acampamento Chuvas do Amanhecer. Além desses
movimentos isolados, organizações um pouco mais consolidadas, mas que não
tinham ainda inserção na região, iniciam seus trabalhos aqui, ainda que de
forma também localizada. É o caso do MLT – Movimento de Luta pela Terra, da
Bahia, que tem atuado junto ao STR de Araguari e da LOC – Liga Operária e
Camponesa, que tem forte atuação no norte de Minas e que tem empreendido
algumas ações no Alto Paranaíba. Verifica-se, ainda, a atuação de um grupo
que permaneceu vinculado ao MLST nacional, já citado anteriormente, após a
dissidência que, em 2002, transformou a maior parte do MLST regional em
MLST de Luta. O MLST coordena uma ocupação no espaço da FERURBE
(Fundação Educacional Rural de Uberlândia), que tem a maior parte de sua
área inutilizada. A próxima tabela apresenta, de forma sistematizada, os
movimentos sociais aqui apresentados e que atuam no Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba.
Tabela 2.4: Movimentos e Organizações de Luta pela Terra – Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba (2003)
REGIÃO
MOVIMENTOS/ORGANIZAÇÕES DE LUTA PELA TERRA
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
MTL – Movimento Terra Trabalho e Liberdade
LOC – Liga Operária e Camponesa
MLST – Movimento de Libertação dos Sem-Terra
Triângulo Mineiro MLT – Movimento de Luta pela Terra
e Alto Paranaíba CLST – Caminho de Libertação dos Sem-Terra
(Minas Gerais) MPRA – Movimento pela Reforma Agrária
UNLC – União Nacional da Luta Camponesa
MTR – Movimento dos Trabalhadores Rurais
FETAEMG – Federação dos Trabalhadores Rurais do
Estado de Minas Gerais
MSTR – Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais
APR – Animação Pastoral e Social no Meio Rural
Elaboração: GOMES, R. M. Março de 2004.
133
O estudo desses movimentos sociais nos leva a encará-los, conforme o
prisma marxista, como ligados “a processos de lutas sociais voltadas para a
transformação das condições existentes na realidade social, de carências
econômicas e/ou opressão sociopolítica e cultural” (GOHN, 2000, p.171).
“Trata-se do processo de luta histórica das classes e camadas sociais em
situação
de
subordinação”
(ibidem).
Conforme
Scherer-Warren,
“a
manifestação de interesses comuns e a realização dos que vivem sob as
mesmas condições de exploração criam a possibilidade de uma consciência de
classe”, que possibilitam a geração de um movimento social e uma
organização de classe (SCHERER-WARREN, 1987, p.34). Está claro, no
entanto, que este processo de formação e desenvolvimento dos movimentos
sociais – fruto das contradições inerentes ao sistema capitalista – também
carrega em si uma série de contradições.
Em A Ideologia Alemã, Marx ressalta que a própria “divisão do trabalho
implica ainda a contradição entre o interesse do indivíduo singular ou da família
singular e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionam entre
si” (MARX, 1975, p.34).
As contradições especificas da luta pela terra podem ser vislumbradas
também através da tão discutida fragmentação e heterogeneidade dos
movimentos sociais rurais, advindas, inclusive, da própria diversidade de
situações de que emergem. Da mesma forma, a crescente formação de vários
movimentos sociais rurais, ao mesmo tempo que retrata o avanço da luta pela
terra, nos remete à possibilidade do seu enfraquecimento, à medida que traz
limitações no seio do movimento geral pela reforma agrária.
No Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, a existência de tamanha
multiplicidade de movimentos, além de refletir certa heterogeneidade,
característica das situações rurais, está ligada, por vezes, a conflitos internos e
outros existentes entre os movimentos sociais (como em “rachas” ou disputas),
que se vinculam a questões de ordem política, metodológica, ou até mesmo
pessoal. Tais conflitos, freqüentemente, atravancam processos de luta que, em
sendo unificados, tenderiam a acumular muito mais força, ampliando o poder
de pressão e expressão dos trabalhadores rurais sem-terra.
O que não significa, no entanto, que, por vezes, os movimentos sociais
ligados ao campo, na região, não se articulem em determinadas frentes de luta.
134
Frentes essas que, em certos momentos, inclusive, envolvem questões para
além e, ao mesmo tempo, integrantes da luta pela reforma agrária, como o
direcionamento da política econômica e agrícola mais ampla. É o caso da luta
contra os transgênicos. O Triângulo Mineiro abriga uma das principais
multinacionais vinculadas à pesquisa e à comercialização das sementes
geneticamente modificadas – a Monsanto Corporation. Por compreenderem,
não só a possibilidade de riscos à saúde humana e ao meio ambiente, mas,
também, a ameaça real de controle econômico da produção alimentar que
representa a atuação das multinacionais nessa área, na possibilidade de
bloqueio à pequena produção e à soberania alimentar dos países, os
movimentos sociais da região7, em conjunto, estão há cerca de um ano
acampados na frente do complexo da Monsanto, na BR-497, em Uberlândia,
onde promovem debates e atos sobre a questão, na “Vigília por um Brasil Livre
de Transgênicos”.
De qualquer forma, o fato é que essa multiplicidade de atores envolvidos
na problemática rural constitui um indicativo da intensificação dos conflitos
agrários no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.
É importante ressaltar, no entanto, que todo esse processo de avanço
da luta pela terra, na região, foi marcado por uma violenta ofensiva da classe
ruralista, traduzida nas mais diversas formas de pressão e expressa nos relatos
de violência no campo. É o que se pretende discutir no próximo item.
A Organização dos Ruralistas e a Violência no Campo: a criminalização
da luta pela terra e a formação das milícias armadas na região
As linhas de desenvolvimento regional do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba articulam-se à existência de uma burguesia agrária aí presente,
constituída a partir de interesses locais, estatais, e até mesmo estrangeiros,
que associa, constantemente, interesses e investimentos no mundo agrário a
objetivos urbano-industriais. Bem organizada, tem em suas ações políticas
estratégias claramente conservadoras e anti-reformistas, que fazem ecoar a
7
Movimentos vinculados à Vigília por um Brasil Livre de Transgênicos: APR, CLST, MLT,
MLST, MST, MTL, STIAU, SINDUTE, SIND-Comerciários.
135
defesa inconteste da propriedade privada da terra. O seu poder de pressão e
articulação foi expresso, de forma contundente, no movimento coordenado pela
UDR – União Democrática Ruralista que, entre outras ações, teve papel
decisivo na contenção da reforma agrária no processo constituinte de 1988.
(MICHELOTO, 1990, p.64).
Apesar da UDR ter sido oficialmente extinta no estado de Minas Gerais
desde 1994, os “ruralistas” permanecem organizados – o que se apresenta
tanto na força da bancada ruralista em âmbito estadual e federal, quanto em
ações articuladas de forma local, visando à garantia de seus interesses, como
a defesa de suas propriedades fundiárias. Uma matéria publicada no jornal
Hoje em Dia, de Belo Horizonte, intitulada “Fazendeiros prometem receber
MST a bala – proprietários rurais e membros da extinta UDR articulam reação
às invasões de terra”, trazia a seguinte declaração de Peter Medem (expresidente
da extinta UDR em Minas): "fazendeiros, em diversas regiões, estão dispostos
a receber a tiros os sem-terra que tentarem invadir suas propriedades. Em
diversas regiões do Estado, vai chover bala”8. Além disso, mencionou a
intenção de se reabrir oficialmente a UDR em Minas.
As pressões que sofrem os trabalhadores rurais envolvidos na luta pela
terra, na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, fazem com esta seja
considerada uma das regiões mais violentas do país em se tratando de
conflitos fundiários. O depoimento a seguir, do diretor regional da FETAEMG,
expressa essa situação:
Olha, o Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba forma lugares sempre de muita
concentração de terra, e de muito poder, quer dizer, você vai para alguns lugares,
leste de Minas, vai no Oeste, outras regiões aí pra cima, é... onde há muito pequeno
produtor, minifúndio..., e aqui no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba a concentração de
terra foi muito grande ao longo dos anos, quer dizer, e com isso, o latifúndio cresceu,
dominou, e chegou ao ponto de realmente achar que são os donos de tudo e poder
dominar. Inclusive, eles conseguiram fazer na região alguns deputados ruralistas e
que se acham que são donos da verdade, e querem fazer a lei de acordo com sua
vontade, infelizmente. Olha, por parte do latifúndio, dos fazendeiros, os meios que eles
8
o
HOJE EM DIA, 1 -02-1998, p.2
136
têm tentado de todas as maneiras é isso, é as milícias armadas, é a pressão, a ponto
de dar tiro nos barracos, de desmanchar acampamento na base da pancada... É o
desrespeito inclusive com as mulheres, eles faz todo tipo de abuso, inclusive abuso
físico, igual fez em Santa Vitória com algumas mulheres, e mesmo em Campina
Verde. Infelizmente isso amedronta e faz com que desmobiliza muito a luta... (diretor
da FETAEMG, entrevista concedida em agosto de 2003).
Fazendeiros, jagunços, Polícia Militar, Poder judiciário, imprensa. Várias
são as faces da ofensiva contra as lutas dos sem-terra. Concessão de
liminares de reintegração de posse são comumente emitidas em menos de 24
horas. Ordem Judicial não parece ser pré-requisito para determinadas ações
policiais. A repressão direta assume a forma de despejos violentos e abusivos,
constantemente relatados.
A criminalização das lideranças e dos movimentos assume importante
papel na intimidação empreendida pelas elites locais e por representantes do
Poder Judiciário. No caso da ocupação da Fazenda Tangará, por exemplo,
ainda hoje, 11 de suas lideranças respondem a processos por formação de
quadrilha, esbulho possessório, extorsão e dano a patrimônio público.
A característica mais marcante talvez seja a formação de milícias
armadas, fato tão notório na região estudada que, por diversas vezes, já foi
denunciado em reportagens de jornais impressos, inclusive vinculados
historicamente às elites dominantes locais. O Estado de Minas, por exemplo,
em edição de junho de 2003, publicou uma matéria de primeira página
intitulada “Vida de Sem-Terra vale R$ 500,00 – por causa da radicalização do
MST, seguranças particulares ganham mercado no Triângulo Mineiro”. Dizia a
reportagem:
Por R$ 50,00 ao dia, fazendeiros do Pontal do Triângulo estão
contratando seguranças para expulsar os sem-terra de áreas
ocupadas. Cada trabalhador morto custa R$ 500,00. Até agora
nenhuma morte foi registrada, porque os fazendeiros temem criar
mártires. No melhor restaurante de Ituiutaba é possível comprar
capuz preto em que somente os olhos de quem o usa ficam visíveis
(ESTADO DE MINAS, 29/06/2003, capa).
Depoimentos de fazendeiros, como este, confirmavam a notícia: “tem de
ser um serviço bem-feito, para bater bastante nesses vagabundos, mas
137
tomando cuidado para não morrer ninguém. A hora em que surgir um mártir vai
ser ruim para todo mundo” (ESTADO DE MINAS, 29/06/2003, p.8).
A reportagem do jornal denunciava publicamente a facilidade de se
formar uma milícia armada – o que é considerado, no mínimo, crime de
formação de quadrilha –, de jagunços contratados por fazendeiros para
expulsarem os sem-terra de fazendas ocupadas na região do Pontal do
Triângulo.
A matéria foi publicada por ocasião de um conflito ocorrido dias antes na
Fazenda Bebedouro, de 280 alqueires, em Santa Vitória, ocupada por um
grupo de sem-terra ligado ao MST, e cujo proprietário, um médico, comandou
pessoalmente uma ação de despejo, realizada por cerca de 50 jagunços
contratados. A retirada dos sem-terra aconteceu na madrugada seguinte à
ocupação, no momento da troca de guarda, numa violenta operação que retirou
as 61 pessoas presentes. Além da ausência da Polícia Militar no momento do
despejo, esta efetivou, anteriormente à ação da milícia, uma varredura,
autorizada pelos trabalhadores, que constatou a ausência de armas no local –
fatos que mostram a conivência da Polícia Militar com o poder econômico local.
A seguir, trechos do relato do advogado das famílias despejadas,
intitulado “Violência e Ação Paramilitar no Pontal do Triângulo Mineiro”:
A execrável ação de pistolagem se revestiu de extrema violência e
crueldade, incompatível com a moderna inserção do Brasil no
contexto mundial, com rasgados elogios ao sistema democrático
brasileiro. Houve a explícita e inaceitável quebra do estado
democrático de direito, haja vista, não bastasse a incomensurável
violência, o efetivo despejo das famílias, ou como se queira, a
reintegração de posse, se deu à margem e ao arrepio da lei e em total
confronto constitucional republicano, pasmem, sem mandado judicial.
O despejo (...) se deu sob a batuta da quadrilha de paramilitares, que
substituindo o aparelho estatal e fazendo inveja aos áureos tempos
do regime militar, subjugou, espancou, manteve sob cárcere privado,
agrediu física e moralmente, de forma indistinta, adultos, idosos,
mulheres e crianças. Para tanto, foram usados requintes de
crueldade, como ameaças de afogamento, coronhadas, pauladas e
acreditem, deflagrações de mais de mil tiros para o alto e nas
proximidades das cabeças dos sem-terra, cusparadas na comida dos
trabalhadores e bolinações genitais nas mulheres. Os pertences dos
trabalhadores, como colchões, barracos, utensílios domésticos,
bicicletas, máquinas fotográficas telefones celulares, foram rasgados,
baleados, queimados e esmagados sob o peso de um trator da
fazenda. (...)
Após a desocupação da área e sob a mira dos pesados armamentos,
e de novas saraivadas de tiros, foram conduzidos, em dois
138
caminhões, por dezenas de quilômetros até o estado vizinho, de
Goiás, onde, na cidade de São Simão, procuraram a proteção policial
e registraram um B.O, relatando os fatos ocorridos (Esdras Juvenal
de Queiroz, 25-02-2003, p.2 e 3).
Os sem-terra retornaram para Santa Vitória e passaram a acampar na
frente da prefeitura, exigindo a punição dos responsáveis. Nove pessoas, que
sofreram as maiores lesões corporais, realizaram exames de corpo delito que
comprovaram a gravidade das agressões. Permaneceram, por cerca de 40 dias
até que transferiram o acampamento para uma área cedida pela prefeitura,
onde estão até hoje, à espera da negociação do assentamento de 115 famílias.
O conflito, no entanto, foi o terceiro registrado apenas no primeiro
semestre de 2003, na região do Pontal do Triângulo, envolvendo ações de
despejo mediante atuação de milícias armadas, uso da força e ausência de
mandado judicial. Os outros conflitos ocorreram nas Fazendas Capoeira,
(também localizada em Santa Vitória) e Inhumas (em Campina Verde).
As estratégias adotadas foram similares em todos os casos peculiares à
região:
Devidamente encapuzados, os jagunços exercem pressão física e
psicológica para expulsar os sem-terra das fazendas invadidas, sob o
comando de fazendeiros. Segundo um deles, “os pistoleiros são
contratados pra bater, desocupar e fazer uma guerra particular”.
A ação é coordenada. Antes de entrar na propriedade, geralmente
durante a madrugada, o grupo provoca um barulho ensurdecedor. Os
sem-terra são acordados com centenas de tiros para o alto, fogos de
artifício e sirenes. A rendição é imediata. Apavoradas, as famílias são
jogadas no caminhão-gaiola e levadas para longe, com a ajuda de
facilidades de acesso ao Pontal, que está a meia hora do estado de
Goiás e a duas horas do Mato Grosso (ESTADO DE MINAS,
29/06/2003, p.9).
O Ministério Público, após as denúncias dos 3 episódios, anunciou a
intenção de pôr um fim na ação das milícias armadas no campo, seguindo a
linha dos pronunciamentos de representantes do INCRA e do MDA. Estão
sendo processados onze fazendeiros (entre eles, José Júlio Cordeiro, Giovani
Tannus e Ricardo Tannus) e vinte jagunços da região, fato raro na história
brasileira.
A APR divulgou um dossiê, em 1999, intitulado Violência no Campo, que
foi entregue à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados,
139
então presidida pelo Deputado Nilmário Miranda, com o intuito de solicitar
“providências em relação à escalada da violência no campo, na região do
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, particularmente a questão da formação de
milícias armadas, por parte de grupos de latifundiários dessa região” (APR,
1999, p.1). O dossiê traz denúncias de ameaças a lideranças sindicais rurais,
de práticas agressivas empreendidas contra os acampados da região, de casos
de agressão e de despejos arbitrários empreendidos por fazendeiros, jagunços
e autoridades locais, bem como de omissões do Poder Judiciário e da Polícia
Militar em conflitos agrários, comprovadas por documentos anexados. Relata
ainda a organização dos latifundiários, bem como os esquemas por eles
utilizados para transformar laudos de improdutividade das fazendas em
atestados de produtividade.
De acordo com o dossiê, entre as ações estratégicas dos fazendeiros
contra a reforma agrária, está a criação da UDPR – União de Defesa da
Propriedade Rural, em abril de 1997, sediada em Ituiutaba.
Rege o estatuto da UDPR, em seu capítulo II – Das Finalidades:
Art.2o – Pleitear e adotar medidas cabíveis aos interesses dos
associados, constituindo-se em defensor e cooperador ativo e
vigilante de tudo quanto possa concorrer para defender o direito de
propriedade, a proteger, orientar, resguardar, defender e colaborar em
todos os sentidos sem fins lucrativos aos associados, notadamente:
A) Conclamar os Produtores Rurais da região da propriedade invadida a
se unirem em torno da agremiação, de modo a conferir-lhe qualidade
e quantidade representativa.
B) Comparecer no local denominado da propriedade invadida com os
demais sócios, no dia e hora marcado, previamente pela diretoria.
C) Prestar outros serviços aos sócios sob a forma de ação comunitária,
coordenando todos os programas relativos a invasões, tais como:
alimentação, jurídico, transporte, contratação de seguranças, retirada
dos invasores e solidariedade em um todo (Estatuto da UDPR, 1997,
p.1, grifos nossos).
Dentre as primeiras ações da UDPR está a compra de uma “viatura que,
com pessoas armadas, faz rondas noturnas pelas fazendas dos associados”
(APR, 1999, p.2).
A UDPR é responsabilizada por vários despejos que foram realizados de
forma arbitrária, especialmente na região do Pontal do Triângulo – que é a
região de maior tensão agrária do estado –, como os três já citados
anteriormente, ocorridos em 2003.
140
Foi na região do Pontal do Triângulo Mineiro que Marcelo Rezende, expresidente do INCRA e, à época, agente de pastoral, e Frei Rodrigo Amedée,
presidente da APR e atual coordenador da Comissão de Justiça e Paz no
Mundo, da Ordem Franciscana, foram agredidos por oito ruralistas, numa
tentativa de execução (O TEMPO, 24-09-1998, p.9), entre eles Renato
Filgueiras, presidente da UDPR, e Diocélio Franco, proprietário da Fazenda
Baixadão (Representação contra os Atos da UDPR, 1998, p.1).
O episódio ocorreu após o despejo de 80 famílias de sem-terra que
haviam ocupado a Fazenda Baixadão, em Santa Vitória, em setembro de 1998,
realizado por cerca de 100 fazendeiros ligados à UDPR, fortemente armados e
desacompanhados de oficial de justiça ou portando mandado judicial. Um dos
fazendeiros responsáveis pela agressão aos agentes de pastoral, que tiveram
seus carros interceptados em estradas que davam acesso à fazenda, justifica o
ocorrido em matéria publicada no jornal Estado de Minas, já em 2003, dizendo
que “eles eram agitadores e traziam o povo para invadir as fazendas em Santa
Vitória. Acabaram tomando um corretivo” (ESTADO DE MINAS, 29/06/2003,
p.8).
Da mesma forma, quanto ao despejo da Fazenda Baixadão, outro
fazendeiro envolvido, o diretor da UDPR, Sebastião Gonçalves Dutra, declarou,
em reportagem divulgada no jornal O Tempo, dias depois do ocorrido, a
intenção da UDPR de reagir com armas pesadas às invasões no Triângulo
Mineiro: “estamos avisando há muito tempo, os sem terra que ocuparem áreas
em fazendas nessa região serão retirados à força” (O TEMPO, 24-09-1998,
p.9).
O dossiê Violência no Campo apresenta ainda a criação de outro
movimento de fazendeiros da região do Pontal do Triângulo, em março de 1998
– o Movimento Contra Invasões de Terra, bem como a intensificação das ações
da regional do Movimento Nacional dos Produtores, a partir deste mesmo ano,
visando ao seu fortalecimento no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Ambas as
organizações também passaram a organizar milícias armadas para fazerem
patrulhas nas fazendas, cercos a acampamentos e atos de intimidação aos
sem-terra.
A formação das milícias armadas, na região estudada, por parte desses
movimentos organizados de fazendeiros, questiona, inclusive, a atuação das
141
forças de segurança oficiais. Em documento intitulado “Um Clamor Por
Justiça”, encaminhado em 1999 ao então governador de Minas Gerais Itamar
Franco, o Bispo Diocesano de Uberlândia, Dom José Alberto Moura, relata:
Senhor Governador, não somente eu, mas todos os outros homens e
mulheres de bem da região do Triângulo Mineiro, estarrecidos,
tomamos conhecimento da criação do chamado Movimento Contra
Invasões de Terra, em Ituiutaba (MG), no dia 10 de março de 1998,
conforme atesta o documento de número dezenove em anexo. Esta
organização que, sob o manto de uma associação de produtores
rurais, tem como objetivo maior, ao que parece, a criação de milícias
armadas com o fito de intimidar e praticar atos de violência contra
trabalhadores rurais sem-terra e seus apoiadores quando estes se
propõem a cumprir dispositivo constitucional pátrio, qual seja o de dar
destinação social a latifúndios improdutivos.
(...) De outra forma, com o meu coração de pastor invadido por
imensa comoção, sinto-me no dever de expressar a V. Ex.a. que, as
ações ilegais retro mencionadas proliferaram, em muito, por conta de
uma evidente conivência das forças de segurança do estado,
mormente da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. Em
decorrência dessa estarrecedora situação, onde a gloriosa instituição
vem tendo sua imagem maculada, o poder das milícias armadas de
fazendeiros foi extremamente fortalecido, inclusive com o surgimento
da UDPR (União de Defesa das Propriedades Rurais) e do MNP
(Movimento Nacional dos Produtores) (MOURA, 1999, p.1 e 2).
Nessa perspectiva, o documento denuncia uma série de arbitrariedades
cometidas pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais em conflitos
fundiários na região, envolvendo insultos e ações depreciativas, de intimidação
e humilhação de sem-terra acampados; agressões físicas a sem-terra, a
lideranças e a apoiadores religiosos, sindicais e jurídicos; prisões e detenções
arbitrárias e abusivas; conivência com ações de movimentos ruralistas e de
milícias armadas; e despejos arbitrários de famílias acampadas, por vezes sem
documento judicial e até em conjunto com as milícias (MOURA, 1999).
O documento tinha como objetivo solicitar a apuração dos casos
ocorridos e nele denunciados, envolvendo membros da PMMG (Polícia Militar
de Minas Gerais), ao qual respondeu o então Governador Itamar Franco, em
ofício n.98.769/99 de 09/09/1999, a partir de levantamentos feitos junto à
PMMG. De acordo com o ofício, em alguns dos casos foram instaurados
procedimentos administrativos. Em todos aqueles já concluídos as acusações
formuladas contra os militares não foram comprovadas in totum (ou nem
parcialmente), provando-se, no máximo, “transgressão disciplinar” de alguns
142
membros
(o
que
infere
apenas
que
os
mesmos
são
apenados
disciplinarmente). Em alguns casos, justifica-se e até enaltece-se a ação da
PMMG. Em outros, o procedimento administrativo ainda estaria em curso. Ao
término do ofício, o governador ainda complementa: “Outrossim, é imperioso
lembrar a existência da inarredável necessidade de se respeitar os bens
juridicamente tutelados, bem como as instituições encarregadas de fazer
cumprir a lei e que adotam posturas ético-legais” (Ofício 98.769/99, 1999, p.5).
Esses fatos demonstram, de maneira sucinta, a força e o caráter
conservador e anti-reformista das elites rurais locais que, associadas muitas
vezes a uma notória parcialidade do poder público – via poder judiciário e
militar e da imprensa, empreendem uma onda de violência no campo, numa
tentativa clara de intimidação e contenção dos movimentos de luta pela terra.
O Papel da Igreja no Processo de Luta pela Terra no Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba
Há que se pontuar, neste trabalho, que alguns setores da Igreja Católica
estão nas raízes dos movimentos populares rurais e são agentes fundamentais
na compreensão da história da luta pela terra na região.
Desde os anos 1950 e 60, membros da Igreja voltam-se para os
“pobres” do campo, mas aqui com uma orientação mais moderada e reformista.
Como vimos anteriormente, setores mais conservadores da Igreja, em especial
os Círculos Operários Cristãos, influenciaram fortemente a sindicalização rural,
em Minas Gerais, nesse período, como forma de conter os avanços das idéias
socialistas no campo. Com a ditadura implementada em 1964 e a difusão da
Teologia da Libertação, há um engajamento diferenciado, marcado pelas
Comunidades Eclesiais de Base e, em especial, pela ação da Comissão
Pastoral da Terra, fundada em 1975, que resulta na formação de várias das
lideranças que vão impulsionar a luta pela terra. Como atesta Ferreira Neto:
É importante ressaltar que, historicamente, apesar de outras
influências, como do PCB, das Ligas Camponesas e do Estado, a
Igreja Católica foi a principal instituição a interferir na definição do
conteúdo ideológico e programático da Federação dos
Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais.
143
Inicialmente, como visto, essa influência se deu pela atuação
moderada, conservadora e conciliatória dos Círculos Operários
Cristãos; num segundo momento, a partir das CEBs e,
principalmente, da Comissão Pastoral da Terra, a Igreja Católica
passa a apoiar a definição de novas estratégias para solução dos
conflitos fundiários no estado, consolidando ações conjuntas com os
sindicatos de trabalhadores rurais, com vistas na organização das
ocupações de terra (FERREIRA NETO, 1999, p.309).
Nesse momento, o papel da Igreja “se manifesta nos grupos de reflexão
bíblica de trabalhadores rurais acerca de seus problemas e das várias formas
por que são oprimidos, pedagogia essa que teria como resultado uma busca de
revitalização dos sindicatos rurais” (POMPERMAYER, 1987, p.16).
De acordo com Grzybowski:
O trabalho da “Igreja popular”, inspirado na teologia da libertação,
pode ser definido como uma combinação de evangelização com
educação política do “povo”, em vista de sua organização e
participação para a construção de uma nova sociedade. (...) Os
organismos da Igreja fazem educação política atendendo a apelos
da religiosidade popular e visando a religião como elemento político.
A simbiose foi produzida teoricamente pela teologia da libertação e
se exprime numa metodologia de leitura da realidade, através de
categorias bíblico-religiosas e sociológicas, e numa prática política
religiosizada. Nos movimentos sociais onde a Igreja se faz presente
produz-se uma ambígua identidade político-religiosa, cujas
conseqüências no desenvolvimento das lutas e, sobretudo, na
articulação política não podem ser desprezadas. A religiosização de
categorias políticas se exprime no uso político de símbolos cristãos,
como a cruz nos acampamentos, e na realização de atos religiosos
com fins políticos, como missas, romarias da terra, etc. E tem um
conteúdo
particular:
a
solidariedade
político-religiosa
(GRZYBOWSKI, 1987, p.68).
144
Foto 2.4 – caminhada de sem-terra: ação político-religiosa em Iturama.
Fonte: Arquivo APR. Setembro de 1985.
A CPT, inspirada na Teologia da Libertação, constituirá importante
mediador na luta pela terra em todo o território nacional, organizando vários
movimentos de base no campo, através da “defesa da autonomia dos setores
subalternos rurais na condução do seu processo de libertação” (MICHELOTO,
1991, p.209).
A partir da década de 1980, conforme Ferreira Neto, a Igreja Católica, a
partir desses seus mediadores mais progressistas, será responsável pela
formação de uma gama de novas lideranças, que promoverão a ampliação da
luta pela terra em Minas Gerais, apoiando “a definição de novas estratégias
para solução dos conflitos fundiários no estado, consolidando ações conjuntas
com os sindicatos de trabalhadores rurais, com vistas na organização das
ocupações de terra” (FERREIRA NETO, 1999, p.309).
Nesse sentido, e de acordo com Micheloto, a militarização do campo,
empreendida no período militar, e a emergência de novos movimentos sociais
rurais, na década de 1980, marcam um processo que vai da resistência pura e
145
simples a uma organização mais consciente e articulada – processo no qual a
contribuição do catolicismo teve papel central, principalmente via CPT:
Definindo-se como um órgão de interligação, assessoramento e
dinamização dos grupos de pastoral no meio rural, a CPT constituiuse, através dos anos, em um dos principais apoios dos movimentos
sociais dos subalternos do campo, tanto nas áreas da luta pela terra
quanto na área sindical. Em certo sentido, a CPT representa a
concretização de algumas premissas da corrente católica identificada
à “libertação”. Entre essas premissas coloca-se a da necessidade de
os trabalhadores do campo se organizarem para realizar um “projeto”
autônomo de organização rural e de sociedade. Outra premissa é a
da relação estreita entre a fé e a luta política (MICHELOTO, 1990,
p.68).
Em 1978, surge a CPT-Regional do Triângulo, sediada em Uberlândia, a
partir do apoio dos bispos progressistas D. Estevão Cardoso de Avelar e D.
Benedito de Ulhôa Vieira – então bispo de Uberlândia e arcebispo de Uberaba,
respectivamente –, e de atuações desenvolvidas por leigos, desde 1973,
voltadas para o trabalho de reflexão com trabalhadores rurais de alguns
municípios. De acordo com Micheloto:
A criação dessa entidade permitiu articular as tarefas de
conscientização dos trabalhadores do campo, “tendo como
instrumento o evangelho”, e o apoio mais concreto aos movimentos
sociais, principalmente na área sindical. Segundo um dos
coordenadores da entidade, a prioridade da atividade pastoral é o
desenvolvimento da organização, principalmente sindical, dos bóiasfrias. Isso implica em estimular os trabalhadores a fundar seu
sindicato nos municípios onde ele é inexistente e em organizar
oposições sindicais onde o sindicato é considerado “fraco” ou
“pelego”. O trabalho pastoral é visto como trabalho de base,
consistindo principalmente na “descoberta e formação de lideranças”.
Há o reconhecimento de que a realidade regional, marcada pela
grande penetração do capitalismo no campo, não favorece a
generalização de um movimento de conquista da terra. Não obstante,
a organização dos trabalhadores assalariados é vista como um
primeiro passo, compatível com uma posterior aquisição da
consciência de “sem-terra” (MICHELOTO, 1990, p.68).
Nesse sentido, os anos 1990 apresentaram avanços realmente
significativos, que podem ser observados na constituição de vários movimentos
de luta pela terra, bem como na mudança de direcionamento da linha política
seguida pelos sindicatos mais combativos da região, que, além de terem
assentados e acampados ocupando cargos nas diretorias, definiram a
146
ocupação como principal estratégia de luta. A tal “consciência de sem-terra”,
acreditando-se, neste trabalho, ser esta uma denominação que se refere,
prioritariamente, a uma condição e a uma identidade políticas, intensificou-se
ao mesmo passo que a luta pela reforma agrária foi transformando-se no
agente centralizador e prioritário das lutas na região.
Mesmo considerando, conforme Grzybowski, que “a dinâmica das lutas
empreendidas pelos movimentos, de que participam os organismos da Igreja,
pode ser restringida pela prevalecência da solidariedade religiosa à classista”
(GRZYBOWSKI, 1987, p.69), há que se ressaltar que a CPT-Regional do
Triângulo Mineiro ocupará um importante papel de articulação das lutas,
criando vários espaços de reflexão e socialização política entre os
trabalhadores rurais da região, favorecendo a multiplicação de experiências e o
nascimento de novas lutas. Esta entidade será dissolvida em 1989, frente a
divergências da coordenação regional com as direções estadual e nacional e
transformada em APR – Animação Pastoral e Social do Meio Rural, assumindo
o apoio às ocupações de terra como uma de suas principais estratégias de luta.
Além de assessorar os movimentos sociais nos conflitos por terra e contribuir
como importante mediadora das ações, a APR tem também uma significativa
atuação na área de formação política, especialmente entre os trabalhadores
rurais envolvidos na luta pela terra na região, e como prestadora de assistência
técnica aos assentados.
A importância da Igreja, no processo de luta pela terra, exprime-se, de
maneira simbólica, na realização da Romaria da Terra, realizada anualmente
desde 1979. Organizada pela CPT-MG e pela APR, reúne os diversos
movimentos sociais rurais e entidades ligadas à luta pela terra do Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba, com um caráter eminentemente político – associado,
obviamente, à dimensão religiosa.
As romarias da terra são realizadas no Triângulo/ Alto Paranaíba
desde maio de 1979, quando se realizou a primeira delas, tendo como
local de encontro justamente o município de Romaria, antiga Água
Suja. Esse local tem um alto significado simbólico/ religioso para o
povo da região, pois é abrigo do santuário de Nossa Senhora da
Abadia e confluência tradicional de romeiros. Até 1984 as romarias da
terra se realizaram, uma por ano, naquela cidade santuário. A partir
de 1985, entretanto, algumas romarias da terra foram organizadas,
em outros municípios da região, com o objetivo de rememorar fatos
ocorridos com os trabalhadores rurais, fatos esses tidos como
147
representativos da situação
(MICHELOTO, 1991, p.165).
de
opressão
em
que
vivem
As fotos abaixo nos mostram duas cenas interessantes da 25ª Romaria
da Terra do Triângulo Mineiro e 8ª Romaria das Águas, realizada em 2003, na
cidade de Tupaciguara (que significa Terra da Mãe de Deus): a participação
dos povos indígenas (foto 6) e a lembrança de duas lideranças sem-terra da
região, mortas em conflitos: Juraci (assassinado no conflito da Fazenda
Barreiro, episódio ao qual já fizemos referência) e Odete (foto 7).
Foto 2.5 – 25ª Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: participação dos povos indígenas.
Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.
148
Foto 2.6 – 25ª Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: homenagem a lideranças sem-terra
mortas na luta. Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.
As romarias da terra, inseridas na perspectiva católica da evangelização
libertadora, se atribuem, assim, a função de “reativar ou mesmo construir uma
„memória‟, que haja como fator não só de legitimação, mas sobretudo de
animação das práticas coletivas” (MICHELOTO, 1991, p.180), cuja finalidade
está centrada em “colocar os problemas, os sofrimentos, os caminhos
possíveis e as conquistas dos homens do campo” (ibidem, p.183).
De maneira geral, podemos afirmar que todo esse processo discutido
neste capítulo acerca do crescimento da luta pela terra, na região do Triângulo
Mineiro/ Alto Paranaíba, expressa o avanço dos movimentos sociais rurais,
bem como de outros inúmeros que participam da luta pela reforma agrária,
além de sindicatos locais, ONG‟s e pastorais católicas, sem contar as várias
organizações, associações e sindicatos que, mesmo sem estar diretamente
envolvidos com a questão agrária, contribuem fortemente com a luta pela
democratização do acesso à terra. Mesmo frente às dificuldades e resistências
enfrentadas, tanto em nível local quanto em nível nacional, devido ao
149
conservadorismo e aos rumos tomados pela política agrícola do país, os semterra inserem a questão da reforma agrária na ordem do dia. Os
acampamentos e os assentamentos rurais conquistados são partes integrantes
e fundamentais desse processo de luta, e é sobre estes territórios que
buscaremos refletir nos próximos capítulos.
150
CAPÍTULO 3
OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR:
os acampamentos dos trabalhadores rurais em luta pela terra
no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba
Ocupar, resistir e produzir: a palavra de ordem assumida pelo MST em seu
3º Congresso Nacional (1990), e reproduzida por outros movimentos sociais,
expressa, sinteticamente, os princípios tomados por estas organizações nos
processos de luta pela terra. Compreender estes processos, que envolvem as
ações de resistência e de organização social, política e produtiva dos
trabalhadores rurais sem-terra, a partir da ocupação de grandes propriedades
improdutivas, é a nossa proposta nesta parte do trabalho.
A ocupação como forma de acesso à terra
No capítulo anterior, vimos que o avanço das lutas pela terra, no Triângulo
Mineiro/ Alto Paranaíba, registram um aspecto importante, no que se refere à
estratégia de conquista da terra: a ocupação torna-se a ação prioritária, à medida
que é tida como principal forma de acesso à terra. Esse fator reflete
transformações nas perspectivas de luta travadas pelas organizações rurais, que
sinalizam a intensificação das pressões diretas, da mobilização massiva e da
busca efetiva pela autonomia das organizações, em detrimento de uma atuação
burocratizada, assistencialista e atrelada ao Estado.
De acordo com Fernandes:
A ocupação é uma realidade determinadora, é espaço/tempo que
estabelece uma cisão entre latifúndio e assentamento e entre o
passado e o futuro. Nesse sentido, para os sem-terra, a ocupação,
como espaço de luta e resistência, representa a fronteira entre o sonho
e a realidade, que é construída no enfrentamento cotidiano com os
latifundiários e o Estado (FERNANDES, 2000, p.19).
Em todo o estado de Minas Gerais, seguindo uma tendência nacional,
verifica-se um grande número de conflitos por terra, estabelecidos por meio de
ocupações. O Instituto de Terras do estado (ITER-MG) registra atualmente a
existência de 152 acampamentos, envolvendo mais de treze mil famílias.
Tabela 3.1: Número de acampamentos e famílias acampadas no estado de
Minas Gerais, por região.
Região
Alto Paranaíba
Jequitinhonha
Metropolitana
Mucuri
Nororeste
Norte
Sul
Triângulo
Vale do Rio doce
Total
N. de acampamentos
13
20
9
1
19
51
5
24
10
152
N. de famílias % de famílias
1021
7,7
1609
12,1
855
6,4
45
0,3
1432
10,8
3331
25,1
410
3,1
3289
24,7
1301
9,8
13293
100
Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004.
Elaboração: GOMES, R. M.
A tabela 3.1 mostra o alto índice de conflitos fundiários na região do
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, que concentra mais de 30% do total das
famílias acampadas no estado de Minas Gerais (dados de março de 2004). Esse
número cresce ainda mais, em termos relativos, se trabalharmos com todas as
áreas que foram ocupadas em Minas Gerais, e registradas pelo INCRA-MG,
durante os anos de 1999 a 2001. Em todo esse período, a região Centro-Oeste
teve 1 ocupação registrada; o Triângulo Mineiro, 61; o Centro-Oeste, 1; a Central,
8; o Norte, 22; o Alto Paranaíba, 52; o Sul, 1; as regiões do Rio Doce e Mucuri, 17.
Ou seja, de um total de 162 ocupações de terra, registradas pelo INCRA nesses
anos, 113 ocorreram no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, o que corresponde a
70% da totalidade de conflitos registrados no estado.
152
Tabela 3.2: Número de acampamentos e famílias acampadas no estado de
Minas Gerais, por movimento.
Movimento
ACTPJ
FETAEMG
LOC
MLST
MTL
MST
STR – Araxá
CLST
AMFT
Total
N. de acampamentos
1
91
18
1
10
25
4
1
1
152
N. de famílias % de famílias
94
0,7
6691
50,4
1033
7,8
240
1,8
1267
9,6
3439
25,7
285
2,2
36
0,2
218
1,6
13.293
100
Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004.
Elaboração: GOMES, R. M.
Já na tabela 3.2, verificamos uma diversidade de movimentos envolvidos
na questão da terra no estado de Minas Gerais, apesar da predominância da
FETAEMG (Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas
Gerais) que, em março de 2004, conforme aí registrado, coordenava a metade das
famílias acampadas. Esta tendência será mantida quando avaliarmos a situação
específica da região estudada. Mas há que se ressaltar o fato de que os conflitos
ligados à Federação são, em sua quase totalidade, organizados pelos STRs locais
que, associados a ela, contam, em maior ou menor grau, com o seu apoio.
Nas tabelas a seguir, apresentamos o número de acampamentos e áreas
ocupadas, bem como as entidades coordenadoras de cada ocupação, na região
do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba. Ainda que esta seja uma realidade em
constante movimento – à medida que áreas são ocupadas e desocupadas com
uma certa freqüência e, muitas vezes, em curtos espaços de tempo –, os números
apresentados são bastante expressivos da organização e da mobilização dos
trabalhadores rurais na região, bem como da diversidade dos agentes envolvidos
na coordenação dessas ações. De acordo com as tabelas 3.1 e 3.2, podemos
observar que existem hoje, na região pesquisada, 37 acampamentos de
trabalhadores rurais sem terra, num total de 4310 famílias. O mapa 2 ilustra a
distribuição desses acampamentos, por entidade, na região pesquisada.
153
Tabela 3.3: Total de acampamentos e famílias acampadas –Triângulo Mineiro
Movimento
Município
Acampamento Localização fam.
Fazenda
Campina Verde Seis Irmãos
Fetaemg
?
65
Campina Verde Inhumas
Fetaemg
na fazenda
38
Inhumas
MTL
Canápolis
Pirapitinga
na fazenda
400
Fetaemg
Canápolis
Pirapitinga
na estrada
150
Pirapiting
Fetaemg
Carneirinho
São Pedro
na estrada
80
São Pedro
MTL
Gurinhatã
Piedade
70
Fetaemg
Itapagipe
Rodovia
Rodovia
400
MTL
Ituiutaba
Pântano Mariano
na fazenda
28
Fetaemg
Iturama
Bonito Tracajá
estrada
350
Bonito Tracajá
MST
Santa Vitória Canudos
na praça
115
Bebedouro
MTL
Santa Vitória Curiango
40
MTL
Santa Vitória Capoeira
na estrada
60
Capoeira
Fetaemg
Santa Vitória Capoeira
na estrada
80
Capoeira
MTL
Tupaciguara
São Domingos
80
Fetaemg
Uberaba
Turbante do Cedro
na fazenda
30
Eldorado
dos
Carajás
MST
Uberlândia
na fazenda
140
Santa Fé
CLST
Uberlândia
Bacurim/coalbra
na estrada
36
MLST
Uberlândia
Capim Branco
na fazenda
240
MTL
Uberlândia
Matinha
30
MTL
Uberlândia
Carajás
200
MTL
Uberlândia
Tangará
na fazenda
250
AMFT
Uberlândia
Tangará
na fazenda
218
Chuvas do Amanhecer na fazenda
MLT
Uberlândia
109
Estivinha
MST
Uberlândia
Emiliano Zapatta
FERUBE
80
Ferube
TOTAL
24
3.289
Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004. Elaboração: GOMES, R. M.
Tabela 3.4: Total de acampamentos e famílias acampadas – Alto Paranaíba
Movimento
Município
Acampamento Localização fam.
Fazenda
STR Araxá
Araxá/Ibiá
Faz. São Mateus
na estrada
70
Fetaemg
Coromandel
Berro D'Ägua
na estrada
66
STR Araxá
Ibiá
São Dimas
na estrada
25
STR Araxá
Ibiá
Morro alto de baixo na fazenda
40
Patos de Minas Guimarâes Barreira na fazenda
Fetaemg
67
Guim.Barreira
Fetaemg
Patrocínio
Folhados
ferrovia
45
Fetaemg
Patrocínio
PIF PAF
na estrada
33
LOC
Patrocínio
Sinhazinha
na fazenda
15
Faz. Mateira
LOC
Patrocínio
Fortaleza
na fazenda
30
Faz. Fortaleza
LOC
Perdizes
Sapecado Indaiá
na fazenda
100
STR Araxá
Perdizes
Bom Sucesso
na fazenda
150
MST
Sacramento
Zagaia
na fazenda
350
Chap. Zagaia
Fetaemg
Tiros
Santa Cecília
na fazenda
30
TOTAL
13
1.021
Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004. Elaboração: GOMES, R. M.
154
LOCALIZAÇÃO DOS ACAMPAMENTOS DE SEM-TERRA NO TRIÂNGULO MINEIRO /
ALTO PARANAÍBA
N
CACHOEIRA
DOURADA
IPIAÇU
CAPINÓPOLIS
ARAPORÃ
TUPACIGUARA
ARAGUARI
CENTRALINA
CANÁPOLIS
MONTE ALEGRE DE
MINAS
ABADI
A DOS
DOUR
DOUR ADOS
ADOQ
GRUPIAR
UARA
A
CASC
ALHO
MONTE
RICO
CARMELO
ESTRELA
DO SUL
COROMANDEL
PATOS DE
MINAS
LAGO
GUIMARÂNIA
SANTA VITÓRIA
PATROCÍNIO
INDIANÓPOLIS
ITUIUTABA
UBERLÂNDIA
IRAÍ DE
MINAS
GURINHATÃ
PEDRINÓPOLIS
CAMPINA VERDE
CARNEIRINHO
NOVA
PONT
E
PRATA
LIMEIRA DO OESTE
UNIÃO DE
MINAS
PERDIZES
ITAPAGIPE
UBERABA
PATO
S DE
MINA
S
RIO
PARA
NAÍBA
ARAP
ORÃ
MATU
TINA
FRUTAL
PERDIZ
ES
CONQUISTA
SACRA
MENTO
DELTA
CONCEIÇÃO DAS
ALAGOAS ÁGUA COMPRIDA
CONCEIÇÃO DAS
PLANURA
ALAGOAS
20 KM
0
20 KM
40 KM
TAPIR
A
SÃO
GOTA
RDO
SANT
ARAX
Á
CAMPO FLORIDO
FRUTAL
ORGANIZAÇÃO: GOMES, R. M., 2004.
DESENHO: LIMA, F. R. , 2004
[email protected]
FONTE: www.geominas.mg.gov.br
SANT
CRUZ
EIRO
DA
FORT
ALEZ
SERRA DO
A
SALITRE
VERÍSSIMO
COMENDADOR
GOMES
ITURAMA
TIROS
ROMARIA
PRATI
NHA
CAMP
OS
ALTO
S
ACAMPAMENTOS
STR ARAXÁ (05 ACAMPAMENTOS)
FETAEMG (13 ACAMPAMENTOS)
LOC (03 ACAMPAMENTOS)
MST (04 ACAMPAMENTOS)
MTL (10 ACAMPAMENTOS)
CLST (01 ACAMPAMENTO)
MLST (01 ACAMPAMENTO)
AMFT (01 ACAMPAMENTO)
Todos os projetos de assentamentos da região do Triângulo Mineiro/ Alto
Paranaíba foram frutos de ocupações e acampamentos, com exceção das
aquisições de propriedades via Programa Banco da Terra 1. As ocupações
denotam a forma primordial de luta pela terra, e os acampamentos registram as
histórias de resistência dos trabalhadores rurais sem-terra. A realidade destes
acampamentos constitui, assim, elemento importante, tanto na dinâmica da luta
pela reforma agrária, quanto na construção dos assentamentos rurais.
Os acampamentos são espaços e tempos de transição na luta pela
terra. São, por conseguinte, realidades em transformação. São uma
forma de materialização da organização dos sem-terra e trazem em si,
os
principais
elementos
organizacionais
do
movimento.
Predominantemente, são resultados de ocupações. São, portanto,
espaços de luta e resistência. Assim sendo, demarcam nos latifúndios
os primeiros momentos do processo de territorialização da luta
(FERNANDES, 2000, p.293).
Nessa perspectiva, a proposta deste capítulo é compreender as formas de
organização e resistência, no interior de acampamentos de movimentos de luta
pela terra. Não é nossa pretensão empreendermos um estudo detalhado e
aprofundado acerca da totalidade dos elementos presentes nessas áreas, mas
apontar alguns dentre aqueles que, no decorrer do nosso trabalho de campo,
mostraram-se relevantes, do ponto de vista desta pesquisa, qual seja, uma
reflexão qualitativa acerca de alguns dentre os diferenciais de organização social,
política e produtiva, que conotem experiências de luta e resistência às dificuldades
internas e externas impostas às famílias de trabalhadores rurais sem-terra.
Partimos aqui da constatação de que os acampamentos são peças
importantes, não apenas para a conquista da terra e para a construção dos
assentamentos rurais, mas também para a ampliação da luta pela reforma agrária.
Os acampamentos tornam-se referências de luta e organização na formação e
espacialização dos movimentos sociais de luta pela terra, à medida que
promovem ocupações, desenvolvem ações e constroem territórios de resistência à
expropriação e à exploração dos trabalhadores rurais. Ao expor a experiência do
1
Existem na região três assentamentos criados pelo Programa da Terra, que não fazem parte da
discussão deste trabalho. Sobre o Programa, vide o primeiro capítulo.
156
acampamento Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, uma das principais
referências da história do MST, Fernandes sintetiza essa reflexão: “A luta pela
terra ensina. (...) Nesse sentido, Natalino foi uma escola. Muitas das ações de
resistência constituída nessa luta foram referências principais na troca de
experiências com outras lutas que aconteceram em todo o Brasil. Foi um exemplo
de luta e resistência que animou os trabalhadores” (FERNANDES, 2000, p.56).
Da mesma forma, os dois acampamentos aqui estudados – Emiliano
Zapata e Tangará – transformaram-se em importantes referências regionais de
luta, fontes de outras novas ações, exemplos de persistência, impulsionadores da
luta mais ampla pela reforma agrária. Afinal, as experiências geradas nesse
processo contribuem para a criação de novos espaços de socialização política, de
práticas que se transformam em reflexões, de reflexões que se transformam em
novas lutas.
Por este motivo, tais acampamentos foram escolhidos como foco
privilegiado de análise neste trabalho. Ambos estão situados no município de
Uberlândia (o maior da região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba), existem há
cinco anos, e são coordenados pelos dois movimentos sociais de luta pela terra
mais atuantes na região: o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (Emiliano Zapata) e o MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade
(Tangará). Nas visitas às áreas, procuramos, por meio da observação e de
entrevistas ou conversas informais, recuperar as principais lutas do grupo
acampado e as formas de organização do acampamento. Foram realizadas,
ainda, reuniões com coordenadores e acampados, no intuito de buscar respostas
coletivas para estas questões. Outro procedimento metodológico utilizado foi a
pesquisa documental realizada nos arquivos dos movimentos. O objetivo não é
realizar um estudo minucioso sobre as áreas para daí buscar a compreensão da
dinâmica da luta pela terra, mas sim conseguir elementos que ilustrem, instiguem
e tornem mais consistentes, a partir da contribuição empírica, a nossa reflexão
sobre o tema.
Importante ressaltar, ainda, que não encaramos estes processos de
espacialização e territorialização da luta pela terra como processos lineares,
157
destituídos de conflitos e contradições. Ao contrário, estas são marcas inerentes e,
portanto, com as quais procuraremos nortear as nossas reflexões.
O Acampamento Emiliano Zapata: a luta do MST no Triângulo Mineiro
O acampamento Emiliano Zapata completou, em fevereiro de 2004, cinco
anos de existência e possui hoje 43 famílias2. É o mais antigo acampamento da
região coordenado pelo MST. Está localizado há três anos na Fazenda FERUBE,
uma área de aproximadamente 530 hectares, situada a 15 Km da cidade de
Uberlândia.
A área é de propriedade da Associação Brasileira de Assistência ao
Adolescente. Há vários anos funcionava aí um centro de reabilitação do
adolescente. Atualmente está sob o direito de uso da prefeitura municipal de
Uberlândia. Possui uma enorme estrutura de funcionamento de uma escola
agrícola (com prédios, casa de farinha etc), mas com sua maior parte inativa.
Apenas um dos prédios é utilizado como escola de 1º grau para os alunos do meio
rural.
Foto 3.1 - Barracos do acampamento Emiliano Zapata (Uberlândia)
Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003
2
Dados de fevereiro de 2003.
158
A construção do acampamento Emiliano Zapata
O acampamento Emiliano Zapata teve sua origem no assentamento Zumbi
dos Palmares, conquistado em 1999 pelo MST. No processo de espacialização da
luta, a conquista desta área contribuiu sobremaneira para o processo de
organização das ocupações subseqüentes, organizadas pelo movimento. Quando
saiu a imissão de posse para os recém-assentados, lá mesmo começou a se
organizar uma nova ocupação. As famílias remanescentes do Zumbi, junto com
outras lideranças do MST, passaram a realizar algumas reuniões em bairros
periféricos da cidade de Uberlândia e aglutinaram mais pessoas interessadas.
Em nossas visitas ao Emiliano Zapata, entrevistamos oito famílias, estando
a maioria envolvida com o acampamento desde as primeiras ações. O início da
participação destas famílias, no movimento, se deu através das reuniões
realizadas, nos bairros periféricos da cidade de Uberlândia, muitas vezes por
intermédio de algum conhecido, parente ou amigo, que já participava da luta pela
terra. As razões são normalmente associadas às dificuldades de sobrevivência
nas cidades – desemprego, violência, drogas –, e à perspectiva da conquista da
terra como forma de melhorar a qualidade de vida.
Eu queria dá melhor educação pros filho. (...) O Chico e o Bob tava fazendo frente de
massa lá no Dom Almir e a gente foi pra Zumbi. Primeiro foi sozinho, sem família nem
nada. Que a gente morava no Dom Almir que era muito violento, muito perigoso... E não
tinha emprego, era muito violência lá... (acampado).
Quando o Chê (liderança do movimento) era candidato a vereador eu tive o primeiro
contato com o movimento. Aí conheci também o Cachorrão (acampado da Garupa). Não
sabia como era, se tinha que pagar aluguel... Depois de falar outras vez com o Chê, eu
procurei na secretaria do movimento e aí eu mudei pra ocupação na Fazenda Garupa. Eu
vim pro movimento por causa da terra... Que eu quero deixá alguma coisa pros neto, pros
filho. E também porque tem muito desemprego na cidade, principalmente pras pessoa
mais véia que nem eu, que num consegue emprego pela idade mais... (acampado).
159
Um amigo meu chamou um dia pruma reunião no Bairro Planalto. Na reunião tinha umas
liderança que nem a Maysa, que já era assentada e aí ficava animando o povo, dizendo
que dava certo, que ela tinha conseguido... Toda a vida tinha pensado em reforma agrária
como solução dos problema do campo, mas nunca tinha pensado em que eu mesmo fazê
a reforma agrária. Então eu não queria muito, os amigo ficavam insistindo todo dia, até
que eu montei uma barraca lá na Fazenda Douradinho, depois que o acampamento já
tava montado, mas quase não ficava lá, ficava mais na cidade. (...) Até que o serviço na
cidade foi acabando e eu fui ficando só por conta do movimento mesmo... (acampado).
Todos os acampados entrevistados moravam em Uberlândia, quando
vieram para o acampamento, e as últimas ocupações eram urbanas. No entanto,
todos possuíam vínculos de origem com o meio rural, em outras regiões de Minas
Gerais, ou em outros estados como São Paulo, Mato Grosso e Bahia:
Eu nasci no campo, na Bahia, que meus pais tinha terra lá, aí eu trabaiava na lavora. Mas
as coisa era difícil, e quando foi em 71 eu vim pra Ituiutaba e fiquei trabalhando lá numa
fazenda até quando foi 76, que eu fui trabalhar na CCO, construtora de estrada, né? Na
CCO eu fui transferido pra Uberlândia, mas em 83 eu parei aí fiquei lá de autônomo,
pegando empreitada no ramo da construção civil, de pedreiro, carpinteiro, tudo isso...
(acampado).
Meus pais era colonos em Lins (interior de São Paulo). Eles trabalhava pra um fazendeiro,
mas podia plantá um pouco pra comer, assim, feijão, arroz, horta... Aí eu ajudava eles até
quando eu fiz 17 anos e fui pro exército (acampado).
O meu pai era trabalhador rural na Bahia. De lá a gente foi pro Paraná, que lá o meu pai
tinha terra dele mesmo e a gente plantava café e hortelã. Mas aí depois que veio a
mecanização a gente teve que saí de lá, que a gente quebramo e tivemo que ir trabalhá
em São Paulo, era em 75. Muita gente quebrou. Nós comprô trator, adubo, aí quebramo,
porque não conseguia pagar o banco... (acampado).
Eu morava na roça até os 16, com a família, que a gente era meeiro lá em Lagoa
Formosa. Só que dava muito pouco na meia, não dava nem pra comê, aí a gente teve que
ir embora pra cidade. (acampado).
160
A baixa escolaridade (75% dos entrevistados possuíam, no máximo, a 4ª
série do primário) e a ocupação em subempregos são características comuns dos
acampados. Antes de entrarem para o movimento de luta pela terra, uma marca
presente entre as famílias é a falta de perspectiva. A maioria das famílias
sobrevivia de “bicos”, como diaristas ou em empregos temporários, em atividades
ligadas, principalmente, ao ramo de construção, no caso dos homens, e a serviços
domésticos, no caso das mulheres, sendo o desemprego apontado como uma das
maiores causas da “busca por uma vida melhor”.
Em fevereiro de 1999, o grupo reunido montou acampamento numa área do
P.A. Zumbi dos Palmares. Conforme os relatos, neste período de organização
inicial do acampamento, as experiências do grupo antigo eram repassadas, as
lideranças apresentavam o que era o MST, ensinavam os hinos, discutiam a
importância da bandeira do movimento, etc. O nome Emiliano Zapata fora
escolhido já na reunião de “fundação” do acampamento, por ser um representante
da luta social pela terra no México. Em março de 1999, cerca de 80 pessoas
ocuparam a Fazenda São Domingos, de onde foram horas depois expulsos, sob
intensa violência de jagunços e policiais. Houve uma série de agressões, de
repressão física e moral, com apreensão de carros, materiais de trabalho e objetos
pessoais, além da detenção de alguns integrantes do movimento. Retornaram
para o Zumbi e continuaram os trabalhos de formação e preparação para a
próxima ocupação, que contou com cerca de 100 pessoas, na Fazenda Palma da
Babilônia. Aqui permaneceram por apenas dois dias e saíram, desta vez, por
conflito com outro movimento – o MLST, que já havia ocupado a área. Retornaram
novamente para o Zumbi e realizaram mais uma ocupação – a Fazenda
Douradinho. Nesta ficaram por quatro meses e chegaram a contar com a presença
de 220 famílias. Foi, neste período, que o grupo de sem-terra chegou a tomar a
forma real de um acampamento, numa área em disputa, com visibilidade social.
Aqui se inicia o processo de negociação com o INCRA.
Num enfrentamento não violento, mas político, as famílias negociaram a
retirada da área para que o INCRA realizasse a vistoria na Douradinho. As
161
famílias foram para a beira do Rio Uberabinha, onde ficaram acampadas por mais
quatro meses. Na beira do rio, o INCRA fez o cadastramento de 180 famílias.
Depois retornaram novamente para o Zumbi: “O Zumbi é nosso pai e nossa mãe.
Sempre que dá alguma coisa errada, a gente volta pra casa dos pais” (acampado).
Nesse processo, a Fazenda Garupa entrou na negociação. Como o processo
corria muito lentamente, as famílias decidiram ocupar a Garupa. O enfrentamento
começou já na ocupação. Várias famílias foram impedidas de chegar à área para
a ocupação, e os policiais e os jagunços fizeram muita pressão, inclusive através
do uso da violência física. Durante os primeiros 15 dias, eles montaram
acampamento ao lado do acampamento dos sem-terra. Realizavam vistorias,
davam tiros para o alto e utilizavam várias outras práticas de intimidação. Os semterra ficaram praticamente ilhados, porque os policiais controlavam a saída e a
entrada da área.
Na Garupa a repressão foi muito grande. Teve que enfrentá mesmo. Foi o INCRA que
indicou pro MST a fazenda Garupa. Mas só a direção sabia, o povo não sabia não. A
gente percebia o movimento e já foi começando a arrumar uma coisa aqui, uma coisa ali.
Meia noite eles falaro pra gente desmanchá os barraco que os caminhão já tava
chegando. Mas aí já foi o primeiro problema. Era cinco caminhão, mas só vieram dois,
que três quando descobriram que era pra sem-terra ficaram com medo e não vieram. As
quatro hora da manhã chegamo na área, já fomo derrubá eucalipto e começa a fazer os
barraco. Sete hora da manhã a polícia chegou com o fazendeiro. Prendeu tudo quanto era
foice, facão, machado. Não deixou o caminhão que tinha voltado pra pegar o resto das
nossas coisa passar, só liberou uns três dias depois. Fomo fazendo barreira e
conseguimo empurrar a polícia um pouco. Ela fez muita pressão, mas nós conseguimo
resistir e ficá na área. (acampado)
Os trabalhadores ficaram acampados durante quatro meses. Ao término
desse tempo, a fazenda era tida como certa. Os jornais noticiaram a vitória dos
sem-terra pela manhã do mesmo dia em que, ao final da tarde, o processo judicial
sofreu uma reviravolta e o juiz pediu a reintegração de posse. Nessa época, o
governador do estado, Itamar Franco, não acionava a polícia para efetuar despejo
162
de sem-terra. Foi a primeira vez, então, que a polícia federal foi chamada, na
região do Triângulo Mineiro, para efetuar a reintegração, o que provocou uma
enorme pressão psicológica sobre os acampados.
Sabe, esse foi o momento mais difícil do acampamento... Foi uma grande derrota e um
grande desespero. As famílias ficaram muito decepcionadas, desiludidas. Tava todo
mundo já dando como certo... Aí teve uma grande dispersão das famílias com a retirada e
o acampamento sofreu um grande esvaziamento. Mas algumas família resistiram e
voltaram pro Zumbi, não deixando a luta do Zapata acabar. (acampado)
Foram apenas 13 famílias que, nessa época (outubro de 2000), voltaram
para o Zumbi. Deram seqüência ao trabalho, organizaram novas reuniões e
conseguiram aglutinar novamente cerca de 100 famílias que, em 21 de janeiro de
2001, ocuparam a área onde estão hoje – a FERUBE.
A ocupação da área da FERUBE foi relativamente tranqüila, sem confronto.
A prefeitura, ela não é ágil na negociação, mas também não “implica” com os sem-terra.
O Zaire é menos ofensivo que o prefeito anterior, o Virgílio. E aí como a área tá com
direito de uso da prefeitura nem tem processo judicial. O proprietário da área também não
causou problemas até hoje não, ele conversa, tá disposto... Assim, se a prefeitura
negociar outra área com ele tá tudo certo por ele a gente acha (acampado).
Já na área, de acordo com os depoimentos, além dos processos de
negociação e pressão política utilizados, como manifestações dos sem-terra na
prefeitura, os conflitos abertos com o poder público municipal se deram mais por
ocasião de períodos em que as cestas básicas destinadas aos acampados eram
retidas ou entregues tardiamente, como está expresso no seguinte relato:
Já fizemo manifestação na prefeitura algumas vezes. Uma vez prendemo a camionete da
Secretaria de Agricultura, porque as cesta não tavam vindo. Vieram mais de cinco viatura
da polícia para pegar a camionete. O povo pegou facão, foice, e não deixou a polícia
entrar. A gente falô que só liberava quando o Vicente, que era secretário de Agricultura
163
viesse falá com a gente. Ele não queria vim não, dava desculpa, dizia que não tava aqui...
Imprensa veio. Mas a gente resistiu o dia inteiro. Só quando veio o Vicente que liberô as
cesta a gente liberô a caminhonete. É a guerra da fome que é difícil pra qualquer um
resolvê. (acampado).
Este acampamento foi e é muito importante para o avanço da luta do MST
na região. Da mesma forma que ele surgiu do Zumbi dos Palmares, dele surgiram
as lutas para o acampamento Eldorado dos Carajás. O Zapata já teve a sua
primeira vitória, que foi conquistar a Fazenda Água Limpa, de 407 ha, onde serão
assentadas 10 famílias. Atualmente, 17 famílias, dentre o total de 43 acampadas
do Zapata, montaram acampamento na Fazenda Água Limpa, como forma de
garantir a criação do assentamento.
A outra área que está em negociação, além da fazenda da FERUBE (na
qual estima-se o assentamento de 15 a 20 famílias), é a da Fazenda Estivinha,
que está em processo judicial e comportaria o restante das famílias. No caso da
área da FERUBE, como esta conta com uma grande estrutura de escola agrícola,
o objetivo seria formar aqui um grande centro de formação política e técnica para
os acampados e assentados da região.
Mas há ainda um problema de caráter distinto: a área foi ocupada
posteriormente por outro grupo de sem-terra, vinculado ao MLST (Movimento de
Libertação dos Sem-Terra). Segundo informações dos acampados do Zapata, o
grupo do MLST havia ocupado uma outra área e, em negociação com a prefeitura,
e com a aceitação do MST, foram para a área da FERUBE para que esperassem
o desenrolar do processo. Entretanto, com dois meses na área decidiram pleitear
também a fazenda e permaneceram acampados. Este processo tem trazido
alguns conflitos entre os dois movimentos, reforçando a problemática regional, já
tratada neste trabalho, ligada às dificuldades existentes internamente aos
movimentos de luta pela terra, dentro de suas diversidades.
164
Organização social e política do acampamento Emiliano Zapata
A área da fazenda já contava com energia elétrica, inclusive onde está
montado o acampamento, que é onde termina a rede. As famílias, logo nos
primeiros dias na área, puxaram a fiação para o acampamento e os barracos.
Todos os barracos contam com abastecimento de água, já que a área possui uma
queda natural e vários poços furados (vertente), de onde montou-se a canalização
que abastece o acampamento.
As crianças que cursam o 1º grau estudam na própria FERUBE, que abriga
uma escola da prefeitura. Mas, além da educação escolar formal, existe, no
acampamento, o esforço de um acompanhamento político-educacional com as
crianças, com professores de dentro do acampamento, no barraco construído para
ser a escola. “O objetivo é discuti com as criança na sua realidade, trazê as coisa
que elas aprende na escola pra sua vida aqui dentro” (acampado).
Foto 3.2 - Barraco onde funciona a escola do acampamento Emiliano Zapata (Uberlândia).
Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003.
165
A presença de eventos religiosos no acampamento é tida pelos acampados
como importante mecanismo de união do povo. Novenas, terços, bem como
missas e outras ações religiosas são realizadas no acampamento com relativa
freqüência, especialmente através da APR, entidade que promove um trabalho
pastoral no meio rural:
É importante porque é sempre preciso tá rezando e orando e ensinando as pessoas que
tão muito sem religião. Elas tão só pensando em dinheiro, ou aqui no acampamento só
em terra. (acampado)
O Padre vem rezar aqui todo mês quase. Faz na quaresma, véspera de natal... É
importante pra trazer paz, crença, fé. Parece que quando reza o acampamento vai pra
frente... (acampado).
Como já foi discutido no segundo capítulo, para além das tradições
culturais, a presença das práticas religiosas está muito relacionada com a
importância da vinculação entre os elementos políticos e religiosos que é
empreendida comumente nos processos de luta pela terra, através do discurso
“libertário” empreendido por alguns setores da Igreja, discurso este que “está
presente nos projetos de inúmeros grupos que se mobilizam no meio rural; confere
identidade a esses grupos e legitima, muitas vezes, as suas ações” (MICHELOTO,
1991, p.5).
No que se refere à organização interna do acampamento, esta é ancorada
na linha política do movimento, de coletivização da direção. Desde a primeira
reunião do Zapata, ainda no Zumbi, as famílias dividiram-se em núcleos e setores.
Todas as famílias participam de algum núcleo, que é uma forma de todas se
envolverem e se comprometerem com a luta, ainda que em diferentes graus. São
4 núcleos de famílias, com um coordenador e uma coordenadora. Estes
coordenadores integram a coordenação geral junto com mais alguns membros
que são liberados para atuarem no movimento fora do acampamento. Todos os
núcleos têm membros que participam de cada uma das equipes (alimentação,
finanças e segurança) e de cada um dos setores (saúde, educação e produção).
166
O MST tem um grande trabalho pra garantir a organicidade do acampamento. Claro que
isso é um processo, é um aprendizado... Mas mesmo com as dificuldades, as
divergências, há um envolvimento de todos porque todos têm uma tarefa para
desempenhar porque todos participam de algum núcleo ou setor (acampado).
A socialização política é um elemento constituinte importante do
acampamento. Além das experiências das lutas e das ações empreendidas pelo
movimento, há uma preocupação constante com o trabalho de formação política
com as famílias acampadas. Realizam-se discussões, análises de conjuntura,
reflexões acerca da realidade vivida, ainda que numa intensidade aquém dos
anseios sentidos por, pelo menos, parte das lideranças. Os depoimentos
ressaltam também o incentivo à contribuição com outras lutas, como a
organização de outras famílias em novas ocupações.
Questionadas sobre a importância do MST na organização da luta, o
movimento aparece como a principal referência para as famílias acampadas:
O MST tem muita força. É muito mais do que terra. O MST engloba várias partes da luta.
São muito enfrentamentos, muitos projetos. O MST engloba muita coisa, tem uma história
muito grande e é construída a história no cotidiano também. É essencialmente assim...
um movimento que consegue resgatá as pessoa. Pessoas que não têm nada, que não
tem perspectiva. O MST vai lá e dá esperança, dá sentido na vida, orienta muito. E te dá
muitas oportunidade, assim... Tem sem-terra daqui que tá estudando em escola técnica lá
no Paraná, que faz faculdade ligada a produção lá no Sul, que faz curso de formação
política sei lá onde. E sabe... só o conhecimento é capaz de libertá. E o movimento te dá
o conhecimento. Afinal, o seu objetivo, é sê uma organização de massa voltada pra
transformação social. E além disso, o MST tem repercussão internacional. Direto vem
gringo aqui querendo conhecê a nossa luta. Todo mundo sente orgulho de sê do MST, da
mesma forma que todo mundo se sente ofendido quando alguém ou a TV fala mal do
MST. (acampado)
Se não existe o MST não tinha como nós lutá pela reforma agrária. É ele que reúne o
povo, que faz a formatura do povo pra lutá pela reforma agrária. (acampado)
167
É bom estar com o movimento porque temo contato com meio externo. Se não tem essa
ligação qualquer viatura entra no acampamento e tira o povo (acampado)
Sem o movimento a vaca ía pro brejo. O movimento dá toda formação, porque tamos
acampado. Aí, assim, a gente entende a importância da terra pra nós, pros nossos filhos,
pros netos, pra sociedade... (acampado)
A fase de acampamento é apontada como um momento muito difícil,
marcado pela precariedade das condições sanitárias e alimentares e pela
dificuldade do acesso aos serviços básicos, especialmente médico e hospitalar,
bem como pelos conflitos internos e externos inerentes ao processo. No entanto,
ressalta-se também a experiência positiva do aprendizado, do convívio com a terra
e com os companheiros de luta.
As vantagem é quando chega notícia boa, e os problema é vê as dificuldade, as pessoas
doente, as briga, as divergência. Porque quando começô era pra sê uma família unida,
mas não é, que tem muita divergência... (acampado).
Essa fase é muito boa, que a gente aprende muita coisa... E é muito bom pros filho, que
aprende muita coisa também... É bem melhor que na cidade. A parte ruim é que tiveram
muitos problema com saúde, muita doença, e a gente perdeu alguns companheiro nosso
aqui. Também os conflitos que teve... na Garupa... foi muito ruim... (acampado).
A fase de acampamento tem seus altos e baixo. O acampamento é muito bom pra ensiná
as pessoa, que na fase de acampamento a gente aprende muito. O problema é que é
muito demorado. Porque o acampamento gera muita união, mas é entre alguns, que tem
outros que tão unidos só por causa da terra. Tem muita falsidade também. Na última
reunião caíram muitas máscara. (acampado).
Bom, a família inteira gosta muito de roça, então todo mundo acha muito bom ficá aqui. A
criação na roça é muito mais tranqüila. Mas passa muita dificuldade, com comida, colocar
criança debaixo de lona é difícil... Mas a gente só consegue as coisa na vida com
168
sacrifício. E a gente acredita na luta, que o mundo só vai melhorá com a reforma agrária
(acampado).
Aqui é melhor pela tranqüilidade, não tem bandido, pode viver do jeito que quer... Pode
deixá a casa aberta. Quando qué trabalhá, trabalha um pouco, quando cansa toma um
café... (acampado).
Organização produtiva do acampamento Emiliano Zapata
Cada família tem o seu quintal com a sua horta. Algumas famílias produzem
leite e queijo para ser comercializado em Uberlândia, mas a maior parte da
produção fica para a subsistência no acampamento. “Tem a cesta básica, mas se
a prefeitura cortá a cesta de fome a gente não morre” (acampado).
Foto 3.3 - Quintal de um acampado no Emiliano Zapata (Uberlândia): plantações de amendoim,
pimenta, batata doce, milho, entre outras culturas para a subsistência.
Autora: GOMES, R.M. Dezembro de 2003.
169
Foto 3.4 - Criação de porcos e galinhas para subsistência – acampamento Emiliano Zapata
(Uberlândia).
Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003.
Na roça, o projeto é coletivo. A busca pelas sementes e a plantação é
coletiva, mas o trabalho é dividido por família, cada um administra uma parte.
Todos têm plantação de milho e mandioca, num total de 5 hectares. A produção
de milho está ligada ao Programa de Segurança Alimentar, do governo do Estado
de Minas Gerais, coordenado pela Cáritas. O MST busca dar um suporte à parte
produtiva, através da sua equipe técnica, mas é um apoio bastante precário,
especialmente devido às dificuldades financeiras do movimento. Alguns produzem
individualmente feijão, abóbora ou amendoim.
170
Foto 3.5 - Produção de milho e mandioca em área coletiva do acampamento Emiliano Zapata
(Uberlândia).
Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003.
A área não é muito produtiva, mas passível de correção e de boa utilização
com certos cuidados. É muito arenosa, mas não tem problemas como excesso de
inclinações ou erosão.
Certamente, a questão produtiva é um dos pontos centrais para a
organização ainda na fase de acampamento. Os conflitos sobre a forma da
produção já são explícitos à medida que um dos princípios da organização do
acampamento é o de se trabalhar a terra desde o primeiro momento de ocupação
das áreas. As discussões travadas, neste período, e as experiências produtivas aí
acumuladas constituem referências importantes para as decisões futuras, quando
da conquista do assentamento. “O acampamento é a base que dá a cara ao
assentamento. É o coletivo que vai determinar a força que o assentamento vai ter”
(acampado).
171
A produção coletiva é um dos mais fortes princípios do MST, mas é também
uma de suas maiores dificuldades. Com exceção da experiência inicial do
assentamento Paulo Freire, que fazemos referência mais à frente, não há nenhum
outro caso de trabalho coletivo, nas áreas conquistadas, com o apoio do
movimento.
Tanto que não há na região nenhum assentamento modelo, em que a gente possa se
espelhar. 40% vende os lote, 70% passa necessidade. Além disso, há o problema dos
rachas, que acontece por personalismos, “por desvios de lideranças”, por brigas de
pessoas que querem sempre estar liderando, que enfraquecem o movimento.
(acampado).
Essa área não deve ser o modelo de assentamento que queremos, mas o objetivo é que
aproximemos mais disso. Que este assentamento caminhe e que sirva também de
referência de luta para os outros (acampado).
As falas das lideranças enfatizam a importância da coletivização, mas, ao mesmo
tempo, ressaltam a força do individualismo na região. Argüidos sobre quais seriam
as maiores dificuldades da luta pela terra, as respostas indicavam a longa espera
da conquista como um grande desgate; a falta de comprometimento dos governos
e dos órgãos responsáveis; “a cultura do povo, que é muito individualista”.
A proposta é uma nova forma que está sendo construída. A discussão está tendo
aceitação. Avançar nas questões coletivas é o objetivo do movimento. Quanto mais
coletivo melhor. E o outro grande desafio é saber administrar os recursos, porque não
adianta receber muito dinheiro se não sabe como gastar. É ter projetos consistentes, com
acompanhamento. Claro que ainda não vai ser como a gente pretende, tudo coletivo. Os
lotes devem ser individuais, mas discute-se a possibilidade das casas serem mais
próximas uma da outra, todas dando acesso a mesma estrada, com uma área em comum
de lazer, de educação e, quem sabe, uma área de produção coletiva (acampado).
É preciso que o acampamento ou o assentamento tenha condição de produzi e fazê um
bom trabalho pra que a sociedade acredite que ele dê certo. Atualmente, há uma média
172
de 40% de venda de lote, e cerca de 70% de família que passa necessidade nos
assentamento. Assim não dá certo (acampado).
Argüidos sobre a forma ideal de organização produtiva que deveriam
ter quando assentados, as respostas são as mais variadas, explicitando os
crescentes conflitos de idéias, dada a possibilidade, cada vez mais próxima, da
conquista do assentamento:
Ah... Tem que sê tudo no coletivo, que individual cê não consegue fazê nada (acampado).
O melhor tipo de organização é o “coletivo familiar”. As famílias que quiserem entra no
coletivo. Mas, claro, se fosse todas as família no coletivo seria melhor (acampado).
O ideal é o semi-coletivo. Faz todo o projeto de produção coletivo (como a cerca, a
preparação da terra, planta tudo junto, aluga o trator, prepara tudo mais mecanicamente),
coisas que só dão pra fazê se for no coletivo. O dinheiro rende muito mais e o poder de
barganha fica muito grande. Mas o lote deve ter uma parte individual, pra fazê a sua
horta, criar o seu porco, a sua galinha. Tipo: pega a metade e faz lote individual e a
metade faz produção coletiva. Eu não quis ir pra Água Limpa porque eu fiquei observando
as pessoas que foram pra lá e acho que a maioria que foi era as que pensava em fazê
tudo individual (acampado).
O coletivo não dá certo nem no acampamento, muito menos no assentamento. Cada um
tem um jeito de trabalhá. Às vez você tem que fazê pra você e pro outro. Não gosto muito
do coletivo, mesmo a associação já é difícil. Mas dá pra fazer compra e venda conjunta.
Assim dá (acampado).
O coletivo não dá certo. Sempre tem um que fica na veia do outro. O coletivo só seria
bom se todos tivessem o mesmo pensamento, mas não é assim. Tem que ter uma
associação pra ajudar a conseguir as coisa, mas tem que ser individual (acampado).
O acampamento Emiliano Zapata encontra-se hoje num momento decisivo,
com as negociações já num estágio relativamente avançado. Já começam a se
delinear, aqui, os novos dilemas oriundos das conquistas das áreas:
173
Agora também estamos vivendo um momento muito marcante, porque o acampamento
parece estar chegando na reta final, em que talvez cada um tem que tomar um rumo
diferente, porque podem ser três áreas, não vai mais ser todo mundo junto (acampado).
O rumo que será tomado, a partir da construção dos assentamentos, é
obviamente incerto, até pela também ainda incerta conquista das outras
propriedades em negociação – Fazendas FERUBE e Estivinha. A possibilidade de
se dividir em três áreas distintas as famílias do acampamento torna ainda mais
complicadas as discussões sobre a futura organização política e produtiva dos
territórios conquistados, além de reforçar a questão da dificuldade de
desapropriação de grandes propriedades rurais na região do Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba, já exposta no capítulo 2 deste trabalho.
De qualquer forma, é possível afirmar que o acampamento Emiliano Zapata
contribuiu para a ampliação das ações do MST nesta região, tendo servido de
base de construção e de referência para várias outras mobilizações e ocupações
empreendidas pelo movimento.
O Acampamento Tangará: referência regional de luta e resistência
O acampamento Tangará constitui um marco na história da luta pela terra
na região, pelo caráter anterior da fazenda3, pelo exemplo de resistência e pela
sua repercussão social e política. A área foi desapropriada em 09/05/2002, e já
está concluído o projeto de criação do assentamento. Atualmente, as famílias
aguardam apenas a demarcação dos lotes.
A luta envolvendo a Fazenda Tangará foi uma das primeiras ações do
MLST – Movimento de Libertação dos Sem-Terra, fundado em 1997. Em fevereiro
de 1998, o MLST requereu laudo de vistoria a ser realizado pelo INCRA, finalizado
em julho de 1999, que concluiu pela improdutividade da propriedade em questão.
3
A maior parte das ocupações na região se dão em áreas de pecuária, de pessoas físicas. Esta
tratava-se de uma fazenda de propriedade de uma empresa de exploração de eucalipto – a CIF
(Companhia de Integração Florestal).
174
A partir daqui, inicia-se uma longa batalha judicial e política, tendo em vista a
contestação do laudo pela empresa proprietária – a CIF (Companhia de
Integração Florestal).
O MLST iniciou um processo de investigação e contestação dos
argumentos acerca da produtividade da fazenda, na qual efetivamente existiam
alguns projetos de plantio de eucaliptos.
Ao investigar diretamente a veracidade destes projetos o movimento
tomou conhecimento a respeito de volumosos incentivos recebidos por
grandes empresas proprietárias de latifúndios para o plantio de
eucaliptos, consistindo em recursos a fundo perdido e incentivos fiscais.
Na procuradoria do IBAMA, tomou-se conhecimento, também, que
vários dos projetos incentivados, beneficiando mais de 6 milhões de
hectares, foram encaminhados à procuradoria da União para que fosse
movida ação própria para reaver o dinheiro público que não fora
apresentado conforme o projeto apresentado. Nesta investigação o
MLST descobriu ainda que, no Tribunal de Contas da União, estava em
curso processo para apurar a aplicação de todos os recursos oriundos
do Fundo de Investimentos Setoriais (FISET), destinados ao plantio de
eucaliptos. Descobriram que a Tangará, administrada pela Companhia
de Incentivo Florestal (CIF), foi uma das fazendas do programa de
extração de eucalipto para a fabricação de carvão a ser usado na
indústria de ferro-gusa, que estava sendo beneficiada desde a década
de setenta com 81 projetos de investimento a fundo perdido pelo
governo federal. Em todos esses anos, os laudos de vistoria realizados
pelo IBAMA dos projetos a serem aplicados, apontaram falhas na
implantação e muitas vezes os projetos inexistiam (Mitidiero Junior,
2002, p.280).
As batalhas judiciais e políticas travadas obtiveram grande repercussão
social, tendo, inclusive, sido convocada pelo INCRA uma audiência pública com
vistas a fazer uma “consulta” à sociedade acerca do “caso Tangará”.
Paralelo a este processo, o MLST deu início aos trabalhos de formação,
através da realização de reuniões de base em bairros periféricos de Uberlândia,
com vistas à ocupação da Fazenda Tangará. Depois de algumas reuniões, cerca
de 450 famílias ocuparam, no início da madrugada do dia 23 de agosto de 1999, a
área em disputa. O processo foi, desde o início, conturbado.
175
Tinha muita polícia e jagunço. Quarenta e oito horas depois o Armando Ferro (juiz) soltou
a liminar de despejo. Mesmo assim conseguimo enrolar na Tangará durante 20 dias.
Então saímos da Tangará. Eles pensavam que a gente ía embora, só que nós ocupamo a
Fazenda Carajás (acampado).
Conforme relata Fonseca:
No segundo dia (da ocupação da Tangará) houve um cerco na estrada
por fazendeiros e polícia com o intuito de impedir a entrada de alimentos
e novas famílias. Em massa, os trabalhadores de dentro e de fora da
fazenda, obrigaram os bloqueadores ao recuo, garantindo domínio sobre
o território. O acampamento passou a ser vigiado 24 horas por dia pela
Polícia. Resistiram por alguns dias à reintegração de posse, até que
numa “surpreendente operação” (Jornal Correio, 12 de setembro de
1999), na madrugada chuvosa de 10 de setembro (MLST, 1999), os
trabalhadores, a pé (14 km), de carro, caminhão e carroças, deslocam
todo o acampamento, ocupando a Fazenda Carajás (mais de 5 mil ha).
Desta vez, a ira dos fazendeiros foi ainda maior, conseguindo pela
manhã, impedir a entrada de trabalhadores retardatários da caminhada.
Os sem-terra montaram acampamento, foram impedidos de sair da
fazenda. “Foi uma noite de terror”, denunciou o MLST em nota à
imprensa (11 de setembro). Na primeira noite no novo acampamento,
fazendeiros, pistoleiros e seguranças privados, com a conivência da
polícia, utilizaram, novamente, a tática dos tiros com armas pesadas,
bombas de efeito moral e rojões (FONSECA, 2001, p.119).
A Fazenda Carajás, de propriedade da SEAP – Sociedade de Estímulos
Agropecuários –, também era considerada improdutiva segundo laudo do INCRA,
mas a sua reintegração foi imediata, tendo os sem-terra desocupado a área
poucos dias depois de sua ocupação, em 14 de setembro de 1999. Saindo da
Carajás, os sem-terra foram para a beira da estrada, onde ficaram acampados
durante seis meses. Neste período, houve muita desistência e foi necessário
recomeçar o trabalho de base para massificar o acampamento. Com o
acampamento reforçado, cerca de 700 famílias de sem-terra reocuparam, no dia
13 de março de 2000, a Fazenda Tangará.
Neste retorno, no entanto, a repressão foi mais violenta. A liminar de
reintegração de posse foi apresentada no mesmo dia, mas as famílias resistiram.
Em 25 de abril de 2000, soldados do Grupo de Apoio Tático Especial (GATE) da
Polícia Militar entraram na área, com o objetivo de efetivar o mandado de
176
reintegração. “Veio o ônibus do GATT, com helicóptero e tudo, o povo
desesperado, cachorros, tiros nos pés de companheiros...” (acampado). Durante o
confronto, os sem-terra atearam fogo numa viatura da polícia militar.
Tinha policiais gritando na entrada que ía matar sem-terra, pistoleiro contratado... Aí o
Itamar (governador de Minas Gerais na época) entrou na fogueira e virou uma briga entre
o estado e o governo federal4. Mas a gente resistiu e conseguiu ficá na área. Logo depois
foi ocupada a sede da fazenda. Nesse momento veio o juiz agrário pra negociar. E a
negociação se deu em cima de uma área pra plantação. Aí a sede foi liberada, porque a
gente receberia uma área pra plantar. Só que o acordo não foi cumprido. Daí no dia 22 de
fevereiro de 2001 a gente reocupou a sede. Aí a gente fechou a fazenda, parou todas as
atividade mesmo, não deixamo mais os empregado ficá aqui, e usamo o maquinário todo
que tinha lá pra trabalhá a terra e produzir mesmo (acampado).
O relato acima nos mostra que as famílias conseguiram resistir à
reintegração de posse e permanecer na área ocupada. Naturalmente, no entanto,
este não se transformou em um processo tranqüilo. Ao contrário, são inúmeros os
conflitos que continuaram a compor a história do acampamento Tangará. A
repressão assumiu também a forma de criminalização das lideranças do MLST.
Onze integrantes do movimento chegaram a ser presos por transporte de madeira
e, ainda hoje, estão sendo processados pelo ocorrido. Algumas lideranças
também sofreram processo judicial por formação de quadrilha. Por outro lado,
mobilizações e atos públicos foram realizados freqüentemente na cidade de
Uberlândia, com o intuito de pressionar o poder público e divulgar a luta dos semterra. Também a imprensa cobriu toda a história da luta da Fazenda Tangará.
Apesar de notadamente parcial, a cobertura midiática contribuiu para a forte
repercussão do acampamento na região. “Em novembro de 2001, após 20 meses
da segunda ocupação e após 9 meses da tomada e paralisação da empresa, com
o descumprimento da liminar de reintegração de posse, entre a pressão dos
ruralistas e dos sem-terra, o proprietário anuncia a disposição de negociar com o
4
O governador do Estado à época, Itamar Franco, ao contrário do Governo Federal de Fernando
Henrique Cardoso, adotava uma postura mais cautelosa, de evitar enfrentamentos ou uso de
violência nas ações de reintegração de posse.
177
INCRA todo o imóvel” (Fonseca, 2001, p.121). O decreto de desapropriação é
emitido em maio de 2002.
Internamente, dois “rachas” deixaram marcas profundas na história do
acampamento. O primeiro se deu na cúpula do movimento, quando as lideranças
locais romperam com o grupo do Bruno Maranhão, que coordenava o MLST
(Movimento de Libertação dos Sem-Terra) em nível nacional. A regional do
Triângulo Mineiro, coordenada por João Batista, Marilda e Barroso, respondia pela
maior base do movimento em nível nacional e praticamente toda ela permaneceu
ligada a estas lideranças regionais. De qualquer maneira, não foi só o MLST
nacional que sofreu conseqüências negativas. A ruptura gerou um forte desgaste,
inclusive com repercussão na mídia, entre os dois grupos e, especialmente, sob a
forma de denúncias5. Com o racha, o movimento passou a se denominar MLST de
Luta, atual MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade. Mitidiero Junior, ao
refletir sobre o conflito vivenciado por estes movimentos – visivelmente retraídos
por conta do racha –, atenta para a “possibilidade de enfraquecimento da luta
organizada pela terra como resultado das sucessivas fragmentações, na medida
que os movimentos „rachados‟ passam a ter como inimigo o seu igual”
(MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.301).
O segundo “racha” se deu no âmbito do acampamento. De acordo com os
depoimentos, o problema central ocorreu pelas discussões acerca da destinação
dos eucaliptos da área, que foram destinados pelo INCRA aos futuros assentados.
Foi a questão do eucalipto. Quem tinha menos informação achou que a terra era dele. O
movimento acha que o dinheiro dos eucaliptos deve ir para a comunidade, para ser usado
na comunidade da Fazenda Tangará. Mas cada um quer o seu dinheiro no bolso
(acampado).
5
“As denúncias referidas a João Batista pelo MLST Nacional o acusavam de desvio de verbas e
autoritarismo na condução do movimento de luta pela terra (...) As denúncias referentes a Bruno
Maranhão pelo MLST de Luta buscaram rotular o MLST nacional como um movimento pelego,
comprometido com o governo (FHC)” (Mitidiero Junior, 2002, p.274 e 275). Obs: O autor realizou
um extenso trabalho sobre o MLST. Para maiores informações sobre o movimento, consultar sua
obra.
178
A proposta do MTL é que os recursos provenientes dos eucaliptos sejam
utilizados nas áreas e nos projetos comuns do assentamento. Além disso, a
orientação, de uma forma geral, é que sejam constituídas áreas coletivas, bem
como seja efetivada a Empresa Agrícola Comunitária.
O movimento tentou fazer um acordo e assentar 250 famílias, onde uma parte menor
seria individual e outra seria coletiva, mas os outros não abriram mão dos eucaliptos e
dos cinco alqueires. Para eles o movimento estava “passando a perna” no povo. No
primeiro racha o povo ligado à PO (Pastoral Operária) saiu (expulsos) e acampou na
prefeitura. Depois de um tempo voltaram e tomaram o acampamento. A turma do
movimento ainda ficou um pouco no acampamento, sofrendo humilhações, mas depois
saímos e fomos para a parte de cima da Tangará. Eles ameaçavam de expulsar a gente o
tempo todo, aí quando a gente saiu, eles tavam achando que a gente ía embora, mas a
gente veio foi ocupar essa área aqui, que já tinha uns companhero nosso esperando pra
ajudar. Mas a gente saiu lá de baixo achando que tinha uns 80 companhero aqui em
cima. Chegou só tinha 20, aí deu muito medo, mas no final deu certo. No começo foi
muito difícil. Começando tudo de novo, tudo do zero, montar barraco... Era só chuva e
lama (acampado).
Os conflitos entre o grupo “do MTL” e o que “rachou” com o movimento
trouxeram fortes rupturas nos trabalhos em construção, levando uma parte das
famílias acampadas a abandonarem a área e reocuparem outra, na mesma
propriedade, cerca de 10 km distante. Os depoimentos dos acampados ligados ao
movimento têm este como o momento mais difícil do acampamento:
Foi um momento muito difícil... Porque contra o latifundiário, contra a polícia, tudo bem, a
gente sabe quem é o inimigo, e já espera, tá preparado pra lutar. Mas com companheiro é
muito doído. A gente não espera, então a gente sofre muito mais. E nós tamo tentando
conquistar a sociedade, mas aí começa a lutar companheiro com companheiro... Isto não
é bom pra reforma agrária (acampado).
Eu era vizinho deles. Meu barraco tava pronto, a cisterna, o quintal plantado... achei que
íamo ficar. Depois começou a briga e no mesmo dia fui embora. Pensei, vou perder tudo
179
que tenho aqui, mas vou acompanhar o movimento. Pensei até em ir pra cidade
(acampado).
As divergências entre as duas associações extrapolaram os limites do
acampamento, atingindo a mídia, envolvendo outros mediadores da luta pela terra
na região, dividindo opiniões e, obviamente, subtraindo esforços, enfraquecendo a
luta.
Tivemos que começar a reunir novamente com as lideranças, com o povo. Com o racha
perdemos ou adiamos alguns projetos, como o da Escola Família Agrícola, do Laticínio,
da fábrica de farinha... A briga continua até hoje pela fazenda. Mas hoje já tá decidido que
serão dois PA’s. Um lá e outro aqui. Serão assentadas 113 famílias aqui e 137 lá. Hoje
aqui no acampamento têm mais de 113 famílias. As que sobrarem vão para a Carajás
(acampado).
Como nos mostra o relato anterior, as negociações entre os grupos e o
INCRA resultaram na criação de dois Projetos de Assentamento distintos. O grupo
da área ocupada originalmente formou a AMFT –, Associação dos Moradores da
Fazenda Tangará, e as famílias ligadas ao movimento constituíram a sua própria
associação, vinculada ao MTL, com as quais esteve centrado o nosso trabalho de
campo. Atualmente, a discussão empreendida pelo movimento já está sendo
direcionada mais efetivamente para o processo produtivo que se iniciará com a
consolidação definitiva do assentamento, posto que já estão aguardando a
demarcação dos lotes. As dúvidas e as expectativas sobre o novo assentamento,
que se pretende modelo para a região, estão presentes nos relatos que nos foram
feitos.
Todos lutam juntos, mas depois que divide a terra o povo se divide. O movimento orienta
a não comprar carro velho com os créditos, a não aplicar errado o crédito que vem pra
produção... Mas foi o que aconteceu com o Rio das Pedras, com a Palma da Babilônia.
Aqui serão grupos menores e alguns serão individuais, outros na empresa comunitária.
180
Mas, hoje o povo já quer procurar saber mais sobre a empresa comunitária. O movimento
está tentando levar o máximo de pessoas pra empresa comunitária (acampado).
A Tangará é a menina dos olhos do movimento. É o espelho. Então o assentamento tem
que dar certo. E se der certo somos elogiados, se não vamo “apanhar”. Com a saída da
Tangará facilita a luta nas outras áreas. O ponto de referência está na Tangará. O conflito,
a organização e a luta servem de exemplo para outras lutas. É muito sofrido, mas depois
que passa a peneira é muito bom. A luta na Tangará foi uma escola. O único problema foi
a decepção por causa do povo que não veio. As piores partes foram a luta e a decepção
com o povo (acampado).
Infelizmente muitos de nós ainda tem um pouco de capitalismo na memória (acampado).
A Empresa Agrícola Comunitária é a proposta do MTL para o processo
produtivo dentro dos assentamentos rurais. De acordo com Mitidiero Junior (2002),
as principais estratégias da EAC concentram-se na produção direta para a
população local (acabando com a figura dos atravessadores) e na construção de
uma nova consciência social entre os homens, a partir de uma gestão coletiva e
social da produção.
A empresa agrícola comunitária representa a principal proposta do
MLST (atual MTL) para o início da construção de uma sociedade
socialista. Seria um embrião lançado internamente à sociedade
capitalista que conseqüentemente mostraria outra forma de produzir e
de viver socialmente, na qual todos os indivíduos conviveriam
igualmente, seja no campo social, político e econômico, respeitando as
diferenças culturais (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.170).
As críticas do autor à EAC remetem ao fato de que esta é uma proposta
ainda muito restrita à cúpula do movimento, enquanto que a maior parte dos
militantes sequer compreende efetivamente a idéia. Este fato pode ser observado
no trecho abaixo de um depoimento de um acampado na Tangará.
Eu num sei bem o que é essa história de empresa agrícola e eu acho muito difícil
trabalhar junto. Então agora eu tô aí num grupo de produção que foi um rapaz que me
convidou, só que ele não trabalha muito não, então é difícil. Mas não é que eu não quero
181
mesmo, eu quero saber direitinho o que é e vê se dá certo. Se dá certo, aí eu entro
(acampado).
Vale lembrar, ainda, que o movimento não conseguiu efetivar a Empresa
Agrícola Comunitária em nenhuma de suas áreas.
Organização social, política e produtiva do acampamento Tangará
Apesar de toda a incerteza acerca do futuro do assentamento, e do
envolvimento atual em maior ou menor grau das famílias com as atividades do
movimento, algumas formas de organização política e produtiva, no interior do
acampamento, apresentam-se como experiências importantes e alternativas aos
trabalhadores sem-terra.
A organização política tem como princípios a democratização das decisões
e a participação direta das famílias. Os acampados dividem-se em oito grupos,
sendo que cada grupo tem um coordenador e um suplente. Foram constituídas
também comissões temáticas (alimentação, animação, educação, saúde, etc). A
Comissão Central é composta pelos coordenadores de cada grupo e pelos
coordenadores das comissões. Esta forma de organização tem como objetivo
incentivar a participação de todos, ainda que esta se dê de forma bastante
diferenciada, no grau e na intensidade, bem como na vinculação ao movimento e
aos seus princípios, entre os acampados. “Vai de acordo com o interesse de cada
um. Mesmo assim, algumas pessoas trabalham nos grupos, mas não têm
consciência do que é o movimento”. “Mas temos que ter esta paciência histórica e
política com o povo, para que com o tempo entendam o que é o socialismo e o
trabalho comunitário” (acampado).
Os grupos têm um importante caráter de politização para os acampados, à
medida que tornam mais permanentes as discussões e as reflexões acerca das
mais diversas problemáticas que envolvem a sua realidade. Além disso, são
realizados periodicamente seminários internos, ou enviados representantes para
182
participação em cursos externos. “Claro que tem muita coisa que precisa fazer
ainda, mas na verdade o trabalho de formação política é realizado a todo o
momento, nas reuniões, nos grupos, nos intervalos e no dia a dia mesmo...”
(acampado).
Os relatos dos acampados apontam também para o caráter educativo ou
conscientizador da vivência no processo de luta do acampamento:
“Quando iniciei no movimento vim para conseguir um pedaço de terra, mas depois isso
ficou distante. Fui me envolvendo com os problemas das pessoas. Terra nem é mais o
principal agora” (acampado).
Eu vim acreditando que iria pegar uma terra, mas depois vi que tinha a política, a
comunidade... Quando via os sem-terra na televisão achava humilhante. Hoje fico com
vergonha do que pensava antes de vir... (acampado).
Quando não fica acampado não sabe o que é o sem-terra. Agora sei que eu sou apenas
um grão de areia no meio dos outros (acampado).
A educação que temos aqui dentro é fora do comum. Aqui a gente se vigia, se policia. A
gente aprende muito mesmo, sabe? O respeito com os outros não se vê na cidade. O que
não dá valor na cidade aqui a gente dá. Respeito com as crianças, com as mães, com os
pais. A sensação que eu tenho é que nós somo muito bem cuidado. Um cuida do outro.
Tem divergências políticas e tudo, mas depois é tudo normal de novo (acampado).
Uma extensa área da propriedade já está sendo utilizada para a produção
agrícola: no mês de janeiro de 2004, a área total plantada já atinge 70 hectares da
fazenda. Uma parte da área é destinada para as famílias e os grupos de
produção. Os grupos de produção são formados por afinidade e são compostos
por 2 a 8 famílias, além de algumas que optaram em trabalhar individualmente.
Atualmente tem um grupo produtivo de mulheres (sete no total), que plantam milho
e já tem projetos de diversificar a produção.
183
Há, ainda, uma área coletiva de produção, onde foram cultivados 3 mil pés
de maracujá, através de um programa de segurança alimentar apoiado pelo
estado de Minas Gerais e coordenado pela Cáritas – organização ligada à Igreja
Católica que presta assessoria a organizações de trabalhadores rurais.
Foto 3.6 - Acampada da fazenda Tangará na área coletiva de plantação de maracujá.
Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.
Além de atender à demanda da comunidade, os maracujás já colhidos
também estão sendo comercializados em sacolões e com feirantes de Uberlândia.
184
Foto 3.7 - Acampado da Fazenda Tangará com produção colhida de maracujá.
Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.
Como fonte complementar de renda, o acampamento conta, desde o seu
início, com um Grupo de Artesanato, composto por 12 pessoas, sendo 10
mulheres.
As
peças
(crochê,
roupas,
chapéus...)
são
manufaturadas,
caracterizando um alternativo de renda para as famílias envolvidas. O trabalho é
realizado e aprendido no grupo, sendo difundido no acampamento. Nas últimas
férias escolares, por exemplo, as crianças fizeram um curso com o grupo para
aprenderem as técnicas e ampliarem as atividades.
185
Foto 3.8 - Produção do grupo de artesanato do acampamento Tangará.
Autor: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.
Outro projeto já em funcionamento é o de uma emissora interna de rádio.
Há cerca de um mês, os sem-terra conseguiram realizar um sonho antigo: a
implantação de uma emissora de rádio no acampamento. Montada a partir de
sucata, e com sintonia na FM 106,7 (freqüência modulada), constitui uma rádio
comunitária, portanto sem fins lucrativos. A programação tem início às 6:30 horas
e segue até às 22:30 horas, sendo integralmente controlada pelos acampados.
Apresenta programas de música raiz, romântica, clássica e de caráter religioso
ecumênico. Atualmente são praticadas as religiões católica, espírita Kardecista e
evangélica
no
acampamento,
todas
elas
tendo
assegurada
a
mesma
disponibilidade de tempo da rádio. E tem, ainda, a programação política, de
notícias gerais, informes, de chamada para as reuniões e para as atividades do
acampamento, de mensagem entre acampados. Está em caráter experimental e
só atinge a área do acampamento, mas o objetivo é expandir o seu raio de
alcance até a cidade de Uberlândia. A avaliação é de que este meio constitui um
186
importante mecanismo alternativo de comunicação, facilitando a divulgação das
atividades políticas do acampamento, de notícias e comunicados, bem como de
uma maior autonomia na socialização cultural.
Foto 3.9 - Estrutura da rádio comunitária do acampamento Tangará.
Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.
As lutas pela educação sempre foram prioritárias e intensas para os
acampados. Inicialmente, com a prefeitura municipal de Uberlândia, na garantia de
vagas e transporte para as escolas públicas municipais mais próximas, e depois
com o INCRA, para implementar a Escola Família Agrícola. O projeto é baseado
na pedagogia da alternância – quinze dias de aulas práticas e teóricas em período
integral e 15 dias em casa, configurando o ensino médio técnico agrícola.
Planejada há vários anos, a partir deste ano de 2004, os alunos de 2º grau do
acampamento e da região terão a opção de concluir seus estudos na Escola
Família Agrícola, conquistada e já estruturada no interior do acampamento
187
Tangará. A escola será mantida através de projetos, já tendo verba do governo
federal assegurada para os seus três primeiros anos de funcionamento.
Foto 3.10 - Escola Família Agrícola 25 de Julho, acampamento Tangará.
Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.
Todo esse processo de luta, de resistência, de conquista do território e de
construção de novas formas de relações sociais, políticas e produtivas no interior
do acampamento tornou-se expressão e referência da luta pela terra na região do
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba. Só no ano de 2003, de acordo com os arquivos
e com os depoimentos dos acampados, foram realizadas 38 ações “com
resultados”, como atos públicos, debates, marchas, entre outras formas de
mobilização. Desta luta, surgiram várias outras. Muitas ocupações posteriores
coordenadas pelo MTL são fruto da luta da Tangará e foram construídas a partir e
no interior desta.
188
Enfim, toda essa situação de conflito e resistência dos acampados da
Fazenda Tangará fortaleceu e espacializou o movimento, dimensionando a luta
pela terra na região.
Algumas reflexões acerca dos acampamentos rurais de sem-terra no
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba
De forma geral, a região estudada vem sendo marcada por uma intensa
fragmentação das lutas pela terra, com “rachas” e divisões freqüentes, e
conseqüentes dificuldades na unificação das lutas. Fato representativo desta
fragmentação é que, para além da atuação em separado do MTL e do MST na
organização de suas áreas estudadas6, ambas comportam conflitos destes
movimentos com outros grupos de sem-terra: no caso do Emiliano Zapata, com o
grupo vinculado ao MLST, que ocupou outra parte da mesma propriedade e, no
caso da Tangará, a partir do racha interno ocorrido no decorrer da fase de
acampamento. Estes processos, indicadores das contradições da espacialização
da luta pela terra, resultam num enfraquecimento das lutas, o que, no entanto, não
significa, necessariamente, inviabilização das mesmas, haja vista o aumento
constante da organização e da mobilização dos trabalhadores rurais na região.
De fato, ambos os acampamentos buscaram, desde o seu princípio, através
das lideranças dos movimentos, construir, em seu interior, componentes
corporativos e participativos mais sólidos. Corporativos, no sentido de valorizar a
importância da vinculação dos acampados com o movimento de referência.
Participativos, no sentido de envolver e comprometer todas as famílias no
processo de luta e de organização das atividades, o que pode ser observado pela
formação dos núcleos e setores, garantindo uma diretoria coletiva e uma relativa
6
Há que se afirmar que o MST e o MTL apresentam-se como movimentos distintos em seus
princípios e estratégias, e por vezes encontram-se em abertos ou velados confrontos políticos. Não
nos ateremos aqui a apontar as diferenças entre eles. Primeiro, porque a nossa vivência com
ambos os movimentos não permitiu um aprofundamento desta reflexão. Segundo, porque a
similitude em alguns dos elementos organizativos e metodológicos nos remete à possibilidade da
existência de outros tipos de rivalidades – que não nos cabe analisar, e que por vezes imputam às
diferenças dimensões maiores do que elas realmente têm.
189
descentralização administrativa e decisória. Relativa porque, naturalmente, a
participação e o envolvimento das famílias não se dá necessariamente em graus e
medidas similares. Ao contrário, o trabalho de base, ao mesmo tempo em que é
valorizado nas falas dos coordenadores e dos próprios acampados, é um dos
maiores desafios entre os grupos. Exemplo deste processo está na questão da
forma de produção dos futuros assentados. Por razões óbvias, aí está talvez a
maior
dificuldade
de
se
garantir
a
organicidade
dos
movimentos
nos
assentamentos de trabalhadores rurais. Os princípios coletivistas, tanto do MST
quanto do MTL, são por vezes sequer compreendidos efetivamente pelas famílias
acampadas, o que remete à necessidade de um maior envolvimento e uma maior
proximidade das lideranças com as bases.
De qualquer maneira, da mesma forma que no segundo capítulo deste
trabalho nos referimos a outros processos de luta que contribuíram para a
ampliação da luta pela terra na região, os dois acampamentos estudados são, ao
mesmo tempo, expressão da organização atual dos trabalhadores rurais sem-terra
e referência para o avanço das lutas.
A realidade dos acampamentos expressa processos permanentes de
aprendizado para as famílias envolvidas, através das constantes ações e reflexões
vivenciadas. As lutas constituem-se em exemplos concretos de resistência à
exploração e expropriação do trabalhador rural. A busca por formas alternativas de
organização aponta para a construção, ainda que em caráter inicial e muito repleta
de contradições, de relações mais democráticas, fundamentadas na participação
direta. Os acampamentos apontam, ainda e, essencialmente, para a construção
de novos territórios, à medida que conquistam e transformam as relações
vivenciadas nas áreas em conflito. “Na luta pela terra, acampar é determinar um
lugar e um momento transitório para transformar a realidade” (Fernandes, 2000,
p.55). Por estas questões, e para além delas, a realidade dos acampamentos
expressa, ainda, a possibilidade da valorização e da ampliação da luta pela terra,
dimensionando, espacializando e territorializando a luta pela reforma agrária.
No caso do acampamento da Tangará, essas questões ficam ainda mais
claras e fortes, à medida que todo o processo de luta e resistência já culminou na
190
conquista da área. E, como afirmou Rosa Luxemburgo, “toda iniciativa nova, toda
vitória nova da luta política se transforma em poderoso impulso para a luta
econômica, porque ao mesmo tempo que defende as possibilidades exteriores
aumenta a inclinação dos trabalhadores em melhorar suas condições, seu desejo
de lutar” (Luxemburgo, 1976, p.84).
191
CAPÍTULO 4
OS ASSENTAMENTOS RURAIS NO TRIÂNGULO MINEIRO/ ALTO
PARANAÍBA: a territorialização da luta pela terra
A proposta deste capítulo é discutir a realidade dos assentamentos rurais
do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, considerando que a conquista e a (re)
construção desses territórios constituem hoje dimensão fundamental do processo
mais geral de organização camponesa, no que tange à luta pela terra no Brasil.
A ocupação, como forma de acesso à terra, é aqui compreendida “como
uma ação de resistência inerente à formação camponesa no interior do processo
contraditório de desenvolvimento do capitalismo” (FERNANDES, 2000, p.279). Os
assentamentos
rurais
constituem,
nessa
perspectiva,
espaços
de
reterritorialização do campesinato, à medida que “a reterritorialização (...) é a
forma encontrada pelo grupo de excluídos de reconstruir sua história, de
estabelecer novamente as relações sociais, econômicas, políticas e afetivas no
espaço que ele (re)conquistou” (SILVA, 2002, p.21).
Dessa forma, como expressão desse processo de intensificação da luta
pela terra, temos a conquista de várias áreas de assentamentos em todo o estado
de Minas Gerais, em especial a partir de meados da década de 1990, como
mostra a tabela a seguir:
Tabela 4.1: Total de Projetos de Assentamento em Minas Gerais, por ano
Ano de criação
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
Total
Número de P.A.s
3
2
3
2
0
4
7
0
2
5
21
26
25
18
11
9
8
146
Famílias Assentadas
449
113
170
89
0
162
288
0
127
305
934
1.591
2.018
760
602
315
361
8.284
Fonte: INCRA/MG. Abril de 2003.
Elaboração: GOMES, R. M.
Nota-se que o primeiro assentamento de Minas Gerais data de 1986, sendo
que apenas outros 9 foram criados até o fim da década de 1980. Entre 1990 e
1995, são criados mais 18 P.A.s. Mas, é a partir de 1996 que a maior parte deles é
conquistada, fruto da intensificação das ocupações: entre 1996 e 2002, são
criados 118 assentamentos no estado. No total, foram assentadas 8.284 famílias,
número significativo, porém, bem inferior aos 600.000 que, segundo levantamento
do IBGE, corresponde ao total de famílias sem-terra, potencialmente beneficiárias
de uma reforma agrária em Minas Gerais.
Na região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, foram assentadas até o ano
de 2003, um total de 1.895 famílias. Os Projetos de Assentamento da região estão
apresentados nas tabelas que se seguem.
193
Tabela 4.2: Projetos de Assentamento no Triângulo Mineiro – 2003
Município
Projeto de
Assentamento
Limeira do Oeste Iturama
Sta. Vitória
Cruz e Macaúbas
Campo Florido
Nova Santo
Inácio/Ranchinho
Gurinhatã
Vargem do Touro
Sta. Vitória
Nova Sta. Inez
Sta. Vitória
Porto Feliz
União de Minas
Pontal do Arantes
Campina Verde
Campo Belo
Sta. Vitória
Paulo Freire
Uberlândia
Rio das Pedras
Ituiutaba
Engenho da Serra
Campina Verde
Primavera
Araguari
Bom Jardim
Campina Verde
S. José da Boa Vista
Ituitaba
Divisa
Ituiutaba
Chico Mendes
Uberlândia
Nova Palma
Uberlândia
Palma da Babilônia
Uberlândia
Zumbi dos Palmares
Araguari
Ezequias dos Reis
São Francisco
Queixada
Sales
Campina Verde
Nova São José da
Boa Vista
Ituiutaba
Douradinho
Uberaba
Maringá/
Monte Castelo
Gurinhatã
Nova Rosada
Santa Vitória
Nova Jubran
São Francisco
Boa Vista
Sales
Ano de
criação
1986
1988
1994
Movimento
Famílias Área (ha)
Fetaemg
Fetaemg
MLST
131
35
115
2.492,00
713,00
3.958,00
1996
1996
1996
1997
1997
1998
1998
1998
1998
1999
1999
1999
1999
1999
1999
1999
2000
2000
MLST
Fetaemg
Fetaemg
Fetaemg
Fetaemg
MST
MLST
MLST
Fetaemg
Fetaemg
MLST
Fetaemg
Fetaemg
MLST
MLST
MST
Fetaemg
Fetaemg
21
26
17
96
170
45
87
60
36
44
40
27
59
15
13
22
58
13
615,00
658,00
491,00
2.448,83
4.975,25
1.537,20
1.141,86
2.574,10
881,78
833,99
1.113,60
1.161,60
1.505,45
455,92
458,32
492,04
2.208,20
411,22
2001
MLST
28
963,73
2001
2001
Fetaemg
MLST
17
60
553,60
2.021,79
2001
2002
2002
MLST
Fetaemg
Fetaemg
64
148
16
2.069,33
5.444,92
464,64
Fonte: INCRA/MG e FETAEMG.
Elaboração: Gomes, R. M. Atualização: abril de 2003.
194
Tabela 4.3 – Projetos de Assentamento no Alto Paranaíba
Município
Projeto de
Assentamento
Perdizes
Guariba
Perdizes
Sta. Luzia
Tapira
Nova Bom Jardim
Perdizes
Da mata
Rio Paranaíba Gleba 119 A
Ibiá
Morro Alto
Ibiá
Sto. Antônio II
Ibiá
Treze de maio
Sacramento
Olhos D'água
Coromandel
Cachoeira Dourada
Ibiá
Myrian
Nova Ponte
Itambé/Airão
Patrocínio
São Pedro
Serra do Salitre Quebra-Anzol
Rio Paranaíba Lago Azul
Ano de
criação
1996
1996
1996
1997
1997
1998
1998
1998
1998
1998
1999
1999
1999
1999
2000
Movimento
Famílias Área (ha)
STR Araxá
STR Araxá
STR Araxá
STR Araxá
Fetaemg
STR Araxá
STR Araxá
STR Araxá
MST
Fetaemg
STR Araxá
Fetaemg
Fetaemg
Fetaemg
Fetaemg
42
50
20
33
14
40
50
10
39
12
15
11
41
37
18
1.045,00
1.364,00
1.099,00
1.133,95
255,80
1.356,28
1.768,88
392,02
1.512,00
572,63
578,38
434,43
894,03
1.284,63
578,81
Fonte: INCRA/MG e FETAEMG.
Elaboração: Gomes, R. M. Atualização: abril de 2003.
Quanto às tabelas 4.2 e 4.3, faz-se necessário observar os seguintes
pontos:
1o) Os movimentos relacionados são aqueles que coordenaram ou
assessoraram os processos de ocupação das áreas citadas, não estando
necessariamente ainda hoje no acompanhamento das famílias.
2o) O MLST aqui mencionado corresponde ao grupo que posteriormente
constituiu o MLST de Luta e que hoje está vinculado ao MTL. Dessa forma,
entende-se que esses assentamentos estiveram ou permanecem ligados ao que
constitui hoje o MTL.
3o) Os assentamentos ligados à FETAEMG são aqueles conquistados com
o apoio dos STRs. O STR de Araxá é apresentado à parte, em todas as listagens
disponíveis, considerando as suas especificidades, já citadas neste trabalho,
inclusive no que se refere à sua orientação cutista.
De acordo com as tabelas apresentadas, o primeiro assentamento criado,
na região, data de 1986, mas, da mesma forma que no resto do estado, é, a partir
de 1996, que a maior parte deles será conquistada, o que simboliza os avanços da
195
luta social no campo, marcados, justamente, pela ampliação das ocupações,
iniciadas nas pequenas cidades do oeste do Triângulo Mineiro (como Iturama e
Santa Vitória) e, posteriormente, intensificando-se no leste desta região, em
direção às cidades maiores (como Ituiutaba, Uberlândia, Uberaba e Araguari) e no
Alto Paranaíba (como Araxá, Ibiá e Perdizes). Ressalte-se, aqui, que a expansão
da luta se deu, em boa medida, através dos mesmos atores e a partir de
determinadas ações que repercutiram em toda a região.
Os dados, no entanto, mostram que os assentamentos na região, de forma
geral, não atingem as maiores propriedades, constituindo-se, na maioria, em áreas
relativamente pequenas, que possibilitam a destinação de lotes a um número
reduzido de famílias. No Triângulo Mineiro, de um total de 27 assentamentos, 6
possuem menos de 20 famílias assentadas; 10 agrupam entre 20 e 50 famílias; 7
entre 51 e 100 famílias; e apenas em 4 foi possível o parcelamento em mais de
100 lotes. No Alto Paranaíba, a situação é ainda mais complicada: as maiores
áreas comportaram, no máximo, 50 famílias, sendo que, dos 15 P.A.s, 7 tem
menos de 20 famílias assentadas. Aliás, as terras mais extensas são normalmente
aquelas conquistadas pelos conflitos mais duradouros, como os das Fazendas
Jubran e de Campo Florido, cujas lutas de conquista se estenderam por 5 anos.
Além do número reduzido de famílias atendidas, disso resulta que a área
total reformada é bem inferior às possibilidades e às necessidades da região.
Tabela 4.4: Total de Projetos de Assentamentos, Famílias Assentadas e
Áreas Utilizadas – Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – 2003
Triângulo Mineiro
Alto Paranaíba
Total
Projetos de
Assentamento
27
15
42
Área total dos
assentamentos (há)
42.644,37
14.269,84
56.914,21
Famílias
Assentadas
1.463
432
1.895
Elaboração: Gomes, R. M. Atualização: abril de 2003.
De acordo com a tabela anterior, os 42 assentamentos da região
correspondem a uma área total de 56.914,21 ha. Para se ter uma idéia, como já
196
foi citado neste trabalho, somente no PRODECER foram adquiridas 70.000 ha no
cerrado mineiro para a implantação dos projetos. O PADAP atingiu uma área de
60.000 ha; o POLOCENTRO, de 248.410 ha; e o PCI, de 88.600 ha, distribuídas
entre o Triângulo Mineiro e o Alto Paranaíba. Em outras palavras, o total de áreas
disponibilizadas para a criação de assentamentos rurais corresponde apenas a
12% dos cerca de 467 mil hectares atingidos, nos anos 1970, pelos projetos
governamentais de modernização do cerrado.
Da mesma forma, considerando todos os P.A.s de Minas Gerais, a área
total desapropriada é de 455 mil ha. No entanto, ainda segundo o INCRA, mais de
6 milhões de hectares constituem áreas do estado que estão distribuídas em
propriedades que possuem mais de 2000 ha. Os latifúndios ocupam, assim, mais
de 10% das áreas do estado, que totalizam quase 59 milhões de hectares.
Isto significa que a política de assentamentos rurais que vem sendo
realizada está bem distante de um efetivo processo de reforma agrária. Como em
todo o território nacional, ela é fruto da pressão realizada pelos movimentos
organizados de luta pela terra. Nesse sentido há que se considerar a importância
que a conquista desses territórios representa para a luta mais ampla pela reforma
agrária. A perspectiva aqui utilizada é a de que a conquista da terra redimensiona
as experiências, as práticas e as estratégias de luta, aumentando o poder de
organização e de pressão dos sem-terra, bem como passa a apresentar novos
desafios que, postos em ação e reflexão, possibilitam a construção de projetos
para além da chegada na terra, que envolvem aí a permanência do camponês.
Conforme Guimarães, “à medida que as lutas desencadeadas por tais movimentos
avançam, o espaço rural brasileiro, marcado pela concentração fundiária e pela
espoliação capitalista excludente, vai sendo, paulatinamente, reterritorializado,
abrindo perspectivas para novas territorialidades (...), para a conquista de novos
territórios” (GUIMARÃES, 2002, p.13). Os assentamentos rurais conquistados são,
assim, partes integrantes e fundamentais desse processo de luta, e é sobre estes
territórios que buscaremos refletir neste capítulo.
197
Utilizamos aqui, parte da discussão teórica que tem sido empreendida
acerca do tema, por alguns estudiosos da questão agrária no Brasil, bem como de
pesquisas acadêmicas realizadas em algumas áreas de assentamento na região.
Realizamos também uma pesquisa de campo na região estudada, que consistiu
de várias visitas, em que eram realizadas reuniões e conversas informais com os
assentados, em projetos do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, com atenção
especial para o assentamento Paulo Freire, em Santa Vitória, ao qual faremos
referência no final do capítulo. Não se trata aqui de uma investigação descritiva da
totalidade dos processos em curso nestas áreas. O nosso intuito, neste trabalho,
foi o de levantar algumas questões, entre aquelas que se apresentaram
recorrentes e relevantes, do ponto de vista da organização – tanto social e política
quanto produtiva – dos trabalhadores rurais nas áreas de assentamento. Estas
visitas nos serviram de base e referência concretas para as análises e reflexões
que serão aqui apresentadas.
É fato que a criação dos projetos de assentamentos rurais no Brasil vem
recebendo tratamento especializado pelos estudos acadêmicos e programas
governamentais vinculados à questão agrária. Isto porque, mesmo sendo, ainda,
bastante tímidos os números de famílias beneficiadas e de terras reaproveitadas,
os
resultados
econômicos,
políticos
e
sociais
dos
projetos
interferem
sobremaneira no debate acerca da importância e das medidas necessárias em um
programa de reforma agrária no Brasil hoje, bem como na dinâmica da
organização dos trabalhadores rurais na luta pela terra. Como sugere Fonseca, na
região estudada, inclusive pela sua localização geográfica, pela sua “importância
política e econômica no cenário nacional e por aqui estar instalado uns dos
principais pólos do complexo agroindustrial do país, o sucesso desses
assentamentos, para demonstrar a viabilidade da reforma agrária, torna-se ainda
mais desafiador” (FONSECA, 2001, p.13).
Faz-se relevante, para este estudo, de início, caracterizarmos o termo
“assentamento rural”, da forma como aqui estará sendo utilizado.
198
De maneira geral, os assentamentos rurais são comumente associados a
políticas governamentais que visam ao reordenamento do uso da terra em
benefício de trabalhadores rurais com pouca terra ou sem terra, remetendo à
fixação destes na agricultura (BERGAMASCO E NORDER, 1999).
Entretanto, mesmo aparentemente dotado de conteúdo evidente, para
autores como Esterci et alli, este termo – assentamento - é alvo de constantes e
importantes resignificações.
Para Andrade et alli (1989), por exemplo, o termo „assentamento’
parece ter surgido no âmbito da burocracia estatal, e refere-se à
diversas etapas da ação do Estado ao visar à ordenação ou
reordenação dos recursos fundiários. (...) Passando ao Estado toda a
iniciativa, as populações pensadas como „beneficiárias’ dessas ações,
seriam destituídas de seu caráter ativo. (...) Outros autores, porém, ao
tomarem os próprios movimentos de luta por terra como ponto de
partida, ressaltam o fato de que, ao assumirem esses termos, os
trabalhadores, através de sua ação política, os vão modificando e
acrescentando outros conteúdos associados aos processos de luta em
que se encontram envolvidos (ESTERCI et alli, 1992, p. 5).
De acordo com essa perspectiva, os trabalhadores reinterpretam noções
como „assentado’ e „assentamento’. Nesse sentido, e da forma como é empregado
neste trabalho, „assentamento’ aparece como resultado das ações de conquista e
ponto de partida para novas frentes de luta, num caráter dinâmico e onde os
trabalhadores rurais assumem a posição central; como território conquistado e (re)
construído sob novas formas de relações sociais, políticas e produtivas.
Essa linha de análise se justifica pelo fato de que os assentamentos rurais
aqui tratados são aqueles ligados a organizações de trabalhadores rurais em luta
pela terra, e que, não por acaso, constituem-se hoje a grande maioria e são
centrais no debate ligado à reforma agrária.
Existem hoje, no Brasil, inúmeros projetos de assentamentos rurais,
distribuídos por várias regiões, ainda que não uniformemente. A partir da revisão
em alguns trabalhos sobre o tema, é possível perceber que as condições de luta e
de constituição desses territórios aparecem sob múltiplas formas, caracterizadas
cada uma por processos históricos específicos.
199
Num primeiro momento da trajetória dos assentamentos, encontra-se o
histórico da região onde se localizam e dos conflitos que lhes deram origem.
“Nesse processo, geram-se lideranças, constroem-se alianças e oposições,
produzem-se solidariedades e identidades” (LEITE, 2000, p.94). Além das
variadas origens dos assentamentos, também os demandantes de terra se
apresentam sob várias formas – assalariados, parceiros, posseiros, pequenos
produtores com dificuldades, seringueiros, etc.
No caso do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, o avanço da luta pela terra
está diretamente relacionado ao processo de modernização conservadora,
implementado com forte intensidade na região a partir da década de 1970. A
precarização das condições de vida e trabalho agravava as tensões sociais no
campo, à medida que os trabalhadores rurais buscam romper com a (ir)
racionalidade do desenvolvimento capitalista e superar a situação de exploração e
expropriação a que são por ela submetidos.
A história de vida dos assentados, nos projetos de assentamento da região,
configura, na maior parte dos casos, raízes essencialmente rurais, somadas a
experiências urbanas frente a esta situação vivenciada de exploração e
expropriação no campo. Esta situação pode ser observada, por exemplo, no
estudo empreendido por Guimarães acerca da origem das famílias assentadas no
P.A. Nova Santo Inácio Ranchinho, localizado no Pontal do Triângulo:
Entrecortada por interrupções e frases curtas, a história de vida dos
trabalhadores sem-terra é relembrada como retalhos vividos por
famílias migrantes com raízes no campo, em diferentes locais (...).
Nos campos, nas roças, vivendo como parceiros, arrendatários ou
agregados, homens, mulheres, jovens e crianças faziam um pouco de
tudo. Plantavam, desmatavam regiões, criavam animais, arrendavam
terras, eram capatazes ou empregados permanentes. A vida de
perambulação afetava os antigos parceiros, ora vivendo numa fazenda,
ora mudando-se para outra. A produção para subsistência era
ameaçada pela permanente exigência de retirada da terra lavrada
concebida, ou mesmo, arrendada pelos fazendeiros (...).
Ao serem expropriados da terra, por não encontrarem mais a
oportunidade de trabalhar como parceiros ou arrendatários, os
trabalhadores migraram para as cidades, vivendo nos cinturões de
pobreza, formando uma massa de sem-terra, mais conhecidos como
bóias-frias (GUIMARÃES, 2002, p.50 e 51).
200
Algumas áreas afetadas pela modernização chegaram a atrair, em seus
períodos iniciais, muitos migrantes de outros estados ou de outras regiões de
Minas Gerais, gerando postos de trabalho que, posteriormente, desapareceram,
frente à decadência das áreas ou à intensificação da mecanização. No Alto
Paranaíba, por exemplo, localizam-se grandes áreas produtivas de café,
impulsionadas, no período de modernização, nas décadas de 1970 e 80. A
expansão da cafeicultura, bem como de culturas temporárias como o tomate, o
feijão, o alho e a cenoura, que também necessitam de trabalhadores, no período
de colheita, explicam o crescimento da mão de obra temporária, nesta região,
durante esse período. Inicialmente, vieram trabalhadores, em especial da região
Sul, e depois do Norte de Minas e do Nordeste. Esta migração é refletida, por
exemplo, na origem das famílias do assentamento Nova Bom Jardim, localizado
no Alto Paranaíba: “Parte considerável das famílias do assentamento saiu do
Norte mineiro para trabalhar na colheita de café em Patrocínio e, na segunda
metade da década de 1990, transformou-se em trabalhadores excluídos das
lavouras do município” (SILVA, 2002, p.41). Também a expansão da produção de
cana, no Pontal do Triângulo, atraiu inúmeras famílias do Nordeste, especialmente
da Bahia que, atualmente, com o processo de mecanização das lavouras,
engrossam a luta pela reforma agrária.
De uma forma geral, as análises mostram que, nos municípios menores, de
maior influência rural/ latifundiária, como entre aqueles do Pontal do Triângulo e
do Alto Paranaíba, a origem rural dos acampados e assentados é mais forte,
sendo que a maior parte destes possuía, como ocupação anterior, atividades
ligadas ao campo, ainda que já morando nas cidades. No caso das cidades
maiores, especialmente em Uberlândia, conforme foi apresentado no capítulo
anterior, os sem-terra já possuem um forte perfil urbano, já que, além da moradia,
as atividades de trabalho anteriores também vinculavam-se a postos de trabalho
urbanos, ainda que as origens rurais estejam presentes nas histórias de vida da
maioria. Vincula-se a este processo a própria forma de atuação dos mediadores
da luta pela terra, à medida que “há fortes indicações de que, nessas áreas
(menores), há uma penetração maior da FETAEMG e seus filiados, enquanto nas
201
cidades pólo como Uberlândia, a presença dos movimentos sociais é mais visível”
(PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.55). Conforme um representante da FETAEMG:
Os assentamentos ligados à FETAEMG na sua maioria, na sua maioria não, quase todos,
são coordenados pelos sindicatos, e se é coordenado pelos sindicato, são normalmente
trabalhadores sindicalizado, que trabalha no campo mesmo. E... isso não significa que
dentro dos nossos assentamento também... não tenha, na questão dos trabalhadores
que, por motivos passados, né ligado a essa estrutura econômica que o país adotou ao
longo dos anos foram expulsos do meio rural, mas tem origem, tem raízes de trabalhador
rural, e que ás vezes hoje, depois de vim pra cidade, dá cabeçada, tenta um serviço aqui,
tenta um serviço ali, e acaba, no fim, ficando desempregado. (...) Mas os assentado mais
ligado à FETAEMG tem realmente mais ligação nesse sentido momentâneo é porque
realmente eles são ligado ao sindicato. Então são pequeno produtor, são assalariado,
mas tem também alguns que já foi trabalhador rural no passado, ou o pai era, e que hoje
tava em outra profissão, mas que ta desempregado e tem sonho de voltar pra sua origem,
voltar pro campo. E nos outro movimento, como ele trabalha mais dentro da cidade, então
eles acabam pegando muito desses trabalhadores, que ultimamente já não ta ligado ao
meio rural, mas que tá tentando voltar a sua origem.
Um outro ponto fundamental para a caracterização dos assentamentos está
no processo de conquista da terra, envolvendo as formas de organização e
mobilização social empreendidas pelos trabalhadores rurais e pelos mediadores
envolvidos no processo de luta pela terra. Insere-se aqui a importância da
ocupação e da vivência do acampamento como forma de consolidação das
relações sociais que se mostrarão presentes na (re) construção do território,
discussão esta que realizamos no terceiro capítulo deste trabalho.
Sem desconsiderar essa diversidade, é possível, por outro lado, pensar
em
condicionantes
estruturais,
traduzidas
em
marcas
presentes
nos
assentamentos rurais de uma forma geral, o que pode ser observado, em diversos
estudos, pela existência de relevantes pontos comuns na constituição desses
territórios.
Apesar de suas múltiplas origens, eles representam, certamente, uma
resistência ao processo de separação entre o trabalhador rural e a propriedade ou
202
uso da terra. Dentro da mesma perspectiva, a preexistência de conflitos sociais e
de uma intensa mobilização política dos trabalhadores também são marcas
comuns nos diversos tipos de assentamentos.
Segundo Leite:
O importante a ressaltar é que, apesar da diferenciação dos
programas governamentais que foram levados a atuar em
situações e com instrumentos diversos, e mantida a pluralidade
dos processos e das lutas por terra no país, existe hoje um
significativo segmento social, localizado nos assentamentos
rurais, que dialoga com o Estado e com a sociedade de forma
específica e direcionada, conseguindo para além das marchas e
contramarchas políticas, consolidar um acúmulo de experiência e
conquistas inquestionáveis e, até certo ponto, irreversíveis.
(LEITE, 2000, p.41)
De acordo com pesquisa realizada pela FAO, em 1992, as estratégias
visando à produção e ao aperfeiçoamento de seu modo de vida garantem ao
assentado uma renda média superior à de qualquer categoria de trabalhadores do
campo.
Os dados apresentados na Tabela 4.5 contribuem para a defesa da
viabilidade sócio-econômica dos assentamentos e da sua eficácia para combater a
miséria no campo.
Tabela 4.5 – Alguns Indicativos sócio-econômicos dos assentamentos –
1992
REGIÃO
RENDA FAMILIAR PORCENTAGEM
MORTALIDADE
(em salário
DA
INFANTIL (por mil
mínimo)
CAPITALIZAÇÃO
nascidos)
(com recursos próprios)
Norte
Nordeste
Centro-Oeste
Sudeste
Sul
Brasil
4,18
2,33
3,85
4,13
5,62
3,70
189
48
88
96
217
127
72
58
29
0
0
50
Fonte: FAO/Mara (Projeto BR 87/022 – dezembro/92). In: STÉDILE, 1997, p.40
203
De acordo com a análise de Stédile:
verifica-se que, em média, as famílias assentadas possuem uma renda
mensal equivalente a 3,7 salários mínimos, muito superior a de um
trabalhador sem-terra, que está em torno de 0,7 do salário mínimo. O
patrimônio dos assentados, medido pelo capital imobilizado (sem o
valor da terra) cresce em média 206%. Entre os indicadores sociais, o
mais significativo é o da mortalidade infantil. Nos assentamentos,
reduziu-se à metade da média nacional (STÉDILE, 1997, p. 40).
Ainda assim, naturalmente, a baixa renda é tida pelos assentados da região
pesquisada como um dos maiores problemas de sobrevivência no assentamento,
fruto das dificuldades produtivas com que se deparam 1. A origem da renda está
essencialmente na exploração de diferentes culturas (mandioca, melancia,
pimenta, milho, abacaxi, etc) e criações (galinha caipira, frango, suínos, gado de
leite e de corte), sendo a pecuária leiteira a principal atividade destinada ao
mercado e a principal fonte de renda em todos os assentamentos. Em muitos
casos, no entanto, a renda é acrescida por diárias de trabalho na área agrícola,
aluguel de pastagens, arrendamento da terra, entre outros, sem contar com a
importante contribuição de pensões e aposentadorias na sustentação de muitas
famílias. Em pesquisa realizada no assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho,
situado no município de Campo Florido (Triângulo Mineiro), Nomura calculou em
2,8 salários mínimos a renda média mensal dos assentados. Apesar de inferior à
renda média nacional das famílias assentadas, apresentada na tabela anterior,
faz-se importante pontuar o seguinte:
se for analisada a viabilidade econômica do assentamento por meio da
eficiência pelo custo de oportunidade do trabalho, pode-se concluir que
o assentamento representa uma melhora de vida significativa, pois a
situação de emprego anterior, na grande maioria dos casos (60%), a
ocupação era de subemprego, isto é, trabalhadores temporários na
agricultura. Em 20% dos casos, os assentados eram arrendatários ou
meeiros, em 16% dos casos eram trabalhadores urbanos (pedreiro,
professor, proprietário de máquina de arroz) e em apenas 4% dos
casos eram proprietários de terras (NOMURA, 2001, p.75).
Apesar do nosso estudo não ter tido a pretensão de mensurar a renda das famílias, esta é
notavelmente inferior às suas necessidades.
1
204
Tais reflexões mostram que resultados positivos nos assentamentos,
apesar de precários e ainda parcos, e mesmo frente a uma série de obstáculos,
podem ser percebidos. Além disso, como enfatiza Bergamasco e Norder, esses
assentamentos possuem “um valor estratégico, na medida em que fornecem
elementos para uma avaliação da pertinência da proposta de reforma agrária e da
reestruturação da propriedade fundiária no Brasil” (BERGAMASCO e NORDER,
1996, p.9).
Sobre os impactos locais dos assentamentos rurais
Os
assentamentos
rurais
indicam,
ainda,
a
presença
de
novas
possibilidades de utilização de áreas que têm seu lugar econômico refeito em
função das novas unidades produtivas. A instalação dos projetos tende a
provocar, assim, acentuados impactos econômicos e sociais, especialmente nos
municípios menores.
Nomura, ao analisar os impactos sócio-econômicos e políticos do
assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, tanto na área reformada quanto no
município de Campo Florido, demonstrou que, por meio do assentamento, houve
um processo de melhora no padrão de vida das famílias assentadas (em termos
de renda, saúde, educação e moradia): conquistaram-se recursos (públicos e
privados) para a construção de estradas e escolas, que atenderam à população
assentada e à do município como um todo; dinamizou-se a economia do município
com um aumento do número de estabelecimentos comerciais e do volume de
bens
comercializados
no
município,
aumentando,
conseqüentemente,
a
arrecadação fiscal municipal; ampliou-se a inserção dos assentados nas decisões
políticas locais; e, por fim, reduziu a concentração fundiária do município de
Campo Florido (NOMURA, 2001).
A instalação do assentamento, por aumentar a demanda de insumos
agropecuários, aquece o comércio local. Além disso, contribui na oferta de
alimentos para a população do município de Campo Florido e cidades vizinhas,
205
bem como na oferta de matérias-primas para agroindústrias da região, com uma
comercialização bem mais diversificada. “Na época da desapropriação, a fazenda
possuía apenas pastagens naturais, que eram alugadas para tratar de 2 mil
cabeças de gado, e mais 14 carvoeiras, que tiravam madeira da área. Os
impostos da fazenda não eram pagos há vários anos, e o laudo de vistoria
realizado pelo INCRA indicou 96% de improdutividade” (NOMURA, 2001, p.68).
Os
impactos
produtivos
ocasionados,
na
área
reformada,
pela
implementação do assentamento tornam-se claros, ao observarmos a próxima
tabela, que mostra a situação da área, no momento da desapropriação e em 2001,
quando foi realizada a pesquisa, mostrando que houve uma dinamização na área
reformada:
Tabela 4.6: Assentamento Santo Inácio Ranchinho: dados anteriores e
posteriores à sua implementação
Famílias residentes
Tratores
Escolas
Bares
Lojas
Carroças
Indústrias caseiras
Telefone público
Conjunto desintegrador
Gado (cabeças)
Frango (cabeças)
Suínos (cabeças)
Caprinos (cabeças)
1994
1
1
0
0
0
1
0
0
1
2000 (arrendamento)
0
0
0
2001
115
5
2
2
1
70
1
1
10
1500
3450
265
22
Fonte: EMATER (Campo Florido)
Adaptação de NOMURA, 2001.
Conforme Guimarães, “os trabalhadores da Nova Santo Inácio Ranchinho
reconfiguraram a terra conquistada, transformando o latifúndio improdutivo em
unidades de produção familiar, além de estabelecer aí novas maneiras de
produzir, novas relações sociais, novas formas de luta, novas sociabilidades,
enfim, um novo modo de vida” (GUIMARÃES, 2002, p.6 e 7).
206
De acordo com Bergamasco, “mesmo com trajetórias diferenciadas, os
objetivos de permanência na terra e de retirar dela um futuro melhor são
fragmentos encontrados no horizonte dos assentados” (BERGAMASCO, 1992, p.
44).
Os estudos sobre o assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho mostram
que, do ponto de vista da qualidade de vida, todos os entrevistados acreditam que
sua situação melhorou ao serem assentados:
A melhora deu-se principalmente no que diz respeito a possuir um lugar
mais tranqüilo para criar os filhos, sem violência e com boas
oportunidades de educação. Outro fator citado foi a possibilidade de
viver longe do estresse da cidade, sem a necessidade de pagar
aluguel, com abundância de água, a possibilidade de plantar o que
necessita para a alimentação da família e não precisar trabalhar mais
como empregado (NOMURA, 2001, p.84).
Também para Guimarães:
As entrevistas evidenciaram que as condições estruturais das famílias
melhoraram substancialmente após a implantação do assentamento,
seja em termos objetivos, como acesso à moradia mais digna,
alimentação garantida pela produção de subsistência, acesso à
educação dos filhos, seja em termos subjetivos, referentes a um novo
modo de vida.
Quando são interrogadas a respeito das mudanças ocorridas em suas
vidas com a conquista da terra, os trabalhadores referem-se sempre à
oportunidade que tiveram de engendrar uma nova temporalidade, em
que administram autonomamente, o seu próprio tempo, diferente da
situação vivenciada como trabalhadores bóias-frias, em que o tempo
representava para eles o sacrifício, o sofrimento e o controle disciplinar
(GUIMARÃES, 2002, p.121).
Um assentado do P.A. Divisa (Ituiutaba), descreveu da seguinte forma a
sua situação:
É muito gostoso um pai acordar de manhã, e ocê saber que você tem ali o seu arroz, o
seu feijão, o seu milho, o teu porco, a tua galinha, o seu leite, produzido dali, que você
tem da onde trazer o sustento, trazer o alimento pros teus filhos. E ao mesmo tempo você
tem também, sabe que você tem uma casa pra morar. Você sabe que você tem aonde
trabalhar. Você sabe que você, tendo coragem de trabalhar, é dali que você vai tirar o pão
207
de cada dia, que você vai tá dando condição pro teus filho sobreviver e, se possível, de
estudar. Apesar de toda a falta de recurso que tem nos assentamento. Mesmo assim, tem
dado prova, em vários assentamento, que se o trabalhador tiver o seu pedaço de terra, e
um pouquinho de recurso, ele acaba por transformar esse país (assentado P.A. Divisa).
Em seu estudo sobre o assentamento Nova Bom Jardim, localizado em
Tapira (Alto Paranaíba), Silva afirma que “o significado singular daquele território
para as famílias assentadas é, sobretudo, por ser um lugar almejado à reprodução
social de seus grupos familiares. Quando questionadas sobre o porquê de
estarem ali, as respostas são quase unânimes: um projeto de vida melhor e o
desejo de serem livres” (SILVA, 2002, p.106). Por outro lado, há os desencantos
gerados com as limitações impostas ao assentamento que em muito inviabilizam
as formas de reprodução camponesa das famílias em seus lotes.
Nesse sentido, é importante atentar para o fato de que, como já foi dito
anteriormente,
no
Brasil,
a
implementação
dos
assentamentos
decorre,
historicamente, não de uma política deliberada de desenvolvimento agrário, mas
de uma tentativa de atenuar a violência dos conflitos sociais no campo e a
dimensão que eles podem atingir frente à sociedade.
Criados para responder a pressões, marcados pela ausência de um
planejamento prévio de localização e de mecanismos de apoio,
dispersos espacialmente, muitos dos assentamentos enfrentaram
situações bastante adversas no que se refere às condições de
produção, formas de sociabilidade e estabilidade (LEITE E MEDEIROS,
1999, p. 11).
Disso decorre que a conquista da terra marca o ponto de partida de novas
lutas, agora relacionadas à consolidação da posse da terra, no que tange à
viabilidade produtiva e à necessária infra-estrutura social e política. Inúmeras
dificuldades são impostas aos trabalhadores rurais assentados, gerando novas
necessidades, novos desafios à luta e, por vezes, novas contradições.
208
A organização produtiva nos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/
Alto Paranaíba
O Estado de Minas Gerais é o maior produtor de leite do país, com 28,3%
da produção nacional, e o Triângulo Mineiro compreende a maior região produtora
do estado, com aproximadamente 34,4% - o que corresponde a 1,8 bilhões de
litros/ ano (PCT/ INCRA/ FAO, 2001). Aliás, a grande maioria das áreas onde hoje
estão instalados os projetos de assentamento tinha como atividade produtiva
principal a pecuária de corte.
Na maioria dos municípios do Triângulo Mineiro, a abertura dos
cerrados permitiu o estabelecimento de pastagens de capins do gênero
Brachiaria e a expansão da pecuária. (...) Face às características de
baixa fertilidade natural e alta erosibilidade dos solos sob ação do
pastejo contínuo, imensas áreas de pastagens apresentam hoje uma
baixa capacidade de suporte e em processo avançado de degradação.
(...) A pecuária bovina predomina, como atividade principal, na maioria
dos municípios do Triângulo Mineiro, especialmente na região do
Pontal. Esta é a atividade ainda marcante em termos de ocupação do
solo e se constitui na principal atividade dos grandes latifundiários. Com
a injeção de créditos dos programas CONDEPE e POLOCENTRO, a
atividade pecuária se expandiu nos anos 70, juntamente com o cultivo
do algodão e do arroz. Com a degradação do solo e conseqüentemente
das pastagens, estas fazendas vêm se tornando improdutivas, sendo o
principal alvo dos movimentos sociais para transformá-las em projetos
de assentamentos” (PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.7 e 8).
Assim,
considerando
as
tendências
regionais
que
levam
ao
desenvolvimento da pecuária e a impossibilidade de criar gado de corte nas
pequenas parcelas dos assentamentos, a pecuária leiteira constitui a atividade
produtiva hegemônica em todos os assentamentos do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba, atingindo normalmente a quase totalidade das famílias assentadas. “O
leite vem se constituindo no esteio da economia dos assentamentos do Triângulo
Mineiro. (...) É o principal alvo de investimento produtivo, não somente porque
fornece alimento diário, mas porque oferece rendimento mensal monetário, ainda
que seja pequeno” (PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.57). Fonseca acrescenta:
A opção preferencial pelo leite, para a qual são destinados 80% dos
créditos-investimentos (PROCERA/ PRONAF A) em aquisição de
209
rebanho (geralmente novilhas cruzadas – Holandês/ Zebu), triturador e
plantio de cana e capim elefante (alternativa para a seca), se dá em
função da aptidão dos assentados pela tradição pecuária da região, da
disponibilidade de pastagens das áreas desapropriadas (ainda que
deficitárias), pela rentabilidade mensal da atividade (ainda que
pequena) e pela liquidez dos bovinos (FONSECA, 2001, p.131).
Além disso, na região, há várias empresas e cooperativas que compram,
industrializam ou vendem o leite, tais como Nestlé, Italac, Vigor, Leco, Calu, entre
outras, das quais os assentados tornam-se fornecedores.
Foto 4.1 - Criança ordenhando em curral do projeto de assentamento Nova Jubran (Santa Vitória).
Autor: Gomes, Renata M. Fevereiro de 2004.
A mandioca também é produzida, em todos os assentamentos, para
subsistência ou para fins comerciais. É o segundo maior investimento, depois do
leite. “A pouca exigência quanto à fertilidade do solo, o baixo dispêndio de mãode-obra e um considerável mercado consumidor (alto consumo pela população e
várias indústrias de beneficiamento na região) atraem os assentados para esta
210
cultura” (FONSECA, 2001, p.130). No Alto Paranaíba, é crescente também a
produção de café para comercialização. Outros produtos são comercializados, em
menor grau, e com uma relativa variação entre os assentamentos e entre os
assentados, como maracujá, milho e pimenta.
Foto 4.2 - Fabricação de farinha de mandioca, assentamento Santa Luzia (Perdizes).
Autora: GOMES, R. M. Outubro de 2003.
Além disso, as culturas de subsistência, presentes na quase totalidade dos
lotes, constituem parte importante do consumo das famílias assentadas, através
das hortas caseiras e dos pomares, assim como a criação de suínos e aves.
211
Foto 4.3 - Lote individual com pomar e horta ao lado da casa. Assentamento Pontal do Arantes
(União de Minas).
Autora: GOMES, R. M. Agosto de 2003.
As dificuldades no processo produtivo nos assentamentos rurais do
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba
Os estudos acerca da liberalização da economia brasileira nos indicam que
o atual modelo econômico torna os produtores familiares cada vez mais
vulneráveis à dinâmica – diga-se de passagem, altamente excludente – do
mercado. As dificuldades por que passam os assentados, no que se refere à sua
inserção produtiva e no processo de comercialização, são, dessa forma e em certa
medida, inerentes a este modelo econômico implementado. Por outro lado, e fruto
deste mesmo processo, a ausência de políticas agrícolas e agrárias sólidas,
212
destinadas especificamente à efetiva realização da reforma agrária e ao apoio aos
assentamentos, agrava ainda mais esta situação.
Os créditos fornecidos pelo governo são insuficientes para os assentados
que, em sua quase totalidade, são totalmente descapitalizados, ainda mais depois
de anos de vivência nos acampamentos. Além disso, são comuns os casos de
atraso na disponibilização dos financiamentos, com relação ao ano agrícola e seus
períodos de plantação, correção, colheita, etc, bem como de inabilidade ou falta
de vontade política das instituições financeiras para liberação dos créditos que, em
muitos casos, acabam retornando para os cofres públicos. Verifica-se, ainda, a
execução de projetos distantes da realidade do assentamento.
A burocracia e a falta de planejamento na implantação dos projetos
financiados pelo programa (no caso, o PRONAF) dificultam a
viabilização econômica da área. Os projetos muitas vezes são
elaborados nos gabinetes do governo e não levam em conta a vocação
produtiva da terra dos assentamentos e tampouco procuram saber da
vocação econômica dos assentados (SILVA, 2002, p.75).
Como exemplo, Silva apresenta um caso em que o PROCERA,
posteriormente
substituído
pelo
PRONAF,
integrou
os
camponeses
do
assentamento Nova Bom Jardim num programa de financiamento de compra de
gado leiteiro e produção de queijo que, entre outros problemas:
liberou verbas, estritamente, para a compra do rebanho e não previa
em seu orçamento destinar recursos para formação do pasto. Sem um
pasto formado não foi possível para essas famílias manter uma
produtividade satisfatória do rebanho e, como resultado, não
conseguiram obter lucros para saldarem a dívida contraída ao entrar no
projeto (SILVA, 2002, p.76).
Da mesma forma, a EMATER, que teria como uma de suas funções
oferecer assistência técnica aos assentados, além de não ter condições para
realizar um trabalho constante, muitas vezes desconhece a realidade dos
assentamentos rurais, caracterizando-se como mais uma empresa difusora do
pacote tecnológico da Revolução Verde, como atesta Guimarães, em estudo
realizado no assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho: a EMATER incentivou,
213
entre esses produtores, a adoção de um modelo com um uso intenso de
tecnologia moderna (mecanização e quimificação da agricultura), que exigiu
investimentos altos na aquisição de equipamentos e insumos, e que não garantiu
melhores condições de produção no assentamento (GUIMARÃES, 2001).
Em muitos casos, a área já apresenta problemas do ponto de vista do
potencial produtivo, tendo em vista a sua utilização anterior, o que exige altos
custos no preparo do solo. As condições ambientais não costumam favorecer a
produtividade nas áreas de assentamento, à medida que “a ação predatória,
historicamente associada ao modelo tecnológico aplicado pelos latifundiários
promovem a degradação dos solos, secamento das águas, assoreamento dos
rios, morte de plantas e animais, ou seja, há uma transformação do ecossistema
determinando expressivas limitações dos recursos naturais” (FONSECA, 2001,
p.129).
A falta de assistência técnica constitui um dos maiores problemas que
contribuem para o insucesso dos projetos produtivos dos assentamentos e para o
indevido investimento de recursos governamentais. Não há que se desconsiderar
o fato de que, internamente, um dos maiores problemas é o desconhecimento de
muitos assentados no manejo de determinados cultivos, bem como na criação de
gado leiteiro.
No caso específico da produção leiteira, que é a principal no interior de
todos os assentamentos da região, como já colocado, são várias as dificuldades
por que passam os assentados:
Os diagnósticos da pecuária leiteira nos assentamentos têm apontado
como fatores limitantes a compra individualizada dos rebanhos que
favorece o ganho dos atravessadores (catireiros) que lhes oferecem
animais de baixo potencial genético; a falta de assistência técnica na
implantação do sistema produtivo; o elevado intervalo entre partos; a
baixa capacidade de suporte das pastagens; manejo da alimentação,
da reprodução e sanitário inadequados; dificuldade gerencial dos
assentados; baixo volume de produção e individualismo na produção e
comercialização, facilitando a imposição do preço do leite pelos
laticínios e cooperativas da região. A ausência de energia elétrica, de
água (lotes secos) e de alternativas de alimentação (entresafra) e a
falta de equipamentos para processar os alimentos são também
elencados como fatores que favorecem a insustentabilidade do
sistema. Em todos os Planos de Desenvolvimento elaborados nos
214
P.As., as propostas prioritárias em relação à produção visam atacar
essas debilidades: correção do solo, melhoramento das pastagens,
plantio de canas e capineiras, banco de proteínas, inseminação
artificial, mineralização e vacinação do rebanho, assistência técnica,
melhoramento das instalações, compra coletiva de tanques de
expansão (resfriador), negociação coletiva do preço do leite,
industrialização dos produtos pelos assentados (FONSECA, 2001,
p.131).
A todas essas dificuldades já enumeradas, somam-se aquelas relacionadas
aos problemas internos de organização dos assentados para a produção. O
individualismo tem predominado não só no aspecto produtivo, como em várias
esferas da vida social dentro dos assentamentos localizados na região do
Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba. Segundo os depoimentos obtidos no trabalho
de campo, as lideranças atribuem o individualismo a um aspecto cultural, que
caracteriza a região. Costumam associar o fato da superexploração tradicional da
região como um dos fatores de supervalorização da propriedade privada
individual.
Registre-se que 100% dos assentados do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba optaram por viver e produzir em glebas individuais. Em
nenhum assentamento foram constituídos espaços de moradia e
convivência como as agrovilas. Criou-se a cultura do “meu lote”, da
“minha terra”, do “meu crédito”, ainda que algumas experiências
isoladas de produção coletiva possam ser identificadas. (...) A histórica
exclusão social provoca no sem terra o desejo natural (valor
capitalista), da propriedade privada (FONSECA, 2001, p.140).
Algumas
experiências
coletivas
já
foram
iniciadas
em
alguns
assentamentos, mas a maior parte destas não resistiu às dificuldades impostas,
especialmente no que tange à organização conjunta do trabalho:
O ponto crucial que resulta na curta duração dessas experiências é a
falta de recursos substanciais para implementar os projetos, a
ansiedade por resultados imediatos, e o maior dos problemas: a
organização social do trabalho. O desejo de “liberdade” (nunca mais ter
compromissos com horários ou “patrões”) transforma-se em
descompromisso de parte dos integrantes dos grupos coletivos com as
responsabilidades na produção. Surgem as reclamações de que alguns
trabalham e outros não. Ademais, mensurar a produtividade do trabalho
não é nada fácil (FONSECA, 2001, p.142).
215
No assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, por exemplo, as
experiências coletivas implementadas em seu início não vigoraram e, hoje, o
modelo produtivo está todo fundamentado na produção individual. Conforme
Guimarães, a busca pela autonomia da produção parece ser a diretriz da
implementação do modelo de produção individual. Há, no entanto, algumas formas
de cooperação em outros momentos do processo produtivo, como na
comercialização do leite, na compra de insumos e de tratores comunitários
(GUIMARÃES, 2002). Da mesma forma, algumas experiências de cooperação têm
começado a ocorrer em outros assentamentos, especialmente na entrega do leite,
concentrando as inscrições em poucos nomes, ou na compra de resfriadores –
tanques de expansão.
Essas formas de cooperação devem ser valorizadas do ponto de vista da
construção de experiências que contribuam para a formação de novas práticas e
concepções acerca da coletivização do trabalho na região. Afinal, conforme
Fonseca, “a socialização da terra, do capital e do trabalho é um exercício
permanente” (FONSECA, 2001, p.142).
Frente a todas as dificuldades já mencionadas, a importância de se
construir formas associadas e cooperativas para viabilizar o trabalho de todos – e/
ou para potencializar seus resultados – é quase um consenso entre os
movimentos sociais envolvidos com a questão da reforma agrária. Além das
vantagens econômicas, as formas de trabalho conjunto, nos assentamentos,
trazem também vantagens sociais e políticas, no que tange ao crescimento do
poder de reivindicação e organização dos trabalhadores. O sistema cooperativo é
um dos fatores que contribuem para que a renda monetária dos assentados, em
nível nacional, seja maior que a dos agricultores isolados.
Nesse sentido, formas de associativismo e cooperativismo são agora
assumidas, em especial pelos movimentos sociais, como possibilidades abertas
aos trabalhadores organizados, “com vistas a resistirem às expropriações, à
integração desvantajosa, à subordinação às grandes empresas no mercado em
condições de competição por demais negativas” (ESTERCI et alli, 1992, p.7).
216
No entanto, como já foi colocado, aí se encontra uma das maiores
limitações da organização dos trabalhadores rurais da região do Triângulo Mineiro/
Alto Paranaíba, à medida que as experiências de cooperação entre os assentados
são ainda bastante incipientes.
A frágil organicidade dos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/ Alto
Paranaíba
É bastante perceptível que, na implantação dos assentamentos rurais na
região pesquisada, de uma forma geral, a cultura individualista – diga-se de
passagem, componente importante da sociedade capitalista – sobressai-se,
normalmente, quando há a passagem do acampamento para o lote individual,
gerando uma significativa desarticulação da organização coletiva. Muitos
assentados acabam rompendo com a organização que dirigiu a conquista da terra,
“principalmente porque esta passa a cobrar uma postura mais comunitária do
assentado e a exigir dele compromissos com a continuidade da luta; com o não
desvio dos créditos; com a participação em reuniões; com a não venda do lote;
compromissos tão prometidos na época de acampamento” (FONSECA, 2001,
p.141). Essa ruptura se mostrou mais clara, na região estudada, dentre as
organizações coordenadas por movimentos sociais, em especial pelo MST e pelo
MTL, pelas questões expostas acima.
O assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, que constitui um símbolo da
luta pela terra na região e está na base do surgimento do atual MTL, exemplifica
este processo, de acordo com a seguinte observação de Mitidiero Junior, após
entrevistar, em 2001, os trabalhadores aí assentados:
o caminho percorrido pelo grupo de assentados apontou para a
individualização de todo o processo produtivo e de toda vida social
dentro do assentamento. Da mesma forma, a organicidade e a
vinculação dos assentados ao movimento que os levou a conquistar a
terra estava gravemente abalada qualitativamente e quantitativamente
(MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.292).
217
Excetuando-se as lideranças que moram no assentamento e que
participaram da formação do atual MTL, todos os outros entrevistados declararam
não fazer parte do movimento. Da mesma forma, as entrevistas que realizou em
outro assentamento, o Rio das Pedras, em Uberlândia, cuja conquista foi
organizada por este mesmo movimento, confirmaram a falta de organicidade:
a maioria das famílias assentadas não se consideram militantes do
movimento. (...) Em 4 anos de existência o assentamento Rio das
Pedras não possui energia elétrica, água encanada, esgoto, etc, a
Associação não consegue dar seguimento a nenhum projeto
(saneamento básico e instalação da rede elétrica), e muito menos a
liberação de créditos para a produção agrícola, sendo mínima a
participação das famílias nas reuniões... (MITIDIERO JUNIOR, 2002,
p.297).
No caso dos assentamentos ligados à FETAEMG, o que se pode perceber
é que, como a sua ação é, normalmente, bem mais superficial (ou inexiste), no
sentido de buscar um determinado tipo de organização política e produtiva junto
aos assentados, a vinculação ou não dos assentados à entidade não altera
significativamente as relações já estabelecidas. Ao contrário dos movimentos
sociais, dos quais boa parte dos assentados afirma não fazer parte, é bastante
comum um assentado afirmar a sua vinculação ao sindicato que tenha
coordenado a luta pelo assentamento, até pelo caráter tradicional da filiação do
trabalhador rural a esta entidade, ainda que o seu trabalho junto ao assentamento
seja mínimo, ou talvez, contraditoriamente, até por isso.
No caso do MSTR, o que se vê é uma distribuição mais localizada na região
das áreas de conflito e dos assentamentos, fruto do fato de que as ações
empreendidas pelo MSTR, em torno da luta pela terra, são muito mais relativas às
posturas adotadas pelos sindicatos locais que pela estrutura geral do sindicalismo
ou por orientação da FETAEMG. Assim, os entornos de Araxá e Iturama possuem
mais áreas em disputa pelo sindicalismo do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba,
devido aos seus STRs. De forma geral, a FETAEMG não se apresenta coesa em
sua direção, mas o fato é que sua luta é muito mais institucional e que respalda a
atuação de uma série de sindicatos que sequer se envolvem com a luta pela terra,
como o STR de Patrocínio, que tem como prioridade o seu trabalho com a Junta
218
de Conciliação Trabalhista Intersindical, e não tem nenhum envolvimento efetivo
com a luta pela terra.
O que estamos querendo afirmar é que o próprio caráter pouco ativo da
FETAEMG – que faz com que as lutas sejam empreendidas muito localmente, de
acordo com a postura dos sindicatos – marca uma falta de unidade em torno de
determinadas lutas por parte do MSTR mineiro, dificultando, inclusive, que este
consolide sua influência nas áreas de assentamento. De acordo com Ferreira
Neto:
Isso ocorre porque, em virtude do caráter pessoal da operacionalização
dessas lutas, as lideranças, por atuarem isoladamente ou com pouco
suporte institucional e administrativo, enfrentam uma série de
dificuldades para consolidação de todo o esforço despendido no
processo de ocupação da terra, obtenção da desapropriação da terra e
implementação do assentamento. De modo geral, mesmo nas áreas
onde há intensivo trabalho tanto dos STRs quanto da própria
Federação, o MSTR não consegue se manter como referência de luta
para os trabalhadores assentados. O conteúdo pessoal dessa luta e a
falta de uma definição efetivamente institucional do significado da
reforma agrária dificultam a operacionalização, pelo MSTR, das áreas
de assentamentos que ele mesmo ajudou a implementar (FERREIRA
NETO, 1999, p.374).
De forma geral, acreditamos que a frágil organicidade das organizações de
luta pela terra no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba dificulta a implantação de
práticas tanto político-sociais quanto produtivas mais voltadas para o coletivo,
defendidas por estas organizações. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, é
possível que estas mesmas concepções sejam parcialmente responsáveis pelo
próprio afastamento das famílias em relação aos movimentos, já que as propostas
de coletivização ou de incentivo à continuidade da participação na luta política
nem sempre são muito bem-vindas. O trabalho de base mantém-se aqui como
peça fundamental na construção desse processo, ao nosso ver, difícil, porém
necessário.
Ainda há aqui um outro fator complicador levantado pelos próprios
coordenadores dos movimentos: o fato de não existir uma integração consistente
entre movimentos e entidades de assessoria técnica da região, para o
desenvolvimento de projetos diferenciados, reduz a possibilidade da construção
219
de projetos experimentais, reforçando a tendência de isolamento, inclusive
político, dos assentamentos.
Além do individualismo na produção, a ausência de estruturas industriais e
comerciais coletivas nos assentamentos é apontada pelos movimentos como um
outro agravante: “São raras as iniciativas coletivas que possibilitam a agregação
de valor aos produtos, como as agroindústrias comunitárias. Iniciativas como as
CPAs (Cooperativas de Produção Agrícola) defendidas pelo MST, ou as EACs
(Empresas Agrícolas Comunitárias) defendidas pelo MLST, não foram aplicadas
na região” (FONSECA, 2001, p.142).
Foto 4.4 – Manifestação do MTL em visita do presidente Lula ao assentamento Nova Santo Inácio
Ranchinho (Campo Florido).
Autora: GOMES, R. M. Março de 2004.
A única cooperativa em assentamento existente na região estudada é a
Cooperativa de Organização Agropecuária do Barreiro – COAB, localizada no
Assentamento Iturama (em Limeira do Oeste), que é o primeiro da região. São
220
cerca de 50 associados, sendo alguns proprietários de terras vizinhas ao
assentamento. As famílias lá residentes (a maioria comprou os lotes), no entanto,
não têm mais vinculação a nenhuma organização de trabalhadores rurais, e a
cooperativa, apesar de garantir um preço melhor no fornecimento de leite,
reproduz algumas relações típicas da empresa privada capitalista. Como exemplo,
temos o fato de que muitos assentados, que não se dispuseram a entrar na
experiência no início, hoje não estão conseguindo se associar. A cooperativa,
então, compra o leite desses produtores e revende para os compradores,
aumentando sua lucratividade às custas de outros assentados.
Foto 4.5 - Estrutura da Cooperativa Agropecuária do Assentamento Iturama (Limeira Do Oeste).
Autor: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.
Outra questão apontada também pelos estudos e movimentos como
agravante do processo de distanciamento dos assentamentos com as suas
organizações de origem, está na constituição das associações, normalmente a
primeira instituição formal constituída pelos assentados.
221
O INCRA é o primeiro a cobrar a existência dessas instituições, sob a
alegação de que a disponibilização dos créditos implantação não pode
ocorrer por outra via. Esse órgão é, também, o primeiro a desrespeitar
a experiência construída e a cobrar a necessidade de um interlocutor
do assentamento, de um presidente, já induzindo em relação a uma
“autonomia” em relação ao movimento que coordenou a luta. Outras
instituições (Prefeituras, Universidades, Sindicatos, Órgãos estaduais)
também, ao se relacionarem com os assentamentos, preferem fazê-lo
diretamente com os assentados, desconsiderando o papel dos
movimentos, contribuindo com o rompimento dos assentados com as
organizações de luta, o que fortalece a despolitização e o isolamento
das comunidades (FONSECA, 2001, p.145).
As reflexões empreendidas por Silva (2002) e Guimarães (2002),
respectivamente sobre os assentamentos Nova Bom Jardim e Nova Santo Inácio
Ranchinho, acerca da organização interna dos trabalhadores, nos mostra que as
relações são, por vezes, permeadas por conflitos de interesses e práticas de
disputa pelo poder, ou seja, “o controle e a ordenação do novo território constituise como manifestação de estratégias de poder estabelecidas pelos grupos sociais
existentes no assentamento” (GUIMARÃES, 2002, p.129), o que é verificado em
especial nos conflitos que permeiam o direcionamento da associação, cuja direção
passa a ser fonte de poder e status (SILVA, 2002). Reproduz-se, assim, ainda que
parcialmente, relações de dominação, hierárquicas, típicas da sociedade
capitalista, mas contrárias às formas de participação mais ativas e democráticas
que são construídas no cotidiano da luta dos trabalhadores rurais.
Além disso, há que se pontuar, também, que a própria fragmentação da
organização dos trabalhadores rurais contribui para a reprodução dessa situação,
já que as formas de personalismos advindas dos conflitos constantes entre as
lideranças dos diversos movimentos trazem, muitas vezes, as marcas do
individualismo.
Todas estas dificuldades nos mostram que:
Se a conquista dos assentamentos se dá por um processo
extremamente doloroso para os trabalhadores sem-terra no Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba, certamente a consolidação produtiva dos
mesmos, não se verificará sem entraves impostos pelo Estado, pelo
modelo tecnológico dominante, pelo mercado e pelas próprias
deficiências organizativas dos assentados (FONSECA, 2001, p.124).
222
Contradições vivenciadas após a conquista da terra
Os problemas tratados, nas seções anteriores, traduzem-se, para algumas
famílias assentadas, na ausência de condições básicas de sustentação econômica
e social. Nessas situações, os assentados se deparam com a necessidade de
buscar outras saídas para a manutenção de suas unidades de produção. Esta
imposição toma, em certos momentos, formas marcadas pela contradição.
É o caso da subordinação dos assentados, em relação ao capital, através
da venda de sua força de trabalho em períodos permanentes ou temporários.
Essa situação se confirma entre os produtores da Nova Bom Jardim.
Periodicamente os assentados saem de seus lotes para trabalhar na
colheita das grandes lavouras das proximidades (café, batata, flores),
ou mesmo se deslocam ao núcleo urbano de Tapira ou às outras
cidades para venderem sua força de trabalho. Alguns membros desse
assentamento também se empregam em atividades industriais locais,
como por exemplo na propriedade vizinha, a mineradora fosfértil.
Outros estão trabalhando, permanentemente, na Prefeitura Municipal
de Tapira, como motoristas da rede rural de ensino ou como vigilantes
(SILVA, 2002, p.57).
As dificuldades fazem, assim, com que muitos dos assentados busquem,
fora dos lotes, alternativas de renda. Casos desta natureza são encontrados em
praticamente todos os assentamentos, em menor ou maior grau.
Outra saída que os assentados da região têm encontrado está no
arrendamento de seus lotes para grandes produtores. Até o momento, é o caso de
algumas famílias dos assentamentos Engenho da Serra/ Capão Rico e Nova
Santo Inácio Ranchinho. Neste último, os assentados fornecem cana para uma
usina de produção de álcool e açúcar – a Usina Cururipe de Açúcar e Álcool S/A.
Esse arrendamento apresenta-se como uma nova contradição presente. Além de
servir a uma grande empresa de capital privado, o arrendamento para a produção
de cana de açúcar representa a adoção de uma prática agrícola que degrada o
solo e compromete a preservação ambiental – a monocultura. Segundo um
assentado, entrevistado por Guimarães: “Nós vamos sofrer as conseqüências
típicas desse conceito de produção que é a monocultura! A monocultura, por si só,
já é uma afronta à agricultura familiar! (...) Com o arrendamento, nós não teremos
223
mais a terra, teremos apenas o território!” (assentado. In: GUIMARÃES, 2002,
p.142).
Assim, contraditoriamente, o mesmo modelo produtivo que sustenta o
grande capital agrário e que expropria, apresenta-se, para estes expropriados que
conquistaram a terra, a alternativa possível para resistirem, na terra conquistada,
apesar de servindo a este mesmo grande capital agrário (GUIMARÃES, 2002).
Mas, talvez, o ponto culminante deste processo esteja no número
significativo de venda ou abandono de lotes. Frente às dificuldades de produção,
algumas famílias acabam desistindo e dando continuidade ao seu “destino
migrante”. “A ineficiência na produção e na comercialização, com a conseqüente
baixa renda dos assentados, são sem dúvida, os motivos principais que levam às
desistências” (FONSECA, 2001, p.128).
Muitas vezes quando o assentado vende o lote, fala que é porque é malandro, que é
porque não tem interesse de ficá na terra, e tal. E às vezes não é isso. Não vou dizer...
posso até ter algum lá por acaso, um trabalhador que não tenha às vezes aquele carisma
pela terra, aquele enraiz pela terra, mas a maioria da questão de venda de lote é fruto da
não condição de permanência no campo. Porque ali o trabalhador fica dois anos, fica
cinco anos, e muitas das vezes não consegue desenvolver porque não tem um
acompanhamento técnico e nem uma questão financeira, os recursos para que possa
desenvolver. E além de não ter, falta um acompanhamento inclusive social, na questão
das organizações de grupo, na questão do trabalho coletivo, na questão de fazê com que
as famílias se agrupam-se, não só em termos sociais, mas em termos também
econômicos. (...) E com isso o assentado de reforma agrária vai aos poucos se
desintegrando, se desincentivando, ficando sem condição de produzir e até de manter na
terra. E com isso de onde vem as venda de lote, de onde vem as dificuldade (diretor da
FETAEMG, entrevista concedida em junho de 2003).
Não temos acesso ao número exato de desistências. Sabemos que este é
um número bem variável. Em algumas áreas, todos os assentados se mantêm
desde o início, mas em algumas as desistências beiram os 50%. O número mais
alarmante é o do Assentamento Iturama. Este, que foi o primeiro da região, cuja
224
luta serviu de referência fundamental e se desdobrou em várias outras lutas,
impulsionando sobremaneira a organização dos trabalhadores rurais no Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba, já teve 75% dos seus lotes originais vendidos. Um
agravante muito sério, neste caso, é o fato de que este assentamento foi
emancipado há cerca de quatro anos, antes mesmo de receber todos os créditos a
que tinha direito, o que tem dificultado sobremaneira o acesso a financiamentos e
programas governamentais destinados aos assentamentos rurais.
Assentamentos rurais: a territorialização da luta pela terra
Tendo em vista as questões anteriormente mencionadas, podemos nos
referir
aos
assentamentos
rurais
como
territórios
que
encerram,
concomitantemente, um ponto de chegada e um ponto de partida – ressaltando-se
que não estamos nos referindo aqui, com esses termos, a rupturas, mas a
processos cujas dinâmicas estão profundamente embricadas.
Após todo o processo de luta pela terra, a conquista do assentamento
representa possibilidades reais de novas formas de vivência. A partir de sua
instalação, os trabalhadores assentados passam a implementar projetos de
produção, bem como novas formas de sociabilidade, inserindo-se “num jogo de
disputas políticas visando à sua reprodução (sobretudo na sua relação com o
Estado) e fortalecendo a possibilidade de gerar efeitos multiplicadores dessa
experiência singular, com impactos significativos no meio social, político e
econômico em que atua” (LEITE, 2000, p.45).
Apesar de todas as dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores rurais
assentados, discutidas anteriormente, acreditamos aqui que os assentamentos
rurais constituem territórios fundamentais para a transformação da realidade
prevalecente no meio rural, desde que inseridos num efetivo programa de reforma
agrária, ainda que sob a tutela de um regime econômico estruturalmente
excludente. Obviamente que, à medida que inseridos numa dada conjuntura de
mundialização do capital, limitações à sua sustentabilidade serão intrínsecos à sua
225
existência. No entanto, os movimentos sociais de luta pela terra, em especial o
MST, têm se mostrado importantes articuladores de projetos políticos alternativos,
para muito além da conquista da terra. Talvez aí resida o maior problema da
fragmentação dos movimentos sociais rurais, ou seja, para além da conquista da
terra.
Na região pesquisada, por exemplo, as contradições da espacialização da
luta pela terra têm acarretado a formação de inúmeros movimentos sociais no
campo. A fragmentação, ocorrida por meio de “rachas” e surgimento de novos
movimentos, e expressa por meio da dificuldade de unificação de suas lutas, tem
trazido uma série de limitações, ao nosso entender, ao desenvolvimento sócioeconômico dos assentamentos rurais. Isto porque, para além da conquista de
determinadas áreas, as demandas dos trabalhadores rurais sem-terra podem
trazer, ao menos potencialmente, questões de âmbito ainda muito mais amplo,
que extrapolam os limites territoriais das áreas conquistadas – em sua maior
expressão, na transformação do modelo econômico vigente. Tanto a tão
propalada redistribuição fundiária, quanto o encaminhamento de projetos
produtivos diferenciados e a garantia de financiamentos mais eficazes e de
políticas agrárias e agrícolas mais efetivas para a produção familiar, envolvem um
novo projeto social, uma nova política econômica e requerem um acúmulo
crescente de forças, ou seja, um alto poder de mobilização e de pressão.
Assim como Mitidiero Junior, no entanto:
negamos qualquer hipótese de inviabilidade da organização da luta
pela terra devido à sua excessiva fragmentação. Da mesma forma, que
por menores que sejam as vitórias conquistadas por todos esses
movimentos, elas não podem ser taxadas de insignificantes, já que a
vida destes sujeitos em luta muda durante o processo de conflito e,
conseqüentemente, com as possíveis conquistas (MITIDIERO JUNIOR,
2002, p.300).
Ilustrativo desta afirmação é o fato de que é crescente a mobilização e as
ações em torno da luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, apesar de
toda a fragmentação existente na organização dos trabalhadores rurais. Mas,
ainda assim, e por outro lado, não há como negar que há um enfraquecimento do
226
potencial das lutas, à medida que as divisões resultam numa redução do poder de
pressão e negociação, especialmente, como já foi dito anteriormente, no que
tange às demandas para além da conquista da terra.
De qualquer forma, os assentamentos representam a possibilidade de (re)
territorialização do campesinato, através da sua resistência ao processo de
exploração e expropriação empreendido pelo capital. Conforme discussão
empreendida na introdução deste trabalho, compreendemos o camponês como
“um componente das classes subalternas da sociedade capitalista” (SANTOS,
1978, p.2), personificação de um específico processo de trabalho. E este
específico processo de trabalho é recriado nos assentamentos: mantém-se a
utilização da força de trabalho familiar, a maior participação da atividade viva do
trabalho relativamente aos meios de produção, e a produção direta de uma parte
considerável dos meios de vida – subsistência (CHAYANOV, 1974).
A conquista dos assentamentos rurais representa, ainda, e nessa mesma
perspectiva, a territorialização da luta pela terra e do movimento social que a
conquistou, à medida que esta mesma luta não se finda com a conquista da terra,
mas, ao contrário, amplia as potencialidades da organização dos trabalhadores
rurais. Essa territorialização expande “realidades e possibilidades. A conquista da
terra amplia as demandas, desdobrando os trabalhos e gerando novas
necessidades” (FERNANDES, 2000, p.194).
Os sem-terra não são apenas excluídos da terra, também são
excluídos de outros direitos básicos da cidadania. Dessa forma,
procuram derrubar outras cercas além das cercas do latifúndio. E para
conquistarem seus direitos, dimensionaram a luta pela terra em luta por
educação, por moradia, por transporte, por saúde, por política agrícola,
enfim, por uma vida digna. (...) Compreendendo essa realidade, os
sem-terra criaram uma forma de organização na qual os setores
interagem as dimensões das diversas atividades, o que tem
possibilitado ampliar a resistência à expropriação, no desenvolvimento
da luta de classes” (FERNANDES, 2000, p.223).
Os territórios conquistados tornam-se, nesse processo, importantes bases
de referência para a espacialização da luta pela terra.
227
O número de assentamentos existentes é um indicador favorável para
os sem-terra, porque o aumento do número de famílias assentadas e
organizadas contribui para a espacialização e territorialização da luta.
Na década de 1980 e até meados dos anos 90, para fazer uma
ocupação, os sem-terra tinham muito mais dificuldade. Atualmente, por
meio das experiências construídas e das conquistas, o poder de
organização e de pressão é maior (FERNANDES, 2000, p.265).
Dos assentamentos rurais conquistados, surgiram novas lutas, novas
ocupações e a conquista de novas áreas. Nesse processo, formaram-se
lideranças, estabeleceram-se alianças, surgiram novos movimentos sociais.
Garantiram-se, aos poucos, maior participação política dos sem-terra, bem como
formas internas de organização mais democráticas e participativas. A citação
abaixo exemplifica este processo:
Alguns dos trabalhadores na Nova Santo Inácio Ranchinho tiveram
oportunidade de disseminar suas práticas de sociabilidade, ao
participar da rede de movimentos sociais de luta pela terra,
contribuindo, por meio de suas experiências, com a viabilização de
novos assentamentos na região. Destaca-se, nesse contexto, a
experiência de formação do Movimento de Luta pela Terra – MLT – no
interior do assentamento em 1996, posteriormente integrado ao MLST,
cuja atuação no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba tem sido expressiva,
especialmente no que se refere ao movimento de territorialização dos
sem-terra (GUIMARÃES, 2002, p.125).
O território é aqui concebido como o espaço da ação do homem, encerrado
numa totalidade histórica, ou seja, como produto histórico do trabalho humano:
De forma direta, o território é o produto histórico do trabalho humano
que resulta na construção de um domínio ou de uma delimitação do
vivido territorial, assumindo múltiplas formas ou determinações (...).
Os homens através de suas ações são os únicos capazes de
transformar o espaço em território. O território implica na apropriação
efetiva da sociedade sobre determinado espaço, por meio da
organização social (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.20).
Dessa forma, os assentamentos rurais são aqui compreendidos como
territórios conquistados pelas organizações dos trabalhadores rurais, e (re)
construídos pelos assentados, num processo que representa, para além da
228
possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais e de trabalho, um (re)
dimensionamento da luta pela transformação da realidade do campo.
As transformações vinculadas à conquista dos assentamentos rurais trazem
impactos não somente em nível local. A ação permanente de diversas entidades
como o MST, a Igreja, sindicatos, imprensa, ONG’s, entre outras, faz com que
determinadas ações não se esgotem no assentamento e nas relações locais, mas
se potencialize, envolvendo interesses e situações de forma muito mais global que
sob a ótica de sua singularidade. É a presença de mediações que atuam numa
rede de relações que permite a potencialização das possibilidades de atuação
política dos atores envolvidos em processos de assentamentos. Seguindo essa
perspectiva, pode-se sugerir que a construção de um assentamento rural
representa não apenas um fruto da luta pela terra, mas também uma semente
germinada na luta mais ampla pela Reforma Agrária no Brasil.
E a perspectiva utilizada neste trabalho é a de que a luta pela terra e a
construção dos assentamentos rurais, mesmo marcadas por uma série de
contradições, configuram-se, de modo mais amplo, como uma luta contra o
capital, à medida que representam a resistência organizada dos trabalhadores
rurais à expropriação e a exploração características do sistema econômico
implementado. De acordo com Martins, “já não há como separar o que o próprio
capitalismo unificou: a terra e o capital; já não há como fazer para que a luta pela
terra não seja uma luta contra o capital, contra a expropriação e a exploração que
estão na sua essência” (MARTINS, 1981, p.177).
Para finalizar este capítulo, apresentaremos, aqui, uma experiência que nos
chamou a atenção entre os assentamentos rurais da região do Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba, o caso do Assentamento Paulo Freire, no qual um grupo de
famílias, ligadas ao MST, têm buscado resistir à individualização na produção e
construir novas relações sociais e de trabalho no território conquistado, apesar das
contradições vividas inclusive internamente. São, ao nosso ver, ainda que em
caráter inicial, exemplos, ao mesmo tempo, de resistência e de possibilidades
abertas aos trabalhadores organizados.
229
O Assentamento Paulo Freire: contradições da luta e possibilidades de
resistência
O assentamento Paulo Freire, localizado no município de Santa Vitória, foi
conquistado em 1999, a partir de uma luta intensa de um grupo de trabalhadores
sem-terra da região do Pontal do Triângulo, coordenado pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST. Foi este processo de organização que
marcou a vinda do MST para a região em definitivo, fato que se deu em 1997.
Naquele ano, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Vitória iniciou
o trabalho de mobilização com algumas famílias das cidades de Iturama e São
Simão, com o apoio da APR e do Sind-eletro (Sindicato dos Eletricitários de
Uberlândia) – entidades historicamente apoiadoras da luta pela terra na região. Os
trabalhadores eram, em sua maioria, moradores das cidades, mas ainda com forte
ligação com o campo, trabalhando em fazendas da região como empregados
temporários, vivendo de “pegar serviços”. De acordo com as informações colhidas
com os assentados, o MLT (fundado em 1995, e atual MTL) ainda não tinha
nenhum trabalho nas áreas mais próximas. E o presidente do sindicato tinha sido
recém-assentado, o que serviu de grande incentivo para o povo. Assim, sob a
orientação do sindicato, 17 famílias ocuparam a Fazenda Santo Antônio, em
janeiro de 1997.
A partir da construção do acampamento, o movimento foi sendo
massificado. Neste processo, no entanto, as dificuldades de desapropriação da
área ocupada resultaram na ocupação de uma outra área vizinha, a Fazenda São
José, por uma parte dos sem-terra já acampados na Fazenda Santo Antônio, da
qual foram imediatamente despejados. O grupo despejado transferiu o
acampamento para uma faixa da BR 365, mas a organização dos dois grupos
permanecia unificada.
Frente às dificuldades de organização e de escolha das áreas a serem
ocupadas, a coordenação do acampamento reuniu-se com a APR e o Sind-eletro
e algumas lideranças do MST convidadas, por intermédio da APR, para contribuir
com a luta. Em abril de 1997, a marcha do MST passou pela região do Triângulo
230
Mineiro e fez várias ações de divulgação da luta, especialmente em Uberlândia,
estabelecendo vários contatos e concretizando o início dos seus trabalhos na
região, marcado pela organização desse grupo que hoje está assentado na Paulo
Freire2. Em julho, o grupo ocupou a Fazenda Jubran.
Aí o MST descobriu que a Jubran era improdutiva. As famílias da Santo Antônio
permaneceram lá com um resto de esperança, e as da BR ocuparam a Jubran... quase
200 famílias, foi o maior número que teve. Isso foi julho de 97. As famílias da Santo
Antônio já tavam vendo que ali não ía sair. Teve um despejo... e aí juntou tudo na Jubran
(assentada Paulo Freire).
A ocupação na Fazenda Jubran, já em seu início, foi marcada por
contradições internas à própria luta dos trabalhadores, uma vez que o grupo do
MST ocupou a área quase que simultaneamente com outro grupo, organizado
pelo sindicato de Iturama. Formaram-se dois acampamentos, palcos de conflitos
permanentes entre os movimentos. Algum tempo depois, o grupo coordenado pelo
sindicato acabou se retirando da área. Os sem-terra sofreram cinco despejos na
Jubran, marcados por intensa violência e repressão por parte tanto de policiais
quanto de jagunços. Foi um processo muito difícil, que culminou com a desistência
de muitas famílias. Além da marca da violência no processo, as dificuldades
peculiares aos acampamentos, em especial com relação à precariedade nas
condições alimentares, médicas e sanitárias, são fatores comumente apontados
para o alto número de desistências, gerando uma rotatividade significativa nos
acampamentos, o que pode ser um fator prejudicial ao desenvolvimento da
organicidade dos movimentos.
2
No decorrer dos anos de 1997 e 1998, além das ocupações a que estamos fazendo referência
(Fazendas Santo Antônio, Nossa Senhora das Graças e Jubran, em Santa Vitória), o MST da
região coordenou também as ocupações na Fazenda Colorado (Uberlândia), Fazenda Campo Belo
(Campina Verde), Fazenda Campo Belo Perobas (Campina Verde), Fazenda Cedro (Coromandel),
Fazenda Olhos D’Água (Sacramento), Fazenda Douradinho (Uberlândia) e Fazenda Chico Mendes
(Ituiutaba). “O MST nasceu da ocupação da terra e a reproduz nos processos de espacialização e
territorialização da luta pela terra. Em cada estado onde iniciou a sua organização o fato que
registrou o seu princípio foi a ocupação. Essa ação e sua reprodução materializam a existência do
movimento, iniciando a construção de sua forma de organização, dimensionando-a (FERNANDES,
2000, p.19).
231
Em fins de 1997, descobriu-se a área que hoje é o assentamento Paulo
Freire: a fazenda Nossa Senhora das Graças. Com o desgaste da luta na Jubran,
decidiram ocupá-la, agora com apenas cerca de 60 famílias apenas. Também aqui
foram despejados duas vezes, sendo que, no segundo despejo, o movimento já
contava com 115 famílias acampadas.
O primeiro despejo foi negociado, mas o segundo foi muito violento. Queimou barraco,
documentos, tudo... Despejou as pessoa lá em Cruz e Macaúbas, sem ninguém dizê que
queria ir pra lá. Foi um despejo marcante. Aí fomos pra BR e ficamo acampado lá. Dois
dias depois saiu o decreto de desapropriação. O proprietário ficou na área. Aí nós ocupo
uns quinze dias depois e o proprietário se retirou mas deixou as coisas dele na casa.
Quando venceu o prazo dele desocupar ele não tirou as coisas aí os sem-terra mesmo
fizeram o despejo – a gente colocamo os móveis dele na estrada, chamamo a imprensa
pra vê que ninguém não tava roubando nada, e ele buscou. Aí ficamos acampados até a
divisão dos lotes. Montamos os grupos por afinidade e fez o sorteio. E a sede e mais meio
alqueire ficou pra área coletiva da comunidade (assentado).
Em 1999, criou-se, efetivamente, o assentamento Paulo Freire. A fase de
acampamento,
certamente,
tem
um
papel
relevante
na
construção
do
assentamento. No seguinte relato de um assentado, podemos observar a
dimensão que alguns imputam a este processo:
O resultado de toda essa luta não é só a terra. O resultado está na lembrança que estas
famílias é aquele mesmo grupo de sem-terra que ocupou no simples objetivo de
conquistar um pedaço de terra, que hoje já o conquistou, mas não vão parar de lutar, pois
todos estes através da organização do MST adquiriram formação e consciência que os
trabalhadores devem estar sempre organizado para conseguir seus objetivos e lutar
contra qualquer injustiça (relato manuscrito, arquivo Associação MST – Assentamento
Paulo Freire).
Partimos, neste trabalho, da premissa de que a realidade vivida no
processo de luta pela terra – as dificuldades de sobrevivência, os conflitos internos
e externos, a necessidade de organização, de enfrentamento e de tomada de
232
decisões, as derrotas e vitórias, enfim, todos os caminhos que são percorridos e
as situações que são vividas pelas famílias envolvidas imputam determinadas
condições que tendem a ter uma grande interferência na forma como se dará a
continuidade da luta (ou não) a partir da conquista da terra. É claro que este não é
um processo claro, retilíneo, de fácil compreensão. Ao contrário, é repleto de
conflitos e contradições.
No caso do assentamento Paulo Freire, a conquista da terra marcou uma
ruptura já no momento de sua implantação. Algumas famílias preferiram
desvincular-se do MST, enquanto outras buscaram dar continuidade ao trabalho e
aos princípios do movimento, dividindo os recém-assentados numa mesma área
em duas associações:
No acampamento todos eram MST. Depois começou a resistência à organicidade do MST
por puro individualismo mesmo. Formaram duas associações, uma que queria continuar
seguindo os princípios do MST, inclusive de formação política. A gente sentiu muito com a
saída das famílias. Era todo mundo junto, aí acabou perdendo força por conta da divisão.
Eu acredito que é a cultura do povo: toda vida nossa antes não tem nada de conjunto.
Quando você ouve falar da luta de outros lugares parece que aqui é diferente. A vontade
de só pegar a terra tá acima de tudo. Falar “isso é meu” é muito forte aqui. Não tem nem
muita explicação depois que vive tanta coisa junto. Isso dói demais na gente. A nossa luta
é infinita, entende... não pode parar. Esse é o maior problema da região aqui (assentado).
Essa ruptura deixou marcas na organização e no estímulo à luta dos agora
assentados, o que é facilmente perceptível em suas falas. Mas, certamente, não é
uma peculiaridade do assentamento em questão. O rompimento dos sem-terra
com o movimento a que se vinculavam no momento da conquista da terra é
apontado, por praticamente todas as entidades e lideranças envolvidas, como
sendo um dos maiores problemas da organização da luta pela terra na região, que
se vê, em muitos casos, diluída a partir da implantação dos assentamentos.
Contrariamente, fato que podemos apontar como uma das formas de persistência
da resistência e da luta mais ampla dos sem-terra, e ainda não muito comum nas
áreas de assentamento da região, é a manutenção de um grupo vinculado ao
233
MST, ainda que minoritário, que busca implementar determinadas discussões e
ações alternativas em termos de produção e organização.
O assentamento Paulo Freire possui 40 famílias, das quais 13 estão ligadas
à associação que permanece vinculada ao MST. Alguns de seus membros,
inclusive, são componentes da coordenação regional ou estadual do movimento,
garantindo um contato mais direto entre a entidade e os assentados. A vinculação
ao movimento torna mais viável a participação em outros fóruns de discussão,
como cursos de formação política e outras ações políticas, como passeatas e atos
públicos. Aumenta as possibilidades, ainda, da continuidade da luta mais ampla
pela reforma agrária, à medida que alguns desses assentados continuam
contribuindo com os outros trabalhos do movimento, como na conquista de novas
áreas,
ou
mesmo
nos
embates
relacionados
ao
desenvolvimento
dos
assentamentos rurais. Estas questões puderam ser vistas, inclusive, no
assentamento estudado, onde as famílias ligadas ao movimento permanecem
“militantes da reforma agrária”, para além do assentamento, e em seu interior3. Até
porque partimos aqui da premissa de que as realidades vividas nos
assentamentos são partes integrantes e importantes da luta mais ampla pela
reforma agrária.
Estas 13 famílias têm buscado implementar formas de
cooperação entre si e desenvolver projetos coletivos de produção. Aqui reside,
ainda que em caráter de certa maneira experimental ou embrionário, uma fonte
importante de resistência e de busca de alternativas coletivas às dificuldades
impostas à agricultura familiar.
O principal produto comercializado no assentamento é o leite, sendo
produzido por todas as famílias. A mandioca ocupa o segundo lugar em produção,
muitas vezes utilizada na fabricação de polvilho, também com vistas à
comercialização. Naturalmente, a produção para o consumo interno está presente
em todas as glebas (hortas, pomares, criação de galinhas e porcos), contribuindo
3
Em muitos casos verificamos a existência de membros de movimentos que são assentados mas
que militam apenas em ambientes externos, à medida que não conseguem apoio interno para a
implementação dos projetos. Como exemplo do próprio MST, temos o Assentamento Zumbi dos
Palmares que, atualmente, desvinculou-se integralmente do movimento, mesmo tendo uma das
maiores lideranças estaduais do MST, que tem muitas dificuldades em desenvolver, internamente,
as discussões e as ações do movimento.
234
para a alimentação das famílias – fator importante para a qualidade de vida dos
assentados. O assentamento, como todos da região do Triângulo Mineiro/ Alto
Paranaíba, está dividido em lotes individuais. Não há área coletiva destinada à
produção. A divisão dos lotes foi feita por sorteio entre os grupos de afinidade, de
forma que as famílias de uma mesma associação estão, em boa parte,
relativamente próximas, ainda que haja uma pequena rotatividade entre os
associados – já que estes têm a possibilidade de mudarem de associação sempre
que assim quiserem.
O decreto de criação do projeto de assentamento Paulo Freire data de
1998, mas, devido à demora no parcelamento da área, o início efetivo dos
trabalhos já nos lotes, se deu apenas a partir de fins de 1999. Assim, o caráter
recente do assentamento constitui um dos fatores explicativos para o fato de os
projetos de produção coletivos estarem ainda em fase de consolidação. Acrescese, ainda, que este é um processo não muito comum na região, e muito menos
simples de ser concretizado. Demanda um grande esforço de aprendizado e
amadurecimento. Nas falas dos assentados e das lideranças da região, está
sempre presente o sentimento da falta de referências, ou seja, de assentamentos
próximos que constituam exemplos a serem seguidos de organização e produção.
Este, assim, é um processo que está em curso, e no início deste curso. Também,
por isso, a experiência do assentamento Paulo Freire nos chamou a atenção.
235
Foto 4.6 - Mutirão para construção de um galpão para armazenar o leite. Assentamento Paulo
Freire (Santa Vitória). Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.
Foto 4.7 - O mesmo galpão da foto 4.6, agora já construído e armazenando o leite produzido no
assentamento Paulo Freire (Santa Vitória). Autora: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.
236
Além das formas de cooperação mais comuns e cotidianas, como mutirões
de trabalho e trocas de serviço ou dia trabalhado, três projetos produtivos estão
em curso no assentamento Paulo Freire, envolvendo todos os membros da
associação estudada ou parte dela.
O primeiro a ser consolidado foi o da entrega coletiva do leite. As 13
famílias estão envolvidas neste sistema. O trabalho é individual, mas a associação
garantiu a compra de um tanque de expansão (resfriador de leite), utilizado por
todos os associados. O leite é comercializado coletivamente (atualmente está
sendo vendido para o Laticínio Catupiry), o que resulta em melhores preços. Além
disso, cinco destas famílias financiaram a compra de uma caminhonete, com
vistas a facilitar e baratear o transporte do leite.
Outro projeto consiste na criação de porcos de raça, com sete famílias
envolvidas. A estrutura foi financiada pela prefeitura, e o restante do investimento
foi todo feito pelos associados. No primeiro ano do trabalho, o grupo contraiu
dívidas com a criação dos porcos, que puderam ser pagas através de um outro
projeto de microcrédito, mediado pela APR, possibilitando a sua continuidade.
Foto 4.8 – Criação coletiva de porcos de raça, Assentamento Paulo Freire (Santa Vitória).
Autora: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.
237
Foto 4.9 – Criação coletiva de porcos de raça, Assentamento Paulo Freire (Santa Vitória).
Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.
Atualmente, 11 destas famílias estão iniciando um projeto de apicultura,
também integralmente coletivo. O projeto é apoiado pelo Programa de Segurança
Alimentar, coordenado pela Cáritas. Serão 100 caixas de abelhas.
É muito difícil, muito difícil mesmo... mas a gente quer muito que dá certo. O que segura a
gente é isso aí... que a gente acredita que no coletivo que tem que dar certo. Que assim
que a gente tá resistindo, que assim que a gente pode um dia melhorar. É isso que leva a
gente pra frente, porque é muito difícil... (assentado).
A persistência das famílias da associação MST, do assentamento Paulo
Freire, já há quatro anos formada, nos é apresentada como uma forma de
resistência às dificuldades e de busca pela construção de novas possibilidades
para
a
produção
nos
assentamentos.
A
experiência,
para
além
das
potencialidades econômicas, traduz-se também em potencialidades políticas e
238
sociais, à medida que representa novas formas de organização, de trabalho e de
vivência num território conquistado e construído a partir e no interior da luta.
Finalizando este capítulo, expomos um documento escrito pelo próprio
grupo de assentados ligados ao MST, em 2003, encontrado nos arquivos da
associação, que resume, em suas palavras, a sua história:
Santa Vitória, cidade esta pequena situada no Pontal do Triângulo Mineiro, berço dos
latifundiários, onde é predominante a exploração de trabalhadores rurais:
Os assentados do Assentamento Paulo Freire é apenas mais um grupo de
trabalhadores revoltados com as injustiças sociais impostas pela classe dominante. Esses
trabalhadores resolveram se organizar e lutar pelo direito de viver com dignidade.
Foram quase três anos de sofrimento constante, nesse período sem destino,
fomos vítimas de violência física e moral, aconteceram fatos que chocaram o Brasil, como
a tentativa de assassinato do Frei Rodrigo, Marcelo Rezende e outros que posicionaram
ao nosso lado.
Só em 1999 depois de passar por conflito em várias áreas é que conquistamos o
decreto de desapropriação na Fazenda Nossa Senhora das Graças, hoje assentamento
Paulo Freire.
O
assentamento
foi
realizado
para
43
famílias
que
ao
discutirmos
democraticamente as diferentes formas de organização interna, optamos em legitimar
duas associações.
Este projeto é da associação MST do assentamento Paulo Freire, constituída por
13 associados, um número pequeno mas que prova na prática a unicidade do grupo.
A nossa terra é bastante fraca, é um desafio garantir a sobrevivência nela, mas
vamos provar com exemplos que o companheirismo ultrapassa barreiras.
O objetivo do grupo é diversificar o número de produção e trabalhar coletivamente,
e nessa caminhada já foi dada a largada.
Com nossos poucos recursos, mas de forma coletiva já realizamos uma
suinocultura e adquirimos um transporte para transportar o leite e retornar com soro
reduzindo os gastos da suinocultura.
Por último estamos nos desafiando a implantar o projeto de apicultura, o qual
esperamos ser contemplados com o recurso do projeto.
239
O nosso histórico é um pouco extenso, mas vamos resumir nessas poucas linhas
deixando claro que a terra nunca é fraca quando nela se deseja produzir (arquivo
Associação MST – P.A. Paulo Freire).
240
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento contraditório, desigual e excludente do capitalismo
reflete-se no caráter persistente da dura realidade do campo, que requer uma
urgência em termos da sua transformação. Historicamente, o Brasil é marcado por
um processo de exclusão do homem do campo, que se traduz na exploração
intensiva do seu trabalho e na concentração de terras. Este processo, no entanto,
não se dá sem resistências; ao contrário, vem carregado de lutas. Lutas de
escravos, de índios, de posseiros, de sem-terra. Lutas de quem busca, ao longo
da história, construir um ideário e uma prática que enfrentem a lógica do capital e
transformem essa realidade.
Da mesma forma que o modelo econômico implementado ganha novos
contornos, a partir, sobretudo, da década de 1980, tendo em vista as novas
situações delineadas pela mundialização do capital e pela hegemonia neoliberal,
com a inserção definitiva de uma parte da agricultura no esquema “modernizado”
da revolução verde, as organizações camponesas se fortaleceram sobremaneira
com uma organização mais autônoma e articulada, empreendida por diversos
movimentos, na luta pela reforma agrária, sobretudo pelo MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra).
A ocupação de terras configura hoje a principal e mais eficaz forma de luta
dos movimentos sociais rurais, traduzindo-se na conquista de assentamentos
rurais de trabalhadores sem-terra por todo o país, fato que vem promovendo
novos contornos à luta e ao debate acerca da reforma agrária. No limite, a
participação em movimentos sociais organizados, a conquista da terra e a
construção dos assentamentos rurais refletem a luta pela inclusão social, política e
econômica de uma ampla parcela da sociedade brasileira, historicamente marcada
pela exclusão. Considerando que o modo de produção capitalista constitui,
necessariamente, um modelo excludente, a luta contra a exclusão já traz em si um
caráter anticapitalista, ainda que, por vezes, embrionário.
A região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, na qual centramos nossa
análise neste trabalho, é bem ilustrativa de todo este processo. A partir da década
de 1970, o seu cenário econômico foi radicalmente transformado, frente à
incorporação das áreas de cerrado, até então predominantemente utilizadas como
pastagens naturais, ao processo produtivo capitalista, com acentuada intervenção
estatal. Formaram-se aqui alguns dos maiores empreendimentos agroindustriais
do país, além de grandes produções vinculadas ao reflorestamento, à pecuária, à
soja e ao café, entre outras. Priorizou-se, assim, a economia agroexportadora e o
atendimento aos interesses do capital mercantil e monopolista. A chamada
modernização conservadora da agricultura, dessa forma, como em todo o território
nacional, veio acompanhada do acirramento das contradições inerentes ao
movimento constante de auto-expansão e reprodução do capital.
Esse processo fez-se acompanhado da desterritorialização do camponês,
ou seja, da exclusão/ expropriação de uma parcela da população rural, além da
exploração violenta dos recursos naturais, típica da produção destrutiva do capital,
bem como do aprofundamento das formas de exploração do trabalho. O processo
de modernização trouxe, assim, fortes impactos no mundo do trabalho rural, em
especial pela destruição massiva de formas tradicionais de produção, como os
arrendamentos para agricultores (com a transformação de áreas do cerrado em
pastagens) e a parceria, com um conseqüente aumento do desemprego e do
êxodo rural. No entanto, consideramos que é dentro do processo de
territorialização do capital que é gestado o movimento contraditório. Ou seja, a
própria lógica capitalista de apropriação privada da terra, contraditoriamente,
engendra a luta do campesinato pela conquista do território para a sua
reprodução.
Os trabalhadores rurais da região fizeram, assim, avançar as suas
organizações, e hoje esta é uma das mais conflituosas do país. Buscamos refletir,
neste trabalho, justamente sobre este avanço da luta pela terra no Triângulo
Mineiro/ Alto Paranaíba.
A força da sindicalização rural, em meio a sua diversidade de opções e
posicionamentos políticos, faz com que mais da metade dos acampamentos e
242
assentamentos da região seja fruto de sua organização, a partir dos sindicatos
locais de trabalhadores rurais mais atuantes, especialmente nas cidades menores.
Por outro lado, é notável o aumento do número de movimentos sociais
organizados de luta pela terra, especialmente pelas atuações do MST e do MTL, o
que reflete transformações nas perspectivas de luta travadas pelas organizações
rurais, que sinalizam a intensificação das pressões diretas, da mobilização
massiva e da busca efetiva pela autonomia das organizações, em detrimento de
uma atuação burocratizada, assistencialista e atrelada ao Estado.
A atuação da Igreja também se mostra de singular relevância, estando na
base da organização de várias organizações de trabalhadores rurais, através de
seu trabalho de formação e assessoria, que combina as dimensões políticas e
religiosas da luta pela terra.
Ressaltamos, ainda, uma característica peculiar à região estudada: a
intensa e histórica violência empreendida pelos latifundiários locais em repressão
às organizações dos trabalhadores rurais, que assume a forma das milícias
armadas, e promove, em alguns casos, conflitos altamente violentos – física e
moralmente.
De qualquer forma, com o avanço das organizações dos trabalhadores
rurais, a ocupação de grandes propriedades improdutivas consolidou-se como a
principal ação de luta pela terra. E os acampamentos, montados a partir destas
ocupações, tornam-se referências de luta e organização na formação e
espacialização dos movimentos sociais de luta pela terra, à medida que
promovem ocupações, desenvolvem ações e constroem territórios de resistência à
expropriação e à exploração dos trabalhadores rurais. Ilustram essa situação os
dois acampamentos aqui estudados – Emiliano Zapata e Tangará – que se
transformaram em importantes referências regionais de luta, fontes de outras
novas ações, exemplos de persistência, impulsionadores da luta mais ampla pela
reforma agrária. A realidade dos acampamentos expressa processos permanentes
de aprendizado para as famílias envolvidas, através das constantes ações e
reflexões vivenciadas. As lutas constituem-se em exemplos concretos de
resistência à exploração e à expropriação do trabalhador rural. A busca por formas
243
alternativas de organização aponta para a construção, ainda que em caráter inicial
e muito repleta de contradições, de relações mais democráticas, fundamentadas
na participação direta. Os acampamentos apontam ainda, e essencialmente, para
a construção de novos territórios, à medida que conquistam a terra e transformam
as relações vivenciadas nas áreas em conflito.
Dessa forma, os assentamentos rurais são aqui compreendidos como
territórios conquistados pelas organizações dos trabalhadores rurais, e (re)
construídos pelos assentados, num processo que representa, para além da
possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais e de trabalho, um (re)
dimensionamento da luta pela transformação da realidade do campo.
As transformações vinculadas à conquista dos assentamentos rurais trazem
impactos não somente em nível local. A ação permanente de diversas entidades
como o MST, a Igreja, sindicatos, imprensa, ONG’s, entre outras, faz com que
determinadas ações não se esgotem no assentamento e nas relações locais, mas
se potencialize, envolvendo interesses e situações de forma muito mais global que
sob a ótica de sua singularidade. É a presença de mediações que atuam numa
rede de relações que permite a potencialização das possibilidades de atuação
política
dos
atores
envolvidos
em
processos
de
assentamentos
e,
conseqüentemente, da luta mais ampla pela reforma agrária no Brasil.
E a perspectiva utilizada neste trabalho é a de que a luta pela terra e a
construção dos assentamentos rurais, mesmo marcadas por uma série de
contradições, configura-se, de modo mais amplo, como uma luta contra o capital,
à medida que representam a resistência organizada dos trabalhadores rurais à
expropriação e a exploração características do sistema econômico implementado.
Esses processos, no entanto, não estão isentos de contradições. A região
estudada também é marcada por uma intensa fragmentação das lutas pela terra,
com “rachas” e divisões freqüentes, e conseqüentes dificuldades na unificação das
lutas. Tais processos, indicadores das contradições da espacialização da luta pela
terra, resultam num enfraquecimento das lutas, o que, no entanto, não significa
inviabilização das mesmas, haja vista o aumento constante da organização e da
mobilização dos trabalhadores rurais na região.
244
Outra dificuldade apontada está na garantia da organicidade das famílias
assentadas, ou seja, na vinculação destas aos movimentos que coordenaram o
processo de luta pela terra, o que nos remete à importância premente do trabalho
de base. Encontra-se, aqui, uma das razões para a dificuldade em se implantar os
projetos coletivos de produção defendidos pelos movimentos, e em garantir a
permanência de algumas famílias nas lutas cotidianas pela reforma agrária.
Como nos mostra a canção de um dos poetas do MST1:
Quando chegar na terra,
Lembre-se de quem quer chegar.
Quando chegar na terra,
Lembre-se que tem outros passos a dar.
Quando chegar na terra,
Não está completa a sua liberdade.
Este é o primeiro passo
Que damos na busca de outra sociedade.
Só a terra não liberta.
Este é o alerta da necessidade:
aumentar a produção
para alimentação
do campo e da cidade.
Essas tensões tendem a se multiplicar frente às dificuldades de
sobrevivência nos assentamentos. Casos de venda de lotes, de arrendamento
para usinas de cana, e de retorno à condição de empregados temporários ou
permanentes de propriedades vizinhas refletem as contradições de quem luta
contra a expropriação ou a exploração e, após a conquista da terra, retornam a
esta realidade.
Certamente, esta situação é fruto da ausência de uma efetiva política de
reforma agrária, que envolva, além do assentamento de milhares de famílias semterra do país e a conseqüente redistribuição fundiária, o apoio técnico, financeiro e
estrutural necessários.
De qualquer forma, os assentamentos rurais configuram-se como territórios
socialmente conquistados e construídos, que constituem dimensão fundamental
1
FONTE: MORISSAWA, 2001.
245
do processo mais geral de organização camponesa e que representam, hoje, a
marca da luta pela terra no Brasil.
O crescimento do número de acampamentos e assentamentos na região é
aqui assumido como uma nova tendência da agricultura familiar no cerrado
mineiro, cujas características nos permitem afirmar a territorialização do
campesinato – a sua reconstrução ou mesmo a sua formação.
Finalizando este trabalho, gostaríamos de reafirmar aqui que as mais de
quatro mil famílias acampadas no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba retratam a
necessidade urgente de transformações sociais, bem como a disposição destas
em lutar por esta transformação.
246
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(org.). A questão agrária hoje. Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRRS, 1994.
OUTRAS FONTES:
Jornais/ Revistas:
Folha de São Paulo
Hoje em Dia
Estado de Minas
O Triângulo
O Tempo
Caros Amigos
Jornal do MST
Institutos:
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Minas Gerais
Instituto de Terras de Minas Gerais
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
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