criança e tv

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criança e tv
CRIANÇA E TV
Grácia Lopes Lima*
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende tecer considerações a propósito das relações entre criança e
televisão. Qual a importância desse meio de comunicação na formação dos nossos meninos
e meninas? Sua influência é definitiva no modo de ser dos futuros cidadãos e cidadãs? Até
que ponto os pequenos conseguem reagir às imagens, sons e idéias transmitidas por esse
equipamento tão moderno e poderoso? O que pensam os estudiosos da educação e
comunicação?
Inicialmente, o texto trata da importância do brincar na formação pessoal e social da
criança, tanto do ponto de vista cognitivo como psicológico. Lembrando Winnicot, quando a
criança joga, ela se permite, no processo, brincar ao mesmo tempo com a fantasia e com a
realidade, o que contribui positivamente para o seu desenvolvimento.
Depois, apresenta diferentes abordagens de estudiosos de diversas áreas no que tange às
influências da televisão sobre a formação infantil. Na seqüência, elenca algumas práticas
que têm como meta trabalhar as relações importantes e necessárias entre educação e
comunicação, visando a formação de telespectadores infantis mais críticos e, por
decorrência, mais conscientes e ativos.
Por fim, após a transcrição de falas de crianças num programa televisivo, estabelece
paralelos entre as declarações que fazem sobre criança e tevê e os textos abordados ao
longo do trabalho.
1. A IMPORTÂNCIA DO BRINCAR NA FORMAÇÃO DA CRIANÇA
Uma criança saudável sempre brinca. E por que brinca? Alícia Fernandez, psicopedagoga,
afirma que "não pode haver construção do saber, se não se joga com o conhecimento."1
Segundo ela, é pelo jogo, entendido como um processo (não um ato ou um produto) que a
criança toma para si o conhecimento - que é sempre do Outro. É no jogar/brincar que existe
* Grácia Lopes Lima é psicopedagoga, mestra em ciências da comunicação/ECA/USP, coordenadora
dos projetos Rádio e Vídeo-Escola, do GENS – Serviços Educacionais e do educom.rádio, do
NCE/ECA/USP.
1
FERNANDEZ, Alicia. A inteligência aprisionada, Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1991.
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1
a possibilidade concreta de fazer com que o conhecimento se torne pessoal, elaborado de
acordo com possibilidades e características pessoais.
Winnicott chama o momento do jogo de "espaço transicional"2, isto é, uma espécie de lugar
privilegiado, caracterizado por uma dinâmica que torna possível (porque necessário) brincar
com conceitos e informações como se fossem certas e erradas, ao mesmo tempo. É o que
acontece, por exemplo, quando a criança transforma um objeto qualquer em algo que voa
ou o lugar onde está em sala de aula, para brincar "de escolinha". Nessas horas, a criança
sadia, sem problema de aprendizagem, sabe que nem o objeto voa, nem o lugar é escola.
São "de mentirinha", mas "fazem de conta que são de verdade". Ela transforma os objetos
e, assim, aprende - com prazer - o que necessita para crescer e se desenvolver. Lidar
simultaneamente com ficção e realidade acaba sendo um exercício de criatividade, que
fortalece
a
autoconfiança
e
assegura,
em
suma,
as
condições
propícias
para
a
aprendizagem.
Enfatiza o autor que, além de permitir a catarse e elaboração de questões íntimas
pendentes, mal resolvidas, o jogo desenvolve o pensamento, a inteligência, que, em última
análise, podem ser entendidas como domínio de situações que exigem ação e reflexão.
Igualmente, pela brincadeira, a criança aprende a estabelecer contatos sociais.
Jogar, então, se relaciona intimamente com o cotidiano da criança. Isto significa que para
entender melhor a importância do lúdico na formação infantil é preciso levar em
consideração aspectos relacionados a um contexto muito mais amplo. Como afirma Elza
Pacheco: "Conhecer a criança é pensá-la não apenas numa perspectiva evolutiva e etária.
Conhecer a criança é pensá-la como um ser social determinado historicamente. Conhecer a
criança é pensá-la interagindo dinamicamente, influenciando e sendo influenciada. Conhecer
a criança é pensá-la como um ser de relações que ocorrem na família, na sociedade, na
comunidade."3
A família urbana, como sabemos, vem assumindo diversas feições em curto espaço de
tempo. No período das grandes guerras mundiais, assistimos à saida de um número
significativo de mulheres para o mercado de trabalho. O sustento da casa deixava, então,
de ser obrigação exclusiva dos homens. Em ritmo de dupla jornada, essa mulher passou
também a ser diferente com seus familiares. Sua cabeça, seus costumes, suas inquietações,
2
WINNICOTT, D.H. El concepto de indivíduo sano, Buenos Aires:Trieb, 1978.
PACHECO, Elza Dias Pacheco. Televisão, criança e imaginário (org.), São Paulo: Papirus Editora,
1998.
3
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2
aos poucos, também se transformaram. O horizonte se ampliou, gerando um novo modo de
ser. Nos anos sessenta, eclodiu uma verdadeira revolução: a de uma fêmea que se
assumia, plena de desejos e direitos a serem reivindicados a qualquer custo. Conquistou
novos espaços de atuação. Passou, simultaneamente, a se relacionar com os filhos de uma
forma mais despojada, já um pouco mais livre do sentimento de culpa pelo fato de não
permanecer a seu lado vinte e quatro horas diárias.
Tais alterações, todavia, não atingiram somente a figura feminina. Toda a estrutura familiar
vem se modificando. Acompanhamos, igualmente, uma significativa alteração no modo de
ser masculino. Sobretudo porque fatores de ordem econômica interferem diretamente nas
organizações institucionais, alguns homens vêm assumindo novos papéis e funções nas
relações que estabelecem com esposa e filhos. Atualmente, não causa tanta estranheza
famílias terem o pai como aquele que permanece mais tempo dentro de casa, cuidando dos
afazeres domésticos, da limpeza, das compras e de levar os filhos à escola. Isso porque ou
estão desempregados ou porque passaram a trabalhar com seus computadores em casa,
uma das características mais recentes do mercado de trabalho. Podemos afirmar que
advirão daí homens mais sensíveis, mais tolerantes, menos arrogantes, mais doces? O que
se vislumbra, seguramente, é que há um modelo de macho em formação, cujos resultados,
certamente se refletirão no ideário das crianças.
É comum ouvirmos dizer que os valores estão mudando. E estão mesmo. Aliás, muitos
filhos também estão se comportando de maneira bastante distinta de antigamente escapam mais facilmente de quase todos os tipos de planos e expectativas... Seus corpos,
inclusive, não são mais como eram. É comum serem considerados mais velhos do que
realmente são. Compreensível: vêm sendo alimentados com produtos cada vez mais cheios
de hormônios. São, por decorrência, enormes. Mas suas cabeças também cresceram na
mesma proporção? São mais maduros, mais esclarecidos, posto contarem com fontes de
informação acessíveis desde quando nascem, dentro e fora de seus domicílios? São mais
autônomos e responsáveis?
Respostas a questões como essas não são tão simples, nem podem ser respondidas sem
análise de outros fatores. Os filhos passaram a contar com novos tipos de pais, o que
significa dizer, novos tipos de homens e mulheres. Passaram a fazer parte de um outro tipo
de família. Uma família que está se remodelando, se repensando, se constituindo. São filhos
de uma época em transformação. Contam com pais inquietos, ansiosos, e não raro,
insatisfeitos...
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Não poderia ser diferente: o mundo mudou. Inovações de toda natureza se impõem sem
consulta prévia a ninguém. A economia mundial, com a queda do muro de Berlim, em 1989,
passou a ser globalizada, comandada não mais por grandes personalidades políticas ou um
país, mas por corporações transnacionais. O tipo de economia de mercado que se
estabeleceu, a partir daí, própria do regime capitalismo, passou a reger a produção e troca
de bens materiais e simbólicos, estes últimos próprios da chamada indústria cultural.
Usando palavras de Ismar de Oliveira Soares: "A globalização da economia atinge de forma
direta o mundo da cultura. Os bens simbólicos (difundidos através de filmes, programas de
TV e de rádio, livros e jornais) já não escapam a uma subordinação inapelável à nova
prática econômica, alimentando - segundo alguns críticos - o imaginário da maior parte dos
seres humanos de todas as raças, religiões e poder aquisitivo."4
Partindo dessas perspectivas, cabe indagarmos: o que se constitui brincadeira hoje em dia?
De que jogam as crianças? Como jogam? Rádio, computador e especialmente a tv,
presentes na maior parte das casas, ocupando-as por pelo menos três horas diárias, não
poderiam ser considerados como um novo tipo de brinquedo? Que relações estabelecem as
crianças com eles? Com que elementos comporiam seu imaginário? Em que medida influem
sobre seu desenvolvimento?
2. INQUIETAÇÕES DE ESPECIALISTAS
Não há unanimidade de opinião, quando o assunto relaciona criança e televisão. Há quem a
considere prejudicial para o desenvolvimento sadio e equilibrado da infância, pois
transmitiria conteúdo impróprios, em momentos inadequados, sem respeito às diversas
faixas etárias que a consomem. Atribuem à TV grande responsabilidade pela formação de
hábitos nocivos e valores pouco louváveis, apresentados pela nova geração. Do ponto de
vista desses pensadores, violência, isolamento social, empobrecimento de vocabulário,
baixo nível de articulação lógica do raciocínio, obesidade, erotização são apenas alguns
exemplos de sua nefasta influência. Há que chegue a alegar que seus malefícios são tão
grandes que deveria ser, inclusive, afastada do público infantil.
Paralelamente, estão aqueles que a julgam como um meio de comunicação que em si
mesmo não se constitui como um bem ou um mal, atribuindo, sim, à sociedade a
responsabilidade pelo que as crianças são e em que se transformarão, quando adultas. São
4
SOARES, Ismar de Oliveira. Sociedade da informação ou da comunicação?, São Paulo: Editora
Cidade Nova, 1996.
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os que sugerem que a televisão faça parte das atividades escolares e seja aproveitada mais
adequadamente pelos professores, pois apresenta uma linguagem à qual nossas crianças
estão familiarizadas, o que facilitaria discutir com elas temas relevantes e de interesse para
a sua formação. Afirmam que o mal está em não se promover a compreensão da linguagem
audiovisual televisiva, assim como até aqui se fez com a linguagem dos livros. Diante da
tela, as crianças não ficam passivas, argumentam; antes, estabelecem com a programação
o que chamam de "negociação dos sentidos", isto é, com ela interagem, dialogam (isto
variando, evidentemente, segundo o grau de instrução que tiverem para o seu consumo).
Vejamos a seguir algumas dessas posições.
A psicanalista Raquel Soifer é categórica ao afirmar que a televisão causa impacto negativo
na mente da criança. Para fundamentar sua crítica, se faz valer de dois mecanismos
psíquicos, próprios da psicanálise - a identificação projetiva e a catarse. A ação de ambos
permitem ao espectador sensações idênticas às que temos quando sonhamos. O primeiro
nos induz a pensar que somos parte da cena mostrada na tela. Nossos olhos e ouvidos
atentos inibem outros sentidos e, assim, contribuem para que fique mais fácil e rápido que
nos transportemos para a ação que nos é mostrada. Ao nos identificarmos, isto é, ao nos
projetarmos no que ouvimos e vemos, automaticamente somos conduzidos para o alívio de
nossas emoções. Daí, nos identificarmos com ações violentas, ou o seu inverso, nos
deliciarmos com cenas românticas. O maior problema, aponta, está no fato de que, ao
contrário do sonho, quando nosso organismo trata de nos proteger, garantindo a
continuidade de nosso repouso ou nos despertando, nos momentos em que recordamos ou
revivemos momentos traumáticos, o espetáculo a que assistimos na televisão nos invade
acordados, sem que nosso organismo acione seus dispositivos de segurança. Ficamos horas
diante da TV, porque somos seduzidos pelos apelos audiovisuais e diante deles ficamos
inertes, boquiabertos. Crianças são expostas a imagens que a fazem participar de assaltos,
estupros, cenas de amor, compras, guerras, piadas, espetáculos, entre outros, sem que
tenham tempo de se "desligar", assimilar e se preparar para um novo flash. Um verdadeiro
bombardeio.
Lembra a autora: quando vamos ao cinema ou ao teatro, por exemplo, realizamos um ritual
de preparação para o acesso ao imaginário - trocamos de roupa, intencionalmente, nos
deslocamos de lugar, sabendo que vamos para uma sala de espetáculo. Já no local, nos
defrontamos com um ambiente especial, com cheiro próprio, com decoração específica. No
teatro ouvimos sinais que nos avisam que estamos adentrando o território da fantasia. No
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cinema, o fim da exibição de trailers ou propagandas se encarregam de nos mostrar a linha
divisória que nos separará, por instantes, da realidade. Uma vez terminado o filme ou a
peça, "regressamos" à nossa casa. O translado nos remete novamente ao cotidiano, nosso
conhecido.
Isso
não
acontece
quando
vemos
televisão.
Nossas crianças, em especial, mal levantam e, ainda sonâmbulas, se colocam no sofá (em
radical posição de relaxamento) para assistir aos programas infantis. Ali ficam durante
horas num estado que os psicanalistas chamam de regressão. Soifer chega a dizer que
esses são momentos marcados pela "sensação de prostração, atordoamento, inércia e
incapacidade (...) quantas vezes desejamos que outros desligassem o aparelho para nós... e
quantas outras, agradeceríamos que alguém compreendesse nossa situação e nos
alcançasse o que necessitamos e não podemos buscar..."5 A exposição intermitente ao um
ritmo frenético de imagens que se sobrepõem umas às outras, sem que o pequeno
espectador tenha tempo de assimilar o conteúdo do que vê se incorporam ao seu
inconsciente.
Diante do exposto, a psicanalista propõe: "1- considerando que o ato de assistir espetáculos
televisivos desorganiza a mente das crianças pequenas, não se deveria oferecer-lhes essa
suposta recreação, pelo menos antes dos cinco anos de idade. Fixamos este tempo
determinado porque a partir desse período, e tendo se desenvolvido em condições normais,
uma criança sabe medianamente diferenciar a fantasia da realidade, e porque seu
psiquismo já tem um certo grau de organização e solidez.; 2- O ato de assistir programas
televisivos deveria ser ocasional para crianças entre 5 e 6 anos, já que ainda estão
desenvolvendo suas funções intelectuais, quer dizer, sua capacidade de aprendizagem. O
termo 'ocasional' que utilizamos, significa apenas meia hora, uma vez por semana, para
crianças entre 5 e 6 anos; duas vezes por semana na mesma quantidade de tempo para as
crianças entre 7 e 8 anos. A partir dos 8 anos, sempre para as crianças que demonstram
um crescimento normal, a freqüência não deveria superar três ou quatro vezes por semana
e não mais de uma hora.6
Somente psicanalistas condenariam a televisão para crianças? Engano. O professor livredocente, em Ciência da Computação/USP, Waldemar W. Setzer, concedeu uma entrevista
para a jornalista Juliana Rezende, do Jornal Calendário, edição de agosto de 2000, onde
5
SOIFER, Raquel. A criança e a TV - uma visão psicanalítica. Porto Alegre: Editora Artes Médicas,
1991, p. 9 a 17
6
SOIFER, Raquel.... op. cit. p.59
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6
esclarece porque a televisão jamais contribuirá para a educação das crianças. Não se refere,
contudo, a questões de nível ideológico. Sua crítica parte do aspecto tecnológico precário do
aparelho. Segundo ele, essa é razão pela qual veicula imagens grosseiras, com pouca
definição. Somado ao abuso de produtores, que cientes da natureza ruim do meio de
comunicação, exploraram a audiência, levam o professor a sugerir que os pais afastem as
crianças da televisão, assim como agem em relação a objetos perigosos. Para o
pesquisador, "a televisão pode, sim, influenciar em ímpetos violentos e assassinos, pelo fato
de funcionar como uma droga - que vicia a mente e deixa seqüelas subliminares".
Suas palavras são tão impactantes, que vale a pena a transcrição de alguns trechos de sua
conversa, como estes: "De certa maneira a TV necessita transmitir violência. Cenas
violentas simplesmente são as mais bem transmitidas, pois os telespectadores estão
normalmente em estado de sonolência, semi-hipnótico, como já foi demonstrado por
pesquisas
neurofisiológicas
(...)
Uma
das
maneiras
de
atrair
atenção
é
mudar
constantemente as imagens. Outra, já que o telespectador está fisicamente passivo e com o
pensamento abafado, é apelar para os sentimentos, daí as novelas e dramalhões, e também
as cenas excitantes (esportes rápidos) e a violência. Em particular, como a imagem e o som
são grosseiros, e a TV atinge principalmente os sentimentos, o resultado' é que a violência é
o que mais atrai a atenção do telespectador e o que é melhor transmitido por esse veículo,
que é incapaz de transmitir a delicadeza, a sutileza e calma."
Setzer é enfático ao alertar os pais quanto aos malefícios do aparelho sobre os filhos: " (...)
os que lerem esta entrevista não terão mais desculpa... É preciso entender que a TV não
vende programas, vende audiência para os anunciantes, isto é, o leitor destas linhas,
quando estiver assistindo a um programa, deve ter consciência de que está se vendendo,
virou mercadoria. Se os produtores de TV têm mentalidade grosseira e mercenária, e
precisam vender audiência, que se esperaria de seus programas? Vão transmitir o que mais
prende a atenção da audiência e o que é melhor transmitido pelo aparelho, isto é,
violência." Mais adiante, ratifica o exposto: "Em 1999 foram gastos 11 bilhões de dólares
em propaganda no Brasil. Pois a metade disso foi para a TV! Grandes empresas não
gastariam centenas de milhões de dólares em propagandas pela TV se isso não funcionasse,
isto é, se não induzisse o telespectador a comprar os produto anunciado....A TV condiciona,
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7
não educa (....) as pessoas deveriam conscientizar-se de que ela deve ser jogada fora (não
se deve dá-la aos amigos, talvez para os inimigos) ou, no máximo, mantê-la trancada."7
Para o cientista da computação educação pressupõe diálogo, participação ativa, o que nunca
seria possível ser realizado via televisão.
Há, entretanto, quem veja possibilidades de a televisão ser bem aproveitada para
entretenimento e mesmo para a promoção de práticas educativas. Pesquisadores do LAPIC Laboratório de Pesquisa em Infância, Imaginário e Comunicação, após três anos de estudos,
concluíram que as crianças que assistem desenhos animados, aqueles mesmos acusados de
incentivadores de violência, se identificam com seus personagens, pois, através deles,
elaboram conceitos relacionados a bem e mal, presença/ ausência, verdade/mentira, entre
outros e, logo, se beneficiam da relação que travam com os heróis, sejam eles quais forem.
De acordo com Elza Dias Pacheco, coordenadora dos trabalhos, mesmo crianças bem
pequenas sabem distinguir fantasia de realidade, sabem o que é possível e o que é
impossível acontecer de fato, na vida real. Em certa medida, podemos aproximar a relação
da criança com os programas daquela que mantém com qualquer outro tipo de brinquedo.
Do mesmo modo com que não comem "comidinhas" feitas de mato, barro ou similares
(porque sabem que não são 'de verdade'), também não repetem cenas que personagens
retratam nas telas. Além de apostar na capacidade de discernimento inteligente das
crianças, a coordenadora destaca também o fato delas concomitantemente assistirem aos
programas, fazendo outras coisas.8 Sua atenção não fica voltada exclusivamente para as
imagens.
Quanto à desvirtualização de valores, acredita que estes não são formados pela mídia e,
sim, pela família. A mídia não tem compromisso de educar, embora veicule ideologias e
influencie a aprendizagem. Esse papel cabe à escola, que pode e deve, inclusive, em sala de
aula, fazer uso de programas preferidos das crianças - novelas, programas de auditório,
entre outros - como uma forma de exercitar o pensamento.
Semelhante proposta é a que faz a ONG TVer, para a qual é necessário que a sociedade se
mobilize e cobre qualidade de programação, afinal os canais de televisão são resultado de
concessões, o que significa entender "são propriedade pública entregues às emissoras na
7
SETZER, Valdemar W. Não é possível acabar com a violência na tv. Jornal Calendário de Cultura e
Extensão. Publicação da Pró reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo,
agosto de 2000, p. 9 a12.
8
PACHECO, Elza Dias. Um Sim à TV. In: A COMUNICAÇÃO NO ESPAÇO EDUCATIVO. São Paulo. 1988.
Jornadas de Julho. NCE/ECA/USP e outros.
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8
qualidade de serviço público e deve ser exercido com responsabilidade em nome do bem
comum". A organização pretende "contribuir com elementos de reflexão sobre esse difuso
mal-estar gerado pela baixa qualidade da programação televisiva."9
Essas são apenas alguns exemplos de inquietações diante da constatação de que a televisão
passou a fazer parte do universo infantil. Exageradas ou não, todos são unânimes, todavia,
no que diz respeito à necessidade de que se investigue e se promova debate sobre o
assunto entre os diversos segmentos responsáveis pela formação da criança. Vejamos, na
seqüência, alguns exemplos de atividades que vêm sendo realizadas com intuito de
interferir na relação do telespectador infantil com o televisão.
4. ALGUMAS PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO
Entre os anos de 1997 e 1998 o NCE - Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP -,
sob coordenação do Prof. Ismar de Oliveira Soares, realizou uma pesquisa junto a
especialista e profissionais que atuam no campo da Comunicação Comunicativa e da
Educação para os Meios para delinear o espaço transitado pelos campos da educação e da
comunicação.
A síntese da pesquisa10, formulada pelo mesmo professor, na Revista Contato nº 2, explicita
que a preocupação com conteúdo e destino dos veículos de comunicação, em particular o
rádio, data do início do século XX.
As críticas, inicialmente moralistas, passaram por outras etapas (já, a essa altura, se
estendendo também aos meios de comunicação audiovisuais): perigo de "dominação das
consciências e das vontades", dado "o caráter ideológico e os conteúdos políticos implícitos
e explícitos na cultura de massa"; denúncias de caráter sócio-político, durante a década de
70, originando projetos de análise crítica das mensagens; questionamento sobre "como o
sistema de educação deve entender o sistema de meios e construir ecossistemas
comunicativos a partir da realidade mediática em que estamos todos inseridos", na década
de 80, a partir da publicação De los medios a las mediaciones, de Martin Barbero; nos anos
90, identificação do surgimento de um novo campo que atrela as áreas de "educação para
9
TVER. http://www.tver.org.br
SOARES, Ismar de Oliveira. Comunicação/Educação: a emergência de um novo campo e o perfil de
seus profissionais. Contato - Revista brasileira de comunicação, arte e educação, Brasília, 2: 19-74,
jan/mar. 1999
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9
os meios" e "uso das tecnologias no ensino", denominado de "Inter-relação Comunicação/
Educação".
Segundo relatório da pesquisa citada, foram identificadas quatro áreas de intervenção com
suas respectivas propostas: educação para a comunicação (reflexão e programas para a
recepção crítica) , mediação tecnológica na educação (reflexão sobre o uso dos meios na
escola), gestão comunicativa (planejamento, execução e avaliação de projetos e programas
de intervenção social no espaço da inter-relação Comunicação/ Cultura/ Educação) e
reflexão epistemológica (estudo do novo campo).
Os exemplos, a seguir, ilustram algumas dessas práticas, voltadas especialmente para as
experiências que ligam criança e televisão, ou que promovem o debate sobre o tema entre
professores, pais e educadores em geral, ou seja, toda a sociedade.
TV Sala de aula (Belo Horizonte/ MG)/ TV Escola ( Baixada Fluminense/RJ)
A Associação Imagem Comunitária - TV Maxambomba desenvolve, desde 1986, atividades
de TV Comunitária em espaços públicos e escolas. Alunos, professores e funcionários
produzem vídeos, escolhendo e apresentando temas de interesse da localidade. Segundo
Rafaella Lima "ao realizar, na escola, práticas da tecnologia televisiva pela comunidade, os
promotores destes experimentos estão propondo que a escola construa um olhar crítico e
participativo frente às imagens da TV massiva e busque olhares múltiplos sobre si própria,
nos programas televisivos realizados por/sobre a comunidade escolar."11
- Rede Mocoronga de Comunicação Popular (Santarém/PA)
Há quinze anos os irmãos Eugênio e Caetano Scannavino atuam junto a comunidades da
região norte do Brasil, capacitando-as para que, com recursos próprios, dominem temas
ligados à educação, saúde, meio ambiente e produção rural e melhorem suas condições de
vida. Faz parte da proposta, ensiná-los a produzir seus próprios programas de televisão.
Surgiu, assim, o Mexe com tudo. Caetano conta que o programa é "feito em três dias,
dentro da própria comunidade, editado e exibido em um telão, lá mesmo. Em vez deles
ligarem uma televisão e já terem um programa pronto, eles produzem um programa de
televisão, no caso um 'vídeo-processo', como a gente chama. Isso desmistifica a questão da
11
LIMA, Rafaela. TV comunitária na escola. In: 2º SIMPÓSIO BRASILEIRO DE TELEVISÃO, CRIANÇA E
IMAGINÁRIO. São Paulo. 1998. p. 103
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10
televisão, porque eles descobrem que um filma aqui, outro filma um outro ali; depois vai
editar tudo o que foi desenvolvido durante o dia."12
- Oficina de vídeo do Projeto "Cala-boca já morreu1! "( São Paulo/SP)
O GENS - Serviços Educacionais desenvolve, desde 1995, uma proposta de Educação Pelos
Meios de Comunicação, que consiste em oferecer oficinas de rádio, vídeo, jornal e internet
para crianças e adolescentes. Na Oficina de vídeo os componentes aprendem a operar
câmera, equipamentos de luz e som, roteirizam, apresentam e acompanham a edição. Os
cinco vídeos de quinze minutos que produziram se transformaram em um programa de TV,
veiculados no Canal Comunitário da Cidade de São Paulo, no final de 97 e início de 98.
Como coordenadora - e psicopedagoga - justifico, assim, a atividade: basta parar um carro
de qualquer emissora de televisão e dele surgirem um cinegrafista e um repórter para que,
rapidamente, um bando de gente os rodeiem, querendo participar do registro jornalístico.
Independente do motivo da matéria, sempre há quem tenha algo a declarar... Afinal, é
preciso saber aproveitar a ocasião para realizar, nem que seja por alguns segundos, o
grande sonho de aparecer na televisão. Quem não tem a "sorte" de ser escolhido para dar
entrevista, arranja um jeitinho de também gozar do mesmo prazer, nem que isto se resuma
em esticar o pescoço para conseguir dar apenas um tchauzinho com a mão...
Por que será que isso acontece com tanta freqüência? Entre outras coisas, porque um
número grande de pessoas comuns, em especial as mais pobres, querem ser colocadas no
mesmo espaço ocupado por gente especial, normalmente considerada bonita, inteligente,
importante, famosa... A tela pode ser considerada como sinônimo de pódio - plataforma
reservada para a apresentação ao público de melhores classificados. Piso elevado onde
ocorre a premiação daqueles que se destacam dos demais. Lugar no qual se recebem
louros, aplausos, palmas, flashes. Muitos flashes. Quem nele sobe se envaidece. Quem de
fora assiste o ambiciona...
Aparecer na televisão é como se ver incluído entre aqueles que merecem ser destacados da
maioria. É uma forma de se sentir premiado com uma medalha de sucesso...
Tal atitude reflete incorporação de valores...que foram aprendidos...num determinado
lugar...para determinados fins...Revelam o quanto a televisão seduz e influencia as
12
Programa Vitrine. TV Cultura. São Paulo, 10.12.2000. Rede Mocoronga de Comunicação.
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pessoas...Bem por isso, é preciso educá-las para que não caiam nas armadilhas tão bem
planejadas por aqueles que a comandam...
Entendo que ensinar crianças a se utilizarem dos equipamentos e se apropriarem da
linguagem televisiva para expressar opiniões, sentimentos e informações específicas do
meio ambiente em que vivem é uma forma de modificar a relação de veneração que têm
pelos meios de comunicação oficiais. Valorizando as próprias falas e fisionomias,
exatamente porque se reconhecerão nelas, elas sairão do lugar de contempladores passivos
de artistas ou personalidades que aparecem como destaques nas mídias e passarão a se
preocupar e valorizar as pessoas mais próximas e a realidade local".13
- "É meu, é seu, é nosso" (PB)
Nilza Simões Corrêa de Albuquerque, do Departamento de Educação da Universidade
Católica de Pernambuco participou do Projeto de extensão "Aprendendo a teleducar",
quando pode coordenar a produção de um vídeo, com duração de cinco minutos,
preservação do meio ambiente escolar, com alunos de primeira a Quarta séries do ensino
fundamental. Para a pesquisadora, a experiência revelou "a microcultura escolar e
possibilitou discutir questões como passividade e interatividade frente às mídias e sobre a
recepção como 'locus' de produção de sentido e construção de conhecimento linguagem
audiovisual."14
- Organização não governamental TVER (São Paulo/ SP)
Essa entidade promove, através da internet, vários debates, entre seus integrantes e os
internautas, como um jeito de ampliar a discussão sobre a mídia televisiva brasileira, bem
como instigar a participação de um número cada vez maior de pessoas sobre os rumos e a
atuação dos empresários da comunicação.
Elaborou também e disponibiliza na web, sob coordenação de Célia Marques, educadora e
ex-consultora de educação da TV Cultura, um material denominado "Cartilha do jovem
telespectador" para formação de receptores críticos, dirigida a alunos e professores dos
13
Projeto "Cala-boca já morreu - porque nós também temos o que dizer!"
ALBUQUERQUE, Nilsa Simões Correa de. É meu, é seu, é nosso - uma experiência de produção de
vídeo na escola. In: 2º SIMPÓSIO BRASILEIRO DE TELEVISÃO, CRIANÇA E IMAGINÁRIO. São Paulo.
1998. p. 59
14
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diferentes níveis de ensino, para ser usada em sala de aula. Para ela, "só com
telespectadores mais críticos a TV comercial vai melhorar a qualidade da programação."15
Professor Donizete Soares, coordenador da Videoteca Internacional de Vídeos produzidos
por crianças e adolescentes, ressalta a importância de práticas como as mencionadas. Ele
acredita que "além de formar para a recepção crítica, em especial, os professores devem se
dispor a coordenar processos educacionais pautados na utilização de equipamentos e
domínio da linguagem dos meios de comunicação, como uma forma de promover uma
educação voltada para a cidadania".16
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentamos até aqui ponderações e práticas que relacionam criança e televisão. Agora, o
que pensam crianças sobre esse assunto?
O Programa Vitrine, da TV CULTURA/SP, especial para o Dia Internacional da Criança no
Rádio e na Tv, do ano 2000, tratou de buscar a opinião de algumas delas sobre questões
ligadas à programação veiculada pela televisão brasileira.
Pensamos ser de valiosa contribuição o detalhamento desse especial.
Data: 10 de dezembro de 2000 - domingo - 15 às 16:30h
Tema: comemoração dos 50 anos da TV brasileira
Formato: variedades. O programa, realizado "ao vivo", apresentou trechos de um debate,
gravado em 02/12/200, com dez crianças e adolescentes, contando com a participação
presencial de alguns deles; veiculou matéria gravada, mostrando experiências de produção
televisiva por grupos de crianças e adolescentes da Rede Mocoronga de Comunicação, do
Amazonas, e recados de crianças dizendo o que mais gostam na TV, entre outros assuntos.
Perfil dos participantes do debate: crianças e adolescentes, procedentes de diversas
realidades sócio-econômicas da cidade de São Paulo: 1 de escola pública; 3 integrantes de
organizações não-governamentais; 4 estudantes de escolas particulares, 1 aluna de Escola
Cooperativa e 1 artista de televisão;
Objetivo do programa: ouvir o que jovens telespectadores pensam sobre a televisão
brasileira
Mediador do debate: repórter Ricardo Cruz
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MARQUES, Célia. Cartilha do jovem telespectador. http://www.tver.org.br
Videoteca Internacional de Audiovisual Feito Por Crianças e Adolescentes, composta de mais de 300
produções do Brasil, Cuba e Argentina.
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Apresentação do programa: Marcelo Tas
TEMAS DO DEBATE, DESTACADOS PELA PRODUÇÃO PARA A APRESENTAÇÃO :
1. Influência da TV sobre o comportamento das pessoas
2. Necessidade de a escola ensinar a ver TV
3. O princípio mercadológico norteadores da programação televisiva
4. Passividade da população brasileira como explicação dos altos índices de audiência de
uma programação considerada de baixo nível cultural;
5. Sexualidade
6. Comparação entre o ensino tradicional, oferecido pela escola, e a qualidade técnica
oferecida pela TV
7. Controle dos pais sobre horário e programação para os filhos
8. Televisão ideal para cada participante
* EM SÍNTESE, AS OPINIÕES SOBRE CADA ITEM
1. A televisão ensina, tanto quanto a escola ou a família. Daí, a necessidade de se entender
melhor a relação que se estabelece entre ela e os receptores;
2. A escola deve incluir televisão entre os conteúdos escolares;
3. Os programas são pautados por índices de audiência. Não assumem compromisso com a
qualidade;
4. A população assiste passivamente não só a TV, mas os fatos políticos, as decisões do
governo sobre os rumos do país;
5.
A) todos concordaram que o tema aparece implícito ou explícito em toda programação,
inclusive a infantil;
B) dois consideraram que isso acontece para garantir audiência;
C) uma participante pontuou que se trata de uma forma de incentivar o consumo (sempre
as cenas acontecem em meio a lençóis, roupas etc "prontos para serem comprados")
D) uma (a artista) diz que cenas de sexo, desde que necessárias, fazem parte das histórias
de amor, assim como da vida, pois "a arte imita a vida";
E) uma menina considera as cenas exageradas, desinteressantes;
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F)
Um
menino,
entre
risos,
diz
ser
"legal"
se
houver
mais
cenas
de
sexo,
mas considera que devem ser passadas após às 22 horas;
G) Os demais não se manifestaram;
6. Apenas uma manifestação: um menino de escola particular começa dizendo que "a escola
é chata", mas completa, sem jeito, "é brincadeira!". Em seguida, afirma que um
determinado professor de sua escola é "bem legal; ele conversa..."
7. Três manifestações unânimes: os pais têm que impor limites.
8. Oito participantes gostariam que houvesse mais desenho; uma adolescente incluiria
programas sobre maio ambiente; um menino de escola particular incluiria mais telejornais.
Todos frisaram que a televisão deveria ter mais programas educativos, do tipo daqueles
veiculados pela TV Cultura.
Apenas três participantes demonstraram estar à vontade para discutir o tema: a pequena
artista, a representante de uma das ONGs e um dos adolescentes, procedente de escola
particular. Desinibidos, os três quase que monopolizaram a conversa; dos sete restantes,
uma permaneceu calada o tempo todo; os demais apenas responderam quando indagados
pelo mediador.
* POSSÍVEIS EXPLICAÇÕES
- O grupo não se conhecia. Interação pressupõe entrosamento;
- O mediador demonstrou não ter familiaridade com promoção de debate com crianças e
adolescentes;
- O tempo de espera para a gravação foi muito longo, cansativo, o mesmo ocorrendo
durante a gravação. Ao todo foram quatro horas de permanência no estúdio.
- O programa pedia que os participantes avaliassem criticamente a TV brasileira, sem
considerar que a maioria da população (e eles não fugiriam à regra) está acostumada a
apenas citar o que vê e contar de quem gosta na TV.
- "Ao vivo", no Domingo, os debatedores se distraíram, se desconcentraram. Nada mais
natural, afinal um estúdio chama muito a atenção para a parafernália de equipamentos e
para a agitada movimentação das pessoas ligadas à parte técnica do programa; somente
quem tem maior familiaridade com a rotina de televisão consegue atender a contento os
objetivos da direção.
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* TRANSCRIÇÃO DE UM TRECHO DO PROGRAMA
Marcelo Tas: "a gente resolveu fazer uma pergunta pras pessoas que mais entendem de
criança na TV - que são as próprias crianças - (sobre) se a TV hoje está "uma bela
porcaria!" ou se ela está fazendo alguma coisa que tem a cara que (das) crianças que vêem
TV. Vamos dar uma olhada no que eles falaram, antes do bate papo, aqui, ao vivo."
(VT é exibido)
Isis (participante de uma ONG) - A gente tá aqui fazendo programa de TV e está
aprendendo; (quando) a gente vai assistir TV, a gente aprende; a gente sai na rua, anda de
ônibus... a gente aprende alguma coisa. Então, em todo lugar a gente aprende: coisas
certas ou coisas erradas. E se a escola ensina coisas erradas, não ensina de uma maneira
que a gente possa discutir televisão - não (falo) deixar de assistir TV - mas discutir
televisão, é claro que a gente vai ser completamente influenciado pela mesma!
Chico (aluno de escola particular de classe média) - Mas aí, não vai ser a televisão que vai
mudar isso. Vai ser a mentalidade da pessoa. A pessoa que tem que mudar. A pessoa tem
que aprender junto com os outros!
Isis - Mas se a pessoa é influenciada pela televisão, como é que a mentalidade dela vai
decidir se ela vai ver programas educativos?
Chico - Aí é que eu acho que é que tem que aprender na escola, em lugares assim... Porque
a TV, ela vai fazer o que der IBOPE. Se der IBOPE, vai ser (feito)... A maioria das TVs
(fazem isso)... São poucas as TVs que não fazem isso.... Se der IBOPE, vai ser matança; se
der IBOPE aquele (programa) Linha Direta.... essas coisas... É por quê? Porque dá IBOPE.
Se parar de dar IBOPE, não vai mais ter o programa. Vai mudar...
Isis - A imprensa manipula do jeito que ela quer que as pessoas vejam. Agora, e quando ela
manipula de um jeito que mostra que o santinho é esse e o vilão é aquele? Porque... a fome
no nordeste é assim, por determinado motivo.... mas um fulano, que é um político resolveu
isso... ou até mesmo o (apresentador) Ratinho, porque ele deu água pro nordeste? É assim?
Com certeza que não! (é manipulação)
Chico - O que eu acho é que a população desmonta isso: quando é carnaval, junta todo
mundo pra fazer o carnaval. Agora, pra reclamar de um programa ou de um político que
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for,
ninguém
faz
nada!
Todo
mundo
deixa.
Brasileiro
deixa
pisar,
deixa...
Repórter Ricardo - Por que você acha isso?
Chico - Não sei... Acho que é uma coisa da cultura...
Repórter - ("brasileiro deixa pisar"... seria por) Preguiça?
Chico - Um pouco também; "queném", na época da ditadura, que todo mundo brigava para
tentar melhorar, para tirar a ditadura. Se fosse hoje, ia demorar muito pra população e
mexer...
Natália (artista de televisão) - Se todo mundo é... se baseasse nas pessoas da televisão e
no que elas fazem, eu acho que... Se muitas novelas estão falando de morte... não sei
(mais) o quê... não sei o que lá... então, a gente faria tudo de errado e a gente faria tudo
da televisão... Então é... se alguém se matou ali, eu vou me matar... Então, esses milhares
de fãs iam se matar... Não! Cada um tem a sua consciência!!!...
Duas observações me parecem oportunas quanto aos pronunciamentos das crianças: uma
sobre o modo como articulam suas falas e estabelecem diálogo e outra, que diz respeito ao
conteúdo do debate que travaram. Ambas evidenciam o quanto a televisão faz parte do seu
universo (fazem parte da geração que cresceu numa fase em que a TV já se consolidara
como uma das formas mais baratas de lazer popular, presente na grande maioria dos lares
dos grandes centros urbanos) e exatamente por esse motivo é um assunto sobre o qual têm
conhecimento e opinião a respeito A organização das orações formuladas pelas crianças não
obedece a lógica formal ensinada por professores e manuais: sujeito + predicado +
complementos. As palavras que usam parecem advir de imagem. Tem-se a impressão que
são elas (as imagens de situações vividas) que definem o que será dito. O pensador
francês, Pierre Babin, caracteriza esse modo de falar como sendo próprio de um outro tipo
de inteligência, desenvolvida nos tempos atuais, em que a presença massiva dos meios
audiovisuais é constante no cotidiano infantil - a inteligência tissular ou analógica.
Esse tipo de inteligência funciona por "comparação". Tem como funções facilitar o
entendimento pela confrontação de situações já conhecidas (função pedagógica) e associar
representações para fazer considerações (função metodológica).
A fala de Isis
"A imprensa manipula do jeito que ela quer que as pessoas vejam. Agora, e quando ela
manipula de um jeito que mostra que o santinho é esse e o vilão é aquele? Porque... a fome
no nordeste é assim, por determinado motivo.... mas um fulano, que é um político resolveu
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isso... ou até mesmo o (apresentador) Ratinho, porque ele deu água pro nordeste? É assim?
Com certeza que não! (é manipulação)"
Serve para entendermos melhor o que foi exposto. "Santinho, vilão, fome, nordeste,
Ratinho, água - todas essas palavras fazem lembrar as novelas mexicanas (que noutro
momento da gravação ela diz gostar), do programa de auditório mais citado pelos
interlocutores. Servem como desencadeadores de seu argumento - o de que não se poder
acreditar piamente no que a tv veicula.
Babin afirma que na inteligência tissular, de fato, "a ecologia, a qualidade de vida, a
convivência em sociedade são realidades que têm mais consistência pela imagem e pela
vida dos pequenos grupos que pelas construções intelectuais"17
O teor das idéias expostas também é muito interessante.
O vigor das vozes e feições e a gesticulação enfática, num primeiro momento, passam a
impressão de que os participantes discordam um do outro. Mas não é bem assim. Isis e
Chico, por exemplo, são unânimes em considerar que: 1) a escola deve se responsabilizar
pela formação de receptores críticos da televisão; 2) o debate é o procedimento mais
adequada para a formação de telespectadores mais conscientes; 3) a programação
televisiva varia de acordo com a audiência medida por pesquisas, entendendo, portanto, o
princípio mercadológico de funcionamento das tevês; 4) nem tudo que a tevê mostra pode
ser entendido como sinônimo de verdade.
Chico enriquece a discussão quando demonstra saber que o comportamento da população
não decorre do poder de influência dos meio de comunicação. Aponta a cultura e a história
como explicadores da preferência e dos procedimentos dos brasileiros.
Natália acrescenta a esses dados apontados pelo colega, um outro que diz respeito às
características e capacidades de discernimento individuais, o que ela chama de "consciência
de cada um".
Tais pronunciamentos, em síntese, nos relembram as afirmações de Elza Dias Pacheco,
quando diz que "a criança não é boba". Ela (criança) consegue diferenciar a ficção da
realidade e emite conceitos, bem como adota comportamentos, conforme os referenciais
17
BUBIN, Pierre & KOULOMDJ, Marie France. Novos modos de compreender. São Paulo: Edições
Paulinas, 1988.
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aprendidos na família - a instituição que é efetivamente responsável pela formação
infantil.18
Contudo, como se trata de apenas uma pequena amostra do que falam crianças e
adolescentes sobre a TV brasileira, não podemos nos iludir de que as opiniões emitidas por
uma amostragem tão pequena, simbolize o pensamento da maioria dos telespectadores
mirins espalhados pelo imenso território nacional. Vale ressaltar a necessidade de que
outros momentos como esse venham a se repetir. Ganharíamos todos: os pequenos
telespectadores que se exercitariam
na leitura
crítica
de TV, os
educadores,
os
pesquisadores do campo da Educação e da Comunicação e também os produtores de TV
que passariam a dialogar diretamente com seu público receptor.
18
PACHECO, Elza Dias. Um Sim à TV. In: A COMUNICAÇÃO NO ESPAÇO EDUCATIVO. São Paulo.
1988. Jornadas de Julho. NCE/ECA/USP e outros.
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