O Deus de Barack Obama

Transcrição

O Deus de Barack Obama
Título original:
The Faith of Barack Obama
Copyright © 2008 por Stephen Mansfield
Edição original por Thomas Nelson, Inc. Todos os direitos reservados.
Copyright da tradução © Thomas Nelson Brasil, 2008.
Editor Responsável
Nataniel dos Santos Gomes
Supervisão Editorial
Clarisse de Athayde Costa Cintra
Tradução
Nathalia Molina
Copidesque
Omar de Souza
Capa
Valter Botosso Jr
Foto de capa
EFE/Michal Czerwonka
Revisão
Margarida Seltmann
Magda de Oliveira Carlos Cascardo
Joanna Barrão Ferreira
Projeto gráfico e diagramação
Julio Fado
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Mansfield, Stephen, 1958O Deus de Barack Obama: porque não existe liderança sem fé/Stephen Mansfield; tradução
de Nathalia Molina. - Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008.
Tradução de: The Faith of Barack Obama
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7860-0143
1. Obama, Barack - Religião. 2. Presidentes - Estados Unidos - Candidaturas. 3. Senadores Estados Unidos - Biografia. 4. Religião e política - Estados Unidos - Estudo de casos. I. Título.
08-3967.
CDD: 923.2873
CDU: 929:328(73)
Todos os direitos reservados à Thomas Nelson Brasil
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Para Beverly,
canção da minha vida
Sumário
A vida de Barack Obama: cronologia
Apresentação
9
13
Capítulo 1. Caminhando entre mundos
Capítulo 2. Minha casa também
Capítulo 3. A fé adequada para a época
Capítulo 4. Os altares do Estado
Capítulo 5. Quatro faces da fé
Capítulo 6. Tempo de cura
25
53
75
105
129
159
Agradecimentos
Notas
Bibliografia
Sobre o autor
175
179
187
189
A vida de Barack Obama: cronologia
1961
Nasce em Honolulu, no Havaí, em 4 de agosto. Filho de Ann
Dunham, então com dezoito anos, e de Barack Obama Sr., o primeiro estudante africano da Universidade do Havaí.
1964
Barack tem dois anos de idade quando os pais se divorciam.
1966
Ann casa-se com Lolo Soetoro.
1967
Barack muda-se com a mãe para a Indonésia.
1971
Volta a viver em Honolulu, onde passa a estudar na Escola
Punahou.
Ann e Lolo Soetoro se divorciam.
1979
Ingressa na Universidade Ocidental, em Los Angeles.
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Cronologia
1981
É transferido para a Universidade de Columbia, em Nova York.
1982
Barack Obama Sr. morre em um acidente de carro no Quênia, aos
52 anos.
1983
Forma-se pela Universidade de Columbia e começa a trabalhar para
a Business International Corporation como escritor e analista.
1985
Passa a trabalhar no Projeto para Comunidades em Desenvolvimento, em Chicago.
Passa a freqüentar a Trinity United Church of Christ (Igreja de
Cristo Unida da Trindade).
1987
Lolo Soetoro, padrasto de Barack, morre na Indonésia em decorrência de uma doença no fígado.
Barack Obama entra para a Faculdade de Direito da Universidade
de Harvard.
1990
Torna-se o primeiro afro-americano eleito presidente da Harvard
Law Review.
1991
Forma-se em Harvard e volta para Chicago.
1992
Casa-se com Michelle Robinson.
Morre Stanley Dunham, avô de Barack.
O Deus de Barack Obama
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1993
Começa a trabalhar para o escritório de advocacia Miner, Barnhill & Galland, em Chicago.
1995
Publica o livro A origem dos meus sonhos com sucesso, que chama
atenção e é elogiado.
No dia 7 de novembro, Ann Dunham Soetoro morre de câncer
no ovário.
1996
É eleito para o senado regional de Illinois por Hyde Park.
2000
Perde as primárias na disputa por uma vaga no Congresso contra
o favorito Bobby Rush.
2004
Em 27 de julho, faz discurso na convenção do Partido Democrata
e ganha projeção nacional.
Em 2 de novembro, vence a eleição em Illinois e se torna senador
dos Estados Unidos.
A origem dos meus sonhos é relançado sob grande aclamação.
2006
Publica o livro A audácia da esperança, que se torna best seller.
2007
Em 10 de fevereiro, anuncia sua candidatura para a presidência
dos Estados Unidos.
Apresentação
Era uma fria e nublada terça-feira de julho de 2004, e Barack Obama
participava da esperada rodada de reuniões antes de fazer seu discurso
naquela tarde, durante a Convenção do Partido Democrata, em Boston.
Atendia a um pedido de John Kerry que, ao conhecer Obama, soube
que o jovem poderia muito bem se tornar a cara do futuro do Partido
Democrata. Kerry queria ver a história e a oratória cuidadosa de Obama,
mostrados em destaque na cerimônia da convenção, revelando-se ali,
bem diante da atenção de todo o mundo.
Naquela tarde, Obama caminhou pelas ruas de Boston com seu
amigo Martin Nesbitt, um empresário de Chicago. A cada parada, uma
ávida multidão se amontoava e espremia para chegar mais perto do
magro e negro senador de Illinois.
— Isso é incrível! — disse Nesbitt, entusiasmado. — Você parece
um astro de rock!
Obama voltou-se para o amigo e respondeu:
— Se você está achando isso demais, espere até amanhã.
— Como assim? — perguntou Nesbitt, com uma expressão intrigada no rosto.
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Apresentação
— Meu discurso é muito bom — explicou Obama.
Sem dúvida alguma, ele já tinha alguma noção de seu destino.1
Naquela noite, após ser apresentado pelo senador Dick Durbin,
de Illinois, como “um homem que pode ajudar a curar as divisões da
nossa nação”, Barack Obama caminhou com firmeza até o palco para
fazer o discurso que, ele estava certo, repercutiria pelo país afora. Dezessete minutos depois, Obama havia ocupado de vez seu lugar no cenário político norte-americano.
Segundo todos, foi o melhor discurso da convenção, do tipo que
alguns políticos rezam para fazer pelo menos uma vez na vida. Embora
Obama não tenha se furtado ao dever de enaltecer o extraordinário
heroísmo de John Kerry e a retidão do Partido Democrata, empregou
um tom, de certo modo, culto e distanciado. Havia uma sinalização
a respeito das limitações do governo para resolver os problemas, um
convite ao fim da disputa política que partia a alma da nação. As Escrituras e a poesia da experiência americana elegantemente trazidas à
tona, tudo incensado pela própria história de Obama e pela promessa
do que um “garoto magricela de nome engraçado que acreditava que
os Estados Unidos tinham um lugar guardado para ele”, poderia significar alguma coisa para as outras pessoas.
Foi uma performance de mestre, e para todos aqueles que escutaram o discurso com o ouvido atento à fé ali implícita, uma única
frase assinalou um tema determinante na vida de Barack Obama. Ela
apareceu no fim, no momento em que Obama criticava os especialistas
que dividem o país em estados vermelhos (aqueles que tendem ao conservadorismo e ao Partido Republicano) e azuis (aqueles que tendem
a votar nos democratas). No começo da envolvente passagem escrita
para revelar a tolice de tais rótulos, Obama disse, exultante:
— Nós oramos a um Deus poderoso nos estados azuis.
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Nós oramos a um Deus poderoso nos estados azuis
A frase ficou praticamente escondida na retórica cheia de floreios que se seguiu. Embora não passassem de oito palavras entre mais
de duas mil, Obama as usou como as trombetas da fé. Ele estava dizendo que as brechas da política norte-americana nunca mais dividiriam a
direita religiosa da esquerda secular. Em vez disso, a esquerda religiosa
encontrava sua voz. Ele proclamou:
Nós também temos fé. Aqueles de nós, à esquerda, que acreditam no direito de a mulher fazer um aborto, que defendem
os direitos de nossos amigos gays, que se preocupam com os
pobres e que confiam que o governo pode ser um instrumento
de retidão — nós também amamos Deus. Nós também temos
paixão espiritual e acreditamos que os Estados Unidos que
queremos surgem, da mesma maneira, a partir da fé. Nunca
mais seremos descritos como descrentes. A direita religiosa
não tem mais algo que nós não temos.
Foi uma tentativa consciente de retomar a voz religiosa da esquerda política norte-americana. Aquelas oito palavras foram escritas para ecoar os passos de freiras e sacerdotes que marcharam com
Martin Luther King Jr., dos fiéis religiosos que protestaram contra a
Guerra do Vietnã ou ajudaram a construir o movimento trabalhista
ou oraram com o trabalhador rural e líder trabalhista César Chávez.
Barack Obama levantava a bandeira do que ele espera que venha a
ser a política de uma nova geração, baseada na fé, e ele carregará essa
bandeira aos patamares do poder que o seu Deus e o povo norteamericano permitirem.
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Apresentação
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A fé que alimenta essa visão é moldada pelas verdades duramente conquistadas por Obama durante sua jornada espiritual. Ele foi criado pelos avós, que eram céticos em relação à religião, e pela mãe, que
encarava a fé sob o ponto de vista antropológico — a religião é uma
força importante na história do homem; você deve procurar conhecêla, independentemente de ter ou não uma crença. Educado, quando
criança, em meio à tolerância religiosa das ilhas havaianas e ao multiculturalismo da Indonésia durante o fim da década de 1960 e o início
dos anos 1970, ele cresceu como um jovem para quem os momentos
de crise tinham mais a ver com raça do que com religião. Sendo filho
de uma norte-americana branca com um africano negro que deixou
a família quando Barack tinha apenas dois anos, ele se sentia branco
demais para ficar à vontade entre seus amigos negros e negro demais
para se encaixar com facilidade no mundo branco dos avós e da mãe.
Era um homem sem país.
Sentia-se sempre emocionalmente exilado e foi assombrado pelo
fantasma de uma sensação de deslocamento ao longo dos anos de faculdade e na complicada experiência de líder comunitário em Chicago.
Somente depois de se firmar na Igreja de Cristo Unida da Trindade, na
zona sul de Chicago, Obama começou a encontrar a cura para sua solidão e respostas para seu modo incompleto de ver o mundo. Pela primeira vez, experimentou, ao mesmo tempo, a sensação de se conectar
com Deus e se afirmar como um filho do continente africano. Também
teve contato com uma teologia passional que enfatizava a importância
da África e com um preceito cristão que pregava ação social, o que
moldou para sempre seu modo de fazer política. Por meio da Igreja
da Trindade, ele encontrou o país místico que sua alma desejara por
tanto tempo.
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O Deus de Barack Obama
Obama descobriu ainda que, por esse país, corria também um
rio amargo. Como ele compreendeu rapidamente, o amplo cristianismo da Igreja da Trindade era permeado por um determinante, se
compreensível, espírito de raiva: contra os norte-americanos brancos,
contra uma história de sofrimento dos negros e contra um governo
dos Estados Unidos que viveu sistematicamente sob a promessa da visão de seus fundadores. Se Obama se recusava a beber desse amargo
manancial, ele era guiado por aqueles que o faziam. O pastor sênior
da Igreja da Trindade, Dr. Jeremiah A. Wright Jr., por décadas deu voz
poética à raiva de seu povo. Quando seus sermões chegaram ao conhecimento do público dos Estados Unidos como um todo, durante a
campanha presidencial de 2008, deram origem à pior crise da candidatura de Obama.
Ainda assim, cercado pelos críticos tanto de direita quanto de
esquerda, Obama inicialmente se recusou a abandonar seu pastor. Tampouco abandonou seu papel como um vencedor na esquerda religiosa,
e nisso seu timing foi perfeito: justamente naquele momento, os ventos
religiosos estavam mudando de direção na política norte-americana.
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Quando a campanha presidencial de 2008 foi lançada, a direita
religiosa — coalizão de conservadores baseados na fé que havia pautado o debate sobre religião na política norte-americana durante três
décadas ­— estava desarticulada, se não em declínio. Jerry Falwell e D.
James Kennedy, reverenciados como pais do movimento, haviam falecido pouco antes. Outros líderes foram execrados como conseqüência
de escândalos e trapalhadas. Ted Haggard, presidente da influente National Association of Evangelicals (Associação Nacional de Evangélicos), havia caído em desgraça por causa de uso abusivo de drogas e
imoralidade sexual.
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Apresentação
Pat Robertson, antiga voz de liderança na direita religiosa, havia
angariado o desprezo da nação inteira ao defender o assassinato do
presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e depois declarar que o primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, estava em coma devido à ira
de Deus, provocada pela política israelense de “terra para a paz”. Claramente, os figurões do movimento saíam de cena, mas a passagem de
bastão para uma nova geração de líderes nacionais não era, de maneira
alguma, vislumbrada.
Como não estavam mais unificados e eram incapazes de soar
como uma só voz, os líderes da direita religiosa traçaram cada um seu
caminho na hora de endossar candidaturas republicanas. Pat Robertson,
partidário de longa data do veto ao aborto, apoiou Rudolph Giuliani, o
único candidato a favor do direito de escolha entre os republicanos. Bob
Jones III, líder da fundamentalista Universidade Bob Jones, ficou do lado
do único candidato mórmon na corrida eleitoral, Mitt Romney.
James Dobson, figura que há muito tempo influencia a direita
religiosa dos Estados Unidos, deu declarações atacando primeiramente Fred Thompson e depois John McCain com o intuito de endossar
a candidatura de Mike Huckabee menos de um mês antes de o exgovernador sair da disputa, ou seja, tarde demais para surtir algum
efeito positivo. Estranhamente, poucos entre a direita religiosa pareceram inicialmente interessados em Huckabee, antigo pregador batista
que falava abertamente de sua religiosidade e enaltecia as virtudes da
política baseada na fé.
Do restante dos pastores de grande visibilidade na nação, Joel
Osteen e T.D. Jakes se esforçaram ao máximo para se manter fora da
política, enquanto Rick Warren e Bill Hybels percorreram um longo
caminho até demonstrar que eram sensíveis às — e, em alguns casos
simpatizavam, com — prioridades definidas pela esquerda religiosa,
especialmente aquelas ditas por Barack Obama.
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Esse desgaste da direita religiosa foi agravado por uma surpreendente deserção: eleitores evangélicos, um suporte para políticos republicanos durante décadas, começaram a abandonar o partido. Em
fevereiro de 2008, o renomado pesquisador de opinião pública e analista cultural George Barna escreveu que, “se a eleição fosse hoje, a
maioria dos eleitores evangélicos praticantes escolheria o candidato
indicado pelo Partido Democrata à presidência”. Enquanto, na eleição de 2004, George W. Bush contou com esmagadores 62% dos votos dos cristãos evangélicos ante os 38% que votaram em John Kerry,
em 2008 meros 29% dos eleitores evangélicos se comprometeram a
apoiar candidatos republicanos. Cerca de 28% não souberam dizer
em quem votariam, e mais de 40% já haviam decidido votar em um
democrata.2 Escândalos, perda de liderança e o declínio da administração Bush estavam tirando os eleitores evangélicos de seu porto
seguro justamente quando o candidato Barack Obama proclamava
um novo estilo de política baseada na fé.
A essa dissolução da influência da direita religiosa somavam-se
as preferências religiosas de uma geração emergente que, segundo os
demógrafos, representaria número recorde de votos. Pesquisas de opinião indicaram que a maior parte dos norte-americanos com idade entre 17 e 29 anos tinha a intenção de votar em um democrata em 2008,
e que Barack Obama era sua principal opção.3 E mais: eles não haviam
sido conquistados apenas por seu modo de fazer política, mas por sua
espiritualidade não ortodoxa.
Com relação à religião, a maioria dos jovens dos Estados Unidos
tem uma postura pós-moderna, o que significa dizer que eles encaram
a fé de um modo parecido ao jazz: informal, eclético e, muitas vezes,
sem um tema específico. Basicamente, costumam rejeitar uma religião
organizada, privilegiando uma mescla religiosa que funcione para eles.
Para esses jovens, não há nada de mais em construir a própria fé jun-
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Apresentação
tando tradições de religiões totalmente diferentes, e muitos formam
sua teologia da mesma maneira como pegam um resfriado: por meio
de contatos casuais com estranhos. Portanto, quando Obama fala de
questionamentos sobre certos dogmas de sua fé cristã, da importância
da dúvida na religião ou de seu respeito por religiões não cristãs, a
maioria dos jovens imediatamente se identifica e simpatiza com sua fé
não tradicional como base para sua política com tendência de esquerda — e também para a deles.
Quando Obama fala de questionamentos sobre certos
dogmas de sua fé cristã [...] a maioria dos jovens
imediatamente se identifica e simpatiza com sua fé não
tradicional como base para sua política com tendência
de esquerda — e também para a deles.
Esses três movimentos históricos — a perda de liderança nacional da direita religiosa, a debandada de eleitores evangélicos praticantes para o Partido Democrata e a tendência pró-Obama dos jovens que
vêem a religião de um modo liberal — mudaram o papel da religião
na eleição de 2008. Para uma esquerda religiosa que lutava por sua
voz política, o mercado de idéias religiosas na política norte-americana
estava mais aberto do que em qualquer outra época desta geração. Foi
uma realidade que não passou despercebida por Barack Obama.
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Obama também não deixou passar as possibilidades decorrentes de sua surpreendente popularidade, que projeta tanto seu modo de
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fazer política quanto sua visão religiosa na psique do povo dos Estados
Unidos. Ele era tratado na cultura norte-americana da forma como
Mark Nesbitt sugeriu naquela tarde em Boston, antes do agora famoso
discurso na convenção democrata: como “um astro de rock”. Obama
arrasta algumas das maiores e mais entusiasmadas multidões na história da política norte-americana, recebe apoio de celebridades como
Tom Cruise e Oprah Winfrey e é considerado o toque de Midas para
qualquer candidato que venha endossar.
“Nós havíamos programado ter os Rolling Stones neste evento”,
disse, em tom de brincadeira, o governador de New Hampshire, John
Lynch, durante um rally. “Mas depois cancelamos a vinda deles porque
nos demos conta de que o senador Obama venderia mais ingressos.”
Seus muitos feitos se tornaram as peças fundamentais para a construção da lenda em que ele se transformou. Estranhamente, o texto de um
livro de sua campanha até lembra os leitores que Obama ganhou mais
prêmios Grammy (foram dois, pelas gravações de seus livros A origem
dos meus sonhos e A audácia da esperança) que Jimi Hendrix e Bob
Marley juntos (nenhum).4
Há também aquelas conexões que os fiéis tomam como sinais
do destino. Obama preencheu os papéis da Comissão Federal Eleitoral
com a expectativa de se tornar o primeiro presidente negro do país, um
dia depois da data em que Martin Luther King Jr. completaria 78 anos.
Ao ser eleito senador dos Estados Unidos, Obama foi designado a usar
a mesma mesa de trabalho que Robert Kennedy utilizou, o ponto alto
de uma jornada política iniciada quarenta anos antes, quando Kennedy
fez seu juramento, no dia 4 de janeiro de 1965.
Um toque do destino é igualmente sugerido pela narração de
seu passado atípico e da busca espiritual que inspira. Barack Obama
contou essa história nos seus dois best-sellers, A origem dos meus sonhos e A audácia da esperança, ambos a confirmação de que Obama
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Apresentação
faz parte daquela estirpe de políticos que escrevem com habilidade e
inspiração. Sua saga contém todas as agruras, temas antigos da história
da humanidade e literatura: a longa busca por um lugar, a falta de um
pai, a esperança de um destino.
Assim como sua maneira de fazer política, sua história de vida é
do tipo que o público parece abraçar, principalmente por seus temas
universais. Em uma geração sem pais nem vínculos, Obama freqüentemente parece um homem comum em uma história heróica de busca
espiritual. Os norte-americanos, como um povo que surgiu de uma visão religiosa, vêem em Obama no mínimo um companheiro de viagem
e no máximo um homem de vanguarda na nova era da espiritualidade
norte-americana.
Existe ainda o apelo de sua franqueza incomum, igualmente uma
função de sua fé. Tanto em seus livros quanto em seus discursos, Obama não se furta aos detalhes sobre bebedeiras, drogas, sexo e problemas
sociais. Ele é um homem que se sente à vontade com confissões. Isso
o torna diferente, uma mudança animadora em relação à maioria dos
políticos dos Estados Unidos. Perguntado por Jay Leno, entrevistador de
um programa de televisão norte-americano, se ele havia tragado quando
fumou maconha, Obama simplesmente respondeu: “Essa é a idéia.” Foi
uma típica resposta da espiritualidade transparente e genuína de Obama
a que muitos norte-americanos têm se afeiçoado.
Perguntado por Jay Leno, entrevistador de um
programa de televisão norte-americano, se
ele havia tragado quando fumou maconha,
Obama simplesmente respondeu: “Essa é a idéia.”
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O Deus de Barack Obama
É justamente essa afeição que lhe rende partidários no cenário
político. Obama fala de republicanos que se aproximam dele e dizem
baixinho: “Eu vou votar em você.” Ele conta isso fazendo cara de perplexidade, e diz que sua resposta é: “Fico feliz.” E que, depois de um
instante, pergunta: “Mas por que estamos sussurrando?” Embora sua
orientação política seja decididamente liberal — ele tem o apoio de
100% da National Abortion Rights Action League (Naral, Liga Nacional pelo Direito ao Aborto) e de cerca de 80% da American Civil
Liberties Union (Associação Norte-americana de Defesa da Liberdade Civil), enquanto sua popularidade na American Conservative
Union (Associação Conservadora Norte-americana) não passa da
marca de um dígito —, ele tem atraído republicanos descontentes de
modo surpreendente.
Esses são, portanto, os fatores que prometem manter a atração
pela espiritualidade de Obama em evidência na cultura norte-americana durante os anos que estão por vir. Ele é cristão sem fanatismo e
liberal sem fanatismo, e acredita que a fé é necessária na política, tanto
a sua quanto a política do país como um todo. Também é importante
destacar o fato de ele ser bonito (e vivemos em uma era midiática),
equilibrado e articulado, e veio para ficar. Caso perca a corrida presidencial em 2008, Obama pode concorrer quantas vezes quiser nos
próximos 24 anos, e ainda será mais jovem do que John McCain era
quando estas linhas estavam sendo escritas. Em resumo, ele será uma
força política e religiosa a ser considerada na sociedade norte-americana, e tanto seus incentivadores quanto seus detratores só têm a ganhar
ao entender o motivo.
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Apresentação
O que segue nestas páginas é uma tentativa de compreender a
vida religiosa de Barack Obama e as mudanças na história religiosa dos
Estados Unidos que ele veio para representar. Não há aqui o intuito de
criar uma agenda política nem o desejo de despertar uma animosidade
contra a realidade da vida de Obama. Já basta a fúria na atual política
norte-americana. Ao contrário, este livro foi escrito na crença de que,
se a fé de um homem é sincera, é o que há de mais importante nele, e é
impossível entender quem esse homem é e que tipo de líder será sem,
antes de tudo, compreender a visão religiosa que caracteriza sua vida.
Igualmente importante é perceber que, com freqüência, há tamanha
beleza e sabedoria a serem adquiridas em uma vida moldada pela fé
que contemplá-la torna-se a própria recompensa. Este livro foi escrito
com esse espírito.
De todo modo, Barack Obama é um ser político, e não é possível
diminuir as implicações políticas de sua fé. O apelo deste livro é para
que isso aconteça de maneira nobre e delicada. Que seja feito de alguma forma — este é o clamor do atual vazio religioso na vida política
dos Estados Unidos.