A infecção pelo vírus Zika: novos desafios para o Infectologista Prof

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A infecção pelo vírus Zika: novos desafios para o Infectologista Prof
A infecção pelo vírus Zika: novos desafios para o Infectologista
Prof. Dr. Celso Granato
Professor da Universidade Federal de São Paulo
Diretor Clínico e Responsável Técnico do Grupo Fleury
Médico associado da Sociedade Paulista de Infectologia
Os Infectologistas fomos tomados de assalto, ao lado de colegas de outras especialidades, com um novo
agravo à saúde: a infecção pelo vírus Zika. Embora fosse conhecido desde o final da década de 1940, quando foi
identificado a partir de um macaco sentinela na floresta de Zika, em Uganda, esse agente viral não recebeu muita
atenção da comunidade médica, permanecendo nada mais do que uma curiosidade, mais uma daquelas doenças
exóticas do interior africano.
Eventualmente, pequenos surtos, envolvendo poucos pacientes ocorreram na Malásia, na Indonésia ou
entre turistas que visitavam esses países, e não foram suficientes para despertar maior atenção, mesmo por que,
do ponto de vista clínico, pelo que se conhecia até então, tratava-se de uma doença febril bem curta, causando
um exantema pruriginoso, nada muito além disso e, portanto, não justificando maiores preocupações naquele
momento.
Foi só no ano de 2007, quando um surto aconteceu num ilha denominada Yap, localizada na Micronésia, é
que parte do mundo voltou os olhos para esse vírus e, mesmo nesse momento, muito em função de se tratar de
uma epidemia (cerca de 80% dos habitantes se infectaram), não por que fosse muito diferente do ponto de vista
clínico do que era descrito anteriormente.
Nos anos seguintes, até 2013, outros surtos mais expressivos foram descritos naquela região da Polinésia
e, até mesmo na Ilha de Páscoa que, a rigor, já faz parte da América do Sul.
O grande susto com a infecção pelo vírus Zika foi trazido quando um grande surto foi identificado no
nordeste brasileiro. Inicialmente (março de 2015) foram descritos casos em Camaçari, no Recôncavo Baiano e, a
seguir, em Natal (RN) e em todo o estado de Pernambuco.
Isso ocorreu não apenas por que, aparentemente, o surto teria sido muito mais expressivo
numericamente (o Ministério da Saúde estima em mais de 500.000 casos no Brasil todo) como principalmente por
que foi detectado um número aumentado de casos de microcefalia, um acometimento grave e incomum, que foi
descrito aos milhares em associação temporal com o surto nordestino. Num primeiro momento, e em apenas
alguns casos, foi feito o diagnóstico laboratorial específico na gestante e no feto abortado, sendo identificado o
vírus Zika no líquido amniótico e no sistema nervoso central. Devido à variedade de formas clínicas associadas à
infecção pelo vírus Zika na gestação, muitos pesquisadores já tem preferido falar de Síndrome da Infecção
Congênita pelo Vírus Zika.
Em função disso, o Brasil fez um comunicado formal à Organização Mundial da Saúde e à Organização
Panamericana da Saúde, que lançaram um alerta mundial levantando essa possibilidade de associação causal. A
seguir, os colegas que atenderam ao surto na Polinésia puderam rever os dados de que dispunham e confirmaram
que poderia ter havido um aumento do número de casos de microcefalia lá também, e que teria passado
despercebido durante o surto naquele local.
Ainda não se dispõe de todos os detalhes, sequer se essa associação é realmente etiológica isoladamente,
mas de qualquer forma, o andamento de uma série de pesquisas realizadas tanto no Brasil, como no exterior, tem
reforçado cada vez mais a associação causal entre esses dois processos nosológicos. As autoridades de Saúde
Pública de vários países têm transmitido à população que todo cuidado deve ser tomado no sentido de se evitar a
ocorrência de casos, particularmente entre gestantes ou nos seus contactantes mais próximos, uma vez que há
evidências sugerindo que a transmissão possa ocorrer também pela via sexual ou mesmo pela saliva. Algumas
autoridades chegaram mesmo a orientar as mulheres no sentido de evitar a gravidez até que as informações
estejam mais consolidadas.
Dados também cada vez mais preocupantes relacionam a infecção pelo vírus Zika e a Síndrome de
Guillain-Barré, cuja incidência igualmente aumentou desde os primeiros relatos de febre Zika.
O que já sabemos sobre essa doença?
O vírus Zika é constituído por RNA e faz parte do mesmo grupo ao qual pertencem o vírus dengue, o vírus
da febre amarela, o vírus do Nilo Ocidental, entre outros. Ele é transmitido principalmente pela picada do
mosquito Aedes aegypti e pelo Aedes albopictus, portanto, os mesmos vetores da dengue, da febre amarela e do
vírus chikungunya.
Após a picada de um mosquito contaminado, ocorre um período de incubação de 3 a 7 dias e
provavelmente a maioria das pessoas terá um curso clínico pouco marcante, isto é, estima-se que 80% das
pessoas fiquem assintomáticas ou pelo menos oligossintomáticas, mas algumas delas terão febre não muito
elevada (37,8-38ºC) e um exantema máculo-papular pruriginoso (semelhante àquele do sarampo). Os olhos
podem ficar vermelhos, parecidos com os de uma conjuntivite viral, sem secreção purulenta. O curso mais
habitual da doença é curto, cerca de 3 a 4 dias, findos os quais o paciente se recupera sem sequelas. Como já foi
citado acima. Foram descritos casos da síndrome de Guillain-Barré (SGB), doença neuro-muscular de provável
origem auto-imune, caracterizada por paralisia ascendente a partir dos membros inferiores, que mais
frequentemente evolui para a normalidade após 2 a 4 semanas. Essa síndrome pode ocorrer também em função
de outras infecções viróticas ou bacterianas. Ainda não se tem idéia muito precisa da frequência com que a
infecção pelo vírus Zika evolua com SGB, embora os primeiros levantamentos sugiram algo em torno de 24 casos
por 100.000 pessoas infectadas pelo vírus Zika.
A intensidade da febre, bem como da mialgia e da cefaleia parecem ser menores nos quadros causados
pelo vírus Zika, em comparação com aquele associado ao vírus dengue. O fato de ele causar conjuntivite também
oferece elemento de diferenciação, mas essas diferenças, em casos isolados, podem ser discretas, limitando o
diagnóstico com base apenas clínica.
A maior preocupação, portanto, que se associa à infecção por esse agente é mesmo a possibilidade de
evolução do feto para a microcefalia, caso a infecção incida durante a gestação, particularmente nos primeiros
três meses da gravidez, segundo os dados iniciais parecem demostrar. Isso pode ocorrer também nas infecções
pelos vírus dengue e chikungunya, mas ainda há necessidade de estudos mais amplos para se definir melhor a
frequência dessa manifestação em cada uma dessas viroses.
Uma vez que esse quadro clínico é bastante superponível àquele causado pelo vírus dengue, pelo vírus
chikungunya, além de outros, o diagnóstico clínico pode não ser suficiente para a definição e estabelecimento de
um prognóstico.
Diagnóstico Laboratorial da Infecção pelo Vírus Zika
Considerando que a apresentação clínica dessa infecção pode variar bastante e, lembrando que essas
apresentações podem ser semelhantes em grande medida àquelas descritas para infecções causadas pelos vírus
dengue, chikungunya, entre outros, considera-se importante, pelo menos em alguns casos, que se estabeleça o
diagnóstico de certeza, pelo emprego de recursos laboratoriais. Isso se aplica, por exemplo, a mulheres grávidas,
devido ao risco de transmissão ao feto e às consequências dessa transmissão como já referido anteriormente. Da
mesma forma, pode estar justificado esse processo diagnóstico laboratorial para as pessoas com um quadro
clínico compatível e que sejam contactantes de uma mulher grávida, tais como seu marido/companheiro ou seus
filhos.
Com relação aos dados laboratoriais gerais, como o hemograma, por exemplo, muito embora sejam
descritas algumas alterações como discreta leucopenia, por vezes acompanhada de plaquetopenia, elas não se
constituem um dado relevante pela frequência ou intensidade a ponto de se poder usar como dado significativo
na exclusão de outras doenças virais. Da mesma forma, as provas de fase aguda como a velocidade de
hemossedimentação, a dosagem de proteína C reativa ou da alfa 1 glicoproteína ácida, para citar apenas algumas
delas, não podem ser usadas como critério diagnóstico isolado.
De qualquer forma, parece-nos mais adequado partir para o diagnóstico específico, nos casos em que
este se justifica, como citado acima.
Terminado o período de incubação e tendo início a fase de estado da doença, quer seja ele clinicamente
notado ou não, na primeira semana da doença a carga viral pode ser detectada no plasma pelo emprego de
técnica molecular do tipo RT-PCR (reação de polimerização em cadeia, em tempo real). Essa técnica é bastante
específica, não apresentando, portanto, reatividade cruzada com outras viroses. Os níveis virais medidos entre 3 e
5 dias após o início dos sintomas se situam ao redor de 10₃ a 10₅ vírus/mm3 e perduram , no sangue por período
máximo de 5 a 7 dias. Na urina, muito embora não seja habitualmente feita a quantificação, o vírus é eliminado
por um período maior, sendo detectado até a 2ª ou 3ª semana de doença, por vezes em níveis mais elevados do
que no plasma.
O vírus Zika também pode ser detectado no líquido amniótico em gestantes. Ainda não se dispõe de
informações seguras na literatura médica com relação ao significado desse achado, seja na positividade, seja na
negatividade mas, considera-se que, em casos de suspeita de lesões fetais associadas à infecção materna, possa
se justificar a pesquisa de vírus nesse material com a finalidade de excluir outros processos infecciosos ou de
tornar a associação causal com o vírus Zika mais provável.
Passado esse período de viremia, o diagnóstico laboratorial pode ser feito de forma indireta, pela
pesquisa de anticorpos, ou seja, pela sorologia. Após o 5º dia de doença podem-se detectar anticorpos da classe
IgM dirigidos contra o vírus Zika. Tendo em vista a semelhança estrutural entre esse agente e o vírus dengue,
além da natureza intrínseca dos anticorpos da classe IgM, existe a possibilidade de reatividade cruzada entre
esses 2 tipos de anticorpos. Também é possível que haja reatividade cruzada com outros vírus (EBV, CMV) e,
dessa forma, há que se ter cuidado na interpretação isolada desse recurso.
Após 2 a 4 dias da detecção da IgM deve ser possível se detectar a presença de anticorpos específicos,
agora da classe IgG. Sua presença, portanto, confirma a ocorrência de infecção pelo vírus Zika e a ausência de
soroconversão torna mais provável que se trate de infecção por outro agente. A produção de IgM perdura por 2 a
12 semanas, enquanto a positividade da IgG dever ser muito mais prolongada (anos).
A técnica mais comumente empregada nesse momento ainda é a imunofluorescência indireta, mas estão
entrando no mercado conjuntos diagnósticos (kits) que detectam anticorpos tanto da classe IgM, como da classe
IgG, por Elisa ou ensaio imunoenzimático. Os custos tendem a ser menores e os prazos de entrega dos resultados
também costumam ser mais curtos nos ensaios imunoenzimáticos.
No caso de pessoas previamente infectadas pelo vírus dengue, a curva sorológica costuma ser mais
complexa. Devido ao fenômeno do “pecado original” (uma vez que o individuo é infectado por um flavivirus,
devido à existência de antígenos comuns a todos os vírus da família, o primeiro anticorpo a surgir pode ser a IgG
dirigida contra antígenos comuns, portanto, não específicos). Assim, pode ocorrer de, na fase aguda, o primeiro
anticorpo a ser detectado ser a IgG no teste que busca anticorpos contra o vírus Zika. Parte desses anticorpos
pode ser fruto de reatividade cruzada com o vírus dengue. Isso acontece mesmo com títulos muito elevados na
imunofluorescência. A orientação que temos nesses casos seria esperar mais 2 a 3 dias e repetir a sorologia para
observar se surgem os anticorpos da classe IgM contra o vírus Zika e, assim, tornar o diagnóstico sorológico mais
específico.
Há inúmeras perguntas para as quais ainda não temos respostas, tais como, qual a frequência de
transmissão materno-fetal do vírus Zika, em que período da gestação essa transmissão é mais comum, quais os
efeitos dessa transmissão em função da semana gestacional, qual a real frequência de evolução para SGB na
infecção pelo vírus Zika, mas ao longo dos próximos meses/anos, essas perguntas serão respondidas, bem como
outras relativas a tratamentos específicos ou vacinação, que devem ser abordadas para darmos o mesmo
tratamento que hoje é possível dar para outras doenças.
Referências:
1. Mlakar J, Korva M, Tul N, Popović M, Poljšak-Prijatelj M, Mraz J, Kolenc M, Resman Rus K, Vesnaver Vipotnik
T, Fabjan Vodušek V, Vizjak A, Pižem J, Petrovec M, Avšič Županc T. Zika Virus Associated with Microcephaly.
N Engl J Med. 2016; 374 (10): 951-8. doi: 10.1056/NEJMoa1600651.
2. Keighley CL, Saunderson RB, Kok J, Dwyer DE. Viral exanthems. Curr Opin Infect Dis. 2015; 28(2): 139-50.
3. Weaver SC, Costa F, Garcia-Blanco MA, Ko AI, Ribeiro GS, Saade G, Shi PY, Vasilakis N. Zika Virus: History,
Emergence, Biology and Prospects for Control. Antiviral Res. 2016 Mar 17. pii: S0166-3542(16)30120-6. doi:
10.1016/j.antiviral.2016.03.010.

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