Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini - PPGHC

Transcrição

Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Instituto de História
Programa de Pós-Graduação em História Comparada
MARCELLO SCARRONE
Tese
NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA
MUSSOLINI
PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA
CAPITAL FEDERAL (1922-1945)
RIO DE JANEIRO
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Instituto de História
Programa de Pós-Graduação em História Comparada
Doutorando
Marcello Scarrone
Orientador
Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva
Tese
NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA
MUSSOLINI
PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA
CAPITAL FEDERAL (1922-1945)
RIO DE JANEIRO
2013
i
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Instituto de História
Programa de Pós-Graduação em História Comparada
Doutorando
Marcello Scarrone
Orientador
Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Historia Comparada
da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutor em História Comparada
NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA
MUSSOLINI
PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA
CAPITAL FEDERAL (1922-1945)
RIO DE JANEIRO
2013
ii
Scarrone, Marcello
S286n
Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini: percursos políticos
do Antifascismo italiano na Capital Federal (1922-1945) / Marcello
Scarrone. __ Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
f. 290
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC
Orientador: Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva
1. Antifascismo 2. Fascismo 3. Trajetória Política 4. Biografia 5.
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em
História Comparada I. Título.
iii
Agradecimentos
Chegado ao ponto final do caminho, meu agradecimento vai em primeiro lugar para
meu orientador, que com seus conhecimentos, sua sabedoria e paciência me
acompanhou nos anos de pesquisa e de trabalho. Se a função principal de um orientador
é apontar para o norte, o prof. Francisco Carlos sempre foi generoso em indicações,
todas preciosas e determinantes. A ele devo uma abordagem, não somente do tema e do
assunto desse trabalho, mas também de toda a disciplina histórica segundo linhas e
sensibilidades em nada engessadas em rígidos esquemas acadêmicos.
Agradeço aqui também o professor Alberto De Bernardi, que foi co-orientador da
pesquisa na Itália e o professor Ângelo Trento, pioneiro investigador da emigração
italiana para o Brasil e de sua componente antifascista. Suas sugestões e
encaminhamentos forneceram maiores horizontes ao projeto inicial.
O apoio do programa de História Comparada há de ser aqui registrado assim como o do
CNPq, ao qual devo a bolsa que me permitiu pesquisar nos arquivos italianos. Desses
mesmos arquivos gostaria de agradecer funcionários e diretorias, particularmente da
Fondazione Feltrinelli de Milão, do Archivio Centrale dello Stato de Roma e do
florentino Istituto Storico della Resistenza in Toscana, cujas indicações e auxílios na
pesquisa foram fundamentais. Um “grazie” profundo por sua disponibilidade a duas
pessoas de Castel Bolognese, terra natal de Garavini: o responsável da Biblioteca
Libertária, Gian Pietro Landi, e a filha de Nello e Emma, Giordana, que nos permitiu
ver preciosos documentos dos pais, além de conceder uma entrevista. Minha gratidão
se estende também aos responsáveis dos acervos brasileiros, entre os quais gostaria de
destacar a disponibilidade do Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro de São Paulo, que
gentilmente concedeu a digitalização completa do periódico La Difesa, e à bisneta de
Giuseppe Scarrone, Amneris, moradora da Tijuca, e à filha dela, Ana Lúcia Frusca, às
quais devo algumas informações e materiais de arquivo.
Um agradecimento especial vai aos meus pais, cujas histórias de vida juvenil se
passaram em parte em tempos de fascismo. A pergunta, nem sempre formulada para
eles, mas que me acompanhou por anos, era sobre como fosse a existência cotidiana
debaixo do regime, e como, mesmo numa tranquila vida provinciana, pudessem ser
cultivados sentimentos de repulsa e oposição a ele. O percurso existencial de quem,
como meu pai, foi obrigado a servir no exército e, após a campanha da Grécia, enviado,
iv
prisioneiro dos alemães, para um campo de concentração, se entrelaça com os de muitos
outros, jovens como ele, cujas vidas foram marcadas pela guerra. À memoria dele, de
seu testemunho, são dedicadas estas páginas, assim como ao cotidiano e ainda hoje
presente exemplo de minha mãe, que também atravessou a brutalidade daqueles anos.
À minha esposa Ana Lúcia, ao seu constante apoio e à sua presença discreta nos longos
anos de trabalho, compartilhando tempos de pesquisa e dias e noites de redação do
texto, meu obrigado de coração: também graças a ela, de verdade, tudo isso foi possível,
desde o começo e até aqui. A recompensa de tanto esforço está na certeza de que valeu a
pena, pelo crescimento de nossa unidade e de nosso amor.
v
Reconstruir mundos é uma das tarefas essenciais do historiador, e ele não a empreende pelo
estranho impulso de escarafunchar arquivos e farejar papel embolorado – mas para conversar
com os mortos. (...) Se rompermos todo contato com mundos perdidos, estaremos condenados a
um presente bidimensional e limitado pelo tempo: achataremos nosso próprio mundo.
ROBERT DARNTON, Boemia literária e Revolução, 1987.
Essa misteriosa circunstância pela qual as coisas do nosso passado continuam existindo mesmo
quando saem do raio da nossa vida, e, aliás, amadurecem, trazendo novos frutos a cada estação,
para uma colheita da qual não sabemos mais nada.
A persistência ilógica da vida.
ALESSANDRO BARICCO, Esta história, 2007.
vi
Resumo
O presente trabalho investiga tentativas, realizações, e atuações do mundo do
antifascismo da colônia italiana do Rio de Janeiro durante os anos de 1922 a 1945,
focalizando de modo especifico três percursos políticos e existenciais, o do socialista
Giuseppe Scarrone, o do republicano Libero Battistelli e o do anarquista Nello Garavini,
emigrados da Itália para a Capital Federal em tempos diferentes, e atuantes cada um
deles com modalidades próprias, mas tendo como comum denominador a oposição ao
regime de Mussolini e a luta contra a presença do fascismo no mundo e também no
Brasil. A reconstrução dos três percursos, a evidenciação de suas diferenças,
peculiaridades, semelhanças e analogias, se configura como um estudo no âmbito
específico da história política do antifascismo, e, através da análise de três biografias
significativas, se apresenta como uma contribuição ao discurso próprio da história
comparada.
vii
Abstract
The following thesis investigates attempts, realizations and operations of the antifascist
world of the Italian colony in Rio de Janeiro from 1922 until 1945. It focuses
specifically on three political and existential pathways; firstly the one followed by
Giuseppe Scarrone, secondly the one followed by Libero Battistelli and thirdly the one
followed by Nello Garavini. They migrated from Italy to the Brazilian federal capital in
different time periods, acting in different modalities, but with their opposition to the
Mussolini regime and their fight against the presence of fascism in the world and in
Brazil as their common denominator. The reconstruction of the three pathways, the
disclosure of their differences, peculiarities, similarities and analogies, is configured as
a study of the political history of antifascism, and is presented, through the analysis of
three significant biographies, as a contribution to a discourse characteristic of
comparative history.
viii
Riassunto
Il presente studio ha per oggetto tentativi, realizzazioni e azioni del mondo
dell’antifascismo della colonia italiana di Rio de Janeiro nel período che va dal 1922 al
1945, centrando l’attenzione in modo speciale su tre percorsi politici ed esistenziali,
quello del socialista Giuseppe Scarrone, quello del repubblicano Libero Battistelli e
quello dell’anarchico Nello Garavini, emigrati dall’Italia verso la Capitale Federale
brasiliana in tempi diversi, e avendo ciascuno di loro modalitá proprie di esercizio, ma
avendo come denominatore comune l’opposizione al regime di Mussolini e la lotta
contro la presenza del fascismo nel mondo e anche in Brasile. La ricostruzione dei tre
percorsi, la messa in luce delle loro differenze, peculiaritá, somiglianze e analogie, si
configura come uno studio nell’ambito specifico della storia politica dell’antifascismo,
e, attraverso l’analisi di tre biografie significative, si presenta come un contributo al
discorso proprio della storia comparata.
ix
Sumário
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 1
1.
PRIMEIRA PARTE
Balanço da historiografia do inimigo comum ..... 9
1.1. Olhando para o inimigo comum ................................................................ 9
1.2. Antifascismo: um debate polêmico ........................................................... 25
1.3. Situando o antifascismo no tempo e no espaço ......................................... 28
1.4. Antifascismo: definição, significado, valor .............................................. 38
1.5. Antifascismo em terra de exílio ................................................................ 49
1.6. No Brasil ................................................................................................... 55
2.
SEGUNDA PARTE Giuseppe Scarrone ................................................ 66
2.1. “Um velho” ............................................................................................... 66
2.2. Na Itália: cinquenta anos de lutas .............................................................. 68
2.3. Fabricando vidro no Rio de Janeiro ........................................................... 71
2.4. Imigração italiana e a Capital Federal ....................................................... 77
2.5. Cartas e opúsculos contra o fascismo ....................................................... 79
2.6. Primeiros passos do antifascismo na colônia ........................................... 89
2.7. 1926: processo e condenação .................................................................. 96
2.8. Scarrone e La Difesa ............................................................................... 99
2.9. O antifascismo no Rio se organiza ..........................................................105
2.10. Continuando a batalha (1927-1929) .......................................................109
2.11. Anos de crise ...........................................................................................116
2.12. De volta à trincheira ................................................................................120
2.13. Últimos anos ............................................................................................124
x
3.
TERCEIRA PARTE
Libero Battistelli ...................................................128
3.1. A realidade do exilio ................................................................................. 128
3.2. Um empenho que vem de longe ............................................................... 130
3.3. Primeiros tempos no Rio de Janeiro .......................................................... 137
3.4. A colaboração com La Difesa ................................................................... 142
3.5. No mundo associativo carioca ................................................................... 152
3.6. Protagonistas e coadjuvantes ...................................................................... 158
3.7. Conectado com o antifascismo internacional ............................................. 161
3.8. A viagem de 1930 ...................................................................................... 165
3.9. De volta ao Rio: convergências e divergências .......................................... 169
3.10. Um intelectual ............................................................................................ 175
3.11. Vida pública e vida privada ........................................................................ 184
3.12. 1933-34. Tempos de mudanças: internacionais, nacionais e pessoais ....... 188
3.13. 1935. Um ano e tanto (?) ...........................................................................
196
3.14. Rumo à Espanha .......................................................................................... 205
3.15. Epílogo ....................................................................................................... 215
4.
QUARTA PARTE
Nello Garavini ............................................................ 221
4.1. Politica e luta pela sobrevivência .................................................................. 221
4.2. Anos italianos ............................................................................................... 222
4.3. Observações sobre o relato autobiográfico ................................................... 224
4.4. Primeiros anos no Rio
................................................................................. 226
4.5. Os “pouquíssimos companheiros” ................................................................ 230
4.6. No Hotel Gloria ............................................................................................. 233
4.7. Uma rede de relações internacionais ............................................................ 235
4.8. Emma ........................................................................................................... 239
xi
4.9. A Minha Livraria ............................................................................................ 244
4.10. O amigo mais querido .................................................................................... 249
4.11. Tempos de guerra ............................................................................................ 251
4.12. O Comitê antifascista italiano ......................................................................... 258
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................
262
ACERVOS E BIBLIOGRAFIA .......................................................................... 275
xii
1
INTRODUÇÃO
1. A progressiva e cada vez mais rígida implantação do Estado fascista na Itália,
sobretudo a partir dos anos 1925-26, levou gerações de opositores do regime a escolhas
dramáticas: muitas vezes a alternativa estava entre a luta clandestina em pátria, com a
constante ameaça da prisão ou do confinamento em ilhas remotas da península por
motivos políticos, e o exílio no exterior – com um conjunto de fatores familiares e
profissionais influindo na escolha por uma ou outra das possibilidades. Além do refúgio
na próxima França, principal meta do antifascismo no exílio, ou em outros países
europeus, vários expoentes da resistência ao regime de Mussolini atravessaram o
Atlântico, tendo como destino sobretudo Uruguai, Argentina e também o Brasil.
Laços familiares e redes de amizades acolheram e alimentaram a vida e a atuação dos
exilados em terra brasileira, onde já existiam ativas colônias de emigrados italianos, em
parte ainda com fortes laços com a pátria mãe e em parte voltadas para um maior
enraizamento com a comunidade local. Colônias estas onde a simpatia de muitos para o
fascismo, alimentada pelos organismos de representação oficial do governo italiano, se
defrontava com a indiferença de outros e com a oposição ativa de setores, grupos e
movimentos organizados.
Na denúncia do cerceamento das liberdades realizado pelo regime de Mussolini e na
luta contra o mesmo, o antifascismo italiano no Brasil encontrava interlocutores,
companheiros de caminho e aliados em ambientes, organizações e partidos da esquerda
nacional, nas suas diferentes vertentes socialista, anarquista, comunista, aliancista, com
suas tradições políticas de origem antiga ou mais recente, e variamente empenhadas na
sociedade brasileira, particularmente a partir do mundo do trabalho.
A presença e a ação de grupos e ambientes do antifascismo italiano no Brasil têm sido
objeto de investigação e de produção historiográfica principalmente no que diz respeito
ao Estado de São Paulo, cuja numerosa colônia italiana e a intensa rede de relações e
atividades nela existente para difundir os ideais de resistência e luta ao regime
mussoliniano foram amplamente analisadas, sobretudo através das pesquisas de João
Fábio Bertonha.
Sob esse ponto de vista, a realidade do antifascismo italiano no Rio de Janeiro aparece
com menor destaque seja na pesquisa historiográfica seja quanto ao peso efetivo e à
expressividade de suas iniciativas e ações. Menor o número dos antifascistas refugiados
na Capital Federal, menor a consistência da coletividade de origem italiana presente,
2
menos patentes suas iniciativas de propaganda, de denúncia, de luta. Mesmo assim, em
seu seio, é possível identificar e caracterizar percursos, tentativas, realizações que
tornam significativo seu estudo. A proximidade intensa e perigosa da comunidade
italiana no Rio de Janeiro com os ambientes da embaixada e mais em geral do mundo
diplomático da Capital, com sua preocupação de vigilância e controle, e o convívio dos
grupos antifascistas com o centro do poder politico nacional depõem em favor da
possibilidade de mapear interessantes singularidades.
Além disso, toda experiência de exilio por motivos políticos traz em si características e
modalidades de exercício que questionam e instigam quem se aproxima dela com olhar
investigativo e participativo. Assim é o caso também da realidade da emigração italiana
antifascista para o Rio de Janeiro, independentemente de sua consistência numérica ou
de seus resultados efetivos. Talvez possa até se afirmar que sua atuação teve um “peso
específico” significativamente maior que a de qualquer outro lugar do Brasil.
O presente trabalho não se propõe de oferecer um quadro analítico exaustivo dessa
realidade.
Ambientes,
realizações,
tentativas,
dinâmicas,
questionamentos
do
antifascismo de origem italiana no Rio de Janeiro estão aqui presentes como pano de
fundo e horizonte de compreensão. Seu objetivo primário é a reconstrução de três
“percursos” e a tentativa de uma comparação entre eles. São os percursos de três
antifascistas italianos que, devido a sua identidade e militância, viveram anos de exilio
de sua terra de origem na Capital Federal brasileira. O estudo da atuação da cada um
deles, investigado em sua singularidade e colocado no contexto mais amplo da
componente antifascista da colônia italiana, junto a uma atenção voltada para
surpreender analogias, diferenças e especificidades, constitui o interesse que conduziu
nossa pesquisa.
2. Tanto o caminho de Scarrone, empresário do vidro, socialista, expoente da velha
emigração italiana para o Brasil, quanto os trajetos do anarquista Garavini e do
republicano Battistelli, aqui aportados em meados da década de 20, reconstruídos em
suas linhas principais e analisados a partir de uma série de questionamentos iniciais,
permitem uma compreensão, ainda que limitada e parcial, do que significasse ser
antifascistas no exilio do Rio de Janeiro.
A escolha dos três percursos se deve, de um lado, a um papel de destaque que
efetivamente eles tiveram no âmbito da coletividade italiana da cidade, do outro, à
maior riqueza de fontes e documentação disponível para reconstruí-los. Um terceiro
3
fator guiou a individuação dos percursos: a possibilidade de uma comparação entre
opções e identidades politicas diferentes, em seu posicionamento perante o fascismo e
modalidades de luta contra ele.
Com efeito, algumas perguntas orientaram desde o inicio o caminho da pesquisa e a
forma de se defrontar com as fontes disponíveis e as que surgiram ao longo da
investigação. Antes de tudo, o questionamento sobre as especificas modalidades e
formas de luta que cada um dos três antifascistas adotou em seu percurso, pelo fato de
proceder de identidades politicas diferentes e de pertencer a gerações também
diferentes. Junto com isso, a pergunta sobre as conexões de cada um com o mais amplo
debate do antifascismo italiano, e também não italiano, no Brasil e no resto do mundo,
ou seja, através de quais redes de relações se alimentasse sua vontade de resistência ao
fascismo, suas determinações, sua própria fé politica. Trocas, intercâmbios, referências,
apoios, tanto no âmbito nacional como no internacional. Nesse sentido, a delineação,
ainda que de forma rápida e sintética, de figuras colaterais do antifascismo de origem
italiana atuantes na capital Federal se tornou uma inevitável modalidade de oferecer
respostas a esse tipo de questionamento.
Uma atuação antifascista com características próprias, devido a histórias pessoais e
pertencimentos diferentes, que se articulava com o enraizamento no tecido urbano do
Rio de Janeiro dos anos de 1920 a 1945. Como se configurou, nesse sentido, a atuação
de Scarrone, Garavini e Battistelli em relação ao contexto da cidade, a suas dinâmicas
sociais ou suas dimensões político-econômicas? Quais as contribuições próprias de sua
ação como antifascistas, portanto fruto de suas escolhas e opções politicas, para a vida
da cidade e do país que os abrigou?
3. O trabalho se insere no contexto dos estudos políticos sobre o mundo do antifascismo
italiano, particularmente daqueles que tratam da emigração antifascista. Por isso ele
dialoga com as contribuições mais significativas apresentadas pela historiografia,
particularmente de origem italiana, mas não só. O balanço da historiografia do
antifascismo italiano apresentado na primeira parte quer situar o trabalho no âmbito
mais largo deste debate. Trabalho de história politica, com efeito, em tempos de
retomada de significado e valor desta vertente historiográfica.
Trabalho, contudo, que escolhe a modalidade da discussão em torno de três casos, da
reconstrução narrativa de três percursos de vida e de luta: não ‘biografias’ no sentido
mais clássico e tradicional do termo, mas elaboração de perfis que partilham de um
4
mesmo tempo e um mesmo espaço geográfico. De todo modo, queremos nos colocar em
diálogo com as provocações de Lawrence Stone, que no começo da década de 1980
pregava a volta da narrativa histórica. Como afirma Giovanni De Luna, reside
justamente no modelo narrativo definido por Stone, e em seus elementos principais, a
possibilidade autentica de unir as ambições científicas da argumentação histórica com a
eficácia interpretativa de um percurso literário. Reconstruir vidas, como as três que
compõem o cenário deste trabalho, significa também narrar passos, realizações, dúvidas,
tentar oferecer a percepção de existências que se questionam diante de circunstâncias e
possibilidades. Antoine Prost recorda que o passado contem também um tempo futuro, a
ser entendido como horizonte de possibilidades: o futuro dos biografados, que muitas
vezes se esvai na dura reconstrução cronológica das etapas, estava ainda presente diante
de cada um deles, na hora de suas escolhas. E a própria Vavy Pacheco Borges, como já
Carlo Ginzburg em vários de seus escritos, alerta a reter como significativo, numa
narração biográfica, não somente o documentado, mas também o não dito, as incertezas
intuídas, ou as possibilidades perdidas.
Instigante é sem dúvida, para uma investigação como esta, a desenganada afirmação de
Bourdieu segundo a qual toda construção biográfica não passaria de uma ilusão, devida
ao fato de querer compreender uma vida unicamente como sucessão de eventos cuja
única constante de referência seria um nome próprio; ilusão análoga àquela de quem
tentasse se dar conta de um trajeto de metrô sem conhecer a estrutura da rede e as
diferentes estações. Longe, então, do pesquisador, a pretensão de possuir e penetrar de
forma completa o percurso de uma existência, conserva-se, todavia, a vontade de
surpreender uma liberdade em ação, em seu “caráter intersticial” para usar a expressão
de Giovanni Levi, na relação entre biografia (isto é, biografado) e o contexto em que se
move.
Nesse sentido, como horizonte de referência para nossa tentativa, as produções
historiográficas de Robert Darnton, Lucien Febvre e Carlo Ginzburg funcionaram como
exemplo e ao mesmo tempo paradigma. Tanto a tentativa de reconstrução da “curva de
um destino” no caso da biografia de Lutero do historiador francês, como o conjunto de
esboços do americano sobre a boemia literária pré-revolucionária, voltado a restituir os
“desaparecidos nos inescrutáveis escaninhos da historia”, estiveram presentes diante de
nosso percurso para proporcionar pontos de comparação e pistas de trabalho. Assim
como foi indicação de um caminho, possível a ser percorrido, a restituição à vida e ao
5
público conhecimento da história de Menocchio, operada pelo pesquisador italiano, com
seu uso articulado das fontes e o exercício de imaginação oferecido pelo pesquisador. A
esse respeito, por envolver caminhos individuais e experiências pessoais, e por
configurar-se de certo modo como uma redução da escala de observação para oferecer
luz também ao contexto mais amplo, o presente trabalho dialoga com as práticas
historiográficas típicas da micro-história. Embora não assumindo esta aproximação
como marco referencial direto do trabalho, a narrativa micro-histórica e seus exemplos
mais conhecidos, como o de Ginzburg, entraram no seu mais amplo horizonte de
referências.
Ulterior, mas não menos importante, referência do trabalho é constituída pela história
dos intelectuais. Battistelli, de modo particular, e, em formas diferentes, também
Garavini e Scarrone atuavam e se articulavam como intelectuais, embora somente o
primeiro possa ser definido como tal a todos os efeitos, reservando para Scarrone a
também sugestiva aproximação com o mundo da intelectualidade underground,
investigada para outros climas e temporalidades por Darnton. Nesse âmbito, foram
sobretudo as contribuições de Sirinelli que se constituíram como horizonte de
compreensão.
A pesquisa se coloca no âmbito teórico da história comparada. O principal nível de
comparação está entre os percursos diferentes vividos pelos três antifascistas italianos
que constituem o objeto do estudo. Uma comparação que visa por em evidência
semelhanças e diferenças, analogias e descontinuidades dos caminhos políticos,
inspirados por linhas ideológicas e políticas diversas. Como pano de fundo há vários
outros níveis de comparação, embora não colocados explicitamente como objetivo da
pesquisa: entre o movimento antifascista italiano no Rio de Janeiro e o do resto do
Brasil, entre o mesmo e a oposição ao fascismo em outras nações, e enfim entre esse
movimento e o ambiente político da esquerda antifascista brasileira, mais
especificamente da cidade do Rio de Janeiro. A comparação é então realizada
certamente entre ‘comparáveis’, como os três percursos políticos em questão, mas ela se
alimentou das práticas e dinâmicas de constante comparação experimentadas e
realizadas no âmbito do Programa de Pós-graduação, onde sugestões de ordem teórica,
metodológica e também de conteúdo contribuíram para os resultados do trabalho.
6
4. Vem a este ponto o que idealmente deveria ter sido colocado no principio, por ser de
fato o responsável do empreendimento que aqui encontra sua finalização. As razões
específicas que levaram à escolha do tema e de seus recortes.
Sem comentários é a importância que para a história italiana o advento do fascismo na
década de 1920 e o regime por ele implantado representam, assim como, do outro lado,
as vicissitudes da luta antifascista, no país e no exterior. Essa longa conjuntura histórica
constitui ainda hoje um ponto de debate no âmbito do pensamento politico italiano e da
reflexão mais ampla da sociedade em seu conjunto. Para mim, crescido em anos de pósfascismo, de liberdade e democracia, aquela temporada se configurava como um
passado ao qual dirigir perguntas e questionamentos. A experiência de meu pai, sua
passagem pelo conflito através da campanha da Grécia e consequente confinamento em
campos alemães de prisioneiros de guerra por alguns anos, também se tornava sempre
um motivo de indagação, assim como as razões que levaram inteiras gerações a aceitar,
tolerar ou enfrentar abertamente o regime de Mussolini.
Já na dissertação de mestrado o fascismo e os questionamentos a respeito de seu regime
foram colocados ao centro do interesse, no estudo do diário do Ministro Ciano e de sua
pretendida tomada de distâncias de Mussolini em ocasião da eclosão do conflito em
1939-40. Agora, a perspectiva de afundar o olhar mais diretamente no mundo da
oposição e da resistência ao fascismo se tornava concreta, na medida em que apareciam
diante de mim, ao ler e pesquisar sobre os antifascistas italianos atuantes no Brasil,
pessoas cujos percursos revelavam aspectos e dimensões particularmente interessantes.
Um deles inclusive carregando o meu mesmo sobrenome, embora sem laços de
parentesco comigo (em seguida fui descobrindo que dois irmãos de meu avô, ambos
Scarrone, emigraram, naqueles anos, um para a França e outro para os Estados Unidos,
mas esta era, e ainda é, outra história).
A tudo isso se somava o interesse para figuras que carregavam em si uma dupla
pertença: à Itália, como terra de origem, e ao Brasil, país de acolhida. A condição do
emigrante, assim como do exilado, caracterizando os três, e muitos outros, se
aproximava, com as devidas distinções, à minha condição pessoal. Eu também
partilhando de duas referências identitárias em termos geográficos, linguísticos,
culturais; como outros homens de fronteira, chamado a um duplo pertencimento.
5. As razões acima apresentadas alimentaram os caminhos da pesquisa, realizada em
arquivos italianos e brasileiros, onde a documentação destes homens de fronteira ficou
7
recolhida. Dados sobre chegadas e partidas de vapores, fontes policiais, opúsculos,
livros e panfletos impressos, correspondências, registros de atividades comerciais,
fontes jornalísticas, memórias, depoimentos: a diversidade das fontes documentais
exigiu atenções particulares em sua interpretação e leitura. Seu levantamento, registro,
análise e sistematização, e sucessiva reelaboração, acompanhados pelo trabalho sobre a
bibliografia secundaria, permitiu a delineação dos três percursos políticos e existenciais
e a redação final.
Ela aqui se articula da seguinte forma.
A Primeira Parte oferece um balanço da historiografia do antifascismo italiano. Após
reconstruir as principais linhas interpretativas do fascismo, se introduz a temática do
antifascismo, seu significado, suas vertentes, seus marcos cronológicos, e os debates
sobre os quais a historiografia do mesmo se empenhou, dando espaço para a elucidação
das suas mais recentes contribuições. Um espaço a parte é dedicado ao antifascismo da
emigração, à sua historiografia, e à produção relativa ao caso brasileiro.
A Segunda Parte apresenta o percurso de Giuseppe Scarrone, desde suas primeiras
iniciativas socialistas e cooperativistas na Itália até sua emigração para o Brasil, ainda
em 1911. A implantação no Rio de Janeiro da Fábrica Nacional de Vidros com suas
propostas de participação operária nos lucros, de um lado, e sua atuação como
antifascista, sobretudo através da produção e difusão de inúmeros opúsculos, cartas
abertas e panfletos, do outro, formam o corpo central desta parte, que acompanha o
empresário também em sua condenação pela justiça do regime, assim como documenta
de forma mais destacada os primeiros passos do antifascismo italiano na Capital
Federal.
Na Terceira Parte, mais extensa, em função sobretudo do maior volume documentário, é
investigado o caminho de Libero Battistelli, advogado republicano, aportado ao Rio de
Janeiro em 1927 com esposa
e cunhados. O seu intenso e refinado empenho
antifascista, sua rica produção de artigos e ensaios, a colaboração com vários
instrumentos da rede internacional do antifascismo, sua participação em iniciativas e
associações constituem a parte principal desta seção, que permite compreender
dificuldades, problemas e realizações do antifascismo italiano no Rio em seus anos de
maior vitalidade. A seção analisa também a adesão de Battistelli ao movimento de
Giustizia e Libertá e sua participação na guerra civil espanhola.
A Quarta Parte acompanha o percurso de Nello Garavini, anarquista, em seus anos
italianos e depois em seu exilio na Capital Federal a partir de 1926, junto com a esposa.
8
A participação nas atividades da Liga Anticlerical, os contatos com os ambientes
libertários da cidade e com amigos anarquistas fora do Brasil, o empenho na livraria e
editora durante os anos mais difíceis do governo Vargas, e as tentativas de uma
presença antifascista dos italianos em tempos de guerra são as linhas de reflexão e
análise que compõem esta seção.
Algumas considerações finais permitem um olhar de síntese sobre os percursos
individuais, favorecendo uma análise comparativa dos mesmos e oferecendo elementos
para uma melhor leitura de conjunto do antifascismo italiano na Capital Federal.
Grande parte das fontes (ensaios, opúsculos, artigos de La Difesa e outros periódicos
antifascistas, correspondências, fontes de polícia italianas) foram produzidas no idioma
italiano. No presente trabalho, elas são citadas ou transcritas no idioma português, a
partir de uma nossa tradução.
9
1. PRIMEIRA PARTE / Balanço da historiografia do antifascismo italiano
1.1.
Olhando para o inimigo comum
O Estado autoritário que se estabeleceu na Itália a partir do outubro de 1922, antes como
liderança fascista de uma coalizão de partidos de cunho conservador, e depois, a partir
da virada de 1925-26, como exercício absoluto do poder por parte de Mussolini e do
Partito Nazionale Fascista, foi implantado através de progressivas medidas legislativas
e policiais que restringiam as liberdades fundamentais dos cidadãos, proibiam
associações e organizações de oposição, amordaçavam ou condicionavam os meios de
comunicação, criavam o Tribunal Especial e o degredo policial. Esse Estado
representou o inimigo contra o qual, durante mais de vinte anos, na Itália ou em terras
estrangeiras, grupos organizados, seções de partido, agremiações ou simples homens e
mulheres combateram, usando dos mais variados meios de propaganda e luta.
Se o percurso através do qual o fascismo chegou a consolidar seu poder na península,
tomando posse cada vez maior do Estado e de suas estruturas, centrais e periféricas, é
bastante conhecido, tendo sido objeto de inúmeros estudos monográficos ou
comparativos,1 mais importante para os fins de nosso trabalho analítico se configura a
discussão acerca das características fundamentais do fascismo italiano, à luz de algumas
1 Particularmente vasta é, evidentemente, a contribuição da historiografia italiana a respeito. Entre as
obras mais significativas: AQUARONE, Alberto. L’organizzazione dello stato totalitário. Torino: Einaudi,
1995 (1ª ed. 1965). DE FELICE, Renzo. Mussolini, Il fascista, II – L’organizzazione dello Stato fascista (
1925-1929), Torino: Einaudi, 1969. ------ Mussolini, il duce / I. Gli anni del consenso (1929-1936). Torino:
Einaudi, 1974. -------- Mussolini, il duce / II. Lo stato totalitário (1936-1940). Torino: Einaudi, 1981. LUPO,
Salvatore. Il fascismo. La política in um regime totalitario. Roma: Donzelli, 2000. DE BERNARDI, Alberto.
Una dittatura moderna. Il fascismo come problema storico. Milano: Mondadori, 2001. GENTILE, Emilio.
La via italiana al totalitarismo. Il partito e lo stato nel regime fascista. Roma: Carocci, 2001. PALLA,
Marco (org.). Lo stato fascista. Milano: La Nuova Itália, 2001. Entre os mais recentes trabalhos não
italianos disponíveis em língua portuguesa TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Os fascismos”. In REIS,
Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (org.). O século XX. Vol. II. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000, 109-164. PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
PARADA, Mauricio (org.) Fascismos: conceitos e experiências. Rio de Janeiro: Mauad, 2008. MANN,
Michael. Fascistas. Rio de Janeiro: Record, 2008. MILZA, Pierre. Mussolini. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011. SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do fascismo. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
Sobre a discussão a respeito do Estado fascista italiano e de suas principais estruturas, me permito
também indicar a primeira parte de minha dissertação, “Na rede do poder fascista, entre diplomacia e
razão de Estado. Pensamento e atuação do ministro italiano das Relações Exteriores Galeazzo Ciano, à
luz de seu Diário (1937-1940), na véspera do segundo conflito mundial”. Rio de Janeiro: PPGHC / UFRJ,
2008.
10
das principais contribuições da historiografia internacional sobre o assunto. Afinal, se
de antifascismo e antifascistas se tratará no presente trabalho, há de se apontar para os
que são os traços constitutivos do fenômeno fascista, surpreendidos antes de mais nada
na realidade italiana, e, como corolário necessário para uma melhor compreensão do
mesmo, em seu contexto internacional.
Contudo, antes de enfrentar a análise das linhas interpretativas do fascismo presentes na
mais recente historiografia, e como abertura de discurso sobre o que ele representou na
visão e na vida de gerações de antifascistas, pode ser interessante apresentar, em suas
linhas gerais, mesmo correndo o risco de uma simplificação excessiva, as compreensões
que do fenômeno fascista foram elaboradas já a partir do início da década de 1920 pelos
próprios opositores dele, no ambiente de um antifascismo italiano que de incipiente ia
se fazendo cada vez mais articulado e organizado. Em que medidas e segundo quais
percursos essas leituras influenciarão a sucessiva historiografia do antifascismo,
produzida após a conclusão da segunda guerra mundial, será analisado e discutido mais
para frente. Igualmente tornar-se-á útil retomar uma ou outra dessas leituras na segunda
parte de nosso percurso investigativo, quando da análise das fontes recolhidas a respeito
dos três antifascistas italianos objeto de nosso estudo. Por enquanto, cabe aqui o
registro, em termos comparativos, dessas interpretações do fascismo, quase retratos
falados do inimigo, esboçados a lápis e difundidos antes que uma imagem captada por
uma câmera o fotografe e tente restituí-lo com maior evidencia de detalhes: tal registro
será feito a partir de sínteses elaboradas pela historiografia que se debruçou sobre os
documentos produzidos pelo mundo do antifascismo, sobre as quais o consenso dos
estudiosos é praticamente unanime, abrindo-se o debate eventualmente acerca da maior
ou menor capacidade de um retrato ou de outro, de uma leitura ou de outra, em
caracterizar o fascismo em seu tempo.
As interpretações do fascismo que foram desenvolvidas e elaboradas desde os primeiros
anos após o surgimento dele e particularmente depois de sua implantação na Itália como
regime ditatorial e liberticida, e que parte da historiografia chega a apelidar de
“clássicas” ou “paradigmáticas”, podem ser esquematicamente reconduzidas a três
grandes linhas explicativas.2
2
Nesse percurso através das principais linhas interpretativas do fenômeno fascista elaboradas no
âmbito dos opositores do mesmo, no período do entreguerras, será usada uma tripartição reproduzida
11
Em âmbito liberal-conservador, o fascismo foi frequentemente descrito como incidente
e/ou acidente, como expressão de uma “doença moral” que acometera a Itália liberal e
do qual, mais cedo ou mais tarde, o país encontraria formas e modos para se libertar.
Fascismo, então como irrupção imprevista e imprevisível de algo externo ao Estado
liberal, algo comparável com as invasões bárbaras que tomaram de assalto o vacilante
império romano do século V, ou melhor, numa comparação formulada por Benedetto
Croce, com a invasão dos Hyksos, o povo de origem asiática que se infiltrara no reino
egípcio em meados do segundo milênio antes de Cristo, dominando-o pelo espaço de
algumas dinastias: invasão misteriosa, seja em seu inicio como em seu encerramento,
penetração de um povo que veio do nada e ao nada voltou, cuja evocação reforçava a
convicção de uma passagem rápida do fascismo pelo país, que, uma vez rechaçados os
intrusos, voltaria sem muitos problemas ao velho sistema liberal. Neste mesmo âmbito
de considerações, outra metáfora usada, e de formas diferentes reelaborada, foi a do
fascismo como parêntese, exatamente para significar suas escassas ou nulas
possibilidades de permanência e incidência no tecido político, social e cultural italiano,
que, após sua chegada e sucessivo desaparecimento, tornaria a ser moldado pela
mentalidade e pela lógica do liberalismo.
Quanto de improvável uma análise desse tipo pudesse conter é evidente não somente
numa leitura, feita a posteriori, das marcas que o próprio Estado fascista e a guerra na
qual empenhou o país deixaram no corpo da nação, mas também na base dos evidentes
sinais de profunda transformação e mudança que a passagem do vendaval fascista
realizava na sociedade italiana: somente figuras empenhadas numa oposição ao regime
de Mussolini de cunho, sobretudo ou exclusivamente, intelectual, como Croce, podiam
pensar que o fascismo passaria como um parêntese na história da Itália.
Segunda linha interpretativa do fascismo foi a leitura marxista do mesmo, que o
caracterizava como reação de classe, isto é, instrumento do capitalismo para responder
de forma articulada e eficaz às cada vez mais ameaçadoras iniciativas políticas e
sindicais das classes trabalhadoras, no campo como nas fábricas, e assim contribuir a
deter a maré montante do socialismo. Leitura que era compartilhada, em formas e
por boa parte da recente historiografia italiana. Sua formulação será aqui apresentada a partir de uma
síntese particularmente eficaz presente em DE BERNARDI, Alberto. “Il fascismo e le sue interpretazioni.
II – La Storiografia” In DE BERNARDI, Alberto; GUARRACINO, Scipione (org). Il fascismo. Dizionario di
storia, personaggi, cultura, economia, fonti e dibattito storiografico. Milano: Mondadori, 1998, p. 102135.
12
tempos diferentes e segundo ênfases desiguais, pelos comunistas, pela vertente
maximalista do socialismo italiano e, em parte, por republicanos de esquerda. Leitura
que, apesar de receber correções e reformulações como a de Palmiro Togliatti, que
apontaria para a capacidade do regime fascista de se apoiar nas massas (“regime
reacionário de massa” é a fórmula que em 1935 o dirigente comunista usou nas suas
Lições sobre o fascismo, dirigidas a um grupo de exilados italianos em Moscou), não se
alteraria substancialmente com o passar do tempo.
Seria fora do nosso propósito percorrer aqui as etapas através das quais essa formulação
e visão do fascismo foi se construindo, as acelerações e correções que sofreu, as
adaptações que gerou, levando em conta também que a sustentação desta perspectiva
por parte do partido comunista italiano, por exemplo, implicava um constante ajuste
com as teses elaboradas pelo partido bolchevique soviético e pela Internacional
Comunista. Das primeiras confusas formulações políticas à identificação da própria
socialdemocracia com o fascismo (teoria do “social-fascismo”) e à linha identificada
como “classe contra classe”, ou “frente única pela base”, excluindo por parte comunista
qualquer colaboração e aliança com outros partidos que se dirigiam ao mundo operário,
a não ser a união dos próprios trabalhadores como tais debaixo da grande bandeira do
comunismo internacional, até a temporada das frentes populares, a partir de 1934,
quando não somente os socialistas, mas também outras forças progressistas, de
orientação marxista ou não, foram acolhidas num projeto comum de luta ao fascismo: as
idas e vindas desta segunda linha interpretativa do fascismo coincidiram com as
reviravoltas de uma parte importante do antifascismo italiano e internacional, com seus
projetos estratégicos, suas evoluções táticas e suas escolhas operacionais.
Disso tudo não será dado conta de forma analítica em nosso trabalho, mas os caminhos
percorridos pelo componente do antifascismo que idealmente se reconhece nesta leitura
da ditadura mussoliniana e do fenômeno fascista em geral atravessam, seja no plano
interno dos Estados como no plano transnacional, os caminhos de outros setores do
antifascismo, provocando diálogo, debate, conflito, aprofundamento teórico e político.
Uma ou mais concepções de antifascismo estão em jogo aqui: há de se observar que a
própria identidade dessa categoria histórica não foi até agora definida ou delimitada em
nosso percurso analítico.
13
Houve uma terceira leitura do fascismo que aos pouco acabava encontrando seu espaço
no mundo multifacetado da oposição ao regime do Duce, e que sustentaria como
orientação de fundo algumas das tentativas mais originais de luta antifascista, como,
entre outras, o movimento de Giustizia e Libertá. Ela foi formulada em âmbito liberalradical ou liberal-democrático, in primis por Piero Gobetti3, que em vários escritos falou
do fascismo como “autobiografia da nação”, isto é, representação ao vivo de males
crônicos dos quais sofria a Itália, desde a época de suas lutas pela unidade nacional, o
Risorgimento. Unidade realizada por pessoas que não souberam produzir autêntico
progresso, e que deixaram o país nas mãos de forças retrógradas: agora, com o
fascismo, era o triunfo delas, de uma Itália bárbara, conservadora, clerical, atrasada.
Assim o fascismo, segundo Gobetti, não representava nenhuma “revolução’, e sim uma
triste “revelação”: o vir à tona das piores forças da tradição, da velha Itália que não
queria passar. Interpretação, a gobettiana, que inspiraria sobretudo, como foi dito, o
movimento de Giustizia e Libertá, com sua inclinação pela ação exemplar contra o
fascismo, com sua busca de uma vida política que prescindisse de divisões e burocracias
partidárias, com a tentativa de construir espaços sociais de autogestão, onde socialismo
e liberalismo, com suas melhores sugestões, pudessem se harmonizar. Uma visão quase
“moral” da luta contra o fascismo, animada por grande rigor ético e forte dedicação dos
militantes, em diálogo de um lado com os representantes do liberalismo histórico, e do
outro com as várias forças da esquerda marxista e também com o anarquismo.
É tempo agora de entrar na discussão a respeito de algumas das características
fundamentais do fascismo italiano, a partir da reflexão historiográfica consolidada em
períodos mais recentes. Com isso, se quer, de um lado, mostrar o valor de muitas das
intuições e reflexões produzidas na época do entreguerras pelos próprios opositores de
Mussolini, e, do outro, ir em busca de uma imagem mais completa daquilo que
representou para a Itália e os italianos, mas também para a Europa e o mundo, o
fenômeno do fascismo.
As três leituras esboçadas acima possuiam, para além das diferentes perspectivas das
quais partiam, um ponto em comum: para todas, o fascismo não passava de um
3
Nascido em Turim em 1901, após a guerra Gobetti fundou e dirigiu alguns periódicos, entre os quais La
Rivoluzione Liberale, onde propunha uma profunda renovação da vida política. Próximo também do
recém nascido movimento comunista, sua visão buscava realizar um liberalismo autêntico,
revolucionário. Perseguido e espancado pela policia fascista, se refugiou em Paris para continuar sua
atividade editorial, mas morreu, também em decorrência das violências sofridas, no começo de 1926.
14
fenômeno “reacionário”. Contra o velho sistema liberal e parlamentar, contra o
proletariado e as forças da esquerda organizada ou contra as tendências progressistas e
renovadoras do país, o fascismo era descrito como algo que freava e impedia o normal
curso da história, fosse ele o triunfo do socialismo, a permanência do sistema liberal ou
a construção de uma Itália aberta aos valores de civilização européia. A historiografia
em anos mais recentes coloca um ponto de interrogação sobre o rótulo de reação strictu
sensu atribuído ao fascismo, sobre sua presumida vontade de atrasar os ponteiros no
relógio da história. É assim que começam a aparecer leituras do fascismo como um
fenômeno modernizador: afinal, ele aparece em sociedades e num momento histórico
onde as exigências da modernização estão cada vez mais presentes, com todas as
contradições que essa presença traz consigo.
Gino Germani4 e sua sociologia da modernização ajudam neste tipo de analise, através
do conceito de mobilização social, segundo o qual o deslocamento repentino de inteiros
grupos sociais provocado pela modernidade, como, por exemplo, o processo de
proletarização das classes médias na crise do pós-guerra, provoca ajustes entre as
classes e a possível emergência de grupos ou de partidos como o próprio fascismo, que,
encarregando-se de mobilizar as mesmas classes médias, acaba por favorecer interesses
de outras classes, para depois, uma vez no poder, organizar outra mobilização, a do
mundo do trabalho, embora autoritariamente e do alto. Podemos ver, com esse tipo de
análise, que a categoria da reação sozinha não dá conta da complexidade do fenômeno
fascismo. Modernização do alto, modernização autoritária, modernização corporativa:
são algumas das formulas usadas para tentar dar um nome a um regime político onde a
busca do desenvolvimento industrial e do progresso tecnológico se aliava à sufocação
das liberdades individuais e coletivas, à organização do consenso, à tentativa de controle
total da sociedade.
Há também quem aponte para uma dupla natureza do fascismo italiano. Fenômeno
revolucionário em sua origem e reacionário em sua estabilização institucional: é o que
sugere Renzo De Felice, autor da monumental biografia de Mussolini.5 As origens do
fascismo, quando ainda ele possui uma configuração movimentista, indicariam, segundo
o historiador italiano, o prevalecer nele do elemento revolucionário, com a mistura de
4
Cf. GERMANI, Gino. Autoritarismo, fascismo e classi sociali. Bologna: Il Mulino, 1975.
A biografia de Mussolini escrita por Renzo De Felice (Mussolini il rivoluzionario, Mussolini il fascista,
Mussolini il duce, Mussolini l’alleato são as quatro partes em que se articula) foi publicada pela Editora
Einaudi, de Turim, em oito volumes, a partir de 1963 até 1996.
5
15
proclamas nacionalistas e de declarações anti-sistema (contra o liberalismo e o
socialismo, sim, mas também contra a monarquia e a igreja), ao passo que, após a
tomada do poder e a consolidação como regime, o fascismo pode ser representado mais
adequadamente pela categoria da reação. De Felice chega em vários momentos a
afirmar a presença simultânea dessas duas naturezas, até durante o período da
estabilização do fascismo como regime, quase duas almas ora convivendo ora
conflitando.
A leitura defeliciana do fascismo italiano não para por aqui, e merece uma análise mais
aprofundada, recordando que os pontos por ela levantados e seus desdobramentos
sucessivos, apresentados em entrevistas e/ou artigos na imprensa, acabaram por incluir
seu autor no rol dos assim chamados “revisionistas”, fautores de uma releitura do
passado direcionada a absolver os fascismos de boa parte de suas responsabilidades
históricas.6 O historiador italiano, em sua reconstrução do percurso humano e político
de Mussolini, acaba oferecendo uma sua interpretação do fascismo, na qual pelo menos
dois pontos fundamentais para o nosso tema aparecem com freqüência e destaque. O
primeiro é a tendência em retirar o fascismo italiano de seu contexto internacional, de
suas referencias européias com movimentos análogos (o próprio nacional-socialismo
alemão, e outros), descrevendo-o como um fenômeno tipicamente e exclusivamente
italiano, fruto de características e circunstâncias ligadas ao desenvolvimento histórico e
cultural da península. Um segundo aspecto frisado em seu trabalho é a tese segundo a
qual, na realidade, foram as velhas elites econômicas e políticas a manter em suas mãos
o poder durante o regime mussoliniano, que não passou, portanto, de um governo
tradicional, com algumas correções autoritárias. Para De Felice, o fascismo foi somente
a “forma” do regime, sua “substância” continuando a ser a do Estado tradicional,
embora vestindo camisa negra e com transformações em sentido autoritário. Assim
escreve:
a velha classe política moderada e conservadora e a burocracia [...] se
deixaram “fascistizar”; assim fazendo, porém, garantiram para si a
possibilidade de continuarem a manter em suas mãos as tradicionais
alavancas de seu efetivo poder, seja político como econômico, e em
6
Para uma visão sintética do debate ao redor da obra de De Felice, cf. SANTOMASSIMO, Gianpasquale.
“Il ruolo di Renzo De Felice”. In COLLOTTI, Enzo (org.). Fascismo e antifascismo. Rimozioni, revisioni,
negazioni. Roma-Bari: Laterza, 2000, p. 415-429 (mas o volume inteiro, como aparece pelo subtítulo, é
dedicado à discussão sobre revisionismo e negacionismo, com interessantes contribuições de
pesquisadores de varias nacionalidades), e também DEL BOCA, Angelo (org.). La storia negata. Il
revisionismo e il suo uso político. Vicenza: Neri Pozza, 2009.
16
breve espaço de tempo conquistaram também o Pnf [...] e o reduziram
substancialmente na dependência do Estado.7
É por esse motivo que De Felice não caracteriza o fascismo italiano como um regime
totalitário (a não ser após sua aproximação do nazismo, a partir de 1938; nesse caso o
historiador italiano fala de “virada totalitária”). Mais para frente voltaremos sobre essa
questão, inclusive para verificar o que se esconde atrás dessa categoria.
Aqui se tentará discutir a plausibilidade dessa leitura de De Felice, através do recupero
de uma literatura que também estuda as características essenciais do fascismo, italiano e
não. Começando com outro grande expoente da historiografia que se debruçou sobre o
tema, Ernst Nolte, confrontamos a interpretação defeliciana com um texto do historiador
alemão de 1966, que analisaremos numa edição francesa recente.8 Nolte acabava de
publicar Der Faschismus em seiner Epoche (1963), uma interessante contribuição ao
aprofundamento da temática relativa ao fascismo. Nesta ulterior produção, ele
apresenta, no segundo capítulo, alguns traços que definem o fascismo italiano de 1922:
origem na grave crise do sistema liberal, devida paradoxalmente não à sua derrota, e sim
à sua excessiva vitória; nascimento direto das trincheiras da grande guerra, com o
surgimento de novos tipos humanos; relação paradoxal com a burguesia, sendo
campeão da idéia burguesa de combater o revolucionarismo marxista, mas realizando a
tarefa com métodos e forças completamente alheias à tradição e ao pensamento
burgueses; heterogeneidade entre seus lideres, muitos oriundos das fileiras socialistas, e
a própria burguesia; retomada do antigo nacionalismo e sua atuação; tendência para a
ideologia, mesmo declarando-se voltado para a ação. E conclui:
Todas essas características não têm nada de propriamente italiano, mas
são européias. Paralelamente à expansão do sistema liberal, a crise do
mesmo tinha-se desenvolvido até as fronteiras da Europa e existiam
quase que em todo lugar tropas de voluntários de caráter paramilitar e
de tendências anti-bolcheviques (...). Comparadas a esses elementos
comuns, as originalidades propriamente italianas são relativamente
mínimas (...). Em principio, a existência de movimentos análogos era
possível em todos os países da Europa: a situação especificamente
italiana explicava não a chegada do fascismo, mas somente seu rápido
triunfo (...). Claro que no âmbito do mesmo tipo eram possíveis
importantes diferenças: a crise do sistema liberal podia ser mais ou
7
DE FELICE, Renzo. Mussolini, Il fascista, II – L’organizzazione dello Stato fascista ( 1925-1929), op. cit.
(ed. de 1981), p. 8.
8
NOLTE, Ernst. Les Mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945. Paris: Calmann-Lévy, 1991 (a 1ª
edição alemã é de 1966).
17
menos profunda, o líder supremo podia ser oriundo não das fileiras
socialistas e sim das conservadoras ou nacionalistas (...). Contudo,
desde que essas diferenças permaneçam delimitadas pelo quadro das
seis características definidas acima, o uso do termo geral de “fascista”
se impõe.9
Qual melhor resposta à tese defeliciana que tende a circunscrever o fascismo ao caso
italiano, visto como a única autêntica manifestação do fenômeno no cenário
internacional e explicado a partir de elementos típicos daquela sociedade?
O volume de Nolte oferece em seguida uma interessante panorâmica dos movimentos
fascistas nacionais, começando pelos balcânicos e mediterrâneos, passando pelos da
Europa oriental e báltica, e concluindo com os da Europa central, setentrional e
ocidental. O que é oportuno reter aqui deste passeio pela fenomenologia do fascismo no
Velho Continente é que, como Nolte demonstra e outros após ele reforçarão, não ultimo
Robert Paxton10, a categoria de fascismo teve diferentes formas de encarnação: nem
todas chegaram ao poder em seus Estados, mas todas apresentaram, com graus e
intensidades diversas, características similares.
Não se procederá aqui na discussão acerca do melhor idealtipo do fascismo; o que
interessa é mostrar sua potencial capacidade de tomar forma em todas as sociedades
européias (e não) do entreguerras, fato que era repetidamente denunciado, no final da
década de 1920 e começo da sucessiva, pelos antifascistas italianos exilados no exterior,
indo de encontro à convicção relativamente difundida na opinião publica internacional,
incluídos governos e oposições das democracias liberais, de que o fascismo fosse um
fenômeno essencialmente ou exclusivamente italiano, fruto de características presentes
em sua sociedade ainda pouco desenvolvida e, portanto, impossível de se reproduzir em
países mais “civilizados”. Muito indicativo desta convicção, e contemporaneamente
sinal de quanto, até nos ambientes do socialismo europeu, o alerta dos antifascistas no
exilio era pouco considerado, um trecho do discurso do presidente da Internacional
Operária Socialista (IOS), o belga Emile Vandervelde, abrindo o 3º congresso da
organização em Bruxelas, em agosto de 1928:
9
Ibidem, p. 77
Cf. PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo, op. cit.
10
18
“Se vocês traçarem uma linha ideal de Kaunas a Bilbao, passando por
Cracóvia e Florença, se encontrarão diante de duas Europas: uma onde
o cavalo a vapor domina, outra onde domina o cavalo em carne e osso;
uma, onde há parlamentos, outra, onde há ditadores. E é somente nessa
Europa, nesta segunda parte dela, economicamente e politicamente
atrasada, que as ditaduras proliferam, mais ou menos brutais, mais ou
menos hipócritas, camufladas ou não de um simulacro nacional.”11
Quanto ao antifascismo, essas dificuldades encontradas por dirigentes e militantes de
partidos e movimentos de oposição ao regime de Mussolini em fazer entender a
periculosidade para a Europa e o mundo inteiro de um sistema como o do fascismo
italiano, por sua possível reprodução, em formas diferentes, mas análogas, em qualquer
latitude e em qualquer sociedade, voltarão em nossa discussão.
A compreensão dos fascismos oferecida por Ernst Nolte permite retirar valor da tese de
De Felice, centrada na reivindicação de uma singularidade do fascismo italiano - visto
como êxito de circunstâncias próprias do sistema sócio-político do país - e também de
uma sua diferença substancial de outros regimes autoritários com os quais é
habitualmente comparado (leia-se nacional-socialismo, regimes salazarista e franquista,
e outros). Pelo contrário, mesmo com as necessárias diferenças, é possível traçar
paralelos e descrever analogias, inspirações convergentes e objetivos semelhantes, a
partir dos traços comuns acima indicados por Nolte. É a partir de uma compreensão
deste tipo do fascismo italiano que se discutirão mais para frente algumas das mais
recentes produções da historiografia do antifascismo.
Aqui, para complementar nossas afirmações, numa recente contribuição da
historiografia nacional, a análise de Francisco Carlos Teixeira da Silva12, que busca
apresentar uma teoria explicativa geral dos fascismos, “superando uma das
características básicas dos estudos no imediato pós-guerra: a fragmentação da análise
11
Interessante o comentário de Nolte em seu livro, a respeito dessa colocação: “Isto significava
esquecer que o fascismo nascera na Itália do norte, uma região nada subdesenvolvida. E significava
também fechar os olhos sobre um fato evidente: o fascismo, quando tiver completados seus primeiros
passos, iria representar obrigatoriamente, para o sistema liberal internacional, um perigo mais sério que
as ditaduras militares e os regimes conservadores das regiões que estavam num estágio pré-industrial.”
Cf. NOLTE, Ernst, Les Mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945, op. cit., p. 88-89.
12
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Os fascismos”. In REIS, Daniel Aarão; FERREIRA Jorge; ZENHA,
Celeste (org.), op. cit., p. 109-164.
19
em diversas narrativas descritivas e históricas, onde o fascismo aparece como uma etapa
da história da Alemanha e, algumas poucas vezes, da Itália”. Assim Teixeira da Silva
explica o conceito de fascismo como “uma unidade de traços diversos que dão
coerência a um fenômeno”, levando em conta não só os fascismos que conseguiram
chegar ao poder, mas também os que não foram coroados de sucesso. Anti-liberalismo e
anti-parlamentarismo, organicismo social e liderança carismática, anti-marxismo e
negação das diferenças marcam, para ele, “a possibilidade de identificação do fascismo
enquanto regime ou forma de dominação especifica”. O autor frisa assim a diferença
entre o fascismo e outras vertentes políticas possíveis existentes no interior da direita
(conservadorismo, reacionarismo, autoritarismo militar ou partidário): seu “caráter
meta-político, mobilizado para a incorporação da nação, de seus corações e de suas
mentes, numa concepção de mundo única, excludente e terrorista”.13
Quanto à segunda afirmação de De Felice destacada mais acima, a de uma substancial
continuidade entre Estado liberal e Estado fascista, com o segundo que não passaria de
uma prolongação do primeiro, agora de camisa negra e com ajustes de caráter
autoritário, além das leituras de Nolte e Teixeira da Silva aqui apresentadas,
praticamente toda a historiografia mais recente, italiana e não, questiona a interpretação
oferecida pelo biografo de Mussolini, insistindo sobre a real novidade representada pelo
fascismo italiano no cenário político nacional e internacional. Uma novidade, seja em
suas primeiras aparições, ainda nos anos do pós-guerra, seja em sua tomada do poder e
sucessiva estabilização como regime de governo. Para caracterizá-lo, boa parte dos
autores se confronta com o possível uso da categoria do totalitarismo.
Em anos bastante recentes, deixados para trás os ultrapassados debates do tempo da
Guerra Fria - quando era frequentemente utilizado por cientistas políticos ocidentais
numa operação de substancial equiparação entre os regimes fascistas (particularmente o
nazismo) e o comunismo soviético - o conceito de totalitarismo volta a ser retomado por
muitos historiadores, sobretudo italianos, para uma melhor compreensão do Estado de
Mussolini. Está longe da finalidade e do espírito desse trabalho a intenção de usar o
totalitarismo como categoria interpretativa tout court do fascismo, ou como fórmula
13
Do mesmo autor, veja-se a interessante reflexão em TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Revoluções
conservadoras, terror e fundamentalismo: regressões do individuo na modernidade”. In TEIXEIRA DA
SILVA, Francisco Carlos (org.). O século sombrio: guerras e revoluções do século XX. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 123-190. Leitura útil por oferecer novas pistas de análise e levar o questionamento até
os dias atuais.
20
capaz de enquadrá-lo num modelo. O que interessa é lembrar antes de mais nada que o
termo, nascido originariamente em âmbito antifascista (Piero Gobetti, antes, e o também
liberal Giovanni Amendola14, depois, várias vezes usaram em seus jornais as expressões
“jogo totalitário da demagogia fascista”, “sistema totalitário” ou “espírito totalitário”
para se referir à forma fascista de governar), foi quase imediatamente adotado pelo
regime como um dos termos de sua auto-compreensão, e como descrição possivelmente
adequada de um projeto – pensado e tentado - de poder e de transformação da sociedade
italiana.15
Percorrendo agora rapidamente algumas das leituras historiográficas que se confrontam
com a categoria, é oportuno deixar claro, com Philippe Burrin, que, “regimes totalitários
e regimes autoritários são dois conceitos que têm o valor de noções úteis e não de
modelos explicativos globais que pretendem afirmar a identidade dos fenômenos
considerados.” 16 A qualificação de totalitário é atribuída por muitos ao regime fascista
italiano, sim, mas geralmente a partir de uma grande ressalva: tratar-se-ia de um
totalitarismo imperfeito, ou incompleto. Totalitarismo, por possuir todas as principais
características do fenômeno (presença simultânea de um centro de poder que afirma seu
monopólio, uma ideologia que reclama exclusividade e uma estrutura de mobilização
total da população através de um partido único e de organizações às suas
dependências17), mas imperfeito, por não ter alcançado uma plena realização.
Alberto Aquarone18, em sua obra que é referência para todos os estudiosos do fascismo
do ponto de vista institucional, afirma que o Estado totalitário fascista, assim definido já
no titulo de seu livro, na realidade nunca chegou a se realizar plenamente, nunca
conseguiu se identificar totalmente com a sociedade. O problema crucial foram as
relações com a monarquia e com a igreja católica, além da incompleta fascistização do
14
Deputado liberal democrata, Amendola participou da secessão parlamentar chamada de Aventino,
após o asssinato de Matteotti. Em julho de 1925, foi agredido por fascistas: morreria, em consequências
das violências sofridas, alguns meses depois, em abril de 1926, em Cannes (França).
15
Uma ótima documentação do surgimento em âmbito antifascista da categoria de totalitarismo e de
sua imediata utilização pelo regime de Mussolini se encontra em PETERSEN, Jens. “La nascita del
concetto di ‘Stato totalitario’ in Italia”. Annali dell’Istituto storico ítalo-germanico in Trento, I, 1975,
Bologna: Il Mulino, 1976, p. 143-168. Ver também nossa dissertação de mestrado: SCARRONE,
Marcello, op. cit., p. 35-41.
16
BURRIN, Philippe. “Politique et société: les structures du pouvoir dans l’Italie fasciste e l’Allemagne
nazie”. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 1988, vol. 43, n. 3, p. 615-637 (a citação está na p. 616).
17
Ibidem, (citando as características do totalitarismo segundo a definição de Juan Linz).
18
Cf. AQUARONE, Alberto. L’organizzazione dello stato totalitário, op. cit.
21
exército. Salvatore Lupo19 reconstrói o percurso da categoria de totalitarismo a partir da
posição de Hanna Arendt20, segundo a qual o regime de Mussolini foi uma ditadura
unipartidária, mas não pode ser definido totalitário, pela ausência do terror de massa e
por respeitar o Estado tradicional e o exército. Lupo concorda em parte com estas
afirmações, discordando sobre a tese do respeito pelo Estado tradicional: no fascismo
italiano “se sobrepõem confusamente velho e novo, antes de tudo com a diarquia entre
fascismo e coroa” 21, e depois com a existência de uma série de elementos que levam o
autor a reconhecer a presença no sistema político criado por Mussolini daquela mesma
“ânsia do moto perpetuo” característica, segundo a própria Arendt, dos regimes
totalitários.
Para terminar esta passagem pela historiografia do fascismo italiano, dois entre os
autores mais qualificados. Emilio Gentile, num dos seus mais recentes estudos 22, afirma
que, para a política fascista depois de 1936, é melhor falar - mas não é só uma questão
de palavras – de “aceleração totalitária”, ao invés de “virada totalitária” (como sustenta
De Felice para o período a partir de 1938), pois se tratava não da mudança de um
percurso político, e sim da acentuação deliberada de um processo em curso, inerente à
própria natureza do sistema de poder do fascismo, à sua cultura, à sua ideologia, à sua
organização de partido e de regime. Para Gentile a qualificação de totalitário é própria
do regime fascista, a ponto de intitular seu trabalho “La via italiana al totalitarismo”.
23
Para ele a escolha terminológica mais adequada é a de “experimento totalitário” e do
fascismo como da “via italiana” deste experimento. As fortes dúvidas sobre a utilização
do modelo historiográfico do totalitarismo para definir experiências diversas e até
opostas como acontecido no passado não impedem a possibilidade de continuar a usar o
termo totalitário para caracterizar o fascismo italiano, desde que seja claro que se fala,
exatamente, de um experimento totalitário, de um “laboratório totalitário”, como afirma
ainda Gentile, sem esquecer que, “mesmo não tendo sido o fascismo o inventor do
19
Cf. LUPO, Salvatore. Il fascismo. La política in um regime totalitário, op. cit.
Cf. ARENDT, Hanna. As origens do totalitarismo. III - Totalitarismo, o paroxismo do poder, Rio de
Janeiro: Ed. Documentario, 1979.
21
LUPO, Salvatore. Il fascismo. La política in um regime totalitário, op. cit., p. 29
22
Cf. GENTILE, Emilio. La via italiana al totalitarismo. Il partito e lo stato nel regime fascista, op. cit.
23
Gentile admite as expressões “totalitarismo incompleto” ou “imperfeito” (embora com uma dúvida
sobre a validade científica delas no âmbito da análise historiográfica), desde que se considere que
também os regimes considerados “completamente” ou “ perfeitamente” totalitários encontraram
obstáculos, resistências e limites. A esse respeito, ele afirma que “na realidade histórica, o totalitarismo
é sempre um experimento continuo, isto é, um processo em ato, e não uma forma completa e
definitiva”. Ibidem, p. 149.
20
22
termo [...], ele foi com certeza o primeiro movimento e único regime político que o
adotou” 24, atribuindo-lhe um preciso sentido de definição de sua visão da política e da
sociedade.
Alberto De Bernardi
25
alerta sobre o perigo, quando se fala de totalitarismo imperfeito
ou incompleto, de pensá-lo como um totalitarismo falido ou abortado. Na realidade, o
caráter de incompleto lhe deriva mais de seu aspecto de edifício em construção.
“Totalitarismo em construção“ é, com efeito, a definição sintética de De Bernardi, que
atribui a ‘imperfeição’ aos efeitos de longa duração sobre a natureza do regime de suas
características de compromisso entre novas e velhas elites, num impacto entre a tentada
fascistização da sociedade e as resistências à modernização de um país por muitos
aspectos ainda marcado pela presença de estruturas e valores tradicionais.
Expressões como esta, que falam de totalitarismo incompleto, totalitarismo em
construção, ou experimento totalitário, têm a vantagem de não retirar do regime fascista
nem sua novidade perante o sistema liberal tradicional (contra a leitura de De Felice)
nem sua pretensão ao domínio “totalitário” das consciências.26 Do outro lado, mostram
a não completa realização de tal operação: ditadura, feroz, violenta, implacável contra
seus opositores, mas, no vértice, exposta a situações de conflito, a tensões e buscas de
equilíbrios, e na base, no tecido da vida social, permeável a formas de resistência e
dissenso.
Quanto ao vértice, ao nível das estruturas do Estado, parte da historiografia não hesita
em falar de regime policrático, ou de poliarquia, para tentar explicar a não monolítica
essência do regime de Mussolini, ou, em outras palavras, seu totalitarismo pretendido e
não completamente realizado.27 Essas leituras nos encontram substancialmente de
24
Ibidem, p. 151
Cf. DE BERNARDI, Alberto. Una dittatura moderna. Il fascismo come problema storico, op. cit.
26
A 22 de junho de 1925, no discurso de encerramento do quarto congresso nacional do Pnf, Mussolini
afirmava: “Queremos que os italianos escolham!... Levamos a luta para um terreno tão claro que a esta
altura ocorre estar ou deste lado ou do outro. Não só, mas aquela que é definida como a nossa feroz
vontade totalitária [grifo nosso] será perseguida com maior ferocidade ainda... Queremos fascistizar a
nação, assim que amanhã italiano e fascista sejam a mesma coisa!”. Cf. MUSSOLINI, Benito. Scritti e
Discorsi. Vol. V (1925-1926). Milano: Hoepli, 1934, p. 115-116.
27
Assim De Bernardi, em Una dittatura moderna. Il fascismo come problema storico, op. cit., 165, fala de
“um Estado ‘policrático’, no qual o poder carismático do ditador, mesmo sustentado por uma forte
concentração de prerrogativas na sua pessoa, convivia com outros poderes num entrelaçamento
dialético que constituiu a essência e o teatro da luta política por toda a duração do fascismo”. Robert
Paxton, por sua vez, em A anatomia do fascismo, op. cit., p. 138, afirma: “Estudar o exercício do poder
fascista [...] não pode esgotar-se numa exposição da vontade do ditador [...]. Significa examinar as
25
23
acordo, por representarem uma explicação suficientemente fundamentada do fascismo
italiano em sua fase de regime.
Quanto à base, ou seja, à realidade cotidiana de vida dos italianos debaixo da ditadura
fascista, haveria aqui de se introduzir a discussão sobre a categoria do consenso ao
regime do Duce por parte da sociedade, pois uma reflexão sobre o significado de uma
oposição ao fascismo, de uma luta ou resistência antifascista à ditadura, deve interrogarse sobre quais fossem os espaços reais para a sua manifestação. Até que ponto e em que
medida esse regime que se pretendia totalitário, nas intenções e como projeto, que
buscava controlar pensamento e consciências, atos e escolhas (embora, quanto ao
controle do Estado, como visto acima, sua pretensão totalitária fosse obrigada a travar
constantes quedas de braço com outras instancias de poder) conseguiu fazê-lo, isto é,
arregimentar os italianos e produzir adeptos e seguidores, obedientes e convictos? Pois
o discurso do antifascismo começa aqui, como haverá modo de se analisar mais pra
frente. Começa das escolhas do dia-a-dia, do projeto pessoal de vida, da conduta
cotidiana, além de envolver, é claro, escolhas de luta e militância mais radicais e
comprometidas.
Deixando para depois a reflexão sobre a possibilidade e/ou legitimidade de vários tipos
ou níveis de antifascismo, algumas considerações aqui sobre o consenso podem ser
feitas. O temo entrou no debate historiográfico com o quarto volume da biografia
mussoliniana de De Felice, publicado em 1974, no qual o historiador italiano
apresentava, desde as primeiras páginas, sua tese de “um regime que gozava de uma
indiscutível solidez, baseada em primeiro lugar sobre um consenso de massa [grifo
nosso], vasto e no qual não apareceriam rachaduras tão cedo”
28
. O livro em seguida
expunha razões, formas e limites desse consenso, mas ao redor da categoria defeliciana
a discussão começou a ferver, seja no restrito circulo da academia seja no âmbito mais
largo da publicística e da publica opinião. Muitas dificuldades perante esse tipo de
continuas tensões que explodiram no interior dos regimes entre líderes, partido, Estado e os tradicionais
depositários do poder social, econômico, político e cultural. Essa realidade produziu uma significativa
interpretação do regime fascista como ‘policracia’, isto é um sistema de governo guiado por múltiplos
centros de poder relativamente autônomos, numa continua rivalidade e tensão entre eles”. E Salvatore
Lupo, retomando a categoria da diarquia, que o próprio Mussolini usara retrospectivamente em 1944
para descrever seu regime, escreve em Il fascismo. La política in um regime totalitário, op. cit., p. 448:
“A diarquia se torna poliarquia, sobreposição desordenada de instituições, burocracias, grupos de
interesse. As políticas de governo servem sobretudo a evitar colisões [...] e o ditador é preso num
interminável, cansativo papel de mediador entre poderes diversos, externos e internos ao fascismo”.
28
DE FELICE, Renzo. Mussolini, il duce. I - Gli anni del consenso (1929-1936), op. cit., p. 3 (ed. de 1996).
24
leitura da sociedade italiana daqueles anos vinham de setores da historiografia oriunda
do mundo antifascista, que alimentavam há tempo a convicção de um fascismo
dominador, sim, por sua capacidade de controle rígido da vida política e social, mas
com poucos seguidores efetivos, com poucas simpatias no país, com pouco apoio e
adesão popular: falar de consenso parecia, para esses setores, creditar ao fascismo
significados e valores para a história italiana que na realidade ele não teria tido, e,
contemporaneamente, negar a existência de uma vasta opinião pública, silenciosa,
talvez, mas de íntimos sentimentos antifascistas. Não se trata aqui de percorrer as etapas
do debate, nem de avaliar razões e erros dos ‘partidos’ que na década de 1970 e nas
sucessivas se digladiaram em torno da categoria do consenso ao fascismo. Hoje, um
maior grau de profundidade dos estudos leva grande parte da historiografia a “aceitar a
existência de um consenso ao regime, discutindo acerca de sua periodização, sua
intensidade e qualidade, sua duração, assim como a respeito das implicações conceituais
(...) do uso do termo para um regime ditatorial”.29
Alguns pesquisadores, como Paul Corner30, preocupados em evidenciar como a grande
parte da população não tivesse que poucas possibilidades de escolha para suas ações,
seja pelo fato de viver num Estado de polícia, seja pelo controle fascista da maioria dos
espaços da vida civil, propõem o abandono da categoria de consenso – ligado a
situações de liberdades de escolha incomparáveis com a de uma ditadura como o
fascismo italiano – e a descrição da condição da massa da população no começo da
década de 1930 como a de “uma convivência com o fascismo sem protestos manifestos
e públicos (...), uma espécie de aceitação pragmática do regime”.
Do outro lado, além da presença de hipóteses que soam quase como uma reviravolta da
categoria defeliciana31, há também uma ampla reflexão sobre existência e significado de
formas de dissenso organizado ou espontâneo diante do fascismo na sociedade italiana,
acompanhada pelo questionamento se tais manifestações podem ser consideradas como
expressão de antifascismo. Com esse tipo de considerações, contudo, já nos
introduzimos na discussão acerca do antifascismo e de suas características
fundamentais.
29
SANTOMASSIMO, Gianpasquale, “Il ruolo di Renzo De Felice”. In COLLOTTI, Enzo (org.). Fascismo e
antifascismo. Rimozioni, revisioni, negazioni, op. cit., p. 423.
30
CORNER, Paul. “Fascismo e controllo sociale”. Italia contemporanea, n. 228, 2002, p. 381-405.
31
Cfr. CASALI, Luciano. “E se fosse dissenso di massa? Elementi per un’analisi della ‘conflittualitá
politica’ durante il fascismo”. Italia contemporanea, n. 144, 1981, p. 101-120
25
1.2.
Antifascismo: um debate polêmico
Após a passagem, necessariamente rápida e por tópicos, através da mais recente
produção historiográfica sobre o fascismo, italiano e não, entramos agora naquele mare
magnum que é a literatura sobre a oposição ao mesmo. Desde o período da vigência do
regime de Mussolini até as primeiras décadas depois de sua queda, a historiografia,
particularmente a de língua italiana, produziu obras significativas, muitas das quais
inevitavelmente condicionadas palas paixões dilacerantes que animavam seus autores
naqueles anos: vários entre eles viveram os anos da ditadura e lutaram contra ela, alguns
em seguida participaram da construção das estruturas fundamentais da jovem república
italiana. Assim as principais tendências interpretativas do fenômeno do antifascismo e
da oposição política ao regime de Mussolini o colocavam, de um lado, em direta
continuidade com o evento da Resistência, como antecessor e gerador dos ideais da
guerra partigiana, e, do outro, o apresentavam como realização de uma minoria sim,
mas que representava de forma mais aguda sentimentos comuns à grande maioria do
povo italiano, embora esta maioria não tivesse chegado a escrever nada contra o Duce,
ou a pegar nas armas para derrubá-lo. A memorialística fez a sua parte, seja com obras
impressas, seja com reportagens e investigações de cunho mais jornalístico. O
antifascismo se tornava assim palavra chave do debate histórico e, ao mesmo tempo, do
debate político e partidário que acompanhava a edificação do novo Estado republicano,
feita a partir do repúdio ao fascismo e a todas suas possíveis novas formas de
manifestação, lavrado na Constituição de 1948.
Novos ventos no país e na historiografia começaram a soprar já em meados da década
de 1970, quando linhas interpretativas do fascismo que o descreviam como um regime
construído sobre um consenso bem mais amplo de quanto até então era tranquilamente
afirmado começaram a aparecer, sobretudo a partir da leitura oferecida, sobre este
aspecto, por De Felice. E como muitas vezes acontece na vida, o pêndulo da história,
que estava deslocado para uma visão do fascismo como fenômeno minoritário, fruto da
vontade de poucos e imposto despoticamente sobre a cabeça da multidão, tomou uma
direção oposta, com diversos historiadores se empenhando na elaboração de uma
interpretação do regime de Mussolini como um governo autoritário, sim, mas com
orientações quase populistas, limitador das oposições sim, mas sustentado pelo aberto
ou pelo menos tácito consenso da maioria da população, responsável pela tragédia da
segunda guerra mundial sim, porém mais pela aliança com o nazismo alemão do que
26
por suas próprias tendências imperialistas. Estas interpretações do fascismo, somente
em parte apoiadas em pesquisas documentais, contribuíram a gerar uma combativa
publicística favorável se não a uma reabilitação da ditadura mussoliniana, pelo menos a
um julgamento muito mais benevolente de sua atuação histórica.
Eis assim instaurada a controvérsia que, em certos setores, se arrasta até hoje, entre
revisionistas (como são definidos os fautores de uma reinterpretação do fascismo no
sentido defeliciano) e anti-revisionistas, defensores daquela leitura do fascismo que não
lhe concede nenhum tipo de consenso e de um antifascismo visto como expressão
heróica de um sentimento que, embora não levado ao fim como empenho na luta
clandestina ou como refugio no exterior para continuar a militância, ocuparia mentes e
corações da grande maioria dos italianos no entreguerras.
Sob este ângulo, os aspectos da história da Itália, ligada ao fascismo, merecedores de
esclarecimento e investigações mais documentadas eram e são inúmeros: desde as
complexas ramificações do fascismo na sociedade italiana ao apoio de amplos setores
da população ao governo do Duce, com certeza, mas também os assassinatos em massa
cometidos pelo exército de ocupação na Etiópia, assim como a participação italiana em
perseguições raciais, incluindo a realização de campos de concentração, ou a luta
conduzida, ainda nos anos 1943-45, por italianos, do lado dos nazistas, ou ainda as
responsabilidades de grupos de partigiani quanto a massacres de civis realizados por
soldados alemães como represália, só para lembrar alguns. Episódios e fatos muitas
vezes esquecidos, removidos, censurados. As contas com o passado fechadas
rapidamente, a lembrança como um incômodo a ser evitado (pense-se, por exemplo, nas
dificuldades encontradas por Primo Levi para poder publicar É isso um homem, seu
relato sobre sua experiência pessoal nos campos de concentração). Escreve agudamente
Claudio Pavone 32, um dos maiores pesquisadores da Resistência italiana:
As causas das remoções italianas são na verdade múltiplas. Há no fundo
a terrível derrota sofrida na guerra conduzida pelo regime fascista e os
longos silêncios de quem nela lutara. Há a inusitada variedade de excombatentes, que impediu que eles, em seu conjunto, constituíssem,
como acontecera após 1918, um grupo de forte presença política: excombatentes da guerra fascista, com as fortes diferenciações que
derivavam, sobretudo para os ex-prisioneiros, da diversidade dos fronts
nos quais lutaram; ex-combatentes da guerra contra a Alemanha
32
Claudio Pavone é autor de um ensaio de importância fundamental para a análise da Resistência
italiana: Una guerra civile. Saggio storico sulla moralitá nella Resistenza. Torino: Bollati-Boringhieri,
1991.
27
conduzida pela forças armadas do Sul da Itália; ex-combatentes que
sofreram a internação em campos de prisioneiros na Alemanha; excombatentes da Resistência; ex-combatentes das forças armadas da
República social italiana. E vale acrescentar os que retornavam da
deportação política e racial. 33
Seria muito interessante percorrer etapas e reviravoltas nesta batalha acerca do uso
público da história, esta batalha pela memória, com versões que se defrontam, às vezes
querendo estabelecer “versões oficiais”, mas isso ultrapassa os objetivos deste trabalho.
O que cabe aqui é recordar como os ventos do revisionismo historiográfico chegaram a
afetar também as interpretações a respeito do antifascismo, reduzido, segundo esta
corrente interpretativa, a expressão de um elitismo político sem influência alguma sobre
as massas, fruto de elaborações ideológicas, em boa parte estéreis, de poucos
intelectuais.
Uma nova estação de pesquisas e investigações, favorecida por um maior acesso às
fontes documentais e alimentada pela adquirida consciência da complexidade dos
fenômenos históricos, se, de um lado, começou a produzir obras de análise do fascismo
capazes de avaliações mais equilibradas, alheias a leituras condicionadas por espírito
partidário ou por pré-compreensões ideológicas, do outro, gerou também uma
renovação e atualização nos estudos sobre o próprio antifascismo. Depuradas da
virulência das polemicas das décadas imediatamente sucessivas ao fim da guerra, as
novas linhas de pesquisa sobre o tema se destacam por um maior equilíbrio
interpretativo, capaz de valorizar a contribuição significativa do antifascismo, seja no
exílio como na península, segundo suas vertentes político-partidárias e suas diferentes
manifestações, sem dilatar excessivamente sua importância no crescimento da
consciência democrática nem reduzir seu efetivo peso na balança política da época,
abrindo-se também ao estudo de percursos individuais, de existências particulares,
mesmo correndo, às vezes, o risco de afunilar excessivamente a perspectiva de análise.
Em seguida, então, entraremos naquilo que definimos como mare magnum, tentando
evidenciar as principais temáticas e linhas de tendência.
33
PAVONE, Claudio. “Negazionismi, rimozioni, revisionismi. Storia o política?” In COLLOTTI, Enzo (org.).
Fascismo e antifascismo. Romozioni, revisioni, negazioni. Roma-Bari: Laterza, 2000, p. 23-24.
28
1.3.
Situando o antifascismo no tempo e no espaço
Por muito tempo, a literatura sobre a oposição italiana ao fascismo privilegiou a
reconstrução de tempos e modalidades através das quais a luta à ditadura se deu,
enfatizando o esforço, sobretudo de socialistas e republicanos, em se reconstituir no
exterior, após a fuga além das fronteiras do país de seus principais expoentes, e a
escolha, exemplar e heróica, do partido comunista em lutar na clandestinidade na
própria península, além do surgimento de organizações novas como o movimento de
Giustizia e Libertá. A perspectiva da historiografia destacava essencialmente a
dimensão política oficial, a dinâmica e o debate de tipo partidário, gestos e fatos das
lideranças, assim como a narração dos eventos ligados à luta clandestina, quase sempre
dentro de uma chave de leitura ético-política.
Assim os antifascistas, tanto os que fizeram a escolha de permanecer na Itália e
combater a ditadura no próprio território da península, quanto os que preferiram tomar o
caminho do exílio, os chamados fuorusciti, se tornavam, nas páginas dos estudiosos, os
protagonistas de uma epopéia, mesmo com interpretações distintas a segunda do campo
de visão (comunistas versus outros grupos de oposição foi a principal discriminante):
uma epopéia que, na maior parte dos casos, era diretamente vinculada ao evento da
Resistência (1943-45), por sua vez interpretada como guerra de povo contra o invasor
alemão e contra seu aliado, o governo fascista da Republica Social. Memoriais,
biografias, testemunhos dos envolvidos na luta partigiana e sucessivamente no esforço
para a construção de um novo Estado sobre as cinzas da ditadura e o cadáver do
instituto monárquico, tudo se juntava à reflexão dos historiadores contribuindo para
compor o quadro acima descrito.
Nas ultimas décadas do século passado, e na primeira do presente, novos elementos,
novos discursos, novas perspectivas entram a fazer parte da reflexão historiográfica
sobre o antifascismo, que inicia um lento, ainda incipiente, mas estimulante caminho de
renovação. Muitas vezes estes germes de novidades estão presentes mais como
intuições, como iluminações, como entendimentos daquilo que seria uma correta e
atualizada investigação do mundo do antifascismo, do que como leituras e análises
completas e acabadas. Examinaremos aqui três aspectos que permitem situar o
fenômeno do antifascismo no tempo e no espaço.
29
Um primeiro aspecto que é recentemente colocado cada vez mais em destaque é a
necessidade de pensar o estudo do antifascismo italiano no contexto mais amplo do
antifascismo internacional, num âmbito europeu e mundial, e no quadro de uma longa
duração, que abrace o entreguerras e a temporalidade do segundo conflito mundial. É
desse antifascismo, articulado a partir da Itália com experiências políticas de outros
países, como o Brasil, e declinado numa temporalidade que abraça as décadas de 1920,
1930 e 1940, que o presente trabalho se ocupa. Claramente, muitos estudos da categoria
política dos fuorusciti, do antifascismo do exílio, levam em conta as relações do mesmo
sobretudo com os expoentes dos grupos e partidos da esquerda européia, mas aqui o
ponto em questão é o de uma reflexão de cunho comparativo, capaz de perceber
analogias e diferenças, de estabelecer confrontos e proximidades.
A produção seja italiana seja internacional a esse respeito é relativamente escassa, com
um único trabalho de valor que se destaca, o do francês Jacques Droz, de 1985.34
Especialista em história alemã, o autor começa sua análise do antifascismo, que se
encerra com o ano de 1939, pelo estudo do posicionamento frente ao fascismo da
Terceira Internacional e da Internacional Operária e Socialista (IOS), para em seguida
percorrer caminhos, problemáticas, tentativas do antifascismo na Itália, na Alemanha,
na Áustria e em países onde o fascismo não chegou ao poder no entreguerras, como
França, Espanha e Grã-Bretanha. Ótima narração de percursos diferentes e variegados,
com preciosas informações e referências, o volume de Droz lamenta já em seu começo a
ausência (que continua até o presente) de obras de síntese sobre o antifascismo europeu
do entreguerras, atribuindo o fato a dificuldades derivadas de uma falta de consenso na
historiografia sobre o conceito de antifascismo, com fenômenos diferentes se
encontrando muitas vezes agrupados debaixo de seu nome. Obra pioneira no panorama
da historiografia mundial, a produção de Droz alarga o horizonte da investigação e
convida os pesquisadores a aceitar o desfio de pensar seu discurso sobre o antifascismo
em termos menos regionais e mais globais.
Ainda a esse respeito, os observadores são concordes em qualificar o antifascismo
italiano como periférico, pelo menos até 1933: a Itália era o único país no qual o
fascismo tivesse chegado ao poder e tanto os governos europeus, particularmente os das
democracias ocidentais, quanto suas opiniões públicas hesitavam em tomar uma posição
34
DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe, 1923-1939. Paris: La Découverte, 2001 (1ª Ed.
1985).
30
clara contra Mussolini. Até os partidos irmãos de inspiração socialista viviam no meio
de indecisões quanto a proclamas e ação. Contudo, como recorda De Bernardi,
a constatação, por todos compartilhada, que o antifascismo, até o
advento do nazismo, teve uma dimensão completamente periférica,
circunscrita às forças políticas italianas, não desmente o fato que desde
suas origens ele não pode ser plenamente compreendido somente dentro
de um quadro nacional, porque se coloca já nas dobras da assim
chamada ‘guerra civil européia’ entre sistemas políticos e ideológicos
[...] O antifascismo italiano, com efeito, desde 1925-26 é obrigado a se
mover num ambiente político continental.35
Antifascismo, então, como fenômeno europeu, seja pelo fato dos exilados serem uma
presença no coração da Europa, particularmente na França, autentica pátria de eleição
dos fuorusciti, seja pelo seu papel naquela que De Bernardi, retomando um conceito
elaborado por Ernst Nolte36, define como “guerra civil européia”. Concebida pelo
historiador alemão como choque entre duas opostas concepções da vida e da
organização da sociedade, cuja responsabilidade inicial cairia nas costas do
bolchevismo, ao qual o nacional-socialismo teria representado uma resposta, a categoria
da guerra civil européia é retomada por De Bernardi sem a preocupação noltiana de
registrar prioridades em sua detonação, e sim como chave de leitura adequada para a
compreensão do mundo europeu que sai da primeira guerra mundial, onde “o projeto da
revolução mundial bolchevique estava sendo confrontado com aquela mistura de
nacionalismo anti-liberal e populismo anti-socialista, de anti-racionalismo e
organicismo, forjada nos processos de massificação e mobilização inaugurados pelo
conflito”37, representada pelo incipiente fascismo, capaz de pôr-se como alternativa
tanto à democracia quanto ao comunismo.
Sobre a guerra civil européia como categoria útil para ajudar na compreensão do
fenômeno do antifascismo, uma interessante contribuição vem de outro pesquisador
35
DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In
ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e
strumenti per lo studio dell’antifascismo. Milano: Unicopli, 2006, p. 25. Cf. também DE BERNARDI,
Alberto; RAPINI, Andrea (org.). Discorso sull’antifascismo. Milano; Bruno Mondadori, 2007, p. 87.
36
Cf. NOLTE, Ernst. Nazionalsocialismo e bolscevismo. La guerra civile europea, 1917-1945. Firenze:
Sansoni, 1988 (1ª ed. alemã 1987)
37
DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In
ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e
strumenti per lo studio dell’antifascismo. op. cit., p. 25-26.
31
italiano, Neri Serneri,38 que fala dela como algo capaz de devolver o conflito entre
fascismo e antifascismo à historia da sociedade européia da primeira metade do século
XX. Para ele, o adjetivo “civil” não é sinônimo de “fratricida”, entendendo com isso o
conflito armado entre duas partes contrapostas mas moralmente irmanadas por pertencer
à mesma comunidade nacional. Civil indicaria, antes, um conflito interno à ordem
política, entre as classes de cidadãos (do latim cives), para definir a ordenação da res
publica. Guerra civil então como guerra política por excelência, sinal da fratura na polis
e forma extrema para recompor a fratura. Se foi ‘européia’, afirma o autor, é porque
indicava uma fratura que dividia a Europa inteira segundo alternativas ideológicas , e se
foi ‘guerra civil’ (e não simplesmente conflito internacional) é porque a divisão acima
mencionada tocava as sociedades do continente, com fraturas internas e transversais aos
diferentes Estados nacionais, e a partir de situações de ‘guerra civil’ já abertas no seio
de alguns, como a Itália e a Alemanha, pela chegada dos fascismos ao poder. As
conclusões da análise de Neri Serneri apontam na direção de um fascismo que foi
italiano só por acidente, isto é por conjuntura temporal, mas na realidade foi fenômeno
plenamente europeu, por ter elaborado estratégias destinadas a se reproduzir em outros
países e por ter proposto uma ordem nova para toda a sociedade do continente. Assim, o
antifascismo foi europeu, por ter definido um denominador comum prático e ideológico
para a fundação da democracia e da cooperação internacional.
Gerada por fenômenos inicialmente surgidos no Velho Continente, a categoria da guerra
civil européia não impede que possa ser de certo modo reformulada para alargar o
horizonte de sua compreensão ao mundo inteiro, ou pelo menos àquelas partes do
planeta onde as mesmas divisões transversais e internas à sociedade civil se
reproduziram, como luta entre o fascismo e o antifascismo. Esse alargamento de
perspectiva permitiria assim a inclusão de regiões como as Américas, e o Brasil
especificamente, no âmbito de sua utilização. O antifascismo, assim, de fenômeno
inicialmente entendido como italiano, e indiscutivelmente periférico até 1933, assume
uma perspectiva não somente européia, mas também mundial, como um dos pólos da
guerra civil, entendida como confronto interno à ordem política da res publica. Sua
configuração no caso brasileiro, como será mostrado mais para frente, envolverá
discursos, análises, tentativas, organizações, posicionamentos, lutas tanto contra os
38
NERI SERNERI, Simone. “ ‘Guerra civile’ e ordine político. L’antifascismo in Italia e in Europa tra le due
guerre” In DE BERNARDI, Alberto; FERRARI, Paolo (org.). Antifascismo e identitá europea. Roma: Carocci,
2004, p. 78-105.
32
fascismos de proveniência européia e suas ramificações nas colônias de imigrados,
quanto contra seus imitadores deste lado do Atlântico, como é o caso do movimento
integralista. Adequadamente classificável como o melhor expoente dessa consciência,
que leva também a uma prática, de que a luta ao fascismo se define nos termos de uma
guerra civil, é justamente um dos três antifascistas aqui analisados, o republicano Libero
Battistelli, levando em consideração tanto seu percurso no Brasil, quanto sua luta na
guerra de Espanha.
Um segundo aspecto que a recente produção historiográfica sobre o antifascismo está
colocando em evidência diz respeito à necessidade de situar os protagonistas do
fenômeno dentro da sociedade da época, considerando-os como homens de seu tempo e
não tanto como precursores de algo que virá. Uma renovada temporada de estudos que
focalizam menos os aspectos partidários ou ideológicos da luta antifascista e mais a
dimensão humana dos militantes ou dos simples simpatizantes está dando frutos
interessantes. A atenção ao vivido, às relações humanas e afetivas, ou a problemáticas
de qualquer forma ligadas a âmbitos pré-políticos assume importância maior na
literatura. Para isso, fontes documentais como as correspondências, os diários, etc. se
tornam objeto de estudo e investigação.39 Essa problemática, mais atenta a dimensões
antes bastante negligenciadas, tem diferentes implicações a segunda que se fale do
antifascismo no território italiano ou da luta antifascista além das fronteiras.
No primeiro caso, o da luta na Itália, recuperar uma leitura mais existencial dos
percursos do antifascismo significa interrogar-se sobre a sociedade italiana em quanto
tal, no período entre as duas guerras mundiais. Para De Luna, que, em seus trabalhos, se
dedica particularmente a essa dimensão, a historiografia do antifascismo deixou
excessivamente em segundo plano seu estudo como realidade viva do país. Segundo ele,
é preciso romper a dicotomia ‘estudo da história do fascismo versus estudo da história
do antifascismo’: na realidade, eles não são gêneros historiográficos, e sim uma única
realidade. Sua proposta, pelo fato de acreditar que “a partida entre fascismo e
antifascismo [...] ocorreu num campo mais vasto que um confronto entre opostas
concepções políticas, por se referir diretamente a dois projetos de construção de
39
Dois exemplos (o primeiro dedicado ao antifascismo comunista na Itália, o segundo à emigração
política na França e na URSS) entre vários: DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto. L’antifascismo nella
societá italiana. 1922-1939. Torino: Bollati-Boringhieri, 1995 e GABRIELLI, Patrizia. Col freddo nel cuore.
Uomini e donne nell’emigrazione antifascista. Roma: Donzelli, 2004.
33
identidades coletivas”,40 se move na direção de uma ‘história da sociedade italiana’
entre as duas guerras. A sugestão deste autor se torna uma fecunda provocação também
para quem se propõe de estudar a atuação de antifascistas no exterior: de fato, estes
permanecem no âmbito de referências constituído pelo tecido e a vida de uma
comunidade italiana, embora fora da Itália, comunidade cujos membros ficam
submetidos ao bombardeio de projetos antagonistas de construção de identidade. Será
oportuno retomar a questão quando se tratará das temáticas ligadas à emigração e à
tentativa de transposição do fascismo em terra brasileira, mas por enquanto a aguda
observação de De Luna merece registro e reflexão.
A proposta de fazer uma historia da sociedade italiana no período, do outro lado, abre
também uma problemática que merecerá mais a frente uma mais ampla reflexão, e que
aqui mencionamos rapidamente: a da possibilidade da existência de vários
antifascismos, ou melhor, de vários níveis de antifascismo, desde aquele dos militantes
e dirigentes políticos àquele de quantos se limitavam a formas de rebelismo
indiferenciado, de oposição silenciosa e escondida. A temática do significado do termo
antifascismo e da possibilidade de uma multiplicidade de sentidos em seu âmbito, assim
como o discurso do assim chamado “antifascismo existencial” é o que está por trás
desta discussão, que será apresentada em seguida.
Quanto à influência das novas orientações dos estudos do antifascismo sobre a
emigração política, é justo recordar que, nesse caso também, político e existencial,
ideologia e vivido se misturam, seja de fato, no tempo histórico, seja nos caminhos de
investigação e reconstrução do historiador. Obras que se dedicam à análise de percursos
individuais ou coletivos de fuorusciti, cavando nos bastidores de escolhas ideológicas e
tomadas de posição políticas, e devolvendo, através talvez de um epistolário, ou de
outro tipo de documentação pessoal, imagens de militantes ou simples emigrados, são
cada vez mais numerosas. E se é verdade o que afirma Leonardo Rapone, quando
representa o âmbito do antifascismo no exílio como uma experiência cada vez mais
desligada dos desenvolvimentos políticos na península, quase a história de uma “outra
Itália”, não podemos negar, ainda de acordo com ele, que essa outra Itália “de certo
modo encarna tradições políticas italianas, [...] que se confrontam com aquelas dos
países de acolhida”.41 No caso presente, também, foco do interesse são italianos
40
41
DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto. L’antifascismo nella societá italiana. 1922-1939, op. cit., p. 31.
RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940). Milano: Unicopli, 1999, p. 9.
34
emigrados, estudados principalmente do ponto de vista de sua atividade politica, mas
também levando em consideração outras dimensões de sua existência.
Uma terceira linha de contribuição a uma maior caracterização dos contornos do
antifascismo percorre a íngreme trilha da tentativa de definição do próprio fenômeno, e
de seus marcos cronológicos. Íngreme trilha porque sobre isso o debate historiográfico é
bastante aberto e as interpretações nem sempre fluem na mesma direção. Partiremos
aqui do pressuposto, ainda a ser discutido em seguida, mas aqui assumido como visão
compartilhada pela maioria dos observadores, que descreve fundamentalmente o
antifascismo italiano como formado, de um lado, pela luta de resistência, propaganda e
difusão de ideais levada a cabo por dirigentes e militantes de organizações e partidos
políticos italianos refugiados no exterior (da França à Suíça, da Inglaterra á Bélgica, dos
EUA ao Canada, da Argentina ao Brasil e ao Uruguai, para citar os principais), os
fuorusciti, e, do outro, pela tentativa de oposição interna - no solo da península - e por
isso clandestina, conduzida principalmente pelo partido comunista e também por grupos
menores, de varias orientação, entre os quais se destaca o movimento de Giustizia e
Libertá.
Os marcos cronológicos do fenômeno do antifascismo podem ser assim fixados, de um
lado, a partir do surgimento do fascismo como realidade ameaçadora da convivência
civil e como violenta tentativa de eliminação das organizações e das municipalidades
guiadas por expoentes socialistas ou católicos, e, do outro, até a queda política de
Mussolini como chefe do governo, em julho de 1943 ou até o encerramento do segundo
conflito mundial, em abril/maio de 1945. Coordenado por um núcleo de pesquisadores
de várias universidades, a recente aparição, como ótimo instrumento de pesquisa, de um
catálogo bibliográfico do antifascismo italiano42, que reúne pela primeira vez seja as
fontes, isto é, o material impresso (monográfico e periódico) produzido por todos os
expoentes e as forças organizadas do antifascismo italiano durante os anos do regime,
seja a memorialística e a contribuição historiográfica a respeito do tema a partir do fim
da segunda guerra até os nossos dias, traz elementos para uma discussão acerca desses
marcos cronológicos. Na premissa da obra, assinada por Matteo Pasetti, são indicados
os critérios usados no levantamento de dados e na sua ordenação e sistematização,
critérios que podem ajudar a orientar metodologicamente qualquer pesquisa sobre o
42
DE BERNARDI, Alberto et alii (org). Bibliografia dell’antifascismo italiano. Em CD-Rom. Roma: Carocci,
2008. Disponível também no site: www.storicamente.org/02tecnostoria/antifascismo.
35
antifascismo. As datas escolhidas como termos a quo (5 de novembro de 1926:
legislação do governo fascista que suprime definitivamente partidos, associações e
organizações políticas de oposição43) e ad quem (25 de julho de 1943: queda do
governo Mussolini) para a catalogação de textos, documentos e periódicos visam
caracterizar a própria categoria de antifascismo como fenômeno que se deu a partir da
declaração de ilegalidade de qualquer oposição, em 1926: o material publicado a partir
desta data, com efeito, ou era publicado na Itália de forma clandestina, ou pelos
antifascistas no exterior, no exílio. O antifascismo, então, seria então realidade a ser
compreendida entre aqueles dois marcos cronológicos, que caracterizam o fascismo
como regime ditatorial. Os autores do catálogo admitem a arbitrariedade de tal escolha,
que implica a exclusão de escritos e publicações de época anterior e até de
personalidades ilustres quais Gobetti, Amendola ou Gramsci, mas afirmam que ela
garante uma maior coerência de método, permitindo “delimitar de forma mais nítida a
fronteira entre a produção antifascista ilegal e todos os textos e/ou periódicos que,
mesmo dissentindo de forma mais ou menos explicita do fascismo, puderam, contudo,
circular livremente”.44
Necessária para um maior rigor metodológico, segundo os autores do catalogo, a
delimitação cronológica por eles escolhida é de qualquer forma suscetível de discussão,
quando se trata de caracterizar a ação e o pensamento antifascista antes ou depois dos
termos temporais fixados, pois, de um lado, deixa de fora o período da Resistência e, do
outro, os anos iniciais de afirmação e consolidação do poder fascista na Itália, quando
ainda não se tratava de ditadura aberta, mas dela já existiam de certa forma todas as
premissas, pois o fascismo, tendo presença e poder real no país, automaticamente
produzia um reação a ele em termos que não seria errado definir antifascistas.
43
Implantada com uma serie de medidas legislativas, entre novembro de 1925 e janeiro de 1926, que
regulamentavam as associações, restringiam a liberdade de imprensa, e privavam da cidadania quem
perturbasse a ordem publica ou diminuísse o prestigio da Itália, a ditadura fascista estabelece suas
medidas regulatórias supremas e mais liberticidas no final do ano de 1926. Um atentado à vida do Duce,
a 31 de outubro daquele ano, provoca uma duríssima reação fascista nos dias seguintes no país inteiro e
a adoção, no dia 5 de novembro, de novos duríssimos decretos, entre os quais a proscrição de todos os
partidos, as associações e organizações contrárias ao governo, a revisão de todos os passaportes para o
exterior e severas sanções contra o expatrio clandestino, e a instituição do degredo policial para atos
cometidos contra a vida e a organização do Estado. Vinte dias depois, a 25 de novembro, a lei pela
defesa do Estado introduz a pena de morte para os atentados contra os monarcas e o chefe do governo,
e alguns outros graves delitos, estabelece a pena da reclusão de 5 a 15 anos para os fuorusciti que façam
propaganda no exterior contra o regime, e institui um tribunal especial para julgar os delitos acima
mencionados.
44
DE BERNARDI, Alberto et alii (org). Bibliografia dell’antifascismo italiano, op. cit., premissa, p. 3.
36
Compreensível pelas razões acima apresentadas, sobretudo a escolha do marco a quo,
que retiraria a definição de antifascismo para atos, documentos e iniciativas
antecedentes tal data, toca diretamente a presente pesquisa. Para o entendimento de
nosso trabalho, esse termo a quo, rigidamente entendido, excluiria do campo
antifascista parte da produção de Giuseppe Scarrone no Rio de Janeiro, que por essa
mesma produção foi processado e condenado,
além de outras manifestações de
oposição ao fascismo nascidas na cidade já em dezembro de 1924, como a Unione
Democratica. Para tanto, ele não será por nós aplicado com a rigidez proposta pelo
catálogo bibliográfico do antifascismo italiano.
Fixados, embora não como balizas intransponíveis, os limites cronológicos do
antifascismo, se trata agora de caminhar na direção de uma sua caracterização mais
precisa. Comparáveis aos dois pulmões de um organismo vivente, a luta clandestina no
território italiano e a emigração política representam sem dúvidas as duas faces do
fenômeno. A historiografia se debruçou sobre as duas vertentes com profusão de
intervenções, desde as obras clássicas45 até as mais recentes, ora investigando debates
ideológicos e esforços organizativos de socialistas, republicanos, populares, anarquistas
no exílio, ora percorrendo os caminhos da clandestinidade comunista ou liberaldemocrática, na maioria dos casos preocupada mais com a dimensão político partidária,
mas ultimamente aberta, como já mencionado, a novas perspectivas analíticas. Não é
lugar aqui para repercorrer exaustivamente etapas e momentos das duas dimensões do
antifascismo. Para isso, há ótimos trabalhos que vão na direção de um olhar de síntese,
como os de Jacques Droz46, de Emilio Gentile 47, de Leonardo Rapone48, de Alberto De
Bernardi49 e, em língua portuguesa, o de João Fabio Bertonha50. Tentativas, esforços,
fracassos, são apresentados e discutidos por esta produção historiográfica.
45
GAROSCI, Aldo. Storia dei fuorusciti. Bari: Laterza, 1953. ALATRI, Paolo. L’antifascismo italiano. Roma:
Editori Riuniti, 1973. COLLOTTI, Enzo (org.). L’antifascismo in Itália e in Europa, 1922-1939. Torino:
Loescher, 1975. COLARIZI, Simona. L'Italia antifascista dal 1922 al 1940. La lotta dei protagonisti. RomaBari: Laterza, 1976. FEDELE, Santi. Storia della Concentrazione Antifascista, 1927-1934. Milano:
Feltrinelli, 1976.
46
DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe, 1923-1939, op. cit.
47
GENTILE, Emilio. Fascismo e antifascismo. I partiti italiani fra le due guerre. Firenze: Le Monnier, 2000.
48
RAPONE. Leonardo. “L’Italia antifascista”. In SABBATUCCI, Giovanni; VIDOTTO, Vittorio (org.), Storia
d’Italia. 4 / Guerre e fascismo. Roma-Bari: Laterza, 1997, p. 501-559.
49
DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In
ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e
strumenti per lo studio dell’antifascismo. op. cit., p. 24-56. E também DE BERNARDI, Alberto; RAPINI.
Andrea (org). Discorso sull’antifascismo, op. cit.
37
A este ponto, faz-se preciso indicar, mesmo que de forma sumária, as linhas principais
das duas vertentes do antifascismo, considerando, contudo, que nas próximas partes do
trabalho vários aspetos serão detalhados com mais profundidade. Após a retirada da
Câmara dos deputados dos grupos parlamentares de oposição como protesto pelo
assassinato de Matteotti (retirada que ficou conhecida como o Aventino51) e o
aparecimento das leis “fascistissimas” de 1925-26, se registram as sucessivas ondas de
emigração política, sobretudo em direção à França, com a reconstituição dos partidos de
inspiração socialista e republicana no exílio e suas tentativas de estabelecer laços com
os partidos irmãos. Em 1927 surgia a Concentrazione di azione antifascista, cartel de
partidos e instrumento de luta, marcada por problemas e divisões, e dois anos depois
Giustizia e Libertá, movimento oriundo de círculos antifascistas de inspiração liberaldemocrática, cuja aproximação dos antigos partidos provocou discussões, rupturas e o
fim da própria Concentrazione em 1934. Enquanto isso, a rede organizativa clandestina
do partido comunista na Itália estabelecia contatos, conquistava novos membros, mas
sofria com os golpes da repressão seja na base como nos vértices, mudando de tática e
de linha sempre de acordo com as diretrizes vindas de Moscou: repúdio pela ação dos
outros partidos, acusações de social-fascismo para os partidos socialistas, autorepresentação como únicos expoentes do autêntico antifascismo. Uma mudança de linha
ocorreu em 1934 (pacto de unidade de ação com os socialistas), confirmada pelas
diretrizes do VII congresso da Internacional Comunista em 1935 e consagrada pela
política das frentes populares, sobretudo na França e na Espanha.
A segunda metade dos anos 30 registrava assim o protagonismo comunista na luta
antifascista, mas também a difícil convivência dessa componente com as outras, desde
os anarquistas aos liberal-democráticos: o comum empenho na guerra de Espanha será
ocasião de solidariedades e contrastes.
A escalada do militarismo fascista e o
aproximar-se do conflito tornaram a situação mais incerta, as tentativas de oposição
mais complicadas, até que o pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939 jogou a
50
BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o
fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP/Annablume, 1999, Primeira parte.
51
O deputado socialista Giacomo Matteotti denunciara num inflamado discurso na Câmara as violações
da liberdade eleitoral perpetradas pelos fascistas, atacando Mussolini e outros líderes do Pnf. No dia 10
de junho de 1924, Matteotti é seqüestrado e morto (seu corpo será encontrado somente dois meses
depois). As investigações chegam a responsabilizar e sucessivamente condenar alguns squadristi ligados
ao próprio Mussolini. A indignação no país é grande, enquanto os deputados da oposição, menos os
comunistas, resolvem retirar-se das sessões parlamentares (“Aventino”).
38
clássica ducha de água gelada sobre o campo antifascista, que somente após a
declaração de guerra à URSS por parte de Hitler dois anos depois encontrará de novo
certo equilíbrio e força. Mas então a própria emigração política já terá mudado seu
principal lugar de fala e de luta: a França, debaixo da ocupação alemã, deixa de ser a
pátria do fuoruscitismo, que agora se manifesta principalmente a partir dos centros da
America do Norte e do Sul.
Estabelecidos de certo modo temporalidades entro as quais o fenômeno se situou e
lugares onde ele se manifestou, se trata agora de proceder à uma reflexão sobre
significados e razões do antifascismo rumo a uma sua definição mais completa.
1.4.
Antifascismo: definição, significado, valor
Uma avaliação com a qual a historiografia na sua totalidade concorda é a descrição do
antifascismo como fenômeno minoritário. Poucos milhares de inscritos e militantes nos
partidos de oposição reconstituídos no exterior, com pequenos grupos nos vários países
de emigração italiana, europeus ou americanos. Outros tantos ou pouco mais se
empenharam na luta clandestina na Itália: se os números do Tribunale Speciale per la
difesa dello Stato fazem fé, mesmo que a respeito deles haja controvérsias, houve cerca
de 15 mil pessoas denunciadas e 12 mil enviadas ao degredo, com uma área mais ampla
de “advertidos” ou submetidos a vigilância especial (cerca de 160 mil). As pastas de
opositores ou suspeitos que a polícia abre no Casellario Politico Centrale
52
durante o
regime fascista são cerca de 110 mil. Mesmo considerando essas faixas mais largas, o
fenômeno da oposição aberta ao regime, disposta a arriscar uma “advertência” ou uma
condenação, representa uma minoria junto da grande massa do povo italiano. Minoria
empenhada, engajada, combativa e combatente, mas sempre uma minoria. O mesmo
vale para o discurso sobre a emigração política e a luta ao fascismo a partir do exterior:
aqui também, no meio de colônias de emigrados da velha ou mais recente emigração, há
núcleos mais ativamente comprometidos com a ação antifascista, e maiorias mais
distantes, indiferentes, quando não simpatizantes ou partidárias do regime de Mussolini.
52
O Casellario Politico Centrale, instituído em 1896 pelo Ministério do Interior do Reino da Itália, era o
serviço do fichário biográfico dos “filiados aos partidos políticos particularmente perigosos para a ordem
e a segurança pública”. Incrementado a partir de 1926, após a aprovação das leis de Segurança Publica
do regime fascista, continuou sua função também durante os anos da redemocratização, até o fim da
década de 1960. Suas pastas são conservadas em Roma, no Archivio Centrale dello Stato.
39
Essa minoria empenhada, ativa, combatente é às vezes caracterizada, no discurso
historiográfico, como “vanguarda” ou “elite militante”, portadora de uma consciência
que o resto da sociedade não possuía, ou não soube expressar. Antifascismo em muitos
casos descrito como “o testemunho, às vezes heróico, de uma minoria que não
renunciara a seus ideais”, como foi escrito.53 Uma aristocracia, foi dito também, capaz
de dar voz a um sentimento de repulsa ao fascismo difundido em vastos setores da
sociedade italiana, os quais não teriam tido a força ou a coragem de manifestar-se. Ora,
o discurso, como se viu no primeiro capítulo, é mais complexo, pois a discussão em
torno de um estreito ou largo consenso popular ao fascismo mostrou a necessidade de
repensar o próprio conceito de antifascismo.
Até pesquisadores não suspeitos de
revisionismo, como Mario Isnenghi, criticavam aquela imagem de um fascismo sem
seguidores, quase uma “igreja vazia, sem religião e sem fieis”, que certas leituras dos
anos do regime, fruto sobretudo da necessidade de remover aqueles anos do passado da
nação, produziram. “A paisagem histórica que foi progressivamente delineando-se –
escreve Isnenghi ainda em 1979 – é aquela de um fascismo sem fascistas, onde um
atestado de antifascismo, criptoantifascismo, ou, na pior das hipóteses, afascismo, não é
negado a ninguém”.54 Evidentemente, a situação da sociedade italiana era mais
complexa, mais rica de nuances.
Trata-se a este ponto de definir exatamente o que se entende por antifascismo. Segundo
o juízo de Rapone e De Bernardi, o termo entende propriamente caracterizar aquele
conjunto de forças organizadas, de partidos políticos e movimentos – mesmo com
orientações ideológicas e leituras históricas diferentes - que se empenharam ativamente,
no exílio ou na clandestinidade, na propaganda, na conscientização, no esforço de
relação com forças e movimentos nos exterior e/ou também na realização de atos
exemplares ou de gestos públicos. Há, portanto, um sentido mais restrito de
antifascismo que é preciso estabelecer como o círculo mais interno de significados: a
oposição do Aventino, e depois os militantes e lideres políticos que se exilaram para
salvar suas vidas, suas famílias e poder continuar sua ação e sua luta, assim como os
membros do partido comunista ou outras menores formas de resistência interna que
escolheram a permanência na península. Chamar estas pessoas de antifascistas, e de
53
COLARIZI, Simona. L'Italia antifascista dal 1922 al 1940. La lotta dei protagonisti, op. cit., p. 2.
ISNENGHI, Mario. Intellettuali militanti e intellettuali funzionari. Appunti sulla cultura fascista. Torino:
Einaudi, 1979, p. 20-21, cit. in RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940). Milano:
Unicopli, 1999, p. 12, nota 3.
54
40
antifascismo seu esforço individual e coletivo é apropriado, segundo toda a literatura
existente. Tudo e somente aquilo que pode ser definido como “práxis que sai do quadro
normativo do Estado autoritário e tende à sua derrubada”55 merece plenamente o nome
de antifascismo, segundo Rapone.
Foi também dito que esta minoria, esta parte de sociedade italiana, na Itália ou emigrada
no exterior, representava uma “outra” Itália, uma segunda Itália: há afirmações neste
sentido, feitas também por expoentes do próprio movimento antifascista no
entreguerras, como Carlo Rosselli. Rapone aceita a definição para a oposição no exílio,
para a qual acredita que se possa deveras falar de “história de uma outra Itália”, mas não
concorda com seu uso para o antifascismo no território da península. Mesmo assim, há
pontos de sua produção historiográfica em que apresenta observações interessantes
sobre a existência, a ser verificada, de uma eventual “terceira Itália”, constituída por
fenômenos de oposição ao fascismo que se situavam num espaço intermediário entre o
fascismo e o antifascismo propriamente dito. Fenômenos que ele identifica: certa
publicística e certo associacionismo do laicato católico, manifestações de uma parte do
mundo da cultura, formas de protesto popular (greves, tumultos, atos mais simples de
transgressão, etc...), uma oposição das consciências muitas vezes difícil de decifrar e
quantificar, e até casos de “antifascismo de camisa preta” (percursos individuais ou
coletivos de amadurecimento de posições antifascistas no interior do próprio mundo
fascista).
Quanto a esses variados e multiformes fenômenos, todavia, a respeito de alguns dos
quais (sobretudo os protestos populares e certa oposição de consciência) outros
observadores chegam a usar aquela categoria da qual já se fez menção, a de
“antifascismo existencial”, Rapone é firme em sua posição: eles não merecem a etiqueta
tout court de antifascismo, pois lhes falta o aspecto fundamental da consciência política
e do empenho ativo de luta, ou, pelo menos, da realização de uma efetiva função de
contraste ao regime. Sem isso, diz o pesquisador, há protesto, dissenso, não
antifascismo. Além do circulo mais interno, esses fenômenos podem representar um
circulo mais largo, de resistência passiva, de oposição flutuante, muitas vezes episódica.
55
RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940), op. cit., p. 19.
41
Há interessantes pesquisas sobre pessoas e grupos que manifestavam comportamentos
antagônicos ao fascismo não a partir de uma opção ideológica ou de uma pedagogia
política, e sim a partir de sua peculiar colocação na estrutura da sociedade, como no
caso, por exemplo, de certos grupos de operários nas fabricas. Ora, se, de um lado, os
estudos sobre o dissenso na sociedade italiana diante do fascismo têm respondido à
exigência de não limitar sua área somente entre os confins da oposição clandestina,
investigando territórios e comportamentos onde, embora não desafiando abertamente a
legalidade ou colocando em risco a tranqüilidade da existência, a semente de um
antagonismo tendia a se manifestar, do outro, se chegou às vezes a tornar quase
intercambiáveis termos como antifascismo e “afascismo”, ou a supervalorizar atitudes
de antifascismo “popular”, ou das assim chamadas “formas pobres” do protesto (frases
escritas nos muros, imprecações contra o regime, gestos de insubordinação diante de
uma autoridade, etc.), ou ainda a enfatizar percursos individuais que apresentam algum
traço de uma objeção de consciência. Com certeza esta área cinzenta de uma oposição
não aberta ao regime merece estudos mais amplos, assim como com outra tanta certeza
trata-se de uma região móvel e cheia de nuances. Escreve Enzo Collotti:
Consenso e oposição, na realidade, representam duas categorias limite:
a maior parte dos comportamentos individuais e de massa, com toda
probabilidade, não pode ser identificada com um ou outra das duas
categorias, mas com a soma infinita dos comportamentos
intermediários, que somente em suas expressões mais explícitas e
radicais tomam realmente a forma de consenso e de oposição.56
Quem toma partido para uma adoção mais sistemática da categoria de antifascismo
existencial é Giovanni De Luna. Para ele, o político é somente o mais interno dos
círculos concêntricos do antifascismo, sendo o mais amplo representado por aquela
“área de rebelismo indiferenciado, aspecto conjuntural de fenômenos inscritos em
tradições populares anti-estatais de longo período, desde sempre típicos das assim
chamadas ‘classes perigosas’”. 57
Embora estimulante por uma serie de aspectos, a visão de De Luna levanta problemas
de não fácil solução num percurso de definição do antifascismo. Por isso encontra mais
56
COLLOTTI, Enzo. Fascismo, fascismi. Firenze: Sansoni, 1989, 54-55, cit. in RAPONE, Leonardo.
Antifascismo e societá italiana (1926-1940), op. cit., p. 27, nota 36.
57
DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto. L’antifascismo nella societá italiana, 1922-1939, op. cit., p. 54.
42
nossa adesão a posição de Rapone, que sublinha a necessidade de estudar estas várias
formas de resistência e oposição, mesmo que descontínuas, parciais, seletivas, ou
configuradas como lentos percursos de amadurecimento, como formas menores e
episódicas58, alertando, porém, sobre a importância de distingui-las sempre do
antifascismo da luta e da propaganda organizada. E, quanto à fotografia da sociedade
italiana debaixo do regime de Mussolini, podemos concordar com sua convicção,
segundo a qual, se é irreal a hipótese de um “fascismo sem fascistas” (como deixavam
pensar, pelo contrario, certas leituras da sociedade italiana no entreguerras produzidas
pela exaltação do esforço e do valor da guerra partigiana), irreal também é representar o
que não era declaradamente antifascismo na sociedade italiana como uma única
realidade impregnada de fascismo, como os “mil fragmentos de outros tantos vários
fascismos”, para usar uma expressão de Zunino.59
A discussão sobre a sociedade italiana no entreguerras quanto ao tema do apoio ao
fascismo, do consenso e do dissenso é complexa. Afinal, na esteira de Rapone, podemos
aceitar, como ponto de partida para uma análise correta do antifascismo presente na
sociedade italiana, a afirmação de Paul Corner segundo a qual, num regime de coerção
como o vigente na Itália na época fascista, “não era oferecida ao cidadão alguma
escolha real entre ser fascista ou antifascista [...]. O antifascismo, fora poucos realmente
privilegiados ou outros poucos muito heróicos, era uma opção na realidade
inexistente”.60 E o próprio Rapone acrescenta que as freqüentes referências, por
exemplo, contidas nos relatórios periódicos dos informantes da polícia do regime,
acerca de sentimentos antifascistas presentes em vários setores da sociedade, não devem
ser lidas como sinal da existência de largos bastidores para a luta clandestina, e sim
como demonstração que havia uma forma ‘compacta’ de conduzir a vida: quer dizer, se
vivia debaixo do regime, sim, mas sem conformismos ou anulações.61
É claro que deste modo se chega a uma definição “estreita” de antifascismo, mas isso é
necessário para manter claro aquilo de que se fala, e separado de atitudes,
58
O próprio Leonardo Rapone traz em seu interessante volume, Antifascismo e societá italiana (19261940), uma série de documentos de vários tipos de oposição.
59
ZUNINO, Pier Giorgio. L’ideologia del fascismo. Miti, credenze e valori nella stabilizzazione del regime.
Bologna: Il Mulino, 1985, p. 373-374
60
CORNER, Paul. “Fascismo e controllo sociale”, Italia contemporânea, op. cit., p. 403
61
Cf. RAPONE, Leonardo. “L’Italia antifascista”. In SABBATUCCI, Giovanni; VIDOTTO, Vittorio (org.),
Storia d’Italia. 4 / Guerre e fascismo, op. cit., p. 554.
43
comportamentos e atos que não podem ser chamados de antifascismo propriamente dito.
Evidentemente, aqui se discute do assunto na medida em que se refere à vida da
sociedade italiana do período. Uma reflexão distinta tem que ser reservada, com efeito,
para o antifascismo do exílio, onde, pelo menos numa primeira aproximação, as tintas
do mundo antifascista parecem mais definidas, a militância, a luta, a oposição mais
abertas, a rejeição do regime mais radical, embora, no que diz respeito ao conjunto da
comunidade dos emigrados, dependendo do país hospedeiro, encontre-se também uma
grande variedade de posições e opiniões a respeito do governo de Mussolini, lá, na
pátria distante. Encontrar-se-á, então, como se verá, o núcleo duro do antifascismo
militante e combatente, mas também os emigrados em camisa preta, assim como várias
situações intermediarias.
Mas como a historiografia lê o fenômeno do antifascismo italiano? Quais os
significados que lhe atribui? Atuação de pequenos núcleos engajados, realidade de
minorias - seja na Itália como no exterior - empenhadas numa luta muitas vezes ímpar e
frequentemente sem muito apoio da opinião pública internacional, núcleos de partidos
que se reorganizam no exilio - a partir de 1933-34 - pelas mudanças da situação
internacional e portanto encaminhados em direção a uma expressão unitária (embora
constantemente atravessadas por divisões e contrastes): se a historiografia é unanime na
descrição do fenômeno, quanto à sua interpretação ela é divergente. Deixando de fora
algumas visões excessivamente hagiográficas, típicas da produção das primeiras
décadas após a segunda guerra, onde o antifascismo é descrito como o precursor da luta
“resistencial”, e a ação dos antifascistas celebrada com tons de epopéia, há consenso dos
estudiosos da historiografia mais recente sobre o valor e a importância do antifascismo
como tal, como fenômeno de seu tempo e dos lugares em que se produziu e não mais
diretamente ligado ao levante insurrecional (que teve outros tipos de motivações e outra
gênese).
Assim, os estudos concluem que o antifascismo foi periférico pelo menos até 1933, sim,
mas, ao menos em certos expoentes e certas tomadas de posição, conectado com o
contexto europeu e mundial; minoritário como fenômeno, mas significativo para a
gestação da moderna democracia; vanguarda que permitiu à consciência européia e
mundial não adormecer diante da escalada dos fascismos e de sua pretensão totalitária;
dividido e conflitante em seu próprio seio, mas aos poucos capaz de gerar um debate e
uma reflexão sobre pontos centrais da vida política e civil; testemunho militante, muitas
44
vezes incapaz de pensar numa ação coletiva contra os fascismos, mas sem dúvida capaz
de manter vivos ideais que outros deixaram apagar. As apresentadas acima são algumas
das linhas interpretativas do antifascismo italiano, no contexto do antifascismo
internacional. O essencial, nessa análise, como vários observadores comentam, é não
cair em nenhum dos dois pólos extremos: a excessiva exaltação do fenômeno ou a sua
total desqualificação. Sua importância é indiscutível: necessário, contudo, é reconhecer
seus limites e suas incoerências.
É preciso dizer algo, contudo, sobre as questões mais controvertidas, no plano da
interpretação e do juízo histórico. Uma delas se refere à unidade do antifascismo. Aliás:
pode-se falar ainda de ‘antifascismo’ ou seria melhor usar o termo no plural? Rapone 62
é claro em sua posição: a unidade é uma aspiração das várias componentes do
antifascismo desde o inicio, é um principio originário, uma tensão sempre presente,
embora nunca completamente realizada e conseguida, pois cada expressão do
antifascismo (anarquista, socialista, popular, comunista, republicana, liberal-socialista,
etc...) tende sempre a conservar sua especifica e incancelável individualidade, no plano
político e intelectual.
Na verdade, duas são as leituras que uma afirmação como essa busca contrastar. A
primeira é a de certa visão mais tradicional do mundo antifascista, descrito como
realidade unitária porque objeto de perseguição por parte do regime e, portanto, capaz
de uma superação, uma sublimação das diferenças ao redor de um mínimo denominador
comum, o da luta pela democracia, em nome do qual sacrificar as visões diferentes
(interpretação retomada recentemente por Revelli63). A segunda é a leitura, apresentada
em sua forma mais completa por François Furet64, segundo a qual o antifascismo em si
não teria conteúdo político nenhum, mas seria somente um expediente tático do
movimento comunista internacional para penetrar no Ocidente, quase um cavalo de
Tróia para a infiltração do comunismo em sua versão estalinista. O historiador francês,
que - é importante seja registrado - estuda em seu volume (capítulos VII e VIII) as idas
e vindas do antifascismo principalmente a partir da análise da vida política e cultural de
seu país, desconsiderando o horizonte mais amplo de seus significados, descreve o
62
Cf. RAPONE, Leonardo, “L’antifascismo tra Italia e Europa” In DE BERNARDI, Alberto; FERRARI, Paolo
(org.). Antifascismo e identitá europea, op. cit., p. 1-24.
63
REVELLI, Marco. “Le idee” In DE LUNA, Giovanni; REVELLI, Marco. Fascismo, antifascismo. Le idee, Le
identitá, Firenze: La Nuova Italia, 1995, p. 23
64
FURET, François. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995.
45
mundo comunista antes de 1934 como uma organização que levanta, antes de mais
nada, a bandeira da revolução e da derrota da ordem burguesa, e que, quando fala de
antifascismo, o identifica com a luta pela vitoria dos ideais comunistas: e acrescenta, em
seguida, que, a partir desse ano e do sucessivo, as mudanças do comunismo
internacional (frente popular na França, relatório do VII Congresso do Comintern)
“oferece a Stalin um espaço político para implantar na Europa toda um vasto sistema
revolucionário, inteiramente devotado a ele”65, e que, afinal, “Hitler empurra a URSS
para o campo da liberdade, onde ela não é mais só a aliada natural das democracias, ela
mesma é democrática: não como a França - pois é comunista, mas ainda mais que ela uma vez que suprimiu o capitalismo”.66 Furet até admite que existe um antifascismo de
esquerda anterior a 1934-35, “combatendo cada um, na maioria das vezes, sob sua
própria bandeira”, mas identifica a novidade que aparece a partir de 1934 com a
aceitação comunista de “ceder parte de seu monopólio do antifascismo em troca do
abandono, por parte de seus novos aliados, de qualquer anticomunismo”67. Como se vê,
ele se lança, em sua leitura dos fatos, numa crítica radical ao proceder do movimento
comunista em relação aos fascismos a partir de meados da década de 1930, proceder
que ele identifica como mera atitude tática em vista de objetivos mais amplos:
a partir de 1935, eles [os comunistas] aparentemente devolveram um
pouco de autonomia a todas essas forças intermediarias, não só aos
socialistas, mas também aos democratas, aos liberais, aos republicanos:
mas se trata de uma liberdade vigiada, uma vez que controlam o espaço
do antifascismo e concedem os certificados de filiação.68
A interpretação do historiador francês, segundo Rapone e outros observadores, parte de
uma perspectiva excessivamente franco-cêntrica e limitada à relação entre antifascismo
e comunismo, não percebendo ou não considerando a relevância histórica de outras
dimensões do antifascismo, anteriores e distintas da temporada das frentes populares.
65
Ibid., p. 274
Ibid., p. 287
67
Ibid., p. 328-329
68
Ibid., p. 329.
66
46
Também De Bernardi69, mesmo reconhecendo que o “frontismo” era fruto de um
exasperada visão tática da Terceira Internacional, e que, por exemplo, o pacto de
unidade de ação de 1934 entre socialistas e comunistas italianos não representou
nenhuma tentativa de unidade maior, a não ser a definição de espaços de colaboração
para a ação de propaganda, rejeita a leitura de Furet como excessivamente
simplificadora de um fenômeno como o antifascismo, que possuía maior respiro e
amplitude, e no seio do qual, a partir dos anos 30, embora entre contradições e debates,
até certa percepção do valor e do significado da democracia começava a encontrar um
caminho na mente de alguns dirigentes do comunismo italiano.
Unidade, então, como tensão de todas suas componentes, empenhadas cada uma
segundo seus referenciais ideológicos na oposição ao fascismo e na construção de uma
sociedade nova. Estas diferenças entre as várias linhas do antifascismo não são,
contudo, suficientes para legitimar, segundo a literatura sobre o tema, que se fale de
“antifascismos”. Aliás, uma útil sugestão é a oferecida por Franco De Felice70, um dos
mais agudos observadores do fenômeno na recente produção, que avança a categoria de
“partido do antifascismo”, entendendo com isso o lento amadurecer de uma consciência
nova perante os problemas históricos da sociedade européia. Após a guerra que tanto
destruiu e tanto marcou o continente, três apareciam, segundo a leitura de F. De Felice,
as principais questão em pauta: reformular a idéia de nação, definir uma nova ordem
internacional sobre a qual fundamentar a paz e conjugar em termos novos liberdade,
justiça e igualdade, ou, em outras palavras, os direitos civis e os direitos sociais. Assim,
diz F. De Felice - naquela que é também uma interessante leitura do significado do
antifascismo em sua luta - enquanto os fascismos apostam na militarização interna e no
expansionismo externo, o antifascismo (e aqui o pesquisador italiano adota o termo de
“partido do antifascismo”) aposta em outro tipo de proposta, a do Estado social, da
segurança coletiva, da democracia de massa.
Um “partido” esse, que não tem uma data de fundação, um secretário geral ou
congressos nacionais: é mais algo como o vir à tona no âmbito do antifascismo,
sobretudo socialista, liberal e democrático de novas orientações, novas perspectivas,
novas convicções, expressão de uma “revolução antifascista” que se opõe à pretensa
69
Cf. DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In
ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e
strumenti per lo studio dell’antifascismo, op. cit.
70
Cf. DE FELICE, Franco (org.). Antifascismi e Resistenze. Roma: Carocci, 1997.
47
”revolução” dos fascismos. Um partido, contudo, que, novamente na análise de De
Bernardi,71 só muito lentamente e com muitas dificuldades e resistências conseguiu
produzir as tais ‘novas perspectivas’, pois até a segunda metade da década de 1930 nas
fileiras socialistas a visão positiva da democracia (apelidada de ‘burguesa’) ainda
demorava a decolar. E um ‘partido’, também, para a constituição do qual, segundo De
Bernardi, o movimento comunista italiano não teria contribuído significativamente.
Além disso, ancorado a uma linha de conduta fundamentalmente pacifista,
particularmente em sua componente socialista, o antifascismo não soube prever como o
fascismo podia ser derrotado, nem imaginar sua queda através de uma guerra
continental. Ficou, na década de 30, representando aos olhos da opinião pública
internacional, a resistência de minorias ativas em sua ação de propaganda e de
preparação pedagógica, à espera de uma futura crise revolucionaria. Os eventos de
Espanha e o aprofundar-se da escalada expansionistas dos fascismos no final dos anos
30 mudariam o cenário.
Essa longa discussão acerca do caráter unitário do antifascismo permitiu registrar
convergências e divergências entre linhas interpretativas, mas mostrou como, com a
exceção de Furet, a maioria dos observadores atribua ao fenômeno um conjunto de
significados que o colocam como fator de democratização do cenário político europeu
(e mundial), apesar de suas limitações teóricas e práticas.
É a partir desse juízo global que devemos colocar as atuações de Scarrone, Garavini e
Battistelli, em busca de uma verificação de categorias e análises apresentadas acima. O
que pode significar, por exemplo, falar de um “partido do antifascismo”, quando se
debaterá a respeito dos percursos políticos dos três investigados? Em que medida
diferenças ideológicas podem ter dificultado a elaboração de uma proposta unitária?
Como seus percursos individuais se colocam no contexto da tentativa de construção de
uma frente unitária antifascista no Rio de Janeiro? Questionamentos que não poderão
deixar de levar em conta, como horizonte de referência, juízos como o de Nolte, de
1966, embora limitado à emigração política italiana na França na década de 1920 e
começo de 1930: “Os círculos dos emigrados constituíam uma espécie de microcosmo
político, cuja impotente agitação contrastava singularmente com a imóvel potencia do
71
Nestas observações somos devedores da análise de De Bernardi presente em seus trabalhos, já várias
vezes citados.
48
fascismo; no seio deste microcosmo tramavam-se intrigas improdutivas, mas
experimentavam-se também soluções fecundas”.72
Em busca de significados e valores do antifascismo, impossível não considerar a
questão da relação entre o mesmo e o fenômeno da luta partigiana contra o nazismo e o
fascismo da República de Saló, que interessou particularmente o centro e o norte da
Italia, entre 1943 e 1945. A literatura sobre a resistência italiana é enorme, mas os
estudos que tentam discutir a relação da mesma com o antifascismo não são muitos, ou,
melhor, a tendência predominante na historiografia italiana foi por muito tempo aquela
que considerava o antifascismo do entreguerras como uma grande premissa da luta
partigiana, uma sua preparação sofrida, uma longa véspera de espera até o glorioso
final. Desta forma a investigação sobre o antifascismo e suas especificidades, que
tentamos ilustrar acima, ficou muitas vezes negligenciada, quando não reduzida a
simples prefácio do estudo da Resistência. Expoentes da clássica historiografia sobre a
resistência italiana, como Battaglia, Ragionieri, Quazza e Candeloro (com obras escritas
entre 1975 e 1984), compartilham desta linha de leitura, que se tornou quase um
paradigma interpretativo. Desta forma, porém, o antifascismo acabava prisioneiro de
um cone de sombra, não conseguindo adquirir a fisionomia de um objeto historiográfico
autônomo.73 A atual reflexão historiográfica tende a separar os dois momentos, lendo o
fenômeno da resistência (ou das resistências européias) como evento imprevisto e
espontâneo. Gerado pelo próprio conflito e suas vicissitudes, o fenômeno resistencial
seria menos uma conseqüência da tradição antifascista e mais uma reação às terríveis
feridas provocadas pela guerra sobre o país e a população, fato mais evidente no caso
francês, tcheco ou polonês, mas também no caso italiano, onde as descontinuidades
entre antifascismo e resistência superam as continuidades. O ensaio de Claudio Pavone,
de 199174, com sua tríplice proposta interpretativa da resistência italiana (guerra de
libertação, guerra civil e conflito de classe) oferece uma leitura do evento que mostra
seus múltiplos significados: insurreição nacional contra a ocupação estrangeira, luta
entre visões contrastantes da convivência civil – fascismo versus antifascismo, e outra
luta no seio da anterior, entre diferentes formas de conceber a construção da sociedade
futura. Uma proposta de leitura que ultrapassa os propósitos deste trabalho, mas que
72
NOLTE, Ernst. Les Mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945, op. cit., p. 99.
73 Para uma interessante panorâmica da visão desses autores cf. o capitulo conclusivo (p.200-229) de
DE BERNARDI, Alberto; RAPINI, Andrea (org). Discorso sull’antifascismo, op. cit.
74 Cf. nota 32.
49
com sua contribuição e pelas categorias interpretativas usadas (antifascismo e guerra
civil européia, debate e conflito entre diferentes visões da luta contra o fascismo)
dialoga com o horizonte de referências dele.
1.5.
Antifascismo em terra de exílio
Como se viu anteriormente, um dos componentes mais significativos do antifascismo
italiano foi a emigração política, seja antes como depois das leis repressoras do regime
de Mussolini. A esse ramo do antifascismo italiano se dedicará agora mais atenção pelo
fato do presente trabalho se inserir no conjunto de estudos consagrados a esse âmbito.
Sua história é narrada em numerosas publicações, algumas de caráter geral e muitas
ligadas ao país ou até a região para onde se direcionou a emigração provocada pelo
fascismo. 75
Muitos historiadores de debruçaram sobre os feitos da Concentrazione d’azione
antifascista, cartel de partidos (os socialistas reformistas e os maximalistas, os
republicanos, a LIDU - Lega Italiana per i Diritti dell’Uomo, e os sindicalistas da
CGdL – Conferazione Generale del Lavoro) fundado em 1927 em Paris e encerrado em
1934. Outros se empenharam em analisar o surgimento em 1929 do movimento de
Giustizia e Libertá (que sempre afirmou a prioridade da ação antifascista na Itália,
mesmo usando de espaços organizativos e deliberativos também no exterior), sua
aproximação da Concentrazione, a separação das atividades e das tarefas das duas
organizações, o diálogo e as incompreensões entre elas. A história dessas duas
experiências de luta ao regime de Mussolini se mistura com a do movimento comunista
internacional e sua politica de aproximação dos partidos não comunistas no âmbito da
política das frentes populares.
75
Além das obras já citadas, como GAROSCI (1953), FEDELE (1976), DROZ (2001), GABRIELLI (2004), vejase: COLARIZI, Simona. “L'antifascismo all'estero”. In Storia dell'Italia contemporanea / Resistenza e
Repubblica (1943-1956), vol. 5, Napoli: ESI, 1979. TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani
in Francia. Milano: Mursia, 1988. FEDELE, Santi. Repubblicani in esilio nella lotta contro il fascismo, 19261940. Firenze: Le Monnier, 1989. ------------. Il retaggio dell’esilio. Saggi sul fuoruscitismo antifascista.
Soveria Mannelli: Rubbettino, 2000. TOBIA, Bruno. Scrivere contro. Ortodossi e eretici nella stampa
antifascista dell’esilio (1926-1934). Roma: Bulzoni, 1993.
50
A ingente produção historiográfica sobre a Concentrazione focaliza sobretudo os
aspectos políticos e ideológicos de sua articulação, ora pondo em evidência sua
importância pela rede de contatos a nível internacional e pela ação de testemunho, quase
uma tribuna de onde a voz da oposição italiana pudesse atingir os ouvidos da opinião
publica européia, ora frisando sua atitude fundamentalmente orientada à espera, sem
propor iniciativas ou gestos significativos, e limitada a um papel meramente
conservativo e organizativo da vida dos fuorusciti.76 O debate está aberto entre os
pesquisadores acerca do significado político desse instrumento de luta, cuja breve
existência é vista por alguns como um fracasso, devido a sua composição bastante
heterogênea e ao fato de querer transpor para o exterior modelos tradicionais de partido,
por outros como uma interessante tentativa de diálogo entre diferentes âmbitos do
antifascismo, que levou a um esforço de revisão ideológica, de autocrítica, de
renovação. Assim como objeto de estudo e investigação foi a experiência de Giustizia e
Libertá, com suas novidades e seu percurso singular, ligado à carismática figura de
Carlo Rosselli. Quanto à luta dos anarquistas no exílio, a literatura é menos abundante,
voltada principalmente para a reconstrução do percurso humano e político de algumas
figuras expressivas, como, por exemplo, Camillo Berneri,77 ou os que repararam no
Uruguai, particularmente Luigi Fabbri e sua filha Luce.78
Uma fecunda linha de pesquisa, começada nas últimas décadas, tende a recuperar o
discurso sobre o antifascismo no exílio em diálogo com os estudos sobre a emigração.
Por muito tempo os historiadores desse campo hesitaram em enfrentar a problemática
ligada aos movimentos migratórios e às comunidades italianas no exterior durante a
76
Uma observação de Bruno Tobia propõe uma restrição lexical que merece ser registrada. Pelo fato
dos membros da Concentrazione considerarem “prioritária, por ser a única possível, a ação política fora
da península, considerada nada mais que uma única, imensa, sufocante prisão”, ele propõe que o termo
fuoruscitismo seja reservado somente para os concentracionistas, e não para os membros de Giustizia e
Libertá, por exemplo, nem, evidentemente, para os comunistas. Cf. TOBIA, Bruno. Scrivere contro.
Ortodossi e eretici nella stampa antifascista dell’esilio (1926-1934), op. cit., p. 129.
77
Sobre Berneri, anarquista que se refugia na França apos as leis fascistissimas, e em seguida em vários
paises da Europa, até chegar à Espanha, onde lutará na guerra civil, e encontrará a morte, ver sobretudo
FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, Pistoia: Edizioni Archivio
Famiglia Berneri / Comune – Assessorato agli Istituti culturali, 1984. Com ele, Battistelli trocará
interesssantes correspondências.
78
Fabbri se refugia na França e em seguida no Uruguai, onde fundará a revista Studi Sociali. Morrerá em
Montevidéu em 1935. Sobre ele, com o qual seja Garavini como Battistelli se corresponderão, ver o
epistolário: GIULIANELLI, Roberto (org.). Luigi Fabbri / Epistolario ai corrispondenti italiani ed esteri
(1900-1935). Pisa: BFS, 2005. Sobre Luce Fabbri, uma interessante obra em língua portuguesa é RAGO,
Margareth. Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo:
UNESP, 2001.
51
época fascista, de certa forma reputando que o estudo destes fenômenos coubesse
essencialmente aos historiadores da política do fascismo e do antifascismo. Segundo
Rapone,79 é sintomático de tal dificuldade o fato que, até duas décadas atrás, a maior
parte das pesquisas sobre as atividades políticas dos trabalhadores italianos no exterior e
seu envolvimento com as formas e as dinâmicas da mobilização social dos países que os
hospedavam não ultrapassassem o marco cronológico da primeira guerra mundial. Foi
exatamente a partir dos anos oitenta do século passado que as duas linhas de pesquisa
começaram a dialogar e a se entrelaçar. Contribuição fundamental neste sentido foi a
oferecida por estudiosos dos países de destinação da emigração italiana, particularmente
a França, que representou o principal centro de acolhida de refugiados oriundos da
península. O Centre d’études et de documentation sur l’émigration italienne (Cedei),
fundado a Paris em 1983 por Pierre Milza e outros pesquisadores, foi principal
incentivador da urgência de reconduzir a experiência do exílio político no mais amplo
contexto dos movimentos migratórios, situando-a assim na perspectiva de uma “história
social da emigração política”. Os estudos de Eric Vial, Bruno Groppo e outros
pesquisadores do Cedei, que, entre outros objetos de pesquisa, se concentraram também
na elaboração de um banco de dados sobre a emigração italiana para a França a partir
dos arquivos do Casellario Politico Centrale, contribuíram a fortalecer esta tendência.
Um primeiro aspecto focalizado por estas pesquisas se refere à determinação dos fluxos
migratórios em saída da Itália após o aparecimento do fascismo. As respostas às
indagações nem sempre convergem. Para Droz,80 por exemplo, as ondas são
fundamentalmente três: a primeira, de 1922 a 1925, com a emigração de vitimas do
squadrismo fascista e/ou da paralela repressão policial – sobretudo dirigentes sindicais,
de cooperativas ou de prefeituras de esquerda, além de alguns lideres da oposição (Nitti,
Sturzo, Donati); a segunda, entre 1925 e 1926, que se estende aos principais lideres do
Aventino e a outras personalidades do mundo político da oposição (Amendola, Gobetti,
Salvemini, Tarchiani, entre outros); a terceira, após as leis repressivas de novembro de
1926, que envolve numerosos outros expoentes antifascistas (Treves, Turati, Rosselli,
Nenni) e vários militantes de base. Já Groppo81 e Rapone consideram também os fluxos
migratórios anteriores a 1922, a partir de 1920, quando o fascismo recém nascido
79
RAPONE, Leonardo. “Emigrazione italiana e antifascismo in esilio” In ASEI (Archivio Storico
dell’Emigrazione Italiana), 2008.
80
DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939), op. cit., p. 30-32
81
GROPPO, Bruno. “Entre immigration et exil: les refugiés politiques italiens dans La France de l’entredeux-guerres” . Matériaux pour l’Histoire de notre temps, 1996, vol. 44, nº1, p. 27-35.
52
começava suas investidas nas cidades e nas áreas rurais do centro e do norte da Itália. A
este ponto, a discussão toca um tema interessante, o do entrelaçamento das motivações
políticas com as econômicas. Emigração econômica e emigração política coexistem e se
sobrepõem, sobretudo no caso da emigração dos militantes da base. Para muitos, diz
Groppo, fugir do fascismo e escolher o exílio é ao mesmo tempo escapar das
perseguições e encontrar a possibilidade de um trabalho, que se tornara impraticável na
condição anterior, na Itália. Acolhendo a sugestão de outro pesquisador do Cedei (Éric
Vial), ele propõe chamar essa emigração de “político-econômica”.
Rapone argumenta a respeito com análises mais sofisticadas. Os fluxos de saída no
começo da década de 1920 são oriundos de dificuldades econômicas, mas também, e,
em muitos casos, sobretudo, da necessidade de mudar, de deixar lugares de domicilio
perigosos, com perspectivas de vida e trabalho difíceis ou insustentáveis, a causa dos
ataques fascistas. Sua análise afirma que as motivações “políticas”, nesses casos, não
são meros estímulos políticos à escolha de expatriar de pessoas inquietas, ‘irregulares’,
mas se aproximam mais de um mal estar econômico individual de origem ‘política’, ou
de uma verdadeira coação ‘política’ para buscar trabalho no exterior. E acrescenta que,
se não se qualificará de “antifascista” essa emigração, será por resolver não incluir os
primeiros anos da década de 1920 na abrangência do termo, e não porque ela não
carregue a marca da ‘política’, pois ela é em tudo e por tudo produzida pelo fascismo.
A preocupação em colocar um referencial a quo para situar a emigração antifascista se
conecta com as análises acima apresentadas quanto aos marcos cronológicos do
antifascismo. Até 1926 pode-se falar explicitamente de “antifascismo”? Nossa resposta
é afirmativa, embora a datação da Bibliografia dell’Antifascismo Italiano exclua os anos
anteriores às leis liberticídas, por razões de ordem metodológica. Mas, sobretudo
quando se trata de emigração devida ao fascismo, ainda mais pelas razões agora
apresentadas (uma emigração política que em muitos casos apresentava um forte
componente econômico, uma emigração, portanto, que em muitos casos começa antes
de 1926), o critério cronológico para definir o que é e o que não é antifascismo não pode
ser excessivamente rigoroso. Além disso, é preciso lembrar, com Droz, Groppo e
Rapone, que é no exterior, no seio das comunidades de imigrados italianos, que nascem
as primeiras organizações italianas que se auto-proclamam antifascistas, como a LIDU
na França, em 1922, e a Unione Democratica no Rio de Janeiro, ainda em 1924.
53
Com isso, se chega a tocar a temática do antifascismo produzido e alimentado pelas
colônias de italianos no exterior, e de sua relação com, de um lado, as ondas de
emigrados que fogem do fascismo e de sua persecução, e, do outro, a sociedade dos
países em que vivem. A discussão destas questões constitui também horizonte para a
compreensão dos percursos dos três “antifascistas” italianos que são objeto do presente
trabalho de pesquisa. O anarquista Garavini e o republicano Battistelli deixam a Itália
em ocasião da instauração do regime de exceção com a legislação de 1926: ambos o
fazem por motivos políticos e ao mesmo tempo econômicos (violências recebidas, seja à
pessoa e à família, seja à propriedade, e impossibilidade de continuar na profissão ou na
atividade anterior). Quanto ao terceiro investigado, Scarrone, sua presença no Brasil, na
Capital federal, é anterior ao advento do fascismo, tendo ele chegado em 1911: sua
vinda foi, como para a maioria, movida por necessidades econômicas, mas junto com
elas não foram ausentes motivos políticos, pois sua militância socialista na região de
Genova lhe trouxe incompreensões e hostilidades, ao ponto de pensar na emigração
como solução, mesmo tendo já 52 anos. Sua qualificação de antifascista lhe vem da
continua e obstinada ação de oposição ao fascismo a partir do Brasil, desde os primeiros
anos de aparição deste no cenário da vida política italiana. Dois membros, então, do
antifascismo do exílio, da emigração política, em sentido próprio, ou, como Vial sugere,
político-econômica, e um terceiro expoente do antifascismo da velha emigração. Aquela
almejada convergência entre estudos do antifascismo e estudos da emigração da qual se
discutiu acima volta agora
para fundamentar uma pesquisa
que percorre
transversalmente as duas dimensões, onde se misturam o aspecto da saída do país natal,
do exílio (toda experiência de emigração traz consigo algo da dimensão do exílio) e o da
luta política em nome dos ideais de liberdade e solidariedade. 82
A contribuição dos pesquisadores do Cedei, embora limitada ao caso francês, é útil para
a elaboração de algumas categorias que, como no caso visto acima, podem ajudar numa
descrição mais adequada das condições e circunstâncias ligadas ao tema da emigração
devida ao fascismo. Antes de mais nada, pode-se lembrar a constatação, presente num
82
Interessante contribuição a respeito da necessidade desta convergência, com a sugestão de trabalhar
os pertencimentos múltiplos, a âmbitos diferentes, a fim de construir uma autentica história social do
antifascismo, em CANOVI, Antonio. “Di antifascisti, emigranti, fuorusciti; a propósito di fascismo e
mobilitá politica” In ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il
Regime. Problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo, op. cit., p. 111-120.
54
trabalho do próprio Milza,83 que a emigração política (ou político-econômica), isto é,
movida também pela necessidade de se afastar de locais onde o clima se tornara
irrespirável, se insere no âmbito de um fluxo migratório mais amplo, que registrava,
dependendo do país para o qual se dirigia, números bastante elevados desde o final do
século XIX, e que continuará, embora reduzido, no entreguerras. Qual então, se assim se
pode dizer, o percentual devido à emigração provocada pelo fascismo, mesmo levando
em conta a confluência de motivos políticos e motivos econômicos, perto do total da
emigração italiana do período? A resposta a questionamentos como esse ainda precisa
de aprofundamentos e pesquisas.
Interessante, também, a proposta de uma tipologia da emigração política, avançada
sempre por Milza84. O pesquisador francês divide o conjunto dos emigrados por
motivos políticos em cinco categorias. A primeira se refere aos dirigentes e principais
expoentes de partidos e organizações. Emigrados essencialmente por motivos políticos,
uma vez em terra estrangeira puderam encontrar-se numa destas três sub-tipologias: ou
continuaram exercitando no exílio uma atividade quase exclusivamente política, em
conexão com sua atividade habitual, sobretudo no campo intelectual; ou realizaram para
sobreviver uma atividade econômica diferente por um certo período; ou mudaram de
atividade e essa mudança acabou sendo duradoura. Uma segunda categoria inclui os
militantes e simpatizantes do antifascismo já ativos na Itália, mesmo não pertencendo ao
grupo dirigente, e que continuavam sua ação política ou sindical no exterior: em geral
trabalhadores manuais, uns foram para o exílio por razoes políticas, outros como
vitimas indiretas da repressão patronal, então por causas econômicas. Terceiro grupo:
foram os militantes, os simpatizantes e outros trabalhadores que, no exílio,
abandonaram sua anterior atividade política ou sindical, ora por razoes de segurança
pessoal, ora por simples vontade de integração, ora por aproximação, mais ou menos
explicita, do fascismo. Uma quarta categoria é constituída por quantos, emigrados por
razões não políticas, politizaram-se através do contato com os fuorusciti e suas
organizações no exterior. Quinta e última categoria, a imensa massa dos não politizados.
83
MILZA, Pierre. “’Émigrés politiques’ et ‘émigrés du travail’: Italiens en France d’après le fonds du
Casellario político centrale”. Mélanges de l’école française de Rome, 1988, vol. 100, nº 1, p. 181-186.
84
Ibidem. É oportuno lembrar que o analisado por ele é o caso da emigração italiana’ para a França,
caso que não deixa de ser o mais significativo quanto ao fenômeno em questão, por ser o país de
eleição da emigração política antifascista: isso, por sua vez, é devido a uma serie de fatores como
proximidade, presença de significativa colônia italiana, forte demanda de mão-de-obra, tratado ítalofrancês de trabalho de 1919 que facilitava as transferências, imagem substancialmente positiva dos
italianos junto ao povo francês.
55
Categorias indicativas e não excludentes outros tipos de classificação, mas utilizáveis
como ponto de referências também para um discurso sobre a emigração e o antifascismo
no Brasil de entreguerras. Assim como sugestivas são as provocações que se podem
retirar da contribuição já citada de Rapone,85 quando convida os pesquisadores da
emigração antifascista a aprofundar o estudo de suas relações com a sociedade dos
países de acolhida. O historiador italiano, em sua análise dos trabalhos sobre a temática
do antifascismo no exílio, mostra como a investigação ampliou-se nas duas direções, a
vertical (relação entre a emigração recente de caráter antifascista e os núcleos
politizados da emigração mais antiga) e a horizontal (mudanças ocorridas na vida das
comunidades italianas no exterior a partir da contraposição fascismo/antifascismo).
Após uma ampla panorâmica da produção sobre a emigração antifascista em vários
países, das Américas à União Soviética, o autor formula algumas criticas à
fragmentação e regionalização dos estudos e lamenta a ainda insuficiente capacidade de
diálogo e de colaboração entre especialistas das migrações e especialistas do
antifascismo, com algumas felizes exceções, como a produção de Bertonha para o caso
brasileiro, a respeito do qual o autor cita também como significativas as pesquisas de
Angelo Trento. Ambas constituíram uma significativa base de dados, informações, e
análises, indispensável como referência para o presente trabalho.
1.6.
No Brasil
Nessa primeira parte do trabalho, dedicada à discussão da produção historiográfica a
respeito do antifascismo italiano, realizou-se um itinerário partindo da análise da
realidade do fascismo italiano para depois penetrar no debate em torno do antifascismo
e de suas características fundamentais. Cada passo do trajeto completado ilumina, de um
lado, e convoca a uma confrontação, do outro, o objeto da presente pesquisa, quer dizer,
os percursos políticos e existenciais de Scarrone, Battistelli e Garavini.
Assim, a reproposição inicial das principais linhas interpretativas do fenômeno fascista
à luz das quais a luta contra ele se articulou na Itália e no exílio, segundo as três
85
RAPONE, Leonardo. “Emigrazione italiana e antifascismo in esilio” , op. cit., passim
56
principais suas vertentes (a liberal-conservadora, a marxista e a liberal-democrática, ou
liberal-radical), nem sempre presentes em forma pura na propaganda, na publicística, na
imprensa, aliás, frequentemente entrelaçadas uma com a outra, ajuda a situar os
percursos individuais de cada um dos antifascistas estudados, como expressão de uma
ou de outra linha interpretativa, ou como correção delas. Leituras construídas muitas
vezes no âmbito da redação de um jornal ou da mesa diretora de um sindicato podem
sofrer re-elaborações importantes quando revisitadas tempo depois, no meio de uma luta
conduzida contra um inimigo que almeja conquistar também a pacifica colônia de
conterrâneos a dezenas de milhares de quilômetros de distância, com um oceano no
meio. Ou, ao contrário, juízos e análises provocadas por eventos trágicos e violentos na
terra natal também podem, à luz de sucessivas avaliações e acontecimentos, encontrar
confirmação ou passar por um caminho de revisão. Os três tipos de análises lembrados
no primeiro capítulo poderão, portanto, confirmar e alimentar convicções, interpretações
e escolhas de Nello, Libero e Giuseppe, ou ir de encontro a elas, dialogando com elas e
provocando reinterpretações, a partir também de uma vivência do fascismo que não tem
mais as conotações experimentadas nos anos do “squadrismo” mais selvagem, ou à luz
de um conhecimento do mesmo – como será o caso de Scarrone – que não pôde ser
direto, mas somente pelo testemunho de outros. Assim se verá como cada um deles
tende a abraçar uma dessas interpretações, reelaborando-a, às vezes entrelaçando uma
com a outra.
A passagem realizada através das sucessivas compreensões do fascismo presentes na
historiografia, principalmente a de língua italiana, torna-se indispensável para que seja
claro o que se entende quando aqui se fala e se discute de fascismo, um fenômeno, que,
mesmo tendo tido a Itália como seu primeiro local de afirmação, e tendo gerado em
resposta um movimento de oposição dentro e fora das fronteiras do próprio país, não
pode ser visto e compreendido como exclusivo daquela nação, a partir de traços típicos
ou de características particulares. Ao contrário, tratou-se de algo que interessou as
sociedades européias e extra-européias, incluindo aqui a sociedade brasileira, tendo
como aspectos importantes o impacto com o liberalismo, a queda de braço com o
mundo socialista e o diálogo com a modernidade. Nolte, Paxton, Teixeira da Silva, em
companhia de boa parte da recente produção historiográfica italiana, registram
interpretações do fascismo que vão nesta direção. É então uma leitura do fascismo
italiano feita segundo estas categorias, incluindo a referência à de totalitarismo - vista
57
essa última não como chave de compreensão global do regime e sim como registro de
uma sua pretensão ao domínio total das consciências e dos corpos - que aqui será usada.
Um fascismo que, tanto na Itália quanto no exterior, como se verá, busca organizar o
consenso da população. Foi então de um fascismo assim que Battistelli e Garavini se
subtrairam, fugindo da legislação vexatória de 1925-26, mas foi diante da tentativa deste
mesmo fascismo de penetrar na sociedade brasileira, atingindo a colônia italiana e ao
mesmo tempo a opinião pública do país, que eles articulam formas de oposição e
resistência, assim como foi diante do crescimento ainda do mesmo fascismo, em suas
diferentes manifestações, seja na Espanha seja no próprio Brasil, que foram chamados a
tomar posição. Como foi contra esse mesmo fascismo que Scarrone encontrou
modalidades e formas originais de protesto e luta.
Da caracterização do fascismo se passou à discussão do antifascismo e à sua análise.
Fenômeno periférico, foi dito, o antifascismo italiano no exílio, pelo menos até o ano de
1933, mas não por isso menos europeu ou mundial: é a partir desta convicção que,
mesmo estudando figuras que resistem ao fascismo de uma trincheira, como a brasileira,
que encontra-se muito distante do coração da batalha, poder-se-á perceber os três
italianos emigrados em terra carioca como parte deste movimento internacional da
resistência ao regime de Mussolini e a todas as formas de fascismo. Articulações,
modalidades, operacionalidades, estruturas: tudo isso pode ter encontrado, num lugar ou
outro, numa forma ou outra, realizações mais significativas ou eficazes. Mas, mesmo a
partir de um ponto de observação e de operação como o Rio de Janeiro, a luta
antifascista italiana teve algo de significativo a ser registrado. A categoria interpretativa
de “guerra civil europeia”, alargando seus limites pelo menos até as Américas, também
oferece interessantes sugestões à pesquisa, quando usada como chave de leitura de
divisões e conflitos transversais à própria sociedade brasileira. É importante deixar claro
também que a categoria de antifascismo, embora marcada por uma longa convivência
com o movimento comunista, soviético e internacional, convivência que se tornou mais
tarde, após o desfecho do segundo conflito mundial, apropriação quase exclusiva dele,
será nesse trabalho usada para caracterizar vários âmbitos de resistência ao fascismo,
varias compreensões e manifestações da luta contra ele, não excluindo, portanto, os
componentes socialista, ou republicano, ou anarquista, ou liberal-democrata do próprio
movimento antifascista, aliás valorizando-os pelo fato dos três italianos objeto deste
estudo pertencerem a algumas destas correntes.
58
A historiografia recente busca recuperar a dimensão existencial, pessoal, da luta e do
percurso dos expoentes do antifascismo, como foi discutido acima. Falar do
antifascismo não é simplesmente reconstruir caminhos de luta e de discussão
ideológica, de confronto público ou de elaboração partidária. É também estudar
aspectos certamente menos politizados, mas não por isso menos ‘políticos’ do mundo
dos antifascistas, como a vida privada, as dificuldades econômicas, os problemas de
trabalho, as relações de afeto, os tempos do lazer, os laços de solidariedade. A presente
pesquisa busca evidenciar, quando possível, a partir da documentação levantada, esses
espaços e dimensões relativas ao percurso humano e existencial dos três antifascistas,
estudados em seu contexto de relações.
Não faz parte do campo de interesse da presente investigação a categoria do
“antifascismo existencial”, por se referir não ao fenômeno da emigração antifascista,
mas fundamentalmente à condição própria de quem vivia debaixo do calcanhar do
regime, na própria península italiana. Sua fecunda sugestão, contudo, de estudar a
dimensão existencial dos opositores ao fascismo, o vivido, o cotidiano, também e ao
mesmo tempo que a dimensão mais especificamente politica, há de ser levada em conta
na investigação dos percursos dos três italianos. Vimos também como os marcos
cronológicos de 1926-1943 para caracterizar o antifascismo serão por nós transpostos,
apoiados por parte da literatura e na convicção de não provocar desta forma vendavais
metodológicos: trata-se de garantir legitima cidadania a expressões de antifascismo
anteriores ao marco a quo, e que se conectam com outras manifestações sucessivas; será
o caso, por exemplo, de parte dos escritos de Scarrone contra Mussolini e seu governo,
a partir do próprio ano de 1922.
Objeto de analise deste trabalho é o antifascismo ligado à emigração política italiana
para o Brasil no entreguerras, especificamente para o Rio de Janeiro, e suas relações
com a colônia italiana da cidade e a sociedade carioca. O longo capitulo anterior, com a
ilustração de sugestivas linhas de reflexão e perspectivas de estudo, oferece o quadro de
referência indispensável para nossa investigação, com seu convite a considerar os
profundos laços existentes entre história do antifascismo (e do fascismo) e história das
migrações, com sua elaboração de categorias como a de emigração político-econômica,
com sua proposta de tipologias.
59
Entrando numa análise mais pontual da historiografia sobre o antifascismo italiano no
Brasil, não há dúvida de que a produção de João Fabio Bertonha86 desponta por
abrangência e profundidade de investigação. Tanto os caminhos do antifascismo na
comunidade de imigrados de origem italiana, quanto os percursos através dos quais o
fascismo de Mussolini tentou conquistar espaço na colônia italiana, sua ação de
penetração através da propaganda e das propostas culturais, além das atividades
assistenciais e recreativas, foram extensamente investigados por Bertonha. Seu estudo
da difusão do fascismo italiano no Brasil discute, entre outros pontos de análise, a
questão dos fasci italiani all’estero, o organismo criado pelo regime de Mussolini no
âmbito do Partito nazionale fascista (Pnf). Sobre o tema, em sentido mais geral, isto é,
apresentando as linhas diretrizes e inspiradoras do organismo, criado já em 1922 pelo
Grã-Conselho do fascismo com objetivos não dissimulados de ‘fascistizar’, depois do
Estado italiano e sua sociedade, também as comunidades nacionais no exterior, um
ótimo estudo é o de Emilio Gentile87, que admite abertamente a impossibilidade de
escrever uma história completa dos fasci all’estero. Uma história, ele afirma, que talvez
nunca seja escrita, tanto pela multiplicidade e complexidade das experiências
organizativas, políticas e sociais produzidas pelo organismo em questão, ligadas
também às especificidades de cada comunidade italiana no exterior e de cada país de
acolhida, quanto pela dispersão ou a perda da documentação. Assim Matteo Pretelli,
num artigo de 200888, efetua uma panorâmica da historiografia sobre o tema, mostrando
como até então não exista nenhum trabalho de síntese a respeito das linhas gerais da
política fascista de propaganda e assistência dos italianos no exterior, a frente de muitos
estudos regionais, e algumas recentes coletâneas89.
86
Sobre os caminhos do antifascismo italiano no Brasil veja-se BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de
Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP:
Annablume, 1999. Uma completa leitura sobre a penetração do fascismo junto da colônia italiana em
BERTONHA, João Fábio. Sob o signo do fascio: o fascismo, os imigrantes italianos e o Brasil, 1922-1943.
Tese de Doutorado em Historia Social. Campinas: UNICAMP, 1998. Vários artigos já publicados sobre
fascismo no Brasil, além de novas contribuições sobre a temática mais ampla do fascismo agora estão
reunidos em BERTONHA, João Fábio. Sobre a Direita. Estudos sobre o fascismo, o nazismo e o
integralismo. Maringá: Eduem, 2008.
87
GENTILE, Emilio. “La politica estera del partito fascista. Ideologia e organizzazione dei Fasci italiani
all’estero (192-1930)”. Storia Contemporanea, ano XXVI, n.6, dezembro de 1995, p. 897-956.
88
PRETELLI, Matteo. “Il fascismo e gli italiani all’estero. Una rassegna storiografica”. A.S.E.I. (Archivio
Storico dell’Emigrazione Italiana), www.asei.eu, 2008.
89
Cf. FRANZINA, Emilio; SANFILIPPO, Matteo (org.). Il fascismo e gli emigrati. La parabola dei fasci
italiani all’estero. Roma-Bari: Laterza, 2003. SCARZANELLA, Eugenia (org.). Fascisti in Sud America.
Firenze: Le Lettere, 2005.
60
Voltando ao trabalho de Bertonha, seus escritos, tanto os artigos, quanto as obras de
maior fôlego, se distinguem pela pesquisa documentada, utilizando arquivos brasileiros
e italianos, e pela rigorosa reconstrução de etapas e momentos tanto da penetração do
fascismo na colônia italiana como das respostas que o movimento antifascista tentou
fornecer. Sua obra sobre a luta dos italianos contra o fascismo oferece uma reconstrução
sumaria do antifascismo italiano fora da Itália, no mundo da emigração, utilizando como
marcos cronológicos os anos de 1922 e de 1945, para depois se concentrar sobre o caso
brasileiro, do qual estuda articulações, etapas, dissídios e ausências, assim como a
distribuição de sua influência nas várias camadas sociais. Obra preciosa por sua
abrangência e profundidade de análise, com apresentação rápida ou mais destacada de
muitos militantes, e com ênfase sobretudo nos aspectos político-organizativos, tenta
algumas conclusões a respeito daquilo que titula como o “fracasso” do antifascismo
italiano no Brasil, listando uma serie de fatores, desde a fraqueza da imprensa e das
organizações até as dissensões internas, passando pelo escasso apoio da esquerda
brasileira, a simpatia do governo e de parte da opinião pública brasileiros para o
fascismo ou ainda a forte repressão das autoridades, sobretudo depois de 1935, sem
esquecer o fato de certo distanciamento por parte da colônia italiana no Brasil diante das
iniciativas do movimento operário, diferentemente, segundo o autor, do caso argentino,
por exemplo. Há de se relevar que, pela evidente predominância da colônia paulista, em
termos numéricos de população e em termos políticos de organização, no âmbito dos
italianos emigrados e radicados no território brasileiro, a produção de Bertonha focaliza
principalmente a situação desta comunidade, tanto na discussão da difusão do fascismo
como no exame do antifascismo organizado, deixando mais na sombra a situação no
resto do país, inclusive na Capital federal. De todo modo, pela riqueza das fontes
consultadas, pelo propósito de oferecer quadros sintéticos e tentativas de respostas, e
por suo pioneirismo desbravador, o trabalho de Bertonha é leitura indispensável para
qualquer pesquisa que queira se mover no âmbito do fascismo italiano e sua difusão no
Brasil, ou da história da emigração antifascista nesse país. Com ele dialogar-se-á ao
longo deste trabalho e sobretudo em suas conclusões.
Falou-se acima de pioneirismo, e a afirmação tem seu significado se relacionada com o
conjunto das pesquisas de autores brasileiros sobre a temática do fascismo e do
antifascismo italiano no Brasil. Talvez tenha que ser corrigida se incluirmos, no rol das
produções significativas sobre o assunto, o trabalho do italiano Angelo Trento, da
61
Universidade de Nápoles, que em sucessivas investidas historiográficas dedicadas à
imigração italiana no Brasil, abriu caminhos para a pesquisa a respeito também dos anos
do entreguerras, exemplo, nisso, daquela necessidade que estudiosos do fenômeno
migratório não se furtem à análise do período fascista e de suas características do ponto
de vista da emigração política ou político-econômica. A contribuição mais significativa
é um livro,90 aqui publicado em 1989, no qual, a reflexões e análises da histórica
imigração italiana no Brasil até a primeira guerra mundial já presentes em edições
anteriores da obra, Trento faz seguir um inteiro amplo capítulo dedicado ao período
entre as duas guerras. Continuidades e descontinuidades com a emigração anterior,
ação do partido fascista e da diplomacia para a difusão do credo mussoliniano, relação
da coletividade italiana com o fascismo e com o antifascismo, papel da imprensa e do
associacionismo: o quadro da situação é adequadamente investigado pelo historiador
italiano em seu volume, fruto de longos períodos de frequentação de arquivos italianos e
brasileiros. Seu trabalho, que recentemente produziu uma contribuição mais
especificamente dedicada à presença fascista entre os emigrados italianos no Brasil 91, é
rico em informações garimpadas em longas pesquisas documentais, interpretadas e
reelaboradas para oferecer um quadro de conjunto da situação. Sem conclusões
expressamente formuladas, a leitura que Trento oferece da colônia italiana no Brasil de
entreguerras é a de um mundo significativamente penetrado pelo fascismo, ora em
termos de adesão ideológica convicta, ora no plano de um alinhamento menos
politizado, mas expressão de uma popularidade do regime a causa do prestigio que
estaria devolvendo à Itália no contexto internacional. A ser destacado é também o
distanciamento, presente no trabalho mais recente, diante da afirmação de Bertonha,
segundo a qual a classe operária de origem italiana no Brasil alinhou-se com o regime
só de forma muito superficial: para o pesquisador italiano, ao contrario, o grau de
penetração do fascismo na comunidade italiana no Brasil foi significativamente elevado
(embora dificilmente mensurável), ainda mais se comparado com a situação da análoga
coletividade na Argentina.
Fontes preciosas de dados e registros, minas de nomes e acontecimentos, com sua
narração das idas e vindas do fascismo e do antifascismo de matriz italiana junto das
90
TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo:
Nobel, 1989.
91
TRENTO, Angelo. “ ‘Dovunque é um italiano, lá é Il tricolore’. La penetrazione del fascismo tra gli
immigrati in Brasile.” In SCARZANELLA, Eugenia (org.). Fascisti in Sud America. op. cit., p. 1-54.
62
coletividades de imigrados e da sociedade brasileira de entreguerras, as produções de
Bertonha e Trento representam ponto de referência essencial para os estudos do assunto.
Quando se fala da antifascismo no Brasil, evidentemente há de se dialogar com a
produção historiográfica nacional que lida com a temática, pois, se o antifascismo se
manifesta no Brasil desde os primeiros anos da década de 1920 através da emigração
italiana que foge da perseguição do regime de Mussolini e também de manifestações
originadas pela comunidade italiana ou ítalo-brasileira implantada na sociedade
brasileira, ele vai encontrando no mundo político local apoios e colaborações, além, é
claro, de oposições e ostracismos. As organizações ligadas à esquerda política, de uma
forma ou de outra, com maior ou menor comprometimento, dialogam com o mundo do
antifascismo italiano da colônia, mas o momento em que a colaboração ou o
reconhecimento mais consistente de sua luta se dá é a partir de 1933, quando os
acontecimentos internacionais - leia-se ascensão de Hitler ao poder na Alemanha,
organização de comitês contra a guerra a contra o fascismo na Europa, nascimento de
frentes unitária ou populares para barrar o avanço da direita – encontram repercussão
também no Brasil, onde surge e se afirma o movimento integralista. Entre as palavras de
ordem dos partidos da esquerda começa então a aparecer com regularidade o
antifascismo. Claramente, são os partidos ligados ao movimento comunista
internacional os que tomam a dianteira nesta luta, onde se mesclam proclamas de
solidariedade para com os povos oprimidos pelas ditaduras fascistas e apelos em favor
da revolução - interpretada de uma forma pelos comunistas ortodoxos, fiéis às diretrizes
da Terceira Internacional, e de outra pelos alinhados com o pensamento trotskista - e
ainda conclamações à luta contra o integralismo, visto como o fascismo nacional.
A produção historiográfica sobre as esquerdas no Brasil dos anos de 1920 e 30 é
volumosa, com muitas obras de indiscutível valor e outras menos. Nomes como os de
Edgar Carone92, John W. Foster Dulles93, Claudio Batalha94, Paulo Sérgio Pinheiro95,
92
CARONE, Edgard. Socialismo e anarquismo no inicio do século . Petrópolis: Vozes, 1996. ------. A
República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1976.
93
DULLES, John W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil, 1900-1935. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1977.
94
BATALHA, Cláudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
95
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
63
Marly de Almeida Gomes Vianna96, entre outros, podem servir com sua produção a
orientar o pesquisador que queira debruçar-se sobre a temática, auxiliados também por
uma recente coletânea que apresenta algumas contribuições interessantes.97 Neste
emaranhado de produções sobre a esquerda brasileira dos anos 30, poucas são as que
tematizam explicitamente a dimensão antifascista, investigando e trazendo à tona
debates, arranjos, iniciativas que a alimentaram e problemáticas que a percorreram.
Uma contribuição importante, centrada na reconstrução do percurso da Aliança
Nacional Libertadora e de seu papel nos levantes de novembro de 1935, é representada
pelo volume de Anita Leocádia Prestes98 que oferece uma abordagem original da figura
de Luiz Carlos Prestes como protagonista daqueles eventos, e que traz também em seu
subtítulo (“Os caminhos da luta antifascista no Brasil, 1934-35”) a justificativa para seu
destaque no conjunto das produções similares. A história da ANL foi reconstruída por
vários pesquisadores, mas aqui aparecem de forma clara os laços com a luta antifascista
internacional e sua relação também com as dinâmicas próprias da sociedade brasileira
do tempo, onde a ameaça fascista, representada pelo surgimento do integralismo,
mostrava seu peso. Livro de história política por excelência, poderá se encontrar nele
uma narração fiel daquele conturbado biênio da vida nacional, e uma tentativa de
explicação das razões que levaram a luta antifascista nacional ao grau de radicalização
representado pelos eventos de novembro de 1935.
A leitura daqueles anos, sem dúvida alguma os mais significativos para o antifascismo
brasileiro, embora o período anterior e o sucessivo representem também etapas
importantes na definição de suas características, é conduzida por Anita Prestes tendo
como objeto primário de investigação o papel político de Luiz Carlos Prestes, sua
relação com o comunismo nacional (representado pelo PCB) e internacional, leia-se IC
(Internacional Comunista), e o significado de sua pessoa para o surgimento e a atuação
da ANL.
96
VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de ’35; sonho e realidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
97
FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) As Esquerdas no Brasil, v.1 / A Formação das tradições
(1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
98
PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora: os caminhos da luta
antifascista no Brasil (1934-35). Petrópolis: Vozes, 1997.
64
De menor consistência e relevância, até no que diz respeito ao presente trabalho, é a
leitura das lutas da década de 1930 presente no trabalho de Ibirapuan Puertas. 99 A
despeito da extensa bibliografia primária e secundária, sua pesquisa, voltada para a
individuação, nos eventos ligados ao antifascismo durante o governo Vargas, de linhas
geradoras da assim chamada “esquerda nacionalista brasileira”, peca por escasso rigor
metodológico e certa confusão discursiva. Sem entrar no mérito de suas teses principais,
o trabalho não oferece significativa contribuição para a pesquisa sobre o antifascismo de
matriz italiana e suas relações com o campo da luta antifascista brasileira.
Outra análise desta mesma luta, mas focalizada nas suas diferentes vertentes e nos
debates que as acompanharam, a partir de leituras distintas do perigo fascista e da
ameaça da guerra “imperialista”, encontra-se na produção de Ricardo Castro100, cuja
atenção, além de examinar os eventos de 1934-35, retrocede cronologicamente ao ano
anterior, para estudar a constituição da Frente Única Antifascista, em São Paulo. Seu
trabalho, representado por artigos e sua tese de doutorado, se detém na análise dos
vários componentes das fileiras do antifascismo brasileiro, evidenciando também suas
articulações com o mundo da emigração política italiana. Interessante trabalho de
pesquisa e de elaboração analítica, útil para poder perceber a complexidade dos
percursos presentes e atuantes no âmbito dos debates e das lutas do antifascismo.
Cabe assinalar aqui, embora voltada especificamente para o estudo da realidade
paulista, a produção realizada no âmbito do PROIN - Projeto Integrado Arquivo do
Estado / Universidade de São Paulo, fruto da colaboração entre as duas instituições
paulistas. Um conjunto de estudos, realizados sob a coordenação de Fausto Couto
Sobrinho, diretor do Arquivo, e dos professores Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris
Kossoy, facilitou para os pesquisadores o acesso aos prontuários do fundo DEOPS,
gerando também uma série de publicações sobre esse acervo da polícia política.
99
PUERTAS, Ibirapuan. Nacionalismo, democracia e bem-estar do povo: a luta antifascista no Brasil e a
gênese da esquerda nacionalista brasileira. Rio de Janeiro: [s.n.], 2007.
100
CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo: as esquerdas brasileiras e o
antifascismo, 1933-1935. Tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
1999. ---------. “A Frente Única Antifascista (FUA) e o antifascismo no Brasil (1933-1934)”. Topoi, Rio de
Janeiro, n. 5, setembro de 2002. ------------. “O Homem Livre: um jornal a serviço da liberdade (19331934)”. Cadernos AEL, v.12 (Trotskismo), N. 22/23, 2005, p. 59-75. -------------. “A Frente Única
Antifascista (1933-34)” In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) As Esquerdas no Brasil, v.1 / A
Formação das tradições (1889-1945), op. cit., p. 429-451.
65
Trabalhos como os de Lucia Silva Parra101, ou de Viviane Teresinha dos Santos102, entre
outros, dialogam com a investigação sobre o antifascismo na colônia italiana e mais em
geral na sociedade brasileira do entreguerras, tendo como horizonte de fundo, como foi
dito, principalmente a realidade do Estado de São Paulo.
101
PARRA, Lucia Silva. Inventario DEOPS: módulo VII – Anarquistas. Combates pela liberdade. O
movimento anarquista sob a vigilância do DEOPS/SP, 1924-1945. Sao Paulo: Arquivo do Estado;
Imprensa Oficial, 2003.
102
SANTOS, Viviane Teresinha dos. Inventário DEOPS: módulo V – Italianos. Os seguidores do Duce. Os
italianos fascistas no Estado de São Paulo. São Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial, 2001.
SANTOS, Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da polícia política. Vigilância e repressão no Estado
de São Paulo (1924 - 1945). São Paulo: FAPESP, 2008.
66
2. SEGUNDA PARTE / Giuseppe Scarrone
2.1. “Um velho”
Na idade em que a maioria das pessoas começa a pensar seriamente na aposentadoria,
seja aquela profissional e de trabalho, seja aquela que diz respeito ao comprometimento
com projetos da vida ou com lutas e ideais que deem sentido à existência, e
frequentemente declaram encerrada sua contribuição para as duas dimensões acima, o
antigo aprendiz de vidreiro, agora bem sucedido empresário do ramo do vidro na
Capital Federal, o italiano Giuseppe Scarrone, partia para uma nova batalha.1
“Um velho” - repetiram durante muito tempo os informes e as denúncias das
autoridades diplomáticas italianas no Brasil e também os relatórios da polícia do Reino
de Vitor Emanuel III, que a cada ano, e várias vezes a cada ano, se deparavam com
folhetos, opúsculos, cartas abertas que Scarrone remetia através do correio para a
península. Publicações e escritos assinados pelo próprio Giuseppe, e em boa parte de
sua pessoal autoria, enviados tanto para familiares e amigos, quanto para pessoas que
ocupavam cargos na sociedade italiana ou tinham um papel de destaque na vida politica,
econômica e produtiva do país, mesmo sem que ele as conhecesse. Sem falar das cartas
para o Rei e para os expoentes máximos do regime, ministros, secretários do partido
fascista, comandantes da arma dos carabinieri e até para o próprio Duce.
Um velho, e ainda por cima “imbecil”, “ignorante” e sem algum séquito na comunidade
italiana no Brasil, ou um “grafomaníaco” um tanto vaidoso, com manias de escritor.
Assim a maioria dos relatórios e das comunicações internas das autoridades policiais
descrevia a pessoa de Scarrone. Alguns exemplos, entre muitos: “[Ele] tem a mania de
escrever e nada negligencia para que seus opúsculos cheguem à Itália [...] Scarrone é
tido como homem exaltado e não goza de influência alguma”2; “esse livreto, como os
anteriores, não teve nenhuma importância, e é quase completamente ignorado pela
1
Principais fontes para reconstruir as etapas da biografia de Scarrone são os documentos reunidos em
sua pasta no Casellario Politico Centrale (ACS/CPC, busta 4675, fascículo 27661, “Scarrone Giuseppe”) e
o artigo MOLINARI, Augusta, “José Scarrone, un vetraio altarese a Rio de Janeiro” In GIBELLI, A. (org.).
La via delle Americhe: l’emigrazione ligure tra evento e racconto. Genova: Sagep, 1989, p. 69-79, além
de um livrinho publicado pelo próprio empresário, SCARRONE, Giuseppe. Giuseppe Scarrone nelle sue
memorie, Rio de Janeiro, 1937.
2
ACS/CPC b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), informe da Prefettura de Genova, 6.8.1924.
67
nossa colônia e por todos os elementos brasileiros”3; “Giuseppe Scarrone é um
semianalfabeto e um ignorante”4; “um exaltado maníaco”5. Um sujeito, então,
aparentemente inócuo, mas é notável o fato que este mesmo sujeito, “velho”, inócuo e
sem seguidores, obrigou a vigiar comandos de carabinieri, prefetture, seções do partido
fascista e órgãos diplomáticos, e que seus escritos lhe valeram uma condenação do
tribunal italiano a 2 anos, 2 meses e 25 dias por ofensas ao Rei, além dos dizeres
“procurado” e “a ser detido” na capa de sua pasta no Casellario da polícia do Reino.
Um velho, então. Pois foi exatamente aos sessenta e três anos de idade que Scarrone,
chagado havia onze anos ao Brasil e dono de uma bem encaminhada fábrica de vidros
no Rio de Janeiro, começava uma intensa atividade de propaganda, denúncia e
contrainformação para amigos, parentes, conhecidos e não, na Itália e no Brasil,
escrevendo, publicando, difundindo e enviando cartas e opúsculos, de 1922 até pelo
menos 1935, quando forças, lucidez e, quem sabe, vontade, pareceram abandoná-lo.
Nesta ação, Scarrone agia como inimigo declarado do fascismo e se colocava numa
linha ideal que unia sua luta atual com a que ele e outros paesani (isto é, oriundos de
famílias pobres), como ele, conduziram durante muitos anos, em sua terra, contra os
monsú, os donos das principais fábricas de vidro e que tinham transformada a atividade
em um verdadeiro cartel de empresas, postas nas mãos das mais abastadas famílias da
região.
Socialista desde sua juventude, Giuseppe continuou sua militância no Brasil, embora
nas formas possíveis para um imigrante, e fez de sua criação, a Fábrica Nacional de
Vidros, um laboratório onde experimentar uma gestão cooperativista do trabalho. Sua
participação nas manifestações e atividades dos antifascistas da colônia italiana do Rio
(e do Brasil) não foi das menos significativas, como se verá até pelo destaque que lhe
ofereu o principal instrumento neste campo, o periódico La Difesa. Mas sua
singularidade reside principalmente naquela persistente ação de denúncia das mentiras e
das iniquidades do regime, seja para a coletividade italiana no Brasil e paralelamente
para a opinião publica nacional, seja para os destinatários de suas publicações na Itália:
uma tentativa de penetrar a cortina de silêncio e aquiescência que parecia reinar na
península.
3
Ibidem, telespresso do Ministero degli Affari Esteri, 16.7.1926.
Ibidem, telespresso do Ministero degli Affari Esteri, 8.9.1927.
5
Ibidem, telespresso do Ministero degli Affari Esteri, 22.8.1929.
4
68
Nos últimos anos de sua vida, ele, que nunca se naturalizara, apresentou o pedido para
alteração do nome. De Giuseppe para José, embora ele usasse os dois de forma quase
igual, preferindo Giuseppe nos escritos em italiano e José nos artigos ou publicações em
português. Talvez o pedido se devesse às leis com que o Estado Novo varguista tentava
controlar atividades e vida dos estrangeiros em território brasileiro, ou simplesmente
por um ato de amor pela terra que o acolhera emigrante, trinta anos antes. O Ministério
do Interior e da Justiça concedeu a retificação do nome, com publicação no Diário
Oficial de 25 de agosto de 1944. Tarde demais: Giuseppe tinha falecido um mês antes, a
29 de julho. Não deu tempo de carregar oficialmente o nome concedido pelo Brasil, sua
segunda pátria, assim como não deu tempo de saudar, nove meses depois, o fim do
fascismo e de Mussolini na Itália, sua primeira.
2.2. Na Itália: cinquenta anos de lutas
Em vários de seus escritos, Scarrone lembra os seus anos italianos. Ora frisando as
dificuldades familiares, ora recordando suas iniciativas e tentativas no setor da produção
do vidro em sua terra, ora apresentando seus contatos com o mundo do socialismo. As
origens modestas da família, ligada ao mundo camponês do interior de Gênova, não
proporcionaram para Giuseppe boas condições de vida, nem uma formação regular em
sua juventude. Obrigados a mudar frequentemente de local de vida e trabalho, se
transferindo de uma chácara para outra, sempre trabalhando a terra para os donos das
propriedades, os pais dele conseguiram finalmente se estabelecer num sitio no pequeno
município de Quiliano, na província de Savona, onde puderam permanecer estavelmente
por uma década. Era o ano de 1862, e Giuseppe já estava com três anos, tendo nascido a
11 de maio de 1859, em Mallare, um município limítrofe. A chácara em que veio à luz
era chamada Cianlán, e o nome ficou mais tarde grudado em Giuseppe como apelido.
“Em 1872, a família aumentara de 5 para 9 membros, e não havia mais possibilidade
para todos trabalharem nos campos, assim nos mudamos [...] e em 1873 nos
estabelecemos em Altare, indo todos trabalhar na fábrica de vidro da cidade” – lembrará
Giuseppe num livreto de memórias6. Altare era mais uma das vilas da região, mas tinha
uma forte tradição na produção do vidro: aqui Giuseppe, empregado inicialmente como
6
SCARRONE, Giuseppe. Giuseppe Scarrone nelle sue memorie, op. cit., p.4.
69
aprendiz de vidreiro, conheceu os segredos da arte que o acompanhará por toda sua
vida. Aos vinte anos, o alistamento militar obrigatório o levou longe de casa por mais de
dois anos, mas lhe permitiu conhecer o ambiente de uma livraria e tipografia, sugerindolhe a possibilidade de criar uma do gênero em sua terra7. Assim, em 1883, voltando para
Altare, abriu uma revenda de jornais, com livraria e papelaria, transformada mais tarde
em um café, o Caffé dei Cacciatori. Tamanho espirito de empreendedorismo, ou talvez
suas ideias socialistas, com o passar do tempo produziram acusações e inimizades para
Scarrone, tido como proprietário de um local de subversivos, e o levaram em 1900 a
liquidar o estabelecimento comercial.
Uma nova etapa em sua vida: durante cerca de dois anos, como diretor, Giuseppe se
dedicou com sucesso à revitalização de uma grande fábrica de vidro da região, mas
novas “persecuções” por parte dos monsú levaram a propriedade do estabelecimento a
demiti-lo. Também nas empreitadas sucessivas, uma cooperativa vidreira, fundada por
ele na própria cidade de Genova, em 1906, composta de consumidores, clientes e
trabalhadores do vidro, e uma loja de venda dos produtos do trabalho, teve
que
enfrentar invejas e obstáculos. Scarrone, com efeito, “nasce ‘paesano’ numa
comunidade onde ainda, no começo do século XX, existiam privilégios hereditários. Ser
‘paesano’ significava não poder exercer a arte do vidro, ser excluído da vida
administrativa e politica local, obedecer a uma serie de normas da vida cotidiana
estabelecidas pelo estreito círculo das famílias dos ‘monsú’”, escreve Augusta
Molinari8. E é ainda através de seu estudo sobre a figura de Scarrone que se depreendem
noticias sobre as simpatias socialistas dele:
Pouco se sabe de sua iniciação ao socialismo, que todavia parece
possível relacionar com a presença em Altare, desde o começo do
século XX, de núcleos organizados de vidreiros socialistas e de uma
ativa Câmara do Trabalho [...] Teve contatos com a Federação dos
vidreiros e participou das primeiras tentativas de organização de
cooperativas de consumo em Altare e na região do Valbormida [...] Para
Scarrone, como talvez para outros socialistas altareses, a adesão ao
socialismo toma em primeiro lugar o significado de uma rebelião contra
o poder dos ‘monsú’.9
7
Foi durante este período de alistamento que Giuseppe aprendeu a ler, tendo como primeira paixão a
leitura dos jornais, como recordava em SCARRONE, Giuseppe. Onorevole Giacomo Matteotti nel 1º
anniversario del suo assassínio, Rio de Janeiro, 1925, p. 15.
8
MOLINARI, Augusta. “José Scarrone, un vetraio altarese a Rio de Janeiro” In GIBELLI, A. (org.). La via
dele Americhe: l’emigrazione lígure tra evento e racconto, op. cit., p. 69.
9
Ibid., p. 70.
70
Assim, de 1905 a 1907, Scarrone se tornou autor de uma seção10 no periódico socialista
genovês Era Nuova, assinando com o pseudônimo L’Emigrato [O Emigrante], na qual
apresentava episódios antigos e recentes de violências dos ‘monsú’. Também chegou a
publicar vários opúsculos com a mesma finalidade11.
Não há muitos elementos para poder reconstruir de forma mais completa a trajetória de
Scarrone em seus anos italianos, nem esta é a finalidade principal deste trabalho. De
qualquer modo, algumas pistas podem ser traçadas, indicativas de uma personalidade
cujas características encontrar-se-ão também em seu percurso brasileiro. Sem dúvida, o
sentimento de revolta e inconformação diante da injustiça percebida em sua pele e na
realidade social ao seu redor. Chame-se, essa injustiça, discriminação no campo do
trabalho, como nestes anos na Itália, ou clima de mentira, violência e sufocamento da
liberdade proporcionado pelo regime fascista, como se verá depois. Nisso, o amparo da
ideologia socialista, encontrada na juventude, se revelará como uma referência
constante em sua existência: uma militância, contudo, condicionada pelas experiências
de seus anos juvenis e pelo ambiente de seu município de origem, e talvez por isso não
excessivamente elaborada ou fundamentada em leituras e estudos teóricos.
As formas próprias com as quais conduzir a luta e manifestar o dissenso tomavam corpo
já nesses anos, e eram o artigo de jornal, o panfleto, o opúsculo, às quais se
acrescentarão em seguida também as cartas abertas. Sinais de uma facilidade no uso do
instrumento gráfico, fruto talvez da sua experiência de anos como dono de livraria e
papelaria. E enfim a grande paixão da vida, o vidro, sua produção e transformação, esta
arte secular, descoberta ainda adolescente, longamente cultivada e capaz de cruzar
várias vezes seu caminho (ora como trabalhador, ora como empreendedor), percebida e
perseguida como possibilidade de elevação material e humana das classes mais
humildes. Várias, como se haverá modo de registrar, serão as oportunidades nas quais,
já no Brasil, manifestará sua convicção de estar realizando uma obra em favor dos
menos afortunados, criando empregos e ensinando uma arte, numa tentativa também de
realizar uma inicial experiência cooperativista.
Ideais socialistas e mentalidade
paternalista se dando as mãos, é de se reparar logo, em tal empreitada, cujas raízes
foram lançadas nas iniciativas realizadas em Altare e em Genova.
10
O titulo da seção era “Noterelle di vita altarese”.
Um deles foi SCARRONE, Giuseppe. La sopravvivenza di una casta. Noterelle di storia e di vita altarese.
Genova, 1909.
11
71
Uma derradeira característica talvez seja aquela que permitiu a Scarrone de abandonar a
Itália e recomeçar com entusiasmo mesmo num país distante como o Brasil, já
cinquentão. A capacidade de se reinventar, em parte apreendida em sua infância a partir
das repetidas mudanças de sua família e de seus recomeços agrícolas e profissionais, e,
consequentemente, a sensação de ser destinado a uma existência sem raízes muito
firmes, a de um perene emigrante, como assinava seus primeiros ensaios jornalísticos.
Dificuldades de relacionamento com o ambiente no qual se profissionalizara, invejas e
boicotes devidos a origem social e escolhas politicas, foram na base de sua decisão de
emigrar.
2.3. Fabricando vidro no Rio de Janeiro
Foi “em um momento de raiva”, como ele mesmo recordará anos depois, que Scarrone,
à idade já não mais juvenil de 52 anos, tomou a decisão de deixar a Itália e emigrar para
as Américas. Era o ano de 1911. Com regular passaporte emitido para o Brasil,
Giuseppe embarcou dia 5 de junho em Genova no Argentina, vapor da companhia
italiana La Veloce, proveniente de Nápoles e com escalas ainda em Barcelona e Dakar.
Entre os 115 passageiros da terceira classe desembarcados no Rio de Janeiro, a 21 de
junho, Giuseppe foi registrado como “giornaliero”, de 52 anos, casado12. Certo mistério
envolve a vinda da esposa, Rosalia Vadone, que já era a terceira mulher dele, e de
Concetta, a única filha, do primeiro casamento. Delas não há registro entre os
passageiros do navio, sinal de uma provável viagem sucessiva das duas para se unir ao
marido e pai.
A escolha do Brasil, e da cidade do Rio de Janeiro, como local onde transplantar
experiências adquiridas e onde recomeçar uma atividade, foi fruto, como acontecia
frequentemente nestes casos, de redes migratórias parentais e regionais. Existem
notações que confirmam casos de várias famílias de trabalhadores do vidro de Altare
que se dirigiram a países da América Latina - Argentina, Uruguai, Chile, além do
Brasil.13 Provavelmente, embora não saibamos quando, dois irmãos de Giuseppe
12
Cf. Arquivo Nacional /Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF)/Relações de
Passageiros em Vapores/Porto do Rio de Janeiro/Notação: BR.AN.RIO.OL.0,RPV.PRJ.12704
13
BRONDI, T. Nozze d’oro. Reminiscenze sulla costituzione della Societá Vetraria di Altare, Bologna,
1907, p.21-22 apud MOLINARI, Augusta, “José Scarrone, un vetraio altarese a Rio de Janeiro” In GIBELLI,
A. (org.). La via delle Americhe: l’emigrazione lígure tra evento e racconto, op. cit.
72
emigraram antes dele para o Brasil, Pedro, para São Paulo e Luigi, para a Capital
Federal, ambos se dedicando à produção do vidro. Em vários de seus escritos, Giuseppe
falou de seus primeiros anos na cidade. Escrevia em 1926:
A nossa fábrica, inicialmente foi no Rio de Janeiro filial da Crystaleria
Colombo, de São Paulo, cujo fundador foi Pedro Scarrone no ano de
1909. Sucedeu, em 1914, seu irmão Luiz [...] Em 1919, a morte
arrebatou do nosso convívio, da nossa fábrica, seu primeiro lutador, o
nosso inesquecível chefe Luiz Scarrone. 14
E assim recordava em 1932:
Dediquei os primeiros anos de permanência neste patriótico país a
aprender seu idioma, seus usos e costumes. Em 1914, já participava da
vida econômica e industrial desta praça graças à parceria estabelecida
com meu irmão Luigi, pela qual a Fábrica Nacional de Vidros passava
para minha gestão e funcionava debaixo da razão social Luigi Scarrone
e C. Pouco tempo depois, a fábrica passou para minha propriedade com
a razão social José Scarrone, à Rua Gonzaga Bastos.15
Então, apoiando-se inicialmente ao irmão Pedro, já encaminhado na atividade em São
Paulo, e em parceria com Luigi, Giuseppe moveu seus passos de vidreiro na capital da
República. Começando com um pequeno capital (“Cheguei aqui em 1911 com 100 liras
no bolso, trocadas no Banco di Napoli, como o governo sugeria”, escreverá numa carta
ao ministro Rocco anos depois16), inicialmente colaborador e sócio do irmão, em 1914
ele assumiu a gestão da fábrica carioca e, cinco anos depois, após a morte de Luigi,
aparecia como único proprietário do estabelecimento.
O Rio de Janeiro daqueles anos mostrava já os primeiros sinais de um rápido processo
de industrialização, embora a maioria dos estabelecimentos tivessem dimensões ainda
reduzidas. A fábrica dos irmãos Scarrone, de qualquer forma, de um inicial forno para a
produção do vidro, se transformou com o passar dos anos numa das mais importantes
14
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe. Fábrica Nacional de Vidros,
ano XVII, n.5, 1926, p. 4. A confirmação disso, o primeiro registro de uma transação comercial no Rio de
Janeiro com o nome Scarrone é de abril de 1909: se trata de uma compra de barracão e terreno,
realizada por Pedro Scarrone. Ver AN, Oficio de Notas do Rio de Janeiro, 1-5D, Livro 476, folha 4 [verso],
13.04.1909.
15
SCARRONE, Giuseppe. Il Brasile. Le sue grandezze, la sua produzione e l’industria del vetro, Rio de
Janeiro, 1932, p.24. Daqui para frente, quando não haverá indicação do arquivo, como nesse caso, se
entenderá que o opúsculo foi localizado e pesquisado na pasta de Scarrone no Casellario Politico
Centrale do Arquivo Central dello Stato em Roma.
16
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Carta de Giuseppe Scarrone para o Ministro di
Grazia e Giustizia, Alfredo Rocco, Rio de Janeiro, 21.2.[1927?]
73
atividades comerciais do ramo na cidade,17 adotando a partir de 1929 o nome oficial de
Fábrica Nacional de Vidros, e tendo sede à Rua Gonzaga Bastos, 314, bairro de Aldeia
Campista (atual Vila Isabel).18 Os números que Scarrone apresentou num opúsculo de
1929 testemunhavam de um intenso comprometimento com a produção e de um
negócio que estava tendo êxito: quando, em 1914, entrou como sócio, com 14 contos de
capital, na fábrica do irmão Luigi, a produção do estabelecimento chegou a 115 contos;
184, em 1915; 340, em 1920; 1.100, em 1923, 1.392, em 1925 e 1.743, em 1928. E
assim comentava os dados:
Esta fábrica, quando um dia, proprietários, trabalhadores, clientes
poderão ser precursores de uma indústria de participação dos lucros, vai
ser um marco na história da manufatura do vidro no Brasil. Eu, aos
meus 71 anos, toda manhã, às cinco horas, abro o portão da fábrica para
os 500 operários que trabalham nela, espero até o trabalho ser bem
encaminhado, tomo café, e, com minha pasta debaixo do braço e os
sapatos furados, ando pelas ruas do Rio de Janeiro e redondezas, para
vender e cobrar, a fim de poder enfrentar todas as exigências
financeiras, sendo o capital da fábrica totalmente investido nela.19
Scarrone, então, almejava que seu empreendimento se tornasse uma “indústria de
participação dos lucros”. Na fábrica, com efeito, ele tentou implantar, a partir de 1926,
uma forma de cooperação industrial entre a propriedade (o capital), os trabalhadores
(produtores) e os consumidores (clientes), à luz de seus ideais socialistas e de suas
anteriores experiências italianas.
No opúsculo de 1926, acima citado, e que, além do catálogo dos produtos, apresentava a
fábrica, sua história e características, Scarrone lançava já na primeira página o programa
de uma
Moderna Cooperação: a FÁBRICA representa e garante o capital, o
qual produz juros comerciais; o TRABALHO, pago segundo o uso da
praça; a MERCADORIA será vendida pelo preço que alcançar no
17
Escrevia Scarrone em 1926: “Produzimos todo artigo de vidro para uso doméstico e ornamentação,
para qualquer indústria de líquidos, para qualquer loja de louças e vidros, farmácia, papelaria ou outra
qualquer casa comercial. A fábrica também compra muitos artigos que lhe são indispensáveis, [...] como
Carbonato de Soda (barril), Arsênico, Antimônio, Salitre, Cera virgem, Areia, Óleos combustível e
lubrificante, Carvão, Lenha, Serragem, Óleos de rícino e de amêndoas, Vasilhames, Barricões, Barricas,
Caixas e Caixões para embalagem”. Cf. SCARRONE, Giuseppe. Fábrica Nacional de Vidros, op. cit., p. 6-7.
18
O Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro mostra como, no começo, a fábrica
da família funcionasse na Rua do Livramento, 215, Gamboa. Em seguida, por vários anos, ela continuou
de pé, começando a certo ponto a coexistir com o estabelecimento da Rua Gonzaga Bastos.
19
SCARRONE, Giuseppe. Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, Rio de Janeiro, 1929, p.48-49.
74
mercado; o LUCRO será dividido entre o capital, o trabalho e o
consumidor.20
E continuava, mais para frente, transcrevendo o texto do contrato, regularmente
depositado na Junta Comercial do Rio de Janeiro, de uma “sociedade em conta de
participação” (chegando a afirmar que, se não fosse a única no Brasil, seria pelo menos
uma das pouquíssimas existentes), contrato que previa que
no balanço anual, que será feito no mês de março de cada ano [...] o
lucro verificado será dividido da seguinte forma: 40% aos sócios
ostensivos, 20% aos participantes (chefes de seção), 20% aos operários
e 20% distribuídos como bonificação (bônus), figurando como desconto
em favor dos consumidores.21
Os chamados sócios “ostensivos” eram Scarrone e sua esposa, e os “participantes” uma
dúzia de colaboradores. Quanto aos operários, aos quais se destinaria um quinto do
lucro anual, Giuseppe explicava, num escrito do ano anterior, que se trataria de “um
prémio sobre os ganhos da indústria, distribuído aos que mais tivessem se destacado por
produtividade e assiduidade de trabalho”.22
Uma repartição dos lucros, então, que, embora parcial e limitada, pode ser considerada
como uma tentativa de reconhecimento do papel de “produtores” representado pelos
trabalhadores da indústria, indo na direção de certa corresponsabilidade e coparticipação
operária na gestão da empresa.
Não muitos são os dados de que se dispõe para
acompanhar os passos da empreitada. Vale aqui registrar as considerações do próprio
Scarrone seis anos depois do começo de seu projeto. Relatava o empresário:
Em 1926 minhas aspirações se concretizaram. Tentai constituir uma
‘Cooperativa Vidreira do Rio de Janeiro’, da qual participassem todos
aqueles que tivessem relações de comércio, de trabalho, de capital com
a Arte do Vidro. Não me preocupando com trabalho, dificuldades e
obstáculos que pudessem surgir, para impedir o conseguimento do meu
ideal, apresentei o programa de uma Cooperativa Moderna [...] O
projeto obteve entusiástica acolhida por parte dos consumidores; a
classe operária se mostrou incerta e desconfiada, apesar de ter destinado
a ela, nos balanços dos exercícios financeiros de 1926 a 1929, cinquenta
20
SCARRONE, Giuseppe. Fábrica Nacional de Vidros, op. cit., p. 1.
Ibidem, p. 26
22
SCARRONE, Giuseppe. Onorevole Giacomo Matteotti nel 1º anniversario del suo assassínio, Rio de
Janeiro, 1925, p. 19.
21
75
e cinco contos de reis. [...] Mas em 1929 meus ideais e sonhos se
transformaram em quimeras.23
E continuava listando um por um os problemas que o estabelecimento teve que
enfrentar, das multas da Prefeitura pela falta de registros da escola interna da fábrica, às
exigências da Comissão Municipal de Higiene, até a lei que regulamentava o trabalho
dos menores de 18 anos, sem falar da flutuação cambial e desvalorização da moeda após
a revolução de 1930. Mesmo assim, na última pagina do opúsculo, Scarrone ainda não
deixava de apresentava sua fábrica como a “mais democrática do Brasil, em que o lucro
industrial é dividido entre o capital, o produtor e o consumidor”.24
O que se depreende do relato é que as boas intenções de Giuseppe não conseguiram o
êxito aguardado, seja por dificuldades devidas a uma serie de regulamentações
trabalhistas e ao momento politico e econômico do país por volta de 1930, seja por,
resistências, provavelmente inesperadas, da parte do próprio operariado. Não existe uma
documentação que permita entender melhor “incertezas e desconfianças” dos
trabalhadores da fábrica de Scarrone, embora se possa pensar tanto à costumeira atitude
de suspeita diante de qualquer iniciativa de origem patronal, quanto a uma possível
decepção por uma participação nos lucros julgada como inadequada. O socialismo de
Scarrone, particularmente em seu entusiasmo com a dimensão cooperativista, aprendida
por ele nos congressos da cooperação de 1886 e 1887, na Itália, experimentada em
iniciativas em seu país, e que se colocava no âmbito da vertente reformista do
socialismo italiano, se chocava com resistências objetivas e talvez com uma atitude
subjetiva do próprio empresário, generoso em sua abertura para a classe operária e seus
direitos a vida digna e justas condições de trabalho, mas condicionado por uma
mentalidade marcada por certo paternalismo.
A utopia de Scarrone, a de uma indústria “democrática” com divisão de lucros, esbarrou
também nas leis brasileiras em defesa do trabalho dos menores de idade. Em seu
opúsculo de 192925, ele se queixava abertamente da regulamentação introduzida pelo
legislador naquele mesmo ano, que limitava a seis horas diárias o horário de trabalho
para os menores de 18 anos, a ser realizado somente das 5 da manhã às 19, sem turnos à
23
SCARRONE, Giuseppe. Il Brasile. Le sue grandezze, la sua produzione e l’industria del vetro, op. cit., p.
24-25.
24
Ibidem, p. 31.
25
Cf. SCARRONE, Giuseppe. Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, op. cit.
76
noite, e proibia completamente o emprego de menores de 14 anos. Scarrone se mostrou
contrário não à segunda parte do decreto (embora declarando que a idade mínima para
começar um emprego na fábrica poderia ter sido fixada a 12 anos), mas à primeira parte
dele, que obrigava a turnos de trabalho excessivamente reduzidos (seis horas, uma das
quais dedicada ao descanso) para a faixa de 14 a 18 anos, nisto, ao que parece,
partilhando de uma opinião comum a outros empresários e donos de indústria.
As razões de sua oposição se fundamentavam, de um lado, em uma diminuição da
produção e consequentemente dos ganhos para os estabelecimentos, devido às reduções
de horários de trabalho para aquela faixa etária (pois certos custos não diminuiriam em
proporção, como os custos específicos da fabricação do vidro, ligados ao fato de ter que
manter aceso o fogo de forma intensa e constante, dia e noite), mas, do outro, pareciam
ir de encontro à convicção de que, “após a escola primária, quando o aluno não pode ou
não quer prosseguir nos estudos, ele deve aprender uma arte ou uma profissão; aguardar
os 18 anos, quando o vicio e o ócio já tomaram conta dele, o torna um vagabundo, e não
um jovem forte”26. Por experiência pessoal, Giuseppe sabia que a idade melhor para
aprender os segredos e as habilidades ligadas à arte do vidro era a idade da
adolescência. E confirmava sua posição acrescentando as preocupações de pais que, no
escritório dele assim como nas redações dos jornais ou junto ao juiz de menores,
lamentavam a redução do horário de trabalho dos filhos, que desta forma acabavam
passando boa parte do dia na rua, sem guia ou controle.
A diminuição da produção e o consequente encolhimento das entradas, além das multas
que a Fábrica Nacional de Vidros recebeu por ter havido casos de menores trabalhando
à noite (embora o empresário se defendesse alegando que os menores foram
surpreendidos pelos órgãos de fiscalização nos arredores da fabrica e não no interior
dela), foram entre as causas que resfriaram o experimento cooperativista de Scarrone.
Haverá ainda modo de apresentar alguns desdobramentos da atividade empresarial de
Giuseppe e de sua tentativa de favorecer uma participação operária nos lucros, mas é
necessário primeiramente analisar formas e características da ação dele no âmbito do
antifascismo italiano e brasileiro da Capital Federal.
26
Ibidem, p. 36.
77
2.4. Imigração italiana e a Capital Federal
Scarrone fazia parte, no âmbito dos antifascistas da colônia italiana no Brasil, daqueles
ligados à velha emigração, isto é, os que deixaram a Itália ainda antes não só das leis
que a partir de 1925 começaram a restringir os espaços de liberdade de palavra e
movimento, mas também do próprio surgimento dos fasci em 1919, e de suas violentas
manifestações. A esse tipo de emigração a historiografia convencionou atribuir a
qualificação de “econômica”, querendo frisar sua origem e suas motivações principais,
voltadas para a busca de um local e de condições de vida e trabalho que pudessem
permitir ao migrante trabalhador um digno sustento seu e da família. Ao mesmo tempo,
recebia a especificação de “política” a emigração de quantos deixavam o país como
saída de uma situação de dificuldade e perseguição por pertencer a organizações ou
partidos políticos, por serem lideres sindicais ou por desenvolver uma ação neste
mesmo sentido. Na primeira parte deste trabalho, se mostrou como essa distinção fosse,
em muitos casos, imprópria e incorreta. De um lado, a emigração dos fuorusciti após
1925, se claramente produzida por razões de ordem política, na quase maioria dos casos
se devia também à impossibilidade real de manter um emprego, ou continuar uma
atividade ou uma profissão, sendo as pessoas claramente identificadas como
antifascistas. Por outro lado, até saídas da Itália por motivos principalmente
econômicos, como foi o caso de milhares e milhares de emigrantes na segunda metade
do século XIX e nas primeiras duas décadas do XX, podiam ter atrás delas em certos
casos uma vontade de recomeçar após boicotes ou marginalizações geradas por opiniões
ou militâncias politicas. O caso de Scarrone deve ser colocado neste âmbito. Eis que
então a sugestão de chamar de emigração político-econômica o exilio voluntario de
antifascistas após as leis fascistíssimas é feliz, apropriada também para os dois
expoentes que examinaremos mais para frente, Battistelli e Garavini, mas de certo modo
pode ser alargada para compreender situações como a de Scarrone.
Motivos econômicos ou políticos determinantes para a escolha de partir, a emigração de
Giuseppe se coloca no quadro das ondas migratórias da Itália para as Américas que
caracterizaram décadas e décadas entre o XIX e o XX século. Desta emigração originarse-á também no Brasil boa parte da colônia italiana das grandes cidades e do interior
dos Estados, seja em força de continuas novas chegadas da Europa, seja pelo
78
crescimento das famílias já estabelecidas no Brasil. Não é esta a sede para apresentar e
discutir idas e vindas do movimento migratório italiano rumo ao Brasil, intenso e
elevado sobretudo a partir da década de 80 do século XIX e com uma queda progressiva
e constante após as restrições impostas pelo governo do Reino em 1902, nem para
analisar origens regionais dos mesmos fluxos migratórios e suas distribuições no
território brasileiro, levando em conta o interior e os centros urbanos. 27 Indicamos
somente alguns dados, retirados do trabalho de Ângelo Trento, e que podem ser uteis
para situar os passos dos antifascistas aqui estudados.
Uma estimativa confiável apresenta estas cifras: excluindo os naturalizados, os italianos
presentes em todo o Brasil seriam 540 mil em 1900, 600 mil em 1902, para caírem
progressivamente para 435 mil em 1930, e se fixarem em 325 mil em 1940. Deste total,
a população de nacionalidade italiana no Rio de Janeiro teria somado cerca de 20 mil
em 1895, 30 mil em 1901, 35 mil em 1910, 32 mil em 1920 e 22 mil em 1940,
explicando-se o aumento durante a primeira década do século XX com a atração que a
cidade exerceu sobre outras regiões do país. Do ponto de vista ocupacional, os italianos
da Capital Federal estariam ligados sobretudo ao mundo do comércio e de alguns tipos
de ofício, mas com vários profissionais liberais e também donos de indústrias (seriam
56 em 1907, incluindo o inteiro Estado do Rio, e passando para 89 em 1920, com uma
media de 9,4 operários por fábrica).28
Nesta realidade se inseriu, então, o percurso de trabalho dos irmãos Scarrone, entre São
Paulo, meta inicial de Pedro, e a Capital Federal, local da definitiva afirmação da firma
da família, sobretudo sob a guia de Giuseppe. Rio de Janeiro: uma cidade com uma
presença de milhares de italianos, então, e também uma cidade que, por ser capital da
República, concentrava instâncias de controle e de decisão politica, seja pelo lado da
autoridade diplomática italiana, seja pelo lado do governo brasileiro. Uma cidade,
também, na qual o movimento operário já chegara a criar e constituir instrumentos de
defesa e de luta, como sindicatos e federações sindicais, e a reunir-se num primeiro
congresso em 1906. No ano seguinte à chegada de Scarrone, se realizava no Rio outro
congresso operário, de cunho reformista, que não será reconhecido pelos sindicalistas
revolucionários, os quais convocaram em 1913 o 2º Congresso Operário Brasileiro,
27
Para isso, o melhor trabalho disponível, por completitude de dados e informações e análise do
fenômeno migratório italiano para o Brasil, é TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de
imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989.
28
Ibidem, p. 66-67 e 102-103.
79
onde temas candentes foram discutidos, incluindo o cooperativismo e a participação nas
competições eleitorais. Após anos de crise, a recuperação da indústria nacional devido
ao fim da guerra na Europa aumentou a mobilização operaria e de 1917 a 1920
ocorreram vários episódios de greve na cidade, nas quais a participação anarquista e
sindicalista revolucionaria foi preponderante.29
Embora não se possuam elementos para documentar a evolução do pensamento de
Scarrone nestes anos, ou suas avaliações das lutas sindicais e politicas do movimento
operário da cidade, nem sua atuação antes como sócio e depois como dono de empresa,
é provável que tenha acompanhado eventos e debates, interessado como sempre foi aos
problemas do mundo operário, possivelmente tendo que enfrentar e solucionar no
âmbito de seu próprio estabelecimento reivindicações e greves. De todo modo, é neste
quadro que Scarrone se insere, ele, socialista de formação, militante sem partido, pela
quase inexistência na época de agrupamentos estáveis com esta orientação30,
alimentando sua fé politica provavelmente com a assinatura ao periódico socialista
Avanti!, editado em São Paulo, e talvez com instrumentos vindos da Itália. E mantendo
contatos com a colônia italiana da cidade, ainda não alcançada pelo fascismo.
2.5. Cartas e opúsculos contra o fascismo
Foram sem dúvidas esses contatos e os instrumentos de que dispunha a alertá-lo sobre a
periculosidade da organização fundada em Milão, em março de 1919, pelo ex-socialista
revolucionário Benito Mussolini: os Fasci di Combattimento, em breve transformados
em Partido Nazionale Fascista (Pnf). Informações sobre as palavras de ordem
reboantes, as práticas violentas e agressivas das esquadras fascistas, o sufocamento por
elas perseguido da presença socialista e católica em centros urbanos e no ambiente rural,
e o progressivo aniquilamento da rede de cooperativas, câmaras do trabalho e
municipalidades ligadas a esta presença chegaram a ele através daqueles canais, assim
como pelas cartas que recebiam de parentes e conhecidos da Itália.
29
Pequena, mas útil obra de síntese sobre o operariado e suas lutas desses anos é BATALHA, Claudio. O
movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
30
Sobre os partidos socialistas na Primeira República, ver SCHMIDT, Benito Bisso. “Os partidos
socialistas na nascente República” In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). A Formação das
Tradições (1889-1945), vol 1 de As Esquerdas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.
131-183.
80
Notícias, informações, relatos. Recebidos, como muitos outros membros da coletividade
italiana. Mas que em Scarrone despertaram algo que talvez estivesse de certa forma
adormecido desde sua saída da Itália. Um sentimento de revolta contra a injustiça e a
prevaricação, como nos tempos em que, paesano, lutava contra as imposições dos
monsú. E depois da chegada de Mussolini ao cargo de Primeiro Ministro, obtida em
outubro de 1922 com a prova de força da marcha sobre Roma, a sensação de uma
progressiva perda de liberdade geral, de um cerceamento coletivo, nacional. Do qual ele
percebia sintomas também no próprio cerceamento de suas comunicações com a Itália.
Um seu opúsculo de 1928, o decimo terceiro por ele produzido, oferece, anos depois,
uma narração detalhada de como surgiu nele a decisão de começar a escrever e publicar
contra o fascismo italiano, apresentando, quase como um currículo, a data de cada
publicação e suas motivações.31 Assim, se aprende que já em 1922 Scarrone escrevera
três cartas abertas contra o fascismo, deplorando as violências de seus militantes
armados que impediram em muitas localidades italianas as celebrações da festa do 1º de
maio daquele ano e lamentando a censura postal dirigida à sua correspondência com
parentes. Não é possível saber a quem elas fossem endereçadas: já a carta aberta do
começo de 1923 era dirigida para a imprensa da colônia italiana no Brasil, que se estava
se mostrando descaradamente partidária de Mussolini. Nela, Giuseppe acusava os
jornais da colônia italiana de ter-se jogado aos pés do novo dono do país visando
gratificações, enquanto ele, em ocasião da chegada ao governo do fascismo, resolvera se
abster de uma condenação imediata, quase concedendo um ato de confiança ao novo
executivo: “Quando um partido, mesmo formado pelos mais baixos aventureiros e
usando dos meios mais desprezíveis, chega ao governo, é prudente aguardar seus
primeiros atos e suas primeiras manifestações, antes de emitir um juízo”, comentará em
sua publicação de 28.
Continuando, contudo, atitudes violentas e ilegalidades em todo o país, com a cobertura
de Mussolini, Scarrone resolveu publicar seu primeiro opúsculo: Dopo sei lettere aperte
sul fascismo (além das quatro acima, ele devia ter redigido mais duas, mas não sabemos
para quem). Era o dia 10 de abril de 1923. Deste primeiro livrinho de Scarrone não se
conservaram exemplares, mas, com ele, o empresário do vidro começava uma intensa
31
SCARRONE, Giuseppe. Dopo 6 anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1928, p. 5 ss. In
Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão.
81
ação de denúncia das mentiras e dos crimes do fascismo, junto com o desmascaramento
da ação pró-regime dos órgãos diplomáticos e da imprensa italiana no Brasil, através de
muitos outros opúsculos e panfletos que ele mesmo mandava imprimir e difundia, tanto
deste como do outro lado do Atlântico, além de varias cartas, abertas ou não, que
continuou enviando para altos expoentes do governo na Itália e para o próprio Rei.32
Ao todo, segundo as palavras do próprio Scarrone, foram 26 opúsculos e folhetos e
dezenas de cartas, todos em italiano, sem contar os inúmeros livretos com catálogo
produzidos para divulgar o trabalho de sua fábrica. Um antifascismo expresso e
alimentado principalmente desta forma, com publicações das quais arcava todos os
custos, e que ele difundia na colônia italiana no Rio e provavelmente também em São
Paulo, por vezes contando com a colaboração de ambientes e expoentes do
antifascismo. Um antifascismo que se manifesta desde os inicios do advento do
fascismo na Itália: sem dúvida alguma, nisso, Scarrone foi um autêntico precursor. Se a
emigração dele não se devia a uma experiência direta de violências e ameaças, como
será para Battistelli e para Garavini; se seu conhecimento da pesada mão do fascismo
era indireto; se milhares de quilômetros o separavam das ações das milícias de camisa
preta, isso não significou nele uma menor intensidade na batalha antifascista.
Pelo que foi possível descobrir através da documentação encontrada em arquivos
italianos e brasileiros, indício de um raio de difusão dos impressos bastante amplo, o
ritmo das publicações era de ao menos três por ano, aproveitando às vezes de datas
significativas, para o fascismo (como 28 de outubro, aniversário da marcha sobre Roma,
considerada pelo regime, como o marco inicial de sua afirmação na Itália) ou para o
antifascismo (como l0 de junho, aniversário do assassinato de Matteotti33). Isto de 1923,
data do primeiro escrito, a 1928. O ano de 1929 contou excepcionalmente com quatro
opúsculos. A partir de 1930, o ritmo decresceu, passando a um ou dois por ano. Em
1935, Scarrone se despedia da política ativa, mas continuará nos anos seguintes a
publicar sobre sua fábrica. Haverá modo de se investigar a respeito desse encerramento
bastante abrupto. Por enquanto, podemos acompanhar de forma unitária o empenho dos
32
Houve, por exemplo, já em 1923, uma carta aberta de Giuseppe ao próprio Mussolini, pedindo conta
do boicote imposto a suas correspondências. Várias missivas, enviadas para parentes ou firmas
comerciais sem receber resposta, o levaram a escrever para o chefe do governo italiano, a 20 de
setembro daquele ano, perguntando: “Esse sistema de governo, esse terror, essas infâmias postais
haverão ainda de continuar?”.
33
Cf. nota 51 da primeira parte.
82
primeiros tempos, até 1926, ano marcado por uma condenação de Scarrone, infligida
por um tribunal italiano.
O segundo opúsculo, que é o primeiro conservado nos arquivos, é também de 192334.
Depois da fotografia dele, Scarrone se dirigia ao leitor, explicando as razões da
publicação:
Jornais e jornalistas da Colônia italiana no Brasil só sabem gritar com
toda força de seus pulmões os progressos do governo fascista, a grande
energia de seu Presidente Benito Mussolini [...] Uma força irresistível
me faz correr para meu arquivo familiar, prelevar e imprimir, às minhas
custas, uma pequena coletânea dos delitos que ficaram impunes porque
governo fascista e rei declararam que foram cometidos no interesse
da...pátria!!! Objetivo deste meu modesto opúsculo é demonstrar aos
honestos habitantes do Brasil que não é o caso de se entusiasmar por
aquilo que gritam estes jornalistas de além-mar, com a pança cheia de
Pátria!35
E acrescentava duas paginas depois: “Para que, aqui também, a história não fique
ignorando aquilo que o Fanfulla e todos os outros jornais, em língua italiana, da colônia
evitam publicar, com este presente [opúsculo] intervenho para remediar, a fim de que a
história tome nota”36. A data de 1 de Novembro de 1923 selava o breve texto de
abertura,
posto como introdução a uma coletânea de artigos de jornais italianos,
principalmente do Avanti!, que documentavam episódios de violência e crimes
protagonizados por fascistas na Itália. O livreto, de 34 páginas, trazia no final a carta de
protesto para Mussolini lembrada acima.
Expressões insufladas de ênfase retorica, erros gramaticais, frases truncadas ou
sintaticamente incorretas marcavam o texto, como marcarão praticamente todos os
sucessivos, com ressalva de alguns ou de partes de alguns, que assinalaremos, nos quais
é provável a intervenção de outras autorias ou de uma edição posterior. Em parte, certas
imprecisões podem ser atribuídas à passagem do original, provavelmente manuscrito, e
quase sempre em italiano, para o texto impresso na tipografia, com todos os problemas
ligados à interpretação da letra ou do idioma estrangeiro. Scarrone, contudo, em várias
ocasiões, reconheceu suas dificuldades com a norma culta, justificando-as com a
ausência, em sua infância e adolescência, de estudos regulares.
34
SCARRONE, Giuseppe. Dopo un anno di governo fascista. Rio de Janeiro, 1923. O opúsculo foi
impresso na Papelaria Confiança, de Alberto Silvares e C., Rua dos Andradas, 71.
35
Ibidem, p. 4.
36
Ibidem, p.7.
83
Mas qual era a imprensa da colônia italiana em conflito com a qual Scarrone se
posicionava?37 O diário paulistano Fanfulla é, como se viu, o que ele atacava
diretamente: se tratava, com efeito, do mais representativo periódico em língua italiana,
com certa difusão também fora de São Paulo, e acabaria sendo também o mais
duradouro, pois, fundado em 1893, continuou as publicações até a década de 1960. Sua
passagem de folha independente a partidário do fascismo aconteceu já em 1923,
imitado, nesta conversão ao regime do Duce, também pelo Piccolo, outro importante
jornal paulistano, até 22 antifascista, e rapidamente transformado em órgão do fascio,
isto é, a seção do Pnf, da cidade. Claramente havia toda uma imprensa crítica diante do
fascismo, particularmente as folhas anarquistas, mas de limitada difusão e dirigidas a
um circulo seleto de leitores. Quanto ao Rio de Janeiro, pouquíssimos títulos existiam
no âmbito do mundo da comunidade italiana, e todos alinhados com Mussolini
(particularmente L’Italico, com nome mais tarde mudado em L’Italiano, órgão do fascio
local), sendo esporádicas e sem muita continuidade as tentativas de dar voz impressa à
parte antifascista dela. Como se verá, em termos de periódicos, o instrumento principal
do antifascismo no Brasil era representado pelo paulistano La Difesa, que alcançará em
seu raio de difusão também outros Estados, incluindo a Capital Federal.
Rebelião diante da injustiça experimentada em sua pele, com suas cartas censuradas e
violadas, e vontade de desmistificação da ação do fascismo na Itália, positivamente
descrita pelos órgãos da imprensa italiana no Brasil: por isso, em suma, Scarrone se
lançava em sua empreitada publicística. Pode-se acompanhar ano apor ano a escalada
desta ação de Giuseppe, partindo pelo ano de 1924. Neste ano, houve mais “cartas
abertas”. A primeira foi dirigida no mês de junho para o comandante dos Carabinieri
[Carabineiros] de Altare, sua cidade de adoção e de trabalho na Itália. No impresso,
Scarrone pedia conta novamente, como já tinha feito no ano anterior em carta para
37
A respeito desse assunto, como de outros aspectos ligados à vida da colônia italiana no Brasil nestes
anos, somos devedores do volume de Trento, sobretudo seu documentado capitulo sobre o período
entre as duas guerras: TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no
Brasil, op. cit., p. 265-402. Ponto de referência fundamental são também os numerosos artigos e
volumes de Bertonha sobre o tema, particularmente o estudo da realidade antifascista paulistana e o
sucessivo trabalho sobre fascismo e imigração italiana: BERTONHA, Joao Fabio. Sob a sombra de
Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP /
Anablume, 1999 e BERTONHA, Joao Fabio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001. À produção de Trento e Bertonha se reenvia para um quadro mais completo da vida da
coletividade italiana no Brasil durante o período fascista, análise que foge aos propósitos do presente
trabalho.
84
Mussolini, da violação de sua correspondência para seus parentes, “que não me
escrevem mais por medo que o senhor abra as cartas e envie os bandidos com o
cassetete”38. E anunciava a próxima publicação de novo opúsculo, que seria enviado
também para o comandante, com pedido que seja deixado livre de circular, sem censura
por parte do correio posto sob a jurisdição dele.
Na realidade, foram mais dois os impressos saídos das mãos de Scarrone que circularam
naquele ano. O primeiro era um verdadeiro livrinho, de 52 paginas, com o significativo
titulo de “La Libertá”39, que se configurava como uma coletânea de vários textos, quase
como capítulos de uma obra unitária, redigidos pelo autor durante o mês de abril e de
maio (no final de cada um havia data e local de sua escrita, geralmente um bairro
carioca, como Cascadura, Engenho de Dentro, Piedade, Meyer, Catete, ou até
Petrópolis). Começando com mais uma queixa pela forma com a qual sua
correspondência dirigida à Itália era vigiada, a ponto de seus familiares terem que abrila na presença dos Carabinieri, Scarrone tocava vários assuntos, quase um cahier de
doléances: desde as vexações sofridas nos tempos de sua juventude por parte dos
poderosos, à sua atual impossibilidade de voltar para a pátria, devido à sua atitude de
denúncia, de uma panorâmica da mais recente história das lutas sociais na Itália, às
afirmações sobre o significativo resultado obtido pelas esquerdas nas eleições daquele
ano para o Parlamento (“Um milhão e cento e dezenove mil e cento oitenta e oito votos
[entre socialistas e comunistas] representam uma potência alertadora, que demonstra
que, quando as malversações do governo fascista terminarem, os socialistas poderiam e
deveriam ser os sucessores do atual governo”).40
No contesto de uma passagem em que declarava a necessidade para os “produtores”,
leia-se trabalhadores do campo e da indústria, de chegar à “propriedade coletiva”,
mesmo que fosse incialmente através da “comparticipação na divisão dos lucros”,
Scarrone formulava uma definição de fascismo (“último esforço da burguesia”),
claramente ligada àquela leitura do fenômeno própria do mundo da esquerda marxista,
socialista e comunista, como vimos na primeira parte de nosso trabalho. “Fui e sou
socialista de convicção própria, nunca tendo tido tempo para aprofundar-me na escola
dos meus predecessores e contemporâneos [...]; agora me encontro completamente
38
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe. Lettera Aperta al Signor
Comandante la Stazione dei R.R. Carabinieri di Altare (Genova), Rio de Janeiro, 15.6.1924.
39
ACS/Biblioteca, Misc. C, n. 1072, SCARRONE, Giuseppe. La Libertá. Rio de Janeiro, 1924.
40
Ibid., p. 35.
85
isolado no mundo”41 – queixava-se nas primeiras páginas, mas sua análise histórica do
fascismo se encontrava alinhada com a daquele universo socialista que sempre foi seu
horizonte de referência.
O outro opúsculo do mesmo ano, publicado em comemoração ao 2º ano do governo de
Mussolini42, trazia em sua parte central mais uma carta ao comandante dos Carabinieri
de Altare, ainda lamentando o constrangimento provocado nos parentes ao receber suas
noticias epistolares, e já fazia referência ao assassinato de Matteotti, acontecido em
junho. A chegada à Itália destas publicações começou a despertar certo alarme nas
forças de polícia e no governo: 87 cópias do opúsculo, expedidas a pessoas de Altare e
arredores, foram sequestradas pela polícia e o Ministério do Interior foi recebendo
informes das autoridades locais a respeito de seu autor.43
O ano de 1925 registrou uma intensificação das publicações do empresário socialista. O
regime de Mussolini, superada a crise gerada pelo caso Matteotti e derrotado o
movimento desencadeado pelas oposições com a secessão do Aventino, ia se
configurando como uma autentica ditadura. A este respeito, como já evidenciado na
primeira parte do presente trabalho, quando se discutiu a respeito dos marcos
cronológicos para definir e catalogar a produção impressa do antifascismo italiano, não
concordamos com quem considera “produção do antifascismo" somente os escritos que
apareceram após o dia 5 de novembro de 1926, data da lei fascista que suprime partidos,
associações e organizações de oposição. No exterior, como no caso de Scarrone (e
também, como se verá, do semanário La Difesa), há produção impressa antes deste
marco a quo que merece ser autenticamente caracterizada como parte da propaganda e
da publicística antifascista.
Desse ano de 1925, se conservam pelo menos três impressos de Scarrone. Um primeiro,
coincidente com o aniversario da morte de Matteotti44, celebrava o nascimento, no dia
1º de maio, do Partido Socialista Brasileiro45, e a vontade de seus membros fundadores
41
Ibid., p. 6.
SCARRONE, Giuseppe. Commemorando il 2º Anno di Governo Fascista, Rio de Janeiro, 1924.
43
Cf. ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Informes da Prefettura de Genova para o
Ministério do Interior, Genova, 6.8.1924 e 3.12.1924.
44
SCARRONE, Giuseppe. Onorevole Giacomo Matteotti: nel 1ª anniversario del suo assassínio, op. cit.
45
O jornal O Estado de São Paulo de 1º de Maio publicava o manifesto de criação do partido, redigido
pelo advogado Evaristo de Moraes, um dos primeiros defensores dos ideais operários, e que veremos
em várias ocasiões intimo de Scarrone. Assinado por jornalistas, operários, engenheiros, professores,
advogados e comerciantes, o documento de fundação continha várias propostas, como instituição do
42
86
de homenagear o deputado socialista italiano assassinado. Giuseppe, nas primeiras
páginas, apresentava as peças documentais de uma batalha de impressos travada entre
ele a alguns periódicos da colônia italiana, como L’Italico e La Patria degli Italiani,
partidários do fascismo, a respeito da decisão dos socialistas brasileiros. O resto do
opúsculo contem elogios do socialismo, referências ao pensamento de Jaurès,
considerações sobre o movimento cooperativista e, como se viu acima, esperanças para
poder realizar em breve um experimento de cooperação também em sua fábrica, com
premio sobre os lucros para os operários.46
Os outros dois impressos do empresário47 repetiam o esquema dos anteriores, isto é,
coletâneas de pequenos textos, a maioria assinados no final por ele mesmo, e que
podemos imaginar redigidos pelo autor à noite, voltando de suas andanças pela cidade
em busca de clientes ou credores, ou em alguma pausa durante as mesmas. Os assuntos
sempre ligados ao fascismo na Itália, sua tomada do poder, a vida de Mussolini antes do
partido, o programa – depois descumprido - dos Fasci Italiani di Combattimento, a
situação econômica atual e a anterior a 1922, as cumplicidades de monarquia e Santa
Sé, as ambíguas figuras dos principais hierarcas do regime. Em vários textos seu
pensamento é original, sua reflexão própria, sua “indignação” completamente autoral.
Assim, na epígrafe de Note, Memorie e Commenti, Scarrone dizia:
Constatar fatos nunca desmentidos, criticar sistemas e leis que nunca
imaginaríamos adotados na Itália: é um dever mais que um direito.
Dizer francamente que assim não dá, e se deve mudar: não é difamar, e
sim criticar. Saiba o senhor Mussolini que: em nenhum código, em
nenhum dicionário, verdade é sinônimo de difamação. Suprimir a vida
alheia para se impor: é ser assassinos. [grifos do autor]48
Uma declaração de intenções e uma denúncia precisa. E ainda a respeito da proposta de
lei que ia atingir os italianos no exterior que fossem desenvolver propaganda
voto secreto e obrigatório, participação política por classes e o direito de voto a soldados, marinheiros e
estrangeiros residentes no Brasil; extinção do Senado; reconhecimento da República dos Soviets e
supressão da embaixada brasileira no Vaticano; instrução primária e profissionalização gratuitas;
instituição do salário mínimo; liberdade de culto religioso; monopolização pelo Estado de todos os
serviços de transporte, da energia elétrica, das minas e semelhantes; estímulo às organizações
sindicalistas e proteção a qualquer tipo de cooperativa.
46
Cf. nota 22
47
Os dois opúsculos são SCARRONE, Giuseppe. Note, Memorie e Commenti sul Governo fascista in Italia,
Rio de Janeiro, 1925, e SCARRONE, Giuseppe. Il Terzo anno di Governo Fascista in Italia: mentre hanno
paura di un morto, Rio de Janeiro, 1925.
48
SCARRONE, Giuseppe. Note, Memorie e Commenti sul Governo fascista in Italia, op. cit., p.1.
87
antifascista, ameaçando-os com a perda da cidadania, o confisco de bens e a prisão ao
retornar à Itália, ele comentava:
Perder a cidadania italiana? Pouco nos incomoda: somos italianos e
ninguém pode tirar isso de nós [...] Confisco de bens? Quem vai para o
exterior em busca de fortuna dificilmente deixa riquezas na pátria, e nós
não possuímos nem desejamos possuir. Prisão imediata em caso de
retorno para a Itália? Enquanto continuar o governo da violência, nós
não voltaremos, não se preocupem com isso.49
Em vários outros pontos, o autor se espelhava, apoiando-se, nas análises e juízos
análogos apresentados por La Difesa naqueles anos, e também nos sucessivos. De certa
forma compreensível, seja por aquele ser o principal instrumento do antifascismo da
coletividade italiana no Brasil, seja pela linha de socialismo moderado que, sob a
direção de seu diretor, o socialista Antonio Piccarolo50, o periódico propunha, e que se
aproximava da visão politica de Giuseppe. Mas muitos dos argumentos apresentados
eram comuns a boa parte do fuoruscitismo, e o serão também no futuro, reforçados,
aliás, quando, com o surgimento, em 1927, da Concentrazione di Azione Antifascista, o
discurso do antifascismo encontrará, de certa forma, seu ponto de confrontação e
referência.
É possível então afirmar que Scarrone, com seus escritos, funcionava como repetidor de
uma posição politica, difusor de uma leitura dos fatos e de uma interpretação do
fenômeno fascista presente no âmbito mais largo da coletividade italiana antifascista.
Colocava-se, em outras palavras, como instrumento de divulgação em termos
panfletários de um discurso antifascista anterior a ele, veiculado pelos instrumentos à
sua disposição, e com o qual articulava suas pessoais considerações e reflexões, estas
ligadas principalmente à experiência sindical e de trabalho em sua pátria. A difusão e
circulação dos impressos, na Itália, apesar da censura e do sequestro do material, e no
Brasil, no âmbito da coletividade italiana, sobretudo do Rio e São Paulo, são difíceis de
serem avaliadas em termos quantitativos, assim como a efetiva influência que possam
ter produzido.
49
Ibidem, p. 8-9.
Antonio Piccarolo nasceu na Itália em 1863, onde foi advogado e professor, e participou da fundação
do Partido Socialista Italiano. Emigrou para o Brasil em 1904, para dirigir o Avanti!, sempre mantendo-se
fiel a uma linha reformista e moderada. Sobre sua figura e sua atuação em São Paulo, ver BERTONHA,
João Fabio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945,
op. cit. e HECKER, Alexandre. Um Socialismo possível: a atuação de Antonio Piccarolo em São Paulo. São
Paulo: T.A. Queiroz, 1988.
50
88
Contudo, numa comparação um tanto arriscada, mas que não fica totalmente
inverossímil, acreditamos que os opúsculos de Scarrone podem ser aproximados aos
panfletos e escritos do mundo da subliteratura pré-Revolução Francesa, estudados por
Robert Darnton51. Assim como aqueles circuitos underground do século XVIII atingiam
boa parte de seus conteúdos dos grandes textos da elite intelectual do iluminismo
francês, ou plagiando-os ou repetindo temas e motivos, ou até distorcendo-os, mas
frequentemente a eles remetendo, Scarrone, e outros que desenvolveram aquele tipo de
publicística, facilitaram a divulgação de conteúdos da luta antifascista, e de sua
motivações, atingindo da fonte do pensamento politicamente mais elaborado e
esmiuçando-o. Segundo Darnton, foi no ódio e na paixão daqueles subliteratos que se
articulou o extremismo revolucionário, mais de que nas refinadas abstrações da elite
cultural. Se não podemos segui-lo nesta afirmação quanto à influência dos panfletos de
Scarrone e outros como ele sobre os resultados concretos da luta antifascista, pode-se
contudo dizer que foi também de homens como ele, um dos muitos “desaparecidos nos
escaninhos inescrutáveis da historia”52, e de seus opúsculos, que se alimentou a
resistência ao fascismo.
Polícia e governo na Itália continuavam, com efeito, a manter vigilância sobre Scarrone
e seus opúsculos, vigilância reforçada pelo fato que o empresário do vidro chegou
também a enviar cartas para altos expoentes do regime e para o próprio Rei Vitor
Emanuel III. Em julho de 1925, Scarrone endereçava ao Ministro do Interior, Luigi
Federzoni, cópia de uma carta dirigida ao soberano, na qual afirmava:
Até quando V.M. assina em baixo o que deliberaram as Câmaras, as
prefeituras, as províncias, com administrações nomeadas com o
cassetete na mão, impedindo aos adversários de votar contra, V.M. está
agindo segundo a lei constitucional, mas quando oferece hospitalidade
ao Presidente dos assassinos de Matteotti! [...] ainda uma luz eu vejo:
V.M. aceitar um dia a afirmação de seu avô, ‘Esta [lei] eu não vou
assinar!’.53
As autoridades diplomáticas do Rio de Janeiro foram acionadas a fim de que Scarrone
recebesse uma forte advertência e fosse proibido de continuar enviando cartas deste
51
Cf. DARNTON, Robert. Boemia literária e Revolução: o submundo das Letras no Antigo Regime. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
52
Ibidem, p. 134.
53
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Luigi Federzoni,
Ministro do Interior, Rio de Janeiro, 17.7.1925.
89
tipo, se fosse o caso pedindo a intervenção também da policia local.54 Antes da
intervenção da embaixada em 1926, contudo, há o registro de mais uma carta, que
Scarrone escreveu, no final de 25 para o então secretario do Pnf, Farinacci, em resposta
a uma anterior missiva do mesmo, que lançava contra o socialista uma avalanche de
impropérios e ameaças: Giuseppe juntou as duas num só folheto que chegou a imprimir
e difundir.55 Mas qual era a realidade do antifascismo da colônia italiana daqueles
primeiros anos? Com quem Scarrone se encontrava e dialogava? Em que ambiente
encontrava alimento para suas polêmicas publicações?
2.6. Primeiros passos do antifascismo na colônia
Como se viu, os impressos de Scarrone debatiam posições e afirmações de órgãos de
imprensa da coletividade italiana no Brasil, do Rio e de São Paulo, e manifestavam um
pensamento e uma postura que deviam encontrar respaldo em posicionamentos e
argumentos presentes num ambiente declaradamente antifascista. Difícil é expressar em
termos numéricos esta realidade de oposição a Mussolini e seu projeto de ocupação do
poder, ainda mais nestes anos em que o antifascismo italiano estava ainda se articulando
e criando instrumentos. Trento critica números apresentados por expoentes do próprio
antifascismo na época, que falavam de uma colônia italiana em sua grande maioria
antifascista, ou estimavam em 10 mil o total de seus elementos 56. Mais provavelmente,
temos que falar de algumas dezenas, ou centenas, concentrados nas grandes cidades,
mais em São Paulo do que no Rio, devido à mais numerosa coletividade italiana
presente. Relativamente poucos os mais ativos, mais numerosos os simpatizantes, ou os
participantes de assembleias e eventos promovidos pelas varias associações, como se
verá. Uma realidade na qual “a nova e a velha emigração praticamente se equivaliam, e
também se encontravam esporadicamente opositores ativos nascidos no Brasil de pais
italianos”57.
54
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Reservada do Ministério do Interior para o
Ministério das Relações Exteriores, Roma, 10.8.1925.
55
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe, Saggio di educazione
politica di chi oggi parla in nome dell’Italia. Rio de Janeiro, 25.12.1925.
56
Cf. TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit., p.
346-347.
57
Ibid., p. 347.
90
É possível que no contexto de uma coletividade italiana no Brasil calculável em
centenas de milhares de indivíduos, e algumas dezenas de milhares na Capital Federal, a
grande maioria se mantivesse numa posição de indiferença, gradualmente convertendose a uma difusa simpatia pelo fascismo, sobretudo devido ao prestigio que a politica
internacional do regime trazia para a Itália, e, de consequência, para as comunidades
italianas no exterior.
Foi sobretudo no conjunto desta grande maioria, que não
manifestava abertamente ou de forma empenhada sua simpatia ou sua oposição ao
fascismo, que, com passar dos anos, se consolidou uma posição de apoio a Mussolini e
seu governo, embora, muitas vezes, mais como manifestação de um renovado
sentimento de orgulho nacional, do que como identificação com os ideais do partido.
Interessante, a esse respeito, é um editorial de Il Pasquino Colonial, semanário da
colônia paulistana, de junho de 1927. Comentando um discurso de Mussolini, no qual o
Duce declarava haver lugar também para “os a-fascistas, desde que honestos e
exemplares”, o jornal elogiava as palavras do líder e declarava o valor da “teoria do afascismo, particularmente para os italianos no exterior, teoria para a qual sempre
lutamos”. Partindo da convicção que não são todos que podem ou devem fazer politica,
afirmava que “o italiano que emigrou, não está no exterior não para fazer politica e sim
para trabalhar e melhorar suas condições financeiras, com a obrigação moral de se
conservar um bom patriota”. E acrescentava, descartando as posições radicais, mas de
fato fazendo o jogo do regime mussoliniano:
Ser militantes em campo fascista é perigoso e inútil: nós vimos aqui, no
Rio, e nas maiores cidades onde se concentram os italianos, como
Buenos Aires ou Nova Iorque, com quanta desconfiança são vistos
nossos compatriotas pelos nacionais, e quantas discórdias e lutas
estéreis e também violentas atravessem o caminho de quem se filia ao
partido. Ser militante antifascista é ainda mais perigoso e inútil, porque,
além de travar batalhas sem realização alguma e sem objetivos práticos,
o único resultado é o de exacerbar as mentes dos indiferentes, e de
atribuir ao nome dos italianos uma áurea, pouco agradável, de pessoas
desordeiras e nocivas.58
Uma posição deste tipo, com o passar dos anos, iria mostrar toda sua ambiguidade, pois,
apontando como nefasta a propaganda e a atuação dos antifascistas, acabará fazendo
pender cada vez mais do lado do fascismo a balança do favor popular no âmbito da
colônia italiana, particularmente a partir do começo da década de 1930, período de
grande popularidade do regime, na pátria e no exterior. Os a-fascistas, em suma, iriam
58
“Siamo d’accordo com Mussolini”. Il Pasquino Colonial, São Paulo, 4.06.1927, p. 3.
91
se converter mais facilmente em fascistas, embora não necessariamente militantes, do
que em antifascistas.
Primeiro e mais importante instrumento do antifascismo italiano no Brasil, como foi
referido acima, foi o periódico La Difesa.59 Começando suas publicações em abril de
1923, o jornal, redigido e impresso em São Paulo, teve periodicidade variada, mas
principalmente semanal (em certos momentos saindo duas vezes por semana), e no final
de sua parábola, entre dezembro de 1931 e abril de 32, se transformou em diário,
mudando seu nome para L’Italia. De maio de 1932 ao seu fim, em março de 1934,
voltou à periodicidade semanal, e no ultimo semestre, também o antigo nome de La
Difesa. Vários diretores se sucederam, mas aqueles aos quais se deve principalmente
sua linha editorial foram nos primeiros anos o italiano Antonio Piccarolo, socialista
moderado, e a partir de finais de 1926, o ex-deputado também socialista Francesco
Frola, que do exilio na França chegara ao Brasil para assumir a responsabilidade do
jornal e de certa forma de todo o movimento antifascista.60 Não cabe aqui o relato das
vicissitudes atravessadas pelo periódico e, de consequência, pelo antifascismo
paulistano, na passagem de responsabilidade do primeiro para o segundo, e na condução
deste último, que acabou provocando dissensões e divisões no âmbito das fileiras
antifascistas. Baste aqui assinalar como a saída de Frola do jornal abriu espaço para a
volta de Piccarolo, desta vez em conjunto com Nicola Cilla e Mario Mariani, que se
alternaram na direção, nos últimos meses assumida por Bixio Picciotti.
Embora produzido em São Paulo, o jornal tinha certa difusão também no Rio de
Janeiro, sobretudo através de assinaturas, além da venda nas bancas. Scarrone foi um
dos leitores mais fieis e, mais tarde, também assinante: particularmente a partir de finais
de 1926, quando nas colunas de classificados começaram a aparecer os anúncios de sua
Fábrica Nacional de Vidros, alguns seus breves artigos, além do registro de sua
participação em várias subscrições e matérias sobre seus polêmicos opúsculos.
59
Fontes importantes de informações sobre La Difesa em TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico:
um século de imigração italiana no Brasil, op. cit, p. 367-370, e BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra
de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, op. cit., passim.
60
Sobre Frola, sua chegada ao Brasil e sua atuação no campo do antifascismo ver TRENTO, Angelo. Do
outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit, passim, e BERTONHA, João
Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, op.
cit., passim, e também as recordações do protagonista, em FROLA, Francisco. Recuerdos de un
antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico Nuevo, 1939.
92
Se Giuseppe, afinal, tinha no paulistano La Difesa um instrumento semanal impresso
onde atingir materiais e temas para suas batalhas, qual era a realidade do antifascismo
no Capital Federal, sua consistência e seus expoentes principais?
Os documentos
oferecem poucos elementos para uma tentativa de reconstrução do ambiente do
antifascismo carioca. Um artigo de La Difesa em finais de 1924 falava de uma colônia
na qual os fascistas se encontravam cada vez mais em posições de recuo, após o clamor
suscitado pelo caso Matteotti, mesmo buscando uma presença mais acentuada nas
sociedades italianas da cidade, e anunciava a criação no Rio de Janeiro daquela que era
a primeira associação antifascista no Brasil: a Unione Democratica Italiana, tendo
como dirigentes Giovanni Scala, Giovanni Infante, Antonio Corrado Limongi, Armando
De Gasperis e Eugenio D’Alessandro.61
Não há muitos registros da atividade dessa sociedade antifascista. Alguns meses depois,
um artigo em La Difesa62 reclamava do imobilismo dela, condenada a uma vida de
espera diante de iniciativas da parte fascista, e será necessário aguardar até dezembro de
1926 para ver o surgimento de outra associação, a Lega dei Diritti dell’Uomo (Lidu),
mais compromissada e ativa. Mas fica o registro dela como primeira realidade
associativa antifascista no Brasil. Entre os fundadores da Unione Democratica, estavam
alguns dos mais ativos antifascistas daqueles anos.
As noticias a respeito de Eugenio D’Alessandro são quase inexistentes, a não ser um
registro segundo o qual cinco anos depois ele seria um dos membros da Lega
Antifascista na Capital Federal63, ao passo que sobre o romano Armando De Gasperis já
possuímos mais informações64. Chegado ao Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1924,
com 24 anos de idade, foi funcionário de vários hotéis, como o Glória e o Copacabana
Palace, até 1928, quando se mudou para Buenos Aires, trabalhando em bares de clubes
locais. Antifascista e republicano, como o caracterizam os informes da policia italiana,
nos anos cariocas participou de algumas subscrições para o periódico antifascista e
chegou a escrever um breve artigo em uma ocasião, mas quanto a sua atuação no
Copacabana há registros de revolta e descontentamento por parte dos funcionários
subordinados a ele. Talvez por isso a decisão de se mudar para a Argentina, onde mais
61
Cf. “Cronaca di Rio de Janeiro”. La Difesa, ano III, n. 1, 25.12.1924, p. 2-3. Apesar de terem sido
publicados já 29 exemplares do jornal desde sua criação, a numeração dele recomeçou com este
número, para sinalizar também um recomeço após uma suspensão de seis meses.
62
Cf. “Cronaca di Rio de Janeiro”. La Difesa, ano III, n.8, 15.2.1925, p. 3.
63
Cf. Diário Carioca, 22.9.1929, p.3.
64
ACS/CPC b. 1657, f. 10286 (“De Gasperis, Armando”).
93
tarde parece ter-se aproximado de Giustizia e Libertá, embora sem muita convicção, se
o próprio Battistelli, numa carta a Rosselli de 1933, comentará: “escreverei para De
Gasperis, estimulando-o para que acorde”.65A morte o surpreenderá em terra portenha
ainda em 1936.
Do advogado Antonio Corrado Limongi, emigrado para o Brasil em 1913, quando tinha
34 anos, se falará mais amplamente na terceira parte, sendo sua atuação antifascista
mais destacada a partir de finais da década de 1920, quando, com Battistelli e outros,
protagonizará batalhas para não ceder ao grupo partidário do fascismo a maioria da
Beneficienza Italiana. Os outros dois participantes da fundação da Unione Democratica,
pelo contrário, Scala e Infante, eram os verdadeiros articuladores do movimento
antifascista carioca, por enquanto fundamentalmente italiano, nestes primeiros anos.
O socialista Giovanni Scala fazia parte também, como Scarrone, da velha emigração,
dos anos anteriores ao fascismo. Diferentemente do empresário do vidro, chegara ao
Brasil ainda pequeno, com 9 anos, em 1897, oriundo da região de Salerno, perto de
Nápoles. Mas, como Scarrone, sua fé politica era o socialismo, conhecido e
aprofundado no Brasil, provavelmente em São Paulo, onde passou anos. Pelos dizeres
oficiais carimbados ou acrescentados a mão no seu prontuário66, Scala era “perigoso”,
“temível” e “a ser detido”: sinal que era considerado uma real ameaça para o regime no
âmbito da comunidade italiana na Capital Federal. Com efeito, as autoridades da
embaixada italiana e as forças de policia afirmavam que era “o verdadeiro deus ex
machina de todo o movimento antifascista do Rio [...] Frola não move um passo no Rio
sem antes consultar Scala” 67.
De origens humildes, caixeiro viajante e representante comercial de firmas
farmacêuticas e alimentares, Scala era o responsável carioca pelas assinaturas a La
Difesa desde 1925, e o correspondente também: houve diversas matérias narrando os
embates entre fascistas e antifascistas na Capital Federal, assinadas G.S., de provável
autoria dele. Participou da fundação da Unione Democratica, mas também foi um dos
dirigentes da Lidu desde seu inicio, em dezembro de 26, se tornando logo o vicepresidente, com Battistelli presidente. Quando da tumultuada chegada de Frola da
65
AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8, Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, Rio de
Janeiro [1933]
66
ACS/CPC, b.4649, f.768, (“Scala, Giovanni”).
67
Ibidem, informe da Divisão Policia Politica, n.500/100967, 24.11.1927.
94
França para o Brasil, com sua fuga do navio atracado no porto do Rio68 e seu encontro
com expoentes do mundo antifascista carioca, Scala estava na primeira linha:
participou, discursando em nome da Lidu, do banquete oferecido ao recém-chegado e
foi, com Battistelli, entre os que o acompanharam até Belo Horizonte numa viagem de
propaganda.69 De novo junto com o mesmo Battistelli, em 1932 será encarregado de
redigir os estatutos da Associazione Antifascista, recém-criada70. Em seu livro
autobiográfico, Frola o apresentava como o chefe do movimento antifascista do Rio,
atribuindo a esse fato seu afastamento do emprego junto ao Instituto Terapêutico
Romano.71 Ainda destacado conferencista em eventos organizados pela Liga
Anticlerical carioca72, Scala faleceu em novembro de 32. Uma sessão do Partido
Democratico-Socialista em sua homenagem teve discursos de Battistelli, pela Liga
Antifascista, de José Oiticica, pela Liga Anticlerical, e de representantes da Coligação
Nacional pro Estado Leigo e de organizações maçônicas, organismos todos dos quais
Scala fazia parte.73
Originário da mesma região de Scala, e quatro anos mais novo, era Giovanni Infante.
Médico, emigrara para o Brasil em 1923. Segundo informações da Embaixada do Rio
de 192774, Infante era um dos pouquíssimos intelectuais antifascistas da Capital Federal,
e a Unione Democratica teria sido criada em 1924 na própria casa dele. A hipótese é
plenamente plausível: com efeito, a Unione, primeiro agrupamento antifascista no
Brasil, como foi lembrado acima, devia se inspirar em análogo surgido na Itália um mês
antes, em novembro de 1924, a Unione Nazionale delle forze liberali e democratiche
(mais tarde mudando para Unione Democratica Nazionale), promovido pelo deputado
liberal democrata Giovanni Amendola, em resposta ao assassinato de Matteotti e como
forma de compactar as fileiras do antifascismo. Organização de duração efêmera, pois,
como todas as outras da oposição, em breve será dissolvida pelas leis fascistíssimas,
68
Frola fora impedido de desembarcar em Santos, tendo seus documentos italianos perdido validade
por ordem do governo de Mussolini. Tendo assim permanecido a bordo do navio, durante sua volta para
a Europa, em ocasião de escala no porto do Rio, Frola conseguiu se evadir da vigilância e fugir da
embarcação, tocando assim o solo brasileiro.
69
Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938, op. cit., p. 50.
70
ACS/CPC, b.4649, f.768, (“Scala, Giovanni”), Telespresso da embaixada italiana no Rio de Janeiro,
n.310281.5421, 20.5.1932.
71
Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938, op. cit., p. 155.
72
Cf. “Na Liga Anti-clerical do Rio de Janeiro. Uma conferencia sobre as origens do fascismo”. Diario de
Noticias, Rio de Janeiro, 29.3.1932.
73
Cf. “O Partido Democrático Socialista realizou hontem uma sessão ‘in memoriam’ de João Scala”.
Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 2.12.1932, p.3.
74
ACS/CPC, b.2633, f.767, (“Infante, Giovanni”), Informe Divisão Policia Politica 500/10967, 24.11.1927.
95
teve, contudo, certa influencia naquele momento difícil. Infante era da mesma região de
Amendola, e, do Brasil, se correspondia com ele: em 1926, La Difesa publicava uma
carta do deputado italiano para o médico emigrado, na qual ele respondia a uma anterior
deste, poucas semanas antes de sua morte.75
Nas comunicações internas da policia italiana, Infante é declarado socialista, como
Scala e como Frola. Em ocasião da chegada deste da França, Infante teve um papel de
destaque, ajudando o ex-deputado em seus primeiros dias no Brasil. Mas, em seguida,
além de algumas subscrições às quais aderiu em favor de La Difesa, e de uma
participação registrada em assembleia da Lidu, sua presença no movimento antifascista
da Capital foi se afunilando cada vez mais.
Em 1935 regressava à Itália como representante de um instituto hospitalar italiano e no
ano seguinte estava de volta ao Brasil. Uma sua entrevista, recém-chegado, a um jornal
carioca76 registrava expressões de apoio ao regime de Mussolini, como era fácil prever
pela liberdade de movimento da qual estava gozando. Seu retorno à Europa no final do
mesmo ano foi pelo dirigível alemão Hindenburg, com destino Frankfurt,77 e o regresso
ao Rio em 1937, pelo vapor Augustus. Entre 1938 e 40 mais duas viagens de ida e volta
para a Europa, até que a guerra provavelmente o obrigará a permanecer de forma mais
continuada no Brasil. Um documento do consulado do Rio avançava a hipótese de que
“as frequentes viagens à Itália devem ter adormecido nele o espirito antifascista”. 78
Provavelmente esse mesmo espirito já adormecera antes das viagens, que se deviam, por
sua própria realização, ao fato do Infante estar negociando com as autoridades
governamentais sua volta às fileiras da situação. A uma conspícua doação para o
Consulado italiano do Rio de Janeiro, Infante anexava, em outubro de 1940, uma carta
na qual lamentava não poder tomar parte da guerra da Itália contra os inimigos, pois “na
hora solene da Pátria, o dever me fez encontrar confinado neste longínquo país [...]
sinto, contudo, toda a paixão e o orgulho da hora histórica que estamos vivendo. Ao
nosso grande povo, renovado para nova ardente fé, ao nosso grande e invicto
condottiere, criador do ressuscitado Império de Roma, vai toda minha devota
75
“Una lettera nobilíssima”. La Difesa, ano III, n.68, 18.4.1926, p. 2. Em julho de 1925, Amendola foi
agredido por fascistas: morreria, em consequências das violências sofridas, alguns meses depois, em
abril de 1926, em Cannes (França).
76
Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 21.8.1936.
77
Ibid., 3.12.1936.
78
ACS/CPC, b.2633, f.767, (“Infante, Giovanni”), Telespresso do Consulado italiano no Rio de Janeiro,
n.4199, 2.8.1939.
96
gratidão”.79 O cônsul transmitia estas palavras de Infante a Roma, pedindo que o mesmo
fosse cancelado do fichário dos subversivos, o que ocorreu em seguida.
Infante não foi o único caso de antifascistas que, com o passar do tempo e o
fortalecimento do regime mussoliniano, abriram mão de seus antigos ideais e propósitos
de luta, revendo sua posição diante do fascismo, voltando para as fileiras da ordem e
abraçando de formas mais ou menos intensas a ideologia e as diretrizes fascistas. No
âmbito da comunidade italiana na Capital Federal, levando em conta os antifascistas
mais em vista e compromissados, o de Infante é um caso que se destaca, mas é possível
que tenham ocorrido outros episódios. De qualquer forma, foi em contato com esse
ambiente onde as figuras acima descritas se moviam que Scarrone, nos primeiros anos
da vigência do fascismo, encontrou alimento para suas investidas “gráficas” contra
Mussolini e seu regime. E foi numa cidade onde esse incipiente antifascismo se
deparava com a vigilância e a ação do consulado e da própria embaixada, que Scarrone
sofreu advertências e intervenção judicial.
2.7. 1926: processo e condenação
Cartas desafiadoras para altas hierarquias do partido e do Estado, incluindo Mussolini e
o próprio Rei. Opúsculos denunciando crimes e ilegalidades perpetradas pelo regime. A
atividade publicística de Scarrone lhe mereceu em 1926 uma condenação pela justiça
italiana. É possível acompanhar os passos do processo através do impresso que
Giuseppe produziu, naquele mesmo ano, como o significativo titulo de “La mia
difesa”.80 Endereçado ao Procurador de Genova, repartição em cuja jurisdição começou
o processo contra ele, o livrinho narrava os eventos que levaram à condenação de
Scarrone.
A 8 de março de 1926, o Procurador acima pedia à Câmara dos Deputados autorização
para abrir uma processo contra o empresário socialista, por crimes previstos nos artigos
4, 5, 79, 122 e 123 do código penal italiano. As acusações eram de vilipendio da própria
Câmara e ofensas ao Rei, ao Exercito e à Milícia, delitos perpetrados através de
79
Ibid., Telespresso do Consulado italiano no Rio de Janeiro, n. 3708, 10.10.1940.
SCARRONE, Giuseppe. La mia difesa avanti al Tribunale speciale che in Italia proibisce di parlare,
all’estero impedisce la critica, privando dei beni e della cittadinanza italiana a chi ha il coraggio di
criticare. Rio de Janeiro, 10.6.1926.
80
97
impressos sequestrados pela polícia no começo do ano81, e dirigidos a políticos
italianos, cônsules estrangeiros com sede diplomática em Genova, além de sociedades e
agremiações locais. Por sua vez, o próprio Ministro da Justiça, Alfredo Rocco, se dirigiu
à Câmara, também pedindo autorização pelos mesmos motivos, e, em fins de março,
Scarrone foi convocado perante o cônsul italiano no Rio de Janeiro. Aqui lhe foi
notificada a abertura de processo contra ele, em virtude da Lei sobre os fuorusciti, n.
108, de 31 de Janeiro de 1926, e Giuseppe saiu do encontro com a autoridade
diplomática italiana carregando na mão o verbal de notificação e cópia da própria Lei.
A defesa de Scarrone era representada pelo opúsculo citado, no qual ele declarava
substancialmente duas coisas: o desconhecimento por parte dele de crimes cometidos,
tendo simplesmente publicado e enviado cartas abertas e impressos para relatar fatos,
para noticiar acontecimentos, para apresentar situações, sempre em nome da verdade; e
a recusa de ter alimentado ou difundido sentimento anti-italianos, porque em sua ação
ele sempre foi movido pelo amor da pátria. E isso Giuseppe reafirmava, documentando
em seguida, com breves noticias sobre cerca de trinta fatos de crônica acontecidos
recentemente na Itália, o progressivo e sistemático cerceamento da liberdade no país o
constante produzir-se de violências e ilegalidades por parte dos fascistas. O opúsculo foi
enviado em várias cópias, como já acontecera com os anteriores e acontecerá com os
sucessivos, para diferentes endereços na Itália: um informe da “Prefettura” (órgão
territorial representando localmente o governo central) de Genova nos diz que os cinco
exemplares sequestrados pela policia junto ao correio de Altare eram dirigidos ao
próprio correio, à cooperativa de consumo, ao pároco da cidade, e a duas fábricas de
vidro locais.82
Naquele ano de 1926, mesmo tendo recebido a notificação de que, na Itália, a máquina
da justiça estava sendo acionada contra ele, Scarrone redigiu e publicou mais um
impresso político, em ocasião do quarto aniversário da marcha sobre Roma.83 A
epígrafe declarava sem rodeios o propósito do opúsculo:
81
Se tratava de dois opúsculos de 1925 (“Il terzo anno di governo fascista in Italia” e “Note, Memorie e
Commenti...”).
82
Cf. ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Informe da Real Prefettura de Genova,
4.9.1926.
83
SCARRONE, Giuseppe, Inventario dei quattro anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro,
28.10.1926.
98
Os renegados não somos nós, que, sem ajudas ocultas, honestamente
lutamos para o progresso e a liberdade dos povos. Os renegados são
vocês, fascistas, vocês que amparam quem assassina, tira a liberdade,
humilhando adversários tímidos, com a vergonha da subministração do
óleo de rícino, desde que possa subir sublime!84
E, comentando os quatro anos de governo de Mussolini, Scarrone chegava a declarar
nas primeiras páginas que “o fascismo não passa de uma tempestade”, e que “a Itália
italiana é incomensuravelmente mais bela, mais digna e mais vasta em seu conceito do
que a Italiazinha mussoliniana ou farinacciana ou federzonica”. Um fenômeno
passageiro, uma “tempestade” que desapareceria em breve: encontram-se aqui ecos de
uma leitura do fascismo comum a amplos setores do mundo antifascista, sobretudo de
origem não comunista, como foi apresentado na primeira parte. Seguiam uma série de
breves textos comentando um ou outro aspecto do regime, perfazendo um total de 72
paginas: o mais volumoso dos opúsculos até então produzidos por Scarrone. Se todos os
textos não assinados fossem de sua autoria, é difícil aqui dizer: é verdade que algumas
páginas revelavam uma melhor frequentação da língua italiana do que costumavam
apresentar os impressos anteriores, mas não parece plausível a interpretação oferecida
pela embaixada italiana do Rio, que definia Scarrone um “semianalfabeta e ignorante
[...], atrás do qual agem e do qual se servem alguns agitadores coloniais [...]: o senhor
Giovanni Scala [...] e o doutor Giovanni Infante”
85
. Se é possível afirmar que o
empresário socialista atingia temas e informações nos ambientes do antifascismo
italiano da Capital Federal, nos quais Scala e Infante se destacavam, não há elementos
para atribuir a estes a autoria de textos, ou transformar Scarrone num marionete movido
por outros.
O processo aberto contra Scarrone correu e produziu o resultado esperado pelos
denunciantes: uma condenação à revelia à pena de dois anos, dois meses e 25 dias de
prisão e 1400 liras italianas de multa, pelos crimes previstos pelos artigos 122 e 123 do
código penal e pelo art.2 da Lei n. 315.86 A sentença, emitida dia 27 de novembro de
1926 pelo Tribunal de Justiça de Genova, 5ª seção, alcançava Giuseppe no Brasil,
impedindo-lhe de realizar ou planejar um retorno definitivo à Itália, ou até somente uma
simples viagem à sua terra natal, sendo a ordem de captura transmitida aos postos de
fronteira do país. Tempo depois, Scarrone escreveria carta para o Ministro da Justiça,
84
Ibidem, p.1.
ACS /CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), telespresso Ministero Affari Esteri, 8.9.1927.
86
Ibid., Informe da Real Prefettura de Genova, 5.12.1926, e Informe da Policia para o Ministério do
Exterior, Roma, 31.1.1927.
85
99
Alfredo Rocco, anexada a um opúsculo que documentava sua atividade empresarial no
Rio de Janeiro, e nela lamentava ter recebido “de Vossa Excelência, por ter escrito
‘Justiça sem Graça e sem Justiça’, [...] uma condenação a dois anos e meio de reclusão,
que deixo em memoria de seu novo código87, augurando que um manicômio criminal
possa hospedar o rei, Mussolini e seus ministros [...] no fim do fascismo”.88 Assim, sem
nenhum sinal de resipiscência, Scarrone continuava sua ação desafiadora de hierarquias
do partido fascista e do governo.
2.8. Scarrone e La Difesa
Talvez o estímulo tivesse vindo das circunstâncias ligadas ao processo contra ele ou
talvez da chegada de Frola ao Brasil como responsável do jornal e da coordenação do
movimento antifascista. O fato, de qualquer forma, é que Scarrone começou a se
envolver mais estritamente com La Difesa, a partir da segunda metade de 1926. Houve
ao menos três comentários sobre o caso dele no periódico, respectivamente em edições
de abril, maio e julho. Além de noticiar o fato de seu processo, as matérias elogiavam
Scarrone em sua atuação como empresário e como opositor do fascismo, e denunciavam
a ação persecutória das autoridades diplomáticas italianas no Rio contra certos
expoentes do grupo antifascista local.89
Assim, desde meados de 1926, Scarrone começava a contribuir financeiramente a La
Difesa. Suas participações nas subscrições foram sempre regulares e generosas, entre as
mais altas do pequeno grupo antifascista da Capital Federal, pelo menos até finais de
1930, quando mudou a direção do periódico. É do mesmo período também o
87
O novo código penal italiano será promulgado em outubro de 1930, mas desde 1925 estava sendo
preparado pelo Ministério da Justiça.
88
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Carta de Giuseppe Scarrone para o Ministro di
Grazia e Giustizia, Alfredo Rocco, Rio de Janeiro, 21.2.[1927?]. O Ministério da Justiça na Itália era e é
chamado “Ministero di Grazia e Giustizia”.
89
Assim em “Il caso Biancato e quello Scarrone”. La Difesa, ano III, n 67, 11.4.1926, p.2, o jornal atacava
os órgãos diplomáticos italianos no Brasil e convidava seus compatriotas a “se tornar cidadãos do País
que os hospeda: somente assim terão uma Pátria que os defenda e não uma inimiga que os persegue”.
Na mesma linha, as considerações em “Per avere una cittadinanza”. La Difesa, ano III, n. 71, 9.5.1926, p.
3, onde o autor da matéria elogiava Scarrone (“um bom velho, há muitos anos residente no Brasil,
sonhador de uma sociedade melhor, baseada na fraternidade: com efeito, ele transformou em
cooperativa sua fábrica, e divide os lucros com seus operários”) e anunciava a criação, por parte da
Unione Democratica Italiana, de uma comissão para ajudar os italianos livres nas práticas jurídicas para
obter a cidadania brasileira. E em “La mia Difesa”. La Difesa, ano III, n. 84, 22.7.1926, p.4, se anunciava a
publicação do homônimo opúsculo de Scarrone, “homenagem luminosa à verdade”.
100
encerramento de um anúncio que o empresário publicou no jornal, em todas as edições,
a partir de fim de novembro de 1926. “Giocattoli (brinquedos)”, anunciava a
propaganda, e especificava: “bolas de gude, tão procuradas e apreciadas pelas crianças.
Fabricação em grande escala com sistema privilegiado, patente n. 21501 do Governo
Federal. Venda em todas as casas de brinquedos do país”. Em seguida, em caracteres
destacados “Giuseppe Scarrone, Fabrica Nacional de Vidros”, acrescentando endereço e
telefone. Numa mistura de italiano e português, o anúncio, mesmo mudando sua
formulação, se manteve durante quatro anos, aparecendo todas as semanas na página
dos classificados do jornal. No meio de uma página, ou às vezes duas ou três, de
propagandas paulistas e paulistanas, o de Scarrone foi o primeiro anúncio do Rio de
Janeiro, e se manteve praticamente o único por anos (fora um ou outro que
compareceram de forma muito esporádica) e com um tamanho sempre bastante grande.
Aliás, na segunda metade de 1928, por cerca de seis meses, os anúncios foram até dois,
acrescentando-se um segundo dirigido ao recrutamento de operários para a fábrica, com
oferta de bons salários e estada barata nos arredores da mesma. A partir de dezembro do
mesmo ano, mudava a formulação da propaganda, de novo uma só, com destaque para a
proposta de uma “moderna cooperação” no âmbito da fabrica, com repartição do lucro
entre capital, trabalhadores e consumidores, segundo as linhas de conduta que Scarrone
estava seguindo desde dois anos antes em seu estabelecimento industrial. E o anúncio se
manteve até outubro de 1930.
Era costume dos redatores do periódico convidar profissionais liberais, donos de
empresas ou estabelecimentos comerciais a publicar anúncios, para divulgar sua
atividade e seus produtos no âmbito do público de leitores simpatizantes pelo
antifascismo. O outro lado da moeda, contudo, era a possibilidade de acabar na lista
negra de consulados e embaixada, sofrendo também boicote por clientes e compradores
de fé fascista, o que de fato acontecia frequentemente. Apresentar um anúncio em La
Difesa significava, então, enfrentar possíveis e indesejadas consequências financeiras.
Manter a propaganda por anos, como no caso da Fabrica Nacional de Vidros, era sinal
de uma escolha ainda mais clara pela causa do antifascismo. Único “carioca” entre os
anunciantes, Scarrone enfrentou a possível perda de clientes, mas manifestou também
desta forma simples de que lado estava. Neste sentido, entre os antifascistas da Capital
Federal, titulares de uma atividade comercial, ele foi, sem dúvida alguma, o que mais se
destacou.
101
O jornal oferecia também certo respaldo a Scarrone e a sua ação, seja noticiando o
aparecimento de um novo opúsculo, seja com pequenos artigos sobre a própria figura do
antifascista.90 Durante os mesmos anos, o próprio Scarrone ainda se dava de vez em
quando ao trabalho de enviar uma pequena matéria sobre a vida da colônia italiana na
Capital Federal. Em janeiro de 1927 91, comentava positivamente a atitude dos membros
da colônia italiana no Brasil, que, diferentemente das da Argentina e do Chile, não
ofereceram para Mussolini álbuns de homenagem com coleta de assinaturas,
lamentando, contudo, que, enquanto em São Paulo o jornal antifascista se encontrava
em cada esquina, em cada exercício comercial e livraria, no Rio, devido aos esforços do
Embaixador, do Consulado e do fascio, ele fosse boicotado pelas revendas.
Meses depois92, Giuseppe ainda comparava a atitude da colônia italiana paulistana e da
carioca, quanto a entusiasmo e séquito popular na manifestação dos ideais do
antifascismo, tanto em termos de difusão do jornal, quanto em termos de participação de
eventos, como, por exemplo, a festa pro-Defesa realizada poucos dias antes em São
Paulo e da qual ele mesmo participara, positivamente surpreendido pelo numeroso e
ordenado concurso de público. O medo, ao contrário, que ele percebia nos donos de
bancas de jornal cariocas, os quais, ameaçados pelas autoridades diplomáticas, não
vendiam mais o jornal do antifascismo ou o faziam de forma furtiva, e a letargia dos
membros da comunidade italiana local o faziam comentar:
Convenci-me de que a colônia de São Paulo é como uma Itália livre,
diante da Itália fascista e escrava, representada pela colônia do Rio de
Janeiro, onde tudo se faz em surdina, onde os elementos italianos,
alheios às necessidades e aspirações da massa colonial, vivem abanando
o rabo sem glória e sem honra aos pés do dono, incapaz de afirmações
sadias e positivas que devolvam honra à nossa raça e a tornem digna de
respeito por parte do país que nos hospeda e dos povos aqui vindos de
toda parte do mundo.93
90
Um dos mais significativos foi “Giuseppe Scarrone”. La Difesa, ano III, n.1220, 2.12.1926, p. 2. Em duas
colunas, o autor, que assinava como P., narrava o percurso de Scarrone desde sua juventude na Itália
até o encontro com o socialismo, suas primeiras realizações cooperativas, os boicotes e a decisão de vir
para o Brasil. E também o apoio dos irmãos já emigrados para São Paulo, e a criação da fabrica de
vidros, agora uma das maiores do país, onde ele retomara sua “velha ideia socialista”, criando uma
sociedade de participação nos lucros com técnicos e operários. E, finalizando, dizia: “Scarrone é um
espirito realizador. Merece ser conhecido como homem, como trabalhador, como socialista, mais do
que como escritor de opúsculos políticos, que, concordamos, não são perfeitamente respeitadores das
regras gramaticais [...] mas que merecem sempre o maior respeito”.
91
“Da Rio. Alla colonia degli Italiani liberi in Brasile”. La Difesa, ano IV, n. 130, 13.1.1927, p. 3.
92
“Da Rio de Janeiro. São Paulo e Rio”. La Difesa, ano IV, n. 162, 12.5.1927, p. 3.
93
Ibidem.
102
Talvez um juízo um tanto radical, de um lado como do outro: nem a comunidade
italiana paulistana era tão completamente conquistada aos ideais antifascistas, nem a
colônia do Rio tão refém de cônsules e embaixadores, e tão incapaz de atitudes
corajosas e livres. Claramente, a entidade numérica da coletividade de origem italiana
em São Paulo e sua distância do centro nevrálgico do controle diplomático podiam jogar
um papel significativo nas articulações do mundo da oposição, mas como se viu e se
verá ainda, há sinais de uma presença antifascista na Capital Federal que não podemos
negligenciar, embora se possa concordar com Scarrone que ela fosse fraca e tímida. O
próprio Frola se empenhará, com viagens ao Rio, em animar suas fileiras, como
participante das quais ainda chegará naqueles mesmos meses, como se verá, Libero
Battistelli.
Em mais duas contribuições para La Difesa, uma de 193094, outra do ano sucessivo95,
Scarrone falava de uma de suas paixões, o teatro, mostrando como as companhias
italianas em tournée ao Brasil tivessem fracassado ultimamente, e imputava isso à
“fascistização” da arte: “onde entra o fascismo sai a honestidade, o bom gosto, a arte,
tudo o que há de belo e de bom” - escrevia no primeiro artigo.
Mas desde o final de 1930, a participação de Scarrone no jornal pareceu resfriar. O
anúncio da fábrica não apareceu mais nas páginas de classificados, assim como não
houve mais subscrição dele em favor do periódico. O próprio jornal, então, foi ao seu
encontro, numa visita que o encarregado de manter os contatos com os leitores e
assinantes fora de São Paulo realizou na Capital Federal.96 Em maio de 1931, relatando
sua passagem pelo Rio de Janeiro, o encarregado escrevia:
Visito – é preciso dizer? – Battistelli e Scarrone, que conhecia somente
de nome [...] Longa visita ao nosso velho Scarrone e à sua senhora, que
compete com ele em fé e fervor antifascista [...] Scarrone é um
cinematógrafo falante de recordações de sua Ligúria [...] Visito a
fábrica de vidros, onde ganham seu pão várias centenas de homens,
mulheres e jovens.97
94
“Il Teatro italiano in dissoluzione”. La Difesa, ano VI, n.321, 14.8.1930, p.5
“Rio de Janeiro. Una bella figura della Ambasciatrice.” La Difesa, ano VIII, n. 363, 11.7.1931, p. 4. O
artigo não é assinado, mas temas e linguagem parecem indicar em Scarrone o autor do texto.
96
Cf. “Vita sociale degli italiani in Brasile. La Difesa in viaggio”. La Difesa, ano VIII, n.357, 30.5.1931, p.4.
97
Ibidem.
95
103
E o artigo continuava destacando os numerosos assinantes que existiam na cidade e nos
arredores:
“Quantos assinantes, quantos antifascistas! Exilados voluntários,
emigrados há muitos anos, prófugos que já passaram pela França, pela
Bélgica, e afinal chegados aqui, após quem sabe quais sofrimentos.
Muitos carregam no rosto as marcas da dor, diria quase a tragédia de
nosso povo: homens que perderam tudo, que vivem sem poder se
comunicar diretamente com suas famílias, mas que não se dobraram,
que temperaram sua fé, e estão prontos para o momento decisivo. E se
passam assim os dias em visitas e visitas: junto com Battistelli, ou com
Vozza ou com Semino, de trem, de bond, de barca, os visitamos todos.98
Além do tom um tanto retórico, e de uma estimativa levemente otimística das fileiras
cariocas do antifascismo, assunto sobre o qual discutiremos daqui a pouco, pode-se
retirar deste relatório o destaque que a figura de Scarrone, junto com a de Battistelli,
parecia gozar no panorama dos antifascistas e amigos de La Difesa na Capital Federal,
e, ao mesmo tempo no conceito da redação do periódico. Mas é de se relevar que
naquele momento, a direção do jornal não estava mais nas mãos de Frola. Desde março
do ano anterior, o nome dele como diretor desaparecera, e Piccarolo era anunciado de
volta a uma colaboração mais estável. Meses depois, Nicola Cilla assumia a
responsabilidade da direção, que passou para Mario Mariani a partir de dezembro de 31,
quando o jornal se transformou em diário, com o nome de L’Italia.
A saída de Frola de La Difesa, e sua colocação em questão no âmbito da colônia
antifascista paulistana, podem ter influído no resfriamento do empresário quanto ao
jornal. De Frola, Scarrone era bastante próximo, a ponto de dedicar a ele (“mais que
companheiro, amigo do coração”) um de seus opúsculos99, e, como se verá, oferecer em
sua homenagem um baquete de despedida em 1937, antes da partida dele para o
México, além, de compartilhar, provavelmente, de orientações políticas e econômicas
do ex-deputado de Turim, como a própria ideia cooperativista.100 É fato, como vimos,
que o anúncio da Fabrica Nacional de Vidros desaparece das colunas de La Difesa, para
aparecer logo em seguida nas de dois outros periódicos antifascistas.
98
Ibidem.
Cf. SCARRONE, Giuseppe. Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, Rio de Janeiro, 1929, p.3.
100
Cf. FROLA, Francesco. A cooperação livre: a economia espontânea do povo. Rio de Janeiro: Atena,
1937.
99
104
O primeiro era o Risorgimento, que Frola, de retorno à América do Sul após sua viagem
à França, fundara em Buenos Aires, onde se estabelecera por certo tempo: o anúncio de
Scarrone e sua fábrica, inspirada no sistema de “uma moderna cooperação”, apareceu
desde o primeiro número, em dezembro de 1930, e se conservará na folha antifascista,
que de diária, passará a ser semanal, até ao menos março do ano seguinte. 101 Outro era o
quinzenal paulistano Italia Libera, criado por Pasquale Petraccone em novembro de
1930: também instrumento do movimento antifascista de São Paulo, o jornal queria dar
voz a grupos e orientações que, pela saída de Frola e a nova gestão de La Difesa, se
sentiam prejudicados. De seu diretor falar-se-á com mais amplitude na terceira e quarta
parte deste trabalho, mas aqui cabe o registro de sua iniciativa no mundo do
antifascismo paulistano e brasileiro. No jornal, que também terá vida breve, apareceu,
com regularidade, a propaganda da Fábrica Nacional de Vidros, nos moldes
anteriores.102
Como se pode notar, Scarrone sabia da importância do instrumento impresso para a
divulgação de ideias e mensagens, a ponto de usar de vários deles até para seus
anúncios, que não eram meramente comerciais, por veicular uma proposta de empresa
que buscava caminhos alternativos para o capital e para os próprios trabalhadores.
Discordando da nova linha de La Difesa, ou simplesmente não concordando com o
afastamento de Frola, Scarrone buscava outros meios de propaganda e de presença
politica. Não é de se ver nisto (assim como em certo resfriamento também de Battistelli
diante do jornal, que analisaremos na terceira parte) uma hostilidade ao tradicional
instrumento do antifascismo italiano no Brasil, o La Difesa.103 Talvez possa ser
percebida aqui uma postura crítica diante da excessiva litigiosidade do ambiente
antifascista paulistano, mais animado, mais numeroso que o carioca, mas também
percorrido por rivalidades e divisões que contribuíram em parte a diminuir a eficácia de
suas propostas e iniciativas.
101
Há registros do anúncio desde o n. 1, 1.12.1930, até o n. 24, 1.3.1931.
O anúncio apareceu com certeza do n. 5, 5.11.1930 até o n.9, 15.1.1931.
103
Interessante, a esse respeito, uma notação na primeira página de La Defesa, em ocasião do anúncio
da próxima transformação do periódico em diário: “[do Rio de Janeiro] nos alegremos com o velho
companheiro José Scarrone, que logo nos escreveu a respeito da iminente publicação do diário”. Cf. “Il
quotidiano degli italiani liberi del Brasile: L’Italia”. La Difesa, ano VII, n. 381, 1.12.1931, p.1.
102
105
2.9. O antifascismo no Rio se organiza
Como foi dito acima, data de dezembro de 1924 a criação da primeira associação
antifascista do Brasil: a Unione Democratica, fundada no Rio de Janeiro. Interessante é
também registrar a simultânea constituição da sociedade anônima “Estabelecimento
Graphico Italo-Brasileiro”, com publicação no Diário Oficial em data 3 de dezembro do
mesmo ano.104 Entre seus sócios fundadores encontravam-se nomes como os de
Antonio Corrado Limongi, (com o maior número de ações), Eugenio D’Alessandro,
Scala (provavelmente Giovanni), e o próprio José Scarrone (usando a grafia de seu
nome em português), além de muitos outros. A sociedade, com sede a Rua Sacadura
Cabral, 63, tinha como objeto “as indústrias que se relacionam com as artes gráficas,
typographia, lithografia, pautação, encadernação, papelaria, fábrica de envelopes,
publicação e edição de revistas, jornais e livros, e o comércio dos respectivos produtos”.
Uma hipótese é pensar na sociedade, cujas finalidades estavam ligadas ao mundo da
editoria e da impressão gráfica, como braço operativo da Unione Democratica e de
eventuais futuras iniciativas no âmbito do antifascismo carioca. Não é de todo
impossível que o próprio Scarrone fosse a alma da sociedade, tendo em vista seu
especial interesse pelo mundo da gráfica e sua determinação em combater o fascismo
através de seus impressos, alguns dos quais podem ter sido produzidos nesse
estabelecimento.
Uma verdadeira mudança de qualidade na organização do antifascismo na Capital
Federal foi representada pela presença de Francesco Frola. Não tanto nos primeiros dias,
em outubro de 1926, quando, como foi mencionado acima, fugindo do navio onde as
determinações do governo italiano o mantinham preso, no porto do Rio, percorreu
várias redações dos jornais da cidade, acompanhado por alguns dos principais membros
da oposição a Mussolini, entre os quais Scala e Infante, mas sobretudo a partir de seu
retorno ao Rio, em dezembro, quando foi acolhido pelos antifascistas com recepção seja
pelo Grande Oriente seja pela recém-criada Lega Italiana dei Diritti dell’Uomo
(Lidu).105 Da fundação dessa sociedade, organizada segundo o modelo da homônima
104
Cf. Diario Oficial da União, 3.12.1924, p. 25853-55.
Cf. “Dai nostri corrispondenti”. La Difesa, ano III, n. 122, 9.12.1926, p.3. A secretaria da sociedade era
localizada à Rua 13 de Maio, 50.
105
106
nascida em 1922 na França entre os emigrados italianos106, por sua vez irmã da Ligue
française des Droits de l’Homme, participaram sem dúvidas Scala e Scarrone, se os
encontramos dirigindo discursos na acolhida a Frola.107
A presença do ex-deputado socialista italiano no Brasil e a orientação mais dinâmica, e
aberta a vários componentes do mundo antifascista, impressa por ele a La Difesa
aumentaram tiragem e assinantes. E dinamizaram também o ambiente não só de São
Paulo, onde ele residia, mas também da Capital da República. Nos anos seguintes, como
se verá mais detalhadamente na terceira parte, quando se destacará também o papel
significativo de Libero Battistelli, recém chegado ao Brasil, nasceram, no Rio de
Janeiro, várias associações, todas no grande âmbito do movimento do antifascismo. De
Scarrone, nos anos de 1926 em diante, há registros somente de sua participação na Lidu,
com um significativo convite para ele presidir uma das primeiras assembleias da
organização, num ato de deferência por sua idade e militância socialista.108
Outras figuras se destacaram nestes anos - além dos que foram acima mencionados em
ocasião da fundação da Unione Democratica - mesmo que com uma participação menos
intensa. O dr. Petrosino, Trabucchi e De Rosa eram indicados por um informe da
Policia politica italiana como “co-fundadores”, junto com os já nomeados Limongi,
Scala, Infante e De Gasperis, de uma “Lega Democratica”. 109 Do primeiro não se tem
informações de particular relevância, enquanto de Remo Trabucchi e Salvatore De Rosa
existem registros mais documentados, no próprio Casellario politico110. O primeiro,
nascido em 1892 na província de Pavia, no norte da Itália, chegara ao Rio na década de
1920. Aqui foi cozinheiro chefe no Hotel Glória, onde trabalhava também De Gasperis,
e em seguida dividiu sua vida entre São Paulo e Buenos Aires, sempre no ramo da
hotelaria. De Rosa, contador, originário da mesma cidade de Giovanni Infante, em 1924
participara da fundação do Estabelecimento Grapico Italo-Brasileiro. Os documentos
policiais o apontavam também como sócio da Lidu no Rio de Janeiro, e protagonista de
“atividade subversiva”, sendo candidato nas eleições da Societá Beneficienza Italiana
106
Sobre a Lidu na França, ver VIAL, Éric. “La Ligue Italienne des Droits de l’Homme (Lidu), de sa
fondation à 1934” In MILZA, Pierre (org.). Les Italiens em France de 1914 à 1940. Roma: École Française
de Rome, 1986, p. 407-430.
107
Cf. “Dai nostri corrispondenti”. La Difesa, ano III, n. 127, 30.12.1926, p. 3
108
Cf. “Dai nostri corrispondenti”. La Difesa, ano IV, n. 153, 7.4.1927, p. 6
109
Cf. ACS/CPC, b. 2788, f. 4592 (“Limongi, Antonio Corrado ”), informe Divisão de policia politica,
n.500/10967, 24.11.1927. A sociedade antifascista mencionada devia ser, provavelmente, a Unione
Democratica.
110
Ver ACS/CPC, b. 5190, f. 4900 (“Trabucchi, Remo”) e b. 1743, f. 4816 (“De Rosa, Salvatore”).
107
na lista de oposição à do consulado111. Contudo, em 1939, um informe da embaixada
italiana no Rio relatava de um seu comparecimento espontâneo ao consulado, no qual
deplorava sua conduta anterior e declarava nunca ter participado da Lidu.112
Em que medida fossem “espontâneas” essas apresentações junto aos organismos
diplomáticos italianos é difícil dizer. Em alguns casos, houve certamente transformação
de pensamento e adesão convicta ao fascismo, em outros tratava-se de gestos movidos
por razoes de necessidade material, por questões de sobrevivência. Em outros casos
ainda, houve autentica infiltração nas fileiras antifascistas. Na lista dos fundadores da
sociedade que a policia italiana denominava de “Lega Democratica”, com efeito, havia
mais um nome, o de Ulisse De Dominicis. Este, oriundo da mesma região de Scala e
Infante, e jornalista, emigrara para o Brasil em 1919: aqui, frequentando os ambientes
do antifascismo, trabalhava na realidade como informante por conta das autoridades
diplomáticas.113 Identificado em sua dupla ação, a própria La Difesa se encarregou de
denunciá-lo e mantê-lo a distância.
Se houve antifascistas que debandaram para o lado do fascismo com o passar dos anos,
como Infante e De Rosa, ou que trabalharam como informantes do consulado, como De
Dominicis, houve outros membros daquela parte da colônia italiana no Rio de Janeiro
daqueles primeiros anos que se mantiveram fiéis a suas escolhas. O milanês Giovanni
Rizzi, por exemplo, que deixara a Itália para o Brasil ainda em 1912, e era identificado
como republicano pelas fichas policiais114: vendedor em loja de tecidos, em seguida
fabricante de caixinhas para joias, seu nome aparece nas listas de subscritores cariocas
em favor de La Difesa e no grupo que se opunha à lista promovida pelo consulado na
disputa pelo controle da Beneficienza. Ainda em 1938, morador do bairro de São
Cristóvão, seu nome será identificado pela policia italiana como um dos assinantes
cariocas do periódico “Giustizia e Libertá”115.
Ou Giuseppe Ignazio Pampuri,116
carpinteiro e pintor, também oriundo da região de Pavia, no norte da Itália, da qual
emigrou ainda em 1897, quando tinha doze anos de idade. Naturalizado brasileiro, o seu
111
Cf. b. 1743, f. 4816 (“De Rosa, Salvatore”), telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro, 10.5.
1929.
112
Cf. b. 1743, f. 4816 (“De Rosa, Salvatore”), telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro,
17.1.1939.
113
Cf. ACS/CPC, b. 1650, f. 2932 (“De Dominicis, Ulisse”), telespresso da Embaixada italiana no Rio de
Janeiro, 10.2.1928.
114
ACS/CPC, b. 4352, f. 136642 (“Rizzi, Giovanni”).
115
Ibidem, telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro, 30.1.1938.
116
ACS/CPC, b. 3686, f. 14643 (“Pampuri, Giuseppe Ignazio”).
108
nome (agora com a grafia “José”) constava já em 1924 como sócio na fundação do
Estabelecimento Graphico Italo-Brasileiro, e como subscritor de doações para La
Difesa. Não existem muitos outros registros sobre ele, mas em 1938 o Ministério do
Interior italiano pediu investigações sobre ele, constando o seu nome da lista dos
assinantes a “Giustizia e Libertá”:117 seu nome assim acabava inscrito no registro de
fronteira italiano, como sujeito a ser revistado e sinalizado.
Um caso particularmente interessante é o de Domenico Ferraro, da região de Potenza,
no Sul da península, chegado ao Brasil com vinte e três anos de idade em 1920:
estabelecido inicialmente em Petrópolis, onde trabalhou como motorista, transferiu-se
em seguida para a Capital Federal, como representante de firmas italianas. Seu percurso
era constantemente acompanhado pelas autoridades de polícia118, até porque a partir do
começo da década de 30, se dedicou a enviar para vários endereços italianos
instrumentos de propaganda antifascista, como o periódico Il Becco Giallo, ou artigos
do jornal da Concentrazione de Paris, acrescentando seus próprios impressos, às vezes
uma folha, às vezes um cartão de visita com mensagens antifascistas. Uma possibilidade
é que Ferraro, admirado pela postura e atuação de Scarrone, tenha resolvido imita-lo
nesta ação de divulgação na Itália dos crimes fascistas através de impressos por ele
mesmo criados: em 1926, com efeito, movido pela curiosidade
de conhecer o
antifascista contra o qual o tribunal italiano estava movendo ação de justiça, Ferraro
fora visitar o empresário socialista em sua fábrica e relatou suas impressões num breve
artigo que o próprio Scarrone publicou em opúsculo no mesmo ano119. Tempo depois,
começavam a chegar à Itália os impressos postados por Ferraro 120, que os documentos
policiais definiam de ideias socialistas ou comunistas, embora ele não se declarasse
pertencente a algum partido. Em 1938, o Ministério do Interior informava ser ele um
dos assinantes cariocas de “Giustizia e Libertá”, assim como Rizzi e Pampuri. No
117
O endereço da assinatura é o mesmo de Nello Garavini: Rua Pedro I, n. 4, Rio de Janeiro. Pampuri
morava no mesmo prédio, um andar abaixo dos Garavini.
118
ACS/CPC, b. 2029, f. 6035 (“Ferraro, Domenico”).
119
O opúsculo era SCARRONE, Giuseppe. Inventario dei quattro anni di governo fascista in Italia. Rio de
Janeiro, 28.10.1926. O artigo de Ferraro encontra-se nas páginas 8-12.
120
Num deles, um cartão de visita de 1930, Mussolini, em forma de serpente, envolvia com seu fascio
littorio a Itália, enquanto uma mão, trazendo a data de 1930, agarrava o animal, tentando impedir que
sufocasse o país. No verso do cartão, Ferraro escreveu de seu punho: “Em breve, a Itália saberá se
libertar das hienas da monarquia, do clero e do fascio. Muitos padres já tem nojo da conduta do
indecente Pio Ratti [o papa Pio XI, Achille Ratti]. Ai da Itália, que, contudo, com grande sacrifício, há de
se libertar. Ai, sobretudo, do clero hipócrita. Quanto antes, haverá o acerto de contas. Rio, 3.12.1930.
Domenico Ferraro”. Ver ACS/ CPC, b. 2029, f. 6035 (“Ferraro, Domenico”).
109
mesmo ano, como se verá na terceira parte do trabalho, acontecerá sua prisão pelo
governo de Vargas, sob acusação de espionagem comunista.
Era o mundo da colônia italiana no Rio de Janeiro, animado por várias sociedades de
oposição ao fascismo, povoado por socialistas e republicanos, democratas ou sem
partido, pertencentes à maçonaria em vários casos, de sentimentos antifascistas firmes,
capazes de gerar atitudes desafiadoras do Duce e de seus representantes no Brasil, ou
mais frágeis a ponto de permitir retornos para a sombra protetora do regime.
Nesse mundo se inseria Scarrone, com sua atuação pública e seus escritos. Ela lhe
rendera em 1926 um processo e uma condenação, mas a intervenção da justiça fascista
não chegou a diminuir o ímpeto de luta do empresário. É o que se verá a seguir.
2.10. Continuando a batalha (1927-1929)
Até o fim de 1926, ao todo, tinham sido seis cartas abertas e oito opúsculos, todos
enviados para a Itália, mas também difundidos no Brasil. De 1927 a 29, Giuseppe
manteve o ritmo de três ou quatro opúsculos por ano, diminuindo a frequência nos anos
sucessivos. Nos impressos, se percebia o mesmo modo de argumentar, enfático e
acusatório, cheio de evocações da história italiana e de recordações pessoais, com a
prevalência de ataques a Mussolini, visto como o traidor da causa socialista, tendo-se
oferecido por dinheiro ao partido da intervenção na primeira guerra mundial, e
sucessivamente aos interesses do grande capital com a criação dos fasci em 1919. O
estilo continuava repleto de imperfeições gramaticais e lexicais, mas, em alguns textos
de 1928 e sobre tudo de 1929, desapareciam erros e frases confusas, para deixar espaço
a um linguajar claro e correto: provável intervenção na escrita de algum corretor ou até
colaborador.
Para o Almanaque de 1929 é declarada pelo próprio jornal La Difesa a colaboração de
Battistelli na redação do mesmo, e provavelmente ela é presente também na edição final
do apelo ao povo brasileiro do ano anterior, ainda mais que o breve opúsculo é assinado
por Scarrone também em nome da Lidu do Rio de Janeiro, da qual Libero era um dos
expoentes de destaque já naquela data. Também não é de se excluir uma intervenção de
Frola na edição final da alguns textos. Uma hipótese que não há como verificar, mas
que pode ser aqui avançada, é a segundo a qual o próprio empresário poderia ter-se
110
oferecido de assinar até textos cujo conteúdo fosse de outros, partindo da constatação
evidente de que ele, condenado pela justiça italiana, já não tinha mais nada a perder, e
assim podia proteger a expressão de outros. Mesmo assim, em quase todos os seus
textos, a grande maioria dos materiais presentes continuavam sendo preparados,
escolhidos, elaborados e redigidos pelo próprio Scarrone.
Da primeira publicação de 1927, em ocasião da festa do trabalho121, não foi possível
encontrar exemplares nos arquivos. Quanto aos outros três daquele ano, o primeiro é um
opúsculo com o qual Scarrone assinalava cronologicamente, também no título, o passar
inexorável do tempo do Estado fascista: “Dopo cinque anni di domínio fascista in
Italia”122. Lançado em setembro, em ocasião da festa pro-Defesa no Rio de Janeiro, em
suas 22 paginas trazia assuntos já explorados antes e argumentos já apresentados, mas a
abertura merece destaque. Na capa da publicação, Scarrone escrevia:
Francesco Frola, quando, em desfeita a Mussolini, desembarcou no
Brasil, disse: por enquanto nós, Italianos livres, temos que ter um só
partido antifascista [...] Os italianos livres, em qualquer terra ou nação
estejam hospedados, têm que acolher o convite, que agora vem de Paris:
aceitar seu manifesto, seu programa. As divisões, arte de Mussolini, que
conduziram a Itália ao fascismo, devem ser absolutamente evitadas,
para não cair em seu jogo.123
Scarrone, em seus escritos, muito raramente falava dos partidos da emigração
antifascista, a não ser quando se referia ao partido do qual ele se gloriava de pertencer, o
socialista, em sua vertente reformista (o Partido Socialista de Turati, Treves e do
próprio Matteotti). Tampouco fazia referências ao programa dos fuorusciti na França, a
seus debates e divisões, ao nascimento de novas forças e agrupamentos. Nisso, a
diferenças com Battistelli, por exemplo, é profunda, como veremos. Mas é explicável
também pela historia dele, de seu antifascismo nascido no âmbito da velha emigração,
num mundo de emigrados que não tinham familiaridade com a realidade parisiense ou
marselhesa dos exilados. Mas aqui, mesmo não nomeando-a, a referencia à
Concentrazione di Azione Antifascista, o cartel de partidos italianos recém fundado em
Paris, era clara. Como clara era a indicação de uma luta que fosse unitária. No Rio de
121
SCARRONE, Giuseppe. 1º Maggio 1927: rievocando i tempi passati e l’opera demagogica svolta da
Benito Mussolini quando capeggiava la frazione rivoluzionaria del partito socialista italiano. Rio de
Janeiro, 1.5.1927.
122
ACS, Biblioteca, Misc. C, n. 542. SCARRONE, Giuseppe. Dopo cinque anni di dominio fascista in Italia.
Rio de Janeiro, 10.9.1927.
123
Ibidem, p. 1.
111
Janeiro, ao que nos consta, não se constituirá uma seção da Concentrazione, e em São
Paulo isso acontecerá somente em 1931. Mas aqui ecoava a voz do velho socialista,
protagonista de várias tentativas de reformas trabalhistas e de muitos episódios de luta
contra os privilégios na Itália dos Oitocentos, e do começo do novo século, alertando
como somente a unidade das forças garantisse a eficácia da ação.
Do segundo impresso daquele ano, uma carta aberta dirigida a Mussolini124, merecem
ser destacadas alguns trechos, mesmo que longos, para documentar, de um lado, a
revolta contra a censura postal que ainda impedia as comunicações de Giuseppe com
seus parentes, e, do outro, a facilidade de trato do empresário com o chefe do governo, à
luz de um passado comum:
Minha carta aberta se refere ao fato que até aos condenados a morte se
concede o direito de escrever e receber cartas de parentes, amigos e
conhecidos. Tu, como socialista renegado, e eu, como socialista
cooperativista, [...] tratando-nos como nos velhos tempos de nossas
estreias, quando costumávamos usar o tu com qualquer idade e grau
social. [...] Em 1922 alcançaste o poder [...] após cinco anos, nos quais
afortunadamente pudemos nos subtrair às tuas perseguições, estando no
exterior, nos isolastes dos mais puros sentimentos de conforto para
nossa alma, ao não poder receber a correspondência de nossos entes
queridos. [...] Em 16 anos de trabalho, conquistei uma empresa que
hoje está entre as primeiras indústrias do vidro da Capital da República
brasileira. A tua ira chegou até mim, com uma lei provocadora. [...] Fui
chamado pelo cônsul, escrevi minha defesa, houve sessão no Tribunal
não de juízes e sim de teus servos em Genova, sem eu saber, mesmo
tendo enviado uma pessoa com procuração, se foi constituída a defesa.
Soube de ter sido condenado, mas, pela vergonha de causar comentários
no exterior, a motivação da sentença, um ano depois, ainda não me foi
notificada.125
A terceira publicação de 1927 era um impresso de 4 páginas126, no qual, precedida por
algumas linhas nas quais Scarrone “reivindicava” (como aludia o título) seu sucesso
comercial, sem ajudas de ninguém e contra a ação de muitos, eram reproduzidos, em
tradução para o italiano, dois artigos do vespertino carioca “A Vanguarda” de dezembro
daquele ano, ilustrando a atividade da fábrica de vidros, sua produção, seu sistema de
comparticipação nos lucros. Uma anotação manuscrita de Scarrone, no final da ultima
página, revelava algo sobre a finalidade do impresso e suas formas de circulação:
“Enviei quarenta jornais que noticiavam quanto é contido neste impresso. Enviei em
124
ACS, Biblioteca, Misc. C, n. 524. SCARRONE, Giuseppe. Lettera aperta a Benito Mussolini. Rio de
Janeiro, 1927.
125
Ibidem, p. 3-6.
126
SCARRONE, Giuseppe. Come si rivendicano gli uomini. Rio de Janeiro, 16.12.1927.
112
seguida quarenta impressos em envelopes fechados, pedindo para acusar o recebimento.
Não tendo tido resposta, envio o presente. Giuseppe Scarrone”127. O impresso
conservado no arquivo de Roma é um dos que chegaram à Itália, destinados a alguma
sociedade ou particular da região de Genova ou de Milão, ou para algum dos endereços
aos quais Scarrone costumava enviar seus opúsculos. Ele mesmo acrescentava suas
linhas manuscritas aos vários exemplares do texto impresso, um por um.
Mas para quem iam essas publicações? Em 1928, alguns informes do Ministério do
Interior italiano e de suas repartições territoriais de Turim e Milão apontam o envio,
para particulares de varias cidades, de impressos assinados por Scarrone. O próprio
Arturo Bocchini, chefe da Policia italiana, em ocasião da entrada no Reino tanto da
carta aberta para Mussolini, quanto deste ultimo folheto, telegrafava para todos os
prefetti, responsáveis do governo no território, pedindo para “predispor medidas de
vigilância a fim de prevenir e reprimir tal delituosa tentativa, sequestrando libelo acima
onde se encontrar e procedendo contra detentores do mesmo nos termos da lei”128.
Scarrone enviava o material para pessoas de seu conhecimento ou para desconhecidos,
geralmente escolhidas pelas listas telefônicas ou comerciais, e em principio pessoas
ligadas ao fascismo ou indiferentes, a fim de contribuir para criar um movimento na
opinião publica italiana. O empresário, afinal, seguia indicações precisas codificadas
também pelo próprio La Difesa,129 que convidava frequentemente seus leitores a enviar
de forma sistemática para a Itália panfletos antifascistas, artigos recortados, impressos e
até inteiros exemplares do jornal: as instruções recomendavam o uso de envelopes
fechados, pertencentes a consulados, hotéis, bancos, firmas brasileiras ou sem
identificação; convidavam a endereçar a correspondência para pessoas envolvidas com
o fascismo, ou ex-fascistas, ou indiferentes, ou para repartições públicas, firmas
comerciais, do inteiro território italiano, mas principalmente da cidade e região de cada
um; excluíam terminantemente o envio para amigos ou conhecidos de fé antifascista,
para não prejudica-los. Assim Scarrone se inseria numa onda propagandística que do
Brasil se debruçava sobre a Itália fascista, com o diferencial que ele mesmo chegava a
127
Ibid., p. 4.
Cf ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Ministério do Interior, Divisão de Policia
Politica, telegramas do Chefe de Policia para os Prefetti do Reino, n. 1631, 16.1.1928 e n. 2763,
26.1.1928.
129
Ver, por exemplo, “La propaganda in Italia (istruzioni pratiche)”. La Difesa, ano V, n. 203, 5.2.1928, p.
4.
128
113
produzir impressos e material de oposição, muito do qual, como vimos, acabava barrado
pelas autoridades de policia.
Nos anos seguintes, mais impressos e mais papel para Scarrone continuar sua batalha.
Em 1928, o opúsculo que comemorava os quatro anos do assassinato de Matteotti130
trazia alguns textos que denotavam uma autoria mais acostumada a trabalhar com a
palavra escrita, além do interessante relato de uma convocação do próprio Scarrone para
o gabinete do cônsul italiano.131 Outro impresso, recordando os seis anos de governo
fascista,132reconstruía, um por um, motivações e circunstâncias da escrita e publicação
dos opúsculos até então produzidos, incluído o presente, que era o decimo terceiro, e
que nascera, segundo a palavra do autor, para “dissipar um equivoco”, percebido numa
conversa com um advogado brasileiro, na qual seu interlocutor declarava como muitas
pessoas no exterior identificassem a Itália com Mussolini e seu governo. Após outros
trechos de varia natureza, o impresso se encerrava com o manifesto da Concentrazione
de Paris, de junho do mesmo ano, da mesma forma como o opúsculo anterior trazia
outro manifesto, o do Comité de Defesa das Vitimas do Fascismo, assinado por seu
presidente, o escritor francês Henri Barbusse.
Mas é o “Apelo fraterno dos Italianos livres para o povo brasileiro”133 que demostra a
colaboração de Scarrone com outras pessoas e setores do ambiente antifascista carioca.
Aqui, pelo estilo do escrito e o tom, e por sua forma linguística irrepreensível, é
inevitável pensar numa colaboração, ou numa redação outra: provavelmente, como foi
afirmado acima, de Battistelli, naquela data talvez já presidente da Lidu carioca. A
assinatura, “Giuseppe Scarrone, também em nome da Lega Italiana dei Diritti
dell’Uomo de Rio”, leva a pensar nisso, assim como os próprios temas levantados pelo
impresso, que tratava da ação do governo fascista e de seus órgãos ordinários e
130
SCARRONE, Giuseppe. Nel quarto anniversario dell’assassinio di Giacomo Matteotti. Rio de Janeiro,
1928. Fundação Feltrinelli em Milão, Biblioteca, 30701.
131
Depois de reparar como a repartição tivesse mudado da antiga sede da Avenida Rio Branco, 25 - “tão
cômoda para os emigrantes e os viajantes italianos, que desembarcando do navio, em poucos minutos
podiam encontra-la”, mas talvez “não suficientemente central e chique para os representantes do
fascismo e do governo” - para um suntuoso prédio de Praça Marechal Floriano, o empresário relatava de
um diálogo com o cônsul no qual este lhe devolvia uma carta que Scarrone enviara para um jurista
argentino, protestando por uma entrevista favorável ao fascismo que este tinha concedido no Rio de
Janeiro.
132
SCARRONE, Giuseppe. Dopo 6 anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1928. Arquivo da
Fundação Feltrinelli em Milão.
133
ACS, Polizia Politica, Fascicoli Personali, b. 1227 (“SCARRONE, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe.
L’azione del governo fascista e dei suoi organi ordinari e straordinari e la situazione degli italiani
all’estero e degli italiani in Brasile in particolare. Rio de Janeiro, 15.10.1928.
114
extraordinários, em relação aos italianos no exterior. O documento, após ter listado
intrigas e crimes cometidos por fascistas italianos e representantes oficial do governo de
Roma em vários países europeus e americanos, proclamava a fé antifascista da
“grandíssima maioria da colônia italiana” no Brasil, e declarava tramas e delitos
perpetrados em território brasileiro como sendo de responsabilidade exclusiva dos
“delinquentes de camisa negra”, reiterando sentimentos de amizade e afeto para o povo
brasileiro, e respeito por suas leis, por parte de todos os antifascistas.
No ano seguinte, não se registrou nenhum resfriamento na atitude do velho empresário.
Os opúsculos foram publicados com o mesmo ritmo dos anos anteriores, agora
provavelmente com maior participação de outros. A coisa é evidente tanto no pequeno
impresso de março,134 publicado em ocasião dos dez anos da fundação dos Fasci di
Combattimento, primeiro núcleo do partido fascista na Itália, como no Almanacco
Antifascista pel 1929,135 oferecido por La Difesa como homenagem a seus assinantes, e
escrito, segundo informava o próprio semanal paulistano, com a colaboração de
Battistelli. O calendário do ano que se iniciava vinha acompanhado, quando possível,
pela identificação das datas de crimes e violências cometidas pelos fascistas na Itália
nos anos anteriores.
Ainda em 1929, Scarrone mandava imprimir um opúsculo que celebrava o 1º de maio136
e um catalogo, em português, da Fábrica Nacional de Vidros 137, documentando a
participação de seus produtos na Feira de Amostras da cidade do Rio de Janeiro. O
impresso se tornava oportunidade para Giuseppe discutir a nova regulamentação do
trabalho de menores, como foi visto acima, e para ilustrar, inclusive com fotografias,
sua empresa, junto à qual funcionava até uma pequena escola noturna de instrução
primaria. Mais interessante, contudo, era o último opúsculo do ano 138, em ocasião dos
onze anos de partido e sete de governo fascista na Itália. De um lado, as páginas do
impresso percorriam as décadas da recente história italiana, desde a unificação do país
134
SCARRONE, Giuseppe. Decimo anniversario della fondazione dei Fasci di Combattimento, in Italia. Rio
de Janeiro, 23.3.1929.
135
SCARRONE, Giuseppe. Almanacco Antifascista pel 1929. Rio de Janeiro, 1929. Arquivo da Fundação
Feltrinelli em Milão.
136
SCARRONE, Giuseppe. Aprite le porte al lavoro!. Rio de Janeiro, 1.5.1929. Arquivo da Fundação
Feltrinelli em Milão.
137
SCARRONE, José. Catalogo Fábrica Nacional de Vidros. Rio de Janeiro, 1929.
138
SCARRONE, Giuseppe, Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, ossia, L’ultima fase del
transformismo al governo d’Italia. Rio de Janeiro, 1929.
115
até a primeira guerra, marcadas por episódios de “transformismo” politico, do qual o
fascismo seria o mais recente exemplo. Do outro, Scarrone pedia desculpas porque
esta dolorosa história do transformismo e continua traição dos
produtores, deveria ter tido uma pena um pouco melhor do que a minha
[...] de todo modo, os leitores vão compreender que um homem sem
cultura, com seus 71 anos de idade, pode esperar pouca coisa ainda da
politica, no pouco tempo que ainda lhe sobra, mas que [por] toda a
campanha que ele conduziu contra o fascismo desde seu inicio, de sua
subida ao governo até os nossos dias, o povo proletário e trabalhador
[...] aprenda a analisar demagogos e ídolos.139
E concluía suas considerações com algumas breves propostas, que sintetizavam seu
pensamento em matéria social:
A experiência da vida social nos ensinou que: os homens trabalhadores
devem ter a mais completa liberdade de ir onde sua obra possa ser mais
útil, mais procurada e mais fecunda; a produção da riqueza, os produtos,
devem ter passagem completamente livre [...]; uma caixa internacional,
a disposição de embaixadas e consulados, deve prover para a
repatriação de todos os cidadãos que tenham necessidade; na politica
devem se formar dois partidos, o do capital e do trabalho, não
conflitando entre si.140
O restante do livreto continha uma análise da recente lei reguladora do trabalho dos
menores, na qual o empresário mostrava, como vimos mais acima141, dificuldades e
problemas trazidos para sua fábrica e a produção do vidro, em geral, pelas novas normas
a respeito do trabalho dos menores.
Esta rica produção de impressos coincide com uma intensificação da propaganda
antifascista no Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1929. Além da Lidu, novas siglas
faziam sua aparição no âmbito da comunidade italiana da cidade (Itália Libera, Lega
Antifascista, a própria Liga Anticlerical) e começavam a interessar setores da sociedade
brasileira, com o surgimento de uma Liga Antifascista entre os estudantes de Direito.
Essa multiplicação de organizações será analisada mais detalhadamente na terceira parte
do trabalho, quando se verá também o papel de Battistelli nesse contexto. O seu registro
aqui, contudo, aponta na direção de documentar como Scarrone encontrava-se mais uma
vez no centro de uma rede, ainda que pequena, de contatos, iniciativas, esforços para dar
139
Ibidem, p. 24
Ibidem.
141
Cf notas 19, 25 e 26.
140
116
um rosto e um corpo mais real à oposição ao fascismo neste lado do Atlântico. E a de
Giuseppe acabava sendo mais uma voz nesta tentativa.
2.11. Anos de crise
Ao mesmo tempo em que o ano de 1929 representava um ponto alto do antifascismo
italiano na Capital Federal, assinalava, porém, o inicio de uma curva descendente,
sobretudo em termos de intensidade de atividade. De 1930 até 1933, o movimento
antifascista no âmbito da colônia italiana do Rio de Janeiro registrará desacelerações,
quando não um autêntico momento de crise e de reelaboração de discurso e estratégia.
Novamente, deixamos para a próxima parte a tarefa de acompanhar mais de perto essa
temporalidade e seus desdobramentos. Mas algo é possível antecipar aqui.
Vários fatores podem ter contribuído para determinar essa conjuntura. No Rio de
Janeiro, a sensação de uma luta fadada ao insucesso: em março de 1929, por exemplo, a
maior associação italiana da cidade, a Societá Beneficiente, sempre acima das divisões
partidárias, tinha acabado nas mãos de uma diretoria e um conselho alinhados com os
órgãos consulares, quer dizer com o governo fascista. No âmbito mais largo do
antifascismo brasileiro, a crise de La Difesa, com a saída de Frola e as divisões que
revelou no âmbito da colônia paulista, representou mais um fator de debilidade. A
própria sociedade e mundo politico brasileiro, a partir de 1930, ficaram polarizados
pelas disputas eleitorais que levaram Vargas à Presidência da Republica, e em seguida
pelos conflitos ligados à permanência de um governo provisório, até o eclodir da
revolução constitucionalista em 32. Será somente com o perfilar-se no horizonte
mundial do perigo nazista, após Hitler ser nomeado chanceler na Alemanha em janeiro
de 33, e com o despontar no Brasil do movimento integralista, que o antifascismo
encontrará de novo um espaço na vida politica e social nacional. Acrescente-se que para
o próprio fascismo, o ano de 1929 representou um momento de consagração sem
comparações, sobretudo na Itália, mas também em parte da opinião pública mundial: em
fevereiro o acordo com a Santa Sé mostrava um Mussolini que estendia a mão ao
mundo católico, italiano e não, redundando o gesto em prestigio e consideração
internacionais, e, um mês depois, a eleição para a Câmara dos Deputados, realizada sem
nenhuma real liberdade de voto, se transformara num plebiscito para o fascismo, com
98 % dos sufrágios.
117
O declinar da parábola do antifascismo se refletiu também na reduzida produção
impressa de Scarrone naqueles anos. Entre 1930 e 1932, não há registro de panfletos ou
opúsculos, por ele assinados. Não é dado saber em que respectiva medida os fatores
acima acenados acabaram contribuindo para a desaceleração na publicística de
Giuseppe. Provavelmente, a ausência de Frola como apoio e referência para o mundo do
antifascismo contribuiu de forma substancial, visto o resfriamento das relações de
Scarrone com La Difesa.
O que os arquivos nos restituem, nestes anos, é um Scarrone autor de cartas. Três para
Mussolini e uma para a Concentrazione de Paris. Como a dizer, para o próprio inimigo
e para a maior organização de oposição a ele. A primeira carta para o Duce, de fim de
outubro de 1930,142 escrita enquanto Vargas estava se instalando no Palácio do Catete
após o movimento revolucionário que o levara à Presidência da Republica, ainda
transborda de sentimentos de ódio e expressões de revolta contra o fascismo e seus
métodos, aos quais Scarrone aproxima atitudes politicas e escolhas do presidente
deposto, Washington Luís. Ele escrevia, comentando as devastações realizadas por
populares de jornais partidários do antigo governo, como o “novo prédio de 25 andares
de A Noite [...], com sua maquinas rotativas de ultimo modelo [...] quebradas,
danificadas e jogadas na rua”:
o deposto governo, como o fascismo, proibira a palavra contraria a ele,
suprimiu todos os jornais adversários; todo dia, numerosos cidadãos
eram aprisionados em seus cárceres, por ter levantado voz contraria ao
governo; as eleições para o presidente da Republica [...] ocorreram da
mesma forma que o último plebiscito na Itália: era um verdadeiro
fascismo mussoliniano.143
Após ter lembrado para Mussolini como ele tivesse definido a democracia um regime
em “putrefação”, Scarrone continuava afirmando que “aquela democracia que na Itália é
considerada algo em putrefação” conseguira, no Brasil, tomar “as rédeas do poder, após,
não nove, como o fascismo, e sim 49 anos, depois da deposição do imperador Dom
Pedro II em 1889! [...] e como primeiro ato de esperança [...] libertou deportados e
prisioneiros políticos e decretou a liberdade de imprensa”. Após o elogio à democracia
brasileira, o pensamento volvia ao “povo italiano, que se deixara enganar pelo
demagogo”, e às “seis cartas abertas e 19 opúsculos” por ele escritos no passado.
142
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Benito
Mussolini, Rio de Janeiro, 30.10.1930.
143
Ibidem.
118
“Desde as comemorações do oitavo ano, não escrevi mais”, continuava Giuseppe,
recordando como naqueles mesmos dias lhe tivessem perguntado sobre as razoes de seu
silêncio. A resposta continha uma declaração de impotência (“nunca fui homem que
resolve tudo com a força, e ainda que o fosse, com meus 72 anos, e daqui do Brasil,
poderia fazer muito pouco para a Itália”), mas se prolongava num proclama de luta,
contra o “fascismo, nascido no sangue e que no sangue deverá morrer [...] Ai daquele
dia no qual vos ocorrerá o que ocorreu aos fascistas brasileiros a 24 de outubro de
1930!”.
Scarrone, então, não renunciava aos seus ideais de luta, mas parecia ciente da
dificuldade de conseguir resultados concretos com sua ação panfletaria contra um
inimigo que estava tão longe e contra o qual somente poderia uma insurreição popular,
em nome da democracia e da liberdade, como acontecera no Brasil. Outra carta mais
breve, de uma semana depois, para Mussolini, reafirmava o conceito: “No Brasil, após
41 anos de plebiscito como o último realizado na Itália, fez nascer a democracia [...] Na
Itália, onde a democracia foi posta para sempre (?) em putrefação, se coloca diante dos
jovens o machado do fascio e o juramento de fidelidade”144. O empresário sentia o peso
dos anos, talvez, e as dificuldades de uma luta conduzida de um país tão distante, por
um movimento antifascista, inclusive, que não sabia manter unidas suas próprias forças.
A carta para o organismo antifascista, de dezembro de 1931, também revelava algo a
respeito de seus sentimentos.145 Nela, o empresário se dirigia “ao partido Socialista e em
particular à Direção do Partido Socialista Italiano com sede em Paris”. A sua era, pelo
título, uma “carta aberta para os antifascistas”, mas, de fato se tornava uma declaração
em defesa das atitudes de Frola e de sua gestão do semanal paulistano. O ex-deputado
socialista, afinal, fora para por Brasil dirigir o periódico convidado pelos seus
correligionários políticos da colônia italiana e com a aprovação dos vértices do
antifascismo italiano em Paris. Justo era então se dirigir a estes vértices para declarar
insatisfação por como o “companheiro e amigo” tinha sido tratado em São Paulo. Uma
das frases iniciais da carta, contudo, é reveladora de um estado de animo, presente em
Scarrone e possivelmente em muitos outros antifascistas italianos:
144
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Benito
Mussolini, Rio de Janeiro, 6.11.1930.
145
ISRT, AGL, appendice II , fasc. 3. SCARRONE, Giuseppe. Lettera aperta agli Antifascisti. Rio de Janeiro,
12.12.1931.
119
Uma crise econômica esgotou tantas nossas energias e diminuiu nossas
atividades politicas. No Brasil e especialmente em São Paulo, tínhamos
uma maravilhosa atividade antifascista muito simpatizante com a
população local, não só, mas as próprias autoridades e a magistratura,
chamada a intervir em várias situações, em muitos casos nos fez justiça,
julgando em nosso favor.146
O olhar retrospectivo, que julgava encerrado aquele “maravilhoso” passado, levava em
seguida a julgar de forma pessimista o momento presente, no qual, “liquidado” Frola,
seus adversários políticos se propunham a transformação do semanal em diário
(L’Italia). Scarrone, não julgando propícia a situação para tanto, declarava querer
continuar como um “simples assinante”, numa atitude de “benigna observação”.
Poucos meses depois, em maio de 1932, na terceira carta para Mussolini,147 após ter
lembrado que seus opúsculos lhe procuraram “a intimação da lei sobre os fuorusciti,
quando ainda não tinha sido aprovada, por meio do cônsul italiano no Rio de Janeiro” e
“uma condenação a 29 meses de cárcere [...] pela qual nunca mais reverei a Itália”,
Scarrone escrevia: “O fascismo, a este ponto, o vejo forte, estável, inamovível [grifo do
autor]. A ponto de não ver mais necessidade de crítica, e dessa opinião me parecem ser
também meus companheiros de luta, cujas invectivas são muito mais brandas que antes,
sinal que eles também veem a força”. Afirmações inusitadas na boca e na pena de quem
lutara por anos a fio contra o fascismo, com seus escritos e sua participação do mundo
antifascista do Rio. Nenhuma aprovação do regime, ou passagem do lado do vencedor,
claro, mas, ao que parecia, a resignada aceitação de uma situação, de uma realidade (os
três adjetivos sublinhados de seu punho), contra a qual a crítica se tornava inútil.
Afirmações que completavam uma parábola iniciada meses antes, com a suspensão dos
opúsculos e uma participação menos intensa no jornal antifascista de São Paulo? Talvez
seja plausível pensar em cansaço, em momentâneo desânimo, em estar advertindo o
peso dos anos, ou numa sensação de isolamento ou de fragilidade no campo antifascista.
Estranha a declaração que envolvia os companheiros de luta, tornando-os participes da
atitude proclamada por Scarrone. É possível que Giuseppe percebesse sinais disto nos
contatos com outros antifascistas da Capital Federal: como se falou acima, era evidente
uma situação de dificuldade e crise: mesmo assim, sua afirmação soava um tanto
radical. Mas uma hipótese sugestiva pode ser aqui registrada. Mais para frente, o
146
Ibidem.
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Benito
Mussolini, Rio de Janeiro, 19.5.1932.
147
120
empresário, após ter lembrado brevemente sua atividade no ramo do vidro em Altare,
escrevia: “tive sempre adversários, nunca inimigos”. E declarava o objetivo da carta: o
pedido de libera circulação para uma sua próxima publicação, um opúsculo onde se
falaria do Brasil, suas riquezas e a indústria do vidro, “sem referências alguma ao
fascismo”, anunciando que enviaria cópia dele, como fizera com “as 6 cartas abertas e
os dezenove opúsculos” , e despedindo-se de Mussolini com um “seu adversário,
sincero sempre, Giuseppe Scarrone”. Interpretar as declarações acima como uma mera
captatio benevolentiae do Duce, atitude instrumental de Scarrone para favorecer a
entrada no Reino de um seu escrito mais técnico, é, então, mais uma possibilidade a ser
levada em conta.
Com efeito, no mesmo ano, Giuseppe mandava imprimir o opúsculo anunciado148, cujos
temas se limitavam a uma análise sumaria das riquezas econômicas do Brasil, a um
protesto contra o aumento dos preços de importação dos perfumes, coisa que chegava a
prejudicar os fabricantes de recipientes em vidro, e à descrição da fábrica (“a mais
democrática do Brasil”) com sua proposta de divisão dos lucros.
2.12. De volta à trincheira
As autoridades do governo de Roma e os órgãos diplomáticos no Rio de Janeiro
tomaram nota da novidade na atitude politica de Scarrone. Um telespresso do Ministério
das Relações Exteriores trazia um breve relatório do cônsul do Rio, que afirmava:
A respeito da mudada atitude politica dele, o autor, oportunamente
interrogado, repetiu quanto escrevera em sua carta a S.E. o Chefe do
Governo, isto é, que ‘o Fascismo, a esta altura, é tão forte e enraizado,
que qualquer oposição contra ele é vã’, entendendo com isso somente
reconhecer a solidez inabalável do Fascismo, sem contudo aprovar sua
doutrina e seus métodos149
Os informes oficiais a respeito de Giuseppe, para os anos de 1932 e 33, continuavam
batendo na tecla dos anos anteriores: Scarrone como um incapaz, um velho maníaco
exaltado e sem coragem, com manias de escritor, sem ter ninguém que o levasse a serio,
e por isso, fundamentalmente inócuo. E agora, com as declarações presentes na carta a
148
SCARRONE, Giuseppe. Il Brasile, le sue grandezze, la sua produzione e l’industria del vetro. Rio de
Janeiro, 1932.
149
ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), telespresso Ministério das Relações Exteriores,
22.10.1932.
121
Mussolini, definitivamente não mais perigoso. A ponto da ordem de prisão emitida
contra ele ser revocada por efeito de amnistia150.
Mas o consulado italiano no Rio, ainda em 1935, deverá comunicar a Roma que
“Giuseppe Scarrone, embora de idade avançada, continua manifestando suas ideias
socialistas e publicando de vez em quando uns opúsculos, gramaticalmente
incorretos”151. Com efeito, o velho empresário, tinha retomado suas periódicas
publicações contra o fascismo: entre 1933 e 1934, Scarrone escrevera mais quatro
opúsculos. De um primeiro, somente quatro pagine, escrito como resposta a uma
pergunta que o consulado divulgara (“O que você diria para Mussolini, se pudesse falarlhe?”), e no qual Giuseppe ia lembrando as ilegalidades cometidas pelo fascismo em sua
escalada ao poder e as feridas infligidas à sociedade italiana em seus anos de governo,
registramos a fase final: “E agora, entre livres cidadãos, haveria cordiais saudações, mas
como o que nos divide do fascismo é o sangue, nos limitamos a dizer: ‘Até as futuras
reivindicações sociais!’”.152
Ainda em 1933, apareceu “Mussolini non sbaglia mai”153. Tomando como pretexto
responder a um italiano, encontrado no tramway enquanto ia fazer compras à feira livre
de Praça 7 de Março, e que enaltecia as obras do Duce, em detrimento de quanto não
conseguiram fazer os socialistas em tantos anos, Scarrone se lançava numa requisitória
contra o fascismo e suas pretensas realizações, que, quando boas, não passariam de
plágios, e quando ruins, de sabotagens, de propostas ou práticas fruto de trinta anos de
trabalho socialista na Itália, sem nunca ter governado o país, inclusive. O livreto, de 32
paginas, era dos mais veementes e inflamados saídos da pena do velho empresário do
vidro, quase a demostrar que a antiga vis polemica não estava por nada sepultada. A
expressão que dava o titulo ao impresso era a mesma estampada em quadros nos
consulados e nas repartições públicas italianas: “frase dos idiotas, repetida nos
cinematógrafos”, Scarrone a usava como refrão para sublinhar a retórica do regime e o
sufocamento de qualquer manifestação de dissenso.
150
Ver ACS/ CPC , b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”). Nota da Prefettura de Genova, n. 3597,
24.2.1933. Em ocasião dos dez anos do regime, Mussolini concedera anistia a vários presos políticos e
comuns.
151
Ibid., Telespressso do MAE, n. 321306, 25.11.1935.
152
SCARRONE, Giuseppe. Dopo 15 anni di partito e 11 di governo fascista in Itália. Rio de Janeiro,
25.9.1933.
153
SCARRONE, Giuseppe. Mussolini non sbaglia mai!. Rio de Janeiro, 1933. Arquivo da Fundação
Feltrinelli em Milão
122
No ano seguinte, 1934, mais dois opúsculos. Um se abria celebrando Garibaldi154, herói
da unidade italiana, e sua esposa Anita, transformando-se logo em mais uma coletânea
de pequenos textos de uma ou duas páginas, ao clássico estilo dele, sobre o fascismo na
Itália e os enganos de Mussolini. Interessante, entre outras, a matéria retirada num
exemplar de março de La Libertá, na qual o órgão oficial da Concentrazione de Paris
falava de Scarrone,
ótimo e ativo combatente antifascista [...] todo ano, do bolso dele,
publica panfletos e opúsculos de propaganda antifascista que difunde
amplamente em todos os ambientes [...] Scarrone é um humilde
trabalhador, escreve sem alguma pretensão literária e com um estilo
muito simples. Sua modesta obra, embora marcada por certo simplismo,
é uma contribuição importante para a causa do antifascismo.155
Até o principal instrumento do mundo antifascista italiano, então, se ocupava da
singular atuação de Giuseppe: infelizmente, num de seus últimos exemplares
publicados, já que dois meses depois a Concentrazione encerrava sua existência. Outro
impresso de Scarrone vinha à luz naquele ano
156
, deixando perceber que o espirito de
luta do velho socialista continuava igual. Assim na introdução estava escrito, em claras
letras:
Usurpação, incêndios, assassinatos, privação de toda liberdade de
imprensa e individual, imposições, ilegalidades de todo tipo e espécie
foram perpetrados sob a hipócrita aparência de interesse da Pátria [...]
Há 12 anos o fascismo com estes sistemas domina e impera,
acorrentando uma nação laboriosa [...] Tratando destes tristes assuntos,
em 12 anos mandei imprimir 24 opúsculos, com críticas sinceras e
justas. Cada publicação era alimentada pela esperança que fosse a
última, mas, desgraçadamente, a sucessão cada vez mais dolorosa de
inqualificáveis acontecimentos, me aconselhou em continuar numa
publicação que colocasse as coisas em claro. 157
154
BN / SCARRONE, Giuseppe. Anita e Giuseppe Garibaldi. Dopo 85 anni dalla morte dell’una e 52
dell’altro: reminiscenze e confronti. Rio de Janeiro, 2.6.1934.
155
Ibidem, p. 16.
156
ACS / Biblioteca / Misc. C., n. 522. SCARRONE, Giuseppe. Fasi dell’opera di Mussolini. 16 anni di
partito e 12 di governo fascista in Italia sono passati ma l’orizzonte é oscuro. Rio de Janeiro, 1934.
157
Ibidem, p. 3-6. Scarrone apresentava em seguida a razão imediata do presente opúsculo, o vigésimo
quinto. Ao saber, através do paulistano Fanfulla, que Mussolini aceitara a sugestão do embaixador no
Brasil de imprimir, com tiragem limitada, uma edição luxuosa do livro no qual o Duce evocava a vida do
irmão Arnaldo recém-falecido, edição cujas rendas seriam revertidas para as obras de assistência dos
fasci no país, o empresário dirigira uma carta para o consulado do Rio, encomendando um exemplar do
volume, e para tanto incluindo o dinheiro para a compra, 100 mil reis, mas também acrescentando
algumas linhas de acusação contra o líder do fascismo, responsável do assassinato de Matteotti, e
perseguidor da viúva e dos filhos dele. O consulado, semanas depois, enviava um envelope selado para
Scarrone, devolvendo o dinheiro.
123
A capa do impresso trazia uma fotografia que Scarrone retirara de um dos primeiros
números de Giustizia e Libertá, periódico que começara a ser publicado em Paris pelo
homônimo movimento, e que evidentemente o empresário lia ou recebia, talvez até
como assinante, se corresponde à verdade o que um informe do Ministério do Interior
italiano afirmava a seu respeito, três anos depois: “Recebe Giustizia e Libertá, que
distribui como propaganda”.
Passavam os anos, mas Scarrone não parecia desistir de sua batalha. De um lado se
apoiando nos instrumentos ainda a sua disposição, tanto os nacionais, como La Difesa embora o periódico paulistano nos primeiros meses de 1934 estivesse encerrando suas
publicações - quanto os do exterior, fosse o periódico da Concentrazione, o de G.L. ou
até o anarquista Studi Sociali, editado em Montevideo por Luigi Fabbri, que incluiu o
último opúsculo de Scarrone entre os livros recebidos.158 Do outro, possivelmente,
encontrando os antifascistas que, apesar da aparente solidez do regime mussoliniano, do
tempo que passava sem resultados evidentes, das feridas devidas a incompreensões e
diferenças, ainda se declaravam tais e ousavam alguma iniciativa. Sufocadas as
associações tradicionais da comunidade italiana no Rio de Janeiro, preservadas somente
uma ou outra sociedade antifascista, como se verá com mais amplitude na parte
dedicada a Battistelli, o mundo da oposição ao fascismo encontrará, contudo, nos anos
de 1933-34, particularmente em São Paulo, um interlocutor importante em organizações
da esquerda brasileira, socialista e, sobretudo, comunista, tanto da ortodoxia
bolchevique quanto da galáxia trotskista. A Frente Única Antifascista e os vários
comitês antiguerreiros e antifascistas foram sinais de um despertar do antifascismo
brasileiro, em parte provocado também pelo rápido crescimento do movimento
integralista.
Não há possibilidade de acompanhar esta aceleração do antifascismo no Brasil pelos
escritos de Scarrone, não havendo registros da mesma, assim como não há indícios
neles de alguma reação diante da afirmação nazista na Alemanha. Pode se supor que ele
acompanhasse os eventos tanto do Brasil como da Europa e de sua pátria longínqua.
Mas o que há de se registrar aqui é o opúsculo de 1 de maio de 1935, como o qual
158
Cf. Studi Sociali, ano V, n. 36, 10.12.1934.
124
Giuseppe se despede publicamente da política ativa159. Aproximando-se a data de seu
76º aniversário, Scarrone rememorava uma vida inteiramente dedicada à
luta pela qual quase tudo sacrifiquei, à luta de todo dia e toda hora pela
defesa dos verdadeiros produtores da riqueza, do proletariado, enfim,
que trabalha, sofre e infelizmente quase sempre se cala [...] Estas
afirmações sirvam de despedida de minha vida ativa na política [...] a
esses trabalhadores dedico todo meu trabalho, meus opúsculos, as
minhas publicações.160
E continuava, em forma de carta para o diretor de uma importante sociedade produtora
de vidros de sua cidade na Itália, seu antigo desafeto, narrando de forma sucinta
tentativas e ostracismos sofridos na primeira parte de sua vida, e realizações obtidas em
terra estrangeira, “na hospitaleira e grande Republica do Brasil”, onde “comecei uma
vida nova, num ambiente novo, dedicando-me ativamente à arte do vidro e consagrando
as poucas horas de descanso à propaganda de meus ideais e à mia defesa”. 161
Quase
um testamento, politico e existencial, por parte de um homem que, prestes a encerrar
seus anos de vida, deixava gravadas as razões de um empenho e de um testemunho.
2.13. Últimos anos
Um carimbo azul no frontispício do opúsculo estampava 28.5.1935, Anno XIII E.F.,
indício de mais uma apreensão por parte da policia do regime, ao seu chegar ao correio
italiano. A “Era Fascista” celebrava seu decimo terceiro ano de existência,
encaminhando-se para a próxima conquista de mais um lugar ao sol, com ataque e
conquista da Etiópia, enquanto no Brasil, a ANL, com seu programa antifascista e antiimperialista, estava em seus últimos dias de existência legal, e em breve a repressão do
levante comunista de novembro deixaria congeladas por um bom tempo as palavras de
ordem da esquerda, nacional como estrangeira, particularmente após a instauração do
Estado Novo. Os antifascistas italianos sofreriam aumento de vigilância, perquisições,
prisões, como se verá na terceira parte deste trabalho, seja pela repressão a tudo que
levantasse suspeita de comunismo, seja pela campanha de nacionalização do governo
Vargas e sua atitude rigorosa com os estrangeiros.
159
SCARRONE, Giuseppe. Prendendo congedo dalla politica ativa. Rio de Janeiro, 1.5.1935.
Ibid., p. 3-4
161
Ibid., p. 7.
160
125
Nestes anos, Scarrone também, anunciada a despedida da vida politica ativa,
concentrava suas atenções no trabalho. Na Fábrica Nacional de Vidros, sua criação, não
conseguiu aplicar da forma desejada os seus princípios cooperativos, inspirados no
socialismo um tanto romântico que o caracterizava. Várias dificuldades, como acima foi
mencionado, tornaram menos radical do que esperava a realização do projeto: uma
legislação que, visando regulamentar o trabalho dos menores, acabava prejudicando a
aprendizagem da arte do vidro, diminuindo os relativos lucros162; exigências da
fiscalização que incidiram pesadamente no balanço do estabelecimento; normas
trabalhistas introduzidas pelo governo Vargas que, beneficiando os trabalhadores,
criavam ônus para a empresa,163 fora o aumento de impostos sobre alguns produtos
ligados ao mercado do vidro. A fábrica se confirmava com o passar dos anos como uma
das principais da praça carioca, se não de todo o Brasil. Nem o incêndio que a danificou
gravemente em janeiro de 1936, devido a um descuido durante uma troca de plantão,
com derramamento de vidro incandescente liquido a 1000º de calor, conseguiu deter sua
afirmação na cidade. Nesta ocasião, Scarrone mandava imprimir um opúsculo, em duas
versões (italiano e português)164, narrando os eventos ligados ao incêndio e explicando
um pouco a história da fabricação do vidro, e em seguida começava uma coletânea de
livrinhos escritos em português, com o título “A Revolução na Indústria Vidreira”,165
trazendo o catálogo da fábrica, junto com informações e comentários sobre as técnicas
da produção do setor.
A trajetória de Scarrone estava chegando ao ponto final. Um dos últimos registros de
sua existência e possivelmente o último de sua ação politica, antes do governo brasileiro
proibir por decreto atividades neste sentido realizadas por estrangeiros,166 é o de um
162
Scarrone reafirmava em um conceito já apresentado anos antes: “Uma coisa que não pode ser aceita
nem discutida é a idade de 18 anos para aprender o trabalho do vidro. [...] Ele é uma arte, como a
música, a poesia, a escultura, a pintura [...] Na aprendizagem deste trabalho rápido e de capacidade
mental, agilidade e calculo rápido, [...] é preciso ter uma agilidade que aos 18 anos o homem não possui
mais”. Cf. SCARRONE, Giuseppe. O incêndio na Fábrica Nacional de Vidros, Rio de Janeiro, 1936, p. 12.
163
Scarrone se queixava, por exemplo, da lei das férias, que criava sérios problemas financeiros para sua
empresa. Vários foram os trabalhadores da Fábrica Nacional de Vidros que entraram na justiça contra a
empresa reclamando férias. Ver, como exemplo, o Diário Oficial da União de 4 de dezembro de 1937, p.
23991.
164
BN / SCARRONE, Giuseppe. O incêndio na Fábrica Nacional de Vidros, Rio de Janeiro, 1936.
165
Desta coletânea foi possível localizar somente alguns exemplares: n. 4 (1938), n. 6 (1939) e n. 13
(1942). Vale lembrar como, a partir de 1938, a legislação sobre os estrangeiros chegava a proibir o
ensino realizado em línguas estrangeiras e mais tarde até o uso público de idiomas como o alemão, o
japonês e o italiano.
166
Cf. Decreto-lei n.º 383, de 18 de abril de 1938. O art.1 dizia: “Os estrangeiros fixados no território
nacional e os que nele se acham em caráter temporário não podem exercer qualquer atividade de
126
banquete, oferecido em seu estabelecimento, como homenagem ao “companheiro de
ideias e amigo caríssimo conde Francesco Frola”, prestes a deixar o Brasil para alcançar
a Universidade de Cidade de México, onde obtivera pelo governo do país a nomeação a
docente. O próprio empresário relata em mais um opúsculo167 o evento, que se dera a 31
de outubro de 1937, destacando a participação, além de Frola (“proscrito da Itália, como
eu, por ser contrario ao regime vigente”), dos representantes da Embaixada mexicana,
do engenheiro Luigi Ferrero, dos proprietários da Editora Athena e do advogado
Evaristo de Moraes.168
Nenhuma outra noticia foi possível levantar a respeito da vida de Giuseppe, nem de sua
ação de antifascista. Os últimos anos da década de 1930 e os primeiros da sucessiva se
passaram debaixo do rígido controle do Estado Novo, e somente a entrada do Brasil na
guerra contra o Eixo permitirá aos antifascistas italianos tentar uma reorganização. Mas,
a esta altura, o mais que octogenário Scarrone já não se empenhava mais. A perda da
esposa, em fevereiro de 1944, o afetara profundamente. Poucos meses depois, em julho,
também Giuseppe (José) encerrava seus dias de vida.
natureza politica nem imiscuir-se, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do país”. E o art. 2
acrescentava: “É-lhes vedado especialmente organizar, criar ou manter sociedades, fundações,
companhias, clubes e quaisquer estabelecimentos de caráter politico, ainda que tenham por fim
exclusivo a propaganda ou difusão, entre os seus compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação
de partidos políticos do país de origem [...] manter jornais, revistas ou outras publicações, estampar
artigos e comentários na imprensa”. Texto retirado de GARCIA VARGAS, Eugenio (org.). Diplomacia
Brasileira e Politica Externa. Documentos Históricos (1493-2008). Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p.
421-423.
167
SCARRONE, Giuseppe. Giuseppe Scarrone nelle sue memorie. Rio de Janeiro, 1937. No livrinho, o
empresário faz preceder, à menção do banquete em homenagem a Frola, algumas páginas sobre
infância, juventude e suas primeiras experiência de trabalho na Itália.
168
Ferrero era mais uma figura do antifascismo italiano no Rio de Janeiro: sua relevância e seu papel se
tornaram significativos a partir de 1942, na liderança do grupo dos Italianos Livres na Capital Federal.
Dele se falará em forma mais ampla na quarta parte do trabalho.
A Editora Athena era de propriedade de um grupo de italianos antifascistas, tendo como seu diretor
Pasquale Petraccone. Dele e de seus companheiros de trabalho e de ideias (Luigi Cingolani, Carlo
Alessandro Tamagni e Filippo Ferri) se discutirá mais amplamente nas partes terceira e quarta deste
trabalho. Aqui cabe registrar que, pela Editora Athena, Frola tinha publicado, naquele ano de 1937, um
livro sobre a cooperação, com o título A cooperação livre (a economia espontânea do povo).
Evaristo de Moraes, “Príncipe do Foro brasileiro”, como o define Scarrone no opúsculo, se destacara
desde os anos 1920 como defensor da classe operaria em muitas de suas lutas sociais, e como um dos
fundadores, em 1925, do Partido Socialista Brasileiro (ver nota 45). Sua presença em eventos
promovidos pela Lidu do Rio, ou por La Difesa, também fora significativa. Neste mesmo ano de 1937 ele
assinava o prefácio do livro de Frola. Uma boa introdução à sua vida e ação se encontra em MENDONÇA,
Joseli Maria Nunes. Evaristo de Moraes, tribuno da República. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
127
Um trecho escrito ainda onze anos antes vale como epilogo e síntese de sua existência:
Esse é o meu socialismo. Que no fundo se reduz a uma só formula a ser
aplicada: atribuir ao capital uma cota indispensável para que ele não
somente não se esgote, mas progrida, para tornar cada vez mais
eficiente a obra da produção, considerando o capital como coisa distinta
da pessoa de seus detentores provisórios, como elemento destinado à
produção de coisas úteis: máximos salários possíveis [...] Esse é o meu
socialismo. Retrogrado, talvez, limitado, talvez, mas que é fé tenaz de
meu coração, que é lembrança de minha juventude e da maravilhosa
primavera dos ideais de reivindicação social em meu país! É o
socialismo que a milícia de Mussolini teme a ponto de escalar, para sua
vigilância, um exercito de camisas negras; é o socialismo que não teme
a prisão e o exílio, pois é próprio daqueles que possuem a certeza de
alcançar a meta.169
169
SCARRONE, Giuseppe. Mussolini non sbaglia mai!, op. cit., p. 32. Arquivo da Fundação Feltrinelli em
Milão.
128
3. TERCEIRA PARTE / Libero Battistelli
3.1. A realidade do exilio
Não é de todo impossível imaginar os sentimentos e as reflexões que se formaram no
pensamento de Libero Battistelli, advogado bolonhês de 34 anos, quando chegaram à
Capital Federal as primeiras informações acerca do naufrágio do Principessa Mafalda,
na manhã de 26 de outubro de 1927. Era o mesmo vapor que o transportara da Itália
para o Rio de Janeiro seis meses antes, em companhia da esposa e dos cunhados, e
agora, aquele que era tido como um dos melhores Ocean liners da época, se encontrava
afundado ao largo do litoral da Bahia, entre Caravelas e Abrolhos, com um balanço final
de mais de trezentos mortos num total de cerca de 1200 entre passageiros e tripulantes.
O registro de chegada ao porto do Rio de Janeiro do vapor holandês Alhena1, uma das
embarcações que acorreram ao socorro do Principessa Mafalda, traz os nomes de 50
passageiros resgatados, provavelmente todos oriundos da terceira classe, pois receberam
imediatamente encaminhamento para a Hospedaria da Ilha das Flores, fora duas
mulheres que pediram para ser reenviadas para a Itália, tendo perdido seus maridos no
naufrágio.
A travessia do Atlântico, que há décadas representava para muitos italianos a esperança
de trabalho e fortuna em terras americanas para garantir uma vida digna para si e suas
famílias, tornara-se também para pessoas como Battistelli, empenhadas numa oposição
aberta ao governo fascista, a única saída diante de uma condição insustentável. A de
Libero tinha sido uma decisão não fácil, amadurecida após meses de busca de uma
solução para sua vida e a de sua esposa Enrica, diante do progressivo estreitamento dos
espaços de liberdade e segurança para os opositores do regime de Mussolini. E, embora
a viagem que o trouxe ao Brasil tenha sido realizada na primeira classe, devido a uma
posição financeira relativamente tranquila, um elemento comum igualava a sua
condição à das dezenas de emigrantes que embarcavam na segunda ou na terceira
classe: o abandono da terra natal, de raízes construídas com o tempo e de uma rede de
relações que davam significado e continuidade à existência. Um abandono que, embora
1
Arquivo Nacional (AN), Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF), Relações de
Passageiros em Vapores (RPV), Porto do Rio de Janeiro (PRJ), Notação: BR.AN.RIO.OL.0.RPV.PRJ.22463
129
desejado como temporário, se apresentava, naquelas circunstâncias históricas, sob a
aparência de um exilio a tempo indeterminado.
De 1927 a 1936, por nove longos anos, Battistelli enfrentou a realidade do exilio em
terra brasileira, no Rio de Janeiro, onde fixou sua morada até os eventos da guerra civil
espanhola se perfilar no horizonte como oportunidade para ele se engajar na tentativa
prática de derrotar a onda montante dos fascismos. Mas antes disso, a experiência do
exilio, com seu componente de impotência e desilusão, marcara atos e pensamentos.
Poucos meses após sua chegada ao Rio, Libero escrevia em La Difesa:
“Paciência! A virtude humilde, cotidiana dos homens simples [...] é
única nossa força atualmente. Abandonamos, com a modesta casa em
que nascemos, com o trabalho que nos dava a dignidade de viver [...] as
esperanças sempre vivas [...] Além dos montes e sobre o mar te
carregamos, Paciência, como viático [...] que guardávamos para nosso
exilio [...] Estavas ao nosso lado quando, passada a primeira alegria
para o livre respiro em terra livre, sentimos sobre nossa cabeça de
fugitivos a inclemência das novas constelações”.2
Dois anos depois, respondendo a um contato epistolar do anarquista Camillo Berneri3,
que se encontrava em Paris, confessava:
“Residir no Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro (São Paulo, com
seu núcleo numeroso de italianos, com seu semanal antifascista
etc...está mais diretamente a contato com o centro), significa ficar
automaticamente na periferia da vida intima de emigração antifascista.
Tirando as noticias oficiais, que chegam pela imprensa ou através das
circulares da Concentrazione ou dos partidos [...] só indiretamente pude
conhecer fatos e homens do nosso meio”.4
E, em 1932, numa carta a Carlo Rosselli, líder de Giustizia e Libertá, comentava sua
condição: “Obrigado por sua carta, que, se fosse um telegrama, resolveria todos os
problemas do balanço do correio francês. Mas eu a teria desejado ainda mais longa,
2
“Pazienza”. La Difesa, Ano IV, n. 194, 4.12.1927, p.2.
Cf. nota 77 da primeira parte.
4
Carta de Libero Battistelli a Camilllo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi
(org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri. Pistoia: Edizioni Archivio Famiglia Berneri ; Comune –
Assessorato agli Istituti culturali, 1984, p. 49.
3
130
porque neste exilio, o único comércio espiritual possível para mim é o epistolar, e aqui
eu corro o risco de desaprender o uso do cérebro”.5
A condição de exilado pesava nos ombros de Battistelli, mas o tornava também, de
certo modo, mais livre para enfrentar temas polêmicos, tocar assuntos delicados, travar
diálogos com os mais diversos expoentes do mundo antifascista. Num artigo sobre a
postura que os revolucionários deveriam adotar diante das instituições parlamentares,
escrito, ainda em 1935, em forma de carta ao anarquista italiano Luigi Fabbri, exilado
em Montevidéu, onde dirigia a revista Studi Sociali, Battistelli conseguia destacar um
aspecto positivo de sua realidade: “O exilio nos coloca, de certa forma, fora do tempo e
do espaço. E a atualidade, que não podemos influenciar, nos livra de sua contingencia”.6
Quando da publicação desse texto no periódico de Fabbri, em agosto de 1936, Libero e
sua esposa estavam atravessando o Atlântico de volta para a Europa, a bordo do vapor
inglês Delambre, destino Liverpool, e depois a França, onde irão se colocar a serviço da
defesa da Espanha republicana diante do ataque das forças de Franco. Após nove anos
de exilio no Rio, uma nova etapa da luta. A morte que surpreenderá Battistelli no front
aragonês no ano seguinte encerrará um percurso de vida dos mais significativos no
âmbito do antifascismo exilado.
3.2. Um empenho que vem de longe
Libero Battistelli nasceu em Bolonha, uma das mais populosas cidades do norte da
Itália, a 21 de janeiro de 1893, de Ermanno e Maria Dari.7 O nome (Libero significa
“livre”, em italiano) lhe foi atribuído pelo pai, como ele mesmo advertiu numa
correspondência com Rosselli, na qual recordou que “esse batismo foi desejado, com
5
Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 27.4.1932, In Istituto per la Storia della
Resistenza in Toscana (ISRT), Arquivo de Giustizia e Libertá (AGL), Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1,
sottofasc. 8.
6
“I Rivoluzionari e il Parlamento”. Studi Sociali, Montevidéu, Ano VII, Serie II, n. 3, 15.8.1936, p. 4.
7
Para uma reconstrução do perfil biográfico de Battistelli, ver ALBERTAZZI, Alessandro; ARBIZZANI,
Luigi; ONOFRI, Nazario Sauro (org.). Gli Antifascisti, i partigiani e le vittime del fascismo nel bolognese:
1919-1945, Dizionario Biografico, Bologna: Istituto per la storia della resistenza e della società
contemporanea nella provincia di Bologna "Luciano Bergonzini" (ISREBO),1985-2003, verbete
“BATTISTELLI, Libero”.
Site: http://www.iperbole.bologna.it/iperbole/isrebo/strumenti/strumenti.php
Ver tambem ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”) e BERTONHA, João Fábio. “Libero Battistelli
e Giustizia e Libertá no Brasil: um aspecto da luta antifascista italiana na América do Sul”. Diálogos,
Maringá, vol.3, p. 213-234,1999.
131
certa dose de retórica e gosto discutível, por meu pai, admirador de Carducci”.8 E o
nome, inspirado nas rimas do poeta e nos seus anseios pela autêntica liberdade da pátria
em tempos de Risorgimento,9 ficou quase como uma marca de nascença para o jovem
Battistelli.
A família tinha-se transferido de Forlí, centro menor da região chamada Romanha, para
Bolonha cinco anos antes, e, dois depois do nascimento de Libero, morreu o irmão dele,
com seis meses de vida. Em 1908, nova transferência, desta vez para Brescia. Aqui
aconteceram os estudos de Libero, incluindo sua formação em direito. Durante a
primeira guerra mundial, ele foi oficial de artilharia. Após a guerra, teve residência
precária em Bolonha, até se estabelecer definitivamente na cidade, a partir de 1921.
Foi no ambiente bolonhês, composto tanto da realidade urbana da própria capital da
região como da vida e da cultura dos centros menores do interior, prevalentemente
agrário, que amadureceram escolhas e estilos de vida. Era um ambiente marcado, de um
lado, pela radicada presença de ligas camponesas, cooperativas, câmaras do trabalho e
sindicatos de inspiração socialista ou republicana, do outro, a partir sobretudo de 1920,
pela tentativa violenta de destruição e sufocamento deste mundo associativo por parte
das esquadras fascistas, que estendiam sua ação também contra municipalidades
governadas pela esquerda. E de um destes episódios - o ataque fascista à sede da
prefeitura de Bolonha no dia 21 de novembro de 1920, em ocasião da posse da nova
junta municipal, formada em sua maioria por socialistas - Battistelli oferecerá uma
reconstituição bem documentada e uma interpretação original, num artigo (“I fatti di
Palazzo d’Accursio e l’assassinio Giordani”) escrito nos primeiros anos de seu exilio
carioca e que será publicado póstumo.10 Nele, são esquadrinhadas cumplicidades e
conivências entre fascistas, forças de polícia, imprensa e magistratura, bem como
8
Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 24.7.1933, In ISRT/AGL, Fundo Carlo Rosselli,
fasc. 1, sottofasc. 8.
Giosué Carducci (1835-1907) foi um célebre poeta italiano da segunda metade do século XIX, professor
universitário na cidade de Bolonha e propugnador de ideais republicanos e laicos.
9
Risorgimento é a denominação com a qual a historiografia italiana identifica o processo de formação
da unidade do país ao longo do século XIX, começando pelos movimentos insurrecionais do começo do
século, passando pelas guerras de independência de meados do século, até a sucessiva campanha de
Garibaldi para a conquista das regiões meridionais. A região de Veneza, obtida da Áustria e a cidade de
Roma, ocupada em 1870, completaram o processo.
10
ANTONIONI, Ezio. “Un inedito di Libero Battistelli”, In Fascismo e Antifascismo nel bolognese: 19191926, 8º caderno de La Lotta, Bologna, 1969, p. 29-42. O episodio, originado pela agressão fascista à
multidão reunida na praça principal de Bolonha, que aguardava a posse da junta municipal, causou a
morte de onze pessoas, atingidas por tiros ou granadas de mão.
132
virtudes e limites do movimento socialista local, do qual o autor critica duramente a
tendência de alguns expoentes à demagogia ou ao aburguesamento.
E foi nesse mesmo ambiente que Libero conheceu e avaliou propostas politicas dos
vários setores do subversivismo, definição carregada de uma conotação positiva e que
ele aplicará, sobretudo em sua reflexão mais madura a partir do exilio, aos expoentes do
socialismo, do sindicalismo, do anarquismo, de parte do republicanismo, e, mais tarde,
do partido comunista e do movimento de Giustizia e Libertá. No âmbito do
subversivismo bolonhês com que ele se embateu nesses anos, seu contato com o
anarquismo foi mínimo, mas em um ponto foi significativo, e vale seu registro aqui
como indicação de uma simpatia, de uma abertura que caracterizarão em futuro sua
posição politica e certas escolhas, seja no Brasil, como na Espanha republicana. Será o
próprio Libero a mencionar a circunstância em 1932, quando, convidado a proferir
algumas palavras durante um evento promovido no Rio de Janeiro pelos anarquistas
brasileiros, pela Liga Anticlerical e a Associação Antifascista em memória de Errico
Malatesta, o expoente libertário falecido naquele mesmo ano, lembrará de um comício
ao qual assistira, ainda em 1919, em Bolonha. Após vários expoentes do mundo politico
local, com destaque para socialistas revolucionários e socialistas reformistas, todos
empenhados em proclamações revolucionárias regadas a muita demagogia, chegou a
hora do célebre anarquista. Battistelli recordará a fala inflamada daquele homem, o qual
afirmava que
a revolução não caia do céu, mas era preciso fazê-la, cabia aos
trabalhadores, aos próprios proletários fazê-la [...] e era preciso preparála [...], materialmente - armando-se, e espiritualmente - dispondo-se ao
sacrifício [...], pois a luta seria dura, não se ganharia com aplausos nos
comícios [...] e sim lutando nas ruas e nas praças [...] e depois da vitória
far-se-ia necessário um espirito de sacrifício ainda maior.11
E acrescentará ter experimentado naquela hora a “impressão nítida e tristemente
profética de que com aquelas multidões não se poderia fazer a revolução [...], mas
também a percepção
que finalmente estávamos diante de um verdadeiro
revolucionário”.12
Começou naqueles anos a militância de Libero. Ele lembrou seus inicios e a escolha do
partido republicano (PRI) na carta a Berneri já citada:
11
12
“Parole su Errico Malatesta”. Studi Sociali, Montevidéu, Ano XVIII, Serie III, n. 5, 31.5.1946, p.16-18.
Ibidem.
133
Entrei tarde na vida politica. Em 1922, quando uma simples declaração
de apartidarismo bastaria para disfarçar conformismo e covardia. Entrei
tarde não só por uma preocupação de seriedade e ponderação na
decisão, mas também porque nenhum dos partidos políticos italianos
correspondia plenamente às minhas ideias pessoais [...] Minha escolha
pelo partido republicano se deve mais a uma proximidade do que a uma
identificação ideológica com ele [...], nela tendo certa influência o
exemplo de Mario Bergamo13 [...] cuja integridade moral tornava
preferível lutar ao lado dele. 14
Republicano, então, e de esquerda, como Bergamo. Battistelli se filiou ao partido, que,
apesar de sua escassa consistência numérica15, após a chacina de novembro de 1920 e o
enfraquecimento dos socialistas, parecia ter-se tornado o único capaz de enfrentar o
fascismo montante na cidade de Bolonha, e se empenhou, junto com o colega advogado,
na defesa de perseguidos políticos pelo fascismo, particularmente dos trabalhadores da
região de Molinella.16 Por causa disso, como o próprio Bergamo, foi ameaçado e
agredido, tendo casa e escritórios destruídos.
13
Advogado em Bolonha, Bergamo adere em 1920 ao partido republicano, do qual tenta favorecer a
orientação para a esquerda. Envolvido na defesa de vários militantes perseguidos pelas esquadras
armadas de Mussolini, se torna objeto de violências por parte dos fascistas (agressões e destruição do
escritório). Eleito deputado em 1924, no ano seguinte é nomeado secretario nacional do partido, e se
muda para Roma. Em novembro de 1926 sai da Itália e se transfere para a França, onde continua sua
batalha antifascista. Em 1935, contudo, se aproximará do regime, permanecendo em Paris até o fim do
conflito, se recusando a voltar para a Itália mesmo após o fim da guerra. Cf. ALBERTAZZI, Alessandro;
ARBIZZANI, Luigi; ONOFRI, Nazario Sauro (org.). Gli Antifascisti, i partigiani e le vittime del fascismo nel
bolognese: 1919-1945, op. cit., verbete “BERGAMO, Mario”.
14
Carta de Libero Battistelli a Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, In: FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi
(org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 48-49. Também na carta de 27.4.1932 para
Rosselli, citada acima, Libero, justificando sua adesão atual a Giustizia e Libertá, recorda os motivos de
sua antiga filiação ao partido republicano: ele menciona como, apesar da maior proximidade de suas
ideias com aquelas dos socialistas do que com as dos republicanos, as atitudes covardes da maioria dos
lideres socialistas bolonheses comparada com a coragem do republicano Bergamo o fez decidir por
aquele partido. E acrescenta uma frase significativa: ”Meu posto foi então entre os republicanos, assim
como agora é entre vocês. Porque a identidade moral e de caráter é muito mais importante do que a
identidade ideológica”.
15
Battistelli lembra em um artigo, escrito no exilio do Rio de Janeiro e publicado póstumo, sobre um
atentado à vida de Mussolini, realizado em Bolonha por Anteo Zamboni em outubro de 1926, que
“republicanos em Bolonha éramos 67!”. Cf. DELLA CASA, Brunella (org.) “Libero Battistelli: ‘L’attentato
Zamboni’”. Contemporanea, Ano III, n.4, outubro de 2000, p. 679-700.
16
Pequeno centro rural da província de Bolonha, Molinella se destacara como local de intensas lutas de
camponeses contra latifundiários desde o final do século XIX e nas primeiras décadas do XX, com a
reivindicação de direitos e melhorias, sob a liderança do socialista Giuseppe Massarenti, líder de ligas
camponesas e eleito por duas vezes prefeito da cidade. A mobilização levou à obtenção de contratos de
trabalho agrícola que serviram de modelo para outros centros da região, e à criação de estruturas de
amparo ao trabalhador. As agressões fascistas, que de 1920 até 1926 atingiram muitas áreas do norte
da Itália, foram particularmente intensas contra a população e as instituições de Molinella (incêndio e
devastação de sedes de ligas camponesas, de cooperativas, bibliotecas etc...).
134
Ainda em 1921, Libero conheceu Enrica Zuccari,17 de profissão costureira, nascida em
1896 na própria Molinella, e os dois casaram com rito civil no dia 25 de abril de 1925.
Mas naquele ano, o ambiente não se apresentava mais favorável para a construção de
uma família, nem para a atividade profissional, devido às repetidas ameaças e
violências. O fascismo estava consolidando seu poder no governo do país: primeiro
ministro desde outubro de 1922, Mussolini tinha superado a crise de 1924, ligada ao
assassínio de Matteotti18, e caminhava a largos passos para a consolidação da ditadura,
de fato inaugurada com o discurso de 3 de janeiro de 1925.
No tempo de dois anos, 1925-26, as sucessivas intervenções legislativas do regime (as
leis “fascistíssimas”) foram reduzindo os espaços de liberdade na vida politica e civil do
país, e os principais membros dos partidos, assim como simples militantes socialistas,
republicanos, liberais, ou anarquistas, tiveram que abraçar a dolorosa escolha da
emigração. Muitos dos expoentes do antifascismo italiano expatriaram em direção à
França: em 1925 era a vez do católico Giuseppe Donati, do historiador Gaetano
Salvemini e dos liberais Piero Gobetti e Giovanni Amendola. No ano seguinte,
particularmente logo após o atentado de Zamboni de 31 de outubro contra o Duce e a
recrudescência da repressão que se seguiu,19 serão os próprios dirigentes dos partidos do
Aventino (os socialistas Claudio Treves e Pietro Nenni, o republicano Mario Bergamo,
entre outros) a deixar a Itália de forma repentina e, às vezes rocambolesca, como no
caso do velho líder socialista Filippo Turati, que, aos 70 anos, será ajudado por
militantes a alcançar a ilha da Córsega, território francês, fugindo da Itália a bordo de
uma barca a motor.
Na França, os emigrados políticos, ou fuorusciti, se concentraram prevalentemente na
cidade de Paris ou em regiões onde a existência de colônias italianas podia favorecer
sua inserção no território e a tentativa de reorganização de uma militância politica.20
Provavelmente, Libero Battistelli e sua esposa pensaram seriamente a uma solução deste
17
Para noticias sobre Enrica ver ACS / CPC b. 5601, f. 125895 (“Zuccari, Enrica “).
Cf. nota 51 da Primeira Parte.
19
Cf. nota 43 da Primeira Parte.
20
Sobre os primeiros passos da emigração politica italiana na França, ver sobretudo TOMBACCINI,
Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia. Milano: Mursia, 1988; DROZ, Jacques. Histoire de
l’antifascisme en Europe (1923-1939). Paris: La Découverte, 2001; GROPPO, Bruno. “Entre immigration
et exil: les refugiés politiques italiens dans La France de l’entre-deux-guerres” In: Matériaux pour
l’Histoire de notre temps, 1996, vol. 44, nº1, p, 27-35; RAPONE, Leonardo. “Emigrazione italiana e
antifascismo in esilio” In: ASEI (Archivio Storico dell’Emigrazione Italiana), 2008; FEDELE, Santi. Storia
della Concentrazione Antifascista, 1927-1934. Milano: Feltrinelli, 1976. TOBIA, Bruno. Scrivere contro.
Ortodossi ed eretici nella stampa antifascista dell’esilio, 1926-1934. Roma: Bulzoni, 1993.
18
135
tipo: afinal, a vida em Bolonha estava se tornando impossível, para quem não se
conformava em viver no silêncio e na adaptação. O passaporte de Enrica, uma cópia do
qual é conservada nos arquivos brasileiros21, mostra os percursos de amadurecimento da
decisão de expatriar do casal. Entre abril de 1925 (três meses após o discurso do Duce)
e março de 1927, Enrica e Libero saíram cinco vezes de trem do território italiano
(respectivamente em abril e agosto de 1925, fevereiro e agosto de 1926, março de
1927), saídas todas realizadas com destino a França, passando pela Suíça. O passaporte,
com efeito, foi concedido em abril de 1925 pelas autoridades italianas somente para os
dois países europeus, pelo prazo de um ano, e foi renovado em junho de 1926, com as
mesmas condições. As saídas dos dois em direção à França, realizadas com intervalos
de 5 ou 6 meses e com uma permanência fora do país que ia de poucos dias a duas ou
três semanas, sugerem uma tentativa de verificar as possibilidades da instalação da
família em território francês. Talvez em Marselha, no litoral mediterrâneo, meta de
alguns expoentes da área republicana, como Ferdinando Schiavetti e Francesco
Volterra. Ou em Annemasse, pequeno centro da Haute-Savoie, localizada a pouca
distancia da fronteira suíça e de Genebra: a região, desde tempos mais antigos, era terra
de emigração italiana, e Genebra foi asilo histórico para gerações de refugiados
políticos. Annemasse contava com a presença de muitos italianos da região de Bolonha,
e, junto com alguns centros limítrofes, seria refúgio de outros membros do partido
republicano, como Eugenio Chiesa e Cipriano Facchinetti.22
A meta final talvez fosse a própria Paris - hipótese sugerida pela constante passagem do
casal Battistelli por Vallorbe e Porrentruy, cidades fronteiriças da Suíça localizadas na
rota em direção à capital francesa – para onde, aos poucos, como vimos, os principais
expoentes dos partidos italianos se transferiram, e onde o próprio Bergamo, líder do
partido republicano, amigo e colega de Battistelli, se estabeleceu em janeiro de 1927,
após ter saído da Itália em novembro do ano anterior. De qualquer forma, essas saídas
do casal, breves, mas regulares, além de indicar a tentativa de preparar uma colocação
adequada no mundo da emigração, fazem pensar na possível existência de uma rede de
21
Processo de Naturalização de Enrica Zuccari Battistelli, IJJ6 N.123/1929, Secretaria de Estado da
Justiça e Negócios Interiores, Diretoria do Interior/ Arquivo Nacional. O processo de naturalização de
Libero, mesmo tendo acontecido na mesma época do de sua esposa, não foi localizado no acervo do
Arquivo Nacional.
22
Ver MONTELLA, Fabio. “La vera Italia é all’estero. Esuli antifascisti a Ginevra e nell’Alta Savoia”.
Diacronie. Studi di Storia Contemporanea, 29/01/2011.
URL:<http://www.studistorici.com/2011/01/29/montella_numero_5/>
136
amizades e relações da qual Libero participasse ativamente. Talvez o advogado
bolonhês tivesse-se oferecido como elemento de contato entre a Itália e alguns
ambientes dos fuorusciti, talvez ele até chegasse a participar do primeiro congresso do
PRI no exílio, que aconteceu na cidade francesa de Lyon em agosto de 1926 (naquelas
semanas ele justamente se encontrava na França).
A intenção dos Battistelli era de qualquer forma a de emigrar para a França, como o
próprio Libero confirmou na carta já citada a Berneri23: “Circunstâncias imprevistas e
um tanto ficcionais, me ofereceram – enquanto estava preparando a fuga para a França –
uma saída mais fácil e segura em direção ao Brasil”. Por que a desistência da solução
francesa e a decisão para o Brasil? Ainda a 3 de fevereiro de 1927 a polícia de Bolonha
confirmava o visto para a França, carimbado novamente no dia 12, e os Battistelli se
encaminharam para nova viagem em direção deste país em março. Mas no começo do
mês faleceu a mãe de Libero, e este fato talvez possa ter derrubado uma derradeira
resistência dele diante de uma proposta, quem sabe já existente há tempos, para emigrar
na América Latina.
Tratava-se, provavelmente, de uma oportunidade de trabalho coletiva, oferecida também
ao cunhado Andrea Zuccari, irmão de Enrica, que viajará para o Rio junto com a esposa
Clara e o casal Battistelli. Este, numa depoimento para a policia em ocasião de uma
investigação e devassa na fazenda da família em Magaratiba, em 1938, declarará ter
saído da Itália e aportado ao Brasil com um “contrato coletivo de trabalho proposto pelo
comendador Lurati”, que se dizia proprietário de uma fábrica de sedas em Niterói, mas
que mais tarde se descobriu ser “um aventureiro e um jogador”24. Isto corresponde
também à noticia fornecida pela policia italiana, segundo a qual Enrica Zuccari
emigrara para o Brasil, “para assumir junto com o marido a direção técnica de uma
firma comercial de propriedade do comendador Augusto Lurati25 no Rio de Janeiro.26
Assim, o passaporte de Enrica (e certamente também o de Libero) foi validado dia 2 de
23
Carta de Libero Battistelli a Camilllo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929. In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi
(org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 49.
24
AN / Fundo Tribunal de Segurança Nacional – C8 , Código C8.0.PCR.0190 ,ficha 237938, processo N.
471 (“ Zuccari, André”)
25
Augusto Lurati, após ter sido, desde 1921, sócio arrendatário de um Cassino-Teatro em Copacabana,
nas dependências do Hotel Copacabana Palace, desistira da empreitada e em 1924 saudava os amigos
brasileiros através do jornal, anunciando sua volta à Europa, a fim de comprar maquinários para
construir uma grande fabrica de seda em Niterói. Cf. Correio da Manhã, 12.4.1924, p.7
26
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Informe da “Prefettura” de Bolonha para o
Ministério do Interior, 24.11.1936.
137
abril pela autoridade policial com destino o Brasil, com visto concedido no sucessivo
dia 12 pelo cônsul brasileiro em Milão. Interessante, a respeito, é a data do casamento
civil dos cônjuges Zuccari, irmão e cunhada de Enrica: 17 de março de 1927, quase
estivessem regularizando uma situação em vista de uma partida imediata para o
exterior.27
3.3. Primeiros tempos no Rio de Janeiro
A viagem aconteceu, como foi mencionado acima, no vapor Principessa Mafalda,
saindo do porto de Genova no dia 15 de abril. O trajeto foi o de sempre: escala em
Barcelona, navegação ao longo do litoral africano até a escala em Dakar e depois a
travessia do Atlântico. Duas semanas de viagem e a entrada no porto do Rio dia 24 de
abril. Libero e Enrica viajaram na primeira classe, levando duas bagagens, e, ao
desembarcar, declararam Hotel Gloria como destino na Capital Federal, enquanto Clara
e Andrea Zuccari, este último se apresentando como eletricista, viajaram na segunda.
Endereço de destino para este casal foi Rua do Ouvidor, 24, fato que deixa pensar num
apoio familiar ou profissional.28 Nenhum deles, de qualquer forma, foi encaminhado
para a Ilha das Flores, ponto de trânsito obrigatório, pelo contrário, ao desembarcar no
Rio, para os 24 passageiros italianos da terceira classe, como havia tempo era previsto
pelas leis do Estado brasileiro para os imigrantes em busca de trabalho.
Não é dado saber por quanto tempo o Hotel Gloria, o endereço mais prestigioso da rede
hoteleira da cidade, permaneceu a residência de Battistelli. Em 1928 seu endereço para
a correspondência, indicado no final de uma carta para o socialista Pietro Nenni em
Paris,29 será Rua 13 de Maio, 50: o mesmo que o semanal antifascista La Difesa, desde
finais de 1926, comunicava a seus leitores e assinantes como seu ponto de referência na
Capital Federal, por ser a sede da secretaria da Lidu, a Liga Italiana dos Direitos do
Homem, da qual Battistelli estava participando. Já a partir de 1929, Libero fixou sua
27
Processo de Naturalização de Clara Riccó Zuccari, IJJ6 N.113/1930, Secretaria de Estado da Justiça e
Negócios Interiores, Diretoria do Interior. Arquivo Nacional. No Processo de Naturalização do marido,
Andrea Zuccari (também IJJ6 N.113/1930), consta também copia do passaporte deste, expedido pela
autoridade policial de Bolonha dia 10 de abril de 1927, poucos dias depois da expedição dos
documentos de Libero e sua esposa.
28
Ver Arquivo Nacional (AN), Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF), Relações de
Passageiros em Vapores (RPV), Porto do Rio de Janeiro (PRJ), Notação: BR.AN.RIO.OL.0.RPV.PRJ.21978
29
ACS / Archivio Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro,
18.7.1928.
138
residência em um sobrado da Rua Sete de Setembro, 96, onde sua esposa abriu também
uma oficina de modas e costuras, coadjuvada pela cunhada. É de se pensar que aquela
proposta inicial do comendador Lurati (fábricas de sedas) tenha durado pouco tempo,
talvez se revelando uma fraude, ou tenha de alguma forma dado origem à oficina de
moda de Enrica.
Mas qual era, ao tempo de sua chegada ao Brasil, o perfil politico de Battistelli, e que
ambiente encontrou na Capital, no âmbito da colônia italiana e do mundo do
antifascismo? Republicana, e de esquerda, fora sua formação ainda na vida politica em
Bolonha. Republicano, então, mas “sui generis”, como ele se definiu na sua primeira
carta a Berneri, acima citada:
No partido [republicano], tentei fazer com que fossem acolhidas como
ortodoxas as minhas ideias pessoais (orientação classista do partido,
frequentes e estreitos contatos com os vários segmentos socialistas, e
mais com os comunistas do que com os reformistas, etc...), às vezes
conseguindo, às vezes não. Tudo isso poderá explicar meu
republicanismo um tanto sui generis e meu escasso sentido de disciplina
estritamente partidária.30
E também na segunda, quando já se anunciava uma aproximação entre ele e o expoente
anarquista: “Entre um anarquista ‘sui generis’, com ‘fama de republicano federalista’ e
um republicano ‘sui generis’ com fama de comunista marxista, os pontos de contato não
devem faltar”.31 Como se vê, a singularidade que Battistelli atribuía à sua militância
republicana era feita tanto de conteúdos (entre outros, a defesa de uma configuração do
partido que não tivesse medo de uma escolha classista, fato que lhe fizera ganhar a fama
de ‘comunista marxista’) quanto de atitudes (dialogo aberto com o mundo socialista e
comunista, e com o próprio anarquismo).
Na carta acima mencionada a Nenni, um dos membros mais jovens do Partido Socialista
Italiano (PSI), de orientação maximalista, e que emigrara para Paris, onde o partido
reconstituiu sua secretaria e voltara a publicar o seu jornal Avanti!, Battistelli ofereceu
uma lembrança dos tempos do Aventino, quando, em Bolonha, ele e outros republicanos
agiam como trait-d’union entre reformistas e maximalistas, as duas correntes em que o
30
Carta de Libero Battistelli para Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, In FERI, Paola; DI LEMBO,
Luigi (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 49.
31
Carta de Libero Battistelli para Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 16.11.1929, In FERI, Paola; DI LEMBO,
Luigi (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 54.
139
socialismo italiano se encontrava dividido. Papel singular, devido, continua Libero, à
ausência de hostilidades preconceituosas, e também ao fato de os republicanos
possuírem, de um lado, um programa parecido como o dos reformistas e, do outro, um
“temperamento revolucionário” afim com o dos maximalistas. Assim Battistelli podia
falar de igual para igual para Nenni, ao qual recordava que ele “foi por longo tempo um
dos nossos, e [que] ainda hoje é o mais republicano entre os socialistas, assim como eu
me orgulho de ser um dos mais socialistas entre os republicanos”.32
Essas correspondências com Nenni e Berneri são dos primeiros anos do exilio brasileiro
de Battistelli, antes de uma viagem à Europa, em 1930, que terá repercussões decisivas
sobre sua orientação política. Mas desde já é percebível uma característica que o
acompanhará constantemente não só em suas contribuições teóricas para o debate no
seio do antifascismo exilado, mas também em suas atuações tanto no contexto carioca e
mais em geral brasileiro, quanto no cenário europeu de meados dos anos Trinta: uma
constante disponibilidade ao diálogo com todas as componentes do mundo do
antifascismo, uma facilidade de trânsito em setores e grupos diferentes daquele ao qual
ele pertencia, a consciência que o fundamento de uma possível vitória na luta contra o
fascismo repousava unicamente em uma real vontade e capacidade de encontro e de
trabalho comum acima das diferenças ideológicas ou programáticas. Republicanismo
sui generis, portanto, o dele, assim como mais tarde será pertencimento também sui
generis a Giustizia e Libertá, com aberturas para o mundo socialista e simpatias
alimentadas e cultivadas para o anarquismo e também para o comunismo.
Catapultado literalmente num “mundo novo”, como o Brasil deve ter-se apresentado aos
seus olhos, num Estado ainda repleto de incongruências e desigualdades, mas mesmo
assim regido pelo regime republicano que ele sonhava para a Itália (embora não pareceu
manifestar grande simpatia pelo governo Washington Luís, que encontrou em 1927,
diferentemente de como irá saudar a mudança que se anunciava com a chegada ao poder
de Vargas em 1930, como se verá mais para frente), Battistelli foi gradualmente se
inserindo na Capital Federal, em sua colônia de imigrados italianos, no ambiente do
antifascismo carioca e brasileiro. Amparado por certa tranquilidade financeira e pela
atividade de sua esposa, com a oficina de costura que em breve abriria no centro do Rio,
32
Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro, 18.7.1928. ACS / Archivio Pietro Nenni, b.
3, f. 178.
140
um atelier, onde trabalhariam, em certo momento, até 20 costureiras, teve a
possibilidade de se dedicar em tempo integral, pelo mesmo nos primeiros anos, à
discussão política, à elaboração ideológica, à luta antifascista conduzida nas páginas dos
jornais e nos locais de reunião da colônia italiana.
O mundo do antifascismo italiano no Rio de Janeiro, em meados de 1927, era o que as
paginas de La Difesa apresentam, e que já foi descrito na segunda parte deste trabalho:
um punhado de homens generosos (alguns de antiga emigração, outros recémchegados), ligados a diferentes orientações políticas, mas fundamentalmente de área
socialista, republicana ou liberal-democrática, e empenhados na difusão do semanal que
chegava de São Paulo e que encontrava muitas vezes a hostilidade de donos de bancas
de jornais partidários do Duce; homens capazes de constituir organismos de luta
antifascista e envolvidos na defesa de espaços de socialização da colônia italiana, quais
a Societá Italiana di Beneficienza, diante da pressão dos organismos consulares e da
própria embaixada a fim de que se completasse sua “fascistização”; homens, em
definitiva, animados por boas intenções, mas cuja atuação não parecia ter muita resposta
entre os italianos da Capital Federal.
Da mesma forma como, exceto contatos e alianças com alguns expoentes do mundo
politico e intelectual da cidade, o antifascismo permanecia – igualmente ao que
acontecia na França ou em outras nações que abrigavam os fuorusciti - um movimento
substancialmente italiano, por ser considerado fenômeno substancialmente italiano o
próprio fascismo. As campanhas nas quais se lançaram os exilados, deste lado como do
outro do Atlântico, e nas quais Libero também se empenhou, visavam mostrar quanto
fosse errada essa visão e leitura da realidade politica da ditadura fascista, e quanto esta
última representasse, por suas características de exemplaridade, uma ameaça à liberdade
de qualquer povo e Estado, mas a tomada de consciência das sociedades e do mundo
politico internacional, e também latino-americano, a respeito dessa ameaça haverá de
acontecer somente anos depois, quando da chegada ao poder na Alemanha do partido
nacional-socialista, e mesmo assim de forma parcial.
Battistelli chegou nesse contexto e aos poucos foi se inserindo, tecendo relacionamentos
e amizades, realizando escolhas e tomadas de posição, esclarecendo e elaborando seu
pensamento. As fontes nas quais é possível se apoiar para reconstruir seus passos nestes
anos são as correspondências trocadas com expoentes do antifascismo no exterior e os
141
artigos que ele escreveu para La Difesa, com a qual começou a colaborar a partir de
julho de 1927. São rastros que ajudam na delineação de um percurso, ou, melhor, da
“curva de um destino”, como lembra Lucien Febvre no prólogo de seu livro sobre
Martinho Lutero.33 Pois é isso que se pode fazer também com Battistelli, e os outros
protagonistas deste trabalho: tentar preencher o espaço entre uma evidência e outra, um
marco e outro, um texto e outro, uma intervenção e outra, a fim de reconstituir uma
curva, na qual é possível também identificar modulações, variações de acento e de
registro, cientes, contudo, de que há de se evitar de “apresentar situações de confusa
simultaneidade como sendo sucessivas”34, fugindo da imposição da camisa de força de
uma rígida sucessão de fases lá onde há a natural fluidez de um pensamento humano
que cresce, muda, retorna, se corrige, muitas vezes à luz de eventos e circunstâncias
externas.
Passos e acentos, de qualquer forma, que eram desde logo concentrados no objetivo
primário de sua atuação em terra de exilio: oposição ao fascismo italiano e onde quer
que se apresentasse, apoio ideal e prático a toda iniciativa virada à sua derrocada,
contribuição na elaboração do cenário futuro do país finalmente libertado da ditadura.
Os instrumentos que em 1927 estavam à disposição de Battistelli para tanto, no
ambiente do Rio de Janeiro, eram a Lega per i Diritti dell’Uomo (LIDU) e La Difesa,
dirigida naquele momento por Frola, em São Paulo. Libero participava das assembleias
da primeira, da qual chegará a ser nomeado vice-presidente, assim como é de se supor
que frequentasse, como muitos membros da associação, os ambientes da Maçonaria: a
documentação da policia italiana, baseada em relatórios e informes da embaixada do
Rio de Janeiro, o sugere.35 Pode-se supor também que ele participou da comemoração
de Matteotti, promovida pela Lidu a 10 de junho de 1927, e realizada no Salão da
Aliança dos Operários em Calçados, na Rua do Acre, 10: um artigo de La Difesa 36 fala
da divulgação do evento nas semanas anteriores, das muitas adesões (entre as quais a do
Partido Comunista, do Partido Socialista, de expoentes da Maçonaria, de várias
organizações de trabalhadores, de Mauricio de Lacerda e de Agrippino Nazareth,
redator –chefe do jornal A Vanguarda) e das falas de expoentes do mundo politico e
33
Cf. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2012, p. 11.
Ibidem, p. 243. Febvre cita aqui André Gide, e comenta: “Impressionante formulação. E quantas vezes
nós, historiadores, descuidamos da lição que ela encerra? Como se não houvesse artifício nessa
cronologia ‘estritamente objetiva’ de que tanto nos orgulhamos”.
35
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”).
36
“L’indimenticabile serata a Rio de Janeiro”. La Difesa, Ano IV, n. 170, 19.6.1927, p. 1-2.
34
142
intelectual da cidade, como Azevedo Lima, deputado eleito pelo Bloco Operário37 e o
ex-deputado Nicanor Nascimento, além do advogado Evaristo de Moraes e do próprio
Frola, chegado de São Paulo para a ocasião, e que resolveu permanecer algumas
semanas na Capital Federal para impulsionar o movimento antifascista.
Em setembro, Battistelli, junto com Scala e outros, acompanhou numa viagem a Belo
Horizonte o diretor de La Difesa, onde este proferiu algumas conferências.38 A
proximidade de Libero com Frola, que se registra desde esses primeiros tempos de sua
permanência no Brasil, pode ter tido origem em uma daquelas suas viagens rumo à
França dos anos anteriores: afinal, o expoente socialista se exilou em meados de 1925
naquele país, onde chegou a colaborar em Paris com o primeiro jornal antifascista de
certo calibre publicado no exterior, Il Corriere degli Italiani.39 Não é de se descartar a
hipótese de Libero ter conhecido Frola em uma de suas entradas em território francês,
nem a possibilidade, ainda mais sugestiva, que a eventualidade de uma transferência
para o Brasil possa ter-lhe aparecido como viável em coincidência com o convite para
dirigir La Difesa que o expoente socialista recebeu de São Paulo ainda em agosto de
1926. Talvez uma palavra, ou um apelo para uma colaboração, nesta circunstância ou
mais tarde, possam ter agido como mola propulsora para um empenho na luta
antifascista deste lado do Atlântico.
3.4. A colaboração com La Difesa
Do semanário antifascista paulistano, Battistelli foi um colaborador constante e
qualificado a partir de julho de 1927: até novembro de 1930 escreverá 51 artigos,
assinando a maioria (31) com seu nome inteiro, uma parte (17) como Libero, e alguns
(2) com as simples iniciais, além de um que, mesmo sem assinatura, é indubitavelmente
de sua autoria. Se se excetuam os vários diretores ou redatores-chefes que o periódico
teve em seus nove anos de vida, e que muitas vezes escreviam sem assinar, ninguém
37
Sobre o Bloco Operário, ver KAREPOVS, Dainis. A Classe operária vai ao Parlamento: o Bloco Operário
e Camponês do Brasil (1924-1930). São Paulo: Alameda, 2006.
38
Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de um antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico
Nuevo, 1939, p. 50.
39
Sobre a parábola de Il Corriere degli Italiani, que contribuiu à batalha do antifascismo italiano na
França sobretudo no período anterior ao surgimento da Concentrazione, e que chegou a registrar uma
notável tiragem de 10 mil exemplares diários, ver TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei Fuorusciti italiani
in Francia, op. cit., p. 36-43, e também TOBIA, Bruno. Scrivere contro. Ortodossi ed eretici nella stampa
antifascista dell’esilio, 1926-1934, op. cit., p. 13-56.
143
chegou a publicar no periódico tantas matérias como ele num equivalente espaço de
tempo. Os três anos de sua colaboração correspondem grosso modo ao período da
gestão Frola do semanário, e aos primeiros tempos da direção que o substituiu, indício
de uma maior identificação de Battistelli com a linha politica do primeiro, mas também
de seu reconhecimento do valor do instrumento como difusor dos ideais do campo
antifascista, mesmo quando se encontrava conduzido por militantes com os quais ele
não tinha imediata afinidade.
Em maio de 27, Frola podia se orgulhar, a poucos meses de distância de sua chegada ao
Brasil e à direção do periódico, de ter alavancado os assinantes (de poucas centenas para
5 mil) e a tiragem (de 1500 exemplares para 12 mil): mesmo com dados possivelmente
um pouco inflados, Battistelli encontrou o jornal nesta situação de crescimento e dele
começou a participar, inclusive com sucessivas subscrições (a primeira de muitas outras
foi de julho do mesmo ano). La Difesa conduzia sua batalha dirigindo-se principalmente
aos imigrados da colônia italiana, com matérias produzidas em sua maioria no Brasil,
mas também com documentos ou artigos provenientes dos círculos do antifascismo na
Europa. Um olho era para a vida na Itália debaixo da ditadura, outro para a situação das
comunidades italianas em terra brasileira.
Durante um ano, de julho de 27 a junho de 28, Battistelli assinou seus artigos (17)
simplesmente como “Libero”. Os temas eram variados, da situação internacional à
ingerência de Mussolini nas questões internas brasileiras, dos apoios monárquicos e
clericais ao regime à situação dos antifascistas exilados. Suas observações registraram
problemas, denunciaram conivências, tentaram abrir perspectivas para o futuro da Itália
após a derrota do fascismo. Deve-se registrar que nesse intervalo de tempo alguns fatos
marcaram o cenário internacional e também o brasileiro: enquanto na Itália o regime
endurecia a repressão e em Paris a Concentrazione d’Azione Antifascista ia articulando
sua ação de denuncia e luta, em meio a muitas dificuldades, em agosto de 27 o governo
de Washington Luis aprovou a que foi apelidada de “Lei celerada”, que atingia
organizações e imprensa de esquerda, fechando clubes militares, sindicatos e colocando
o partido comunista na ilegalidade. Um regime republicano que silenciava as oposições
não devia agradar muito quem, como Battistelli, lutara pela liberdade diante de qualquer
opressão. De todo modo, sua atenção nas colunas do semanário antifascista tendeu a se
voltar principalmente para o caso italiano e seus reflexos na colônia dos compatriotas no
Brasil.
144
O primeiro artigo dele40 se referia aos vultosos empréstimos recentemente concedidos
ao Estado fascista por governos democráticos ocidentais, como EUA e Reino Unido:
Libero declarava que tais empréstimos, com seu ônus, não poderiam de forma alguma
gravar nas costas das formações politicas que haveriam de substituir o regime do Duce.
O argumento era o mesmo apresentado por grande parte do antifascismo no exilio:
Mussolini não representava a Itália, e estes empréstimos não eram dirigidos ao governo
do país e sim ao fascismo como tal, não empenhando, portanto, de forma alguma os
cofres nacionais. Battistelli partilhava da convicção de que havia uma outra Itália,
autêntica, digna deste nome, e que se exprimia através da voz dos exilados em nome da
liberdade: uma outra Itália, que lutava contra a “anti-Itália”, representada pelo fascismo
(devolvendo para ele o epíteto com o qual o regime de Mussolini alcunhara o
fuoruscitismo). Uma outra Itália que um dia chegaria ao poder, e aquele dia havia de ser
preparado com diligência e seriedade. Disso Libero tinha e sempre terá plena convicção,
e em muitos escritos irá colocando o questionamento de como seria ou deveria ser essa
Itália do futuro.
O problema era que boa parte da emigração politica parecia confiar, naqueles anos de
1927-28, num próximo e iminente fim do regime fascista, por fraquezas internas, por
conflitos intestinos, por um colapso econômico inevitável ou até pela própria ação de
propaganda dos exiliados. Poucos tinham a coragem de se confrontar com uma
hipótese, que alguns, como Salvemini num artigo de maio de 1927 em uma revista
norte-americana, tentavam avançar: a de que Mussolini teria vida longa se ele continuar
desfrutando do apoio de boa parte da opinião pública internacional, como estava
acontecendo, e que seria ilusão pensar num levantamento popular no país até quando o
ditador pudesse contar com a ajuda econômica de países como Inglaterra e Estados
Unidos. Isto podia significar, continuava Salvemini, que o fascismo iria cair somente
por um incidente externo (uma guerra, ou uma tomada de posição explicita e coletiva da
comunidade internacional), e que a chave para a solução do problema italiano estava
fora da Itália.41
Os antifascistas italianos no exílio terão que se questionar longamente diante dessas
afirmações, dessas possibilidades e impossibilidades: muitas vezes sua ação nos anos
40
“La necessaria diffida”. La Difesa, Ano IV, n. 176, 31.7.1927, p. 2.
Cf. “Mussolini, il papa e il re” [maio de 1927], In Opere di G. Salvemini, VI, Scritti sul fascismo, II,
Milano: Feltrinelli, 1966, p. 74-285, apud RAPONE, Leonardo. “Antifascismo, guerra, nazione”. In DE
FELICE, Franco (org.). Antifascismi e Resistenze. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1997, p. 267-289.
41
145
futuros será marcada pela consciência de uma impotência em derrubar a ditadura, de
uma incapacidade radical de sublevar uma nação transformada, de um lado, em regime
de polícia e cárcere, e, do outro, em consenso organizado e controlado. E boa parte das
dificuldades do antifascismo, acima das divisões internas e das incompreensões
reciprocas sobre os métodos de lutas ou os programas futuros, nasceu exatamente deste
profundo sentimento de impotência, sobretudo a partir do começo da década de 1930,
quando, de uma parte, Mussolini e o regime pareciam gozar de sua mais alta
popularidade e muitos governos ocidentais, incluindo a própria França, não escondiam
simpatia ou vontade de colaboração com o fascismo, e, da outra, os partidos irmãos
(socialdemocratas, republicanos, incluindo os conselhos e organismos internacionais
por eles formados) continuavam pouco atentos ou solidários com a causa do
antifascismo.42
O que fazer diante de uma situação como essa? Battistelli advertia toda a fragilidade da
postura do antifascismo dentro desse contexto, a ponto de descrever a luta do
movimento com tintas um tanto pessimistas. “Pessimismo” foi, com efeito, o titulo de
seu segundo artigo,43 e, embora nele se referisse, criticando-a, à postura amarga e
desiludida de Arturo Labriola, politico italiano de área socialista emigrado para a
França, sua conclusão era que a situação não podia não suscitar esse sentimento. Mesmo
assim, Libero propunha de fazer desse pessimismo a “premissa heroica de um dever a
ser cumprido a qualquer custa”, prosseguindo: “Nós continuamos a luta com todos os
meios, sem possibilidade de trégua (...) até o final”, sem ilusões nas “possibilidades
revolucionárias do proletariado italiano”, nem “na autônoma desagregação do fascismo
ou nas inelutáveis leis econômicas do regime capitalista”.
Nos meses a seguir, as intervenções de Battistelli se abriram a registros diferentes. Em
muitas delas é evidente sua atenta observação dos acontecimentos internacionais, da
viagem à Espanha do subsecretario do Ministério fascista das Corporações à disputa de
fronteiras entre Itália e Áustria, ou ao atentado contra o Rei Vitor Emanuel III em
42
Sobre esta problemática, ver as páginas iluminantes de Rapone e de De Bernardi, em muita de sua
produção. Cfr, por exemplo, DE BERNARDI, Alberto; RAPINI, Andrea (org.), Discorso sull’Antifascismo.
Milano Bruno Mondadori, 2007, p. 142: “Até a guerra civil espanhola, o antifascismo permanece [...]
sem a força, nem depois da chegada ao poder de Hitler, de impor a alternativa fascismo versus
antifascismo como central, seja na vida interna dos Estados, seja no contexto das relações internacionais
entre os Estrados.”. Ver também RAPONE, Leonardo. “Antifascismo, guerra, nazione”. In DE FELICE,
Franco (org.). Antifascismi e Resistenze, op. cit.
43
“Pessimismo”. La Difesa, Ano IV, n. 180, 28.8.1927, p. 2.
146
Milão, ou ainda à vitória socialdemocrata nas eleições alemãs. Os artigos, que, a partir
de julho de 1928, começaram a receber a assinatura “Libero Battistelli” (por um total de
4 em 1928 e 20 no ano seguinte), nunca perdiam a oportunidade de criticar a postura da
Itália fascista e as pretensões imperialistas de Mussolini, como também a posição
ambígua da casa de Saboia diante do regime. Dois deles, inclusive, chegaram a serem
publicados na primeira página (um dos quais no lugar do editorial, normalmente escrito
pelo diretor): indício de certo prestígio alcançado pelo autor.44 Outra matéria de
Battistelli, crítica da concepção destorcida que o fascismo tinha da “latinidade”, oferecia
notações interessantes a respeito das
“Américas, com suas jovens Repúblicas do Atlântico e do Pacífico,
cheias do vigor produzido por uma vida libre em territórios ricos e
vastos, orgulhosas de seus progressos e mais ainda de sua
independência, acolhedoras de quantos ainda chegam a elas das velhas
pátrias europeias em busca de trabalho e de liberdade”.45
Desse mesmo espirito acolhedor é que Battistelli estava usufruindo, e a notação acima
parece matizar um pouco a tristeza das afirmações de uma semana anterior, no artigo já
citado, no qual ele falava de “indiferença das coisas, não hostis, mas estranhas”, nessa
nova condição que impedia “voltar atrás, pois todas as pontes tinham sido por nós
voluntariamente destruídas”.46
De particular importância, pelo assunto tratado, são alguns artigos que analisam a
situação internacional. O primeiro é um texto de janeiro de 1929.47 Seu titulo aludia à
possibilidade que o fascismo, em virtude de uma forma de contágio, pudesse se estender
com facilidade a outras nações, além da Itália. Como acenado acima, esta eventualidade
parecia extremamente remota aos expoentes políticos das democracias europeias, tanto
para os governantes mais conservadores quanto para os próprios lideres das oposições,
incluindo boa parte dos socialistas europeus. O exemplo, lembrado no primeiro
capitulo, da intervenção do próprio presidente da IOS, o belga Emile Vandervelde,
abrindo o congresso da entidade poucos meses antes, é bastante ilustrativo dessa análise
da situação politica internacional e da convicção da escassa periculosidade do fenômeno
44
“Sparafucile”. La Difesa, Ano V, n. 209, 18.3.1928, p. 1 e “Possibilitá”. La Difesa, Ano V, n. 214,
22.4.1928, p. 1.
45
“Latinitá”. La Difesa, Ano IV, n. 195, 11.12.1927, p.3.
46
“Pazienza”. La Difesa, op. cit.
47
“Il contagio”. La Difesa, Ano VI, n. 245, 27.1.1929, p.2.
147
fascista para países de democracia avançada. Battistelli indicava aqui exatamente o
contrário: o rei de Sérvios, Croatas e Eslovenos, Alexandre, acabava de implantar um
regime ditatorial em seus domínios, e outros países (Bulgária, Hungria, Espanha) já se
encontravam submetidos a análogos sistemas políticos, sinal de um contágio em
progressiva extensão. É verdade – argumentava Libero - que o mal agride antes os
organismos mais fracos, mas em seguida a epidemia pode se estender também aos mais
fortes, pois
“não há diferença de essência entre Franceses e Búlgaros, Anglo-saxões
e Italianos, entre Alemães e Sérvios [...] mas uma simples diferença [...]
de situação histórica acidental [...] A peste fascista já invadiu meia
Europa. À Europa ainda sadia e à florente América cabe se defender do
contágio”.48
Um perigo, então, para todos. O fascismo como proposta politica possível para qualquer
povo e realidade social, a qualquer latitude. Nisso, sua análise do fenômeno autoritário
diferia
daquela
apresentada
por
Vandervelde,
que
julgava
impossível
sua
implementação em países marcados por “cavalos a vapor” e “parlamentos”: a Alemanha
aos pés de Hitler, quatro anos depois, será a clamorosa confirmação da hipótese
levantada por Battistelli. E um contágio, pode-se deduzir por sua alusão à América, do
qual nem os países do novo continente podiam se considerar imunes, mesmo com o
Atlântico no meio. A lição contida nessa advertência mostrará seu valor também no
Brasil em 1933, quando começará a mobilização antifascista também no âmbito das
esquerdas brasileiras, impulsionada pelo despontar do integralismo.
Battistelli apresentou, meses depois, considerações análogas também num artigo para Il
Pungolo (L’Aguillon), revista quinzenal da emigração politica italiana publicada em
Paris. Como se verá mais a frente, Libero dialogava desde sua chegada ao Brasil com
vários instrumentos da emigração antifascista, recebendo e difundindo exemplares da
Europa e colaborando com alguns deles. O artigo, de julho de 1929,49 partia de uma
constatação:
“A importância internacional do fenômeno [do fascismo], que, embora
tipicamente italiano, é aclimatável (com formas e intensidades
diferentes) também fora da Itália; [...] aclimatou-se de fato na Espanha,
Portugal, Hungria, Bulgária, Lituânia, Albânia. Fica latente na
Romênia, Jugoslávia, Polônia. Pode surgir e tornar-se perigoso na
48
Ibidem.
“Internazionale repubblicana o alleanza contro le dittature?”. Il Pungolo (L’Aguillon), Ano I, nn. 17-18,
1-15.7.1929, p. 140-142.
49
148
Grécia, nos Estados do Báltico, na Áustria e talvez na própria
Alemanha”.50
E contra essa difusão de ditaduras, Battistelli chegava a propor uma aliança antiditatorial, de cunho republicano, compreendendo, junto com os antifascistas italianos,
todos os opositores das ditaduras. E citava o exemplo do Brasil, onde estava sendo
construída uma aliança entre o antifascismo italiano e os exilados portugueses. Após
uma tentativa de indicar meios e instrumentos de luta, objetivos e possíveis estratégias,
o artigo se encerrava afirmando que a aliança contra as ditaduras “seria o núcleo
verdadeiro e profundo dos futuros Estados Unidos da Europa [...] índice de uma
consciência europeia com bases principalmente morais”.51
Essa preocupação com o ideal de unidade politica (e moral) do Velho Continente
apareceu com força em outro artigo de Battistelli em La Difesa, no mês de setembro de
1929. Em “L’unione europea”,52 ele comentava a proposta do Primeiro Ministro francês
Aristide Briand de constituir uma união aduaneira entre os Estados europeus,
declarando-se favorável, desde que fosse na linha indicada por Giuseppe Mazzini, um
dos principais expoentes do Risorgimento italiano do século XIX, republicano como
Battistelli e inspirador de muitas ideias politicas deste. Para Mazzini, a Europa unida (os
“Estados Unidos da Europa”) era um fim, um ideal que podia ser perseguido e realizado
somente por Estados politicamente homogêneos, quando cada um deles já tivesse
conseguido sua liberdade politica interna. A identidade dos ordenamentos internos seria
elemento primordial, conditio sine qua non da unidade: homogêneos são os Estados da
Federação Norte Americana, brasileira ou mexicana, homogêneos são também os
cantões suíços assim como as republicas socialistas soviéticas. Mas, completava
Battistelli, se a união da Europa for não o fim e sim um simples meio, para apaziguar os
conflitos no continente, quase um estratagema para dar legitimidade a governos
ditatoriais, como o de Mussolini, a proposta havia de ser recusada e combatida. De
união aduaneira a forma de garantia do statu quo territorial, de facilitação de comércios
a manutenção e consagração de relações internacionais e de governos nacionais, o passo
seria muito breve. E o fascismo italiano conseguiria uma legitimação inaceitável.
Portanto, concluindo o artigo, Libero propunha
50
Ibidem.
Ibidem.
52
“L’unione europea”. La Difesa, Ano VI, n. 279, 22.9.1929, p. 2.
51
149
“oposição decidida [ao plano Briand]. Protesto com todos os poucos
meios à nossa disposição. Denúncia perante toda a opinião pública,
democrática e socialista internacional, da fatal esterilidade, da fatal
transformação em sentido conservador e reacionário que a entrada das
ditaduras acarretaria para a entidade.”53
A proposta de Briand, lançada oficialmente no mesmo mês de setembro de 1929 num
discurso na Liga das Nações, acabou não vingando, devido, de um lado, à morte
repentina, um mês depois, de seu principal aliado, o Ministro das Relações Exteriores
da Alemanha, Stresemann, e, do outro, ao fim do seu gabinete em novembro. O mundo,
até o mundo econômico, de qualquer forma, já não era mais o mesmo: em outubro, a
queda da Bolsa de Nova Iorque abrira cenários de crise geral também para as economias
europeias, impondo escolhas e estratégias diferentes.
Libero retomará três anos depois o tema dos Estados Unidos da Europa em seu primeiro
artigo para os Quaderni di Giustizia e Libertá54: a discussão sobre a unidade europeia
circulava amplamente nas fileiras do jovem movimento antifascista e Battistelli
participava do debate com sua intervenção. Esta contribuição de 1932 e as dos anos a
seguir serão analisadas mais para frente, mas aqui cabe o registro da insistência de
Libero, no artigo, sobre a importância da homogeneidade como condição tanto da paz
na Europa quanto da união politica do continente: uma homogeneidade, porém, cuja
essência não pode ser a raça, a língua ou a religião, e sim o regime politico, isto é, os
fundamentos políticos e sociais dos Estados. A convicção de Battistelli a respeito da
impossibilidade de um diálogo e de uma construção comum europeia entre governos
democráticos e ditaduras acompanhou todos os anos de sua militância e seus
pronunciamentos públicos na imprensa antifascista: dialogar com Mussolini, e mais
tarde com Hitler, na tentativa de garantir uma situação de tranquilidade nas relações
internacionais e talvez no intuito de moderar suas manifestações mais radicais nunca
poderia ser o caminho da paz e da harmonia na Europa, pois, nos Estados regidos por
ditadores, faltaria o fundamento do projeto, isto é, a liberdade e os princípios básicos da
democracia.
53
54
Ibidem.
“Disarmo e Stati Uniti d’Europa”. Quaderni di Giustizia e Libertá, nº 4, setembro 1932, p. 29-37.
150
Em dezembro de 1929, uma terceira intervenção de Libero55, que o mostra observador
atento dos fatos internacionais, apareceu no periódico antifascista paulistano: nela, se
criticava a forma absoluta e indiscutível que tomara o princípio de ‘não intervenção’ dos
Estados na vida política de outros Estados. O princípio, argumentava Libero em seu
escrito, se teve uma sua função importante durante algumas décadas do século XIX,
quando garantiu o liberalismo politico e sua afirmação em vários países, agora
ameaçava transformar-se em tabu, em pura declaração teórica – por ter sido um
princípio frequentemente violado -, mas que virava álibi para não agir no plano
internacional quando reafirmado como regra por “liberais, democráticos e socialistas
que estão no poder na França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, e que seriam, se
quisessem, os árbitros da situação mundial”56. Um princípio em nome do qual nenhuma
democracia liberal se permitia interferir com o percurso de Estados ditatoriais e
sufocadores da liberdade. Um princípio que, em sua reafirmação naquele momento, se
transformava em indiferença e desinteresse politico. Mais um grito de alerta que
Battistelli lançava, mais um protesto contra o imobilismo de países com uma longa
tradição democrática diante do estabelecimento do fascismo no mundo.
Essas contribuições de Battistelli, assim como outras, revelavam uma capacidade de
observação da situação internacional e de reflexão sobre a mesma, fundadas em leituras
e estudos. As frequentes referências a eventos da história politica, sobretudo, mas não
exclusivamente, europeia, demonstravam um profundo conhecimento das dinâmicas
internas de regimes e Estados do passado e uma surpreendente capacidade de
elaboração teórica. Homem de amplos estudos, de longas reflexões, compromissado
com a bandeira do antifascismo e que tentava transformar suas intuições em
instrumentos de luta, embora limitados como podiam sê-lo revistas e jornais: isto era
Battistelli naqueles primeiros anos de exilio carioca. Esta era a sua principal forma de
participar da batalha, sem dúvida experimentando toda a precariedade de uma condição
que corria o risco de deixar prevalecer a esfera teórica sobre a ação prática.
Há, contudo, uma serie de artigos que Libero escreveu periodicamente para La Difesa
com um registro completamente diferente, marcado por um tom mais leve e irónico. Em
dezembro de 1927 aparecia uma matéria57 na qual Battistelli anunciava ter recebido de
55
“Il tabú del ‘non intervento’”. La Difesa, Ano VI, n. 291, 29.12.1929, p. 1-2
Ibidem.
57
“Plebiscito?”. La Difesa, ano IV, n. 197, 25.12.1927, p. 2
56
151
Roma uma carta de um amigo sacerdote, que deixara o ministério, e que lhe relatava a
respeito das intenções secretas do Papa de decretar um plebiscito para que o povo da
capital, dos territórios do antigo Estado Pontifício ou até da península toda decidisse se
continuar a obedecer ao Rei da Itália e a Mussolini ou se escolhesse aceitar a dominação
da Santa Sé. Uma votação para reestabelecer o antigo poder temporal da Igreja,
derrubando monarquia e fascismo, eventualidade que o autor da carta se augurava não
se realizasse, porque ele mesmo cairia nas mãos de seus maiores inimigos, sendo um
ex-sacerdote: para tanto, ele chegava a pedir ajuda ao amigo no Brasil para que
mobilizasse Maçonaria, imprensa, e os próprios exilados antifascistas a fim de
denunciar a manobra clerical e impedir a tentativa. O personagem, evidente fruto da
fantasia de Battistelli, serviu ao autor para apresentar sua critica mordaz às autoridades
da Igreja católica e ao próprio regime fascista, que naquela época estavam se
aproximando em um dialogo diplomático que se concluirá em fevereiro de 1929 com o
Tratado de Latrão, acordo que regulamentava as relações entre o governo italiano e a
Santa Sé. O anticlericalismo, a negação de valor a tudo que na religião é estrutura
exterior, ostentação e compromisso com o poder, a denúncia da cumplicidade de
homens e setores da igreja com a injustiça social e a ditadura58 caracterizaram
constantemente a atitude política e humana de Battistelli, que se declarava abertamente
não católico e agnóstico, embora, como se verá, certas suas colocações e escolhas
estivessem curiosamente próximas do autêntico espírito evangélico.
Durante o ano de 1928, Battistelli pareceu ter-se esquecido de seu correspondente
romano, até que em março de 29, um mês após a assinatura do tratado, lhe concedeu
novamente a palavra. E assim nasceram doze artigos, quase um por mês e tendo todos
como título “Ultime da Roma” (“Últimas [notícias] de Roma”)59, nos quais, com o
mesmo tom irônico, o autor tornava seu personagem protagonista de tramas secretas,
ora a favor, ora contra o regime de Mussolini, denunciando nas entrelinhas
cumplicidades e conivências entre parte do mundo católico e o fascismo. A última
aparição do ex-padre nas colunas de La Difesa ocorreu em fevereiro de 1930, quando
58
Cf. também “Un Santo”, La Difesa, ano IV, n.186, 9.10.1927, p. 3 (onde Battistelli enaltece a postura
do bispo de Madri, crítico da atitude anticonstitucional do rei da Espanha), “A Proposito di um
gagliardetto”, La Difesa, ano V , n. 206 [207], 4.3.1928, p. 2 (onde Battistelli ataca o apoio ao fascismo da
parte da igreja, como no caso das subscrições de eclesiásticos e instituições religiosas para a compra de
uma flamula para o ‘fascio’ de Botucatu)
59
Os artigos apareceram em La Difesa, nos nn. 253, 259,265, 274, 276, 278, 281, 285, 286, 287, 288 e
297.
152
ele anunciava sua próxima partida de Roma com destino o Brasil, onde esperava
desfrutar da paz e da sorte que não estava mais encontrando na Itália (e a viagem seria
feita em companhia de Farinacci, ex-secretário do Pnf e notório expoente da “linha
dura” do regime, mas recentemente caído em desgraça perante o Duce!).
Em várias de suas intervenções em La Difesa, Battistelli não se furtava também de
fustigar atitudes acovardadas de italianos emigrados para o Brasil, que motivavam seu
apoio ao fascismo com razões esdrúxulas, as quais soavam mais como desculpas
esfarrapadas para não se empenharem na causa do antifascismo.60 Libero não deixava,
com efeito, de participar da vida da colônia italiana e de acompanhar os caminhos dos
organismos associativos de seus compatriotas no Rio de Janeiro, de um lado, se
envolvendo com os agrupamentos mais diretamente ligados ao empenho antifascista,
como a Lega per i Diritti dell’Uomo, e, do outro, participando de momentos
importantes das sociedades mais tradicionais da colônia.
3.5. No mundo associativo carioca
Uma entidade que se destacava naqueles anos no panorama associativo do Rio de
Janeiro era a Societá Italiana di Beneficienza e Mutuo Soccorso. Organismo tradicional
de apoio e de promoção em favor da colônia italiana da Capital Federal, nos moldes de
agrupamentos análogos presentes em outras cidades do Brasil,61 a partir de 1927 sua
ação foi objeto de várias tentativas de controle por parte do consulado e da embaixada
italiana. Em ocasião de algumas assembleias, os sócios abertamente partidários do
fascismo buscaram substituir o grupo dirigente com outro, mais alinhado com
iniciativas e propostas oriundas do regime de Mussolini, mas encontraram a resistência
da componente antifascista. A tentativa de setembro de 1928 é descrita pelo
correspondente carioca de La Difesa, num artigo62 que relata as manobras das
autoridades consulares para alterar estatutos e mecanismos de eleição do conselho da
sociedade e conseguir um controle praticamente direto da mesma, e que destaca o papel
do “Dr. Battistelli” que, com sua intervenção, conseguiu impedir a indébita intromissão.
60
Cf. “Dialoghetti... immorali”. La Difesa, ano V, n. 218, 20.5.1928, 5.
Algumas breves notícias sobre sua origem no Rio de Janeiro se encontram em VANNI, Julio Cezar.
Italianos no Rio de Janeiro. Niterói: Editora Comunitá, 2000, p. 85-87.
62
Cf. ”Bernardo Attolico vuole ingoiare il patrimonio della Societá di Beneficenza di Rio”. La Difesa, ano
V , n.236, 23.9.1928, p. 3.
61
153
Um mês depois, segundo relata A Manhã de 2 de outubro63, outra assembleia e outra
tentativa do grupo pro-fascio. Na ocasião, um dos dirigentes, o advogado Antonio
Corrado Limongi, teve um papel de liderança na defesa da entidade e de seus
regulamentos. O controle da Beneficienza significava também a possibilidade de dispor
dos cofres da sociedade, e sobre isso alertava Battistelli num artigo em La Difesa,64
sugerindo a hipótese que os organismos consulares estivessem querendo se servir do
dinheiro da sociedade (cerca de seiscentos contos) para completar o financiamento da
futura Casa da Itália, destinada a hospedar estruturas diplomáticas, associações e
organismos culturais ligados ao consulado.65
A tentativa de controle se repetiu em fevereiro de 1929, quando numa assembleia66 a
componente pro-fascio pediu que o próprio cônsul fosse declarado sócio de honra.
Seguiram-se protestos da parte antifascista, tumultos e o ferimento de alguns sócios,
entre os quais Adriano Zuccari, cunhado de Libero, sem dúvida também presente na
reunião. Finalmente, um mês depois, aconteceu o que o consulado e seus partidários
esperavam: numa votação que se prolongou propositalmente até altas horas da noite,
obrigando vários sócios a voltar para casa sem poder manifestar sua opção, e que
ocorreu num clima de ilegalidade e aberta fraude, o conselho que saiu das urnas acabou
sendo dominado por uma maioria claramente fascista ou simpatizante. Todos os
antifascistas, segundo relata La Difesa,67 diante das intimidações e das evidentes
irregularidades do pleito, tinham abandonado por protesto a reunião antes do escrutínio
final, anunciando recurso na justiça, mas isto não impediu que a presidência
confirmasse o resultado. O Correio da Manhã 68 anunciava o êxito da votação: num total
de 911 sócios presentes e 784 votantes, a lista apoiada pelo consulado conquistara as 18
cadeiras da maioria do conselho (com destaque, entre os conselheiros, para o arquiteto
63
Cf. A Manhã, 2.10.1929.
“L’Assalto alla Beneficienza”. La Difesa, ano VI, n.246, 3.2.1929, 3.
65
Uma carta do presidente da seção carioca da Societá Dante Alighieri, responsável pela escola italiana,
comendador Erminio Vella, comunicava aos organismos responsáveis em Roma que o presidente
brasileiro Washington Luís prometera ao embaixador italiano Attolico a doação de um terreno central
para a futura Casa da Itália, para a construção da qual concorreria, entre outros, o patrimônio da Societá
Italiana di Beneficenza, além do próprio edifício onde ela tinha sua sede, que seria vendido. Cf. Arquivo
da Societá Dante Alighieri em Roma, Carta do presidente Vella para direção da Societá Dante Alighieri
em Roma, Rio de Janeiro, 4.9.1929.
66
Cf. “Rio de Janeiro. Gesta fasciste alla Beneficienza”. La Difesa, ano VI, n.247, 10.2.1929, p. 3.
67
“Rio de Janeiro. Gesta fasciste alla Beneficienza”. La Difesa, ano VI, n.252, 17.3.1929, p. 3.
68
Cf. Correio da Manhã, 17.3.1929, p. 11. Cerca de 2/3 dos sócios votaram nos membros da lista profascio, enquanto os candidatos da lista antifascista receberam aproximadamente 1/3 dos votos.
64
154
Antonio Jannuzzi, que trabalhara na abertura da Avenida Central e na construção de
vários prédios da mesma), deixando para a lista de oposição as 7 vagas destinadas à
minoria. Nesta, havia nomes de conhecidos antifascistas como Giovanni Infante,
Salvatore De Rosa, Anselmo Garritano, e o próprio Limongi.
A longa queda de braço para o controle da Beneficienza revela a existência, no âmbito
da colônia italiana do Rio, ao menos na parte dela organizada em torno de associações,
de amplos setores que apoiavam o fascismo e seus representantes oficiais, seja do
partido, como da diplomacia. E também a presença de um grupo de oposição
antifascista, embora, por várias razões, menos numeroso, mas não menos combativo. A
tentativa de influência do consulado nos organismos associativos da comunidade
italiana aconteceu na Capital Federal nos moldes de ações similares que se registraram
em varias cidades brasileiras, começando por São Paulo, onde a atuação neste sentido
do cônsul local, Mazzolini, foi exemplar e particularmente insistente, naqueles mesmos
anos. Para as autoridades diplomáticas, representantes no exterior da Itália governada
pelo fascismo e guiada pelo Duce, conseguir controlar as decisões das mais importantes
entidades da colônia significava poder dar visibilidade ao discurso fascista, a sua
ideologia e projeto politico e cultural, e, ao mesmo tempo, eliminar vozes dissonantes,
sufocar as oposições e restringir a possibilidade de denúncia e de propaganda do
antifascismo exilado.69 Assim, também na Capital Federal, cônsules e embaixadores, se
dedicaram à construção de um consenso ao fascismo através da conquista do mundo
associativo da colônia, destacando-se nessa ação o embaixador Bernardo Attolico,
titular da sede diplomática de 1927 a 1930. Difícil é avaliar os resultados em termos
quantitativos. Pode-se aqui registrar um simples dado, sobre os inscritos ao fascio do
Rio de Janeiro em 1932: seu número somaria um total de 1.100 pessoas.70
Quanto à presença antifascista no Rio, já se analisaram as primeiras formas de
organização, desde o ano de 1924, e a ação de difusão na cidade do semanário La
Difesa, assim como a atuação de alguns expoentes deste grupo. O principal ponto de
agregação, como se viu, era representado pela Lega per i Diritti dell’Uomo, mas em
breve surgiram outras denominações e siglas de oposição ao fascismo, particularmente
69
Para uma análise mais completa e detalhada da ação da diplomacia italiana no Brasil durante o
período fascista ver BERTONHA, João Fabio. O Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre:
Edipucrs, 2001. E também TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana
no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989, p. 301-346.
70
Cf. RUBBIANI, F.. Almanacco degli Italiani del Brasile pel 1932. São Paulo, 1932. Apud TRENTO, Angelo.
Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit., p. 312.
155
nos últimos anos da década de 1920. No âmbito da Lidu, Battistelli foi gradualmente
conquistando espaço e uma posição de liderança: em outubro de 1928, foi ele a
representar a organização quando da chegada ao Rio do socialista Emil Vandervelde,71 e
em fevereiro do ano seguinte convidava, em nome da entidade, todos os membros dela e
os italianos livres que fossem sócios da Beneficienza a participar da assembleia da
mesma.72 Um relatório do consulado italiano do Rio de Janeiro sobre “as associações
subversivas antifascistas do Rio de Janeiro”, de junho de 1929,73 apresentava Battistelli
como presidente da Lidu, tendo Giovanni Scala como vice, além de qualificá-lo também
como membro venerável da Fratellanza Italiana, loja maçônica da cidade.
Sobre a Lidu, não existe muita documentão a respeito de sua atuação no Rio de Janeiro,
mas é possível imaginar, na base também das raras informações dadas pelo jornal La
Difesa, que sua obra se desenvolvesse no campo da denuncia pública do regime de
Mussolini (através de eventos como a comemoração anual de Matteotti, ou a celebração
do 1º de maio) e numa atividade de apoio a refugiados, na esteira da ação da mesma
organização, bem mais consistente, contudo, em terra de França. Em julho de 1928, por
exemplo, a Lidu de Rio de Janeiro e o comitê da Concentrazione Antifascista criado na
Capital Federal enviaram ao embaixador mexicano no Brasil um telegrama no qual
manifestavam seus sentimentos de tristeza pelo assassinato do general Obregon,
enaltecendo sua ação como “o Libertador do Mexico de uma tirania que lembrava
aquela que pesa sobre o povo italiano”.74
O que aparece a partir do cruzamento das comunicações das autoridades diplomáticas
italianas no Rio com as notícias veiculadas pelos jornais, tanto La Difesa como a
própria imprensa carioca, contudo, é a intensa movimentação da componente
antifascista da colônia italiana, entre 1928 e 1929. Houve manutenção de organizações,
71
Cfr. Diario Carioca, 21.10.1928, p.3 e A Manhã, 21.10.1928, p. 2. O politico belga protagonizara três
anos antes um episódio que o antifascismo italiano celebrou longamente: durante a Conferência de
Locarno (Suíça), em outubro de 1925, realizada entre as principais potências europeias para discutir os
problemas postos pelas fronteiras ocidentais da Alemanha estabelecidas pelo tratado de Versalhes, ele,
à época Ministro das Relações Exteriores de seu país, recusou apertar a mão de Mussolini, alegando
essa estar ainda suja do sangue de Matteotti, o socialista italiano assassinado pelo regime fascista no
ano anterior. A acolhida dos antifascistas italianos (além de Battistelli, estava representada também a
Liga Antifascista por seu presidente Francesco Itria) a Vandervelde, no Rio para proferir uma conferencia
literária, queria testemunhar o apreço por seu gesto corajoso.
72
Cf. Diario Carioca, 3.2.1929, p. 2.
73
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso
N. 35434/3052, 25.6.1929.
74
Cf. “Gli antifascisti e gli avvenimenti del Messico”. La Difesa, ano V, n. 228, 29.7.1928, p. 2
156
como a Lidu, e criação de novas, como Itália Libera, do qual Francesco Itria seria
membro da comissão executiva, ou a Lega Antifascista, com o mesmo Itria como
presidente,75 sendo Libero um dos membros da Comissão Executiva, segundo um
“telespresso” da embaixada do Rio de maio de 1929.76 Com efeito, segundo relatos da
imprensa, as duas associações nasceram no espaço de poucos meses: em setembro de
1928 foi fundada a Lega Antifascista77, e em março do ano seguinte foi a vez de Itália
Libera78: ambas declaravam querer somar forças na luta contra o fascismo,
reconhecendo o papel da Lidu como órgão de ligação com as organizações antifascistas
internacionais, e afirmando seu não envolvimento com a politica local.
O antifascismo, então, não ficava parado, nem calado. Apesar da derrota no caso da
Beneficienza Italiana, ou até por causa dela, nasciam organizações no âmbito da colônia
italiana, com o objetivo de mostrar aos compatriotas o caráter liberticida do fascismo e
do governo de Mussolini. Lidu, comitê da Concentrazione Antifascista, Itália Libera,
Lega Antifascista... Cada uma com um nome e em parte um programa diferente.
Um artigo em La Difesa,79 assinado L.B. (iniciais de Battistelli), registrava uma
significativa manifestação desta multiplicidade, referindo de uma reunião antifascista,
dia 23 de março de 1929, na Capital Federal, promovida pela Federação Sindical
Regional do Rio de Janeiro como resposta ao convite do Comitê Internacional
Antifascista, presidido pelo escritor francês Henri Babusse: a adesão da componente
italiana, representada pela Lidu, a Lega Antifascista e Itália Libera, se juntava àquela de
grupos e setores da esquerda brasileira, quais a Liga Estudantil anti-imperialista, o
Bloco Operário e Camponês (BOC), o Comitê Antifascista da Faculdade de Direito e a
quase totalidade das ligas operárias da cidade. Battistelli, em sua crônica, afirmava que
75
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso
N. 35434/3052, 25.6.1929.
76
ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso N.
1543, 23.5.1929. O conselheiro de embaixada que redige a comunicação atribui erroneamente à Lega
Antifascista uma data de fundação ( 23 de março de 1929) que na realidade é da organização Itália
Libera. Cf. “Rio de Janeiro”. La Difesa, ano VI, n.253, 24.3.1929, p. 3
77
Cf. Diario Carioca, 22.9.1929, 3: “Com extraordinário número de aderentes realizou-se no 20 do
corrente, no salão nobre do Cruzeiro do Sul, à praça 11 de Junho, a sessão de fundação da Liga Antifascista do Rio de Janeiro. Presidiu-a o professor Francisco Itria”. Nas semanas seguintes, o mesmo
periódico noticiava a respeito de várias intervenções públicas da associação contra o fascismo italiano,
em ocasião do 7º aniversario da marcha sobre Roma (28.10.1929) ou da comemoração do fim da guerra
mundial (4.11.1929). Além de Itria, Eugenio D’Alessandro e Eugenio Sciammarella aparecem
publicamente como membros da entidade. Ver tb A Esquerda, 22.9.1929, 6.
78
Cf. “Rio de Janeiro”. La Difesa, ano VI, n.253, 24.3.1929, p. 3.
79
“Rio de Janeiro. Riunione Antifascista Brasiliana”. La Difesa, ano VI, n.254, 31.3.1929, p. 3
157
as associações antifascistas italianas escolheram “deixar à reunião o seu mais bonito
caráter: o de uma espontânea manifestação antifascista do generoso povo brasileiro”,
mas que “os promotores quiseram que sentassem à mesa da presidência também os
amigos prof. Itria, que dirigiu a reunião, e o adv. Libero Battistelli”. A fala de vários
oradores, entre os quais se destacaram alguns expoentes do BOC, como Minervino de
Oliveira, interventor municipal, e Paulo de Lacerda, faziam o articulista concluir que o
evento permitiu “lançar as bases para uma organização antifascista exclusivamente
brasileira” e que tornava-se necessário para “os exilados e os antifascistas italianos [...]
renovar aos legítimos representantes deste grande país a expressão de sua gratidão”. O
Diário Carioca do dia seguinte80 trazia detalhes do evento, indicando o local da reunião
(a União dos Trabalhadores em Padarias) e o numero dos participantes (cerca de mil
pessoas), além de relatar que o próprio Battistelli falou em nome da Lidu.
A intensificação da presença pública dos antifascistas italianos do Rio nos primeiros
meses de 1929 chegou, portanto, a envolver setores do mundo politico e da sociedade
carioca em iniciativas contra a ameaça internacional do fascismo, contribuindo para o
surgimento de um incipiente antifascismo brasileiro, que chegará a uma mais madura
expressão a partir de 1933. Exemplos disso foram a fundação de uma Liga Antifascista
também entre os estudantes de Direito, no Centro Acadêmico da Faculdade, em abril de
29, como relata La Difesa,
81
e a criação (ou recriação, após “um silencio de quinze
anos”) da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, com a adesão de intelectuais, políticos,
ligas de trabalhadores e associações estudantis: destinada a combater a influência no
âmbito politico e social de uma igreja católica cada vez mais comprometida, após o
tratado de Latrão, com o regime de Mussolini e orientada em sentido reacionário, a Liga
representava mais um âmbito onde cultivar e manifestar a oposição a toda forma de
fascismo.82
Toda essa multiplicidade de siglas e organizações se, de um lado, representava um sinal
de vitalidade, do outro, evidenciava a tendência para a fragmentação. Afinal, o
antifascismo da Capital Federal acabava por percorrer caminhos análogos aos do
80
Cf. “Um protesto contra o fascismo internacional”. Diário Carioca, 24.3.1929, p. 2.
Cf. “Rio de Janeiro. Liga Antifascista”. La Difesa, ano VI, n.256, 14.4.1929, p. 3.
82
Quem noticia o ‘ressurgimento’ da Liga Anticlerical é o próprio Battistelli, num breve artigo em La
Difesa, ano VI, n.269, 14.7.1929, p. 3, no qual é anunciada também a publicação em milhares de
exemplares do manifesto da associação. A ênfase no anuncio deixa supor uma participação de Libero na
fundação da Liga. Na quarta parte do presente trabalho se destacará a presença anarquista
(particularmente José Oiticica) em sua fundação.
81
158
antifascismo paulistano, só aparentemente unanime naquele momento por baixo da
liderança de Frola, mas em realidade percorrido por divisões e rivalidades, e aos da
própria Concentrazione de Paris, que, na qualidade de cartel de partidos, falava com
uma só voz, mas não conseguia esconder as diferenças de acento e de mentalidade
presentes em seu interior, e que a levarão ao fim no espaço de poucos anos.
3.6. Protagonistas e coadjuvantes
Quem eram afinal os homens que, além e junto de Battistelli, se moviam nessa galáxia
do antifascismo italiano na Capital Federal? Além dos que foram apresentados no
segundo capítulo por ter se destacado desde os primeiros anos da década de 1920, como
Scala (sempre uma referência para o mundo do antifascismo carioca), D’Alessandro,
Infante (embora com uma atuação cada vez mais comedida), De Gasperis (desde
meados de 1928 transferido para Buenos Aires), Trabucchi, De Rosa, Pampuri, Rizzi e
o próprio Scarrone (que vimos ser coautor com Battistelli do Almanacco Antifascista
pel 1929), dois expoentes da oposição se sobressaíram no Rio de Janeiro neste final dos
anos ’20.
O primeiro é Antonio Corrado Limongi. Advogado, emigrado para o Brasil em 1913,
co-fundador em ’24 do primeiro agrupamento antifascista brasileiro, a Unione
Democratica, em 1929 já estava com 50 anos. Protagonizara, como foi visto, várias
lutas contra as manobras para “fascistizar” a Beneficienza, numa ação de liderança que
lhe proporcionou ameaças e violências, e que contribuiu para convencê-lo da
necessidade de uma militância mais expressiva, ele que até então não tinha assumido
compromissos em entidades explicitamente antifascistas. Após a derrota no pleito da
Beneficienza, Limongi escreveu para o cônsul, devolvendo a honorificência de
Cavaleiro da Coroa Italiana, recebida no passado, e afirmando querer abraçar a causa do
antifascismo e da república.83 Os passos dele depois desta decisão não são
documentáveis, até 1933, quando a embaixada no Rio informava que Limongi,
residente em Niterói, dirigia, havia cerca de um ano e meio, um semanal, Il Popolo
d’Italia, no qual atacava fascismo e autoridades diplomáticas, e que por causa disso lhe
fora notificada pela policia carioca a suspensão da publicação por tempo indeterminado.
83
Cf. “Rio de Janeiro”. La Difesa, ano VI, n.253, 24.3.1929, p. 3.
159
A ação de Limongi incomodava não pouco embaixada e consulado no Rio de Janeiro,
particularmente por sua ação de denúncia de ilegalidades cometidas por sociedades
italianas do ramo da armação naval, potencialmente prejudicando negócios a serem
realizados entre elas e o governo brasileiro. As fortes pressões das autoridades
diplomáticas italianas na Capital Federal junto ao Ministério da Justiça brasileiro
levaram à prisão e ao imediato decreto de expulsão de Limongi, em finais de novembro
de 1934, emitido no quadro de um conjunto de providências tomadas contra suspeitos
de atividades comunistas: o italiano fora acusado de alimentar propaganda subversiva,
após a policia ter encontrado material e maquinários de tipografia junto de sua
residência.84
Embarcado poucos dias depois num navio com destino a Itália, Limongi foi obrigado a
deixar esposa e filhos no Brasil, de nada valendo as tentativas de recurso de amigos e
políticos da esquerda brasileira contra o decreto de expulsão, tentativas baseadas no fato
dele possuir passaporte brasileiro. A embaixada emitiu recomendação para que fosse
mantido sob forte vigilância e encaminhado para o confinamento, mas, a pedido das
autoridades brasileiras, sem que houvesse deferimento ao Tribunal Especial da Itália: o
conjunto destes elementos configurava o decreto contra Limongi nos termos de um
favor do Ministério da Justiça ao governo italiano. A acusação de comunismo
(claramente forjada), o curtíssimo tempo intercorrido entre a prisão e a expulsão
(realizada sem alguma forma de protesto por parte das autoridades italianas, como seria
de se esperar por se tratar de um seu compatriota), e o pedido do governo brasileiro para
que se evitasse um processo junto ao tribunal italiano (e para que se permitisse aos
familiares do expulso de se reunir com ele num próximo futuro) depõem a favor da
hipótese de um decreto benevolentemente concedido às autoridades italianas, que, pela
campanha de imprensa promovida pelo Limongi, viam ameaçada a possibilidade de
armadores italianos terem possibilidade de sucesso no âmbito do programa naval militar
do Brasil.
84
Cf. ACS/CPC, b. 2788, f. 4592 (“Limongi, Antonio Corrado”), telespresso do MAE, n.306213, 9.3.1933;
telespresso da Embaixada d’Itália no Rio de Janeiro, n.2602, 25.9.1934; telegrama do MAE, n.324511,
5.12.1934; telegrama do MAE, n.325395, 17.12.1934. Ver também: APERJ, MJNI, Departamento Federal
de Segurança Publica, Prontuário n.7508 (“Limongi, Antônio Conrado”); APERJ, Secretaria de Segurança
Pública do Estado do Rio de Janeiro, Delegacia de Ordem Politica e Social, Prontuário n.11763 (“Limongi,
Antônio Conrado”).
160
Um relatório “reservado” do embaixador Cantalupo ao Ministério das Relações
Exteriores da Itália85 reconstrói, do ponto de vista das autoridades italianas no Brasil, a
atividade de Limongi e suas campanhas jornalísticas, mostrando os bastidores do
decreto de expulsão, e as concessões feitas pela ocasião ao governo brasileiro.
Curiosamente o fascículo relativo a Limongi conservado no Archivio Centrale dello
Stato em Roma traz também o depoimento por ele fornecido às autoridade de policia,
dia 15 de dezembro, logo após sua chegada à Itália, no qual negava as acusações que
provocaram a expulsão, admitia contrastes com elementos fascistas e com o próprio
consulado do Rio ainda em ocasião do caso da Beneficienza, mas negava ataques ao
regime ou atitudes antifascistas, protestando sentimentos de italianidade sempre
nutridos por ele em sua ação politica ou jornalística: afirmações de um homem que ne
espaço de três semanas fora preso, expulso e embarcado de volta ao seu país, sem
possibilidade de defesa.
Nos anos a seguir Limongi permaneceu confinado em sua cidade natal, Maratea, no sul
da Itália, vigiado pela policia e sofrendo repetidas perquisições e violações de
correspondência, até o governo brasileiro revogar o decreto de expulsão, em julho de
1937. Mas tiveram que passar mais de dois anos antes dele poder voltar ao Brasil e
abraçar a família: uma carta do secretario do fascio da Capital Federal aos seus
superiores em Roma, na qual se fazia menção da revogação do decreto, e se pedia
encarecidamente para que fosse impedida a volta ao Rio de Janeiro do Limongi, autor,
nos seus anos de Brasil, de “nefasta atividade antinacional e antifascista”, prolongará até
dezembro de 1939 seu confinamento.
Segunda figura importante daquele fim da década de 1920, no Rio de Janeiro, foi
Francesco Itria86. Socialista, nascido em 1889 em Paola, no sul da Itália, professor de
escola primaria, recusou-se de prestar juramento de fidelidade ao fascismo e foi
afastado do emprego, em outubro de 1926. Por alguns meses, ausentou-se de sua cidade,
provavelmente em busca de alternativas para o sustento familiar, mas sempre sendo
objeto de vigilância por parte da policia, que em fevereiro do ano seguinte lhe negava o
passaporte e dispunha investigações em todo o território nacional para identificar seu
85
ACS/CPC, b. 2788, f. 4592, (“Limongi, Antonio Corrado”), Relatório reservado, N. 3278/1236,
29.12.1934.
86
ACS/CPC, b.2651, f.3851, (“Itria, Francesco”). Para alguns breves dados biográficos, ver PAPARAZZO,
Amelia (org.). Calabresi sovversivi nel mondo: l’esodo, l’impegno politico, le lotte degli emigrati in terra
straniera (1880-1940). Soveria Mannelli: Rubbettino, 2004, p. 61-62.
161
paradeiro. Depois, repentinamente, foi concedido o passaporte, com destino Venezuela,
para onde Itria emigrava em abril de 1927. No país latino-americano, se estabeleceu em
Maracaibo, trabalhando numa ourivesaria. Mas já em outubro do mesmo ano, Francesco
se encontrava no Rio de Janeiro, morando junto ao conterrâneo Vincenzo Perrotta. As
redes tradicionais de parentesco e de procedência geográfica, facilitadoras da difícil
escolha da emigração, funcionavam também para os exilados políticos em tempos de
fascismo. Na Capital Federal, não é dado saber como Itria vivia, mas seu antifascismo
se destacou desde os primeiros tempos, na qualidade de presidente da Liga Antifascista
e membro de Itália Libera, como assinalado acima. Esteve presente na acolhida de
Vandervelde e foi colaborador do jornal carioca A Esquerda, onde chegou a escrever
com o pseudônimo de Spartaco Romano87. O telespresso da embaixada italiana no Rio
de 25 de junho de 1929, já citado,88 chegava a relatar aos superiores em Roma a respeito
de uma próxima viagem de Itria á França, onde seria enviado em missão por Frola a fim
de manter contato com os organismos centrais do antifascismo exilado. O constante
monitoramento policial em cima dele não chegou, contudo, a confirmar tal hipótese,
mas documentou somente uma ausência do país de alguns meses em 1931, com
permanência em Buenos Aires.
Ao redor de figuras como estas, e de outros que desde os primeiros anos de 1920 se
declaravam abertamente como opositores do fascismo, é que se agregava na Capital
brasileira o mundo da emigração antifascista. Poucas dezenas de pessoas, por falar
daquelas realmente ativas e compromissadas, a ponto de empenhar-se num esforço
financeiro, como assinar o La Difesa ou participar de subscrições em favor do
periódico. Talvez algumas centenas, se se contam os que compartilhavam os ideais
antifascistas, e que chegavam a frequentar reuniões e assembleias (como as da
Beneficienza), sem chegar, contudo, a uma militância mais efetiva.
3.7. Conectado com o antifascismo internacional
Ao mesmo tempo em que colaborava com La Difesa e se envolvia com os organismos
locais de luta ao fascismo, nestes primeiros anos de sua permanência no Rio de Janeiro,
87
Como exemplo, o artigo “Va fuori d’Italia, va’ fuori ch’é l’ora! Verso il disastro. L’economia imperiale”,
A Esquerda, 2.2.1928, p. 4.
88
Cf. nota 75.
162
Battistelli não deixava de tecer um diálogo com expoentes do fuoruscitismo na Europa.
De alguns, como Bergamo ou Montasini, era amigo já antes de sua saída da Itália, de
outros, como Berneri e Nenni, se tornou correspondente neste período, às vezes a partir
da leitura de artigos publicados em periódicos. Com efeito, Libero recebia vários jornais
e revistas em sua residência carioca, e com alguns deles ele mesmo colaborava.
Sobretudo se tratava de publicações editadas na França, principal ponto de confluência
dos lideres do antifascismo italiano. Em uma delas, L’Iniziativa, revista mensal que saiu
por poucos meses em Paris em 1928, aberta a várias linhas politicas do antifascismo
exilado, aparece uma matéria, assinada por Battistelli,89 sobre a necessidade da
derrubada do instituto da monarquia na Itália, para que se pudesse dar um passo a frente
no caminho da civilização. Os argumentos do republicanismo são apresentados para
justificar uma escolha cada vez mais essencial, após as evidentes responsabilidades da
coroa na chegada do fascismo ao poder e no estabelecimento da ditadura.
A direção do periódico contava também com a presença de Camillo Berneri, mas é a
partir de uma carta enviada por Libero em 1929 para La Veritá, quinzenal editado pelo
próprio anarquista no subúrbio parisiense, que começou uma correspondência entre os
dois, ambos, como referido acima, se considerando “sui generis” em sua respectiva
militância politica.90 As cartas trocadas entre Berneri e Battistelli nos meses finais de
1929 (duas de cada lado)91, além das reciprocas apresentações, tratavam sobretudo de
um assunto inquietante para o antifascismo no exilio: o da presença de infiltrados, de
espiões, nas fileiras do mesmo. E abriam para um possível encontro entre os dois em
breve, no encerramento de Libero em sua segunda carta: “Planejo ir para a Europa por
uma breve estada na próxima primavera [...] terei o prazer de conhecê-lo
pessoalmente”.92 Uma amizade que se anunciava e que irá se consolidar nos anos
89
“Inchiesta sulla monarchia”. L’Iniziativa, Ano I, n.8, 15.10.1928, p. 5. O periódico tinha como subtítulo
“rassegna politica mensile” e era publicado em Paris, Rue des Rosiers, 3.
90
Em sua segunda carta para Libero, Berneri relata brevemente seu percurso politico ao
correspondente, como já fizera antes Battistelli para ele: “Abandonei o movimento socialista porque
continuamente acusado de anarquismo; entrado no movimento anarquista, ganhei a fama de
republicano federalista. O que é certo é que sou um anarquista sui generis, tolerado pelos
companheiros por minha atividade, mas compreendido e seguido por pouquíssimos [...] A maioria dos
anarquistas é ateia e eu sou agnóstico, é comunista e eu sou liberalista (isto é a livre concorrência entre
trabalho e comercio cooperativo e individual), é antiautoritária de modo individualista e eu sou
simplesmente autonomista-federalista”. Cf. Carta de Camillo Berneri a Libero Battistelli, [1929]. In FERI,
Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 18-21.
91
Cf. Paola Feri, Luigi Di Lembo (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., 18-22; 48-50; 54-55.
92
Libero Battistelli a Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 16.11.1929. In: FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.).
Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 55.
163
futuros, culminando à época da guerra civil espanhola, e uma viagem de Libero à
Europa, que com toda probabilidade chegou a mercar profundamente a orientação de
seu antifascismo, como se verá.
Outro correspondente de Libero nestes anos foi Pietro Nenni. Na realidade, deste
período se conserva somente uma carta de Battistelli para ele, da qual já foram citados
trechos acima e que representa um primeiro contato, quase uma apresentação de Libero
para o expoente socialista.93 Além de lembranças pessoais dos tempos de Bolonha,
Battistelli, como melhor resposta ao vazio que seguiria à queda do fascismo, sugeria ao
interlocutor a fusão entre republicanos e socialistas num grande partido comum, pelas
convergências de seus interesses e interpretações dos problemas da sociedade italiana:
os republicanos, segundo Libero, poderiam corrigir alguns excessos do socialismo,
como certas influências germânicas (temperando-as com sua tradição tipicamente
italiana) e o excesso de materialismo (oferecendo-lhe sua concepção quase religiosa do
dever cívico). Haveria assim um partido socialista-republicano, ou republicanosocialista. Não é possível conhecer a resposta à proposta de Battistelli, mas nela ainda se
consegue perceber ainda certa crítica ao comunismo, entendido como fenômeno
ditatorial a ser evitado – crítica que, pouco tempo depois, foi objeto de revisão, como se
verá.
Além dos periódicos citados, Battistelli dialogava também com outro instrumento do
antifascismo no exilio: Il Pungolo (L’Aguillon), também editado em Paris. Fundado por
um antifascista de área católica, Giuseppe Donati, mas aberto à colaboração de
socialistas e liberais, o quinzenal queria constituir-se como ponto de diálogo entre todas
as componentes do antifascismo no exilio, polemizando às vezes com certas atitudes
intransigentes e arrogantes da Concentrazione e de seu órgão oficial, La Libertá.94
Battistelli, de seu exilio carioca, interveio em suas colunas com cinco contribuições,
entre junho de 1929 e fevereiro do ano seguinte. A primeira95 era uma robusta análise
do fenômeno bolchevique e da revolução de outubro, em busca de quanto existia de fiel
à doutrina de Marx nas providências tomadas pelo regime soviético após sua
93
Futuramente, de 1934 até 36, Libero escreverá pelo menos outras quatro cartas para Nenni, desta
vez com um tratamento já mais intimo.
94
Sobre Il Pungolo e seu fundador Giuseppe Donati, ver TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti
italiani in Francia, op. cit., p. 115-121.
95
“Marxismo e dottrine amarxiste nella rivoluzione russa”. Il Pungolo, Ano I, nn. 15-16, 1-15. 6.1929, p.
119-122. O periódico trazia como subtítulo “Rassegna periódica di critica e cultura” e era editado em
Paris, Rue du Croissant, 15.
164
implementação, e de quanto fosse oriundo de outros fenômenos e ideologias políticas:
Libero insistia para uma fecunda revisão teórica da doutrina marxista, eliminando o
muito de caduco que estava contido nela, em busca do comunismo autentico,
convidando para essa tarefa, além dos expoentes dos partidos da esquerda, também
republicanos e anarquistas. A proposta de um trabalho em conjunto começava a
delinear-se desde aquele momento histórico como uma das principais características do
antifascismo de Battistelli, que afirmava na abertura de seu artigo como “os relativos
ócios políticos aos quais o exilio nos obriga, devem ser nobilitados por um intenso
trabalho de preparação teórica em vista da práxis de amanhã”96.
De seu segundo artigo, sobre a oportunidade de uma aliança contra as ditaduras, já foi
dito acima,97 enquanto o terceiro se detinha sobre o problema das minorias étnicas e sua
presença no corpo dos Estados, reconstruindo o percurso do principio de nacionalidade,
antes e depois da Revolução Francesa, circunstância em que o sentimento de nação faria
sua primeira aparição na história. Mas o ponto alto da intervenção de Battistelli é
representado per os dois últimos artigos, críticos de certas tendências “moderadas”
presentes no seio do antifascismo exilado (leia-se Concentrazione e até o próprio
Pungolo). Battistelli indignava-se com estas tendências, e reivindicava com orgulho sua
participação do ”subversivismo” de 1919 e até de 1924: se houve uma culpa do
movimento popular na Itália daqueles anos, dizia ele, foi exatamente de não ter levado a
subversão até sua últimas consequências. Battistelli se declarava arrependido: não,
porém, de ter sido ‘subversivo’, e sim de não tê-lo sido suficientemente.98 Cobrado, no
mesmo número, pela direção do jornal a explicar melhor sua proposta politica99, ele
replicava com um artigo publicado em fevereiro de 1930.
Talvez essa matéria100 represente uma primeira elaboração da forma de regime politico
que Battistelli auspicava para o futuro da Itália e que considerava modelo ideal também
para qualquer Estado do mundo: uma república social, a ser perseguida e instaurada
com métodos revolucionários, e , se for necessário, a ser defendida inicialmente até com
métodos não necessariamente próprios da democracia e do liberalismo. Uma república
social fomentadora de autonomias e federalismos, e que tenderia gradualmente à
96
Ibidem.
Cf. notas 49-51.
98
Cf. “Per intenderci (se possibile)”. Il Pungolo, Ano I, nn. 23-24, 1-15.10.1929, p. 189-190.
99
Cf. “Per non equivocare (se possibile). Il Pungolo, Ano I, nn. 23-24, 1-15.10.1929, p. 191-192.
100
“Per comprenderci (se possibile)”. Il Pungolo, Ano II, serie 2, n.2, 15.2.1930, p. 14-15.
97
165
supressão total e absoluta da propriedade privada. Como se vê, uma proposta ousada por
um expoente republicano, mas coerente com aquela orientação de esquerda que ele
reivindicava como própria desde os anos bolonheses, com soluções politicas e sociais
(instauração por via revolucionária, socialização da propriedade) típicas do movimento
comunista.
3.8. A viagem de 1930
Diálogo com o mundo do antifascismo através da imprensa, seja a brasileira, seja a
produzida na França; correspondência com alguns expoentes da oposição ao fascismo;
presença ativa e protagonismo no mundo do associacionismo antifascista da colônia
italiana no Rio; tentativa de elaboração teórica de um projeto alternativo ao regime.
Battistelli viveu os primeiros anos de exilio à luz destas linhas de pensamento e ação.
Mas em 1930 uma viagem à Europa, segundo se pode depreender da documentação
oficial e privada, se tornava responsável por uma significativa modificação em seu
percurso no âmbito do movimento antifascista. Planejada com meses de antecedência,101
a ida ao velho continente foi também cercada de garantias. Desde novembro do ano
anterior, Libero e sua esposa tinham-se naturalizados brasileiros.102 Uma viagem
internacional, com destino a Europa, realizada por um tranquilo casal de brasileiros,
teria permitido uma maior liberdade de movimento do que a mesma viagem
empreendida por cidadãos italianos, sobretudo quando, como no caso de Battistelli,
fichados no Casellario Politico Centrale e assinalados no boletim dos procurados como
elementos a serem detidos e revistados em caso de volta à Itália. A experiência vivida
por Francesco Frola em sua ida à França no ano anterior representara um alerta, pois
ele, tendo perdido sua cidadania italiana em 1926, só conseguiu das autoridades
101
Cf. nota 92. Ver também o artigo “La Crociera in Italia degli Italiani del Brasile”. La Difesa, Ano VI, n.
273, de 11.8.1929, p. 2. O artigo não é assinado, mas sua autoria é com toda probabilidade de Battistelli,
pois o comentário à viagem organizada pelo fascio de São Paulo, para que italianos e seus descendentes
pudessem conhecer de perto o fascismo e o país por ele governado, e as críticas pelos seus altos custos,
apresenta o valor de uma passagem de segunda classe na rota Rio-Cherburgo (ida e volta), isto é entre
55 e 65 mil libras esterlinas, correspondentes a 5 ou 6 mil liras italianas. Exatamente a rota e a classe
escolhidas pelo casal Battistelli por sua ida à Europa meses depois.
102
Cf. Portaria da Diretoria do Interior de 25.11.1929, publicada no Diário Oficial de 26.11.1929.
166
brasileiras um passaporte que declarava ele ser “sem nacionalidade”, o que lhe permitiu
a viagem, mas não o dispensou de apreensões na hora da chegada a Marselha.103
A escolha pela naturalização, além de representar um ato de consideração, mesmo que
inicial, para o país acolhedor, significava uma maior segurança nas viagens, assim como
na própria permanência em território brasileiro para militantes do antifascismo e da
esquerda em geral, embora não fosse garantia automática diante da ameaça da expulsão,
como os casos de Limongi e, como se verá, de Mario Mariani demonstraram. De toda
forma, passaporte brasileiro na mão, Libero e Enrica embarcaram, provavelmente no
mês de abril104, no vapor Alcântara, de propriedade inglesa e tendo como destino
Cherburgo, cidade da Normandia a 350 quilômetros de Paris. As semanas seguintes
foram dedicados a contatos com o grupo dos fuorusciti italianos residentes na capital
francesa, culminando numa conferência pronunciada por Battistelli a convite da
associação dos jornalistas “Giovanni Amendola”, na noite de 3 de maio. O fichário da
policia105 apresenta informações recolhidas pelos organismos diplomáticos italianos em
Paris, que destacavam o pequeno publico de ouvintes (cerca de 70 pessoas), a presença
dos principais nomes do antifascismo italiano (dos socialistas Treves, Turati e Nenni, a
Lussu, Rosselli e Facchinetti, expoentes do recém-nascido movimento de Giustizia e
Libertá, aos membros da Lidu como De Ambris e aos republicanos como Montasini) e o
tema da palestra (“Italianos e antifascistas no Brasil”). Os informes da Embaixada em
Paris referiam do destaque dado por Battistelli em sua colocação ao empenho dos
antifascistas no Brasil, cujos frutos não foram muito significativos, contudo, devido ao
pequeno numero de militantes e à exiguidade dos recursos, apesar da maioria dos
membros da colônia permanecer de sentimentos antifascistas.
Não é possível saber se a viagem de Battistelli para Paris tivesse alguma relação com a
de Frola, realizada alguns meses antes (Frola permanecera na capital francesa cerca de
quatro meses, de dezembro de 1929 a março de 1930). Se estivesse planejada uma
103
Ver FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico
Nuevo, 1939, p. 139-143.
104
É provável que o casal Battistelli tenha escolhido para a ida à Europa o mesmo vapor utilizado para a
volta, na mesma rota (Rio-Cherburgo-Rio). O Alcântara chegara ao Rio de Janeiro, proveniente de
Southampton, no dia 29 de março de 1930, após uma viagem de aproximadamente 15 dias. Em seguida
continuara viagem até Buenos Aires, de onde retornara para o porto carioca no dia 12 de abril. Cf.
BR_RJANRIO_OL_RPV_PRJ_24922. Tudo indica que esta foi a data de embarque dos Battistelli no vapor
direto à Europa, onde chegaram após cerca de 15 dias. A estada no velho continente não deve ter
ultrapassado, portanto, os dez dias.
105
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália em Paris, dois telegramas
(ambos com n. 5687): o primeiro de 25.4.1930, e o segundo de 6.5.1930.
167
espécie de investidura para alguma forma de liderança de Battistelli no âmbito do
antifascismo brasileiro, encontrando-se Frola contestado em sua atuação em São Paulo,
ou se se tratasse de uma missão de Libero, a mando do mesmo Frola, talvez aquela
atribuída a Itria pela embaixada italiana no Rio, como visto acima. Ou se sua origem se
deva mais simplesmente à vontade pessoal de Battistelli de um confronto e de um
diálogo com o ponto mais expressivo do movimento antifascista no exterior. De todo
modo, o contato com os expoentes do fuoruscitismo em Paris foi fecundo para
Battistelli, que conseguiu perceber valores e limites da experiência da Concentrazione e
foi apresentado ao movimento que mais influirá sobre sua visão e ação politica no
futuro, Giustizia e Libertá.106
Com efeito, desde meados de 1929, encontravam-se em Paris três antifascistas fugidos
do confinamento ao qual tinham sido condenados pelo fascismo numa ilha do Sul da
Itália - entre os quais se destacava por seu espirito de liderança Carlo Rosselli - e agora
ponto de referência de um grupo que colocava como prioridade a luta na península,
propondo aos partidos no exilio a unificação total dos esforços para abater o regime de
Mussolini, e a constituição de um único movimento revolucionário. Após meses de
conversas com os lideres da Concentrazione, surdos diante dessas exigências, os
membros do grupo resolveram fundar um movimento autônomo, Giustizia e Libertá.
Nascia assim, em outubro de 1929, uma nova entidade, mais ágil e livre por não se
constituir como partido politico, menos interessada ao lento e às vezes estéril trabalho
de propaganda dos organismos do antifascismo exilado, mais voltada a valorizar formas
de luta ao fascismo no território italiano, reanimando, onde fosse possível, uma
oposição latente e silenciosa: isso também através de eventuais gestos espetaculares,
como serão lançamento de panfletos dos céus das cidades italianas 107 e até atentados
contra expoentes do regime.
Battistelli encontrava o mundo dos antifascistas italianos em Paris exatamente no
momento em que o surgimento da nova sigla questionava profundamente os caminhos
por eles percorridos até então. Declaradamente republicano, como de resto o próprio
cartel dos partidos, GL em breve esclarecerá suas orientações politicas, declarando-se,
106
Sobre origens e história do movimento, ver indicações bibliográficas apresentadas na primeira parte.
No dia 11 de julho de 1930, um pequeno avião partido da Suíça sobrevoava Milão e lançava sobre a
cidade milhares de panfletos, convidando a população à revolta contra o fascismo: eram assinados
Giustizia e Libertá. A essa ação espetacular outras deveriam seguir, mas a maioria delas não saiu do
papel.
107
168
particularmente através do trabalho de elaboração teórica de Rosselli, por um
‘socialismo liberal’, titulo do ensaio publicado por este último no final de 1930 em
Paris. Um socialismo que pretendia se reformular prescindindo dos esquemas
demasiadamente rígidos do marxismo e do materialismo histórico, e que, em sua luta
revolucionaria para uma sociedade de iguais, buscava não perder de vista o valor
supremo da liberdade. Propósitos vistos com certa suspeita pela componente de
orientação socialista da Concentrazione, a ponto que o próprio acordo, que será selado
entre esta organização e GL em novembro de 1931, dividirá tarefas e competências, mas
nunca chegará a dissipar um permanente clima de difidência reciproca entre os dois
aliados.
É provável que no breve período passado em Paris, a contato com os fuorusciti, Libero
tenha percebido humores e tendências existentes no âmbito da Concentrazione, e ao
mesmo tempo tenha ficado positivamente impressionado pela novidade representada
por GL. Battistelli sempre se destacou, como vimos, por sua postura politica não
conformista, (“republicano sui generis”, “o mais socialista dos republicanos”), rebelde a
rígidas disciplinas de partido, e, provavelmente, advertiu desde aquele momento o perfil
do novo movimento, com seus proclamas de um socialismo revolucionário e da
urgência da ação, mais consoante com o seu próprio perfil, superando até eventuais
diversidades de visão. Como vimos, escreverá em 1932 para Rosselli: ”Meu posto foi
então entre os republicanos, assim como agora é entre vocês. Porque a identidade moral
e de caráter é muito mais importante do que a identidade ideológica”.108
De todo modo, as fontes policiais italianas109 relatavam que Battistelli teria recebido em
Paris a missão de trabalhar para arrecadar fundos para o movimento antifascista
internacional (coisa até provável), e que ele prolongaria sua viagem indo para Bélgica,
Alemanha e Suíça, por negócios privados (a negociação de maquinários agrícolas
alemães destinados ao Brasil): afirmações não verificáveis, e em parte duvidosas, até
porque apresentadas como para acontecer no mês de junho, data na qual Libero e esposa
já estavam de volta para o Rio de Janeiro. Talvez uma passagem pela Bélgica, indicada
por Libero na hora do desembarque no Rio como sua ultima residência, possa
108
Cf. Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 27.4.1932, In Istituto per la Storia della
Resistenza in Toscana (ISRT), Arquivo de Giustizia e Libertá (AGL), Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1,
sottofasc. 8.
109
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”),Ministero dell’Interno, Direzione Generale della
Pubblica Sicurezza, Divisione Affari Generali e Riservati, N. 441/09603, 27.5.1930 e Divisione Polizia
Politica, N. 500/11295, 7.6.1930.
169
corresponder à verdade110. Outra informação transmitida e que pode ser verissímil,
contudo, diz respeito à compra em Paris, por parte de Emilia Battistelli, de tecidos e
roupas para a sua loja carioca de costura. Atividade que sem dúvida devia ajudar de
forma significativa no sustento do casal na Capital Federal, permitindo a Libero de se
dedicar com mais tranquilidade a seu empenho politico.
A volta para o Brasil de Battistelli e senhora aconteceu no vapor Alcântara, com saída
do porto inglês de Southampton. O casal embarcou em Cherburgo, chegando ao Rio no
dia 23 de maio de 1930111. A bordo do navio 168 passageiros, todos declarando na hora
do desembarque, além das generalidades e outras informações, sua religião: havia
católicos, protestantes, ortodoxos, judeus e muçulmanos, mas os Battistelli,
curiosamente (ou coerentemente) foram os únicos a se declarar “sem religião”. De
qualquer forma, agora eram um casal de “brasileiros”, de retorno da Europa, viajando na
segunda classe.
3.9. De volta ao Rio: convergências e divergências
Pode-se pensar que a experiência parisiense tivesse fortalecido os propósitos de Libero:
afinal retornava ao Brasil com a confirmação e o apoio das várias componentes do
mundo do fuoruscitismo, e em acréscimo uma abertura de crédito tributado pela mais
recente sigla do mesmo, Giustizia e Libertá. Em breve ele ia se tornar o responsável do
movimento pelo Brasil e pela América Latina. Talvez pudesse ter advertido certa inveja
pelos homens exilados na França: terra mais próxima da Itália do que o longínquo
Brasil, e politicamente mais solidária com as lutas do antifascismo italiano do que o
mundo politico e a sociedade carioca. Mas ainda havia no Rio de Janeiro uma atividade
comercial para prosseguir, cunhados para ajudar, e uma rede de amigos e companheiros
empenhados no esforço de resistência ao fascismo no âmbito da colônia italiana e da
Capital Federal.
110
Desde dezembro do ano anterior, Camillo Berneri, o anarquista que se correspondia com Libero,
estava detido no cárcere de Bruxelas, acusado de planejar um atentado contra o Ministro italiano Rocco,
durante sua visita à cidade. Um encontro, ou tentativa de encontro, com ele por parte de Battistelli não
é de se excluir. Sobre Berneri neste período, ver o perfil do anarquista na pagina do Archivio Berneri
www.comune.re.it/biblioteche/berneri.nsf?OpenDatabase e TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei
fuorusciti italiani in Francia, op. cit., p. 138-140.
111
Ver Arquivo Nacional (AN), Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF), Relações de
Passageiros em Vapores (RPV), Porto do Rio de Janeiro (PRJ), BR_RJANRIO_OL_RPV_PRJ_25039.
170
O cenário de meados de 1930, no qual Libero voltava a se inserir após sua ida à Europa,
mudara bastante. Na verdade, desde o ano anterior, novas figuras tinham aparecido no
âmbito da comunidade italiana antifascista, e é o caso de mencioná-las aqui, pois,
embora diretamente ligadas ao antifascismo italiano de São Paulo, local de sua principal
atuação, tiveram algum tipo de contato com Battistelli.
O primeiro nome novo é o de Goffredo Rosini.112 Quando desembarcou no Rio de
Janeiro, em março de 1929, vindo da França, onde passara três anos, sempre
trabalhando a serviço do partido comunista, como já fizera antes de sair da Itália, ele
tinha no bolso uma carta de apresentação de um dos fuorusciti de Paris para
Battistelli113. Tendo como destino a cidade de São Paulo, onde um tio dele morava,
Rosini encontrou antes Libero na Capital Federal: um ponto de referência seguro para
um antifascista como ele, recém-chegado em terra brasileira. Foi ele que nesta ocasião
falou longamente de Berneri para Battistelli, como este lembrou em sua primeira carta
para o anarquista114. Os vários informes da policia italiana e do consulado de São Paulo
em 1929 apresentavam Rosini como colaborador de La Difesa, ora indicando-o como
possível sucessor de Frola, ausente do Brasil desde meados do ano, na direção do
periódico, ora sugerindo a hipótese que ele mesmo, já em São Paulo, teria convidado
outro italiano exilado na França, Mario Mariani, para assumir a liderança do movimento
antifascista no Brasil, numa tentativa de superação dos contrastes existentes entre Frola
e Piccarolo, que estavam dividindo abertamente a colônia paulistana.
O que é certo é que, por recomendação do cônsul italiano em São Paulo, foi submetido
a vigilância por parte da policia local, e detido algumas vezes sob acusação de
propaganda comunista, ainda em 1929. Uma carta para um amigo que estava em Paris,
sequestrada pelas autoridades, denunciava as divisões no seio do antifascismo da cidade
(dois periódicos antifascistas - Il Risorgimento, órgão da Concentrazione, ligado a
Piccarolo, e La Difesa, órgão da Lega Antifascista, ligado a Frola - que se faziam a
guerra) e ao mesmo tempo mostrava como para um comunista como ele, mesmo que
pudesse parecer uma traição, o caminho da colaboração, particularmente com La Difesa
(“que não é nem concentracionista, nem anti-concentracionista, e nem anti-comunista”),
112
Sobre Rosini ver os documentos do ACS/CPC, b. 4418, f. 23664 (“Rosini, Goffredo”). Ver também
TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico, op. cit., p. 352-353.
113
ACS/CPC, b. 4418, f. 23664 (“Rosini, Goffredo”). Informe da Policia Politica Italiana para a Embaixada
do Rio de Janeiro, 5.4.1929.
114
Cf. Libero Battistelli a Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, in Paola Feri, Luigi Di Lembo (org.)
Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., 18-22;
171
era o único possível, dada a série de prisões de estrangeiros ligados à esquerda e várias
expulsões dos mesmos.115 Nesta circunstâncias o consulado em São Paulo refere
também de outra carta,116 da qual, porém, ainda não conseguira cópia, dirigida a Rosini
por “um comunista italiano residente no Rio que assina Libero”: informação explicitada
dias depois pela embaixada no Rio de Janeiro, que identificava em Battistelli o autor da
correspondência.117
Outro antifascista de destaque naquele período, cuja trajetória cruza a de Battistelli, foi
Mario Mariani118, acima mencionado. Com efeito, este, romancista afirmado na Itália,
se encontrava desde 1927 na França, onde desenvolveu atividade antifascista e chegou a
fundar um partido de inspiração socialista. Expulso da França, em seguida refugiado na
Bélgica, abandonou a Europa, convidado a ir para o Brasil por Trento Tagliaferri,
italiano de orientação anarquista, que ia se estabelecer na Bahia: Tagliaferri abriria uma
casa de jogos, a Cycle Ball, e Mariani atuaria como conferencista e pintor. A mesma
estrutura que hospedaria Mariani, faria o mesmo com outro expoente do mundo do
fuoruscitismo italiano na França, Nicola Cilla, antes ligado ao PCI e mais tarde à
Concentrazione parisiense. Os informes e circulares da policia italiana e dos consulados
de Bruxellas, da Bahia e sucessivamente de São Paulo mapeavam os movimentos de
Mariani, até sinalizar sua presença na capital paulistana, onde já em setembro de 1929
era tido como o redator de La Difesa, após a saída de Frola, apesar do nome deste
aparecer ainda na primeira pagina do periódico como diretor até março de 1930. A
chegada de Mariani levaria o jornal por caminhos diferentes dos de Frola, e o antigo
desafeto deste ultimo, Piccarolo, voltava a oferecer sua colaboração, seja debaixo da
direção de Cilla (a partir de julho de 1930), seja da de Mariani, sucessiva a esta.
115
Para mais amplos trechos da carta de Rosini ver TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico, op. cit.,
p. 353, e João Fabio Bertonha. Sob a sombra de Mussolini, op. cit., p. 159-160.
116
ACS / CPC b. 4418 f.23664,(“ Rosini, Goffredo”), “riservata personale” do consulado geral de São
Paulo, 25.6.1929, e telespresso da Embaixada da Itália, n.2160, 1.7.1929, onde se diz: “Tenho o prazer
de comunicar que a assinatura ‘Libero’ talvez seja a do advogado antifascista Libero Battistelli, residente
no Rio de Janeiro, rua 13 de maio, 50, Presidente da Lega dei Diritti dell’Uomo, venerável da loja
maçônica Fratellanza Italiana, membro da comissão executiva da Lega Antifascista, e agora colaborador
de La Difesa”.
117
O percurso sucessivo de Rosini acompanhou as andanças do periódico paulistano; em 1933, foi um
dos protagonistas da criação da Frente Única Antifascista em São Paulo. Após passagens pelas prisões e
saídas do Brasil rumo ao Uruguai e à Argentina, em 1937 as fontes divergem: para o consulado estaria
ainda preso em São Paulo, enquanto, segundo informações recolhidas anos depois pelo trotskista
brasileiro Mario Pedrosa, Rosini teria lutado na guerra civil espanhola, de onde, ferido, teria sido
transportado para a União Soviética e aqui fuzilado por ter declarado ser trotskista.
118
Ver sua pasta no ACS/CPC, b.3059, (“Mariani, Mariano”).
172
O percurso de Mariani nos interessa aqui na medida em que seus passos se cruzaram
com os de Battistelli. Um dado interessante se encontra numa longa reportagem,
publicada em La Difesa em 1931, que tentava dar conta a posteriori das razões e dos
percursos que levaram à saída de Frola e à chegada de Mariani para substitui-lo. Numa
passagem se depreende que Libero intermediou a assinatura de vários contratos com
editoras cariocas119 para a publicação no Brasil de obras do próprio Mariani. Voltando a
1930, no mês de junho, logo depois do retorno de Libero e sua esposa da Europa,
Mariani, acusado de comunismo, recebeu um decreto de expulsão do país.120 A decisão
do poder executivo foi sucessivamente consagrada por uma sentença do Supremo
Tribunal, que não concedeu o habeas corpus, apesar de uma intensa campanha em favor
do italiano na imprensa brasileira, e das numerosas declarações de expoentes do mundo
politico, como Mauricio de Lacerda e Evaristo de Moraes. La Difesa tinha liderado esta
ação de denúncia e de apoio a Mariani, inclusive publicando uma declaração da Lidu do
Rio (presidida por Battistelli) em favor do antifascista121, e, quinze dias depois, um
artigo do próprio Libero que indicava abertamente no cônsul italiano em São Paulo,
Mazzolini, o autor da falsa acusação, criada para eliminar um opositor do fascismo. 122
Interessante é também a intervenção com a qual Battistelli saudava Mariani em La
Difesa, em ocasião de sua expulsão:
“Queremos dizer-lhe todo nosso afeto e nossa admiração. Oriundos de
escolas politicas diferentes, homens e não ovelhas, não concordamos
com ele sobre algumas coisas, e este dissenso manifestamos
abertamente [...], mas gostaríamos de lembrar neste momento que
Mariani continua a grande e gloriosa tradição dos artistas rebeldes. {...]
Acima de qualquer dissenso, nós todos, republicanos ou socialistas,
democráticos ou sem partidos, como antifascistas e como italianos,
somos orgulhosos dele”.123
119
Deve tratar-se da Companhia Editora Nacional e da Editora Freitas Bastos, que publicaram obras de
Mariani naqueles anos. Há uma edição da Freitas Bastos de 1930 do livro Pobre Christo, de Mariani,
ilustrada por Di Cavalcanti, artista que, por ocasião da campanha anticomunista desencadeada após o
levante de 1935, encontrará temporário refugio na fazenda de Battistelli em Mangaratiba.
120
Para o processo, ver AN/IJJ7, processo de expulsão “Mario Mariani”, 1930. Ver também TRENTO,
Angelo, Do outro lado do Atlântico, op. cit., p. 354-355 e BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de
Mussolini, op. cit., p. 84. Uma análise mais detalhada do processo está em SANTOS, Viviane Teresinha
dos. Italianos sob a mira da policia politica: vigilância e repressão no Estado de São Paulo (1924-1945),
São Paulo: Humanitas, 2008, p. 259-264.
121
“Vita sociale italiana in Brasile. Da Rio de Janeiro. La Lidu per Mario Mariani”. La Difesa, ano VI, n.
313, 15.6.1930, p. 4
122
Cf.” L’onorevole delatore”. La Difesa, ano VI, n. 315, 29.6.1930, p. 2
123
“Saluto a M. Mariani”. La Difesa, ano VI, n. 316, 6.7.1930, p. 1-2.
173
Divergências, então, entre os dois, pois Battistelli apoiara abertamente nos anos passado
a atuação de Francesco Frola e a linha por ele impressa ao semanário antifascista124. A
chegada de Mariani coincidiu com a exclusão, no âmbito da coletividade italiana em
São Paulo, dos partidários de Frola, do grupo de seus amigos, e abriu de novo as portas
para Piccarolo e outras figuras de antifascistas. Estas divergências, contudo, não
impediram a Battistelli, de um lado, de reconhecer o papel e a coragem de Mariani, e do
outro, de continuar uma colaboração com o periódico pelo menos até finais de 1930.125
Mariani conseguiu evitar a expulsão fugindo para Montevidéu, voltando para São Paulo
poucos meses depois, quando da chegada de Vargas ao poder, em outubro de 1930. Para
a ocasião, Battistelli escreveu em La Difesa,126 afirmando a solidariedade dos
antifascistas italianos com o movimento revolucionário e lembrando como, pelo
contrario, a derrotada “oligarquia brasileira” simpatizava com o fascismo. Libero
chegava a enumerar as iniciativas do mundo do antifascismo italiano da Capital Federal,
como a saudação da Lidu à revolução, publicada em A Batalha e o Diário de Noticias
(do “amigo Agripino Nazareth”), e o pedido da mesma Lidu para que fosse cancelado o
decreto de expulsão de Mariani. 127
124
Assim Battistelli teria-se manifestado sobre Frola e sua atuação nos primeiros anos no Brasil:
“Durante o tempo em que ele guiou o movimento antifascista não se verificou no nosso campo nenhum
dissidio de caráter político. Republicanos, como eu, socialistas de todas as gradações, filocomunistas,
anarquistas, todos os antifascistas de esquerda seguiam fraternalmente a batalha comum”. A lembrança
é do próprio Frola em seu livro I tre furfanti (Piccarolo, Mariani e Cilla), São Paulo, 1931, p. 23.
125
Nas paginas autobiográficas nas quais, nos anos 70, Nello Garavini, anarquista e amigo de Battistelli,
lembra sua longa temporada no Rio de Janeiro, o autor dedica algumas linhas também às divisões do
antifascismo no Brasil, a Mariani e à relação deste com Libero: “O melhor jornal antifascista brasileiro
era La Difesa, publicado em São Paulo e dirigido por Francesco Frola, antes, e, depois, por Mario
Mariani; redatores eram Cilla e o prof. Piccarolo. Entre Frola e estes últimos acendeu-se uma antipática
polêmica pessoal, que desanimou todos os antifascistas italianos no Brasil. Nós, os antifascistas do Rio,
não tomamos partido, pois se tratava mais de questões pessoais do que de ideias. Esta atitude
enfureceu Mariani, oriundo como eu da Romanha [região da Itália perto de Bolonha]: ele queria que
nos colocássemos do lado dele contra Frola. O movimento antifascista da colônia italiana de São Paulo
desagregou-se, e isso foi uma pena, pois São Paulo era uma das poucas cidades da América do Sul onde
o antifascismo fosse realmente forte. [...] Quando, anos mais tarde, Mariani veio morar no Rio de
Janeiro, fechou-se num isolamento inexplicável. Não falava com nenhum dos antifascistas e afastou-se
também de Libero Battistelli, embora tivesse sido acolhido por ele com muita gentileza”. GARAVINI,
Nello. Testimonianze. Anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna. Imola: La
Mandragora, 2010, p. 170-171.
126
Cf. “Rio, la Rivoluzione e ...Mario Mariani”. La Difesa, ano VI, n. 332, 15.11.1930, p.2
127
Segundo informações presentes em TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico op. cit., BERTONHA,
João Fabio. Sob a sombra de Mussolini, op. cit., e SANTOS, Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da
policia politica: vigilância e repressão no Estado de São Paulo (1924-1945), op. cit., Mariani continuou na
direção de La Difesa e na liderança da Lidu, mas em 1933, em dificuldades econômicas, tentou um
acordo com o regime fascista, aceitando abandonar o empenho antifascista em troca do pagamento de
direitos autorais passados. Obtida a autorização pelo próprio Mussolini, e de posse de um passaporte
174
Mas este foi o último artigo de Battistelli para o periódico paulistano. Em 1930,
escrevera somente oito vezes no jornal. Nos próximos três anos (e três meses), com o
jornal sob a direção de Cilla e depois, a partir de dezembro de 1931, do próprio Mariani,
e em seguida de Bixio Picciotti, Libero não escreverá mais, nem em La Difesa, nem em
seu alter ego, L’Italia. Ainda participará de duas subscrições em 1931, mas nenhum
artigo publicado: não é dado saber se por iniciativa dele mesmo ou se por decisão da
direção.128
Battistelli colaborou ainda com Frola e seu periódico recém-lançado em Buenos Aires,
onde o ex-diretor de La Difesa tinha aportado após sua volta da Europa. Risorgimento:
quotidiano antifascista, era o nome daquilo que começou como um diário em dezembro
de 1930, mas em breve se transformou num semanário, mesmo assim sobrevivendo por
poucos meses. Libero publicou dois artigos. Em dezembro de 1930, 129 enalteceu o papel
das nações latino-americanas, que conquistaram a liberdade e instauraram regimes
republicanos em virtude de autenticas revoluções: aqui também, como já no ultimo
artigo para La Difesa, elogios para a “revolução” varguista, apontada por ele, junto a
análogos casos da América do Sul (afinal estava escrevendo para um periódico
portenho), como exemplo para uma Europa onde soprava o vento da reação. No mês de
maio de 1931130, num dos últimos exemplares do periódico, perguntava-se sobre as
relações entre a Santa Sé e o Estado que haveria de se estabelecer após a derrota do
fascismo na Itália.
Divergências, sem dúvida, e uma escolha de campo foi o que levou Battistelli a se
afastar do grupo que estava levando pra frente o empenho em La Difesa. Ou, talvez,
fosse a decisão de se posicionar fora de questionamentos e acusações que não iam
contribuir à causa do antifascismo.
Ou, ainda, após ter advertido, na brevíssima
para Espanha, Portugal e América do Sul, concedido pela embaixada italiana do Rio após ele ter
declarado que o usaria para um tour de propaganda comercial em favor do açúcar brasileiro, Mariani
viajou para a Argentina, onde encontrou também Cilla, naquele país desde alguns anos. Mariani
retomará sua ação antifascista em terra portenha, voltando para a Itália em 1947, e retornando de novo
ao Brasil, onde morrerá em 1951.
128
Em maio de 1931, em ocasião de uma passagem pelo Rio de Janeiro, Ugo Scalabrino, encarregado
pelo jornal de visitar assinantes e antifascistas em geral do interior do Estado de São Paulo e de outras
capitais, encontrou Battistelli (e, como já vimos, também Giuseppe Scarrone). A conversa com Libero
evidenciou opiniões discordantes sobre o movimento no Brasil. O visitante chegava a lamentar a
inexistência de seções dos partidos socialista e republicano italianos na Capital Federal, onde se
registrava somente a presença da Lidu, como grupo de elite. Cf. “Vita sociale degli italiani in Brasile. La
Difesa in viaggio”. La Difesa, ano VIII, n. 357, 30.5.1931, p. 4.
129
Cf. “Storia che si ripete”. Risorgimento, Ano I, n. 11, 11.12.1930, p. 3.
130
Cf. “Problemi italiani: il Papato”. Risorgimento, Ano I, n. 31, 7.5.1931, p. 3
175
temporada na França, quanto egoísmos, protagonismos ou preconceitos pudessem
dividir e, portanto, enfraquecer as tentativas de luta, talvez se tratasse, para Libero, de
uma evidência cada vez mais forte e urgente: a da necessidade de intensificar a análise e
o debate sobre o futuro que o antifascismo planejava construir. Os anos a seguir, de
1931 a pelo menos 1934, representaram para Battistelli o tempo da reflexão e da
elaboração de um projeto de sociedade alternativo àquele que os fascismos estavam
colocando, ou querendo colocar, em ato na Europa e no mundo.
3.10. Um intelectual
Em 1931, Battistelli publicava no Rio de Janeiro I Fuori-classe, um pequeno livro de 43
páginas, escrito entre julho e setembro do mesmo ano131. Diante de um fascismo cada
vez mais triunfante em sua pátria, consagrado pelo Tratado de Latrão e pelas eleições
plebiscitárias de 1929, em que 98% dos votantes aprovaram as listas únicas
apresentadas pelo partido fascista, e, possivelmente, tomado por dúvidas a respeito dos
rumos do ímpeto inovador do governo Vargas, e de suas promessas de revolucionar os
equilíbrios de classe no Brasil, Libero talvez percebesse a necessidade de ordenar seus
pensamentos e oferecer de forma mais completa uma sua pessoal contribuição ao debate
do antifascismo. Foi nesse pequeno instrumento de reflexão e em seus artigos dos anos
sucessivos, publicados no periódico Problemi della Rivoluzione Italiana e nos Quaderni
di Giustizia e Libertá, que o republicano, por enquanto ainda simples simpatizante, mas,
com o passar do tempo, expoente destacado do movimento de Rosselli, condensou sua
posição. Autêntico intelectual, segundo ambas as definições consagradas pelos estudos
de Sirinelli132, isto é, a sociológico-cultural, mais ampla e que diz respeito a criadores e
mediadores culturais, e a mais restrita, fundamentada na noção de engajamento politico.
Battistelli se enquadrava nas duas, sendo tanto produtor e difusor de instrumentos de
mediação cultural, com seus artigos e seus opúsculos, quanto pessoa diretamente
empenhada no debate e na luta politica. Pode, ainda seguindo Sirinelli, não ter
131
BATTISTELLI, Libero. I Fuori-classe: tentativo di una determinazione e di un orientamento politico dei
residui sociali, Rio de Janeiro, 1931. O livreto foi impresso em São Paulo, pela Tipografia Cupolo, Ladeira
Santa Ephigenia, 21.
132
Ver SIRINELLI, Jean-François. “Le hasard ou la nécessité? Une histoire en chantier: l’histoire des
intelectuels”. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire, Paris, n.9, janeiro-março 1986, p. 97-108.
E também
--------. “Os intelectuais” In RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: EdUFRJ/FGV, 1996,
p. 231-269.
176
pertencido ao grupo dos “grandes intelectuais” de seu tempo (como Gobetti ou Nenni,
Gramsci ou Rosselli), e se enquadrar mais adequadamente no âmbito dos intelectuais
menores, mas sua contribuição nos parece uma das mais significativas do conjunto do
antifascismo no exilio.
Seu texto mais denso e elaborado, I Fuori-classe buscava determinar, como enunciava
de forma um tanto hermética o subtítulo, o lugar politico de uma categoria social que se
colocava entre a burguesia e o proletariado, formada por cidadãos que não se
enquadravam em nenhum dos dois polos dos clássicos esquemas “bi-classistas
“ (ricos
vs pobres, exploradores vs explorados etc...). Chamados por muitos de classes médias,
Battistelli sugeria a denominação de fuori classe (fora da classe, ou das classes) e os
definia assim: “todos os que recebem integralmente e unicamente o correspondente de
seu trabalho, que não se alteraria, sensivelmente e relativamente, se mudar a
constituição econômica da sociedade”. E em seguida ia listando os que poderiam ser
colocados nesta categoria politica: dos profissionais liberais aos funcionários públicos,
dos quadros de empresas privadas aos técnicos, dos oficiais de exército e marinha aos
artistas, cientistas e magistrados, até artesãos, estudantes e aposentados. Na Itália,
comentava Battistelli, cerca de um terço da população masculina acima dos 18 anos
eram fuori classe. Daí a importância de estudar esta categoria social, que, em países
onde nem burguesia nem proletariado possuírem uma maioria absoluta em termos de
classe (de novo, como a Itália), podia representar o fiel da balança, além do fato que
fuori classe eram praticamente quase todos os dirigentes políticos, de uma como de
outra das duas classes antagonistas. Depois de mostrar como o pertencer a uma classe
geralmente gerava uma consciência do pertencimento à mesma e de seus interesses
(consciência sempre clara para os capitalistas133, às vezes obscurecida ou adormecida
para a classe trabalhadora), a análise de Libero ia discorrendo sobre os interesses, ou,
melhor, as “forças ideais” que agiam sobre os fuori classe: das “conservadoras e
reacionárias” (ou egoístas), como patriotismo, ordem e legalidade, às “sentimentais”
(que agiam em sentido progressista), como pacifismo, humanitarismo ou liberdade, até
133
Battistelli dizia que “nos capitalistas [...] a consciência de classe é geralmente claríssima. Um
empresário ou um proprietário de terras que sejam sinceramente socialistas, nunca é porque ignoram
de pertencer a uma classe cujos interesses contrastam com os postulados da doutrina socialista, mas
sempre porque julgam que os interesses de sua classe não mereçam defesa” (I Fuori-classe, op. cit., p.
19-20). Talvez, entre os exemplos, aqui não citados, mas presentes na mente de Libero ao escrever estas
linhas, estivesse também o caso de Giuseppe Scarrone, com sua fábrica de vidros e sua fé socialista.
177
chegar a caracterizar a força ideal completa e plenamente realizadora de uma renovação
da sociedade, a justiça.
“É então à ideia-força da Justiça que se deverá principalmente apelar a fim de que os
fuori classe participem de forma eficaz e duradoura da luta politica para a renovação da
Sociedade”: assim Libero introduzia o leitor nas conclusões de seu escrito. Que
proclamava a iniquidade da exploração econômica dos trabalhadores e da divisão da
sociedade em classes, e a urgência da derrubada do capitalismo. A luta para a afirmação
do socialismo deverá ver o proletariado aliado necessariamente aos fuori classe para que
seja possível a vitória, diferentemente daquilo que afirmavam os teóricos marxistas, que
costumavam negligenciar a convocação destes setores para a revolução.
Não é dado saber muito sobre a repercussão do livrinho de Battistelli, difundido tanto
no Brasil quanto no exterior. Houve uma breve resenha na revista gielista134, que
elogiava a elaboração teórica do autor, criticando, contudo, o papel de liderança
atribuído aos fuori-classe sobre a classe operaria, que, pelo contrário, deveria se dirigir
autonomamente.
Montevidéu.
135
Houve outra na revista anarquista Studi Sociali, publicada em
Sinais de uma circulação provavelmente limitada ao restrito âmbito do
antifascismo italiano no Brasil, alguns países latino-americanos e a França. O que talvez
seja possível dizer aqui é sobre as circunstâncias que podem ter levado Battistelli a
formular suas reflexões. Ele mesmo um fuori-classe, enquanto advogado e também
jornalista, após sua ida à Europa, mesmo continuando sua filiação republicana,
começava um caminho de aproximação do movimento de Giustizia e Libertá, cujos
membros eram principalmente oriundos do mundo intelectual italiano, próximos aos
setores médios da sociedade. Como carregar ideais e programas de inspiração socialista
a partir desta origem social, desta proveniência tudo menos que proletária? À pergunta,
que devia estar constantemente presente na reflexão de Rosselli e companheiros, e que
habitava também os pensamentos de Battistelli, o livro de Libero oferecia um esboço de
resposta. Mas é verissímil que o escrito encontrasse suas razões de urgência também
numa singular polemica provocada por uma carta dirigida por um amigo republicano a
Battistelli e por uma sucessiva carta deste último para um dos dirigentes de GL em
Paris.
134
135
Cf. Quaderni di Giustizia e Libertá, ano I, n. 2, março 1932, p.73-74.
Cf. Studi Sociali, ano II, n. 16, 10.1.1932.
178
No começo de junho de 1931, o republicano Pietro Montasini, vice-secretário da
Concentrazione antifascista de Paris, escreveu para Battistelli136 a fim de alertá-lo
acerca da natureza e de algumas características do movimento de Giustizia e Libertá,
assim como ele as julgava pela atuação de seus dirigentes na capital francesa. GL,
segundo o expoente republicano, era um movimento incapaz de dialogo, centralizador,
desejoso de dominar o mundo do antifascismo no exilio, hegemonizado por um grupo
liberal e ultraconservador, que provocara a recente saída de elementos republicanos e
socialistas que até pouco tempo antes estavam presentes nas suas fileiras. Montasini
escrevia ao amigo (“sabendo que você é, no Brasil, um dos que ajudam o movimento de
Giustizia e Libertá”) de forma pessoal, mas parecia interpretar o pensamento de amplos
setores de seu partido, se não da inteira Concentrazione.
Battistelli deve ter respondido a Montasini, mas é conhecida a carta que ele escreveu
imediatamente para Lussu137, dirigente de GL com o qual se correspondia desde sua
estada em Paris no ano anterior: nela, Battistelli resumia os juízos e as críticas de
Montasini, acompanhando-as com expressões que manifestavam sua surpresa (“Eu,
republicano e gregário inútil, mas sincero de GL, duas coisas que até então me
pareceram compatibilíssimas”) ao saber das divergências existentes entre o movimento
e a Concentrazione:
Confesso-te que a noticia deste dissidio me surpreendeu. No breve
tempo de minha permanência em Paris [...] tive a impressão que GL e
Concentrazione fossem sim coisas diferentes, como deviam ser, mas
não contrastantes [...]. Era logico que GL, por sua natureza (secreta,
quase), por seu campo (a Itália) e por seu fim (a ação) fosse
simultaneamente mais vasta e mais escolhida que a Concentrazione. E
que fosse absolutamente independente, sem que isto impedisse a
socialistas e republicanos de participar do movimento. [...] Divisão de
trabalho, necessária, mas não separação e, em caso algum, oposição.138
E concluía sua carta com um pedido de esclarecimento, o único que lhe importasse
realmente de todas as criticas a GL: se correspondesse a verdade a “preponderância dos
elementos monarquistas e conservadores [em GL], o que imprimiria a todo o
136
Carta de Pietro Montasini a Libero Battistelli, Paris, 2.6.1931. ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá,
fasc. 12, sottofasc. 1, ins. 2.
137
Carta de Libero Battistelli para Emilio Lussu, Rio de Janeiro, 19.6.1931, In SCHIAVI, Alessandro. Esilio e
morte di Filippo Turati (1926-1932), Roma: Opere Nuove, 1956, p. 442-445.
138
Ibidem.
179
movimento um endereço em desacordo com os votos e as esperanças dos antifascistas
italianos (eu incluído)”.139
A pergunta que Libero colocava aos companheiros de Paris era então se GL podia se
apresentar ao mundo do antifascismo como um movimento autenticamente inovador, de
“esquerda”, aberto para a transformação da sociedade em sentido socialista. E se seus
dirigentes e quadros, na sua maioria fuori-classe, estavam dispostos a se aliar ao
proletariado num caminho revolucionário.140 Seu pequeno livro, escrito logo após a
troca de cartas descrita acima, vinha para mostrar a necessidade desta aliança e indicar,
quem sabe, à própria liderança de GL, criticada por vários antifascistas pelo
conservadorismo de sua linha politica, qual o autêntico percurso de um fuori-classe. 141
Todo o ano de 1932 verá Battistelli se desdobrando para reafirmar sua visão da batalha
antifascista e sua leitura da situação italiana, em cartas e artigos para várias publicações
do mundo do exilio. Uma primeira, significativa contribuição foi uma carta dirigida
genericamente para GL, no mês de fevereiro, tendo como titulo “Observações críticas
ao programa de Giustizia e Libertá”142. Esse programa (ou melhor, um esquema de
programa) tinha sido publicado um mês antes, no primeiro número da nova revista, os
139
Ibidem.
Ainda em sua carta, mesmo formulando a interrogação acima, Battistelli mostra de não acreditar nas
críticas a GL apresentadas por Montasini. Ele diz, com efeito: “Para nos entendermos: quando você
[Lussu] e Rosselli são chamados de ‘liberais’ [...] tenho bastante cultura política para sorrir [...] A única
acusação que seria para mim importante tenho a impressão que seja infundada, mas desejo a
confirmação que meu faro e algum conhecimento dos homens não me enganaram”. A referência para
“faro e conhecimento dos homens” eram evidentemente os dias passados por Libero em Paris no ano
anterior.
Quanto ao restante do mundo do antifascismo, em 1930 Rosselli publicara em Paris seu Socialismo
liberal, mas evidentemente, a um ano de distância da saída do livro, dúvidas e questionamentos se
agitavam no âmbito do fuoruscitismo, porque uma coisa eram proclamas e propostas do líder
reconhecido de GL, outra coisa atitudes, declarações, comportamentos e frequentações politicas de
vários entre os membros da direção do movimento.
141
A respeito da continuação do debate, não constam nos arquivos correspondências de ou para
Battistelli que tratem diretamente da participação deste nos desdobramentos da polêmica. Mas a
discussão que se seguiu no âmbito do fuoruscitismo em Paris pode ser mapeada facilmente, antes de
tudo pelo fato dos lideres de GL ter repassado aos dirigentes socialistas (e por consequente da
Concentrazione) a carta de Libero para Lussu que citava as críticas de Montasini, exigindo explicações a
respeito da tomada de posição do próprio vice-secretário da Concentrazione. Seguiu uma troca de
mensagens, sobretudo entre Rosselli e o velho líder socialista Turati, mas com a participação de outros
expoentes do antifascismo no exilio na França. Arestas foram aparadas, pontos difíceis esclarecidos, até
que, em novembro do mesmo ano de 1931, Giustizia e Libertá entrava a fazer parte da Concentrazione
antifascista.
142
Libero Battistelli a GL. “Osservazioni critiche al programma di Giustizia e Libertá”, Rio de Janeiro,
27.2.1932. ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 3, sottofasc. 2. Ver também o texto em ZUCARO,
Domenico (org.). Socialismo e Democrazia nella lotta antifascista (1927-1939), Milano: Feltrinelli, 1988,
p. 162-165.
140
180
Quaderni di Giustizia e Libertá,143 que Libero também recebia em sua residência
carioca, e dos quais aparece, desde o n. 2 (março de 1932), como o responsável pelo
envio de assinaturas para a América do Sul, até pelo menos agosto do ano sucessivo (n.
8). O esquema de programa respondia a solicitações de várias componentes do
antifascismo para que GL manifestasse com mais clareza seus entendimentos e suas
ideias.144 Nesta contribuição, Battistelli intervinha sobre dois aspectos do programa: a
questão da Constituinte e o tema da propriedade privada. Sobre o primeiro assunto,
Libero chegava a sugerir que não se fizesse menção à convocação de uma Constituinte,
pois este instituto poderia colocar freios ao plano de renovação do governo
revolucionário, uma vez este ter derrubado o regime fascista e começado a esboçar o
novo rosto do país. Quanto ao segundo tema, Libero era categórico: “O esquema de
programa afirma como principio, apesar das numerosas e graves exceções [...], o da
propriedade privada. Preferiria, ao contrário, que fosse afirmado o princípio socialista,
fora exceções”, E apresentava várias justificativas, sobretudo a de que “um programa
deve ser sempre mais amplo e avançado daquilo que seus próprios autores pensam em
boa fé de poder realizar”. Um Battistelli, então, fuori-classe, mas abertamente partidário
da socialização da propriedade, e de uma atitude revolucionária na tomada do poder que
chegasse, inicialmente, até à dispensa das garantias constitucionais para favorecer seu
sucesso. Uma visão socialista e “subversiva”, presente de certo modo desde os tempos
das lutas em Bolonha, que se tornava agora explicita.
Uma carta do próprio Rosselli a Libero, dois meses depois, provocava a resposta
imediata deste último,145 que mostrava a consolidação de sua adesão a GL, e consagrava
de certa forma sua passagem das fileiras do partido republicano ao movimento de
143
De janeiro de 1932 a janeiro de 1935 foram publicados 12 números, com periodicidade
aproximadamente trimestral. A revista, dirigida por Carlo Rosselli, era editada em Paris, 103, Faubourg
Saint-Denis.
144
“Fruto do debate e das discussões das posições dos vários membros do movimento [...] o esquema
refletia sua heterogeneidade [...] Particularmente o paragrafo sobre as estruturas políticas futuras
apresentava características imprecisas e indeterminadas. Com efeito, de um lado, se fazia referência à
tradição democrático-republicana, sugerindo a criação dos típicos institutos do sistema parlamentar, do
outro, se afirmava que a República que nasceria das cinzas da ditadura se basearia essencialmente nas
classes trabalhadoras e em suas organizações autônomas, o que fazia pensar num Estado formado por
conselhos. [...] Existia um comum denominador [...] o acordo sobre alguns motivos inspiradores, como a
liberdade e a autonomia”. Quanto ao “campo econômico e social”, o esquema previa na agricultura “um
regime misto” (pequenos proprietários camponeses junto com propriedades coletivas) e uma “reforma
industrial que temperava o principio da socialização com a iniciativa privada”. Cf. TOMBACCINI,
Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia, op. cit., p. 158-161.
145
Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 27.4.1932. ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli,
fasc. 1, sottofasc. 8.
181
Rosselli. De Giustizia e Libertá, com efeito, ele tinha-se declarado “gregário inútil, mas
sincero” na carta a Lussu do ano anterior, mas agora chegava a escrever para Rosselli,
como já vimos: ”Meu posto foi então [1922] entre os republicanos, assim como agora é
entre vocês. Porque a identidade moral e de caráter é muito mais importante do que a
identidade ideológica”. Uma identidade moral e de caráter, talvez nunca uma completa
identidade ideológica: em parte, é de se pensar, pela um tanto fluida consistência
ideológica de GL, mas sobretudo, a partir de muitos dados presentes na documentação,
por uma sistemática recusa em Battistelli de rígidos esquemas interpretativos e por uma
abertura, como já foi visto, diante de percursos políticos diferentes do seu.
A carta para Rosselli contribui a esclarecer seu pensamento sobre o projeto politico de
GL. Antes de tudo, Battistelli enfatizava a importância e o valor revolucionário de
certos “mitos retóricos”, principalmente para as massas, que, em força dos mesmos,
infelizmente ainda se identificavam com o “partido dos pequenos politiqueiros de Paris”
(isto é, os lideres históricos socialistas). A argumentação era apresentada a partir de
considerações sobre a evolução do pensamento de Lenin, retirado da leitura de suas
obras, seja do primeiro como do segundo período: interessante sinal de um interesse em
Battistelli para aquele que podia ser considerado o protótipo do revolucionário. Além
disso, ele contribuía com outras observações a respeito da questão da abolição da
propriedade privada e dos perigos ligados à convocação de uma Constituinte por parte
de um futuro governo revolucionário. Um trecho da carta revela como uma das
inspirações para estas reflexões viessem a Battistelli do exemplo brasileiro, e, ao mesmo
tempo, mostra quanto ele acompanhasse os fatos políticos nacionais:
“E permanece também o outro perigo: que a convocação da Constituinte
seja reclamada prematuramente (quando o governo ainda não tiver
completado a transformação fundamental) por uma oposição bastante
hábil em se valer do mito da soberania popular e em denunciar por cada
atraso as intenções ditatoriais do governo. Aqui, no Brasil, uma tática
parecida está trazendo graves embaraços para o governo provisório. Os
velhos conservadores reclamam em alta voz a Constituinte prometida e
naturalmente atraem debaixo desta bandeira democráticos e liberais
sinceros. Os governistas-revolucionários, em boa ou má fé, respondem
afirmando a necessidade de uma preventiva, e ainda não completada,
modificação dos organismos políticos. E, para se defender, estes,
oriundos de posições de esquerda, acabam por adotar métodos fascistas.
A Itália não é o Brasil, mas as promessas [de Constituintes] são
perigosas em qualquer lugar”.146
146
Ibidem.
182
Notações finais da correspondência revelavam o compromisso de Libero com GL e sua
revista, ciente, contudo das dificuldades do ambiente, não somente brasileiro.
Anunciava o envio futuro de algum artigo, embora de forma irregular, devido às
circunstâncias e ao isolamento; declarava a impossibilidade de recolher assinaturas,
pedindo, contudo, o envio de cinco ou seis exemplares, que ele mesmo iria vender ou
distribuir, sempre se responsabilizando pelo pagamento, e, quanto à organização do
movimento, pedia para “não contar com a América em geral, e com a do Sul em
particular”.147
Mais quatro contribuições de Libero ainda no ano de 1932 demonstram sua vontade de
intervir no debate internacional, fugindo do isolamento geográfico ao qual o condenava
a permanência na “periferia da emigração antifascista”. Desde agosto de 1931, circulava
Problemi della Rivoluzione Italiana, uma revista publicada em Marselha por um grupo
de republicanos de esquerda.148 Ligado desde sua filiação política a esta corrente do
PRI, Battistelli se sentia à vontade para manifestar no periódico desta mesma área
opiniões e entendimentos a respeito da luta antifascista, ainda mais sabendo que se
tratava de uma publicação que visava se colocar como instrumento de debate politico,
sem excessivas preclusões.
Assim em março de 32, apareceu um primeiro artigo de Battistelli,149 que apresentava as
características de um “antifascismo integral”, autêntico protagonista de uma revolução
que saberia salvaguardar ambos os polos que nenhum movimento revolucionário
conseguiu manter unidos: a liberdade e a igualdade (ou a justiça), sacrificadas, ora a
primeira (na revolução bolchevique), ora a segunda (na revolução francesa). Battistelli,
auspicando uma revolução antifascista para a Itália, mostrava como ela, visando abater
o fascismo, ao mesmo tempo defensor da iniquidade econômica e supressor da
liberdade política, poderá ser completa, realizadora de uma sociedade “comunista,
regida de forma democrática”. E para apoiar sua proposta, Libero recordava a tradição
originalmente italiana das “Comunas, exemplo máximo de democracia operária até os
tempos mais recentes”. Fundamentado, como outros textos de Battistelli, em leituras e
147
Ibidem.
Editora era a E.S.I.L. (Edizioni Sala Italia Libera), situada em Marselha, 3, Boulevard de la Corderie. O
subtítulo da publicação, mensal, mas com periodicidade irregular, era: “Aprofundar o conhecimento da
crise italiana e a consciência dos problemas do antifascismo”. Os republicanos Volterra, Schiavetti e
Chiodini estavam entre os fundadores.
149
“Uguaglianza e libertá. Elementi di antifascismo integrale”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 7,
março de 1932, p. 3-15.
148
183
análises de amplo respiro, o artigo parecia usar com bastante liberdade fórmulas do
linguajar politico do tempo, como a categoria de comunismo. É clara, em muita parte de
sua produção e de seu comportamento, a estima do autor pela tentativa de realização
social e econômica do comunismo soviético, mas também sua crítica ao sufocamento da
liberdade que o mesmo comportava. Clara também é a disponibilidade a colaborar com
expoentes do mundo comunista italiano (de Rosini, como vimos, a voluntários na guerra
civil espanhola). ‘Comunismo’, na interpretação e na construção politica de Battistelli,
parecia cada vez mais sinônimo de um regime politico de autêntica igualdade social.
Para isso, não há dúvidas, lutou a vida inteira.
Poucos meses depois, outro artigo150 aparecia nas páginas da revista, assinado por ele.
Mais uma vez se apresentava o problema de como a revolução, uma vez tomado o
poder, podia se manter sem perder seu élan, sua força, e sem sucumbir diante dos
grupos contrarrevolucionários ou ultrarrevolucionários. Daí a necessidade que a
“república socialista e democrática”, que, segundo Battistelli, poderia se instalar após a
queda do fascismo, saiba manifesta prontidão de ação e iniciativa, na atuação de seu
programa. Aqui, Libero, que aproveitava para se caracterizar como “republicano muito
sui generis”151, introduzia uma nota de apreciação para o esquema de programa de GL,
que, “afirmando a necessidade de mudanças bastante radicais, é decididamente
revolucionário”: nisto, indo na contramão de comentários críticos ou até negativos sobre
o movimento de Rosselli e seu programa, presentes em vários números da revista.
Do artigo de Battistelli publicado naqueles mesmos meses nos Quaderni152 já foi dito
acima, mas merece uma menção aqui, antes de tudo, para lembrar a tese principal do
mesmo, segundo a qual, para a construção real da paz, de nada adiantariam as corridas
ao desarmamento ou as tentativas de unir os Estados em federações ou uniões, sendo a
verdadeira e única solução a busca de homogeneidade, isto é, a tentativa de fazer com
que em todos os Estados, no interior das várias nações, prevaleça o ideal comum da
justiça. Se se deseja a paz, tem que se construir a justiça, afirmava Battistelli,
fundamentando nela as estruturas político-sociais dos Estados. Justiça: de novo a
palavra chave, o valor supremo, que já aparecera em I Fuori-classe.
150
“Inconvenienti di segnare il passo”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 11-12, julho-agosto de
1932, p. 3-7.
151
Confirmando assim (com o acréscimo de um “muito”) análoga definição de seu pertencimento
politico presentes nas duas cartas enviadas três anos antes para o anarquista Camillo Berneri.
152
“Disarmo e Stati Uniti d’Europa”. Quaderni di Giustizia e Libertá, nº 4, setembro 1932, p. 29-37.
184
Libero, contudo, chegou a enviar artigos não só para periódicos impressos na Europa.
Studi Sociali era uma revista de orientação anarquista,153 criada e dirigida pelo italiano
Luigi Fabbri, que emigrara ainda em 1926 para a França e, expulso deste país, refugiouse no Uruguai. Conhecido o periódico e o próprio diretor provavelmente por intermédio
do também anarquista Nello Garavini – exilado com a família no Rio desde 1926, e
com o qual, como veremos mais para frente, Libero estabelecera uma forte amizade,
além das diferenças ideológicas - Battistelli contribuía com pequenas doações em
dinheiro e com alguns textos, que apareciam na revista, mesmo que norma do periódico
fosse publicar somente o que correspondia mais ou mesmo exatamente à sua linha
teórica. Em julho de 1932, foi a vez de uma contribuição de Libero sobre a crise do
Partido Republicano Italiano154, que em ocasião de seu congresso realizado alguns
meses antes na França, se dividiu em dois grupos: uma maioria que votara pela saída do
partido da Concentrazione, e uma minoria que votou para a permanência. Battistelli
chegava a prever o desaparecimento até do próprio partido, sem julgar isso negativo, se
podia ajudar na criação de algo novo, de uma nova agremiação, que, aproveitando das
tendências de renovação presentes entre os socialistas, soubesse criar um movimento
único e unido, não só formalmente, como aparentava ser a Concentrazione, e não só
“para a ação”, como se declarava GL. Contribuição de um republicano “sui generis”,
participante de Giustizia e Libertá, ao qual, contudo, não poupava críticas, e publicada
num periódico anarquista: símbolo de uma atitude de empenho e vontade de confronto a
360º.
3.11. Vida pública e vida privada
Após a crise com o grupo dirigente de La Difesa, Libero, então, foi aprofundando seu
pensamento e a reflexão sobre o projeto politico do antifascismo. A apresentação e
análise dos textos acima, longe de cristalizar a figura de Battistelli como um intelectual
dado a elucubrações teóricas, evidencia a paixão política de quem advertia a
necessidade de fundamentos sólidos e diretrizes claras para que a oposição à ditadura
fascista pudesse ter sucesso: ainda mais tendo que exercer a oposição do outro lado do
153
Revista bimensal, inicialmente, e com periodicidade variada, depois, trazia como subtítulo “Rivista di
libero exame”. Começou a circular em março de 1930, sendo impressa inicialmente em Buenos Aires e
depois em Montevidéu.
154
“La Crisi del Partito Repubblicano Italiano e alcuni suoi possibili effetti”. Studi Sociali, ano III, n. 20,
25.7.1932, p. 6.
185
oceano. Essa preocupação acompanhará Libero até as vésperas de partir para a guerra
na Espanha, mas sempre em unidade com o desejo de ação e testemunho prático. Assim,
ainda nos primeiros anos na década de 30, no Rio de Janeiro, ele se destacava no
contexto da coletividade italiana e no âmbito mais amplo da sociedade da Capital, por
iniciativas e tomadas de posição de cunho antifascista.
Partida da Itália no mês de dezembro do ano anterior, uma esquadrilha de 11
hidroaviões italianos chegava no dia 15 de janeiro de 1931 à Baia de Guanabara,
completando a primeira travessia do Atlântico em grupo, feito que queria celebrar tanto
as capacidades técnicas da aeronáutica italiana, quanto as qualidades morais do aviador
debaixo do fascismo. Líder da façanha era Ítalo Balbo, Ministro da Aeronáutica e um
dos mais destacados expoentes do regime. Sua chegada ao Rio teve ares de triunfo:
celebrado pelas autoridades brasileiras, recebido até pelo presidente Vargas, festejado
pela imprensa e por expoentes do mundo politico e da sociedade carioca, Balbo ocupou
por muitos dias as páginas dos diários nacionais.
Os antifascistas se mobilizaram, denunciando desde logo em Balbo o responsável de
crimes e violências ainda nos anos 20, entre as quais o assassinato do sacerdote católico
don Giovanni Minzoni, em 1923, na região de Bolonha. Não há muita documentação a
respeito dessa mobilização, fora as matérias publicadas por La Difesa, mas segundo o
relato de Garavini, a esposa deste, Emma, e a de Battistelli, Enrichetta, “foram nas
principais ruas do Rio de Janeiro distribuindo milhares de panfletos contra o fascismo,
com impressa a imagem de don Minzoni, assassinado pelos capangas às ordens de
Balbo”.155 A mão de Libero estava provavelmente atrás desta iniciativa, se, três meses
depois, as autoridades consulares do Rio foram acionadas pelo Ministério do Interior
italiano a fim de esclarecer o caso do envio da Capital brasileira de duas misteriosas
cartas, uma para o capitão do aeroporto de Orbetello (de onde partira a esquadrilha) e
outra para o pároco do mesmo, que tinham-se felicitado com Balbo, por telegrama, pelo
sucesso de sua expedição. As missivas manifestavam desaponto pela atuação dos dois
155
GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della
Romagna, op. cit., p. 184. A esposa de Libero se tornou protagonista também de um abaixo assinado,
que recolhia as assinaturas de várias mulheres brasileiras (talvez as funcionárias de seu atelier), e que foi
publicado pelo Diário de Noticias, 18.1.1931, p.6. Nele se lê, entre outras coisas: “As mulheres
brasileiras levantam seu protesto, lembrando que o Brasil ainda não é uma colônia de Mussolini e ainda
não foi conquistado pelas camisas pretas de Ítalo Balbo”. Entre as assinaturas, a de Enrichetta Battistelli
e de sua cunhada Clara Zuccari. La Difesa também registrou o protesto em sua edição do ano VII, n.
340, 25.1.1931, p. 2 (“Manifestações da imprensa e da opinião publica brasileira, Diário de Noticias”) e
p. 4 (“Il freddo a Rio”).
186
(indignas tanto do uniforme de oficial da aeronáutica, quanto do hábito sacerdotal), os
acusavam de servilismo perante o fascismo e lembravam os crimes de Balbo.
Encabeçadas com a fórmula “Associação dos homens livres” e levando em anexo “um
manifesto com a imagem de d. Minzoni e dizeres em língua espanhola [sic]”, eram
assinadas “Battistelli ou Battistini”.156
Sempre naquele ano, há noticia da criação de um novo organismo no âmbito do
antifascismo no Rio de Janeiro, a Associação Antifascista. Battistelli e Giovanni Scala,
segundo informações transmitidas a Roma pela embaixada italiana, em maio de 1932,
teriam sido encarregados, pelos componentes, “poucos elementos antifascistas
anticlericais e comunistas brasileiros”, de “redigir o estatuto da nova associação”157, que
não é dado saber se se tratasse efetivamente de algo novo, ou da reformulação de
agremiações anteriores, numa tentativa de revitalização. Nestes primeiros anos da
década de 1930, com efeito, não há mais notícias de atividades no Rio de Janeiro das
antigas organizações, quais Italia Libera, a Lega Antifascista ou a própria Lidu.158 Um
dado interessante, contudo, presente no estatuto, revela algo a mais: quando se falava,
no art. 1, da finalidade de “combater todos os partidos, grupos, correntes ideológicas,
politicas e econômicas já existentes ou que se tentar criar, debaixo de qualquer nome ou
forma, em qualquer país, cujo programa seja uma derivação do fascismo italiano” pode156
Ver ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), informe Ministério do Interior, comunicação n.
441.04801, 15.4.1931.
157
Ver ACS/CPC, ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro,
telespresso n. 310281.5421, 20.5.1932.
O estatuto declarava, no Art. 1: “Está constituída na cidade do Rio de Janeiro, com sede a Rua Theophilo
Ottoni, 148, a Associação Antifascista, cujas finalidades serão as seguintes: a) combater todos os
partidos, grupos, correntes ideológicas, politicas e econômicas já existentes ou que se tentar criar,
debaixo de qualquer nome ou forma, em qualquer país, cujo programa seja uma derivação do fascismo
italiano. [...]; b) combater, portanto, o fascismo italiano, considerado exemplo e modelo de todas as
tiranias reacionárias que se instalaram ou se busca instalar no velho e no novo continente, opondo-se
especialmente a suas intrigas e intervenções nos países de imigração italiana”. E no Art. 2: “Os meios
para conseguir estas finalidades serão fornecidos pelas atividades intelectuais e práticas dos associados.
[...] sempre nos limites das leis brasileiras, a atividade se desenvolverá especialmente através da
propaganda por meio da imprensa, com conferencias, discussões, estudos etc...”
158
Talvez possa ter havido influência dos eventos que se passaram no interior da colônia italiana
antifascista de São Paulo, onde Frola, retornado de Buenos Aires, continuava adversário do grupo que
editava La Difesa (Piccarolo, Cilla, Mariani), mas a Lega Antifascista, que o próprio ex-diretor do
periódico controlava antes e que por isso se recusava em aderir à Concentrazione de Paris, tinha agora
aberto as portas para o organismo unitário do antifascismo internacional, desde março de 1931. Ver
“L’adesione effettiva della Lega Antifascista alla ‘Concentrazione’ di Parigi votata all’unanimitá
dall’imponente assemblea generale di S. Paulo”. La Difesa, Ano VII, n. 318, 28.3.1931, p.1.
Uma hipótese, mas que não há como verificar, sugeriria que a Lega Antifascista carioca teria também
aderido ao organismo de Paris, e os antifascistas contrários a esse passo teriam dado vida à nova
denominação; outra possibilidade, ao contrário, indicaria que a própria Lega carioca, não querendo
seguir o exemplo paulista, ter-se-ia transformado na nova entidade.
187
se supor que o organismo pensasse no incipiente movimento integralista, que começava
a se apresentar em ruas e praças brasileiras.159
De todo modo há registros da participação de Battistelli, junto com Scala e outros, de
inciativas promovidas pela Associação Antifascista, assim como pela Liga Anticlerical,
ambas bastante ativas na cena cultural e politica carioca naqueles anos, e cuja sede
coincide, na Rua Theophilo Otoni, 148, 2º andar.
Palestras e comemorações se
sucedem durante o ano de 1932.160 Em junho foi o próprio Battistelli, em nome da
Associação Antifascista, a comemorar o oitavo aniversário do sacrifício de Matteotti161.
No segundo semestre do ano, coube ainda a ele, a pedido da Liga Anticlerical, da
Associação Antifascista e dos anarquistas da cidade, entre os quais Oiticica e Garavini que recorda o fato em suas memórias162 - celebrar a figura de Errico Malatesta, o
libertário italiano recém-falecido.
O homem público, protagonista de encontros e debates, se completa com a figura do
homem em sua vida privada. Um exemplo significativo no começo do ano de 1933.
Entre janeiro e fevereiro, a esposa adoeceu gravemente e, internada em casa de cura,
sofreu uma intervenção cirúrgica. Libero resolveu acompanhar de perto a evolução do
caso e as terapias, e se instalou no próprio hospital durante dias. Na circunstância, várias
cartas dirigidas a Garavini,163 oferecem relâmpagos de sua personalidade. Pedindo
insistentemente que nem ele nem sua esposa recebessem visitas, até ele mesmo liberálas, e se dando conta da estranheza da solicitação feita a pessoas que sabia quanto os
amassem, tentava uma justificativa (“sou um bicho selvático, de humor péssimo, e o
esforço para escondê-lo é pesado para mim”164), mas acabava declarando o motivo
principal: “Se trata de uma espécie de batalha na qual não quero ter um instante de
distração. Depois, se haverá um depois, encontrarei na amizade o conforto e o repouso
159
Desde o começo de 32, o escritor Plinio Salgado começara a articular grupos de vários Estados que
nutriam simpatias para o fascismo italiano. Em fevereiro congregou intelectuais desta tendência na
Sociedade de Estudos Brasileiros, e em outubro lançou o Manifesto da Ação Integralista Brasileira (AIB).
160
Em janeiro foi a vez de Edgar Sussekind de Mendonça, com palestra sobre o fascismo do ponto de
vista internacional (Cf. Diário de Noticias, 28.2.1932, p. 8) e em março Giovanni Scala discursou sobre as
origens do fascismo (Cf. Diário de Noticias, 29.3.1932, p. 7).
161
Cf. Correio da Manhã, 9.6.1932, p 2.
162
Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della
Romagna, op. cit., p. 169.
163
Ver Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB), Fundo Nello Garavini, Cartas de Libero Battistelli a
Nello Garavini.
164
BLAB, Fundo Nello Garavini, Carta de Libero Battistelli a Nello Garavini, Rio de Janeiro, [1933].
188
destes dias que pesam como anos”165. A existência, até em seus aspectos mais íntimos e
pessoais, era percebida, por Libero, como uma batalha, quase se tratasse de deter o
ataque das esquadras fascistas ou de lutar pela organização do antifascismo. E as muitas
expressões a respeito do valor da amizade e da solidariedade testemunhavam de uma
prática de vida que era, como já foi visto e se verá mais a frente, condição e método
também de organização e de luta política.
3.12. 1933-34. Tempos de mudanças: internacionais, nacionais e pessoais
O ano de 1933 representou um ponto de inflexão na curva do antifascismo. A chegada
de Hitler ao poder na Alemanha, em janeiro, demonstrava claramente a possibilidade do
fascismo se instaurar em países de elevado desenvolvimento capitalista, e a
contemporânea derrota, naquele país, de ativos e organizados partidos de esquerda,
como o socialista e o comunista, soava como sinal de alarme para o mundo do
antifascismo, italiano e não.166 Promovidas pelos franceses Henri Babusse e Romain
Rolland, as iniciativas do movimento Amsterdã-Pleyel (do nome das sedes de dois
congressos internacionais contra o imperialismo, o fascismo e a guerra, o primeiro na
capital holandesa, em agosto de 32, e o segundo na sala Pleyel de Paris, em junho de
33) agitavam o mundo intelectual europeu, mas seus efeitos reais eram muito escassos.
Mussolini era adulado pela opinião pública internacional e, em seu país, parecia cada
vez mais firme no poder, a ponto de conceder, em ocasião das celebrações dos dez anos
do regime, em 1932, uma ampla anistia aos presos políticos e comuns, revocando até o
decreto que infligira a perda da nacionalidade e dos bens para alguns fuorusciti. Na
capital francesa, a Concentrazione não conseguia resolver os eternos problemas de
conflitos internos e diversidade de visão, particularmente entre socialistas e GL, e a
morte de alguns dos lideres históricos do socialismo, como Turati e Treves, acrescentou
as dificuldades. Os primeiros meses de 1934 assistirão ao fim de sua parábola, e em
agosto socialistas e comunistas italianos assinarão um pacto de unidade de ação.
165
Carta de Libero Battistelli a Nello Garavini, Rio de Janeiro, 19.1.1933.
Para acompanhar de forma comparada os passos de reelaboração teórica e organização prática do
antifascismo europeu, útil (e ainda único) instrumento é o trabalho de DROZ, Jacques. Histoire de
l’antifascisme en Europe (1923-1939), op. cit..
166
189
No Brasil, respondendo aos convites europeus, nasciam Comitês “contra a guerra
imperialista”, tanto no Rio como em São Paulo, tendo como protagonistas sobretudo os
comunistas, cuja principal referência, a Internacional Comunista, oscilava neste período
ainda entre a antiga politica de isolamento, com a recusa de alianças com a
socialdemocracia, e a incipiente perspectiva da frente única. Ponto alto desta politica foi
a criação da Frente Única Antifascista (FUA) em junho de 1933, em São Paulo,167 com
o apoio de várias organizações antifascistas e de esquerda italianas e brasileiras: em
primeira fileira, além dos trotskistas da Liga Comunista168 e o PSB paulista, o italiano
Rosini e o grupo socialista Matteotti, liderado por Frola.
Nesta conjuntura, Battistelli não parece ter tido um papel particularmente destacado:
pode-se supor por causa ainda de certa distância, propositalmente mantida por ele diante
do antifascismo italiano de São Paulo, ou também porque o movimento revelava uma
evidente condução comunista, não é claro até que ponto aceita por ele. Não há registros
de uma sua participação em eventos realizados na Capital Federal pelos comitês
antiguerreiros, embora seja possível sua presença no grande evento de 23 de agosto de
1934, no Teatro João Caetano, o Iº Congresso Nacional contra a Guerra imperialista, a
Reação e o Fascismo. O que temos neste período é a continuação de sua colaboração
com os periódicos do antifascismo italiano no exilio, e de sua correspondência,
particularmente com Rosselli. Mas alguns juízos sobre a situação do antifascismo no
Brasil apareciam entre as suas várias reflexões.
Dois artigos de Battistelli apareceram novamente em Problemi della Rivoluzione
Italiana. Em março de 1933169, Libero apelava para que na ação politica fosse sempre
claro o valor moral da mesma: só assim se fugiria o risco da ação pela ação, coisa inútil,
e o próprio antifascismo evitaria maquiavelismos, cálculos, suspeitas recíprocas.
Interessante uma notação, que abre o texto, a respeito da ação revolucionaria como era
vivida no Brasil, segundo o autor, ele que assistiu pessoalmente, fora as revoltas
167
Sobre o nascimento da FUA e mais em geral o panorama das esquerdas brasileiras e o antifascismo
nestes anos, ver a produção de Ricardo Figueiredo de Castro. Particularmente CASTRO, Ricardo
Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo. As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 19331935. Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 1999.
168
Sobre o papel dos trotskistas, ver MARQUES NETO, José Castilho; KAREPOVIS, Dainis. “O trotskismo e
os trotskistas: os anos 1920 e 1930”. In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). As Esquerdas no
Brasil. A formação das tradições (1889-1945), vol. 1º, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.379406.
169
“Appunti sui problemi dell’azione”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 17-18, maio 1933, p. 3-11.
190
tenentistas e a coluna Prestes, a pelo menos dois movimentos que se autodenominaram
de revolução, em 1930 e 1932:
Vivo em um país onde a palavra revolução é demasiadamente priva de
um conteúdo finalístico ideal (aqui as pessoas são revolucionárias – e
com notáveis habilidades técnicas – por tradição, por hábito, por
despeito, por esporte, contra A, contra B, contra C, indiferentemente)
para eu não ter um horror sagrado pelo ativismo como fim em si
mesmo.170
Em janeiro do ano seguinte, a mesma revista dedicava um número inteiro a um longo
ensaio de Libero sobre a crise política e econômica mundial e seus possíveis cenários
futuros.171 Em quarenta densas páginas, reveladoras, como outros textos anteriores, de
conhecimentos profundos e análise incomum, o autor concentrava uma reflexão que
percorria a historia da humanidade, desde os tempos regidos pelo sistema escravista aos
mais recentes, governados pelo regime assalariado. Convicção de Battistelli era que o
caminho da humanidade teria entrado no tempo da crise do sistema assalariado, e que o
capitalismo, à luz dos progressos tecnológicos, do domínio dos meios de transporte, da
aumentada possibilidade de controle do trabalho, estivesse preparando uma nova
solução escravista, desta vez reduzindo a escravos os proletários de seus próprios países
(além das “tentativas hitlerianas, aparentemente loucas” - comenta Libero – “de
encontrar a diferença [entre senhores e escravos] no próprio seio das massas alemãs [...]
[com] a divisão entre arianos puros e mestiços semitas, eslavos e latinos”). A leitura dos
fascismos, realizada aqui por Battistelli, os interpretava não como “fenômeno ocasional
ou transitório, ou também [...] como o último estagio da reação capitalista” e sim como
primeira etapa do retorno ao sistema escravista, marcada pelas providencias tomadas
pelos regimes fascistas contra o proletariado, isto é, a eliminação da possibilidade dele
influenciar o endereço politico do Estado e a destruição de qualquer liberdade sindical.
E o final do artigo convidava a rejeitar as leituras acima apresentadas do fascismo por
serem incapazes de combatê-lo eficazmente (seja a democrática, que via nele um
fenômeno temporário, passageiro, como a bolchevique, que o interpretava também
como etapa provisória, que tinha que ser deixada evoluir), e a abraçar a que Libero
sugeria, “mais francamente e abertamente revolucionária”, em nome da qual
proletariado e “fuori classe” se empenhariam numa luta defensiva e ofensiva ao mesmo
tempo.
170
171
Ibidem.
“La reazione in marcia”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n.19-20, gennaio 1934, p. 1-45.
191
Leitura interessante, cheia de sugestões e até de intuições proféticas. Quanta influência
possa ter tido no debate do antifascismo e no círculo dos leitores da revista, é difícil
dizer. Mas eram ideias que Libero cultivava e com as quais discutia também com
Rosselli. Algumas cartas de Battistelli para o líder de GL revelam seus questionamentos
sobre os caminhos do antifascismo e suas escolhas.
Numa primeira, sem data certa, mas provavelmente do primeiro semestre de 1933172,
Libero lamentava não ter tido a possibilidade de ir para a Europa, como planejado, por
causa da doença de sua esposa, e adiava o projeto para o ano seguinte. Seguia-se a
afirmação da urgência, gerada pelo advento do hitlerismo na Alemanha, que a análise
do fascismo fosse reformulada, e que o próprio antifascismo revisse seus caminhos, e
lançava para o amigo algumas pistas de reflexão, sobre a volta ao sistema escravista
através do próprio fascismo, que desenvolveria em seguida no artigo para a revista
Problemi. A carta comentava a respeito da difusão dos Quaderni di Giustizia e Libertá
na Capital Federal:
Acredito que dificilmente a difusão aqui possa ser aumentada. Também
por causa da quase impossibilidade de transmitir o dinheiro das
assinaturas. De qualquer forma, a de vocês é uma publicação destinada
às elites. E as elites são sempre muito restritas. Aqui mais ainda... A
chegada dos Quaderni é aguardada ansiosamente e com alegria por
quatro ou cinco pessoas. O esforço de vocês é compreendido e
admirado. Mas tudo se limita a isso.173
E continuava afirmando desconhecer a situação em São Paulo, mas declarando
desastrosas as condições em Montevidéu, e só um pouco melhores as de Buenos Aires.
E concluía:
Como disse desde o começo, a América do Sul é terra aridíssima. A
distância enfraquece o interesse. O atraso destrói a atualidade. A crise
econômica e politica local faz com que todos se ocupem mais da
situação local do que daquela italiana ou europeia. Dos antifascistas
daqui, 99% não voltaria para a Itália, mesmo se o fascismo acabasse.
Você entende, portanto, o grau de calor do antifascismo deles.174
O ceticismo de Battistelli sobre a difusão do instrumento de GL se reflete em seu mais
amplo pessimismo a respeito da situação do antifascismo italiano no Brasil e na
172
ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, Rio
de Janeiro [1933]
173
Ibidem.
174
Ibidem.
192
América Sul em geral. Quadro que corresponde à realidade daqueles anos também na
avaliação de quem, como Trento e Bertonha, se debruça em suas pesquisas sobre o
antifascismo de italianos e descendentes no Brasil.
Uma carta sucessiva, de julho,175 é indicativa do pensamento de Libero sobre o
antifascismo anarquista e o comunista. Afirmando a necessidade de manter aberto o
canal de comunicação com expoentes dos dois mundos, como Luigi Fabbri (“tido como
um mestre pelos amigos anarquistas” e cuja “viva simpatia para o nosso movimento”
poderia “eliminar muitas difidências proletárias”) e Angelo Tasca176 (“acredito ter sido
eu o primeiro a procurar Tasca de minha iniciativa para tentar um acordo, uma ação
comum com ele, que, naquela época, abril de 1930, já estava fora do partido comunista,
mas era, mesmo assim, e acredito seja ainda hoje, um comunista”), Libero mostrava sua
abertura para as duas componentes do antifascismo, com ressalvas particularmente
diante da rigidez do principio ditatorial do comunismo, mas com enorme simpatia para
sua afirmação da primazia da luta pela igualdade. Sendo a atitude de diálogo e de
colaboração com os outros a tônica da carta, particularmente significativa é toda a
segunda parte, provocada por uma pergunta dirigida a Libero por Rosselli a respeito de
sua amizade com Bergamo.177 Battistelli aproveitava da oportunidade para indicar o
que, segundo ele, deveria ser o método comum de comportamento e de trabalho entre
companheiros de luta, com palavras que vale a pena de transcrever amplamente:
Gostaria, aliás, que a amizade, ou pelo menos a camaraderie,
sancionassem para os amigos e os companheiros, um particular direito:
o direito ao erro. Isto significa que, quando nos encontramos diante de
uma pessoa respeitável por sua conduta, por sua honestidade intelectual
etc.. e que tem uma militância no nosso campo (um pouco mais a direita
ou um pouco mais a esquerda não tem importância), a denúncia de seus
“erros” não deveria implicar subjetivamente numa desestima nem
objetivamente numa inútil aspereza. [...] Com certeza prefiro quase a
hipocrisia convencional [...] à ostentada brutalidade das condenações e à
intolerância que faz com que todo dissenso apareça como fruto de
estupidez ou de má fé. [...] Ninguém pode pretender a infalibilidade.
175
ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, Rio
de Janeiro, 24.7.1933.
176
Angelo Tasca foi um dos fundadores do partido comunista italiano em 1921. Perseguido pelo
fascismo, emigrou para a França. Em 1929 foi expulso do partido por seu anti-stalinismo. Anos depois,
se aproximou do partido socialista, manifestando uma orientação anticomunista. O livro dele,
Nascimento e advento do fascismo, publicado na França em 1938, foi uma das primeiras leituras do
fascismo.
177
Sobre ele ver nota 13. Naquele período, Mario Bergamo estava manifestando abertas criticas contra
o percurso da Concentrazione e acabou sendo marginalizado pelo conjunto dos antifascistas italianos
exilados na França.
193
Cada um de nós acredita estar do lado da verdade e deve defender a
verdade dele [grifos do autor], mas a consciência da possibilidade de
um erro nosso deve nos tornar tolerantes a respeito da legitimidade do
erro do outro.
Uma indicação de conduta politica que Battistelli trazia de sua experiência pessoal, seja
na Itália como no Brasil, já que a abertura para outros percursos políticos sempre foi
uma de suas características. Isso é visível, como já mencionado, através da
correspondência, que lhe permitia de dialogar com gielistas e republicanos, mas também
com comunistas (incluindo trotskistas), socialistas, anarquistas, sendo excluído somente
quem abertamente se declarasse do lado do fascismo. E também transparece pelas
atitudes práticas e pela modalidade de organização da oposição antifascista, também
num ambiente tão distante e numa “terra aridíssima” como aquela onde se encontrava.
Duas cartas dos mesmos anos são elucidativas a respeito. Numa breve missiva a
Rosselli,178 Libero se queixava da atitude de dois personagens que lhe foram
recomendados como fiduciários de GL para São Paulo e que em seguida manifestaram
atitudes de apoio aos fascistas locais. Abertura com todos sim, então, mas tendo a
coerência moral como condição para a colaboração e o trabalho comum, e preclusão
para quem debanda para o lado do inimigo. Libero escrevia:
Muitos companheiros sem cartas de recomendação, desconhecidos a
presidentes do conselho passados ou futuros, operários, simples
funcionários, pequenos comerciantes, perderam, aqui também,
emprego, possibilidade de carreira, negócios, para defender sua
dignidade. É verdadeiramente uma pena que outros, aqueles que
deveriam ser de exemplo, se comportem com tanta baixeza. E me
parece necessário que um movimento, cuja característica de distinção é
o rigor moral, intervenha de alguma forma.
Numa correspondência mais longa para os amigos de GL179, que devia ser do segundo
semestre de 1934, quando a Concentrazione já não existia mais e o mundo do
antifascismo italiano na França se encontrava numa situação de incerteza, com
socialistas e comunistas se aproximando numa frente única, Battistelli avançava uma
sugestão:
Seria de grandíssima utilidade se os dirigentes dos vários grupos
antifascistas, e talvez os antifascistas tout court, tivessem o meio e o
hábito de se encontrar diariamente ou quase. Entendo as dificuldades
178
ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, [Rio
de Janeiro][1933 ou 1934]
179
ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 3, sottofasc. 1. Carta de Libero Battistelli para os amigos de
GL, [Rio de Janeiro] [1934]
194
numa cidade grande como Paris, mas é uma dificuldade contornável.
Tive a impressão, em 1930, que a sede da Concentrazione, os
escritórios de La Libertá servissem um pouco para isso. Agora, poderia
servir um lugar qualquer, batizado ‘Circulo de Estudos Sociais’, ou
‘Circulo antifascista’, ou talvez um café no centro. Estou convencido
que, se saindo do trabalho, ou à noite, vários antifascistas ‘influentes’
dos vários grupos, tivessem o hábito de se encontrar sem nenhuma
formalidade, ‘para bater um papo’, não somente desapareceriam muitas
antipatias e prevenções pessoais, mas as decisões poderiam ser tomadas
com uma rapidez que as tornaria eficientes.
Mais para frente, após ter recomendado a necessidade de um acordo com os comunistas,
mais do que com os socialistas (pelo fato dos primeiros, de índole mais revolucionária,
representarem as elites operarias, assim como GL representava os fuori-classe, isto é, o
mundo intelectual, estudantil, da livre profissão, e uma revolução na Itália poderia ser
desencadeada somente a partir de uma aliança entre as duas elites, que arrastariam a
massa num segundo momento), Battistelli voltava sobre o ponto do contato continuo e
constante, que dispensava comunicações escritas, encontros marcados etc., afirmando:
No Rio de Janeiro, as distâncias são maiores do que em Paris. Todas as
noites, porém, de 6 às 7 horas, os companheiros que aqui residem (e eu
quando estou na cidade) se encontram, após o trabalho, e antes do
jantar, às vezes por poucos minutos, no escritório central de um deles.
São 6 ou 7, e isto no Rio significa ‘todos’. Mas em Paris, aqueles que
contam de verdade devem ser uma dúzia. Não seria impossível, então,
criar o mesmo hábito.
Uma metodologia de trabalho e de diálogo que, praticada no longínquo Brasil 180, podia
se tornar útil e eficaz também em Paris, o coração do mundo da emigração antifascista.
Pela forma com que reclamava de Rosselli uma intervenção, pelas indicações e
sugestões que apresentava, pela preocupação misturada com desânimo às vezes sobre a
complicada difusão dos Quaderni, presentes nas correspondências, era evidente uma
partilha plena por parte de Libero dos ideais do “nosso movimento”, como se referia a
GL nesta ultima carta. Os próprios informes do Ministério do Interior italiano a seu
respeito181 o apresentavam como “um elemento importantíssimo de ‘Giustizia e
Libertá’, que providenciaria a coleta de fundos em favor do dito movimento, enviandoos mensalmente para Paris”, confirmando as providencias a serem tomadas em caso de
180
Ver também as páginas que Nello Garavini dedica ao amigo Libero em suas memórias, frisando
particularmente a proximidade deste com muitos anarquistas, que o amavam de forma especial. Cf.
GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna,
op. cit., p. 179.
181
Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), informe do Ministério do Interior, 11.4.1933 e
Real Prefettura de Bolonha, comunicação para o Ministério do Interior, 14.12.1933.
195
passagem da fronteira. Numa carta a Nenni de 1934182, como resposta a um possível
convite do interlocutor para que ele, republicano de esquerda, entrasse nas fileiras do
partido socialista, Battistelli afirmava não poder fazer parte do mesmo, embora
respeitasse muitos membros dele e fosse amigo de alguns (“em consciência [...] eu não
sou socialista”), e declarava seu pertencimento a GL desde 1930.
Num artigo publicado em junho de 1933 nos Quaderni,183 Libero, partindo da análise do
insucesso da socialdemocracia alemã e das críticas ao marxismo por seu caráter
eminentemente religioso, evidente também no movimento comunista, ia se perguntando
como reformar o próprio comunismo. A resposta residia na necessidade de eliminar seu
rígido dogmatismo e, sobretudo, sua insistência no principio ditatorial, sendo, contudo,
tal revisão impossível em tempos breves, os tempos exigidos pela situação italiana e
internacional. E aqui Battistelli reconhecia em GL o movimento mais apto para
enfrentar a crise italiana, por
não ser desprovido (como a socialdemocracia) de espirito
revolucionário, por não ser desrespeitador (como o comunismo oficial)
das autonomias, por ser organizável (ao contrário do anarquismo), por
não ser exposto (como o partido republicano) à difidência do
proletariado.
E acrescentava: “de todos os partidos e agrupamentos existentes, GL é o que representa
a mais perfeita antítese do fascismo, porque liberal e autonomista [...], democrático e
igualitário [...], politicamente e economicamente revolucionário”. No mesmo registro,
as páginas de mais uma contribuição para a revista Problemi,
184
de área republicana.
Após o fim da Concentrazione, ele se perguntava quais as perspectivas para o
antifascismo e quais os passos mais urgentes. Conclusão de Libero:
Parece-me que o critério decisivo há de ser o da força viva, do potencial
revolucionário dos vários agrupamentos que se formaram. E esse
critério me parece excluir todos os partidos pré-bélicos e
substancialmente pré-fascistas (contando como data de nascimento do
fascismo 1919 e não 1922). Restam então em jogo o Partido Comunista
e Giustizia e Libertá (a corrente anarquista estará ao lado ou na
vanguarda de quem tome a iniciativa revolucionária [...]).
182
ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro,
[1934].
183
“Breve svolgimento di alcuni ‘temi’ proposti da G.e L. “. Quaderni di Giustizia e Libertá, n.7, giugno
1933, p.117-128.
184
“Dopo la crisi concentrazionista. Osservazioni alle osservazioni”. Problemi della Rivoluzione Italiana,
n. 25-26, settembre 1934, p. 14-18.
196
Um Battistelli, então, que, oriundo de um percurso no campo do republicanismo, e de
um republicanismo de esquerda, dialogava com as mentes mais abertas de tal formação
politica, como o grupo de Marselha, mantendo, contudo, certa distância; um Battistelli
que não queria se declarar socialista, mesmo sendo “o mais socialista entre os
republicanos”, guardava aberturas para com o comunismo, ditadura a parte,
manifestando talvez uma simpatia maior para com o trotskismo; um Battistelli, enfim,
que tinha afinidade e trocas intelectuais com o mundo anarquista, mas que afinal
abraçava a proposta política de GL por seu valor moral, seu espirito revolucionário e
sua abertura.
Um Battistelli, todavia, que não devia se sentir tranquilo.
As expressões de
desapontamento sobre o êxito da difusão dos Quaderni no Brasil, a sensação de terra
árida da América do Sul, a distância de São Paulo – desde o começo percebido como o
centro do antifascismo no Brasil, mas com o qual, após o caso Frola, havia certa
dificuldade de relações -, o grupo de 6 ou 7 a que se restringe a oposição a Mussolini no
Rio - unido e animado, capaz de dialogar com o anarquismo local, com o mundo da
intelectualidade e até da politica, ao redor, como se verá, de duas pequenas mas ativas
editoras - mas evidentemente reduzido e sem muitas perspectivas, até pela enorme
distância do centro europeu da resistência: é provável que Libero advertisse certa
insatisfação. Não sabemos se a decisão de escolher uma pequena fazenda a 100
quilômetros da cidade, na região de Mangaratiba, onde começou a passar, a partir deste
período, a maior parte de seu tempo, foi fruto mais desta insatisfação ou da busca de um
retiro onde refletir e escrever com mais tranquilidade. De todo modo, Battistelli fixou
sua residência na “Fazendinha”, transformando a casa e dedicando-se ao cultivo de
laranjas e bananas.
3.13. 1935. Um ano e tanto (?)
Para o historiador, é sempre presente o perigo de reconstruir o percurso existencial dos
indivíduos que formam o objeto de seu estudo à luz daquilo que ele já conhece do
futuro deles e da história do mundo, consagrando como inevitáveis escolhas e decisões.
Antoine Prost nos lembra que o tempo vivido pelos homens sobre o qual o historiador
se debruça em sua pesquisa é formado, para eles também, por um passado, um campo
de experiências passadas (à luz do qual faziam escolhas), um presente e a expectativa de
197
um futuro, um horizonte de expectativas: esse “futuro passado”, sobretudo, era feito de
alternativas possíveis, esperanças, receios.185 Reconstruindo, ou tentando reconstruir, a
“curva do destino” de Battistelli, ano após ano, assim como de outros antifascistas
estudados (reconstrução já por si precária devido à precariedade dos registros, em
muitos casos constituídos quase que exclusivamente por artigos e cartas), é preciso
estar cientes deste fato.
Qual podia ser, em 1935, o “horizonte de expectativas” de Battistelli? Por tudo que foi
dito até aqui sobre Libero e seu pensamento, acompanhando-o de certa forma num
crescendo de formulações e elaborações, num amadurecimento de posições, pode ser
fácil atribuir a ele - neste ano tão agitado e decisivo para os futuros desdobramentos da
politica europeia e marcado pela crescente mobilização das forças do antifascismo
internacional, até no Brasil, com o mundo politico europeu pronto para condenar a
agressão fascista à Etiópia e os fuorusciti italianos na França prognosticando a iminente
queda de um Mussolini derrotado em terra africana, e já vislumbrando a volta triunfal
deles para a pátria liberta – a clara e firme determinação em continuar e intensificar sua
batalha contra o fascismo, que culminaria na escolha paradigmática do ano seguinte,
isto é, o envolvimento na guerra civil de Espanha.
Mas pode se pensar também que não tenha sido assim. Diante de Libero, como de todo
mundo, de resto, havia sempre um leque de possibilidade. Neste caso, entre elas, a de se
afastar um pouco do calor da luta e do debate, até fisicamente. Talvez a escolha da
fazenda tenha sido neste sentido. Talvez a partir de certo desapontamento com o
contexto do antifascismo, ou de certa resignação por entender que uma luta contra o
fascismo conduzida do outro lado do Atlântico não podia ter muita capacidade de
incidência ou perspectivas de êxito, ou talvez por se sentir definitivamente identificado
com um movimento, como GL, que privilegiava a ação e a ação na Itália.
A diminuição de certos registros (cartas para expoentes do antifascismo, documentação
da imprensa) ou a mudança de tom em outros (artigos), ou ainda o surgimento de outros
novos (prefácios de livros), contribuam talvez a reforçar esta hipótese.
O ano de 1935 foi o ano da definitiva união das forças de esquerda na frente popular
francesa, da consagração da politica das frentes populares pela Terceira Internacional,
185
Cf. PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p.162-168.
198
do ataque da Itália fascista à Etiópia com o consequente protesto de boa parte da opinião
publica mundial.186 No Brasil, foi o ano do surgimento da Aliança Nacional Libertadora
e sua marcha rumo à tentativa de afirmação politica, com o PCB cada vez mais
envolvido com sua liderança e o programa que se tornava cada vez mais orientado para
a luta contra o imperialismo, palavra de ordem da Internacional Comunista, até a
cassação da associação em julho, e o levante de novembro.187
Nessa aceleração do movimento antifascista internacional e nacional, embora em grande
parte devida à virada de 180º dos partidos comunistas, que abandonavam a politica do
isolamento e as acusações de socialfascismo e aceitavam trabalhar lado a lado com
socialistas e partidos liberais e democráticos para derrotar a ameaça do fascismo, a
atuação de Battistelli parecia a de quem olha um pouco de longe.
Uma carta para Luigi Fabbri, escrita nos primeiros meses de 35, e que será publicada
em Studi Sociali em 1936188 pela filha do anarquista, falecido no ano anterior, tentava
destrinchar o problema, delicado sobretudo para os libertários, da postura a ser tomada
nos pleitos eleitorais. Seja a abstenção como a participação, comentava Libero, já
tiveram seus fracassos: a primeira, dos anarquistas espanhóis, favorecera a vitória
eleitoral da direita, a segunda, de socialistas e comunistas alemães, não impediu a
chegada de Hitler ao poder. A solução que Battistelli apresentava consistia em separar a
atividade revolucionária da atividade eleitoral, deixando esta para os parlamentares
(candidatos democráticos a serem eleitos) e abrindo aquela para todos (o voto como
instrumento para todos os cidadãos, inclusive os revolucionários).
Mas além das considerações e argumentações de Battistelli, o interessante eram algumas
linhas iniciais: “Pode parecer estranho ao senhor, e aos eventuais leitores, que nestes
momentos, e por um italiano, sejam evocadas discussões teóricas [...] Mas o exílio nos
coloca num certo sentido fora do tempo e do espaço. E a atualidade, que não podemos
influenciar, nos liberta de sua contingência”. No começo desta terceira parte, estas
186
Ver ELEY, Geoff. Forjando a democracia. A história da esquerda na Europa, 1850-2000, São Paulo:
Perseu Abramo, 2005, p.307-324 (“O fascismo e a frente popular: a politica de recuo, 1930-1938”).
187
Para um quadro completo da conjuntura, ver PUERTAS, Ibirapuan. Nacionalismo, democracia e bemestar do povo: a luta antifascista no Brasil e a gênese da Esquerda Nacionalista Brasileira. Rio de Janeiro:
[s.n.], 2007. E também VIANNA, Marly de Almeida Gomes. “O PCB: 1929-1943” In FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão (org.) A formação das tradições, vol. 1º de As Esquerdas no Brasil, op. cit., p.331-363.
Sobre a transição da FUA à ANL, ver CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o
fascismo. As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 1933-1935, op. cit.
188
“I rivoluzionari ed il parlamento”. Studi Sociali, ano VII, n.3, 15.8.1936, p. 4-6.
199
mesmas linhas foram citadas como exemplo da capacidade de enxergar o aspecto
positivo da condição de exilado. Mas elas carregam uma ambiguidade que torna
possíveis várias leituras. Vantagens do exílio, sim, mas também limitações, como a de
não poder “influenciar a atualidade”. Livres de sua contingência, sim, mas impedidos de
intervir sobre ela. A atualidade italiana, evidentemente, e provavelmente também a
brasileira. Restava, no final, o pensamento, e a escrita.
A impressão de frustração, então, embora contemporizada por certa liberdade de
pensamento e juízo, permanece. Possivelmente, uma polêmica entre ele e o próprio
Rosselli nas colunas de Giustizia e Libertá no começo do ano pode ter contribuído a
alimentar essa frustração. Desde maio de 1934, com efeito, o movimento gielista
publicava um semanal na capital francesa com esse titulo: Giustizia e Libertá.189 Um
editorial de novembro do mesmo ano, não assinado, mas inspirado ou escrito
diretamente por Rosselli,190 criticava atitudes de certos antifascistas exilados, arrogantes
na defesa de seus méritos antigos e reduzidos a simples repetidores de palavras de
ordem e esquemas de análise ultrapassados, incapazes de valorizar o positivo que se
movia na Itália. Battistelli escreveu um artigo, publicado em fevereiro do ano
seguinte,191 respondendo a algumas das críticas. Certamente, ele dizia, a tática da luta
antifascista deve ser indicada por quem vive na Itália, mas há de ter acordo com a
componente que vive no exterior, onde o clima é livre, ao contrário do da península, que
é “de estufa”. Sem esse acordo, a eventual revolução italiana “não será a nossa”.
Palavras fortes, de quem, mesmo reconhecendo os limites do antifascismo da
emigração, reafirmava o valor de uma experiência.
Um comentário do próprio Rosselli ao artigo de Libero, na mesma edição do jornal,
apontava o “erro de Battistelli, que nos escreve do Brasil”, assim como de “muitos
exilados que perderam o contato com a vida italiana: o de julgar que na Itália ninguém
mais tenha capacidade de pensar, estudar, agir.” O líder de GL continuava afirmando,
pelo contrário, a existência na Itália de grupos de jovens que estudavam e discutiam
com uma coragem e uma inteligência que raramente se encontrava entre os exilados.
Concluindo com estas palavras:
189
O título completo era Giustizia e Libertá (Justice et Liberté). Movimento unitario di azione per
l’autonomia operaia, la repubblica socialista, un nuovo umanesimo. Sede do periódico era Paris, 21, Rue
du Val –de-Grace.
190
“Pericoli dell’esilio”. Giustizia e Libertá, ano I, n. 27, 16.11.1934, p.1.
191
“Osservazioni sull’esilio”. Giustizia e Libertá, ano II, n. 5, 1.2.1935, p.3.
200
Battistelli é homem de valor e um caro amigo. Mas desta vez nos parece
fora do caminho. E o fato que um espirito límpido como ele possa ter
perdido a esse ponto o contato com a realidade italiana e com a própria
(modesta) realidade dos fuorusciti, demonstra que temos que insistir
ainda, e muito, sobre as teses contidas em “Pericoli dell’esilio”.192
As observações críticas de Rosselli podem ter deixado alguma marca em Battistelli,
ainda mais por virem do líder do movimento no qual Libero se reconhecia e com o qual
estava colaborando (também financeiramente, participando de subscrições, registradas
nas colunas do periódico). Se não se pode pensar que a sua relativamente modesta
contribuição ao jornal durante todo o ano de 1935 (além do citado acima, Battistelli
enviará somente mais três artigos para o semanal parisiense, e sobre temas bastante
secundários193) dependesse de certo distanciamento da proposta do mesmo e do próprio
movimento (não há nenhum indicio neste sentido), é evidente que a palavra do amigo
produziu ao menos um tempo de reflexão e reelaboração. A própria correspondência de
Libero se rarefez, se o único registro certo em 1935 é a carta para Fabbri, acima
lembrada.
Há na verdade outra carta194que as autoridades policiais italianas conseguiram
interceptar, e que abre mais uma fresta de compreensão sobre Libero e seu pensamento.
Em fins de setembro de 35, Battistelli escrevia para um amigo e colega, advogado em
Bolonha, republicano, perguntando para ele como se explicasse na Itália a “loucura” que
tomou conta dos responsáveis da coisa publica, em querer se lançar na guerra etiópica.
Mas a abertura, neste caso também, é reveladora:
Caro Pierino, faz muito tempo que não tenho noticias suas, e
naturalmente as desejo. Começo, então, dando noticias minhas. Estou
vivo. Moro pela maior parte do tempo numa “fazenda” [...] Produzo
bananas (!) e laranjas. No tempo livre, sou editor (tradução para o
português de um livro italiano de Lussu, de “Minha Infância”, de
Máximo Gorki, de “Petróleo”, de Upton Sinclair). Tive vários
problemas (doenças, perdas financeiras etc...) e os solucionei, por
enquanto. Não cheguei a “fazer a América” e não me queixo, pois não
192
C.R. [Carlo Rosselli], Giustizia e Libertá, ano II, n. 5, 1.2.1935, p.3.
“Letteratura rivoluzionaria. Le Temps du mépris di André Malraux”. Giustizia e Libertá, ano II, n. 30,
26.7.1935, p.2 (uma resenha crítica do último romance do escritor francês); “Osservazioni sullo sport”.
Giustizia e Libertá, ano II, n.34, 23.8.1935, p.3 (desaconselhando o proletariado seja da prática como da
fruição do esporte); “Osservazioni a distanza”. Giustizia e Libertá, ano II, n. 45, 8.11.1935, p.3 (sobre a
próxima partida, como voluntários na guerra de Etiópia, de trezentos italianos de São Paulo).
194
ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), carta de Libero Battistelli para Piero Valenza, Rio de
Janeiro, 30.9.1935 apud Informe Prefettura de Bolonha, 29.10.1935. A carta foi interceptada, mas
entregue ao destinatário.
193
201
era esse o meu objetivo. Escrevo coisas que queriam mudar a cara do
mundo, e que obviamente não deixam marca nenhuma.
Uma conclusão bastante amarga e desiludida para um homem como Libero.
Desapontamento, contudo, que não lhe impedia de trabalhar, como falava para o amigo,
no campo intelectual e cultural, como editor de textos. Uma forma de manter levantada
a bandeira do antifascismo, oferecendo ao público carioca e brasileiro algumas
contribuições importantes do pensamento de esquerda, ou, mais em geral, democrático,
e também participar do momento politico da cidade, agitada em 1935 pelas
manifestações públicas da ANL e sucessivamente por suas atividades clandestinas.
Com efeito, Libero ajudava com sua contribuição pelo menos duas editoras ligadas ao
mundo do antifascismo italiano no Rio de Janeiro. A primeira era a Minha Livraria,
dirigida pelo amigo anarquista Nello Garavini, que possuía uma livraria nos arredores
da Praça Tiradentes. Ele e sua atividade editorial constituirão o objeto da quarta parte
deste trabalho, mas vale aqui antecipar algo sobre a participação de Libero na
empreitada. Da publicação em português de alguns dos títulos da editora era o próprio
Battistelli que se encarregava, cuidando das traduções e, às vezes, se ocupando dos
contatos com os autores para as autorizações e os direitos autorais. Para duas das obras
citadas na carta acima (“Minha Infância” e “Petróleo”), ele se empenhou com a tradução
e ajudou nos custos de publicação. Como testemunho disso, algumas passagens de uma
carta que Libero escrevia quando já se encontrava na Espanha:
O êxito de Minha Infância é plenamente satisfatório. Cobertos, com as
primeiras vendas, os custos arcados por Pongetti [responsável legal da
editora], poderá haver algum ganho, me parece, com as vendas
sucessivas. Quanto a Oil [Petróleo], você decide. Se quiser partir para a
publicação, achando que não vai ter perdas, ela deveria ser feita com os
lucros de Minha Infância. Como facilmente entenderá, nestes momentos
e a esta distância, não posso dispor de outros capitais. Falei com Upton
Sinclair duas ou três vezes, mas não de negócios. Aconselhei-o para
escrever para você, único a par da situação. 195
O próprio escritor norte-americano, após a morte de Libero, escreveu uma breve carta
para a esposa, recordando o marido: “Me correspondi com ele por vários anos. Foi ele
que deu encaminhamento à publicação dos meus livros no Brasil e devo a ele a
195
Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB), Fundo Nello Garavini, carta de Libero Battistelli para
Nello Garavini, Espanha, [1936 ou 1937].
202
belíssima tradução de Petróleo que acabo de receber do Rio de Janeiro. Em seguida me
escreveu das trincheiras da Espanha [...]”.196
Se, pela Minha Livraria, Libero deu voz a dois autores da esquerda mundial como Gorki
e Sinclair, por outra editora prefaciou dois livros italianos, traduzidos para os leitores
brasileiros e publicados justamente naquele ano de 1935, quase uma contribuição à
componente antifascista presente na movimentação da sociedade brasileira. A editora
Athena tinha sido fundada por um italiano formado em ciências econômicas e
comerciais, Pasquale Petraccone.197 Ele tinha chegado da Itália em 1926 para São Paulo,
onde participara das atividades dos antifascistas da cidade, mas, dissentindo do grupo
que tomara o lugar de Frola em La Difesa (no qual chegou, contudo, a publicar alguns
artigos198), criou, em finais de 1930, um seu jornal, Italia Libera, quinzenal que teve
curta duração. Em seguida, mudara-se para a Capital Federal, onde informações do
consulado italiano o identificavam em 1933 como “um dos signatários de um manifesto
de convocação de uma reunião organizada pela Lega Antifascista, em protesto contra o
plano Mussolini e as persecuções antissemitas de Hitler”199. No Rio, Petraccone foi
representante de várias firmas comerciais ligadas ao ramo da papelaria e criou a Athena.
Especializada em obras filosóficas (Platão, Campanella, Hegel, Voltaire e Rousseau), a
editora difundia também poesia (Dante Alighieri) e livros ligado ao mundo do
antifascismo (Frola e o conde Sforza, entre outros).
Membro do grupo dos mais chegados a Battistelli - que costumava se referir a ele e aos
colaboradores dele na editora (Tamagni, Cingolani e Ferri) com o apelido de
“delinquentes”200 - Petraccone publicou, em 1935, “Aspectos moraes da vida política”,
do filosofo italiano Benedetto Croce,201 com prefácio assinado por Libero, que
apresentava o autor como o mestre de uma inteira geração na Itália. Pela ocasião,
Battistelli se perguntava se, diante da antítese entre liberalismo e socialismo analisada
por Croce, fosse possível construir uma nova síntese, na qual a igualdade econômica
196
“Upton Sinclair per Libero Battistelli”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 37, 10.9.1937, p.3.
Cf. ACS / CPC, b. 3899, f.21607 (“Petraccone, Pasquale”).
198
O mais polemico foi “Al di fuori dei partiti, per l’antifascismo”. La Difesa, ano VI, n .307, 1.5.1930, p.
4. Nele, Petraccone, como o titulo resumia, perguntava se não tivesse chegado a hora de aposentar os
partidos e as velhas denominações politicas, inúteis para a luta do antifascismo, mais preocupadas em
se contrapor e diferenciar do que em construir uma oposição eficaz ao fascismo.
199
Cf. ACS / CPC. b. 3899, f.21607 (“Petraccone, Pasquale”), Informe do Ministério do Interior, Divisão
Geral de Segurança Pública, 20.11.1933.
200
Cf. Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB), Fundo Nello Garavini, cartas de Libero Battistelli
para Nello Garavini. Rio de Janeiro, [fevereiro de 1933] e Espanha, [1936 ou 1937].
201
CROCE, Benedetto. Aspectos moraes da vida politica. Rio de Janeiro: Athena, 1935.
197
203
não fosse um fim em si, mas meio, ulterior e necessário, após a igualdade jurídica e a
politica, para o desenvolvimento de uma liberdade maior, mais verdadeira e universal.
Era a famosa pergunta que voltava na reflexão de Libero, a de muitas cartas, de muitos
artigos: como conciliar igualdade e liberdade, como construir uma sociedade socialista
ou comunista que não precisasse de uma ditadura para se manter.
Provavelmente no mesmo ano, apareceu “Marcha sobre Roma...e arredores. O fascismo
visto de perto”, de Emilio Lussu, um dos líderes de Giustizia e Libertá, pela editora
Cultura Politica (a coincidência do endereço faz supor que fosse a própria Athena sob
outra denominação, para poder publicar sem problemas um texto ligado a temas
políticos). Escrita em Paris alguns anos antes, a obra reconstruía eventos e bastidores
da marcha que coincidiu com a chegada de Mussolini ao poder na Itália. Battistelli, em
sua introdução ao volume, esclarecia como já o fascismo tivesse que ser considerado,
não mais um fenômeno estritamente italiano, e sim universal. “Conhece-lo é condição
essencial para uma defesa a tempo. E é nessa defesa que pensamos, apresentando ao
público brasileiro a presente tradução”.202
Destinatário era possivelmente o mesmo público que lotava teatros, ruas e praças da
Capital, e de outras cidades brasileiras, em ocasião de comícios e eventos da ANL. Um
público que aprendera a reconhecer nos integralistas uma tentativa de imitação do
modelo fascista europeu e que começava a articular slogans e palavras de ordem num
projeto onde o antifascismo era, contudo, uma das componentes, e não necessariamente
a mais importante.203 E um público sobre o qual iria se abater a repressão das
autoridades governamentais, após o levante comunista de fins de 35.
Battistelli acompanhou de longe os eventos de 35, dedicando-se sobretudo à atividade
editorial, mas há alguns registros, do começo do ano sucessivo, de uma sua participação
202
Cf. LUSSU, Emilio. Marcha sobre Roma...e arredores: o fascismo visto de perto. Rio de Janeiro: Cultura
Politica [1935?], p.5-9 (Introdução de Libero Battistelli)
203
Ricardo Figueiredo de Castro aponta para este aspecto, quando realça a diferença entre a linha
politica da FUA e a da ANL, e mais ainda a do próprio PCB, que desta última era, em certo modo, o
motor: “O antifascismo foi, após a ANL, hegemonizado e apropriado simbolicamente pelo PCB, que se
tornou assim o guardião de seus valores e feitos, diluindo-o, entretanto, nas questões mais amplas
colocadas pela ANL, como o anti-imperialismo e a luta contra o latifúndio. Outrossim, repetindo a
perspectiva de seu Comitê Antiguerreiro, tendia a confundir fascismo com autoritarismo, em geral. [...]
A perspectiva teórico-política da FUA de realçar a especificidade do fascismo no quadro mais geral do
autoritarismo e sua perspectiva de unir as esquerdas foi politicamente derrotada.” Ver CASTRO, Ricardo
Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo. As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 19331935, op. cit., p. 200.
204
ainda em 1935 numa campanha de imprensa, junto a alguns periódicos da Capital:
objetivo era favorecer uma imagem positiva do antifascismo italiano, tentando dissociálo da identificação “italiano=agressor” que a guerra de Etiópia estava produzindo em
amplos setores da opinião pública. Campanha, contudo, encerrada pela reação que se
seguiu ao levante de novembro. Assim, escrevendo, provavelmente no começo de 1936,
para os amigos de GL em Paris, Libero anunciava o próximo envio de “uma relação
detalhada dos eventos brasileiros de fim de novembro”, mas adiantava já alguns fatos:
Comunico-lhes as consequências mais diretas do movimento
insurrecional, de seu fracasso, da consequente reação. O jornal “A
Manhã”, que hospedava diariamente um nosso artigo em italiano e um
ou dois artigos em português, foi fechado. Desta forma, acabou o maior
veiculo de propaganda antifascista e antiguerreira. Outros jornais, como
“A Noite”, que também acolhiam nossa propaganda, assumiram
posturas reacionárias [...]. A reação atingiu às cegas todos os elementos
“de esquerda”, entre os quais nossos aliados. [...] Francesco Frola foi
detido (provavelmente por indicação da embaixada italiana) [...] temos
certeza de sua inocência [...] e esperamos que para ele, como para
outros brasileiros que se encontram nas mesmas condições, o prejuízo
se limite a uma breve permanência no cárcere.204 [...] Nossa atividade,
que tivera discretos resultados em orientar a opinião pública em sentido
antifascista, teve uma parada brusca. 205
Pouco tempo depois, numa carta para Nenni206, Libero fazia considerações análogas a
respeito da interrupção da campanha na imprensa brasileira que ele e outros estavam
conduzindo junto à opinião pública local para resgatar a imagem dos italianos, no
momento em que o governo de Mussolini se lançava para a guerra na África. Campanha
“conduzida – recordava - de comum acordo, por um comunista italiano207, pelo
socialista Frola e por mim”. Esta frase, inclusive, era dita como exemplificação daquilo
que Battistelli tinha acabado de dizer para Nenni: “se não sou teu companheiro de
partido, sou certamente teu companheiro de ‘parte’. E, neste momento, para mim, a
‘parte’ conta muito mais do que o partido”. Retornava, em suma, a atitude, já assinalada
204
Frola foi detido a 19 de dezembro de 1935 e libertado cerca de um mês depois. Cf. FROLA, Francesco.
Recuerdos de un antifascista (1925-1938), op. cit., p. 189-190.
205
ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 3, sottofasc. 1. Carta de Libero Battistelli para amigos de
GL, Rio de Janeiro, [1936].
206
ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro,
[1936].
207
Este “comunista italiano” pode ser identificado com Cingolani, ou o próprio Petraccone (se
corresponde à verdade que teria abraçado o trotskismo naquele período), para nos limitarmos ao Rio de
Janeiro, ou, estendendo o raio de ação da campanha a São Paulo, Goffredo Rosini, se efetivamente se
encontrava no Brasil naquela época (ver nota n. 117)
205
várias vezes antes, da máxima abertura e colaboração com quem estivesse do mesmo
lado, com quem fosse da mesma ‘parte’, sem problemas de partido.
Há registros também de que na repressão pós-levante comunista, alguns intelectuais
encontraram abrigo e proteção na “Fazendinha”. Numa cronologia da vida de Emiliano
Di Cavalcanti208, se diz que no fim do ano de 1935, o pintor e sua esposa Noemia se
refugiaram, por razões politicas, em Mangaratiba, na casa de Battistelli (apresentado
como antifascista ligado a Plinio Mello e Mario Pedrosa) e junto com eles também
Newton Freitas. Deste último há também uma noticia, em livro de Moacyr Werneck de
Castro209, segundo a qual ele, em fins de 35, para fugir da repressão, “passou uma
temporada na Ilha Grande”. Provavelmente uma rede de relações politicas e amizades,
entre expoentes da esquerda brasileira, do antifascismo italiano e do grupo trotskista da
Capital Federal, do qual faziam parte Pedrosa, Mello e, provavelmente também
Petraccone, trotskista, como se verá, segundo a policia brasileira, quando de sua prisão
em 1938.210
3.14. Rumo à Espanha
No começo de maio de 1936, as tropas italianas entravam em Addis Abeba. Era o fim
da guerra, a Etiópia entrava a fazer parte do império colonial fascista.211 Uma decepção
para o mundo do antifascismo no exilio, que esperava uma derrota militar do exército
208
GULLAR, Ferreira; MINDLIN, José; PERLINGEIRO, Max. Di Cavalcanti 1897-1976: pinturas, desenhos
jóias. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2006, p.33.
209
CASTRO, Moacir Werneck de. Europa 1935. Rio de Janeiro: Record, 2000, p.200.
210
Há também noticias de um livro de Di Cavalcanti, “Curto Circuito”, que estava no prelo em outubro
de 1935 pela Athena, a editora de Petraccone. Cf. ”Romances modernos”. A Manhã, 6.10.1935, p.12.
211
Um artigo de Libero sobre a conquista fascista da Etiópia e suas consequências, que será publicado
pelo periódico de GL somente no final do ano, quando ele se encontrava já na Espanha, mostrava as
dificuldades para europeus de se transformar em colonos em regiões tropicais, devido ao clima, e ao
tipo de lavoura e de solo. Libero falava de sua experiência (“Vivo numa fazenda brasileira a 22’ de
latitude Sul, isto é, a uma distância do equador muito maior do que a mais longínqua parte da
Abissínia”) e explicava que era por essas razões (clima, solo, condições de trabalho) que o imigrado
europeu ou escolhia regiões mais temperadas ou, logo que pudesse, se dedicava ao artesanato, ao
comercio ou à indústria. Mas se estas eram “as condições do trabalho agrícola no Brasil tropical, que
conheço por experiência plurianual, numa situação geográfica e climática muito melhor daquela da
Etiópia, colonizado há mais de quatro séculos, com grandes investimentos de capitais, provido de
estradas férreas, rodovias, serviços de navegação, com razoáveis mercados de consumo internos, com
muitas grandes cidades, com um comércio de exportação de seus principais produtos há tempos
organizado”, quais podiam ser – se perguntava Battistelli - as esperanças para colonos italianos que
fossem para a Etiópia, país sem todos os recursos do Brasil? Cf. “Testimonianza”. Giustizia e Libertá, ano
III, n. 52, 25.12.1936, p.3.
206
do Duce e a sucessiva queda do regime. Esta parecia se afastar definitivamente, mas os
novos eventos espanhóis acabaram reacendendo as esperanças.
Desde fevereiro uma coalizão das esquerdas tinha conquistado a maioria nas eleições
espanholas. O governo da Frente Popular, reunindo republicanos, socialistas e
comunistas, tentava assim tomar conta de um país onde as posições politicas se estavam
rapidamente radicalizando. A jovem republica espanhola assistia a uma contraposição
profunda entre as esquerdas e setores moderados, conservadores ou tradicionalistas. E
foi exatamente apoiando-se nestes setores que se desencadeou o levante dos militares, a
18 de julho. Amplas regiões da Espanha acabaram dominadas rapidamente pelas tropas
rebeldes, mas o governo republicano conseguiu controlar a maior parte do território. Era
o começo de um conflito que assumirá o aspecto de uma guerra civil, mas que envolverá
rapidamente outros países, de um lado e do outro, seja com apoio diplomático seja com
o envio de armas e homens, embora nunca de forma oficial. 212
Desde o inicio da guerra, muitos expoentes do mundo da emigração antifascista
perceberam, na divisão que se criara na península ibérica, uma reprodução em escala
reduzida do grande confronto em ato na Europa e no resto do mundo: de um lado os
fascismos (Hitler e Mussolini se empenharam no apoio aos rebeldes), do outro o mundo
dos opositores (a França do governo da frente popular e a União Soviética em primeira
linha, embora com diferentes gradações na solidariedade para o governo de Madri). O
lugar dos antifascistas, italianos e não, estava na Espanha republicana, na defesa do
governo legitimo e contra a agressão fascista, foi dito e escrito. Desde julho e agosto
dezenas e dezenas de voluntários se dirigiram para a fronteira franco-espanhola, para se
juntar às forças regulares. E para os antifascistas italianos, a possibilidade de lutar
finalmente contra os fascismos, ainda que fora da Itália, fazia aumentar a esperança de
poder fazer, em breve, a mesma coisa em sua pátria, segundo o slogan (“Hoje na
Espanha, amanha na Itália”) lançado por Carlo Rosselli em seu discurso à Radio de
Barcelona a 13 de novembro daquele mesmo ano.
Entre o fim de julho e as primeiras semanas de agosto se constituiu a coluna italiana de
voluntários, promovida por Rosselli e formada, em sua maioria, de anarquistas. As
notícias chegavam também do outro lado do Atlântico. Libero recebia regularmente
212
Sobre a guerra civil espanhola, a bibliografia é enorme. Além das obras consultadas para acompanhar
pontualmente o percurso e as vicissitudes da coluna italiana, um bom e ágil instrumento de síntese é
BROWNE, Harry. Spain’s Civil War. London: Longman, 1996.
207
Giustizia e Libertá, no qual publicara um artigo no mês de maio sobre a questão
religiosa italiana213. E o semanário de Rosselli se tornara, desde os primeiros dias da
guerra, porta-voz da necessidade da luta. Não é difícil imaginar Battistelli impaciente
diante do precipitar dos eventos. Numa carta de 1967 para um correspondente italiano,
Enrica lembrará algo daqueles dias:
“Cerca de um mês antes da revolta na Espanha, resolvemos fazer uma
viagem à Europa, e, para economizar, escolhemos um navio cargueiro
inglês, o Delambre, que fazia escala somente em Santos. Libero pediu
ao consulado do Rio o visto para Espanha, Inglaterra, França e Bélgica.
Antes de partir, chegaram as primeiras notícias, ainda confusas, sobre a
Espanha. Com certeza, foi naquele momento que Libero resolveu
participar, caso chegasse a tempo (a viagem devia durar uns 25 dias).
Prova disso é seu testamento, escrito de seu punho dia 28 de julho”.214
Battistelli, então, aproveitou da viagem planejada anteriormente para alcançar em
seguida a Espanha. A determinação em empenhar-se, de uma forma ou de outra, na
guerra espanhola nasceu naqueles dias. Assim o final de julho e o começo de agosto
foram dedicados aos preparativos para a viagem, que, dadas as circunstâncias, podia ter
desdobramentos imprevistos. Um testamento foi redigido215, a biblioteca transferida da
cidade para a fazenda. Aos amigos, a simples noticia de uma ida para São Paulo, de
trem. Para os mais íntimos, a revelação do verdadeiro destino somente antes da
despedida na estação carioca.216 Em Santos, dia 5 de agosto, Libero e Enrica, únicos
213
“Osservazioni sul problema religioso italiano”. Giustizia e Libertá, ano III, n.19, 8.5.1936, p.3. Na
conclusão de seu escrito, Libero afirmava: “O ateísmo, antítese de religiosidade, não é por nada antítese
de moralidade. De uma ética imanente, que deriva seus preceitos não de revelações sobrenaturais, e
sim da dolorosa experiência da humanidade. Ética que pode em grande parte coincidir com a do
cristianismo, e até com a do catolicismo, mas que não busca comprazer a Deus nem conquistar
benemerências junto dele, e sim tornar menos infeliz possível, e para o maior número possível de
pessoas, a ‘condition humaine’. Divinizar o homem? Humanizá-lo, diria. [...] O humanismo de GL me
parece que tenha, ou deva ter, esse significado. Individualmente e socialmente.”
214
Carta de Enrica Battistelli para Lorenzo Vanelli, Rio de Janeiro, 1967. Istituto Nazionale per la Storia
del Movimento di Liberazione in Italia (INSMLI) de Milão, Fundo AICVAS b. 12, fasc.75 e Fundo Arquivo
AICVAS, b. 2, fasc.10.
215
Nele, Libero escrevia: “Peço para minha esposa que não chore demais por minha morte. Procure se
distrair o mais intensamente e rapidamente possível, evitando, por exemplo, o luto, as visitas ao
cemitério e tudo o que poderia lembrar a perda. Que minha recordação seja para ela doce, não aflitiva.
Se encontrar um companheiro digno não tenha hesitação em casar novamente, sem medo de ofender
com isso a minha memoria. Seja fiel às minhas ideias, que ela conhece. É a única fidelidade que prezo”.
216
Assim anota Garavini em suas memórias: “Battistelli [...] pediu para mim e minha esposa para
acompanhá-los para a estação ferroviária, ele e sua esposa Enrichetta, tendo que viajar para São Paulo.
Pouco antes de entrar no trem, nos falou que iria para a Espanha, lutar contra o fascismo. ‘Todos sabem
que vamos para São Paulo... mas depois iremos para Santos e, de navio, até Londres, depois a Paris e de
Paris para Barcelona.’” Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianz: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un
angolo della Romagna, op. cit., p.179.
208
passageiros assinalados, embarcavam no Delambre, pequeno vapor britânico com 38
tripulantes, com destino Liverpool.217
Por um curioso jogo de circunstâncias, nos mesmos dias em que Battistelli e a esposa
seguiam seu caminho rumo à Europa para lutar contra o fascismo, outros italianos
chegavam ao Brasil, brindados, por aquele mesmo fascismo, com uma viagem-prêmio.
Eram setenta e cinco estudantes, de várias regiões da Itália, de sexo masculino e idade
entre 14 e 19 anos, arregimentados pela ONB (Opera Nazionale Balilla), organização
da juventude fascista, e tendo o consulado italiano do Rio de Janeiro como ponto de
referência no Brasil. Por viajar na terceira classe, no vapor Conte Biancamano,218
possivelmente esbarraram com alguns dos outros jovens italianos que viajavam na
mesma classe, uma meia dúzia, entre 15 e 18 anos também; estes, porém,
não
premiados pelo regime, mas obrigados a expatriar em busca de trabalho e fortuna. Ou
podem ter avistado outros jovens que também estavam na 3ª classe: Chama, 19 anos,
costureira polonesa de Varsóvia; Luigi, 19 anos, agricultor húngaro de Budapeste;
Victor, 13 anos, estudante libanês de Beirute. Todos judeus. Quem sabe alguns destes
escapando de um futuro campo de concentração.
Desembarcados na Capital Federal no dia 4 de agosto, os setenta e cinco
avanguardisti219 reembarcaram de volta para a Itália no mesmo navio dez dias depois,
desta vez do porto de Santos, após uma provavelmente prazerosa permanência em
território brasileiro, tendo, contudo, visto e conhecido deste país o que as autoridades
consulares italianas, que os acompanharam em todos seus deslocamentos, acharam por
bom que conhecessem.220 O caminho deles não cruzou com o de Battistelli no cais de
Santos por poucos dias, mas é de se imaginar que o encontro teria trazido à mente de
Libero aquelas afirmações de Rosselli sobre a resistência ao fascismo que certa
juventude na Itália estava conseguindo construir, e talvez teria suscitado a vontade de
uma pergunta ou um desafio a alguns dos setenta e cinco, disciplinados e doutrinados
pelo regime.
217
AN, SPMAF (Serviço de Policia Marítima, Aérea e de Fronteiras)-SANTOS, Fundo BS, Saída de Vapores,
Porto de Santos, Agosto de 1936, Caixa 557, Dep. 112.
218
AN, BR.AN, RIO.OL.O.RPV,PRJ.29987.
219
“Avanguardisti” (“vanguardistas”) eram denominados os inscritos à ONB, órgão do Partido Fascista
italiano de caráter paramilitar, com idade entre 14 e 18 anos.
220
AN , SPMAF – SANTOS, Fundo BS, Saída de Vapores, Porto de Santos, Agosto de 1936, Caixa: 557,
Dep. 112
209
É possível mapear os deslocamentos de Battistelli e sua esposa até a Espanha através
das informações que seus artigos, sua correspondência e as comunicações da policia
italiana nos trazem. Antes de chegar à Inglaterra, o navio fez escala em Las Palmas, nas
Canárias, arquipélago espanhol que se encontrava nas mãos das forças rebeldes. Libero
aproveitou as poucas horas de tempo para se aventurar pelas ruas da cidade, onde um
soldado do exército lhe pediu os documentos. Num artigo que será publicado meses
depois no semanário de GL,221 ele se perguntava o que estivesse levando aquele jovem
soldado e “os milhares como ele, a matar e morrer pela causa dos generais, dos
latifundiários, dos jesuítas”. E nenhuma das possíveis explicações que enfileirava para
tanto (o amor pela pátria, o instinto de classe ou de casta, a disciplina militar) lhe
parecia satisfatória, encontrando como certa uma só resposta: uma passividade cega ou
obtusa, que Libero declarava ser incapaz de gerar heroísmos. “Continuamos nossa
viagem rumo às brumas de Liverpool. Chegarei a tempo para assistir ao despertar da
consciência do soldado de Las Palmas?” se perguntava Battistelli encerrando seu
escrito.
De Liverpool para Londres, onde as noticias da mobilização de GL e de outros
agrupamentos começaram a chegar com mais detalhes, e onde se fez mais clara a
determinação da luta, como Libero lembrará meses depois numa carta para Enrica
escrita no front:
Você me diz, sem me censurar por isso, que sacrifiquei o amor por você
em nome do amor pela Liberdade. Não, Nina. Somente percebi que para
ser realmente digno da estima por mim mesmo e de teu amor, eu tinha
que fazer esta escolha. Você me ama por aquilo que sou, assim como
eu. E conhecendo-me, você logo compreendeu, ao ler em Londres sobre
as ações dos companheiros italianos, que não teria sido possível eu agir
diversamente.222
Com efeito, a coluna italiana, promovida por Rosselli, com a mediação de Berneri em
Barcelona, e composta de elementos oriundos de GL, de republicanos de esquerda, mas,
sobretudo, de anarquistas (e enquadrada como seção italiana, na coluna anarquista
Francisco Ascaso), já tivera seu batismo do fogo em fins de agosto, na batalha de Monte
Pelado, na região da Aragão.223
221
“Il soldato di Las Palmas”. Giustizia e Libertá, ano III, n. 45, 6.11.1936, p. 3.
“La prima lettera dal fronte”. Carta de 29.10.1936, publicada em Giustizia e Libertá, ano IV, n. 27,
2.7.1937, p. 3.
223
Para as noticias sobre a participação do antifascismo italiano na guerra civil espanhola, ver sobretudo
CANALI, Giulia. L’antifascismo italiano e la guerra civile spagnola. Lecce: Manni, 2004. Para a
222
210
No começo de setembro, o casal Battistelli já se encontrava em Paris, ponto central do
antifascismo no exilio. Uma carta para Luce Fabbri, filha de Luigi, escrita na capital
francesa no final do mês, preanunciava o próximo destino de Libero:
Paris, 29.9.36. Querida Luce, [...] com o maior entusiasmo, daqui a
poucos dias irei oferecer minha contribuição à luta e ao trabalho.
Exatamente naquela coluna italiana que, aberta para todos os
antifascistas, é formada sobretudo por anarquistas e membros do grupo
de GL. E exatamente naquele setor catalão-aragonês onde tenta-se o
primeiro experimento de organização autônoma anarquista. [...] Se
minha posição espiritual diante do anarquismo é um pouco a de Tomé
diante de Cristo, queira lembrar que Tomé conseguiu se sair com uma
amorosa reprovação.224
Ainda em setembro, Battistelli se deslocou para Barcelona, entrando em contato com a
coluna e seu líder, Rosselli, e também com o antigo correspondente, o anarquista
Berneri. Após semanas de preparação, começava sua participação nas operações de
guerra no front aragonês, na localidade de Huesca.225 A ofensiva de Almudevar, em
novembro, durante a qual Battistelli comandou uma bateria, teve êxito incerto, e as
criticas dos anarquistas dirigidas nesta ocasião a Rosselli, junto com os decretos do
governo de Madri de desarticular as milícias de voluntários e enquadrá-las no exército
regular, levaram ao fim da coluna italiana como tal. Por outro lado, estavam sendo
organizadas as Brigadas Internacionais, e desde outubro, comunistas, socialistas e
participação mais especificamente anarquista, ver LEMBO, Luigi. Guerra di classe e lotta umana:
l’anarchismo in Italia dal biennio rosso alla guerra di Spagna (1919-1939), Pisa: BFS, 2001, p. 142-222.
224
Carta de Libero Battistelli para Luce Fabbri. “Testimonianze”. Studi Sociali, ano VIII, n. 5, 28.3.1936,
p.3.
225
É dai que, entre finais de outubro e começo de novembro, foram escritas a carta para a esposa, que
já foi mencionada acima, e uma segunda para Luce Fabbri. Da primeira vale registrar mais algumas
linhas, indicativas dos sentimentos de um homem que, mesmo tendo lutado na guerra mundial, se
encontrava a guerrear novamente, quase vinte anos depois: “Teremos lutado lado a lado também na
Espanha, mesmo que a natura do combate tenha nos separado materialmente, dando-nos lugares e
responsabilidades diferentes. Te peço, portanto, para continuar a trabalhar no Comitê e no jornal,
mesmo que tuas tarefas sejam humildes. [...] Veja, eu também, às vezes, sinto saudade da Fazenda e da
paz dela. Mas, pensando bem, creio que aquela vida, segura e tranquila, não fosse propícia para o nosso
amor, e portanto para a nossa felicidade. [...] Nosso amor surgiu com um caráter em certo sentido
heroico: quando a minha vida, a vida que você aceitava compartilhar, era incerta e inquieta, aventurosa
e combatente. Assim nasceu, e somente em circunstancias difíceis como estas ele se manifesta em sua
plenitude. [...] Não tenha medo que eu me exponha voluntariamente ao perigo. Não tenho vaidade de
glória. Cumpro e cumprirei serenamente meu dever” (Cf. “La prima lettera dal fronte”. Carta de
29.10.1936, publicada em Giustizia e Libertá, ano IV, n. 27, 2.7.1937, p. 3.). Da segunda, que trazia as
impressões diante da vida de uma cidade como Barcelona, completamente controlada pelos
anarquistas, ocorre destacar o sentimento de admiração de Libero pela tranquilidade com que o
experimento libertário estava acontecendo e de apoio pela tentativa em ato (Cf. “Ultima lettera a Luce
Fabbri”. Studi Sociali, ano VIII, n. 5, 28.3.1936, p. 3)
211
republicanos italianos participavam delas com uma segunda coluna italiana, o batalhão
Garibaldi. Rosselli queria manter juntos os voluntários de GL, constituindo um novo
batalhão, mas Battistelli se manifestou favorável a um acordo com essa segunda coluna.
Ao nascer o batalhão Matteotti, formado por gielistas, Libero não aderiu e manifestou a
Rosselli, numa carta em março de 1937, sua vontade de se juntar ao Garibaldi. A
motivação, é de se reparar, não podia ser outra: favorecer a unidade entre as várias
correntes politicas, algo que sempre perseguira, no Brasil como agora na Espanha.226
Após a adesão de Libero ao batalhão Garibaldi, naquele mesmo mês de março,
registrou-se também em Rosselli uma disponibilidade de abertura para os comunistas.
Libero chegava a Madri para se juntar ao batalhão, que em abril já se transformava em
Brigada Garibaldi: por sua vez, o primeiro batalhão deste novo agrupamento militar foi
logo posto sob o comando de Battistelli.
Durante todos esses meses, de outubro de 1936 a maio de 1937, Battistelli se dividirá
entre Barcelona, Paris - onde encontrará um ou outro dos lideres do antifascismo que
não permaneciam estavelmente na Espanha, e onde sua esposa foi internada num
hospital por um tempo - e o front. Como se viu, numa constante tentativa de favorecer a
apresentação de um rosto unitário do antifascismo italiano. Das cartas, dirigidas aos
lideres de GL, ou a expoentes socialistas ou anarquistas, como Nenni e Berneri, e de
alguns artigos publicados em periódicos, é possível depreender pensamentos e
orientações do período.
Para Nenni, Battistelli escreveu uma longa carta (a lápis, pedindo desculpas por não ter
o tempo para passar a limpo o texto), ainda no período em que a coluna italiana estava
movendo seus primeiros passos: ele convidava o interlocutor a orientar os seus
companheiros de partido a favorecer a adesão dos socialistas à formação existente, sem
criar outra coluna italiana (como, pelo contrario, ocorrerá). Duas colunas no mesmo
front, comentava Libero, seria sinal de “imaturidade politica”. E acrescentava:
Como você sabe, por razoes de caráter e de distância, sou
absolutamente alheio às competições partidárias. Tenho amigos
republicanos, gielistas, socialistas, comunistas, anarquistas. E tenho a
226
“Uma minha participação no batalhão Garibaldi seria um remédio parcial para a inalcançável unidade
material, representando um sinal tangível de unidade espiritual ou pelo menos de fraternidade ou de
ausência de dissídios [...] Como já lhes falei, seja para as relações futuras, seja para a repercussão na
Itália, contatos estreitos e cordiais entre nós e o batalhão Garibaldi, entre nós e as correntes politicas
representadas nele, me parecem desejabilíssimos”. Carta de Libero Batistelli para Rosselli e Cianca,
9.3.1937, apud CANALI, Giulia. L’antifascismo italiano e la guerra civile spagnola, op. cit., p. 62-63.
212
feliz experiência de que não é difícil caminhar de acordo, quando se
possui uma visão bastante ampla dos problemas e um espirito de
tolerância. 227
Escritas no período da crise da primeira coluna italiana, provocada, como vimos, por
tensões entre a componente anarquista e a liderança gielista, duas cartas para Berneri
testemunham dos sentimentos de amizade de Libero e atestam respeito e estima para os
companheiros anarquistas com os quais ele colaborou por meses. Numa delas escrevia:
Você possui, sobre seus companheiros, toda a autoridade que, em
campo anarquista, for possível. Eu só tenho aquela dada por certa
serena equanimidade. Mesmo que escassa, vou exercê-la. Tenho certeza
que você vai fazer o mesmo. Provavelmente vamos conseguir; e não
somente entre os indivíduos, mas também entre os grupos, permanecerá
a convicção de ter percorrido juntos um bom pedaço de caminho, de ter
combatido o inimigo comum, unidos uns com os outros.228
Com efeito, uma atitude de sincera abertura e simpatia para o anarquismo sempre
caracterizou Battistelli, a ponto de afirmar a claras letras, numa outra carta para
Nenni229, já em 1937, na qual aceitava entrar a fazer parte do batalhão Garibaldi,
principalmente formado, como se viu, por comunistas e socialistas: “Declaro desde já
que me recusarei de lutar contra os anarquistas espanhóis, ainda que batizados pela
ocasião de ‘contrarrevolucionários’ ou de ‘quinta coluna’, ou contra o Governo da
Catalunha, mesmo que seja acusado de separatismo - ou até de cumplicidade com
Franco”. Parecia prever, naqueles primeiros meses de 1937, o que aconteceria no
começo do mês de maio, com os duríssimos choques em Barcelona entre libertários e
grupos mais radicais, de um lado, e forças da esquerda comunista e socialista, do outro,
uma guerra civil dentro da própria guerra civil, um choque fratricida entre componentes
da esquerda espanhola e internacional que provocou centenas de vitimas, entre as quais
o próprio Berneri.
E foi exatamente a amizade com o libertário italiano que levara Libero a colaborar com
o quinzenal anarquista Guerra di classe. Impresso em Barcelona e dirigido por Berneri,
o jornal hospedou em dezembro de 1936 a mesma carta para Luce Fabbri que aparecerá
227
ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, [Espanha],
[1936].
228
Carta de Libero Battistelli para Camillo Berneri. [Espanha], [1936]. In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi
(org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 56.
229
ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, [Espanha],
[1937].
213
meses depois em Studi Sociali, e também o anúncio (e depois o relato) de uma
conferência que “o capitão Libero Battistelli, de Giustizia e Libertá” proferiu, em abril
de 37, na sede da Casa dos Italianos antifascistas em Barcelona.230 Triste, mas cheio de
profunda simpatia e amizade, era enfim o breve texto231 em que Libero lembrava o
amigo, “meu irmão Camillo”, caído nas jornadas de maio em Barcelona. Sem entrar no
mérito dos eventos que levaram Berneri à morte, Battistelli chamava o fim dele de
“martírio” e o amigo anarquista de “santo” (“amor e sacrifício levados a uma altura tal
que apavora o mais comum dos humanos”), de “irmão”, lembrando a atitude fraterna
com a qual sempre o acolhera e sua ultima saudação, unida ao dom das obras de Santa
Teresa. (Curioso presente, diga-se de passagem, de um anarquista, por principio
anticlerical, para o amigo, também anticlerical e ateu declarado).232
Diálogo com socialistas, anarquistas, decisão de aderir a uma brigada promovida pelo
movimento comunista internacional. Libero, contudo, declarava também na Espanha
seu pertencimento a Giustizia e Libertá, de um lado, reafirmando, na carta a Nenni
acima citada, que sua adesão à brigada Garibaldi “havia de ser desejada [grifo do autor]
pelo movimento de GL do qual eu figuraria como representante”, do outro, publicando
alguns artigos no semanário, que permitem acompanhar seu percurso politico e humano
na Espanha da guerra civil, e seu pensamento diante de atos e escolhas de um processo
revolucionário.
Em “Fratelli”233, escrito enquanto estava no front aragonês, Battistelli registrava suas
impressões diante de muitos soldados do campo nacionalista que abandonavam suas
fileiras e passavam do lado das forças republicanas. Ele mesmo descrevia o encontro
entre dois irmãos, um rebelde que aderindo às forças legalistas acabou reencontrando
seu irmão miliciano. Em “Lettera senza indirizzo”234, Libero escrevia, em forma de
230
Cf. Guerra di classe, ano II, n. 13, 21.4.1937 e “Classi e nazioni nella politica internazionale”. Guerra di
classe, ano II, n. 15, 5.5.1937.
231
“Mio fratello Camillo”. Guerra di classe, ano II, n. 20, 1.7.1937, p.2.
232
A amizade entre Berneri e Battistelli encontra um registro no testemunho de um antifascista que
participou da coluna italiana: “Em Barcelona, me chamou atenção a simplicidade de Libero Battistelli e
Camillo Berneri. Entre o escritor de Giustizia e Libertá e o professor anarquista existia uma comunhão
perfeita. Passavam horas e horas, sentados um ao lado do outro, contentando-se de trocar um olhar,
um sorriso. Mas quando se despediam, tinham esquecido todas as feiuras que humilham um processo
revolucionário, e voltavam, com fé rejuvenescida, a enfrentar incompreensões e egoísmos do próximo”.
BRACCIALARGHE, Giorgio. Nelle spire di Urlavento: il confino di Ventotene negli anni dell’agonia del
fascismo. Firenze: L’Autore libri, 1970, p.50.
233
“Fratelli”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 3, 15.1.1937, p.1.
234
“Lettera senza indirizzo”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 14, 2.4.1937, p.2.
214
carta (“mesmo que a Senhora nunca possa ler”), agradecendo uma senhora da alta
burguesia castelhana que o hospedou em sua casa durante a passagem do batalhão
Garibaldi pela aldeia onde ela morava. Agradecimento pela hospitalidade, pela
gentileza, por ter acolhido o intruso, e digressões sobre o que a revolução niveladora
acabará fazendo com pessoas daquela classe social e o que , pelo contrário, poderia se
abster de fazer (“como seria bonita – e impossível - uma revolução niveladora que
permitisse, às boas senhoras de certa idade, terminar sua vida tranquila no vilarejo em
que nasceram, com os serviços da criada Socorro e do empregado José”). Em “Il ‘cura’
di Valdeavero”235, o encontro com uma singular experiência de reforma agrária, pela
qual todos os habitantes do pequeno município às portas de Madri, incluindo os filhos
do antigo latifundiário da aldeia, trabalhavam coletivamente a terra, agora propriedade
comum. Todos, e neste todos estava também o pároco do local, “transformado em
camponês coletivista”, e com o qual Libero acabou trocando uma conversa. Homem
ainda apavorado pelas mudanças ocorridas, um tanto ambíguo em sua rápida conversão
a elas (“campesino ocasional, sacerdote para sempre”), o “cura” se salvara da morte. E
Libero anotava:
Agora é sereno. Mas nos olhos da irmã dele vejo passar uma onda de
terror. Penso à Catalunha, ao Levante, ao Aragão, ao atroz simplismo
das revoluções todas, ao fácil e rápido critério de condenar o presunto
adversário não por aquilo que fez e sim por aquilo que é. Padre ou
proprietário, como já foi ‘padre ou aristocrático’. O feliz vilarejo de
Valdeavero evitou esse simplismo. Valha seu exemplo.
Esse foi o último artigo de Libero. Menos de um mês depois, ele tombava no front
aragonês. Nas primeiras horas do dia 16 de junho de 1937, entre os municípios de
Chimillas e Alerre, no setor de Huesca, Aragão, após um bombardeio realizado pela
artilharia e pela aviação, alguns batalhões da Garibaldi se lançavam ao ataque das
trincheiras inimigas. Atingido pelo fogo das metralhadoras, Battistelli ficou ferido e
permaneceu inalcançável durante horas, por estar em território aberto, entre as duas
linhas. Somente ao final do dia pôde ser socorrido. Transportado a Barbastro e depois a
Lérida, foi em seguida levado para o Hospital geral da Catalunha, em Barcelona, onde a
esposa o assistiu constantemente. A bala atingira o braço esquerdo e perfurara o
pulmão. Após dias de condições estacionárias, surgiram complicações, e Libero faleceu
235
“Il ‘cura’ di Valdeavero”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 21, 21.5.1937, p.1.
215
dia 22 de junho. O corpo, após um enterro solene, foi sepultado no Cemitério de
Montjuic em Barcelona.236
Escrevendo da Espanha para Garavini, Libero dizia ao amigo anarquista:
De mim posso dizer que são satisfeito de meu gesto, que pretendo
continuá-lo até o fim [...] Independentemente de tudo, se trata de uma
experiência preciosíssima e insubstituível para os antifascistas italianos.
Nada melhor do que esta experiência pode mostrar o que haverá de
fazer e o que haverá de evitar. Em todos os campos: político,
econômico, militar etc.237
No dia da morte de Libero, pela manhã, chegara, às trincheiras do front de Huesca, a
noticia do assassinato de Carlo Rosselli, junto com o irmão Nello, acontecido na França
exatamente uma semana antes, por mãos de um grupo da direita francesa, talvez a
mando dos serviços secretos fascistas.238 Libero, segundo o testemunho de sua esposa,
tomou conhecimento da morte de Rosselli, antes de começar o ataque239. Perscrutar os
sentimentos daquelas horas não é aqui dado ao pesquisador. Mas é possível supor que
tenham-se produzido nele, geradas pela noticia recebida, uma determinação mais firme
e uma audácia maior em se lançar contra a trincheira inimiga. E, quem sabe, o grito: !Nó
pasarán!
3.15. Epílogo
A narração dos fatos espanhóis talvez tenha ocupado muito espaço, mas a justificativa é
bastante clara. Único expoente do antifascismo italiano no Brasil a se envolver como
236
Nas semanas seguintes o periódico Giustizia e Libertá lembrou Battistelli com a reapresentação de
alguns textos dele e vários artigos de expoentes de GL. Cf. Giustizia e Libertá. Ano IV, n. 26, 25.6.1937,
p.3; n. 27, 2.7.1937, p.3-4; n. 29, 16.7.1937, p.3; n.30, 23.7.1937, p.3; n.35, 27.8.1937, p.3; n.37,
10.9.1937, p.3. Também foi publicado por GL em Paris um opúsculo especial que recolhia alguns destes
textos: Libero Battistelli, compagno ed eroe esemplare, Paris, 1937.
237
BLAB, Fundo Nello Garavini, Carta de Libero Battistelli para Nello Garavini. Espanha, [1936 ou 1937].
238
Cf. NITTI, Francesco Fausto. Il maggiore é un rosso. Torino: Einaudi, 1974, apud CALANDRONE,
Giacomo. La Spagna brucia: cronache garibaldine. Roma: Editori Riuniti, 1974, p. 164-165.
239
Carta de Enrica Battistelli para Lorenzo Vanelli, Rio de Janeiro, 1967, In Istituto Nazionale per la Storia
del Movimento di Liberazione in Italia (INSMLI) de Milão, Fundo AICVAS b. 12, fasc.75 e Fundo Arquivo
AICVAS, b. 2, fasc.10.
216
voluntário na guerra civil espanhola240, Battistelli, devido a sua naturalização, é também
mais um brasileiro que participou do conflito, além dos que a historiografia já tem
apresentado.241 A luta e a morte dele serão vistos por seus companheiros de Giustizia e
Libertá na Europa e pelo grupo dos antifascistas do Rio e também de São Paulo como
um exemplo de vida e um testemunho político e humano a ser celebrado. A viúva,
voltando ao Rio alguns meses depois, contribuirá em alimentar a memoria do marido,
em nome do qual os antifascistas da Capital Federal realizaram algumas coletas em
apoio à causa espanhola.
Foram também estas coletas, promovidas em nome de um “comunista” tombado na
Espanha do lado das tropas às ordens de Moscou - como a policia italiana e brasileira
leram os eventos -, que levaram a investigações, perquisições e prisões no âmbito do
pequeno grupo antifascista da colônia italiana no Rio. Petraccone foi identificado como
responsável desta ação de solidariedade: semanas após a morte de Libero, escrevera um
breve artigo em memória do amigo caído na Espanha para o periódico de GL,
recordando sua presença no meio do “pequeno grupo do Rio”, e o nome dele comparece
no próprio jornal como responsável pelo envio de dinheiro para a organização242.
Petraccone começara suas frequentações com as prisões cariocas já em agosto de 37,
quando foi preso por dois dias a fim de prestar esclarecimentos a respeito de comunistas
paulistanos foragidos das prisões locais, e ainda em finais de outubro do mesmo ano
(curiosamente três semanas após as autoridades diplomáticas italianas terem indicado
nele o responsável pela doação a GL), quando seu estabelecimento comercial se tornou
objeto de busca e apreensão de livros e outro material. Identificado e fotografado,
Petraccone foi posto em liberdade no mesmo dia.
No mês seguinte, a 10 de novembro, o presidente Vargas dissolvia o legislativo e
promulgava nova constituição: era o Estado Novo em seus primeiros passos. No mesmo
dia, os jornais cariocas anunciavam a prisão de Domenico Ferraro, italiano com
240
A notícia de uma presença de Goffredo Rosini na guerra de Espanha é bastante controversa.
Cf. BATTIBUGLI, Thaís. A solidariedade antifascista. Brasileiros na guerra civil espanhola (1936-1939).
Campinas (SP): Autores associados; São Paulo: Edusp, 2004.
242
As doações do Rio para GL, depois da partida de Battistelli para a Espanha, foram as seguintes:
4.12.1936 (“Petraccone”, 625 fr,-), 26.6.1937 (“os amigos de GL”, 960 fr,-) e 8.10.1937 (“entre
companheiros antifascistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, em nome do companheiro Libero
Battistelli”, 4000 fr,-). Informações recolhidas pela policia politica italiana atribuíam a Petraccone o
cheque e a carta que acompanhava esta última mais significativa doação, com o pedido de “destinar
metade do valor para GL e outra metade para a ação na Espanha”. Cf ACS/CPC, b. 411, f. 29269
(“Battistelli, Libero”),Informe Divisione Polizia Politica, Roma, 24.1.1938.
241
217
nacionalidade brasileira, acusado de propaganda comunista e subversiva, qual espião a
serviço de Moscou.243 Dele já foi apresentado, na segunda parte, o percurso na década
de 1920 e inicio de 1930. Aqui há de se registrar sua prisão, entre as motivações da qual
estavam seus contatos com F.S.Nitti, ex-presidente do Conselho italiano, exilado em
Paris, descrito pela imprensa carioca como “chefe da espionagem moscovita na
Europa”, quando na realidade era um simples expoente do fuoruscitismo radical, e
conhecido de Ferraro por ser oriundo da mesma região deste. A permanência no cárcere
se estenderá por alguns meses, provavelmente até agosto de 1938, quando um
telespresso da Embaixada italiana no Rio informou sua libertação. Não há registros de
uma frequentação do grupo de Battistelli por parte de Ferraro, mas o fato é possível. De
todo modo, sua prisão permite perceber o clima de rigorosa vigilância e repressão ao
qual o antifascismo na Capital Federal (e no resto do país) estava sendo submetido.
Assim, em 1938, a vontade disciplinadora do governo se abateu também sobre
Petraccone e seus colaboradores na Athena. Nos primeiros dias de janeiro, o editor, seus
dois sócios, Luigi Cingolani244 e Carlo Alessandro Tamagni245, e o guarda-livros da
firma, Filippo Ferri246, foram detidos, e em seguida recolhidos à Casa de Detenção, “a
fim de serem processados e expulsos do território nacional, por serem nocivos aos
interesses do país”, segundo os prontuários da Secção de Segurança Social da DESPS
(Delegacia Especial de Segurança Politica e Social). A acusação era de manter contatos
com elementos comunistas (Pedrosa, Aristides Lobo) e de promover a IV internacional
no Brasil com coletas em favor da organização Socorro Vermelho (ala trotskista), com
fundos a serem destinados para os combatente da Espanha republicana , servindo-se por
isso do nome do “celebre líder comunista Libero Battistelli”.247
243
Cf. “Preso Domenico Ferraro que agia sob dupla nacionalidade”. Diário da Noite, 10.11.1937, p.1-2, e
“Fazia propaganda comunista no Brasil”. Diário de Noticias, 10.11.1937, p.1. Para informações das
autoridades policiais e diplomáticas italianas sobre Ferraro, ver ACS /CPC b. 2029, f. 6035 (“Ferraro,
Domenico”).
244
ACS/CPC, b. 1349, f. 19722 (“Cingolani, Luigi”). Originário da região de Macerata, é apresentado
como comunista pelo fichário da policia, que também refere que saiu da Itália em 1925. Após anos em
São Paulo, se mudará para o Rio na década de 1930.
245
ACS/CPC, b. 5012, f. 65200 (“Tamagni, Carlo Alessandro”). Republicano, oriundo da região de
Mântua, no norte da Itália, era entre os antifascistas mais jovens, tendo nascido em 1908. Expatriara em
1921.
246
ACS /CPC, b.2041, f. 110927 (“Ferri, Filippo”). Nascido em Nápoles em 1903, de profissão contador,
emigrara para a França em 1930, segundo informes do fichário da policia italiana, e seis meses depois
embarcou para Buenos Aires. Em 1933 se transferia para São Paulo.
247
Cf. AN MJNI Serie 5 ( Assuntos Políticos) / Subsérie 23 (Expulsão e Deportação)/ Caixa 535 / Processo
1331 / 39. Protocolo 2220, ano 1938: Expulsão de Pasquale Petraccone, Luiz Cingolani, Felippe Ferri,
218
Nova busca e apreensão na firma, memorial do advogado de defesa, Evaristo de
Moraes, declarações de dezenas de estabelecimentos comerciais e bancos cariocas e
paulistas que abonavam a postura profissional de Petraccone, e em abril o chefe da
policia que remetia o caso ao ministro. Somente em junho, porém, os acusados
deixaram a prisão, por ordem do delegado. Postos em liberdade com a condição de
deixar o território nacional em dez dias, os italianos foram novamente detidos quinze
dias depois, e mantidos na prisão apesar do TSN ter emitido sentença absolutória. No
final, após mais de dois meses, o ministro mandou arquivar o processo e soltar os
imputados. Petraccone seria antifascista, sim, mas não comunista, a coleta seria uma
simples subscrição em favor da viúva Battistelli, as cartas de Lobo para Petraccone não
seriam tão perigosas assim, e os testemunhos de ligações com Socorro Vermelho todos
“na base do saber e do concluir, sem apresentação de fatos”: foram as conclusões da
justiça brasileira.
A onda de suspeitas de atividade subversiva atingiu também os parentes de Libero.
Enrica, numa carta da década de 60, falará de documentos e manuscritos do marido que
“a policia política [...] subtraiu numa das várias invasões do meu domicilio”248. Em
1938, a Fazendinha de Mangaratiba, distrito Alto da Serra, foi alvo de investigações: a
prisão de Petraccone e companheiros em janeiro, noticiada pela imprensa carioca249,
levou dias depois a um mandato de busca e apreensão na residência de Battistelli, o
“comunista” em nome do qual estava sendo organizada a arrecadação de fundos e a rede
subversiva. A delegacia da policia civil de Angra dos Reis, acionada pelo delegado de
Mangaratiba, abriu inquérito policial contra André Zuccari, o cunhado, e outros. Zuccari
e os funcionários da residência foram interrogados, além de um comprador que
aparecera à Fazenda Laperrière (como era conhecida antigamente) ou Battistelli: a
mesma, com efeito, tinha sido posta à venda por Enrica, também em meados de janeiro,
com anúncios em jornais. Zuccari admitiu conhecer Tamagni, Cingolani e Petraccone
(por eles frequentarem ocasionalmente a fazenda), e também a editora Athena, no Rio
de Janeiro, mas negou qualquer envolvimento com comunismo ou subversão. Como o
nome de Zuccari não apareceu nas investigações realizadas no Rio a cargo de
Carlo Alexandre Tamagni. Cf. também MJNI/ Departamento Federal de Segurança Pública / DPPS /
Prontuário n. 10.902 (“Pasquale Petraccone”).
248
Carta de Enrica Battistelli para Lorenzo Vanelli, Rio de Janeiro, 1967, In Istituto Nazionale per la Storia
del Movimento di Liberazione in Italia (INSMLI) de Milão, Fundo AICVAS b. 12, fasc.75 e Fundo Arquivo
AICVAS, b. 2, fasc.10.
249
“Uma célula comunista destruída pela Secção de Segurança Nacional”. O Jornal, 14.1.1938, p.7.
219
Petraccone e sócios, o delegado pediu arquivamento e o Tribunal de Segurança
Nacional concedeu, a 23 de março de 1938.250
Tempos de repressão, tempos de silêncio forçado no Brasil para o antifascismo, seja o
de origem italiana, seja o nacional. O Estado Novo reduzirá aos mínimos termos a
atividade e a propaganda, já afetada pelas providências do governo após o levante de
35.251 Ameaçados de prisão ou atingidos por inqueridos policiais, os poucos
antifascistas não encontraram mais o espaço que podiam ter antes. Houve quem
emigrou, como Frola, para o México, em janeiro daquele mesmo ano de 1938, houve
quem continuou com prudência. Ver-se-á no próximo capitulo como outro editor, Nello
Garavini, sobreviveu aos anos de restrição e controle. O antifascismo italiano foi
atravessando anos de crise e dificuldades, reforçadas pelos decretos que atingiam as
atividades politicas dos estrangeiros,252 até retomar certo vigor e certa coragem somente
após 1942, como se verá.
Quanto a Battistelli, não é errado considera-lo como o expoente mais maduro e
consciente do antifascismo italiano da capital Federal, se não do Brasil todo. Um
simples balanço de sua atuação, votada, antes de tudo, ao estabelecimento de laços e à
construção de espaços de diálogo e de colaboração entre várias correntes e
experiências253, mostra como em termos quantitativos, sua produção (cartas, artigos,
250
AN / Fundo Tribunal de Segurança Nacional – C8, código C8.0.PCR.0190, ficha 237938, processo N.
471 (“André Zuccari”).
251
Sobre o progressivo estabelecimento da legislação de segurança nacional, ver SILVA, Francisco Carlos
Teixeira da. “Os tribunais da ditadura: o estabelecimento da legislação de segurança nacional no Estado
Novo”. In PINTO, Antonio Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.). O corporativismo em
português: Estado, politica e sociedade no salazarismo e no varguismo, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 273-303.
252
Ver SEYFERTH, Giralda. “Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo” In
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999, p.
199-228.
253
O auto de busca e apreensão nos permite de lançar um olhar, ainda que parcial, sobre a biblioteca de
Battistelli conservada na fazenda, e documentar seus multiformes interesses políticos. Há livros que
demonstram interesse por temáticas ligadas ao socialismo e à própria União Soviética, como História do
Socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, Le Socialisme Constructif, de Henri de Man, Democracia e
Marxismo, de Giuseppe Saragat, Outras Revoluções virão, de Mauricio de Medeiros, Ma vie, de Léon
Trotsky, Psicologia do Povo Russo, de Máximo Gorki, Contos soviéticos, e até números de Lo Stato
Operaio, o periódico mensal do PCI, editado em Paris. Referências ao anarquismo, como Scritti, de
Errico Malatesta, Lo Specchio della grande rivoluzione de Pietro Kropotkin, Dias de Ira, de Helios Gómez
e Studi Sociali, a revista de Luigi Fabbri. E obras oriundas do ambiente da emigração antifascista, como
Un Italien revolté, de Mario Bergamo, Italia socialista, de Alberto Jacometti e A inquietação do mundo,
de F.S.Nitti, além das revistas Quaderni di Giustizia e Libertá, e a mensal Socialismo, de Frola. Outros
volumes deviam se encontrar nas prateleiras, mas isto é quanto os documentos dos investigadores nos
transmitiram.
220
palestras, depoimentos) foi das mais ricas do antifascismo italiano em ação no Brasil,
contando somente os artigos que foi possível identificar e as cartas que os arquivos nos
conservaram254. Em termos de conteúdo, foi o testemunho constante de uma abertura
ideológica e de uma vontade de construção politica singulares, que culminaram na
decisão de transformar proclamas e teorias numa prática real de combate contra o
fascismo.
254
No Rio de Janeiro, Battistelli escreveu um romance (“Un operaio qualunque”) que continua inédito: a
figura do protagonista era inspirada na vida do cunhado, Andrea Zuccari e nos eventos de Molinella da
década de 1920, dos quais Libero conservava lembranças e compilações de noticias. Uma cópia
conservada em Paris se perdeu com a guerra, outra que estava na residência carioca sofreu sequestro
policial. Talvez ainda exista em algum arquivo público ou particular o manuscrito original.
221
4. QUARTA PARTE / Nello Garavini
4.1 Politica e luta pela sobrevivência
“No Rio de Janeiro, os antifascistas italianos eram talvez os que menos conseguiam se
adaptar, sobretudo pela dificuldade de encontrar um emprego. Vi advogados,
professores, escritores, médicos, sem trabalho por dezenas de anos e podem-se imaginar
os sofrimentos deles e de seus familiares”1. Assim Nello Garavini começava o capitulo
do volume de suas memórias dedicado ao exilio na Capital Federal, onde ele, a esposa
Emma e a filha Giordana passaram vinte e um anos, fugindo das leis “fascistíssimas” e
da ameaça da prisão ou do confinamento. E a essa triste notação, o anarquista italiano
acrescentava algumas linhas sobre ele mesmo na nova situação:
Pessoalmente, podia me considerar entre os mais afortunados, pelo fato
de ter encontrado logo emprego. Fui limpador de moveis num
restaurante no bairro de São Francisco em Niterói; depois, no Rio de
Janeiro, no Hotel Glória, fui mensageiro, ascensorista, ajudante de
garçom, garçom. Depois fui vendedor, livreiro, representante.2
Dos três antifascistas italianos cujo percurso em solo carioca é investigado no presente
trabalho, o primeiro, Giuseppe Scarrone, chegava ao Rio em 1911, no âmbito dos fluxos
da emigração que ainda traziam da Itália centenas de homens e mulheres por ano, e
aqui, mesmo começando com pouquíssimos recursos, conseguiu firmar-se na atividade
que principalmente exercera em sua terra, a de fabricante de vidro. Libero Battistelli,
saindo da Itália debaixo do fascismo, em pleno vigorar da legislação liberticida,
aportava à capital da Republica sem poder praticar aqui a advocacia: o apoio de um
pequeno capital pessoal e a renda do atelier de costura da esposa lhe permitiram se
dedicar com mais liberdade e intensidade à publicística antifascista e ao trabalho
organizativo. Já no caso de Nello, também emigrado numa das primeiras ondas de
fuorusciti, uma vez no Brasil, foi preciso inventar-se uma profissão, articulando
exercício da politica e luta pela sobrevivência: o ideário anarquista lhe proporcionou
círculos de amizades e espaços de debate, mas seu antifascismo entrelaçou-se com a
também difícil labuta pelo pão de cada dia.
1
GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna,
Imola: La Mandragora, 2010, p. 161.
2
Ibidem.
222
A existência no Rio de Janeiro de um tio precedentemente emigrado foi uma ajuda
preciosa nos primeiros tempos, sem falar da presença da esposa, com sua atividade de
professora. Mas em Garavini e suas peripécias de exilado, mesmo com toda sua
singularidade, é possível de certa forma condensar destinos e vicissitudes de muitos
outros que buscaram refugio em terra estrangeira contra o fascismo de sua pátria.
Nello não colocou, entre as profissões que exerceu no Rio, a de editor. Com efeito,
depois de ter passados por vários empregos, em 1934 passou a administrar uma pequena
livraria nos arredores da Praça Tiradentes: ela funcionava também como editora, com o
nome de Minha Livraria, publicando dezenas de títulos, escolhidos a dedo entre
clássicos da esquerda comunista e libertária e traduções de textos mais recentes e
inovadores. Desta obra se discutirá mais para frente, mas ela fica registrada desde já
como o ponto alto de seu antifascismo militante, conduzido em nome do ideal
anarquista que o marcara desde sua juventude na Itália. Um antifascismo que
atravessará os anos difíceis do Estado Novo varguista, com as restrições impostas
também à colônia italiana, identificada tout court com o inimigo, e buscará seu
reconhecimento em tempos menos sombrios, mesmo a custa de polêmicas com irmãos
do mesmo campo de luta.
Nello não se naturalizou brasileiro, como Libero, nem passou o resto de sua vida no
Brasil, como Giuseppe. Sua perspectiva era a do retorno em sua terra, livre da ditadura,
e assim aconteceu. Mas os anos brasileiros, que aqui indagamos, entraram com um peso
importante na formação e no amadurecimento de uma consciência.
4.2. Anos italianos
Nello Garavini nasceu em Castel Bolognese, na província de Ravenna, a 28 de janeiro
de 1899.3 Pequeno centro da Romanha, região norte da Itália, a cerca de 50 quilômetros
de Bolonha, a cidade, como toda a área ao seu redor, se distinguia, desde finais do
século XIX, como um território propício para tendências politicas ligadas à esquerda,
3
Informações para a reconstrução do percurso existencial e politico de Garavini se encontram
principalmente em ACS/ CPC, b. 2277, f. 52637 (“Garavini, Nello”). Ver também LANDI, Giampiero.
“Nello Garavini: un uomo”, Il Castello, Castel Bolognese, marzo 1985. ----------------. “Nello Garavini”, site:
www.castelbolognese.org/nellogaravini.htm. GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e
antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, op. cit., passim.
223
como o socialismo, o anarquismo, o cooperativismo, o sindicalismo revolucionário.
Várias lideranças destes movimentos nasceram ou atuaram na região, caracterizada
havia tempo por um intenso anticlericalismo.
O anarquismo entrou na vida de Nello com o sangue e a educação familiar. O pai,
Pietro, possuía uma cantina em Castel Bolognese, que funcionava como local de
encontros de libertários. Foi neste ambiente que Nello cresceu, em contato com o pai e
os colegas dele, tendo a oportunidade de ouvir ocasionalmente conferências de
expoentes do anarquismo, como Errico Malatesta, lendo literatura libertaria e estudando
textos como autodidata (Nello não chegou a completar seus estudos secundários). Ainda
muito novo, se empenhou na campanha contra a entrada da Itália na guerra,
contribuindo em seguida na ação de estímulo à deserção dos jovens diante do
alistamento militar. Na sua cidade fundou com alguns coetâneos o grupo anarquista
juvenil e a Biblioteca Libertária, se destacando por seu espirito de liderança, que lhe
valeu o apelido de “Lenin”. Empenhado em difundir os princípios do anarquismo, Nello
participou de congressos regionais e até nacionais.
Os dois anos após a guerra, 1919 e 20, foram marcados na Itália por uma intensa ação
de reivindicação popular, seja no campo como nas fábricas dos principais centros
urbanos. Lutas camponesas, organização de cooperativas, criação de uma rede de
instituições em favor dos trabalhadores, greves operárias: o país parecia na iminência de
uma revolução nos moldes da soviética. Os mesmo anos foram marcados, contudo, pelo
aparecimento e progressiva afirmação do fascismo, que se dedicou, sobretudo nas
regiões de maior presença socialista, ao desmantelamento daquela rede de
solidariedades e de organismos. O movimento libertário também foi alvo da violência
das esquadras fascistas, e Castel Bolognese não representou nenhuma exceção. O
próprio Garavini em duas ocasiões sofreu agressões. Permanecendo perigosa a situação
para os anarquistas, particularmente após a marcha sobre Roma e a chegada de
Muissolini ao poder,
já que as esquadras fascistas continuavam em sua onda de
ataques, Nello e Emma Neri (professora de escola primaria com a qual ele casara a 4 de
junho de 1923) se mudaram para Milão, em 1924, onde em outubro nascera a filha
Giordana. Aqui, devido ao anonimato que a grande cidade proporcionava, a militância
de Garavini pôde continuar de forma mais tranquila, em contato com vários expoentes
do anarquismo milanês.
224
O endurecimento da ditadura no ano seguinte, contudo, fez com que Nello e Emma
aceitassem o convite que chegava do Rio de Janeiro, onde se encontrava havia vários
anos Antonio Garavini, tio de Nello, ele também de sentimentos libertários, mas com
um perfil menos militante e mais aventureiro. 4 Antonio solicitara o sobrinho a se mudar
para o Brasil e Nello, antecipando possíveis e iminentes decretos governativos que
atingissem os expoentes da oposição, e restringissem a possibilidade de expatriar,
resolveu deixar Milão e o comércio de vinhos e flores que tinha iniciado na cidade, e se
preparar para a saída do país. Assim, a 12 de maio de 1926, Nello, Emma e Giordana
embarcavam em Genova no vapor Conte Verde, com destino Rio de Janeiro.
4.3. Observações sobre o relato autobiográfico
Uma das fontes usadas para a reconstrução e a discussão do percurso existencial e
politico de Garavini, e de seu antifascismo vivido durante a emigração no Rio, foi o
livro de memórias, escrito por ele nos anos de 1970, e publicado recentemente. Um
inteiro capitulo, o sétimo, é dedicado ao exilio em terra carioca. Nomes, fatos,
encontros, ocupam as páginas do relato, que percorre as duas décadas com intenção de
reconstituir etapas de uma vida e ao mesmo tempo oferecer um quadro do mundo da
colônia italiana e de seus laços com a realidade brasileira, a partir do ângulo de visão de
Nello, de seus contatos, de suas frequentações. Os arquivos não conservaram muitas
cartas do anarquista, embora ele escrevesse bastante, sobretudo para Luigi Fabbri e
outros libertários: a maioria das correspondências que existem, dirigidas à família na
Itália, tendo que passar pelo crivo da censura, não permitem reconstruir de forma
satisfatória seu pensamento e sua ação politica. Ótimo instrumento de trabalho, então,
se revelou o volume das memórias, imprescindível como ponto de partida na elaboração
de um trajeto existencial, mesmo que essa elaboração visasse principalmente, no nosso
caso, a análise de discursos e práticas no contexto específico do antifascismo. Todavia,
4
Sobre Antonio Garavini ver ACS/CPC, b. 2277 (“Garavini, Antonio”). Na Capital Federal, Antonio
Garavini (apelido “Ansena”), nascido em 1972, se encontrava desde os primeiros anos do século XX,
após ter saído da Itália ainda em 1894, com destino Santa Fé, ter voltado para sua terra dois anos depois
e retornado para a América do Sul em 1897, desta vez para Santos. Segundo informe de 1912 da legação
da Itália no Brasil, Antonio, apelidado de “Tigre”, após “ter peregrinado em vários Estados da Federação
como empresário de espetáculos, lutador, repórter de jornais, atualmente trabalha como croupier no
clube High Life de Rua do Catete, endereço luxuoso da Capital [...] aqui mantem por sua conta um
pequeno cabaré, com rendas discretas [...] mesmo manifestando ideias libertarias [...] não o reputamos
perigoso”.
225
um relato autobiográfico como esse necessita de algumas breves considerações
preliminares, a fim de que possa ser adequadamente aceito na sua qualidade de fonte.
Philippe Artières, analisando as práticas de arquivamento do eu 5, quais uma
autobiografia ou um diário intimo, afirma que “arquivar a própria vida é pôr-se no
espelho, contrapor à imagem social a imagem intima de si próprio, e nesse sentido o
arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência”.6
Construir a própria imagem do autor faz parte, então, da intencionalidade do escrito
autobiográfico, seja um livro de memórias ou um diário. Artières precisa:
O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única
ocasião de um individuo se deixar ver tal como ele se vê e tal como ele
desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é, simbolicamente, preparar
o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa,
organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós. 7
E ainda, no que diz respeito ao papel central dos destinatários e das condições de
produção do arquivo, Artières afirma que
sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor
autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda
nossos colegas). Prática íntima, o arquivamento do eu muitas vezes tem
uma função pública. Pois arquivar a própria vida é definitivamente uma
maneira de publicar a própria vida, é escrever o livro da própria vida
que sobreviverá ao tempo e à morte.8
Autores de autobiografias, ou de memórias, então, são sempre, de certa forma,
“editores” de si mesmos. Ter consciência disso foi fundamental na hora de trabalhar
com a fonte representada pelo relato autobiográfico de Garavini. Ele, que foi “editor”
por alguns anos na cidade do Rio de Janeiro, trinta ou quarenta anos depois “editará” o
relato de sua vida, para, como diz a certa altura, “demonstrar como os anarquistas
tiveram um papel de primeiro plano nas batalhas contra o fascismo”. Sendo este seu
5
ARTIÈRES, Philippe. “Arquivar a própria vida”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, nº 21, 1998, p.
9-34.
6
Ibid., p. 11.
7
Ibid., p. 31.
8
Ibid., p. 32.
226
objetivo, ficamos alertados diante de ênfases ou ausências que o próprio relato possa
apresentar. Como explica Verena Alberti9,
se alguém se põe a escrever uma autobiografia, é porque tem em mente
fixar um sentido em sua vida e dela operar uma síntese, que envolve
omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados e desequilíbrio
entre os relatos [...], operações que o autor só é capaz de fazer na
medida em que se orienta pela busca de uma significação: busca essa
que lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e
quais (e como) devem ser narrados.10
Escrever, de certo modo, a história do anarquismo italiano diante do fascismo, vista a
partir de sua terra natal e do exílio brasileiro, e neste contexto, narrar momentos de sua
vida: esta é a razão do escrito de Nello. Que é fonte importante, pelo seu valor de
“testemunho” (assim se apresenta inclusive o volume, em seu título), mas que, em
quanto documento, exigiu uma metodologia de trabalho e de pesquisa atenta a suas
peculiares características.
4.4. Primeiros anos no Rio
O Conte Verde, após onze dias de viagem, aportava no Rio de Janeiro. Entre os 76
passageiros da terceira classe que desembarcaram (de um total de mais de seiscentos,
que prosseguiam para Santos ou para Uruguai e Argentina), estava a família Garavini:
Nello, Emma e Giordana. Os primeiros tempos foram de adaptação, morando entre
muitas dificuldades na região de Niterói, onde Nello trabalhava num restaurante. Com a
ajuda de um amigo do tio, Garavini conseguiu mais tarde um emprego no Hotel Glória,
um dos mais importantes e afamados da Capital. Antes como mensageiro e ascensorista,
como vimos, e depois servindo às mesas. E a família foi se transferindo de início para a
Rua Barão de Guaratiba, no Catete, e, mais tarde, para a Praia do Flamengo.
Garavini se inscreveu ao Centro Cosmopolita, associação dos empregados em Hotéis,
Restaurantes, Cafés, e anexos, e participava de reuniões da agremiação, na qual se
destacavam elementos libertários e comunistas, entre os quais, recorda Garavini,
aconteciam “discussões acesíssimas”. E acrescenta: “Havia anárquicos cubanos e
chilenos muito inteligentes: com linguagem profunda e muita oratória, eles colocavam
9
ALBERTI, Verena. “Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa”. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 4, nº 7, 1991, p. 66-81
10
Ibid., p. 77.
227
em cheque os comunistas, os quais, não querendo, por sectarismo, se renderem aos
primeiros, usavam dos meios habituais, isto é, convidar oradores e deputados alheios à
organização”11. Evidente a veia polêmica do autor a respeito do comunismo, e a ênfase
com que enaltece a contribuição libertária nas discussões e lutas. Sobre o ambiente
anarquista carioca que ele encontrou naqueles anos, Garavini apresenta, em suas
memórias, os principais expoentes, que com o passar do tempo foi conhecendo
pessoalmente: entre os brasileiros, “o prof. José Oiticica, fundador da Liga Anticlerical,
Fabio Luz, o escritor, Sebastião Baptista”, além de muitos estrangeiros, portugueses,
espanhóis, italianos.
Com o passar dos anos, a Liga Anticlerical, associação muito ativa no começo do século
XX e refundada, após anos de crise, em 1929, por alguns expoentes da esquerda, entre
os quais o próprio Oiticica, se tornou um centro de discussão e educação popular,
frequentado também por muitos anarquistas. Nello e a esposa aqui encontraram
companheiros de fé e outros antifascistas italianos que participavam das conferências.
Com efeito, a colônia italiana, em seu componente antifascista, estava se movimentando
de forma significativa naquele ano de 1929, como foi apresentado na segunda e terceira
parte do presente trabalho. Associações surgiam ou se reforçavam - embora algumas
tradicionais da coletividade italiana emigrada estavam sendo conquistadas por
lideranças de cunho fascista – e setores da sociedade brasileira apoiavam suas lutas e
simpatizavam com seus ideais.
Da participação de Garavini nestas agremiações não há registros, a não ser a frequência
das reuniões da Liga Anticlerical. Esta parece ter sido verdadeiramente o local onde ele
e a esposa alimentaram e expressaram seu antifascismo nos primeiros anos de sua
permanência no Rio de Janeiro, de 1926 ao começo da década de 1930, e onde
buscaram manter vivos os princípios do anarquismo. Sua preocupação, evidentemente,
havia de ser a de outros libertários do tempo, isto é, privilegiar a divulgação e
propaganda do ideário como tarefa principal do militante, antes ainda de um empenho
no sindicato ou em organizações politicas de qualquer natureza.
Não é possível acompanhar os passos de Garavini, contudo, sem delinear, mesmo que
de forma sucinta, o quadro de referência do anarquismo brasileiro daqueles anos. Anos
de crise, foi escrito, anos de reformulação e renovação, pode ser acrescentado,
11
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p.163-164.
228
reformulação e renovação, todavia, incapazes de proporcionar novo alento ao
movimento libertário, cujo auge fora alcançado nas décadas anteriores. Não é aqui o
lugar para apresentar realizações e conquistas, iniciativas e conjunturas nas quais o
anarquismo se destacou, no Brasil em geral e no Rio em particular. Muitos se
debruçaram sobre a história das décadas da Primeira República, investigadas pelo viés
do surgimento do fenômeno do anarquismo, seu crescimento e seu declínio.12 Presença
significativa no movimento sindical e contribuição para o nascimento das primeiras
organizações operárias, atuação em greves e protestos no mundo do trabalho, criação de
uma imprensa combativa, realização de círculos e grupos recreativos e educativos,
fomento a uma arte engajada: são somente algumas das vertentes da presença libertária
na sociedade brasileira do período.
Uma presença que revelava no seu seio diferentes orientações, sendo, contudo, as duas
principais a anarco-comunista e a anarco-individualista, dependendo se objetivo do
movimento seria um uso coletivo dos meios de produção ou o fim de qualquer tipo de
estrutura social. Ou, ainda, no que dizia respeito à presença no meio sindical,
sensibilidades diferentes, que se contrapunham quanto ao significado da mesma - se
prejudicial, ou meramente instrumental, como simples ocasião de propaganda dos ideais
libertários, ou até necessária para uma afirmação pratica do anarquismo no mundo. De
comum, porém, havia a recusa de Estado, governos e partidos, além de igrejas,
hierarquias e autoridades.
Se muitos entre os anarquistas atuantes no Brasil eram os italianos, também italianas
eram algumas das figuras que mais se destacaram, principalmente no âmbito de São
Paulo. Os nomes de Gigi Damiani, Oreste Ristori e Alessandro Cerchiai 13 são os mais
12
Alguns trabalhos sobre a temática: TOLEDO, Edilene. “A trajetória anarquista no Brasil na Primeira
Republica”. In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) A Formaçao das Tradiçoes (1889-1945), vol.
1ºde As Esquerdas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 53-87. -------------. Travessias
revolucionárias: ideias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945). Campinas:
Unicamp, 2004. ADDOR, Carlos Augusto. “Anarquismo e movimento operário nas três primeiras
décadas da República”. In ADDOR, Carlos Augusto; DEMINICIS, Rafael Borges (org.). História do
Anarquismo no Brasil, vol II, Rio de Janeiro: Achiamé, 2009, p. 13-35. SAMIS, Alexandre. “Anarquismo,
bolchevismo e crise do sindicalismo revolucionário”. In ADDOR, Carlos Augusto; DEMINICIS, Rafael
Borges (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol II, op. cit., p. 37-49. RODRIGUES, Marco Aurelio
Santana. “Anarquismo e Imprensa Operária do Rio de Janeiro na Primeira República”. In ADDOR, Carlos
Augusto; DEMINICIS, Rafael Borges (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol II, op. cit., p. 173-184.
13
Sobre Damiani, ver BIONDI, Luigi. “Na Construção de uma Biografia Anarquista: os Últimos Anos de
Gigi Damiani no Brasil”. In: DEMINICIS, Rafael Borges; REIS, Daniel Aarão. (org.). Historia do Anarquismo
no Brasil. Niterói; Rio de Janeiro: EdUFF; Mauad, 2006, v. 1, p. 251-278. Sobre Ristori, ver ROMANI,
Carlo. Oreste Ristori: uma aventura anarquista. São Paulo: Annablume, 2002. Sobre a presença
229
significativos deste ponto de vista. Assim como a referência a Errico Malatesta,
histórico expoente do movimento libertário desde as últimas décadas do século XIX e
agora octogenário na Itália, vigiado pelo regime de Mussolini, mas sempre uma lenda
viva para todos os anarquistas, incluindo Garavini, que por ele nutria uma verdadeira
admiração. A crise evidente do anarquismo, tão intensamente presente nas lutas do
movimento operário brasileiro, e vivendo no final da década de 1920 uma clara fase de
retração, deve ser atribuída, de um lado, à intensa repressão do mesmo pelas autoridades
de governo, com destaque pela deportação, na Presidência de Arthur Bernardes, de
centenas de expoentes para a colônia militar da Clevelândia do Norte, no Amapá14, e do
outro, ao surgimento do Partido Comunista, com a atração exercitada por ele sobre
militantes anarquistas e simples trabalhadores. Contribuindo, também, para o fenômeno
as menos numerosas levas de imigrantes estrangeiros que aportavam ao Brasil. Assim,
na própria Capital Federal - onde, por exemplo, foi possível documentar uma
significativa e constante atuação do Centro Galego15, ponto de referencia de imigrantes
oriundos daquela região da Espanha, em boa parte anarquistas, somente até 1922,
deixando supor seu declínio nos anos sucessivos – a proposta libertaria foi atravessando
anos de crise.
Neste contexto, o anarquismo como componente do antifascismo italiano se revelava
pouco significativo já no final da década de 1920. Garavini, numa carta a Malatesta, de
maio de 1932, informando o idoso amigo sobre “as novidades do Brasil”, se queixava
da escassa presença de companheiros na Capital da Republica: “Aqui no Rio há
pouquíssimos companheiros, enquanto em São Paulo me dizem que são em número
razoável, em grande parte italianos emigrados em 1898. Com efeito, lá, os movimentos
e a luta de classe são mais sérios e homogêneos”.16 De todo modo, Garavini se inseriu,
através da Liga Anticlerical carioca, numa rede de relações com outros libertários e com
diversos antifascistas de outras tendências.
anarquista no contexto do antifascismo ver BERTONHA, João Fábio. Sob a Sombra de Mussolini. Os
italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP / Anablume, 1999, p.
145-148.
14
SAMIS, Alexandre. Clevelandia: anarquismo, sindicalismo e repressão politica no Brasil. São Paulo:
Imaginário, 2002.
15
Cf. FERNANDEZ, Eliseo; LOPES, Milton; RAMOS, Renato. “A imigração galega e o anarquismo no
Brasil”. In DEMINICIS , Rafael Borges; REIS, Daniel Aarão. (org.). Historia do Anarquismo no Brasil , vol. 1,
op. cit., p. 75-93.
16
ACS/CPC, b. 2277, f. 52637 (“Garavini, Nello”). Carta de Nello Garavini para Errico Malatesta, Rio de
Janeiro, 18.5.1932.
230
4.5. Os “pouquíssimos companheiros”
Mesmo sendo em número tão reduzido, Garavini não deixava de lembrar os nomes de
seus companheiros libertários italianos em seu volume de memórias. Se contem algo
verdadeiro a afirmação de Tolstói, recordada por Ginzburg, segundo a qual “um
fenômeno histórico só pode se tornar compreensível por meio da reconstrução da
atividade de todas as pessoas que dele participaram”17, um breve estudo destas figuras
pode contribuir a esclarecer melhor o percurso existencial e politico do próprio Nello.
Assim ele escreve sobre os companheiros, encontrados naqueles anos:
Conhecemos, entre os italianos [...] o libertário Luigi Tosone. Alguns
anos depois, conheci outros anarquistas italianos, entre os quais o bom
Giuseppe Segatta, Ottorino Peotta, Emilio Spinaci [...] Visitava também
meu tio Ansena, que era um anarquista individualista, Bibbi, Agnesini,
Maddalena etc... 18
De alguns, registar-se-á somente o nome, por ser muito problemático reconstruir algum
dado biográfico, como no caso de Tosone, ou por ter sua militância desenvolvida só de
forma ocasional no Rio de Janeiro, como Bibbi.19 Outros permitem colocar mais peças
no mosaico de um conjunto de antifascistas de orientação anarquista e/ou comunista,
seja da velha como da mais recente emigração, que tiveram contatos mais ou menos
intensos com Garavini, e contribuíram para a imagem do antifascismo militante da
colônia italiana na Capital Federal.
O sobrenome Maddalena se refere na realidade a dois irmãos calabreses, que os
arquivos policiais italianos detalham em suas orientações politicas e seus
deslocamentos. Antonio,20 o irmão mais velho, expatriara uma primeira vez da Itália
ainda em 1894, quando tinha somente 12 anos, voltando para a península oito anos
depois e no ano seguinte embarcando novamente para o Brasil. De profissão sapateiro e
declarado anarquista pelo prontuário, se estabeleceu em 1906 na Capital Federal até sua
morte, acontecida em 1932. Informações, como se pode perceber, bastante escassas,
17
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
p.265-266.
18
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p.165.
19
ACS/ CPC, b. 635, f. 13835 (“Bibbi, Gino”).
20
ACS / CPC, b. 2904, f. 87377 (“Maddalena, Antonio”).
231
como também as relativas ao irmão Arturo,21 nove anos mais novo, e identificado como
comunista. Sua saída da Itália realizara-se em 1923, quando Mussolini já governava o
país, com chegada no mesmo ano ao Rio, onde trabalhou como autista, não escondendo
suas ideias contrárias ao fascismo. Seu nome apareceu várias vezes nas subscrições em
favor do jornal La Defesa, entre 1929 e 32.
De convicções comunistas era também o mecânico eletricista Giacobbe Giacomo
Agnesini,22 de 1899 (o mesmo de Garavini). Natural de Parma, emigrara em 1923 para a
cidade francesa de Marselha a fim de se subtrair a retaliações de fascistas, tendo sido
anteriormente protagonista de ataque e agressões a alguns deles. Munido de regular
passaporte, deixava a Europa em 1925 chegando ao Rio de Janeiro. Um informe
consular23 o declarava inscrito na lista antifascista em ocasião das eleições na Societá
Italiana di Beneficienza em 1929, mas em seguida aparentemente teria se afastado de
uma militância extensiva: os relatórios periódicos da Embaixada de Itália na Capital
Federal o apresentavam, com efeito, como tranquilo dono de uma garagem de carros e
em seguida de uma pequena loja de conserto de aparelhos radiofônicos, conduzindo
vida apartada da comunidade italiana, e até nutrindo, em anos mais recentes,
“entusiasmo pelas obras pelo fascismo realizadas, especialmente da façanha na
Etiópia”.24 Por isso, as providências contra ele ficaram abrandas, retirando-se o nome
dele do boletim dos procurados.
Arrependimentos e mudanças de orientação politica não eram impossíveis, como já se
documentou anteriormente nesse nosso trabalho, em vários casos devidos a situações
econômicas difíceis ou problemas familiares, ou simplesmente à distância da terra natal
ou a um desejo de tranquilidade. Difícil, de qualquer forma, imaginar, no caso de
Agnesini, que um histórico de luta e oposição ao fascismo se pudesse transformar tão
facilmente em seu oposto: o fato do nome dele ser lembrado por Garavini induz a
pensar que não se devesse tratar-se de uma conversão sincera, e sim talvez de um
disfarce perante os órgãos oficiais do regime. Encontrar-se-á mais para frente
documentação ulterior de seus sentimentos antifascistas.
21
ACS / CPC, b. 2904, f. 42675 (“Maddalena, Arturo”).
ACS/CPC, b. 24, f. 85 (“Agnesini, Giacobbe Giacomo”).
23
Ibid., informe Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 16.2.1934.
24
Ibid., Informes Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 17.12.1934 e 3.6.1936.
22
232
Os outros três anarquistas citados, cada um de sua forma, acrescentam mais detalhes ao
nosso quadro. O milanês Emilio Spinaci,25 nascido em 1882, tinha um currículo
bastante movimentado: expatriado clandestinamente para a Suiça, após o advento do
fascismo, de lá alcançava Paris e depois Antuérpia, onde embarcou para Montevidéu e
em seguida Buenos Aires, para onde já emigrara anteriormente. Em 1930 estava em
Santigo do Chile, trabalhando para uma casa italiana de produtos medicinais, e dois
anos depois de novo em Montevidéu. Os informes policiais acompanhavam seus
deslocamentos muitas vezes com atraso: em 1932 era registrada uma passagem por
Barcelona e Genebra, com sucessiva vinda ao Brasil, em agosto de 1933, e retorno à
Europa (Barcelona, ou até Itália) no ano seguinte. Estas contínuas transferências não
eram comuns em emigrados, mas em certos casos aconteciam: para o anarquista
Spinaci, é possível pensar em perseguição policial com consequente fuga, e também em
busca de oportunidades de trabalho, a partir de redes de solidariedade internacional
(Barcelona, Genebra, Montevidéu, entre outros, eram centros de destacada presença
anarquista).
Outro amigo dos Garavini, Ottorino Peotta,26 da região de Vicenza, no norte da Itália, e
somente um ano mais velho que Nello, teve um percurso diferente. Após varias
intervenções policias em sua juventude, devido à sua atividade anarquista, resolveu se
dedicar ao trabalho (era técnico na produção de vidro numa fábrica nos arredores de
Milão). Em 1932 emigrava para o Brasil com regular passaporte (esposa e filha o
seguiriam mais tarde) e regular contrato de trabalho, a fim de transportar para uma firma
de Rio de Janeiro um maquinário capaz de estampar decorações sobre vidro, invento de
sua autoria. As autoridades fascistas italianas abonavam a conduta de Ottorino, que
somente dois anos antes tinha sido ameaçado de confinamento, em virtude até de uma
sua carta com a qual ele renegava sua antiga fé. Os informes policiais sobre sua estada
na Capital Federal falavam todos de um bom trabalhador, empregado no ramo dos
produtos sanitários, sem contatos com a colônia italiana e alheio à politica. O que não
correspondia totalmente à verdade, se Nello o considera em seu volume de memórias e
o Dicionário Biográfico dos Anarquistas Italianos lhe dedica um verbete,27 assim como
25
ACS/ CPC, b. 4912, f. 44642 (“Spinaci, Emilio”)
ACS/ CPC, b. 3845, f. 97632 (“Peotta, Ottorino”).
27
ANTONIOLI, Maurizio; BERTI, Giampietro; FEDELE, Santi; IUSO, Pasquale. Dizionario Biografico degli
Anarchici Italiani, vol. 2, Pisa: BFS, 2004, p. 320-321 (verbete “Peotta, Ottorino”). O verbete se conclui
com estas palavras: “Permanecendo fiel até o fim de sua vida aos ideais libertários, morre no Rio de
Janeiro, mais que octogenário”. Ainda em 1942, em ocasião de algum sucesso militar aliado, Garavini e
26
233
ao irmão dele, Luigi, também anarquista, condenado por alguns atentados contra
fascistas na Itália, e procurado por anos pela polícia, entre Milão, Paris e a Bélgica, até
encontrar a morte em 1945 no campo de concentração nazista de Mauthausen, na
Áustria, onde tinha sido internado no ano anterior.28
O caso de Giuseppe Segatta,29 anarquista da região de Savona, fica um tanto complexo.
Nos primeiros meses de 1929, o consulado italiano de Nice assinalava sua presença na
cidade francesa30. O anarquista teria saído do litoral italiano a bordo de um veleiro
carregado de mármore que aportou em Antibes, de onde teria se deslocado para Nice e
enfim para Marselha. Meses depois embarcava para o Brasil, chegando em julho à
Bahia, onde fundaria um círculo de Itália Libera, junto com outro antifascista italiano,
Trento Tagliaferri, com o qual veio da Europa. Em vários momentos posteriores,
Segatta será assinalado em diferentes cidades brasileiras, sempre, ou quase, ligado a
Trento e às casas de jogos que este abria - ora em Curitiba, ora em S. Ana do
Livramento (RS), ora na própria Bahia. Os dois tiveram passagem para o Rio, também.
Sobre Tagliaferri, se falará de forma mais extensa nos capítulos finais desta quarta
parte, quando da reconstrução dos anos da guerra. Aqui cabe o registro desta parceria
com o anarquista, nomeado por Garavini com uma expressão de simpatia (“o bom
Giuseppe Segatta”), mas que mais tarde se desentenderá com Nello e outros, a respeito
da atitude a ser mantida pelos antifascistas italianos no Rio na iminência do fim do
fascismo.
4.6. No Hotel Glória
A carteirinha do Centro Cosmopolita registrou a inscrição de Nello com a data de 1º de
maio de 1927, matrícula n. 239131. Dos primeiros meses de 1927, então, até o ano de
1933, ele trabalhou como funcionário do Hotel Glória. Recorda em suas memórias:
outros enviarão, como antifascistas italianos, um telegrama de felicitações ao embaixador britânico no
Rio: o nome de Peotta estava entre os que assinavam.
28
Ibid., p.319-320 (verbete “Peotta, Luigi”).
29
ACS/ CPC, b. 4730, f. 4048 (“Segatta, Giuseppe”).
30
Ibid., informe consulado italiano de Nice, 30.4.1929.
31
Biblioteca Libertaria “Armando Borghi” (BLAB), Castel Bolognese, Fundo Nello Garavini.
234
No Hotel [...] éramos cerca de trezentos funcionários, em grande
maioria portugueses, espanhóis, italianos, alemães, e, claramente, um
terço de brasileiros, como prescrevia a lei. Tinha muita simpatia para
portugueses, espanhóis e brasileiros. Os primeiros, honestos, sinceros e
ótimos trabalhadores; os segundos, calculadores, revolucionários e ricos
de espirito libertário; os brasileiros bondosos, gentis, sensíveis e
antifascistas.32
Subindo alguns degraus profissionais, Nello foi se tornando ajudante de maître. Nesta
função, sendo o estabelecimento um dos endereços mais procurados pela alta sociedade
brasileira e internacional, Garavini viu transitar por seus salões vários personagens do
mundo artístico, político e cultural. O seu interessante relato da revolução de 1930, dos
sentimentos que inspirara no circulo dos antifascistas italianos e de sua passagem pelo
Hotel, merece ser transcrito quase integralmente:
A revolução triunfou, quase sem derramamento de sangue, e nós
antifascistas ficamos satisfeitos, pois temíamos a linha fascista do
presidente Washington. [...] Após a rendição do governo, ocorreram
grandes manifestações de júbilo no Rio de Janeiro. Sabíamos tratar-se
de uma das costumeiras revoluções sul-americanas, ao estilo ‘sai daí
que eu vou entrar’, mas nos entusiasmamos da mesma forma e tomamos
parte dela, unindo nossas bandeiras vermelhas e negras às centenas de
vermelhas que a multidão desfraldava. [...] Emma chegou a rasgar todas
as roupas vermelhas e pretas para fazer bandeiras e se unir às outras
mulheres nos milhares de carros que percorriam a cidade. Na realidade,
aquela foi a revolução que permitiu a instauração da feroz ditadura de
Getúlio Vargas, que resistiu por quinze anos. Poucos dias depois, o
Hotel Gloria estava repleto de “vermelhos” revolucionários gaúchos [...]
em seguida chegaram os nortistas guiados pelo general Távora [...] Era
uma corrida para ver quem se mostrasse mais popular, e nós garçons,
naqueles dias, acabamos íntimos desses futuros grandes... Havia Getúlio
Vargas e sua charmosa esposa, Osvaldo Aranha e o irmão Luiz, Flores
da Cunha, Lindolfo Collor, João Alberto [...] o capitão Cascardo, amigo
dos antifascistas italianos, Pedro Ernesto, e dezenas de outros. Todos,
indistintamente, queriam mostrar que eram de esquerda.33
Nomes, personagens recordados a distância de anos, assim como o entusiasmo dos
antifascistas italianos. Com efeito, como foi mencionado nas outras partes do trabalho, a
revolução de 30, com seus proclamas de luta às oligarquias, foi vista por eles com
simpatia, quase um antecipação de uma futura, aguardada derrocada do fascismo na
Itália. Tanto Scarrone, em seus opúsculos, como Battistelli em nome da Lidu, ou nas
colunas de La Difesa, se colocaram nesta linha de pensamento, a mesma aqui exposta
por Garavini, que, todavia, com olhar retrospectivo, pode-se permitir aqui um juízo
crítico sobre o movimento revolucionário.
32
33
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 162.
Ibid., p.166-167.
235
Sobre sua atuação profissional e sua conduta politica em seu período de funcionário do
Hotel, há informes nos arquivos policiais italianos, redigidos a partir de relatórios da
Embaixada do Rio. Em julho de 1929, estes relatórios afirmavam a respeito de Nello:
Desde sua chegada, não se ocupa com a politica [...] a esposa, excelente
professora primária e ótima pessoa, conseguiu entrar na Escola Italiana,
onde se destaca por zelo e patriotismo [...] Garavini, [...] convocado,
declarou ser ‘não anarquista, e sim republicano federalista’ [...]
Evidentemente é mais um teórico que outras coisas, e não aparenta ser
um elemento perigoso.34
Já em novembro do ano seguinte, a Embaixada tinha que reconhecer que Garavini,
“embora seja de caráter taciturno e reservado, resultaria de sentimentos não favoráveis
ao regime, a ponto de ter-se oposto a que a orquestra do Hotel tocasse o hino fascista”.35
É possível que uma atitude como essa Garavini tenha mantido também na ocasião
especifica da chegada de Italo Balbo, o alto expoente do governo fascista protagonista
da travessia aérea do Atlântico em 1931, e hospedado com sua comitiva no próprio
Hotel Gloria. Na circunstância desta presença no Rio de Janeiro, houve, como vimos
falando de Battistelli, mobilização do pequeno grupo dos antifascistas, incluindo a
esposa de Nello, com distribuição de panfletos nas ruas da cidade. 36 Evidentemente,
mesmo se comportando sempre de forma discreta, para garantir seu emprego, o
anarquista não escondia sua orientação politica.
4.7. Uma rede de relações internacionais
No âmbito da comunidade italiana do Rio de Janeiro, os registros de presença ativa de
Nello como antifascista, nesses primeiros anos, não são muito numerosos. Desconhecese uma eventual sua participação nos eventos ligados ao “assalto fascista” à Societá
Italiana di Beneficienza. O que as fontes contribuem para nos restituir é a imagem de
Garavini anarquista, desejoso de alimentar essa sua pertença politica, através de
contatos e de instrumentos. Quanto a laços com o mais amplo mundo dos antifascistas
da Capital Federal, nas suas memórias, Garavini lembra os nomes de alguns deles,
também frequentadores da Liga Anticlerical: “Pasquale Petraccone, Tamagni, Peruso,
Anaclerio, Esposito, Garritano, o socialista Scala, Adriano Zuccari, Libero Battistelli, o
34
ACS / CPC, b. 2277, f. 52637 (“Garavini, Nello”). Informe Embaixada da Itália no Rio de Janeiro,
6.7.1929.
35
Ibid., Informe Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, 5.11.1930.
36
Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 184.
236
prof. Itria”. Nas partes anteriores do trabalho, já foram apresentados alguns dados a
respeito da maioria deles, com o objetivo de compor um quadro mais completo de um
ambiente e suas andanças. De alguns, ainda se falará mais para frente, para cotejar a
conjuntura do período bélico. Quanto a Battistelli, Garavini o recorda como “o meu
amigo mais querido”, e a ele dedicará várias páginas de suas memórias.
A respeito de La Difesa (ou L’Italia), mesmo mencionada em seu volume como “o
melhor jornal antifascista brasileiro”, não se tem registro de uma sua participação, nem
contribuição, fora um único caso, em abril de 1932, quando houve uma subscrição
coletiva de vários anarquistas (além dele, Luigi Tosone, Arturo Maddalena e o brasileiro
Sebastiao Baptista, entre outros).37 Os periódicos que Garavini recebia regularmente,
como dizia em suas memórias, eram publicações anarquistas, como Studi Sociali (de
Montevidéu), Il Risveglio (da Suiça), L’Adunata dei Refrattari e Il Martello (ambos de
Nova Iorque), além, mais tarde, de Giustizia e Libertá e a revista comunista Stato
Operaio. É evidente uma rede, à qual Garavini se apoiava, feita sobretudo de contatos
com as comunidades anarquistas de emigrados. Entre essas relações, feitas também de
troca de correspondências, a mais significativa e importante foi com Luigi Fabbri,
expoente do anarquismo italiano expulso da França e da Bélgica e refugiado em
Montevidéu.38
Studi Sociali era o periódico que Fabbri editava na capital uruguaia, com certo
sacrifício, devido à escassez de recursos. Garavini assinava o periódico e regularmente
contribuía com doações. Ao mesmo tempo, entre ele e Fabbri, um dos mais respeitados
expoentes do anarquismo italiano, nascia uma amizade através de cartas trocadas
durante anos, de 1930 até a morte de Luigi, em 1935. Nenhum arquivo pôde conservar
as cartas de Nello para Fabbri, porque era costume do diretor de Studi Sociali destruir
toda correspondência que recebia, após ter respondido a ela. As cartas dele para
Garavini, pelo contrário, foram conservadas pelo destinatário 39, e sua leitura permite
lançar certa luz sobre o pensamento de Nello, seus dilemas, suas preocupações.
Um primeiro elemento que transparece é a constante preocupação de Garavini com os
amigos anarquistas e o futuro do movimento, sobretudo com Malatesta, doente em
Roma. O velho protagonista de décadas de lutas e iniciativas em nome do anarquismo
37
Cf. L’Italia ( La Difesa), ano VIII, n. 453, 10.4.1932, p.4.
Cf. nota 78 da primeira parte.
39
BLAB, Fundo Nello Garavini.
38
237
internacional acabou falecendo em meados de 1932, e Garavini, junto com muitos
outros companheiros espalhados pelo mundo, se oferecia para ajudar a viúva e a filha
em sua difícil sobrevivência. A mesma preocupação Nello manifestava com o próprio
Fabbri, doente e em difíceis condições econômicas, oferecendo-lhe constante ajuda
financeira. Cartas de finais de 1931 fazem supor que Garavini levou até em
consideração a possibilidade de se mudar com a família para Montevidéu: talvez alguma
dificuldade no Rio de Janeiro, ou simplesmente, estando já em terra de exilio, a
perspectiva de ficar mais próximo de quem, como Fabbri, estava se mostrando um
amigo e um mestre para ele, e eventualmente poder desenvolver uma colaboração na
difusão dos ideais libertários.40
Pelas respostas de Luigi, sabe-se que Garavini o interrogava sobre assuntos da
atualidade, como os últimos acontecimentos na Espanha, ou sobre publicações do
mundo anarquista, pedindo-lhe um parecer ou uma orientação. A importância que Luigi
ia assumindo, como um ponto de referência para Nello, transparece a respeito de
algumas outras questões que deviam afligir este último, e sobre as quais ele pedia
conselho ao amigo mais velho e experiente. Por exemplo, a eventual adesão à Lidu, a
respeito de que Fabbri convidava Nello a examinar bem a coisa, pois o organismo tinha
um programa diferente do libertário, e uma adesão teria o significado de apoiar ou
aceitar a própria Concentrazione, à qual os anarquistas, na França como no resto do
mundo da emigração, se mantiveram sempre contrários.41 Ou a atitude diante dos
comunistas, em relação aos quais, Garavini parecia mais tolerante e aberto, disponível a
um diálogo; Fabbri, pelo contrário, à luz de sua experiência pessoal, se recusava a isso,
e assim escrevia a Nello, a respeito:
Para entrar num acordo, é preciso os dois querer. Mas como você pode
entrar num acordo com quem não quer acordo nenhum, e sim somente
submissão cega a seus comandos? Como entrar num acordo com quem
hoje insulta e difama e ameaça, e lhe diz abertamente que logo que
chegar a uma posição de força vai fuzilá-lo? 42
40
Cf. BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 8.10.1931. A
resposta de Fabbri não estimulava Garavini no seu projeto, alertando-o sobre os baixos salários
uruguaios e a crise econômica, e convidando-o a refletir bem, antes de deixar o emprego e o resto,
mesmo manifestando alegria pela eventualidade de ter perto dele um companheiro tão dedicado. O
plano de transferência não se realizou, mas não há como descobrir a razão principal.
41
Cf. TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia. Milano: Mursia, 1988, p. 87-92.
42
BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 30.7.1932.
238
Apareciam aqui questionamentos e escolhas que agitavam o debate do antifascismo
italiano e não, particularmente diante do movimento comunista internacional, que estava
se reorganizando e em breve reformularia palavras de ordem e linhas de ação. Mas por
baixo, havia a constante polêmica entre libertários e “autoritários”, para usar um termo
que o próprio Garavini empregara em suas memórias, quando relembrou as figuras de
jovens brasileiros, frequentadores da Liga Anticlerical, que “se aproximavam do
comunismo, indecisos entre as nossas fileiras e as fileiras autoritárias, e mais tarde se
tornariam políticos, entre os quais Carlos Lacerda e Francisco Mangabeira, além de uma
nossa querida amiga que nunca faltava nas reuniões, a jovem poetisa de orientação
socialista Cecilia Meirelles”.43
Em abril de 1934, Fabbri desaconselhava Nello de voltar para a Itália, mesmo que fosse
para ficar mais perto da família após a morte do pai:
Aqueles que no exterior, de uma forma ou da outra, chamaram a
atenção dos consulados locais como adversários, voltando, enfrentam
problemas sérios. Podem pensar na volta somente os que não estiverem
demasiadamente expostos como propagandistas, e somente bancando os
“mortos” durante muito tempo antes. E mesmo assim... há pouca
segurança!44
Com efeito, no ano anterior, morrera o pai de Nello, e o anarquista cogitou voltar para a
Itália, logo desaconselhado pelos amigos. Como se verá, naquela época, ele já deixara o
emprego no Hotel Gloria e estava trabalhando no setor comercial, com Petraccone,
prestes a se dedicar à sua futura e mais significativa empreitada, a livraria e editora. Nas
últimas cartas de Fabbri, avaliações positivas do trabalho editorial de Nello (mesmo
com crítica a respeito da tradução em português do titulo do livro “Anarchia” de
Malatesta, que acabou ficando “Comunismo Libertário”: Fabbri dizia que o autor não
teria apreciado a formulação, seja pelo adjetivo, do qual nunca gostara, seja pela palavra
comunismo, nunca nomeado por Malatesta na obra45), e troca de endereços de escritores
de esquerda, como Romain Rolland, futuros possíveis autores a serem editados por
Garavini.
43
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 165.
BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 26.4.1934
45
Cf. BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 24.4.1935.
44
239
A morte de Fabbri, em junho de 1935, privava Garavini de um amigo e de uma
referência clara no âmbito de sua fé anarquista. Continuava a amizade com Luce, 46 a
filha de Luigi, que se encarregou por anos de continuar a publicação de Studi Sociali,
onde seguirá aparecendo, com bastante frequência, o nome de Nello como subscritor da
revista. Para a publicação anarquista, inclusive, Nello conseguiu conquistar leitores e até
assinantes, sendo um deles o próprio amigo Battistelli, republicano e membro de
Giustizia e Libertá, mas, como foi dito, com simpatias também para o anarquismo.
4.8. Emma
A esposa de Nello compartilhava ideais e empenho politico do marido, desde os anos
italianos. Ao lado dele em Milão, e no exilio carioca, manifestava em seus atos e
palavras franca oposição ao fascismo e dedicação para a causa do anarquismo. Já foi
dito a respeito do entusiasmo com o qual fraternizou com a população que saudava
Getulio em sua chegada à cidade, quando do movimento revolucionário de 1930. E
também da coragem em difundir, em janeiro do ano seguinte, materiais de propaganda
contra o Ministro da Aeronáutica e ele mesmo aviador, Ítalo Balbo, chegado ao Rio
como protagonistas da travessia do Atlântico, e que em anos anteriores tinha sido
responsável por crimes realizados pela milícia fascista. Nesta ação de denúncia pública,
Emma estava ao lado de Enrichetta, a esposa de Battistelli, outra figura feminina que
apoiava o marido em seu empenho antifascista.
A historiografia do antifascismo por muito tempo concentrada exclusivamente na
dimensão politica e na luta dos protagonistas principais, leia-se lideres ou destacados
expoentes de partidos ou grupos, deixou de explorar temas e aspectos também
importantes para a análise do fenômeno: a dimensão do cotidiano, o dia-a-dia de
opositores e inimigos do fascismo no exilio e na própria península, os âmbitos de apoio
e sustento para que o empenho politico ou público fosse significativo e eficaz. Nisso,
pesquisas mais recentes vieram preencher lacunas, mas sobretudo abrir percursos e
estimular questionamentos. De como, investigando o antifascismo, seja preciso também
falar de formas de resistência e luta à ditadura de Mussolini, realizadas não debaixo de
46
Sobre Luce Fabbri, sua figura, sua trajetória politica e cultural, na fidelidade aos princípios do
anarquismo, ver o ótimo estudo de RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o
anarquismo contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2001.
240
símbolos de partido ou enquadradas em organizações, e sim espontâneas, individuais,
mais sinais de rebeldia, às vezes, do que outra coisa, ligadas ao cotidiano da existência,
já se falou na primeira parte deste trabalho. E de como essas formas de luta ao regime,
ou de oposição a ele, passem hoje a ser estudadas como caso de “antifascismo
existencial”.
No âmbito desta renovação da historiografia do antifascismo, hão de ser colocadas as
pesquisas que se ocupam da dimensão feminina, da contribuição das mulheres ao
fenômeno da oposição ao regime, vistas em seu dúplice aspecto de companheiras,
esposas ou mães, mais ligadas à dimensão familiar e domestica, e de militantes de um
ou de outras das denominações em jogo. Assim, as contribuições de De Luna, de
Gabrielli e de Signori sobre o antifascismo italiano e as mulheres revestem um
particular significado.47 Os estudos de Bignami sobre anarquistas italianas emigradas
para a América Latina48, e as pesquisas de Margareth Rago49 também sobre figuras de
mulheres anarquistas, brasileiras e não, oferecem um quadro de referências importante.
É possível, portanto, a partir desse conjunto de considerações, realizar a leitura do
caminho de Emma Neri Garavini em seus anos brasileiros como mulher, anarquista e
antifascista.50 Assumido o compromisso de participar do sustento familiar na cidade do
47
Ver DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto: l’antifascismo nella societá italiana. 1922-1939, Torino:
Bollati Boringhieri, 1995. GABRIELLI, Patrizia. Col freddo nel cuore: uomini e donne nell’emigrazione
antifascista, Roma: Donzelli, 2004. ----------------.”Antifascisti e antifasciste all’estero”. In ALBARANI,
Giuliano; OSTI GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime: problemi, metodi e
strumenti per lo studio dell’antifascismo. Milano: Unicopli, 2006, p. 100-110. SIGNORI, Elisa (org.).
Frammenti di vita e d’esilio. Giulia Bondanini: una scelta antifascista (1926-1955). Zurich: L’Avvenire dei
Lavoratori, 2006.
48
BIGNAMI, Elena. “Os circuitos do antifascismo anarquista feminino. Italia e Brasil” In TUCCI CARNEIRO,
Maria Luiza; CROCI, Federico (org.). Tempo de Fascismos: Ideologia, Intolerância, Imaginário. S Paulo:
EDUSP; Imprensa Oficial; Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010, p. 275-289.
--------------“Emigrazione femminile in Brasile. Tra lavoro e anarchia”. In
http://www.storicamente.org/07_dossier/emigrazione-femminile-in-brasile_print.htm
49
RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo, op. cit.;
------------------"Ética, anarquia e revolução em Maria Lacerda de Moura". In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel
Aarão (org.) A Formação das Tradições (1889-1945), vol. 1ºde As Esquerdas no Brasil, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 273-293.
50
Emma, como muitas mulheres antifascistas, não possui uma pasta no fichário da policia italiana. Elisa
Signori explica estas lacunas do arquivamento policial: “Acostumados a registrar como crimes as
manifestações de dissenso politico ligadas a uma precisa militância partidária, ou [...] a gestos,
intervenções, práticas de qualquer forma colocadas numa esfera pública [...] os funcionários da polícia
fascista são pouco perspicazes em perceber as particulares modalidades do empenho feminino
antifascista, frequentemente exercido em uma dimensão privada e cotidiana, e concretizado em papeis,
somente na aparência subalternos, de atividades assistenciais e organizativas, de ligação e mediação.
Assim o sistema fascista de controle policial, enquanto, de um lado, superestima o fenômeno do
dissenso em seu conjunto [...], por outro lado subestima os casos do antifascismo feminino, sendo em
241
Rio de Janeiro, e tendo inclusive uma filha para crescer, Emma acompanhava o
percurso do marido, seja com pequenos trabalhos de bordados, seja como arrumadeira
no Hotel Gloria.51 Em seguida, tendo obtido na Itália o diploma do curso normal, foi
contratada, desde setembro de 1926, pela Societá Nazionale Dante Alighieri, para
lecionar em duas de suas dependências, as escolas “Luigi Mercatelli” e a “Principe di
Piemonte”. Excelente professora, foi dito dela, até pelos próprios órgãos diplomáticos
italianos, mas a escola italiana era mais um âmbito onde aplicar a “fascistização”. Se,
nos primeiros anos, quando ainda o ensino da instituição garantia espaços de liberdade,
Emma conseguiu conciliar zelo profissional e sentimentos antifascistas, com o ano de
1931 as coisas começaram a mudar. Ao se recusar comparecer a um evento
comemorativo do fascismo, Emma foi suspensa do ensino por quinze dias, e, poucos
meses depois, quando da chegada ao Rio de Janeiro do secretario dos Fasci all’Estero
Parini, diante de nova recusa de participar dos festejos em sua homenagem, houve
definitiva expulsão da escola: as razões nunca foram comunicadas oficialmente, mas
uma correspondência da Sociedade mantedora da escola para o cônsul italiano acusava
abertamente a professora de nutrir “sentimentos de aversão ao regime”.52
Numa carta ao pai, temporariamente a Paris, Emma, sabendo que não havia censura de
correspondências em solo francês, narrava em junho de 1931 a respeito de sua primeira
punição, mas já deixando entrever a ameaça de futuras intervenções da escola, o que
aconteceria em breve. O relato de Emma merece ser conhecido em seus pontos
principais:
parte invisível e/ou marginal para os olhos da polícia justamente pelos estereótipos seletivos que a
guiam [...] Pelo contrário, o tecido do cotidiano [...] é construído ao redor de figuras de esposas, filhas,
companheiras, colaboradoras cuja pessoal contribuição de paixão e ideias, de trabalho e organização
acaba silenciosamente resumido e incluído na atividade de seus pais, maridos, irmãos, amigos e
companheiros”. SIGNORI, Elisa (org.). Frammenti di vita e d’esilio. Giulia Bondanini: una scelta
antifascista (1926-1955), op. cit., p. 9-11.
51
Numa carta ao pai, dois anos depois de sua chegada, Emma falava dos momentos iniciais de sua
estada no Brasil: “Os primeiros tempos passados aqui no Rio, por uma serie de circunstancias
imprevistas, não foram dos melhores. Com “primeiros tempos” [grifo da autora], entendo dizer no
máximo dois meses, depois dos quais eu e Nello entendemos quanto valha ter princípios sadios em
nossa consciência, e fomos corajosamente empenhando-nos numa luta intensa e tenaz da qual saímos
logo vencedores. Em nosso afeto mutuo, no amor pra nossa filha, estava a recompensa do esforço que
nos tornou humanos e nos fez experimentar a mais bonita satisfação: a de bastar para nós mesmos e
ver coroado com uma razoável economia nosso trabalho”. BLAB, Fundo Emma Neri, Carta de Emma
Neri para seu pai Eligio Neri, Rio de Janeiro, 28.7.1928.
52
BLAB, Fundo Emma Neri, Telespresso n. 1983/450 do Consulado italiano no Rio de Janeiro, 30.8.1946,
citando carta de 24.6.1931 do Comitê da Societá Dante Alighieri para o cônsul italiano.
242
Meu amadíssimo pai, [...] como você sabe, sou professora na escola
italiana, onde, de forma indireta, faz-se política. Apesar disso tudo, não
me dobrei nem uma vez, nem estendo o braço para a saudação fascista.
Há cinco anos sou professora aqui, e vieram cônsules e embaixadores
que trocavam com outros professores e alunos a famosa saudação... mas
eu não [...] Dias atrás me recusei perante a turma de aceitar o convite a
assistir a um filme cinematográfico de S.E. Balbo, com a travessia
aérea. A imposição do diretor era estranha e respondi que aquilo não
fazia parte dos meus deveres, acrescentando que ele podia se
envergonhar, ele, um vira-casaca, que tinha um irmão no exilio em
Buenos Aires devido ao fascismo. O diretor relatou tudo e fui chamada
pelo conselho. Apresentei-me diante deste Tribunal Especial. Os
conselheiros são pessoas que me conhecem na escola como uma boa
professora, o presidente é um tímido covarde [...]53
Após relatar o interrogatório do conselho e suas respostas, que lhe valeram a suspensão
temporária, Emma concluía para o pai: “Saiba que nunca experimentei em minha vida
satisfação maior do que esta. Eles sabem que estamos no Brasil, e que dentro da escola
italiana não poderiam ensinar tanto fascismo”54. A atitude firme de Emma e a coerência
com suas ideias trouxeram consequências práticas desagradáveis para ela, assim como
para outros professores antifascistas de escolas italianas no exterior que sofreram o
mesmo tipo de retaliação por parte das diretorias locais. Nello, em suas memórias,
anota a respeito:
Nós, de acordo com Battistelli, Scala e Petraccone, solicitamos a
imprensa local a levantar a voz contra o fascismo e suas intromissões de
natureza politica em terra brasileira, ensinando sua doutrina nas escolas.
Todo dia os jornais saiam com títulos garrafais e esta campanha marcou
uma vitória em nosso favor e dos antifascistas do Rio de Janeiro.55
Com efeito, em varias ocasiões, alguns dos periódicos brasileiros se posicionaram
contra as pretensões fascistas de determinar a tal ponto a vida dos italianos da colônia
que isso acabava se configurando uma indevida ingerência na vida nacional, mas a
conclusão de Nello acima há de ser matizada: oportunidade para afirmar uma presença,
para testemunhar uma posição diferente, sim, vitória do antifascismo, talvez não.
Emma continuará por certo tempo ainda como professora, dando aulas particulares, e
depois ajudará o marido na empreitada da livraria e editora. Encerrando este capitulo
sobre sua figura, a primeira parte da carta ao pai acima mencionada constitui fonte
valiosa, não só como documento de uma passagem importante da existência de Emma e
Nello, mas também como registro raro de uma comunicação realizada por pessoas de
53
Cf. BLAB, Fundo Emma Neri, Carta de Emma Neri para seu pai Eligio Neri, Rio de Janeiro, 23.6.1931.
Ibidem.
55
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 184.
54
243
declarados sentimentos antifascistas com seus parentes na Itália. O fato da carta não ter
que passar pelo crivo da censura fascista, sendo endereçada a Paris, local de uma
viagem do pai, possibilitava a Emma uma sinceridade e clareza que outras
correspondências, também dela, ou de Nello, para os parentes na Itália não puderam
apresentar. Assim escrevia:
Como vai querido pai? Na verdade, suas cartas [...] nunca puderam darme noticias de suas precisas condições... Morreram todos os generosos,
os audaciosos, os verdadeiros? Nós acompanhamos daqui com o maior
interesse e com intensa espera o desenrolar dos acontecimentos! Temos
noticias através da França, com o jornal La Libertá, da Argentina, de
Nova Iorque, de todos os países onde existem ainda italianos livres
como nós, incapazes de aceitar, como nós, a cega e perversa maldade de
um partido de delinquentes. Partimos há cinco anos, mas não
esquecemos nem um momento do que vocês tiveram que sofrer,
amordaçados, atordoados pelo habito diário da obediência que não
encontra consentimento na consciência... aturdidos (não é verdade?) e
talvez desanimados...Isso queria saber exatamente, isto desejo que você
me escreva...As pessoas simples, vocês todos, o que fazem, o que
pensam..? Sabemos de tudo... das violências...das bárbaras sentenças,
do confinamento, tudo o que de mais feroz um governo pode usar para
se sustentar, ...e sentimos em nós a indignação, o ódio, o desejo do fim.
[...] Quero que você me escreva e me diga sem medo (aqui não há
censura) tudo o que você sabe da situação. Quando você voltar para a
Itália, você poderá mandar escrever a maquina algumas cartas de
informação e envia-las para o Rio sem assina-las. Mesmo que a censura
consiga intercepta-las, antes de sair de Genova, ninguém poderia
desconfiar de você, sendo escritas a maquina.56
O ardor antifascista de Emma Neri a lançava, então, numa proposta de aproveitamento
de espaços de comunicação que ela acreditava serem invioláveis. Evidentemente
desconhecia o que pesquisadores informam, isto é, que
em 1927 e 1928, a Polícia Política italiana já possuía uma coleção de
observações acerca de imigrantes italianos no Brasil e seus
descendentes, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Procuravam-se as ligações antifascistas. Vale notar que Roma possuía a
copia da correspondência enviada do Brasil à Itália, via Paris, o que
indica uma interceptação dos correios na França ou no Brasil.57
56
BLAB, Fundo Emma Neri, Carta de Emma Neri para seu pai Eligio Neri, op. cit.
CANCELLI, Elizabeth. “Ação e repressão policial num circuito integrado internacionalmente”. In
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999, p.
309-326. A citação está na p. 317.
57
244
4.9. A Minha Livraria
Por razoes de saúde, Garavini deixava em 1933 seu emprego no Hotel Glória,
resolvendo se dedicar ao comércio, para o qual sentia mais disposição. A amizade de
Pasquale Petraccone, antifascista que de São Paulo tinha-se mudado em 1932 para a
Capital Federal, onde abrira uma loja de papelaria e tintas, e também uma editora, a
Athena, facilitou as coisas. Garavini trabalhou certo tempo com Petraccone, até chegar
para ele uma proposta dos irmãos Pongetti, amigos de Nello e Emma. Donos de uma
editora e uma tipografia, para a qual possivelmente Nello vendia tinta por conta de
Petraccone, os Pongetti - contará Nello em suas memórias - “me sugeriram a compra de
uma livraria no centro da cidade: Praça Tiradentes, cercada por teatros e apinhadíssima
de pessoas de manha à noite”. Nascia assim a Minha Livraria, “pequena, artística”, que
“já fora de propriedade do escritor Benjamin Costallat”. Livraria e também editora.
Com efeito, este, “diletante literário bem sucedido”, segundo Laurence Hallewell58,
conseguira publicar e vender com notável sucesso alguns seus romances no circuito
comercial carioca, em sociedade com um amigo, Miccolis. O empreendimento dos dois
adotara esse nome, Minha Livraria Editora, e chegou a realizar algumas outras
publicações na década de 20, mas em 1934 a firma foi adquirida por Garavini,
justamente com a colaboração dos Pongetti. Os irmãos, de origem italiana, eram
proprietários de uma simples tipografia, mas entraram em meados de 30 no ramo
editorial, como informa Hallewell.
O setor estava em franca expansão, sobretudo na Capital Federal. Fora um crescimento
impulsionado por alguns fatores. Com efeito, ainda em 1920 a situação era diferente,
segundo Hallewell:
Mesmo que, em 1920, o Rio de Janeiro fosse quase duas vezes maior do
que São Paulo, ainda assim não se igualava à capital paulista na
atividade livreira [...] O Rio contava com apenas cerca de dez livrarias
de alguma importância no centro da cidade, ao passo que São Paulo já
possuía o dobro desse número em verdadeiras editoras.59
As “revoluções” de 1930 e 1932 trouxeram novo interesse para os problemas do país na
população letrada brasileira, e contribuíram para ampliar o público de leitores
potenciais. A depressão econômica também influenciou o aumento do número de títulos
58
Muitas informações a respeito do mercado editorial brasileiro e carioca da década de 1930 são
retiradas de HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2005,
particularmente do capitulo 16, dedicado a José Olympio.
59
HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história, op. cit., p. 417.
245
publicados e das tiragens: o preço proibitivo das edições importadas, até então
predominantes no mercado, estimulou a produção de livros no Brasil. Esse aumento
dizia respeito a São Paulo, mas também ao Rio, cujo mercado crescia de forma
marcante pela aumentada importância da Capital Federal no cenário nacional: centro de
um poder que se dizia novo, acima de velhas oligarquias regionais, propugnador de
reformas ministeriais e organizativas importantes, e, sobretudo, desejoso de “recuperar
sua posição de preeminência literária e intelectual, que parecia ter perdido para a capital
do café, no inicio do movimento modernista, dez anos antes”60. A mudança de São
Paulo para o Rio de uma casa editorial em plena afirmação como a José Olympio, com
seu autores nacionais que fixaram quase todos morada na cidade, ajudou muito neste
sentido. A loja, moderna, estilo art déco, inaugurada em julho de 1934 na Rua do
Ouvidor, arrebanhava um publico de leitores e autores, e suas edições foram crescendo
de ano em ano, tornando José Olympio “o maior editor nacional no campo de edições
literárias e livros não didáticos”.61
É neste panorama editorial, dominado por José Olympio, mas com o surgimento de
outras casas, que Garavini começava sua nova empreitada.62 Provavelmente foi uma
sociedade em conjunto com os Pongetti, no começo, e em seguida uma atividade do
próprio Nello. A livraria era localizada à Rua D. Pedro I, número 2, próxima da esquina
com a Praça Tiradentes, onde surgia o Teatro Carlos Gomes, de propriedade da família
Segreto. Pode-se dizer aqui que os Segreto, emigrantes italianos, tinham-se destacado
desde fins do século XIX no ramo das diversões na cidade do Rio, adquirindo e gerindo
com o tempo varias casas de espetáculos e salas de cinemas. Entre eles e os Garavini
deve ter-se estabelecido algum laço de amizade, ou simplesmente de natureza
comercial, mediado pela origem comum. Com efeito, além do teatro, vários imóveis da
área pertenciam aos Segreto, inclusive os próprios locais da livraria e o prédio ao lado, à
Rua D. Pedro I, 4, no quinto andar do qual os Garavini fixaram sua nova residência.
No começo a Minha Livraria era somente uma livraria. Assim lembra Garavini:
60
Ibidem, p. 442.
Ibidem, p. 443. Os números fornecidos por Hallewell impressionam: em 1933, a editora lançara oito
livros. Em 1934, foram 32, e em 1935, “o primeiro ano completo que passou na capital do país”, foram
59. No ano seguinte, o melhor do entreguerras, a casa alcançou o patamar de 69 novas edições.
62
A abertura da firma é registrada no Diário Oficial, Ministério do Trabalho, Indústria e Comercio,
21.12.1934, p. 25512, desta forma: “Firmas individuais [...] De Nello Garavini, para o commercio de
livros, à rua Pedro I, n. 2, com capital de 10:000$000”.
61
246
Para falar dela, dos personagens que a frequentavam e de suas
histórias, seriam necessários vários volumes. Artistas, atores e
atrizes, escritores, editores, poetas, políticos, religiosos,
maníacos, geógrafos, militares, estudantes e policiais, todos,
sem distinção, falavam, discutiam, propunham e declamavam
poesias ou buscavam editores para a publicação de seus
textos.63
E acrescenta, sublinhando como aqueles anos de 1934-35, com sua intensa
movimentação politica na qual as organizações de esquerda estavam bastante ativas,
favoreciam o comercio de certo tipo de publicações: “Nos primeiros tempos ficamos
satisfeitos das vendas e dos clientes que nos frequentavam. Vendia-se uma grande
quantidade de livros comunistas que tratavam do assunto ‘Russia’...até as maiores
livrarias da cidade venderiam muito pouco se não comercializassem aqueles livros”.64
A certa altura, Garavini resolveu entrar no mercado editorial, começando a publicar
manuais de cultura social. Era uma forma, por ele encontrada, de unir a atividade
comercial com a divulgação do pensamento anarquista. Difundir as ideias libertárias
através de livros e da imprensa sempre foi uma das principais características do
anarquismo, em suas variadas formas e correntes.
Garavini entrava num rio já
navegado por outros companheiros em outros lugares e situações, sendo, todavia, um
dos pioneiros na difusão editorial, em língua portuguesa, do pensamento libertário no
Brasil. A fórmula dos “manuais de cultura social”, por ele excogitada, forneceria textos
sobre temáticas de natureza justamente social e politica, privilegiando obras de
esquerda, de autores comunistas ou anarquistas.
O primeiro volume a aparecer foi a obra de Errico Malatesta, L’Anarchia, numa
tradução do titulo que o apresentava como Communismo libertário. Apesar das criticas
acima relatadas de Fabbri, a escolha de Garavini parece clara: facilitar a aproximação de
um público interessado na temática comunista com um clássico do pensamento
libertário. Segundo Nello, o manual vendeu-se muito bem, o que o estimulou a
continuar com a coletânea. Os volumes sucessivos foram A Comuna de Viena, do líder
socialdemocrata austríaco Otto Bauer, Karl Marx, de Lenin, outra obra de Malatesta,
Entre Camponeses, e mais um livro que apresentava teses do movimento anarquista:
Deus e o Estado, de Mikhail Bakunin.
63
64
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 172-173.
Ibidem, p. 173.
247
O levante comunista de novembro de 1935 trouxe a introdução do estado de sitio e suas
consequentes medidas repressoras, além de uma intensificada vigilância sobre imprensa
e possíveis ações de militante de esquerda. Garavini resolveu, então, continuar a
publicação de seus manuais com uma leve modificação no titulo da coletânea: “Manuais
de cultura moderna”, dando espaço também a obra de natureza variada. As três
primeiras publicações foram Nicolai e a biologia da guerra, com tradução e prefacio de
Fábio Luz, obra na qual o francês Romain Rolland comenta um texto (A Biologia da
guerra, justamente) do psicólogo alemão Georg Friedrich Nicolai, Origem do Homem,
do naturalista alemão Ernst Haeckel, e O duelo dos sexos, do anarquista francês André
Lorulot.
Em seguida, houve espaço para alternar traduções de textos estrangeiros com algumas
obras nacionais. A Minha Livraria editava então Nietzsche (O Anticristo) e Oscar Wilde
(O bom amigo e outros contos, com tradução de Mario Lago); publicava obras como
Limitação dos Nascimentos, do médico anarquista argentino Juan Lazarte, e dois
volumes do historiador escocês Thomas Carlyle reunindo biografias de grandes
personagens, o primeiro com título Dante, Shakespeare, Rousseau, o segundo Napoleão
e Cromwell. E mais: Sarobá, coletânea de poemas do sul mato-grossense Lobivar
Matos, Verdi, biografia de Jorge Leal Costa Neves e mais uma biografia, Patrocínio, de
autoria de Osvaldo Orico. Ainda houve espaço para alguma obra de natureza mais
politica como A luta contra Trotsky, do líder soviético Stalin e três obras do escritor
russo Máximo Gorki: A minha infância, Psicologia do povo russo e Lenin.
Há registros também de uma serie de contatos dos irmãos Pongetti com Stefan Zweig,
para cessão de direitos autorais de livros do autor austríaco. Pelo menos sete obras de
Zweig foram impressas pela editora dos Pongetti, entre 1935 e 1941, mas de três delas,
Holderlin, Kleist, e Stendhal, o recibo de cessão de direitos autorais, datado novembro
de 1934,65 tem como destinatário Nello Garavini, embora não se tenha notícias de uma
sucessiva edição das obras pela Minha Livraria, e sim da sua publicação pelos Pongetti.
É difícil reconstruir exatamente a cronologia das varias edições da editora de Garavini, e
até determinar o fim das publicações. Há ainda o registro de pelo menos duas obras da
Minha Livraria, dos anos de 1937-38. Uma é De Profundis, o texto em forma de carta
65
Cf. BIBLIOTECA NACIONAL. Stefan Zweig no país do futuro. Catalogo da exposição comemorativa dos
cinquenta anos da morte de Stefan Zweig, 1992, Doação Abrahão Koogan, Recibos, p. 82.
248
que Oscar Wilde escreveu na prisão, outra é Petróleo, de Upton Sinclair. Quem cuidou
da tradução do romance do escritor americano, assim como de Minha Infancia, de
Gorki, foi Libero Battistelli, como vimos em outra parte66, onde é dito também da ajuda
financeira e da ação de estimulo e aconselhamento que o advogado de Giustizia e
Libertá exerceu junto à editora e ao amigo Nello.
Este longo detalhamento das obras publicadas pela Minha Livraria permite de ter uma
compreensão global das orientações que Nello imprimiu em sua atividade editorial: de
um lado, a tentativa de oferecer ao público brasileiro textos que possibilitassem um
conhecimento mínimo, mas suficiente, dos princípios do anarquismo (Malatesta,
Bakunin, Lorulot, Lazarte), e, do outro, uma oferta mais ampla de títulos da esquerda
internacional (Gorki, Stalin, Lenin, Rolland, Bauer, Sinclair) e alguma obra brasileira.
Sem furtar-se a editar também autores polêmicos como Nietzsche e Oscar Wilde. Sobre
tiragens e vendas não há elementos para afirmar algo, assim como sobre a resposta do
publico em geral. Claramente, há de se entender o período em que a livraria e editora
ficou funcionando. Se nos primeiros anos a atividade comercial de Nello conseguiu se
encontrar com uma demanda para textos como aqueles que ele editava, após a
instauração do Estado Novo o clima se fez mais pesado, tanto para as novas publicações
quanto para a circulação de leitores, como lembra o próprio Garavini:
Livros com ideias sociais eram retirados e sequestrados nas livrarias,
nas editoras e nas residências privadas; as perquisições eram diárias.
Quantas perquisições e retiro de volumes também na nossa livraria!
Fomos obrigados a destruir milhares de livros, para não correr maiores
riscos.67
Nesse contexto de controle e repressão, o anarquista lembrava também da prisão de
Petraccone e sócios, da qual de falou em outra parte do trabalho, e chegava a comentar:
“Afortunado aquele que, preso, não fosse torturado durante o interrogatório na Rua da
Relação”. Com efeito, o próprio Garavini foi convocado pela Policia Central. Em suas
memórias, ele não fez menção da data nem do delegado perante o qual teve que se
apresentar (indicado com N.N.), embora declarasse que o mesmo era tido como “o mais
feroz da Rua da Relação”. O policial o investigou a respeito de uma distribuição de
panfletos que instigavam a um levante os marinheiros do navio Bagé. Garavini negara
tudo e, declarando ter sempre ficado fora dos assuntos da política nacional, admitiu
66
67
Ver notas 194 e 195 da terceira parte.
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 175.
249
simplesmente seu antifascismo. Terminado o inquérito, Garavini pôde voltar para casa,
mas não cessaram as investigações sobre ele e sua casa comercial:
Desde aquele dia, a livraria ficou constantemente frequentada por
policiais que pediam livros comunistas para me pegar: um se declarava
meu amigo, outro queria conhecer minha vida no Brasil, outro chegava
com a gravata vermelha, outro ainda fazia perguntas para me colocar
em dificuldade; havia também quem me seguia na rua durante meu
trabalho.68
À repressão exercida pelas autoridades diante dos possíveis focos de comunismo,
sempre presente na ação policial brasileira, mas aumentada de forma consistente a partir
de 1935 e sobretudo após o golpe de 1937, se somavam as providências do governo
varguista contra os estrangeiros, em 1938-39, e a vigilância particularmente estreita
sobre os súditos do Eixo, após 1942. A filha de Garavini, entrevistada durante a
pesquisa, recorda o medo e a solidariedade naqueles tempos difíceis:
Antes éramos perseguidos por sermos antifascistas, e o consulado, a
embaixada nos vigiavam, depois, com a guerra, éramos suspeitos
porque italianos. Lembro que na época do afundamento de navios por
parte dos alemães [...] subi para o quinto andar para almoçar e ouvimos
o alarme: pensamos com preocupação na livraria em baixo, pois havia
quem assaltava os estabelecimentos alemães e italianos, mas as pessoas
que nos conheciam e sabiam de nossa militância antifascista chegaram a
defender a loja.69
E, numa outra resposta, acrescenta detalhes ao quadro acima:
Muitos estudantes de esquerda frequentavam a livraria, depois
perdemos muitos clientes. Alguns iam para a prisão, depois voltavam...
Um dia chegou um estudante, minha mãe o conhecia, mas ele estava
completamente enlouquecido pelas torturas sofridas... Muitos eram
estudantes do interior que vinha para o Rio estudar direito e para ganhar
algum dinheiro trabalhavam como escriturários da policia: às vezes,
alguns nos alertavam sobre uma próxima perquisição na livraria... nós,
contudo, nunca colocamos a fotografia de Getúlio: era obrigatória em
todos os estabelecimentos, mas...tivemos sorte, pois às vezes é uma
questão de sorte.70
4.10. O amigo mais querido
Em 1936 veio a faltar para Garavini também um apoio de fundamental importância, o
de Libero Battistelli, partido para a Espanha, da qual não voltaria. O nome dele recorre
68
Ibidem, p. 176-177.
Entrevista com Giordana Garavini, Castelbolognese (Itália), 4.1.2012.
70
Ibidem.
69
250
várias vezes no livro autobiográfico de Nello, lembrado sempre com muito afeto e com
grande apreciação. De Garavini, Libero tinha-se tornado conselheiro e quase sócio em
sua empreitada editorial, como se viu em vários momentos. O primeiro contato entre os
dois, emigrados da Itália para o Brasil a distância de um ano um do outro, mas em
ambos os casos para fugir da escalada da repressão contra os antifascistas que o ano de
1926 registrara, aconteceu em 1928.
Bondade, simplicidade e brilhante inteligência foram as características de Libero que
mais marcaram Garavini, mas ele fazia questão de lembrar em suas memórias que
“todos os antifascistas do Rio de Janeiro se aproximavam dele e ouviam dele palavras
de sinceridade”71. Embora Libero fosse republicano, seguidor coerente “das ideias de
Carlo Rosselli e do movimento de Giustizia e Libertá”72, Nello afirma que com ele,
após as iniciais concordâncias e diferenças, se criou uma afinidade que tornava os dois
“em perfeito acordo sobre quase todos os assuntos do antifascismo”73.
Uma interessante notação logo em seguida confirmava uma abertura e uma capacidade
de compreensão politica que já foi assinalada na parte a ele dedicada: “Os anarquistas
gostavam dele de forma especial. Em sua casa, no buraco onde escrevia, lia, pensava,
recebia os amigos, era difícil não encontrar um anarquista; e todos diziam dele que era
mais anarquista que nós todos”74. De Battistelli, Nello confessava ter tentado imitar “a
maneira de discutir com o adversário em boa fé, e o respeito por todas as opiniões
alheias”.75
Uma lembrança diferente nos restitui o homem atrás do empenho, das ideologias e dos
debates políticos: ela podia ter complementado a micro historia de Battistelli traçada na
parte a ele dedicada nesse trabalho, mas apresentá-la aqui permite unir em seu registro
também o testemunho de Nello. Este escreve:
Frequentemente ia com ele para sua ‘Fazendinha’ na floresta de
Mangaratiba, e com ele passava momentos prazerosos. O que nunca
esquecerei foi quando pela primeira vez me levou para aquele lugar
selvagem, despovoado, sem casas e com poucas pessoas, habitado
somente por cobras e insetos de muitas espécies, que quanto mais
invisíveis, tanto mais eram vorazes. Libero e eu ficamos mais de quinze
dias numa cabana feita de argila e bambu. Dormíamos sobre colchoes e
71
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 179.
Ibidem, p. 180.
73
Ibidem.
74
Ibidem, p. 179.
75
Ibidem, p. 180-181.
72
251
nos alimentávamos de pão e enlatados. Éramos como os camponeses
locais, que não sabiam reivindicar seu valor para poder viver melhor do
que os selvagens, e como selvagens vivemos naqueles quinze dias, que
para nós foram maravilhosos pela solidão, pelo silêncio, pelas belezas
naturais que nos cercavam. Entre aquelas belezas, a nossa alma ficava
preenchida, encontrávamos a felicidade completa na doce, sincera e leal
companhia.76
4.11. Tempos de guerra
Morto Battistelli na Espanha, aprisionados e perseguidos pelo regime de Vargas seus
amigos e companheiros, como Petraccone e seus colaboradores, emigrado Frola para o
Mexico, Scarrone recolhido em seu silêncio, Garavini e outros anarquistas continuando
uma atividade mas sempre vigiados pela policia, homens e forças do antifascismo de
origem italiana, proibidos de qualquer ação pública de cunho politico, viveram uma
estação de espera forçada. Acuados pelo Estado Novo, por sua militância nas fileiras do
antifascismo, que os órgãos de policia assimilavam tout court à esquerda comunista, de
um lado, e por suas origens italianas, do outro, os antifascistas da colônia começaram a
levantar sua voz de novo somente a partir de 1942. O contexto já era outro: os Estados
Unidos entrados na guerra contra o Eixo, e o Brasil que estava se alinhando com as
democracias liberais aliadas. Apesar de permanecer a proibição de constituir
organizações politicas estrangeiras em território nacional, e de continuar a vigorar
outras medidas anti-estrangeiros, a nova posição brasileira diante do conflito, os rumos
da guerra na Europa e a vontade de marcar de forma clara uma diferença com as
autoridades de governo italianas, contribuíram para os antifascistas retomarem folego e
iniciativa.
Nasceram assim núcleos de Itália Libera, na esteira de organismos análogos presentes
em outros países da América Latina e em direta ligação com a Mazzini Society, fundada
nos EUA por italianos no exilio, e liderada por Carlo Sforza, diplomata e ministro do
Exterior antes da chegada de Mussolini ao poder.77 Figuras de destaque nesta tentativa
76
Ibidem, p. 180.
Sobre o quadro mais geral do antifascismo italiano no Brasil neste período, sua retomada e seus
rumos, particularmente com destaque para a organização Itália Libera, suas iniciativas e suas
modalidades de presença, ver os trabalhos de Angelo Trento e João Fábio Bertonha: TRENTO, Angelo.
Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989, p. 394402; BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o
fascismo, 1919-1945, op. cit., p. 121-141. ---------------------. “Politica em tempos de guerra: a tentativa
de reconstrução do antifascismo italiano em São Paulo em 1942-43” In Revista de História, São Paulo, n.
137, 1997, p. 43-63.
77
252
de reorganização, conduzida à luz de uma proposta de cunho republicano, liberaldemocrático, orientada pelos componentes moderados do antifascismo italiano, eram
personagens de antiga militância, como Piccarolo, ou Petraccone (de novo em São
Paulo, após os difíceis anos 30 no Rio de Janeiro, evidentemente abandonando
simpatias trotskistas que pareciam tê-lo caracterizado naquela época). Pela Capital
Federal os documentos de Itália Libera falam sobretudo de Luigi Ferrero. Garavini e
outros se colocaram numa posição distinta e é por isso que tratar-se-á da conjuntura
nesta quarta parte do trabalho.
Em seu livro de memórias, expondo sua visão da situação, Garavini escrevia:
Houve uma controvérsia entre nós: logo que a Itália ficou derrotada,
grande parte dos italianos que tinham sido fautores do fascismo
abandonaram suas antigas ideias e como os piores conformistas
quiseram se aproximar de nós. Com Enrichetta Battistelli, Adriano
Zuccari, Luigi Cingolani, Garritano, il prof. Itria, Tosone e outros, nos
opomos decididamente que aquele bando de fascistas entrasse nas
nossas fileiras como madalenas arrependidas. De parecer oposto eram
Petraccone, Tamagni, Luigi Ferrero, Tagliaferri e o próprio Segatta.
Disso resultou uma separação entre os antifascistas - perseguidos juntos
por longos anos - que pode ser chamada de amistosa, mas mesmo assim
dolorosa.78
Nello colocava a origem das divisões a partir da derrota militar da Itália, mas a
documentação mostra que acentos diferentes surgiram no âmbito do mundo antifascista
de origem italiana ainda em 1942, diante da tentativa de organização de Itália Libera e
das escolhas ligadas a isso. De certa forma, a questão era mais ampla da acolhida ou não
de antigos expoentes filo-fascistas. O que estava em jogo era o futuro rosto politico do
país, uma vez libertado da ditadura. E mesmo que estivessem distantes milhares de
quilômetros, os fuorusciti e exilados no Brasil reivindicavam seu direito de participar
nas decisões a respeito desse problema. Itália Libera era uma tentativa de se posicionar
como italianos contrários a Mussolini: naqueles anos, era a única com uma estrutura e
um programa, mas havia quem não aceitava se alinhar com ela. E isto também no
âmbito da colônia do Rio.
A imprensa carioca acompanhava as iniciativas da organização, desde o lançamento de
seu manifesto, no inicio de fevereiro de 1942, assinado, entre outros, por Petraccone,
Piccarolo, Bixio Ricciotti e Luigi Ferrero. Nos meses seguintes, noticias sobre Itália
78
GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 185.
253
Libera, ou os Italianos Livres do Brasil iam aparecendo de vez em quando. Até circular
uma carta, em maio de 1942, anunciando o surgimento de duas seções da organização,
uma no Rio e em São Paulo, e convidando os cidadãos a aderirem: assinava o secretario,
Dr. Giorgio Bullaty.79 A esta altura, o Ministério da Justiça e Negócios Interiores
solicitou à chefatura de Policia sustar as atividades do Comitê dos Italianos Livres do
Brasil, pelo fato de exercer atividade de ordem politica. No mesmo mês de maio, o
presidente e principal responsável pelo Comitê, Luigi Ferrero, convocado nas
dependências da policia, se comprometeu a acatar a determinação.80
Uma passagem de Sforza pelo Rio, contudo, em agosto, direto a Montevidéu para a
Conferência Pan-americana de Itália Libera reacendeu o interesse para a organização.
Em sua escala na ida e na volta, Sforza foi entrevistado pela imprensa.81 Nos anos
seguintes, mesmo não se constituindo seções da organização (uma tentativa não acatada
pelo governo Vargas foi realizada por Trento Tagliaferri em sua volta de Montevidéu,
onde participara da Conferencia como representante dos membros brasileiros82), a voz
dos “Italianos Livres” era veiculada pela imprensa carioca, frequentemente através de
matérias de Ferrero ou entrevistas com ele.
Antes de apresentar melhor a outra linha que o mundo do antifascismo carioca
apresentava naqueles mesmos anos e que diz respeito mais diretamente a Garavini, é
preciso caracterizar brevemente os dois italianos acima citados, como ligados a Itália
Libera. Os fichários policiais italianos descrevem o piemontês Luigi Ferrero como
socialista83. Nascido em 1889, emigrara para o Brasil antes da primeira guerra mundial,
em ocasião da qual voltou para a Itália e foi ferido em combate, o que lhe valeu uma
pensão. O retorno ao Rio se dera em julho de 1930, contratado como engenheiro por
uma empresa de construções. Os informes da embaixada no Rio acompanhavam seu
percurso no antifascismo: se, poucos meses depois de seu retorno ao Brasil, um
telespresso apontava pelos “ótimos sentimentos italianos, pela simpatia para o regime”
de Ferrero, oito anos depois será declarado “antifascista ferrenho”, assinante de
79
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro / Delegacia de Ordem Politica e Social (APERJ/DOPS),
Serie temática “Italianos”, pasta 3, “Dossiê Italiani Liberi”, 11.5.1942.
80
Ibidem, 18.5.1942.
81
Cf. O Jornal, 14.8.1942; A Noite, 14.8.1942; Diário Carioca, 16.8.1942; Diário da Noite, 27.8.1942.
82
AN IJJ6 N2229, Processo de Naturalização, “Trento Tagliaferri”, carta de Trento Tagliaferri ao Ministro
da Justiça Marcondes Filho, 1.9.1942.
83
Cf. ACS / CPC, b. 2034, f. 45494 (“Ferrero, Luigi”).
254
Giustizia e Libertá e de Studi Sociali.84 Em outubro de 1937, como vimos, participara
do banquete que Scarrone, socialista como ele, ofereceu em homenagem a Frola, outro
socialista. De Frola, inclusive, piemontês como ele, Ferrero era amigo desde os tempos
da Itália85. Após a tentativa infrutífera de constituir seções de Itália Libera em 1942,
Ferrero continuava sua batalha, liderando um “Comitê Itália Libera do Rio de Janeiro”,
cuja voz, a partir do começo de 1943, encontrava eco na imprensa local, cada vez mais
aberta a contribuições antifascistas pelos rumos que a guerra estava tomando. Assim há
registro de matérias no Diário da Noite, em janeiro, junho e outubro de 1943.86
Quanto a Trento Tagliaferri, seu currículo era bastante curioso. Nem sempre foi
considerado exatamente um campeão do antifascismo. Romano e comerciante, de ideias
libertárias, segundo Angelo Trento emigrou em 1924 para Uruguai e Argentina, e
chegou ao Brasil dois anos depois, passando pelo Rio, por Poços de Caldas e
estabelecendo-se enfim na Bahia. Em sua passagem pela Capital Federal há um registro
de La Difesa que comunicava como a assembleia geral da Lidu do Rio de Janeiro, em
dezembro de 1927, o expulsasse por indignidade moral e politica.87 Da Bahia, sempre
segundo Trento, entre 1929 e 1933, esteve varias vezes na França, em contato com
outros exilados. Com efeito, os fichários policiais de outros antifascistas, como Mariani
e Segatta, ajudam a acrescentar informações ao quadro. Como foi visto a respeito do
primeiro, sua chegada ao Brasil se deu com destino o estabelecimento na Bahia de
Tagliaferri, com o qual, inclusive, Mariani teria viajado, saindo de Cherburgo e
aportando em Salvador a 7 de fevereiro de 1929. Os informes do vice-cônsul italiano
local relatam de outra chegada de Tagliaferri à Bahia, no mesmo ano, em julho, desta
vez vindo do Porto e junto com o anarquista Segatta. Para quem ele trazia para o Brasil,
havia emprego em suas casas de jogos na Bahia, em Curitiba, em Santana do
84
Ibidem, telespresso da Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 4.11.1930 e telespresso da Embaixada da
Itália, Rio de Janeiro, 28.9.1938.
85
Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico
Nuevo, 1939, p. 187.
86
Cf. ”A grande missão dos italianos livres do mundo”, Diário da Noite, 15.1.1943; “A reconstrução
moral da Itália não pode ser feita com lacaios de Mussolini”, Diário da Noite, 16.6.1943, p. 2 ; “Vinte
anos de tirania e traição. Leaders anti-fascistas no Rio entrevistados pelo Diário da Noite”, Diário da
Noite, 28.10.194, p. 4.
87
Cf. “Rio de Janeiro. Espulsione”, La Difesa, ano V, n. 200, 15.1.1928, p. 4.
255
Livramento. Passagens sucessivas pelo Rio são assinaladas, em 1933 se encontrava na
Capital Federal, 88mas não há muitos registros de seus movimentos sucessivos.
De qualquer forma, sua conduta parecia um tanto enigmática. De um lado, o apoio a
antifascistas, realizado com viagens e através de doações, do outro, sua atividade de
empresário no ramo das diversões, com casas de jogos e casinos abertos em vários
pontos do país, até debaixo do Estado Novo: em 1938, dirigiu pedido ao Ministério da
Justiça para a construção em Salvador de um Casino-Teatro-Balneário, oferecendo, em
troca da autorização, a exibição no local de “duas peças de propaganda do Estado Novo
por companhia e por temporada”.89 Pertencente às fileiras do anarquismo, como mostra
uma carta para os “queridos amigos de Giustizia e Libertá” de 1937
90
, mas sem
problemas para excluir, anos depois, da nova organização os antigos companheiros de
fé. Com efeito, em 1942, representava os Italianos Livres do Brasil na conferencia de
Montevidéu, não obtendo em sua volta, como foi dito, permissão para abrir uma seção
no país. Interessantes, nessa circunstância, são algumas frases de seu pedido de
autorização91, quando falava das finalidades da associação (“A fim de render eficiente a
vasta obra de reeducação das massas italianas intoxicadas durante vinte anos pela
propaganda totalitária, e para desenvolver entre as colônias italianas radicadas no Brasil
uma intensa obra de brasilidade e de americanismo”) e dos participantes da mesma
(“homens de todos os partidos, excetuados comunistas e anarquistas”). O pedido
excluía, então, setores de esquerda mais radicais, perseguidos, inclusive, pelo governo
brasileiro, e se inseria na linha getulista da nacionalização das comunidades de origem
estrangeira e da cada vez mais evidente aliança com os EUA.
88
Uma noticia de jornal relata que Tagliaferri abriu firma para comércio de diversões, no Rio de Janeiro,
à Rua Silva Jardim, 47 e 49, e à Rua Pedro I, n. 25, com capital de 50:000$000. Cf. Correio da Manhã,
20.4.1933, p. 15. Em dezembro do mesmo ano, contudo, parece estar de novo na Bahia: o periódico
anarquista de Fabbri, Studi Sociali, recebe uma sua doação de 50 mil reis, da Bahia, por meio de Nello
Garavini. Cf. Studi Sociali, ano IV, n. 28, 4.12.1933.
89
Ver AN / Ministério da Justiça e Negócios Internos (MJNI), 4T, série A, subsérie 38, caixa 421, n.
2091/38, 17.4.1938.
90
Cf. ISRT, AGL, Fundo “Giustizia e Libertá”, fasc. 3, sottof. 1, Trento Tagliaferri a “cari amici di GL”,
Itabuna, 23.3.1937. Tagliaferri agradecia pelos exemplares do periódico de GL recebidos, reafirmava sua
fé libertaria, mas declarava que o coração dele estava com os amigos de GL, que “podiam ter-se lixado
de tudo e de todos, e ter permanecido ligados às suas posições sociais e econômicas”, mas, ao contrario,
escolheram a via mestra, [...] buscando a unidade nos duros campos de batalha”. Significativas as linhas
sobre Battistelli, que na época se encontrava no front na Espanha: “Devo retirar, e faço isso com
franqueza, o que escrevi sobre Battistelli. Mesmo que tivesse contra ele todos os preconceitos e todos
os ódios, o fato dele se encontrar no coração da luta, e eu estar aqui em segurança, faz com que, entre
os dois, ele seja mil vezes melhor que eu”.
91
Ver nota 82.
256
Essa não breve digressão sobre passos e percursos de antifascistas italianos nos
primeiros anos 40, situados no contexto de seu passado, ajuda a entender melhor o
quadro da luta contra o fascismo na Capital Federal, seus dilemas, suas alternativas.
Personagens novos entravam em cena, como Ferrero, outros, como Tagliaferri,
assumiam papel de destaque, outros ainda apresentavam um testemunho diferente. Um
desses era Antonio Corrado Limongi. Expulso do Brasil, como se viu na parte terceira
deste trabalho, em 1934, por pressão das autoridades diplomáticas italianas, pôde voltar
ao Rio de Janeiro somente em 1939, apesar do decreto de expulsão ter sido revogado em
1937. Durante aqueles dois anos, Limongi tentou de varias formas ver reconhecidos
seus direitos, o de poder voltar a se reunir com seus familiares no Brasil e de poder
andar de cabeça erguida no local onde fora injustiçado. Para tanto, os arquivos nos
restituem uma carta ao comandante dos carabinieri de sua cidade, na qual apresenta sua
situação, pede que seja reconhecido seu direito de voltar e acena um elogio do Duce,
referindo-se aos italianos residentes no Brasil como pessoas que devem continuar a ser
“orgulhosas de sua estirpe, hoje conduzida rumo aos seus maiores destinos por um
Homem providencial”.
92
E dois meses depois, Limongi dirigia uma carta no mesmo
sentido para o próprio Mussolini, narrando brevemente as injustiças sofridas e pedindo a
intervenção dele. O texto era repleto de expressões elogiosas, de declarações de fé no
fascismo, e de juramentos de fidelidade ao mesmo:
juro que quando for necessário eu serei sempre na primeira fileira para
gritar na cara dos detratores da Itália e do fascismo, que aqui se vive de
verdade [...] e age-se com o patriotismo que em quinze anos criou o que
nunca fora feito nos séculos passados, e tudo isso por vontade Vossa,
providencialmente enviado e sustentado pelo Céu nessa titânica obra
para o maiores destinos da Itália e de suas gentes fortes e laboriosas,
mas também desta Europa, que necessita da paz por Vós traçada: a paz
que de Roma aconselhais ao mundo e que de Roma sabereis impor, se
for necessário.93
A autorização para retornar ao Brasil chegaria somente dois anos depois. Na ocasião, o
advogado foi obrigado a escrever de seu punho uma declaração na qual se empenhava
em “se manter afastado e alheio a qualquer atividade que pudesse prejudicar os
interesses nacionais”.94 Os arquivos policiais italianos perderam de vista o Limongi,
mas quem voltava a se ocupar dele eram agora os nacionais. O advogado, morador de
92
ACS, CPC, b. 2788, f. 4592, (“Limongi, Antonio Corrado”), carta de Antonio Corrado Limongi para o
comandante dos Carabinieri de Maratea, 21.8.1937.
93
Ibidem, carta de Antonio Corrado Limongi para Benito Mussolini, 30.10.1937.
94
Ibidem, declaração de Antonio Corrado Limongi, 31.8.1939.
257
Niterói, manteve uma atuação comedida durante os anos de guerra. Não há registros de
uma sua atividade antifascista, mas em 1945, logo após o fim do conflito, ele escrevia
ao presidente Vargas pedindo inquérito policial e processo administrativo contra os
italianos fascistas que provocaram sua expulsão e perseguição.95
Limongi, forçado na Itália àquelas profissões de fé no fascismo para poder voltar a rever
seus familiares, uma vez retornado ao Brasil, não abriu mão de seus sentimentos
antifascistas, mas manteve uma posição de retaguarda. Também separado dos
familiares, e sofrendo pela situação, mas não aceitando compromissos, Agnesini, do
qual já se falara antes, em outubro de 1942 escrevia para o Diário de Noticias uma carta
aberta96, na qual alertava seja o conde Sforza seja governo e povo brasileiro acerca de
elementos de sentimentos fascistas, e até com carteirinha do partido, que se infiltraram
no movimento dos “chamados Italianos Livres”. Agnesini, após ter recordado sua luta
ao fascismo, que começara ainda na década de 1920, e lembrado que, por causa disso,
havia muitos anos não tinha noticias de sua família na Itália, declarava supérflua a
criação da nova organização, existindo havia muito tempo outras, como a Liga
Antifascista, criadas por autênticos antifascistas, cuja militância no Brasil datava de
muitos anos, diferentemente dos que se declaravam tais agora, por conveniência do
momento. E acrescentava:
Acredito que o sr. Conde Sforza tenha sido levado a uma conclusão
imperfeita porque tendo vivido muito tempo entre as colônia italianos
da França e da América do Norte, constituídas em grande parte de
italianos que saíram da Itália por não concordar com o regime fascista,
supôs que poderia igualar a essas a colônia italiana do Brasil, a qual,
além de ser comodista, não é nada antifascista...neste país, com exceção
de algumas centenas, toda a colônia estava vinculada há bem pouco
tempo, à sociedade fascista, muitos por interesse e outros por
ignorância.97
Após declarar que ele e outros italianos estavam dispostos a organizar, se o governo
permitir, um batalhão de voluntários antifascistas, “prontos a sacrificar nossa vida para a
defesa do Brasil, porque a liberdade desse país é a nossa liberdade”, assinava, colocando
até endereço e telefone.
95
Cf. APERJ / MJNI / Departamento Federal de Segurança Publica / Policia Civil do Distrito Federal,
prontuário 7508 (“Antonio Corrado Limongi”), carta de Antonio Corrado Limongi para o presidente
Getulio Vargas, 17.5.1945. Ver também APERJ / Secretaria de Segurança Pública / Delegacia de Ordem
Politica e Social (DOPS) Prontuário 11763 (“Antonio Corrado Limongi”).
96
“Carta aberta sobre o propalado movimento dos Italianos Livres do Brasil”, Diário de Noticias,
4.10.1942, p. 2.
97
Ibidem.
258
4.12. O Comitê antifascista italiano
Agnesini, com efeito, entrava naquele grupo de italianos da colônia carioca que - não
simpatizando pela iniciativa da qual Petraccone, Ferrero e Tagliaferri se colocavam
como lideres - buscavam se apresentar aos seus compatriotas e à sociedade brasileira
como herdeiros da tradição antifascista mais autêntica, daqueles setores que se tinham
abraçado a proposta antifascista desde a década de 1920, mesmo com acentos
diferentes. Cingolani, Itria, Peotta, Esposito, Anselmo Garritano98, Zuccari e o próprio
Garavini se posicionavam nesta outra vertente do campo antifascista.
Assinando alguns telegramas, publicados por jornais cariocas, simplesmente como
“Antifascistas do Rio de Janeiro” ou “Italianos antifascistas do Rio de Janeiro”, e
proclamas ou artigos, também veiculados pela imprensa, como “Comitê antifascista
italiano” ou “Comitê italiano antifascista do Brasil”, o grupo marcava uma presença no
âmbito local e nacional, querendo, de um lado, mostrar uma continuidade com o
empenho e as lutas das décadas anteriores e, do outro, se diferenciar das posições dos
Italianos
Livres,
provavelmente
considerados
moderados,
filo-americanos
e
anticomunistas, quando não excessivamente tolerantes com antifascistas da última hora.
Um primeiro telegrama, para o presidente Vargas, declarava:
Os Italianos antifascistas, enquanto protestam pelo bárbaro assassínio
que os dirigentes do Eixo praticaram ainda uma vez com o afundamento
de navios brasileiros, associam-se ao luto do Brasil e hipotecam
completa solidariedade a V. Excelência. Pelos antifascistas do Rio de
Janeiro: Francisco Itria, Nello Garavini e Luiz Cingolani.99
Na mesma ocasião, os três dirigiam telegrama do mesmo teor para Osvaldo Aranha,
Ministro das Relações Exteriores: “Os velhos antifascistas residentes nesta capital
hipotecam o seu apoio incondicional e ao mesmo tempo lavram seu protesto contra mais
um atentado dos bárbaros do Eixo contra o Brasil. Pelos Italianos antifascistas”.100 O
98
O nome de Anselmo Garritano, que nos anos 40 se destacava como um dos lideres dos Italianos
Antifascistas, recorria já em alguns registros da década de 1920: participara como conselheiro da
Associação dos ex-combatentes do Rio de Janeiro, em março de 1925 (Cf. La Difesa, ano III, n. 10,
1.3.1925, p. 4) e fez parte da lista derrotada nas eleições pelo conselho da Societá Italiana di
Beneficienza, em 1929. Cf. Correio da Manhã, 17.3.1929, p. 11.
99
Diário Carioca, 19.8.1942.
100
Ibidem.
259
jornal apresentava os telegramas como apoio “dos Italianos Livres solidários com o
Brasil”: somente cinco dias antes, Sforza passara pelo Rio direto a Montevidéu, para o
congresso de Italia Libera, e ficava difícil para a imprensa brasileira diferenciar
escolhas e posicionamentos no campo do antifascismo italiano.101 Três dias depois dos
telegramas, o Brasil reconhecia o estado de beligerância e no final do mês de agosto
declarava guerra ao Eixo. Mais um telegrama, em novembro, para Noel Charles,
embaixador do Reino Unido, depois de sucessos do exército britânico no Egito:
Cidadãos italianos antifascistas do Brasil exultando estrondosa vitória
nossos bravos e heroicos soldados sobre as hordas nazi-fascistas,
saúdam os legionários da liberdade na pessoa de V. Excia., esperando
continuar triunfos sobre triunfos até o completo esmagamento de Hitler
e Mussolini e libertação da Itália gloriosa nossa pátria e pátria imortal
do espirito latino. Prof. Francisco Itria, Cingolani Luiz, Nello Garavini,
Anselmo Garritano, Peotta Ottorino e Silvio Esposito.102
Mas antes disso, ainda em outubro, promoveram uma coleta para ajudar as vitimas dos
torpedeamentos: o nome com que o Diário da Noite os apresentava era “os velhos
antifascistas do Rio de Janeiro”103. O jornal fazia questão de frisar, talvez a pedido:
“trata-se realmente de velhos antifascistas italianos e brasileiros filhos de italianos que
desde a primeira hora combateram Mussolini e seus métodos brutais de dominação
partidária”. E acrescentava: “Não são democratas ou ‘livres’ de ultima hora”. A lista,
de 60 nomes, com o valor de suas doações, compreendia os assinantes dos telegramas
acima e mais velhos conhecidos do mundo do antifascismo, como Maddalena,
Anaclerio, Pampuri.
Nos papéis de Garavini, foi possível encontrar uma ficha de adesão, com papel timbrado
em nome dos “Italianos Antifascistas do Brasil”, seção do Rio de Janeiro, pronta para
ser entregue a quem quisesse aderir. Nela apareciam os seguintes dizeres: “Nos países
da América, já foi organizado oficialmente o Movimento Antifascista Italiano. Nós, os
antifascistas do Brasil, estamos providenciando das autoridades brasileiras a autorização
101
Giordana Garavini, entrevistada durante a pesquisa, lembra a passagem de Sforza pelo Rio de Janeiro
e a acolhida dos antifascistas: “Quando Sforza passou pelo Rio, os antifascistas eram um pouco
divididos, havia Ferrero etc. Assim fomos para o aeroporto eu, minha mãe e a Enrichetta, e...todo
mundo tinha virado antifascista! Inclusive os que nos denunciaram! A Enrichetta foi lá pra frente, se
apresentou a Sforza como a viúva de Battistelli, e lá atrás minha mãe foi gritando: Abaixo os fascistas
presentes e viva o antifascismo!”. Entrevista com Giordana Garavini, Castelbolognese (Itália), 4.1.2012.
102
Diário Carioca, 8.11.1942.
103
“Os velhos antifascistas ajudam a amparar as famílias das vitimas dos torpedeamentos”, Diário da
Noite, 14.10.1942, p.8.
260
e reconhecimento para o funcionamento da nossa organização. Pedimos a sua valiosa
adesão”. 104
Em finais de novembro, os mesmos seis antifascistas autores do telegrama para o
embaixador britânico assinavam, como “Comitê Antifascista Italiano”, um apelo ao
povo italiano, em A Noite.105 Convidando soldados, operários mulheres à revolta contra
o fascismo e sua aliada, a Alemanha nazista, o apelo declarava a disponibilidade dos
italianos emigrados no Brasil a se alistar como voluntários.
Em maio de 1943, mais um apelo do Comitê para a sublevação do povo italiano106.
Desta vez Garavini não fazia parte dos assinantes. Os eventos precipitavam na Itália
com a queda de Mussolini em julho. No dia seguinte ao fato, de novo a voz do Comitê,
na pessoa do secretario Cingolani107, que recorda como no Brasil houve um grupo de
italianos que desde o advento do fascismo ao poder se manifestaram como opositores. O
armistício assinado pelo governo provisório da Itália com os aliados, em setembro, foi
motivo para mais uma entrevista com expoentes do Comitê Italiano Antifascista do
Brasil108. Ainda em 1943, então, dois Comitês se dividiam a representação dos italianos
antifascistas na Capital Federal: o “Comitê Itália Libera do Rio de Janeiro”, presidido
por Ferrero, e o “Comitê Italiano Antifascista do Brasil”, cujas lideranças vimos acima.
Nos últimos pronunciamentos desse segundo Comitê, Garavini não aparecia mais: não é
dado saber se por alguma diferença de pensamento e orientação sobre a posição a ser
tomada, ou se simplesmente para deixar que outros tomassem a dianteira na exposição
pública.
A guerra encerrada, no dia 15 de junho de 1945, os Antifascista Italianos ofereceram um
banquete, na sede carioca do Automóvel Clube do Brasil, como homenagem para os
dois correspondentes brasileiros Rubem Braga e Joel da Silveira, que cobriram as
operações militares da F.E.B. na Itália.109 No evento, Emma Garavini foi uma das
oradoras. O curioso cardápio do almoço, entre um “talharim à bolonhesa” e um “filé
104
BLAB, Castel Bolognese, Fundo Nello Garavini.
“Revoltai-vos contra o Eixo! O apelo dos antifascistas residentes no Brasil ao povo italiano.” A Noite,
23.11.1942, p. 3.
106
“Repercussão na colônia antifascista italiana do Brasil do apelo de Winston Churchill”. Diário da
Noite, 28.5.1943, p. 7.
107
“Fascismo e a ‘Casa de Savoia’ fizeram a desgraça da Italia”. Diário da Noite, 26.7.1943, p. 8.
108
“Capitulo vergonhoso e infame na moderna história da Italia”. Diário da Noite, 9.9.1943, p. 8.
109
Cf. Diário Carioca, 19.6.1945, p.6.
105
261
mignon F.E.B.”, previa como entrada “frios guerrilheiros” e “salada russa”, e encerrava
tudo com uma “torta vitória”.110
Nos últimos anos de sua permanência no Rio, Garavini, que em 1942 vendera a livraria,
provavelmente continuou a trabalhar no comércio, como representante de tintas, com
sede na Rua do Senado. Em 1946 conseguiu liquidar sua firma e em março do ano
seguinte ele e a esposa voltaram para a Itália, agora pacificada e em plena reconstrução
econômica, politica e humana.111 O antifascismo, vivido e alimentado nos anos do
exilio carioca, durante os quais o encontro com diferentes vertentes e experiências
enriquecera suas originais bases libertárias, se tornava agora motivação e estimulo para
uma contribuição aos futuros caminhos do país.
110
BLAB, Castel Bolognese, Fundo Nello Garavini.
Sempre ligados aos ideais libertários, os Garavini continuaram sua vida em Castel Bolognese. Emma
falecerá em 1978 e Nello, poucos anos depois, em 1985. A filha Giordana prossegue até hoje a obra dos
pais, acompanhando a atividade da Biblioteca Libertaria “Armando Borghi”, fundada pelo pai e alguns
amigos ainda em 1916 e reativada em 1973, inclusive com a própria contribuição de Nello.
111
262
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a exposição e a análise dos itinerários individuais de Scarrone, Battistelli e
Garavini, cabem aqui algumas considerações finais que permitam uma síntese dos
elementos principais de cada percurso e ofereçam a tentativa de um olhar comparativo
sobre os mesmos. Isto nos permitirá, ao mesmo tempo, tecer algumas reflexões sobre a
experiência mais ampla do antifascismo de origem italiana no local especifico da
Capital Federal durante a conjuntura considerada.
1. Uma primeira série de observações pode ser feita a respeito da atuação e das
tentativas de inserção de cada um dos três investigados no contexto da luta do
antifascismo italiano. Numa inicial aproximação salta aos olhos o acento diferente em
abraçar os caminhos do antifascismo militante: entre Scarrone, membro da emigração
anterior à eclosão do fascismo na Itália, e Garavini e Battistelli, forçados ao exilio nos
anos da mais forte repressão do regime (1926-27), há um salto geracional e ao mesmo
tempo experiencial. A diferença, então, não passa somente pelo dado anagráfico, com o
socialista pertencendo à geração anterior à de Nello e Libero, mas também pelo
diferente tipo de percepção do fascismo que é vivenciada: enquanto os dois mais novos
advertem características e aspectos do fenômeno por experiência direta, tendo que
conviver por alguns anos na Itália com ele e atribuindo o exilio à necessidade de se
retirar diante de suas ameaças, para o socialista, o fascismo e suas pretensões ditatoriais
são fruto de uma experiência indireta, mediada por informações recebidas, ou só
parcialmente direta, nos termos de uma censura postal sofrida em primeira pessoa.
Isto não significa uma menor ou menos intensa ação por parte de quem, como Scarrone,
não se deparou diretamente com as violências e as ilegalidades perpetradas pelas
esquadras em camisa negra: a força com a qual o velho empresário rascunha e imprime
seus libelos o coloca no mesmo plano de intensidade dos escritos de Battistelli e das
redes de solidariedade alimentadas por Garavini. Mas nas entrelinhas é percebível uma
diferença de registro. A oposição de Giuseppe a Mussolini e à sua construção aparenta
olhar mais para o passado do que para o futuro, diferentemente, por exemplo, do caso de
Libero. Scarrone é socialista, aprendeu os princípios da doutrina de forma pragmática e
factual, no dia-a-dia, sem escolas de partido, sem muita convivência com os âmbitos
próprios da dizer e do fazer da politica. E vivenciou os princípios do socialismo nas
experiências de cooperativas que tentou realizar ainda no final do século XIX e na
263
alvorada do XX. Ele pertence a um tempo no qual Mussolini, e vários de seus futuros
colaboradores ou ministros, eram socialistas como ele, empenhados nas mesmas
batalhas, como os mesmos instrumentos, à luz dos mesmos ideais. Dai a atitude
inconformada diante das pretensões e realizações do fascismo naquela Itália da qual é
ausente há dez ou quinze anos, mas na qual lutara muitas décadas para a realização de
uma experiência alternativa à exploração do operário por parte do capital. O fascismo se
mostra aos seus olhos mais como uma traição daqueles ideais antigos do que como uma
novidade politica a ser interpretada e combatida. Suas análises do fenômeno, inclusive,
denotam uma reflexão politica não muito elaborada e ancorada a uma leitura simplista
do mesmo, visto como fato passageiro, que será quanto antes derrotado (ao menos esta é
a leitura que prevalece nos primeiros anos de sua produção), ou como a reapresentação,
com novos trajes, da antiga opressão das classes superiores e possidentes sobre as
classes laboriosas.
Scarrone olha, então, para o passado para interpretar o presente, pesca em sua
experiência de anos de tentativas socialistas a chave de leitura e assim também o
registro de suas acusações e de suas propostas politicas: um socialismo “retrogrado”, ou
“limitado”, como ele mesmo o define, mas que construiu sua história pessoal e de
trabalho. Auto exilado para o Rio de Janeiro, justamente por não encontrar mais espaço
em sua pátria para a realização desse socialismo, e sem muitas esperanças de poder
voltar à pátria, tanto pela idade quanto pela atividade implementada no Brasil, sua
imaginação de um futuro para a Itália pós fascista não passa da reproposição do mundo
anterior a ele, sobretudo daquela tentativa de moldar a sociedade italiana que o partido
socialista colocara em ato na primeira década do século, quando parecia que o sol da
nova era estivesse bem próximo de surgir.
Definir de naïf sua forma de encarnar a luta e a militância antifascista pode soar um
tanto irreverente, e o termo pode não constituir uma categoria historiográfica adequada,
mas talvez ajude a resumir suas características de fundo: escassa elaboração politica,
primitivos esquemas interpretativos, elementares propostas de resistência, tudo unido,
porém, a uma permanente e admirável vontade acusatória, e a uma inteligente utilização
de espaços de propaganda. Deste ponto de vista, a atuação de Scarrone merece
destaque: a longa presença como anunciante, único do Rio de Janeiro, nas colunas do
semanal La Difesa, a série de opúsculos e cartas abertas dirigidas ao regime e a sentença
que o atingiu, entre os primeiros contemplados pela nova lei contra os fuorusciti, tornam
264
seu antifascismo singular no âmbito da coletividade italiana da Capital Federal, e, de
certo modo, do Brasil inteiro. Até seu aparente individualismo nas formas e
metodologias de atuação há de ser matizado: tanto pela sua constante participação da
vida do periódico do antifascismo, quanto pela presença em associações (pelo menos na
Lidu) e pelas relações de amizade e colaboração com alguns expoentes do mundo
antifascista, como Frola, Petraccone, Ferrero, ou o próprio Battistelli, em algumas
ocasiões. A caracterização de Scarrone, na esteira dos estudos de Darnton, como um
intelectual de segundo escalão, como um divulgador, um libelista, reprodutor de um
discurso em parte original e em parte oriundo de outras fontes, pode ajudar a situar seu
antifascismo no âmbito mais amplo da colônia italiana no Brasil: seus escritos, que têm
endereços italianos como alvo principal, acabam difundidos também nos circuitos
nacionais, entre os compatriotas emigrados, alimentando um ideário e contribuindo para
uma espécie de contrainformação. Único libelista entre os italianos da colônia com uma
produção tão rica e contínua, Scarrone, autodidata e editor independente, pertence a
uma intelectualidade underground que empenhou não pouco os órgãos de controle e
vigilância do regime fascista.
Ambicioso e ao mesmo tempo utópico, o esforço de Scarrone em sua luta contra o
Behemoth fascista (para usar uma expressão de Franz Neumann)? Se assim afirmarmos,
devemos declarar ambiciosa e utópica também toda a luta do antifascismo,
particularmente a do exilio, baseada na reiteração de uma condenação, na busca de
consensos e apoios para a mesma, na negociação de acordos com as forças politicas dos
países de acolhida, e na tentativa da conquista da opinião pública tanto emigrada quanto
estrangeira. Uma luta que até na França, a nação onde a emigração antifascista teve um
peso claramente superior ao de qualquer outro país de acolhida, se debateu por anos em
tentativas e esforços de derrubada do regime de Mussolini aparentemente utópicos, e
sem resultados. Pode-se deixar para mais para frente uma conclusão sobre esse aspecto
dos esforços e dos eventuais fracassos do antifascismo italiano no Brasil. Numa
comparação com Scarrone e suas realizações, porém, podemos olhar agora para a figura
de Battistelli, analisado na terceira parte do trabalho. Pelo enfoque assumido como
ponto de partida para rever o percurso de Giuseppe, a trajetória de Libero tem um perfil
diferente, não somente pela diferente experiência do regime de Mussolini por ele vivida,
mas sobretudo pela preocupação principal que parece caracteriza-lo.
265
Republicano de formação, em seguida expoente do movimento de Giustizia e Libertá,
Battistelli transita pelos ambientes do fuoruscitismo com liberdade e autoridade. Sua
visão do fascismo, e de consequência, da luta ao mesmo, diferentemente daquela de
Scarrone, o projeta para o futuro: tanto pela aberta crítica dos partidos existentes (até
sua militância no PRI se deve mais ao fascínio pela coragem de um dos lideres, Mario
Bergamo, do que a uma sintonia ideológica), cuja reapresentação tout court no pós
fascismo seria, segundo ele, impensável, quanto pela convicção que à queda do regime
deva seguir algo completamente novo, nos termos de um movimento revolucionário
capaz de promover uma sociedade igualitária e livre. E é a isso que ele dedica energias
física e intelectuais: à identificação dos percursos de uma autêntica revolução italiana
(num país que não assistira a movimentos revolucionários com raízes profundas na
sociedade, como aconteceu na Inglaterra, França ou Estados Unidos, nem a um
fenômeno qual foi a Reforma protestante na Alemanha, que a uma revolução podia ser
assimilado), à elaboração de um projeto de sociedade futura para seu país, ao
mapeamento da personalidade e do caráter do revolucionário, sobretudo focando no
papel dos lideres, dos dirigentes, dos intelectuais, ou, como ele os chama, dos fuori
classe.
O dele é um antifascismo que ataca o inimigo pelos crimes cometidos, em primeiro
lugar a supressão da liberdade e a traição da justiça. Essas duas palavras acompanham o
percurso de Libero desde o começo, desde os anos italianos, e aparecem como leit motif
em seus numerosos artigos para os periódicos dos quais é colaborador, até curiosamente
se condensar nas palavras-titulo do agrupamento do qual começa a participar, na década
de 1930. Um empenho, o dele, que o coloca, mais que Scarrone e o próprio Garavini,
nas malhas da mais ampla rede do antifascismo internacional: sua ida à França em 1930,
suas correspondências com expoentes de GL, particularmente com o próprio líder Carlo
Rosselli, assim como com socialistas, como Nenni, republicanos (Bergamo, Montasini)
e até anarquistas, como Berneri ou Fabbri, ou comunistas, como Rosini, testemunham
da vontade de dialogar e entender, para construir. Battistelli se caracteriza, como foi
visto amplamente na parte a ele dedicada, por sua capacidade de escuta do outro e de
diálogo, a ponto de se sentir, antes, republicano sui generis, com simpatias para o
socialismo e o anarquismo, e, mais tarde, membro sui generis de GL, com aberturas
para o comunismo. Sem os enrijecimentos ou as gaiolas de uma fórmula politica ou da
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pertença a um partido: a parte (isto é, o empenho contra o fascismo), chega a dizer numa
circunstância, conta para ele mais que o partido.
Sua influência no âmbito da colônia italiana antifascista da Capital Federal será vista em
seguida, mas seu percurso pode ser aqui identificado como o mais significativo entre os
de todos os antifascistas que atuaram na cidade. Tanto por sua produção intelectual (de
La Difesa, do qual é de longe o colaborador “carioca” mais assíduo e relevante, a outros
periódicos brasileiros ou latino-americanos, até as várias revistas e folhas do
fuoruscitismo na Europa), quanto por seu protagonismo no mundo associativo do Rio de
Janeiro, sem contar a decisão de engajamento na luta do antifascismo na guerra civil
espanhola, que o torna único neste sentido. Sem querer retirar o valor de personalidades
como Frola ou Piccarolo, ou até Mariani, principalmente atuantes na capital paulistana,
a figura de Battistelli tem uma importância e um significado muito relevantes, entre os
antifascistas italianos em ação no Brasil naquelas décadas.
Quanto a Nello Garavini, seu antifascismo o aproxima por alguns aspectos de
Battistelli, no que se refere à conjuntura de sua saída da Itália e à comparticipação de
algumas redes alimentadoras da resistência (da Liga Anticlerical a certos circuitos
antifascistas latino-americanos), e por outros de Scarrone, por sua fidelidade a uma
orientação ideal e política durante todo o período da luta. O anarquismo, neste sentido,
constitui o fulcro da posição de Nello (e de sua esposa Emma), seja nos primeiros anos,
quando frequentações libertárias acontecem no âmbito da Liga Anticlerical ou junto ao
amigo Fabbri de Montevidéu, como anos depois, inspirando sua atividade editorial. Um
antifascismo, então, que se alimenta através das publicações recebidas de vários centros
mundiais do anarquismo, assim como através de correspondências. Um antifascismo,
contudo, que, devido a sua origem ideológica, tem a busca de solidariedades na área
libertária como sua preocupação fundamental.
Por esta mesma razão, a contribuição anarquista no contexto do antifascismo sempre
ficou na periferia do mesmo, tanto no Brasil como na França, por exemplo, um dos
motivos sendo, também, o fato dela não se enquadrar nas alas de um partido ou de uma
organização unitária. Além disso, o surgimento dos partidos comunistas, seções
nacionais da Terceira Internacional, e sua subtração de militantes das fileiras libertárias
contribuiu para o recuo do anarquismo, e foi provocando frequentes embates entre as
duas realidades. Os confrontos dialéticos e ideológicos entre anarquistas e comunistas
267
na Espanha da guerra civil representam a ponta mais evidente de um embate entre duas
tradições e orientações: os choques sangrentos das jornadas de maio de 1937, em
Barcelona, são o momento mais trágico de uma divisão no corpo do antifascismo
militante.
Deste ponto de vista, todavia, o percurso de Garavini permite o registro de pelo menos
duas conotações que o tornam diferente: a primeira é a significativa produção, no
âmbito de sua editora, de títulos que abrem para uma área mais genericamente de
esquerda, incluindo contribuições oriundas do bolchevismo; a segunda se refere à
colaboração de Nello com antifascistas de outras orientações ideológicas, sobretudo na
conjuntura pós-1942. Um anarquismo, então, que se abre, ainda que parcialmente, para
outros horizontes de experiência (sendo, contudo, o apoio aos instrumentos do
pensamento libertário a preocupação principal, documentada pelo fato de Garavini
participar de forma mínima das subscrições de La Difesa, e ao contrario contribuir
generosamente com o periódico anarquista Studi Sociali, publicado em Montevidéu).
2. Um segundo âmbito de considerações se refere aos laços estabelecidos pelos três
percursos com os âmbitos do antifascismo local, nacional e internacional. Mesmo não
sendo exatamente círculos concêntricos, podemos pensar numa estrutura grosso modo
análoga. O primeiro círculo sendo representado pelo antifascismo da colônia italiana da
Capital Federal, um segundo pelas presenças e manifestações do antifascismo brasileiro
e o terceiro por sua dimensão internacional.
Na delineação dos três itinerários político-existenciais, uma preocupação constante do
trabalho foi a de reconstituir, mesmo que de forma mínima, o contexto do mundo da
comunidade italiana do Rio de Janeiro, apontando o olhar particularmente sobre a
componente antifascista da mesma, assim como os laços com os outros dois âmbitos
acima indicados. Na segunda parte, foram enfatizados sobretudo os primeiros anos e as
primeiras tentativas, assim como os primeiros protagonistas; na terceira parte, os anos
centrais de 1927 a 36, e na quarta, o tempo do Estado Novo e a conjuntura da guerra.
Nesses mesmos âmbitos se inserem os três investigados, cada um com suas
características.
Scarrone, embora com seu singular percurso de enfrentamento do regime fascista, não
deixa de se inserir numa trama de relações, sobretudo no âmbito da Lidu, da própria
Maçonaria, e de tentativas como a criação de uma sociedade gráfica, provavelmente
268
para a difusão de impressos antifascistas, ainda na década de 1920. Scala, Infante e
outros são os nomes que acompanham suas andanças, assim como em seguida ele
entrelaçará relações de amizade e colaboração com o próprio Frola, Petraccone e
Ferrero. Há um registro de aproximação com Battistelli, provavelmente devido à
frequentação comum da Lidu carioca. Dos três é o que menos parece ligado ao mundo
do antifascismo internacional, embora isso se deva a sua mais antiga chegada em terra
brasileira, antes das ondas migratórias provocadas pelas leis fascistíssimas. Quanto a
laços com o circulo intermediário, há poucos elementos disponíveis, praticamente só a
proximidade com expoentes do socialismo local, como Evaristo de Morais. Seja na
conjuntura de 1933-35, como em tempos mais tardios, quando da retomada do
antifascismo italiano em 1942, a contribuição de Scarrone, desse ponto de vista, não
apresenta registros significativos.
Completamente diferente é o caso de Battistelli. A delineação de seu percurso permite
acompanhar os anos centrais (1927-1936) do itinerário do antifascismo italiano no Rio
de Janeiro. Libero está no centro do debate e das iniciativas, tanto na questão da Societá
Italiana di Beneficienza, quanto no surgimento ou na criação de siglas e organizações. E
isso tanto no mais restrito âmbito da colônia quanto no mais largo da sociedade carioca.
Intervenções na imprensa, participação de eventos e palestras, amizades com expoentes
de setores de esquerda da cidade constituem partes de seu percurso, até o ano de 1930.
Nomes como os de Limongi, Itria, Mariani, Rosini, o próprio Scala, acompanham os
passos de Libero e se destacam na proposta antifascista do período. A crise no periódico
La Difesa, com a saída de Frola, contudo, questionando os rumos do antifascismo
italiano no Brasil, atingem sua militância, que não diminui, mas se orienta para um
período de maior reflexão e pela instauração de um debate aberto com o antifascismo
italiano espalhado pelo mundo. Continuam vivos os laços com o antifascismo de matriz
brasileira (Liga Anticlerical, Associação Antifascista), embora este encontre suas
realizações mais significativas nos anos entre 1933 e 1935, com a Frente Única
Antifascista, em São Paulo, os comitês antiguerreiros e a sucessiva criação da ANL. A
esta altura, Battistelli, até alguns anos antes tão ativo e empenhado, parece buscar um
tempo de reflexão e reconsideração, mesmo se destacando com algumas presenças no
campo da editoria e com o apoio a intelectuais brasileiros ameaçados pela repressão do
governo Vargas após o levante de 1935. A conjuntura da guerra na Espanha, no ano
seguinte, o vê protagonista, e plenamente inserido no debate e nos embates do
269
antifascismo mundial. A memória de seu testemunho acompanhará os antigos
companheiros, quais Petraccone e seus colaboradores, em suas tentativas e esforços
durante os tempos difíceis do Estado Novo.
A inserção de Libero no âmbito da rede antifascista internacional é evidente, como foi
dito acima. Aqui, em forma de síntese, tem que ser registrada a que se mostrou, a nosso
ver, como a mais preciosa contribuição e indicação metodológica e pragmática dele para
o presente e o futuro do empenho do antifascismo: o frequente convite a uma
experiência de luta unitária, capaz de valorizar a contribuição de cada um, e alheia
sobretudo a preclusões politico-ideológicas. Mais ainda, ele indicava uma metodologia
de trabalho no percurso de qualquer âmbito de antifascismo, de qualquer lugar onde se
encontrassem expoentes, mesmo de diferentes orientações politicas, válida tanto para a
realidade parisiense como para outras: a prática de um diálogo buscado e exercido
constantemente, através de encontros frequentes, diários, informais, voltados a criar
uma proximidade e intimidade entre os antifascistas do local. Isto ele experimentara na
realidade do Rio de Janeiro, sobretudo na década de 1930, mesmo com o grupo dos
antifascistas cariocas reduzido a poucas unidades. Fosse a editora de Petraccone o ponto
de referência, ou a de Garavini ou ainda um ou outro local de encontro, esta pequena
mas significativa prática de confronto e alimentação do ideário antifascista
provavelmente permitiu à pequena realidade carioca de não desmoronar diante das
dificuldades da luta e, mais tarde, das investidas da ofensiva varguista contra o
comunismo. Aproximar essa tentativa daqueles âmbitos onde se alimenta o pensamento
de um grupo de intelectuais, sejam eles a redação de uma revista ou um jornal ou uma
editora, e que Sirinelli chama de “estruturas de sociabilidade” ou de “microclimas”,
parece perfeitamente plausível, assim como caracterizar Libero como uma autêntica
figura de intelectual, segundo as indicações do próprio historiador francês. A mesma
prática de colaboração, Battistelli perseguiu durante o conflito na Espanha, com alternos
resultados, mas sempre buscando um diálogo com anarquistas e socialistas,
republicanos e gielistas, e até com comunistas (aliás, foi justamente o desejo de mostrar
como GL estivesse disposta a participar do esforço da coluna italiana promovida por
socialistas e comunistas que o levou a aderir à mesma).
O anarquista Garavini também se insere em circuitos mais amplos. Do ponto de vista
internacional, jornais recebidos alimentam o ideário, cartas permitem trocas de
experiências, assim como a frequentação de expoentes libertários brasileiros, italianos e
270
de outras nacionalidades, presentes na Capital Federal, sobretudo no âmbito da Liga
Anticlerical, favorecem o permanecer de um empenho no âmbito do anarquismo. Laços
com expoentes antifascistas italianos de outras orientações também estão presentes em
seu percurso. Talvez a mais significativa forma de colaboração com forças e expoentes
da esquerda nacional antifascista acontece a partir da experiência da livraria e da
editora, assim como, em meados da década de 30, a proximidade com Battistelli e o
núcleo antifascista ao redor dele cimenta laços no âmbito da comunidade de língua
italiana. Confirmados, negados ou reinventados, esses laços se manifestarão no começo
da década de 40, quando da retomada do antifascismo italiano, em ocasião da decisão
brasileira de lutar contra o Eixo. Então, nomes como Garritano, Cingolani, Peotta,
Maddalena, Agnesini, anarquistas alguns, de outras filiações a maioria, estarão do lado
de Nello, na tentativa de mostrar para a sociedade carioca e a nação brasileira que havia
antifascistas que não se enquadravam na proposta filo-americana da Mazzini Society e
de seus representantes no Brasil, os Italiani Liberi. O registro, afinal, de uma presença
com um rosto mais identificado com a componente de esquerda da coletividade italiana
do Rio de Janeiro.
Ainda no contexto das considerações finais sobre os laços entre os três italianos e os
ambientes do antifascismo nacional, particularmente no tempo em que esse último
estava mais atuante e militante, isto é, após 1933 e até finais de 1935, não há registros
particularmente significativos de apoio ou encontro entre a realidade italiana e a
brasileira, no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro. Enquanto em São Paulo, há a
significativa colaboração entre expoentes e grupos antifascistas italianos (Frola, Rosini),
por exemplo, na criação da FUA, (ainda que esta organização tenha duração efêmera),
na Capital Federal, com exceção de algumas tentativas, sobretudo em 35, de presença
nos periódicos da cidade, envolvendo o próprio Battistelli, os canais de comunicação e
colaboração são quase inexistentes ou pelo menos sem registros documentais.
Com Bertonha, então, concluímos que também no caso do antifascismo italiano da
Capital Federal, os laços entre ele e o mundo politico nacional foram precários e fracos,
de qualquer forma incapazes de sustentar e consolidar uma experiência. Em que medida
esses laços foram buscados, construídos ou alimentados pelos italianos, ou, porventura,
por eles negligenciados, e em que medida foram impedidos de se estreitar por julgar, a
comunidade politica brasileira, que a do antifascismo fosse uma batalha unicamente
271
italiana, é questão a respeito da qual a documentação pesquisada torna difícil uma
resposta categórica.
3. Scarrone, Battistelli e Garavini articulam também sua atuação antifascista com uma
inserção no tecido socioeconômico da Capital Federal. A esse respeito, a presença de
Battistelli é mais discreta: advogado brilhante na Itália, sua atuação no mesmo âmbito
sendo praticamente impossível no Brasil, se dedica aqui à atividade de jornalista,
ensaísta e militante do antifascismo. Apoiando-se economicamente em recursos
próprios e na atividade da esposa, chega a ser proprietário de uma pequena fazenda em
Mangaratiba, mas a impressão é que, do ponto de vista de um compromisso
profissional, mente e projetos dele estejam em outro lugar.
Quanto a Scarrone, ele torna efetiva no Rio de Janeiro aquela empreitada que sempre
desejou concretizar em seus anos italianos: uma fábrica através da qual produzir vidro,
ensinar uma arte e ao mesmo tempo realizar uma repartição da riqueza gerada, em nome
dos ideais socialistas e cooperativistas alimentados desde jovem. A Fábrica Nacional de
Vidros chega a dar trabalho a 500 funcionários, mas a tentativa de partilha dos lucros,
parcialmente realizada no começo, esbarra em exigências trabalhistas e regulamentações
legislativas que a tornam inviável, nos termos em que Giuseppe a tinha concebido. O
sonho do paesano - conquistar um lugar na elite econômica da sociedade e assim poder
repartir a riqueza entre os produtores da mesma - permanece um sonho, então, só
parcialmente realizado. Sua indústria, porém, se estabelece no cenário municipal e
nacional, como uma das mais importantes do setor, e sua dedicação profissional, sua
figura de empresário, encontram reconhecimento e consideração no âmbito da cidade.
Sua contribuição para a sociedade carioca, além da permanente voz levantada contra as
injustiças, as inverdades e as ilegalidades perpetradas pelo fascismo e pelos fascistas, na
Itália como no Brasil, se consagra a partir do estabelecimento que, junto com seus
irmãos, contribuiu a criar, paixão de uma vida e tentativa de construção de um mundo
menos desigual.
A Minha Livraria, realização comercial de Garavini, tem vida breve. Menos de uma
década, entre os anos do crescimento dos movimentos de esquerda nacionais (1933-35)
e o refluxo do antifascismo para posições de defesa e de espera, debaixo do olhar
controlador e ameaçador do Estado Novo varguista. Quando o clima politico parece
fazer-se mais tranquilo, devido a um possível e esperado (mas nunca ocorrido) apoio do
272
governo à presença de italianos desde sempre em luta contra o fascismo, Garavini,
talvez cansado de perquisições e investigações, assim como do clima de suspeita
cercando todos os italianos indistintamente, ou simplesmente devido a algum tipo de
dificuldade financeira com o negocio, já tem encerrado a atividade comercial. Dela,
permanecem tanto a publicação de títulos significativos, a maioria em sua primeira
edição absoluta no Brasil, sobretudo de literatura anarquista ou de esquerda, quanto a
manutenção de um ponto de venda no centro da cidade que é também local de encontro,
de trocas culturais e politicas, de alimentação de um ideário antifascista. Pequeno, mais
tarde vigiado e controlado, mas espaço de liberdade e de resistência.
4. Algumas considerações merece nesta sede a questão, levantada por Trento e Bertonha
em diversos estudos deles, e que atravessa de forma transversal também este trabalho,
do assim chamado “fracasso” do antifascismo italiano no Brasil, isto é, sua
incapacidade, de um lado, em conquistar adesões e simpatias no âmbito da colônia de
compatriotas e, do outro, de se colocar com resultados significativos no contexto da
sociedade nacional. Concordamos na análise dos fatores que levaram a uma relativa
debilidade da proposta do antifascismo de origem italiana, sobretudo quando se aponta,
como explicação, para a já mencionada dificuldade em criar e manter sólidos pontos de
contato e solidariedade com o mundo antifascista nacional, por sua vez causada
também, após 1935, pelo forte clima repressor instaurado no país.
O que parece importante, contudo, é, mesmo assinalando essa situação, nos
perguntarmos se a categoria do fracasso seja adequada para descrevê-la do ponto de
vista historiográfico. A pergunta vale não somente para o caso brasileiro, mas também
para toda experiência de emigração politica antifascista de origem italiana naquele
período: o próprio caso da França, para ficar no mais importante, mostra evidentemente
como a longa luta contra o fascismo, conduzida naquela nação, mesmo com um apoio
da opinião publica e das organizações de esquerda locais bem maior do que no caso
brasileiro, acabou em escassez de resultados e abandono de muitas propostas politicas
de resistência. O presente trabalho, partindo do ponto de observação da realidade do
Rio de Janeiro, revela como os antifascistas italianos encontraram dificuldades de
natureza variada para alimentar e sustentar suas propostas e realizações, em parte
devidas a seu próprio meio (escassez de instrumentos, reduzido número de militantes
ativos, dissensões), em parte devidas à resistência do contexto local e nacional em ouvir
sua voz. Isto levou a movimentos pendulares em sua atuação, ora com o multiplicar-se
273
de iniciativas e siglas, ora com evidentes recuos. Da mesma forma, assinalou-se como,
em alguns casos, os tempos longos do embate com o inimigo, estabelecido como um
regime que conquistava popularidade e consensos tanto na pátria como junto aos
governos e opiniões publicas estrangeiras, provocou não poucas desistências nos meios
antifascistas.
Há aqui de se perguntar, contudo, como avaliar esses aparentes fracassos da proposta.
Podemos fazê-lo, nesta sede, a partir dos percursos analisados, de Scarrone, Battistelli e
Garavini, comparados também com os dos outros antifascistas que acompanharam seus
caminhos no Rio de Janeiro daqueles anos. Para os três, assim com para muitos dos
outros, pode-se falar de muitos momentos de frustração, desânimo, até reavaliação de
propostas e instrumentos, nunca de abandono de uma tentativa de luta. Neles,
certamente havia a consciência das dificuldades dela. Afinal, o próprio fato de ter que se
exiliar para sobreviver e resistir, era por si só uma experiência de “fracasso”. Somada a
isso, havia a dificuldade em conquistar os membros da coletividade italiana no exterior,
a cujos ouvidos a propaganda fascista chegava com força, veiculada na realidade da
Capital Federal pelos órgãos da diplomacia aqui presentes.
Contudo, pelos itinerários estudados, mesmo com as dificuldades assinaladas, o que
permanece é a impressão de uma consciência que se alimentava, até de eventuais
fraquezas e fracassos. É difícil determinar como e quanto a ação e o testemunho dos três
antifascistas tenha contribuído em sustentar luta e resistência ao fascismo no restante da
colônia italiana do Rio de Janeiro, nos meios políticos nacionais ou até na própria pátria
deles. Mas talvez até de “fracassos”, como o cerceamento aos opúsculos de Scarrone e
sua condenação pela justiça italiana, o controle, as perquisições e a restrição dos
espaços para a livraria de Garavini e até a morte na linha de fogo de Battistelli numa
guerra que nunca seria vencida pelo antifascismo, até desse tipo de fracassos a luta e o
esforço dos antifascistas se alimentava, no Brasil como em outras partes do mundo.
5. “Reconstruir a curva de um destino”, foi falado mais acima para descrever a tentativa
de mapear aqui percursos e empenhos dos militantes do antifascismo. É o que se tentou
fazer com os três percursos principais, e em forma menor, com os outros. De Luna, mais
uma vez, vem em nossa ajuda, dando voz a uma dificuldade sempre percebida ao longo
da pesquisa e da redação final: de um lado, havia a vontade contínua de delinear
quadros coletivos que oferecessem certezas interpretativas, com seguras margens de
274
conhecimento científico, do outro, a surpresa de se deparar com uma rede de vividos e
escolhas subjetivas, transmitida pela multiplicidade das fontes pesquisadas. A solução,
se uma solução pode haver diante deste tipo de problema, que é o de conciliar a
pluralidade dos casos e das experiências pessoais com a exigência de uma síntese que
reconduza a uma unidade a trama das experiências, talvez esteja, como num problema
de física, na busca da “resultante” do sistema de forças que atuam num mesmo corpo.
Buscar e tentar descobrir essa “resultante” ao final de nosso itinerário, após a leitura e a
análise de tantos caminhos pessoais, talvez possa nos restituir uma identidade coletiva
do antifascismo italiano em ação.
Afinal de contas, como comenta Sirinelli numa recente entrevista, ao contrario da
militância, pela qual há o bom e o mau, a história exige um trabalho que compreenda a
complexidade. Pois a realidade restituída pelo historiador, por definição, é sempre
complexa. Isso foi percebido ao longo da pesquisa: o esforço foi, então, mesmo não
podendo deixar de simpatizar com nossos investigados e sua luta, tentar reconstruir
termos e dimensões daquela complexidade.
275
ACERVOS E BIBLIOGRAFIA
Acervos pesquisados
Italia
Archivio Centrale dello Stato (ACS) – Roma
Archivio Storico Societá Dante Alighieri – Roma
Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB) – Castel Bolognese
Fondazione Giangiacomo Feltrinelli (FF) – Milão
Biblioteca Comunale Centrale (Sormani) – Milão
Istituto per la Storia del Movimento di Liberazione in Itália (INSMLI) – Milão
Istituto Piemontese per la Storia della Resistenza e della Societá Contemporanea
(ISTORETO) – Turim
Istituto Storico Parri – Bolonha
Istituto per la Storia della Resistenza e della Società Contemporanea nella Provincia di
Bologna (ISREBO) – Bolonha
Istituto Storico della Resistenza in Toscana (ISRT) – Florença
Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze (BNCF) – Florença
Brasil
Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro (ICIB) - São Paulo
Projeto Integrado do Arquivo Público do Estado e da Universidade de São Paulo
(PROIN) – São Paulo
Arquivo Nacional (AN) – Rio de Janeiro
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) / Delegacia de Ordem Política e
Social (DOPS) - Rio de Janeiro
Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ) – Rio de Janeiro
Biblioteca Nacional (BN) – Rio de Janeiro
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – Rio de Janeiro
Istituto Italiano di Cultura (IIC) – Rio de Janeiro
276
Fontes primárias
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Opúsculos
Dopo un anno di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1923.
Comemorando il 2º anniversario di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1924.
La Libertá. Rio de Janeiro, 1924.
Onorevole Giacomo Matteotti. Nel 1º anniversario del suo assassínio. Rio de Janeiro,
1925.
Il terzo anno di governo fascista in Italia, mentre hanno paura di um morto. Rio de
Janeiro, 1925.
Note, Memorie e Commenti sul governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1925.
Fábrica Nacional de Vidros. Rio de Janeiro, 1926.
La mia difesa. Rio de Janeiro, 1926.
Inventario dei quattro anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1926.
Dopo 5 anni di domínio fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1927.
1º maggio 1927. Rio de Janeiro, 1927.
A Benito Mussolini. Lettera aperta. Rio de Janeiro, 1927.
Come si rivendicano gli uomini. Rio de Janeiro, 1927.
L’azione del governo fascista e dei suoi organi ordinari e straordinari e la situazione
degli italiani all’estero e degli italiani in Brasile in particolare. Rio de Janeiro,1928.
Nel quarto anniversario dell’assassinio di Giacomo Matteotti. Rio de Janeiro, 1928.
Dopo 6 anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1928.
Almanacco Antifascista pel 1929. Rio de Janeiro, 1929.
Aprite le porte al lavoro!. Rio de Janeiro, 1929.
Catálogo da Fábrica Nacional de Vidros. Rio de Janeiro, 1929.
Decimo anniversario della fondazione dei fasci di combattimento in Italia. Rio de
Janeiro, 1929.
Undici anni di partito fascista e sette di governo ossia l’ultima fase del trasformismo al
governo d’Italia . Rio de Janeiro, 1929.
Lettera aperta agli antifascisti. Rio de Janeiro, 1931.
Il Brasile. Le sue grandezze, La sua produzione e l’industria del vetro. Rio de Janeiro,
1932.
277
Dopo 15 anni di partito e 11 di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1933.
Mussolini non sbaglia mai!. Rio de Janeiro, 1933.
Fasi dell’opera di Mussolini. Rio de Janeiro, 1934.
Anita e Giuseppe Garibaldi, dopo 85 anni dalla morte dell’una e 52 dell’altro.
Reminiscenze e confronti. Rio de Janeiro, 1934.
Prendendo congedo dalla política attiva. Rio de Janeiro, 1935.
O incêndio na Fábrica Nacional de Vidros. Rio de Janeiro, 1936.
L’incendio nella Fabbrica Nazionale di Vetri. Rio de Janeiro, 1936.
Giuseppe Scarrone nelle sue memorie. Rio de Janeiro, 1937.
A Revolução na indústria vidreira ou a indústria do vidro no Brasil (vários opúsculos).
Rio de Janeiro, 1938-1942.
Cartas
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Para Camillo Berneri.
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C) Nello Garavini
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