Direito - Ajuris - Escola Superior da Magistratura

Transcrição

Direito - Ajuris - Escola Superior da Magistratura
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Artigos
A Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo Paradigma
José Blanes Sala ......................................................................................................................................................
5
Mídia e Direito
Estela Cristina Bonjardim .....................................................................................................................................
12
A Universidade, o Estudo do Direito e a Nova Realidade
Carlos João Eduardo Senger ..................................................................................................................................
39
A Incômoda Solução Chamada Ação Afirmativa
Sandro César Sell ...................................................................................................................................................
53
Atos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle
e Dana-Echlin
Antonio Celso Baeta Minhoto ................................................................................................................................
65
Papel do Ensino Jurídico no Futuro da Advocacia
Luiz Flávio Borges D’Urso ......................................................................................................................................
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
82
3
D ireito
A r t i g o
D ireito
Expediente
Revista IMES Direito – Uma publicação do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul
Ano III – n. 6
janeiro/junho 2003
Fechamento desta edição:
Produção
Pró-Reitoria Comunitária e de Extensão
Coordenadoria de Comunicação
Maio/2004
Diretor da Mantenedora
Coordenador Editorial
José Maria Trepat Cases
Marco Antonio Santos Silva
Vice-Diretor da Mantenedora
Marcos Sidnei Bassi
Reitor
Laércio Baptista da Silva
Pró-Reitor de Graduação
Carlos Alberto Macedo
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
René Henrique Licht
Pró-Reitor Comunitário e de Extensão
Joaquim Celso Freire Silva
4
Conselho Editorial
Álvaro Villaça Azevedo
Armador Paes de Almeida
Cândido Rangel Dinamarco
Francisco Léo Munari
Giselda Maria Novaes Hironaka
Nelson Mannrich
Rui Geraldo Camargo Viana
Teresa Ancona Lopes
Vicente Grecco Filho
Conselho Técnico
Professores do Curso de Direito
Coordenador do Curso de Direito
José Maria Trepat Cases
Jornalista Responsável
Roberto Elísio dos Santos
MTb 15637
Produção Editorial
Rosemeire Carlos Pinto
Diagramação e Revisão
Know-How Editorial
Impressão
HM Indústria Gráfica e Editora Ltda.
Tiragem: 500 exemplares
Revista IMES Direito
Av. Goiás, 3.400
São Caetano do Sul - SP - Brasil
Tel.: (11) 4239-3259
Fax: (11) 4239-3216
E-mail: [email protected]
O IMES, em suas revistas, respeita a liberdade
intelectual dos autores, publica integralmente os originais que lhe são entregues, sem
com isso concordar necessariamente com as
opiniões expressas.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
A PROTEÇÃO AMBIENTAL, A PROPRIEDADE
PRIVADA E UM NOVO PARADIGMA
José Blanes Sala
Mestre e Doutor em Direito Internacional pela USP.
Professor de Direito Internacional no Imes e na Universidade São Judas Tadeu.
R E S U M O
ABSTRACT
O Direito Ambiental supõe uma reformulação
global e radical do sistema jurídico moderno e,
conseqüentemente, também dos seus conceitos
centrais, sobretudo no que tange ao conceito de
propriedade privada. Neste artigo, expõe-se de
forma rápida e sintética a opinião de diversos
autores que escreveram no final da década de 1990
propondo um novo paradigma para o mundo do
Direito. Alertam todos eles para a necessidade de
uma redefinição da idéia de liberdade que contenha
um duplo limite: o social e o ambiental.
The enviromental law assumes a global and radical
reformulization of a modern legal system and,
consequently, also of its central concepts, over all,
the way it refers to the concept of private property.
In this article, the opinion of differents authors, who
wrote about this theme at the end of the 90´s, is
exposed of an agile and synthetic way, considering
a new paradigm for the world of the law. They
alert for the necessity of a redefinition of the freedom
idea that contains a double limit: the social and the
enveroimental one.
1
UM NOVO PATAMAR
DE COMPLEXIDADE
“A pesquisa científica sobre as inter-relações entre sociedade e meio ambiente encontra-se
em rápida evolução em todo o mundo” – é assim
que Freire Vieira1 inaugura o seu estudo sobre
as ciências sociais no Brasil e a problemática
ambiental durante a década de 1980. “A interdependência dos diversos fatores envolvidos
cria um novo patamar de complexidade, que
coloca em cheque as esferas de competência
tradicionalmente associadas a disciplinas
1
científicas isoladas”, diz ele. Efetivamente, esse
novo patamar de complexidade vai exigir da
ciência jurídica um esforço inusitado para
adequar-se à nova realidade ambiental, do qual
são testemunhas diversos autores que escrevem
no final da década de 1990 propondo um novo
paradigma para o mundo do Direito. Ao longo
deste trabalho os iremos citando, junto com as
suas abordagens novidosas e, às vezes, não
isentas de polêmica.
Freire Vieira, em seu trabalho, apresenta-nos
um apanhado das contribuições associadas ao
campo da sociologia, alertando para o desafio
FREIRE VIEIRA, Paulo et al. A problemática ambiental e as ciências sociais no Brasil. Dilemas sócio-ambientais e
desenvolvimento sustentável, p. 103 e ss.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
5
D ireito
de que este tipo de pesquisa “... parece consistir
na adoção de uma diretriz preventiva, capaz de
balizar a concepção e a implementação de
estratégias que compatibilizem os objetivos simultaneamente socioeconômicos, culturais,
político-institucionais e ambientais da dinâmica
de evolução das sociedades modernas”. A resposta para as mudanças na concepção jurídica
não tardaria em concretizar-se com a preconização de um novo modelo teórico do Direito,
mais acorde com a realidade ambiental e que
fosse capaz de estruturar-se de forma mais orgânica, adaptando-se ao caleidoscópio socioeconômico, cultural e político. Trata-se de um
modelo, até certo ponto, de produções inesperadas e de recentíssima gestação. Precisamente
por esse fato, ainda disforme e primigênio, quer
dizer, hesitante e um tanto contraditório.
Não é, pois, uma nova temática do Direito,
como vinha sendo considerado de início, dada a
sua focalização exclusivamente técnica. Também
não se prende apenas ao fator econômico desenvolvimento, como se pretendeu mais recentemente... Vai exigir a demolição de uma série de
conceitos jurídicos anteriores que, na verdade,
se apóiam em estruturas filosóficas e de visão de
mundo. Assim o querem demonstrar alguns
autores recentes que passaremos a analisar a
seguir, acompanhando os principais tópicos de
suas afirmações.
2
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE
“... em que medida é possível a conciliação entre o
desenvolvimento econômico e a proteção ao meio
ambiente, e mais: até que ponto prevalece o interesse
da proteção ambiental ou o interesse do
desenvolvimento econômico? A pergunta é
2
6
A r t i g o
relevante, na medida em que as imensas legiões de
miseráveis do terceiro mundo dificilmente percebem
que as suas condições de vida são o produto e
conseqüência de uma determinada forma de
desenvolvimento econômico, que produz como
resultado previsível a pauperização e marginalização
da imensa maioria da população no mundo.”2
É assim que Bessa Antunes, um dos nossos
juristas mais conhecidos nesta área, introduz a
nova visão do desenvolvimento sustentável, concepção que tem em vista a tentativa de conciliar
a preservação dos recursos ambientais e o desenvolvimento econômico. Pretende-se que,
sem o esgotamento desnecessário dos recursos
ambientais, haja a possibilidade de garantir uma
condição de vida mais digna e humana para milhões e milhões de pessoas, cujas atuais condições de vida são absolutamente inaceitáveis. Na
verdade, como ele próprio afirma, esta nova visão procura colocar o Direito Ambiental no contexto do Direito Econômico. E a efetivação do
princípio de proteção ao meio ambiente como
princípio econômico implica, obrigatoriamente, a mudança de todo o padrão de acumulação
de capital, a mudança do padrão e do conceito
de desenvolvimento econômico. O fator econômico deve ser encarado como desenvolvimento e não como crescimento. O desenvolvimento se distingue do crescimento na medida em que pressupõe uma harmonia entre os
diferentes elementos constitutivos. Já o crescimento tem o significado da preponderância e
prioridade da acumulação de capital sobre os
demais componentes envolvidos no processo.
O reconhecimento da natureza econômica
das normas de Direito Ambiental vai trazer consigo uma inegável e rápida repercussão na con-
BESSA ANTUNES, Paulo. Direito ambiental, p. 15 e ss.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
ceituação do Direito de Propriedade. Os bens
ambientais – estejam submetidos ao domínio
público ou privado – são considerados de interesse comum. Então a função social da propriedade passa a ter como um de seus condicionantes o respeito aos valores ambientais. Quer
dizer que a propriedade não utilizada de maneira ambientalmente sadia não cumpre a sua
função social.
Neste sentido, cumpre citar a lição de Gomes
Canotilho, ao comentar a jurisprudência ambiental portuguesa, e relacionar a proteção ao
meio ambiente e ao direito de propriedade:
“Neste final de milênio parece indiscutível que
as exigências de proteção ao ambiente natural
ou construído (proteção da natureza, proteção ao patrimônio cultural), vêm colocar (ou
recolocar) dois problemas de particular importância: (1) o das relações recíprocas entre a
garantia institucional da propriedade e do direito fundamental da propriedade, por um lado, e o da proteção do ambiente, por outro;
(2) o da conformação jurídica destas relações
pelo legislador e pelos tribunais.
A primeira idéia a realçar é a do reforço da vinculação social da propriedade por motivos ecológicos. Esta tendência desenha-se com nitidez a
partir dos finais dos anos sessenta. A intensificação
dos vínculos incidentes sobre a propriedade
obriga, porém, a novos esforços dogmáticos no
sentido de saber em que casos deve o proprietário
suportar ‘medidas autorizativas de compressão
ecológica’ sem qualquer direito a ‘compensações
patrimoniais’. É neste contexto que se situa a
recente fórmula da juspublicística alemã:
‘determinação do conteúdo da propriedade com
o correspondente dever de indenização’”.3
3
3
DA PROPRIEDADE PRIVADA
AO USUFRUTO ECOLÓGICO
Na verdade, hoje, com relação ao conceito
de propriedade e outros conceitos básicos do
Direito, como a liberdade ou a igualdade, o já
reconhecido Direito Ambiental coloca-se de
duas forma básicas: a primeira considera que
os problemas suscitados ao sistema jurídico
pelas demandas emergentes da crise ecológica
são de índole estritamente técnica. E estas demandas são resolúveis mediante a extensão –
com alguns retoques – dos conceitos e instrumentos do sistema jurídico ao novo objeto: o
meio ambiente. Por este ponto de vista, ele apenas conteria a novidade de um objeto de regulamentação inédito. Na segunda forma, que
Garrido Peña desenvolve em interessante trabalho, o Direito Ambiental supõe uma reformulação global e radical do sistema jurídico moderno e, conseqüentemente, também dos seus
conceitos centrais. A novidade consistiria não
apenas no objeto, como também no sujeito e
nos instrumentos de intervenção jurídica.
O citado autor deixa claro, de início, que
para ele os principais valores que o sistema
jurídico oferece atualmente são a liberdade e a
propriedade.
“De esta caracterización inicial de la teoria
jurídica del valor moderno se desprenden dos
construcciones/representaciones de la libertad
que tienen una grave incidencia en la oposición
entre la ontología jurídica y el paradigma ecológico: por un lado está la representación ilimitada e incondicionada de la libertad (infinita y absoluta), y en segundo lugar, la representación subjetivista de la misma (la libertad
GOMES CANOTILHO, J. J. Proteção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental, p. 96.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
7
D ireito
como obra del sujeto). Estas dos representaciones e la libertad son congruentes con la absolutización de la propiedad como la forma jurídica que hace posible la producción infinita del
sujeto ilimitadamente libre. Esta libertad ilimitada y subjetiva legitima la desigualdad radical que supone la propiedad privada. Los
efectos ambientales y sociales de sistemas legitimados sobre concepciones individualistas e
incondicionados de la libertad son ya del todo
conocidos.”4
Para Garrido Peña, então,
“la misma fuerza que realiza la explotación social es la que ejecuta el programa de expolio y
depredación del medio natural. Fuera del sujeto propietario solo hay materia inerte, lista
para ser dominada y mercantilizada.”
Portanto, citando Ferrajoli, lembra que
“cuando una libertad individual transgride el
consenso constituyente sobre esta regla de oro
de la igualdad de libertades usurpando la libertad del otro, entonces no estamos ante un
ejercicio de libertad sino de poder.5 A este límite le llamaremos el límite social de la libertad
individual”.
Assim, esclarece que, do mesmo modo que
o sujeito individual não deve ser ilimitadamente
livre ou proprietário, o sujeito generacional
também não pode dispor de liberdades que
anulem as liberdades e a vida das gerações vin-
4
5
8
A r t i g o
douras. “Por tanto, en unos casos el límite al
ejercicio de la libertad es social y en otros es
ambiental.” Daí a necessidade de uma redefinição da liberdade, que contenha um duplo
limite: o social e o ambiental. Esta redefinição
nos acompanha até uma ética e uma ontologia
da finitude na qual a individualidade se representa como autonomia.
Para Garrido Peña,
“la propiedad privada es una institución que está
intimamente vinculada con el concepto del sujeto
moderno y la representación de la libertad como
ilimitada, característica también de la modernidad. Aquello que se tiene en propiedad se
puede gozar y usar sin límites, sin más límites que
la voluntad del propietario. Las libertades de los
otros y los recursos naturales se ven amenazados
por una institución que hace de cada propietario
un soberano y un déspota. Es necesario pues
limitar esta institución hasta la línea en que ponga
en peligro las libertades de los otros o las condiciones ecológicas de reproducción de la vida”.
Este autor considera que os recursos naturais não devem, em uma perspectiva ecológica,
ser considerados coisas, mas entidades vivas com
as quais se interage. É preciso ir além dos direitos
reais a fim de procurar formas que reflitam essa
limitação e provisionalidade da relação sustentável de possessão dos recursos naturais.
Por isso, propõe,
“existen en nuestra tradición jurídica figuras e
institutos mas cercanos al modelo de libertad
(finita y ecológica) que el que representa la pro-
GARRIDO PEÑA, Francisco. De como la ecología política redefine conceptos centrales de la ontología jurídica tradicional:
libertad y propiedad. O novo em direito ambiental, p. 213 e ss.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal, p. 908.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
individual, como os tradicionais, nem um direito social, correspondente à segunda geração
do direito. Essa evolução para a terceira geração dos direitos traz problemas para a estrutura da teoria jurídica. É um direito difuso,
difícil de limitar. Ao contrário dos direitos liberais, que são uma garantia do indivíduo
diante do poder do Estado, e ao contrário também dos direitos sociais, que consistem basicamente em prestações que o Estado deve ao indivíduo, o direito difuso ao meio ambiente
consiste num direito-dever, na medida em que
a pessoa, ao mesmo tempo em que é titular do
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, também tem a obrigação de defendê-lo
e preservá-lo (...) é um direito ‘erga omnes’ em
duas direções. Primeiro porque todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não existe um ‘status’ que atribua a titulariedade desse direito. Segundo porque as
obrigações que se referem àquela expectativa
são de todos; e aqui falamos todos no sentido
de que não é apenas ao Estado que cabe velar
pelo meio ambiente, mas todas as pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas, têm o dever de preservar um meio ambiente adequado
para a sadia qualidade de vida das presentes e
futuras gerações”.6
piedad privada. Una mezcla entre dos figuras
venerables: el usufructo y el fideicomiso. De
estas figuras surge un modelo de propiedad disminuido y limitado. Se trataria de una especie
de usufructo fideicomisario”.
A proposta deste autor consistiria em um
usufruto ecológico, realizando-se sobre uma
dupla limitação ambiental: a limitação física (a
finitude dos recursos naturais) e a limitação generacional. Do sucesso da limitação ética, política e jurídica (generacional) depende que
possa evitar-se o limite físico. Nesse sentido, o
usufruto ecológico deve entender-se mais como
uma função garantista dos direitos generacionais e da vida (biodireito) do sujeito difuso biosfera (o qual supõe os direitos individuais de
todos os membros em potência da espécie) do
que como um instituto novo ou reformado dos
já existentes. Uma função intermediária entre
os direitos reais modernos e os direitos difusos
e biocêntricos do futuro.
4
OS DIREITOS HUMANOS
DE TERCEIRA GERAÇÃO
As considerações sobre a propriedade nos
levam como que pela mão aos direitos difusos.
A defesa dos interesses difusos, não estando
baseada em critérios de dominialidade, entre
sujeito ativo e objeto jurídico tutelado, dispensa
uma relação prévia de direito material.
Como explica com pertinência Cardoso
Borges,
“o direito ao meio ambiente traz dificuldades
para a teoria jurídica porque não é um direito
6
5
A CRÍTICA AO ANTROPOCENTRISMO
E UM NOVO PARADIGMA
PARA A TEORIA JURÍDICA
A citada autora também afirma com Garrido
Peña que não basta que se crie um novo ramo
do Direito, autônomo, com princípios e instrumentos próprios, como é o Direito Ambiental,
porque a disciplina vai continuar imersa em um
CARDOSO BRASILEIRO BORGES, Roxana. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX. O novo em
direito ambiental, p. 20 e ss.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
9
D ireito
sistema jurídico inadequado para o novo milênio, pois sua estrutura e muitos dos seus institutos ainda lembram o século XIX. As circunstâncias atuais requerem um Direito muito diferente do Direito daquela época, principalmente no que tange à economia, ou aos interesses
individuais, grande objeto de proteção no
passado. Como diz Benjamin: “se a dimensão
ambiental não for suficientemente incorporada
no sistema jurídico como um todo, o Direito
Ambiental e as normas ambientais dificilmente
serão aplicados”.7 Neste sentido é de se destacar
o esforço realizado com a recentíssima edição
do novo Código Civil brasileiro, o qual estabelece que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido
em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição
do ar e das águas”,8 bem como a criação do Estatuto da Cidade em busca de regras municipais
de gerenciamento do território, tendo em vista
o desenvolvimento regular da urbe em atenção
ao meio ambiente artificial.9 No entanto, trata-se
de esforços isolados, inseridos de forma ainda
deficiente dentro do sistema jurídico.
O fato é que se tem um Direito que é ambiental e todo um sistema jurídico não ambiental. Então, a recepção dessa dimensão ambiental
pelo sistema jurídico pode representar o novo
paradigma para a teoria jurídica.
Assim o aponta Cardoso Borges:
7
8
9
10
A r t i g o
“sem dúvida, a ciência moderna, principalmente as naturais, sofre esta mudança paradigmática do pensamento positivista, cartesiano, mecanicista, para um pensamento holista, orgânico. Também as ciências humanas, e aí o direito, questionam a onipresença da ética antropocêntrica, que tem o homem como centro de
todas as coisas, mas convergindo para uma
complexidade mais ampla, fruto da colaboração de várias vertentes”.
E assim também o reconhece Bessa Antunes,
alertando, contudo, para o perigo de eventuais
exageros:
“A questão que se coloca é a de não confundir a
superação do antropocentrismo com uma modalidade de irracionalismo, muito em voga
atualmente, que, colocando em pé de igualdade o Homem e os demais seres vivos, de fato,
rebaixa o valor da vida humana e transforma-a
em algo sem valor em si próprio, em perigoso
movimento de relativização de valores. O que
o Direito Ambiental busca é o reconhecimento
do Ser Humano como parte integrante da Natureza. Reconhece também, como é evidente,
que a ação do Homem é, fundamentalmente,
modificadora da Natureza, culturizando-a. Entretanto, o Direito Ambiental afirma a negação
das concepções passadas, pelas quais, ao Ser
Humano, competia subjugar a Natureza. Não.
O Direito Ambiental estabelece a normatividade da harmonização entre todos os componentes do mundo natural culturizado, no
qual, a todas luzes, o Ser Humano desempenha
o papel essencial”.
BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América
Latina, p. 104.
Artigo 1.228, § 1º da Lei n. 10.406/02.
Lei n. 10.257/01.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio
ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da
América Latina. Revista de Direito Ambiental. São Paulo:
RT, 1995 – volume 0 – outubro a dezembro.
BESSA ANTUNES, Paulo. Direito ambiental. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 1999.
FREIRE VIEIRA, Paulo et al. A problemática ambiental e as
ciências sociais no Brasil. Dilemas sócio-ambientais e
desenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp, 1993.
GARRIDO PEÑA, Francisco. De como la ecología política
redefine conceptos centrales de la ontología jurídica tradicional: libertad y propiedad. O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
CARDOSO BRASILEIRO BORGES, Roxana. Direito
ambiental e teoria jurídica no final do século XX. O
novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey,
1998.
GOMES CANOTILHO, J. J. Proteção do ambiente e
direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental.
Coimbra: Coimbra Ed., 1995.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo
penal. Barcelona: Trotta, 1995.
PEÑA FREIRE, Antonio. La garantía en el Estado constitucional de Derecho. Barcelona: Trotta, 1997.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
11
imes
r e v i s t a
A r t i g o
ATOS DE CONCENTRAÇÃO
NO SEGMENTO DE AUTOPEÇAS:
CASOS COFAP-MAGNETTI-MARELI-MAHLE
E DANA-ECHLIN
Antonio Celso Baeta Minhoto
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Professor do IMES de Teoria Geral do Direito Público.
Advogado atuante em São Paulo.
R E S U M O
ABSTRACT
Análise de dois casos de concentração mercadológica, em que os supostos ganhos econômicos advindos do ato de concentração foram relativizados
pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica –
Cade, atraindo indagações sobre a condução da questão.
The two mercadological concentration cases
analise, on which the supposed economical gains
brought by de concentration act were minimized
by the Cade, atracting real interrogations about the
quality of the conduction’s case.
1
INTRODUÇÃO
O campo de estudo delineado pelo tema
contempla ao menos alguns aspectos do chamado Direito da concorrência. Contudo, cumpre notar, já de plano, que tivemos por preocupação primeira ou mesmo primordial a análise
do tema da forma mais didática e clara possível,
por vezes correndo o risco de perder alguma
profundidade, em homenagem a um entendimento mais claro e simples de alguns elementos.
Por outro lado, o trabalho presente pretende ser, muito embora de forma bastante dirigida
e sem traço de pretensão exagerada, uma contribuição efetiva, prática, para todos aqueles que
intencionam estudar o assunto em tela, notadamente na esfera acadêmica, mais especificaj a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
mente em relação aos chamados atos concentracionais e à defesa da concorrência.
Antes de adentramos ao estudo específico do
ato de concentração referido, alguns pontos do Direito concorrencial, e de economia mesmo, devem ser
trazidos a lume aqui, sob pena de que eventual análise
singular do ato de concentração em si mostre-se por
demais divorciada de seu real contexto.
São itens fundamentais à presente exposição.
2
MERCADO E MERCADO
RELEVANTE: NOÇÕES E
CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS
A palavra mercado traz consigo, basicamente, duas idéias: a primeira, relacionada a uma
65
D ireito
concepção física, material, do que seria mercado,
diz-nos que “mercado é lugar público, ao ar livre
ou em recinto fechado, onde se vendem e se compram mercadorias” ou, ainda no mesmo sentido
mas de forma mais simples, “lugar onde se comerciam gêneros alimentícios e outras mercadorias”.1 A segunda concepção, e a que mais interessa a esse trabalho, é de cunho subjetivo e dá
conta de que mercado seria “o conjunto de pessoas
e/ou empresas que, oferecendo ou procurando
bens e/ou serviços e/ou capitais, determinam o
surgimento e as condições dessa relação;”2 ou, de
uma forma mais singela, ensina-nos Maria Helena
Diniz ser o mercado “a esfera das relações
econômicas de compra e venda, das quais resulta
o preço, havendo ajuste”,3 e por fim, “conjunto
de operações sobre determinada mercadoria, ou
certos valores vendáveis”.4
O mercado, pois, mostra-se como o palco
em que se inter-relacionam os vários atores que
o compõem, segundo normas – fundamentalmente de conduta – criadas por estes próprios
atores e também pelo Estado, que nessa relação,
em regra, pode sempre intervir.
Se a conceituação de mercado exibe-se de
forma bastante tranqüila, o mesmo já não se
pode dizer do próximo instituto a ser estudado,
sucedâneo jurídico do primeiro e rigorosamente
fundamental no estudo da concorrência, ou
seja, o mercado relevante.
1
2
3
4
5
6
66
A r t i g o
Para efeitos de avaliação do exercício do poder econômico, é fundamental constatar se esse
exercício de poder efetivamente é capaz de limitar, dificultar ou inviabilizar a concorrência. Tal
exercício, por sua vez, deve demonstrar relevância, termo que, já de plano, mostra dificuldades
de aceitação entre alguns doutrinadores que
apodam tal idéia como uma tradução imperfeita
ou mesmo idiossincrática da palavra inglesa
relevant, donde se originou o termo em português,
sendo que, no idioma natal, o termo guarda mais
proximidade com a idéia de pertinência e propósito
do que com nossa concepção de importância.
Tal distinção adquire especial relevo quando
se verifica que, de fato, a idéia de mercado relevante traz consigo a noção de uma manifestação
“na qual os produtos dele integrante (do mercado) são, em conjunto, objeto da concentração
de ofertas e procuras que caracterizam a própria
noção econômica de mercado”.5
Se delimitar a parte axiológica ou semântica
do que seria mercado relevante já se mostra
difícil, mais tormentosa ainda é a tentativa de
tentar caracterizar de forma intrínseca o que
seria mercado relevante. A concepção mais “popular”6 ou mais veiculada é igualmente contestada por vários doutrinadores, notadamente economistas, que nela vêem um tentativa de simplificação da temática que não consegue nem
esgotar o tema nem aproximar-se de uma concepção mais científica.
Grande dicionário larousse cultural e Novo dicionário Aurélio, respectivamente.
Novo dicionário Aurélio.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 3, p. 254.
Enciclopédia saraiva do direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 52, p. 268.
BRUNA, Sérgio Varella.O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Edusp, 1996, p. 71.
Esta concepção é advinda do Direito americano e foi criada, ou melhor, sedimentada por iterativa jurisprudência,
estando ali disposto que “mercado relevante é composto de produtos que razoavelmente possam ser substituídos um
pelo outro quando empregados nos fins para os quais são produzidos, sempre levando em conta o preço, a finalidade
e a qualidade destes produtos” (citado por BARBIERI FILHO, Celso. Disciplina jurídica da concorrência: abuso do
poder econômico. São Paulo: Resenha Tributária, 1984, p. 113.)
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Ocorre que a concepção citada, oriunda da
jurisprudência americana e, reconheça-se, amplamente aceita por boa parte da doutrina (especialmente os juristas), foi classificada por
alguns economistas, de forma mais técnica, como elasticidade cruzada da procura, que, por
sua vez, nada mais é que o estabelecimento de
um certo equilíbrio mercadológico em face de um
dado produto, gerado pelo equilíbrio obtido na
variação de procura.7
A adoção, sem maiores considerações, da
concepção expressa de elasticidade cruzada da
procura como fator determinante e baliza para
delimitação, avaliação e demais considerações
técnicas sobre o mercado relevante de um caso
concreto, levou, como já dito, alguns doutrinadores a se insurgirem contra tal situação,
chegando Hovencamp a afirmar que
“os juízes, muitas vezes, utilizam-se equivocadamente do conceito de elasticidade cruzada
da procura, porque não compreendem exatamente suas limitações”.8
O professor americano tem suas razões para
afirmar o mencionado, já que diz – e tem boa
parcela de razão nisso – que o entendimento
jurisprudencial não leva em conta itens fundamentais, economicamente falando, para definir
o mercado relevante do caso concreto, tais co-
7
8
9
10
11
mo o grau de semelhança dos produtos, lucros
monopolísticos e movimentações já ocorridas no
passado, envolvendo os produtos comparados.9
O primeiro item referido, por exemplo, traz
a essencialidade em traçar diferenciações
estruturais entre produtos que efetivamente
não comportam substituição entre si. Assim,
muito embora esponjas sintéticas e máquinas
de lavar louça sejam ambas utilizadas para a
lavagem de pratos, pouco ou nenhum grau de
substituição se verifica entre ambos os produtos, pelo que se pode concluir, ao menos com
razoável segurança, que eles não integram o
mesmo mercado relevante.10
Por outro lado, e muito embora não se possa
negar a fundamentalidade da análise econômica
no Direito concorrencial, é preciso notar que
tal postura não pode nem deve engessar a efetiva
prestação jurisdicional ou, ao menos, a efetiva
resposta às demandas relativas ao exercício do
poder econômico postas nas mãos do julgador,
seja ele juiz togado ou funcionário público à
frente de um procedimento administrativo.
Não se pode negar, igualmente, a relativa
dificuldade em se conceituar e mais ainda em
se definir mercado relevante em matéria de
Direito concorrencial, ainda que tal dificuldade,
como vimos com a declaração de Hovencamp,
não seja exclusiva do caso brasileiro.11
A expressão elasticidade cruzada da procura é mencionada por BRUNA, op. cit, p. 69.
Cf. HOVENCAMP, Herbert. Federal antitrust policy: the law of competition and its practice, 1994, p. 99, apud Bruna,
op. cit., p. 76.
HOVENCAMP, apud Bruna, op. cit., p. 77-78.
O exemplo utilizado é de BRUNA, op. cit., p. 78.
A dificuldade apontada é real. Um dos maiores doutrinadores da área do Direito comercial, BULGARELLI, Waldirio, em
sua obra Concentração de empresas e direito antitruste. São Paulo: Atlas, 1997, p. 126, diz, a respeito do mercado relevante,
que “a noção de mercado relevante é ainda buscada pela doutrina nacional com afã (...) já no que concerne a mercado
relevante, pensa-se em ‘relevant market’, em mercado afetado, sendo de levar em conta a decisão da Suprema Corte
daquele país (EUA), referindo-se a ‘areas of effective competition’, portanto alcançando relações com bens, tempo, espaço
e, ainda, produtos, demanda, preço”. Nada obstante o notório brilhantismo do autor em apreço, o fato é que seus
comentários pouco ou nada respondem efetivamente quanto às características formais e intrínsecas de mercado relevante.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
67
D ireito
Feita a ressalva, o fato é que, para um trabalho direcionado e de fundo jurídico como o
presente, importa saber que mercado relevante
delimita um dado espaço geográfico e envolve
uma determinada gama de produtos, serviços e
agentes econômicos, sendo que todos esses elementos, relacionando-se entre si, irão determinar uma função de equilíbrio tal que esta servirá como norte para uma avaliação da existência ou não da chamada concorrência perfeita
(demanda inelástica) ou, por outro lado, de qualquer tipo de desequilíbrio decorrente do
exercício do poder econômico por um dos agentes componentes desse mercado, capaz de afetar
esse mesmo mercado de forma significativa.
Para o caso brasileiro, vemos que a chamada
norma antitruste em vigência, Lei n. 8.884/94,
estipula em seu artigo 54, § 3º, a percentagem
de 30% do mercado relevante como norte para
avaliação do impacto do caso a ser examinado.
Ao mesmo tempo, e no mesmo trecho da norma
citada, há a fixação de outro critério para a
subsunção de quaisquer atos potencialmente limitadores e/ou prejudiciais à concorrência,
desta feita o faturamento bruto anual, que será
tomado em face de qualquer dos partícipes
do ato sob exame, pelo limite mínimo de
R$ 100.000.000,00 (cem milhões) de Ufir.
Portanto, os critérios da lei são bastante claros e diretos: faturamento e parcelas ou fatia
do mercado relevante. Nesse último, será especialmente importante notar o âmbito geográfico
da percentagem declinada (30%) em face do
mercado destacado, ou seja, forçosamente se
deverá determinar de que mercado relevante se
estará falando, interno ou externo (nacional ou
internacional), o que representa sensível destaque na avaliação de qualquer ato de concentração, uma vez que uma dada empresa pode
possuir 50% do mercado nacional em seu setor
68
A r t i g o
econômico mas, internacionalmente, esta
participação pode representar 2 ou 3%.
Encerrando este tópico, podemos afirmar,
então, que havendo substitubilidade entre produtos razoavelmente similares – que, portanto e
obviamente, comportem substituição entre si – e,
por outro lado, delimitando-se geograficamente o
âmbito em que se dará o ato a ser analisado, ter-se-á
um mercado relevante pela frente.
3
CONCENTRAÇÃO HORIZONTAL
E CONCENTRAÇÃO VERTICAL
Pois bem, uma vez superada a análise e conceituação de mercado relevante, importa nesse
momento adentrarmos ao exame do ato concentracional em si, sua natureza, características
e aspectos mais relevantes para nosso estudo.
Primeiramente, cumpre introduzir a seguinte pergunta: a concentração é uma figura/instituto jurídico ou econômico?
Como uma tendência quase natural quando
se trata de comentar elementos constituintes do
direito Concorrencial, a seara econômica toma
um espaço não só maior, mas também mais
preponderante em qualquer análise. Aqui não é
diferente. Aliás, os próprios juristas e doutrinadores da área jurídica reconhecem, mesmo fora
do Direito antitruste, que a análise em geral de
qualquer instituto ou objeto, ainda que em uma
abordagem jurídica, deve ser precedida pelo estudo
de sua natureza prática, ou não jurídica, chegando
um ilustre doutrinador italiano a afirmar que
“non si avventurino, mai ad alcuna tratazzione
giuridica se non conoscono a fondo la struttura
técnica e la funzione econômica dell´istituto che
è l´oggetto dei loro studi (...) é una slealtà
scientifica, è un difetto di probità parlare de
um istituto per fissarne la disciplina giuridica
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
senza conoscerlo a fondo nella sua realtà (...)
lo studio pratico della sua natura deve preccedere quello del diritto”.12
Destarte, a concentração, de uma forma lata
ou genérica e para o aspecto aqui buscado, é
toda forma de ampliação de poder econômico
conseguido ou atingido pela empresa, através
do incremento de seu faturamento direto, ou
seja, a empresa aumenta seu faturamento pela
ampliação de sua parcela no mercado (aquisição, compra, associação etc, de outras empresas
de seu ramo de atuação) ou incorpora cadeias
produtivas constituintes da feitura de seus produtos (insumos) à sua própria linha de produção
original.
Nessa definição já temos os elementos da
diferenciação entre concentração vertical e concentração horizontal, o que nos torna aptos a
tentar estudar cada uma separadamente.
3.1 Concentração Horizontal
Nesta modalidade, verifica-se a concentração pela junção, seja em que modalidade for,
de uma empresa em face de outra ou outras,
todas componentes de um mesmo nicho ou setor econômico. Assim, por exemplo, se um dado
produtor de peças para lataria de automóveis
que detenha 20% de participação em seu
mercado econômico unir-se (adquirir, associar-se,
fundir-se etc.) a um seu concorrente que detenha 15% do mesmo mercado de produtos,
teremos manifesto o fenômeno da concentração horizontal, em que ocorrerá um incremento
12
13
14
no faturamento de ambas as empresas – que
passarão a ser uma só – bem como um inevitável
aumento de participação no mercado daquele
produto específico, no caso peças para latarias
de automóveis, levando a nova empresa a deter
35% de tal mercado.
Muito embora a concentração horizontal não
apresente maiores dificuldades quando se busca
simplesmente entendê-la, é preciso cuidado para
não simplificá-la de forma rasteira ou superficial.
No exemplo dado, em que a somatória das
participações singulares das empresas que se
uniram tornou-as possuidoras de uma participação maior de mercado, da ordem de 35%, poderíamos ser levados a crer que o abuso do
poder econômico, que a limitação ou prejuízo
à concorrência13 estariam patentes, mas não é
bem assim.
Todas as normas jurídicas devem ser
interpretadas. Isso é ponto pacífico e dispensa
maiores digressões, já que tal assertiva é espécie
de princípio do Direito. A lei não existe em si,
mas na concretude de sua aplicação ao caso
materialmente posto à sua frente, reclamando
sua aplicação prática. A partir dos fatos se terá
como, em que medida, de que forma, com que
intensidade e modo se dará a aplicação das
previsões contidas na norma positivada.14
Pois bem, para a questão retro-referida,
desse modo, o que se verifica como eixo fundamental na avaliação do ato concentracional é,
em um primeiro ponto, para qual base geográfica mercadológica se está aplicando a análise
do caso. Se, ao adotarmos o exemplo declinado,
VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milão: Giufrè, 1931, v. 1, p. 63.
Cf. prevê o artigo 20, I, Lei n. 8.884/94.
Cf. Superior Tribunal de Justiça: “A interpretação das leis é obra de raciocínio mas também de sabedoria e bom senso,
não podendo o julgador ater-se exclusivamente aos vocábulos mas, sim, aplicar os princípios que informam as
normas positivas” (STJ – REsp. n. 3.836, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 18.12.90).
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
69
D ireito
aplicarmos a concentração operada para um
mercado geográfico extremamente restrito – a
cidade de São Paulo ou Rio de Janeiro, por
exemplo –, 35% de participação pode se mostrar
uma concentração excessiva, pode configurar
um abuso de poder econômico e dificultação
da concorrência (como vimos), especialmente
se os outros 65% estiverem pulverizados em
várias participações menores de outras
empresas. Resultado diametralmente oposto
será obtido se, para efeitos de análise do ato concentracional do exemplo, adotarmos o mercado
nacional como base geográfica mercadológica,
em que os 35% de concentração de um mercado local irão tornar-se ou poderão tornar-se algo
como 1,2 ou 5%, ficando, assim, em um patamar e em uma caracterização que passarão
longe de uma concentração de mercado
excessiva e de um exercício abusivo do poder
econômico.
3.2 Concentração Vertical
Nessa modalidade de concentração, a empresa aumenta seu tamanho e faturamento pela
aquisição (adquire, associa-se, funde-se etc.) de
uma outra empresa, ou empresas que não são
de seu ramo de atuação de uma forma direta,
mas empresas que produzem insumos e itens
componentes de seu produto final. Adotando-se
o exemplo citado da empresa de peças para
lataria, poderíamos adaptar à concentração
vertical da seguinte forma: imagine-se que
referida empresa somente operasse a parte de
manuseio da chapa de aço, dobrando-a, furando-a, pintando, enfim, moldando-a e modificando-a a fim de obter a peça final, valendo-se,
portanto, da aquisição da chapa de aço já pronta. Se esta mesma empresa adquirisse sua
15
70
A r t i g o
fornecedora de chapas de aço, ou seja, a empresa
metalúrgica que lhe fornece as chapas de aço para
seu beneficiamento, estaria praticando um ato de
concentração vertical, vez que estaria agregando
um item de insumo de sua cadeia produtiva para
sua própria exploração e produção.
Aqui no caso da concentração vertical, além
das ressalvas geográficas já feitas com relação à
concentração horizontal – muito embora se
reconheça que na concentração horizontal a
definição geográfica do mercado relevante a ser
analisado seja mais importante do que na concentração vertical –, ainda se deve fazer as ressalvas contidas no § 1º do artigo 54 da lei antitruste em vigência no país, ressalvas essas que
visam preservar atos concentracionais que,
muito embora possam ser vistos em um primeiro momento como abusivos ou lesivos à concorrência, trazem consigo uma carga tal de
benefícios que a concentração toma uma espaço
menor e a melhora do mercado para aquele
produto, ou produtos, passa a ser mais vantajosa
e até desejável.
O raciocínio passa a ser o de se admitir a
concentração operada em prol de uma melhora
substancial do mercado em uma acepção ampla
(aumento da produtividade; melhora da
qualidade dos produtos/serviços que propiciem
eficiência e desenvolvimento tecnológico),
sendo que a avaliação destes benefícios está
sujeita ao mesmo órgão previsto na lei em foco,
inclusive com imposição de condições prévias
(compromisso de desempenho).15
4
CASO COFAP NO CADE
Como se vê, os conceitos declinados são
itens básicos e indispensáveis no trato do tema
Cf., respectivamente, artigo 54, § 1º, alíneas a, b e c, artigo 58, ambos da Lei n. 8.884/94.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
ou temas aqui expostos. Isto porque, sem a
compreensão do que seja mercado, impossível
seria esmiuçar o significado de abuso de poder
econômico, principalmente, sabendo-se que a
análise da repressão aos abusos do poder
econômico não comporta referência apenas a
um só mercado, senão a vários, que se relacionam mutuamente, em maior ou menor grau.
Assim, ao mesmo tempo em que se pode
falar de um mercado de alimentos, pode-se
referir a um mercado de carnes, mas também
ao de carne bovina, ao de carne suína, ao de
aves, de frangos ou mesmo perus.16
Dessa forma, para que possamos apurar
qual o nível de concorrência e o volume de
poder econômico pelos agentes desfrutados,
interessante é saber se esse exercício de poder
é capaz de impor barreiras, limites ou entraves
ao concorrente.
Por sinal, esse é o propósito do presente
estudo, que leva em consideração a aquisição
do controle de 70,08% do capital votante e
28,38% do capital total da empresa Cofap –
Companhia de Peças Fabricadora de Peças, pela
Magnetti Marelli S.p.A. e sua real conseqüência para o mercado de autopeças, tendo em vista
que, em razão da constituição de Magnetti
Marelli Participações S/C Ltda., por Magnetti
Marelli S.p.A e Mahle GMH, garantiu-se à
sociedade constituída o controle (31%) sobre
todas as atividades de anéis da Cofap, segmentos
de produção e comercialização de amortecedores, centro de pesquisa e atividades comerciais
relativas ao mercado de reposição.
Levado o caso à apreciação do Cade (ato de
concentração n. 080.12.007154/97-38), justificaram as requerentes se tratar de operação
16
absolutamente normal, exigência até do novo
modelo de mercado mundial, decorrente da globalização e da abertura comercial, que impelem
à formação de estratégias de fusões, aquisições
e joint ventures, como forma de incrementar a
competitividade e a sobrevivência da indústria
automobilística nacional.
Mais à frente, no item posterior, analisaremos a situação da indústria de autopeças frente
a outra fusão, desta feita, entre as empresa Dana
e Echlin.
4.1 Desconcentração Vertical
No caso em destaque, um dos pontos controversos era o da possível concentração vertical
na área de usinagem e fundição, uma vez que a
Cofap possuía uma unidade fabril nesse campo.
Contudo, informa o relatório do caso que
“as consulentes informaram que, em 01/07/98
foi firmado ‘Protocolo de Intenções para Realização de Negócio entre a Cofap e a Indústria
de Fundição Tupy, que tem como objetivo a
venda da unidade de fundição da primeira para
a última no prazo de trinta dias”.
Prosseguindo, diz a relatora do caso:
“A se confirmar a venda, remédios antitruste,
tais como a alienação deste negócio, não seriam
mais necessários”.
Como não bastasse, os requerentes, ancorados em estudos técnicos do setor em destaque, lembram que
BRUNA, op. cit., p. 45.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
71
D ireito
A r t i g o
“(...) a fundição constitui-se em um mercado
maduro, de baixa rentabilidade, inibindo investimentos, sendo estes de alto valor. Por con-
participação total nos segmentos original e de
seqüência, temos na Cofap a operação deste
segmento com tecnologia amplamente defasa-
mesmo restringirem o volume de peças vendidas
da e altos custos de produção (em especial de
insumos e de mão de obra), o que impede a
causando sérios prejuízos aos seus concorrentes”.
mesma de concorrer com outros grandes
produtores mundiais”.
Portanto, é interessante observar que a estratégia da Cofap em apresentar a venda de sua
unidade de usinagem – que talvez já lhe fosse
desinteressante de todo modo – serviu como uma
valiosa demonstração de boa vontade, como uma
exibição de que ela, Cofap, é uma empresa que
concorre de forma leal. Se esta imagem é ou seria
real, já é um outro ponto, mas o fato é que seus
objetivos foram alcançados.
reposição. Assim, se as empresas envolvidas na
operação praticarem preços diferenciados ou
ou não cumprirem prazos de entrega, estarão
Nada obstante o relatado, as montadoras
não se opuseram ao negócio pretendido pelas
partes. De acordo com a GM, a empresa não
produz amortecedores e tem como única fornecedora a Cofap. Porém, afirma que o
“fornecimento de amortecedores, tanto no
âmbito nacional como internacional, poderia
ser realizado pelas empresas MONROE,
ARVIN, SACHS e DELPHI, que têm condições
de oferecer custo e qualidade e possuem
disponibilidade de oferta para atender as nossas
necessidades”.
4.2 Participação em Grupo
Concorrente
Outro ponto de relevância repousa no fato
de que a Cofap, após a união com a Magnetti
Marelli, seria então controlada por uma
subsidiária do Grupo Fiat, o que poderia causar
problemas de fornecimentos de seus produtos
às montadoras concorrentes da Fiat no Brasil
e, como informa o relatório,
“ficariam (as montadoras), pois, na dependência de fornecimento de sua concorrente para a
obtenção dos produtos necessários ao seu pro-
Quanto aos efeitos da operação, acreditam
que a
“associação tende a aumentar a competitividade
entre as empresas, com melhorias dos níveis de
tecnologia e qualidade do produto”.
A Volkswagen informou que não tem produção cativa dessas peças e possui como fornecedores, além da Cofap (39% dos amortecedores), a MONROE (48%) e a SACHS (13%).
Esclareceu, ainda, que
cesso produtivo. Além dos produtos em análise,
72
preocupa, por exemplo, o caso dos amor-
“se um dos fornecedores aumentar os preços
tecedores, que, embora não façam parte do
ou interromper a produção existe viabilidade
mercado relevante, constituem o principal
de aquisição de amortecedores nas outras duas
produto da Cofap, que detém cerca de 70% da
fontes locais. Caso este problema ocorra com
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
as três fontes, existem empresas no exterior que,
após um período de desenvolvimento da peça
e dependendo de negociações comerciais,
estariam aptas a fornecerem”.
Justamente pela declaração das próprias
montadoras, a relatora do ato de concentração
em questão disse, ao final, que
“a parcela da operação relativa ao segmento de
amortecedores não é razão de maiores preocupações para as principais concorrentes da Fiat”.
Aqui tomam assento algumas influências
mais palpáveis do que hoje se usa denominar
globalização econômica. As compradoras
principais da Cofap – montadoras de veículos
– declaram taxativamente sua independência
em relação à eventual tentativa de manipulação de preços ou fornecimento pela empresa
em tela, alegando facilidade em acessar os
mesmos produtos fornecidos pela Cofap em
qualquer outro ponto do globo. A frase
emitida pelos representante da Volkswagen é
paradigmática:
“se um dos fornecedores aumentar os preços ou
interromper a produção (...) existem empresas no
exterior que, após um período de desenvolvimento
da peça e dependendo de negociações comerciais,
estariam aptas a fornecerem”.
A título ilustrativo, vejamos alguns dados
técnicos sobre a empresa em análise:
Principais Clientes da Cofap no Brasil
EMPRESAS/GRUPO
% SOBRE O FATURAMENTO
Fiat Automóveis S/A
17,01
General Motors do Brasil
11,44
Volkswagen
9,13
Grupo Roles
6,90
Grupo Sama
5,24
Grupo Real
4,03
D. Paschoal S/A
3,98
Mercedes Benz do Brasil
2,75
Grupo Natacci
2,65
Grupo Guatil
2,49
Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle)
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
73
D ireito
A r t i g o
Principais Clientes da Cofap No Mundo
EMPRESAS/GRUPO
% SOBRE O FATURAMENTO
Chrysler (EUA)
18
Fiat (BR)
14
General Motors (BR + AR)
7
Grupo Roles (BR)
6
Volkswagen (BR, AR, MX)
5,8
Delphi (GM/BR)
5,5
Grupo Sama (BR)
4,6
D. Paschoal (BR)
4
SM (VW/BR)
2,2
Ford (BR/AR)
1,7
Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle)
4.3 Do Ganho em Produtividade
e Tecnologia
Como sabemos, o artigo 54 da Lei n. 8.884/94
é uma espécie de receptáculo da idéia de
tolerância da perda de concorrência por qual-
quer meio, se verificado o ganho, para o mercado, de aspectos relevantes como produtividade
ou o desenvolvimento tecnológico porventura
gerado pela aprovação do ato. Para o caso em
foco, apurou-se que tais vantagens eram as
seguintes:
1) Aporte de novas tecnologias
2) Aumento das exportações, através da inserção nos canais de comercialização do grupo
Marelli, permitindo que a Cofap/Marelli seja um fornecedor global
3) Aumento da qualidade em razão das novas tecnologias
4) Economias resultantes da maior racionalização dos investimentos e do melhor
aproveitamento dos recursos despendidos com P&D
5) Maior competitividade a partir da maior especialização e conseqüente possibilidade de a
Cofap/Marelli ser um co-designer em escala mundial
6) Maior nível de P&D na área de amortecedores e o incremento das exportações desse
produto, e
7) Maiores níveis de investimentos, produção, exportação e tecnologia de sistemas de
escapamentos e amortecedores
Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle)
74
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Portanto, trata-se aqui da aplicação, ao modo brasileiro é certo, da regra da razão do Direito
concorrencial americano, admitindo e tolerando
atos concentracionais que, em um primeiro momento e em uma acepção puramente técnica –
jurídico-econômica –, se mostram como condenáveis e insuscetíveis de aprovação. Mas, da
análise de seus efeitos, se pode buscar benefícios que compensem a perda de concorrência
mercadológica.
4.4 Mercado Nacional e Mercado
Internacional
Como vimos, o próprio mercado consumidor mais substancial dos produtos Cofap – montadoras de veículos – não se opôs ao ato de concentração em exame, alegando facilidade de
acesso às peças automotivas em apreço, mormente no exterior.
Nesse sentido, o voto da relatora do Cade
apoiou-se francamente na internacionalização
dos mercados e especialmente na força do capital globalizado, invocando, estudo do BNDES
para concluir que a fusão – ou, em melhor conceituação, a aquisição da Cofap pela Magnetti –
seria também recomendável pela chamada força
advinda da globalização econômica que estaria
forçando as empresas, especialmente aquelas
situadas nos chamados países em desenvolvimento, a se unirem com parceiros comerciais mais
fortes, com atuação mais abrangente em escala
mundial e com recursos ou ao menos acesso a
recursos financeiros mais representativos.
senvolvimento são vistos como a área de maior
crescimento – muitas empresas estão ameaçadas. As vultuosas exigências de capitalização
e de investimentos para a ocupação de espaços
nesta nova cadeia, o volume crescente de
importação e a concorrência com novos fabricantes internacionais, trazidos pelas próprias
montadoras, são alguns dos aspectos que mais
afetam as empresas existentes no país. O resultado desse contexto é a fragilização das
posições de mercado de tradicionais firmas de
capital nacional atuantes no setor.”
E a relatora arremata, declarando sobre o
ponto em destaque que
“a abertura da economia a partir dos anos noventa, se trouxe inegáveis benefícios à dinâmica
da concorrência no setor automotivo, também
exige que as empresas de autopeças se adaptem
às novas condições de mercado e às pressões
competitivas advindas de concorrentes internacionais. São condições essenciais à sobrevivência destas empresas a necessidade de reduzir
custos, se integrando no esquema de global
source e folow source para a produção de carros
mundiais e produzir produtos de padrão de
qualidade internacional, o que exige aportes
tecnológicos e financeiros significativos”.
De fato, como destaca o referido estudo do
BNDES:
Todo o relatado nesse item adquire contornos mais interessantes ainda quando se vislumbra que o Cade, através de sua relatora designada
para o caso, adotou o mercado nacional como
a área geográfica de atuação das requerentes,
dizendo:
“Apesar das expectativas de crescimento da indústria automobilística, inclusive com a entrada de novas montadoras – os países em de-
“Quanto à dimensão geográfica, embora fosse
possível cogitar uma definição mais ampla que
as fronteiras nacionais, em razão dos fatores já
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
75
D ireito
expostos sobre a tendência à concorrência global
e as facilidades às importações de autopeças, e
aprofundados no AC 84/96, defino, conservadoramente, o mercado geográfico como o
nacional”.
cado mundial como parâmetro de defesa do
mercado nacional e não como arena de atuação
das empresas unidas pelo ato analisado.
E em outro ponto:
Algumas conclusões vem à tona no caso em
destaque:
“Não obstante as possibilidades de importações
sejam amplas, em particular devido às baixas
alíquotas efetivas de importação decorrentes
da política governamental para o setor, os
fluxos internacionais de comércio, como demonstram os dados de market-share presentes
no parecer da Seae, não são muito significativos. Os dados sugerem que as montadoras
apenas instrumentalizam as facilidades à importação atualmente vigentes na negociação
de preços e qualidade dos produtos obtidos de
seus fornecedores, em geral localizados próximos a elas.”
Esse aspecto parece, a toda evidência, ter
pesado na interpretação da fusão em questão,
uma vez que o mercado relevante adotado, em
termos geográficos, foi nacional, mas a inserção
desse mercado específico no mercado mais
genérico foi tratada como mundial, o que se
apresenta quase que como um paradoxo,
exibindo, por outro lado, as modificações sentidas nas relações econômicas mundiais e na
força adquirida pelo capital internacionalizado
Assim, foi reconhecido o impacto da chamada globalização, foi reconhecida a necessidade até de ocorrer a concentração pretendida,
porém, e paradoxalmente, foi afastada a adoção
de mercado geográfico internacional, talvez
porque o escopo seja justamente proteger o
mercado interno ou, em outra construção, fortalecer as empresas aqui atuantes e não municiá-las para atuação mundial. Adota-se o mer76
A r t i g o
4.5 C o n c l u s ã o
1) Em vista das tendências recentes do setor automobilístico (fornecimento global
e produção enxuta), somadas à necessidade de conhecimentos tecnológicos
específicos e de uma série de custos irrecuperáveis (no caso de blocos e cabeçotes de ferro), tal opção seria a mais ineficiente do ponto de vista privado, e, em
última análise, do ponto de vista dos consumidores finais.
2) No segmento de escapamentos, não
gerou a operação concentração significativa, não apenas em razão de deter a
Marelli ínfimos 3% do mercado, mas
também porque os custos de entrada são
relativamente baixos, gozando as montadoras de amplo acesso ao mercado internacional, o que limitaria o sucesso de
qualquer estratégia anticoncorrencial.
3) No segmento de amortecedores, também não vislumbrou o Cade barreiras
significativas à entrada. Isto porque, as
necessidades de reduzir custos, integrar-se
no esquema de global source e follow source
para a produção de carros mundiais e
produzir produtos de padrão de qualidade internacional, o que exige aportes
tecnológicos e financeiros vultosos, são
condições essenciais à sobrevivência
destas empresas;
4) Por fim, vislumbram-se eficiências capazes de compensar os danos à concorj a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
rência causados pela operação nesse caso
específico. A uma, porque o negócio de
blocos e cabeçotes de ferro não integra
o core bussines da Marelli ou da Mahle;
a duas, porque a venda dos negócios de
fundição da Cofap para a fundição Tupy
representa fator positivo, pró-competitivo, por diminuir os efeitos de concentração na operação original.
Pelas motivações retrotranscritas, aprovou
o Cade a operação, o ato de concentração em
questão, sem restrições.
5
QUESTÃO DANA-ECHLIN:
BREVES COMENTÁRIOS
As empresas mencionadas também promoveram um ato de concentração fundindo-se, ato
esse aprovado pelo Cade sem restrições. Não é
o escopo desse trabalho analisar a fundo esse
outro ato mas, a partir dos dados a seguir fornecidos, refletir sobre o mercado de autopeças
como um todo e analisar, do mesmo modo, não
apenas a concentração horizontal, a aquisição
de concorrentes participantes de um mesmo
mercado relevante, mas a concentração no número de itens de peças existentes no mercado
como um todo.
Portanto, faremos primeiramente um raio-x,
um perfil das empresas em apreço, inclusive
com os atos concentracionais em que ambas
estiveram envolvidas antes do ato em foco.
Assim:
Dana Corporation: Empresa norte-americana, com sede em Toledo, Ohio, possui aproximadamente 50.000 empregados e apresentou,
em 1997, um faturamento de U$ 8,3 bilhões no
17
mundo e R$ 576.800.000,00 no Brasil. É considerada pela Seae como um dos maiores fabricantes
de peças para veículos do mundo. Estão sob o controle do grupo, no Brasil, as seguintes empresas:
Dana-Albarus S.A. Indústria e Comércio (fabrica
colunas de direção, conjuntos e componentes de
juntas universais, anéis de pistão para motores,
sanfonas, mancais, coxins, dutos de ar e retentores
de borracha); Dana Indústrias Ltda (fabrica conjuntos e componentes de eixos diferenciais traseiros, juntas de motor e chassis rodantes); SM –
Sistemas Modulares Ltda (atua no fornecimento
de serviços de montagem dos sistemas de
suspensão); Albarus Sistemas Hidráulicos Ltda
(fabricante de bombas de engrenagem, válvulas,
cilindros e sistemas hidráulicos); ATH Albarus
Transmissões Homocinéticas Ltda (fabricante de
conjuntos e componentes de juntas homocinéticas); Nakata S.A. Indústria e Comércio (fabrica amortecedores e componentes de suspensão
e foi adquirida pelo grupo Dana em abril de 1998);
Albarus Comercial Exportadora (atua na
importação e exportação dos produtos do grupo).
Nos últimos 5 anos, a DANA participou das
seguintes operações: aquisição da divisão de
eixos diferenciais leves da Rockwell do Brasil
S.A.,17 aquisição de 60% de participação do
capital social da Simesc, em dezembro de 1994;
aquisição da empresa Indústrias Orlando
Stevaux Ltda; aquisição da Nakata S.A. Indústria
e Comércio.
Echlin Inc.: Empresa norte-americana,
com sede em Branford, Connecticut. No último
exercício apresentou um faturamento de US$ 3,6
bilhões e conta com 15.600 funcionários. Sua
única subsidiária no Brasil, a Echlin do Brasil
Indústria e Comércio Ltda, foi fundada em 1945
A Rockwell, por seu turno, adquiriu, em meados dos anos 80, o controle acionário da Fumagalli, indústria nacional de
autopeças, sediada em Limeira, SP.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
77
D ireito
A r t i g o
e possui 870 empregados. Em 1997, obteve um
faturamento de R$ 73,3 milhões. Nos últimos
5 anos, a Echlin participou das seguintes
operações: aquisição dos ativos de mercado da
Mecano em 1997 (aprovada pelo Cade);
aquisição dos ativos de mercado da Brosol, em
1998 (em análise no Cade).
Os produtos relevantes indicados pelas
requerentes são: bombas de água, bombas de
combustível, carburadores e injeção, kits para
reparo de carburadores, produtos elétricos,
tubos e mangueira para direção hidráulica e
freios do veículo. Vejamos sua participação
mercadológica:
Bombas de Água
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Echlin do Brasil
36,5
Columbia
20,0
Iochpe Maxion
9,2
Indisa
6,2
Schadek
1,4
TMR (*)
1,4
Vetori
0,8
VMG (*)
0,8
Montadoras
22,6
Outras
1,0
(*) Produto importado. Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
Bombas de Combustível
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Echlin do Brasil
95,3
Outros importadores independentes
4,7
Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
Carburadores e Injeção
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Echlin do Brasil
66,1
Magnetti Marelli
33,9
Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
78
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Kits para Reparo de Carburadores
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Echlin do Brasil
28,5
Magnetti Marelli
27,0
Vogel
20,0
Seaverte
10,3
Outras
14,2
Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
Tubos para Direção Hidráulica
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Paranoá
30,5
Dayco
17,9
Echlin do Brasil
16,8
Getoflex
13,7
Aeroequip
9,5
Outras
11,6
Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
Mangueiras para Freios
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Getoflex
29,8
Saad
25,1
FH
19,9
Vinke
14,2
Echlin do Brasil
2,8
Outras
8,3
Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
79
D ireito
A r t i g o
Produtos elétricos
EMPRESAS
PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)
Bosch
22,8
Echlin do Brasil
13,1
NGK
7,5
ZM
7,4
3RHO
7,4
Dani
5,7
Top
5,7
Marília
5,4
Siemens
5,0
HL
4,3
Bergson
2,8
IKRO
2,4
Olimpic
2,1
Facobrás
1,8
Outras
6,6
Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)
80
Nada obstante o poderio exibido, a Seae
emitiu parecer favorável ao ato, chamando a
atenção para os seguintes pontos:
doras, cuja tendência é exigir a entrega de
estruturas montadas e não somente componentes isolados” (fls. 165).
“(i) as autopeças fabricadas pela Echlin e pela
Dana se complementam no produto final
(automóvel); (ii) o grupo Dana terá na Echlin
um importante fornecedor de peças de
reposição e o pleno conhecimento dos canais
de distribuição para o mercado de reposição,
o que resultará em economias de escopo; e (iii)
que ao incorporar a Echlin, o grupo Dana
avança no sentido de tornar-se um fornecedor
de nível I, ou de elite, no atendimento às monta-
Diante disso, conclui que a operação não
gera qualquer tipo de concentração e é passível
de aprovação.
A SDE, por seu turno, segue a mesma linha
e alinhava os seguintes pontos:
“(i) a operação não provoca alteração na
estrutura do mercado de autopeças como um
todo uma vez que não eleva o poder de mercado
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
da adquirente, nem resulta em concentração de
mercado; (ii) não existem barreiras relevantes à
entrada de novos concorrentes, exceto as
exigências impostas pelas montadoras aos
fornecedores de autopeças”.
Em vista disso, sugere a aprovação sem restrições da operação.
A operação em foco foi aprovada sem restrições e nota-se que o Cade, calçado nos pareceres da Seae e da SDE, entendeu que a união
das requerentes traria ganhos ao mercado de
uma forma geral, aplicando aí, não de forma
declarada, é certo, as previsões do artigo 54,
§ 1º e seus incisos, da Lei n. 8.884/94. Vê-se
que a concentração foi francamente tolerada,
em prol de um ganho – efetivo ou não, real ou
não – trazido pela mesma concentração.
6
COMENTÁRIO FINAL
Como já citamos no preâmbulo desse tópico,
todas as operações citadas envolvendo as reque-
rentes foram aprovadas pelo Cade. Dana-Echlin,
juntas, terão, somente no Brasil, faturamento em
torno de R$ 650.000.000,00, 6.000 empregados,
porém, mais do que isso, as requerentes irão
causar sensível concentração no mercado de
autopeças, uma vez que juntas produzirão uma
gama vasta de componentes e com alta participação em cada mercado individual.
Esse é o ponto interessante aqui: a análise
ou pelo menos a admissão de que é possível
haver transferência de poder econômico dentro
do mesmo grupo de empresas, com francas
possibilidades de interferência em um dado
mercado, como é o presente caso (mercado de
autopeças). Ou seja, o ato de concentração em
questão, dado o aumento no poderio econômico,
no acesso à tecnologia e a recursos por vezes
até subsidiados, pode levar a uma perda de
concorrência no fabrico de um dado item em
que hoje as empresas envolvidas possuem
pequena participação, o que, pelos fatores exibidos, possivelmente virá a desequilibrar esse
mercado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Edusp,
1996.
BULGARELLI, Waldirio. Concentração de empresas e direito antitruste. São Paulo: Atlas, 1997.
ENCICLOPÉDIA saraiva do direito. São Paulo: Saraiva,
1977, v. 52.
VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milão:
Giufrè, 1931, v. 1.
Site do Cade: www.cade.org.br
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo:
Saraiva, 1998, v. 3.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
81
imes
r e v i s t a
A r t i g o
A INCÔMODA SOLUÇÃO
CHAMADA
AÇÃO AFIRMATIVA
Sandro César Sell
Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mestre em Sociologia Política pela UFSC.
Graduado em Direito e Ciências Sociais (UFSC). Advogado.
Professor de Introdução ao Direito e Sociologia Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí.
R E S U M O
ABSTRACT
Este artigo tem por objetivo mostrar que as
dificuldades de implementar medidas de ação
afirmativa no Brasil não são jurídicas, mas culturais.
This article has the objective to show that brasilian
juridical order accept the affirmative acion, but not
the brasilian culture.
1
INTRODUÇÃO
É possível que nenhuma engenharia social
contemporânea tenha trazido tanta polêmica
quanto aquela que, mediante expedientes como
cotas previamente definidas ou políticas de acesso
preferencial, promete a inclusão eqüitativa de
negros, deficientes, índios e mulheres nos espaços socialmente valorizados. São as chamadas
medidas de ação afirmativa, que representam a
tentativa de alguns Estados de matriz liberal de
corrigir a falácia da meritocracia, segundo a qual,
em um Estado em que a Constituição valoriza,
sobretudo, a liberdade, as desigualdades devem
ser atribuídas a diferentes graus de esforço e
talento individual.1 A pobreza e a riqueza, em
1
tais Estados, são atribuídas a opções (esforçar-se
mais ou menos), fatos genéticos (possuir maior
ou menor grau de inteligência) ou a eventos
aleatórios (sorte ou azar).
No entanto, quando as análises estatísticas
começaram a mostrar que a pobreza tinha cor
(de tonalidade escura) ou que o poder tinha sexo (masculino), a idéia de que o sucesso era
uma questão de competência individual ficou
seriamente questionada. E se não ficasse, o questionamento deveria dirigir-se ao consenso contemporâneo de que as diferenças de cor, raça ou
sexo não são relevantes para sustentar distinções
de capacidades mentais entre os diferentes grupos humanos. Consenso que desde a Declaração
da Unesco sobre as Raças, de 1948, estava fir-
Dizemos Estados liberais porque, nos Estados socialistas, a máxima da meritocracia era substituída pela regra: “De
cada um conforme suas possibilidades; a cada um conforme suas necessidades”. Máxima igualmente falaciosa – ao
menos em sua operacionalidade.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
53
D ireito
memente estabelecido – e que os anos e a ciência
só têm feito reforçar.2
Por ironia, foram os EUA, o país do “sonho
americano” (a ideologia de que todos podem
tudo se estiverem dispostos a lutar por seus
ideais), que, no início da década de 1960, popularizaram as políticas de ação afirmativa, como
uma incômoda forma de superar o déficit entre
as promessas de acesso universal às riquezas
pelo esforço e a vida real permeada por critérios
pré-modernos de ascensão social (cor, sexo,
raça, estirpe). Era incompatível com a ideologia
do “querer é poder” a distância social que separava os negros dos brancos, as mulheres dos
homens. Se deixada às suas próprias regras competitivas (que incluem, além da competência,
também a fraude, o preconceito e a discriminação), a sociedade não conseguiria sequer proporcionar uma aparência de justiça capaz de
convencer os discriminados a continuar acreditando no sistema social. Foi necessária a intervenção estatal corretiva.
E eis aí o paradoxo representado pela ação
afirmativa: para combater a falta de eficácia da
doutrina meritocrática, precisou-se romper com
ela, garantindo o acesso privilegiado de indivíduos que, por algum motivo repugnado pelo
Estado (comumente o preconceito e a discriminação)3 não conseguiriam, por si só, fazerem-se
presentes nas posições sociais cobiçadas. Dessa
conjuntura, emerge a idéia das discriminações
positivas. O que, de certa forma, seguia na con-
2
3
54
A r t i g o
tramão das transformações ético-políticas da
modernidade ocidental, cuja direção era a de
superar a política de privilégios de qualquer ordem em benefício de políticas de igualdade de
todos na lei e perante a lei. No âmbito constitucional, a doutrina do colour blind, segundo a
qual a Constituição é cega para discriminações
de cor, exemplificava a positivação da tendência
à igualação formal.
Neste afã, quebrando uma linearidade histórica, as vítimas dos preconceitos ancestrais (de
cor, sexo, raça) passaram a não mais clamar pelo
simples fim de qualquer forma de discriminação. Mas reivindicavam, elas próprias, diferenciações que as beneficiassem e que servissem
de confirmação oficial de que políticas estatais
baseadas na neutralidade quanto a cor, raça ou
sexo representavam uma omissão criminosa
diante dos reflexos das discriminações passadas
sobre o presente. As discriminações desumanas
haviam deixado seqüelas que caberiam aos
Estados combater, caso contrário, manter-se-ia
funcionando o perverso círculo da exclusão pelo
preconceito.
Muitos questionaram se “privilégios corretivos” eram menos odiosos do que os vetustos
privilégios de honra e sangue. Temiam que as
ações afirmativas se tornassem o patrocínio do
ócio e da mediocridade a expensas do esforço e
do talento. Afora o labor pessoal e o adequado
uso dos dons naturais, a sociedade ocidental havia assentado que só o direito de herança, a sor-
No que se refere ao termo “raça”, ele hoje sequer dispõe de funcionalidade biológica (basta lembrar que as diferenças
entre indivíduos da mesma “raça” podem ser maiores do que as existentes entre indivíduos de “raças” diferentes), além
do que, a história depõe contra seu emprego (racismo, nazismo etc.). Não obstante, neste artigo, utilizaremos este
termo em respeito tanto ao seu uso popular quanto por ser utilizado em nossa Constituição.
É bom ter clara a diferença entre preconceito e discriminação. Preconceito consiste em um erro de julgamento que
distorce a realidade dos fatos. É um fenômeno cognitivo. Já a discriminação – no seu sentido sociológico – é o ato de,
a partir de preconceitos, restringir os direitos de outrem. Assim, acreditar que as mulheres são más motoristas é um
preconceito; negar-lhes emprego de chofer por isso é discriminação. Já em Direito, como veremos, o termo discriminação
assume outros significados.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
te, a caridade ou as políticas públicas isonômicas
eram legítimas beneficiadoras de indivíduos em
amargas condições sociais: fossem negros,
índios ou brancos, homens ou mulheres. Criar
políticas públicas ou exigências legais orientadas
sexual ou racialmente era injusto e uma
subversão das regras do jogo democrático.
Para o pensamento tradicional, o problema
das discriminações calcadas no preconceito era
matéria que estaria suficientemente equacionada pela sua proibição oficial. Não seria uma
questão de políticas públicas específicas, mas
de sanção penal. Sanção que, no Brasil, tornou-se
simbolicamente das mais enfáticas e praticamente das mais inócuas. Das mais enfáticas porque
o crime de racismo, por exemplo, é caso excepcional de crime não apenas constitucionalmente
definido (art. 5o, XLII), mas também reforçado
pela anacrônica característica da imprescritibilidade penal – a possibilidade ad eternum de o
Estado perseguir o réu. Já na prática, a dificuldade de diferenciar a ocorrência do crime de
racismo em face de outros tipos penais,4 aliada
ao caráter fluido da discriminação racial à brasileira (travestida, muitas vezes, em piadas, brincadeiras e condutas de interpretação duvidosa –
o chamado “racismo cordial”), tornou rarefeita
a eficácia do tão simbólico crime.
Não obstante a ineficácia da mera punição
ao crime de racismo como forma de combater
as práticas discriminatórias, ela ainda é preferida
– por legisladores, intérpretes e população em
4
5
geral – às medidas de ações afirmativas. E os
dois principais pontos de apoio a essa preferência são a valorização social dos sistemas meritocráticos e a idéia de que o princípio constitucional da igualdade repudia qualquer sistema
de cotas.
No que segue, analisaremos como o pensamento jurídico contemporâneo tem lidado
com a questão das flexibilizações do princípio
da igualdade que o torna receptivo às medidas
afirmativas. Antes, no entanto, vamos analisar
mais detidamente o que é o mérito, principal
cânone justificador da ascensão legítima em
nossa sociedade.
2
MERITOCRACIA E JUSTIÇA
Na pré-modernidade ocidental, a “pureza
e qualidade do sangue” eram considerados critérios suficientes para legitimar a ascensão e permanência de alguém no topo das posições de
poder e prestígio social.5 Com a substituição do
conceito de honra – a marca dos diferentes –
pelo de dignidade – a marca universal da igualdade (Taylor, 1994), operada na época das revoluções burguesas, tornava-se preciso justificar,
em termos de talento pessoal, a posse de uma
posição socialmente elevada. Montesquieu
(1987:102) escrevera: “para que um homem
esteja acima da humanidade, pela honra de
linhagem a ele atribuída, é preciso que os outros
paguem caro demais”. A honra de uns implicava
Veja-se sobre isso o julgamento no STF do HC n. 82.424-2, considerado pelo Ministro Marco Aurélio como um dos
mais importantes da história da Suprema Corte pátria, e cuja questão versava sobre se o paciente, autor e editor de
livros considerados como expressando prática de crime racial contra o povo judeu, pelo TJRG, de fato cometera tal
crime (ficando, assim, sujeito à imprescritibilidade do art. 5o, inc. XLII) ou se cometera não o crime de racismo, mas o
de discriminação – com supedâneo constitucional no inciso XLI do artigo 5o (que, então, já estaria prescrito). Por 8
votos a 3, o STF denegou o HC.
Não sem razão nos restringimos ao Ocidente, porque a China já fazia uso de critérios meritocráticos para o recrutamento
de funcionários públicos e certas posições de “honra” desde 206 a.C. (Cf. BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia.
Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 23).
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
55
D ireito
o servilismo de muitos, e incentivava, também,
a indolência do honrado e o reprimir dos
talentos dos submetidos. A sociedade perdia
duplamente.
Nos Estados Unidos, o precoce desprestígio
do nobre rebuscado (que representava o colonizador inglês)6 e a ascensão ovacionada dos self
made men são a versão mais enfática dessa passagem da política da honra para a do mérito pessoal. Em nosso meio, recentemente, a decadência dos socialites de estirpe e o simultâneo culto
aos “emergentes” (que se fizeram, presumivelmente, à custa de trabalho, sorte, empreendimentos ousados e um assumido desprezo pela
alta cultura) dão uma versão caricatural, mas
não menos contundente, dessa passagem.
É difícil negar que uma cultura que prefere
os mais realizadores, os mais talentosos e os mais
esforçados apresenta uma abertura à mobilidade
social maior do que aquelas em que as posições
são fixadas a partir do nascimento ou do casamento. Privilegiar o talento e não a linhagem é
também um poderoso incentivo para que a sociedade usufrua pessoas talentosas que, em busca
de recompensas individuais, podem vir a promover o bem coletivo. Em uma ética utilitarista,
em que as políticas públicas devem se organizar
segundo princípios que tragam o máximo de
benefícios ao maior número de pessoas, premiar
por méritos é não apenas uma aposta razoável,
como, talvez, a única justificável.
Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa seriam um prejuízo público, ao ajudarem a
ascensão de pessoas que, por si só, não ascen-
6
56
A r t i g o
deriam, além de ser um “meio artificial” de gerenciar a sociedade. Mas o que é um prejuízo
público? Certamente isso só poderá ser respondido se soubermos qual é o presumível ganho
social que se deixou de obter. Essa é a razão
pela qual Dworkin (2000:446) sustenta não
haver mérito em sentido abstrato, que o mérito
deve ser entendido como a posse de um meio
capaz de permitir à sociedade atingir algum de
seus fins. O talento atlético pode ser um mérito,
se for socialmente importante à obtenção de
vitórias em competições esportivas; a inteligência é ordinariamente um mérito, já que possibilita, em tese, a resolução de problemas sociais.
E a cor negra poderia ser um mérito? Sim, desde
que pudesse ser vista como um meio capaz de
permitir o alcance de um fim socialmente
valorizado.
Há fortes indícios de ganhos sociais gerais
caso a sociedade privilegiasse as minorias sociológicas, como os negros. No clássico artigo The
epidemic theory of ghuettos and neighborhood
effects on dropping out and teenage childbearing (1991), Jonathan Crane, com grande apoio
estatístico, sustenta que, quando em uma determinada população o número de modelos sociais
econômicos (pessoas que sejam, pelo menos, de
classe média) chega a uma proporção muito baixa
(algo em torno de menos de 5% da população
total), a violência, o consumo de drogas, o abandono escolar e a gravidez na adolescência crescem
explosivamente. Estudos qualitativos, como o
realizado por Willis (1991) na Inglaterra, parecem sugerir efeitos análogos quando os jovens
não encontram base concreta para acreditar que
Críticas que encontram ressonância tanto no sucesso que a doutrina do darwinismo social fez naquele país (no qual os
mais bem-sucedidos nos negócios tornaram-se, por antonomásia, os “mais aptos”), como na crença, anterior, na
fórmula de Benjamin Franklin de que é da frugalidade e da operosidade (duas características das quais os nobres eram
desprovidos) que se constrói uma sociedade de homens ricos e virtuosos. O impacto de idéias como a de Franklin
foram magistralmente analisadas no clássico de WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São
Paulo: Pioneira, 1985.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
vale a pena lutar para ser alguém na vida. Assim,
privilegiar as minorias seria uma forma de se
obter benefícios gerais e públicos.
Mas, o segundo argumento, que diz que os
negros ascenderiam “por meios artificiais”, talvez neutralizasse seu efeito de “modelo social”,
pois os negros, por exemplo, socialmente bemsucedidos, após a implantação de medidas de
ação afirmativa, seriam vistos como indivíduos
ajudados. Tal crítica padece, no entanto, do erro
de supor que o sucesso predominante dos brancos é algo naturalmente conquistado. Se a ação
afirmativa restringe artificialmente a concorrência que os negros terão de enfrentar para
serem bem-sucedidos, a discriminação racial
historicamente também vem ajudando a reduzir
a concorrência ante as posições que os brancos
procuram alcançar. E, a não ser que se encare
a discriminação racial contra os negros como
algo natural (o que tem sido comum), por trás
da predominância dos brancos na sociedade há
uma política artificial que os favorece. A diferença da ação afirmativa para essas políticas
igualmente artificiais (socialmente desenhadas)
está no fato de que aquela é explícita e tem,
pelo menos, uma razoável presunção de justiça,
enquanto essas são sub-reptícias e perpetuadoras de desigualdade.
Portanto, a não ser que se elabore um conceito de mérito abstrato (que seria tão fluido a
ponto de não ter muita utilidade), e não de
mérito para determinado fim (que bem pode
ser o de combate à discriminação racial), a promoção privilegiadora de determinadas pessoas
a partir de critérios como raça ou gênero pode
ser veículo de justiça, desde que esteja a serviço
do combate ao preconceito.
Ademais, mesmo se abandonarmos o conceito utilitarista de justiça e buscarmos o conceito
de justiça como igualdade, não há estranheza
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
no que é valorizado pela ação afirmativa, já que
ela simplesmente corrige – com eficácia
discutível, é verdade – as desigualdades pré-ordenadas, ao ponderar, no critério de avaliação,
a maior dificuldade presumida que aquele indivíduo negro teve, por exemplo, de enfrentar
para chegar até o momento da inscrição no concurso. Conforme se extrai da leitura de Singer
(1984), uma nota média de um negro no vestibular pode bem representar um potencial de
superação maior do que a nota máxima daqueles cuja vida escolar não foi marcada por preconceito, discriminação e exclusão social.
3
AS DISCRIMINAÇÕES E O DIREITO
Todos são iguais perante a lei, diz o princípio da igualdade, consignado na grande maioria
das Constituições contemporâneas. Segundo alguns, estaria aí evidenciado o óbice principiológico às políticas de ação afirmativa. Para outros,
o aludido princípio vedaria apenas e tão-somente as discriminações atentatórias ao conceito de igual dignidade humana, permitindo
que se discriminasse sempre, e apenas, quando
a resultante de tal processo fosse uma redução
das desigualdades sociais. Assim, a prisão especial (CPP, art. 295) seria uma discriminação
atentatória ao princípio isonômico – e como tal,
não recepcionada por nossa Constituição atual –,
já a prioridade na tramitação de processos em
que figure como parte ou interveniente alguém
idoso (Estatuto do Idoso, art. 71) estaria correta,
uma vez que tem por escopo permitir uma mais
imediata prestação jurisdicional àqueles que, na
média, dispõem de menos tempo para aguardá-la
ou usufruir seus resultados.
O fato é que discriminar, ou seja, dar tratamento jurídico diferenciado a casos aparentemente iguais, é uma das tarefas mais corriqueiras
no Direito, pois, como lembra Alexy (1997:384),
57
D ireito
tratar a todos, e sob todos os aspectos, de forma
igualitária levaria à criação de normas injustas,
disparatadas e disfuncionais, uma vez que as
pessoas diferem em suas posições jurídicas (um
eleitor é diferente de um candidato), situações
de fato (homens são diferentes de mulheres) e
em suas ações (um criminoso é diferente de um
inocente). Diante disso, o problema das discriminações estabelecidas pela lei resume-se, na
lição de Bandeira de Mello (1997:13), em saber
quais os limites que adversam este exercício
normal, inerente à função legal de discriminar.
A busca de limites aceitáveis para as operações de discriminação jurídica tem levado à
construção de teorias sobre os critérios que diferenciam uma discriminação legítima de uma
discriminação legalmente vedada. Vejamos o
que dizem sobre isso alguns autores de inegável
influência no pensamento jurídico atual.
Para o jurista alemão Robert Alexy (1997),
o que a máxima da igualdade proíbe são os tratamentos arbitrariamente desiguais. Valendo-se
dos critérios freqüentemente utilizados pelo Tribunal Constitucional Alemão, diz que a arbitrariedade ocorre quando não há uma razão suficiente para justificar a desigualação operada.
Assim, toda distinção que não é razoável, atinente à natureza das coisas ou concretamente
compreensível estaria vedada. Pode-se operar
discriminações, não se pode é operá-las a partir
de critérios bizarros ou irrazoáveis.
Essa é, para Alexy, a versão atenuada do
princípio da igualdade, porque permite a desigualdade desde que haja razões suficientes para
promovê-la. Assim, poder-se-ia tratar negros e
brancos de forma diferenciada, desde que presente alguma razão suficiente para realizar tal
diferenciação. Mas Alexy vai além: sustenta um
dever do Estado em tratar desigualmente os cidadãos quando há razão suficiente para isso.
58
A r t i g o
Nesse sentido, os cidadãos têm um direito prima
facie a serem tratados de forma juridicamente
desigual com vistas a seu benefício, desde que as
razões que apresentem para que se opere tal
diferença a justifiquem. E tal justificativa deve ser
suficientemente forte a ponto de permitir, para o
caso, a quebra da igualdade formal de todos.
Dessa forma, uma política de ação afirmativa (como a de cotas reservadas para negros
em universidades) seria não só aceitável como
devida, desde que as razões em favor dessa desigualdade pudessem desbancar o peso dos princípios que exigem um igual tratamento de todos na
lei e perante a lei. Em síntese, o Estado alexyano
deve tratar a todos de forma igualitária, repudiando quaisquer diferenciações, a menos que
suficientes razões sejam apresentadas em favor
de um tratamento desigualitário.
O norte-americano Ronald Dworkin, por
sua vez, enfrentando a questão da ação afirmativa no seu país, cuja Constituição abrigou,
durante a maior parte da história, concepções
escravagistas e segregacionistas, pretende demonstrar por que há inconstitucionalidade na
discriminação racial baseada em preconceitos,
mas não nas discriminações raciais que
sustentam as medidas de ação afirmativa.
Pela 14a Emenda à Constituição dos EUA,
está vedado que qualquer Estado negue a uma
pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das
leis. Isso significa, para Dworkin (1999: 455),
que as leis e disposições políticas hão de demonstrar igual interesse pelo destino de todos.
Tal emenda, embora não especifique o que deve
ser entendido por igualdade, exige que cada
órgão governamental possua uma concepção
plausível desse princípio, capaz de garantir a
igual proteção legal de todos diante de qualquer
um ou de qualquer um diante de todos. É a idéia
do direito de igualdade como um trunfo individual, oponível erga omnes.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Sendo dever de cada órgão – legislativo, administrativo ou judiciário – basear suas decisões
em uma certa concepção de igualdade, Dworkin
(2000:445) analisa as concepções ordinariamente apresentadas:
suspeitas. É
1) Teoria das classificações suspeitas
aquela que nega qualquer direito especial
contra a discriminação, feita a partir de
qualquer critério, só vedando distinções
não-razoáveis. Como as classificações
raciais historicamente têm sido feitas
sem essa base de razoabilidade, elas são
tidas como suspeitas. Mas essa suspeita
é um impeditivo meramente relativo.
Bastaria mostrar que segregar os negros,
por exemplo, traria amplos benefícios
públicos para que tal segregação fosse
tida como razoável. Assim, em se provando que a separação dos freqüentadores de casas noturnas por critérios raciais seria capaz de diminuir a violência
urbana, dir-se-ia haver razoabilidade
nesta distinção, autorizando-a. O critério
que inspira esta teoria é claramente
utilitarista: uma discriminação é razoável
em função do grau de benefícios públicos por ela gerados.
2) Teoria das categorias banidas
banidas. Para essa
teoria, a Constituição negaria a utilização de certas categorias para fazer distinções, independentemente de seu resultado. Estaria banido das autorizações
constitucionais o emprego de termos como cor e raça enquanto operadores de
diferenciação jurídica, independentemente de seus objetivos ou resultados.
Aqui não haveria diferença entre medidas de ação afirmativa e políticas segregatórias baseadas em ideologias que pregam a inferioridade dos negros: ambas
as políticas estariam vedadas.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
3) Teoria das fontes banidas. Para essa
teoria, não se analisaria nem o resultado
da política discriminatória, nem as
categorias que ela utiliza, mas sua relação
com direitos individuais e preconceitos.
Assim, mesmo políticas discriminatórias
que trouxessem um benefício máximo
à maioria das pessoas estariam vedadas
se fossem calcadas em preconceitos – já
que é um direito individual (oponível
contra toda a sociedade) não ter um negro, por exemplo, de se sacrificar para
promover o bem-estar coletivo, sob o
patrocínio de preconceitos. Mas se uma
política discriminatória não se baseasse
em preconceito, mas em seu combate,
não haveria sua vedação em tese. Com
efeito, tal política, em um regime democrático, poderia ser traduzida como uma
restrição que os privilegiados fazem a si
próprios (diminuindo suas vagas nas
universidades, por exemplo) na busca de
resultados sociais mais justos (distribuição mais eqüitativa de vagas entre os
diferentes grupos sociais).
Dworkin é partidário da teoria das fontes
banidas como a única que leva os direitos a
sério. Com efeito, a primeira teoria tem um caráter marcadamente utilitarista: se os benefícios da segregação forem altos, seria dito haver
razoabilidade em manter políticas de separação
racial, e o direito dos prejudicados à igualdade
seria desconsiderado. A segunda teoria (das
categorias banidas) simplifica demais a questão,
impedindo que se separe uma medida desigualitária em sua execução, mas igualitária em seus
fins, de uma teoria marcadamente racista. Por
essa teoria, uma medida de ação afirmativa
equivaleria a uma medida de segregação racial
nos moldes históricos das sociedades de passado
escravocrata.
59
D ireito
Já a teoria das fontes banidas, ao sustentar
que o que não pode prevalecer são as preferências baseadas em preconceitos, deixa qualquer
distinção por categoria no âmbito das possibilidades, permitindo separar adequadamente
uma medida que quer fazer valer o direito das
minorias das medidas que querem prejudicá-las.
A exemplo de Dworkin, o jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli (2001) também classifica os
diversos modelos de que dispõe o juiz para
decidir acerca das distinções que podem ser
conduzidas em um regime que tenha no
princípio da igualdade sua pedra angular. Tais
modelos são expostos a seguir.
1) Indiferença jurídica das diferenças
diferenças.
Nesse modelo não se atribui qualquer
relevância jurídica às diferenças. Deve o
legislador/juiz proceder como se elas não
existissem (color blind). Mas, ao não
tutelar preferencialmente as categorias
mais vulneráveis da sociedade (negros,
mulheres, idosos etc.), o Direito, quer
admita ou não, está tutelando os mais
fortes, já que tudo de que estes necessitam é a própria ausência de direito
(abstenções de Estado) para fazer valer
sua superioridade política. São os que
vivem em situação socialmente precária
que dependem, prioritariamente, de que
o Direito lhes empreste à tutela, como
forma de resistirem à opressão dos
grupos socialmente poderosos e fortes.
2) Diferenciação jurídica das diferenças
diferenças.
Nesse modelo há uma hierarquização
das diferentes identidades, atribuindo a
algumas status jurídico privilegiado, e a
outras, sujeições discriminatórias. É o
regime adotado pelos Estados que valorizam o homem mais do que a mulher, o
branco mais do que o negro etc. Estados
marcadamente discriminatórios e funda60
A r t i g o
mentados em concepções arcaicas sobre
a natureza das diferenças entre os fenótipos humanos. Corresponderia, tal doutrina, à tutela jurídica dos preconceitos.
3) Homogeneização jurídica das diferenças
ças. Aqui as diferenças são desconsideradas para que cedam lugar a uma identidade normativa, única que o Estado
admite como relevante. Assim, não existem o branco ou o negro, mas apenas o
cidadão universal. O problema é que esse
“modelo universal” é construído à imagem e semelhança do modo de vida dos
dominantes: homens brancos. À vitimização pelo preconceito ou discriminação
é dada pouca ou nenhuma relevância. É
possível notar que, neste caso, há uma
“universalidade de fachada”. A despeito
de não dar relevância às diferenças,
reduzindo-as a denominadores comuns,
o Direito patrocina determinado modo
de vida que serviu de standard à formação do modelo que passou a ser considerado universal, deixando de levar a sério os problemas enfrentados pelas categorias sociais oprimidas.
4) Igual valorização jurídica das diferenças
ças. Nesse último modelo, o Estado
tutela as diferenças de forma igualitária,
permitindo seu livre desenvolvimento.
Para isso, empresta-lhes a força equilibrante dos direitos fundamentais. Diz o
autor (2001:76):
“A igualdade diante dos direitos fundamentais
resulta assim configurada como o igual direito
de todos à afirmação e à tutela da própria identidade, em virtude do igual valor associado a
todas as diferenças que fazem de cada pessoa
um indivíduo diverso dos demais e de cada indivíduo uma pessoa como todas as outras.”
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Trata-se do direito à igual dignidade; do reconhecimento de que as diferenças existem e
que são bases legítimas para reivindicar a tutela
do Estado para continuarem a existir.
É esse último modelo o defendido por Ferrajoli, que, especificamente no referente à ação
afirmativa, acredita que ela pode ser usada como
um corretivo à tese da homogeneização. Como
já dito, o Direito, ao pretender tratar todas as diferenças a partir de um único critério (sujeito
abstrato universal), acaba beneficiando as identidades que foram tomadas como modelo para a
constituição desse sujeito (ao qual se atribui abstração e universalidade). Portanto, seria aceitável, com fundamento no princípio da igualdade,
a existência de normas que selecionem positiva
e transitoriamente (enquanto necessário) certas
identidades que, por se afastarem do modelo
padronizado pelo Direito, amargam a desigualdade de tratamento no mundo dos fatos.
Embora não esteja tratando diretamente das
políticas de ação afirmativa, a análise que Celso
Antônio Bandeira de Mello (1997) faz do princípio
da igualdade pode-nos esclarecer como tais
políticas dialogam com o ordenamento jurídico
pátrio. Para esse autor, uma diferenciação de
tratamento jurídico é intolerável não só quando
resulta de uma norma que individualiza prévia e
absolutamente seu destinatário (concedendo a
alguém um privilégio pessoal e único ou
perseguindo-o de forma pessoal e individualizada),
como quando não há correlação lógica entre a base
material de diferenciação (sexo, raça, idade etc.)
e o regime jurídico diferenciador correspondente.
Diz Bandeira de Mello (1997:17):
“(...) que as discriminações são recebidas como
compatíveis com a cláusula da igualdade apenas e tão-somente quando existe um vínculo
de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
desigualdade de tratamento em função dela
conferida, desde que tal correlação não seja
incompatível com interesses prestigiados na
Constituição.”
A análise da quebra ou não do princípio
igualizador seguiria, para Bandeira de Mello, as
seguintes etapas:
1) Determinar o fator de desigualação (sexo,
raça, altura...);
2) Analisar os regimes jurídicos diferenciados
por força daqueles fatores (“às mulheres é
vedado...”, “aos descendentes de escravos
será concedido...”, “não serão admitidos
candidatos com altura inferior a...”);
3) Analisar se há correlação lógica entre as
etapas I e II, entre a diferença considerada
e o regime jurídico diferenciador (“às
mulheres é vedado ingressarem na Academia de Polícia”; “Aos descendentes de
escravos serão concedidas bolsas de estudo
para compensar a situação social em que
freqüentemente se encontram hoje...”;
“Para ingresso na Marinha, o candidato
deve ter altura mínima de 1,63 m...”);
4) Analisar se tal correlação lógica é compatível com as prescrições constitucionais
(a igualdade constitucional entre homens
e mulheres não proibiria a vedação de
ingresso destas em academias de polícia?
A categoria “descendentes de escravos”
não seria uma discriminação pela cor
vedada pela Constituição, ainda que estatisticamente se possa provar que a herança
do período escravocrata lhes traz embaraços econômicos presentes? A exigência
da altura mínima para ingresso na Marinha seria aceitável em um regime constitucional que diz que é dever do Estado
integrar até deficientes em seus quadros
61
D ireito
de pessoal, quanto mais pessoas levemente abaixo da altura padrão?).
Em resumo, para se saber se uma norma
faz uma discriminação legítima ou arbitrária, é
preciso ver se ela não discrimina de forma absoluta seu destinatário e se há razoabilidade entre
a diferenciação feita e os objetivos pretendidos,
que devem, ainda, ser, pelo menos, não vedados
pela Constituição.
Dessa forma, há um amplo leque de possibilidades de criação de regimes jurídicos diferenciados legítimos, permanecendo como inválidos aqueles que não sejam capazes de cumprir
os requisitos supra descritos. Quanto às políticas de ação afirmativa (no seu modelo mais simples, de cotas), não haveria vedação a priori, já
que não individualizam prévia e absolutamente
seus destinatários (ao contrário, estendem-se a
toda uma classe de pessoas) e têm por escopo
reduzir a desigualdade (o que corresponde a um
princípio basilar do Estado brasileiro).
Em conclusão a este tópico, parece claro
que os citados autores atestariam a justiça interna, nos ordenamentos dos Estados democráticos de direito, da aplicação de medidas de ação
afirmativa, desde que tais políticas:
1) Não estivessem baseadas em preconceitos;
2) Operassem apenas em situações nas
quais a aplicação ortodoxa do princípio
da igualdade se mostrasse ineficaz veículo de justiça;
3) Fossem realizadas como flexibilizações
razoáveis do princípio da igualdade;
4) Ponderassem valores fundamentais
concorrentes do ordenamento jurídico
em questão;
5) Garantissem a dignidade do ser diferente
mediante o combate à desigualdade de
oportunidades sociais.
62
A r t i g o
4
APONTAMENTOS FINAIS
A despeito dos que defendem, no Brasil, a
doutrina do color blind, não há dúvida de que
quando a Constituição Brasileira, por exemplo,
veda distinções por cor, raça ou sexo, está
direcionada à proibição das distinções inferiorizantes e não daquelas cujo objetivo é a redução
das desigualdades. Para confirmar o sentido
dessa interpretação, basta proceder a um inventário do porquê histórico de palavras como cor
e raça figurarem em nosso texto constitucional:
sem dúvida, para combater as distinções que
tomavam os diacríticos raça ou cor como fonte
de hierarquização social. E, como lembra
Coelho (1997:44):
“Refazer a pergunta sobre quais foram os problemas sociais que ensejaram determinada resposta normativa, é, portanto, um recurso hermenêutico a mais, que não pode ser desprezado,
sobretudo quando se pretenda descobrir a razão subjacente a um enunciado normativo cujo
significado se nos apresente, de alguma forma,
problemático.”
Nossa Constituição não proíbe distinções
por origem, raça, cor, sexo ou idade, veda-as,
isto sim, quando baseadas em preconceitos (art. 3o,
IV). Veda-as quando constituem práticas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais
ou quando constituem prática de racismo (art. 5o,
XLI e XLII). Veda-as, ainda, quando são usadas
para dificultar o acesso ou aviltar o salário dos
trabalhadores negros, mulheres e idosos (art. 7o,
XXX). Mas aceita-as quando são favoráveis aos
menos protegidos socialmente: proteção do
mercado de trabalho para a mulher (art. 6o, XX),
reserva de vagas aos portadores de deficiência
(art. 37, VIII) etc.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Tanto o sentido da proibição das citadas
distinções, verificado em nossa Constituição, limita-se ao seu uso preconceituoso que poucos
– se é que os houve – ousaram alegar que a
reserva de vagas para portadores de deficiência
física representava uma contradição no TextoMor. E por que não representa? Porque seu objetivo é uma maior isonomia final na sociedade e
não o de perpetuar distinções odiosas. Da mesma
forma, o recente Estatuto do Idoso é pródigo
em reservar vagas para pessoas com mais de 60
anos (3% nos programas habitacionais; 5% das
vagas nos estacionamentos; 10% dos assentos
nos coletivos urbanos etc.). Também neste caso
ninguém alegou inconstitucionalidade. A verdade é que a reserva de vagas aceita em nosso
país vai da participação obrigatória de mulheres
em candidaturas a cargos políticos à reserva de
espaços privilegiados aos presos de “primeira
classe”, abrangidos pela mais que discutível rubrica da prisão especial.
Diante, então, de um país tão receptivo a
sistemas de cotas, como justificar que tal expediente seja visto com tanta desconfiança quando os beneficiários são os negros? É claro que
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
há problemas de operacionalidade adicional nas
cotas raciais. Afinal, quem é negro no Brasil?
Em um país de miscigenação como o nosso, o
número varia entre 5 e 45% da população!,
conforme sejam, ou não, somados os que se
auto-intitulam, junto ao IBGE, como pardos ou
descrições afins (mulatos, caboclos etc.). Quanto de “negritude” é preciso possuir para exercer
legitimamente o direito às cotas? Haveria perícia
para isso? Negros ricos também fazem jus ao
privilégio a expensas dos interesses de brancos
pobres?
Talvez sejam essas questões relativas à
operacionalidade o que tem impedido que o debate sobre as ações afirmativas no Brasil saia da
fase embrionária, ou que não passe de mera exegese da doutrina norte-americana sobre o
assunto. Expediente, este último, comumente
utilizado para nos fazer sentir em sintonia com
o debate universal dos grandes temas, sem que
precisemos lidar com os óbices apresentados em
suas concretizações. É mais um caso em que a
tão sonhada fantasia de pureza no Direito procura nos inocentar diante de nossa dificuldade
em lidar com a miscigenação da realidade.
63
D ireito
A r t i g o
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Madri:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
BARBOSA, L. Igualdade e meritocracia. Rio de Janeiro:
FGV, 1999.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado, 2003.
CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional. Coimbra:
Almedina, 1999.
CRANE, J. The epidemic theory of ghuettos and neighborhood
effects on dropping out and teenage childbearing. American
Journal of Sociology, Chicago, n. 5, mar. 1991.
DWORKIN, R. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel
Derecho, 1989.
MELLO, C. A. B. O conteúdo jurídico do princípio da
igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.
MONTESQUIEU, C. L. Do espírito das leis. São Paulo:
Abril Cultural, 1987.
SELL, S. C. Ação afirmativa e democracia racial: uma
introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2002.
SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. São
Paulo: Malheiros, 1996.
SINGER, P. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
———. Ética privada e igualitarismo político. Barcelona:
Paidós, 1993.
———. A companion to ethics. Blackwell Companion to
Philosophy. Oxford: Blackwell Publications, 1995.
———. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
TAYLOR, C. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget,
1998.
———. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
64
GRIN, M. Políticas de ação afirmativa e ajustes normativos: o seminário de Brasília. São Paulo: Novos estudos
CEBRAP, n. 59, mar. 2001.
FERRAJOLI, L. Derecho y razón. Madri: Trotta, 1995.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1985.
———. Derechos y garantías: la ley del más débil. Madri:
Trotta, 2001.
WILLIS, P. Aprendendo a ser trabalhador. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1991.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
A UNIVERSIDADE, O ESTUDO
DO DIREITO E A NOVA
REALIDADE
Carlos João Eduardo Senger
Co-coordenador e Professor da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito do
Curso de Direito do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul (SP).
Doutorando pela Universidade do Museo Social Argentino, Buenos Aires, Argentina.
Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Consultor Jurídico e Advogado.
R E S U M O
ABSTRACT
O tema abordado tem como idéia cerne trazer ao
debate acadêmico uma preocupação com o real
sentido e projeção da instituição denominada
universidade ou do ensino universitário, focado em
um prisma de modernidade, e de um mundo globalizado, como notável centro produtor e difusor
de conhecimentos e cultura, principalmente de posicionar seus eixos estruturais fundamentais dentro
dessa nova realidade global que vivemos, com as
naturais expectativas e que detém inequívoca influência na ordem mundial. São contingências
detectadas nos dias atuais com implicações e sérios
reflexos na ordem social, se consolidando numa
seqüência de lições, nos impulsos e aos estímulos
das universidades mais antigas, responsáveis pela
floração e base desta contingência moderna, quanto
as idéias produto do avanço cultural, e da veiculação
dos seus ideais na construção de uma consciência
de cultura da humanidade, do individual para o
global, no rumo da sonhada integração, voltada para
a prosperidade social mais humana, a repercutir
nos vários segmentos sociais e, por conseqüência,
de forma mais intensa no próprio estudo do
Direito, por suas profundas raízes sociais.
The boarded theme has as idea sifts bring to the
academic debate a preoccupation of the real sense
and projection of the denominated institution
University or of the academic, focused teaching in
a modernity prism, and of a globalized world, as
notable producing and diffuser center of knowledge
and culture, mainly to locate its basic structural axles
inside of this new global reality that we live with
the natural expectations and that detains unequivocal
influences the world order. They are limitations
detected in the current days with implications and
serious reflexes in the order social, consolidating
itself in a lessons sequence, in the pulses and to the
stimulus of the older, responsible universities for
the florescence and base of this modern contingency, how much the product ideas of the cultural
advance, and of the propagation of its ideals in the
construction of a culture conscience of the humanity
of the individual for the global, in the direction of
the dreamt integration, come back toward the social
for prosperity more human being, to rebound in
the several social segments and for consequence of
more intense form in the own study of the right,
for their profound social roots.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
39
D ireito
1
INTRODUÇÃO
Inicia-se o presente artigo com uma recomendação da Comissão Internacional de Educação da Unesco sobre a Educação para o século
XXI, presidida por Jacques Delors, no sentido
de que:
“La utopía orientadora que debe guiar nuestros
pasos consiste en lograr que el mundo converja
hacia un mayor entendimiento mutuo, hacia
un mayor sentido de la responsabilidad y hacia
una mayor solidaridad, sobre la base de la
aceptación de nuestras diferencias espirituales
y culturales. Al permitir a todos el acceso al
conocimiento, la educación tiene un papel muy
concreto que desempeñar en la realización de
esta tarea universal: ayudar a comprender el
mundo y a comprender a los demás, para comprenderse mejor a sí mismo”.
Recorrendo à elucidação da história sobre
a matéria focalizada, importante é o pensamento da lavra do emérito professor Waldemar
Martins Ferreira ao afirmar em seu livro que:
“Nenhum jurista pode dispensar o contingente
do passado a fim de bem compreender as instituições jurídicas dos dias atuais”.1
A universidade pode ser entendida como um
centro de cultura superior orientado por uma
liberdade acadêmica e de conseqüente autonomia. O vocábulo tem origem na palavra latina
universitas, e segundo F. J. Caldas Aulete em
1
2
3
4
40
A r t i g o
seu notável léxico, tem o significado de: “a totalidade das pessoas e das coisas, universalidade
(qualidade do que é universal, geral), reunião
de escolas da ordem mais elevada...”,2 com o
detalhamento dado por Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira em seu novo dicionário: “universalidade. Instituição de ensino superior que
compreende um conjunto de faculdades ou escolas para a especialização profissional e científica, e tem função precípua garantir a conservação e o progresso nos diversos ramos do conhecimento, pelo ensino e pela pesquisa”,3 e
extraído no léxico espanhol de Julio Casares em
seu Dicionário ideológico: “universidad. Instituto
publico donde se cursan ciertas facultades, y se
confieren los grados correspondientes. Instituto
publico de enseñanza donde se acian los estudios
mayores de ciencias y letras”,4 cumprindo assim
afirmar que o ensino, a ministração do saber e do
conhecimento, representam o principal objetivo
institucional da entidade denominada universidade, abrangendo todos os ramos da instrução
superior no nível universitário, qualificando-se
como uma pessoa jurídica ficta integrada por uma
comunhão de pessoas, a quem se outorgara
alhures também a denominação de corporação.
O propósito de enfocar-se o tema é justamente em razão da sua atualidade, e de oportunizar uma colocação mais avançada de parte
da comunidade acadêmica interessada, para
carrear-se, ao campo amplo e fecundo das idéias,
a instauração de reflexões e debates acerca do
desenvolvimento ideal das universidades na
ministração do ensino superior nos dias atuais,
aspectos considerados áridos e polêmicos, plenos
de preocupações ex vi deste aceno real de mo-
História do direito brasileiro, p. 11.
Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, p. 1.389.
Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.430.
Diccionario ideológico de la lengua española, p. 1.072.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
dernidade globalizante que está a envolver toda
a sociedade onde vivemos, a repercutir em todos
os seus segmentos ativos, com indiscutível sorte
de influências, quer na área pública quer na área
privada, e muito mais na educação ideal a ser
transmitida às novas gerações.
O sentido da empreitada é, de forma modesta, possibilitar uma visualização da importância e magnitude que está a representar para
o ensino superior em si, e o ensino do Direito,
revolvendo um pouco da sua história, e através
das entidades é que se propõe realizá-lo, sobretudo nos grandes aglomerados educacionais
compostos de universidades e de centros universitários em nosso país. Busca-se fixar a sua
evolução no decorrer dos tempos e das épocas,
tendo em vista as suas metas, e principalmente
como um centro produtor e difusor perene na
construção de conhecimentos, na aplicação
constante do saber, e com a responsabilidade
de exercer uma verdadeira revolução na manipulação e desenvolvimento da alta tecnologia,
tudo ao matiz do inelutável progresso social e
dos avanços no campo científico.
2
A UNIVERSIDADE EM SI
A universidade como uma instituição formal,
ao que nos indicam os predicamentos da história,
pode ser considerada como uma invenção do
período medieval, tendo como embrião os estudos
gerais mais precisamente na baixa Idade Média
(1150-1474), e que nos seus primórdios era
considerada uma comunidade integrada de professores e alunos para a busca do saber, bem como
para transmitir os resultados desta investigação e
conhecimento. Nasceu assim:
organizaram para atrair professores e pessoas mais dotadas de cultura às reuniões de
estudos em comum, a fim de estabelecer
suas cátedras (tribuna de conhecimentos)
em suas respectivas cidades; e,
b) de uma reunião de professores, que se
uniam para formar um foro acadêmico, na
permutação e intercâmbio de idéias, e que
se denominavam de reuniões acadêmicas.
Etmologicamente, a palavra cátedra vem do
grego kathedra, de onde deriva a expressão “cadeira”, em um sentido de lugar, usada pelos bispos e autoridades clericais nas suas catedrais e
pelos professores nas universidades, e de onde
naturalmente falavam para a sua platéia.
Estas organizações tomaram a forma de associações, que se tornaram comuns na baixa
Idade Média (associações, corporações de ofícios), mais relacionadas com o sentido de “grêmios”, isto é, de agremiações, e justamente nesta forma de associação e nesta mesma ordem
de idéias é que nascem as universidades como
pessoas fictas com a feição de uma corporação,
composta de estudiosos (professores) mais experientes, reunidos em uma cidade para transmitir seus conhecimentos, inclusive com estatutos de organização aprovados e com regras
estabelecidas, que eram de todo respeitadas pela
comunidade integrante: professores e alunos.
No dizer de Jacques Verger em seus estudos
especializados,
a) em seu momento inicial, como uma corporação de discípulos afeiçoados que se
5
“A la época de creación de las universidades no
existia lo que hoy conocemos como enseñanza
primaria o ensenãnza secundaria, ni, por lo tanto,
la enseñanza superior. La enseñanza estaba abandonada a la iniciativa privada y local, com un
prestigio social y político limitado...”5
Gentes del saber en la Europa de finales de la Edad Media, p. 51.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
41
D ireito
Assim, as universidades nasceram como
verdadeiros espaços de investigação e de estudos
que, em resumo, se caracterizaram:
a) pelo trabalho docente constante na busca do saber;
b) pela integração do conhecimento, e com
isso acabando por regulamentar o ofício
do intelectual; e
c) tendo a ciência como centro de toda investigação e pesquisa.
Outra peculiaridade marcante desde o seu
nascedouro, é a idéia fixa de liberdade acadêmica
e de autonomia universitária, componentes que
em sua estrutura representavam a ampla reflexão na possibilidade de definir seus fins e objetivos, na elaboração de seus próprios planejamentos e programas; máxime, no sentido de garantir o livre exercício da investigação, da atuação dos docentes, e do acesso indispensável às
fontes de informação.
É certo que a universidade medieval apareceu principalmente na preparação de formas
mais racionalizadas, intimamente relacionadas
com o exercício da autoridade da igreja Católica,
do governo e da sociedade, dando oportunidade
ao surgimento: das escolas monásticas, ligadas
às abadias e aos monastérios; das escolas episcopais, capitulares ou catedralícias que se desenvolviam nas cidades havidas como sedes das
dioceses religiosas, e que mantinham uma dependência direta para com os bispos clericais.
Impõe-se considerar que, neste período decantado como obscuro da alta Idade Média, a
igreja Católica era um núcleo social dos mais
organizados ao seu mister sacerdotal, daí
advindo a relevância de sua atuação. Por sua
vez, com os monarcas, surgiram as escolas pala-
6
42
A r t i g o
tinas, também chamadas palacianas, sendo a
primeira criada no ano de 777 pelo imperador
Carlos Magno – voltada para a educação intelectual – que convocou para suas atividades renomados pensadores e estudiosos de sua época,
constando dos seus registros e dos anais históricos que esta escola foi transferida para Paris
por Carlos Calvo, e que é considerada por alguns
pesquisadores como um antecedente remoto e
expressivo para a criação da tradicional Universidade de Paris.
Nestas escolas, e nas primeiras universidades, em seus currículos e nas matérias aplicadas
aos seus programas e estudos, já correspondiam
a evolução do trivium – estudos de gramática
(latim), retórica (artes) e lógica ou dialética (o
estudo do pensamento com base no filósofo
grego Aristóteles), que era considerado o caminho triplo da busca da sabedoria; e do quadrivium – que correspondia a aritmética, geometria, astronomia e música, havido como o caminho quádruplo para o desvendar do conhecimento, classificadas como todas as sete artes
liberais (uma criação da alta Idade Média (7111150), como nos lembra o culto professor argentino Abelardo Levaggi: “Desde fines del período, las ciudades, en processo de repoblación,
organizaran sus propias escuelas...”6 se incorporando às mesmas os estudos: da teologia, da
medicina e do direito, ressaltando-se como dado
de singular expressão que a música ocupou um
lugar de destaque em razão justamente dos cânticos nos ofícios e no culto cristão que integrava,
e segundo o entender muito apropriado dos
pensadores gregos, como um meio para a perfeição do espírito.
Dessa forma, observa-se claramente que as
primeiras universidades se formaram a partir
Manual de historia del derecho argentino, p. 336.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
da própria experiência, com um predomínio
bem claro do conhecimento empírico, com sua
gradativa e lenta instituição como organização.
Com o natural domínio da igreja Católica à
época, a sua cúpula, por meio do papado, em
meados do século XIII, no propósito de converter as universidades em modelos de instituições
cristãs formalizadas, unificou-as sob a forma de
estudos gerais, protegidas e controladas pelas
autoridades eclesiásticas, com a direção da Igreja
incentivando o seu desenvolvimento em novas
universidades, tendo, como objetivos bem
definidos, o sentido deliberado de dar qualificação
ao seu pessoal religioso e consolidar um poder
cultural de parte da Igreja, para tanto lhes fornecendo proteção e segurança, buscando também alcançar uma projeção voltada para um
aspecto mais internacionalizado.
Nas carreiras profissionais havia componentes laicos, com disciplinas de Direito Civil, Direito Canônico e estudos de medicina, e como
isso o papado tinha como preocupação e intenção criar um clima de harmonização entre as
crenças contraditórias das diversas ordens religiosas, na firme disposição de fortalecer o poder
do papado, e também no propósito de incorporar pessoas mais eruditas e afinadas para assumir um status clerical.
Dado expressivo deve ser registrado: nesse
mesmo tempo, as universidades também contaram com o apoio igual da autoridade civil, por
meio dos imperadores, dos reis e das autoridades
municipais, que tiveram praticamente a mesma
idéia da adotada pela Igreja, precipuamente na
formação de pessoas súditas para serem os colaboradores do poder, inclusive criando outras
universidades, as quais tiveram maior proliferação nos séculos XIV e XV, estimuladas por
financiamentos, o que contribuiu para aumentar ainda mais os núcleos de estudos e a própria
população estudantil.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
3
AS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES
As grandes universidades organizadas no
período medievo baixo e de maior expressividade são: a de Paris, de Bologna, de Oxford e
de Cracóvia na Polônia, apontadas como as mais
antigas da Europa:
Universidade de Paris. Apareceu no século
XII, formada a partir de professores e alunos
pertencentes à escola da famosa catedral de
Notre Dame e de outras escolas de Paris. Por
força dos movimentos de enfrentamento entre
alunos e autoridades civis, ficou marcada por
um episódio bastante triste e com a morte de
muitos alunos.
Esta universidade foi um centro de estudos,
considerada a mais destacada da Idade Média,
especialmente pelos estudos profundos de teologia e filosofia. Tinha um caráter acentuadamente eclesiástico (religioso), e um dado expressivo é que Santo Tomas de Aquino pertenceu a ela.
Universidade de Bologna. Surgiu também
no século XII como escola episcopal especializada em Direito Canônico, Municipal, e em Direito Civil. Formou-se a partir de uma associação voluntária de estudantes que foram ouvir
Werner Irnério, professor de Direito e monge
religioso, ministrar seus conhecimentos. O
registro marcante dessa universidade é que foi
a primeira a ensinar o Direito, e servir de padrão
às demais.
O prestígio de Bologna à época se deve a
que era um ponto de confluência de rotas comerciais e de peregrinos do norte até Roma.
A pesquisa aos anais nos informa que o
imperador Felipe I tinha interesse na aplicação das
leis romanas para atender suas pretensões como
imperador, pois os estudantes de Bologna eram
pessoas adultas, que financiavam a universidade
e a controlavam elegendo o seu reitor.
43
D ireito
Constituiu-se em um centro de interesse
de estudos do Direito, por ser a primeira a estudar o Direito Romano; e pela proteção que
teve do imperador, Bologna se notabilizou, e
teve o afluxo de pessoas estudantes que ali
formaram uma comunidade, inclusive com pessoas vindas de outros lugares, destacando-se
pelos estudos de Direito Canônico, Direito Civil,
assumindo a recuperação do Direito Romano,
considerado o feito mais importante, atribuído
ao monge e professor Werner Irnério e seus
discípulos, que formaram o grupo denominado
glosadores.
A respeito, assinala o professor Levaggi:
“El hallazgo fortuito em Italia, a fines del siglo
XI, de un manuscrito del Digesto, la obra ignorada en los siglos anteriores, le permitió a
Irnerio y a sus discípulos acceder a la jurisprudencia clásica e inaugurar la ciencia jurídica
medieval...”7
Universidade de Oxford. Igualmente, surgiu no século XII. A presença estudantil concorria
nas escolas religiosas, conventos e monastérios.
Característica marcante dessa universidade
é que em 1209 registra um movimento estudantil com a morte de muitos alunos, e em conseqüência, alunos e professores decidiram abandonar a cidade, alguns se mudando para Paris e
Cambridge, e nesta cidade inglesa formaram
uma nova universidade. Os que permaneceram
em Oxford tiveram o reconhecimento eclesiástico para o ensino, com a proteção do bispado,
acabando por se destacar no ensino da teologia
e das ciências.
Oxford, como pequena cidade inglesa, adquiriu prestígio por ser à ocasião a sede da ad-
7
44
A r t i g o
ministração real e das cortes religiosas, o que
animou estudiosos e juristas a emigrarem para
esta cidade e ensinar o Direito. Em pouco tempo,
a escola era conhecida como de leis, única na
Inglaterra a atrair estudantes da Europa.
4
OS MODELOS DE UNIVERSIDADES
E SEUS OBJETIVOS
A maioria dos sistemas de educação tiveram
origem a partir de grandes modelos universitários classificados como históricos:
a) o sistema napoleônico da universidade
profissional;
b) o sistema alemão da universidade científica/educativa;
c) o sistema britânico da universidade
educativa; e
d) o sistema norte-americano da universidade/organização.
Em abordagem, sucinta cada um apresenta
suas características:
Sistema Napoleônico. Ao já assinalado, é
considerado o mais antigo. O Estado passou a
utilizar a universidade como ferramenta de
progresso e modernização da sociedade, com
um sistema fortemente centralizado, e com
reduzida autonomia, pois o objetivo do Estado
francês na oportunidade, em face da carência
pós-revolucionária, era de formar profissionais
para o próprio Estado e para a sociedade.
Sistema Alemão. É um modelo científico
educativo, tendo organizado a universidade como uma instituição vocacionada para a investigação e a formação científica dentro do ideal
humanista, baseada no enciclopedismo e na
liberdade do ensino e da expressão.
Idem, p. 68.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Este sistema é dotado de autonomia fora
da intervenção do Estado, porém sua autonomia era garantida pelo Estado, com o dado interessante de que os alunos deveriam trabalhar
em seminários, e o professor os aceitava como
preparados.
Sistema Britânico. Modelo educativo até o
final do século XVIII, na Grã-Bretanha existiam as
tradicionais universidades de Oxford e Cambridge.
Em Oxford surgem os colleges como alojamentos para estudantes de menores recursos,
transformando-se em comunidades de professores e alunos, com ampla autonomia e com
recursos de rendas e doações. Impõe-se dizer
que, nos colleges do século XIX, a educação superior pertencia a uma classe social considerada
privilegiada, mantendo as normas e estilo de
vida britânicos, e este modelo assume os
paradigmas da universidade educativa.
Oxford e Cambridge, pelos seus custos, passam a ser universidades de elite, em um sistema
tutorial: os pais confiam os filhos à universidade, e cada professor assumia a formação moral e científica de reduzido número de estudantes, tudo de acordo com as virtudes cívicas
e morais, e os princípios da igreja Anglicana.
Surgem outras universidades, mas o sistema
inglês mantém a tradição como um sistema
universitário baseado na ampla autonomia
institucional destinado ao desenvolvimento
intelectual e à realização pessoal de seus alunos,
que deviam residir no campus universitário,
praticando também uma vida em convivência.
Este sistema se modificou e democratizou-se
na segunda metade do século XX.
Sistema Norte-Americano. As primeiras
universidades seguiram o modelo britânico, pois
Harvard, a mais tradicional, foi criada em 1636
no mesmo modelo de Cambridge, com o mesmo
sistema tutorial.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
No século XX, com a Segunda Guerra Mundial, a universidade americana se transformou
em um centro de investigação mais ativo na
produção de novos conhecimentos, constituindo-se mais em uma empresa de serviços com
orientação prévia quanto à área de investigação,
modelo que corresponde a uma sociedade
concentrada para o desenvolvimento econômico
e, principalmente, de inovação tecnológica.
O detalhe importante, como organização,
é que trabalha com a lei de mercado em um
sistema de educação superior destinado às
massas, dando inteiro destaque às noções de
saber útil, concorrendo com um sentido
nitidamente pragmático.
5
O ENSINO DO DIREITO
Sem desconsiderar os estudos já realizados
no período romano, praticamente o embrião de
tudo, remontando a textos isolados, desde o
século XII, nas cidades de Bologna, Ravena, Modena e Piacenza, passou-se a estudar o Direito
Romano a partir dos velhos manuscritos justinianeos descobertos.
À ocasião, o Direito Romano não estava vigente na Europa, e seu estudo despertou interesse de estudiosos, professores, juízes e governantes, quando Werner Irnério, conotado como
o “farol do direito”, veio de descobrir no museu
da cidade de Pisa um manuscrito do Digesto de
Justiniano, que classificou como uma grande
“revelação jurídica”, uma “lembrança de Deus”,
passando a estudá-lo com seus discípulos Acursio e Azo. Irnério, como professor, separou o
ensino da jurisprudência clássica da retórica, e
passou a ensinar as leis romanas.
Irnério e seus discípulos realizaram as glosas do texto descoberto partindo do seu teor,
do conhecimento da letra e das palavras, e se
45
D ireito
apoiando na autoridade da lei, preparando uma
reedição em cinco volumes do Corpus Juris Civilis de Justiniano, composto do Código, do Digesto, das Institutas e das Novelas, sendo responsável pela formação da Escola dos Glosadores, onde Acursio foi o incumbido e responsável
pela compilação denominada “magna glosa” ou
“glosa ordinária”. E assim o Corpus Juris Civilis
foi incorporado em seus estudos, o que correspondeu ao embrião da crítica reproduzida pelos
Comentaristas surgidos no século XIII com
Cyno de Pistoia, Bartolo de Sassoferrato, e que
se utilizaram do mos italicus, método italiano
de ensino e aprendizado do Direito, criando a
opinio comunis doctorum por meio da compilação das opiniões de parte de Baldo de Ubaldi,
cujas regras comuníssimas passaram a formar
o Direito comum, adotadas como argumento
de autoridade e fonte de criação do Direito dos
juristas, que se espargiu e evoluiu em toda Europa, em uma mescla das regras comuns consolidadas com os usos e costumes de cada país,
e com isso criando o seu próprio direito.
Esclarece Levaggi:
“El critério de los juristas bajomedievales fue,
pues, el de maxima aplicación posible del Derecho común y, correlativamente, el de la mínima aplicación del Derecho próprio. De esta
manera, los Derechos de la mayoria de los
reinos europeos se incorporaron al sistema del
Derecho común”8
O método de ensinamento era oral e em latim, na utilização dos textos romanos, pois o latim
correspondia a língua da bíblia, por ser a língua
8
46
A r t i g o
das escrituras, da cultura erudita e também a
língua dos ensinamentos.
Como meios, utilizaram pequenos manuais
da obra de Aristóteles, especialmente dos tratados de lógica, constando que o homem letrado
medieval tinha uma tendência natural de ordenar suas idéias sob a forma de silogismos e de
transformar as mesmas em figuras de silogismo
corretas ou não corretas, dentro dos argumentos de seus próprios adversários.
O livro em si surgiu no século XIII com a
utilização do papel, e por ser caro, as universidades estruturam-se em lhe destinar recintos
próprios, isto é: bibliotecas para consultas, e encadernação para evitar furtos.
Quanto aos professores, as universidades da
Idade Média passaram a formar seu corpo para a
satisfação de suas necessidades e aumento do
número de alunos. O professor respondia com
cinco características básicas: respeito reverencial
às autoridades; grandes autores e pensadores em
que se apoiavam na atividade docente; domínio
do método dialético calcado na universalidade
do saber e do conhecimento; o ensinamento
deveria basear-se na ótica cristã, ordem do mundo criada por Deus; os professores eram em sua
maioria eclesiásticos, com dois graus de formação: bacharel e catedráticos.
Portanto, desde suas origens, as universidades contaram com uma estrutura institucional, como uma federação de escolas, e cada escola ofertava um ciclo completo de disciplinas,
dirigidas por um professor, e com um diretor
de estudos, responsável pela escola. Cada faculdade se dedicava a um ramo do conhecimento, com professores que estudavam a mesma
Idem, p. 80.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
matéria, com quatro cursos: Teologia, Direito,
Arte e Medicina.
elle la presencia de estudiantes portugueses em
Italia, quienes a sua regresso volcaron su saber
como catedráticos y consejeros (Juan de Dios,
6
Juan de las Reglas), como a la de juristas italia-
A UNIVERSIDADE E O ENSINO
nos em Portugal. La fundación de la Univer-
DO DIREITO EM PORTUGAL
Em face das ligações entre o Brasil e Portugal, não poderíamos deixar de mencionar Portugal, e pelos laços de colonização entre os dois
países, sugestivo é o esclarecimento trazido pelo
prestigioso professor historiador José de Lima
Lopes a respeito, e que bem orienta o surgimento da universidade em Portugal:
“a criação do ‘studium generale’ pelo rei D.
Dinis em 1290 mostra a distância que separava
Portugal das origens do movimento universitário. De fato, a universidade portuguesa difere
de Paris e Bolonha pelo seu caráter não espontâneo, ou seja, pela criação por ordem régia
(...) O ‘studium’ é transferido para Coimbra
em 1308 e retorna a Lisboa em 1338, por ordem
de D. Afonso IV; em 1354 volta a Coimbra e ali
fica até 1377 quando, sob D. Fernando I, volta
a Lisboa. Conforme Saraiva (1995) a universidade portuguesa era ‘vagabunda’, que até o
século XVI não tinha sede fixa, nem instalações
próprias, nem mestres prestigiados e cujos diplomas valiam pouco, mesmo dentro das fronteiras do Reino”.9
sidad de Lisboa-Coimbra (hacia 1290) favoreció la difusión del Derecho común...”10
Sobre o Direito, segundo dizem os estudiosos, a história do Direito brasileiro é mais antiga
do que a própria história do Brasil, pois grande
parte da sua evolução deve-se ao Direito português, já que este teve vigência no Brasil desde
o começo da colonização, com a nítida influência da civilização da Europa na colônia portuguesa da América.
A propósito, traz-se novamente a palavra
do inesquecível mestre das arcadas Waldemar
Martins Ferreira:
“O que, de verdade, sucedeu, quanto às instituições jurídicas, foi o que Silvio Romero teve
como acertado chamar – a bifurcação brasileira, ou seja, o transplantio do organismo jurídico-político português para esta parte do continente sul-americano”.11
7
A UNIVERSIDADE E O ENSINO
DO DIREITO NO BRASIL
A respeito de Portugal, acrescenta ainda o
eminente professor e historiador argentino Levaggi:
“La penetración del Derecho común comenzó
en el siglo XIII y fue progressiva. Contribuyó a
9
10
11
Os estudos do Direito no Brasil surgem através da bifurcação denominada brasileira, que
corresponde à vigência de preceitos da organização jurídica portuguesa no continente sulamericano, especificamente no Brasil.
O direito na história: lições introdutórias, p. 125.
Op. cit., p. 83.
Op. cit., p. 25.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
47
D ireito
A r t i g o
Com a declaração da Independência do Brasil, segundo nos resgata a história, os brasileiros
acabavam de perder o único centro de cultura
superior do mundo de língua portuguesa: a
Universidade de Coimbra, pois a primeira geração de legisladores brasileiros ali é que se haviam formado. A propósito afirma Lima Lopes:
Em 1854, pelo Decreto n. 1.386, os cursos
jurídicos passaram a denominar-se Faculdades
de Direito, e neste mesmo ano o curso da cidade
de Olinda transferiu-se para Recife. As faculdades de Direito, em uma reforma de 1879, foram
divididas em dois cursos: Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais, com currículos acrescidos,
anotando-se que a freqüência aos cursos era livre.
“(...) Os brasileiros de primeira geração de le-
Após a proclamação da República em 1889,
houve uma nova reforma educacional, restaurando a presença obrigatória dos alunos aos cursos, e o modelo de Coimbra acabou por receber
as modificações seguindo os padrões europeus
e de acordo com as necessidades brasileiras.
gisladores e juristas são fruto desta idéia geral,
pois foram socializados em Coimbra neste ambiente. Ali aprenderam o direito e aprenderam
o que seria um curso de direito.”12
Em sua excelente monografia comentando
os parâmetros políticos fundamentais norteadores, diz Aurélio Wander Bastos:
“(...) em primeiro lugar, a história da instalação dos cursos jurídicos no Brasil (...) é basicamente a história das conciliações que se deram
entre as elites imperiais e determinadas frações
A elite de juristas desta época vem das duas
Faculdades, a exemplo de Augusto Teixeira de
Freitas e Clóvis Bevilácqua. Como dados relevantes da criação intelectual brasileira, em 1856
aparece a Consolidação das Leis Civis de Augusto
Teixeira de Freitas, e em 1916 o Código Civil de
Clóvis Bevilácqua, dois autênticos monumentos
do estudo do Direito em suas épocas.
das elites civis; em segundo lugar, a fração derrotada das elites civis sempre esteve numa posição optativa entre a sua proposta e as propostas oficiais da elite imperial ou as da sua
fração que tinha acesso direto ao Estado”.13
Dessa forma, em razão de uma efetiva necessidade, das divagações e desencontros da política, pela carta de lei de 11 de agosto de 1827
elaborada pelo Império, foram criados os cursos
jurídicos no Brasil: um em Olinda e outro em
São Paulo, cujos parâmetros eram então nos
mesmos moldes de Coimbra.
12
13
48
8
OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Como desafios para o século XXI, ex vi do
crescimento da população estudantil e de um
fluxo mais intenso, adentramos em um processo
de massificação das universidades – fenômeno
que surgiu justamente a partir da Segunda Grande Guerra, e que influenciou sobremaneira a
qualidade dos ensinamentos, obrigando as universidades a diversificarem seus recursos docentes para dar cumprimento a seus objetivos,
diante da ocorrência de novos paradigmas ao
desenvolvimento.
Op. cit., p. 229.
O ensino jurídico no Brasil, p. 8.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Diante dessa massificação, como era natural, acresça-se que a premente necessidade de
adequação das universidades, e a evolução das
idéias da Idade Média para a Idade Moderna,
foram aspectos determinantes para uma reforma rápida dos princípios universitários.
Já no século XIX na Alemanha iniciou-se
um movimento estabelecendo formas para a
execução de tarefas de investigação fundamental e de adestramento profissional reservadas à
classe intelectual, organizadas com uma rígida
relação hierárquica em torno do professor titular da cátedra.
No entanto, a demanda de técnicos e profissionais causou profunda transformação nas
universidades: de uma fase de instituição fechada somente para o atendimento das elites, para
uma educação de massa, com significativo
aumento da população universitária, que via na
universidade uma forma de prosperação social
e de democracia na vida universitária.
Bem a propósito nos elucida o professor argentino Eduardo Martinez Márquez:
“El professional que contemplamos, por el
contrario, deberá reunir positivamente esta triple condición humana de creatividad: responsabilidad plena, ante toda nueva situción, con
conciencia de tener en la mano su propio destino, y en alguna medida, también el de dos
demás; busqueda activa y razonada de solución, con la possibilidad fundada de encontrarla, y participación solidária en la evolución
social, con personalidad propia que no sucumba a la fácil tentación de masificación”.14
14
15
Não há a menor dúvida de que a universidade do século XXI, em seus estudos, tem como
sérios desafios:
a) submeter-se à democratização;
b) satisfazer uma população de estudantes,
como consumidores de serviços;
c) ao mesmo tempo dar conta dos novos
movimentos sociais, em razão da globalização da cultura e do pensamento; e
d) atentar para as dificuldades quanto aos
recursos docentes, sem perder a constante busca da transmissão da verdade e
do conhecimento científico atualizados,
com certo tempero até de uma previsão
de futuro.
Sobre as perspectivas da universidade, ilustra ainda o professor Eduardo Martínez Márquez, já citado:
“Todos sabemos que la universidad, en la sociedad contemporánea, debe ser la fuente fecunda
de autênticos recursos humanos (...). Esta incumbencia, este compromisso esencial de la universidad de hoy, la obriga a estar siempre en función
prospectiva, a ‘futurizar’ como ahora se dice: porque los hombres e mujeres, que hoy salen de sus
claustros, han de ser los professionales e investigadores da la sociedade de mañana. He aqui el
problema máximo de la universidad de todos los
tiempos (...). El profissional del tercer milenio
no acabará nunca su carrera, porque se hallará
naturalmente en educación abierta y permanente, siempre pendiente del último descobrimiento,
y en actitud de constante revisión, bajo el signo
de los tiempos”.15
Universidad auténtica, p. 178.
Idem, p. 176-180.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
49
D ireito
9
CONCLUSÃO
Levando-se em conta ser a universidade um
verdadeiro centro produtor e difusor perene na
construção de conhecimentos, na aplicação
constante do saber, e com a responsabilidade
de exercer uma verdadeira revolução na manipulação e no desenvolvimento da alta tecnologia
na incessante busca do bem-estar social, do progresso social e dos avanços no campo científico,
a conclusão deste tema pode ser resumida em
duas grandes vertentes que por certo estão a
preocupar a comunidade acadêmica dirigente e
as instituições universitárias do país, diante da:
9.1 Nova Realidade
No campo técnico e científico, ante os
efeitos da globalização, importante é destacar
alguns pontos na reforma do pensamento, e da
necessidade da interdisciplinaridade já manifestada no século XX, e agora, no século XXI, sob
nova denominação a da transdisciplinaridade,
o que implica naturalmente uma reforma dos
paradigmas vigentes da universidade.
Convém ficar esclarecido que a interdisciplinaridade adotada pela nova inteligência já
tentara resolver o problema do conhecimento com
o auxílio de outros ramos do saber, através de uma
reforma dos programas. E a transdisciplinaridade
por seu turno, ter sua atenção voltada para as
mudanças, por posicionar todo tipo de informação
em seu contexto e principalmente no global, onde
está originalmente inserta.
Para tanto, deve-se dizer que, diante do
mundo globalizado, a reforma da universidade
tem como objetivo a reforma do pensamento, a
redundar numa plena utilização da inteligência
na busca do saber, e a corresponder uma clara
formulação de inovações em atenção aos
paradigmas a prevalecer, ou seja, uma nova
50
A r t i g o
forma de se organizar o conhecimento, pois o
avanço deve ir mais longe para que o pensamento capte as multirrelações, as interações,
as implicações solidárias, o sentir conjuntural,
tudo dentro do panorama social, cujas realidades são cada vez mais comuns e por incrível
que pareça, francamente dissidentes.
Torna-se indiscutível concluir pela ingente
e imperiosa necessidade de um pensamento
organizador que atente para a relação recíproca
entre o todo e as partes, como sucedâneo inovador de uma nova forma de pensar.
Cumpre ficar esclarecido que vivemos mais
um momento dos tempos das reformas na
implantação de uma estrutura universitária
mais adequada, mais estimuladora, para sairmos
de uma tradição arraigada nos aspectos formais
do “mesmismo” cômodo, e ao talante exuberantemente egocêntrico do “achismo” de muitos,
tudo ao fiel propósito de mudanças de mentalidade de parte dos educadores, tendo em vista o
mesmo empirismo de outrora aos dados já consolidados e vigentes nos dias atuais, na direção
da conquista segura da eficiência dentro do binômio indiscutível, em consonância com o
ensino ideal e para o êxito da aprendizagem.
9.2 Novas Necessidades e Tendências
É de se reconhecer, a ocorrência de novas
aberturas nos ensinamentos do direito, ligados
aos campos dos novos direitos referentes: ao
conceito mais atualizado de sujeito/cidadão; direito da criança e do adolescente; direito das mulheres; direito dos idosos; direito dos indígenas;
da discriminação; do bio-direito, novo direito à
vida; direito do consumidor; direito ambiental
in genere ; direitos relacionados com a
reprodução animal; o direito relativo às alterações
genéticas; os públicos virtuais na sociedade da
informação; o direito comunitário (da união de
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
países – Comunidade Européia, Mercosul); o da
globalização e etc., que se refletem em razão das
novas necessidades e tendências.
Não restam dúvidas também, que diante do
irreversível avanço tecnológico a possibilitar
uma infra-estrutura, e com acentuada velocidade no âmbito das informações, nos deparamos com uma autêntica reformulação didático/
pedagógica, compatível com o fluxo destas
necessidades, onde se mescla o tradicional com
a nova ordem motivadora, e que vá de encontro
com as expectativas e os novos padrões exigidos
pelas gerações, e que são alcançados por toda
esta tecnologia, anteriormente sob sonhos, e
hoje sob inequívoca realidade, assim como: o
sistema semi-presencial, a universidade virtual
e o ensino a distância, pois, a tecnologia digital,
a informatização e a difusão dos programas pessoais, as comunicações e sua difusão, a velocidade das informações e os recursos propiciados
pela Internet, estão a provocar mudanças expressivas no processo de educação e na ministração do conhecimento, com sérios reflexos
nas próprias mudanças comportamentais.
A universidade que se rotule de moderna
não pode ficar alheia a toda essa messe de mudanças, e a essa parafernália tecnológica, inclusive criando e organizando seu próprio laboratório de meios e difusão, na utilização efetiva
da sofisticada tecnologia já preexistente e à
disposição.
Em conseqüência, dentro de uma linearidade do crescimento universitário físico e de
novos paradigmas, estão nascendo os programas
de educação à distância, que acabarão tornando-se uma nova realidade educacional, a universidade virtual extremamente acessível, dando atenção mais eficiente ao fluxo da demanda,
e, sobretudo, mais competitiva e menos onerosa.
Como conseqüência de tudo, temos a união
das telecomunicações com a informática que
fez nascer a telemática, com um universo imenso de processos interativos à distância, a exemplo do videotexto, do banco de dados, do correio
eletrônico entre outros, pois a informática,
unindo-se ao vídeo, possibilita a videomática,
que compreende o vídeo interativo.
Para tanto, as universidades ou centros universitários a congregar expressiva comunidade
estudantil, e que pleiteiam erigir-se como modernos núcleos difusores de uma educação
moderna, serão forçosamente compelidos a desenvolver tecnologias de meios para propiciar um
aprendizado de todo eficiente, por uma sistema
presencial parcial, e para que haja uma iteratividade mais proveitosa, mais intensa, levando-se
em conta a dificuldade de locomoção do aluno
nos maiores centros urbanos – local de trabalho,
moradia e escola –, e o real aproveitamento que
pode ter no âmbito de seu micro caseiro, hoje
mais ou menos universalizado como sonho
necessário de consumo.
Assim, a informática, com ferramenta de
trabalho adequada, possibilita novas formas de
comunicação através ainda do: teletexto, videotexto, hipertexto, hipermídia, integradas ao
sistema de multimídia, como um conjunto de
dispositivos que possibilitam a reprodução simultânea de textos, desenhos, sons e seqüências
audivisuais.
É certo que tudo está a representar a solução pedagógica para a educação ter melhor qualidade e eficiência, o que implicará seriamente
uma arrojada reestruturação dos planos de estudos e seu desenvolvimento para o exercício
das novas profissões, e com tudo isso estando
enquadrado o próprio aperfeiçoamento do
estudo do Direito.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
51
D ireito
A r t i g o
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASTOS, Wander Aurélio. O ensino jurídico no Brasil.
2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
CALDAS AULETE, J. F. Dicionário contemporâneo da
língua portuguesa. 3. ed. São Paulo: Melhoramentos.
CASARES, Julio. Diccionário ideológico de la lengua
española. 1. ed. Barcelona: Gustavo.
CATENACCI, Imerio Jorge. Introdución al derecho.
Buenos Aires: Editorial Astrea, 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
52
LEVAGGI, Abelardo. Manual de historia del derecho
argentino. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Depalma,
1998, t. 1.
LIMA LOPES, Reinaldo José. O direito na história: lições
introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000.
MÁRQUEZ, Eduardo Martinez. Universidad auténtica.
Buenos Aires: Delpa1ma.
MARTINS FERREIRA, Waldemar. História do direito
brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951, t. 1.
VERGER, Jacques. Gentes del saber en la Europa de finales
de la edad media. Madrid: Complutense, 1999.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
D ireito
A r t i g o
MÍDIA E DIREITO
Estela Cristina Bonjardim
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
Mestranda em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP/SP.
Formada em Direito pelo Instituto Metodista de Ensino Superior de São Bernardo do Campo.
Formada em Jornalismo pelo IMES.
Delegada de Polícia 3a classe lotada junto à Delegacia Seccional de Polícia de São Bernardo do Campo.
Professora Universitária desde 1995 junto à Universidade do Grande ABC – UniABC/São Caetano do Sul
e junto ao Instituto Municipal de Ensino Superior – IMES/São Caetano do Sul desde 1998.
R E S U M O
ABSTRACT
O presente trabalho pretende mostrar como os
meios de comunicação de massa e a lei podem
coexistir de forma harmoniosa.
This article wants to show how mass media and
law can live together in peace.
1
SOBRE A LIBERDADE
Ao afirmar que “a razão é a origem de toda
a liberdade”, Santo Tomás de Aquino refere não
só que suas raízes estão no próprio sentimento
humano, como também reconhece o direito de
liberdade como fundamental, como o único direito original que pertence a cada homem pela
simples razão de sua humanidade, donde facilmente se conclui que qualquer indivíduo sem
liberdade sente-se mutilado.
Esse é o motivo de se buscar a origem da
liberdade no próprio nascimento do homem,
como manifestação do instinto pessoal. “O ato
de desobediência de Adão e Eva rompeu o laço
primordial com a natureza e os transformou
em indivíduos. A desobediência foi o primeiro
ato de liberdade, o início da história humana.”1
1
2
12
A liberdade, porém, não se pode limitar ao
pensamento, já que está definitivamente vinculada à liberdade de expressar o pensamento.
Só se pode falar em liberdade quando podemos
livremente expressar aquilo que pensamos.
“Sem liberdade não existe moral, porque, não
existindo livre escolha entre o bem e o mal, entre a devoção ao progresso comum e o espírito
de egoísmo, não existe responsabilidade. Sem
liberdade não existe sociedade verdadeira,
porque entre livres e escravos não pode existir
associação, mas somente domínio de uns sobre
os outros. A liberdade é sagrada como o indivíduo, cuja vida ela representa.”2
Como vimos, a liberdade guarda amplo conceito que, por sua amplitude, confunde-se com
Erich Fromm, Meu encontro com Marx e Freud, p. 156.
Giuseppe Mazzini, Deveres do homem, p. 125. Apud Darcy Arruda Miranda, Comentários à Lei de Imprensa, v. 2.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
vários conceitos igualmente amplos, como verdade, moral, direito e responsabilidade, além de
outros.
1.1 Liberdade de Pensamento
Sob qualquer enfoque, o conceito da livre
manifestação do pensamento representa um
princípio que paira sobre todos os demais em
termos de importância, não porque se relacione
com eles, mas porque os protege, sem que por
eles seja protegido. Assim, quando o governo
de um país declara que respeita os direitos humanos, protege a sua população contra discriminação de ordem racial, de cor, de religião,
mas censura os meios de comunicação de massa,
anuncia muito, porém nada respeita, porque
suprime a liberdade de verificar se o que declara
é realmente verdadeiro. Por outro lado, se confere à imprensa liberdade e independência,
naturalmente haverá a fiscalização da existência
e eventual violação das demais liberdades.
Essa importância foi retratada por Rui Barbosa,
ao afirmar que:
de liberdade. Quando se fala em sistemas políticos, por exemplo: quaisquer que sejam, a livre
manifestação do pensamento tem muito que ver
com eles, não podendo ser considerada menos
importante.
Um sistema político em que os detentores
do poder atribuam importância secundária à livre expressão do pensamento não pode, com o
tempo, conviver pacificamente com seu próprio
povo. A liberdade é inata ao homem. Mais do
que um direito, é um sentimento incompatível
com qualquer sistema ou teoria que se repute
infalível e, por isso, não aprecie qualquer outra
alternativa que não sua supressão.
Marx, sentindo-se uma das vítimas da perseguição pelo poder, escreveu:
“A natureza de uma imprensa censurada é a monstruosidade disforme da falta de liberdade. O
governo ouve apenas a sua própria voz; ele sabe
que está ouvindo a sua própria voz; não obstante, ele se fortalece na auto-ilusão de que está
ouvindo a voz do povo e exige também do povo
que mantenha essa auto-ilusão”.4
“De todas as liberdades, a do pensamento é a
maior e mais alta. Sem ela todas as demais
deixam mutilada a personalidade humana,
asfixiada a sociedade, entregue à corrupção o
governo do Estado”.3
Cercado de tanta grandeza, o princípio da
livre manifestação do pensamento se deixa envolver por outros conceitos, como verdade, moral, política, o que se acentua quando a liberdade
de pensamento se confunde com outros tipos
3
4
Se um indivíduo de pensamento discrepante pode ser considerado inimigo do regime – o
que é a tônica dos sistemas políticos totalitários
– a liberdade de comunicação, nessa hipótese,
representa um perigo e uma preocupação.
Até o século XVIII, emitir opinião e divulgá-la
era praticamente privilégio dos reis e da Igreja
e, não se pode esquecer, a comunicação foi um
dos setores da vida humana mais violentamente
modificados pela revolução tecnológica.
Rui Barbosa, Ruínas de um governo, p. 118.
João Féder, Crimes da comunicação social, p. 24.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
13
D ireito
Afinal, é inegável que
“nos últimos 100 anos a humanidade aperfeiçoou técnicas muito eficientes de expressão. O
pregador, o panfletário, o orador e os mestres
exercem sempre muita influência; mas, em
nossos dias, a página impressa do jornal, a palavra falada do comentarista de rádio, o filme
cinematográfico e a tela da TV tornaram-se instrumentos de poder quase infinito. Não é difícil
compreender a tentação dos governos ou grupos dentro dos Estados de distorcer ou explorar
tais instrumentos para fins particulares”.5
Nesse sentido, conclui Harold Lasky, em
seu livro A liberdade:
“A história ensina-nos que o caminho para a
tirania passa sempre pela estrada da supressão
da liberdade de pensamento e de expressão”.6
1.2 Liberdade de Comunicação
“Não há liberdade individual sem liberdade coletiva, pois não há liberdade concreta histórica
sem comunicação.” 7
A comunicação que se processa através dos
veículos de comunicação social é a mais legítima
forma de expressão do pensamento, já que tais
veículos – a imprensa, o rádio e, mais tarde, a
TV – representam a liberdade coletiva de um
povo, na medida em que são portadores de idéias
e mensagens múltiplas e divergentes, que
traduzem os sentimentos desse povo.
5
6
7
14
A r t i g o
Antes do surgimento da imprensa, o homem viveu períodos de rigorosa regulamentação repressiva da manifestação do pensamento, fosse ela escrita ou não. Seu aparecimento
fez com que, já no século XVI, os poderes civis
e religiosos se unissem para conter a propagação
de idéias, daí surgindo a luta, até hoje não
terminada, pela liberdade de comunicação.
A Inglaterra foi berço dessa luta, tendo, em
1641, o Parlamento imposto a Carlos I que abolisse a chamada “Câmara Estrelada”, que exercia o controle sobre todas as publicações. Tal
medida favoreceu o aparecimento de diversos
jornais, embora ainda nenhum diário. Dois anos
mais tarde, porém, a censura foi reativada,
atendendo a reivindicação da Companhia dos
Livreiros, até que em 1695 foi definitivamente
abolida na Inglaterra.
Tais fatos antecederam o primeiro ato de
reconhecimento legal da livre manifestação do
pensamento, inserido no artigo 12 da Declaração
de Direitos do Estado da Virgínia, que previa: “A
liberdade de imprensa é um dos escudos mais
poderosos da liberdade e que somente os
governos despóticos podem entravar”. A Declaração data de 1776 e a Inglaterra já tinha, desde
1712, seu primeiro jornal diário, o Daily Current,
circulando livremente.
Em 1789 adveio a Declaração francesa, que
dispôs, em seu artigo 11, que:
“a liberdade de comunicação dos pensamentos
e das opiniões é um dos direitos mais preciosos
do homem; portanto, todo homem pode falar,
escrever, imprimir livremente, devendo responder pelo abuso a essa liberdade nos casos
determinados pela lei”.
Derrick Sington, Liberdade de comunicação, p. 9.
João Féder, op. cit., p. 25.
Décio Pignatari, Informação, linguagem, comunicação, p. 105.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
No mesmo ano, surge a Constituição dos
Estados Unidos, preceituando, na sua Primeira
Emenda: “O Congresso não fará qualquer lei
que restrinja a liberdade de palavra ou de
imprensa”.
Tais acontecimentos, marcantes para o reconhecimento da liberdade de comunicação, não
levaram ao desaparecimento dos obstáculos. Na
própria França, Napoleão, quando assumiu o
comando da nação, declarou: “Se soltar o freio
da imprensa não ficarei três meses no poder”.
Ficou anos no poder, durante os quais a imprensa
não foi mais do que mera propaganda ditada pelo
Imperador. Foi a Revolução de 1848 que devolveu
a liberdade à imprensa francesa, mesmo assim,
não impedindo opressões futuras.
Tais opressões, é claro, não se limitaram à
França, mas atingiram a atividade da imprensa
em muitos outros países, onde os governos procuravam se justificar invocando um suposto interesse social maior que o da livre manifestação
do pensamento. Assim se deu com Stalin, Hitler,
Mussolini, Salazar, Franco e com Getúlio Vargas, entre outros.
Senão, vejamos. O artigo 125 da Constituição Russa de 1936 colocou em primeiro plano,
ou seja, acima da liberdade, “os interesses dos
trabalhadores” e o “fortalecimento do regime
socialista”. A Constituição de 1977 passou a
prescrever, no artigo 50:
“de acordo com os interesses do povo e a fim de
fortalecer e desenvolver o regime socialista, são
garantidas aos cidadãos da URSS as liberdades
de expressão, de imprensa, de reunião, de realização de comícios, desfiles e manifestações de
rua. O exercício das liberdades políticas é garantido pela concessão aos trabalhadores e às
suas organizações de edifícios públicos, ruas e
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
praças, pela ampla difusão da informação e pela
possibilidade de utilização da imprensa, rádio
e TV”.
Em 1978, por sua vez, a Constituição da
China dispunha, em seu artigo 45, que:
“Todos os cidadãos têm liberdade de expressão,
de correspondência, de imprensa, de reunião,
de associação, de desfile, de manifestação e de
greve. Têm também direito a recorrer à grande
competição de idéias, à livre expressão do
pensamento, aos grandes debates e a escrever
‘dazibao’ (jornais de parede)”.
Na doutrina fascista, Mussolini dizia, em
1928, que “o jornalismo italiano é livre porque
serve somente uma causa, um regime”. E continuava:
“Num regime totalitário, que surge de uma
revolução triunfante, a imprensa é um elemento
desse regime e uma força a serviço desse regime”.
No nazismo, o direito individual é considerado apenas um elemento da comunidade,
submetido à ordem estabelecida pelo Führer de
acordo com a concepção de bem comum que
ele próprio, discricionariamente, determina.
Dietrich, Presidente da Federação dos Jornalistas da Alemanha, dirigindo-se ao povo italiano
em uma saudação a Hitler durante uma visita a
Veneza, afirmou: “O nazismo se orgulha de haver libertado o povo alemão da liberdade de
imprensa”.
A Carta da Espanha de 1945 dizia que todo
cidadão tinha direito a exprimir livremente sua
idéias... desde que não atentassem contra os
princípios fundamentais do Estado. E a Cons15
D ireito
tituição portuguesa de 1933 proclamava a mesma liberdade, mas previa “que uma lei repressiva podia impedir a perversão da opinião pública
enquanto força social e salvaguardar a integridade moral do cidadão”.
A Constituição brasileira de 1937 foi menos
sutil ao dispor, incisivamente, no artigo 122, XV,
que:
“A lei pode prescrever, com o fim de garantir
a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinema
e da radiodifusão, facultando à autoridade
competente proibir a circulação, a difusão ou
a representação”.
Fernando Morais assim se pronuncia sobre a
situação da imprensa em Cuba, em uma indicação
de que a lição de Napoleão foi proveitosa:
“Quando perguntei a um influente jornalista
cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele
deu uma gargalhada e respondeu: ‘Claro que
não’. E completou, com naturalidade: ‘Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a
imprensa está sempre a serviço de quem detém
o poder. E aqui em Cuba quem detém o poder é
o proletariado. Estamos todos os jornalista
cubanos, portanto, a serviço do proletariado’”.8
1.3 O Caminho da Liberdade
Terminada a II Guerra Mundial, representantes de quase todas as nações assinaram, em
dezembro de 1948, em Paris, durante a Assem-
8
9
16
A r t i g o
bléia Geral das Nações Unidas, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, que prevê,
em seu artigo 19, com especial clareza:
“Todo homem tem direito a liberdade de expressão. Este direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar
e receber informações e pareceres e o de difundi-los sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão”.
Daí em diante fortaleceu-se, cada vez mais,
a convicção geral de que a nenhuma forma de
governo é legítimo subtrair de seu povo o direito
de ser livremente informado.
Por causa dessa convicção, a Comissão
sobre Liberdade de Imprensa anunciou, em
Chicago:
“A liberdade da palavra e de imprensa está próxima do significado central de toda a liberdade.
Onde os homens não podem comunicar
livremente seus pensamentos uns aos outros,
nenhuma outra liberdade está segura. Onde
existe liberdade de expressão, está sempre
presente o germe de uma sociedade livre e tem-se
à mão um meio para todas as extensões da
liberdade. A expressão livre, portanto, é única
entre as liberdades como protetora e promotora das outras; a prova está em que, quando
um regime se encaminha para a autocracia, a
palavra e a imprensa figuram entre os primeiros objetos de restrição ou controle”.9
John Stuart Mill, em seu trabalho clássico
sobre o valor da liberdade, apresenta uma feliz
A ilha, p. 73.
Charles Steinberg (Org.), Meios de comunicação de massa, p. 199.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
exposição sobre o respeito que deve merecer a
opinião individual, por mais solitária que se
apresente:
“Se toda a humanidade, com exceção de uma
só pessoa, tivesse certa opinião, apenas essa
pessoa tivesse opinião contrária, a humanidade
não teria mais razão em silenciá-la do que ela à
humanidade”.10
E João Féder nos explica os motivos:
“Primeiro porque, se silenciamos uma opinião,
podemos estar silenciando a verdade. Segundo,
mesmo uma opinião errada pode conter parte
da verdade que nos permita alcançá-la em sua
totalidade. Terceiro, mesmo se a verdade total
for a opinião geral, essa opinião não poderá
ser sustentada em bases racionais antes de ser
testada e discutida. Quarto, quando uma opinião
de domínio geral não é criticada de tempos em
tempos, perde sua vitalidade e efeito. E é precisamente sobre as opiniões predominantes que
a liberdade de comunicação exerce sua função.
Para dizer que a regra imposta é a melhor, para
2
11
12
Com a evolução que experimentou ao longo
de nosso século, a comunicação social estabeleceu, com o comportamento humano, vínculo
de incrível intimidade. Tanto é assim que
devemos admitir que
“todos nós dependemos dos produtos da comunicação de massa para a grande maioria das
informações e diversão que recebemos em
nossa vida. É particularmente evidente que o
que sabemos sobre números e assuntos de interesse público depende enormemente do que nos
dizem os veículos de comunicação. Somos
sempre influenciados pelo jornalismo e incapazes de evitar esse fenômeno. Pouco podemos
ver nós mesmos. Os dias são muito curtos e o
mundo é enorme e muito complexo para
podermos cientificar-nos de tudo o que se passa
aplaudir a sabedoria do rei e a bondade da rai-
nos meandros do governo. O que pensamos
saber, na realidade, não sabemos, no sentido de
nha, a liberdade seria dispensável”.11
que saber representa experiência e observação”.12
O PAPEL DA MÍDIA NO SÉCULO XX
Ninguém pode duvidar de que a criação da
palavra alterou o destino dos homens. A palavra
impressa deu função visual à pontuação, com
que se preocuparam os compiladores de Shakespeare, no século XIX. A impressão criou
10
dificuldades, pois tornou mais rígidas as regras
da linguagem, ao mesmo tempo em que trouxe
vantagens assombrosas, pois a memorizava e
difundia, coisas até então impossíveis, já que
não existiam o rádio e a TV. Como dizia Edmund Carpenter, a palavra passou a pertencer
ao mundo objetivo, passou a ser vista.
Cada vez mais concordamos que, nos dias
presentes, aquilo que não penetrou o sistema
de notícias nem foi por ele divulgado é como se
realmente não tivesse acontecido. Na moderna
“aldeia global”, de fato, só tem valor aquilo que
nós conhecemos, e nós, a cada dia, limitamo-nos
Sobre a liberdade, p. 16.
Op. cit., p. 31.
William Rivers e Wilbur Schramm, Responsabilidade na comunicação de massa, p. 27.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
17
D ireito
a conhecer apenas aquilo que a comunicação
social informa.
O que mais preocupa o mundo de hoje são
os efeitos causados pela comunicação de massa,
pela comunicação que alcança não a um ou a
uma centena, mas praticamente a todos e sobre
eles exerce sua influência.
Afinal, a imprensa a partir da metade do
século XV, o rádio a partir de 1920 e a TV a partir
de 1928 tiveram sempre marcante presença
junto aos mais importantes acontecimentos que
a História registra. É impossível negar o mérito
dos gazeteiros de antigamente (a palavra
jornalista foi empregada pela primeira vez apenas em 1704, no Journal de Trévoux, na França); contudo, também não se pode comparar o
alcance que tinham suas idéias com o que
podem ter no presente.
Hoje, não apenas os jornais ultrapassaram
as fronteiras nacionais, como ganharam, nessa
expansão, novos companheiros, com o revolucionário apogeu alcançado pelo rádio e pela TV.
E é por termos alcançado essa posição que
Richard Fagen, ao final de seu livro Política e
comunicação, lança a seguinte questão:
“Basicamente, a questão crucial é: quem controlará os novos instrumentos de comunicação
e para que fins eles serão usados?”
Nos sistemas denominados “liberal” e de
“responsabilidade social”, nos quais a livre manifestação do pensamento, em maior ou menor
escala, por curtos ou longos períodos de tempo,
tem conseguido sobreviver, em que pese não
haver terminado a batalha pela conquista da liberdade, já se verifica, paralelamente, uma série
de preocupações, que só se pode encontrar nos
13
18
A r t i g o
países em que as liberdades são concretamente
amparadas. Essas mesmas preocupações, via de
regra, têm servido para justificar o cerceamento
da livre manifestação do pensamento.
Dentre as várias questões, surge a seguinte:
a publicação de notícias sobre a vida particular
fere o direito de privacidade do indivíduo? Ou
seja, a livre manifestação do pensamento e a
ordem legal são inconciliáveis? É o que pretendemos verificar.
2.1 Liberdade de Imprensa e a Lei
Há como se regulamentar a liberdade de imprensa sem feri-la? Tal indagação tem merecido
análise aprofundada, particularmente nos Estados Unidos, onde os grandes choques entre a
liberdade de informação e os direitos dos cidadãos esbarram sempre na aplicação da Primeira
Emenda Constitucional, que, como já mencionado, sustenta claramente: “O Congresso não
promulgará nenhuma lei que reduza a liberdade
de expressão e de imprensa”.
O raciocínio que se segue ao enunciado é o
seguinte: se o Congresso não pode aprovar lei
que restrinja a liberdade de imprensa e se para
ampliá-la a lei é desnecessária, não há como se
falar em lei. O fundamento de tal raciocínio
estaria na incompatibilidade entre lei e liberdade. Não parece, porém, ser a melhor conclusão,
pois mesmo a liberdade deve ser juridicamente
regrada, já que não é o único direito do cidadão,
sob pena de não se obter uma disciplina social.
“Não há dúvida que todas as liberdades estão
sujeitas à lei, sub lege libertas; porque todos
são suscetíveis de equívocos, desvios e excessos,
mercê dos quais podem se converter em privilégio de uns para opressão de outros.”13
A. Brunialti, La libertá nello Stato Moderno, p. 176. Apud João Féder, Crimes da comunicação social.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Rui Barbosa, que era um apaixonado da imprensa, esperava vê-la consolidada como forma
de expressão do pensamento, livre das retaliações pessoais, das quais não foi apenas testemunha, mas também vítima. A idéia era a de
que, a partir do momento em que cada um passasse a assinar o que escrevesse, responsabilizando-se pelo seu escrito, desapareceria o modo
afoito e apaixonado de escrever, típico da fase
dos panfletos ou das publicações anônimas.
Por essa razão, Rui Barbosa concordava não
haver qualquer demérito em se submeter a imprensa a uma lei. E dizia:
“A lei e a nossa consciência são os dois únicos
poderes humanos aos quais a nossa dignidade
profissional se inclina”.
O espírito de que a lei sufocaria a existência
da liberdade tem sido invocado apenas quando
a lei exorbita em sua função. Quando justa, a
lei é sempre bem aceita, ou pelo reconhecimento de sua necessidade, ou porque estamos
totalmente condicionados a viver cercados de
regras por todos os lados.
“Onde existe o social, aí existe o jurídico. Sendo
a liberdade um conceito social, é ela regulada
pelo Direito, que a abrange completamente e a
condiciona em certa bitola. Apanhando-a in
natura, como um fato, como liberdade natural,
transforma-a em liberdade jurídica. A liberdade de imprensa é uma forma de liberdade de
pensamento que consiste no direito de externar
e divulgar idéias, independentemente de censura prévia. A interferência do Estado na li-
14
15
berdade de imprensa não encontra justificativa
senão quando ela ultrapasse os limites de um
legítimo exercício e lese direitos alheios, sendo,
porém, de notar-se que o Estado não pode jamais arrogar-se a decisão do que é falso e verdadeiro, porque, como meio que é, sua missão
deve restringir-se apenas à de garante dos direitos
de cada cidadão.”14
Não podemos esquecer que quase todos os
sistemas de comunicação de massa se sujeitam
a certas formas de controle básico, como modo
de proteger os indivíduos contra difamações,
proteger autores e editores, preservar o Estado
de ações ameaçadoras e subversivas. E os próprios profissionais da imprensa concordam com
tais restrições, por ser necessário garantir que
não se difamem inocentes, não se sacrifique a
propriedade literária, não se desobedeça à moralidade comum. “E ainda pode ser que concordássemos com essas restrições porque nos
tenhamos acostumado a elas”.15
Podemos mesmo dizer que o objetivo primordial da lei é estabelecer o equilíbrio entre a
liberdade e a responsabilidade. A responsabilidade dos profissionais da comunicação social
só pode ser efetiva se definida em lei. Negar essa
necessidade corresponde a admitir que tais
indivíduos sejam perfeitos, infalíveis, dom que
não só esses profissionais não possuem, como
a nenhum homem foi dado.
“A liberdade de imprensa tem três etapas a
destacar: a primeira, a do privilégio, aquela
em que só o governo podia possuir a tipografia
e só ele podia imprimir; a segunda fase, a da
censura prévia, quando o governo censurava
Aniz José Leão, Limites da liberdade de imprensa, p. 19.
William Rivers e Wilbur Schramm, op. cit., p. 80.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
19
D ireito
os escritos antes da sua publicação. E, atualmente, a terceira fase, atingida como manifestação mais legítima da aspiração democrática
dos povos, a da censura a posteriori, isto é, da
responsabilidade depois da publicação do escrito, apurada não pela Polícia, mas pelo
Judiciário. Essa terceira fase significa a adoção
do regime da responsabilidade que todos os
verdadeiros jornalistas desejam, pois que não
querem injuriar, caluniar ou difamar. Não desejam os jornalistas, conscientes de sua missão,
o abuso, o excesso, mas a responsabilidade pelo
que escrevem.”16
O jornalista, como qualquer outro ser humano, pode, de boa-fé, cometer erros que provoquem prejuízos materiais ou morais a alguém.
Se de má-fé utiliza os meios de comunicação
social, transforma-os em um perigo à sociedade.
Todas as atividades devem ser exercidas tendo
como suporte normas jurídicas impostas pelo
superior interesse coletivo, e os veículos de
comunicação social não podem estar à margem
dessa realidade, por isso também devem se
submeter ao imperativo da lei, sob pena de se
violentar o princípio da livre manifestação do
pensamento que pretendem representar.
A lei há que ser justa, dando tratamento
justo às partes envolvidas em um confronto de
opinião.
Como bem arrematou Marx, em série de
artigos publicada no Rheinische Zeitung:
“Por que somente a liberdade de imprensa
deveria ser perfeita entre todas as imperfeições
das instituições humanas? Por que um sistema
16
17
20
A r t i g o
de Estado imperfeito exigiria uma imprensa
perfeita?”.17
2.2 Liberdade de Informação
nas Constituições
Diz-se que, quando morre a liberdade de
imprensa, nenhuma outra sobrevive. Essa verdade, porém, não dispensa a manutenção da hierarquia das liberdades, porque a violência contra
qualquer uma delas compromete seu conjunto
e desfigura a sociedade democrática.
A liberdade de imprensa sempre se refaz
após longos ou curtos períodos de ditaduras,
como observamos no Chile e na África do Sul
atualmente. No caso da África do Sul, porém,
ainda que a liberdade de imprensa sobrevivesse,
o ódio racial, que elimina uma das liberdades,
seria bastante e suficiente para quebrar a harmonia que uma comunidade livre exige.
Esses dois países, como ocorre em vários
outros, possuem textos constitucionais que
amparam a liberdade de imprensa, mas a prática
nega essa liberdade. Isso mostra que não é a lei,
em verdade, que assegura o exercício da liberdade de informar, e, menos ainda, o fato de estarem inscritos nas Constituições os princípios
gerais dessa liberdade. A questão, mais profunda,
faz nascer entre os profissionais da comunicação
a seguinte reflexão: responsabilidade sem lei específica para os meios de comunicação ou uma
legislação democrática atualizada?
Independentemente da existência ou não
de lei específica para os meios de comunicação,
todas as Constituições fixam os limites das liberdades públicas e individuais, e, muito especialmente, a de informação.
Freitas Nobre, Lei de Imprensa, p. 16.
João Féder, op. cit., p. 54.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
O melhor termo parece ser liberdade de informação e não liberdade de imprensa, porque
o surgimento de novos veículos de comunicação
ampliou o campo da publicidade, através do
rádio, da TV, das agências noticiosas etc. No
exercício de tal liberdade, ninguém exclui a
interferência do Estado por meio do Poder
Judiciário, com o objetivo de defesa do interesse
coletivo, sem ferir os direitos inalienáveis do
cidadão.
Afinal,
“o verdadeiro sentido de função social da
imprensa envolve a defesa da vida privada dos
indivíduos, ou seja, seu direito à privacidade;
o direito das pessoas acusadas em quaisquer
meios de informação de responderem a tais
acusações, bem como garantir a defesa da sociedade, segundo os princípios gerais de moral,
mas, ao mesmo tempo, assegurando ao jornalista o direito de livre acesso às fontes de informação, e a escala completa de uma verdadeira
liberdade, limitada apenas contra os abusos de
seu exercício”.18
As Constituições são em geral muito claras
a respeito da liberdade de informação, mesmo
quando contam com uma legislação específica
sobre o tema. A Constituição francesa de outubro de 1958, com as modificações que sofreu
em 1960, 1962, 1963, 1974 e 1976, é um desses
exemplos. Seu preâmbulo consagra:
“O povo francês proclama solenemente sua vinculação aos direitos do homem e aos princípios
da soberania nacional, tais como foram definidos pela Declaração de 1789, confirmada e
18
complementada pelo preâmbulo da Constituição de 1946”.
Essa vinculação define o compromisso com
a liberdade de pensamento e de imprensa. No
entanto, a França possui uma legislação de imprensa que data de 1881 e tem inspirado numerosos outros países.
As Constituições da França, Inglaterra e Estados Unidos têm sido a fonte de quase todas
as outras. A norte-americana, de setembro de
1787, com 26 Emendas em mais de 200 anos,
dispensa legislação ordinária para os delitos de
imprensa.
2.3 A Importância da Lei Brasileira
Apesar das falhas e distorções de nossa Lei
de Imprensa ela foi, durante os vinte anos de
ditadura, o caminho mais suave para a defesa
dos profissionais da comunicação. Assim se
pronunciou a respeito a jornalista Célia Romano, em reportagem para o jornal O Estado de S.
Paulo, de 08.02.1987:
“a mesma lei utilizada pelos militares para
censurar, serviu também, nestes vinte anos,
para que os advogados de defesa garantissem o
direito da informação”.
A atual Lei de Imprensa, que surgiu juntamente com a Lei de Segurança Nacional, em
fevereiro de 1967, foi discutida e votada no Congresso Nacional, mas sua promulgação não lhe
dá característica democrática, tamanhas as pressões do regime ditatorial e do Executivo.
Freitas Nobre, Imprensa e liberdade, p. 38.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
21
D ireito
A liberdade de imprensa tem características
muito especiais, sui generis, porque, sendo uma
liberdade especial, é usufruída apenas pelos que
a possuem ou controlam.
Quando a nossa legislação de imprensa – a
Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967 – formalmente assegurou a livre manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão
de informações ou idéias, por qualquer meio,
independentemente de censura, respondendo
cada um pelos abusos que cometesse, sabia-se
que seria difícil a manutenção desses princípios
no sistema ditatorial de então.
Embora resultante de uma proposta de governo militar, porém, a Lei respondeu a uma
tendência que já se verificava em vários países,
que, mesmo não possuidores de uma lei de imprensa – como a Inglaterra, a Argentina e os
Estados Unidos –, já deparavam com a dificuldade do enquadramento desse tipo de infração
em sua legislação inadequada e desajustada.
A própria universalização do Direito da Informação é conseqüência dos princípios adotados pelas nações, por meio da Declaração da
ONU de 1948, que prevê essa liberdade “sem limitações de fronteiras” e “por qualquer meio de
expressão”, conforme seu artigo 19.
O Sindicato dos Jornalistas da França, por
ocasião de um Seminário realizado em fevereiro
de 1973, emitiu a seguinte Carta de Princípios:
“A liberdade de imprensa isoladamente não garante, em uma sociedade moderna, a informação aos cidadãos. Hoje se afirma uma necessidade nova, uma exigência contemporânea: o
direito à informação. A multiplicidade das
fontes de informação, a potência e a diversi-
19
22
A r t i g o
dade dos meios de comunicação, a necessidade
de opções individuais e coletivas implicam para
cada um a possibilidade de informar-se completamente dos fatos significativos da vida
política, social, econômica e cultural e o direito
de informação para todos”.
Verifica-se, hoje, que mesmo os países que
se dizem desprovidos de uma lei de imprensa
possuem decretos, portarias, legislação fragmentada que procuram consolidar as disposições legais. O ideal é que se preserve a liberdade
de imprensa, da impressão à circulação, da redação à emissão da notícia, da filmagem à
transmissão, do desenho à exibição do cartaz,
consolidando toda a legislação que trata dessas
atividades em uma lei de informação ou de
imprensa que sirva à verdade e à credibilidade
da notícia.
2.4 Perspectivas
O poder dos veículos de informação, segundo alguns estudiosos, está formando uma nova
sociedade.
“A transformação que ora ocorre, especialmente nos Estados Unidos, já está criando uma sociedade cada dia mais diversa da predecessora
industrial. A sociedade pós-industrial está criando
uma sociedade tecnetrônica: sociedade moldada, social, cultural, psicológica e economicamente pelo impacto da tecnologia eletrônica,
em especial na área dos computadores e das
comunicações. O processo industrial já não é
mais a principal determinante da mudança
social, alternando costumes, a estrutura social
e os valores da sociedade”.19
Zbigniew Brzezinski, Entre duas eras, p. 24.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Se nos preocupa a idéia de que os meios de
comunicação vão se tornando um novo fascínio
da sociedade, deve nos preocupar mais ainda a
constatação de que toda essa capacidade geradora de normas, hábitos, atitudes e, por que não,
da maneira de agir de toda a humanidade se
concentra nas mãos de uns poucos.
O jornalista tem, nos dias atuais, maior poder de influenciar a realidade, o que, possivelmente, está criando, na opinião pública, a imagem do jornalista como um novo senhor, todo
poderoso, que personifica o veículo de informação. E se, de sua parte, o Estado teme uma
demasiada liberdade, de outra, os profissionais
da comunicação empenham-se a fundo pela
conquista de uma liberdade concreta, livre de
ameaças, procurando consolidá-la independentemente do consentimento do poder.
Essa luta, já secular e de desfecho aparentemente distante, é, no fundo, não uma luta
classista ou de alguns segmentos da sociedade.
Quando a imprensa reclama irrestrita liberdade
de informar está defendendo, antes de tudo, um
direito que pertence ao povo, o de ser livremente
informado para, tudo sabendo, melhor decidir.
A moral, por sua vez, deixa de ser o ponto
prioritário dos estudiosos da comunicação social. Ao seu lado, já se examina, com crescente
interesse, o choque entre o direito de informar
e o direito de privacidade e a constante preocupação com a difusão da violência através dos
meios de comunicação.
São mais atuais do que nunca as palavras
de Aldous Huxley em Regresso ao admirável
mundo novo, de 1959:
20
21
“A comunicação com as massas, em uma palavra não é boa nem má; é simplesmente um poder e, como qualquer outro poder, pode ser
bem ou mal-empregado. Utilizados de uma
maneira, a imprensa, o rádio e o cinema são
imprescindíveis para a sobrevivência da democracia. Utilizados de modo diverso, encontram-se entre as armas mais poderosas do
arsenal dos ditadores”.20
O que dizer então da informática, que possibilita a divulgação instantânea da sabedoria
reunida no mundo? Os efeitos da revolução
tecnológica que estamos vivendo são muito mais
profundos do que qualquer mudança social que
tenhamos experimentado no passado. Por isso,
muitos afirmarem que a automação, em si,
representa a maior das mudanças da história
da humanidade.
Em artigo publicado em 1978, Karl Hugo
Pruys já questionava:
“No ano 2000 os veículos de comunicação serão
para nós paraíso ou inferno? O aperfeiçoamento dessa máquina de sonhos que é a TV unirá
os povos do mundo num diálogo internacional
ou levará ao total isolamento o ser humano?”21
O paraíso ou o inferno que os veículos reservam para o amanhã dependerão do grau de
liberdade de que disponham na difusão das
idéias, reacendendo o velho combate com os
detentores do poder. Para alguns estudiosos,
estes sempre exigirão que os meios de comunicação social sejam submetidos a um controle, a
uma vigilância exercida em nome de certos prin-
Regresso ao admirável mundo novo, p. 63.
João Féder, op. cit., p. 179.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
23
D ireito
cípios, de defesa de uma ordem moral, da segurança do Estado, do direito de privacidade e da
honra do indivíduo. Tal controle, defendem, nega ao direito de informação a sua condição de
direito fundamental do homem, direito natural
de que é titular toda pessoa humana, em qualquer tempo ou país.
Nessa medida, a luta pela livre manifestação
do pensamento, acreditam, será tão árdua no futuro como foi no passado. A não ser que se confirme a previsão mais otimista de Alvin Toffler, de
que a atual revolução superindustrial alterará tudo
o que nos afeta e, ao contrário de criar um modelo
repressivo, a tecnologia exigirá do homem que
saiba sobreviver ao exercício da plena liberdade,
“num contexto de avanço científico espetacular,
elegante e, todavia, aterrorizante”.22
3
LIMITAÇÕES LEGAIS. RESTRIÇÕES.
CONTROLE JURISDICIONAL
DA LEGALIDADE
3.1 Função Social e Censura
na História
Como poderoso instrumento de formação
da opinião pública, a imprensa tem o direito de
informar e o de exercer com liberdade sua
atividade. Por outro lado, tem o dever de fazê-lo
com respeito à verdade e aos direitos dos cidadão, desempenhando, na realidade, uma importante função social. Por esse motivo, a Constituição Federal, no capítulo dos direitos e garantias individuais, no inciso IX de seu artigo
5o, dispõe que é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
E é exatamente para preservar essa liberdade
22
24
A r t i g o
de comunicação que também dispõe, no artigo
220, § 2o, que não se admitirá censura de natureza política, ideológica ou artística.
A censura, pois, por ser incompatível com
a normalidade democrática, e para que a imprensa possa exercer com liberdade e segurança
sua função social, é repudiada pela Constituição
Federal. E a censura que se veda é aquela exercida previamente pelos órgãos administrativos
ou mesmo pela lei, regulamentos ou atos
normativos, sob pretexto político, ideológico ou
artístico, como dispõe o último preceito constitucional citado.
A censura inaceitável é aquela que surgiu
historicamente antes mesmo da edição do
primeiro jornal ou primeiro livro. Na Roma
antiga, os circuli (manuscritos de oposição
política ao governo) eram clandestinos, já que
apenas os órgãos oficiais tinham autorização
para serem distribuídos ao povo. A imprensa
foi duramente perseguida pela inquisição
católica. No século XVI, leis chegaram a proibir
a edição de qualquer livro sem a licença real.
Em seu “guia do perfeito censor”, o Papa
Alexandre VI chegou a afirmar, evidenciando
o interesse político de controle à liberdade de
pensamento e opinião, que “a censura é a arte
de descobrir nas obras literárias as intenções
malévolas”, que “o ideal é descobrir essas intenções, mesmo que o escritor não as tenha”,
que “o censor deve estar persuadido de que cada
palavra duma obra contém uma alusão pérfida”,
que “ao encontrar tal alusão, o censor deve
cortar a frase” e que, “se a alusão pérfida não
for descoberta, o censor deve cortar a frase do
mesmo modo, porque as alusões dissimuladas
são as mais perigosas”.
Idem, p. 180.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
A censura política e ideológica sempre foi
utilizada pelos detentores do poder, ao longo
da história, como instrumento de controle das
liberdades dos povos. E sempre que prevaleceu,
a liberdade e a democracia foram suprimidas.
Cabe lembrar o que Marx afirmou sobre a
liberdade de imprensa:
“A imprensa livre é o olhar onipotente do povo,
a confiança personalizada do povo nele mesmo,
o vínculo articulado que une o indivíduo ao
Estado e ao mundo, a cultura incorporada que
transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca
confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o
poder da confissão é o de redimir. A imprensa
livre é o espelho intelectual no qual o povo se
vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão
da sabedoria”.23
Não é à toa que a carta de princípios da Inter
American Association dispõe que “sem liberdade de imprensa não há democracia”. Porém,
igualmente não há democracia sem respeito à
legalidade, principalmente no que se refere aos
princípios constitucionais.
3.2 Ordem Constitucional
e Controle da Legalidade
No Brasil, a Constituição Federal assegura
à imprensa liberdade de informação jornalística
no artigo 220, § 1o, garantindo-lhe a necessária
liberdade para o desempenho de sua função
social. Contudo, a liberdade de informação
jornalística não é um direito absoluto, irrestrito
23
24
ou sem limites. É um direito que merece garantia, mas que deve ser limitado para que sejam
preservados outros bens, valores e direitos tão
relevantes e necessários à democracia como a
própria liberdade de imprensa. Tanto é assim
que a própria Constituição Federal prevê como
direitos e garantias invioláveis a liberdade, a vida,
a segurança, a propriedade, a honra.
A liberdade de imprensa não é um direito
superior a todos os demais e nem pode se impor
de forma ilimitada, subjugando outros direitos
que também sustentam a democracia.
Portanto, cabe à Constituição Federal, que
garante a liberdade, fixar seus limites em face
da existência e garantia dos demais direitos
tutelados pela ordem jurídica, buscando-se o
equilíbrio, como quer Serrano Neves: “nem
imprensa intocável nem restrição odiosa”.24 E
como a Carta Magna repudia a censura, qualquer restrição à liberdade de informação jornalística deve ser extraída do próprio texto
constitucional.
Aí entra o Poder Judiciário, a quem a Constituição dá o poder de controlar os abusos da
liberdade de informação jornalística, bem como
os abusos da atuação de qualquer outra
instituição ou Poder, pelo exercício da jurisdição. Assim, o controle da legalidade que pode
ser exercido sobre a liberdade de informação
jornalística, no Brasil, compete, democraticamente, ao Poder Judiciário.
3.3 Controle Jurisdicional
da Legalidade
Em um primeiro momento, cabe à própria
imprensa fazer o seu controle, a partir de uma
Karl Marx, Liberdade de imprensa, p. 42.
Direito de imprensa, p. 24.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
25
D ireito
postura ética e responsável, inspirada na legalidade e evitando os abusos.
Em 1993, demonstrando consciência da função social da imprensa, o jornal Folha de S. Paulo,
em editorial denominado Imprensa questionada, assim se expressou:
“Na atual conjuntura, qualquer denúncia,
mesmo que desacompanhada de provas, assume ares de verdade inquestionável. A imprensa,
por isso mesmo, é obrigada a redobrar os cuidados na averiguação dos fatos que, de resto,
jamais podem ser ignorados pelo bom jornalismo. O questionamento que começa a surgir
agora sobre o comportamento dos meios de
comunicação é saudável. Seria imperdoável
que o jornalismo, a partir da discutível qualificação de ‘quarto poder’, se sentisse acima do
bem e do mal. Quando questionada, a imprensa se obriga, mais ainda do que em momentos
menos conturbados, a cercar o seu noticiário
de todas as cautelas, para não atingir a honra
de inocentes. Se esse comportamento for rigorosamente seguido por todos os meios de comunicação, todos eles ganharão e, acima de
tudo, se beneficiará o leitor”.25
A manutenção da ordem democrática deve
ser perseguida pela imprensa como forma de
manter o seu livre desempenho, com a consciência de que a liberdade de informação jornalística não pode ultrapassar os limites da legalidade, ameaçando e lesando direitos. Cabe a
ela, pois, coibir os abusos que ameacem a legalidade e os princípios democráticos, evitando
atitudes lesivas ao patrimônio moral, à imagem
ou a quaisquer outros direitos do cidadão.
25
26
A r t i g o
A função primordial do Poder Judiciário é
a de compor conflitos de interesses em cada caso
concreto, pela aplicação da lei. Assim, quando
surge conflito de interesses envolvendo, de um
lado, a imprensa e sua liberdade de informação
jornalística e, de outro, o cidadão e seus direitos
civis e constitucionais, cabe ao Poder Judiciário
compor o conflito, impondo, se necessário, limites à atuação da imprensa em prol dos direitos
do cidadão eventualmente lesados ou ameaçados de lesão. E nenhum outro Poder do Estado
pode impor limites à atuação da liberdade de
atuação dos veículos de comunicação, de acordo
com o artigo 5o, XXXV, da CF, quando dispõe
que cabe ao Poder Judiciário o monopólio do
controle jurisdicional.
Desse modo, qualquer restrição ou limitação imposta aos meios de comunicação pelos
Poderes Legislativo ou Executivo, contrariando
as normas constitucionais, constitui inaceitável
censura. Aliás, dispõe o artigo 220 da CF que a
lei não poderá de forma alguma embaraçar a
liberdade de informação jornalística.
Sendo assim, o Executivo, o Legislativo e o
próprio Judiciário não podem editar provimentos, decretos, portarias, quaisquer atos normativos para impor restrição à atividade da imprensa. Apenas o Poder Judiciário pode e deve coibir
abusos praticados pela imprensa, quando
provocado por interessado, no curso de um processo legal, observando os limites impostos pela
lei e pelo próprio texto constitucional.
Não se trata, em hipótese alguma, portanto,
do exercício de um poder arbitrário, de atuação
de censura, mas, sim, da atuação de um Poder
chamado a compor um conflito concreto de interesses, dentro da ordem constitucional e demo-
Jornal Folha de São Paulo, São Paulo 11 de nov. 1993. Caderno 2, p. 2.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
crática, que assegura à imprensa todas as garantias
de defesa, do duplo grau de jurisdição e de uma
decisão embasada em princípios constitucionais.
pelo Poder Judiciário a faculdade de recorrer a juízo para se defender, legal e processualmente, da intervenção jurisdicional.
São vários os princípios que norteiam o
controle jurisdicional da atividade da imprensa:
• Princípio do duplo grau de jurisdição:
sempre que um Juiz ou Tribunal toma
uma decisão, há possibilidade do reexame dela pelos órgãos jurisdicionais de
outra instância de julgamento. Assim,
sempre que qualquer órgão judicial impõe restrições ou limites à imprensa,
pode o veículo atingido requerer o reexame da decisão pelo órgão de instância
superior.
• Princípio da proteção judiciária: prevê o
artigo 5o, XXXV, da CF que não se pode
excluir da apreciação do Poder Judiciário
qualquer lesão ou ameaça a direito. Por
meio dele, portanto, cabe ao Poder Judiciário intervir até mesmo na imprensa
para evitar a prática de qualquer ato que
viole ou lese direitos; basta, pois, uma
ameaça a direito para que o Poder Judiciário possa ser provocado e, acionado,
possa intervir, constitucionalmente, para
afastar tal ameaça, inclusive proibindo
publicações jornalísticas, edições de
livros e quaisquer outras formas de comunicação escrita ou falada, sem que tal
atividade se revista de “censura”.
• Princípio do direito de ação: consagrado
no artigo 5o, XXXV, da CF, confere a todo cidadão o direito público e subjetivo
de invocar a atividade jurisdicional por
ocasião de qualquer lesão ou ameaça a
direito. Assim, qualquer pessoa que
tenha um direito sem lesado ou ameaçado pela atividade da imprensa poderá
invocar a tutela jurisdicional do Poder
Judiciário, que deverá prestar a tutela
que dite os limites para o exercício da
liberdade de informação jornalística no
caso concreto.
• Princípio do direito de defesa: assegurado
no artigo 5o, LV, CF, é uma verdadeira
garantia constitucional à liberdade de
informação jornalística, na medida em que
confere à empresa jornalística eventualmente atingida por restrição imposta
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
• Princípio do devido processo legal: previsto
no artigo 5o, LIV, CF, garante aos veículos
de comunicação que, para exercer o
controle jurisdicional da legalidade, o Poder
Judiciário deve agir sempre de acordo com
as normas e princípios processuais vigentes,
não cabendo a ele impor limites ou restrições
de modo discricionário, arbitrário, ou
espontaneamente.
• Princípio da iniciativa da parte: consagrado no artigo 2o do CPC, garante que
o Poder Judiciário, para intervir de qualquer forma na atividade da imprensa, não
pode agir de ofício, devendo fazê-lo apenas quando provocado pelo interessado,
a saber, alguém que alegue que um direito seu está sendo ameaçado ou lesado
por determinada publicação ou edição
jornalística.
Como se vê, não há qualquer semelhança
entre censura e controle jurisdicional da legalidade, já que a primeira é arbitrária e inconstitucional e a segunda apenas atinge a liberdade
de informação jornalística dentro dos limites e
forma estabelecidos na Constituição. A imprensa, portanto, é inatingível pela censura, mas
não é imune ao controle jurisdicional, pois não
27
D ireito
pode, impunemente e sem nenhum controle,
ameaçar e lesar direitos, violando, com isso, a
ordem constitucional e democrática.
acordo com o sistema democrático e com os
princípios do Estado de Direito.”26
Assim é que, se um veículo de comunicação
está prestes a publicar matéria jornalística relacionada com determinada pessoa, que se sente
atingida ou ameaçada em sua honra ou imagem –
direitos garantidos pela Constituição Federal –,
se presentes estão o fumus boni iuris, pela existência de elementos que comprovem a verossimilhança do alegado, e o periculum in mora,
pela probabilidade de ocorrência de um dano
de difícil reparação, o Poder Judiciário deve agir,
ainda que de forma precária, concedendo a
medida cautelar pleiteada, com a conseqüente
suspensão da publicação até que, no processo
de conhecimento, depois do pleno exame das
alegações, seja possível decidir sobre sua
procedência ou improcedência.
O que não se pode é confundir o livre exercício do direito de crítica e de opinião, que é
democrático e necessário, com a injúria, o desrespeito ao cidadão, a deliberada intenção de
ofender, como se o direito de informação jornalística fosse absoluto e superior a todos os
demais também constitucionalmente assegurados. Para isso, o controle jurisdicional da legalidade é medida extremamente salutar.
É importante que a opinião pública saiba que
o controle da legalidade, exercido exclusivamente
pelo Poder Judiciário, é imprescindível para a
manutenção da democracia, tanto quanto o é para
a garantia da liberdade de informação jornalística.
Como afirmava o poeta Bertolt Brecht,
“a justiça é o pão do povo, às vezes bastante, às
vezes pouca; às vezes de bom gosto, às vezes de
gosto ruim; quando o pão é pouco, há fome, e
quando o pão é ruim, há descontentamento”.
“Para que o Poder Judiciário possa servir ao
povo o pão diário da justiça, sem tardança,
com gosto bom, com sabedoria, em abundância e saudável, há de ser constitucionalmente
forte e independente, há de ser compreendido
e respeitado, há de ser prestigiado e acatado
em suas decisões jurisdicionais, prolatadas de
26
28
A r t i g o
4
JORNALISMO RESPONSÁVEL
E ALGUMAS QUESTÕES ÉTICAS
4.1 A Primeira Emenda
Norte-Americana e o Jornal
Responsável
A Primeira Emenda assegura a liberdade de
expressão, ou de informação, sem indicar qualquer restrição ao seu pleno exercício, aparentemente protegendo tanto o discurso irresponsável quanto o responsável, o que leva a crer
que não pode ser o único alicerce do jornalismo
responsável, mesmo porque não é a lei que
determina o que é certo ou errado, mas apenas
proclama o que já é reconhecido como tal.
É possível se ter uma imprensa ao mesmo
tempo livre e responsável, desde que compreenda
seu próprio papel e o desempenhe bem. A imprensa
independente, que é garantia da democracia, não
dispensa que se empreendam esforços sérios no
sentido de definir suas responsabilidades.
E as raízes da responsabilidade estão no fato
de serem os jornalistas seres individuais e sociais
cujas ações inevitavelmente afetam os demais.
José Henrique Rodrigues Torres, A censura à imprensa e o controle jurisdicional da legalidade, RT 705, p. 32.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
“O próprio fato de que temos a capacidade ou
o poder de influenciar ou sermos influenciados
pelos outros, de modo profundo, para o bem
ou para o mal, exige que nos comportemos de
modo reciprocamente responsável, para que a
própria sociedade subsista.”27
Existe um velho ditado, entre os comunicadores norte-americanos, que afirma que uma
imprensa verdadeiramente livre é aquela que é
livre para deixar de lado o seu dever de ser responsável. Para o conhecido jornalista Vermont
Royster, “a responsabilidade deve estar na consciência de cada um de nós”,28 o que mostra que
as questões de responsabilidade se reduzem a
questões de consciência, que são irrelevantes
para o ideal de uma imprensa livre, daí por que
dizer que não há conexão necessária entre a
liberdade e a responsabilidade da imprensa.
Uma imprensa livre não se pode afastar do
bem-estar da comunidade, como reconheceu a
Associação Americana de Editores de Jornais no
início desse século, ao promulgar os seus “Cânones do Jornalismo”:
“a liberdade de imprensa quer dizer liberdade
de todas as obrigações, exceto a de se manter
fiel ao interesse público”.
A Primeira Emenda, portanto, é o compromisso do Estado para com a liberdade de expressão,
cabendo a ele, Estado, criar incentivos para o
jornalismo responsável, a partir da definição do
que seja “interesse público”, resultando daí o
fortalecimento do direito à informação.
27
28
Não se pode esquecer do consenso que existe em torno das instituições ou pessoas cujo
poder afeta a vida de outras, no sentido de que
têm obrigações de utilizar esse poder de maneira
a atender aos interesses dos que são por elas
atingidos, daí a necessidade da responsabilidade
na atividade jornalística.
4.2 O Direito de Saber
Outra questão ética bastante discutida se refere
à exigência dos jornalistas de acesso total à
informação, sob a alegação de que o público tem
o direito de saber. Os que são contrários a esse
amplo acesso defendem que o “direito de saber”,
muitas vezes, mascara o verdadeiro interesse dos
jornalistas, que é o de vender informações para
obter lucro e, além disso, que o público não precisa
ter acesso a certas informações.
Não se pode ignorar que os veículos de
comunicação realmente “vendem” informações
atrás de audiência e lucro comercial. Por outro
lado, os que pensam em restringir a distribuição
de informações podem estar defendendo seus
próprios interesses, facilitando o processo decisório para os líderes, entre os quais costumam
se incluir. O ideal é que, em quaisquer circunstâncias, o “direito de saber” do povo seja mais
amplo do que limitado, encarado não como um
privilégio, mas como uma necessidade para o
exercício da democracia.
“A distribuição da informação pela mídia é,
em um sentido bastante real, uma realocação
do poder. Caso seja feita de um modo amplo,
ela reduz o poder de uma minoria ao colocar a
informação nas mãos de todos aqueles que
Louis W. Hodges, Definindo a responsabilidade da imprensa, in Deni Elliot (org.), Jornalismo versus privacidade, p. 19.
Theodore L. Glasser, A responsabilidade da imprensa e os valores da primeira emenda, p. 86.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
29
D ireito
estão interessados em transformar o monopólio do poder em algo difícil de manter. Os
monopólios do poder são um anátema em uma
sociedade participativa.”29
4.3 A Questão da Honestidade
e do Uso de Métodos Ilícitos
na Obtenção da Informação
Edwin Newman é um jornalista da Rede
NBC News e, em artigo intitulado A responsabilidade do jornalista, colocou a seguinte questão:
“Qual o nosso grau de honestidade? Não muito
baixo, eu acho. Mas é necessário compreender
que a determinação do que seja uma notícia
nem sempre envolve considerações de honestidade (...) Obviamente, não se deve permitir
que sejamos usados ou manipulados, embora
isso também possa às vezes acontecer. Porém,
os problemas são mais complexos”.30
Não se pode esquecer que a notícia é um negócio dos mais competitivos. As empresas
jornalísticas existem para gerar lucros, ou fazer
parte de uma estrutura em que outros setores
geram lucro, como é o caso das redes de televisão.
Essa competição certamente provoca abusos, pode
levar à divulgação apressada de informações que,
mais tarde, acabam sendo desmentidas,
resultando, invariavelmente, em sensacionalismo.
O autor ilustra a situação com o seguinte
exemplo: em 1979, um alarma nuclear em
Three Mile Island levou às manchetes de um
poderoso jornal americano a seguinte chamada:
29
30
31
32
30
A r t i g o
“Nuvem nuclear se espalha”. No segundo dia,
a manchete era “Vazamento escapa ao controle”. No terceiro, era: “Corrida contra o desastre nuclear”. E no quarto: “Situação melhora”,
o que indica a prática de “um jornalismo barato,
que explora o medo. Para a maioria das pessoas
este tipo de coisa é fácil de reconhecer”.31
Outro tema que merece atenção em diversos códigos de ética jornalística é a obtenção
de informações por meio de métodos considerados “ilícitos”, preocupação presente em cerca
de 30% dos códigos. O julgamento do que seja
um método ilícito de obtenção de informação
comporta uma certa dose de subjetividade.
Eventualmente, jornalistas têm se apresentado
omitindo sua atividade profissional, para poderem investigar aspectos relevantes de determinado assunto. Nessa medida, obtêm gravações
e fotografias clandestinas e omitem dados sobre
sua própria identidade para a revelação de fatos
que, de outra forma, talvez não chegassem ao
conhecimento do público.
“Há dúvidas sobre tal comportamento, mas
também há perguntas. A realidade transparece
fulgurante pela informação das fontes oficiais?
O jornalismo deveria limitar-se às declarações
das fontes? É necessário desconfiar das palavras
das fontes? Seria pertinente ouvir várias e, de
todas, desconfiar, ou fazer um mosaico de
versões às quais seriam anexados documentos
e imagens? (...) E, neste caso, quem forneceria
os dados e documentos? Um funcionário de
algum organismo que manteria sigilo, conforme prevê a maioria dos códigos?”32
John C. Merril, Três teorias sobre a responsabilidade da imprensa e as vantagens do individualismo pluralístico, p. 71.
Edwin Newman, A responsabilidade do jornalista, in Robert Schmuhl (org.), As responsabilidades do jornalismo,
p. 33.
Idem, p. 34.
Francisco José Karam, Jornalismo, ética e liberdade, p. 102.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
São muitas as questões que surgem nesse
ponto. Pela sua dimensão pública, o jornalismo
exige que, na informação, esteja presente a
pluralidade de versões e a maior transparência
possível da realidade, e que a informação vá além
de poucas declarações ou documentos parciais.
“Muitas vezes, a insistência do profissional,
considerada por fontes como invasão, pode ser
tida como indispensável no sentido de proteger
a cidadania e garantir que o público diverso
não seja logrado somente pelas declarações
oficiais ou submetidas ao interesse particularizado de empresas, governo, organismos
públicos e privados ou interesse pessoal no caso
de assunto de menor abrangência, mas com
relevância social.”33
De acordo com o enfoque, portanto, o jornalista pode ser considerado um invasor da
privacidade alheia, um “chato insistente”, que
interfere em assuntos particulares, ou um profissional extraordinário, merecedor de prêmios.
Em muitos casos, é certo, se olharmos bem no
centro da produção de seu trabalho, encontraremos o emprego de métodos pouco claros para
a obtenção dessas informações, que vão, hipoteticamente, desde a gravação de conversas
telefônicas de ministros e chefes de Estado, à
fotografia de articulações clandestinas entre crime
e governo, entre máfia e Igreja.
“Isto, submetido à ética individual, acaba
tornando-se um pêndulo que balançará não de
acordo com o tempo, mas de acordo com quem
tiver mais força para puxá-lo para seu lado.”34
33
34
35
O ideal é que haja políticas públicas para a
informação, com acesso, discussão e controles
sociais sobre ela, caminhos que contribuem
eficazmente para a concretização da liberdade
e da responsabilidade da atividade jornalística.
“A produção de saber restrita a uma área ou a
concentração crescente de poder devem ter seus
limites ultrapassados pelo trabalho jornalístico
de mostrar, em escala global e imediata, o movimento de todos estes setores em que se movem
e desdobram cotidianamente a realidade, as
pessoas, os fatos, as versões (...) e sua produção
e resultado, com conseqüências nos próprios
saber e poder.”35
4.4 Outras Questões Éticas:
o Poder e a Privacidade,
o Dever de Denúncia,
a Violência e a Qualidade
Em 1920, dizia Rui Barbosa, em Conferência pronunciada na Bahia:
“O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça.
Queiram ou não queiram, os que se consagram
à vida pública até à sua vida particular deram
paredes de vidro.(...) Para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram
escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério”.
Qualquer sociedade democrática exige harmonia entre conceitos bastante antagônicos e
Idem, p. 103.
Idem.
Idem, p. 107.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
31
D ireito
igualmente importantes: de um lado, a liberdade
de imprensa e o direito à informação e, de outro,
o direito à vida privada e o dever de respeitar a
intimidade do ser humano. A dificuldade em se
equilibrar os pratos nasce da relação unilateral que
tradicionalmente se estabelece no tratamento
desses dois direitos humanos fundamentais,
quando, na verdade, o que reclamam é justamente
a adoção de mecanismos de harmonização.
Se qualquer ação humana tivesse de ser submetida à mais ampla publicidade, não se poderia
falar em liberdade. De fato, um dos grandes desafios do nosso tempo é a preservação do âmbito
ideal de privacidade. Nenhuma pessoa é verdadeiramente livre se não merecer a tutela da inviolabilidade de sua privacidade.
Como trataremos adiante, até mesmo presumíveis criminosos – porque não passam de
presumíveis enquanto não houver condenação
definitiva – têm direito à privacidade, que deve
protegê-los das investidas dos meios de comunicação em divulgar fatos de sua vida íntima e
de seus familiares. E quando se fala em direito
à privacidade, invariavelmente surge a questão
das ações praticadas por pessoas públicas, que
têm transcendência pública, como é o caso, por
exemplo, dos governantes.
“O leitor tem o direito de conhecer o tipo de
filosofia ou ideologia defendida por um político, sua competência ou incompetência, sua
honestidade ou desonestidade, sua visão do
mundo, seu passado. Analogamente, os aspectos da vida privada que, de modo claro e
direto, possam afetar o interesse público, não
devem ser omitidos em nome do direito à
36
37
38
32
A r t i g o
privacidade.(...) Se assim não fosse, tudo o que
teríamos para ler na imprensa seriam amontoados de declarações emitidas pelas próprias
fontes interessadas.”36
Não se deve invocar o direito à privacidade
para protestar contra a divulgação de informações verdadeiras que registram atitudes incompatíveis com a dignidade da função pública, já
que se espera decoro das pessoas no exercício
do poder. O que divide o direito à informação
do direito à privacidade é o bem comum, o
interesse público.
“O relacionamento entre governantes e a mídia
não pode ficar condicionado aos esquemas de um
show. As figuras públicas precisam superar a
tentação do espetáculo. E os meios de comunicação social, independentemente do virtuosismo
dos atores, não podem ser pautados pelo brilho
da passarela política. Por isso, é cada vez mais
importante debater e aprofundar os contornos
éticos que envolvem o mundo da informação.”37
4.4.1 Dever de Denúncia
“A imprensa tem relevante papel de denúncia, de
contraponto. Essa função, no entanto, nada tem
a ver com a curiosidade agressiva, com o afã de
escândalo ou com atitudes de retaliação.”38
O dever de denúncia, que é inerente à
atividade jornalística e extremamente salutar ao
exercício da democracia, não se pode confundir
com sensacionalismo, que transforma fatos em
instrumentos de espetáculo.
Carlos Alberto Di Franco, Jornalismo, ética e qualidade, p. 77.
Idem, p. 78.
Idem, p. 29.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
Alguns setores da mídia exploram a miséria
humana, convertendo-a em bandeira de marketing. Era o que ocorria, certamente, no extinto (?)
Aqui Agora, do SBT, que, em um dos inúmeros
exemplos que poderíamos citar, ao mostrar
imagens do suicídio de uma jovem, precedidas de
inúmeras chamadas, afrontou as balizas do Código
de Ética da Associação Brasileira das Emissoras de
Rádio e Televisão (ABERT). Não estamos livres,
porém, desse lamentável tipo de jornalismo,
ultimamente bastante exercitado por vários
programas da TV brasileira, na acirrada disputa
por pontos de audiência.
A pretexto de mostrar “a vida como ela é”,
arma-se um desfile de horrores, daquilo que a
natureza humana é capaz de produzir de mais
sórdido. E o espectador, verdadeiro refém dessa
leviandade eletrônica, mergulha na mais absoluta
alienação e perplexidade, acompanhando a
disputa que travam as diversas emissoras de TV,
que se superam, a cada novo dia, especializando-se
na arte de explorar as tragédias humanas.
“À imprensa de qualidade”, conclui Carlos
Alberto Di Franco, “cabe o dever da denúncia.
Ao jornalismo de espetáculo, dominado pela
obsessão mercadológica, restará o julgamento
da opinião pública”.39
4.4.2 Mídia e Violência
No início da década de 1990, a Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São
Paulo realizou, em conjunto com a Revista Veja,
uma ampla pesquisa sobre a televisão brasileira,
que visava contabilizar todas as cenas e diálogos
que, dentro da programação de uma semana das
principais redes, se referissem a sexo e violência.
39
40
Naquela semana, concluiu-se, foram disparados 1.940 tiros na TV brasileira, houve 886
explosões, 651 brigas, 1.145 cenas de nudez,
188 referências ou imitações a trejeitos
homossexuais e 72 termos chulos.
Nos Estados Unidos, país reconhecidamente democrático, existe lei federal proibindo pornografia e programas obscenos, o Communications Act. As próprias emissoras também têm
seus códigos internos, que são rigorosamente
observados. Tudo a refletir o nível de responsabilidade social da mídia eletrônica daquele
país. Por aqui, no entanto, qualquer tentativa
de normatização logo soa como voz dos setores
conservadores, que pretenderiam cercear a
liberdade de expressão.
Para o jornalista José Castello,
“torpedeados os valores, é todo um universo
que desmorona. Tornamo-nos, todos, homens
sem pudor. Não são apenas os marginais
organizados em falanges para o que der e vier
que se deixam dirigir por essa razão cínica”.40
Na verdade, o sistemático bombardeio de
sexo e violência que invade nossas casas a cada
dia e banaliza esses conceitos gera uma verdadeira moral da delinqüência.
4.4.3 A Qualidade
Como o direito à informação é, inegavelmente, um requisito da democracia. A opinião
pública sabe que necessita de um jornalismo
investigativo, isento, ancorado na liberdade de
expressão e no direito à informação, como for-
Carlos Alberto Di Franco, op. cit., p. 31.
Idem, p. 40.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
33
D ireito
ma de banir a cultura do acobertamento, denunciar e pôr fim a tudo o que não sirva à democracia. Dessa forma, dependemos da liberdade
e do nível técnico e ético da imprensa, dependemos de uma postura responsável e que busque,
acima de tudo, a qualidade.
Como lembrou Cláudio Abramo,
“a ética do jornalista é a ética do cidadão. O
que o jornalista não deve fazer que o cidadão
comum não deva fazer? O cidadão não pode
trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir”.
A imprensa não é feita por super-homens.
É feita por seres humanos, falíveis como todos
nós. Apenas esperamos que seja conduzida por
homens de bem.
5
LIMITES DO DIREITO
DE INFORMAÇÃO
Como vimos, o direito de informação, apesar de amplo, constitucional e fundamental à
democracia, tem os seus limites. E nem sempre
a demarcação desses limites é fácil, já que se
confrontam o direito da coletividade à informação e aquela esfera do indivíduo que o público, e conseqüentemente a imprensa devem
respeitar.
Dadas a freqüência e a intensidade dos conflitos de interesse, nos dias de hoje acentua-se
a tendência de definição de uma área de intimidade ou reserva que não deve ser liberada ao
público sem o consentimento do interessado.
Assim é que o direito de informação deve
ser o mais amplo possível, enquanto não colidir
41
34
A r t i g o
com interesses considerados igualmente
fundamentais. Afinal, o interesse da coletividade
em ser informada impõe a si mesmo um limite,
quando a divulgação de fatos venha a destruir a
pessoa humana em sua dignidade.
“O direito à informação existe em função do
desenvolvimento da personalidade e não para
a sua destruição.”41
Em 1960, o Prof. Willian Prosser, da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, escreveu trabalho intitulado Privacy, divulgado na California Law Review, no qual distinguiu em quatro categorias diversas os ataques à
intimidade da vida privada de forma a reclamar
quatro tipos de reação:
1) proteção do indivíduo contra a intrusão
no seu retiro ou solidão ou em assuntos
privados;
2) proibição de divulgar ao público fatos
privados, especialmente os que podem
causar algum embaraço ao interessado;
3) reconhecimento da ilegalidade de publicações que exponham as pessoas sob uma
falsa imagem, mesmo não difamatória;
4) proteção contra as apropriações, por terceiros, de certos elementos da personalidade individual com ânimo de lucro, tendo
como caso freqüente a apropriação do
nome ou da imagem ou de ambos a uma
só vez sem consentimento do interessado
e para anunciar algum produto.
Uma decisão do começo deste século, proferida pelo Tribunal da Geórgia, concluiu que
o direito à intimidade é limitado pelo direito de
René Ariel Dotti, Proteção da vida privada e liberdade de informação, p. 177.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
expressão do pensamento, com destaque para
a imprensa. Consta de parte da decisão essa
atualíssima lição:
“Os que têm garantido o direito de expressão,
oral, escrita, e de imprensa, não devem abusar
de tal direito. Nem aquele que detém o direito à
intimidade deve abusar dele. A lei não permitirá
o abuso nem de um nem de outro. A liberdade
de expressão e de imprensa tem sido um instrumento útil para manter o indivíduo dentro dos
limites de sua conduta legal, decente e adequada.
E o direito à intimidade pode ser utilizado convenientemente dentro de seus limites para
manter os que falam, escrevem e editam dentro
dos limites legítimos das garantias constitucionais de tais direitos. Pode-se usar de um
deles para moderar o outro; mas nenhum dos
dois pode ser legalmente usado para destruir o
outro”.42
As limitações reciprocamente impostas, é
bom frisar, não resultam da hierarquia das liberdades em conflito, já que não há superposição,
mas das circunstâncias de que se reveste cada
situação concreta. Em algumas delas, deve
prevalecer o direito à intimidade; em outras, deve
ser prioritário o direito à informação. O direito à
vida íntima das pessoas, que não é ilimitado, deve
conciliar-se com o exercício da liberdade de
informação, quer decorra do interesse público
ou dos interesses de particulares.
5.1 Limitações nos Diplomas Legais
Os textos que declaram a existência autônoma do direito à vida privada fazem sempre
referência às limitações, embora não as tra-
42
gam de modo detalhado nas situações concretas. Assim ocorre na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que, em seu artigo 12,
reconhece este direito contra as ingerências
arbitrárias, admitindo, implicitamente, suas
limitações.
Já o artigo 8o da Convenção de Salvaguarda
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais dispõe:
“1 – Toda pessoa tem direito ao respeito de sua
vida privada e familiar, de seu domicílio e de
sua correspondência. 2 – Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício desse
direito senão quando esta interferência esteja
prevista em lei, e constitua uma medida que,
numa sociedade democrática, seja necessária
para a segurança nacional, a segurança pública,
o bem-estar econômico do país, a defesa da
ordem e a prevenção de infrações penais, a
proteção da saúde ou da moral, ou a proteção
dos direitos e as liberdades dos demais”.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948, art. 4o), somente faz referência à proteção legal contra os
“ataques abusivos” à vida privada e familiar (e
também à honra e reputação). O mesmo se diga
do Pacto das Nações Unidas sobre Direitos
Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966).
Em 1967, O Congresso de Juristas dos Países Nórdicos, realizado em Estocolmo, fixou
diversas hipóteses de limitação do direito à
intimidade da vida privada. Considerou-se,
então, como limites necessários para o equilíbrio
entre os interesses individuais e coletivos de
pessoas, grupos ou do Estado:
Idem, p. 180.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
35
D ireito
1) o “interesse público” (assim entendido
como segurança nacional, segurança pública, da defesa, da ordem, da prevenção
do crime, da proteção da saúde ou da
moral);
ção, na busca por uma “ordem sossegada”, que
é a paz.
2) o “interesse privado” (defesa de interesses de outras pessoas ou grupos de
pessoas naturais).
É tarefa das mais árduas legislar sobre o
assunto, pelas graves complexidades que envolvem o problema e também pela diversidade
enorme quanto às situações concretas que pode
apresentar. Some-se a isso, como ensina René
Ariel Dotti,
A Constituição de Portugal, de 1976, em
seu artigo 33 dispõe que a lei estabelecerá garantias efetivas contra a utilização abusiva, ou
contrária à dignidade humana, de informações
relativas às pessoas e famílias. É em torno dessa
legislação complementar que convergem as
grandes preocupações dos juristas.
“a difusão cada vez maior dos instrumentos,
dos meios e dos métodos da técnica com os
progressos que lhe são inerentes, de modo a
formar tantas hipóteses de conflito quantas
aparecem e se movimentam nas figuras de um
caleidoscópio”.44
A importância de limitar as esferas de reação
das liberdades está ligada à necessidade de que
coexistam, para poderem ser exercidas simultaneamente. Porém, como lembra o mestre
René Ariel Dotti,
Por esses motivos, não se têm apresentado
fórmulas legislativas que, a um só tempo, contemplem todas as situações de conflito, propondo as soluções adequadas.
“toda a problemática de limitação às liberdades públicas poderá conduzir a um regime de
insegurança na medida em que o predomínio
absoluto e permanente de uns direitos sobre os
outros, além de atentar contra um pressuposto
natural de equilíbrio, fomenta necessariamente
áreas de antagonismo, que vão desaguar nas
tentativas – geralmente violentas – de alteração
do ordenamento injusto”.43
O freqüente conflito entre o direito à vida
privada e a liberdade de informação baseia-se na
concepção de segurança. A segurança atua para
limitar não somente a intimidade das pessoas,
mas também para restringir o direito à informa-
43
44
36
A r t i g o
Uma evidência dessa realidade é a solução
dada pelo Código Civil português, de 1966, ao
conferir tutela autônoma e direta da intimidade,
em seu artigo 80:
“1 – Todos devem guardar reserva quanto à
intimidade da vida privada de outrem. 2 – A
extensão da reserva é definida conforme a
natureza dos casos e a condição das pessoas”.
A disposição citada vem inserida no capítulo
que trata dos direitos da personalidade reconhecidos no sistema de Portugal e mostra que não
se podem obter fórmulas legais que esgotem o
tema. O direito à informação e o respeito à vida
privada não podem ser conduzidos em plano
Idem, p. 184.
Idem, p. 188.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
absoluto, sob pena de se ter o sacrifício de um
deles em favor do outro. Daí a necessidade de
serem limitados em seu exercício na busca por
uma fronteira de equilíbrio.
Atualmente, embora não completamente
resolvidos os problemas que representam a má
aplicação da lei e a existência de lacunas, existe
um princípio maior, que norteia a função judicante. É nesse sentido que a Lei de Introdução ao
Código Civil brasileiro dispõe que, “na aplicação
da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum” (art. 5o).
O preceito permite que os pronunciamentos da Justiça alcancem a maior variedade de
situações concretas, por meio de uma atuação
que garanta o direito à liberdade não apenas às
partes envolvidas no conflito, mas também ao
Juiz, que não deverá restringir-se ao quadro es-
45
tabelecido pela lei, como se a enxergasse através
de uma fresta.
O aplicador do Direito não pode ser reduzido à condição de personagem de Fedor Dostoieviski em Recordações da casa dos mortos:
“a nossa prisão ficava na extremidade da fortaleza,
à beira da muralha. Quando através das frinchas
da paliçada procurávamos entrever o mundo,
distinguíamos apenas um estreito retalho de céu
e uma alta plataforma de terra, invadida pelas
ervas daninhas, que as sentinelas percorriam noite
e dia. E dizíamos imediatamente para conosco
que, por mais anos que passassem, veríamos
sempre, olhando através das frinchas da paliçada,
a mesma muralha, a mesma sentinela e o mesmo
retalho de céu – não o céu da fortaleza, mas sim
outro, um céu mais longínquo, um céu livre”.45
Recordações da casa dos mortos, p. 13.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
37
D ireito
A r t i g o
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA MIRANDA, Darcy. Comentários à Lei de
Imprensa. São Paulo: RT, 1969, v. 1-2.
MARX, Karl. Liberdade de imprensa. Porto Alegre: Ed.
L&PM, 1980.
BARBOSA, Rui. Ruínas de um governo. Rio de Janeiro:
Ed. Guanabara, 1931.
MERRIL, John C. Três teorias sobre a responsabilidade
da imprensa e as vantagens do individualismo pluralístico.
Rio de Janeiro: Nórdica, 1986.
BRZEZINSKI, Zbigniew. Entre duas eras. Rio de Janeiro:
Artenova, 1980.
DI FRANCO, Carlos Alberto. Jornalismo, ética e qualidade. Petrópoles: Vozes, 1995.
MORAIS, Fernando. A ilha. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.
DOSTOIEVISKI, Fedor. Recordações da casa dos mortos.
Lisboa: S.C.P, 1972.
NEVES, Serrano. Direito de imprensa. São Paulo: José
Bushatsky, 1977.
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade
de informação. São Paulo: RT, 1980.
NEWMAN, Edwin. A responsabilidade do jornalista. In:
SCHMUHL, Robert. As responsabilidades do jornalismo.
Rio de Janeiro: Nórdica, 1984.
FÉDER, João. Crimes da comunicação social. São Paulo:
RT, 1987.
FROMM, Erich. Meu encontro com Marx e Freud. Rio
de Janeiro: Zahar, 1967.
NOBRE, Freitas. Imprensa e liberdade. São Paulo:
Summus, 1988.
———. Lei de imprensa. São Paulo: Saraiva, 1961.
GLASSER, Theodore L. A responsabilidade da imprensa e os
valores da primeira emenda. Rio de Janeiro: Nórdica, 1986.
PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem, comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1971.
HODGES, Louis W. Definindo a responsabilidade da
imprensa. In: ELLIOT, Deni. Jornalismo versus privacidade. Rio de Janeiro: Nórdica, 1986.
RIVERS, William; SCHRAMM, Wilbur. Responsabilidade
na comunicação de massa. Rio de Janeiro: Block, 1970.
HUXLEY, Aldous. Regresso ao admirável mundo novo.
São Paulo: Hemus, 1959.
KARAM, Francisco José. Jornalismo, ética e liberdade.
São Paulo: Summus, 1997.
LEÃO, Aniz José. Limites da liberdade de imprensa. São
Paulo, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1961.
38
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. São Paulo: Nacional,
1942.
SINGTON, Derrick. Liberdade de comunicação. Rio de
Janeiro: Fundo de Cultura, 1963.
STEINBERG, Charles. (Org.). Meios de comunicação de
massa. São Paulo: Cultrix, 1970.
TORRES, José Henrique Rodrigues. A censura à imprensa
e o controle jurisdicional da legalidade. Revista dos
Tribunais, São Paulo: RT, v. 705, 1994.
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
D ireito
A r t i g o
PAPEL DO ENSINO JURÍDICO
NO FUTURO DA ADVOCACIA
Luiz Flávio Borges D’Urso
Advogado Criminalista
Mestre e Doutor em Direito pela USP
Presidente da OAB-SP
Para divisar o futuro da Advocacia no Brasil,
é fundamental fazer o diagnóstico de seus
problemas atuais, entre eles, inegavelmente, o
ensino jurídico. O país convive, há mais de três
décadas, com a crise do ensino superior, e a área
do Direito tem sido uma das mais castigadas
pelo rebaixamento do nível educacional. Ao
encontro da intenção do regime militar de minar
pólos centrais da resistência democrática, entre
os quais se inseria a Ordem dos Advogados do
Brasil, vanguarda da mobilização social, os
cursos de Direito, alguns de curta duração, com
escopos esterilizados, espalharam-se por todo
o território, oferecidos por escolas movidas a
interesses mercantilistas.
O resultado desse quadro revela-se na estatística que se apresenta hoje ao País: são quase 800
cursos de Direito em funcionamento, contra 69,
em 1960. Uma realidade que causa perplexidade
se comparada aos dados dos Estados Unidos,
onde o número de faculdades de Direito está
estacionado em 180 instituições de ensino superior. A proliferação de faculdade no Brasil lança no mercado milhares de bacharéis, dos quais
só o Estado de São Paulo recebe 15 mil por ano,
que correspondem a apenas a 20% do total,
porque os demais não passam no exame de
82
Ordem, que busca aferir se o bacharel reúne
condições profissionais mínimas para atuar, uma
vez que terá em suas mãos os bens maiores da
criatura humana: a honra, a vida e a liberdade.
Ao lado da saturação do mercado de trabalho, os
advogados passaram a conviver com o descumprimento constitucional do múnus da advocacia
e com leis que restringem suas atividades profissionais, como ocorre nos juizados de pequenas
causas. Não por acaso, o papel do advogado na
sociedade política tem decrescido.
É nessa moldura que a seccional paulista da
Ordem dos Advogados do Brasil está interferindo
oportunamente. A meta é requalificar o ensino
jurídico, resgatando o ideário dos cursos de ciências jurídicas e sociais, criados em Olinda e em
São Paulo, em 11 de agosto de 1827. O esforço
pela recomposição dos níveis de qualidade do
ensino do Direito começa pelo combate a escolas
e cursos defasados e improvisados, destituídos de
visão do futuro, estruturados e com quadros docentes precários. Lembre-se, a propósito, de que
a OAB tem amparo legal para atuar nesse sentido,
em função de decreto (n. 3.860, de 09.07.2001)
que confere poder ao Conselho Federal da entidade para se manifestar a respeito da criação de
instituições de ensino superior da área. A OAB
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
imes
r e v i s t a
A r t i g o
tem poder opinativo sobre a abertura de novas
faculdades de Direito; mas a Ordem de São Paulo
quer mais, deseja ter poder de veto, porque consideramos inadmissível que o Ministério da Educação autorize o funcionamento de cursos para
atuar de forma improvisada em auditórios da Câmara Municipal ou em salas de cinema e utilizem
o artifício de locar bibliotecas e corpo docente de
fachada, pois aquele que administrará as aulas será
um professor sem a devida qualificação.
Outra grande questão voltada ao ensino jurídico, com implicações no futuro da Advocacia, reside no fato de que hoje prepara-se o profissional para litigar, quando o futuro do Direito
está na composição. A mediação, a conciliação
e a arbitragem abrem novos campos de trabalho
para a Advocacia. Trazem um novo conceito à
prática do Direito, com ênfase no diálogo e no
entendimento entre as partes; todavia, há que
se tornar obrigatória a presença do advogado, uma
vez que essas formas de solução de conflitos
constituem mecanismos jurídicos, e o leigo não
conhece o Direito. Pela conciliação, também será possível contornar a morosidade da Justiça,
matéria que não foi contemplada pela Reforma
do Judiciário, que, embora trate de matérias relevantes e oportunas, não emprestará celeridade
à Justiça. Um exemplo dessa morosidade está
no “tempo morto do processo”, cuja dimensão
pode ser retratada por 550 mil processos em
grau de recurso, aguardando distribuição na
j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3
Justiça paulista, o que demora de quatro a cinco
anos de espera.
Uma recente proposta de contribuição à
melhoria do ensino jurídico foi encaminhada pela
seccional paulista à Frente Parlamentar dos
Advogados na Câmara dos Deputados e ao
Conselho Federal da OAB, visando a antecipar a
inscrição do estagiário na Ordem, que
atualmente acontece nos dois últimos anos.
Nossa proposta é que ele ingresse nos quadros
da OAB a partir do 2° ano do curso de Direito.
Com a carteira da Ordem, o estagiário amplia
seu mercado de trabalho, porque adquire a
prerrogativa de retirar processos nos tribunais,
assinar petições junto com um advogado e
participar de audiências, atividades essenciais à
formação plena do futuro profissional. Com a
antecipação do estágio, o bacharel chegará ao
mercado de trabalho com uma bagagem de conhecimentos práticos maior, que, somada ao
conhecimento conceitual e teórico dos bancos
escolares, tende a torná-lo um advogado mais
capacitado para postular em nome do cliente.
A somatória dessas propostas no plano educacional visa a valorizar a profissão do advogado,
que passa necessariamente pela qualidade de ensino jurídico, fundamental para aquele que chega
a um mercado de trabalho cada dia mais concorrido, tendo de responder à ânsia e às necessidades
dos jurisdicionados, que ainda esperam pela
democratização, melhoria e agilização da Justiça.
83