O seio da discórdia - Ser Designer», um livro de Armando VILAS
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O seio da discórdia - Ser Designer», um livro de Armando VILAS
newsletter APOGESD O seio da discórdia O desporto-rei nos Estados Unidos da América é, como se sabe, o Futebol Americano. O culminar do campeonato é a Super Bowl, o jogo da final. Este jogo tornou-se num marco na história do desporto mundial, sobretudo pelos valores que atinge a sua audiência televisiva: a edição de 2004 foi vista por mais de 140 milhões de espectadores em todo o mundo. É por isso desde há muito um espaço publicitário apetecível para os anunciantes (30 segundos de publicidade durante a emissão de 2004 custavam 2,9 milhões de dólares). No eantanto, o espectáculo musical que decorre no intervalo da partida consegue ser ainda mais visto que o jogo: em 2004 um número extra de dois milhões de americanos assistiu só ao espectáculo. O espectáculo tornou-se já um evento de direito próprio, abarcando um público muito para além dos adeptos indefectíveis desta modalidade. Para tal tem contribuído o alinhamento musical, que em 2004 contou com nomes sonantes da cultura hiphop e pop como P. Diddy, Nelly, Janet Jackson e Justin Timberlake. As actuações de todos estes músicos, fortemente erotizadas, foram usadas como forma de apelar a uma faixa etária que o organizador do evento, a National Football League (nfl) almeja atingir, por ser o alvo preferencial dos seus anunciantes: os jovens rapazes. A nfl e os publicitários sabem que os jovens são um público cuja atenção é cada vez mais difícil de captar, o que requer agressividade no apelo a esta faixa etária, conduzindo a uma vontade por parte dos organizadores de encontrar sempre inovação e novos motivos para entusiasmar e chocar a audiência. Foi precisamente o que aconteceu nesta edição da Super Bowl quando, no final do dueto entre Janet Jackson e Justin Timberlake o cantor destapou o seio direito da sua parceira. Foi uma visão rápida, quase instantânea, de um seio cujo mamilo estava coberto por uma peça metálica em forma de sol. A história foi tão simples quanto isto, mas provocou um autêntico turbilhão na terra do Tio Sam, que levou a que «the breast» se tornasse na expressão mais procurada de todos os tempos na Internet. As consequências não se fizeram esperar: a America Online, patrocinadora do evento, não transmitiu em streaming pela Internet o diferido por considerá-lo «inapropriado» e a entidade reguladora das telecomunicações recebeu um número recorde de 500 mil queixas sobre este “incidente”. Sobre a exposição mamária de Janet Jackson não me ocorre dizer nada de relevante. Os telejornais que nos entraram pela casa dentro com as imagens desta espécie de “strip mamário” causaram-nos a todos risadas, não porque nos chocasse o sucedido mas pelas reacções do sempre cínico pudor norte-americano. O choque norte-americano resulta aparentemente do pressuposto de que o desporto é uma actividade moralmente irrepreensível, a qual não deve misturar-se com manifestações mundanas de impureza. A mensagem que a reacção do público passou foi a de que num espectáculo desportivo não são permitidas exibições indecorosas como esta. Uma conclusão a reter daqui é que na mentalidade norte-americana a simples exposição de um seio é muito mais gravosa do que a exuberância do erotismo corporal demonstrada durante todo o espectáculo. Nada disto é de espantar, porém, num país onde os canais televisivos em sinal aberto suprimem os palavrões com sinais sonoros, ao mesmo tempo que exibem filmes de extrema violência — sob a inocente designação de filmes de ‘acção’ —, desfilando homicídios, violações, incêndios, roubos, estupros e cenas de destruição pura e dura. O Desporto padece de um grave problema cultural, que consiste na rejeição da exposição corporal. O corpo é protagonista na actividade desportiva mas nem assim aceitamos a sua exposição com naturalidade. A nossa cultura é avessa à exposição pública do corpo, desejando-a somente em privado. O que choca neste caso é a forma como uma nação reage com um falso pudor, tendo como protagonistas os próprios criadores e intérpretes do evento. Todos eles, de forma mais ou menos nebulosa, se declararam quer culpados quer vítimas, justificando-se ora com defeitos de vestuário mal confeccionado ora com erros de estratégia de marketing. No meio de toda esta confusão, o que se percebe de fora com clareza é que a comercialização do desporto já atingiu níveis absolutamente despudorados, pela forma como se tornaram perceptíveis as estratégias sórdidas de agentes desportivos como a nfl. O que ficou a descoberto não foi o seio de Janet Jackson, mas sim a hipocrisia empresarial de uma entidade desportiva. Este é o mesmo país que censura mamilos mas passa na televisão video clips — dirigidos a este mesmo público-alvo — onde duas mulheres em bikini fingem degladiar-se num combate de Wrestling, exibindo os seus corpos torneados de forma inegavelmente sensual e provocante ou onde uma sessão de fitness se transforma assumidamente numa dança erótica. Vários outros video clips musicais poderiam ser listados, pelo uso fortemente sexual que fazem de modalidades desportivas; estes são somente dois exemplos recentes. É também neste país que uma canção com o título Fuck It se transforma num êxito. Verdadeiramente edificante! 04.05 cultura visual Armando Vilas Boas www.avbdesign.com Os dados citados neste texto foram recolhidos no excelente artigo que Lawrence A. Wenner publicou no Journal of Sport Management, “Recovering (From) Janet Jackson’s Breasts: Ethics and the Nexus of Media, Sports, and Management” (2004, 18, pp. 315–334). Imagens dos momentos finais do espectáculo musical que decorreu no intervalo da Super Bowl. O realizador Oliver Stone fez em 1999 um filme sobre o mundo do futebol americano intitulado Any Given Sunday, que é um filme a não perder sobre esta temática. 8