Ponencia GT5 Maziero_Weiss_Gomes
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Ponencia GT5 Maziero_Weiss_Gomes
Da literatura ao audiovisual: uma discussão sobre o tempo nas adaptações de obras literárias Aline Cristina Maziero Mestranda em Estudos de Linguagens e bolsista CAPES, é formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Gedy Brum Weiss Alves Mestranda em Estudos de Linguagens e professora da Secretaria de Estado de Mato Grosso do Sul, atuando no Ensino Médio nas áreas de literatura e de Educação Escolar Indígena. É formada em Letras pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, e tem com áreas de interesse os estudos sobre os povos indígenas e os Estudos Literários. Márcia Gomes M. Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Università Gregoriana, Roma, é professora do Mestrado de Estudos de Linguagens e do Curso de Jornalismo da UFMS. Socióloga, formada pela PUC do Rio de Janeiro, e mestre em Comunicación Social pela Pontifícia Universidad Javeriana – Bogotá, tem trabalhos publicados nas áreas de Audiovisual e de Estudos de Recepção. Bolsista da CAPES – Brasìlia/Brasil. Resumo O presente artigo discute acerca da adaptação de textos literários para meios de expressão audiovisual. O foco de análise recai sobre a categoria temporal dentro da obra literária e de sua adaptação para o cinema/televisão, tendo em vista que o texto escrito possui encadeamento de ordem temporal, sucessão de fatos, ajustados entre si na forma do enredo que configura a ação, enquanto que nos meios de comunicação audiovisuais, com linguagem própria e distinta da utilizada pela narrativa literária, o tempo é percebido pelo mundo imagético visível, com o uso sequencial das imagens, que leva à compreensão do fluxo da ação. O cinema e a televisão compartilham os mesmos preceitos de linguagem: eles “mostram”, com imagens e sons, movimento e montagem, aquilo que é “imaginado” com os textos literários. Neste trabalho se traça um paralelo acerca da constituição da categoria temporal em duas adaptações audiovisuais: na minissérie televisiva O Tempo e o Vento, adaptada a partir da trilogia homônima do escritor brasileiro Erico Verissimo, apresentada pela Rede Globo em 1985; no filme A Cartomante, adaptado do conto de Machado de Assis, em 2004. A finalidade é a de enfocar como essas obras expressam o transcorrer ou retroceder do tempo, seja pelo uso da palavra na literatura, seja pelo universo imagético dos meios audiovisuais e, assim, (re) contam, adaptando, a história narrada. Introdução Contar histórias é uma atividade característica do comportamento humano, mas a forma como as histórias são contadas se modificou ao longo do tempo. Conforme Walter Benjamin (1994, p. 198), “a experiência que passa de pessoa para pessoa, é a fonte a que recorreram todos os narradores”. Entretanto, essa experiência, moldada pela vivência do narrador, perde parte da importância, pois o surgimento do romance, que preza o uso da palavra escrita, condiciona o silenciamento e isolamento do leitor (BENJAMIN, 1994). Contudo, isso não significa que a narrativa oral deixou de existir, mas sim que leitura e oralidade passaram a coexistir, influenciando-se reciprocamente. As tecnologias da máquina e da automação incidiram, também, sobre a arte de narrar. Tal impacto foi sentido em vários setores das artes. Com o advento da fotografia, por exemplo, a câmera passou a captar ocorrências que o olho humano não enxergava, paralisando 1 momentos únicos e tornando possível a sua reprodução por meio dos negativos. O cinema, por sua vez, surge como um desdobramento da fotografia, a arte de “dar movimento” ao que antes era estático, e, com isso, incide ele também na forma como as histórias são contadas, tendo em vista que corrobora a transição da exibição linear de acontecimentos para a configuração. (MCLUHAN, 2002). O cinema pode ser entendido como um sistema, no qual fotografia, movimentos, sons e montagem interagem para a constituição da estrutura narrativa. Além de captar imagens, grande parte da produção cinematográfica dedica-se a contar histórias, e para isso se utiliza também das narrativas literárias como importante fonte, o que fornece subsídios para a realização de estudos que relacionam as duas artes. Nas palavras de Christian Metz, o cinema “nos conta histórias contínuas; ele 'diz' coisas que também poderiam ser expressas na linguagem das palavras, porém as diz de modo distinto” (METZ, 1974, p. 44). Da mesma forma que o cinema “diz coisas” que também poderiam ser ditas com a palavra escrita, a televisão, que compartilha a linguagem audiovisual com o cinema, propõe a seu modo as suas histórias ao público. Como especificidade, as narrativas televisivas são marcadas pela divisão por capítulos e buscam conquistar a fidelização do espectador, que acompanha os episódios a fim de não perder a sequência dos acontecimentos. Como o cinema, a televisão lança mão com freqüência de obras literárias para construir as histórias que oferta ao seu público, podendo-se pensar, assim, nas adaptações audiovisuais como uma forma de difundir o texto literário por meio da transposição de linguagens. Ao serem transpostas para o cinema ou a televisão, que são meios de comunicação de massa, tais obras se tornam conhecidas por um quantitativo maior de pessoas. Tal como a narração, que na linguagem comum se refere ao mesmo tempo ao ato de narrar e ao que se narra (CASETTI; DI CHIO, 1991, p. 172), a adaptação é produto e também processo (HUTCHEON, 2011), o que implica pensá-la como um objeto de dupla possibilidade: como uma forma de transposição anunciada feita a partir de outra obra, que pode envolver mudança de gênero, mídia ou foco; e como um conjunto de ações e procedimentos que envolvem reinterpretação e recriação de um produto anterior a ela. Toda narrativa (literária/fílmica/televisiva) conta uma história levada a cabo por um conjunto de personagens, localizados no tempo e espaço, sendo esses elementos indissociáveis para a construção do significado do texto. As ações que se articulam em uma narrativa, independente do suporte em que ela é constituída, estão, de alguma forma, ligadas por sequências temporais, sejam elas lineares, invertidas, truncadas ou interpoladas. Xavier (2003) afirma que o filme narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e o romance possuem em comum uma questão de forma no que tange ao modo como se dispõem os acontecimentos e ações das personagens. Para o autor: Quem narra escolhe o momento em que uma informação é dada e por meio de que canal isso é feito. Há uma ordem das coisas no espaço e no tempo vivido pelas personagens, e há o que vem antes e o que vem depois ao nosso olhar de espectadores, seja na tela, no palco ou no texto. (XAVIER, 2003, p.64) Na literatura, o escritor utiliza palavras para demonstrar o transcorrer ou retroceder do tempo, isso se dá pelo uso da linguagem escrita, com expressões que indicam o transcorrer do tempo, ou, ainda, pelo desenrolar das ações dentro da trama que, para constituir-se como tal, exige tanto um índice temporal como um índice de causalidade (TOMACHEVSKI, 1970, p. 202). Partindo dessa premissa, a discussão do tempo no estudo de obras adaptadas para os meios audiovisuais é um de seus aspectos relevantes, pois permite enfocar as transformações – de linguagem e expressão - que ocorrem na constituição da obra literária e da obra fílmica. Lidando com diferentes linguagens e meios de expressão, escritor e cineasta possuem formas diferentes para demonstrar o transcorrer da ação, a série de acontecimentos que parte de um ponto e chega a outro. 2 Em primeira instância, considera-se que tais diferenças ocorrem devido à linguagem utilizada por cada meio em que o texto se encontra. Enquanto que o escritor constrói a sua obra através das palavras que informam ao leitor que o tempo passou ou retrocedeu, ou quando os acontecimentos passam lenta ou aceleradamente, o cineasta utiliza-se do mundo imagético para traçar o percurso que será representado por meio das ligações entre as cenas, das elipses espaciais e temporais, da imagem diurna ou noturna, das lembranças de fatos já ocorridos. Além disso, com relação às escolhas feitas pelos autores no que tange ao ponto de partida e de chegada de cada obra, o adaptador pode optar por fazer o mesmo percurso do texto-fonte ou subverter a ordem dos acontecimentos, criando outro percurso de desenvolvimento para a trama. Adicionalmente, no que se refere às supressões e acréscimos de tempo no texto adaptado, quando um romance é transportado para um filme, o cineasta, na maioria das vezes, suprime partes da obra literária, ao passo que a adaptação de um conto exige acréscimos temporais. Por fim, no que concerne à época retratada por cada obra, percebe-se também que a obra adaptada pode retratar o mesmo tempo histórico do texto literário, ou deslocá-lo para outro momento. Nesse contexto, o estudo comparativo desse aspecto da narrativa em obras adaptadas permite identificar as semelhanças e/ou diferenças no tratamento temporal dado por escritor e cineasta, assim como entender as consequências dessas escolhas para a interpretação dos elementos expressivos de cada obra. Neste artigo a constituição da categoria temporal será tratada a partir da análise comparativa da adaptação de duas obras literárias: A cartomante, filme do ano de 2004, de Wagner Assis e Pablo Uranga, e adaptado a partir do conto homônomo de Machado de Assis e O Tempo e o Vento, minissérie televisiva, apresentada em 1985 pela Rede Globo em 25 capítulos, com roteiro de Doc Comparato e direção de Paulo José, a partir da trilogia de Erico Verissimo, ambas ligadas a um texto literário por relações intertextuais. Com tal propósito, se discorrerá acerca de como este aspecto da narrativa é constituído nas diferentes linguagens e suportes estudados. Dentre as questões aqui abordadas estão em que “tempo” se passa a história narrada, em que “tempo” ela é modelada pelo discurso do autor e em que “tempo” ela é revisitada na adaptação. A partir da comparação entre as obras literárias e suas adaptações audiovisuais, busca-se compreender como se desenvolve o transcorrer/retroceder do tempo, a fim de traçar um paralelo de semelhanças e diferenças expressivas entre as obras. Avanços, recuos, interpolações: o tempo entre o literário e o audiovisual Há muito a questão temporal vem sendo tema de reflexões de estudiosos. Busca-se medir o tempo, contar o tempo, reparti-lo em diversos compartimentos. O homem convencionou chamá-los de passado, presente e futuro. Mas, afinal, o que é o tempo? Esta pergunta foi feita por Santo Agostinho. Em suas reflexões, o filósofo das Confissões afirma: “Se ninguém me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa pergunta, já não saberei dizê-lo.” (SANTO AGOSTINHO, 2004, p. 322). Nesta assertiva, o pensador indica a sua concepção de tempo como algo que se sabe que existe, sem que se precise questionar a respeito. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que se nada sobreviesse, nao haveria o tempo futuro, e se agora nada houvesse, nao existiria o tempo presente. De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? (SANTO AGOSTINHO, 2004, p. 322) Ao aplicar o conceito de tempo nas narrativas audiovisuais, faz-se necessário interligar as noções de espaço às de tempo, visto que o presente da narrativa audiovisual é um momento concreto, que ocupa determinado lugar no espaço, durante um intervalo de segundos. No cinema, as imagens ganham movimento a partir da montagem e os significados vão se formando nas junções feitas e nos vazios gerados pelos cortes. Conforme Pellegrini (2003), o tempo que é invisível torna-se visível, pois é preenchido com 3 o espaço ocupado por uma sequência de imagens, misturando-se, assim, tempo e espaço. Na montagem narrativa (MARTIN, 2005) o cineasta se utiliza de corte, de elipses, de raccord, de flashback, aspectos da linguagem cinematográfica que permitem que o telespectador perceba que o tempo prossegue ou retrocede. Já nas narrativas literárias, segundo Carlos Reis, há “um processo de representação eminentemente dinâmico [que] [...] estrutura-se em dois planos fundamentais: o plano da história relatada e o plano do discurso que a relata, articulado num acto de enunciação que é a instância da narração”. (REIS, 2003, p. 345). E estes dois planos se articulam por meio da ação temporal. No que se refere às obras analisadas neste trabalho, é importante destacar as várias nuances da categoria temporal observadas: o “tempo” em que se passa a história narrada, o “tempo” em que ela é modelada pelo discurso do autor e o “tempo” em que ela é revisitada pela adaptação. A trilogia O Tempo e o Vento, do romancista brasileiro Erico Verissimo, foi escrita entre os anos de 1949 e 1962, e divide-se em O continente, O Retrato, e O Arquipélago. Devido a sua extensão, foram realizadas várias adaptações de partes fragmentadas da obra, a última delas produzida pela Rede Globo em 1985. É sobre esta adaptação em formato de minissérie que recai aqui a analise e, portanto, cabe esclarecer que ela se restringe à primeira parte da obra, O continente. A trilogia narra a saga de uma família do interior do Rio Grande do Sul, os Terra-Cambará, ao longo de 200 anos, desde a sua “Fonte”, o índio vindo das missões jesuítas no século XVIII, Pedro Missioneiro, até seus bisnetos. É importante destacar, ademais, o período de tempo em que a obra de Verissimo foi adaptada para a televisão. Figueiredo (2005, p. 174) afirma que, nas minisséries em que a base é constituída na adaptação de uma determinada obra literária, [...] há uma revivescência da história do Brasil, uma atualização da memória na telinha, que se coloca como foco de resistência a uma visão globalizante e elitista quer da própria história oficial, quer dos meios de comunicação de massa. Foco de resistência porque, ao lado da presença da elite, representada pela aristocracia, pela nobreza ou pelos empresários capitalistas, há sempre espaço para a figura do povo – o jagunço, o escravo, o revolucionário [...] A minissérie O Tempo e o Vento vem a público em um momento de particular importância política para o Brasil, devido ao descontentamento vigente em quanto aos rumos tomados pelo processo de redemocratização no país após a morte de Tancredo Neves. No artigo A saga que se move, publicado pela revista Cult em 2004, Narciso Lobo assinala que “[...] o país entrava na Nova República, com a esperança frustrada com a morte de Tancredo Neves, depois de 21 anos de governos militares, e, por um olhar mais particular, a Globo partia para a comemoração dos seus 20 anos [...]”. Para celebrar as suas duas décadas de programação, a Rede Globo decide apostar no nincho de mercado aberto pelas minisséries, e após o impulso conferido pela adaptação de Anarquistas Graças a Deus, de Zélia Gattai, em 1984, no ano seguinte a emissora coloca no ar mais três minisséries adaptadas de obras literárias: Grande Sertão:Veredas, de João Guimarães Rosa, Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, e O Tempo e o Vento, da obra de Erico Verissimo. Uma característica desse texto literário é a sua estrutura fragmentária. Composta de sete partes, talvez mais corretamente descritas como “episódios”, a narrativa tem natureza cíclica, tanto como um todo – pois a frase que abre a trilogia em O Continente é a mesma que a fecha em O Arquipélago–, quanto na parte que foi adaptada para a televisão. Em O Continente a ação se inicia com o cerco ao “Sobrado”, residência da família Terra-Cambará, e chega ao fim no mesmo Sobrado, três dias depois, com a rendição da família a seus adversários. Enfim, esta é a luta que permeia todo o romance: dos Terra-Cambará com os Amarais, chefes políticos da cidade de Santa Fé. Este trecho ressalta um traço importante deste episódio em especial: o “Sobrado” parece reafirmar a natureza fragmentária do 4 romance, visto que o próprio segmento se subdivide em partes menores, que se intercalam com a narração de outros episódios do romance. A questão do tempo está posta no romance desde o título. O autor aproxima as palavras “tempo” e “vento” por meio de uma metáfora. Na epígrafe bíblica, pode-se começar a desvendar algumas das suas intenções. Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos. (ECLESIASTES – 1 – 4-6) A associação de ideias une o tempo, pelo qual passamos, com o vento, que também nunca está “parado”, enquanto que retorna ao mesmo ponto de partida, e tematiza (TOMACHEVSKI, 1970) a narração da trajetória da família Terra-Cambará. O tempo como categoria narrativa, e o vento como figura de linguagem, são também elementos importantes para a compreensão da estrutura que Verissimo dá aos seus romances. O tempo merece ser tratado com mais vagar, pois tanto nos romances como na adaptação ele não transcorre de forma previsível, ou linear. Na adaptação, as palavras bíblicas são ditas por Ana Terra, depois de ter a casa invadida por castelhanos e ter visto morrer todos os seus familiares, pouco antes de iniciar sua jornada junto ao filho Pedro, rumo ao recém-formado povoado de Santa Fé, e indicam que Ana será o esteio, a matriarca, das gerações que estão por vir. O seguinte quadro ilustra como o tempo transcorre, progride ou retrocede, no texto-fonte e em sua adaptação para a televisão Obra Literária 1. Inicia-se com “O Sobrado”, “na noite de São João” de 1895, onde a família Cambará encontra-se cercada por seus adversários políticos. Toríbio e Rodrigo, encontram o punhal de um antepassado 2. Há uma analepse e o retorno ao ano de 1745, na parte do romance intitulada “A fonte”, que narra a história de Pedro Missioneiro, o antepassado a quem o punhal pertencia Minissérie Inicia-se no Sobrado, onde Bibiana, uma velha senhora se recorda de seus antepassados Há uma analepse que leva a trama ao ano de 1777, com o início da fase “Ana Terra”. O episódio sobre Pedro Missioneiro é retomado a partir das lembranças que tem de sua vida nas Missões. 3. O romance retoma ao presente da narrativa, com o segundo segmento do “Sobrado”, “25 de junho de 1895: Madrugada”. D. Bibiana acorda e relembra sua avó, Ana Terra 4. No início de “Ana Terra”, a Na minissérie essa anacronia é personagem se recorda de uma data em suprimida, preservando a linearidade especial: “[...]entre todos os dias ventosos de dos acontecimentos narrados. sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera força de mudar-lhe a sorte por completo. Mas em que dia da semana tinha aquilo acontecido? Em que mês? Em que ano? Bom, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente. (VERISSIMO, 5 2004, p. 99). Nesse trecho da narrativa há uma anacronia, ou seja, um recuo de ordem temporal, que configura um momento de discrepância entre o tempo da história e o tempo do discurso 5. No romance, a parte dedicada à Ana Na adaptação isso acontece quando Ana Terra chega ao fim com a morte da deixa pra trás a estância incendiada rumo personagem. ao povoado de Santa Fé, com o punhal de Pedro Missioneiro e sua roca. A passagem do tempo é notada pelo movimento da carroça se afastando e pela voz do narrador, em off. Percebe-se assim, uma elipse espaço-temporal e o nascer de um novo dia. Passam-se cinquenta anos, que foi utilizado para sumarizar os acontecimentos narrados, ao mesmo tempo em que eram entrelaçados com o restante da narrativa. O recurso do sumário, de acordo com Nunes (1988), abrevia os acontecimentos num tempo menor do que o de sua suposta duração na história, imprimindo rapidez. Aproveita-se o recurso, portanto, para que se apresente, a segunda geração dos Terra, em torno da qual se constitui a segunda fase da minissérie, Capitão Rodrigo. 6. No romance, depois do fim da parte dedicada á Ana Terra, inicia-se o terceiro segmento de “O Sobrado”, situado no presente da narrativa 7. No romance o Capitão Rodrigo, chega O capitão chega à Santa Fé, em 2 de a Santa Fé em 28 de outubro de 1828. Passa novembro, passa pelo cemitério local, pela venda de Nicolau, conhece Juvenal Terra. conhece Bibiana, por quem se interessa, Conhece Bibiana, cinco dias depois, próxima e vai à cavalo até a venda de Nicolau, ao túmulo de Ana Terra onde conhece o irmão da moça. Tal supressão temporal, deve-se à necessidade de apresentar mais rapidamente as personagens princiopais do episódio 8. No livro, Juvenal e Maruca já estão Na adaptação, o casamento dos jovens é casados no início da narrativa. O casamento um momento de forte tensão dramática, que desencadeia o duelo é de outro jovem pois é na festa para os noivos que se casal, que não é mencionado na adaptação. iniciará o duelo entre o Capitão Rodrigo e Bento Amaral. Pode tambem ser visto como técnica para a supressão de personagens. 9. A narrativa volta ao presente, com a Há uma elipse temporal, para que se quarta parte de “O Sobrado” em “ 25 de inicie a história do Sobrado, deixada para 6 junho de 1895. Noite” o fim da minissérie. Neste momento, o tempo da história e o tempo do discurso se unem, para chegar ao desfecho da trama. A obra literária e a minissérie, embora apresentem contituições temporais diferentes em si, mantêm uma mesma linha temporal, pois o tempo de saída e o tempo de chegada é o mesmo nas duas obras. Além disso, deve-se levar em conta que a minissérie é uma produção de época, e que as atualizacões por ela promovidas dizem principalmente respeito ao contexto sociocultural do momento em que foi adaptada. Hutcheon (2011, p.xvi) afirma que “nenhuma adaptação ou processo de adaptação existe num vácuo: todas elas têm um contexto - um tempo e um espaço -, uma sociedade e uma cultura”. Os estudos recentes reafirmam o mérito criativo de diferentes abordagens em relação à adaptação de obras literárias para a linguagem audiovisual. Essas abordagens podem deter-se em um enfoque específico da obra literária, com o intuito de preservar, pelo menos em parte, a sua integridade, ou optar pela adaptação livre, criando uma concepção diversa sobre a mesma. Assim, tem-se que a transposição de uma obra literária para a obra fílmica pressupõe em aproveitamentos, supressões, atualizações temáticas, espaciais e temporais. Ao analisar desde o aspecto temporal o filme A Cartomante, adaptado do conto homônimo de Machado de Assis, verifica-se que conto e filme pertencem a contextos diferentes, e cada obra dialoga com o seu lócus de enunciação. O conto A Cartomante foi publicado no livro Várias Histórias (1896) e enfoca o relacionamento de Rita, Camilo e Vilela, três personagens que vivem um triângulo amoroso: ela é esposa de Vilela e se envolve com Camilo, que é amigo de infância de seu marido. Na narrativa há uma quarta personagem: a cartomante, que representa a presença do místico, da crença (ou não) no destino, atitude que, segundo as obras, atrai os crédulos pregando-lhes peças. Machado de Assis traz em seu universo ficcional as grandes contradições do ser humano, representadas pelos jogos de interesse, pelas surpresas que a vida reserva, pelas ironias do espírito humano, sempre permeadas pela sutileza própria da escrita machadiana. A época retratada no conto oscila entre o passado patriarcal e os novos tempos da sociedade urbana, e possui como espaço a cidade do Rio de Janeiro da época. A obra fílmica homônima é ambientada também na cidade do Rio de Janeiro, porém nos dias atuais. A história do filme consiste no envolvimento amoroso de Camilo e Rita, que é noiva de Vilela. Como no conto, o agravante ocorre pelo fato dos rapazes serem amigos de infância. Há, ainda, como na obra literária, a presença do místico, representado pela figura da psiquiatra/cartomante, que permeia a discussão da crença ou não no destino, acentuando o elo do filme com a obra fonte. Há, neste sentido, atualizações advindas do contexto histórico-cultural no qual a obra derivada está situada, pois o conto machadiano é ambientado na sociedade patriarcal do século XIX, com personagens de setores médios, em que homens e mulheres exerciam papéis específicos (e separados) dentro da vida social. À mulher de classe média cabiam os papéis sociais desempenhados na esfera familiar-doméstica, e devia, inclusive, respeito total ao marido. Já o homem, patriarca, exercia função fora da casa, a ele se conferia a posição de poder na relação marido/mulher e possuía direito, não institucional, embora legítimo, de matar, caso fosse traído. Já o filme, produzido no século XXI, retrata a história de personagens que vivem no momento de sua produção e, portanto, os papéis desempenhados pelas personagens são outros. Rita é uma moça que vem do interior para a cidade grande, trabalha num brechó, lugar em que se vendem produtos usados, sonha em se casar para ter alguém que cuide dela. Vilela é um médico ambicioso, coloca sua profissão em primeiro lugar, almeja ter uma 7 vida financeira alicerçada e, em consequência disso, deixa seu relacionamento amoroso em segundo plano. Camilo, por sua vez, é um jovem que só pensa em aproveitar a vida, vive frequentando festas, sem ter compromisso sério com ninguém; o rapaz, apesar da idade, ainda mora com a mãe. O resumo das obras nos situa no tempo da história, relaciona os acontecimentos que serão relatados no tempo do discurso com todas as nuances, as anacronias, as elipses, os sumários, características próprias do plano discursivo. Nunes (1988), em Tempo na Narrativa, diz que o tempo da história é imaginário, subsiste na consecutividade do discurso, pluridimensional, permite retornos, antecipações, ora suspendendo a irreversibilidade, ora acelerando, ora retardando a sucessão temporal. Nesse sentido, é no discurso que o tempo se concretiza na escrita, tanto no sentido material de seguimento de linhas e páginas, quanto no sentido da ordenação das sequências narrativas. O discurso configura a narrativa como um todo significativo. O tempo será demonstrado, na obra literária e na obra fílmica, segundo as características peculiares de cada linguagem. A obra adaptada faz um aproveitamento temático do texto fonte. A adaptação, porém, manifesta intervenções decorrentes tanto do contexto histórico-cultural como do suporte para o qual houve a transposição, apresentando também intervenções advindas da linguagem cinematográfica, que possui maneiras próprias de “mostrar” uma história. Nesse sentido, Mais que adequar ou ajustar, as adaptações de obras literárias para o audiovisual implicam o deslocamento e a realocação de um meio a outro, de uma linguagem a outra, de uma forma de compor a outra. A começar pelo estilo ou pela periodização do texto de “partida” e do de “chegada”, transpor de um lugar a outro implica encaixar-se em épocas ou correntes expressivas diversas e daí adequar-se às formas de fazer ou de narrar de cada uma. (GOMES, 2009, p.107) No que se refere à “realocação” das obras adaptadas em diferentes meios, concentrando o foco na verificação de como o tempo flui nas diferentes narrativas, é necessário retomar a questão das linguagens usadas pelas duas obras. No texto literário A Cartomante, de Machado de Assis, observa-se a indicação temporal em expressões como “... mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco...”, enquanto que, na obra audiovisual, Assis e Uranga usam a técnica chamada por Marcel Martin (2005) de “Ligações complexas temporais”, em que a passagem do tempo è indicada por imagens de calendários que soltam folhas, jornais que aparecem rodando. No filme, a maneira de apontar que o tempo está passando é a imagem: no caso, também, em um plano geral, de muitos carros circulando, aceleradamente, com faróis acesos, iluminação noturna após um corte, percebe-se que o dia amanheceu, os carros estão com os faróis desligados. Já o narrador machadiano chama a atenção do leitor para indicar que, a partir daquele momento, ele (leitor) estará diante de uma analepse, um retroceder da narrativa, conforme vemos no fragmento a seguir: Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação de suas origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância.Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou para o funcionalismo [...] No princípio de 1969, voltou Vilela da província, onde casara [...] (ASSIS, 1995, p. 84) Este mesmo recurso é utilizado na obra audiovisual, pelo uso do flashback, toda vez que Camilo recorda da cena inicial do filme em que ele é obrigado pela personagem Karen a se drogar e, em consequência disso, quase morre. Essa cena retorna várias vezes à memória do rapaz durante o filme, indicando que aquele momento marcou sua vida. Ao verificar o transcorrer do tempo da história no discurso, observa-se que os cineastas deram outra ordem aos acontecimentos e ações, e inclusive introduziram outros personagens e situações que não constam no conto, para mostrar a história contada por Machado de Assis, a começar pelo ponto de partida das obras, pois elas iniciam em momentos diferentes e seguem ordens diversas. 8 A mudança de suporte supõe adequações do texto-fonte para a “nova” obra criada. As adequações podem ser de conteúdo e forma, e ocorrem em função do público, da linguagem do meio, entre outros motivos (GOMES, 2009, p. 103). Elas podem também ocorrer por escolha do adaptador, que pode inverter a ordem dos acontecimentos e ajustálos às especificidades do meio audiovisual. As mudanças decorrentes dessas adequações são indicativas das diferenças existentes na ordem temporal dos acontecimentos narrados nas duas obras. O seguinte quadro ilustra alguns aspectos do tempo no conto e no filme, a fim de pontuar o tratamento que cada uma das linguagens dá a este elemento da narrativa. Obra literária 1_ A história relatada no conto, inicia-se “numa sexta-feira de novembro de 1869”, quando Rita conta a Camilo a visita que fizera a uma cartomante . Na primeira frase do texto, o narrador nos anuncia “Hamlet observa a Horácio que há mais coisa no céu e na terra que sonha a nossa filosofia” (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 83). Este enunciado será tomado como um ponto de referência para as antecipações e prospecções do texto. 2-“Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo.” ( ASSIS, 1995, p. 84). Esta fala do narrador nos mostra que o fato anteriormente narrado consistia em uma analepse, tendo em vista que Rita conta a Camilo algo que já lhe ocorrera. O conto não é narrado numa sequência linear, pois o ponto de partida do discurso inicia próximo ao fim da narrativa. 3- O próximo passo do narrador é Obra fílmica A primeira cena do filme acontece no alto de um prédio de onde Antônia observa as pessoas. A câmera, em panorâmica, nos mostra a superioridade da personagem em relação aos outros seres humanos e Antônia anuncia, assumindo papel de narrador seu interesse pelo ser humano, mas a história que irá contar não é a sua Após a introdução feita por Antônia, a narrativa fílmica ocorre em uma sequência linear, com o início em uma boate em que Camilo e Duda vão se divertir. Camilo conhece Karen. Em seguida, Camilo e Karen seguem para o apartamento dela, onde ela tenta matá-lo. Alguns retrospectos são feitos através de rememorações das personagens. Nas próximas cenas do filme, em cenas simultâneas, quando o tempo da história se desdobra no espaço. O enredo se constitui de múltiplas histórias: o espectador conhece o médico Vilela, que luta para salvar a vida de Camilo; e Rita que acorda em seu quarto, às 6h, expressão temporal indicada pelo close no relógio digital que serve de despertador à personagem. 9 apresentar as personagens do conto, Camilo, Rita e Vilela, utilizando-se de outra analepse, interrompe a narrativa principal, que volta ao seu curso quando o retrospecto termina. Nesse recuar do tempo, ficamos sabendo do triângulo amoroso existente entre eles, que ela é esposa de Vilela e amante de Camilo. Os dois rapazes são amigos de infância. 4- Ainda usando do recuo, o narrador nos informa que Camilo recebe uma carta anônima, se afasta da casa do amigo. Insegura, Rita vai à cartomante, fato que, no tempo do discurso, é contado ao leitor no início da história. A expressão “foi por esse tempo” (ASSIS, 1995 p. 85) retoma a visita de Rita à casa da Cartomante e o posterior encontro com Camilo. Aqui o tempo retoma o início da diegese. O tempo da história e do discurso se encontram. 5. A expressão “Daí a pouco” indica que Camilo chega à casa de Vilela e Rita. Vilela em um tempo anterior, que o leitor só fica sabendo neste momento, já matara Rita e mata também Camilo. O tempo da história e do discurso correm paralelos, com acontecimentos sequênciais. Rita visita Vilela no hospital, eles vão ao flat dele para um encontro amoroso, Vilela volta ao hospital. Rita visita sua psiquiatra, Antônia. Ela fala para a médica que irá a uma cartomante. Nesse momento ocorre um flasback em que Rita caminha pela calçada e vê a placa de uma mística, porém, entra no consultório da analista. A montagem passa a ser do tipo alternada, que segundo Martin é uma “montagem por paralelismo, baseada na estrita contemporaneidade de duas ou várias acções que se justapõem”(MARTIN, 2005, p. 197). No filme, há um jogo de ações que já se realizaram, intercaladas com ações que estão em curso. Em uma dessas cenas, a câmera mostra Rita conversando com sua psiquiatra. Ela diz que irá a uma cartomante, nesse momento aparece a cena de Rita em frente à casa da mística. Há um corte e no próximo plano, a personagem ainda continua deitada no divã, indicando que a cena anterior, na frente da casa da cartomante, na verdade aconteceu após a atual, e não no meio dela, como aparece na narrativa. A partir da análise comparativa, identifica-se que as o conto e o filme A Cartomante não possuem o mesmo percurso temporal de acontecimentos, pois o conto se inicia em um ponto próximo ao desfecho e o narrador faz um corte temporal para voltar ao passado a fim de esclarecer a situação vivida pelas personagens. O filme, por sua vez, segue uma narrativa linear, entremeadas por rememorações das personagens, introduzidas por flashbacks. Considerações Finais Na discussão proposta acerca das obras literárias adaptadas para os meios de comunicação audiovisuais, é importante considerar que esta é uma prática corrente. Seja para celebrar um acontecimento histórico, ou para atualizar uma obra consagrada, televisão e cinema se utilizam do texto literário como fonte. Porém, literatura e meios de comunicação se expressam de maneira distinta. Um texto transposto de uma linguagem para outra pressupõe ajustes no que se refere à constituição da narrativa, ou seja, o outro meio de 10 comunicação utiliza recursos e atributos próprios para narrar o que antes estava restrito ao campo literário. Isso se verifica, também, no que se atem à questão temporal. Numa breve análise comparativa, enfocou-se aspectos relativos à constituição do tempo como categoria da narrativa, seja ela literária, fílmica, ou televisiva. Assim, verificou-se que nem sempre a direção do tempo de uma obra adaptada se concatena com o percurso temporal feito pelo texto literário. As escolhas feitas quanto à ordem narrativa de cada texto estão relacionadas, por exemplo, à mudança de suporte, meio, contexto histórico e à linguagem em que a obra derivada está articulada. Na adaptação do conto machadiano ocorre a atualização do contexto histórico, bem como a mudança da ordem da narrativa em relação ao “texto de partida”.O tempo é tratado de maneira distinta, de acordo com a linguagem em que foi produzido o texto. Assim, enquanto na literatura o transcorrer ou retroceder do tempo acontece com o uso de palavras, no cinema, assim como na televisão, utilizam-se de elipses espaciais e temporais, ligações por meio de movimentos, as ligações complexas temporais, que, através das imagens, se fazem visíveis. Na minissérie adaptada da trilogia de Verissimo, percebe-se que há a manutenção da mesma época do romance, o que acentua certos atributos do contexto histórico retratado na obra literária. A adaptação se constitui numa montagem cíclica, o que a aproxima, mais uma vez, da estrutura característica do texto de partida. O estudo das adaptações possibilita, assim, uma dupla abordagem: requer considerar o texto literário e também o produto audiovisual, sem deixar de notar que são obras distintas, que por isso possuem especificidades, entre as quais se destaca, particularmente, o tratamento dado à categoria narrativa temporal nos textos fonte e derivado. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. A cartomante e outros contos. São Paulo: Moderna, 1995. BENJAMIN, Walter. O Narrador. In Obras escolhidas vol. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.197-221. CASETTI, Francesco; DI CHIO, Federico. Cómo Analizar un Film. Barcelona: Paidós, 1991. 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