Psicopatas no local de trabalho: um desafio dos

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Psicopatas no local de trabalho: um desafio dos
M&Z Complexity Thinking
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Psicopatas no local de trabalho: um desafio dos tempos
atuais
Cristina Zauhy*
Resumo
O artigo apresenta de modo breve o estado atual dos conhecimentos sobre a psicopatia, com ênfase na
incidência desse grave distúrbio de personalidade nas organizações. A apresentação inclui o principal
instrumento diagnóstico e os cuidados com o qual ele deve ser utilizado. Deve-se considerar este
artigo uma introdução, cujo objetivo é sensibilizar os leitores para que se aprofundem em um tema
que, em especial nas organizações, ainda merece bem mais estudos do que os já publicados. As
considerações aqui incluídas se baseiam em minha experiência como coach e psicoterapeuta, bem
como nas referências citadas.
Palavras-chave: psicopatia, psicopatas, personalidade, distúrbios de personalidade, diagnóstico,
população geral, organizações.
Abstract
This paper is a brief presentation of the current knowledge about psychopathy, with emphasis on the
incidence of this serious personality disorder in organizations. The presentation includes the main
dagnostic tool and stresses the care with which it should be used. This article should be considered an
introductory text, whose goal is to encourage readers to go deeper into a topic that, especially in
organizations, still deserves much more studies than those already published. The considerations here
included come from my experience as a coach and therapist, as well as in the cited references.
Keywords: psychopathy, psychopathic personality, personality disorders, diagnosis, general
population, organizations.
Introdução
Somos todos psicopatas? Em um certo sentido, sim. Essa resposta soa um pouco assustadora, mas
temos de enfrentar este fato: muitas evidências mostram que existem mais psicopatas do que
imaginamos.
É claro que os locais de trabalho não são exceção. De fato, há uma categoria específica de psicopatas
que tem sido objeto de estudos recentes. São os psicopatas corporativos, descritos em artigos, ensaios
e um livro importante Corporate psychopaths: organizational destroyers (Psicopatas corporativos:
destruidores organizacionais) (Boddy, 2011).
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Os psicopatas organizacionais obtêm gratificação ao causar sofrimentos nas pessoas. Outra
característica marcante é sua avidez para ascender na escada corporativa a qualquer custo. A
perspectiva de manipular e impor sofrimentos aos colegas de trabalho para eles é sempre atraente.
Conceituação e diagnóstico
Aqui está a clássica definição de Robert Hare, aplicável aos psicopatas em geral: “Psicopatas são
indivíduos sem consciência; vivem em um mundo complexo no qual as regras sociais são violadas à
vontade. São predadores sociais que seduzem, manipulam e abrem caminho pela vida de modo
impiedoso, deixam atrás de si uma trilha de corações partidos, expectativas abaladas e carteiras vazias,
e fazem o que querem sem o menor senso de culpa ou remorso” (Hare, 1993).
O diagnostico de psicopatia é baseado em um conjunto de manifestações e sintomas que se enquadram
em critérios mínimos. Portanto, não pode ser feito em termos binários, segundo os quais alguém é ou
não é psicopata.
Não é dessa forma que as coisas funcionam no mundo real. Assim como nenhum conhecimento é
100% certo ou 100% errado, ninguém é 100% psicopata ou 100% não psicopata. Existe um espectro
no qual os vários graus de psicopatia podem ser identificados, dos mais suaves aos mais graves. Em
seus vários graus e manifestações, a psicopatia é distribuída na população geral com algumas áreas de
concentração.
O primeiro a descrever o que chamou de personalidades psicopáticas foi Hervey Cleckley (Cleckley,
1988). Em 1980, Robert Hare complementou esses estudos e criou uma checklist chamada
Psychopathy Checklist (PCL), mais tarde consolidada com o nome de Psichopathy Checklist Revised
(PCL-R). A PCL-R é amplamente usada em psiquiatria clínica e forense e também em psicologia
social. Inclui vinte traços de personalidade, como se vê abaixo.
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1. Loquacidade/charme superficial.
11. Comportamento sexual promíscuo.
2. Sentimento grandioso do próprio valor.
12. Problemas comportamentais pregressos.
3. Necessidade de estímulos/propensão ao tédio.
13. Falta de metas realistas a longo prazo.
4. Mentir patologicamente.
14. Impulsividade.
5. Astúcia/comportamento manipulador.
15. Irresponsabilidade.
6. Falta de remorsos ou culpa.
16. Não aceitação da responsabilidade por suas
7. Afetos superficiais (Superficialidade nas
próprias ações.
experiências e expressão de emoções).
17. Muitas relações maritais de curta duração.
8. Insensibilidade/falta de empatia.
18. Delinquência juvenil.
9. Estilo de vida parasitário.
19. Revogação de liberdade condicional.
10. Controle deficiente do próprio
20. Versatilidade criminal.
comportamento.
Cada item vale de zero a dois pontos. O psicopata típico atinge um escore de 40 pontos, mas um
escore acima de 30 já é suficiente para o diagnóstico.
Contudo, ainda que os questionários e escalas sejam úteis, atraentes e algumas vezes sedutores,
devemos ter cuidado ao usá-los. A escala acima é mostrada apenas com propósitos informativos e não
deve ser usada por pessoas sem treinamento específico. O próprio Hare avisa: “Não use esses
sintomas para diagnosticar a si mesmo ou a outros”.
O diagnostico final se baseia em entrevistas semiestruturadas e em estudos da vida pregressa das
pessoas, o que inclui vários tipos de registros.
Discussão
Os vinte traços estudados pelo PCL-R formam um espectro que vai de manifestações mínimas a
máximas. Esse fato permite a identificação de nuanças, graus intermediários e casos subclínicos
(borderline). São os chamados quase psicopatas, sobre os quais há um bom estudo de Ronald
Schouten, professor de psiquiatria da Harvard Medical School, e seu colaborador James Silver
(Schouten e Silver, 2012).
Já vimos que uma das principais características dos psicopatas é o charme superficial que, associado à
loquacidade, às vezes é confundido com simpatia e bom humor. Mas não se trata disso, pois esses
traços são usados como instrumentos de manipulação
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O charme superficial serve para esconder um dos traços marcantes dos psicopatas, que é a
impessoalidade nos relacionamentos: eles tratam todos da mesma maneira, como se estivessem diante
de um único indivíduo.
O resultado é que os interlocutores mais crédulos podem se sentir distinguidos por um tratamento que
lhes parece empático e positivo, mas que na verdade é impessoal, frio e padronizado. Qualquer
tentativa de aprofundar relações é desencorajada, quando não rejeitada.
A impessoalidade e o charme superficial com frequência são traídos pela imutabilidade do olhar. O
olhar dos psicopatas muito raramente expressa emoções além das primárias (felicidade, prazer,
tristeza, raiva e medo) e quase nunca muda quando eles riem.
Os psicopatas muitas vezes estão em um determinado ambiente mas é como se não estivessem. Parece
que estão sempre de passagem. Na realidade estão atentos às únicas pessoas que lhes interessam: eles
mesmos. Do mesmo modo, não têm nenhum interesse em questões relativas à sustentabilidade do
mundo natural, como assinala Mariotti (Mariotti, 2013: 115-119). Além disso são impermeáveis a
apelos e exortações, não se abalam diante de ameaças, não aparentam ter medo de punições e,
portanto, não se podem esperar resultados corretivos das que lhes são aplicadas.
Também são incapazes de sentir remorsos e culpa, o que os diferencia dos quase psicopatas. Veem as
pessoas e o mundo de forma binária: ou são obstáculos a ser contornados ou eliminados, ou como
instrumentos e fontes de recursos que devem ser aproveitados. Por isso é difícil imaginar que se
comprometam com algo mais do que com eles mesmos.
Estudos têm revelado que em relação à população geral há uma incidência aumentada de psicopatas e
quase psicopatas entre os políticos, empresários e executivos. Se considerarmos que as
responsabilidades desses líderes incluem traçar e acompanhar políticas públicas e privadas, justifica-se
que esse aspecto mereça especial atenção. Mas é preciso muita cautela antes de fazer generalizações
pois, como já foi dito, o diagnóstico de psicopatia se estende em um continuum.
James Silver observa que muitas das características dos psicopatas são as mesmas de muitos líderes de
destaque. Hitler e Stalin são dois exemplos famosos. A questão, pergunta ele, é se há – e até que ponto
há – psicopatas entre as pessoas que costumam se candidatar (e ser eleitas) a cargos públicos.
Gostemos ou não a resposta é afirmativa. É o que a experiência tem mostrado. E é compreensível que
assim seja, pois, como ressalta Silver, a busca de poder e prestígio é tão proeminente entre os
psicopatas quanto entre os políticos.
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Mas é claro que ter psicopatas entre suas fileiras não é exclusividade da política. Silver menciona um
texto que afirma que uma em dez pessoas que trabalham nas firmas financeiras de Wall Street é
psicopata. Mas ressalva que é provável que essa estimativa seja exagerada e sugere que os leitores
façam suas próprias avaliações (Silver, 2012, 2012a).
Esse mesmo autor assinala que, pelos critérios da PCL-R, pesquisadores dos EUA chegaram à
estimativa de que 3 milhões de americanos (cerca de 1% da população do país) são psicopatas, e infere
que se isso acontece na população geral também ocorre em Wall Street. Sabemos que muitos filmes
americanos têm abordado o tema psicopatia. Alguns têm Wall Street como foco, mas não escapam de
um certo viés estereotipado e às vezes caricatural.
Mas lá a especificidade é maior, se levarmos em conta que traços como objetividade, mentalidade
quantitativa, baixa capacidade de empatia e propensão a assumir riscos são desejáveis para quem
trabalha no mercado financeiro. Para Silver, “uma pessoa cautelosa e muito preocupada com os
sentimentos dos outros não teria um perfil adequado para trabalhar em uma firma de investimentos”.
Segundo Silver, em 2003 um estudo examinou 203 participantes de um programa de desenvolvimento
gerencial em sete empresas nos EUA. O resultado mostrou que cerca de 4% se enquadraram no
diagnóstico de psicopatia. Esse estudo não foi específico para executivos da área financeira, mas seus
resultados apoiam a ideia de que a ocorrência de psicopatas e quase psicopatas nesse universo é mais
significativa do que na população geral.
O mesmo autor menciona estudos que mostram que 15% da população geral dos EUA (o que
corresponde a cerca de 45 milhões de americanos) podem ser considerados quase psicopatas. De fato,
sabemos que, ao contratar seus colaboradores, as organizações financeiras de todo o mundo costumam
escolhê-los segundo características que, como no caso dos políticos, correspondem aos traços das
personalidades psicopáticas: calculismo, mais preocupação com os números do que com as pessoas,
tendência a relacionamentos superficiais e de curta duração e assim por diante.
Daí a inferência de que nessa indústria ao menos 15% das pessoas são quase psicopatas e portanto
propensas a manipulações em proveito próprio, com as consequências previsíveis.
Conclusão
Tudo isso dito, devemos ser cautelosos. Como primeiro passo, é indispensável suspender nossos
preconceitos diante de situações assim. Também é preciso ter muito cuidado com números e
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estatísticas: ter sempre em mente que, a não ser em casos bem específicos, eles podem nos induzir a
erros.
Por isso convém confiar sempre na observação participante, que inclui a experiência vivida e discutida
com o maior número possível de interlocutores. Afinal, conclui Silver, se de cada 100 pessoas uma é
psicopata, e se de cada 100 indivíduos 15 são quase psicopatas, é óbvio que esse fenômeno não se
limita à área financeira.
Ainda assim, a presença da psicopatia nos locais de trabalho continua mal estudada e merece mais
ênfase em termos de pesquisas.
Referências
BODDY, Clive (2011). Corporate psychopaths: organizational destroyers. Nova York: Palgrave Macmillan.
CLECKLEY, Hervey (1988). The mask of sanity: an attempt to clarify some issues about the so-called
psychopathic personality. St. Louis, MO: V.C. Mosby.
HARE, R. D. (1993) Without conscience: the disturbing world of psychopaths around us. Nova York: Guilford
Press.
MARIOTTI, Humberto (2013). Complexidade e sustentabilidade: o que se pode e o que não se pode fazer. São
Paulo: Atlas.
SCHOUTEN, Ronald; SILVER, James (2012). Almost a psychopath: do I (or does someone I know) have a
problem with manipulation and lack of empathy? Center City, Minnesota: Heldezen.
SILVER, James (2012). “The startling accuracy of referring to politicians as psychopaths”. Disponível em
www.theatlantic.com/health/archive/2012/07/the-startling-accuracy-of referring-to politicians-aspsychopaths/26017/
SILVER, James (2012a). “Is Wall Street full of psychopaths?” Disponível em
www.theatlantic.com/health/archive/2012/03/is-wall-street-full-ofpsychopaths/254944/
*CRISTINA ZAUHY. Coach executiva e pessoal, certificada pelo ICI-Integrated Coaching Institute,
sob supervisão do ICF-International Coach Federation (USA). Pós-graduação em Administração de
Empresas e Recursos Humanos. Graduação em Serviço Social. Pesquisadora independente em
Complexidade e suas aplicações. Professora em cursos de MBA.
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reincidencia criminal_Morana . Acesso em: mai. 2003. CLECKLEY, H. The mask of sanity. 5th ed., St Louis, Mosby, 1988. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Disponível em: Leia mais