na Improvisação Jazzística Eduardo Lopes

Transcrição

na Improvisação Jazzística Eduardo Lopes
Teoria e Performance: A Análise “Tradicional” na Improvisação Jazzística
Eduardo Lopes (Universidade de Évora) e Paulo Gaspar (Hot Clube de Portugal)
Introdução e Objectivos
A existência de uma dicotomia entre a performance e a teoria da música é
assunto sazonalmente recorrente na academia musical, parecendo criar um fosso entre o
sensus e o ratio musical. A emancipação da teoria (especificamente a análise) da prática
musical, em que a sua realização pode ser feita na ausência de qualquer estímulo sonoro,
é em nosso entender um dos factores primordiais que tem alimentado o eventual
divórcio entre estas actividades musicais. Nicholas Cook (1990) aborda este assunto
referindo que a teoria ocidental da música não é mais do que um repositório cultural de
procedimentos técnicos, em que o seu valor incide mais na sua capacidade explanatória
de construções intelectuais, do que na sua validade cognitiva. Por outro lado, Ellen
Koskoff (2001) refere a dificuldade sentida em teorizar tradicionalmente certa música
religiosa dos Hasidin (Judeus ortodoxos), onde a música é transmitida oralmente, por
vezes variando de geração em geração e sem aparente sentido de propriedade
composicional. Assim, poder-se-á concluir que a autonomia epistemológica (nos termos
de Cook) da análise em relação à prática musical poderá ser uma das causas da
dificuldade da primeira abordar a última. Utilizando ferramentas tradicionais de análise
musical de melodia e harmonia, aliadas a uma construção de análise rítmica proposta por
Eduardo Lopes (2003), este artigo abordará pontos de intersecção entre a teoria e a
prática (na forma de composição e improvisação) a partir do estudo de caso sobre a
secção A do tema After You’ve Gone (Creamer e Layton), e respectiva improvisação
sobre a mesma secção por Benny Goodman.
Contexto e Metodologia
O estilo de Benny Goodman assenta numa técnica brilhante em toda a extensão
do clarinete. Nesta versão do tema After You’ve Gone ouvimo-lo num tempo vertiginoso
de MM=160, mas podemos ouvir toda a sua sensibilidade ao interpretar uma balada. A
metodologia utilizada consiste na relação entre a cifra utilizada no jazz, para classificar
as frequentes mudanças de acorde, e uma análise melódica tradicional. Partindo da
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escala maior (modo de Dó) todos os graus da escala e dos harpejos são classificados
com números árabes: à sucessão dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, correspondem os números
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8. Assim, todas as alterações dos graus da escala, são indicadas com #
ou b. Por exemplo a uma sétima menor corresponde b7, ou se a quarta for aumentada,
teremos #4. Encontramos neste solo algumas das características do estilo de Benny
Goodman enquanto improvisador, como por exemplo: no início de cada novo acorde
Benny Goodman toca sempre uma das notas da tríade, de forma a produzir repouso
(compassos: 1, 3, 5, 9, 11, 16). Outro traço do seu estilo é o intervalo de oitava
(compassos 2, 5 e 14). O estilo Nova Orleães, por vezes chamado “harpejo
ornamentado” (Ayerof, 1980), foi a sua primeira grande inspiração. Isto significa que
muitas notas são escolhidas de entre os graus do harpejo, usadas nos contrapontos que o
clarinete faz com a melodia. Será de realçar que só um clarinetista com uma técnica
sofisticada seria capaz de tocar estas passagens num tempo tão rápido. Quanto às notas
estranhas aos acordes e à tonalidade, são apenas oito. Essencialmente, são aproximações
cromáticas para o 3º grau dos acordes, isto é, alternância da terceira maior (do acorde) e
terceira menor, produzindo o efeito de blue note, devida às mudanças harmónicas. Disto
são exemplos o sib (b3) dos compassos 5, 11, 13 e 15; e o láb (b3) do compasso 7.
A improvisação no jazz é um exercício de composição em tempo real. Quando
ouvimos a 9ª Sinfonia de Beethoven pela décima vez, sabemos inúmeros pormenores da
obra e aguardamos consciente ou inconscientemente pelas nossas passagens favoritas,
pois conhecemos esses excertos musicais de audições anteriores. Esse conhecimento
pode ser mais ou menos profundo mas quem não espera ouvir a eterna melodia do “Hino
à Alegria” no último andamento?
Num concerto de jazz a expectativa é diferente, porque o conhecimento prévio do
ouvinte é apenas do tema ou do arranjo, em termos melódicos, rítmicos ou harmónicos.
Podemos considerar a performação de dois ângulos diferentes: um predefinido como na
sinfonia de Beethoven e o outro sempre novo, diferente e inesperado que corresponde ao
solo improvisado. As pequenas diferenças na interpretação da sinfonia de um concerto
para outro, são comparáveis no jazz, na escala respectiva, à novidade inesgotável trazida
pelo solo do improvisador.
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Conclusões
A criatividade do improvisador no jazz é comparável ao processo utilizado pelo
compositor na criação de uma obra, na medida em que, a partir de diversas ferramentas
estilísticas previamente apreendidas, ambos têm como objectivo produzir um discurso
musical. Assim como o compositor experimenta com, por exemplo, timbres, cores, e
formas, também o improvisador pode experimentar com relações intervalares, variações
de registo, dinâmicas, e efeitos. Apesar destas semelhanças, há uma diferença essencial:
enquanto o compositor parte da diversidade até encontrar a obra-prima através de um
processo composicional cuidado (como poderá ter acontecido com a 9ª de Beethoven), o
improvisador usa todos os recursos para produzir um solo que não pode mudar, porque é
único e irrepetível.
A improvisação é vista muitas vezes como um “dom” mas, na verdade, os
grandes improvisadores fizeram muitas experiências, estudaram muitos exercícios, e
fizeram muitas tentativas até atingir solos marcantes. Para fazer um desses solos o
solista tem de algum modo presente (consciente ou inconscientemente), os conceitos
teóricos “tradicionais” apresentados neste artigo, como por exemplo: o tema, a melodia e
letra, a tonalidade, a harmonia e os modos, o princípio tensão/resolução, aspectos
históricos e estéticos. Pode-se então concluir, que a teoria e a prática (quando livres de
extrema intelectualização) estão interligadas, sendo constituintes de um todo que é a
experiência musical.
Bibliografia
Ayerof, Stan Jazz Masters /Benny Goodman, New York: Consolidated Music
Publishers, 1980
Cook, Nicholas
Music, Imagination, and Culture, Oxford: Clarendon Press, 1990
Firestone, Ross
Swing, Swing, Swing: Life and Times of Benny Goodman, Hodder
& Stoughton, 1993
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Koskoff, Ellen
Music in Lubavitcher Life, Urbana and Chicago: University of
Illinois Press, 2001
Lopes, Eduardo
Just in Time: towards a theory of rhythm and metre, PhD Thesis,
Music Department, University of Southampton, 2003
Shillea, Richard John,
Bartók and Beyond: The Contributions of Benny Goodman
to Clarinetists' Art Music Repertoire, DMA, Manhattan School of Music, 1997
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