Garcia, O. 2007. Comunicação em prosa - Rodrigo Cantu

Transcrição

Garcia, O. 2007. Comunicação em prosa - Rodrigo Cantu
O T H O N
DA
ACADEMIA
M.
G A R C I A
BRASILEIRA
DE
FILOLOGIA
O M U N IC AÇÃO
EM P R OSA
MHDERNA
APRE N D A
A
ESCREVER,
APRENDENDO
2 6 s EDIÇÃO
FGV
EDITORA
A
PENSAR
ISBN — 8 5 -2 2 5 - 0 2 9 6 - X
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Fatim a Caroni
Capa: Tira linhas studio
Ficha catalográfica elab o rad a pela Biblioteca
Mario H enrique Simonsen/FGV
Garcia, Othon M. (Othon Moacyr), 1912-2002 .
Comunicação em prosa m oderna : aprenda a escrever,
aprendendo a pensar / Othon M. Garcia. — 26. ed. — Rio
de Janeiro : Editora FGy 2007
540p.
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Universidade Federal de Pemam
BIBLIOTECA CENTRAL í CIDA
CEP 50.670-901 - Recife - Pemí
Reg. n° 3694 - 09/11/2007
Título COMUNICAÇÃO EM PROSA M
Inclui bibliografia e índice.
1. Com unicação. 2. Língua portuguesa — Gramática.
3. Língua portuguesa — Retórica. I. Fundação Getulio Var­
gas. II. Título.
CDD — 808
Explicação necessária
Este livro, devemo-lo aos nossos alunos, aqueles jovens a quem, no
decorrer de longos anos, temos procurado ensinar não apenas a escrever
mas principalm ente a pensar — a pensar com eficácia e objetividade, e a
escrever sem a obsessão do purismo gramatical mas com a clareza, a obje­
tividade e a coerência indispensáveis a fazer da linguagem, oral ou escri­
ta, um veículo de comunicação e não de escamoteação de idéias. Estamos
convencidos — e conosco um a plêiade de nomes ilustres — de que a cor­
reção gramatical não é tudo — mesmo porque, no tempo e no espaço, seu
conceito é muito relativo — e de que a elegância oca, a afetação retórica,
a exuberância léxica, o fraseado bonito, em suma, todos os requintes esti­
lísticos preciosistas e estéreis com mais freqüência falseiam a expressão das
idéias do que contribuem para a sua fidedignidade. É principalm ente por
isso que neste livro insistimos em considerar como virtudes primordiais da
frase a clareza e a precisão das idéias (e não se pode ser claro sem se ser
m edianam ente correto), a coerência (sem coerência não há legitimamente
clareza) e a ênfase (uma das condições da clareza, que envolve ainda a
elegância sem afetação, o vigor, a expressividade e outros atributos secun­
dários do estilo).
A correção — não queremos dizer purismo gramatical — não consti­
tui m atéria de nenhum a das lições desta obra, por um a razão óbvia: Co­
municação em prosa moderna não é um a gramática, como não é tampouco
um m anual de estilo em moldes clássicos ou retóricos. Pretende-se, isto
sim, unia obra cujo principal propósito é ensinar a pensar, vale dizer, a en ­
contrar idéias, a coordená-las, a concatená-las e a expressá-las de m aneira
eficaz, isto é, de m aneira clara, coerente e enfática. Isto quanto à com uni­
cação.
Mas o título do livro é Comunicação em... "prosa moderna”, m oderna
e não quinhentista ou barroca. Os padrões estudados ou recomendados são
os da língua dos nossos dias — ou daqueles autores que, mesmo já secula­
res ou quase seculares, como um Alencar, um Azevedo ou um Machado,
continuam atuais —, da língua que está nos cronistas do século XX e não
na dos do século XV da dos romancistas, ensaístas e jornalistas de hoje. As
abonações que se fazem com excertos de autores mais recuados — um Viei-
rà. -zn Bemardes. um Matias Aireí
ze expressão eficaz e não de requ
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não das palavras (como é hábiEt
O thon
M.
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♦
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ra, um Bernardes, um Matias Aires — devem-se ao fato de serem amostras
de expressão eficaz e não de requintes estilísticos estéreis. Incluem-se tam ­
bém trechos de alguns “requintados” do nosso tempo — um Rui Barbosa,
um Euclides da Cunha —, mas as razões da escolha foram as mesmas: são
exemplos que se distinguem pela eficácia da comunicação e não pelo mala­
barismo estilístico desfigurador de idéias.
Mas por que esse nosso interesse quase obsessivo (esses “ss” resso­
nantes, por exemplo, não constituem uma daquelas virtudes de estilo tão
consagradas pelos manuais...) pelo teor da comunicação com aparente des­
prezo pela sua forma? Forma e fundo, como sabemos... Bem, não há ne­
cessidade de desenvolver isso. Mas a verdade é que um a das característi­
cas de nossa época, uma das fontes ou causas das angústias, conflitos e
aflições do nosso tem po parece que está n a complexidade, na diversidade
e n a infidedignidade da comunicação oral ou escrita, quer entre indiví­
duos quer entre grupos. Sabemos dos mal-entendidos, dos preconceitos, das
prevenções, das incompreensões e dos atritos resultantes da incúria da ex­
pressão, dos seus sofismas e paralogismos. São as generalizações apressa­
das, as declarações gratuitas, as indiscriminações, os clichês, os rótulos, os
falsos axiomas, a polissemia, a polarização, os falsos juízos, as opiniões
discriminatórias, as afirmações puras e simples, carentes de prova... En­
fim, linguagem falaciosa, por malícia, quando não por incúria da ativida­
de mental, ou por ignorância dos mais comezinhos princípios da lógica. Es­
ses óbices ou barreiras verbais e mentais impedem ou desfiguram total­
m ente a comunicação, o entendim ento entre os homens e os povos, sendo
não raro causa de atritos e conflitos.
Em face, pois, desse aspecto da linguagem, é justo que nós professo­
res nos preocupemos apenas com a língua, que cuidemos apenas da gra­
mática, que nos interessemos tanto pela colocação dos pronomes átonos,
pelo emprego da crase, pelo acento diferencial, pela regência do verbo as­
sistir? Já é tem po de zelarmos com mais assiduidade não só pelo polimenzo da frase, m as também, e principalmente, pela sua carga semântica, pro­
curando dar aos jovens uma orientação capaz de levá-los a pensar com
clareza e objetividade para terem o que dizer e poderem expressar-se com
eficácia.
Esse ponto de vista, que nada tem de novo ou de original, norteou a
elaboração de Comunicação em prosa moderna. Em todas as suas dez par­
tes torna-se evidente esse propósito de ensinar o estudante a desenvolver
sua capacidade de raciocínio, a servir-se do seu espírito de observação
para colher impressões, a formar juízos, a descobrir idéias para ser tanto
quanto possível exato, claro, objetivo e fiel na expressão do seu pensam en­
to, e também correto sem a obsessão do purismo gramatical.
Já desde a primeira parte — sobre a estrutura sintática e a feição es­
tilística da frase — , sente-se que a “nossa tornada de posição” é diversa da
tradicional: procuramos ensinar a estruturar a frase, partindo das idéias e
não das palavras (como é hábito no ensino estritam ente gramatical). Esse
m étodo salienta-se sobretudo nos tópicos referentes à indicação das circuns­
tâncias. No que se refere ao vocabulário, procuramos, acima de tudo, orien­
tar o estudante quanto à escolha da palavra exata, de sentido específico.
Tentamos m ostrar — principalmente no capítulo sobre “generalização e es­
pecificação” — a importância da linguagem concreta, não propriam ente a
necessidade de evitar generalizações ou abstrações mas a conveniência de
conjugá-las com as especificações, a importância de apoiar sempre as decla­
rações, os juízos, as opiniões, em fatos ou dados concretos, em exemplos,
detalhes, razões. Semelhante critério adota-se também no estudo do pará­
grafo, que é um a das partes mais desenvolvidas da obra. Isso porque, con­
siderado como um a unidade de composição, que realm ente é, ele pode ser­
vir — como de fato serviu — de centro de interesse e de motivação para
numerosos ensinam entos sobre a arte de escrever.
Mas é sobretudo nas partes subseqüentes à do parágrafo — 4. Com.
— “Eficácia e falácias da comunicação”, 5. Ord. — “Pondo ordem no caos”,
6. Id. — “Como criar idéias", e 7. PI. — “Planejamento” — que mais nos
em penhamos em oferecer ao estudante meios e métodos de desenvolver e
disciplinar sua capacidade de raciocínio. Essas quatro partes representam as
principais características da obra. O desenvolvimento que lhes demos tem,
ao que parece, inteira razão de ser, tanto é certo e pacificamente reconheci­
do que os jovens, por carecerem de suficiente experiência, não sabem pen­
sar. E, se não sabem pensar, dificilmente saberão escrever, por mais gram áti­
ca e retórica que se lhes ministrem. Portanto, se se admite que a arte de es­
crever pode ser ensinada — e pode, até certo ponto pelos menos —, o
melhor caminho a seguir é ensinar ao estudante métodos de raciocínio. Daí,
as noções de lógica — em certo sentido muito elementares — que consti­
tuem, ou em que se baseia, a matéria dessas quatro partes. Mas o leitor
alerta há de perceber que tais noções vêm expostas com certa ousadia e até
com certa indisciplina formalística; é que se tratava tão-som ente de aprovei­
tar da Lógica aquilo que pudesse, de maneira prática, direta, imediata, aju­
dar o estudante a pôr em ordem suas idéias. Não se surpreendam , portan­
to, os entendidos na matéria com a feição assistemática dada a essas no­
ções: não tínham os em mente escrever um tratado de Lógica.
Essas e outras características da obra (convém assinalar, de passa­
gem, a oitava parte, relativa à redação técnica) tornam -na mais indicada a
leitores que já disponham de um mínimo de conhecimentos gramaticais, ao
nível pelo menos da quarta série ginasial. Por isso, acreditam os que Comu­
nicação cm prosa moderna venha a ser mais proveitosa aos alunos do se­
gundo ciclo e, sobretudo, das nossas faculdades de letras, de economia, fi­
nanças e adm inistração. Uma das razões dessa crença está na natureza das
informações relativas à preparação de trabalhos de pesquisa — teses, en­
saios, monografias, relatórios técnicos —, inclusive a docum entação biblio­
gráfica e a mecânica do texto, isto é, a preparação dos originais.
Foi talvez essa orientação referente aos problemas d a comunicação efi­
caz que levou a Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Ge-
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das sugestões do leitor.
O thon
M.
Garcia
♦
9
mlio Vargas a encomendar-nos a elaboração definitiva do livro, quando dele
Eàe apresentamos algumas partes acompanhadas do plano geral, no qual se
nzeram posteriormente algumas alterações de comum acordo com os direto­
res do Serviço de Publicações daquela instituição.
Seria falsa modéstia negar que há neste livro um a considerável con­
tribuição pessoal, quer no seu planejamento quer no desenvolvimento da
matéria. Mas, como não temos o hábito de pavonear-nos com plumagem
alheia, é de justiça reconhecer que a melhor parte destas quinhentas e
poucas páginas é resultado do que aprendemos ou das sugestões que co­
lhemos em abundante bibliografia especializada. Dois ou três dos mais ex­
pressivos exemplos dessa influência revelam-se no tratam ento dado a al­
guns tópicos sobre a estrutura da frase (especialmente o capítulo quarto),
nos exercícios de vocabulário por áreas semânticas — duas lições de al­
guns autores franceses — na importância atribuída ao estudo do parágra­
fo e no que respeita, em linhas gerais, à redação técnica — duas lições de
autores americanos. As demais influências ou fontes de sugestão vêm devi­
dam ente apontadas nos lugares competentes.
Aí estão os esclarecimentos considerados indispensáveis: muitos até
certo ponto explicam, mas nenhum desculpa os defeitos reais ou aparen­
tes da obra. Defeitos graves, de que somos os primeiros a ter, de muitos
deles pelo menos, plena consciência, mas que procurarem os corrigir na hi­
pótese de um a outra edição, principalm ente se contarmos com as bem-vin­
das sugestões do leitor.
Rio de Janeiro, 10 de julho de 1967
Othon M. Garcia
Agradecim entos
Quero deixar aqui meus agradecimentos aos amigos que, de um a for­
ma ou de outra, me prestaram inestimável ajuda no preparo desta obra: a
Délio Maranhão, pelo empenho em vê-la publicada; a Rocha Lima, pelas ju ­
diciosas e proveitosas observações feitas à margem da “Primeira Parte”; a
Jorge Ribeiro, pela leitura atenta e perspicaz que fez da quase-totalidade
dos originais; a Maria José Cunha de Amorim, pelo precioso e gracioso tra­
balho das cópias datilografadas; e aos meus alunos, candidatos ao Instituto
Rio Branco, pelo interesse com que assistiram às minhas aulas e pela dispo­
sição de servirem de cobaia dos métodos com eles ensaiados e agora aqui
postos em letra de forma.
f u F P E B ib li o t e c a C e n t:
Nota sobre a 11§ edicäo
§
Nesta nova edição de Comunicação em prosa modernüy graças à ines­
timável ajuda de meu querido amigo e colega Antônio de Pádua, me foi
possível corrigir recalcitrantes erros que sobreviveram a expurgos anterio­
res. Impunha-se a sua correção, apesar de serem — suponho — irrelevan­
tes e de, por isso, não prejudicarem as características fundam entais da
cbra, que tem tido uma gratificante acolhida do público leitor.
O.M.G.
1 5 /9 /8 3
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Nota sobre a 2 edici
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N ota sobre a 3§ edicão
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Já decorreram sete anos desde que saiu publicada a 1- edição desta
Comunicação em prosa moderna. A imprevista aceitação da obra, que le­
vou, entre outubro de 1969 e junho de 1974, a cinco tiragens da 2- edi­
ção, estava a im por um a terceira, em que não apenas se corrigissem fa­
lhas e erros das anteriores mas tam bém se atualizassem e se ampliassem
vários tópicos, se refundissem alguns e se acrescentassem outros, pois, nes­
ses últimos oito ou dez anos, muitas novidades surgiram no campo da lin­
güística e da comunicação. Entretanto, se, em relação a certos aspectos
particulares, se tornavam necessárias algumas adaptações a essas novas
tendências, em linhas gerais, esta 3- edição de Comunicação em prosa mo­
derna m antém inalteradas as características originais da obra, que conti­
nua fiel ao seu m odesto propósito de ensinar a escrever, ensinando a pen­
sar.
Othon M. Garcia
A presente edição sai um po
uãc quanto a falhas intrínsecas, pe
r-as áe revisão (mais de cem!). Ç
itaa edição em nada difere da pre<
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Dos acréscimos, limitados a<
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ferem à “Generalização e Espedfi
dos fatores mais im portantes da e
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levante para a objetividade e org
ie idéias e, por fim, o tópico 1.5J
rura silogística dedutiva”, in: 6. I<
referente ao parágrafo (3. Par.), n
no da obra, já que seria impossfve
cão ou indução sem ter previamer
rodos de raciocínio, de que trato r
mos são menos relevantes e mais
Entre outras inovações que,
fazer para não aum entar demasiad
de um índice remissivo por ordec
chos citados em língua estrangein
quem peço desculpas por não t a
motivos expostos.
Q uanto aos erros tipográfia
ta, cumpro com prazer o dever de
cimentos a Olavo Nascentes, que
além de erros meus, e a Paulo R á
do com um magnânimo artigo sol
ler com atenção, zelo e benediriní
cicios mas também — e isso é d<
grato — até mesmo a lista biblio;
Nota sobre a 2- edição
A presente edição sai um pouco mais saneada do que a prim eira, se
não quanto a falhas intrínsecas, pelo menos quanto aos desesperadores er­
ros de revisão (mais de cem!). Quanto à estrutura d a obra, entretanto,
esta edição em nada difere da precedente, salvo no que respeita aos acrés­
cimos de alguns tópicos, ao desenvolvimento de outros e à adjunção de
m aior número de notas de rodapé sobre fontes bibliográficas.
Dos acréscimos, limitados ao mínimo indispensável para que a obra
não se avolumasse ainda mais, merecem destaque sobretudo os que se re­
ferem à “Generalização e Especificação” (2. Voc. — 2.0), a meu ver um
dos fatores mais im portantes da eficácia da comunicação, à “Análise” e à
“Classificação” (5. Ord. — “Pondo ordem no caos”), m atéria igualmente re­
levante para a objetividade e organicidade do planejam ento e ordenação
de idéias e, por fim, o tópico 1.5.2.1 — “Exemplo de parágrafo com estru­
tura silogística dedutiva”, m: 6. Id. — aparentem ente deslocado da parte
referente ao parágrafo (3. Par.), mas assim situado em obediência ao pla­
no da obra, já que seria impossível ensinar a desenvolver idéias por dedu­
ção ou indução sem ter previamente esclarecido o leitor a respeito de m é­
todos de raciocínio, de que trato na 4- Parte (4. Com.). Os demais acrésci­
mos são menos relevantes e mais reduzidos.
Entre outras inovações que, embora muito me tentassem , não pude
fazer para não aum entar dem asiadam ente o núm ero de páginas, inclui-se a
de um índice remissivo por ordem alfabética e a tradução de alguns tre­
chos citados em língua estrangeira — ambas sugestões de Paulo Rónai, a
quem peço desculpas por não ter podido levá-las em consideração pelos
motivos expostos.
Quanto aos erros tipográficos da 1- edição, corrigidos (espero) nes­
ta, cumpro com prazer o dever de deixar aqui bem claros os meus agrade­
cimentos a Olavo Nascentes, que me mostrou, bem presto, muitos deles,
além de erros meus, e a Paulo Rónai, que, além de me distinguir sobremo­
do com um m agnânim o artigo sobre a primeira edição, teve a pachorra de
ler com atenção, zelo e beneditina paciência não apenas o texto e os exer­
cícios mas tam bém — e isso é de espantar e de me deixar perdidam ente
grato — até mesmo a lista bibliográfica final. A ele devo a m aior coleção
de erros de revisão e de descuidos meus. Ora, como eu mesmo não tive
essa beneditina paciência de reler pela n vez, e prontam ente, estas qui­
nhentas e tantas páginas, não pude preparar a tempo a necessária errata.
Q uando pude fazê-lo, graças sobretudo à contribuição daqueles prestim o­
sos amigos, já um a grande parte da edição tinha sido vendida ou distribuí­
da. Para não lograr alguns leitores, logrei a todos, deixando de incluir a
errata nos exem plares remanescentes na Editora.
Muito agradeço igualmente não só aos que, por escrito ou de viva
voz, se m anifestaram sobre a prim eira edição, mas tam bém aos leitores
que me distinguiram e que espero tenham tirado algum proveito da leitu­
ra. Fiz quanto pude no sentido de lhes oferecer um livro que lhes fosse
útil de alguma forma.
f u F P E B ib lio t e c a C e n t -
Plano sucinto da obra
Z f e ík a tó r i a
-T p íic a ç ã o n e c e s s á r ia
5
6
A g ra d e c im e n to s
10
.«oca s o b r e a 1 1 - e d iç ã o
11
% oca s o b r e a 3 - e d iç ã o
12
S o t a s o b re a 2 - e d iç ã o
13
P ia n o s u c in to d a o b ra
15
S u m á rio
17
P r im e ir a P a r t e — 1. Fr. — A fra se
27
Se g u n d a P a r t e — 2 . Voc. — 0 v o c a b u lá rio
171
liR C E iR A P a r t e — 3. Par. — 0 p a r á g ra fo
217
Q u a r t a P a r t e — 4 . C om . — E ficácia e fa lá c ia s d a c o m u n ic a ç ã o
299
Q u in t a Pa r t e — 5. O rd . — P o n d o o r d e m n o ca o s
325
S e x t a P a r t e — 6 . ld . — C o m o c r ia r id é ia s
337
S é t im a Pa r t e — 7. Pl. — P la n e ja m e n to
361
O it a v a Pa r t e — 8. R ed . T éc. — R e d a ç ã o té c n ic a
391
N o n a P a r t e — 9. Pr. Or. — P re p a r a ç ã o d o s o rig in a is
419
D é c im a Pa r t e — 10. Ex. — E x ercício s
431
B ib lio g ra fia
512
ín d ic e d e a s s u n to s
522
ín d ic e o n o m á s tic o
535
Sum ário
P rim e ira P a r te -
1. FR. - A Frase
Advertência
27
29
Capítulo I
1.0
1.1
1.1.1
1.2
1.3
E stru tu ra sin tá tic a da fra se
Frase, período, oração
Frase, gramaticalidade e inteligibilidade
Frases de situação
Frases nominais
32
32
. 33
37
38
1.4.0
1.4.1
1.4.2
1.4.3
1.4.4
1.4.5
1.4.5.1
1.4.5.2
1.4.5.3
P ro c esso s sin tá tic o s
Coordenação e subordinação: encadeamento e hierarquização
Falsa coordenação: coordenação gramatical e subordinação psicológica
Outros casos de falsa coordenação
Coordenação e ênfase
Coordenação, correlação e paralelismo
Paralelismo rítmico ou similicadÔncia
Paralelismo semântico
Implicações didáticas do paralelismo
42
42
46
49
51
52
59
60
62
1.5.0
1.5.1
1.5.2
1.5.3
O rg a n iz açã o d o p e río d o
Relevância da oração principal: o ponto de vista
Da coordenação para a subordinação: escolha da oração principal
Posição da oração principal: período “tenso" e período “ frouxo”
63
63
66
71
1.6.0
1.6.1
1.6.2
1.6.3
1.6.3.1
1.6.3.2
1.6.3.3
1.6.4
1.6.4.1
C om o in d ic a r as c irc u n stâ n c ia s c o u tra s re la ç õ e s e n tr e a s id é ia s
A análise sintática e a indicação das circunstâncias
Circunstâncias
Causa
Área semântica
Vocabulário da área semântica de causa
Modalidades das circunstâncias de causa
Conseqüência, fim, conclusão
Vocabulário da área semântica de conseqüência, fim econclusão
75
75
76
77
77
78
78
81
86
UFPJ
1.6.4.2
1.6.5
1.6.5.1
1.6.5.2
1.6.5 .3
1.6.5.4
1.6.5.5
1.6.5.5.1
1.6.6
1.6.7
1.6.7.1
1.6.7.2
1.6.7.3
1.6.8
1.6.8.1
1.6.8.1.1
1.6.8.2
1.6.8.3
1.6.8.4
1.6.8.5
1.6.8.6
1.6.8.7
1.6.8.8
1.6.8.8.1
1.6.8.8.2
1.6.8.9
1.6.8.10
Causa, conseqüência e raciocínio dedutivo
Tempo c aspecto
Aspecto
Perífrases verbais denotadoras de aspecto
Tonalidades aspectuais nos tempos simples e compostos
Partículas denotadoras de tempo
Tempo, progressão e oposição
Vocabulário da área semântica de tempo
Condição
Oposição e concessão
Antítese
Estruturas sintáticas opositivas ou concessivas
Vocabulário da área semântica de oposição
Comparação e símile
•
Metáfora
Metáfora e imagem
Catacrese
Catacrese e metáfora naturais da língua corrente
Parábola
Animismo ou personificação
Clichês
Sincstesia
Metonímia e sinédoque
Metonímia
Sinédoque
Símbolos e signos-símbolos: didática de alguns símbolos usuais
Antonomásia
87
87
88
89
92
95
95
96
97
99
99
102
104
105
106
110
1.11
111
112
113
113
114
114
115
116
117
121
Capítulo II
2.0
2.1
2.2
2.3
2.4
2.5
2.6
2.7
2.8
F eição e s tilístic a da fra se
Estilo
Frase de arrastão
Frase entrecortada
Frase de ladainha
Frase labiríntica ou centopeica
Frase fragmentária
Frase caótica e fluxo de consciência: monólogo e solilóquio
Frases parentéticas ou intercaladas
123
123
123
125
129
131
134
138
143
C apítulo IV
4.0
S egunda Parte -
D iscu rso s d ire to e in d ire to
Técnica do diálogo
Verbos dicendr ou de elocução
Omissão dos verbos dicendi
Os verbos e os pronomes nos discursos direto e indireto
Posição do verbo dicendi
A pontuação no discurso direto
1.0
O s se n tid o s d a s p a la v ra s
1.1
Palavras e idéias
1-2
Vocabulário e nível mental
12
Polissemia e contexro
I .-
Denotação e conotação: sentid
1.5
Sentido intensional e sentido <
1.6
Polarização e polissemia
C apítulo II
1.1
G e n e ra liz a ç ã o e especificaç
C apítulo III
3 1*
F am ílias d e p a la v ra s e tip o
5 1
Famílias etimológicas
31
Famílias ideológicas e campo s
35
Q uatro tipos de vocabulário
Capítulo
IV
- 1
C om o e n riq u e c e r o vocabu]
* 1
Paráfrase e resumo
- 2
A m p lific aç ão
- 3-
O cu o s exercícios para enrique
C
147
147
149
151
153
1S8
161
2. VOC. - 0 Vocabu
C a p Itulo I
Capítulo III
3.0
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
3.6
D isc u rso in d ire to liv re o u 5
a pít u lo
V
5JS
D icio n ário s
5-1
D ic;:rario s analógicos ou de i
52
D»c.;aários de sinônimos
?3
Uexicologia e lexicografia — E
5-
Dicionários da língua p o rtu g a
Ce também mais acessíveis)
U F P g B ib lio t e c a C e n t r a l
C a p ítu lo
4 .0
IV
D iscu rso in d ire to livre ou se m i-in d ire to
S egunda P a rte -
2. VOC. - 0 V ocabulário
164
171
Ca p Itulo I
1.0
Os s e n tid o s d a s p a la v ra s
173
í.i
Palavras e idéias
173
1.2
Vocabulário e nível mental
174
1.3
Poíissemia e contexto
175
1.4
Denotação e conotação: sentido referencial e sentido afetivo
178
1.5
Sentido intensional e sentido extensional
181
1.6
Polarização e poíissemia
183
Capítulo tl
:_o
G e n e ra liz a ç ã o e esp ecificação — O c o n c re to e o a b s tr a to
185
Capítulo III
5-0
F am ílias d e p a la v ra s e tip o s d e v o c a b u lá rio
3.1
Famílias etimológicas
195
3 .2
Famílias ideológicas e campo associativo
196
33
Quatro tipos de vocabulário
198
Ca p í t ul o
4.0
195
IV
C om o e n riq u e c e r o v o c a b u lá rio
200
4.1
Paráfrase e resumo
201
4.2
Amplificação
203
4.3
Outros exercícios para enriquecer o vocabulário
206
Capítulo V
5.0
D icio n ário s
208
5.1
Dicionários analógicos ou de idéias afins
209
5.2
Dicionários de sinônimos
214
5.3
Lexicologia e lexicografia —
5.4
Dicionários da língua portuguesa mais recomendáveis
(e também mais acessíveis)
Dicionárioe léxico
215
215
Terceira P arte -
3. PAR. - 0 Parágrafo
217
Capítulo 1
1.0
i.i
1.2
1.3
1.4
1.4.1
1.5
1.5.1
1.5.2
1.53
1.6
0 p a rá g ra fo com o u n id a d e d e com posição
Parágrafo-padrão
Importância do parágrafo
Extensão do parágrafo
Tópico frasal
Diferentes feições do tópico frasal
Outros modos de iniciar o parágrafo
Alusão histórica
Omissão de dados identificadores num texto narrativo
Interrogação
Tópico frasal implícito ou diluído no parágrafo
219
219
220
220
222
224
226
226
227
228
228
3 3 . 6.1
3 3 . 6 .2
3 3 . 6.3
3 3 6 .4
3 3 6 .5
337
33
Capítulo IV
4.0
Q u alid ad e s do p a rá g ra fo e d a
41
-ï3
Unidade, coerência e ênfase
Use sempre que possível tópico fh
432
Evite pormenores impertinentes, a
Frases entrecortadas (ver 1. Fr., 2.
unidade do parágrafo; selecione a:
em orações principais de períodos
433
Como d e se n v o lv e r o p ará g ra fo
Enumeração ou descrição de detalhes
Confronto
Analogia e comparação
Citação de exemplos
Causação e motivação
Razões e conseqüências
Causa e efeito
Divisão e explanação de idéias “em cadeia”
Definição
230
230
231
232
234
237
238
240
241
243
Capítulo III
1.0
1.1
1.1.1
1.1.2
1.1.3
5.1.4
1.1.5
1.1.6
1.2
i.2.1
1.2.2
1.2.3
1.2.4
1.2.5
ï.2.6
P arág rafo d e d escriçã o e p a rá g ra fo de n a rra ç ã o
Descrição literária
Ponto de vista
Ponto de vista físico: ordem dos detalhes
Ponto de vista mental: descrição subjetiva e objetiva ou expressionista
e impressionista
Descrição de personagens
Descrição de paisagem
Descrição de am biente (interior)
Narração
A matéria e as circunstâncias
Ordem e ponto de vista
Enredo ou intriga
Tema e assunto
Situações dramáticas
Variedades de narração
246
246
247
247
248
249
251
253
254
254
256
256
258
258
259
Como conseguir unidade
-3 .1
Capítulo II
2.0
2.1
2.2
2.3
2.4
2.5
2.5.1
2.5.2
2.6
2.7
Anedota
Incidente
Biografia
Autobiografia
Perfil
Dois exemplos de parágrafos de n
Roteiro para análise literária de ol
4 34
Ponha em parágrafos diferentes id
relacionando-as por meio de expre
435
O desenvolvimento da mesma idéi
vários parágrafos
43
Como conseguir ênfase
4 3 .1
Ordem de colocação e ênfase
4 3 .2
Ordem gradativa
4 3 .3
Outros meios de conseguir ênfase
4 3 3 .1
Repetições intencionais
4 3 .3.2
Pleonasmos intencionais
4 3 . 3.3
Anacolutos
4 3 .3 .4
Interrupções intencionais
4 3 3 .5
Parênteses de correção
4 3 .3 .6
Paralelismo rítmico e sintático
4.4
Como obter coerência
4 . 4.1
Ordem cronológica
4 . 4.2
Ordem espacial
4 . 4.3
Ordem lógica
4 . 4.4
Partículas de transição e palavras 4
4.4.5
Outros artifícios estilísticos de que
casos, também a clareza
4.4.5.1
Omissão do sujeito de uma subord
quando ele não é o mesmo da p íi
4 . 4 . 5.2
Falta de paralelismo sintático
4 . 4 .5 3
Falia cie paralelismo semântico
4 . 4 . 5.4
Falta de concisão
4 . 4 . 5.5
Falta de unidade
4 . 4 . 5.6
Certas estruturas de frase difíceis c
A nedota
Incidente
Biografia
Autobiografia
Perfil
Dois exemplos de parágrafos de narração
Roteiro para análise literária de obras de ficção
259
259
259
259
259
260
262
Capítulo IV
Q u a lid a d e s d o p a rá g ra fo e d a fra se em g era i
267
Unidade, coerência e ênfase
267
Como conseguir unidade
270
Use sempre que possível tópico frasal explícito
270
Evite pormenores impertinentes, acumulações e redundâncias
270
Frases entrecortadas (ver 1. Fr., 2.3) freqüentemente prejudicam a
unidade tio parágrafo; selecione as mais importantes e transforme-as
em orações principais de períodos menos curtos
272
Ponha em parágrafos diferentes idéias igualmente relevantes,
relacionando-as por meio de expressões adequadas à transição
272
O desenvolvimento da mesma idéia-núcleo não deve fragmentar-se em
vários parágrafos
273
Como conseguir ênfase
276
Ordem de colocação e ênfase
276
Ordem gradativa
283
Outros meios de conseguir ênfase
284
Repetições intencionais
284
Pleonasmos intencionais
285
Anacolutos
285
Interrupções intencionais
286
Parênteses de correção
286
Paralelismo rítmico e sintático
286
Como obter coerência
287
Ordem cronológica
287
Ordem espacial
288
Ordem lógica
289
Partículas de transição e palavras de referência
290
Outros artifícios estilísticos de que depende a coerência e, cm certos
casos, também a clareza
295
Omissão do sujeito de uma subordinada reduzida gerundial ou infinitiva,
quando ele não é o mesmo da principal
295
Falia de paralelismo sintático
295
Falta de paralelismo semântico
296
Falta cie concisão
297
Falia de unidade
298
Certas estruturas de frase difíceis de bem caracterizar
298
U F P E B íb tíc
iu arta
Parte -
4. C O M . -
E f i c á c i a e Fa l á c i a s d a Co m u n i c a ç ã o
299
in ri
Eficácia
301
.1
.2
Aprender a escrever é aprender a pensar
Da validade das declarações
301
.3
.4
.5
.5.1
Facos e indícios — observações e inferência
Da validade dos fatos
Métodos
Mérodo indutivo
303
.5.1.1
.5.2
Testemunho autorizado
Método dedutivo
.5.2.1
.5.2.2
.5.2.3
.5.2.4
Silogismo
Silogismo do tipo non sequttur
Epiquirema: premissas munidas de prova
O raciocínio dedutivo e o cotidiano — o entimema
302
304
305
306
308
309
309
311
312
313
Capítulo II
_ -3
. -3
1.4.3.1
1.4.3.2
1.5.0
1.5.1
1.5.2
1.5-2.1
Catalogação
Como tom ar notas
O primeiro contato com o livro
Notas
Fichas
Ficha de assunto
Fichas de resumo
Outros artifícios para criar idéias
Plano-padrão passe-panout ou plan
Silogismo dedutivo, criação, planej
Exemplo de parágrafos com estrun
7. PL. -
P la n e j a m e n t o
316
F alácias
.1
A natureza do erro
316
.2
Sofismas
316
.2.1
Falsos axiomas
317
.2.2
Ignorância da questão
317
.2.3
Petição de princípio
318
.2.4
Observação inexata
319
.2.5
Ignorância da causa ou falsa causa
319
.2.6
Erro de acidente
321
2.7
Falsa analogia e probabilidade
321
5. ORD. -
Como C r i a r Id é ia
O bras d e referência
.:i
S étim a P a r t e -
.0
uiNTA P a r t e -
6. ID . -
A e x p e riê n c ia e a p e s q u isa
Experiência e observação
i-erara
ftesquisa bibliográfica
Classificação bibliográfica
Capítulo I
.0
-i*~i -
P o n d o O r d e m n o Ca o s
325
0
M odus scicn d i
327
1
Análise e síntese
327
1.1
Análise formal e análise informal
328
1.2
Exemplo de análise de um tema específico
2
2.1
Classificação
Coordenação e subordinação lógicas
328
329
2.2
Classificação e esboço de plano
3
Definição
331
332
3.1
Estrutura formal da definição denotativa
334
3.1.1
Requisitos da definição denotativa
334
Capítulo I
1.0
1.1
D escrição
“O Ginásio Mineiro de Barbacena",
Capítulo II
2.0
2.1
2.2
2.3
2.3.1
2.4
N arra çã o
“O cajueiro”, de Rubem Braga
Análise das partes
Função das partes
O que a “história” ou “estória” proj
Plano de “O cajueiro”
Capítulo III
3.0
3.1
3.2
D isse rta ç ã o
“Meditações”, de Gilberto Amado
Análise das partes e plano de “Meé
331
Capítulo IV
4.0
4.1
A rg u m en ta çã o
Condições de argumentação
j u F P E B ib li o t e c a C e n t r a i
S exta P arte 1.0
i.i
1.2
1.3.0
1.3.1
1.3.2
1.3.3
1.4.0
1.4.1
1.4.2
1.4.3
1.4.3.1
1.4.3.2
1.5.0
1.5.1
1.5.2
1.5.2.1
6. ID. - Como Criar I déias
A e x p e riê n c ia e a p esq u isa
Experiência e observação
Leitura
Pesquisa bibliográfica
Classificação bibliográfica
O bras de referência
Catalogação
Como tom ar notas
0 primeiro contato com o livro
Notas
Fichas
Ficha de assunto
Fichas de resumo
Outros artifícios para criar idéias
Plano-padrão pciase-pariout ou plano-piloto
Silogismo dedutivo, criação, planejamento e desenvolvimento de idéias
Exemplo de parágrafos com estrutura silogística dedutiva
SÉTIMA Parte -
7. PL. - P lanejamento
337
339
339
341
342
342
344
344
346
346
346
346
347
348
350
352
353
357
361
Capítulo 1
1.0
1.1
D escrição
“O Ginásio Mineiro de Barbacena”, de Daniel de Carvalho
363
368
Capítulo II
2.0
2.1
2.2
2.3
2.3.1
2.4
N a rra ç ã o
“0 cajueiro”, de Rubem Braga
Análise das partes
Função das partes
0 que a “história” ou “estória” proporciona
Plano de “0 cajueiro"
370
370
371
373
373
374
Capítulo III
3.0
3.1
3.2
D isse rta ç ã o
“Meditações”, de Gilberto Amacio
Análise das partes e plano de “Meditações”
376
376
378
Capítulo IV
4.0
4.1
A rg u m en ta çã o
Condições de argumentação
380
380
4.2
4.2.1
4.3
4.3.1
4.4
4.5
4.5.1
4.5.2
4.5.3
4.5.4
4.5.5
Consistência dos argumentos
Evidência (fatos, exemplos, dados estatísticos, testemunhos)
Argumentação informal
Estrutura típica da argumentação informalem língua escrila
ou falada
Normas ou sugestões para refutar argumentos
Argumentação formal
Proposição
Análise da proposição
Formulação dos argumentos
Conclusão
Plano-padrão da argumentação formal
381
381
383
384
387
388
388
389
389
390
390
1-2.6
■« n —
1-2.8
1-2.9
1.2.10
1 2 11
12.12
1 2.13
1-3
Posição de títulos e subtítulos
Sublinhas
Emprego do itálico, do negrio
Citações
Notas de rodapé
Referências bibliográficas
Expressões latinas usuais
lis tas bibliográficas
Revisão de provas tipográficas
D íc íh a P a rte -
10. EX. - Exercícios
1 F r A frase (100 a 115)
O itava Parte -
8. RED. TÉC. - Redação Técnica
391
Capítulo I
1.0
1.1
1.2
1.2.1
1.3
1.4
1.5
D escrição té c n ic a
Redação literária e redação técnica
O que é redação técnica
Tipos de redação técnica ou científica
Descrição de objeto ou ser
Descrição de processo
Plano-padrão de descrição de objeto e de processo
393
393
394
395
395
397
399
Capítulo II
2.0
2.1
R e la tó rio a d m in istra tiv o
Estrutura do relatório administrativo
401
402
Capítulo III
3.0
3.1
3.2
3.3
D isse rta ç õ e s cien tíficas: te se s e m o n o g rafia s
Nomenclatura das dissertações científicas
Estrutura típica das dissertações científicas
Amostras de sumário de dissertações científicas
Nona P a rte 1.0
1.1
1.2
1.2.1
1.2.2
1.2.3
1.2.4
1.2.5
9. PR. 0R. - P re p a ra ç ã o dos O riginais
N o rm alizaç ão d a tiio g rá fic a e b ib lio g rá fica
Normalização da documentação
Uniformização datiiográfica
Papel
Margens
I.inhas e batidas
Espaços cle entrelinhas
Numeração das páginas
405
405
406
414
419
421
421
422
422
422
423
423
423
Frase de situação, frases nominais e tragi
Paralelismo gramatical (102)
Da coordenação para a subordinação — 1
Subordinação enfadonha (106)
Ljdtcação das circunstâncias (107 e 108)
Causa, conseqüência, conclusão (109 a l.
Oposição (contrastes ou antíteses) (112)
Frase centopeica (desdobram ento de perl
Períodos curtos e intensidade dramática (
2 Voe. O vocabulário (200 a 252)
O geral e o específico — O concreto e o
Conotação (209 a 217)
Fámílias etimológicas (218 e 219)
Areas semânticas (220 a 249)
\bcabulário mediocrizado (250 a 252)
3. Par. O parágrafo (300 a 314)
Tópico frasal, desenvolvimento, resumo, 1
Reestruturação de parágrafos para confro
Redação de parágrafos baseada em mode
Tipos (retratos)
Paisagem urbana
Paisagem provinciana
Am biente com figuras (festa)
Am biente sem figuras (fim de festa)
Cenas dram áticas
Paisagem campestre (floresta tropical)
Dissertações
Tópicos frasais (descrição, narração e dis:
e confronto com o original (304 a 307
Transição e coerência (308 e 309)
Parágrafos incoerentes (310)
Unidade e coerência: paralelismo semànti
Clareza e coerência (312)
Ordem de colocação, ênfase e clareza ( 3 j
Pleonasmo enfático (314)
1.2.6
1-2-7
1-2.8
1-2.9
1-2.10
12.11
12.12
1 2.13
1-3
Posição dc títulos e subtítulos
Sublinhas
Emprego do itálico, do negrito e do versai
Citações
Notas de rodapé
Referências bibliográficas
Expressões latinas usuais
Listas bibliográficas
Revisão de provas tipográficas
SíCima P a rte -
10. EX. - Exercícios
423
423
424
424
424
425
427
428
428
431
1. Fr. A frase (100 a 115)
433
?r2se de situação, frases nominais e fragmentárias (101)
fealelism o gramatical (102)
Da coordenação para a subordinação — organização de períodos (103 a 105)
Subordinação enfadonha (106)
ladicação das circunstâncias (107 e 108)
Caitsa, conseqüência, conclusão (109 a 111)
Oposição (contrastes ou antíteses) (112)
Frase centopeica (desdobram ento de períodos) (114)
Períodos curtos e intensidade dramática (115)
433
435
436
442
443
444
447
447
449
2. Vòc. O vocabulário (200 a 252)
453
O geral e o específico — O concreto e o abstrato (201 a 208)
Conotação (209 a 217)
Famílias etimológicas (218 e 219)
Áreas semânticas (220 a 249)
Vocabulário mediocrizado (250 a 252)
451
453
457
460
471
3. Par. O parágrafo (300 a 314)
473
Tópico frasal, desenvolvimento, resumo, titulação e imitação de parágrafos (301)
Reestruturação de parágrafos para confronto (302)
Redação de parágrafos baseada em modelos (303)
Tipos (retratos)
Paisagem urbana
Paisagem provinciana
A m biente com figuras (festa)
A m biente sem figuras (fimde festa)
Cenas dramáticas
Paisagem campestre (floresta tropical)
Dissertações
473
477
479
481
481
481
481
482
482
482
482
Tópicos frasais (descrição, narração e dissertação) para desenvolvimento
e confronto com o original (304 a 307)
Transição e coerência (308 e 309)
Parágrafos incoerentes (310)
Unidade e coerência: paralelismo semântico (311)
Clareza e coerência (312)
Ordem de colocação, ênfase e clareza (313)
Pleonasmo enfático (314)
482
484
486
487
488
489
491
U F P E B ib l
Com. Eficácia e falácias do raciocínio (400 a 408)
493
Fatos e inferência (401)
Identificação de sofismas (402)
Identificação de falácias (403 e 404)
Indução, dedução e leste de silogismo (405 e 406)
“Invenção” de premissa maior para desenvolvimento de idéias pelo método
silogístico (407 e 408)
493
494
495
496
497
5. Ord. Pondo ordem no caos (500 a 509)
499
Análise e classificação (501 a 504)
Definição denotativa ou didática (505 a 507)
Definição eonoiativa ou metafórica (508 e 509)
499
500
501
6. Exercícios de redação: temas e roteiros (600-606)
502
Bibliografia
índice de assuntos
índice onomástico
512
522
535
P r i me i r a
P art e
1. FR. -
Estrutura sintática
IU F P E B ib lio te c a C e n t r a l-
P r i me i r a
P ar t e
1. FR. - A frase
Estrutura sintática e feicão
estilística
i
Advertência
Nesta primeira parte (1. Fr.) estuda-se a frase sob o ponto de vista da
sua estrutura sintática (1.0 a 1.6.8.10) e da sua feição estilística (2.0 a 4.0),
com ocasionais interpolações.
Quanto ao primeiro aspecto, convém advertir, de saída, que a intenção
do Autor foi evitar se transformasse o capítulo em mais um manual de análi­
se sintática, o que não significa seja esta inútil ou execrável. Tanto não é inú­
til, que muitas apreciações sobre a estrutura da frase não puderam dela pres­
cindir, pelo menos em certa medida.
A análise sintática tem sido causa de crônicas e incômodas enxaque­
cas nos alunos de ensino médio. E que muitos professores, por tradição ou
por comodismo, a têm transformado no próprio conteúdo do aprendizado
da língua, como se aprender português fosse exclusivamente aprender aná­
lise sintática. O que deveria ser um instrum ento de trabalho, um meio efi­
caz de aprendizagem , passou a ser um fim em si mesmo. Ora, ninguém es­
tu d a a língua só para saber o nome, quase sempre rebarbativo, de todos os
com ponentes da frase.
Vários autores e mestres têm condenado até mesmo com veemência
o abuso no ensino da análise sintática. Não obstante, o assunto continua a
ser> salvo as costumeiras exceções, o “prato de substância” da cadeira de
Português no ensino fundamental. Apesar disso, ao chegar ao fim do curso,
o estudante, em geral, continua a não saber escrever, mesmo que seja ca­
paz de destrinchar qualquer estrofe camoniana ou qualquer período barro­
co de Vieira, nom enclaturando devidamente todos os seus termos. Então,
“pra que análise sintática?” — perguntam aflitos alunos e mestres por esse
Brasil afora.
Já em 1916, ao responder à consulta de um padre pernam bucano,
Mário Barreto fazia, com a lucidez que lhe era habitual, um a clara censu­
ra ao abuso e ao mau aproveitam ento da análise lógica:
Leva-m e, pois, o se n h o r p a d re p ara essas regiões n e v o e n ta s d a an á lise
lógica a q u e ta n to g o stam d e g u in d ar-se os pro fesso res b rasileiro s. É u m dos
defeitos d o nosso en sin o g ram a tic al a im p o rtâ n cia excessiva q u e se d á nas
classes a isso q u e se ch am a análise lógica. C erto q u e é n ec essário sa b e re m os
alu n o s o q u e é u m sujeito, u m atrib u to , u m co m p lem en to ; c e rto q u e ta m b é m
UFPEBi
30
♦
Comunicação
em
Prosa
M oderna
é b o m q ue eles saib am d istin g u ir proposições prin cip ais e su b o rd in a d a s, e ve­
ja m q u e estas acessórias ou su b o rd in ad a s n ão são m ais q u e o d esd o b ra m e n to
d e u m dos m e m b ro s d e o u tra p roposição e se a p re se n ta m com o eq u iv alen te
d e u m su b stan tiv o , d e u m adjetivo ou d e um ad vérbio: proposições su b sta n ti­
vas, adjetivas, adverbiais — n o m e n cla tu ra q u e te m a d u p lic ad a v a n ta g e m d e
ev itar te rm o s novos e d e la z e r d a análise lógica u m a c o n tin u a ç ã o n a tu ra l d a
an á lise g ram a tic al. Q u alq u e r o u tra term inologia que se a d o te p a ra a classifica­
ção d a s p ro p o siçõ es d e p e n d e n te s le v an ta discussões e n tre os p ro fesso res
Passar d a í será nos em b re n h arm o s no in trin c ad o la b irin to d as su tilezas
d a análise. A análise lógica pode ser de m uito préstim o, se a praticarm os corno
aprendizado d a estilística, como meio de conhecennos a fu n d o os recursos da lin­
guagem e de nos fa m ilia riza rm o s com todas as suas variedades}
A lição é das melhores e das mais oportunas, apesar de longeva; pena
é que nem todos a tenham aprendido, principalmente aquela parte contida 110
último período, por nós grifado. Pois bem, este capítulo sobre a estrutura da
frase, que não visa, de forma alguma, ao ensino da análise sintática ou lógi­
ca, embora aí se assentem algumas das suas lições, leva muito em conta a sá­
bia advertência de Mário Barreto, por mostrar “os recursos da linguagem” a
fim de permitir ao estudante familiarizar-se “com todas as suas variedades”.
No que respeita à feição estilística da frase, ver-se-á que nosso propósi­
to foi, acima de tudo, mostrar e comentar alguns padrões válidos no Portu­
guês moderno. Ver-se-á também que não nos moveu nenhum preconceito de
purismo gramatical: alguns dos modelos comentados apresentam até mesmo
deslizes gramaticais que talvez repugnem a muitos entendidos; mas só quan­
do a falha é grave, ou se torna oportuno, é que fazemos a necessária adver­
tência. É que a nossa “tomada de posição” — digamos assim — em face dos
textos apresentados, comentados, censurados ou louvados, foge inteiramente
ao âmbito restrito da gramática, para cair 110 da estilística, mas de uma esti­
lística sem pretensões, em moldes exclusivamente didáticos. Não se trata as­
sim de crítica literária mais ou menos hedonista e parasitária como temos fei­
to em outros lugares. Não; aqui nos propomos humildemente ser úteis aos es­
tudantes de ensino fundamental, aos alunos das faculdades e a todos aqueles
que, dispondo já de alguns conhecimentos básicos, ao nível da oitava série do
primeiro grau, queiram não apenas melhorar sua habilidade de redigir mas
tam bém apurar 0 senso crítico, familiarizando-se com alguns moldes frasais
da língua escrita do nosso tempo. Mas o próprio leitor notará que alguns des­
ses moldes se caracterizam por certas singularidades (frase de ladainha, frase
de airastão, fi‘ase entrecortada, frase caótica...), 0 que talvez o leve a indagar:
“Mas, e os padrões normais?” Com os padrões normais o leitor se familiariza­
rá ao longo de outras páginas desta obra, principalmente na parte que trata
do parágrafo.
1 FACTOS da língua portuguesa. Rio, Organização Simões, 1954, p. 61.
Por outro lado, ao correr os oll
leitor talvez se surpreenda por ver t
aspectos da frase que, na realidade, s
ferentes às figuras: antítese, metáfora
to, ao texto, verificará que essa im eq
tério que adotamos de desenvolver c
cão. É assim que a idéia de oposiçãc
levou à antítese; a de comparação e
ra, e esta, por sua vez, a outros tropc
mo método, a um só tempo associati
cabível, a exposição da matéria das o
U F P E B ib li o t e c a C e n t f a h
O thon
M.
Garcia
♦
31
Por outro lado, ao correr os olhos pelo sumário desta primeira parte, o
ib e tt talvez se surpreenda por ver tratados em “Estrutura sintática” alguns
aspectos da frase que, na realidade, são de natureza estilística (os tópicos refcTzzies às figuras: antítese, metáfora, metonímia, etc.). Ao chegar, entretanTi, ao texto, verificará que essa interpolação encontra sua justificativa no critÉ30 que adotamos de desenvolver todas as idéias relacionadas por associaE assim que a idéia de oposição, implícita nas orações concessivas, nos
à antítese; a de comparação e de orações comparativas, à de metáfot£l e esta, por sua vez, a outros tropos e figuras (ver 1. Fr. — 1.6.8). O mesmétodo, a um só tempo associativo e estrutural, orientou, na medida do
csbive1. a exposição da matéria das outras partes.
1.0 Estrutura sintática da frase
1.1 Frase, período, oração
Frase é todo enunciado suficiente por si mesmo para estabelecer co­
municação. Pode expressar um juízo, indicar uma ação, estado ou fenôme­
no, transm itir um apelo, um a ordem ou exteriorizar emoções. Seu arcabou­
ço lingüístico encerra normalmente um mínimo de dois termos — o sujeito e
o predicado — normalmente, mas não obrigatoriamente, pois, em Português
pelo menos, há, como se sabe, orações ou frases sem sujeito: Há muito tem­
po que não chove (em que há e chove não têm sujeito).2
Oração, às vezes, é sinônimo de frase ou de período (simples) quan­
do encerra um pensam ento completo e vem limitada por ponto-final, ponto-de-interrogação, de-exclamação e, em certos casos, por reticências. O pe­
ríodo que contém mais de uma oração é composto.
U m v u lto cresce na escu rid ão . C larissa se en c o lh e . É Vasco.
(E. V eríssim o, M úsica ao longe, p. 1 1 8 )3
Nesse trecho há três orações correspondentes a três períodos sim­
ples ou a três frases. Cada uma delas encerra um enunciado expresso num
arcabouço lingüístico em que entram um sujeito (vulto, claro na prim ei­
ra, m as oculto n a última, e Clarissa) e um predicado (c7*esce, se encolhe, é
Vasco).
Mas nem sempre oração (diz-se também proposição) é frase. Em
“convém que te apresses” há duas orações mas um a só frase, pois somen-
2 Segundo Jean Cohen (Sfructure du langage poétique , p. 73), a frase pode ser definida em
dois níveis: o semântico e o fônico. O nível semântico, único que nos interessa aqui, desdobrase em dois planos: o psicológico e o gramatical. No primeiro, a frase é “a unidade que apre­
senta um sentido completo". Quanto ao segundo, o gramatical, ela é “o conjunto de palavras
que estão sintaticam ente solidárias". A seguir, cita o Autor a definição de A. Martinet: “um
enunciado cujos elementos se prendem a um ou a vários predicados coordenados" (p. 73).
3 Os trechos citados como exemplos vêm geralmente com referência bibliográfica sumária. Para
indicações completas sobre as fontes, consulte-se a Bibliografia no fim do volume.
j* «aanFirx* das duas é que tradu
s c n p k s fragmentos de fh
■sae ie apresses” é o sujeii
a sua estrutura sintátic
gsaeiarical explícita (existênc
pode Sàr simples (uma só oraç
oraaonais). Esse agrupamei
z !XJtDe de período (do grego
sefszído Cícero, isto é, o Circuit
c completo. Entretanto, pe
« t xãc vigente e tradicional, també
e a complexa, período composto,
composto, constituído só por
rocmado por orações coordenad
i . l . l Frase, gramaticalidade
Dentro da liberdade de combin
*r — liberdade que permite a cada q
a e r z pessoal, sem ter de repetir semj
« e fx ip a d a s — há certos limites imp
w k n a invenção de uma nova h
S serdade de construir frases está, aí
gram aticalidade — que não significa
ção (há frases que, apesar de, até cei
ineligíveis). Carentes da articulação
atropelam , não fazem sentido — e, qi
vel. não há frase mas apenas um ajun
r re para dizer o que quer, mas sob <
aquele a quem se dirija. A linguagem
do se o discurso não é compreendido
diz Jean Cohen (Structure du langage (
O seguinte agrupam ento, por ;
mente agram atical, é totalm ente inint
instintos os jovens sentem. Só reagrup
vigentes na língua, podem essas pala'
mindo então feição de frase: Os jover
tranqüilos.
Não obstante, um conjunto de j
por apresentar certo grau de gramatic
como o seguinte exemplo de Oswald c
ms bureaus assinadores do conhecimen
invencíveis (Memórias sentimentais de I
nues vestígios de gramaticalidade —
Æ
O thon
M.
Garcia
♦
33
z : conjunto das duas é que traduz um pensam ento completo; isoladas,
rccsd m em simples fragmentos de frase (ver 1. Fr., 2.6), pois um a é parte
la. mnra: “que te apresses” é o sujeito de “convém”.
Quanto à sua estrutura sintática, i.e., quanto à característica da integramatical explícita (existência de um sujeito e um predicado), a
xxsê pode ser simples (uma só oração independente) ou complexa (várias
m i s d e s oracionais). Esse agrupamento de orações é que merece legitima□D^rre o nome de período (do grego períodos, circuito). É o ambitus verbo'nz--. segundo Cícero, isto é, o circuito de palavras encadeadas para formar
Txz. senrido completo. Entretanto, pela nomenclatura gramatical (brasileira
rc. zão} vigente e tradicional, também a frase simples se diz período sime a complexa, período composto. Mas alguns professores distinguem o
perrcd: composto, constituído só por orações coordenadas, do período comje cr:. formado por orações coordenadas e subordinadas.
1.1.1 Frase, gramaticalidade e inteligibilidade
Dentro da liberdade de combinações que é própria da fala ou discurso — liberdade que permite a cada qual expressar seu pensam ento de maaesra pessoal, sem ter de repetir sempre, servilmente, frases já feitas, já esaereodpadas — há certos limites impostos pela gramática, limites que im­
pedem a invenção de um a nova língua cada vez que se fala. Nossa
J ie rd a d e de construir frases está, assim, condicionada a um mínimo de
gram aticalidade — que não significa apenas nem necessariam ente corre­
ção (há frases que, apesar de, até certo ponto, incorretas, são plenam ente
imeligíveis). Carentes da articulação sintática necessária, as palavras se
acropelam, não fazem sentido — e, quando não há nenhum sentido possí­
vel. não há frase mas apenas um ajuntam ento de palavras. “Cada qual é li­
vre para dizer o que quer, mas sob a condição de ser com preendido por
aquele a quem se dirija. A linguagem á comunicação, e nada é comunica­
do se o discurso não é compreendido. Toda mensagem deve ser inteligíveV\
diz Jean Cohen (Structiire du langage poétique, p. 105-6).
O seguinte agrupam ento, por ser totalm ente caótico, isto é, total­
m ente agram atical, é totalm ente ininteligível: de maus tranqüilos se nunca
■jtstintos os jovens sentem. Só reagrupadas segundo as norm as gramaticais
vigentes na língua, podem essas palavras tom ar-se fala ou discurso, assu­
m indo então feição de frase: Os jovens de maus instintos nunca se sentem
tranqüilos.
Não obstante, um conjunto de palavras pode ter aparência de frase,
por apresentar certo grau de gramaticalidade e ser dificilmente inteligível,
como o seguinte exemplo de Oswald de Andrade: Romarias escadais de ho­
ras bureaus assinadores do conhecimento tomado e lavrado dos vencimentos
invencíveis (Memórias sentimentais de João Miramar; p. 153). Apesar dos tê ­
nues vestígios de gramaticalidade — ou justam ente por serem muito tê-
34
♦
C omunicação
em
Prosa
M oderna
nues esses vestígios — a frase de O. de A. depende quase que exclusiva­
m ente da interpretação que lhe possa dar o leitor. Ela não é auto-suficien­
te, não pode ser claramente entendida, mesmo que situada no seu contex­
to (capítulo “145. Criação de papagaios”, em que o Autor faz a crônica
m ordaz da “sala verde das audiências no Fórum Cível Paulista”), a menos
que o leitor se encarregue de “m entalizar” os possíveis enlaces lógicos, sin­
táticos e semânticos entre os seus componentes.4
Portanto, ausência de gramaticalidade ou gramaticalidade muito pre­
cária significam ausência de inteligibilidade. Mas a simples gramaticalidade,
o simples fato de algumas palavras se entrosarem segundo a sintaxe de uma
língua para tentar comunicação não é condição suficiente para lhes garantir
inteligibilidade. A célebre e assaz citada e comentada frase de Chomsky —
Colorless green ideas sleep furiously (incolores idéias verdes dormem furiosa­
m ente) — apresenta os traços de gramaticalidade integral; no entanto, cons­
titui (fora, evidentemente, do plano metafórico, onde todas as interpreta­
ções são possíveis) um enunciado incompreensível no plano referencial-denotativo, pois há incompatibilidade lógica entre os seus componentes, que se
isoladamente têm sentido, no conjunto não têm: idéias não podem ser ver­
des nem incolores, e muito menos ser uma coisa e outra ao mesmo tempo. É
claro que metaforicamente poderiam ser isso ou algo muito diverso; mas,
então, um desses adjetivos ou ambos estariam desvinculados do seu traço se­
mântico habitual, isto é, do seu sentido próprio; denotando cor ou ausência
de cor, um exclui o outro, e nenhum deles se ajusta a idéias, entidade abs­
trata. E se idéias não podem, no plano da realidade, se verdes nem incolo­
res, tampouco podem dormir (a menos que este verbo metaforicamente sig­
nifique algo diferente). Furiosamente, por sua vez, tem um significado tal
que só se aplica, denotativamente, a ser animado, da mesma forma que o
verbo dormirá Assim, por razões de impertinência semântica entre os seus
componentes, esse conjunto de palavras só é frase na sua estrutura gramati-
4 Predominante não apenas em Memórias sentimentais de João M iram ar (1924) mas também
em Serafim Ponte Grande (1933), essa estrutura de frase reflete aquele experimentalismo estilís­
tico rebelde e irreverente da segunda e da terceira décadas deste século (impressionismo, que,
aliás, vem de muito antes, dadaísmo, surrealismo, “escrita automática”). Fragmentada c inten­
cionalmente antidiscursiva, pictórica e visual à maneira da técnica cinematográfica pela sua jus­
taposição de planos, essa frase revela o propósito dc romper com os moldes tradicionais, de in­
vestir ironicamente, desdenhosamente até, contra a verbosidade oca, elitista, e engravatada que,
não apenas entre nós mas também alhures (ou sobretudo alhures), acabara estiolando o estilo
daquela prosa (e também daquele verso) cuidada, pomposa, apolínea, preciosista e elegante,
purista e canônica — herança parnasiana — que precedeu a “revolução” estilística desencadea­
da pelo advento dos vários “ismos” gerados pelo futurismo marinetiano. Se é válida como expe­
riência, válida sobretudo por ter rompido os grilhões rigidamente gramaticais e retóricos do
passado imediato ou remoto, não constitui, em virtude dos seus excessos, nem padrão nem mo­
delo. Tendo rompido com um passado, está hoje sepultada em outro. Mas deixou as suas pega­
das, por onde outros seguiram e têm seguido com menos radicalismo.
5 Cf. o comentário que, a próposito dessa frase de Chomsky, faz R. Jakobson em Lingüística e
comunicação, p. 94-5.
foàerà ser entendida como um cori
predominantemente, da culr
remo diz L I. Revzin (dta
manriques”. na revista L c j
õans lequei se rrouvenr jusnf
i a r s $2 lzr--rae~.
stin a: fora desse “universe
1 frsâe seja gramatical para ser ii
terras condições, apresente ou
£5 que apontamos a seguir
irtpc-rrr, enfim , que ela, além da
.piriaade de informação (2
ias — e sintáticas. i.e.? anl
sae £* mulher levou-o ao suicídio’"
« r id a * ;. "Conheci-o quando ainda
32 tu ) ou o objeto (o) de “conhec
i
t x : zzhíologias nulificadoras de
Ãgpteirjda da significação de d ea
toulistas são mais com petentes
qpr se configuram como círculo vi
finw 2.2.3): “Fulano morreu pobr
fsmto faz mal à saúde porque prej
s c . s ó não haverá nulificação tora
« r ia o ‘oftalm ologistas” se revestir
rir possível repugnância a termos
A ) l s ó h á comunicação na oração
aada diz porque nada acrescenta ai
toda.
jz incongruências (incompanbílit
:cas. configuradas em ou resul
'-ol GZGtradicão lógica literal: "os quadi
e quadrada”, “seus olhos a:
d esse npo só são contraditórias se 1
d o - s e r o d a possibilidade de um “su
rada contestação (“esta mesa, que
óe. quadrada”, “seus olhos, que p
g ro s~ . quer de um sentido meraíót
àos seus termos: “os quadrúpedes.
E eax p ío inspirado por CHOMSKY. Aspects de j
O thon
M.
Garcia
♦
35
•cal. mas só é mensagem no plano metafórico (ver 1. Fr., 1.6.8 e 2. Voc., 1.4),
5C poderá ser entendida como um contexto poético, que depende fundam en­
talmente, predominantemente, da cultura e da subjetividade do leitor ou ou­
vinte, pois, como diz I. I. Revzin (citado por T. Todorov no seu estudo “Les
îTjomalies sémantiques”, na revista Langages, n9 1, p. 119), “le poète crée un
Tzzúvers dans lequel se trouvent justifiées des phrases qui n’avaient pas de
sens dans sa langue”.
Em suma: fora d esse “universo” a que se refere Revzin, não basta
qce a frase seja gramatical para ser inteligível; importa, ainda, que ela pre­
encha outras condições, apresente outras características, entre as quais so­
bressaem as que apontamos a seguir com propósito exclusivamente didáti­
co: importa, enfim, que ela, além da condição de gramaticalidade:
1- exclua duplicidade de informação (ambigüidades léxicas — homofonias e
homografias — e sintáticas, i.e., anfibologias propriam ente ditas): “O ciú­
me da m ulher levou-o ao suicídio” (quem tinha ciúmes? a mulher ou o
suicida?). “Conheci-o quando ainda criança” (quem era criança? o sujei­
to (eu) ou o objeto (o) de “conheci”?).
I
exclua taiitologias nulificadoras de significado, quer as que resultam da
ignorância da significação de determ inada palavra, em frases do tipo
“os oculistas são mais competentes do que os oftalmologistas",6 quer as
que se configuram como círculo vicioso ou petição de princípio (ver 4.
Com., 2.2.3): “Fulano morreu pobre porque não deixou um vintém ”, “o
fumo faz mal à saúde porque prejudica o organismo”. No primeiro ca­
so, só não haverá nulificação total do significado, se, por hipótese, o
lermo “oftalmologistas” se revestir de certa conotação irônica, a trad u ­
zir possível repugnância a termos técnicos menos pedestres. No segun­
do, só há comunicação na oração principal: a causal, ou explicativa,
nada diz porque nada acrescenta ao que se declara antes; é pura tau to ­
logia.
3. exclua incongruências (incompatibilidades, im pertinência, incoerência) se­
mânticas, configuradas em ou resultantes de:
è contradição lógica literal: “os quadrúpedes são bípedes”, “esta mesa re­
donda é quadrada”, “seus olhos azuis são negros”. É certo que frases
desse tipo só são contraditórias se tomadas “ao pé da letra”, desprezan­
do-se toda possibilidade de um “subentendim ento” quer de uma decla­
rada contestação (“esta mesa, que se supõe ser redonda, é, na verda­
de, quadrada”, “seus olhos, que parecem azuis, são, na verdade, ne­
gros”), quer de um sentido metafórico subjacente em algum ou alguns
dos seus termos: “os quadrúpedes, isto é, as pessoas estúpidas, são bí-
Exemplo inspirado por CHOMSKY, Aspects de Ia théorie syntaxique, trad. fr., p. 111.
3 6
♦
Co m unicação
em
Prosa
M oderna
pedes”. É o “subentendim ento” do sentido metafórico subjacente que dá
validade aos paradoxos do tipo “falo melhor quando em udeço”, aos oxímoros, ou aliança de contrários (obscura claridade, triste contentam en­
to, deliciosa desventura, doce am argura) e às sinestesias (rubras clarinadas, voz acetinada, cor berrante).
b) impropriedade ou ausência de partículas ou locuções de transição entre os
segmentos de uma fi'ase: “A paz mundial tem estado constantem ente
am eaçada, posto que a hum anidade se vê dividida por ideologias anta­
gônicas.” “Posto que” não é “porque” nem “visto que”, mas “em bora”,
“se bem que”. — “O progresso d a ciência e da tecnologia tem resulta­
do em extraordinário desenvolvimento dos meios de comunicação; os
homens se desentendem cada vez mais.” O que o autor da frase preten­
dia era m ostrar o contraste entre o desenvolvimento dos meios de co­
municação e o desentendim ento entre os homens, contraste que deve­
ria vir explicitamente indicado por partícula de transição adequada,
como “no entanto”, por exemplo; o simples ponto-e-vírgula não é sufici­
ente para estabelecer essa relação, de forma que os dois segmentos do
texto não chegam a constituir uma unidade frasal, m as apenas duas de­
clarações desconexas (ver 3. Par., 4.0).
c) omissão de idéias de transição lógica: “O progresso tecnológico apresen­
ta tam bém seu lado negativo: a incidência de doenças das vias respira­
tórias torna-se cada vez maior em cidades como Tóquio, Novà York e
São Paulo.” A omissão de referência à poluição do ambiente, provoca­
da pelos gases venenosos expelidos por veículos, fábricas, incinerado­
res, etc. das grandes cidades, torna as duas declarações, contidas nas
duas orações justapostas, se não incompatíveis, pelos m enos descone­
xas ou dissociadas. A omissão de certas idéias, de certos estágios do ra­
ciocínio pode levar a estabelecer falsas relações: “Verdadeira revolução
na área dos transportes e das comunicações levou ao desenvolvimento
de novas fontes de energia, e recentes conquistas d a eletrônica e da fí­
sica nuclear modificaram profundam ente o conceito de guerra.” É certo
que a “revolução na área dos transportes e das comunicações levou ao
desenvolvimento de novas fontes de energia”, mas é preciso explicar co­
mo, o que o autor não fez por ter omitido certas idéias de transição,
certos estágios da seguinte relação de causa-e-efeito: revolução nos
transportes > aum ento do consumo de combustíveis > possível escas­
sez ou exaustão deles > necessidade de novas fontes de energia (com­
bustíveis, etc.). Difícil ainda de perceber é a relação entre “revolução
nos meios de transportes” e “recentes conquistas da eletrônica e da físi­
ca nuclear" que modificaram o conceito de guerra. No caso, um a locu­
ção como “por outro lado”, em vez de um simples “e”, correlacionaria
mais adequadam ente as duas declarações, m ostrando que elas correm
paralelas e vão ser desenvolvidas a seguir.
d) subversão na ordem das idéias: “Apesar dos conflitos ideológicos, raciais
e religiosos que marcam inconfundivelmente as relações entre os indiví­
duos nos dias de hoje,
meios de comunicação.”
resulta um a inadequada
queria dizer é que “apes;
m unicação” as relações
tos ideológicos, raciais e
4. revele conformidade com
cultural: “O Sol é gélidc
répteis são mamíferos” <
gral e indiscutível mas t
rios a toda a nossa expe
5. constitua um enunciado t
re um mínimo de probai
pos.” Será que conhece?
6. seja estruturada de tal
componentes para se torr
de despejo que o advog
desconheço mandou mt
causa perdida.” Apesar <
vel, com algum esforço,
com põem o período), e
nhas das suas múltiplas
te confusa.*
(Para outros aspecto
1.2, 1.3 e 2.5 a 2.8. Quai
bém 1.4.5.2, “Paralelismo :
1.2 Frases de situ;
Do ponto de vista d
um a unidade do discurso
sem pre é assim. Já vimos,
jeito. Existem também as
outro desses termos, ou o:
Às vezes, no conte#
tico onde se acha a frase
“am biente físico e social o
* Quanto à essencia dos itens 4. 5
te “grammaticalité".
7 CÂMARA JÚNIOR, J. Matoso. J
O thon
M.
Garcia
♦
37
duos nos dias de hoje, é extraordinário o progresso alcançado pelos
meios de comunicação.” A ordem das idéias parece subvertida, do que
resulta um a inadequada relação de oposição entre elas: o que o autor
queria dizer é que “apesar do extraordinário progresso dos meios de co­
municação” as relações entre os indivíduos se caracterizam por confli­
tos ideológicos, raciais e religiosos.
4. revele conformidade com a experiência geral de uma dada comunidade
cultural: “O Sol é gélido”, “A Lua é quadrada”, “A Terra é cúbica”, “Os
répteis são mamíferos” constituem enunciados de gram aticalidade inte­
gral e indiscutível mas de significado absurdo ou falso, porque contrá­
rios a toda a nossa experiência cultural e lingüística.
5. constitua um enunciado que, no plano denotativa — frise-se bem — encer­
re um mínimo de probabilidade: “A águia conhece a mecânica dos cor­
pos.” Será que conhece?
6. seja estruturada de tal form a que não exija a remanipulação dos seus
componentes para se tatuar inteligível: “Creio que já lhe disse que a ação
de despejo que o advogado que o proprietário do apartam ento que eu
desconheço m andou me procurar me disse que me vai mover é uma
causa perdida.” Apesar dos seus enlaces sintáticos indiscutíveis (é possí­
vel, com algum esforço, destrinchar, classificar e analisar as orações que
compõem o período), essa frase se enleia e se em baralha nas artim a­
nhas das suas múltiplas incidências, tornando-se caótica e extrem am en­
te confusa.*
(Para outros aspectos sintáticos e estilísticos da frase, ver, a seguir,
1.2, 1.3 e 2.5 a 2.8. Quanto a gramaticalidade e incongruência, ver tam ­
bém 1.4.5.2, “Paralelismo semântico”.)
1.2 Frases de situação
Do ponto de vista da integridade gramatical, a frase é, como vimos,
um a unidade do discurso em que entram sujeito e predicado. Mas nem
sempre é assim. Já vimos, de passagem, que há orações ou frases sem su­
jeito. Existem tam bém as que não têm ou parecem não ter nem um nem
outro desses termos, ou os têm de m aneira puram ente mentalizada.
Às vezes, no contexto da língua escrita — i.e.} no “am biente lingüís­
tico onde se acha a frase” — ou na situação da língua falada — t.e., no
“ambiente físico e social onde é enunciada" —,7 um desses termos ou am ­
* Quanto à essencia dos itens 4, 5 e 6, cf. DUBOIS, Jean, et a i, Dictionnaire de linguistique, verbe­
te “grammaticalité”.
7 CÂMARA JÚNIOR, J. Matoso. Princípios de lingüística geral , p. 103.
38
♦
Co m unicação
em
Prosa
M oderna
bos estão subentendidos. Urna advertência ou aviso (Fogo! Perigo de vida,
Contramão), um anúncio (Leilão de obra de arte, Apartamentos à venda),
um a ordem (Silêncio!), um juízo (Ladrão, Le., Você é um ladrão), um ape­
io (Socorro!, Uma esmolinha pelo amor de Deus!), a indicação de um fenô­
meno (Chuva! i.e., Está chovendo), um simples advérbio ou locução adver­
bial (Sim, Não, Sem dúvida, Com licença), uma exclamação (Que bom!),
um a interjeição (Psiu!) são ou podem ser considerados como frases, em bo­
ra lhes falte a característica material da integridade gram atical explícita.
Só m entalm ente integralizados, com. o auxílio do contexto ou da situação,
é que adquirem legítima feição de frase.
A esse tipo de frase chamam alguns autores “frase de situação”,8 e
outros “frases inarticuladas”,9 entre as quais se podem ainda incluir, além
das acima indicadas, as saudações (Bom dia), as despedidas (Até logo), as
cham adas ou interpelações, isto é, vocativos desacom panhados (Joaquim!)
e fragmentos de perguntas ou respostas. No discurso direto (diálogo), se
alguém nos diz “Ele chegou”, é provável que peçamos um esclarecimento
sob a forma de um fragmento de pergunta representado por um simples
pronom e interrogativo — Quem? — em que se subentende “Quem che­
gou?” — ou um advérbio interrogativo — Quando? i.e., “Quando che­
gou?” São frases de situação ou de contexto, insubsistentes por si mes­
mas, se destacadas do am biente lingüístico ou físico e social em que são
enunciadas.
Dá dois passos
3 quarto de \ãsco se
— Não disse? ;
A cama de fer
nm O lavatório esma
na de pau, o tinteiro i
n er em verso:
S a n g u e co a lh a d o , co n
E sp alm ad o n a s
P esa d elo sin istro d e a
De sin istra s sei
S o b re o c a p im o rv aflt
M aciez d a s b o n in a s,
e s p in h o d e rosetas,
cricris su tis n esse mui
tã o p e q u e n in o ...
1.3 Frases nominais
Há outro tipo de frase que também prescinde de verbo, constituída
que é apenas por nomes (substantivo, adjetivo, pronom e): Cada louco com
sua mania, Cada macaco no seu galho, Dia de muito, véspera de nada. Nes­
sas frases, cham adas nominais — e também, mas indevidamente, elípticas
— na realidade não existe verbo, o qual, entretanto, pode ser “m entado”:
cada louco (tem, revela, age de acordo) com sua mania, cada macaco (de­
ve ficar) no seu galho, dia de muito (é, sempre foi), véspera de nada. A fra­
se, em si mesma, não é elíptica; o máximo que se poderia dizer é que o
verbo talvez o seja.
Característica de muitos provérbios e máximas, comum na língua fa­
lada, ocorre com freqüência na língua escrita, em prosa ou em verso. E
um a frase geralm ente curta, incisiva, direta, que tanto indica de maneira
breve, sumária, as peripécias de uma ação quanto aponta os elementos es­
senciais de um quadro descritivo, quer em prosa:
Cf. FRANCIS, W. Nelson. The structure o f American English, p. 374.
y Cl7. MAROUZEAU. J. Précis de stylistique française, p. 146. Cf. ainda Said Ati, Meios de ex­
pressão e alterações semantieas, p. 48 e ss.
...E as m in h a s u n h a s
Id éia d e o lh o s pintadi
M eus se n tid o s m aq u il
A tin ta s d es c o n h e c id a
F itas d e cor, v o z e a ria
O s a u to m ó v e is rep le o
S eus c h a u ffe u rs — os
C om librés d e fa n ta si
(Má
No primeiro exemj
4p e não caótica, pois arr
de no conjunto do quadr
: _ mais verbos, mas veri
de estado ou repom
seus associados sem ântk
Trabalhada à m aneira tra
[ t J F P E B ib ii o t e c a C e n t *
O thon
M.
Garcia
39
Dá dois p assos e a b re d e leve u m p o stig o . A luz sa lta p a r a d e n tro . E
o q u a rto d e Vasco se rev ela ao s olh o s d e la [C larissa].
— N ão disse? N ão h á m istério .
A cam a d e ferro, a colcha b ra n c a , o tra v e sse iro com fro n h a d e m o ­
rim . O la v a tó rio e sm a lta d o , a bacia e o ja rr o . U m a m esa cle p a u , u m a c a d e i­
ra d e p au , o tin te iro n iq u e la d o , p ap éis, u m a c a n e ta . Q u ad ro s n as p a re d e s.
(E. V eríssim o, op. cit., p. 2 2 0 )
quer em verso:
S a n g u e co a lh a d o , co n g elad o , frio
E sp alm ad o nas veias...
P esad elo sin istro d e alg u m rio
De sin istras sereias.
(C ru z e S o u za, “T éd io ", Faróis)
S o b re o c a p im o rv a lh a d o e ch eiro so ...
M aciez d a s b o n in as,
e sp in h o de rosetas,
cricris su tis n esse m u n d o im enso,
tã o p e q u e n in o ...
(A u g u sto M eyer, “S o m b ra v e rd e ”, Poesia)
...E a s m in h a s u n h a s p olidas
Tdéia cle olh o s p in ta d o s...
M e u s se n tid o s m a q u ila d o s
A U ntas d esco n h e cid a s...
F ita s d e cor, v o ze aria —
Os a u to m ó v e is rep leto s:
S eu s c h a u ffc u rs — os m eu s afetos
C o m librés cle fantasia!
(M ário cle S á-C arn eiro , “S ete ca n çõ e s d e d ec lín io ”, Poesias)
No primeiro exemplo, a enum eração relativam ente longa, se bem
que não caótica, pois arrola apenas os elementos afiliados por contigüidade no conjunto do quadro (o quarto de Vasco), poderia vir “enfiada” num
ou mais verbos, mas verbos, por assim dizer, anódinos, verbos de existên­
cia, de estado ou repouso, facilmente mentáveis: havia, existia, estava e
seus associados semânticos ocasionais (encontrava-se, via-se, estendia-se).
Trabalhada à m aneira tradicional, a frase ficaria mais ou menos assim: Ha­
40
♦
Com unicação
em
Prosa
m o d e r n a
via um a cama de ferro (sobre a qual se estendia) um a colcha branca e
(onde repousava) um travesseiro com fronha de morim... etc. — com um
só verbo (haver) a servir de m adrinha a toda a tropa de nomes, ou um
para cada unidade do trecho (repousava, estendia-se, etc.). Mas, qualquer
que fosse ele ou eles, seriam verbos de “encher”, e a consciência — ou
presciência — de que seriam desse teor levou o autor a evitá-los, por pre­
sumíveis, contribuindo assim para a economia da frase, já que não era seu
propósito deter-se na descrição detalhada do quarto, nem lhe interessava
fantasiar ou anim izar os seus componentes. Tratava-se apenas de uma vi­
são inicial rápida, de um simples correr d’olhos sem mais detença.
Nos exemplos em verso, mais ainda do que no anterior, a presença
do verbo é praticam ente — perdoem-nos o adjetivo e a grafia — “inmentável”. O que os três poetas queriam expressar eram puras sensações — de
asco e tédio, em Cruz e Souza, de volúpia sensorial, em Augusto Meyer, e
de imagens que se gravaram n a retina e na m emória do poeta, em Sá-Carneiro. Neste, aliás, como nos simbolistas e impressionistas de um m odo ge­
ral, são muito freqüentes as frases nominais: no poem a de que extraímos o
exemplo há vinte e duas estrofes assim constituídas.
No caso dos provérbios, o verbo é facilmente mentável. Num exame
rápido de cerca de trezentos deles, dos mais comuns, verificou-se que vin­
te e seis eram constituídos por frases nominais do tipo “cada macaco no
seu galho” (um a unidade) ou “dia de muito, véspera de nada” (duas uni­
dades em paralelism o). Desses vinte e seis, dezesseis — mais de 60% —
poderiam adm itir o verbo ser ou correlatos; oito — cerca de 30% —, ha­
ver ou correlatos, e somente dois admitiriam verbos de outras áreas (um ir,
o outro, ter).
Ora, nos provérbios de estrutura frásica não nom inal, a variedade
dos verbos é inum erável, o que nos leva a presumir que nominais são, na
quase-totalidade dos casos, aquelas frases cujo verbo, “mentável”, i.e.,
“pensável” é ser ou da área de ser, excepcionalmente haver e rarissimamente outros.
A tradição das frases sem verbo data do próprio latim (“Ars longa,
vita brevis”), particularm ente na linguagem familiar, como nas comédias de
Plauto. Entretanto, mesmo os clássicos puristas como César e Cícero, para
não citar outros, delas se serviam habitualm ente.
Todavia, ao classicismo dos séculos XVI a XVIII, principalm ente na li­
teratura francesa, parecia repugnar esse tipo de construção, que, em certa
m edida, só se generalizou no decurso do século XIX, a partir do rom antis­
mo, ou mais exatam ente, a partir de Victor Hugo: “Dans les lettres com­
m e dans la société, point d’étiquette, point d’anarchie des lois. Ni talons
rouges, ni bonnet rouge.”10
10 Apud C.OHEN, Marcel.
Grammaire et 5tyJe, p. 93.
Na literatura brasi
cronistas delas se serverr
bem: de preferência ou c
exem plo de um cronista
zemporâneos que manip
iaexcedíveis:
Um calor dan
Abismos em <
bam de explodir um
O segundo trecho
bndo: pane com verbo (
so talvez mais comum: <
período, são nominais,
com verbo claro. Veja-se
— Chuvas de
ponteiros dos pára-b
recortada na noite,
gos. Catadupas desp
numa agua umca, e
mágico (...)
Chuvas antiga
que, com o desabam
pessoas (...)
Chuvas mode
ruas igualmente trai
morros (...)
As subordinadas q
ções reduzidas de gerún
iras: "quando os ponteii
nas se avista...” (a de 18
escorregarem ...”, além
"transformando o Paláric
O thon
M.
Garcia
♦
41
Na literatura brasileira contem porânea, quase todos os novelistas e
cronistas delas se servem em maior ou m enor grau — mas é preciso frisar
bem: de preferência ou quase exclusivamente no estilo descritivo. Veja-se o
exemplo de um cronista muito em voga, um daqueles cinco ou seis con­
tem porâneos que m anipulam a crônica com habilidade e senso artístico
inexcedíveis:
U m ca lo r d a n a d o em Rom a, N ápo les em fa rra p o s.
A bism os em C osenza; p rim e ira s n o tícias d e G iu lian o : os b a n d itti a c a ­
b am d e ex p lo d ir u m c a m in h ã o com o ito carabinieri.
(P aulo M en d es C am pos, in: Q ua d ra n te 2 , p. 17 0 )
O segundo trecho (“Abismos em Cosenza...”) constitui um período hí­
brido: parte com verbo (acabam de explodir), e parte sem ele. É o proces­
so talvez mais comum: só algumas orações, quase sempre as primeiras do
período, são nominais, seguindo-se-lhes outra ou outras (subordinadas)
com verbo claro. Veja-se o exemplo que nos oferece Cecília Meireles:
— C h u v as d e v ia g en s: te m p e s ta d e s n a M a n tiq u e ira , q u a n d o n e m os
p o n te iro s d os p ára -b risa s d ã o v e n c im e n to à á g u a ; q u a n d o a p e n a s se av ista,
r e c o rta d a na n o ite , a p aisag e m sú b ita e fo sfó rea m o stra d a p elo s re lâ m p a ­
gos. C a ta d u p a s d e s p e n h a n d o so b re V eneza, m is tu ra n d o os céu s e os ca n ais
n u m a á g u a ún ica, e tra n sfo rm a n d o o P alácio dos D oges n u m im e n so b arc o
m á g ico (...)
C huvas antigas, n esta cid ad e nossa, d e p e rp é tu a s e n c h en tes: a d e 1811,
q u e, co m o d e s a b a m e n to d e u m a p a rte d o m o rro d o C astelo, s o te rro u v árias
p e sso as (...)
C huvas m o d e rn a s, sem tro v o a d a , sem ig rejas e m p rec e m a s co m as
ru a s ig u a lm e n te tra n sfo rm a d a s em rios, os b a rra c o s a e s c o rre g a re m p elo s
m o rro s (...)
(“C huva com le m b ra n ç a s” , in: Q uadrante 2 , p. 59)
As subordinadas que se seguem às nominais são na sua maioria ora­
ções reduzidas de gerúndio; mas Cecília Meireles nos dá exemplos de ou­
tras: “quando os ponteiros... nem dão vencimento à água”, “quando ape­
nas se avista...” (a de 1811) “que... soterrou várias pessoas”, “os barracos a
escorregarem ...”, além das gerundiais “despenhando sobre Veneza” e
“transform ando o Palácio dos Doges...”
4 2
♦
Comunicação
em
Prosa
M oderna
1.4.0 Processos sintáticos
1.4.1 Coordenação e subordinação: encadeamento e
hierarquização
Num período composto, normalmente estruturado — isto é, não cons­
tituído por frases de situação ou de contexto —„ as orações se interligam
m ediante dois processos sintáticos universais: a coordenação e a subordina­
ção. A justaposição, apesar de legitimamente abranger um a e outra, é ensi­
nada no Brasil como variante da primeira, e a correlaçãot como variante da
segunda.11
Na coordenação (também dita parataxe), que é um paralelismo de
funções ou valores sintáticos idênticos, as orações se dizem da mesma na­
tureza (ou categoria) e função,12 devem ter a mesma estrutura sintáticogram atical (estrutura interna) e se interligam por meio de conectivos cha­
mados conjunções coordenativas. É, em essência, um processo de encadea­
mento de idéias (ver, a seguir, 1.4.5.2).
As conjunções coordenativas (algumas das quais ligam tam bém pala­
vras ou grupos de palavras — sintagmas — e não apenas orações) relacio­
nam idéias ou pensamentos com um grau de travam ento sintático por as­
sim dizer mais frouxo do que o das subordinativas. E e nem (= e não) são
as mais típicas das conjunções e também as mais vazias de sentido ou teor
semântico, pois sua função precípua13 é juntar ou aproxim ar palavras ou
11 A Nbmenctoft/r« gram atical brasileira , ao tratar da composição do período, ignorou tanto a
justaposição quanto a correlação. É que, segundo orientação lingüística mais atualizada, a juslaposiçâo, como processo sintático, consisie em encadear frases sem explicitar por meio de
partículas coordenativas ou subordinativas a relação de dependência entre elas. Nesse senti­
do, dá-se-lhe também o nome de parataxe. A correlação é lima construção sintática de duas
partes relacionadas entre si de tal modo que a enunciação da primeira prepara a enunciação
da segunda (ver 1. Fr., 1.5.3). No Brasil, seguindo-se a orientação de José Oiticica (cf. Teoria
da correlação, passim ) e de outros autores, considera-se a correlação ora como um processo
autônom o ora como uma variante da subordinação.
12 Esse é o conceito tradicional e ortodoxo, entretanto já sujeito a revisão (ver. a seguir, 1.4.2).
13 Em alguns contextos ou situações, a partícula e parece imantar-se do significado dos mem­
bros da frase por ela interligados, insinuando assim idéias cie distinção, discriminação, oposi­
ção ou contraste, inclusão, simultaneidade, realce e, ocasionalmente, outras. Em “Há estudan­
tes e estudantes...”, e contagia-se da distinção implícita (sugerida não apenas pelo contexto em
que se insira a frase mas também pelas reticências ou pelo tom recicencioso da sua enuncia­
ção) entre os atributos de duas categorias de “estudantes": os verdadeiros, i.e., assíduos, estu­
diosos, e os outros, que se dizem tais. Nesse caso, e indica adição com discriminação ou distin­
ção e, mesmo, oposição. Em frases semelhantes, o segundo elemento da coordenação (palavra
ou sintagma) geralm ente se reveste de certo matiz pejorativo: “há mulheres e mulheres..."
significa “há mulheres boas, dedicadas, honestas, e mulheres que não se distinguem por essas
orações da mesma natui
aproximação; daí, o nomt
tad a no Brasil até certa 4
A alternativa típies
akem am , podendo repeti
cadeados: “Ou vai ou rat
repetidas, em pares: ora.
S&s quer... quer se interp
.aparentemente híbrida ai
Z2& o verbo se;; tanto así
predicativo) que se lhe i
X2 TO verbo: “Hão de paj
tetr culpados.” “Hão de
iarí*o lhes caiba a culpa.”
seguir. 1.4.2.)
As adversativas (m
' * marcam oposição (às
~=25aJva). Por serem erim
- - em mas e porémT m
rr~>c tam bém as explicí
i i s - quer dizer, menos di
ninção de conjunção
—gusesa, fato de ocorrên«
E>: íl registram entretanto
es anotem igualmente
zxgaesa, de Antônio d
^cy.des*. Assim também em *h
'.T aip o entre duas espécies ó
:c semânticos entre os quais
o oposição ou contraste,
y i~ssc: “Ftcou de vir e (= ra
“Era mais fone do q
E.x?r. (E comum pôr não ofa
'<*2i i-ièias m utuam ente exclude
j m esm o tempo) romântico.'
por exemplo, certos nc
e Paulo são primos** (em
:'vx2j*nente); “A e B são linhas
zny* 30 conhecido verso de G
■
se entende como “os ô*
ç f " . Se denotasse apenas adiçã
fes. o que mais se realçava peh
c ohofrção. Rui Barbosa e c
J. a locução prepositiva em fi
o Prof. Rocha Lima.)
O thon
M.
Garcia
♦
43
orações da mesma natureza e função. São conjunções de a d iç ã o ou de
daí, o nome de a d itiv a s (ou a p r o x im a tiv a s , denom inação ado­
tada no Brasil até certa época).
a p r o x im a ç ã o ;
A alternativa típica — o u — relaciona idéias que se excluem ou se
alternam , podendo repetir-se antes de cada um dos elementos por ela en­
cadeados: “Ou vai o u racha.” As outras alternativas vêm obrigatoriam ente
repetidas, em pares: o ra ... o ra , quer... q u er,; já ... já , se ja ... se ja . Às vezes o
par que/:., q u e r se interpola com seja... seja, dando lugar a uma estrutura
aparentem ente híbrida alternativa-concessiva, pois, nesse caso, seja é mes­
mo o verbo se r ; tanto assim que não só concorda com o nome (sujeito ou
predicativo) que se lhe posponha como também pode ser substituído por
outro verbo: “Hão de pagar o prejuízo, quer s e ja m (culpados) quer não se ­
j a m culpados.” “Hão de pagar o prejuízo, quer lhes c a ib a (a culpa) quer
não lhes c a ib a a culpa.” (Quanto ao valor concessivo de q u er... q u er, ver, a
seguir, 1.4.2.)
As adversativas (mas, p o r é m , c o n tu d o , to d a v ia , n o entanto, e n t r e t a n ­
to ) marcam oposição (às vezes com um maiz semântico de restrição ou de
ressalva). Por serem etimologicamente advérbios — traço já muito esmaeci­
do em m a s e p o r é m , mas ainda vivo nas restantes —, as adversativas,
como tam bém as explicativas e as conclusivas, são menos gramaticalizadas, quer dizer, menos despojadas de teor semântico, do que e, n e m e o u .
Sua função de conjunção é, aliás, fato relativamente recente na língua por­
tuguesa, fato de ocorrência posterior ao séc. XVIII. Ainda hoje, os dicioná­
rios, registram entretanto, (no) e n ta n to e to d a v ia como advérbios, embora
lhes anotem igualmente a função de conjunções. No D ic io n á r io d a lín g u a
portuguesa, de Antônio de Moraes Silva, quer na 1- ed. (1789) quer na 6-
virtudes”. Assim também em “ba jovens e jovens...”, “há velhos e velhos...”» sente-se, nítida, a
distinção entre duas espécies da mesma classe (de jovens ou de velhos). Contaminada pelos
pólos semânticos entre os quais se siiue, a conjunção e traduz freqüentemente a idéia de con­
tradição, oposição ou contraste, equivalente a mas ou porém, a e não obstante ou a mas, ape­
sar disso: “Ficou de vir e {= mas) não veio”; “Falou muito e (= mas) não disse nada que se
aproveite”; “Rra mais forre do que o adversário e (= e não obstante, mas, apesar disso ) foi der­
rotado”. (E comum pôr não obstante, entre vírgulas.) Entre palavras antitéticas ou que expres­
sem idéias m utuam ente excludentes, e pode exprimir simultaneidade: “É um escritor clássico e
(ao mesmo tempo) romântico.” Em outros casos, quando entre palavras de sentido relativo
(como, por exemplo, certos nomes de parentesco em linha colateral), sugere reciprocidade:
“Pedro e Paulo são primos” (entre si): “Esaú e Jacó eram gêmeos e rivais” (um do outro, reci­
procamente); “A e B são linhas paralelas” (entre si). Ocasionalmente, indica inclusão e realce,
como no conhecido verso de Camões — “Os doze de Inglaterra e o seu Magriço” (Lus., I, 12)
— que se entende como “os doze de Inglaterra e ( - inclusive, principalmente) o seu Magri­
ço”. Se denotasse apenas adição, seriam treze os doze de Inglaterra, pois Magriço eva um d e­
les, o que mais se realçava pela bravura e feitos. Em agrupamentos tais como ./oaqtu/n Nabuco e a abolição. Rui Barbosa e a República, Castro Alves e o Romantism o, e equivale, em essên­
cia, à locução prepositiva em face de. (Algumas dessas observações, devo-as a troca de idéias
com o Proí. Rocha Lima.)
44
♦
C omunicação
em
P rosa
M oderna
(1858), até mesmo o porém aparece como advérbio, com a ressalva, entre­
tanto, de que “hoje usa-se como conjunção restritiva”, dando-a o Autor
como sinônimo de contudo e todavia (mas não averba contudo e registra
todavia como advérbio).
Na subordinação (
mas desigualdade de fun»
rarquízação, em que o e
que na coordenação. Ne;
pre sem anticam ente indej
dentes de outra, quer qua
co- N enhum a oração su b
da sua principal (que tai
pal do período, da qual,
to, se não podem subsis
porque fazem parte de o
que qualquer oração sub
m as fragmento diverso d
de contexto e em 1. Fr.,
cão, mas não uma frase,
da; é apenas um a parte,
exerce a função de adjun
Por isso, Le., por serem essencial e etimologicam ente advérbios, é
que no entanto, entretanto, contudo e todavia vêm freqüentem ente precedi­
dos pela conjunção e: ‘Vive hoje na maior miséria e (,) no entanto (,) já
possuiu um a das maiores fortunas deste país.” A ser no entanto simples
conjunção, simples utensílio gramatical (conectivo), torna-se difícil a classi­
ficação da oração: coordenada aditiva, em função do e, ou adversativa, em
função do no entanto? É evidente que não poderá ser um a coisa e outra. A
ortodoxia gram atical aconselharia a supressão do e, em virtude de, m oder­
nam ente, se atribuir a no entanto valor de conjunção. Mas, se se aceita o
agrupam ento, a oração será aditiva, e no entanto, advérbio, caso em que
costum a (ou deve) vir entre vírgulas. O que se diz para no entanto serve
para entretanto, todavia, não obstante. Também mas aparece às vezes ju n ­
to a contudo e todavia, dando como resultado um a construção que os câ­
nones gramaticais vigentes condenam por pleonástica, como o fazem com
o exemplo clássico (ainda comum em certa cam ada social) mas porém. É
certo que, quando, por descuido ou não, mas e contudo, mas e todavia (e
até mas e entretanto e mas e no entanto) ocorrem na m esm a oração, costu­
m am vir distanciados pela intercalação de outro(s) term o(s) da oração, por
sentir o em issor que se trata de partículas m utuam ente excludentes, sinôni­
mas ou equivalentes que são.
■x São várias as funções que as
«djsmto adnomínal, adjunto advt
^i-lTrimento deste capítulo, danx
i*:ssivel o mesmo agrupamento
tL-rivas, B — adjetivas, C — ati
Zc :èm conectivo, ou reduzidas.
o-rm plos de letra b), gerúndio i
As explicativas (pois, porque) relacionam orações de tal sorte que a se­
gunda encerra o motivo ou explicação (razão, justificativa) do que se decla­
ra na primeira. Em virtude de afinidade semântica entre motivo e causa, por­
que, explicativa, confunde-se com porque, subordinativa causal (ver, a pro­
pósito, 3. Par., 2.5). Quanto à opção entre pois e porque, ver 1. Fr., 1.6.3.3,
letra c, in fine.
As conclusivas (logo, pois, portanto) entrosam orações de tal modo
que aquilo que se afirma na segunda é conseqüência ou conclusão (resulta­
do, efeito) do que se declara na primeira: “Penso, logo existo.” “Ouviste a
advertência; trata, portanto (ou pois), de acautelar-te.” “Cumpriste o de­
ver; portanto, não há motivo para que te censurem .” As locuções adver­
biais por conseqüência, por conseguinte, por isso funcionam também como
conjunções conclusivas: “Penso, logo (por conseqüência, por conseguinte, por
isso) existo.” (Ver 1. Fr., 1.6.4.)
As explicativas e conclusivas, mais até do que as adversativas, esta­
belecem tão estreitas relações de m útua dependência entre as orações por
elas interligadas, que a estrutura sintática do período assume característi­
cas de verdadeira subordinação (ver, a seguir, 1.4.2).
A — Substantivas (valor d e st
1
F L IÇ Ã O DE SU JE IT O :
a
á
F preciso que digamos a verá
£ p red so dizermos a verdade
2.
Fl x ç ã o
a
Y
r^ço-te que digas a verdade.
S T : sei se ele disse a verdade
Qoero saber quem diz a verd
? e o t e dizer a verdade.
3
F .X Ç Ã O DE O B JE T O tN D IR E II
de
o b je t o
d ir e t o
:
* T id o depende de que digas c
Y Tacc depende de dizeres a n
-A F . N - : * 0 D E CO M PLEM ENTO »
at "fc-hc a certeza de que d e d
Y Fje Zz a impressão de estar <
i
F .V ^ ío
DE p r e d i c a t i v o :
é que digas a verd
# ,^3) m elhor é dizeres a verdade
ml
O thon
M.
Garcia
♦
45
Na subordinação (também cham ada hipotaxe), não h á paralelismo
mas desigualdade de funções e de valores sintáticos. É um processo de hie­
rarquização, em que o enlace entre as orações é muito mais estreito do
que na coordenação. Nesta, as orações se dizem sintática mas nem sem ­
pre sem anticam ente independentes; naquela, as orações são sempre depen­
dentes de outra, quer quanto ao sentido quer quanto ao travam ento sintáti­
co. N enhum a oração subordinada subsiste por si mesma, i.e., sem o apoio
da sua principal (que também pode ser outra subordinada) ou da princi­
pal do período, da qual, por sua vez, todas as dem ais dependem. Portan­
to, se não podem subsistir por si mesmas, se não são independentes, é
porque fazem parte de outra, exercem função nessa outra. Isto quer dizer
que qualquer oração subordinada é, na realidade, um fragmento de frase,
mas fragm ento diverso daquele que estudam os nas frases de situação ou
de contexto e em 1. Fr., 2.6. “Se achassem água por ali perto” é uma ora­
ção, mas não um a frase, pois nada nos diz de m aneira completa e defini­
da; é apenas uma parte, um termo de outra (“beberiam m uito”) na qual
exerce a função de adjunto adverbial de condição.14
i4 São várias as funções que as orações subordinadas exercem em outra (sujeito, complemento,
adjunto adnominal, adjunto adverbial). À guisa de revisão, até certo ponto necessária ao desen­
volvimento deste capítulo, damos a seguir amostras dessas funções, manipulando sempre que
possível o mesmo agrupamento de idéias. As três famílias de orações subordinadas (A — subs­
tantivas, B — adjetivas, C — adverbiais) podem ser desenvolvidas (exemplos de letra a), quan­
do têm conectivo, ou reduzidas, quando o verbo está numa das suas formas nominais: infinitivo
(exemplos de letra 6), gerúndio (exemplos de letra c) e particípio (exemplo de letra d).
A — S ubstantivas (valor de substantivo):
1. F u n ç ã o
dl
su je it o
:
a) É preciso que digamos a verdade.
b) É preciso dizermos a verdade.
2. FUNÇÃO DF. OB.Hf.TO DIRETO:
a) Peço-te que digas a verdade.
Não sei se ele disse a verdade.
Quero saber quem dtz a verdade.
b) Peço-te dizer a verdade.
3. F un ç ã o
de
objeto
in d ir e t o :
a) Tlido depende de que digas a verdade.
b) Tlido depende de dizeres a verdade.
4. F u n ç ã o
de c o m p le m en to
n o m in al:
a) Tenho a certeza de que ele dirá a verdade.
b) Ele dá a impressão de estar dizendo a verdade.
5. F u n ç ã o
dl: p r e d i c a t i v o :
a) O melhor é que digas a verdade.
b) O m elhor é dizeres a verdade.
46
♦
C omunicação
em
Prosa
M oderna
1.4.2 Falsa coordenação: coordenação gramatical e subordinação
psicológica
Segundo a doutrina tradicional e ortodoxa — como já assinalamos —,
as orações coordenadas se dizem independentes, e as subordinadas, depen­
dentes. M odernamente, entretanto, a questão tem sido encarada de modo
B — Adjetivas (valor de adjetivo):
Função:
a)
b)
c)
d)
a d ju n t o
a d n o m in a i .
Héi verdades que não se dizem.
ITá muita gente a passar fom e.
Há muita gente pa.ssarido fom e.
Há verdades direis de tal modo que parecem mentiras.
diverso.15 Dependência st
bém na coordenação, sahi
çoes e , ou e nem . C
ções “portanto, não sairen
d a significa autonomia, a
sentido. Que autonom ia d
N enhum a, por certo. A c
com o auxílio de outro
mos”; “Todos o procuraran
O par alternativo “q
tem legítimo valor subordii
juntivo: “Irei, quer chova, t
va, mesmo que faça sol”. A
(mas é facultativa antes do
bordinação concessivo-con<
exemplo, de nota aposta ai
C — Adverbiais' (valor de advérbio):
Função:
a d j ij n t o
a d v i -r m a l
Irei, q u e r queii
equivale a
1. Concessivas (ou de oposição, pois marcam um contraste semelhante ao que, em grau diver­
so, se expressa com a coordenada adversativa):
a) Embora diga a verdade, ninguém lhe dá crédiio.
b) Apesar de dizer a verdade, ninguém lhe dá crédito.
c) Mesmo dizendo a verdade, ninguém lhe dá crédito.
2. Temporais (indicam icmpo simultâneo, anterior ou posterior):
I — Fatos simultâneos:
a) Enquanto disser a verdade, todos o respeitarão.
b) Ao dizer a verdade, todos o respeitarão.
c) Dizendo a verdade, saberemos o que houve.
N.B.: O sentido das reduzidas de gerúndio depende muito do seu contexto: no caso da leira c, “di­
zendo” tanto pode expressar causa quanto condição ("porque disse”, "como disse” ou "se disse”).
II — Fato posterior a outro:
a) Depois que disse a verdade, arrependeu-se.
b) Depois de dizer a verdade, arrependeu-se.
c) Tendo dito a verdade, arrependeu-se.
III — Fato anterior a outro:
a) Antes que digas a verdade, pensa nas conseqüências.
b) A ntes de dizeres a verdade, pensa nas conseqüências.
3. Cansais:
a) Conto disseste a verdade, nada te acontecerá.
Nada te acontecerá, porque disseste a verdade.
b) Por teres dito a verdade , nada te acontecerá.
c) Tendo dito a verdade (dizendo), nada te acontecerá.
d) Interrogado habilmente, ele confessou a verdade.
Irei, se quisere
- Finais (conseqüência desejad*
2. ftira que dissesse a verdade. i
b Para dizeres a verdade, è pre<
5.
2'
b)
c'
Condicionais (condição ou su
Se náo podes dizer a verdade,
A não dizeres a verdade, é pr
Sã o dizendo a verdade, nada
6. Consecutivas (efeito ou conse
a ' Disse tantas verdades, que m
K.B.: A respeito das reduzidas d
Conformativas:
a' Disse a verdade, conforme Iht
6. Proporcionais:
a; À medida que cresce, menos ^
Quanto mais velho fica. meiK
9. Comparativas:
ã) Disse mais verdades do que i
Mente como ninguém. Mente
Obs.: A nomenclatura gramarica
como classificar “chorando” no s
predicativo, equivalente a “saiu c
15 CL ANTOINE, Géraid. La coon
O thon
M.
Garcia
♦
47
diverso.15 Dependência semântica mais do que sintática observa-se tam ­
bém na coordenação, salvo, apenas, talvez, no que diz respeito às conjun­
ções “e”, “ou” e “nem ”. Que independência existe, por exemplo, nas ora­
ções “portanto, não sairemos”? e “mas ninguém o encontrou”? Independên­
cia significa autonomia, autonom ia não apenas de função mas também de
sentido. Q ue autonom ia de sentido há em qualquer desses dois exemplos?
Nenhuma, por certo. A comunicação de um sentido completo só se fará
com o auxílio de outro enunciado: “Esta chovendo; portanto, não saire­
mos”; iLTodos o procuraram, mas ninguém o encontrou”.
O par alternativo “quer... quer”, incluído nas conjunções coordenativas,
tem legítimo valor subordinativo-concessivo quando se lhe segue verbo no sub­
juntivo: “Irei, quer chova, quer faça sol” corresponde a “irei, mesmo que cho­
va, mesmo que faça sol”. Até a vírgula que se impõe antes do primeiro “quer”
(mas é facultativa antes do segundo) insinua a idéia de subordinação, uma su­
bordinação concessivo-condicional, como se pode sentir melhor no seguinte
exemplo, de nota aposta aos originais desta parte pelo Prof. Rocha Lima.
Irei, q u e r q u eira s, q u e r n ão q u eiras.
equivale a
Irei, se q u ise re s o u (e) m esm o que n ão q u eira s.
4. Finais (conseqüência desejada ou preconcebida):
a) Para que dissesse a verdade, foi preciso ameaçá-lo.
b) Para dizeres a verdade, é preciso ameaçar-te.
5.
a)
b)
c)
Condicionais (condição ou suposição):
Se não podes dizer a verdade, é preferível que te cales.
A não dizeres a verdade, é preferível que te cales.
Não dizendo a verdade, nada conseguirás.
6. Consecutivas (efeito ou conseqüência de Fato expresso em oração precedente):
a) Disse tantas verdades, que m uitos ficaram constrangidos.
N.B.: A respeilo das reduzidas dc infinitivo com valor consecutivo, ver 1.6.4.
7. Conformativas:
a) Disse a verdade, conforme lhe recomendaram.
8. Proporcionais:
a) À medida que cresce., menos verdades diz.
Quanto m ais velho fica , menos verdades diz.
9. Comparativas:
a) Disse mais verdades do que mentiras.
Mente como ninguém. Mente tanio quanto você.
Obs.: A nomenclatura gramatical brasileira não reconhece a existência de orações modais. Mas
como classificar ‘'chorando” no seguinte período: “Saiu chorando*9? Ou é rnodal ou tem valor de
predicativo, equivalente a “saiu choroso”. (Cf. ALI. Said. Gramática histórica , 5- ed., p. 354 e ss.)
Cf. ANTOINK, Gérald. La coordinatian eu français, passim mas principalmente v. 1, p. 144 e ss.
48
♦
Com unicação
em
Prosa
M oderna
Portanto, quando se diz que as orações coordenadas são da mesma
natureza, cum pre indagar: que natureza? lógica ou gram atical? As con­
junções coordenativas que expressam motivo, conseqüência e conclusão
(pois, porque, portanto) legitim am ente não ligam orações da mesma n atu ­
reza, tanto é certo que a que vem por qualquer delas encabeçada não
goza de autonom ia sintática. O máximo que se poderá dizer é que essas
orações de “pois”, “porque” (dita explicativa) e “p ortanto” são limítrofes
da subordinação. Em suma: coordenação gramatical mas subordinação psi­
cológica.
Por isso, m uitas vezes, um período só aparentem ente é coordenado.
Vejamos outros casos, examinando os três pares de frases seguintes:
a)
Não fui à festa do seu aniversário: não me convidaram.
b)
Não fui à festa do seu aniversário: passei-lhe um telegram a.
c)
Não fui à festa do seu aniversário: não posso saber quem estava lá.
São frases construídas segundo o processo particular da coordena­
ção cham ado justaposição (recordem-se as observações d a nota 8, retro):
orações não ligadas por conectivo, separadas na fala por uma ligeira pau­
sa com entoação variável, m arcada na escrita por vírgula, ponto-e-vírgula
ou, mais com um ente, por dois-pontos.
É outro caso de coordenação ou justaposição gramatical, mas de su­
bordinação psicológica, tanto é certo que o segundo elem ento de cada par
de frases não goza de autonomia de sentido. A relação entre as duas ora­
ções de cada período é de dependência, nitidam ente insinuada pelos doispontos na escrita, e na fala, por uma entoação da voz que indica:
a) explicação ou causa: Não fui à festa do seu aniversário porque (pois)
não me convidaram.
b) oposição (ressalva, atenuação ou compensação): Não fui à festa do seu
aniversário, mas (em compensação) passei-lhe um telegram a.
c) conclusão ou conseqüência; Não fui à festa do seu aniversário; portanto
(por conseqüência) não posso saber quem estava lá.
Situação idêntica — de falsa coordenação — é a que se verifica no
raciocínio dedutivo (ver 4. Com., 1.5.2 e 1.5.2.1), em que as orações de
“o ra” e “logo”, na segunda premissa e na conclusão, são absolutam ente de­
pendentes da prim eira premissa:
Primeira premissa (maior): Todo homem é mortal;
Segunda premissa (menor): ora, Pedro é homem;
Conclusão..............................: logo, Pedro é mortal.
14.3 Outros casos
Esse tipo de justap<
é muito comum nas descr
O c é u se d e r r a
ra e m o n d a s d e calor.
ou nas narrativas breves:
O g rito d a gaiv
g a r d o n d e p a rtiu ; che;
d ão , e n a d a vê d o qut
No primeiro exempl
sive as duas últimas, com
todos os aspectos do qua
em virtude da omissão de
do, as unidades estão sep;
que vêm ligadas pela conj
série, como se tivesse enui
Mas esse aspecto d
Voltemos à falsa coordena
logo exausto”, só existe cc
do, pois, na realidade, a
nando dois fatos indepem
exausto” existe um a coesã
pendência é sintática, mas
m ento poderia ser traduzi*
C o m o o d ia e
ex a u sto .
Fiquei logo exa
16 Há outros tipos de justa
chara em suas excelentes Li
sor considera como de just;
bios interrogativos indiretos
dem am ente, se dâ o nome
O thon
M.
Garcia
♦
49
1.4.3 Outros casos de falsa coordenacâo
/
Esse tipo de justaposição — tam bém dito coordenação assindética —
é muito com um nas descrições sumárias:
O c é u se d e rra m a em e stre la s, a n o ite é m o rn a , o d e se jo so b e d a te r ­
ra e m o n d a s d e calor.
(Jo rg e A m ad o , S ã o Jorge dos Ilh éu s, p. 11 8 )
ou nas narrativas breves:
O g rito d a g aiv o ta te rc e ira v e z re sso a a s e u ou v id o ; v ai d ire ito a o lu ­
g a r d o n d e p a rtiu ; ch e g a à b o rd a d e um ta n q u e ; se u o lh a r in v e stig a a e s c u ri­
d ã o , e n a d a vê d o q u e busca.
(J. d e A lencar, Ira cem a , XII)
No primeiro exemplo, as orações estão separadas por vírgula, inclu­
sive as duas últimas, com o que o autor parece insinuar que não arrolou
todos os aspectos do quadro descrito, deixando a série como que aberta,
em virtude da omissão de um e entre as duas últimas orações. No segun­
do, as unidades estão separadas por ponto-e-vírgula, salvo as duas últimas,
que vêm ligadas pela conjunção “e”, com a qual o autor parece “fechar” a
série, como se tivesse enum erado todos os detalhes dignos de menção.
Mas esse aspecto da justaposição16 não nos interessa neste tópico.
Voltemos à falsa coordenação. Em: “O dia estava muito quente e eu fiquei
logo exausto”, só existe coordenação quanto à forma, não quanto ao senti­
do, pois, na realidade, a partícula “e” não está aproxim ando ou concate­
nando dois fatos independentes: entre “estar muito quente” e “ficar logo
exausto” existe uma coesão íntima, um a relação de causa e efeito. A inde­
pendência é sintática, mas não semântica ou psicológica. O mesmo pensa­
mento poderia ser traduzido pelo processo da subordinação:
C om o o d ia e s ta v a
e x a u s to .
(o u e stiv e sse ) m u ito q u e n te , e u
fiq u ei logo
F iquei logo e x a u sto p o rq u e o d ia esta v a m u ito q u e n te .
16 Há outros ripos de justaposição, inclusive na subordinação, como nos ensina Evanildo Bechara em suas excelentes lições de português. É verdade que alguns casos que o ilustre profes­
sor considera como de justaposição (o das substantivas introduzidas por pronomes ou advér­
bios interrogativos indiretos, por exemplo), parecem-nos discutíveis. É a justaposição que, mo­
dernam ente, se dá o nome de parataxe (que também designa a coordenação).
50
♦
COMUNICACÄO
EM
PROSA
M O D E R NA
Pode-se ainda avivar a relação de causa e efeito na coordenação,
em pregando-se, como é freqüente, um a partícula adequada:
O d ia e s ta v a m u ito q u e n te ; p o r isso (o u “e p o r isso ”) fiq u ei logo
e x a u sto .
Coordenação
O São Francisco é o r ii
zadonal; ele banha \
££& d c Brasil e depois <
No seguinte período tam bém há coordenação aparente entre as duas
primeiras orações:
A tu r m a te rm in o u a prova e o p ro fe sso r disse q u e p o d ía m o s sair.
A idéia mais im portante, a que constitui o núcleo d a comunicação, é
“o professor disse que podíamos sair”; coordenada à anterior, que encerra
idéia de tempo, portanto, de circunstância, de fato acessório, ela fica no
mesm o nível quanto à ênfase. O processo da subordinação perm itiria que
se sobressaísse:
Quando a turma terminou a prova, o professor disse que podía­
mos sair.
A idéia de oposição ou contraste tanto pode ser expressa por uma
coordenada adversativa (conjunção “mas” ou sua equivalente) quanto por
um a subordinada concessiva, dita também “de oposição” (conjunção “em ­
bora” ou equivalente). Mas a opção pela subordinada concessiva fará com
que a oração de que ela dependa ganhe maior realce (ver 1.5, “Organiza­
ção do período”). Confrontem-se:
Coordenação
S u b o r d in a ç ã o
O B rasil é u m p aís d e g ra n d e s ri­
q u e z a s , tnas o p a d rã o d c vida do seu
p o v o é u m do s m a is baixos d o m u n ­
d o.
E m bora o B rasil se ja um país de
g ra n d e s riq u ezas, o p a d rã o d e v id a do
seu povo é um d o s m ais b aix o s do
m undo.
A idéia mais relevante nas duas versões é o “padrão de vida do seu
povo é um dos mais baixos do m undo”; na coordenação, ela praticam ente
se nivela à anterior; na subordinação, ao que nos parece, sobressai (ver 3.
Par., 4.3).
Muitas vezes, uma oração adjetiva aparece camuflada sob a forma
de coordenada. Confrontem-se:
Na subordinação h
smBsnâo forma de oraçãc
a ) ênfase em “rio da uni
no
O São Francis
da unidade nacio
b ) tria se em “deságua n
O São Francis
ruzí. deságua no Adài
c) ênfase em “banha vár
O São Francis
rico, banha vários Es
A sim ples coordeni
ce das idéias: em qualqi
pensam ento contido nas
da principal. (Ver, a prop
escolha e da posição da i
1.4.4 Coordenaça\
Na coordenação, f
de funções e valores siní
que na subordinação os
ênfase a determinada idi
no seu valor (ressalvada
queira atribuir ao teor d
vãm ente, da sua posição
tros m eios como a sele
O thon
M.
Garcia
♦
51
Coordenação
S u b o r d in a ç ã o
O S ão F ra n cisc o é o rio d a u n id a d e n a c io n a l; ele b a n h a v á rio s Estaid o s d o B rasil e d e p o is d e s á g u a no
(A tlân tico .
i
O S ão F ran cisco , q u e é o rio d a í
u n id a d e n a c io n a l, b a n h a v ário s Esta- j
do s d o B rasil e d ep o is d e s á g u a n o !
A tlântico.
j
!
Na subordinação há possibilidade de mais duas ou três versões, as­
sumindo forma de oração principal o enunciado digno de m aior realce;
a) ênfase em “rio da unidade nacional”:
O S ão F rancisco, que b a n h a vá rio s E sta d o s e d esá g u a n o A tlâ n tic o , é o
rio d a u n id a d e n acio n al.
b) ênfase em “deságua no Atlântico”:
O S ão F rancisco, q u e b a n h a v á rio s E sta d o s e é o rio d a u n id a d e n a c io ­
n a l, d e s á g u a n o A tlântico.
c) ênfase em “banha vários Estados”:
O S ão F rancisco, q u e é o rio d a u n id ad e n a c io n a l e d esá g u a n o A tlâ n ­
tic o , b a n h a vário s E stados.
A simples coordenação nem sempre permite essa gradação no real­
ce das idéias: em qualquer das três versões se sente, nitidam ente, que o
pensam ento contido nas orações adjetivas não merecia o mesmo relevo do
da principal. (Ver, a propósito, em 1.5.2 e 1.5.3, o que se diz a respeito da
escolha e da posição da oração principal.)
1.4.4 Coordenação
e ênfase
f
Na coordenação, por ser ela, como já assinalamos, um paralelismo
de funções e valores sintáticos idênticos, costum am ser mais limitados do
que na subordinação os recursos estruturais disponíveis para dar a devida
ênfase a determ inada idéia no conjunto do período. Niveladas as orações
no seu valor (ressalvadas as observações feitas em 1.4.2), o realce que se
queira atribuir ao teor de qualquer delas passa a depender, quase exclusi­
vam ente, da sua posição no período, quando não, evidentem ente, de ou­
tros meios como a seleção vocabular e o apelo à linguagem figurada.
52
♦
Co municação
em
P rosa
M oderna
Confrontem-se, à guisa de exemplo, as duas versões seguintes do mesmo
pensam ento:
J
C o o rd en a çã o
S u b o r d in a ç ã o
>
Eram três horas da madrugada de
d o m in g o ; a c id a d e d o rm ia tran q ü iliza­
d a p ela vigilância tre m e n d a d o G over­
n o Provisório, e o Largo do Paço foi te a ­
tro d e u m a c e n a ex tra o rd in ária, p re ­
se n cia d a p o r p o u c o s (...)
Às três d a m a d ru g a d a d e d o m in g o ,
e n q u a n to a cid ad e d o rm ia tran q ü iliza­
d a pela v igilância tre m e n d a d o G overno Provisório, foi o L argo do Paço teatro d e u m a cen a e x tra o rd in ária, presenciada p o r p o u co s (...)
\
j
j
|
j
i
(d e u m a rtig o d e R aul P om péia, apud B arreto e Laet, A ntoL nacional, 145) j
____
i
No período composto por coordenação, a oração “eram três horas da
m adrugada de domingo”, por ser a inicial e culminante do período, pode
parecer que encerra a sua idéia nuclear; no entanto, expressa apenas uma
circunstância de tempo, circunstância relevante, sem dúvida (o episódio
histórico — em barque de D. Pedro II a caminho do exílio — se tivesse
ocorrido às três horas da tarde, talvez não se revestisse da mesma dramaticidade aos olhos de Raul Pompéia), mas idéia secundária em relação às
demais. A mais importante, aquela da qual dependem as outras do perío­
do, está na oração final (“e o Largo do Paço foi...”). Ora, essa desigualda­
de de valores semânticos pode encontrar expressão mais adequada num a es­
trutura em que se evidencie também uma desigualdade de valores sintáti­
cos, traço que distingue a subordinação da coordenação. Na versão à
direita, original do Autor, a circunstância de tempo assume a forma de
simples adjunto adverbial, termo acessório da frase, de m odo que o pensa­
m ento nuclear, o mais relevante (“o Largo do Paço foi teatro...”) ressalta
do conjunto, justam ente por estar na oração principal.
É evidente que esse preceito — de que na oração principal deve es­
tar, ou convém que esteja, a idéia principal — não se impõe com rigidez
absoluta, em virtude da concorrência de outros fatores e em face da exis­
tência de outros recursos para dar ênfase a determ inada idéia, como vere­
mos em 1.5.1 e em 3. Par., 4.3.
14.5 Coordenação, correlação e paralelismo
Se coordenação é, como vimos, um processo de encadeam ento de
valores sintáticos idênticos, é justo presum ir que quaisquer elem entos da
O thon
m
.
Garcia
♦
53
frase — sejam orações sejam termos dela — , coordenados entre si, de­
vam — em princípio pelo menos — apresentar estrutura gram atical idên­
tica, pois — como, aliás, ensina a gramática de Chomsky — não se po­
dem coordenar frases que não com portem constituintes do mesmo tipo.
Em outras palavras: a idéias similares deve corresponder forma verbal si­
milar. Isso é o que se costuma cham ar paralelismo ou sim etria de constru­
ção.
Entretanto, o paralelismo não constitui uma norma rígida; nem sem ­
pre é, pode ou deve ser levado à risca, pois a índole e as tradições da lín­
gua impõem ou justificam outros padrões. Trata-se, portanto, de uma dire­
triz, mas diretriz extrem am ente eficaz, que muitas vezes saneia a frase,
evitando construções incorretas, algumas, inadequadas, outras.
Em alguns casos, como no seguinte trecho de Carlos de Laet, a ausên­
cia de paralelismo não invalida a construção da frase: “Estamos ameaçados
de um livro terrível e que pode lançar o desespero nas fileiras literárias”. Os
dois adjuntos de “livro” — o adjetivo “terrível” e a oração adjetiva “que
pode lançar...” — coordenados pela conjunção “e” não têm estrutura grama­
tical idêntica. Isso não impede que a construção seja vernácula, inatacável,
embora talvez fosse preferível tornar os dois adjuntos paralelos:
q u e é lerrív e l
E stam o s a m e a ç a d o s d e u m livro
e
(q u e) p o d e la n ça r.
ou
terrível
E sta m o s a m e a ç a d o s d e u m livro
e
ca p az d e lançar,
Também seria cabível omitir a conjunção “e”, mantendo-se a oração
adjetiva ou substituindo-a por um adjetivo equivalente: “...um livro terrí­
vel, que pode lançar...” ou “...um livro terrível, capaz de lançar...”
Q ualquer dessas formas é sintaticamente inatacável; todavia, a que
observa o paralelismo parece, do ponto de vista estilístico, mais aceitável.
O mesmo julgam ento se pode fazer, quando se coordenam duas orações
subordinadas:
Não saí de casa por estar chovendo e porque era ponto facultativo.
Aqui tam bém se aconselha o paralelismo de construção, se bem que
a sua falta não torne a frase incorreta. Do ponto de vista estilístico, seria
preferível que as duas orações causais (“por estar chovendo” e “porque era
ponto facultativo”) tivessem estrutura similar: “por estar chovendo e por
ser ponto facultativo” ou “porque estava chovendo e (porque) era ponto
facultativo".
Se se adotasse o processo correlativo aditivo (“não só... mas tam ­
bém ”), o paralelism o seria ainda mais recomendável:
N ão sa í d e casa n ão só porque esta v a ch o v e n d o m a s ta m b é m porque
e ra p o n to fac u ltativ o .
ou
N ão sa í d e ca sa n ão só po r estar chovendo m as ta m b é m p o r ser p o n ­
to fac u ltaiiv o .
No prim eiro caso, as duas orações causais são desenvolvidas; no se­
gundo, ambas são reduzidas. Observou-se assim o princípio do paralelis­
mo gramatical estrito.
Aliás, esse par correlato — “não só... mas tam bém ” — exige quase
sem pre paralelismo estrutural das expressões que se seguem a cada um
dos elementos que o constituem. O seguinte período é, quanto a isso, im­
perfeito na sua estrutura:
S ua a titu d e foi a p la u d id a n ã o só pelo povo m as ta m b é m seus co m p a ­
nheiros d e fard a lh e h ip o te c a ra m in te ira so lid a rie d a d e .
Diga-se, de preferência, adotando-se o paralelism o: “...não só pelo
povo mas tam bém pelos seus companheiros de farda, que lhe hipoteca­
ram inteira solidariedade” — estrutura em que os dois elem entos do par
correlato vêm seguidos por term os de valor sintático idêntico, traduzi­
dos em forma verbal idêntica (ambos iniciados até pela m esm a preposi­
ção “per”).
Às vezes, a falta de paralelismo nas correlações passa despercebida, o
que acontece mais freqüentemente quando a distância entre os dois m em ­
bros correlatos é relativamente longa:
S en ti-m e d e p rim id o pela a n g u stia , não canto p o r c a u sa d o p erig o q u e
co rria m e u velh o am ig o , m as ta m b ém d ev id o à re la ç ã o q u e m eu e s p írito a r ­
tific ia lm e n te estab e lec ia e n tre a su a sa ú d e e m e u am or.
Além da ausência de paralelismo (“não tanto por causa... mas tam ­
bém devido à ”), caso, aliás, absolutam ente irrelevante, ocorre ainda — is­
to, sim, é grave — ruptura da própria correlação: “não tan to ” exige obriga­
toriam ente “quanto” e não “mas também". Houve aí o que a gramática
O thon
m
.
Garcia
♦
55
chama de cruzamento ou contaminação sintática: de duas formas ou estru­
turas equivalentes ou similares resultou uma terceira:
n ão só... m as ta m b é m 1
não tanto... quanto
> não tanto... mas também
J
Ocasionalmente, essa terceira forma se fixa também n a língua; mas,
em geral, a gramática a condena, como no caso em pauta.
Pode-se, por um a questão de ênfase, separar por ponto-e-vírgula —
e até mesmo por ponto-período — o conglomerado do “não só” do segun­
do termo da correlação, como no seguinte exemplo:
N ão só (so m en te, a p e n a s) os irracio n ais ag e m p o r in stin to ; ta m b é m
os h o m e n s o fazem , e com freq ü ên cia.
Nesse caso, omite-se a conjunção “mas”, como se viu. As outras varian­
tes do segundo termo correlato (“mas ainda”, “senão que”, “senão ainda”)
não admitem essa pontuação, mas apenas vírgula.
No seguinte exemplo rompeu-se totalm ente o enlace correlato, não
porque se usou ponto-período entre os dois elementos, mas porque se deu
ao segundo uma estrutura sintática não correlata do primeiro:
A e n e rg ia n u c le a r n ã o s o m e n te se ap lica à p ro d u ç ã o d a b o m b a a tô ­
m ica ou p a ra fins m ilitares. S abe-se q u e p o d e s e r e m p re g a d a n a m ed icin a,
co m u n ica çõ e s e p a ra o u tra s áreas.
Além de outros defeitos, que discutiremos a seguir, a estrutura do
segundo período é inteiram ente inadequada ao contexto, por não lembrar
de forma alguma o enlace correlato, imposto pelo “não som ente”. Quanto
a isso — e somente a isso — , a seguinte versão é mais aceitável:
A e n e rg ia n u c le a r n ã o so m e n te se ap lica à p ro d u ç ã o d a b o m b a a tô ­
m ic a ou p a ra o u tro s fins m ilitares, m as ta m b é m p o d e se r e m p re g a d a n a m e ­
d ic in a , c o m u n ica çõ e s e p a ra o u tra s áreas.
Os outros defeitos de construção decorrem igualm ente da não obser­
vância do paralelismo gramatical (ou sintático). Á primeira preposição “pa­
ra” (“para outros fins militares”) deve ser substituída por “a”, a mesma do
termo idêntico precedente (“à produção da...”), já que exerce na oração a
mesma função dele, i.e., objeto do mesmo verbo “se aplica”: “...não som en­
te se aplica à produção da bomba atômica ou (a) outros fins militares...”
(com a segunda preposição “a” clara ou oculta). Caso idêntico é o do ter­
mo final “e para outras áreas”, que tem a mesma função dos outros dois
elementos da série iniciada por “na medicina”. Dizendo-se "pode ser em-
56
♦
C omunicação
em
Prosa
M oderna
pregada na medicina", há de se dizer também “nas comunicações e (em)
outras áreas”, pois o complemento do verbo “em pregar” não admite, no
texto em pauta, a preposição “para”. Assim, portanto, pode-se dizer que foi
o princípio geral do paralelismo que norteou a correção.
Também, num a série de complementos ou adjuntos agregados ao
mesmo predicado, é sempre aconselhável adotar-se forma gramatical idên­
tica, quer dizer, paralela ou simétrica. No seguinte exemplo, coordenam-se
indevidam ente um objeto indireto, constituído por um nom e regido de pre­
posição, e uma oração gerundial:
N o sso d e s tin o d e p e n d e em p a rte do d eterm in ism o e em p a rte obede­
cendo à n o ssa v o n ta d e .
senvolvida, quer dizer, ini
tu ra gramatical diferente,
mesmo term o — o predi*
mais elegante:
qut
É n ec essário
e
(qu
ou
ehe
Frase grosseiramente incorreta, por falta de paralelismo. Forma ade­
quada, mais simples e mais fácil: “...depende em parte do determinism o e
em parte da nossa vontade”.
Locução adverbial e advérbio podem vir coordenados sem paralelismo:
Vai o a u to r d e lin e a n d o ao m esm o tem po e g ra d a d v a m e n te o r e tra to d a
p e rso n a g e m .
Dois ou mais objetos do mesmo verbo aconselha-se que tenham tam ­
bém estrutura similar; em vez de: “Ele gosta de conversar e principalmente
de anedotas”, prefira-se: “Ele gosta de conversar e principalmente de ouvir (ou
contar) anedotas” ou “Ele gosta de conversa e principalmente de anedotas.”
Quando um dos objetos direto ou indireto do mesmo verbo é prono­
me pessoal átono (o, a, te, lhe, nos, vos) e o outro, substantivo, o parale­
lismo é parcialm ente conseguido com o auxílio da preposição “a”, do que
decorre com m uita freqüência um a forma pleonástica:
A braço-o a você e aos se u s am igos.
P eço-te a ti e ao s icu s am ig o s q ue m e p ro c u re m (o u p ro c u re is).
Se o pleonasm o repugna (sem razão), pode-se om itir qualquer dos
term os reiterados, sendo, entretanto, preferível m anter a forma regida pela
preposição: “abraço a você e aos seus amigos”, “abraço-o e aos seus ami­
gos”. Todavia, a forma pleonástica parece mais elegante e é a mais usual.
Também se aconselha o paralelismo gramatical, quando se coorde­
nam dois ou mais sujeitos do mesmo verbo. No seguinte exemplo:
É n e c e ssá rio ch eg ares a te m p o e q u e tra g a s a in d a a e n c o m e n d a .
“é necessário” tem como sujeito “chegares a tem po” (oração substantiva re­
duzida) e “que tragas” (oração com o mesmo valor da precedente, mas de-
É n ec essário
e
tr a ;
Convém lem brar q
ou, nem, m as: “É necessi
menda”, “É necessário qu
cessário que chegues a te
A falta de paralelis
coluto, como no seguinte
Fiquei d ec ep e i
d iss e q u e eu n ão sei
A conjunção “e” esi
bial (“com a nota da pro
do o professor me disse.,
cos (ambos os termos coo.
forma gramatical diversa *
so, ao se ler a frase, tem
depois da oração de “qus
pois se espera normalmer
Outro exemplo de
se faz, com freqüência, ei
outro, por oração desenvt
O G o v e rn a d o r
o ficialid a d e d a PM th
Seria preferível ton
objeto direto de “negou”:
da oficialidade tivesse...” i
visita da oficialidade...”
O thon
M.
Garcia
♦
57
senvolvida, quer dizer, introduzida por conjunção). Como se vê, têm estru­
tura gram atical diferente, apesar de sua função ser a mesma em relação ao
mesmo term o — o predicado “é necessário”. A construção paralela parece
mais elegante:
q u e ch e g u es a te m p o
{
e
(q u e) trag a s...
ou
c h e g a re s a te m p o
(
e
tra z e re s...
Convém lem brar que a situação seria a m esm a com as conjunções
ou, nem, m as: “É necessário que chegues a tem po ou que tragas a enco­
menda", “E necessário que chegues a tempo mas que tragas...”, “Não é ne­
cessário que chegues a tempo nem que tragas...”
A falta de paralelismo pode dar à frase um a feição de aparente anacoluto, como no seguinte exemplo:
F iquei d e c e p c io n a d o com a n o ta d a p ro v a e q u a n d o o p ro fe sso r m e
d iss e q u e e u n ão sei n a d a .
A conjunção “e” está indevidamente coordenando um adjunto adver­
bial (“com a nota da prova”) a uma oração subordinada adverbial (“quan­
do o professor me disse...”), isto é, coordenando valores sintáticos idênti­
cos (ambos os termos coordenados têm função adverbial), mas expressos em
forma gramatical diversa (um adjunto e uma oração). Em conseqüência dis­
so, ao se ler a frase, tem-se a impressão de que aquele “e” vai introduzir,
depois da oração de “quando”, uma outra da m esm a natureza de “fiquei”,
pois se espera norm alm ente essa coordenação, o que não ocorre.
O utro exemplo de coordenação sem paralelismo gramatical é a que
se faz, com freqüência, entre um objeto constituído por oração reduzida e
outro, por oração desenvolvida:
O G o v e rn a d o r n e g o u e s ta r a polícia d e so b rea v iso e q u e a v isita d a
o fic ia lid a d e d a PM tivesse q u a lq u e r se n tid o político.
Seria preferível tornar paralelos os dois elementos que constituem o
objeto direto de “negou”: “...negou que a polícia estivesse... e que a visita
da oficialidade tivesse...” ou “...negou estar a polícia de sobreaviso e ter a
visita da oficialidade...”
58
♦
Co m unicação
em
Prosa
M oderna
Também falta de paralelismo gramatical se observa no período se­
guinte, em que se coordenam um a oração que pode ser objeto de um ver­
bo e outra que não o pode:
P eço-lhe q u e m e escrev a a fim d e in fo rm ar-m e a re sp e ito d a s a tiv id a ­
d e s d o n o sso G rêm io e se a d a ta d a s p ro v as já e s tá m a rc a d a ,
A oração “que me escreva” pode ser objeto direto de “peço-lhe”, mas
a que a ela se coordena — “se a data das provas já está marcada” — não,
pois não se diz “peço-lhe se...”, e sim “peço-lhe que...” É verdade que se
pode admitir, para justificar ou tentar justificar a construção, que o verbo de
que a última oração seria o objeto direto — “diga”, por exemplo — está
oculto: “...e (me diga) se a data das provas já está m arcada.” Mas tal inter­
pretação nos parece um “arranjo”, que não torna a frase mais aceitável.
As partículas ditas explicativas — “isto é”, “ou seja”, “quer dizer”,
“vale dizer” e seus equivalentes — exigem norm alm ente paralelismo gra­
matical nos termos por elas ligados. Isso não ocorre no seguinte exemplo:
“A psicologia te n d e , a tu a lm e n te , a se c o n s titu ir co m o u m a ciên cia in­
d e p e n d e n te , isto é, te n d o o b je to e se n tid o p ró p rio s .”
A frase estaria mais “saneada”, se o Autor tivesse escrito “isto é, com
objeto e sentido próprios”, pois há maior paralelismo entre “independen­
te ” (adjetivo) e “com objeto e sentido próprios” (expressão com valor de
adjetivo), do que entre “independente” e “tendo” (gerúndio, empregado dis­
cutivelm ente no caso em pauta, pelo menos, com função adjetivante, dada
a identificação entre os dois termos imposta pelo “isto é”). A hipótese de
“tendo” coordenar-se à oração de “tende” é inteiram ente descabida.
O mesmo defeito aparece no trecho abaixo:
“N ão v in h a m os c o lo n iza d o re s com esp írito p io n e iro , isto é, a fim d e
se e s ta b e le c e re m no Novo M u n d o .”
A partícula “isto é”, como as suas equivalentes, não pode ou, pelo
menos, não deve igualar duas estruturas gramaticais diversas (o adjunto
adverbial “com espírito pioneiro” e a oração reduzida final “a fim de se es­
tabelecerem ”), em bora ambas expressem intenção ou propósito. Seria pre­
ferível, sem dúvida: “Não vinham... com espírito pioneiro, isto é, com a in­
tenção (ou fim, propósito) de se estabelecerem...” — dois adjuntos adver­
biais, ambos introduzidos pela mesma preposição “com”.
Em suma: o que se deduz dessas observações a respeito de coordena­
ção e paralelismo pode ser consubstanciado neste princípio (que Chomsky
subscreveria): não se podem coordenar duas ou mais orações, ou termos
delas, que não comportem constituintes do mesmo tipo, que não tenham a
m esm a estrutura interna e a mesma função gramatical (em 1.4.5.2, a se­
O thon
M.
Garcia
♦
59
guir, in fine, apontamos um caso excepcional — ou de tipo excepcional —,
em que dois termos têm a mesma função gramatical — aliás, sintática — e
não podem semanticamente, logicamente, ser coordenados).
1.4.5.1 Paralelismo rítmico ou similicadência
Paralelismo é, assim, uma forma de construção simétrica. Ora, sime­
tria é tam bém proporção, é isocronismo. Diz-se que há isocronismo, quan­
do segmentos de frase (termos, orações) ou frases íntegras têm extensão
igual ou quase igual, quer dizer, mais ou menos o mesmo número de síla­
bas. Mas, além da duração igual (isocronismo), frases ou segmentos delas
podem ter ainda ritmo ou cadência igual. Neste caso, dizem-se similicadentes. De qualquer forma, isocronismo e similicadência são aspectos do para­
lelismo ou simetria.
O princípio do paralelismo tem, como se vê, implicações não apenas
gramaticais mas também estilísticas e — como se m ostrará mais adiante —
igualmente semânticas. A similicadência, por exemplo, constitui recurso es­
tilístico de grande efeito, do qual alguns autores se servem, às vezes, até
com certa “afetação”; muitos “capricham” no em prego dessas potenciali­
dades rítmicas da frase com o propósito de dar maior realce ao pensam en­
to. Por exemplo: contrastes, confrontos, comparações, antíteses, quando va­
zados em estrutura verbal isócrona ou similicadente, dão às idéias novo re­
levo:
...q u a n d o p en sav a em ti, via-te
d e lic a d a co m o to d a s a s flo r e s ,
v o lu p tu o s a c o m o to d a s a s p o m b a s
lu m in o sa com o todas a s estrela s
(se te sílab a s)
(se te sílab a s)
(o ito sílab as)
(F.ça d e Q u eiró s, P rosas b á rb a ra s, a p u d E rn e sto d a Cal,
L en g u a y estilo cie Eç.a de Q u e ir o z , p. 2 7 7 )
Nesse exemplo de Eça — um dos prosadores que mais se deliciam
com a escolha de padrões rítmicos — não só a estrutura verbal das compa­
rações é idêntica; também sua cadência e duração.
Repetições intencionais e antitéticas tornam-se mais enfáticas, quan­
do observam o paralelismo rítmico. Os sermões de Vieira abundam em cons­
truções desse tipo:
Se os olhos v êem co m am or, o corvo é b ra n c o ; se com ó d io , o cisne
é n e g ro ; se com am or, o d e m ô n io é form o so ; se co m ó d io , o an jo é feio; se
com am or, o pig m eu é g ig a n te.
(“S erm ão d a q u in la q u a rta -fe ira ”, a p u d M. G o n çalv es V iana,
S e n n Ó e s e lu g a re s s e le to s , p. 2 1 4 )
60
♦
Co municação
em
Prosa
M oderna
Referindo-se a Cupido, diz Vieira que o tempo
...A frouxa-lhe o arco com q u e já n ão a tira ; e m b o ta -lh e as se tas, com
q u e já n ã o fere; a b re -lh e os olhos, com q u e vê o q u e n ã o via; e faz-lh e cre s­
ce r as a sa s, com q u e vo a e foge.
(“S erm ão d o m a n d a to ”, a p u d M. G onçalves V iana,
op. cit., p. 2 4 3 )
Expressivo exemplo de paralelismo rítmico é o seguinte trecho de M.
Bernardes:
N e n h u m d o u to r as o b se rv o u com m a io r e s c rú p u lo , n e m as e s q u a d ri­
n h o u com m a io r e stu d o , nem as e n te n d e u com m a io r p ro p rie d a d e , n e m as
p ro fe riu c o m m ais v e rd a d e , n em as explicou com m a io r clarez a, n em as rec a p a c ito u c o m m ais facilid ad e, n e m as p ro p u g n o u com m a io r v a le n tia , n em
as p re g o u e se m e o u com m a io r ab u n d â n c ia .
Note-se, além do polissíndeto (repetição da conjunção “nem”) a similicadência ou paralelismo rítmico das orações, principalmente dos adjuntos ad­
verbiais introduzidos pela preposição “com”, que não só têm a mesma estru­
tura gramatical mas também, todos eles, quase o mesmo número de sílabas.
Essas construções simétricas — isócronas ou similicadentes -—, em
que muitos autores se esmeram, sobretudo os de estilo barroco, m uito con­
tribuem para a expressividade da frase; mas convém não abusar dos seus
“encantos” para evitar se tom e o estilo artificioso e pedante.
1.4.5.2 Paralelismo semântico
Em certos casos, há paralelismo gramatical, mas não correlação de
sentido ou conveniência de situações:
Fiz d u a s o p era çõ es: u m a em S ão P aulo e o u tra n o ou v id o .
“Em São Paulo” e “no ouvido”, apesar de paralelam ente estrutura­
dos, não indicam circunstâncias de lugar correlatas quanto ao valor sem ân­
tico. Só por descuido, ou por gracejo ou hum or é que se poderia construir
um a frase com essa feição.
A falta de correlação semântica desse tipo constitui uma espécie de
ruptura de sistema lógico resultante da associação de elementos ou, m e­
lhor, de idéias desconexas (em São Paulo e no ouvido). A referência geográ­
fica ou topográfica “São Paulo” faz esperar, por associação lógica, que o
outro adjunto adverbial de lugar, coordenado (e... no ouvido) seja também
referente à situação geográfica, e até mesmo de igual extensão semântica:
a cidade São Paulo corresponderia a outra cidade — Rio, Paris — e não
país ou qualquer oua
tom a aquele inespera
pode m uitas vezes cor
Não é difícil er
exemplos de ruptura
res, como Carlos Drui
sátira ou humor:
C a rd íaco e m elam
a m o r ro n ca n a ho
pés d e la ra n je ira t
uvas m eio verdes e
j á m aduros.
Esse tipo de falu
aqueles casos de anom
ges 1, p. 100-3), ou <
nome específico de “in
não têm aparentemenn
gage poétique, p. 172),
ção exige homogeneidí
mos coordenados”.
Ora, a estrofe de
nências) semânticas (“c
jeira”...), isto é, uma sé
ráveis) na poesia, sobr
feus e seguidores do (
raciocínio frio. Detenha
mos versos. Um dos c<
termos coordenados de
com outras palavras: à
corresponder uma hom
em apreço, cumpriu-se
denando dois termos o
de o “am or ronca na I
nência semântica: no c
ciam-se uma palavra
abstrato (“desejos”), inc
ção ou lugar inconcebn
Casos de ruptura
cia, impertinência ou ai
prosa de alguns “elássie
recorre com certa freqü*
jo ou humor. É à conta
O thon
m
.
Garcia
♦
61
país ou qualquer outro acidente topográfico. Mais chocante, portanto, se
torna aquele inesperado “no ouvido”. Mas o ser chocante ou inesperado
pode m uitas vezes constituir-se num excelente recurso de ordem enfática.
Não é difícil encontrar tanto n a poesia quanto n a prosa m odernas
exemplos de ruptura de paralelismo semântico, sobretudo naqueles auto­
res, como Carlos Drummond de Andrade, de cuja obra transpiram ironia,
sátira ou humor:
Cardíaco e melancólico, o
amor ro n ca n a h o rta e n tre
pés d e la ra n je ira entre
uvas m eio verdes e desejos
já m aduros.
(C arlos D. d e A n d ra d e , “O a m o r b a te n a a o r ta ”,
Fazendeiro do ar..., p. 91)
Esse tipo de falta de paralelismo semântico n a coordenação está entre
aqueles casos de anomalia semântica estudados por T. Todorov (Ver Langages 1, p. 100-3), ou de impertinência semântica, a que Jean Cohen dá o
nome específico de “inconsequência”, isto é, de coordenação de idéias “que
não têm aparentem ente nenhum a relação lógica entre si” (Sfructure du langage poétique, p. 172), pois, como diz o mesmo autor (p. 167), “a coordena­
ção exige homogeneidade a um só tempo morfológica e funcional dos ter­
mos coordenados”.
Ora, a estrofe de CDA apresenta um a série de anomalias (ou im perti­
nências) semânticas (“o amor ronca”, “ronca na horta”, “entre pés de laran­
jeira”...), isto é, um a série de alogismos, perfeitam ente admissíveis (e admi­
ráveis) na poesia, sobretudo moderna, e também em certa prosa dos cori­
feus e seguidores do chamado “realismo mágico”, mas que repugnam ao
raciocínio frio. Detenhamo-nos, entretanto, no estudo apenas dos dois últi­
mos versos. Um dos corolários do conceito de coordenação é o de que os
termos coordenados devem pertencer ao mesmo universo do discurso, ou,
com outras palavras: à homogeneidade formal exigida pela gramática deve
corresponder um a homogeneidade de sentido exigida pela lógica. No caso
em apreço, cumpriu-se apenas a primeira exigência: a partícula e está coor­
denando dois termos com igual função de adjunto adverbial de lugar (on­
de o “am or ronca na horta”), mas carentes de coerência lógica, de perti­
nência semântica: no contexto, desprezada a permissividade poética, asso­
ciam -se um a palavra de sentido concreto (“uvas”) e outra de sentido
abstrato (“desejos”), inconciliáveis à luz da lógica por sugerirem uma situa­
ção ou lugar inconcebível, surrealista.
Casos de ruptura ou ausência de paralelismo semântico (inconseqüência, im pertinência ou anomalia semântica) dessa ordem marcam tam bém a
prosa de alguns “clássicos” como Machado de Assis, por exemplo, que a ele
recorre com certa freqüência, denunciando ou não intenções de fazer grace­
jo ou humor. É à conta do seu humor e malícia que se podem atribuir os
dois exemplos, já notórios, encontrados em Memórias póstumas de Brás Cu­
bas (cap. XV e XVII, respectivamente):
G astei trin ta dias p a ra ir do R o d o G rande ao c o ra çã o de M a rc e la .
M arcela a m o u -m e d u r a n te q u in z e d ia s e o n ze c o iito s de réis.
Caso sem elhante aparece também em D. Casmurro (cap. I):
“ ...e n c o n tre i n o trem d a C e n iral u m ra p a z aq u i d o b a irro , q u e e u c o n h e ço
d e v is ta e de c h a p é u .”
Mas, às vezes, a falta de paralelismo semântico configura-se como in­
congruência de tal ordem, que a frase se revela agramatical (ou, pelo menos,
de gramaticalidade discutível). É o caso, por exemplo, de frases do tipo da
seguinte: “Fulano é cordial e alfaiate.” Não é fácil explicar porque ela é ina­
ceitável. Mas é certo que o “sentimento lingüístico” — a “competência” do
falante ou ouvinte — rejeita essa coordenação entre “cordial” (adj.) e “alfaia­
te ” (subst.). No entanto, como nomes que são, podem integrar o núcleo do
predicativo (é; é surpreendente; mas nós ainda adotamos a Nomenclatura
Gramatical Brasileira, aprovada pela Portaria Ministerial n9 36, de 2 8 /1 /5 9 .
Se, isoladamente, podem ser predicativos (“Fulano é cordial” e “Fulano é al­
faiate”), em conjunto, isto é, ligados pela mesma cópula ao mesmo sujeito,
não o podem. Por quê? A gramática gerativa transformacional (GGT) diria
(ou dirá): a coordenação está bloqueada porque “cordial” e “alfaiate” (i.t\, X
e Y) não têm a mesma estrutura interna, não são constituintes do mesmo
tipo (X = adj., Y = subst.). Explica? Explica satisfatoriamente? E a elipse
(essa panacéia retórico-gramatical, que, com freqüência, escamoteia dificul­
dades mas nem sempre resolve todas) de “é também” — “Fulano é cordial e
é também alfaiate” — explicaria? Também não, a nosso ver. Trata-se de ques­
tão relativa à lógica e à lingüística, cuja discussão este tópico não comporta.
1.4.5.3 Implicações didáticas do paralelismo
Temos consciência de que muitos dos casos de falta de paralelismo
gramatical comentados em 1.4.5 representam formas de expressão legítimas
no que respeita à sua correção. Os mais flagrantes, porém, parecem repugnar
tanto à índole da língua e às suas tradições quanto aos princípios da lógica
referentes à ordenação e coordenação de idéias. Mas, mesmo que nenhum
dos casos examinados seja condenável, o valor didático do princípio do para­
lelismo se revela, sem dúvida, inestimável. Muitas vezes, ao corrigir ou co­
m entar a redação de um aluno, o professor se vê em dificuldades para fun­
dam entar a censura ou o louvor a certas frases cuja estrutura não pode ser
encarada ou discutida no âmbito exclusivo da gramática, digo melhor, da sin­
taxe ortodoxa. Se não recorrer ao princípio do paralelismo, ver-se-á na con­
O thon
m
.
Garcia
♦
63
tingência de servir-se de subterfúgios (“Há uma elipse aí...” “É uma espécie
de anacoluto”) ou de juízos peremptórios, dogmáticos, que não explicam nem
justificam coisa alguma (“Não se diz porque... não se diz, ora essa!” A frase
está errada; é absurda, incoerente.”) Quanto ao estudante, se o professor lhe
mostrar implicações proveitosas decorrentes desse princípio de paralelismo,
poderá ele aplicá-lo a casos semelhantes e assim evitar a incidência no mes­
mo erro ou erros da mesma natureza. Haveria então possibilidade de genera­
lizar, vale dizei; de deduzir dele um a regra ou diretriz bastante eficaz.17
1.5.0 Organização do período
7.5.7 Relevância da oração principal: o ponto de vista
Em face do exposto em tópicos precedentes, a respeito da coordena­
ção e da subordinação, pode-se afirmar que, em tese, a oração principal
encerra quase sempre a idéia principal, seja porque constitui o núcleo da
comunicação seja porque, simplesmente, desencadeia as demais do perío­
do. Muitas vezes, entretanto, a idéia mais im portante está ou parece estar
num a oração subordinada, especialmente quando substantiva ou adjetiva.
Ora, como a subordinada substantiva exerce a função de sujeito ou
de com plemento de outra, e a adjetiva, de adjunto adnominal de term o de
outra, se essa outra for a oração principal, a idéia mais im portante estará
no conjunto das duas, e não exclusivamente num a delas.
No seguinte trecho de Carlos Drummond de Andrade:
P ed iram -m e q ue d efin isse o A rp o a d o r
(In: Q ua d ra n te 2 , p. 12 9 )
há duas orações que se completam m utuam ente. Não se pode dizer que a
idéia mais im portante — a de definir o Arpoador — esteja apenas na su­
bordinada substantiva: está em ambas, pois, na realidade, o que existe aí
é, como queria Said Ali, uma oração composta, equivalente a “pediram-me
a definição do Arpoador”. No entanto, a prim eira é que desencadeia a se­
gunda: sem o “pedido” não existiria nem o período nem... a crônica.
Continuando, diz ainda o Autor:
É a q u e le lugar, d e n tro d a G u a n a b a ra e fora d o m u n d o , a o n d e n ão
v a m o s q u ase n u n c a , e o n d e d e se ja ría m o s (o b sc u ra m e n te ) viver.
17 Em 5. Ord., 1.2.1, “Pondo ordem no caos", estudam-se ainda outros aspectos da coordenação
e do paralelismo, mas já não do ponto de vista gramatical e sim apenas lógico.
64
♦
Comunicação
em
P rosa
M oderna
Ninguém dirá que qualquer das duas orações iniciadas por 0a)onde
encerra a idéia mais importante do período, a qual está, realmente, na prin­
cipal: (O Arpoador) é aquele lugar dentro da Guanabara e fora do mundo...
Mais adiante, diz o Cronista:
Há os namorados, que querem dar a seu namoro moldura atlântica,
céu e onda por testemunhas.
Aqui tam bém pode parecer que o mais im portante é querer dar ao
nam oro m oldura atlântica. Na verdade, essa oração adjetiva constitui s im­
pies adjunto de “os nam orados”, objeto direto de “h á”. Corresponde a um
adjetivo: há os nam orados desejosos de dar... Ainda assim, o fato mais im­
portante, o fato que se quer comunicar, que desencadeia os demais, é mes­
mo a existência de nam orados no Arpoador; querer ou não dar m oldura
atlântica ao nam oro é dele conseqüência.
Se, no caso da oração substantiva, a definição do Arpoador repre­
senta a idéia de maior valia, embora esteja num a subordinada, no caso da
adjetiva, a existência dos nam orados é, de fato, mais im portante do que
estarem eles desejosos de moldura atlântica para seu nam oro. Aqui, por­
tanto, a oração subordinada adjetiva encerra idéia secundária. Exatamente
por isso é que está entre vírgulas, como oração explicativa que é, pratica­
m ente desnecessária à essência do pensam ento contido n a principal.
Mas às vezes a oração adjetiva não é nem mais nem menos im por­
tante do que a principal:
Há os que seguem o rico pequeno-burguês de domingo e feriado...
Legitimamente, a oração deveria ser — e assim muitos a consideram
— todo o trecho transcrito, como se se dissesse (na verdade assim se pensa
mas se escreve outra coisa): há os seguidores do rito pequeno-burguês...
Neste caso, a situação é diferente: na oração adjetiva anterior, o
substantivo “nam orados” é suficiente por si mesmo, transm ite uma idéia
bastante definida, tornando-se “desejosos de dar m oldura...” fato acessó­
rio; na que estam os agora comentando, o pronome “os” é por demais inde­
finido, impreciso, para traduzir ou comunicar seja o que for, se não vier
devidam ente expandido, quer dizer, acompanhado de um adjunto especificador. Por isso, a oração “que seguem o rito...”, dita restritiva, é indispen­
sável, encerra um a idéia relevante. Dada, entretanto, a sua função de ad­
junto, ela pode ser considerada como parte da outra, a principal. De for­
ma que a idéia mais im portante não está num a só oração, mas nas duas,
como no caso da substantiva.
Coisa m uito diversa ocorre quando se trata de orações adverbiais,
que encerram ou devem encerrar idéias secundárias em relação à da prin­
cipal. Quando tal não acontece, é porque o período está indevidam ente es­
truturado ou o ponto de vista do autor não coincide com o do leitor no
que se refere à relevância da
subordinada constitui condiçl
municativa da principal. Exai
Quando as leis ceí
te cessam de proteger-no:
A oração principal, se
ciado aparentem ente descabi
nos”. Só a condição expressa
tom a aceitável o enunciado c
global, de uma estrutura, em
no conjunto.
Não obstante, o teste
num dos seus termos apenas
ções, transform ando a princi]
ça do ponto de vista, alterar
claração:
Quando as leis ceí
teger nossos adversários.
Aqui, a idéia posta em
deixa de ser “nós” para ser '
m ar de nova perspectiva semâ
tor se coloca é que vai deter
a sua posição no período. Or
texto ou situação e da conch
No seguinte período de
Quando o nobre
diante do qual pouco ani
uma dama deixou cair u
bre os arções, apanhou a
lábios e meteu-a no peite
as idéias mais im portantes, a
cação, estão nas quatro oraç
levou-a..., meteu-a...), constii
tos secundários, se bem que
ocorre no trecho de Rui Ba:
subverteria, em sua essência,
Se, entretanto, se fize;
subordinadas as quatro oraçi
trecho assumiria outra config
O thon
M.
Garcia
♦
65
que se refere à relevância das idéias. Em certos casos, é verdade, a oração
subordinada constitui condição ou circunstância indispensável à eficácia co­
municativa da principal. Examinemos o seguinte trecho de Rui Barbosa:
Quando as leis cessam de proteger os nossos adversários, virtualmen­
te cessam dc proteger-nos.
A oração principal, se isolada num só período, encerraria um enun­
ciado aparentem ente descabido: “as leis virtualm ente cessam de protegernos”. Só a condição expressa na subordinada tem poral, de valor restritivo,
torna aceitável o enunciado contido na principal. Trata-se de uma situação
global, de um a estrutura, em que o sentido não está num a das partes mas
no conjunto.
Não obstante, o teste da relevância da oração principal pode estar
num dos seus termos apenas. Se invertermos a relação entre as duas ora­
ções, transform ando a principal em subordinada e vice-versa, com m udan­
ça do ponto de vista, alterar-se-á tam bém substancialm ente o teor da d e­
claração:
Quando as leis cessam cle proteger-nos, cessam virtualmente cle pro­
teger nossos adversários.
Aqui, a idéia posta em foco, por ser considerada a mais importante,
deixa de ser “nós” para ser “nossos adversários". É o que se poderia cha­
mar de nova peíxpecttva serndrtttca do texto; o ponto de vista em que o au­
tor se coloca é que vai determ inar a escolha da oração principal, inclusive
a sua posição no período. Ora, esse ponto de vista decorre do próprio con­
texto ou situação e da conclusão a que se queira chegar.
No seguinte período de Rebelo da Silva:
Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote,
diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo, a mão alva e breve de
uma clama deixou cair uma rosa, e o conde, curvando-se com donaire so­
bre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a carreira, levou-a aos
lábios e meteu-a no peito.
as idéias mais im portantes, as que realm ente condensam o teor da comuni­
cação, estão nas quatro orações independentes (deixou cair..., apanhou...,
levou-a..., m eteu-a...), constituindo as demais, isto é, as subordinadas, fa­
tos secundários, se bem que não desprezíveis. Mas, ao contrário do que
ocorre no trecho de Rui Barbosa, a eliminação dessas subordinadas não
subverteria, em sua essência, o pensam ento do Autor.
Se, entretanto, se fizesse uma troca de funções, transform ando em
subordinadas as quatro orações coordenadas independentes, o sentido do
trecho assumiria outra configuração, como resultado da mudança do pon­
66
♦
Comunicação
em
p ro s a
M oderna
to de vista. Apresentemos, à guisa de ilustração, um a das versões possí­
veis, fazendo as adaptações necessárias:
Quando a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, que
o conde, curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou sem afrouxar a
carreira, levando-a aos lábios e metendo-a no peito, ele (conde) passava por
baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo.
A narrativa é conhecida (aparece em quase todas as antologias): trata-se de a “Última corrida de touros em Salvaterra”, em que o m arquês de
M arialva assiste à morte do filho, o conde dos Arcos. O período citado pre­
cede de pouco aquele em que o jovem conde cai ferido de morte pelo tou­
ro. Mas o nobre fidalgo estava apaixonado, e foi a m ulher am ada que dei­
xou cair a rosa. A breve cena idílica tem assim im portância especial, m ui­
to mais do que a simples passagem “por baixo do cam arote1'.
Entretanto, com a nova estrutura do período, o fato que se focaliza
mais de perto aquele para o qual se quer chamar a atenção, é a passagem
do conde por baixo do camarote. O que era, na versão original, fator secun­
dário, apenas uma circunstância de tempo a que se juntava a indicação do
local da cena, ficou, por assim dizer, em primeiro plano, em close-up, como
se fosse o incidente mais importante. Mas o ponto de vista que permitiu
essa nova perspectiva da cena seria o mais adequado? Passar a galope por
baixo do cam arote ou no meio do picadeiro deve ser coisa norm al num a
tourada; no entanto, a queda de uma rosa que o toureiro apanha, leva aos
lábios e mete no peito não deve ser incidente corriqueiro nesse esporte ibé­
rico. Dar-lhe ênfase é que seria normal. Ora, na versão original, a ênfase
não decorre senão da condição de orações independentes, que não seria
descabido dizer principais, se bem que em desacordo com a ortodoxia da
nossa nom enclatura gramatical mais renitente. Nesse período — como em
outros similares — há realmente quatro orações principais em relação às su­
bordinadas restantes. E nessas orações principais é que estão as idéias prin­
cipais.
Em conclusão, repetimos: na oração principal deve estar a idéia pre­
dom inante do período, segundo a intenção do autor, segundo o ponto de
vista em que ele, e não o leitor, se coloca.
1.5.2 Da coordenação paro a subordinação: escolha da oração
principal
Em face do que ficou dito no tópico precedente, pode-se concluir
que a escolha da oração principal não é ato gratuito, e que o ponto de vis­
ta e a situação devem servir de diretrizes para essa escolha.
Vejamos agora, de m aneira prática, como um a série de enunciados
simples, coordenados e relacionados pelo sentido, pode articular-se para
formar um período complexo sob a égide de um deles, que será a oração
principal.
Consideremos esta s
Vieira chegou ao Brasi
Ele nào contava ainda
Ele teve de acompanh;
Após a chegada, matri
A simples coordenaç
entre os diferentes fatos e
do o ponto de vista. Só cc
I Primeira hipótese — Idéia
Admitamos que o h
de Vieira, escolha natural,
a seguinte:
a) Vieira, que não contava .
para onde teve de acomp
jesuítas.
Da oração principal dem as demais. O fato de
ao sujeito — Vieira —, de
ção adjetiva (função de adj
de de ser um atributo nl
como nome próprio, já esfc
se se tratar de outro indiví
lar características diferentes
em 1615 não fazia prever o
A terceira oração —
tam bém adjetiva, tem sent
de”. A simples coordenaçã
nhar a família” seria desac
rente, já que a segunda é
ria anular essa relação de i
A quarta oração — “
reduzida de gerúndio, com
rio em relação à chegada <
semos da coordenação — V
18 Para essa fragmentação em pei
boa, que está na Antologia nacion
em 1614, como acreditam muitos.
0 TH 0 N
M .
G a r c ia
♦
6 7
Consideremos esta série de enunciados:
Vieira chegou ao Brasil em 1615.lfl
Ele não contava ainda oito anos de idade.
Ele teve de acompanhar a família.
Após a chegada, matriculou-se logo no colégio dos jesuítas.
A simples coordenação não permite estabelecer a verdadeira relação
entre os diferentes fatos enunciados nem realçar o mais relevante, segun­
do o ponto de vista. Só com a subordinação isso é possível.
I Primeira hipótese — Idéia mais importante: a chegada de Vieira
Admitamos que o fato considerado mais im portante seja a chegada
de Vieira, escolha natural, evidentemente. A versão do período poderia ser
a seguinte:
a) Vieira, que não contava ainda oito anos de idade, chegou em 1615 ao Brasil,
para onde teve de acompanhar a família, matriculando-se logo no colégio dos
jesuítas.
Da oração principal — “Vieira... chegou em 1615 ao Brasil” — depen­
dem as demais. O fato de não contar ainda oito anos de idade relaciona-se
ao sujeito — Vieira —, de que é atributo; reveste por isso a forma de ora­
ção adjetiva (função de adjunto adnominal), separada por vírgula em virtu­
de de ser um atributo não indispensável à identificação de Vieira, que,
como nome próprio, já está suficientemente definido, é inconfundível, salvo
se se tratar de outro indivíduo com o mesmo nome, ou se se quiser assina­
lar características diferentes da mesma pessoa: o Vieira que chegou ao Brasil
em 1615 não fazia prever o Vieira que desafiaria a própria Inquisição.
A terceira oração — “para onde teve de acom panhar a família” —,
também adjetiva, tem sentido locativo, que lhe vem da locução “para on­
de”. A simples coordenação entre “chegou ao Brasil” e “teve de acom pa­
nhar a família” seria desaconselhável por se tratar de idéias de valor dife­
rente, já que a segunda é urna decorrência da primeira. Coordená-las se­
ria anular essa relação de dependência.
A quarta oração — “matriculando-se logo no colégio dos jesuítas” —,
reduzida de gerúndio, constitui também o enunciado de um fato secundá­
rio em relação à chegada de Vieira ao Brasil. Se, aqui também, nos servís­
semos da coordenação — Vieira chegou ao Brasil e matriculou-se logo no co~
18 Para essa fragmentação em períodos simples, servimo-nos do irecho de João Francisco Lis­
boa, que está na Antologia nacional, onde se diz que Vieira chegou ao Brasil em 1615, e não
em 1614, como acreditam muitos.
légio dos jesuítas — estaria atenuada a idéia de subseqüência que relaciona
os dois fatos. Mas por que se adotou a forma reduzida? Ora, como o senti­
do dessa oração é temporal, a articulação por meio de conectivos exigiria
uma conjunção que indicasse tem po posterior (depois que, logo que). Mas,
nesse caso, subordinada passaria a ser a idéia que deveria estar na oração
principal: “depois que chegou ao Brasil, Vieira matriculou-se no colégio dos
jesuítas”—, o que equivaleria a alterar o propósito inicial de atribuir maior
relevância à idéia de chegar ao Brasil. Q conectivo “quando”, tam bém tem ­
poral, não perm itiria melhor articulação, pois nele não está contida a idéia
de subseqüência, mas de concomitância. Além disso, ocorreria um distan­
ciam ento entre duas orações intimamente relacionadas, ocasionado pela in­
tercalação da temporal “quando”, a qual só poderia ficar após o adjunto
adverbial de tem po “em 1615”. O resultado seria um período canhestro, em
que as idéias não se sucederiam naturalm ente, com interpolações prejudi­
ciais à clareza e à fluência da frase. O período tom aria a seguinte feição,
descabida:
b)
V ieira, que
q u e não
n ão contava
c o n ta v a amua
a in d a uuu
o ito an o s ^
d e id ad e, chegou_
Vieira,
— 0 -- ao B ra s il
quando se matriculou no colcgio dos jesuítas, para onde teve de acompanhar a
fam ília.
Ora, o antecedente natural de “para onde” é Brasil, sendo a aproxi­
mação entre ambos a m elhor m aneira de evitar am bigüidade ou contrasenso. Pospondo “para onde” a “colégio dos jesuítas”, também referente a
lugar, estabelecer-se-ia uma nova relação, não prevista: o colégio seria o
lugar para onde Vieira teve de acom panhar a família.
O utra construção poderia ser igualm ente tentada, usando-se um co­
nectivo conglom erado “depois do que”. Mas ainda assim a relação de de­
pendência seria inadequada:
c) Vieira, que não contava ainda oito anos de idade, chegou em 1615 ao Brasil,
para onde teve de acompanhar a família, depois do que se matriculou no colé­
gio dos jesuítas.
O antecedente natural da oração de “depois do que” não é “acompa­
nhar a família” e sim “chegou ao Brasil”, razão por que conviria aproxi­
m ar tanto quanto possível os dois enunciados; mas aproximá-los seria d e­
sencadear outra dissociação, já que nos veríamos forçados a pospor a “co­
légio dos jesuítas” a oração adjetiva de “para onde”. O resultado seria
igualm ente inaceitável, como está na versão ò.
II Segunda hipótese — idéia mais importante: a idade de Vieira
Suponham os agora que o mais relevante desse conjunto de enuncia­
dos seja não a chegada de Vieira mas a sua idade. Nesse caso, presume-se.
O th o n
M.
Garcia
♦
69
o desenvolvimento das idéias subseqüentes ao trecho, pelo menos no mes­
mo parágrafo ou no imediato, teria de continuar ressaltando a imagem do
Vieira menino, das peripécias naturais nessa idade ou de fatos daí decor­
rentes. Assim, o período assumiria a seguinte versão:
d) Vieira, que chegou em 1615 ao Brasil, para onde teve de acompanhar a famí­
lia, n ã o c o n ta v a a in d a o ito a n o s de id a d e , matriculando-se logo no colégio dos
jesuítas.
O que era atributo do nome Vieira passou à condição de idéia pre­
dom inante, configurada como está na oração principal, ao passo que a
chegada ao Brasil desceu a segundo plano ao assumir a feição de oração
adjetiva. Dada a participação de Vieira na vida política e cultural do Bra­
sil, a sua chegada aqui pode parecer fato mais im portante num período em
que se inicie a narrativa dessa fase de sua biografia. Tudo depende, entre­
tanto, do ponto de vista do autor. No caso presente, o que se pretende é
focalizar de perto o Vieira menino. De forma que “chegar ao Brasil” deixa
de ser um atributo dele, para indicar apenas uma circunstância episódica:
chegar ao Brasil é muito menos característica de Vieira do que ter oito anos
de idade. Por isso, seria melhor negar-lhe a feição de atributo, f.e., de ad­
junto adnom inal sob a forma de oração adjetiva, para frisar-lhe o sentido
de circunstância sob a forma de uma oração adverbial, preferivelmente re­
duzida:
e) Vieira, ao chegar ern 1615 ao Brasil (ou “chegando”, “quando chegou”), para
onde teve de acompanhar a família, n â o c o n ta v a a in d a o ito a n o s de id a d e , rnatriculando-se (apesar disso) logo depois no colégio dos jesuítas.
Se, entretanto, se deseja dar um pouco mais de ênfase à idéia de
chegar ao Brasil, deve-se iniciar o período com a oração que lhe corres­
ponda: Ao chegar ao Brasil..., Vieira não contava..., pois é sabido que, de
modo geral, as posições mais enfáticas num períoclo são quase sempre os
seus extremos: no meio ficam as idéias que não parecem m erecer o neces­
sário realce. Segundo esse critério, a melhor versão seria:
f)
Ao ch e g a r ern 1 6 1 5 a o B ra sil , para onde teve de acompanhar a família, matriculando-se logo depois no colégio dos jesuítas, V ieira n ã o c o n ta v a a in d a o ito
a n o s de id a d e .
III Terceira hipótese — Idéia mais importante: matricular-se no colégio dos
jesuítas
Nas versões seguintes, o que se considera como idéia predom inante
é a de se ter Vieira matriculado no colégio dos jesuítas:
70
♦
Co m unicação
em
P rosa
M oderna
g) Vieira, que não contava ainda oito anos de idade quando chegou em 1615 ao
Brasil, para onde teve de acompanhar a família, matriculou-se logo no colégio
dos jesuítas.
OU
g’) Não contando ainda oito anos de idade (ou “apesar de não contar”), quando
chegou em 1615 ao Brasil, para onde teve de acompanhar a família, Vieira ma­
triculou-se logo rio colégio dos jesuítas.
ou
g”) Vieira matriculou-se no colégio dos jesuítas, apesar de não contar (“embora não
contasse”) ainda oito anos de idade, quando chegou em 1615 ao Brasil, para
onde teve de acompanhar a família.19
Seria possível tentar ainda outras estruturas, invertendo-se apenas a
ordem das orações; mas as melhores seriam sempre aquelas em que as
duas idéias postas em relevo (a da oração principal e a outra que lhe fi­
casse em segundo plano) ocupassem as extremidades do período, caso em
que g e g 1 seriam as preferíveis.
IV Quarta hipótese — Idéia mais importante: acompanhar
a família
Se o autor pretendesse apresentar, em períodos subseqüentes, as ra­
zões de ordem doméstica pelas quais Vieira chegou ao Brasil, poderia ado­
tar a seguinte estrutura:
h) Vieira, que não contava oito anos de idade, teve de acompanhar a fainíLia para
o Brasil, aonde chegou em 1615, matriculando-se logo depois no colégio dos
jesuítas.
ou esta, em que a idade de Vieira deixa de ser atributo, sob a forma de
oração adjetiva, para expressar uma oposição à idéia de acom panhar a fa­
mília, sob a forma de subordinada concessiva:
h') Não contando (embora não contasse, apesar de não contar) ainda oito anos de
idade, Vieira teve de acompanhar a família para o Brasil em 1615, matriculan­
do-se logo depois no colégio dos jesuítas.
19 Em g” omite-se o advérbio “logo”, porque a referência à chegada ao Brasil vem posposta.
O thon
M.
Garcia
♦
71
Aqui, “ter menos de oito anos” constitui um a condição que se opõe à
idéia de ter de vir para o Brasil, de fazer um a viagem tão longa, nessa ida­
de tão curta.
Mas, se se admite que, exatamente por ter menos de oito anos é que
Vieira teve de acompanhar a família, da qual certamente não se poderia sepa­
rar, a idéia de oposição deve ser substituída pela de causa ou de explicação:
h”) Como não contava (ou não contasse) ainda oito anos de idade, Vieira teve de
acompanhar a família para o Brasil... etc.
ou
Vieira teve d e acom panhar... porq u e n ão co n tav a ain d a... (ou... “pois20 n ão
c o n ta v a ain d a...”)
Como se vê, a organização sintática de um período complexo não é
tarefa gratuita. A articulação das orações (ou enunciados) exige faculda­
des de análise, de discriminação, de raciocínio lógico, enfim. O autor deve
ter presente ao espírito a concorrência de fatores e elementos diversos
(termos, agrupam entos de termos, orações, ordem de uns e outras, grau de
relevância das idéias segundo o ponto de vista, etc.). Deve procurar dar a
cada um desses elementos e fatores, assim como ao seu conjunto, um a es­
trutura e disposição que estejam de acordo não apenas com as normas sin­
táticas mas tam bém com a hierarquia entre eles, combinando-os de m anei­
ra que expressem o pensamento com a necessária clareza, objetividade,
precisão e relevo.
1.5.3 Posição da oração principal: período "tenso" e período
"frouxo"
Se a escolha da oração principal parece não ser, como vimos, tarefa
gratuita, sua posição dentro do período tam pouco deve resultar apenas do
puro acaso, a menos que as idéias se encadeiem a esmo, niveladas no seu
valor. Sabemos como na língua falada a situação impõe a ordem dos ter­
mos e das orações. Na língua escrita, mesmo no estilo narrativo, em que a
sucessão dos fatos serve como diretriz para o escalonam ento das orações,
mesmo aí se devem levar em conta certos princípios de ordem geral. Não
se trata, evidentemente, de regras inflexíveis, mas de normas ou tendências
inspiradas pela lógica do raciocínio e pelo propósito de dar à frase o máxi­
mo de expressividade.
20 A propósito do emprego de “pois”, de preferência a '‘porque1’, ver 1.6.3.3, em 1. Fr.
•
I : ■ - * c «c *
d
PROSA
M oderna
Uma dessas normas — a que já nos referimos de passagem — reco­
m enda que se coloque, sempre que possível, nas extremidades do período,
os termos ou orações a que se queira dar maior relevo. Confrontem-se as
duas versões do mesmo trecho dadas a seguir: na primeira, a mais enfáti­
ca, a oração principal vem no fim; na segunda, precede as subordinadas:
Embora seja reconhecido o que aqui se classifica dc extraordinária
coragem e firmeza do Governo (...), a experiência passada dos fracassados
programas antiinflacionários e a falta de continuidade no combate à infla­
ção pesam como fatores negativos.
(O Globo, 8/3/63)
A experiência passada dos fracassados programas antiinflacionários e
a falta de continuidade no combate à inflação pesam como fatores negati­
vos, embora seja reconhecido o que aqui se classifica de extraordinária cora­
gem e firmeza do Governo (...)
Na segunda versão, ao chegarmos a “fatores negativos”, já teremos
apreendido o núcleo significativo do período, a sua idéia mais importante,
expressa, como está, na oração principal; de forma que o que se segue, a
começar de “em bora...”, se bem que contenha idéias menos im portantes, se
encontra em posição de maior destaque. O que acontece então é o seguin­
te: como o essencial já foi dito, o secundário torna-se, apesar da posição,
quase desprezível, sendo bem provável que o leitor “passe por cima”. No
entanto, essa parte encerra idéias indispensáveis ao verdadeiro sentido da
primeira: a experiência passada e a falta de continuidade pesam de qual­
quer form a, apesar da coragem e da firmeza do Governo. Não há atenuan­
tes; a idéia de “pesar” não está sujeita a condições. Entre as duas partes
existe uma idéia de oposição, capaz de ser expressa também, de maneira
mais atenuada, por um a oração adversativa. Por isso é que, anteposta à
principal, como na primeira versão, a oração de “em bora...” seria de leitu­
ra forçada, seria — digamos assim — o “caminho obrigatório” para se che­
gar ao fato primordial, que ganharia, pela posição no período, o destaque
à sua relevância.
É esse um processo de correlação, “uma construção sintática de duas
partes relacionadas entre si de tal sorte, que a enunciação de uma, dita
prótase, prepara a enunciação da outra, dita a p ó d o s e A primeira é condi­
cionante, a segunda, condicionada.
A condicionante típica é, como o nome diz, a representada pela su­
bordinada condicional: se chover; não sairei. Mas, como o processo implica
um a correlação em sentido mais lato, o termo condicionante aplica-se tam ­
bém a outras subordinadas adverbiais, ou aos adjuntos correspondentes.
21 Cf. CÂMARA JR., J. Matoso. Dicionário de fatos gramaticais, verbetes "condicionar' e "correlação”.
O thon
M.
Garcia
♦
73
Até mesm o na coordenação há correlação, como a que se obtém com os
pares conectivos não só (não somente, não apenas)... mas também (tam ­
bém, senão que, como também): não só planejou a obra mas também a
executou com perícia.
Também com os termos da oração se pode praticar esse tipo de cor­
relação, pospondo-se, por exemplo, a um adjunto adverbial o agrupam en­
to formado pelo sujeito e o predicado. É o que ocorre com freqüência nas
construções paralelísticas, típicas da maioria dos provérbios: “De hora em
hora (prótase ou condicionante), Deus melhora” (apódose ou condiciona­
da), “De noite (prótase), todos os gatos são pardos” (apódose). A ênfase,
mesmo nesse tipo de frases curtas — ou principalm ente nelas —, decorre
do “suspense” que as caracteriza: enunciada a prim eira parte, o leitor ou
ouvinte fica em expectativa até o desfecho, quando só então se completa o
pensam ento. Desse processo é que resulta, em grande parte, sem dúvida, a
eficácia expressiva dos provérbios. Experimente-se inverter a ordem das
suas partes: Deus melhora de hora em hora, todos os gatos são pardos de
noite. Não é só a mudança do ritmo da frase que lhe retira o, por assim
dizer, encantam ento; é principalmente a ausência daquele resquício de ex­
pectativa que a desfigura e empalidece.
O período em que há prótase e apódose — como na primeira ver­
são do trecho transcrito de O Globo e nos provérbios de modo geral — é
coeso ou tenso. É o verdadeiro período no sentido clássico: ambitus verborum} circuito de palavras encadeadas de tal forma, que o sentido só se
completa no fim, quando “se fecha” o circuito.
A outra versão, sem prótase, constitui, pelo contraste com o anterior,
o período frouxo ou lasso, em que o pensamento se completa antes do fim,
sem circuito.
Como nas peças dramáticas, o período tenso deve apresentar fases
sucessivas: a prótase (início ou introdução), a epítese (conflito) e catástrofe
(no dram a) ou apódose (desfecho, desenlace). Mas, é evidente, isso nem
sempre ocorre, pelo menos com essa rigidez. Característica da maioria dos
clássicos, o período tenso sobreviveu ao rom antism o e outras correntes,
chegando até nós com feição atenuada. Entre os clássicos, alguns se ser­
vem predom inantem ente desse tipo de estrutura: um Vieira mais do que
um Bernardes; em Frei Luís de Sousa com mais freqüência do que em Ro­
drigues Lobo; é comum em A. F de Castilho e Herculano; usual em Cami­
lo, mas não tanto em Rebelo da Silva. Perto de nós, Rui, Euclides e Coe­
lho Neto o praticam mais do que outros contemporâneos seus.
A prótase e a apódose aparecem com mais freqüência no estilo ora­
tório assim como na argumentação de um modo geral. Não caracterizam,
senão excepcionalmente, como já assinalamos, o estilo narrativo e o descri­
tivo, a menos que se considere como prótase a simples anteposição de ad­
juntos adverbiais à oração principal. Isto, sim, é comum.
Numa pesquisa rápida, e por isso provisória e inconclusiva, que fize­
mos em quatro sermões de Vieira e ern vários discursos de Rui, verificamos
74
♦
Comunicação
em
Prosa
M oderna
que, na maioria dos casos, quando há prótase, ela é constituída por ora­
ções adverbiais temporais (de quando), condicionais (de se), concessivas (de
embora), e reduzidas de gerúndio, com predominância, ao que nos parece,
das primeiras e das últimas. Fora disso, talvez se possa dizer que em Rui —
não em Vieira — a estrutura protática aparece em cerca de cinqüenta por
cento dos casos. Nos demais, a ordem é: oração principal seguida por su­
bordinadas, i.e., P + S. Nos clássicos quinhentistas e seiscentistas, a fórmu­
la predom inante é S 4- P, subordinadas(s) antes da principal. Mas, repeti­
mos, trata-se de conclusões provisórias que traduzem apenas impressão re­
sultante de análise superficial da questão. O assunto, entretanto, está a exi­
gir dos mais capazes e pacientes um levantamento sistemático.
Rui Barbosa reduz com freqüência a obscuridade de um período em
que aparece uma série de termos condicionantes ou protáticos, servindo-se
de um travessão, com que marca o início da apódose:
Por entre as trevas que velam a face da nossa Bahia, a mãe forte de
tantos heróis, a antiga metrópole do espírito brasileiro, com pés assentados
na história do seu passado luminoso e a cabeça a cintilar dos astros ainda
não apagados na noite das suas tristezas, como aquela imagem dos livros
santos, calçada de lua e coroada de estrelas — as associações abolicionistas
representam a plêiade do futuro...
{A p u d Luís Vianna Filho, A n to lo g ia ..., p. 68)
Na realidade, a prótase, nesse trecho, é constituída apenas pelo ad­
junto adverbial “por entre as trevas” com a oração adjetiva que a ela se se­
gue. Esse condicionamento, entretanto, se alonga através de uma cadeia de
outros adjuntos e apostos, até o desfecho da apódose na oração principal
precedida pelo travessão.
Não raro se m arca o início da apódose com partículas tais como en­
tão, então é que, assim, é então que, é aí que e outras:
Quando eles [os eleitos do mundo das idéias] atravessam essa passa­
gem do invisível, que os conduz à região da verdade sem mescla, e n tã o é
q u e começamos a sentir o começo do seu reino, dos mortos sobre os vivos.
(Icl ib id .)
Uma espécie de prótase atenuada — esta, sim, comuníssima tam ­
bém no português moderno — consiste em antepor-lhe um dos termos
(quase sem pre sujeito) da oração principal, isto é, da apódose. Trata-se de
um recurso de... suspense, que torna ainda mais tensa a relação entre as
duas partes do discurso:
O esforço d a v id a h u m a iia , desde o vagido do berço até o movimen­
to do enfermo, no leito de agonia, buscando uma posição mais cômoda para
morrer, é a seleção do a g r a d á v e l
(Raul Pompéia, O A te n e u , cap. VI)
O thon
O h o m e m , por
tó r ic a da h u m a n id a d e .
desejo de nutrição e de amor,
M.
Garcia
♦
75
p r o d u z iu a evo lu çã o h is ­
(Id. ib id .)
F ra n co , no domingo da véspera, aproveitando a largura da vigilância
no dia vago, fo r a v a d ia r n o ja r d im .
(Id. ib id .)
Note-se a posição inicial do sujeito, e a final do predicado da ora­
ção principal. Se a distância entre esses dois termos não ultrapassa os limi­
tes razoáveis da resistência da atenção, o resultado é um período tenso,
cuja expressividade advém ainda do fato de se encontrarem nos extremos
as idéias mais relevantes. Por isso, os exemplos de Raul Pompéia são mo­
delares, dignos de imitar: o Autor manteve a necessária tensão no período
sem que disso resultasse um a frase reptante ou confusa.
1.6.0 Como indicar as circunstâncias e outras relações entre
as idéias
7.6.7 A análise sintática e a indicacão
das circunstâncias
i
A experiência nos ensina que os defeitos mais comuns revelados pe­
las redações de colegiais resultam, na maioria das vezes, de um a estrutura­
ção inadequada da frase por incapacidade de estabelecerem as legítimas
relações entre as idéias. Quando se restringem a períodos coordenados, as
falhas são menos graves, mas a coordenação, como vimos, nem sempre é o
processo sintático que mais convém adotar. Mesmo nas situações simples,
temos de recorrer com freqüência ao processo da subordinação. Ora, é
exatam ente aí que os principiantes atropelam as palavras e desfiguram as
m útuas relações que elas entre si devem manter.
A análise sintática, praticada como um meio e não como um fim,
ajuda o estudante a m elhorar sensivelmente a organização da sua frase.
Mas, corno aproveitá-la sem que os exercícios se tornem, além de inúteis,
enfadonhos e áridos, por rotineiros? Supomos que tal seja possível, princi­
palm ente no que respeita à subordinação, partindo-se da idéia que se quer
expressar para a form a que se procura, isto é, da noção ou impressão para a
expressão, e não em sentido inverso, que é o caminho percorrido pela aná­
lise sintática segundo o m étodo costumeiro.
Portanto, em vez de “m andar” o estudante descobrir e classificar,
num período, termos e orações que expressem circunstâncias e relações, de­
veríamos rum ar em sentido contrário: das idéias que se têm em mente para
os term os e orações capazes de traduzi-las. Por exemplo: em lugar de pe­
dir ao aluno que classifique um a oração causal apontada num texto, seria
mais rendoso sugerir-lhe que traduzisse a idéia de causa em estruturas sin­
táticas equivalentes, que não precisariam ser obrigatoriam ente apenas ora­
ções subordinadas. Mas, para isso, torna-se indispensável, antes de mais na­
da, definir ou conceituar claramente o que é causa, o que é motivo, o que é
explicação, depois dar o vocabulário (inclusive o de sentido figurado ou m e­
tafórico) e os padrões com que indicar a mesma circunstância. Em segui­
da, por associação natural de idéias, surgirá oportunidade de m ostrar a re­
lação entre causa e conseqüência, e os moldes frasais adequados à sua ex­
pressão. De “conseqüência”, ainda por associação, se pode partir para idéias
de fim e conclusão, dado o parentesco entre elas, como procuramos mos­
trar em 1.6.2 a 1.6.4.
O m étodo é, assim, como que irradiante nas suas implicações: de
urn centro de interesse (causa, por exemplo) se passa a outro, concêntrico
ou aparentado (de causa para conseqüência, de conseqüência para fim, de
fim para conclusão). Esse critério justificaria, por exemplo, que se incluís­
sem num capítulo sobre expressão das circunstâncias informações que, de
outro modo, lhe seriam estranhas, como é o caso de breves noções sobre
raciocínio dedutivo (silogismo e alguns sofismas), naquilo em que se rela­
cionassem com a idéia de causa e conseqüência (110 caso do silogismo,
premissas e conclusão). Pela mesma razão, não será estranhável que, nos
tópicos sobre as circunstâncias de tempo, se trate do sentido de algumas
formas verbais em que a categoria de aspecto está m uito viva. Por igual
motivo ainda, não deverá 0 leitor surpreender-se por encontrar na parte
destinada à comparação referências aos principais tropos, usualm ente estu­
dados em lugar muito diverso nas gramáticas.
Através desse processo de exposição, o estudante não sente que este­
ja fazendo análise sintática (e, de fato, não está), mas se vai servindo de­
la, suavemente, sem nom enclatura complicada, para assimilar as principais
formas de expressão capazes de traduzir a mesma idéia que tenha em
m ente. A variedade dos padrões oferecidos se fixa assim mais fácil e mais
prontam ente, mesmo que 0 aluno ignore estar em pregando uma oração su­
bordinada adverbial conjuncional ou desenvolvida causal para dizer coisa tão
simples como “os operários fizeram greve porque desejavam aumento de sa­
lário”, ou que se está servindo de uma oração subordinada adverbial redu­
zida de infinito final, quando enuncia quase o mesmo pensam ento ao d e­
clarar que “os operários fizeram greve para conseguir aiirnento de salário”.
lat. cur?), o modo (como? 1
bus aitxiliis?) (Ver 3. Par., 3.,
No âmbito da análise
circunstâncias, correspondeu
ao verbo (ou núcleo do pre
preexistentes a ela, análise,
condição, etc. Todas, salvo ;
cal a que se dá o nome d
(causais, finais, temporais, o
Quando se diz que “a
supõe-se, evidentem ente, qu
de estruturas frasais de que
m aneiras a mesma idéia ciai
São esses padrões de
que nos propomos examinar
a 1.6.8.10), onde procurare
objetivo, seguindo o mesm
am ostragem de exemplos e
até certo ponto, desculpa a
mais como exercícios ou mo<
te a descobrir por si mesmo
1.6.3 Causa
1.6.3.1 Área semântica
Um grupo de palavra:
elas, num determinado cont<
comum um traço semântico
ou afins (ver 2. Voc., 5.1), v>
por similaridade (base da mt
metonímia e da sinédoque) dem geral, constituem áreas
gadas no seu sentido própr
contexto ou situação, podem
16.2 Circunstâncias
Chama-se circunstância (do lat. circum, em redor, stare, estar; 0 que
está em redor ou em torno) a condição particular que acom panha um fa­
to, o acidente que o atenua ou agrava. Em retórica, entende-se por circuns­
tância a própria ação (o quê? lat. quid?), a pessoa (quem? lat. quis?), o lu­
gar (onde? lat. ubi?), o tempo (quando? lat. quando?), a causa (por quê?
22 SUBERVIU.E, Jean. Théorie de la
23 Preferimos a expressão “área sen
cações no sentido desta última, seg
distriburionnelle des significations e
1966, p. 44 e ss.). Com o sentido <
res das expressões “campos nociona
O th ON
m.
G arc ia
♦
77
lat. a ir? ), o modo (como? lat. quomoda?) e os meios (com quê? lat. qizibus auxiliis?) (Ver 3. Par., 3.2.1).22
No âmbito da análise sintática, a pessoa e a ação, que deixam de ser
circunstâncias, correspondem, respectivam ente, ao sujeito (ou ao objeto) e
ao verbo (ou núcleo do predicado). Mas incluem-se outras circunstâncias,
preexistentes a ela, análise, como as de fim ou conseqüência, oposição,
condição, etc. Todas, salvo a pessoa e ação, assumem um a forma gram ati­
cal a que se dá o nome de adjuntos adverbiais ou de orações adverbiais
(causais, finais, temporais, concessivas ou de oposição, etc.).
Quando se diz que “aprender a escrever é aprender a pensar”, pres­
supõe-se, evidentem ente, que o aprendiz adquira também certos padrões
de estruturas frasais de que a língua possa dispor para expressar de várias
m aneiras a mesma idéia claramente concebida e suas relações com outras.
São esses padrões de estruturas frasais, ou pelo menos alguns deles,
que nos propomos exam inar com o leitor nos tópicos que se seguem (1.6.3
a 1.6.8.10), onde procuraremos apresentar a m atéria do modo prático e
objetivo, seguindo o mesmo critério adotado ao longo destas páginas:
am ostragem de exemplos e comentários marginais. Esse m étodo explica e,
até certo ponto, desculpa a feição esquemática de alguns itens, que valem
mais como exercícios ou modelos de exercícios capazes de levar o estudan­
te a descobrir por si mesmo outros moldes de expressão.
1.6.3 Causa
1.6.3.1 Área semântica23
Um grupo de palavras faz parte da mesma área semântica, quando
elas, num determinado contexto, são equivalentes pelo sentido ou têm em
comum um traço semântico que as aproxime. Assim, idéias ditas analógicas
ou afins (ver 2. Voc., 5.1), verbos e nomes de coisas ou seres que se filiem
por similaridade (base da metáfora), contigüidade ou causalidade (bases da
metonímia e da sinédoque) e idéias específicas subordinadas a uma de or­
dem geral, constituem áreas semânticas. Por exemplo: causa e rrxãe, em pre­
gadas no seu sentido próprio, não se equivalem, mas, num determinado
contexto ou situação, podem ter o mesmo significado, pois possuem um ele-
22 SUBERVILLK, Jean. Théorie dc Cart et des genres littéraires, p. 68-70.
23 Preferimos a expressão “área semântica” a “campo semântico”, em virtude de outras impli­
cações no sentido desta última, segundo nos ensina o esludo de Julius Apresjan — “Analyse
distriburionnellc des significations ei champs sémaniiques structures” (Langciges, nfi 1, março
1966, p. 44 e ss.). Com o sentido que atribuímos a “área semântica”, servem-se alguns auto­
res das expressões “campos nodonais" ou “campos associativos”.
m ento comum: a idéia de origem, de fato ou condição determ inante, como
se vê na frase “a ociosidade é a mãe de todos os vícios”. Quanto a esse as­
pecto, portanto, ambas as palavras podem fazer parte da mesma área se­
mântica, o que não quer dizer que sejam sinônimas, caso em que pertence­
riam à mesma família ideológica (ver 2. Voc., 3.2). Assim também, as pala­
vras que denotam as diferentes sensações podem ser agrupadas em áreas
correspondentes aos cinco sentidos: área da visão, da audição, etc. (ver
exercícios 220 a 247), na parte final desta obra.) A idéia geral de ver, por
exemplo, compreende uma série numerosa de idéias específicas, t.e., de dife­
rentes modos de ver (entrever, relancear, avistar, perceber, presenciar, etc.),
que constituem a sua área semântica. Termos específicos de um a ciência ou
técnica (nom enclatura médica, farmacêutica, botânica, metalúrgica...), de
um a arte ou ofício (nomenclatura das artes plásticas, nom enclatura de car­
pintaria, de alvenaria...) incluem-se nas áreas semânticas respectivas.
1.6.3.2 Vocabulário da área semântica de causa
Podemos expressar as circunstâncias de causa de vários modos. O
processo mais comum é o de nos servirmos de adjuntos ou orações adver­
biais. Mas há outros, como, por exemplo, estruturas de frase que encer­
ram relação causal (“O trabalho é a fonte de toda a riqueza”) ou palavras
que significam causa, origem ou motivo, como:
a) substantivos: motivo, razão, explicação, pretexto, mola, desculpa, mó­
vel, fonte, m ãe, raízes, berço, base, fundamento, alicerces, germe, em ­
brião, sem ente, gênese, o porquê, etc.;
b) verbos: causar, gerar, originar, produzir, engendrar, parir, acarretar, pro­
vocar, motivar, etc.;
c) conjunções: porque, pois, por isso que, já que, visto que, uma vez que,
porquanto, etc.;
d) preposições e locuções: a, de, desde, por, per; por causa de, em vista de,
em virtude de, devido a, em conseqüência de, por motivo de, por ra­
zões de, à míngua de, por falta de, etc.
1.6.3.3 Modalidades das circunstâncias de causa
Pode-se expressar a causa por meio de um adjunto adverbial intro­
duzido por preposição:
Muitos homens morrem cle forne por causa do egoísmo de alguns.
Os sitiados renderam-se por falta de munição.
Muitos recém-nascidos morrem à míngua de tratamento médico adequado.
O thon
m
.
Garcia
♦
79
Às vezes, a causa, o modo e o meio ou instrum ento se confundem em
estruturas frasais sujeitas a múltiplas interpretações: morto a pauladas, feito
à mão, escrito à máquina, barco (movido) à vela (ou a vela, “a” sem crase).
A ambigüidade de função desaparece quando o agente da passiva vem cla­
ro: morto a pauladas pelo dasafeto, escrito à (ou “a” sem crase) máquina
pelo próprio autor.
No português moderno, não se expressa o agente quando o verbo está
na voz passiva dita pronominal, i.e., com o pronome “se”. Mas, no português
quinhentista, tal construção era usual: “(mar) que dos feios focas se navega”
(Lus., I, 52), “terra toda, que se habita / dessa gente sem lei” (Id., X, 92);
vale dizer: “é navegado pelos feios focas”, “é habitada por essa gente sem
lei”. Entretanto, às vezes, um adjunto encabeçado por com pode ser conside­
rado como agente dessa passiva:
As comemorações se iniciam com um desfile de escolas cle samba.
Orações reduzidas de gerúndio têm freqüentem ente valor causal:
Sabendo que você só chegaria depois das dez horas, não vi necessi­
dade de apressar-me.
Também se poderia considerar “sabendo” como expressão de tempo:
quando soube que...
O mesmo acontece com as reduzidas de particípio passado, que tan ­
to podem indicar a causa como o tempo:
Apanhado em flagrante, o “puxador” de carro não teve outro remé­
dio senão confessar (apanhado: quando foi ou porque foi apanhado).
Reduzidas de infinitivo introduzidas pela preposição “por” consti­
tuem formas comuns de indicar a causa:
O jornalista acabou sendo preso, por se negar a prestar depoimento.
Anteposto à oração principal, o adjunto adverbial de causa ganha
m aior relevo. Confronte-se com o exemplo precedente:
Por se negar a prestar depoimento, o jornalista acabou sendo preso.
Q uando a indicação da causa, anteposta à oração principal, assume
a forma de uma oração introduzida por conjunção, é preferível usar “co­
mo” em vez de “porque”:
Mas, como os policiais não traziam mandado de prisão assinado por
juiz competente, o jornalista resistiu à intimação.
80
♦
Co m unicação
em
Prosa
m o ü e r na
Note-se que o verbo das causais de “como” pode vir no indicativo
(“como não traziam ”) ou no subjuntivo (“como não tivessem trazido”, “co­
mo não trouxessem ”), o que é mais comum na língua culta.
Outra m aneira de dar ênfase à causa consiste na adjunção de um
advérbio que frise ou realce essa circunstância:
Resistiu p rin c ip a lm e n te porque não se considerava culpado de crime
algum. E foi p re c isa m e n te por isso que ele acabou sendo espancado.
Q uando posposta a uma oração condicional, a idéia de causa pode
ser expressa com o auxílio das partículas “é que” ou “foi porque”, m atiza­
das de certa intensidade enfática:
Se não recebi cartas suas,
creveu, f o i p o r q u e não quis.
é que
vocc não escreveu, e, se você não es­
O cham ado aposto circunstancial não raro traduz a idéia de causa:
C ioso de su a s obrigações , nada mais lhe cabia fazer senão recusar o pe­
dido. (“Cioso”, isto é, “por ser cioso”, “porque era cioso”, “como era cioso”).
Mas convém não confundir esse aposto com a simples anteposição
do predicativo:
ArquiLcto do Mosteiro de Santa Maria, já o não sou, i.e., Já não sou
arquiteto do Mosteiro de Santa Maria.
A justaposição e a simples coordenação também às vezes encerram
um a relação causal, como já mostramos em 1.4.2 com os exemplos:
Não fui à festa do seu aniversário: não me convidaram.
b) gradação entre causas:
se negar a prestar de]
se negar... ou mais po
c) causa (motivo, explicí
depoim ento (o “pois”
ninguém deve ignorá-1
No último caso (let
bido (ou deve sê-lo) que
tão, de acordo com a lei,
isso, deve ser de preferên
"pois” (explicativo-causal)
ato provoca normalmente
ãs seis horas da manhã, o
nhecido de todos. Se algu
~Jà deve passar das seis h
expressa a causa, evidente
Fulano e Sicrano são muii
iam-se e se detêm para tu
em determinado dia, Fulai
ta. a única explicação possí
zangado com ele. Diz entã
do comigo, pois nem seqt
ção ou motivo natural, noi
do ou desconhecido. Há r
conclusão ao mesmo temp
primenta. Ora, hoje não n
não me viu, ou está zang*
um resíduo de raciocínio s
1.6.4 Conseqüência
O dia estava muito quente e eu fiquei logo exausto.
Duas circunstâncias de causa concorrentes para o mesmo efeito são
mais adequadam ente expressas ern processo correlativo:
Resistiu à ordem de prisão não só p o rq u e se considerava absolutamente
inocente, m a s ta m b é m p o rq u e não lhe exibiram o mandado assinado pelo juiz.
Há outros torneios ainda para indicar:
a) exclusão de wna causa: Foi preso não por ser culpado, mas por se n e­
gar a prestar depoimento;
Se o fato determina
conseqüência. A conseqüêi
to. objetivo). Comparem-se
Causa: Os motoristas 1
Fim:
Os motoristas í
No segundo período,
o propósito, com a intençâc
d a d a greve era, assim, da
a n stâ n cia de fim .
O thon
M .
Garcia
♦
81
b) gradação entre causas: Foi preso não tanto por ser culpado, quanto por
se negar a prestar depoimento (ou: menos por ser culpado do que por
se negar... ou mais por se negar a depor do que por ser culpado);
c) causa (motivo, explicação) notória: Foi preso, pois se negou a prestar
depoim ento (o “pois” indica que a causa (ou motivo) é conhecida, que
ninguém deve ignorá-la).
No último caso (letra c), há resíduo de um raciocínio silogístico. É sa­
bido (ou deve sê-lo) que todos os que se negam a prestar depoimento es­
tão, de acordo com a lei, sujeitos a prisão. Essa é a causa notória, que, por
isso, deve ser de preferência expressa por meio da partícula “pois”. Com o
"pois” (explicativo-causal) quase sempre se indica que determinado fato ou
ato provoca normalmente outro, numa relação habitual e sabida. No verão,
às seis horas da manhã, o Sol já está “de fora”. Isso é um fato normal e co­
nhecido de todos. Se alguém não dispõe de relógio, olha para o céu e diz:
"Já deve passar das seis horas, po/s o Sol já está de fora”. O “pois” aí não
expressa a causa, evidentemente, mas a explicação da afirmativa que se faz.
Fulano e Sicrano são muito amigos; sempre que se encontram, cumprimentaimse e se detêm para uma troca de palavras. Isso é um fato habitual. Se,
em determ inado dia, Fulano passa por Sicrano e nem sequer o cumprimen­
ta, a única explicação possível é a de que ou Fulano não viu Sicrano ou está
zangado com ele. Diz então Sicrano: “Ou Fulano não me viu ou está zanga­
do comigo, pois nem sequer me cumprimentou.” “Pois” introduz a explica­
ção ou motivo natural, notório, que se sobrepõe a qualquer outro, inespera­
do ou desconhecido. Há nessa partícula um sentido misto de explicação e
conclusão ao mesmo tempo: “Sempre que Fulano passa por mim, me cum­
primenta. Ora, hoje não me cumprimentou. Logo, só posso concluir que ou
não me viu, ou está zangado comigo.” Há, portanto, no emprego de “pois”
um resíduo de raciocínio silogístico (ver 4. Com., 1.5.2 a 1.5.2.4).
1.6.4 Conseqüência, fim, conclusão
Se o fato determ inante de outro é a sua causa, esse outro é a sua
conseqüência. A conseqüência desejada ou preconcebida é o fim (propósi­
to, objetivo). Comparem-se os dois períodos seguintes:
C au sa: Os m o to rista s fizeram grev e p o rq u e d e se ja v a m c iu m en to de sa lá rio .
F im :
O s m o to ristas fizeram grev e p a r a c o n se g u ir a u m e n to de sa lá rio .
No segundo período, está claro que os motoristas fizeram greve com
o propósito, com a intenção de conseguir aum ento de salário: a conseqüên­
cia da greve era, assim, desejada ou preconcebida; trata-se, portanto, de cir­
cunstância de fim .
A conseqüência não preconcebida é geralmente expressa num a ora­
ção consecutiva, encabeçada pela conjunção “que” e posposta a outra, sua
principal, onde se encontram quase sempre as partículas de intensidade
tal, tão, tanto:
São tantos a pedir e tão poucos a dar, que em nada nos surpreende
sejam a fome e a miséria os males do nosso tempo.
A intensidade (tantos, tão) com que se indica a num erosidade dos
que pedem e a escassez dos que dão desencadeia a conseqüência: “em
nada nos surpreende sejam a fome e a miséria os males do nosso tem po”.
Assim tam bém , se, no exemplo anterior, o fato enunciado na oração princi­
pal (“os m otoristas fizeram greve”) viesse intensificado por algumas des­
sas partículas, a oração seguinte expressaria a sua conseqüência:
Os motoristas fizeram tanta(s) greve(5), que conseguiram aumento de sa­
lário.
Os motoristas fizeram a greve de tal maneira, que...
Muito freqüentemente, essa idéia de resultado obtido à custa de es­
forço continuado vem intensificada ainda pelo verbo auxiliar aspectual “aca­
b ar” ou “acabar por”:
Os motoristas fizeram tanta(s) greve (s), que acabaram conseguindo au­
mento de salário.
Em sentido inverso, “partindo-se” da conseqüência, “chega-se” à causa:
A miséria e a fome são os males do nosso tempo, porque são muitos a
pedir e poucos a dar...
Os motoristas conseguiram aumento de salário, porque fizeram greve.
Q uando 0 sentido da oração principal está completo, podem-se usar
apenas as expressões de modo que, de maneira que, de sorte que, de form a
que, destituídas do intensivo tal:
Não estive presente à reunião, de modo que não sei do que se tratou.
“Não estive presente à reunião” tem sentido completo. Nesse caso, a
pausa entre as duas orações é às vezes tão acentuada, que se torna possível
marcá-la por ponto-e-vírgula ou ponto, “valendo assim a expressão conjunti­
va por um advérbio de oração para avivar ao ouvinte o pensamento ante­
rior, com o sentido aproximado de por conseguinte, conseqüentemente, daí:
U F P E Biblioteca C entra
O thon
M .
Garcia
♦
83
“As alegrias da vida quase sempre são rápidas e fugidias, ainda que
disto não tomemos conhecimento. De m o d o q u e elas devem ser aproveita­
das inteligentemente.”
(Bechara, op. c it ., p. 165)
“De modo que” equivale a “por conseguinte” ou “por isso”, entrecruzando-se assim as idéias de conseqüência e conclusão, como se entrecruzam tam bém as de conseqüência e fim, segundo se pode ver pelos dois
exemplos seguintes, dados ainda por Evanildo Bechara, na obra citada:
Chegou cedo ao serviço,
Correu
de m aneira que pu d esse ser
elogiado pelo patrão.
de so r te q u e o s in im ig o s n ã o o p u d e s s e m alcançar.
Quando, nessas construções, se tem viva a idéia de finalidade, de per­
meio com a de conseqüência, o modo do verbo é o subjuntivo: pudesse, pu­
dessem.
Nos seguintes versos de “A mosca azul”, de Machado de Assis, é pos­
sível m ostrar essa equivalência:
Dissecou-a a tal ponto e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
O poem a é dos mais conhecidos: um poleá (“homem de casta infe­
rior na índia, ao qual se opõe o naire, que é o nobre”), deslum brado com
a beleza da mosca azul, põe-se a dissecá-la para “saber a causa do m isté­
rio”. Ora, sua intenção não era m atar o inseto, mas descobrir a causa do
mistério de tanta beleza, satisfazer a curiosidade. Se não houve intenção
de matar, de fazer sucumbir, esta idéia não poderia ser expressa como cir­
cunstância de fim, mas de conseqüência:
Dissecou-a a tal ponto e com tal arte, que ela
S u cu m b iu ...
M a s , s e s e q u is e s s e f a z e r s e n t i r q u e o p r o p ó s i t o d o p o l e á e r a m a t a r
a m o s c a a z u l, a e s t r u t u r a s i n t á t i c a d e v e r ia s e r a d e u m a d j u n t o o u o r a ç ã o
a d v e r b i a l d e fim :
D issecou-a p a ra q u e ela sucum bisse...
D isseeou-a p a ra fa z ê - la sucum bir...
ou, na construção ainda condenada por alguns gramáticos:
D isseco u -a de m odo ci fazê-la sucum bir...
Note-se que, com a locução de modo a , é preferível que o sujeito das
duas orações seja o mesmo; seria desaconselhável dizer: dissecou-a de modo
a ela sucumbir.
Com a locução “de modo que”, ou qualquer das suas equivalentes, e
o verbo “sucum bir” no subjuntivo, sobressairia a idéia de fim:
D isseco u -a d e m o d o q u e e la sucum bisse.
Também “ao ponto de” ou “a ponto de” tem valor consecutivo. Pare­
cer ser a forma preferível, quando se encadeiam duas ou mais conseqüên­
cias, para evitar a repetição da mesma estrutura “tão... que” ou “tanto...
que”. Com entando o verso de Gonçalves Dias — “Que tam bém são recípro­
cos os agravos” —, diz Cassiano Ricardo:
A acentuação da sílaba tônica na palavra proparoxítona “recíprocos”,
é, aí, tã o fo rte que esm ae ce e d esv alo riz a as d u a s á to n a s , ao p o n to de p o d e ­
rem se r p ro n u n c ia d a s, estas, b rev issim a m en te , n u m a só sílab a rítm ica.
(O indianismo de Gonçalves Dias, p. 77)
As três conseqüências sucessivas são: (“a acentuação... é tão forte)
que esmaece e desvaloriza as duas átonas” e “ao ponto de poderem ser pro­
n u n c i a d a s Para evitar aquela repetição (“é tão forte que esmaece e desva­
loriza... e esmaece e desvaloriza tanto que as duas átonas podem ser pro­
nunciadas num a só sílaba”), o Autor preferiu “ao ponto de”. No entanto, a
repetição poderia ser usada como recurso enfático bastante eficaz. E uma
forma muito freqüente, apesar da censura de alguns gramáticos24 que a
preferem no sentido de “prestes a” ou “quase a” (“a casa está a ponto de
cair”). Mas, no seguinte trecho de Rui Barbosa, o sentido é claramente
consecutivo: “...exagerando os direitos dos governados, ao ponto de supri­
mir o dos governantes” (apud, Laudelino Freire, Dicionário da /íngua portu­
guesa, verbete “ao ponto de”). Subentende-se prontam ente: exagerando os
direitos a tal ponto que ou de tal modo que...2S
24 Hoje, felizmente, muito raros. Leia-se o testemunho insuspeito de José Oiticica: “Do mes­
mo modo que escritores francelhos foram dizendo cie modo a, de m aneira , fie molde a, de fo r ­
ma a , etc., tam bém passaram a dizer ao ponto de. Castilho ainda usava a ponto que\ mas ao
ponto de venceu em Ioda linhn, como vão vencendo de modo a e seus análogos, dado o abso­
luto desamparo oficial à língua padrão." ( Teoria da correlação, p. 49.)23 Outras formas de indicar conseqüência sem partícula intensiva são as do tipo “irabalharam
de não se poderem ter em pé", "gritavam de ensurdecer", "correu c / í ; cair", "dancei de enjoar "
(exemplos colhidos na obra de Oiticica, supracitada).
O thon
M.
Garcia
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85
O utra idéia de conseqüência, limítrofe da de causa e de conclusão,
está na últim a oração dos quatro versos citados:
Dissecou-a a tal ponto (...) que ela
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
“Com isto”, quer dizei; “em conseqüência disso”, “por isso”, “por cau­
sa disso”, cruzam ento semântico que se pode deslindar nas seguintes possí­
veis versões:
a) conseqüência: (De modo que) esvaiu-se-lhe aquela visão...
b) conclusão: (Portanto) esvaiu-se-lhe aquela visão...
c) causa: (Razão por que) esvaiu-se-lhe aquela visão...
Como se vê, as orações causais, finais, consecutivas e conclusivas po­
dem constituir torneios sintáticos da mesma relação de idéias, mais ou m e­
nos equivalentes quanto ao sentido: a escolha de um ou de outro depen­
de da ênfase que se queira dar a qualquer delas.
A locução “tanto (assim) que” pode iniciar um período para indicar
a conseqüência de fatos expressos no anterior:
Não adiantava fingir naturalidade, de maneira a ser confundido com
os demais acompanhantes: o jeito, o olhar, e sobretudo a colocação especial
no grupo da frente o denunciavam. Tanto assim que das calçadas e janelas a
direção dos dedos, os olhares, as exclamações eram só para ele, o renega­
do, o filho da Libcrata.
(Aníbal Machado, João Ternura, p. 92)
Subentenda-se:
Tanto (tudo isso era) assim (verdade), que das calçadas c janelas a di­
reção dos dedos...
ou
...denunciavam-no tanto, que das calçadas e janelas a direção dos dedos...
ou ainda:
Erci p o r isso que d a s calçad as e ja n e la s a d ire ç ã o d o s d ed o s...
Essa construção semelha-se, quanto ao critério da pontuação e quan­
to ao sentido, a “de modo que”, como se fosse também um advérbio de
oração; a única diferença é que nela se sente mais viva, mais intensa, a re­
lação de causa e conseqüência entre as idéias expressas nos dois períodos.
Observe-se ainda, a propósito, que o Autor em prega a forma “de
m aneira a ser confundido com os demais acom panhantes”, oração reduzi­
d a de infinitivo equivalente a um a final: “para ser confundido...”
Caso idêntico a esse, em que um a oração, a todos os títulos subordi­
nada, se isola da sua principal, ocorre também com a introduzida por
“porque”, quando expressa causa ou explicação de um a série de fatos
enunciados em períodos(s) ou parágrafos(s) anterior(es):
Os gênios estão, para a mocidade, para lá do bem e do mal. O crité­
rio de valor, não apenas intelectual, mas político e moral é a inteligência, e,
muitas vezes, a simples inteligência verbal.
Porque a palavra exerce sobre a mocidade um prestígio decisivo. E
pela palavra, principalmente nos primeiros anos da mocidade, que se con­
fundem com os últimos da adolescência, que os moços se re n d e m .
(Alceu Amoroso Lima, Idade, sexo e tempo, p. 65)
Abrindo com essa conjunção “porque” um novo parágrafo, quis o
Autor ressaltar as idéias de causa, explicação ou motivo do que acabara de
declarar nas trinta linhas precedentes (o parágrafo seguinte, página 66, ini­
cia-se também com outro “porque”).
1.6.4.1 Vocabulário da área semântica de conseqüência,
fim e conclusão
Como acabamos de ver, os torneios sintáticos apropriados à expres­
são das circunstâncias de conseqüência e fim são relativam ente num ero­
sos. Mas, é óbvio, existe ainda o processo normal de traduzir essas idéias
com vocabulário próprio, com palavras que, em sentido denotativo (i.e.,
não metafórico) ou conotativo (metafórico), exprimam:
T Fim, propósito, intenção
a) substantivos: projeto, plano, objetivo, finalidade, desígnio, desejo, desi­
derato, alvo, meta, intuito, pretensão, aspiração, anseio, ideal, escopo,
(por) cálculo, fito, intento;
b) verbos: desejar, almejar, aspirar, alim entar esperanças, ansiar, intencionar, planejar, projetar, pretender, estar resolvido a, decidido a, ter em
m ente, ter em vista, ter em mira;
c) paríicu/as e locuções: com o propósito de, com a intenção de, com o fito
de, com o intuito de, de propósito, propositadam ente, intencionalm en­
te — além das preposições para, a fim def e as conjunções finais.
U F P E Biblioteca Centra
O thon
m
.
Garcia
♦
87
II Conseqüência, resultado, conclusão
a) substantivos: efeito, produto, seqüência, corolário, decorrência, fruto, fi­
lho, obra, criação, reflexo, desfecho, desenlace;
b) verbos: decorrer, derivar, provir, vir de, manar, promanar, resultar, seguir-se
a, ser resultado de, ter origem em, ter fonte em;
c) partículas e locuções: pois, por isso, por conseqüência, portanto, por con­
seguinte, conseqüentemente, logo, então, por causa clisso, em virtude dis­
so, devido a isso, em vista disso, visto isso, à conta disso, como resulta­
do, em conclusão, em suma, em resumo, enfim.
Como causa e consequência (fim, efeito, resultado, conclusão) consti­
tuem, por assim dizer, os extremos de um a cadeia sem ântica em m únia re­
lação, é natural que muitos nomes, verbos e partículas circulem nas duas
áreas. Q uanto aos adjetivos dessa área, basta lem brar que são, em grande
parte, derivados dos substantivos (desejoso, intencional, ansioso) ou dos ver­
bos (aspirante, pretendente, decorrente, resultante) arrolados nos itens I e II,
supra.
1.6.4.2 Causa, conseqüência e raciocínio dedutivo
A enunciação de causa, conseqüência, fim e conclusão implica racio­
cínio dedutivo. Mas, por razões de ordem didática, o assunto vem desen­
volvido em capítulo à parte (4. Com., 1.5.2), onde o estudante encontrará
as noções de lógica indispensáveis à disciplina do raciocínio, traduzidas em
linguagem acessível, de maneira em inentem ente prática.
1.6.5 Tempo e aspecto
A gramática nos ensina que há três tempos fundamentais — o pre­
sente, o passado ou pretérito e o futuro — e vários derivados ou secun­
dários.
O presente é aquele momento fugidio que separa o passado do futu­
ro. Teoricamente, não tem duração; mas, na realidade, pode ser concebido
como um lapso de tempo mais ou menos longo, se bem que indivisível, e
nisto se distingue do passado e do futuro, que adm item fases ou épocas,
mais próximas ou mais remotas do momento em que se fala. Há um pas­
sado anterior a outro, e, portanto, mais distante do presente, que se tra­
duz no pretérito mais-que-perfeito; quando você chegou, ele já havia saído
(sair é anterior a chegar). Há um futuro do passado: se você tivesse telefo­
nado, ele não teria saído (sair é posterior ao m om ento em que se deveria
ter telefonado; portanto, futuro do pretérito ou do passado). Há também
88
♦
Co m unicação
em
Prosa
M oderna
um futuro anterior a outro: quando você chegar, ele já terá saído (sair é
anterior a chegar: é futuro anterior, usualm ente dito futuro composto, no­
m enclatura com que não se traduz bem o seu verdadeiro sentido).
São noções consabidas, que não pretendem os desenvolver aqui, pois
o objetivo destes tópicos é, sobretudo, estudar as categorias de tempo e as­
pecto, num plano que escapa ao âmbito das gramáticas de ensino funda­
m ental. Às observações que mais adiante fazemos sobre as diferentes acep­
ções de alguns tempos não pretendem esgotar o assunto, mas apenas cha­
m ar a atenção do estudante para certas sutilezas da mesma forma verbal.
1.6.5.1 Aspecto
Além da categoria de tempo, existe também a de aspecto] são coisas
diferentes, em bora se inter-relacionem e até mesmo se confundam muitas
vezes num a só forma verbal, como é o caso do pretérito imperfeito do in­
dicativo, que indica tempo passado, mas aspecto durativo.
Aspecto é a representação mental que o sujeito falante faz do pro­
cesso verbal como duração, como durée: “On appelle du nom â'aspect la
catégorie de la durée.”26 É a m odalidade da ação, a sua maneira de ser,
que não se deve confundir com o modo verbal propriam ente dito (indicati­
vo, imperativo, etc.). As gramáticas de nível médio raram ente se referem a
aspecLo, e, se o fazem, é de passagem, na parte dedicada às locuções ou
perífrases verbais. Mas o assunto merece tratam ento mais adequado. Por
isso, num capítulo em que se pretende fornecer ao estudante alguns pa­
drões para a expressão das circunstâncias de tempo, não será descabido re­
servar-lhe alguns itens.
Se a categoria do tempo encontra formas ou flexões próprias em
todas as línguas, o mesmo não acontece com a de aspecto, que parece
exercer papel subsidiário: raras são as que dispõem de flexões próprias
para essa função. No entanto, a m aneira de ser do processo verbal é tão
im portante quanto o próprio tempo. Há, v.g., um a grande diferença en ­
tre estas duas formas que indicam ação praticada no presente: eu traba­
lho e eu trabalhando. Na segunda, a idéia de duração é muito mais viva
do que na prim eira. O pretérito imperfeito, por exemplo, que expressa
fato passado, encerra também a idéia de duração, de contem poraneidade
ou sim ultaneidade com outro: enquanto eu trabalhava, você se divertia
(ver 1.6.5.3, II). O próprio pretérito perfeito composto, apesar de indicar
fato consum ado, concluso, revela muito claram ente a idéia de continuida­
de da ação, desde certo tem po até o momento da comunicação: tenho tra­
balhado muito este ano, i.e., “trabalhei continuam ente d urante este ano,
até agora”. Isso é aspecto.
2ft VENDRYES, J. le langage, p. 117.
O thon
M.
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♦
89
1.6.5.2 Perífrases verbais denotadoras de aspecto
Aquelas línguas que, como o Português, não dispõem, no quadro da
sua conjugação verbal, de formas exclusivas para indicar o aspecto, ou as
têm em núm ero insignificante, servem-se de construções subsidiárias, como
as cham adas perífrases ou locuções verbais, quando não de certos utensí­
lios gramaticais adequados a esse mister. Em Português há uma grande va­
riedade delas, as mais comuns das quais denotam:
I Duração (progressão, decurso, freqüência) — Quase todas as gramáticas
se referem às formas perifrásticas chamadas freqiientativas ou progressivas,
constituídas pelo verbo auxiliar estar (ou outros que acidentalm ente exer­
çam essa função — andar, viver, continuai; ficar —, ditos, então, auxiliares
modais, ou, preferivelmente, aspectuais), seguido por um gerúndio ou por
um infinitivo regido pela preposição “a”, construção esta mais comum em
Portugal: estou trabalhando (ou a trabalhar), ele anda falando mal de vo­
cê, ela vive reclamando, nós continuamos esperando. Trata-se do aspecto durativo, que frisa a continuidade ou duração do processo, da ação, a qual
pode intensificar-se cada vez mais (aspecto progressivo) ou desenvolver-se
simplesmente (cursivo). O imperfeito e o gerúndio são as formas típicas do
aspecto durativo.
II Iteração (repetição) — É uni aspecto variante do de duração, traduzido
mais com um ente num a locução verbal em que entram os auxiliares tornar
a, voltar a, e seus equivalentes: tornou a dizei; voltou a tocar no assunto.
O prefixo re- muitas vezes acrescenta ao sentido do radical a idéia de re­
petição: refazer, reler, retransmitir.
III Incoação — A idéia de ação iniciada, mas ainda não concluída, é, de re­
gra, expressa num a perífrase formada pelo auxiliar começar a (ou seu equi­
valente), seguido de infinitivo: eles começaram a discutir. E o aspecto incoativo ou incepíivo. O sufixo — -ecer ou -escer — tem sentido incoativo:
amanhecer, envelhecer, amadurecer, convalescer, recrudescer. Envelhecer, v.g.,
é começar a ficar velho.
IV Cessação ou termo de ação recente — Para se dizer que uma ação term i­
nou, usarn-se, geralmente, como auxiliares aspectuais acabar de, cessar de,
deixar de, parar de: só acabou de escrever a carta na m anhã seguinte; o co­
ração cessou de pulsar; ele deixou de (ou parou de) beber. E em acabar de
que se insinua claram ente a idéia de “terminação recente”: ele acaba de
chegar (i.e., chegou há pouco, é recém-chegado).
90
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Co municação
em
Prosa
M ooerna
Esse é o aspecto cessativo ou concluso, segundo Brügmann,27 ou efec­
tivo, perfectivo ou transicional, segundo Cray.28
V Causação — Para expressar a idéia de que um a ação é causa de outra,
emprega-se o verbo fazer seguido de um infinitivo ou de uma oração subs­
tantiva, regida ou não pela preposição com: ele fez (com) que eu me arre­
pendesse, você está fazendo o m enino chorar. É conhecido o exemplo de
Camões (Lus., VIII, 98): “Este [o dinheiro] a mais nobres fa z fazer vile­
zas.” Também o verbo mandar pode exercer essa função causativa: mande
entrar o pretendente, mande a turm a sair. Esse é o aspecto causativo ou
factivo, que se relaciona ou se confunde com o de obrigação: obriguei-o a
sair, forcei-o a entrar. (Ver item seguinte.)
VI Obrigação, compromisso, necessidade — O dever, a promessa, o compro­
misso de praticar determ inada ação podem ser expressos em perífrases em
que entram os auxiliares ter de} dever; precisar de, necessitar de (obrigação,
necessidade) e haver de (mais adequado à idéia de compromisso). Frases
como “eu tenho de sair”, “eu preciso de sair” denotam imposição externa
(aspecto obrigatório); mas em uhei de conseguir o que desejo” subjaz a no­
ção de compromisso comigo mesmo, uma espécie de obrigação de ordem
moral. É assim que está nas letras promissórias (t.e., “que prom etem ”):
uHei de pagai:.. etc.”29
VII Volição — O auxiliar típico para expressar desejo, vontade ou intenção
de praticar determ inada ação é querer: muitos querem saber, mas poucos
querem estudar. Mas seus equivalentes são muito comuns: não desejo preju­
dicar ninguém, pretendo ser útil, ele se propôs (a) concluir o trabalho den­
tro do prazo estipulado. Esse é o aspecto desiderativo, volitivo ou intencio­
nal.
VIII Permissão — Os auxiliares mais comuns para denotar o aspecto per­
missivo são deixar; permitir e autorizar: “Não nos deixeis cair em tenta­
ção”, “Deixai vir a mim as criancinhas”, “Não perm ita Deus que eu m orra/
sem que eu volte para lá”.
27 BRÜGMANN, Karl. Abrégé de gram maire comparée des langues indo-européennes, p. 522.
2,8 GRAY, Louis H. Fotmdtttrons o f language, p. 207. Ver ainda CÂMARA JR., .1. Matoso. Princí­
pios de lingüística g era i p. 167-76, Uma form a verbal portuguesa, passim.
2<2 Convém notar que a classificação de Gray é mais minuciosa do que a de Brügniann, e que
a opinião de um nem sempre coincide com a do outro. A. Meillet também discute o assunto
em Linguistique historique et linguistique générale , p. 183-90.
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Dl Possibilidade e capacidade — Normalmente reveste a forma de um a perífrase de que participam os verbos poder e saber: nem todos sabem o que
çrerem , e poucos podem fazer o que desejam. É o aspecto a que Gray, na
obra citada, dá o nome de potencial.
X Conação — Exprime o esforço, a tentativa, o impulso ou o movimento
para realizar determ inada ação. O auxiliar mais em pregado para isso é tenrzn “O velho tentou responder” Mas ir e vir tam bém denotam às vezes
viéia similar: vamos ver o que é possível fazer, venha procurar-me am a­
nhã, vou-me preparar. Trata-se do aspecto conativo ,30 que, em certos ca­
sos, confina com o volitivo ou desiderativo: em “vou estudar” tanto se
rode perceber a intenção quanto o esforço ou tentativa. Outros verbos que
sugerem conação: tratar de, procurar, ousar, atrever-se a, esforçar-se por:
trate de estudar, procure cumprir o dever, atreveu-se a responder-me, esfor­
cei-me por satisfazê-lo.
XI Iminência — Pode-se expressar a idéia de ação próxima ou iminente
com o auxílio dos verbos ir e estar para seguidos de infinitivo: ele vai (ou
está para) casar. Com ir, o infinitivo vem às vezes regido pela preposição
a: “Ia a entrar na sala, quando ouvi proferir o m eu nome (...) (M. de As­
sis, Dom Casmurro, cap. III). A perífrase de ir e um gerúndio pode expres­
sar iminência (o carro ia atropelando o menino) ou progressão (ele vai
indo bem; vai vencendo graças ao seu esforço).
XII Resultado ou termo de uma ação — Pode-se expressar o resultado de
um a ação ou o seu termo, usando-se geralm ente como auxiliares aspectuais acabar por, chegar a, chegar ao ponto de, vir a seguidos de infinitivo
(ou, no caso de acabar, também gerúndio): “No ardor da discussão, acaba­
ram por (chegaram a, chegaram ao ponto de) se agredir (ou acabaram se
agredindo). Mas eu só vim a saber disso ontem.” Nessas perífrases aspectuais, quase sempre se infiltra a idéia de conseqüência (aliás, resultado é con­
seqüência) de algo expresso ou apenas m entado: “A discussão foi tão ardo­
rosa, que eles acabaram por (chegaram a ou ao ponto de) se agredir. Mas
depois acabaram se desculpando
São essas as principais perífrases que em português denotam alguns
aspectos verbais. É claro que há outras estruturas, verbais ou não; Louis H.
Gray, na obra citada, p. 203-8, arrola ainda: o aparencial (apparitional),
que em português se traduz com o auxílio de verbos ou locuções como pa­
recer, dar a impressão de, lembrar, sugerir, semelhar, o benefectivo (algo fei­
30 R. Jakobson emprega “conativo” (na expressão “função conaüva”) no sentido de "suplicatório
ou exortarivo” (cf. Essais de linguistique générale, p. 219).
to em benefício de outrem ), dito também acomodativo; o comitativo (ação
praticada em associação com outrem ); o distributivo ou m útuo; o inferente
ou putativo, etc.
1.6.5.3 Tonalidades aspectuais nos tempos simples e compostos
Muitos tempos, simples ou compostos, aparecem às vezes claramen­
te ou levemente matizados de aspecto. Em alguns casos, a idéia de tempo,
característica de determ inada forma verbal, está, por assim dizer, subverti­
da, v.g., o presente histórico (presente em lugar do pretérito) ou o presen­
te para indicar futuro próximo. Nem sempre é muito fácil saber se se tra­
ta realm ente de aspecto ou de diferentes acepções da mesma forma tem po­
ral. Os itens que se seguem podem assim referir-se a aspecto ou a tempo,
0 que não im porta muito distinguir, agora, pois sua finalidade é mostrar
ao estudante as diferentes acepções de algumas (e não de todas) formas
verbais.31 Omite-se, por ser consabida, a significação normal, dando-se ape­
nas as excepcionais.
1 O presente do indicativo pode indicar:
a) habitualidade ou freqüência: chove muito no verão. É o presente cham a­
do universal ou acronístico, com que se expressam fatos habituais, pere­
nes, notórios, doutrina firmada, conceitos filosóficos ou morais, em tom
sentencioso ou proverbial: o homem é mortal, quem casa quer casa, o
Sol nasce para todos, a Terra é um planeta.
b) ação próxima e, em certos casos, decidida: am anhã não há aula; será
que ele vem?
c) promessa, advertência ou ameaça (em lugar do futuro): se continuam a
im portunar-m e perco a paciência (i.e., se continuarem... perderei...)
d) maior realce para fatos passados. É o chamado presente histórico, em que
um fato passado é descrito ou narrado como se estivesse ocorrendo no
mom ento em que se fala. Exemplo clássico é o de Camões (Lus., Y 37),
no episódio do gigante Adamastor: os seis primeiros versos da estrofe ini­
cial dessa narrativa têm os verbos no pretérito, mas os dos dois últimos
vêm no presente: “Porém já cinco sóis eram passados, / que dali nos par­
tíramos (.■*) / quando uma noite, (...) uma nuvem, que os ares escurece, /
sobre nossas cabeças aparece (i.e., que escureceu ou escurecia... apareceu).
e) citação: diz Vieira que, “se os olhos vêem com amor, o corvo é branco”.
Usa-se assim o presente de citação quando se quer reproduzir, textüal-
31 Para informações mais completas, recorra-se a AU, M. Said. Gramática histórica da língua por­
tuguesa., p. 310 e ss., e também a BRANDÃO, Cláudio. Sintaxe clássica portuguesa, p. 495-520.
U F P E Biblioteca C e n t re
O thon
M.
Garcia
♦
93
m ente ou não, opinião alheia que tem ou pode ter validade perm anen­
te. Às vezes, se emprega também o imperfeito: “Dizia Vieira que...”
f) ação condicional hipotética no passado (em lugar do prer. mais-que-perf.
do subj.): se chego cinco minutos antes, pegava-o em flagrante (= se ti­
vesse chegado...)
II O pretérito imperfeito do indicativo pode expressar:
a) simultaneidade, concomitância ou duração no passado, Le., ação (fato, es­
tado, fenômeno) que se realizou ou ocorreu no passado, concomitantem ente com outra (ou outro): “Quando cheguei, ainda dorm ias” É a acep­
ção mais comum do pretérito imperfeito, dito, então, durativo ou cursivo.
b) habitualidade no passado: “Antigamente, a vida era mais fácil.” É o im­
perfeito dito habitual.
c) futuro do pretérito: na linguagem familiar, é muito comum empregar-se
o pretérito imperfeito em lugar do futuro do pretérito: “Disseste que vinhas (= virias) e não vieste.” “Se pudesse, fazia-lhe (= far-lhe-ia) uma
visita.” Ocorre também na linguagem escrita, literária, mas quase sem ­
pre em tom coloquial: “O alfaiate vizinho venceu dificuldades para ves­
ti-lo de improviso no último apuro, visto que os seus baús chegavam
tarde.” (Camilo, apud Brandão, op. cit., p. 503).
d) vontade ou desejo, mas em tom delicado, cortês e um tanto tímido,
como que para despertar simpatia do interlocutor: “Queria que o se­
nhor me informasse, por favor, se...” “Podia usar o seu telefone?” Com
essas conotações, é muito freqüente na linguagem coloquial, com os
verbos poder e querer
e) em discurso indireto implícito, idéias, opiniões, sentimentos alheios, num
contexto em que se subentende um verbo dicendi (verbo de elocução;
ver 1. Fr„ 3,2); “O padre Amaro esclareceu-a com bondade. [Disse que]
O inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era esta: fazia descar­
rilar um trem de modo que morressem passageiros...” (Eça de Queirós,
Crime do padre Amaro, apud Ernesto Guerra da Cal, Lengua y estilo de
Eça de Queiroz, p. 213).
III O pretérito mais-que-perfeito (simples), além do seu sentido fundamental
(de fato passado anterior a outro), pode, com certos verbos, conotar dese­
jo ou esperança (linguagem optativa): “Ah! quem me dera recuperar o tem ­
po perdido! Prouvera a Deus que tal coisa fosse possível! Quisera ter hoje a
idade de meus filhos!” Às vezes, tem sentido difícil de bem caracterizar, va­
lendo como uma estrutura: “Você foi reprovado. Pudera! Não estuda!” Su­
bentende-se o “pudera” como: nem poderia ser de outra forma, era coisa
de prever. Em estilo arcaizante, de feitio oratório, o mais-que-perfeito equi­
vale ao imperfeito do subjuntivo e ao futuro do pretérito, como no seguin­
94
♦
C om u nicaçã o
em
Prosa
M o d e rn a
te exemplo de Vieira: “Se Deus não cortara (= cortasse) a carreira ao Sol,
com a interposição da noite, fervera (= ferveria) e abrasara-se (= abrasarse-ia) a Terra, arderam O arderiam) as plantas...”
IV O futuro do presente, além do seu sentido usual, pode indicar ainda:
a) probabilidade, incerteza, cálculo aproximado: ele terá no máximo quaren­
ta anos; haverá uns quinze dias que não nos vemos... E o cham ado fu ­
turo problemático.
b) hipótese (fato provável no momento em que se fala): quantos não esta­
rão lastim ando agora a escolha que fizeram? muitos pensarão que so­
mos os culpados... Futuro hipotético.
c) obsei-vância a preceitos ou normas (valor de imperativo) — É o tempoaspecto a que alguns gramáticos dão o nome de futuro jussivo, usual
nos m andam entos, códigos, regulamentos, leis em geral: Não matarás.
Honrarás a teu pai e a tua mãe. Não cometerás adultério. “E depois de
saudarem , t.e darão eles dois pães, e tu os receberás das suas m ãos./
Depois virás ao outeiro de Deus...” (I Reis, X, 4-5). Neste último exem­
plo, darão indica apenas fato futuro, mas receberas e virás encerram
ainda idéia de ordem ou mando. É um dos traços do estilo bíblico
(leia-se, v.g., Jeremias, cap. 13 a 23). Artigos de leis, decretos, regula­
mentos, em pregam com freqüência esse futuro jussivo: “O pagam ento
da contribuição prevista na Verba 3 (...) será feito em apólices da Dívi­
da Pública Interna (...)”
d) ordem atenuada, pedido ou sugestão — É o futuro dito sugestivo, qu*e se
confunde às vezes com o jussivo mas que se em prega quando se procu­
ra induzir alguém a agir depois de se lhe apresentarem razões para tal.
Brandão, na obra citada, p. 511, dá alguns exemplos, dois dos quais co­
lhidos em Said Ali: “E se eu viver, usarás comigo da misericórdia do Se­
nhor; se, porém, for morto, não cessarás nunca de usar de compaixão
com a m inha casa.” (I Reis, 14 e 15).
O futuro do presente pode ter ainda outras acepções. O eventual ex­
prime o que pode ou não acontecer. “Ora (direis) ouvir estrelas!”; o delibe­
rativo, usado em frases interrogativas, serve para indicar dúvida sobre o
que se há de fazer, sobre a resolução ou deliberação a tom ar: “Que fare­
mos agora, se todos rejeitam a proposta?” “Que nota lhe darei, se você não
fez os deveres?” O gnômico ou proverbial, comum nas frases sentenciosas ou
proverbiais que encerram verdades de ordem geral, expressa a idéia de que
um fato pode ocorrer ou repetir-se a cada instante: “O dinheiro será teu se­
nhor, se não for teu escravo.” “O homem será vítima dos seus desatinos.”
Como se vê, os tempos podem ter tão variadas conotações à m ar­
gem do seu sentido fundamental, tantos matizes semânticos sob a camada
O th o n
M.
Garcia
♦
95
da m esm a desinência temporal, que não seria descabido falar em temposaspectos, denom inação que talvez cause estranheza, pois tempo é um a coi­
sa, e aspecto, outra.
1.6.5.4 Partículas denotadoras de tempo
As mais importantes dessas partículas são as conjunções e locuções
conjuntivas, que exprimem:
a) tempo anterior: antes que, primeiro que (raro no Português atual; entre­
tanto, o exemplo de Rui Barbosa é conhecido: “Ninguém, senhores
meus, que em preenda uma jornada extraordinária, primeiro que m eta o
pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com as suas forças...”
Brandão, op. a í., p. 140, dá um exemplo de Aveiro: uPrÍ7neiro que de
casa saíssemos, fomos tom ar a bênção ao santo Presépio.”);
b) tempo posterior: depois que, assim que; logo que;
c) tempo imediatamente posterior: logo que, mal, apenas, que (raro);
d) tempo simultâneo ou concomitante: quando, enquanto;
e) tempo terminal ou final: até que, até quando;
0 tempo inicial, /.e., tempo a partir do qual se inicia a ação: desde que,
desde quando;
g) ações reiteradas ou habituais: cada vez que, toda vez que, todas as ve­
zes que, sempre que.
A algurnas dessas locuções conjuntivas agregam-se com freqüência
partículas ou advérbios de valor intensivo: pouco antes que, muito antes
que, imediatamente depois que, etc.
O pronome relativo entra em vários conglomerados de sentido tem ­
poral: depois do que, durante o tem po em que, até o dia (hora, momento)
em que, no instante em que, etc.
1.6.5.5 Tempo, progressão e oposição
A idéia de progressão, ou de sim ultaneidade na progressão, traduzse tam bém com o auxílio das chamadas conjunções proporcionais: à medi­
da que, à proporção que, ao passo que: aprendem os ci medida que vivemos.
Em “ao passo que” palpita às vezes a idéia de oposição: “ao passo que ia
durando e crescendo a guerra, se ia juntam ente com os anos dim inuindo a
causa dela” (exemplo de Vieira, colhido em Laudelino Freire, Dicionário da
língua portuguesa, verbete ao passo que); “ao passo que ele subia, se desve­
lava Satanás pelo derribar” (idem, apud Brandão, op. ctí., p. 726).
96
♦
Co municação
em
Prosa
M oderna
Os pares correlatos “quanto mais (ou menos)... tanto mais (ou m e­
nos)”, “tanto mais (ou menos)... quanto mais (ou menos)”, “quanto maior...
tanto maior (ou m enor)” acumulam as idéias de simultaneidade, progres­
são e oposição: “Quanto mais alto se sobe, maior é a queda”, “Quanto m e­
nos se pensa (tanto) mais se fala”. O segundo elemento da correlação (tan­
to) costuma vir omisso; mas não se deve prescindir do primeiro (quanto)
sob pena de se adotar construção afrancesada. Assim é considerado incorre­
to dizer: “mais estudo, menos aprendo”, em lugar de “quanto mais estudo
(tanto) menos aprendo”.
1 .6 .5 .5 .1 V o c a b u lá r io
da
á r e a s e m â n tic a de te m p o
Tempo em geral: idade, era, época, período, ciclo, fase, temporada,
prazo, lapso de tempo, instante, momento, minuto, hora...
Fluir do tempo: o tempo passa, flui, corre, voa, escoa-se, foge...
Perpetuidade: perenidade, eternidade, duração eterna, permanente, con­
tínua, ininterrupta, constante, tempo infinito, interminável, infindável... Sem­
pre, duradouro, indelével, imorredouro, imperecível, até a consumação dos
séculos...
Longa duração: largo, longo tempo, longevo, macróbio, Matusalém...
Curta duração: tempo breve, curto, rápido, instantaneidade, subitaneidade, pressa, rapidez, ligeireza, efêmero, num abrir e fechar dfolhos, re­
lance, m om entâneo, precário, provisório, transitório, passageiro, interino,
de afogadilho, presto...
Cronologia, medição, divisão do tempo: cronos, calendário, folhinha,
alm anaque, calendas, cronometria, relógio, milênio, século, centúria, déca­
da, lustro, qüinqüênio, triénio, biênio, ano, mês, dia, tríduo, trimestre, bi­
mestre, semana, anais, ampulheta, clepsidra...
Simultaneidade: durante, enquanto, ao mesmo tempo, simultâneo, con­
temporâneo, coevo, isocronismo, coexistente, coincidência, coetâneo, gêmeo,
ao passo que, à medida que...
Antecipação: antes, anterior, primeiro, antecipadam ente, prioritário,
prim ordial, prem aturo, primogênito, antecedência, precedência, prenúncio,
preliminar, véspera, pródromo...
Posteridade: depois, posteriorm ente, a seguir, em seguida, sucessivo,
por fim, afinal, mais tarde, póstumo, in fin e...
Intervalo: meio tempo, interstício, ínterim, entreato, interregno, pau­
sa, tréguas, entrem entes...
Tempo presente: atualidade, agora, já, neste instante, o dia de hoje,
m odernam ente, hodiernam ente, este ano, este século...
Tempo futuro: am anhã, futuram ente, porvir, porvindouro, em breve,
dentro em pouco, proximamente, iminente, prestes a...
Tempo passado: remoto, distante, pretérito, tem pos idos, outros
tem pos, priscas eras, tempos d’antanho, outrora, antigam ente, coisa ante-
O thon
M.
Garcia
♦
97
diluviana, do tem po do arroz com casca, tempo de am arrar cachorro com
lingüiça...
Freqüência: constante, habitual, costumeiro, usual, corriqueiro, repe­
tição, repetidam ente, tradicional, amiúde, com freqüência, ordinariamente,
muitas vezes...
Infreqüência: raras vezes, raro, raram ente, poucas vezes, nem sem ­
pre, ocasionalmente, acidentalmente, esporadicam ente, inusitado, insólito,
de quando em quando, de vez em vez, de vez em quando, de tempos em
tempos, um a que outra vez...
1.6.6 Condição
As orações subordinadas condicionais mais comuns podem expressar:
a) um fa to de realização impossível (hipótese irrealizável), quando o verbo
da subordinada e o da principal estão em tem po perfectum, Le., tempo
de ação completa: “Se me tivessem convidado, teria ido” (o pretérito
mais-que-perfeito do subjuntivo — tivessem convidado — e o futuro do
pretérito composto — teria ido — são tempos de ação completa, ação
term inada);
b) um fa to cuja realização é possível, provável ou desejável, quando o verbo
da subordinada e o da principal exprimem ação incompleta, i.e., são
tempos do infectam: “Se me convidassem, iria”; “se me convidarem,
irei”;
c) desejo, esperança, pesar (geralmente em frase exclamativa e reticenciosa, em que a oração principal, quase sempre subentendida, traduz um
complexo de situações mais ou menos indefinível ou não claramente
m entado): “Ah, se eu soubesse!...” “Se ele deixasse!...” “Se a gente não
envelhecesse!...”
A conjunção condicional típica é “se”, que exige o verbo quase sem­
pre subjuntivo (futuro, imperfeito ou mais-que-perfeito). Mas razões de or­
dem enfática podem levá-lo ao indicativo, sobretudo quando a oração prin­
cipal encerra idéia dê ameaça, perigo, fato im inente ou fato atuante no
m om ento em que se fala: “Se não me ouvem em silêncio, calo-me"; “Se
não te acautelas, corres o risco de ferir-te”; “Se não me ouves, como que­
res entender-m e?”; “Se não queres ir, não vás”.
A conjunção “caso” exige modo subjuntivo (presente ou pretérito):
“Irei, caso me convidem.” “Contanto que”, menos comum do que “se”, pa­
rece dar à condição valor mais imperativo ou mais impositivo; o verbo da
oração por ela introduzida deve estar no presente do subjuntivo, quando
se faz referência a fato que ainda não se verificou: “Irei, contanto que me
convidem” (“contanto que” sugere que a condição de ser convidado é in­
dispensável, é mais imperiosa do que a conjunção “se” poderia denotar).
Se se trata de ação já realizada, ou supostamente realizada, o tempo deve
ser do pevfectiwn, no caso, pretérito perfeito ou mais-que-perfeito do sub­
juntivo: “Irei contanto que me tenham convidado.”
As conjunções “uma vez que”, “desde que” (esta, usada também
como tem poral), “dado que” equivalem a “contanto que” quando o verbo
da oração que encabeçam está no subjuntivo: “Irei, desde que (um a vez
que, dado que) m e convidem.” Mas, se estiver no indicativo, elas passam a
ter sentido causal: “Irei, desde que (uma vez que) me convidaram” — i.e.,
“porque me convidaram”. A locução “com tal que”, equivalente a “contanto
que”, é hoje desusada.
Com o valor negativo, “sem que” é sinônimo de “se não”, mas pare­
ce tornar a condição mais imperiosa: “Não irei sem que m e convidem”;
“Não teria ido sem que me tivessem convidado”. Neste sentido, pode-se
em pregar “a menos que”: “Não irei, a menos que me convidem” (ou “que
me tenham convidado”, se se pensa no convite como fato possivelmente
ocorrido).
A não ser que e a menos que ligam orações que se opõem pelo senti­
do: se uma é negativa, a outra será afirmativa. Mas a idéia de negação
não precisa ser obrigatoriamente expressa pela partícula “não”; pode sê-lo
por outras formas: um sujeito “ninguém”, “nada”, “nenhum ”, um adjunto
adverbial com preposição "sem”, palavras em que entrem prefixos negati­
vos ou privativos (in-, des-) ou opositivos (contra-, anti-), verbos ou no­
mes que indiquem privação, cessação, oposição, im pedim ento, impossibili­
dade, ou ainda pela simples antinomia entre o verbo da principal e o da
subordinada. Compare-se:
A f ir m a ç ã o n a s u b o r d i n a d a
NEGAÇÃO
NA
PR IN C IPA L
N ão ire i
N in g u é m irá
D e ix a re i d e ir
A f i r m a ç ã o n a p r in c i p a l
Irei
Irei
Irei
a menos que, a não ser que me convidem,
a menos que, a não ser que convidem,
a menos que, a não ser que seja convidado
N e g a ç ã o n a s u b o r d in a d a
1
a menos que, a não ser que não me convidem,
a menos que, a não ser que me impeçam
(idéia de oposição ou obstáculo)
a menos que, a não ser que seja impossível
(pref. negativo).
U F P E Biblioteca C e n tr*
O thon
M.
Garcia
♦
99
A preposição “sem”, seguida por um infinitivo, tem valor condicio­
nal negativo: “Não irei sem me convidarem” (i.e., “sem que me convi­
dem”, ou “se não me convidarem”).
O adjunto adverbial de condição é norm alm ente introduzido pela
preposição “sem”, quando a principal é negativa: “Não irei sem convite.”
Sendo ela afirm ativa, a locução em que entra o “sem” passa a ter, segun­
do parece, valor concessivo: “Irei sem convite” corresponde a “irei m es­
mo que não tenha (ou apesar de não ter) convite, em bora não seja con­
vidado”, em que se subentende que “ser convidado” não constitui condi­
ção para ir. Sugere-se, assim, ausência de condição. Agora se pode
com preender por que algumas gram áticas ensinam que as concessivas ex­
prim em ausência de condição (veremos em 1.6.7.2 que elas são essenci­
alm ente opositivas). No presente caso — “irei sem convite” —, as idéias
de ausência de condição (o convite não é necessário, a condição de ser
convidado é dispensável) e de oposição (ir e ser convidado são coisas que
se ajustam , que se conciliam, mas ir e não ser convidado opõem-se) se
entrecruzam .
Também a preposição acidental “mediante” pode introduzir um adjun­
to adverbial de condição; mas, neste caso, a oração principal vem não rara­
m ente acompanhada de alguma partícula intensiva que revele ou sugira a
idéia de condição exclusiva ou imperiosa: “Só irei mediante convite”, i.e., só
irei sob a condição (imperiosa, indispensável) de ser convidado ou de rece­
ber convite. Não será necessário acrescentar que a preposição “m ediante”
entra muito freqüentemente nos adjuntos adverbiais de meio: “Só se acei­
tam reclamações mediante apresentação desta nota de venda” (note-se a
presença da partícula intensiva “só”). Mesmo neste último exemplo, não es­
tará mais viva a idéia de condição do que a de meio?
1.6.7 Oposição e concessão
Por um a espécie de automatismo psíquico, uma idéia ou imagem
quase sempre nos evoca outra que se lhe opõe ou se lhe assemelha. Cons­
titui por assim dizer uma operação normal do espírito estabelecer contras­
tes e analogias: os primeiros traduzem-se principalm ente em antíteses, e as
segundas, em comparações e metáforas.
1.6.7.1 Antítese
Antítese é uma figura de retórica que consiste em opor a um a idéia
outra de sentido contrário. E um dos recursos de expressão mais em pre­
gados em todos os tempos, tanto na língua falada e popular quanto na li­
terária e culta. Certas épocas literárias chegaram mesmo a caracterizar-se
pelo abuso no em prego dessa figura. É o caso, por exemplo, do barroco
100
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
ou gongorismo, que abrangeu a parte final do século XVI e quase todo o
XVII, cujos vultos mais representativos foram — para não sair da literatu­
ra luso-espanhola — Luís de Gôngora, Lope de Vega e o padre Antônio
Vieira.
O apelo à antítese e às suas variantes (oxímoro e paradoxo) parece
reflexo da própria realidade, que, por ser múltipla, é em si mesma contras­
tante. Se fosse homogênea, não poderia o homem captá-la, compreendê-la
e senti-la em todas as suas dimensões. Só fazemos idéia do que é preto
porque sabemos o que é branco. A imagem de anão opõe-se a de gigante.
A idéia de rapidez da lebre contrasta com a de lentidão da tartaruga. Tu­
do, afinal, se resume num jogo de contrastes: “Sem os contrastes que a
N atureza apresenta, os homens não poderiam conhecer nem avaliar as coi­
sas e sucessos deste m undo” (Marquês de Maricá).
Acusado de abusar de antíteses, assim se defendeu Victor Hugo:
“A natureza procede por contrastes. E por meio de oposições que ela
dá realce aos objetos e nos faz sentir as coisas: o dia pela noite, o calor
pelo frio... Toda claridade projeta sombra. Daí, o relevo, o contorno, a pro­
porção, as relações, a realidade... O poeta, esse pensador supremo, deve
fazer como a natureza: proceder por contrastes... Se um homem um pou­
co letrado se der ao trabalho de sondar a sua memória, de aí rebuscar
tudo quanto se gravou atravcs da leitura dos grandes poetas, dos grandes
filósofos, dos grandes escritores, há de ver que, em cinqüenta citações que
lhe ocorram, quarenta e nove pertencem ao que se convencionou chamar
antítese.”
(Tas de pierres, apud M. Courault,
Manuel pratique de l’écrire, p. 196)
Falando sobre as paixões do coração hum ano, diz o padre António
Vieira que as onze em que as dividira Aristóteles £íreduzem-se a duas capi­
tais: am or e ódio” — e o grande orador sacro da literatura luso-brasileira
prossegue, muito à vontade, nesse clima de ideias contrastantes:
E estes dois afetos cegos são os dois pólos em que se resolve o mun­
do (...). Eles são os que enfeitam ou descompõem, eles os que fazem ou
aniquilam, eles os que pintam ou despintam os objetos, dando e tirando a
seu arbítrio a cor, a figura, a medida e ainda o mesmo ser e substância, sem
outra distinção ou juízo que aborrecer e amar. Se os olhos vêem com amor,
o corvo é branco; se com ódio, o cisne é negro; se com amor, o demônio é
formoso; se com ódio, o anjo é feio; se com amor, o pigmeu é gigante, se
com ódio, o gigante é pigmeu...
(“Sermão da quinta quarta-feira”, apud Mário
Gonçalves Viana, op. cit., p. 214)
Todo ele constituído de metáforas antitéticas, e até mesmo contradi­
tórias, é o soneto de um autor quase desconhecido, tipicam ente barroco:
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
101
Baixel de confusão em mares de ânsia,
Edifício caduco em vi] terreno,
Rosa murchada já no campo ameno,
Berço trocado em tumba desde a infância;
Fraqueza sustentada em arrogância,
Néctar suave em campo de veneno,
Escura noite em lúcido sereno,
Sereia alegre em triste consonância;
Viração lisonjeira em campo forte,
Riqueza falsa em venturosa mina,
Estrela errante em fementido norte;
Verdade que o engano contamina,
Triunfo do amor, troféu da morte
É nossa vida vã, nossa ruína.
O Autor desse “divertimento” — Francisco de Vasconcelos — é um
dos poetas incluídos na Fênix Renascida (coletânea constituída por cinco
volumes e publicada entre 171.6 e 1728).
A antítese é tanto mais expressiva quanto mais concisa, isto é, quan­
to m enor o número de palavras em que se traduz, como se pode observar
na m aioria das máximas e provérbios. Basta ler La Rochefoucauld ou o
nosso Marquês de Maricá.
As virtudes são econômicas, mas os vícios dispendiosos.
Quando os tiranos caem, os povos se levantam.
O louvor acha incrédulos, a maledicência muitos crentes.
Se, além da oposição de sentido, há identidade de sons, maior ain­
da é o efeito da antítese:
A riqueza envilece os homens, a pobreza os enobrece.
Os afortunados não sabem desculpar os desgraçados.
A maldade supõe deficiência, a bondade, suficiência.
O paralelismo métrico ou isocronismo, quer dizer, mais ou menos a
mesma extensão ou número de sílabas nos dois termos antitéticos (rever
1.4.5.1), muito contribui também para a expressividade. Eça de Queirós
m anipula com habilidade esse padrão de antítese:
Quem
f se mostra facilmente seduzido
t
facilmente se mostra sedutor.
Variante da antítese é o oxímoro ou oximóron, uma espécie de pa­
radoxo ou contradição, pois os termos que o compõem não apenas con­
trastam mas também se contradizem: suave amargura, doce tormento, deli­
cioso sofrimento, obscura claridade. Camões e outros poetas do século XVI,
assim como também todos os gongóricos do século XVII, deleitavam-se
com essas expressões contraditórias ou paradoxais, do tipo “falo melhor
quando em udeço, que de matar-me vivo”. O célebre soneto cam oniano —
“Amor é fogo que arde sem se ver” — é quase todo ele constituído por
oxímoros.
Também na poesia contemporânea se pratica o oxímoro, porém com
estruturas mais flexíveis e variadas:
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
(C. D. de Andrade, “O medo”, Rosa do povo)
e se essa forma pura, degradando-se
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima...
(íd., “Rapto”, Claro enigma)
1.6.7.2 Estruturas sintáticas opositivas ou concessivas
É claro que, além da antítese, há outros modos de indicar oposição
ou contraste entre idéias, embora as orações adversativas e as concessivas
constituam os torneios de frase mais comuns e mais adequados a isso. To­
memos, para exemplificar, dois verbos não antagônicos pelo sentido — “es­
forçar-se” e “conseguir” — mas capazes de expressar contraste, se nos ser­
vimos de construções sintáticas apropriadas, tais como:
a) oração adversativa: Esforçou-se mas (porém, entretanto) nada conseguiu.
b) oração concessiva (ou de oposição): Embora (se bem que, ainda que,
posto que) se tenha esforçado, nada conseguiu.
c) oração coordenada aditiva: Esforçou-se e nada conseguiu.
d) oração concessiva intensiva: Por mais que (por muito que) se tenha es­
forçado, nada conseguiu.
e) oração reduzida de gerúndio concessiva: Mesmo esforçando-se, nada con­
seguiu.
f) oração reduzida de infinitivo concessiva: Apesar de (a despeito de) se ter
esforçado, nada conseguiu.
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
103
g) adjunto adverbial de concessão (ou de oposição): Apesar do (não obstan­
te o) esforço, nada conseguiu.
h) oração justaposta (geralmente reforçada por um a partícula intensiva e
esclarecedora): Esforçou-se em vão (inutilm ente, debalde): nada conse• 32
guiu.
Às vezes, até mesmo um a subordinada condicional ou uma subordi­
nada tem poral podem sugerir idéia de oposição:
O arrependimento, se não repara o feito, previne a reincidência.
Subentenda-se também:
O arrependimento, embora não repare o feito, previne a reincidência.
A frase, que é do Marquês de Maricá, poderia traduzir mais ou me­
nos a mesma idéia, se, em vez da condicional “se”, empregássemos a tem ­
poral “quando”:
O arrependimento, quando não repara o feito, previne a reincidência.
Para expressar concomitância de ações, fatores ou atributos que se
opõem, freqüentem ente nos servimos de uma construção paralelística em
que entram a conjunção “se” e os adjuntos adverbiais “por um lado” (na
oração subordinada introduzida pelo “se”) e “por outro” (na principal):
Se, por um lado, os filhos nos causam imensas alegrias, por outro,
nos enchem de preocupações constantes.
A mesma coisa se poderia dizer com duas orações coordenadas pela
conjunção “mas” acom panhada pela partícula “tam bém ”, com que se indi­
ca igualm ente adição ou concomitância:
Os filhos nos causam imensas alegrias, mas também nos enchem de
preocupações constantes.
32 O pensam ento concessivo pode ser expresso também por meio de locuções do tipo haja o
que houver, seja como for, aconteça o que acontecer, dê no que der, custe o que custar, seja lá o
que for, em que pese a, etc. Consulte-se BECHARA. Estudos sobre os meios de expressão do p en ­
samento concessivo em Português. Rio, 1954.
No caso de “mas também”, quase sempre a frase se desdobra num
par correlato, com a anteposição de “não só”, “não som ente”, “não ape­
nas”:
Os filhos não só nos causam imensas alegrias mas também nos en­
chem de preocupações constantes.
Convém lembrar, entretanto, que esse par correlato pode indicar
apenas concomitância ou adição, sendo a idéia de oposição decorrente do
teor das orações por ele interligadas.
A conjunção “ao passo que”, classificada nas gramáticas como pro­
porcional (equivalente a “à proporção que” ou “à m edida que”) tam bém se
sobrecarrega freqüentemente de função opositiva:
Os tolos e néscios, por vaidade ou presunção, falam muito do que ig­
noram, ao passo que os sábios, por modéstia, calam o muito que sabem.
Nessa frase parece predom inar claramente a idéia de oposição, pois
nela não se insinua que os tolos e néscios falam na mesma proporção ou
medida em que os sábios se calam, mas que os prim eiros fazem o contrá­
rio do que fazem os segundos.
Pode-se traduzir o mesmo pensamento opositivo, substituindo-se “ao
passo que” por “enquanto” (conjunção dita temporal ou concomitante):
Enquanto os tolos e néscios, por vaidade ou presunção, falam muito
do que ignoram, os sábios, por modéstia, calam o muito que sabem.
z)
c)
d)
e)
í)
g)
a)
relutância, teimosia, riv
tradição, antípoda, obst
presa, impedimento, coi
or, objeção...;
verbos: defrontar-se con
a, enfrentar, reagir, em
tar, pear, travar, frear, n
de outros, na sua maioi
adjetivos: contrário, opo
outros, cognatos dos ve
preposições, locuções pre
sem embargo de, não <
muito pelo contrário, ai
ção a, contra, às avessa
conjunções adversativas:
entanto, senão, não obí
conjunções subordinativas
ainda que, posto que, c
que, mesmo assim (= n
prefixos latinos: contracal nominal);
prefixos gregos: and-, a-
1.6.8 Comparação
Palavras ou expressões que, em sentido figurado ou não, podem in­
dicar oposição ou contraste, inclusive algumas de tonalidade afetiva (co­
mo hostilidade, rivaZidade, concorrência, competição) e outras que encerram
a idéia geral de “obstáculo”:
Mas a realidade nã<
é por semelhanças. Perce
naturalm ente a estabelecei
Comparam-se qualid
a lebre, forte como um toi
tos, ações 0corre como a k
ba, agiu como um tolo) as
Alguns autores, coi
propriamente dita, a com
forte como o pai” —, em
ao mesmo nível de refer
ta, não apenas os objeto
diferentes, mas tam bém <
do atributo que se quer i
símile se distingue da sii
a) substantivos: antagonismo, polarização, tendência contrária, reação, re­
sistência, competição, hostilidade, ânimo hostil, animosidade, antipatia,
33 Étude sur la m étaphore, p. 14
Observe-se, de passagem, que, nessas estruturas paralelas de sentido
opositivo, a oração de “enquanto” geralmente se antepõe à principal, e a de
“ao passo que” a ela se pospõe, como se deve ter notado nas duas versões.
É desnecessário relem brar que, além dessas estruturas típicas, há ou­
tros modos de indicar oposição, que, entretanto, quase sempre consistem
no em prego de palavras antinômicas ou de partículas opositivas.
1.6.7.3 Vocabulário da área semântica de oposição
O t h o n
b)
c)
d)
e)
f)
g)
h)
M.
G a r c i a
♦
105
relutância, teimosia, rivalidade, emulação, pirraça, contraposição, con­
tradição, antípoda, obstáculo, empecilho, óbice, m uralha, trincheira, re­
presa, im pedim ento, contrapeso, contratempo, contrariedade, força m ai­
or, objeção...;
verbos: defrontar-se com, ir de encontro a, ser contrário a, fazer frente
a, enfrentar, reagir, embargar, impedir, estorvar, empecer, obstar, obje­
tar, pear, travar, frear, refrear, sofrear, opor-se a, contrapor-se a — além
de outros, na sua maioria cognatos dos substantivos de igual sentido;
adjetivos: contrário, oposto, oponente, antagônico, relutante — além de
outros, cognatos dos verbos ou substantivos da m esm a área semântica;
preposições, locuções prepositivas e adverbiais: apesar de, a despeito de,
sem em bargo de, não obstante, malgrado, ao contrário, pelo contrário,
muito pelo contrário, antes pelo contrário, em contraste com, em oposi­
ção a, contra, às avessas...;
conjunções adversativas: mas, porém, contudo, todavia, entretanto, 110
entanto, senão, não obstante (que também funciona como preposição);
conjunções subordinativas, na sua maioria concessivas: embora, se bem que,
ainda que, posto que, conquanto, em que pese a, muito embora, mesmo
que, mesmo assim (= mesmo que seja assim); enquanto, ao passo que;
prefixos latinos: contra- (também preposição), des-, in- (seguido de radi­
cal nominal);
prefixos gregos: anti-f a-t an-.
1.6.8 Comparação e símile
Mas a realidade não é constituída apenas por contrastes; também o
é por semelhanças. Perceber semelhanças entre coisas, seres, idéias leva
naturalm ente a estabelecer comparações ou analogias.
Comparam-se qualidades isoladas (negro como 0 carvão, rápido como
a lebre, forte como um touro), comparam-se fatos, fenômenos, acontecimen­
tos, ações (corre como a lebre, queima como fogo, estourou como um a bom­
ba, agiu como um tolo) assim como se comparam situações mais complexas.
Alguns autores, como Hedwig Konrad33 distinguem a comparação
propriamente dita, a com paração estritam ente gram atical — “ele é (tão)
forte como o pai” — , em que os objetos ou seres com parados pertencem
ao mesmo nível de referência, da comparação metafórica ou símile. Nes­
ta, não apenas os objetos com parados pertencem a níveis de referência
diferentes, m as tam bém o segundo deles é o representante por excelência
do atributo que se quer ressaltar no primeiro, 0 que perm ite dizer que o
símile se distingue da simples com paração por ser um exagero, um a hi-
33 Étude sur la mêtaphore, p. 149-50.
106
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
pérbole:34 Fulano é forte corno um touro (exagera-se a força de Fulano ao
se com pará-la com a do touro).
Todo processo de comparação metafórica (ou símile), que pressupõe
a existência de semelhanças em qualquer grau, visa, sobretudo, a tom ar
mais clara, mais compreensível uma idéia nova, desconhecida do receptor,
m ediante o cotejo ou confronto com outra mais conhecida, cuja caracterís­
tica predominante ou atributo por excelência se evidencie de m aneira osten­
siva, concreta, mais sensível. Na declaração “Fulano é muito forte”, a idéia
de força raia pela abstração: há mil coisas fortes assim como há mil graus
de força ou fortaleza. A idéia nova e desconhecida que o emissor quer
transm itir — a força de Fulano — pode ser mais facilmente, mais concretam ente apreendida no seu exato matiz, se expressa através de uma compa­
ração com outra mais conhecida, mais evidente — a força do touro: “Fula­
no é forte como um touro.”
A comparação supre assim, até certo ponto, a insuficiência de pala­
vras, a indigência verbal para exprimir com exatidão e clareza todos os
possíveis matizes de idéias ou sentimentos. Ora, a realidade concreta ofere­
ce uma variedade quase infinita de coisas e seres capazes de traduzir, por
particularização e concretização (ou concretude), idéias gerais e abstratas,
pois um a das deficiências do espírito hum ano está na sua incapacidade de
abstração absoluta, na incapacidade de isolar conceitos ou conceber idéias
desgarradas de todo contato com o mundo objetivo. É conhecida a senten­
ça de Locke: “Nihil in intellectu quod prius non fuerit in sensu” (nada nos
chega ao espírito sem ter sido antes apreendido pelos sentidos). Por isso,
procuram os sempre traduzir noções ou conceitos abstratos por meio
(exemplos, comparações) de referências aos objetos das nossas percepções
sensíveis. Muito forte é abstração: forte como um touro é concreção. Quan­
to mais concreta e objetiva é a nossa linguagem, tanto mais precisa, tanto
mais clara se tom a (ver 2. Voc., 2.0).
1.6.8.1 Metáfora*
A existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de
abstração, a pobreza relativa do vocabulário disponível em contraste com a
riqueza e a numerosidade das idéias a transm itir e, ainda, o prazer estéti­
co da caracterização pitoresca constituem as motivações da m etáfora (ver
2. Voc., 1.4).
•i4 tfíude 5ur la m étaphore , p. 150. Ver também MARQUES. Oswaldino. Teoria da metáfora & re­
nascença da poesia americana, p. 33, e, especialmente sobre o símile, o excelente estudo de
Eliane Zagury — Estrutura e tipologia do símile em Histórias de Alexandre — publ. Revista de
Cultura Vozes, n0 7, set. 1970, p. 21-8.
* Relembre-se o leitor do teor do último parágrafo da “Adverrêncio".
.rv ju ic id iu rd e u m
nominações de complex
ainda designações adeqi
em que ocorre tal neces
denominação já existent
uma expressão metafóric
rsL na medida em que el
círculos de representaçõe
distante da compreensão
por meio de algo mais p:
Isso quer dizer qut
lança mão por falta de o
cerização pitoresca, afirms
Hermann Paul, acima tra
Em síntese — didá
de significação (tropo) q
ÍB), em virtude de qualç
traço característico de A
de B, feita a exclusão de
terização do termo própr
ção nos ensinam que os c
te primacial das nossas ii
tos traços distintos. A
predom inante a sua cor \
com essa mesma tonalide
ca, da qual resulta a met
sim, pelo mesmo process
são um colar de pérolas; $
nos muito brancos; suas l
— o comparado (a coisa
sos. como nos exemplos
se apenas o termo compai
za (ou pura, como tambt
ce; seus lábios entremostr
Do ponto de vista
«m a comparação implícití
parativas (como, tal qual
«erbo seja parecei; semelh
oan equivalente desses. As
se a, dão a impressão de)
Poderíamos figurar
R s de igual diâmetro, suj
PAUL, Hermann, apud BÜHLE
U F P E Biblioteca C e n u
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
107
“A m etáfora é um dos meios mais im portantes para a criação de de­
nominações de complexos de representações para os quais não existem
ainda designações adequadas. Mas sua aplicação não se limita aos casos
±m que ocorre tal necessidade externa. Mesmo quando se dispõe de uma
denominação já existente, um impulso interior incita a preferência por
uma expressão metafórica (...) É evidente que, para a criação da metáfo­
ra, na medida em que ela é natural e popular, recorre-se em geral àqueles
drculos de representações que estão mais vivos na alma. O que está mais
distante da compreensão e do interesse torna-se mais intuitivo e familiar
por meio de algo mais próximo.”35
Isso quer dizer que a m etáfora é não apenas um recurso de que se
lança mão por falta de expressão adequada mas também um meio de carac­
terização pitoresca, afirma Karl Bíihler, comentando o conceito expresso por
Hermann Paul, acima transcrito.
Em síntese — didática —, pode-se definir a metáfora como a figura
de significação (tropo) que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra
(B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um
traço característico de A e o atributo predominante, atributo por excelência,
de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à carac­
terização do termo próprio A. Ora, a experiência e o espírito de observa­
ção nos ensinam que os objetos, seres, coisas presentes na natureza — fon­
te primacial das nossas impressões — impõem-se-nos aos sentidos por cer­
ros traços distintos. A pedra preciosa “esmeralda” tem como atributo
predom inante a sua cor verde, de brilho muito particular. Então, uns olhos
com essa mesma tonalidade podem levar a uma associação por sem elhan­
ça, da qual resulta a metáfora: seus olhos (A) são duas esmeraldas (B). As­
sim, pelo mesmo processo e com motivação idêntica, dir-se-á: seus dentes
são um colar de pérolas; seus lábios, duas pétalas de rosa; suas mãos, dois lí­
rios muito brancos; suas lágrimas, contas de um rosário. Se os dois termos
— o com parado (a coisa A) e o comparante (a coisa B) — estão expres­
sos, como nos exemplos precedentes, diz-se que é m etáfora in praeseníia;
se apenas o termo com parante está explícito, trata-se de m etáfora in absentia (ou pura, como também se diz): duas esmeraldas cintilavam-lhe na fa­
ce; seus lábios entrem ostravam um colar de pérolas.
Do ponto de vista puramente formal, a m etáfora é, em essência,
uma com paração implícita, isto é, destituída de partículas conectivas com­
parativas (como, tal qual, tal como) ou não estruturada num a frase cujo
verbo seja parecer, semelhar, assemelhar-se, sugerir, dar a impressão de ou
um equivalente desses. Assim “seus olhos são como (parecem, assemelhamse a, dão a impressão de) duas esmeraldas” é uma comparação ou símile.
Poderíamos figurar o processo metafórico como dois círculos secan­
tes de igual diâmetro, superpostos de tal maneira que a área de um não
35 PAUL, Hermann, apud BÜHLER, Karl, Teorfa dei lenguaje, trad. esp., p. 388.
108
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C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
cubra inteiram ente a do outro. O primeiro círculo representa o plano real,
quer dizer a coisa A, a idéia nova a ser expressa ou definida; o segundo, o
plano imaginário ou poético, isto é, a coisa B, aquela em que a imaginação
do emissor percebeu alguma relação ou semelhança com a coisa A:
i:
l e C ír c u l o
2 - C írc u lo
C ír c u l o s
Plano real (A):
idéia ou coisa a ser de­
finida ou expressa.
Plano imaginário (B):
a outra idéia ou coisa em
que a imaginação percebe
alguma relação ou seme­
lhança com a do plano real.
A zona sombreada figu­
ra a relação de seme­
lhança entre os dois pla­
nos.
seca n tes
à organização sêmica d
unidades mínimas de s
d á o siginificado da palí
m a “leão”, isto é, o ten
os semas (S) — cultural
te denotativa (animal, i
destruição, mortífero, cc
m em a do term o com pa
m as idênticos: cor aver
das chamas. Pode-se, en
o term o com parante (“1
sem a ou mais de um sei
Cdo..........
[incêndio)
Exemplifiquemos com um verso de Castro Alves:
Incêndio — leão ruivo, ensangüentado.
(“A queimada”, Cachoeira de Paulo Afonso)
2- C írc u lo
Zona
Plano imaginário:
leão ensangüentado (B)
Área de semelhança en­
tre os dois planos (A é B)
som breada
A cor averm elhada das labaredas e a idéia de ímpeto destruidor e
mortífero, implícita em incêndio, sugeriram ao poeta, evocaram-lhe, a ima­
gem de leão (ímpeto destruidor e mortífero) ruivo (averm elhado) ensan­
güentado (violência, destruição, morte). Quanto m aior essa área de seme­
lhança, tanto mais expressiva, tanto mais congruente é a m etáfora.36
36 Essa figuração em círculos secantes inspira-se nos "filtros duplos" imaginados por K. Bühler
(op. cít., p. 392). Segundo a terminologia adotada por I. A. Richards, o plano real, a "idóia ori­
g in ar, "aquilo de que se está realmente falando” é o teor (tenor), e o plano imaginário, aquilo
a que algo é comparado, constitui o veículo (cf. The philosophy o f rhetoric , p. 96).
Normalmente, o te
dio) e o de sentido meta
ensangüentado) pertencer
e, mesmo assim, parecem
pies mudança de função i
de certos substantivos em
feno/yd, sapato chocolate, i
Embora predomine
freqüentes também as qui
colípticas, proféticas, voz c
Í25, dia sonolento, vida t
—jjrria, as artes florescem
violões choram). Também
trvos, admitem metaforiza
adversário reagiu leoninan
Tacnre o aro de ouro dos í
r ó . apud Ernesto da Cal,
üaãs com núcleo substant
s s . roçando o chão, cicia
Alguns autores, con
5?ra estética (outros prefei
" fe 5. Ord., 1.3.1. nota 7.
Op. cít., p. 129.
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
109
À luz da semântica estruturalista, o processo metafórico diz respeito
à organização sêmica da mensagem. A palavra, ou lexema, compõe-se de
unidades mínimas de sentido (semas); o conjunto dessas unidades é que
dá o siginificado da palavra (semema).37 Assim, no caso em pauta, o semema “leão”, isto é, o termo comparante (Cte) “leão”, encerra, entre outros,
os semas (S) — culturalizados e codificados, além dos de ordem puram en­
te denotativa (animal, mamífero, quadrúpede, etc.) — impeto, ferocidade,
destruição, mortífero, cor averm elhada (juba ruiva). Por outro lado, o semema do term o comparado (Cdo) “incêndio” encerra tam bém alguns se­
mas idênticos: cor avermelhada das labaredas, destruição, morte, ímpeto
das chamas. Pode-se, então, dizer que, num processo metafórico, há entre
o term o com parante (“leão”, Cte) e o comparado (“incêndio”, Cdo) um
sema ou mais de um sema comum, o que se pode assim esquematizar:
Cdo..............................................S ............................................................................... Cte
(incêndio)
(mortífero,
cor avermelhada,
ímpeto, destruição)
(leão)
Normalmente, o termo de sentido próprio (A = olhos, lábios, incên­
dio) e o de sentido metafórico (B = esmeraldas, pétalas de rosa, leão ruivo
ensangüentado) pertencem à mesma classe de palavras: as exceções são raras
e, mesmo assim, parecem constituir antes simples mecanismo gramatical, sim­
ples mudança de função imposta pelo contexto, como é o caso, por exemplo,
de certos substantivos empregados com função adjetiva: vestido creme, blusa
laranja, sapato chocolate, crime monstro, chapéu-coco, saia balão.
Embora predominem as metáforas constituídas por substantivos, são
freqüentes também as que se fazem com adjetivos (palavras torrenciais, apo­
calípticas, proféticas, voz cristalina, silêncio sepulcral, tumular, horas moribun­
das, dia sonolento, vida tempestuosa) ou com verbos (o dia nasce, a tarde
morria, as artes florescem, o regato murmura, as ondas beijam a praia, os
violões choram). Também os advérbios em -mente, por se derivarem de adje­
tivos, admitem metaforização: o hóspede atirou-se caninamente ao assado, o
adversário reagiu leoninamente, “...nariz em cuja ponta repoisava pedagogica­
mente o aro de ouro dos seus óculos burocráticos" (exemplo de Eça de Quei­
rós, apud Ernesto da Cal, op. cit., p. 174). É evidente que as locuções adver­
biais com núcleo substantivo podem ser igualmente metaforizadas: “A nebli­
na, roçando o chão, cicia em prece” (Olavo Bilac, “Vila Rica”, A tarde).
Alguns autores, como Hedwig Konrad,38 costumam distinguir a m etá­
fora estética (outros preferem dizer estilística), que é a criação pessoal, ino­
37 Ver 5. Ord., 1.3.1. nota 7.
38 Op. cit., p, 129.
vadora, estilisticamente individualizada, da metáfora lingüística, aquela que,
por inópia verbal, se torna forçada e, instaurando-se na língua, acaba estio­
lada como patrimônio de todos, como vocábulo dicioiiarizado, como léxico,
enfim. Da palavra assim empregada nem sempre se tem viva consciência de
que é o resultado de um processo metafórico (ver Catacrese, 1.6.8.2).
1.6.8.1.1 METÁFORA E IMAGEM
Em psicologia, a palavra imagem designa toda representação ou re­
constituição m ental de uma vivência sensorial que tanto pode ser visual —
caso mais comum — quanto auditiva, olfativa, gustativa, tátil ou, mesmo,
totalm ente psicológica. Em semiologia e comunicação, é a “representação
concreta que serve para ilustrar uma idéia abstrata”.39 Em teoria literária,
é freqüente o uso dessa palavra com um sentido equivalente ao de metáfo­
ra ou de símile. John Middleton,40 por exemplo, julga preferível seu em ­
prego com esse sentido abrangente, para pôr em relevo a identidade fun­
dam ental entre aqueles dois tropos.
Mas vários autores — como Herbert Read, C. Day Lewis, Wellek, Warren e outros — têm tentado estabelecer diferença entre imagem, por um la­
do, e m etáfora e símile, por outro, tentativa, ao que nos parece, infrutífera,
pois, na realidade, a distinção é antes psicológica do que propriamente for­
mal. Paul Reverdy, citado por H. Read, 1 diz que a imagem “é pura criação
m ental” e “não pode emergir de uma comparação mas apenas da associa­
ção entre duas realidades mais ou menos distantes.” Para C. Day Lewis,42 “a
imagem poética é mais ou menos uma representação sensorial, traduzida
em palavras até certo ponto metafóricas”. Como se vê, esses dois autores se
mostram imprecisos na conceituação de imagem (“é mais ou menos”, “até
certo ponto”).
I. A. Richards43 preceitua que “aquilo que confere eficácia a um a
imagem (...) é seu caráter de evento mental peculiarm ente relacionado
com um sensação”. Essa é outra conceituação puram ente psicológica que,
necessariamente, não inclui nem exclui a possibilidade de imagem abran­
ger ou não abranger a metáfora e o símile.
Em face da opinião desses autores, será válido dizer que a imagem
a) é uma representação (reconstituição, reprodução) mental de resíduos44
39 Cf. LALANDIL André, Vocafeuíaíre technique et critique de la philosophie, verbete image, C.
40 Shakespeare criticism, p. 227, apud MARQUES, Oswaldino, op. cit., p. 27.
41 Collected essays literary criticism, p. 98-9.
42 Poetic image, p. 18 c 22.
43 Principles o f literary criticism, p. 119.
44 “A imagem é a persistência do que desapareceu” (Jean-I.ouis Schefer, “L’image: le sens ’in­
vesti’”. Comm unications, nB 15, 1970, p. 219).
de sensações ou impre
visuais, que o espírito r
guas, e b) pode assun
mesmo, de outros tropi
or ou m enor rigor, é p
pregamos — a palavra
são de contextura met;
do qual se representa a
1.6.8.2 Catacrese
Quando a transh
lógico de metáfora) do
tra (B), semelhante, se
da (B) e /o u resulta de
que se tem é um a catc
fundam ento e o proces:
da metáfora: ambas se
rença entre ambas resic
der o sentido de uma j
de ser sentida com met
Se não se dispõe
de as colunas que suste
gismo ou aproveitar p
como a perna ou o pé q
(ou pé) da mesa. Assin
um a agulha na pele (p<
co), espalhar dinheiro I
m ar (m ar não é terra
azul), sacar dinheiro d<
cabeça (cabeça não é <
m ento cortante para se
bico da pena, folha de :
A catacrese é, p
já não se sente nenhui
toresca. É a m etáfora
iístico.
1.6.8.3 Catacrese
Além da metáfoi
tipo muito comum: o c
clichês metafóricos, que
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
111
de sensações ou impressões predom inantem ente mas não exclusivamente
visuais, que o espírito reelabora, associando-as a outras, similares ou contí­
guas, e b) pode assumir a forma de um a m etáfora ou de um símile e,
mesmo, de outros tropos (metonímia, alegoria, símbolo). Assim, com mai­
or ou m enor rigor, é perfeitam ente cabível em pregar — e geralmente em ­
pregam os — a palavra imagem para designar qualquer recurso de expres­
são de contextura metafórica, comparativa, associativa, analógica, através
do qual se representa a realidade de maneira transfigurada.
1.6.8.2 Catacrese
Q uando a translado (transferência ou transposição, sentido etimo­
lógico de metáfora) do nome de uma coisa (A) para com ele designar ou­
tra (B), semelhante, se impõe por não existir term o próprio para a segun­
da (B) e /o u resulta de um abuso no emprego da palavra “transferida”, o
que se tem é uma catacrese (que, etimologicamente, significa “abuso”). O
fundam ento e o processo de formação dessa figura (tropo) são os mesmos
da m etáfora: ambas se baseiam num a relação de similaridade; mas a dife­
rença entre ambas reside ainda no fato de que a catacrese, além de esten­
der o sentido de uma palavra além do seu âmbito estrito e habitual, deixa
de ser sentida com metáfora, dado o seu uso corrente.
Se não se dispõe de palavra própria para designar com exclusivida­
de as colunas que sustentam o tampo da mesa, que fazer? Criar um neolo­
gismo ou aproveitar palavra já existente que designe coisa semelhante,
como a perna ou o pé que sustentam o corpo humano; daí a catacrese perna
(ou pé) da mesa. Assim também, faz-se catacrese quando se diz: enterrar
um a agulha na pele (pele não é terra), embarcar no trem (trem não é bar­
co), espalhar dinheiro (dinheiro não é palha), o avião aterrissou em altomar (m ar não é terra) o azulejo é branco (azulejo deveria ser sempre
azul), sacar dinheiro do banco (banco não é saco), encaixar um a idéia na
cabeça (cabeça não é caixa), amolar a paciência (paciência não é instru­
mento cortante para ser amolado)... Faz-se ainda catacrese quando se diz
bico da pena, folha de zinco, de papel, braço da cadeira...
A catacrese é, portanto, uma espécie de m etáfora morta, em que
já não se sente nenhum vestígio de inovação, de criação individual e pi­
toresca. É a m etáfora tornada hábito lingüístico, já fora do âm bito esti­
lístico.
1.6.8.3 Catacrese e metáforas naturais da língua corrente
Além da metáfora estética, revivificadora da linguagem, há outro
tipo muito comum: o das metáforas naturais da língua corrente, em geral,
clichês metafóricos, que podem ser ou não ser catacreses. Comuns e nume-
\
112
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
\
M o d e r n a
rosas em todas as línguas, elas têm como fontes geradoras o próprio ho­
mem, seu am biente e seu cotidiano. Formam-se geralm ente com nomes de:
O “corpo” dessa par
a trave e o olho: sua “aln
em “olha primeiro o teu <
m oderna, abrasileirada, iss
rabo do vizinho” — que é
— partes do corpo humano (catacreses na sua maioria): boca do túnel, olho
d’água, cabeça do prego, cabelo do milho, língua de fogo (labareda),
mão de direção, pé da mesa, pé de árvore, dente de alho, braço de rio,
barriga da perna, costa(s) do Brasil (litoral), coração da floresta, miolo
da questão, ventre da terra....
— coisas, objetos e utensílios da vida cotidiana: tapete de relva, cortina de fu­
maça, espelho da alma (olhos), roda da vida, berço da nacionalidade, lei­
to de um rio, laços matrimoniais...
— animais: esta mulher é uma víbora, uma piranha, um a raposa, uma fera,
ele é um touro, uma águia, um quadrúpede, um cão...
— vegetais: este menino é uma flor, tronco familiar, raízes da nacionalida­
de, ramo das ciências, árvore genealógica, maçã do rosto, fruto da im­
previdência, pomo da discórdia...
— fenômenos físicos, aspectos da natureza, acidentes geográficos: aurora, prima­
vera, ocaso da vida, explosão de sentimentos, torrente de paixões, vale de
lágrimas, monte, montanha de (papéis, absurdos, asneiras...), tempestade
de injúrias, dilúvio de impropérios... (ver 10. Ex., 209 a 217 e 508 a 509).
1.6.8.5 Animismo ou
Há uma infinidade c
tam ações, atitudes ou sent
res ou coisas inanimadas: o
so, ondas raivosas, dia trisa
çào. O poema brasílico (
metáforas desse tipo: “um
“os rios vão carregando as
órfãs fugindo”, arvorezinha
árvores “mamam luz escom
1,6.8.6 Clichês
Quando a metáfora j
como que em botada, perde
gum e um a faca muito usac
riza o estilo vulgar o medíc
nação: a estrada serpenteia
jante, luar prateado, silencie
vera da vida, mais urna pág
Muitas vezes, o cliché
'série usual” ou “unidade fi
1.6.8.4 Parábola
A parábola é também uma forma de comparação (para os antigos
retóricos, esses termos eram até sinônimos). Fala-se por parábolas, como
fez Jesus, quando os elementos de uma ação se referem ao mesmo tempo
a outra série de fatos e objetos. É uma espécie de alegoria que sugere por
analogia ou semelhança uma conclusão moral ou uma regra de conduta
em determ inado caso. As parábolas mais conhecidas são as do Evangelho:
a do filho pródigo, a do joio entre o trigo, a do bom Samaritano, a do juiz
iníquo, a da palha e da trave, e outras.
Chama-se “corpo” da parábola a narrativa imaginada, ao passo que a
lição moral que dela se tira é a sua “alma”. Na parábola que transcreve­
mos a seguir, “trave” está por defeito que não percebemos em nós mes­
mos, e “palha” por aquele que estamos sempre apontando nos outros:
Como vês a palha no olho do teu irmão, e não vês a trave no teu?
Ou como ousas dizer a teu irmão: Deixa que eu tire a palha do teu
olho, tendo tu uma trave no teu?
Hipócrita: tira primeiro a trave do teu olho, e então tratarás de tirar
a palha do olho do teu irmão.
(Mateus, VII, 3-5)
45 Cf. Othon M. Garcia, Cobra Norat
* 46 Não se deve confundir o clichê
ou “a Lua é a rainha da noite”) e
flocuções, ditados, rifões) de gen
■tos”, “onde a porca torce o rabo"
■lisa d e onze varas”, “cavalo de bí
ce tras expressões populares de ori
n a . a filosofia e os costumes popul
weitosso o livro de João Ribeiro, I
São José. Muitas expressões de gír
1 já que quase todas têm sentido fig
preendido pelos membros do grup
res. cuja característica é camuflar
« m entendê-las (e não outros, príi
t
I U F P E Biblioteca C en t
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
113
O “corpo” dessa parábola é a narrativa cujos elementos são a palha,
a trave e o olho: sua “alm a” é a regra de conduta, que se pode traduzir
em “olha primeiro o teu defeito, e aponta depois o alheio”. Numa versão
moderna, abrasileirada, isso significa: “macaco, olha o teu rabo e deixa o
rabo do vizinho” — que é também uma parábola.
1.6.8.5 Animismo ou personificação
Há uma infinidade de metáforas constituídas por palavras que deno­
tam ações, atitudes ou sentimentos próprios do homem, mas aplicadas a se­
res ou coisas inanimadas: o Sol nasce, o dia morre, o mar sussura, mar furio­
so, ondas raivosas, dia triste... E uma espécie de “animismo” ou personifica­
ção. O poem a brasílico Cobra Norato, de Raul Bopp, está repleto de
metáforas desse tipo: “um riozinho vai para a escola estudando geografia”,
“os rios vão carregando as queixas do caminho”, “águas assustadas”, “águas
órfãs fugindo”, arvorezinhas “bocejam sonolentas” e “grávidas cochilam”, as
árvores “mam am luz escorrendo das folhas” e “nuas tomam banho”.45
1.6.8.6 Clichês
Quando a m etáfora se estereotipa, se vulgariza ou envelhece, acaba
como que em botada, perde a sua vivacidade expressiva tal como perde o
gume um a faca muito usada. Surge então o clichê metafórico, que caracte­
riza o estilo vulgar o medíocre dos principiantes ou dos autores sem imagi­
nação: a estrada serpenteia pela planície, o mar beija a areia, brisa rumorejante, luar prateado, silêncio sepulcral, aurora da vida, flor dos anos, prim a­
vera da vida, mais uma página da vida...
Muitas vezes, o clichê não tem estrutura metafórica:46 é um a simples
“série usual” ou “unidade fraseológica” — como diz Rodrigues Lapa — i.e.,
45 Cf. Othon M. Garcia, Cobra Norato, o poema e o mito, p. 44. onde se arrolam outros exemplos.
46 Não se deve confundir o clichê metafórico (metáfora surrada do tipo “o Sol é o astro-rei"
ou "a Lua é a rainha da noite”) e o fraseológico (do tipo ‘Virtuoso prelado”) com a fi'ase-feita
(locuções, ditados, rifões) de genuíno sabor popular e tradicional, do tipo "alhos e buga­
lhos”. "onde a porca torce o rabo”, “coisas do arco-da-velha", “falar com o seus botões”, "ca­
misa de onze varas”, "cavalo de batalha”, "cobras e lagartos”, "fôlego de sete gatos” e muitas
outras expressões populares cle origem desconhecida ou hermética, em que se refletem a al­
ma, a filosofia e os costumes populares. O leitor curioso há de achar interessante e muito proveitosso o livro de João Ribeiro, Frases feitas, de que existe uma edição recente da Livraria
São José. Muitas expressões de gíria poderiam ser igualmente incluídas na área da metáfora,
já que quase todas têm sentido figurado, às vezes até mesmo sibilino ou hermético, só com­
preendido pelos membros do grupo social em que circulam. É o caso da gíria dos malfeito­
res, cuja característica é camuflar o verdadeiro senticlo, de forma que só os "iniciados” pos­
sam entendê-las (e não outros, principalmente, et por cause, a polícia...).
\
114
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
um agrupam ento de palavras surrado pelo uso, constituído quase sempre por
um substantivo mais um adjetivo: doce esperança, amarga decepção, virtuo­
so prelado, ilustre professor, eminente deputado, infame caluniador, poeta
inspirado, autor de futuro, viúva inconsolável, filho exemplar, pai extremo­
so, esposa dedicada...47
1.6.8.7 Sinestesia
Nos dois primeiros exemplos (doce esperança e amarga decepção) há
vestígios de um a variedade de metáfora que recebe o nom e de sinestesia. A
sinestesia consiste em atribuir a um a coisa qualidade que ela, na realida­
de, não pode ter senão figuradamente, pois o sentido por que é percebida
pertence a outra área. Por exemplo: doce e amargo são sensações do pala­
dar, ao passo que esperança e decepção são sentimentos. Há sinestesia, por­
tanto, quando se cruzam sensações: rubras (sensação visual) clarinadas
(sensação auditiva); voz (auditiva) fina (tátil); voz áspera (tátil), cor ber­
rante (auditiva). A poesia de Carlos Drummond de Andrade oferece um a in­
finidade de sinestesias singularíssimas, de que damos a seguir alguns
exemplos colhidos em Fazendeiro do ar & poesia até agora, Rio, Livraria
José Olímpio Editora, 1955 (os números entre parênteses indicam as pági­
nas): insolúvel flautim (87), as cores do meu desejo (95), séculos cheiram
a mofo (20), sino toca fino (27), sonata cariciosa da água (44), balanço
doce e mole das suas tetas (63), cantiga mole (69), sombra macia (118),
cheiro de sono (134), olhos escutam (149), áspero silêncio (279)...
a esse tipo de relações, lii
ção de um nome por out
que existe entre duas pai
um a mesma coisa”, e a si
sentido normal de uma p;
figura que responde “a la
e a sinédoque a que respc
Para Rene Wellek e Austi
m ia e a sinédoque (“figi
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A luz das lições des
ras apresentam como traçc
a diferença entre ambas n
re — como faz Roman Jal
raram ente referindo-se à
quando tratam os do símbc
pósito didático, tentem os i
1 .6 .8 .8 .1 M e t o n ím ia
As relações reais de
nim icam ente urna palavra i
outra, traduzem-se no emp
I — do nome do autor pel*
1.6.8.8 Metonímia e sinédoque
Duas outras figuras de significação (ou de pensamento) são a metonímia e a sinédoque. A distinção entre ambas sempre foi muito sutil; por isso,
nem todos os autores concordam na conceituação de um a e de outra. Heinrich
Lausberg48 ensina que elas se baseiam numa relação real e não mentada, por­
tanto, não comparativa, como é o caso da metáfora. Na metonímia essa rela­
ção é qualitativa, e na sinédoque, quantitativa. Para outros, tais relações são
de contigüidade na metonímia, e de causalidade, na sinédoque. Outros ainda
só vêem em ambas relação de contigüidade. Augusto Magne49 não se refere
47 Alguns desses exemplos e muicos outros encontrará o leitor no excelente livro de M. Rodri­
gues Lflpa — Estilística da língua portuguesa^ cap. 5, “Fraseologia e clichê" — obra que reco­
mendamos com entusiasmo. A primeira edição (Seara Nova. Lisboa), data de 1945. Mas há
outra mais recente.
48 Manual de retórica literária, trad, esp., vol. 11, §§565-573.
49 Princípios elementares de literatura, vol. I, §§82-85.
II — do nom e de divindac
atributos: Marte = guerra, j
leza, Cupido = amor. — Ot
III — do atributo notório
ela mesma (ver 1.6.6.10 —
IV — do continente pelo cc
caixa de bombons. — Obs.:
po, e o conteúdo, coisas, f
dorm ia; foi um ano triste (i
ram tristes); todo o mundo
mundo, ou todas as pessoas]
derado como metonímia hip
50 Dicionário de términos
7coríct literária, p. 3 3 5 ,
52 »*
Dois aspecios da lingi
O t h o n
M.
G a r c i a
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115
a esse tipo de relações, limitando-se a definir a metonímia como “a substitui­
ção de um nome por outro em virtude de uma relação extrínseca, qual é a
que existe entre duas partes de um mesmo todo, ou duas modalidades de
uma mesma coisa”, e a sinédoque como “a figura que alarga ou restringe o
sentido norm al de um a palavra”. F. Lázaro Carreter diz ser a metonímia a
figura que responde “a la fórmula lógica pars pro parte” (a parte pela parte),
e a sinédoque a que responde à fórmula “pars pro toto” (a parte pelo todo).
Para Rene Wellek e Austin Warren,51 as relações que expressam a metoní­
mia e a sinédoque (“figuras de contiguidade tradicionais”) são “lógica e
quantitativamente analisáveis”.
À luz das lições desses autores, o que parece certo é que essas figu­
ras apresentam como traço comum uma relação real de contigüidade, e que
a diferença entre ambas não é de todo relevante. Por isso, a maioria prefe­
re — como faz Roman Jakobson52 — adotar apenas o termo “metoním ia”,
raram ente referindo-se à sinédoque. Essa é a orientação que seguimos,
quando tratam os do símbolo em 1.8.8.9, o que não impede que, com pro­
pósito didático, tentemos indicar as características desses dois tropos.
1 .6 . 8 . 8 . 1
METONÍMIA
As relações reais de ordem qualitativa que levam a em pregar metonim icam ente urna palavra por outra, a designar um a coisa com o nome de
outra, traduzem -se no emprego:
I — do nome do autor pela obra: ler Machado de Assis;
II — do nom e de divindades pela esfera de suas funções, atribuições ou
atributos: Marte = guerra, Netuno = mar, Ceres = agricultura, Vênus — be­
leza, Cupido = amor. — Obs.: Essa é a metoním ia dita mitológica;
III — do atributo notório ou qualidade característica de um a pessoa por
ela mesma (ver 1.6.6.10 — Antonomásia);
IV — do continente pelo conteúdo: tom ar um cálice de vinho, comer uma
caixa de bombons. — Obs.: O continente pode ser também lugar ou tem ­
po, e o conteúdo, coisas, fatos ou pessoas: a cidade (= seus moradores)
dormia; foi um ano triste (i.e., os fatos ocorridos durante o ano é que fo­
ram tristes); todo o mundo sabe disso (i.e., m uitas pessoas que vivem no
mundo, ou todas as pessoas). — Obs.: Este último exemplo pode ser consi­
derado como metonímia hiperbólica;
5t> Dicionário de términos filológicos, verbetes “metonímia” e “sinédoque”.
51 Teoria literária, p. 335.
52 “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”. Linguistica e comunicação, p. 34-62.
V — do nom e do lugar pela coisa aí produzida: uma garrafa de porto, de
xerez, de madeira (i.e.f de vinho produzido na cidade do Porto, de Jerez de
la Frontera, Esp., ou na ilha da Madeira, ou a ele semelhante), terno de ca­
simira (lã ou tecido de lã produzido ou semelhante ao produzido em Caxe­
mira, índia); bengala (bastão feito originariamente com junco ou cana-da-índia de Bengala, outrora província da índia). — Obs.: Por se tratar de metonímia, o nom e do produto usualmente se escreve com inicial minúscula;
VI — da causa (aí compreendida a idéia de meios ou instrumento) pelo efei­
to (subentenda-se também: conseqüência, resultado, fruto, produto de), e
vice-versa: ganhar a vida (= os meios de vida); viver do seu trabalho (= do
fruto, produto do trabalho); ganhar a vida com o suor do rosto (suor = con­
seqüência do esforço, do trabalho);
VII — do abstrato pelo concreto: burlar a vigilância (= os vigilantes); darse bem com a vizinhança (= os vizinhos); o amizade (= amigo, amigos);
VIII — do concreto pelo abstrato: cérebro (= inteligência), coração (bonda­
de, bons sentim entos). É nesta categoria de relação real (o concreto pelo
abstrato) que se inclui o símbolo, o qual, entretanto, pode ser também m e­
tafórico (ver 1.6.8.9).
1 . 6 . 8 . 8 . 2 SlNÉDOQUE
As relações reais de ordem quantitativas em que se assenta a sinédoque podem consistir no emprego:
I — da parte pelo todo (pars pro toto): mil cabeças de gado (= mil reses);
mil bocas a alim entar (= mil pessoas); “já singram no mar as brancas ve­
las” (= navios, barcos); falta-lhe um teto (= casa) onde acolher-se;
II — do todo pela parte: morar num a cidade (= num a casa, num a parte
da cidade);
III — do gênero pela espécie: os mortais (= os hom ens);
IV — da espécie pelo gênero: “Não tem endo de Áfrico e Noto a força”
(Lus., I, 1.7), isto é, a força dos ventos em geral, de que Áfrico e Noto são
espécies;
V — do indivíduo pela classe: é um Cícero, um Demóstenes (= um grande
orador); é um Caxias (= um grande soldado); é um Harpagão (= um ava­
rento); um Dom Quixote (= um idealista insensato e pertinaz); uma Capitu (= um a m ulher dissimulada como a heroína de Dom Casmurro); uma
Penélope (= um a esposa fiel e paciente, como a de Ulisses, na Odisséia);
uma Laura, um a Beatiiz (= amada excelsa, como o foram a de Petrarca e
a de Dante). O nome dos grandes vultos da história, das letras, das artes,
assim como o de persoi
para designar aquela c
como o seu modelo. No
ção desse tipo de sinédo
com inicial minúscula,
caso de “césar” (= sobe:
imperator Caio Júlio Cést
soa (ou personagem), n
(ver 1.6.8.9). — Obs.:
caso de emprego do indi
VI — da m atéria pelo ai
nos de bronze); os meta
quel (= uma moeda de
cro madeiro (= a santa <
VII — do singular pelo p
cordial; o gentio (= os \
um ser racional.
1.6.8.9 Símbolos e
usuais
Deixando de lado
ícone, signo, índice, sinal,
símbolo é lato sensu, uma
sa, ou ela mesma, substitu
leva a admitir dois níveis
cos, em que a coisa mesn
diverso dela, como é o cas
marcas de fábrica), da m,
dos propriamente ditos sú
vinho); b) os lingüísticos <
falada quer escrita, e tuc
morse, alfabeto dos surdos
lógica, da química, as abri
Em teoria literária,
ocasionalmente, da metáfi
atribuir a uma coisa (ser,
güístico, essa entidade dt
33 Cf. ULLMANN, Slcphen. Semi
ras, p. 179.212.
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
117
assim como o de personagens-tipos da literatura, costuma ser empregado
para designar aquela classe de indivíduos que agem ou se comportam
como o seu modelo. Note-se, ainda, que, conforme o grau de habitualização desse tipo de sinédoque, o nome transladado pode: a) vir a escrever-se
com inicial minúscula, tornando-se assim substantivo comum, como é o
caso de “césar” (= soberano, governante, ditador), sobrenome do cônsul e
imperator Caio Júlio César; b) tornar-se símbolo, quando não aferido à pes­
soa (ou personagem ), mas a um dos seus atributos de natureza abstrata
(ver 1.6.8.9). — Obs.: Muitos autores consideram como metonímia esse
caso de em prego do indivíduo pela classe.
VI — da m atéria pelo artefato: ‘Já tangem ao longe os bronzes,} (= os si­
nos de bronze); os metais (= os objetos, instrum entos de metal); um ní­
quel (= um a moeda de níquel); lenho, madeiro (= navio de madeira), sa­
cro madeiro (= a santa Cruz de madeira);
VII — do singular pelo plural e vice-versa: o brasileiro (= os brasileiros) é
cordial; o gentio (= os pagãos, os indígenas); o homem (= os homens) é
um ser racional.
1.6.8.9 Símbolos e signos-símbolos: didática de alguns símbolos
usuais
Deixando de lado as sutilezas semióticas da distinção entre símbolo,
ícone, signo, índice, sinal, podemos dizer, apenas com propósito didático, que
símbolo é lato sensu, uma forma de comunicação em que o nome de uma coi­
sa, ou ela mesma, substitui o de outra ou representa outra. Tal caracterização
leva a adm itir dois níveis ou duas categorias de símbolos: a) os não lingüísti­
cos, em que a coisa mesma — ou sua imagem figurativa — representa algo
diverso dela, como é o caso das bandeiras, dos emblemas (escudos, logotipos,
marcas de fábrica), da maioria dos sinais de trânsito urbano ou rodoviário,
dos propriamente ditos símbolos teológicos ou litúrgicos (a cruz, a hóstia, o
vinho); b) os lingüísticos ou signos-símbolos, Le.} a própria linguagem, quer
falada quer escrita, e tudo quanto dela deriva (alfabeto fonético, alfabeto
morse, alfabeto dos surdos-mudos, taquigrafia, os símbolos da matemática, da
lógica, da química, as abreviaturas convencionais; em suma, os códigos).53
Em teoria literária, o símbolo, tido como variante da metonímia e,
ocasionalmente, da metáfora, é um a figura de significação que consiste em
atribuir a uma coisa (ser, objeto) concreta um sentido abstrato. O signo lin­
güístico, essa entidade de duas faces (imagem acústica = significante, e
53 Cf. UU.MANN, Stcphen. Semdnrica, trad. porr., p. 35 e ss. V também GENETTE, G. Figu­
ras, p. 179.212.
118
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C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
m o d e r n a
conceito = significado) é arbitrário, ao passo que o símbolo — notação de
um a relação (constante numa determ inada cultura) entre dois elementos
— é convencional mas nunca totalm ente arbitrário: “O símbolo tem como
característica o fato de não ser jam ais inteiram ente arbitrário; ele não é
vazio: há sempre um rudim ento de liame natural entre o significante e o
significado. O símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituído in­
diferentem ente por qualquer outro, um carro, por exemplo.”54
Muitos símbolos, entretanto, parecem totalm ente arbitrários, imotivados, tão sutis e tão distantes são as relações (de contigüidade, causalidade
ou similaridade) entre a coisa e aquilo que ela representa, dando assim a
impressão de resultar de pura e gratuita convenção entre os membros de
um a dada com unidade ou uma dada cultura.
É costume, por exemplo, atribuir às cores determ inado sentido figu­
rado, de motivação nem sempre prontam ente deduzível. Ligadas em todo o
m undo a crenças e superstições, elas constituem verdadeira linguagem sim­
bólica, de início provavelmente apenas ritualística. A Igreja Católica fixou
nas cores dos param entos litúrgicos algumas significações que depois tam ­
bém se dessacralizaram. Assim, o branco é símbolo de pureza, inocência,
candura, imaculação; lembra a Virgem Maria e é (ou era) a cor do vesti­
do de noiva. Mas também pode ser sinal de luto, mais freqüentem ente re­
presentado pelo negro, que, por sua vez, figura igualmente nos trajes de
gala, de cerimônias solenes e protocolares.
O verde é símbolo de esperança, de salvação; e, se é de salvação,
pode ser tam bém de segurança, de ausência de perigo. E verde se fez si­
nal de trânsito livre (= siga, sem (grande) perigo). O vermelho era cor sa­
grada, adotada como defesa religiosa dos primitivos contra os maus espíri­
tos, simbolizando sangue, o princípio da vida e a mais sublime oferenda
aos deuses. Mas, sobretudo por lembrar sangue, vermelho tornou-se tam ­
bém símbolo de violência, de sanguinolência. A partir daí, não seria difícil
perceber a motivação de vermelho como sinal de trânsito impedido (= p a­
re). Admita-se: a cor vermelha sugere sangue (relação m entada, de simila­
ridade ou metafórica), e sangue pode evocar ferimento (relação real, de
contigüidade ou metonímica); ferim ento, por sua vez, leva a pensar nas
suas causas (acidente, violência) e possíveis conseqüências (morte, morte
violenta). Então, o sinal vermelho, i.e., o símbolo vermelho, teria sido moti­
vado por um a série de associações metafórico-metonímicas, no fim da qual
conotaria a advertência, veicularia a mensagem: “não prossiga, pois há pe­
rigo, pode ocorrer um acidente, você pode ferir-se ou m orrer de morte vio­
lenta”. A escolha de uma cruz vermelha como símbolo de assistência ou so­
corro médico, ou como emblema da instituição internacional a isso desti­
nada em caso de guerra ou de outras calamidades, foi, sem dúvida, m oti­
vada por essa conotação de cor vermelha.
54 SAUSSURE, K Cours de linguistique général, p. 101.
Amarelo, símbolo d
do amarelo ou amarelac
quando excessiva, causad
se tam bém na bile negra
Hipócrates e Galeno, à qi
Daí, am arelo = tristeza, <
U sualmente, a pal
tortura, form ado por d m
no qual se am arravam c
um desses instrum entos
entre a m orte de Cristo e
te, habitual, a coisa “cru
crifício do N azareno e, p
nam entos, sua doutrina, <
bolo teológico. O proce
m etoním ico pois se base
Cristo junto, pregado à c
real de causalidade: a d<
delas) do seu suplício, e
tar a própria doutrina dc
como quase todas as relij
tos teológicos ou litúrgicc
triângulo (= Trindade), 1
ra (= Fé), urna, balançí
hóstia (= Eucaristia), na
do), espiga de trigo, oli\
cordeiro, leão, fênix (= F
Espada, símbolo de ;
esteve, antes dos mísseis)
contigüidade) à atividade
ela, os que a empunhavai
dem os, mais eficazes, mai:
ricos nem cavalheirescos)
capaz de fazer valer a auti
vo de espada (= arma) só
Pelo mesmo process
to é o cajado dos pastore:
gia, guarda, inspetor, supfi
(vigilância, guarda) episco
O cetro (herdeiro ta
tico, primo-irmão do bácu
símbolo da sua autoridade
A coroa — sucessor
sobre a cabeça dos que í
bravura (heróis guerreiros;
I U F P E B i b l i o t e c a Cent ra
O t h o n
M.
G a r c ia
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Amarelo, símbolo de tristeza? de ódio ou ira? Pense-se na bile, líqui­
do am arelo ou amarelado, amargo e viscoso, secretado pelo fígado, e,
quando excessiva, causadora de ira, segundo supunham os antigos. Pensese tam bém na bile negra ou atrabílis, um dos quatro humores cardinais de
Hipócrates e Galeno, à qual se atribuíam (outrora?) as causas da tristeza.
Daí, am arelo = tristeza, ódio, ira.
Usualmente, a palavra “cruz” designa um antigo instrum ento de
tortura, form ado por duas peças de madeira, um a atravessando a outra,
no qual se am arravam ou pregavam outrora os condenados à m orte. A
um desses instrum entos foi Jesus Cristo pregado. Quando a associação
entre a m orte de Cristo e o instrum ento de sua agonia se tornou constan­
te, habitual, a coisa “cruz” veio a representar ou significar o próprio sa­
crifício do N azareno e, por ampliação semântica (m etoním ia), seus ensi­
nam entos, sua doutrina, o cristianismo, enfim, tornando-se assim um sím­
bolo teológico. O processo de formação foi, até mesmo, duplam ente
metonímico pois se baseou: a) num a relação m aterial de contigüidade:
Cristo junto, pregado à cruz > cruz a lem brar Cristo; b) num a relação
real de causalidade: a doutrina pregada por Cristo foi a causa (ou uma
delas) do seu suplício, e o instrum ento desse suplício passou a represen­
tar a própria doutrina do Nazareno, o cristianismo. O cristianismo, aliás,
como quase todas as religiões, conta com um a infinidade de símbolos, di­
tos teológicos ou litúrgicos. Numerosos são os da Igreja Católica: estrela,
triângulo (= Trindade), letras (alfa e ômega), núm eros (3, 7, 12), ânco­
ra (= Fé), urna, balança, espada (apóstolo São Paulo), cálice, vinho e
hóstia (= Eucaristia), navio (= a Igreja), chaves (São Pedro e o papa­
do), espiga de trigo, oliveira, a água, águia (apóstolo São João), peixe,
cordeiro, leão, fênix (= Ressurreição), e outros.
Espada9 símbolo de poder militar? Por quê? A coisa espada está (ou já
esteve, antes dos mísseis) intimamente associada, ligada (relação real de
contigüidade) à atividade dos militares e combatentes em geral. Graças a
ela, os que a empunhavam (ou ainda empunham os seus sucedâneos mo­
dernos, mais eficazes, mais sofisticados, se bem que não igualmente rom ân­
ticos nem cavalheirescos) dispunham dos meios de mando, do instrum ento
capaz de fazer valer a autoridade e de m anter o poder. Ao sentido denotativo de espada (= arma) sobrepôs-se o conotativo de “poder militar”.
Pelo mesmo processo metonímico, o báculo (cujo antepassado remo­
to é o cajado dos pastores), em punhado pelo bispo (do gr. episcopos = vi­
gia, guarda, inspetor, supervisor), passou a designar o poder, a autoridade
(vigilância, guarda) episcopal, ou pastoral. Símbolo.
O cetro (herdeiro também do cajado dos pastores e, no âmbito polí­
tico, primo-irmão do báculo), em punhado pelos soberanos, passou a ser o
símbolo da sua autoridade e, em seguida, do poder monárquico.
A coroa — sucessora daqueles ramos de louro dispostos em círculo
sobre a cabeça dos que se distinguiam excepcionalmente, quer pela sua
bravura (heróis guerreiros) quer pelos seus feitos atléticos (campeões olírri-
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P rosa
M o o e r n a
picos) quer pelos seus dons poéticos (poetas prem iados em público, na
Grécia antiga) — depois que se tornou adorno exclusivo da cabeça dos
monarcas (os primitivos, pelo menos, eram vencedores de disputas nos
campos de batalha, em bora muitos dos seus pósteros só o fossem nos bas­
tidores ou nas alcovas), transfigurou-se, tam bém por metonímia, em sím­
bolo do poder monárquico, da pessoa do próprio rei ou do Estado por ele
governado e, por extensão, da realeza em geral e suas regalias.
Por sua vez, a mesma coroa de louros com que os gregos prem ia­
vam ou celebravam seus atletas e poetas, vencedores de prélios ou compe­
tições, acabou símbolo da própria vitória, e o louro mesmo, no âmbito ex­
clusivo das letras, símbolo de distinção acadêmica, concorrendo, nessa fun­
ção de premiar, com as palmas, ditas acadêmicas, e com as outras, as das
mãos, mais espontâneas no aplaudir, mais ruidosas 110 festejar. O livro, por
ser fonte de cultura e ilustração, passou, ainda por metonímia, a ser sím­
bolo da própria cultura ou saber.
Mas os símbolos formam-se também pelo processo metafórico, quan­
do entre a coisa e aquilo que ela significa existe qualquer relação de seme­
lhança ou similaridade, mas relação m entada, e não real, como é o caso
de balança, por exemplo. A idéia que primeiro nos surgere a característica
material, extrínseca, da balança comum é a de equilíbrio, idéia provocada
de imediato pela extensão igual dos dois braços do travessão. Ora, o que,
por sua vez, distingue a justiça é a eqüidade, a disposição de dar a cada
um a parte que lhe cabe por direito (seja pena seja prêmio). Portanto, a
idéia comum que leva a tom ar a coisa concreta (balança) pelo seu sentido
abstrato (justiça) é a de igualdade, equilíbrio, eqüidade.
Os emblemas, nas suas numerosas variedades (escudos, logotipos ou
qualquer figura ou desenho convencional), são símbolos, alguns claram en­
te motivados, outros aparentem ente arbitrários, pelo menos para o recep­
tor da m ensagem que veiculam.
Os guerreiros antigos serviam-se de uma chapa de metal, madeira
ou couro, de forma circular, oval ou oblonga, que prendiam ao braço es­
querdo para proteger 0 corpo contra os golpes do adversário. Essa arma
defensiva, usada pelos cavaleiros medievais, trazia, inscritos, dizeres ou si­
nais que indicavam o chefe sob cujas ordens combatiam. Foi, assim, a idéia
de grupo de indivíduos identificados por interesses e objetivos comuns, as­
sociados em luta pela mesma causa, sob o comando do mesmo chefe, que
levou o escudo — depois da sua adoção como brasão heráldico — a ser
usado como emblema por agremiações de várias espécies, tornando-se,
portanto, símbolo de espírito associativo, de com unidade de interesses,
idéias, propósitos e, igualmente, da própria instituição que os defende ou
corporifica. Assim, um escudo em forma ogival de cam po (= fundo) ne­
gro com um a estrela solitária branca = Botafogo; se listrado de vermelho
e negro com iniciais entrelaçadas = Flamengo.
Signos convencionais, figuras ou desenhos, marcas de fábrica ou pro­
duto, logotipos, enfim, são emblemas, e emblemas são símbolos.
lendários, entidades m:
tos típicos, característ
quando atingem um al
bolos nacionais de dev
túcia, D. Quixote, de i
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conquistador cínico, coi
Na galeria dos a
de sentimentos, idéias,
cácia e tam bém velhaca
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ruja, sabedoria; 0 cama
coragem e bravura; a h
força física; a pomba,
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1.6.8.10 Antonom
A antonomásia é
tituir um nome próprio
nom e comum expressa
ser também uma divind
uma cidade) ou um acc
vários atributos de Cast
merosos poemas em de
escravos. Por razões de
dios. Pela sua contribui*
conhecido pela antonon
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Brasil nas Conferências
Haia. Cristo é, por ante
também: o vencedor da 1
da Triste Figura (D. Qui:
de Riachuelo (Barroso), *
Na linguagem coi
nha ou cognome, cuja (
55 LAUSBERG, op. cit.} §576, 0
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
121
Até as criaturas humanas, personagens literárias, vultos históricos,
lendários, entidades mitológicas, animais, tom ados por um dos seus atribu­
tos típicos, característicos ou predominantes, podem tornar-se símbolos,
quando atingem um alto grau de habitualização: Tiradentes e Caxias, sím­
bolos nacionais de devotamento à Pátria, Ulisses, símbolo de argúcia e as­
túcia, D. Quixote, de idealismo insensato, Madame Bovary, de insatisfação
feminina, Harpagão (personagem de O avarento, de Molière), de avareza,
Shylock (personagem de O mercador de Veneza, de Shakespeare), de usu­
ra, Dom João e Casanova, símbolos ou personificações do am or cínico, do
conquistador cínico, como Otelo o é do ciúme.
Na galeria dos animais quantos não são símbolos ou personificações
de sentimentos, idéias, vícios e virtudes do homen? A águia, talento, perspi­
cácia e tam bém velhacaria; o cágado e a lesma, lentidão; o cão, servilismo e
também fidelidade ao homem, seu senhor; o chacal, voracidade feroz; a co­
ruja, sabedoria; o camaleão, mimetismo e versatilidade de opiniões; o leão,
coragem e bravura; a lebre, ligeireza; o rouxinol, canto melodioso; o touro,
força física; a pomba, inocência indefesa; a víbora, malignidade... Símbo­
los... Símbolos... (Ver 10. Ex., 209 a 217.)
1.6.8.10 Antonomásia
A antonomásia é uma variedade de metonímia55 que consiste em subs­
tituir um nome próprio por um nome comum ou vice-versa. Normalmente, o
nome comum expressa um atributo inconfundível e notório da pessoa (pode
ser também um a divindade, uma entidade real ou fictícia, um povo, um país,
um a cidade) ou um acontecimento a que esteja diretam ente ligada. Entre os
vários atributos de Castro Alves destaca-se o fato de ter escrito célebres e nu­
merosos poemas em defesa dos escravos; daí a sua antonomásia o Poeta dos
escravos. Por razões de natureza idêntica, Gonçalves Dias é o Cantor dos ín­
dios. Pela sua contribuição para a independência do Brasil, José Bonifácio é
conhecido pela antonomásia de o Patriarca da Independência e Simón Bolívar,
por causa das suas campanhas em prol da liberdade de antigas colônias es­
panholas da América, é chamado o Libertador. Dos episódios que marcaram a
vida de Rui Barbosa sobressai o de se ter distinguido como representante do
Brasil nas Conferências de Haia, o que lhe valeu a antonomásia de Águia de
Haia. Cristo é, por antonomásia, o Salvador, o Redentor, o Nazareno. Assim
também: o vencedor da Esfinge (Edipo), o herói de Tróia (Aquiles), o Cavaleiro
da Triste Figura (D. Quixote), o hóspede de Santa Helena (Napoleão), o herói
de Riachuelo (Barroso), o Tiradentes (J. J. da Silva Xavier).
Na linguagem coloquial, antonom ásia é o mesmo que apelido, alcu­
nha ou cognome, cuja origem é um aposto (descritivo, especificativo, pejo­
55 LAUSBERG, op. cit., §576, considera-a como “uma espécie de sinédoque”.
\
122
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
rativo, etc.) do nome próprio. Quando ambos, em conseqüência de um
acentuado grau de habitualização, se evocam m útua e espontaneam ente,
omite-se o nom e próprio, e o aposto torna-se, assim, antonom ásia ou ape­
lido. Pedro tem defeito numa das pernas, ou falta de um a delas? Então:
Pedro, o perneta. Como decorrência da associação constante entre seu
nom e e o aposto dele, Pedro passa a ser designado antonom asticarnente
por Perneta (que então se escreve com maiúscula).
A antonom ásia pode revelar intuito descritivo (vencedor da Esfinge),
laudatório (Águia de Haia), pejorativo (Perneta), irônico (Cavaleiro da Tris­
te Figura) ou eufêmico (hóspede de Santa Helena).
Quando consiste na substituição de um nome próprio por um nome
comum, e não o contrário, ela freqüentemente tem por base uma metáfora:
pérola das Antilhas (Cuba), rainha do Adriático (Veneza), o príncipe dos poe­
tas (Homero), o cisnè de Mântua (Virgílio), o gigante do Norte (EUA), o ber­
ço do cristianismo (Jerusalém, Judeia), o flagelo de Deus (Atila).56
Sendo geralm ente constituída por um agrupam ento de palavras —
conforme se pôde observar em alguns dos exemplos até aqui mencionados —,
dá-se-lhe tam bém o nome de perífrase. Numerosas são as perífrases desse
tipo, já consagradas pelo uso e, na sua maioria, reduzidas à condição de
clichês, de lugares-comuns, sobretudo quando designam:
— países, povos, cidades, regiões: a terra dos faraós (Egito), a cidade dos
jardins suspensos (Babilônia), a terra da promissão (Canaã), o povo elei­
to (os judeus), o berço do gênero humano (a Ásia).
— divindades, entidades mitológicas: o deus das riquezas (Pluto), das artes
(Apoio), da guerra (Marte), dos infernos (Plutão), do comércio (Mercú­
rio), dos sonhos (Morfeu), a deusa da sabedoria (Minerva), da beleza
(Vênus), das flores (Flora), o cantor da Trácia (Orfeu), princesa do mar;
rainha do mar; sereia do mar (Iemanjá; ver nota 56)...
— vultos históricos: o herói das Termópilas (Leônidas), o legislador dos he­
breus (Moisés), o legislador de Atenas (Sólon), o legislador de Esparta
(Licurgo), o pai (ou o príncipe) da medicina (Hipócrates), o pai da his­
tória (H eródoto), a donzela de Orleans (Joana d’Arc)...
— grandes escritores: o poeta de Weimar (Goethe), a águia de Meaux (Bossuet)... Nesta categoria, são usuais as antonomásias “o poeta de...”, “o
cantor de...”, “o autor de...”: o poeta de “As pombas” (Raimundo Cor­
reia), o autor de Iracema.
56 Por definição, as antonomásias dessa espécie (nome comum em lugar de nome próprio) le­
gitim am ente só se deveriam escrever com inicial minúscula; entretanto, muitas delas, por tra­
duzirem certo grau de afetividade (louvor, respeito, consagração, sentim ento bairrista, patrio­
tismo) costumam vir com maiúscula, como é o caso de Cidade Maravilhosa (Rio), Cidade Sor­
riso (Niterói), o Salvador, o Tiradentes, o Patriarca da Independência e outros idênticos.
7 - 0 Feição es
2 .t Estilo
Estilo é tudo aquil
resultado de um esforço
em idéias, imagens ou fi
lo; mas tem -no o quadre
escritor a descreve.
Estilo é, assim, a fc
tivos manipulam e catalis
de do espírito. Portanto, t
mos considerando a forra
de certa época. Os exempl
todos os aspectos estilíst
aqueles que ou podem se
dos pelos menos experien
ajudarão o estudante a ju
sua eficácia expressiva, su
quanto à sua elegância oc
casos, nos detemos mais t
porque nos tente aqui um
porque nos move o propc
do não repudiáveis, os ext
2.2 Frase de arra:
No seguinte períodt
Cheguei à poi
tempo mas ninguém ;
as orações se enfileiram i
coesão íntima claramente
I U F P E Biblioteca C entra
2.0 Feição estilística da frase
2.1 Estilo
Estilo é tudo aquilo que individualiza obra criada pelo homem, como
resultado de um esforço m ental, de um a elaboração dó espírito, traduzido
em idéias, imagens ou formas concretas. A rigor, a natureza não tem esti­
lo; mas tem-no o quadro em que o pintor a retrata, ou a página em que o
escritor a descreve.
Estilo é, assim, a forma pessoal de expressão em que os elementos afe­
tivos manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda ativida­
de do espírito. Portanto, quando falamos em lifeição esiilísdca da frase”, esta­
mos considerando a forma de expressão peculiar a certo autor em certa obra
de certa época. Os exemplos que apresentamos não abrangem, evidentemente,
todos os aspectos estilísticos da frase no Português moderno, mas apenas
aqueles que ou podem servir de modelo a principiantes ou devem ser evita­
dos pelos menos experientes. Os ocasionais comentários que os acompanham
ajudarão o estudante a julgá-los dignos de imitação ou de repúdio quanto à
sua eficácia expressiva, sua objetividade, sua coerência e clareza, mais do que
quanto à sua elegância oca ou seu purismo gramatical estéril. Se, em alguns
casos, nos detemos mais demoradamente em um ou outro comentário, não é
porque nos tente aqui uma espécie de análise estilística meio parasitária, mas
porque nos move o propósito de tornar úteis, praticamente imitáveis, quan­
do não repudiáveis, os exemplos que louvamos ou censuramos.
2.2 Frase de arrastão
No seguinte período composto por coordenação:
Cheguei à porta do edifício, toquei a campanhia e esperei algum
tempo mas ninguém atendeu, pois já passava das dez horas.
as orações se enfileiram na ordem de sucessão dos fatos, enunciados sem
coesão íntima claram ente expressa, a não ser entre as duas últimas.
124
♦
CO MUNICACÀO
EM
PROSA
MODERNA
Esse processo de estruturação de frase, que exige pouco esforço men­
tal no que diz respeito à inter-relação entre as idéias, satisfaz plenamente
quando se trata de situações muito simples. Por isso, é mais comum na lín­
gua falada, em que a situação concreta, isto é, o ambiente físico e social, su­
pre ou compensa a superficialidade dos enlaces lingüísticos. Atente-se para a
linguagem infantil, para a linguagem dos adolescentes, dos imaturos ou incul­
tos, mesmo escrita: o que se ouve, ou se lê, é urna enfiada de orações inde­
pendentes muito curtas que se vão arrastando uma às outras, tenuamente
atadas entre si por um número pouco variado de conectivos coordenativos:
e, mas, aí, mas aí, então, mas então. Como são poucas para traduzir varia­
das relações, essas partículas se tornam polissêmicas, quer dizer, passam a
ter vários sentidos, conforme a situação e as relações, como acontece princi­
palm ente com e, a í e então. Sobretudo no estilo narrativo, elas não se limi­
tam a concatenar, a aproximar; marcam também uma coesão mais íntima,
relações mais complexas, como as de tempo, causa, conseqüência e oposição.
O trecho acima transcrito poderia prosseguir sob a forma de um a le­
g ítim a/rase de arrastão:
E ntão, desisti d e e s p e ra r e resolvi telefonar. M as a í ch eg o u o p o rte i­
ro. E ntão, e le a b riu a p o rta e eu en tre i. M as o e le v a d o r esta v a p a ra d o . En­
tão, su b i p elas escad as. A í ch eg u ei ao q u a rto an d ar. M as n ão h av ia n in ­
g u é m em ca sa . E ntão, escrevi um b ilh e tin h o e boLei p o r b a ix o d a p o rta . M as
a í ch e g o u a e m p re g a d a . Então, eu p e rg u n te i a ela: D. M a ria está? A í ela res­
p o n d e u : N ão está, n ã o senhor.
O trecho nem por ser forjado deixa de refletir a realidade da língua
falada corrente em nossos dias na boca de imaturos ou incultos. O primeiro
então tem o valor de portanto:57 indica conseqüência ou conclusão. Mas aí
introduz fato novo que sugere oposição e tempo — oposição no “mas” e
tem po no “aí”: tinha resolvido telefonar, mas a chegada do porteiro se opôs
a essa decisão. (A partícula mais comum para indicar oposição é “mas” na
coordenação e “em bora” na subordinação.) O segundo e o terceiro “então”
tam bém sugerem conseqüência, com o sentido de “por isso”. “Mas o eleva­
dor estava parado. Então (= por isso) subi pelas escadas” corresponde, na
subordinação, a “Mas, como o elevador estava parado, subi pelas escadas” —
causa anteposta, mais adequada à situação —, ou a “Mas subi pelas escadas
porque o elevador estava parado”. O “aí” antes de “cheguei” coordena como
se fosse “e” mas indica também tempo: “subi pelas escadas e depois cheguei
ao quarto andar.” As demais partículas desse período de arrastão têm valor
similar ao das anteriores, mutatis mutandis.
Essa estrutura da frase, típica da linguagem coloquial despretensio­
sa, apesar de m onótona e cansativa — quando não irritante para o ouvin-
57 É talvez por causa desse valor de pariícula conclusiva (portanto, por isso) que “então” vem
seguido de vírgula, ao contrário do que acontece com “mas aí", de sentido adversativo.
te — pode atender as nec
ções muito simples, traduzi1
estão em jogo idéias absrn
raciocínio lógico, mais com
Nesse caso, há que recorrer ■
ao processo sintático da su
nio linear, retilíneo, em qu*
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so, por assim dizer, sinuoso.
2.3 Frase entrecorta
Confrontando-se págii
a de qualquer de seus “col
para trás — nota-se diferen
do, que quase se pode dizer
gos, caudalosos, enleados m
terísticos do classicismo e d
estilo m oderno é a brevidad
Essa preferência pela
esportiva, desenleada, desem
do romantismo e dos primói
tal, e não apenas na brasileir
No que nos diz respei
se centopeica do classicismo
No pós-escrito à 2- edição d
sim se manifestava, por insti
período clássico:
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c o m se m e lh a n te estilo.
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
125
re — pode atender as necessidades da comunicação im ediata nas situa­
ções m uito simples, traduzíveis em estilo narrativo-descritivo. Mas, quando
estão em jogo idéias abstratas, cuja expressão exige certa capacidade de
raciocínio lógico, mais complexamente elaborado, ela se m ostra ineficaz.
Nesse caso, há que recorrer também — entre outras coisas evidentemente —
ao processo sintático da subordinação. A coordenação reflete um raciocí­
nio linear, retilíneo, em que as idéias se encadeiam sem incidências nem
interpolações, ao contrário do que ocorre na subordinação, que é um proces­
so, por assim dizer, sinuoso.
2.3 Frase entrecortada
Confrontando-se página de novelista ou cronista contemporâneo com
a de qualquer de seus “colegas” do passado — de Castilho e Herculano
para trás — nota-se diferença tão grande quanto à organização do perío­
do, que quase se pode dizer que a língua é outra. Em vez de períodos lon­
gos, caudalosos, enleados nas múltiplas incidências da subordinação, carac­
terísticos do classicismo e de certa fase do romantismo, o que distingue o
estilo m oderno é a brevidade da frase, predom inantem ente coordenada.
Essa preferência pela coordenação, pelos períodos curtos, pela frase
esportiva, desenleada, desenvolta, vem-se acentuando a partir da última fase
do romantismo e dos primórdios do realismo, em toda a literatura ociden­
tal, e não apenas na brasileira.
No que nos diz respeito, os primeiros sinais de reação contra a fra­
se centopeica do classicismo já se encontram na obra de José de Alencar.
No pós-escrito à 2- edição de Iracema, em 1870, o Autor de O guarani as­
sim se manifestava, por instinto ou por influência de leituras, a respeito do
período clássico:
N o co n c eito d o d istin to lite ra to [H e n riq u e s Leal, es c rito r m a ra n h e n s e
q u e , em artig o , c e n su ra ra o “estilo frouxo e d e s le ix a d o ” d o a u to r d e O g u a ­
ra n i], os n ervos d o estilo sã o as p artícu la s, e s p e c ia lm e n te as co n ju n çõ e s, q u e
te c ia m a frase d o s a u to re s clássicos, e se rv ia m d e elos à lo n g a sé rie d e o ra ­
çõ e s a m o n to a d a s em um só perío d o .
Para m e u gosto, p o rém , em v ez d e ro b u s te c e r o estilo e d a r-lh e vi­
gor, essa a c u m u la ç ã o d e o raç õ es lig ad as e n tre si p o r co n ju n çõ e s re la x a a fra ­
se, to r n a n d o o p e n s a m e n to difuso e lân g u id o .
As tran siçõ e s c o n sta n te s, a re p e tiç ã o p ró x im a d a s p a rtíc u la s q u e s e r­
v e m d e atilh o s, o to rn e io re g u la r d a s o raçõ es a su c ed e re m -se u m a s às o u ­
tra s pela m e sm a fo rm a, im p rim em em g e ra l ao c h a m a d o estilo clássico c e r­
to c a r á te r p e sa d o , m o n ó to n o e prolixo, q u e te m su a b elez a h istó ric a, sem
d ú v id a , m as e stá b em lo n g e d e p re sta r-se ao p e rfe ito co lo rid o d a id éia. Há
e n e rg ia s d o p e n s a m e n to e cin tilaçõ es d o e sp írito , q u e é im possível ex p rim ir
c o m se m e lh a n te estilo.
126
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Para docum entar a sua tese, o Autor escolhe um trecho de O guarani
(“A tarde ia morrendo. O sol declinava no horizonte...”) caracterizado pelos
períodos curtos, com parcimônia de subordinação, citando a seguir exem­
plos de alguns autores clássicos, que, “em certos casos, sentiram a necessida­
de de abandonar esse estilo tão alinhavado de conjunções por uma frase
mais simples e concisa” (o Autor transcreve a seguir um trecho de Lucena).
Essa reação, de que José de Alencar se faz porta-voz declarado, vi­
ria a acentuar-se, de modo geral, 110 realismo, sensivelmente em Machado
de Assis, com edidam ente em Aluísio de Azevedo, ocasionalmente em Raul
Pompéia, que, aliás, é, antes, impressionista.
Todavia, foi depois do nosso movimento m odernista que essa prefe­
rência pela frase curta, incisiva, desenleada, se tornou — digamos assim —
avassaladora, passando a constituir mesmo padrão de excelência estilísti­
ca. Nos áureos tempos da primeira fase desse movimento, período longo
subordinado era uma espécie de tabu estilístico, era coisa velha que lem­
brava o parnasianismo, que lembrava Rui Barbosa, que lembrava Coelho
Neto (que, diga-se de passagem, também se V
servia com freqüência dos pe­
ríodos curtos coordenados). Basta passar os olhos pelas obras — não ape­
nas do gênero de ficção — das décadas de 1920 e 1930 para se ter uma
idéia dessa ojeriza à frase acumulada de subordinações. Tomemos como
exemplo Os condenados (1922), de Oswald de Andrade, um dos porta-es­
tandartes do modernismo. Nas 266 páginas da prim eira edição, raros, raríssimos são os períodos compostos por subordinação; o que lá se encon­
tra, em absoluta maioria, são períodos curtos coordenados, que se adicionam
uns aos outros em unidades muito breves:
Passou [0 escultor] o d ia e s tira d o em um q u a rto d e h o tel. E a n o ite
veio e foi... F icou a té m eio-dia na c a m a alva e d e s c o n h e c id a . Fazia u m ca­
lo r d e p o rto su l-am erica n o . L evantou-se,' v estiu -se c o m d ific u ld ad e , to m o u o
tre m d a s d u a s h o ras, d e regresso .
No com eço d a se rra chovia. U m a r e ta rd a d a fad ig a caiu so b re ele.
O lh o u p eia ja n e la d o “w a g o n ”; em baixo, e n tre á g u a s, v iu u m a casa d e tijo ­
los c o m c h a m in é e leu u m le tre iro lo n g o a té o fim.
U m m o sq u ito tro u x e-lh e u m a fe rro a d a a rd id a à m ão.
(Os condenados, p. 2 0 1 )
Amostras ainda mais expressivas desse feitio de frase asmática, pon­
tilhada e telegráfica, despojada daquelas sinuosidades do período clássico,
torneado e envolvente, austero e cerimonioso, apresenta-nos, a cada pas­
so, a obra de Antônio de Alcântara Machado. No trecho a seguir, depois de
adm itir que 0 movimento m odernista não teria provocado a reação indig­
nada dos seus opositores, se tivesse despontado no Brasil “muito mais tar­
de como eco remoto do europeu”, escreve o autor de fírás, Bexiga e Barra
Funda:
M as tal com o re
D av am -se tã o bem con:
p rec isav a p e n s a r m ais.
fam ília e estav a à disp<
ra r a m a n iv ela. P ro n to
d os. S em can sá-lo s n u r
Mesmo quando a est
Autor procura disfarçar-lhe
mos e orações dependentes
A relação se fez
o u tro . Foi u m a surpresí
do. N unca havia visto o
existir.
Desprezadas as redu
parece disfarçar ou atenuai
do a um só período de mc
A reação , q u e f
d e u m m o m e n to p a ra
p esso al ficou esp an ta d i
b id o o u so n h a d o q u e ç
É evidente que ness;
m orada que se insinua na
de engravatada do períodi
ao tom irônico e esportivc
quem “até então no Brasil
e severo. O riso era proibi
Os trechos transcritc
entrecortada e soluçante u
to m odernista. Moldada à
alvo de chacotas e acerbo:
tura anterior ao modemisi
contida indignação, de “es
Essa atomização do ]
tom ar mais fácil a compree
de cada unidade nas paus
mostrar a coesão íntima a
da, esse tipo de construçã
ajusta satisfatoriamente às 1
maneira sumária as fases d
quadro. Daí decorre, por a
f u F P E B ib lio teca C e n tr
O t h ô n
M.
G a r c i a
4
127
M as tal com o re b e n to u n ão. Os bocós e s tra n h a ra m . S e n tira m -se m ai.
D av am -se tã o b em com as v elh arias. Era tu d o tã o cô m o d o e tã o fácil. N em
p re c isa v a p e n s a r m ais. A coisa já saía sem esforço. O rea lejo e ra h e ra n ç a d e
fa m ília e esta v a à d isp o sição d e q u a lq u e r u m . B astava e s te n d e r a m ão e vi­
r a r a m a n iv ela. P ro n to . A á ria mil vezes o u v id a c o n te n ta v a to d o s os o u v i­
do s. S em cansá-los n u n c a . U m a beleza.
(C avaquinho e saxofone, p. 3 0 6 )
Mesmo quando a estrutura do período é de legítima subordinação, o
Autor procura disfarçar-lhe os enlaces sintáticos, isolando, entre pontos, ter­
mos e orações dependentes:
A relação se fez d e chofre. Sem se r esp e ra d a . De u m m o m e n to p ara
o u tro . Foi u m a surpresa. P regou um susto trem en d o . O pessoal ficou e sp a n ta ­
do. N unca havia visto coisa igual na vida. N em sabido o u so n h a d o que pud esse
existir.
(Idern, p. 3 0 5 )
Desprezadas as redundâncias, que a estrutura fragmentária da frase
parece disfarçar ou atenuar, o trecho assumiria a seguinte feição, se reduzi­
do a um só período de molde clássico:
A re a ç ã o , q u e foi u m a su rp re sa, se fez d e ch o fre, se m se r e s p e ra d a ,
d e u m m o m e n to p a ra o u tro , de m o d o q u e p re g o u um tre m e n d o su sto , e o
p e s so a l ficou e sp a n ta d o , pois n u n ca h a v ia visto co isa igual n a v id a n e m sa ­
b id o ou s o n h a d o qu e p u d e sse existir.
É evidente que nessa versão quase nada subsiste da leveza bem -hu­
m orada que se insinua na frase de Alcântara Machado. É que a austerida­
de engravatada do período de feitio tradicional talvez não se ajuste bem
ao tom irônico e esportivo com que o assunto é tratado pelo Autor, para
quem “até então no Brasil a preocupação de todo escritor era parecer grave
e severo. O riso era proibido”. (Op. cit.f p. 309.)
Os trechos transcritos dão um a idéia satisfatória do que era a frase
entrecortada e soluçante tão ao gosto da prim eira fase do nosso movimen­
to m odernista. Moldada à imagem da phrase coupée dos franceses, ela foi
alvo de chacotas e acerbos ataques dos críticos e representantes da litera­
tura anterior ao modernismo, como José Oiticica, que a chamava, com incontida indignação, de “estilo picadinho” ou “frase picadinha”.
Essa atomização do pensamento apresenta, é certo, a vantagem de lhe
tom ar mais fácil a compreensão. O leitor apreende prontamente o enunciado
de cada unidade nas pausas que se intercalam. Se não há necessidade de
mostrar a coesão íntima entre as idéias, suas relações de m útua dependên­
cia, esse tipo de construção se tom a bastante expressivo. Por isso é que se
ajusta satisfatoriamente às narrações e descrições, em que o autor focaliza de
maneira sumária as fases de uma cena ou incidente ou os elementos de um
quadro. Daí decorre, por certo, a sua predominância no romance e no conto
128
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
modernos assim como na crônica. Mas será difícil encontrar exemplos de fra­
se soiuçante no ensaio crítico ou filosófico, na argumentação, nas dissertações
doutrinárias, a não ser ocasionalmente.
No seguinte exemplo, de Érico Veríssimo, a frase entrecortada de
pontos é forma adequada â descrição da cena e aos propósitos do Autor:
Em maior ou menor d
mancistas e cronistas — que
Moderna (São Paulo, feverein
ção dita “de 45”, revelaram a<
que ainda hoje perdura — c
dos grandes legados do nossc
C heg u ei em casa e p erd i o sono. Li um po u co e d e p o is fui deitar. E ra
m ais d e m e ia-n o ite e eu ain d a n ão havia d orm id o . O uvi um b a ru lh o n a rua.
U m a p essoa vin h a m eio ca n ta n d o m eio ch o ra n d o . Parecia u m a voz co n h ecid a.
(Op. cit., p. 161)
2.4 Frase de ladainh
E claro que não se trata de nenhum a obra-prima digna de ser im ita­
da. Mas a situação é por si mesma muito simples para a adoção de frase
mais complexa. Seria forma inadequada transm itir as mesm as idéias num
período subordinado pomposo, cheio de enleios, como na seguinte versão
parafrástíca:
Variante da frase de a3
dainha. Dosado às vezes de c
mas caracterizado por um pri
trução, quando manejado poi
sativo n a sua interminável s
pouquíssimas subordinadas qi
C h e g u e i em casa, m as, com o p e rd e ra o so n o , li u m p o u co , in d o d e ­
pois d e ita r e, e m b o ra já p assasse d a m e ia-n o ite, a in d a n ã o h av ia d o rm id o ,
d e fo rm a q u e ouvi u m b a ru lh o na ru a , o n d e u m a p es so a, cuja voz m e p a r e ­
cia co n h e c id a , v in h a m eio c a n ta n d o m eio ch o ra n d o .
No entanto, o molde d
lho Testamento; parece ser i
subordinação do que a grega
Entre um extremo e outro, i.e., entre a frase chã e o período pompo­
so e petulante, a virtude deve estar no meio.
Quando fragmentos de frase, frases nominais e frases soluçantes se
misturam , o resultado é um estilo como que estertorante ou convulsivo:
E ele e n c a ra rá con
a u to r d o seu o p ró b rio e c
S ou u m h o m e m , p en so u . Riu satisfeito. O silvo, A m a ta e scu ra q u e d e
r e p e n te se fech o u so b re ele. U m h o m em . M au ra d e ita d a a se u lad o , o corpo
n u. As v e ia z in h a s azuis nas virilhas. O v e n tre a rre d o n d a d o . C om o é e s tra n h o
e fec h ad o u m v e n tre q u e a g e n te alisa d e m a n sin h o . Pela p rim e ira vez. Bri­
lh a n te , os p elin h o s e ra m com o p ele cie p êssego . P recisav a v o lta r lá. E se co­
m e ça sse a g o sta r dela? Parecia d iferen te d as o u tras. A m a n h ã m esm o v o u le­
v a r p a ra e la um vidro d e cheiro. G ostam dessas coisas.
(A u tra n D o u rad o , A barca dos h om ens, p. 2 2 5 )
A frase entrecortada ou soiuçante é muito comum no discurso semiindireto livre, um a forma híbrida dos discursos direto e indireto (ver 4.0):
Irrito u -se . P orque seria q u e a q u e le sa fa d o b a tia os d e n te s com o u m
ca ititu ? N ão via q u e ele era in c ap a z d e v in g a r-se ? N ão v ia? F echou a cara. A
id é ia d o p e rig o ia-se su m in d o . Q u e perig o ? C o n tra aq u ilo n e m p rec isav a fa­
cão, b a s ta v a m as u n h a s. (...) F abiano p reg o u n ele os o lh o s e n s a n g ü e n ta d o s,
meLeu o fac ão n a b a in h a . Podia m a tá-lo co m as u n h as. L em b ro u -se d a s u r­
ra q u e le v a ra e d a n o ite p a s s a d a n a ca d eia. Sim sen h o r. A quilo g a n h a v a d i­
n h e iro p a r a m a ltra ta r as c ria tu ra s inofensivas. E stava c e rto ?
(G racilian o R am os, Vidas secas, p. 129)
r -"
E v o lta rá o seu rc
r á e n ã o se rá ac h ad o .
Um cronista muito api
Carlos Oliveira — proporcioi
num a crônica a que ele, cer
em que se teria inspirado, de
nos apropriamos:
ía m o s n u m a u to n
n e m a e era u m a ta rd e i
m o s ale g re s e o v en to d
v a d a c o r d e u m sa b re \
c a r n e e s tá se n d o e n te r n
q u e se su b m e te ao hara
m o d o e ra triste co m o fic
lic id a d e e n ó s vim os sol
u s a m c h a p e u z in h o com
e r a m cin co freiras a le g re
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
129
Em m aior ou menor dose, quase todos os escritores — sobretudo ro­
mancistas e cronistas — que surgiram entre a eclosão da Semana de Arte
Moderna (São Paulo, fevereiro de 1922) e, praticamente, o advento da gera­
ção dita “de 45”, revelaram acentuada preferência por essa estrutura de frase,
que ainda hoje perdura — mas desbastada dos seus excessos — como um
dos grandes legados do nosso modernismo.
2.4 Frase de ladainha
Variante da frase de arrastão é a que poderíamos chamar frase de la­
dainha. Dosado às vezes de certo lirismo ingênuo, em tom coloquial ameno,
mas caracterizado por um primarismo sintático à outrance, esse tipo de cons­
trução, quando manejado por principiantes, pode tom ar-se monótono e can­
sativo na sua interminável sucessão de orações coordenadas por “e”, com
pouquíssimas subordinadas que não sejam adjetivas introduzidas por “que”.
No entanto, o molde dessa frase está na Bíblia, especialm ente no Ve­
lho Testamento; parece ser traço da sintaxe hebraica, menos enleada em
subordinação do que a grega ou latina:
E e le e n c a ra rá co n tra as ilhas, e to m a rá m u ita s d elas; e fará d e te r o
a u to r d o se u o p ró b rio e o se u o p ró b rio virá a c a ir s o b re ele;
E v o lta rá o seu rosto p a ra o im p é rio d a su a te rra , e tro p e ç a rá e cai­
rá e n ã o se rá ac h ad o .
(D aniel, XI, 18-9)
Um cronista muito apreciado por certa cam ada de leitores — José
Carlos Oliveira — proporciona-nos um exemplo vivo desse estilo bíblico,
num a crônica a que ele, certam ente por sugestão do exemplo evangélico
em que se teria inspirado, deu o título de “Ladainha”, denominação de que
nos apropriamos:
ía m o s n u m au to m ó v e l em a lta v elo cid a d e ao lo n g o d a p ra ia d e Ip a­
n e m a e e r a u m a ta rd e m eio cá lid a e m eio cin za e m e io d o u ra d a e e s tá v a ­
m o s a le g re s e o v e n to d e se n ro la v a os n osso s cab elo s e o c ic ia n te m a r e s ta ­
va d a c o r d e u m sa b re v isto no m o m e n to fin al p e la p ró p ria p esso a em cuja
c a rn e e s tá s e n d o e n te rra d o — um sa b re talv ez m a n e ja d o p o r u m ja p o n ê s
q u e se s u b m e te ao h a ra q u iri — e tu d o e ra m u sic a lid a d e e tu d o cle ce rto
m o d o e r a tris te com o ficam tristes as coisas n o m o m e n to m ais a g u d o d a fe­
lic id a d e e nó s vim os so b re u m a d u n a as freiras e e ra m cin co fre iras que
u sa m c h a p e u z in h o com u m a b o rla ou b o rd a d o b ra n c o e v e stid o m a rro m e
e ra m c in c o fre iras aleg res...
(In: J o rn a l do Brasil, 1 5 /5 /6 3 )
130
♦
C o m u n i c a ç A o
e m
P r osa
m o d e r n a
E a “ladainha” prossegue, nesse tom, sem um só ponto, ao longo de
duas colunas, num total de oitenta e cinco linhas e cerca de quinhentas
palavras, em que entram trinta e sete conjunções “e”, dezessete orações
adjetivas, quatro reduzidas de gerúndio, três comparativas, um a tem poral e
um a substantiva (os dados estatísticos servem apenas p ara dar um a idéia
do que é o estilo de ladainha levado ao extremo). Na pena de um inexpe­
riente, esse primarismo sintático tem por vezes conseqüências deploráveis.
Mas, se o autor que dele se serve por fastio da sintaxe habitual, ou
como exercício de estilo ou até mesmo com o propósito de épater a bur­
guesia gram aticalizada, tem imaginação e vocação lírica, dispõe de agilida­
de m ental e capacidade de associação livre, o resultado pode ser bastante
apreciável. Desses dons dispõe sem dúvida o Autor da crônica citada, mas
receamos que os tenha m albaratado simplesmente porque não cuidou da
resistência da atenção do leitor.
Espécie de frase de ladainha que se aproxima em certo grau da caóti­
ca está no trecho que transcrevemos abaixo. Para nos d ar um a idéia do ram errão da labuta doméstica, na sucessão monótona dos dias de par com um
tem po que não flui, Aníbal Machado recorre a esse tipo de estrutura frasal:
E m b o l a d a d o C r e s c i m e n t o — Enquanto a criança crescia a mãe
arrumava a casa esperava o marido dormia ia à igreja conversava dormia ou­
tra vez regava as plantas arrumava a casa fazia compras acabava as costu­
ras enquanto a criança crescia as tias chegavam à janela olhavam o tempo
estendiam os tapetes imaginavam o casamento ralavam o coco liam os cri­
mes e os dias iam passando enquanto a criança dormia crescia pois o tem­
po parou para esperar que a criança crescesse.
(João Ternura, p. 16)
A criança é o João Ternura, herói erótico e irônico, parente espiritual,
primo-irmão de Macunaíma. Concebido sob o signo do amor, esperado e
nascido com anseio e ternura, era natural que João Ternura fizesse parar o
tem po enquanto mãe e tias só pensavam em vê-lo adulto. E os dias passam,
sucedem-se iguais, mas o tempo mesmo é de expectativa, o tempo mesmo
estava parado à espera de que “a criança crescesse”.
Essa idéia de sucessão dos dias está habilmente sugerida num a forma
verbal eficacíssima para expressar continuidade: uma série de orações em fi­
leira, em ladainha, justapostas, sem conjunções — na sua maior parte —
nem vírgulas. Mas só os dias correm: o tempo, não. O tempo está “parado”,
o tempo é de expectativa, está em compasso de espera. Tudo isso está insi­
nuado nas três orações iniciadas por “enquanto”, orações que indicam tem­
po concomitante, duração: “enquanto a criança crescia”, “enquanto a crian­
ça dormia crescia”.
A atmosfera que aí se cria é como que “surrealista”, ou melhor, bergsoniana: nela se distingue o tempo verdadeiro, o tempo psicológico ou interior
(“o tempo parou para que a criança crescesse”), da sua tradução em espaço,
i.e., do tempo matemático, expresso em horas e dias sucessivos. A idéia de du­
ração, a durée bergsoniana, sugerida nas orações de “enquanto”, reflete o esta­
do de espírito da mãe e das
se faça homem, entregues qi
fas caseiras “com um olho n
“meio míope”, nos dias que
mir, ir à igreja, regar as plani
tapetes, chegar à janela, pen
isso eram atividades corrique
conta, de atentas que estavar
Por trás desse “tempc
outro, o tempo duração, o
do expressa-a, com uma ha
em que os dois planos da ii
lar esse pequeno parágrafo •
rir a idéia de “dois tempos”
lada nordestina? A estrutur;
dessa forma poético-musical
ção com “em bolada de coc<
ras variedades, o Autor se t<
atividade das tias, que não
João Ternura nascera e cres
De qualquer modo, a
caz form a de expressão pan
2.5 Frase labiríntica
Na pena de certos es»
so” (ver 1.5.3) pode degen
exemplo, a prótase se along
afastam o desfecho (apódos
to pode ser — e geralmente
co, em baraçado nos seus ni
contrário dos miriápodes, n<
das suas artim anhas. Nesse
Hoje, quando n o .
falta de certa vivacidade
que se adquirem pelo es
subsistência, e menos aii
cião, vencido na vida, p£
fissões que tentou, sem ■
ter conhecido e lícito; d
conjuntos por parentesco
tentores do poder, para
então, com o mais bemenriquecidos, cssc vai se
UFP.E Biblioteca Centr*
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
131
do de espírito da mãe e das tias de João Ternura, ansiosas por que o menino
se faça homem, entregues quase maquinalmente, quase sonambúlicas, às tare­
fas caseiras “com um olho muito vivo” no tempo que não flui, e com outro,
“meio míope”, nos dias que correm. Arrumar a casa, esperar o marido, dor­
mir, ir à igreja, regar as plantas, fazer compras, acabar as costuras, estender os
tapetes, chegar à janela, pensar no casamento, ralar coco, ler os crimes, tudo
isso eram atividades corriqueiras de que a mãe e as tias nem se davam quase
conta, de atentas que estavam no crescimento da criança.
Por trás desse “tem po-hora”, desse tempo exterior, flui lentam ente o
outro, o tempo duração, o tempo interior. Essa dicotomia, Aníbal Macha­
do expressa-a, com uma habilidade sortílega, num período de oito linhas,
em que os dois planos da idéia de tem poralidade se entrecruzam . Ao titu­
lar esse pequeno parágrafo de “em bolada”, teria o Autor pensado em suge­
rir a idéia de “dois tempos”, de compasso binário, que caracteriza a embo­
lada nordestina? A estrutura da frase lembra nitidam ente o ritmo e o tom
dessa forma poético-musical do Nordeste. Mas o curioso é que, por associa­
ção com “em bolada de coco”, ou simplesmente “coco”, de que há inúm e­
ras variedades, o Autor se tenha referido a “ralar coco”, especificando um a
atividade das tias, que não é característica da região (Minas) onde o herói
João Ternura nascera e crescia.
De qualquer modo, a frase de “ladainha” constitui, no caso, uma efi­
caz form a de expressão para a idéia de dois tempos a fluir... “em bolados”.
2.5 Frase labiríntica ou centopeica
Na pena de certos escritores aquilo que chamamos de período “ten ­
so” (ver 1.5.3) pode degenerar num a frase caudalosa e confusa. Se, por
exemplo, a prótase se alonga em demasia por um a série de membros que
afastam o desfecho (apódose) para além da resistência da atenção, o efei­
to pode ser — e geralm ente é — negativo: um período reptante, centopeico, em baraçado nos seus numerosos “pés”, à maneira proustiana. Mas, ao
contrário dos miriápodes, não leva a lugar algum: perde-se nos m eandros
das suas artim anhas. Nesse erro incide Pedro Lessa:
H oje, q u a n d o no seio d e u m a fam ília n u m e ro sa h á u m jo v e m q u e, por
falia de c e rta v ivacidade de esp írito c d e o u tro s p re d ic a d o s n a tu ra is, ou dos
q u e se a d q u ire m pelo esforço e p elo tra b a lh o , n ão p o d e g ra n je a r os m eios d e
su b sistên c ia , e m enos a in d a d e o b te r q u a lq u e r co lo cação s a lie n te , ou u m a n ­
cião, v en cid o n a vida, p ara qu em a fo rtu n a foi d escaro áv el m a d ra sta nas p ro ­
fissões q u e te n to u , se m disposição alg u m a p a ra o ex ercício d e q u a lq u e r m is­
te r c o n h e c id o e lícito; d á-se não ra ro u m a e s p o n tâ n e a co n sp ira çã o e n tre os
co n ju n to s p o r p a re n tesc o s d e um o u d e o u tro , os políticos m ilita n tes e os d e ­
te n to re s d o p o d er, p a ra elev ar o inclassificável às v árias p o siçõ es políticas,
e n tã o , com o m ais b e m -a v e n tu ra d o jú b ilo d o s chefes d a s ag re m iaç õ es assim
en riq u e cid o s, esse vai se r o legislador, esse vai se r o e sta d ista .
(A p u d A. Passos, A rte de p o n tu a i; p. 110)
É preciso ler e reler o trecho para lhe alcançar o sentido. Deixando
de lado as incorreções de ordem sintática e outros defeitos de construção, a
falha mais grave do texto resulta da série inumerável dos elementos da pró­
tase, que se enleiam, se embaraçam uns nos outros de tal forma que se tor­
na penoso deslindá-los para saber onde começa a apódose (“... dá-se não
raro um a conspiração...”), descabidamente precedida por ponto-e-vírgula,
único recurso que o Autor supôs capaz de ajudar a compreensão do texto
(ele próprio sentiu que a prótase estava dem asiadam ente longa). Além dis­
so, o agrupam ento “os políticos militantes e os detentores do poder”, que
leva o leitor a acreditar tratar-se do sujeito de outra oração, é apenas apos­
to de “conjuntos por parentescos” (essa é, pelo menos, a única m aneira de
interpretá-lo). A confusão talvez pudesse ser evitada, se o Autor o pusesse
entre travessões, pois há vírgulas demais no texto. Ainda por cima, as três
últimas linhas apresentam um a construção anacolútica inadmissível, que tal­
vez pudesse ser corrigida com um ponto ou ponto-e-vírgula antes de “en­
tão”, que tem valor conclusivo: “dá-se (o próprio verbo é aqui inadequado)
uma conspiração... para elevar o inclassificável (i.e., jovem ou ancião) às
várias posições políticas. Então, esse vai ser o legislador, esse vai ser o esta­
dista”. A clareza aconselharia “um vai ser..., o outro vai ser” ou “este vai
ser..., aquele vai ser...” Mas, num período desse jaez, nem a pontuação aju­
da muito: é inútil jogar com vírgulas, travessões, pontos-e-vírgulas, porque
a obscuridade continua. Esse é o defeito mais grave e mais comum resul­
tante dos períodos sobrecarregados de informações, períodos que são verda­
deiras centopéias ou labirintos.
De forma que à frase entrecortada ou soiuçante, cujos excessos po­
dem ser condenáveis, se opõe a frase labiríntica, que esplendeu nos séculos
XVI e XVII. É o período caudaloso, miriapódico, o legítimo período ciceroniano, em que exceleram Vieira e outros barrocos, inclusive alguns barro­
cos extemporâneos (ou contemporâneos), como Proust e Rui Barbosa, mas
hoje excepcional na pena dos escritores modernos, se bem que freqüente no
estilo de muitos principiantes.
Marchetada de conectivos, plena de interpolações e incidências, colean­
te mas também rastejante, sonora e pomposa, às vezes, mas também prolixa
e cansativa, essa espécie de frase torna-se com freqüência indecifrável, ininte­
ligível, como no seguinte exemplo:
Q u a n d o às vezes p o n h o d ia n te do s olho s os m u ito s (...) tra b a lh o s e
in fo rtú n io s (...) com m u ita ra z ã o qu e m e posso q u eix ar d a v e n tu ra (....) Mas
p o r o u tra p a r te q u a n d o vejo q u e do m eio d e to d o s estes p erig o s e tra b a lh o s
m e quis D eus tira r se m p re em salvo, e p ô r-m e em se g u ro , ac h o q u e n ão te ­
n h o ra z ã o d e m e q u e ix a r p o r to d o s os m ales p assad o s, q u a n ta d e lh e d a r
g raç as p o r e s te só bem p re se n te , pois m e quis co n s e rv a r a v id a, p a ra q u e cu
p u d e sse fa z e r esta ru d e e to sc a e scritu ra, q u e p o r h e ra n ç a d eix o a m eu s fi­
lhos ( p o rq u e só p a ra eles é m in h a in te n çã o escrev ê-la) p a r a q u e eles v ejam
n e la estes m e u s tra b a lh o s e p erig o s d a vida q u e p assei n o d e c u rso d e v in te
e u m an o s e m q u e fui tre z e vezes cativo, e d e z e sse te v e n d id o , nas p a rte s d a
ín d ia , E tió p ia, A rábia felix (A rábia Feliz), C hin a, T a rtá ria , M acáçar, S a m a tra
e m u ita s o u tra s províncié
a q u e os E scritores Chins
g ra fia s p o r p e s ta n a d o m
la r e m u ito d ifu sa m e n te ,
d e se n ã o d e s a n im a re m c
d ev e m , p o rq u e n ão h á ne
a n a tu re z a h u m a n a , ajucL
g ra ç a s a o S e n h o r onipow
a p e sa r d e to d o s os m eu s p
n asc e ra m to d o s os m ales,
p a ra os p o d e r passar, e es<
apud í
Nesse trecho encontram
cia, os traços característicos dc
orações subordinadas, desfilan
em aranhadas em numerosas it
pelam sem discriminação lógia
sativa, muito diversa da de oi
des, por exemplo, ou o nosso
posto ao lado de Lucena no pc
N ascem os h o m en s
co n serv a, e ta m b ém os d eb
m a , e p o r isso estam o s sujei
to d o s nasce o Sol; a A uror
n o ite a n u n c ia a todos o âesi
trib u i e m anos, m eses, e h t
in stan tes. Essa tran sp a ren te
u n i p atrim ô n io com um , livn
te n ta a terra; as q u alid ad es <
Esse é um trecho “suave’
lembram, quanto à extensão e i
rem ão Mendes Pinto. O process
denação (correm apenas duas o
vas, o que não é de somenos; re
que lhes dá um feitio de frase m
qualquer cronista ou novelista c
Reflexões sobre a vaidade dos bi
apresenta inúmeros exemplos igii
que os períodos compostos por st
biríntica, o que parece decorrênc
-orações ou períodos simples de \
O t h o n
m
.
G a r c ia
♦
133
e m u ita s o u tra s p ro v ín cias d a q u e le o rie n ta l a rc ip éla g o , d o s co n fin s d a Ásia,
a q u e os E scrito res C hins, S iam eses, G ueos, E léquios n o m e ia m n a s su a s g e o ­
g ra fia s p o r p e s ta n a d o m u n d o , co m o ao d ia n te e sp e ro tr a ta r m u ito p a rtic u ­
la r e m u ito d ifu sa m e n te , e d a q u i p o r u m a p a rte to m e m os h o m e n s m o tivo
d e se n ã o d e s a n im a re m cos tra b a lh o s da v id a p a ra d e ix a re m d e faz er o q u e
d ev e m , p o rq u e n ão h á n e n h u n s, p o r g ra n d e s q u e se ja m , com q u e n ã o p o ssa
a n a tu re z a h u m a n a , a ju d a d a d o fav o r divino, e p o r o u tr a m e a ju d e m a d a r
g raç as ao S e n h o r o n ip o te n te p o r u s a r com igo d a su a in fin ita m isericó rd ia,
a p e sa r d e to d o s os m eus pecados, p o rque eu e n te n d o e co n fesso que d eles m e
n a sc e ra m to d o s os m ales, q u e p o r m im p assaram , e d ela as forças, e o ân im o
p ara os p o d e r passar, e e sca p ar d eles com vida.
(F ernão M endes P in to ( 1 5 1 0 -8 3 ), Peregrinação,
a p u d Á lvaro Lins e A urélio B u a rq u e d e H o la n d a F erreira,
Roteiro literário..., vol. 1, p. 6 3 )
Nesse trecho encontram-se, elevados, porém, à sua mais alta potên­
cia, os traços característicos do período clássico: é uma interminável série de
orações subordinadas, desfilando em cascata, inserindo-se umas nas outras,
em aranhadas em numerosas incidências, de tal forma que as idéias se atro­
pelam sem discriminação lógica. O resultado é uma frase lenta, sinuosa, can­
sativa, muito diversa da de outros clássicos, como o padre Manuel Bernardes, por exemplo, ou o nosso Matias Aires, que José de Alencar poderia ter
posto ao lado de Lucena no pós-escrito de Iracema:
N ascem os h om ens iguais: u m m esm o e igual p rin cíp io os an im a, os
conserva, e tam b ém os debilita, e acaba. Som os o rg an izad o s pela m esm a for­
m a, e p o r isso estam os sujeitos às m esm as paixões, e às m esm as v aid ad es. Para
to dos nasce o Sol; a A urora a todos d esp erta p ara o trab a lh o ; o silêncio d a
n o ite a n u n c ia a todos o descanso. O tem p o que in sen siv elm en te corre, e se d is­
tribui em an o s, m eses, e horas, p ara todos se com p õ e d o m esm o n ú m e ro d e
in stantes. Essa tra n sp a re n te região a todos abraça; todos a c h am nos elem en to s
u m p atrim ô n io com um , livre, e indefectível; todos resp ira m o ar; a todos sus­
te n ta a te rra ; as qualidades d a água e do fogo a todos se com unicam .
(Reflexões..., p. 71)
Esse é um trecho “suave”, formado por vários períodos que em nada
lembram, quanto à extensão e à estrutura, a frase caudalosa e centopeica de
Femão Mendes Pinto. O processo sintático que neles predomina é o da coor­
denação (correm apenas duas orações subordinadas, e, assim mesmo, adjeti­
vas, o que não é de somenos; rever 1.5.1, “Relevância da oração principal”), o
que lhes dá um feitio de frase moderna, constituindo mesmo um exemplo que
qualquer cronista ou novelista contemporâneo subscreveria sem corar. Aliás,
Reflexões sobre a vaidade dos homens, do nosso primeiro filósofo moralista,
apresenta inúmeros exemplos iguais a esse, em linguagem clara e fluente, em
que os períodos compostos por subordinação raramente assumem estrutura la­
biríntica, o que parece decorrência da feição sentenciosa da sua frase: muitas
orações ou períodos simples de Matias Aires são verdadeiras máximas.
134
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P r osa
m o d e r n a
As vezes, um autor, cujo estilo é em geral simples, claro e conciso,
deixa escapar um período labiríntico lamentável. Foi o que aconteceu a Re­
nato de Almeida, no seu, sob todos os aspectos, excelente livro Inteligên­
cia do folclore:
S em te r p o rta n to a tra d iç ã o o ra l d o p a ssa d o , se n ã o a lg u n s re tra to s
em c u ja fid elid ad e n ão h á q u e fiar m u ito , so b re n id o p o rq u e n ão é d e m o d o
alg u m possível se p a ra r o e ru d ito d o p o p u la r e ta m b é m o q u e d e in te n c io n a l
se a ju n ta v a nesses textos, a ciência folclórica e s b a rra d ia n te d a a u s ê n c ia d e
d o c u m e n to s , a tra v é s dos q u ais seja possível re c o n s tru ir a tra d iç ã o , q u e lhe
p a re c e , n a q u e la incisa (sic) im ag em de C arlyle, co m o u m a e n o rm e c â m a ra
escu ra am p lifica d o ra, na q u a l o h o m e m m o rto se to r n a d e z v ezes m a io r do
q u e e r a e m vida.
(p. 7 3 )
Há nesse trecho um acumulo tal de informações, que o leitor fica de­
sorientado; sua matéria daria para pelo menos dois períodos mais claros,
com ligeiras adaptações que em nada falseariam o pensam ento original:
S em ter, p o rta n to , a tra d iç ã o o ra l d o p a s sa d o , a ciên cia folclórica e s­
b a rra na au sên c ia d e d o c u m e n to s fided ig n o s, pois n ã o é d e m o d o alg u m
p o ssív el s e p a ra r o e ru d ito d o p o p u la r n em o q u e d e in te n c io n a l se a ju n ta v a
n esses te x to s [do séc. XII e XIII, em q u e se b aseia a ex e g ese d a no v elística
p o p u la r]. A falta d e tais d o c u m e n to s im p o ssib ilita a re c o n stru ç ã o d a tr a d i­
ção q u e é, p a ra a ciência folclórica, n a im ag em in cisiv a (?) d e C arlyle, com o
u m a e n o rm e câ m a ra escura am plificadora, n a q u al o h o m e m m o rto se to rn a
d e z vezes m a io r d o q ue era em vida.
2.6 Frase fragmentária
Como assinalamos em 1.2, as frases de situação, do ponto de vista es­
tritam ente gramatical, poderiam ser consideradas como fragmentos de frase,
se o contexto não lhes restaurasse a integridade semântica, i.e., se não lhes
desse um sentido completo.
Entretanto, o verdadeiro fragmento de frase é de outra ordem. Exa­
minemos o seguinte trecho de Jorge Amado:
H á m u ito q ue os m édicos h av iam d esco b e rto q u e aq u ela febre q u e m a­
tava a té m acacos e ra o tifo.
Existem aí quatro orações mas uma só frase íntegra, que, no âmbito
restrito da análise sintática, se chama, como sabemos, período. Nenhuma
dessas orações encerra um pensam ento completo, pois qualquer delas é
parte de outra. Isoladam ente, constituem fragmentos de frase:
ver 1.1), pois não é s
ção, já que seu senti
m ente na oração ime<
dicos haviam descobe
expressar apenas uma
da qual dependem sin
— que os médicos haviam
frase, pois seu sentido
seu objeto direto (“qu<
frase.
— que matava até macacc
melhor, de term o (“fet
to adnominal. Fragmen
— que aquela febre... era <
descoberto”. Fragmento
Donde se conclui qt
frase, tanto quanto os adjt
Encaremos agora o
irutura verbal malograda,
palpáveis de pontuação ou
O povo carioca
Vida bem vivida. Tendt
de aluno.)
O primeiro período
bem vivida” — é aposto d
fitico. Poderia estar entre
n aão r realce, separando-o
~ mas não vicioso, dada
J ra n o construção elíptica o
— il encará-lo como um r
ia frase fragmentária.
Mas o terceiro trech
í* tido como vicioso pc
lo dependente desliga
do período (uo povo c
k >5, uma falha de pont
íu ação dessa ordem é q
feição anacolútica. No c
semelhantes a essa, coi
porque o ponto está i:
0
1h ü n
M.
G a r c i a
♦
135
— Há muito [tempo] é uma oração, sem dúvida, mas não um a fras.e (re­
ver 1.1), pois não é suficiente por si mesma para estabelecer comunica­
ção, já que seu sentido só se completa no resto do período, especial­
m ente na oração imediata, dita “tem poral” “que [= desde que] os m é­
dicos haviam descoberto...”, etc. Portanto, é um fragmento de frase, a
expressar apenas um a circunstância de tempo, apesar de ser a oração
da qual dependem sintaticam ente as demais do período.
— que os médicos haviam descoberto é também um a oração mas não uma
frase, pois seu sentido só se completa no resto do período, onde está o
seu objeto direto (“que aquela febre... era o tifo"). Outro fragmento de
frase.
— que matava até macacos é, da mesma forma, parte de outra oração, ou
melhor, de term o (“febre”, sujeito) de outra., funcionando como adjun­
to adnom inal. Fragmento de frase.
— que aquela febre... era o tifo é, como vimos, o objeto direto de “haviam
descoberto”. Fragmento de frase.
Donde se conclui que toda oração subordinada é um fragmento de
frase, tanto quanto os adjuntos.
Encaremos agora o fragmento de frase como resultado de um a es­
trutura verbal malograda, frustrada nos seus intentos por causa de falhas
palpáveis de pontuação ou de vícios de raciocínio:
O povo carioca p o d e g ab a r-se dos se u s q u a tro c e n to s an o s d e v id a.
V ida b em vivida. T endo p o r p rê m io a n a tu re z a e o clim a a m e n o . (R ed ação
d e alu n o .)
O primeiro período constitui uma frase íntegra. O segundo — “Vida
bem vivida” — é aposto de “vida”, aposto por reiteração, com propósito en­
fático. Poderia estar entre vírgulas, como é*de regra, mas o autor deu-lhe
maior realce, separando-o por ponto. É, em essência, um fragmento de fra­
se, mas não vicioso, dada, inclusive, a possibilidade de entendê-lo também
como construção elíptica ou como frase nominal. Entretanto, parece mais na­
tural encará-lo como um recurso de estilo que se resolveu satisfatoriamente
num a frase fragmentária.
Mas o terceiro trecho — de “tendo” até o fim — é um fragm ento de
frase, tido como vicioso pelos cânones gramaticais, já que se trata de uma
oração dependente desligada da sua principal — que é tam bém a princi­
pal do período (“o povo carioca pode gabar-se...”). Muitos veriam aí, pelo
menos, um a falha de pontuação (ponto em lugar de vírgula), e falhas de
pontuação dessa ordem é que provocam a maioria dos fragamentos de frase
de feição anacolútica. No ensino fundamental, são freqüentíssimas constru­
ções semelhantes a essa, constituídas por períodos a que falta a oração prin­
cipal, porque o ponto está indevidamente colocado.
Ora, o estilo da literatura moderna, brasileira ou não, principalm en­
te a do período entre as duas grandes guerras, distingue-se pelo feitio da
sua frase fragm entária, em conseqüência quase exclusiva de um critério de
pontuação não ortodoxo. Não obstante, são formas de expressão legítimas
sob o aspecto estilístico e não estritamente gramatical. Quando intencionais
e praticadas com habilidade, constituem virtudes estilísticas; quando resul­
tam de incúria ou ignorância, tomam-se vícios lastimáveis.
No exemplo que acabamos de comentar, o fragmento de frase vicio­
so decorreu do isolamento da oração gerundial “tendo...”, isolamento feito
com inabilidade ou incúria. No trecho a seguir, de Gilberto Amado, há tam ­
bém um a série de gerúndios desacompanhados de oração principal, mas a
habilidade e a experiência do Autor deram como resultado um a frase bas­
tante expressiva:
A g e n te a n d a n d o , c o m en d o , b e b e n d o , d o rm in d o , v iv en d o , in d o ao
b a n h o n o rio, p a s se a n d o n a ru a, p ro c u ra n d o fu rta r o s figos d a v elh a M erência, p a ra lisa n d o -se d e a d m ira ç ã o d ia n te d o v elh o F aria, b ran c o , co m u m a ex­
p ressã o d e e te rn id a d e , e a q u e le ra p a z b o n ito , d e cab elo s ca ch ead o s, d e ita d o
ali d o rm in d o p a ra sem pre.
CH istória d a m in h a infância, p. 30)
Sob o aspecto gramatical, há nesse trecho dois grupos de fragm en­
tos de frase: o primeiro constituído pela série de gerúndios, e o segundo,
pela parte final, a partir de “e aquele rapaz...”, cujo núcleo é o particípio
passado “deitado”. Falta aí pelo menos uma oração independente que sir­
va de principal do conjunto. O “rem endo” mais fácil consistiria em enxer­
tar um auxiliar (“vivia”, ou “estava”, por exemplo) para os gerúndios, e
outro para o particípio passado (“continuava”). Com isso, o trecho se tor­
naria íntegro, ficaria sendo realm ente um período, mas teria perdido gran­
de parte do seu sortilégio, que provém do contraste entre o dinamismo da­
queles gerúndios desacom panhados de auxiliar e a idéia de repouso daque­
le “deitado”. Confronte-se a versão íntegra com a fragm entária, e ver-se-á
quanto perdeu com isso o trecho:
A g en te estava (o u vivia) an d a n d o , com endo, d o rm in d o , vivendo, indo
ao b a n h o no rio, p assean d o na rua, p ro cu ran d o fu rta r os figos d a velh a M eren ­
d a , p ara lisa n d o -se d e adm iração d ia n te d o velho Faria, b ran co , com u m a
ex p ressão d e e tern id ad e , e n q u a n to aquele rap az b o n ito , d e cabelos cacheados,
continuava d eitad o ali, d o rm in d o p a ra sem pre.
É um caso de conflito entre a rigidez gramatical e a excelência estilís­
tica. Só os autores experimentados, só os grandes escritores sabem quando e
como desprezar certos preceitos gramaticais para obter efeitos estilísticos
abonadores. Por isso, o melhor compêndio ou manual de redação é obra dos
grandes escritores.
Rachel de Queiroz,
loquialismo espontâneo, c
bulário, oferece-nos sempj
recursos de estilo, muitos,
V iver p o d ia se
vel. Cada dia que a m
bichos e su a s flo res...
Porque tem m u ita gen
cia n a tu ra l, com o ínc
cozin h a n d o em trempi
que cheguei lá em cimt
aieg a -se . É, su b -h u m a
ta m , n a tu ra lm e n te .
Grande parte do ti
dos na transcrição). Exai
que” depois do sexto p<
principal desse período. !
vel segundo os cânones
pressão legítima no Portu
tuar, deixando num pseuc
principal pode vir ou nãc
mesmo o mais caturra dc
iutos, teria coragem de ce
redação).
O trecho que damos
um a idéia do que é frase 1
A festa d a inau
n ã o acab a v a m ais. Toc
um c a lo r in su p o rtá v el,
sa iu m u ito a n te s d e te
dor. P orq u e n ão e ra \
p rin c ip a lm e n te o calor.
Está aí um exemple
da ao extremo. Muitos tr
dos, “aparas” ou “lascas”
gua falada: é vivaz, espoi
m enos conveniente, “reaju
excessos resultantes em gi
U FP E Biblioteca Centra
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
137
Rachel de Queiroz, naquele estilo todo seu, estilo delicioso no seu co­
loquialismo espontâneo, com as suas peculiaridades de expressão e de voca­
bulário, oferece-nos sempre exemplos de fragmentos de frase preciosos como
recursos de estilo, muitos, dignos de imitar:
V iver p o d ia se r tã o bom . Ou bom não digo total, m as p o d ia se r so frí­
vel. C ada dia que am anhece. Cada noite com as su a s estrelas. E os m a to s e os
bichos e suas flores... E gente dos m orros, ig u a lm en te com seus passarinhos.
Porque tem m u ita gente de m orro q u e, e m b o ra n a cid a d e , leva a su a e x istê n ­
cia n a tu ra l, co m o índios. M orando naqueles n in h o s em poleirados nas pedras,
cozin h a n d o em trem pc, apanhando água onde enconfra, sem conhecer veículo
que chegue lá em cima, nem luz elétrica... V ivem em co n d içõ e s su b -h u m a n a s,
aleg a -se . E, sub-hinnanas e sobre-hum anas, lá em cim a , tão alto. E n ão g o s­
ta m , n a tu ra lm e n te .
(O C ruzeiro, 2 8 /3 /6 4 )
Grande parte do trecho é constituída por fragmentos de frase (grifa­
dos na transcrição). Examinemos, por exemplo, aquele iniciado por “por­
que" depois do sexto ponto. A gramática “m andaria procurar” a oração
principal desse período. Mas o trecho é, quanto a esse aspecto, inanalisável segundo os cânones gramaticais; não obstante, constitui forma de ex­
pressão legítima no Português moderno. É tão usual essa m aneira de pon­
tuar, deixando num pseudo ou quase-período só orações subordinadas, cuja
principal pode vir ou não vir em período precedente, tão usual, que nem
mesmo o mais caturra dos puristas, o mais ferrenho adversário dos anacolutos, teria coragem de censurá-la (a menos que se tratasse de exercício de
redação).
O trecho que damos abaixo, adaptado de redação de aluno, dá bem
um a idéia do que é frase fragmentária,
A festa d a in a u g u ra ç ã o d a nova sed e e sta v a e s p lê n d id a . G en te q u e
n ã o ac ab a v a m ais. Todos m u ito an im ad o s. M as u m a co n fu sã o tre m e n d a . E
u m ca lo r in su p o rtá v el. De rachar. De m o d o q u e g ra n d e p a rte d o s convivas
sa iu m u ito a n te s d e term inar, m u ito a n te s m e sm o d a c h e g a d a d o G o v ern a­
dor. P orque n ã o e ra possível a g ü e n ta r a q u e le a p e rto , a q u e la co n fu são . E
p rin c ip a lm e n te o calor.
Está aí um exemplo de linguagem coloquial entrecortada, fragm enta­
da ao extremo. Muitos trechos postos entre pontos são pedaços de perío­
dos, “aparas” ou “lascas” de frase. Esse estilo ajusta-se perfeitam ente à lín­
gua falada: é vivaz, espontâneo, desinibido. Mas seria necessário, ou pelo
menos conveniente, “reajustá-lo” ao estilo da língua escrita, podando-lhe os
excessos resultantes em grande parte de uma pontuação heterodoxa.
138
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P r osa
M o d e r n a
2.7 Frase caótica e fluxo de consciência: monólogo
e solilóquio
Como se sabe, o século XX se tem caracterizado por acontecimentos
que lhe vêm alterando radicalmente as estruturas políticas, econômicas, so­
ciais e culturais herdadas do passado. A literatura não poderia ficar à m ar­
gem dessas transformações; antes, pelo contrário, teria de refleti-las em grau
acentuado, como espelho que é da própria sociedade.
Dos movimentos ou correntes literárias que proliferaram na primei­
ra m etade da presente centúria, alguns deixaram sinal mais duradouro do
que otitros, como a renovação estilística que se seguiu à Primeira Grande
Guerra e repercutiu no Brasil por volta de 1920, eclodindo dois anos mais
tarde na celebérrima Semana de Arte M oderna (São Paulo, 1922).
Com o advento do Modernismo, a língua literária sofreu tremendos
abalos, que, para muita gente, se configuraram como verdadeiros “cataclis­
mos” lingüísticos. Embora esse movimento “sísmico” no território das letras
não tenha tido seu “epicentro” nestas Terras de Santa Cruz, sua repercussão
aqui — e José Oiticica, entre outros, o assinalou alarmado — foi a de
legítimo “terrem oto”, que surpreendeu, chocou, irritou, desesperou um a le­
gião de críticos desarmados, e, sobretudo, de gramáticos muito afeitos ain­
da à disciplina rígida do purismo em moldes parnasianos.
Mas depois a atmosfera se desanuviou um pouco, e os “trem ores”
deixaram de assustar a m aior parte; demais, já não era novidade, e os ex­
cessos dos primeiros “abalos” já havia perdido bastante a sua intensidade
inicial.
Uma das heranças deixadas pelo Modernismo foi a renovação da pró­
pria língua literária — da literária, porque a popular, essa está se renovan­
do todos os dias. O resultado disso é que a frase pós-modernista, como nin­
guém ignora., já era “outra coisa”, muito diversa cla que vigorava até a se­
gunda década do século: diferente na estrutura, no vocabulário, nos padrões
rítmicos. Alguns espécimes dessa frase rebelde aos moldes tradicionais (castilhianos, digamos assim) seriam inconcebíveis na literatura brasileira anterior
a 1920. Hoje, passam como coisa corriqueira, sem alarm a nem protesto, a
não ser daqueles críticos desarmados ou de alguns ferrenhos tradicionalis­
tas, que acham que a língua portuguesa da segunda m etade deste século de­
via trazer ainda o signo camoniano para ser tida como padrão de excelência.
Em tópicos anteriores já comentamos alguns desses espécimes. Restanos agora dizer alguma coisa sobre a frase caótica, denominação que não tem
nenhum sentido depreciativo. Trata-se de um a frase que muito nos lembra
“depoimento” feito em divã de psicanalista, como expressão livre, desinibida,
desenfreada, de pensamentos e emoções.
Sua feição mais comum é a do monólogo interior, em que o narrador
(ela só aparece no gênero de ficção ou de literatura intimista) apresenta as
reações íntimas de determinada personagem como se as surpreendesse in
natura, como se elas brotassem diretamente da consciência, livres e espontâ­
neas. O autor “larga” a ;
vagações, em monólogo
ouvinte. Daí, o seu feit
num a ruptura dos enlací
de idéias aparentemente
consciência”, que Robert
modem novel (University
Apesar do seu frç
cendência é das mais il
Mrs. Dalloway, de Virgini
William Faulkner), const
lência estilística no gene:
Esse aspecto alógi<
Robert Humphrey, o mon
tiano, que é coerente e 1
a quem indiretamente se
preferência do discurso d
Ainda que o solilóq
neo, o seu revestimento 1
geral, o fluxo do pensame
mais ou menos policiada
decorrentes, na maioria dc
Não seria cabível n
nólogo interior e do solilc
temporânea; por isso, ter
ou duas amostras coment;
Uma das obras de i
cia na literatura brasileirf
teira (1933), de Cornélic
vários aspectos, há muito:
logos. Sua estrutura, entn
taxe, apesar do seu moldt
cançada na literatura bras
rico, e não propriam ente :
mais adiante.
Outro romancista ij
dem assinalar algumas se
üspector. Sua novela —
exemplos de monólogo eir
caóticas do ponto de visn
ícf., p. ex., páginas 19, 21
d sco Alves, Rio, 1963). En
— a Autora depura e reqv
ie alogismo sintático e co
como se pode ver, por exe:
O t h o n
m
.
G a r c ia
♦
139
neas. O autor “larga” a personagem, deixa-a entregue a si mesma, às suas di­
vagações, em monólogo com seus botões, esquecida da presença de leitor ou
ouvinte. Daí, o seu feitio incoerente, incoerência que pode refletir-se tanto
numa ruptura dos enlaces sintáticos tradicionais quanto numa associação livre
de idéias aparentemente desconexas. O autor tenta assim traduzir o “fluxo de
consciência”, que Robert Humphrey estuda em Stream of consciousness in the
modem novel (University of Califórnia Press, 1959).
Apesar do seu freqüente e intencional primarismo sintático, sua as­
cendência é das mais ilustres (Ulysses e Fintiegcins’ Wake, de James Joyce,
Mrs. Dalloway., de Virgínia Wooif, The sound and the fury e As I lay dying, de
William Faulkner), constituindo mesmo, em certos círculos, padrão de exce­
lência estilística no gênero de ficção.
Esse aspecto alógico, incoerente ou difuso é o que distingue, segundo
Robert Humphrey, o monólogo interior do solilóquio dramático do tipo hamletiano, que é coerente e lógico por presumir a presença de leitor ou ouvinte,
a quem indiretamente se dirige. Mas tanto um quanto outro se servem de
preferência do discurso direto ou do indireto livre (ver adiante 3.0).
Ainda que o solilóquio seja freqüente no romance brasileiro contemporâ­
neo, o seu revestimento lingüístico nem sempre é caótico ou incoerente. Em
geral, o fluxo do pensamento da personagem se exterioriza numa forma verbal
mais ou menos policiada pelo autor, sendo os vestígios de alogismo sintático
decorrentes, na maioria dos casos, de um critério de pontuação não ortodoxo.
Não seria cabível num capítulo como este rastrear a incidência do mo­
nólogo interior e do solilóquio dramático em toda a literatura brasileira con­
temporânea; por isso, temos de limitar-nos a algumas referências e a uma
ou duas amostras comentadas com propósito didático.
Uma das obras de maior densidade introspectiva, de que se tem notí­
cia na literatura brasileira dos últimos cinqüenta anos, é sem dúvida Fron­
teira (1933), de Comélio Pena. Nesse romance, realmente magistral sob
vários aspectos, há muitos trechos de solilóquio inseridos nas falas dos diá­
logos. Sua estrutura, entretanto, nada tem de caótica no que respeita à sin­
taxe, apesar do seu molde de introspecção em profundidade raram ente al­
cançada na literatura brasileira dos nossos dias. Por isso é solilóquio dram á­
tico, e não propriamente monólogo interior, distinção que desenvolveremos
mais adiante.
O utro romancista igualmente introspectivo, em quem, aliás, se po­
dem assinalar algumas semelhanças com o Autor de Fronteira, é Clarice
Lispector. Sua novela — Perto do coração selvagem — oferece-nos vários
exemplos de monólogo em frases permeadas de relativo alogismo, mas não
caóticas do ponto de vista sintático, se bem que, às vezes, fragmentárias
(cf., p. ex., páginas 19, 23, 31, 44, 102, 134, da edição da Livraria Fran­
cisco Alves, Rio, 1963). Em obra mais recente — A legião estrangeira, 1964
— a A utora depura e requinta essa técnica do monólogo interior, m arcado
de alogismo sintático e com interpolação freqüente de frase fragmentária,
como se pode ver, por exemplo, no conto que dá título ao volume.
140
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
m o d e r n a
Também Antônio Callado, em Assunção de Salviano, recorre ao m onó­
logo interior como expressão do fluxo do pensamento, em frases até certo
ponto caóticas. Para traduzir melhor a torrente de idéias que se vão avolu­
m ando na mente de Salviano (principalmente a partir da sua prisão, acusa­
do de haver assassinado um americano), o Autor põe seu herói a monolo­
gar, mas policiando-lhe sempre a linguagem, para evitar, pelo menos, os ex­
cessos que redundariam numa frase totalmente caótica. No caso de Callado,
os exemplos de monólogo como expressão do fluxo do pensamento ou tor­
rente da consciência revelam acentuada interferência do Autor, que peneira
o que deveria ser o legítimo solilóquio de um nordestino agitador e meio
místico, com vocação para o auto-sacrifício. O máximo que faz o romancista
é expor o pensamento de Salviano numa frase simples, solta, assim como
que de embolada ou de ladainha, despovoada de vírgulas:
M as d a n a ç ã o era o u tra coisa m u ito d ife re n te d a n a ç ã o era raiva d e cão
d a n a d o n a a lm a d a g e n te d a n a ç ã o era ó dio d e D eus v o n ta d e d e m o rd e r e d e
e s tra ç a lh a r D eus com o se fosse possível e ra e n te rra r as u n h a s e ra sg a r d e
p o n ta a p o n ta o céu d e m odo q u e à no ite se p u d esse v e r o listra o de sa n ­
g u e la te ja n d o e n tre as estre la s e d e d ia a ferida se a b risse ao sol p a ra q u e o
d a n a d o te n ta s se e n tra r p a ra e s tra ç a lh a r D eus u m v e rd a d e iro horror. N ão d a ­
n ação e ra o p e c a d o q u e n ão ap a recia em e sta m p a s p o rq u e m o rre em si m es­
m o e n ão a g ü e n ta ria seu reflexo em esp elh o ou s a n tin h o n ão a g ü e n ta ria có­
pia d e si m e sm o p o rq u e m esm o su a so m b ra a rd e e s c a rla te o n d e p o u sa.
(Assunção de Salviano, p. 10 8 )
Como se vê, a frase é sobriamente caótica: basta colocar nos devidos
lugares algumas vírgulas e alguns pontos para que resulte sintaticamente
bem ordenada. É monólogo de fluxo de consciência, mas fiscalizado muito
de perto pelo Autor, depurado, enfim, numa linguagem culta. O pensam en­
to é de Salviano; as palavras, nem todas.
Também Josué Monteio (A décima noite, 1960) recorre com freqüência
ao solilóquio, servindo-se, entretanto, de uma estrutura de frase que nada tem
de caótica, dado o tipo mental da personagem, que fala mais pelo Autor do
que por si mesma. Ao contrário do que fazem Callado e muitos outros, Mon­
teio põe sempre entre aspas os trechos monologados, principalmente quando
se serve de verbos dicendi (disse, dizia consigo, pensava):
Na im in ên c ia d a crise, A belardo n ão p e rd ia o d o m ín io d e si m esm o .
E dizia co n sig o , se re n o , co n fia n te, cigarro e sq u ec id o n a p o n ta d o s d ed o s: —
“D aqui a p o u c o te rá s d e d e ita r-te , A laíde. F. eu ta m b ém . C rês q u e p o d e rá s
fu g ir d e m im , com o se eu fosse u m e s tra n h o ? De m o d o a lg u m . T erem os d e
p a rtilh a r a m e sm a cam a, ali n a alcova. Só nós d o is fic a re m o s aqui. E e n ­
tã o ? N ão u sa re i d e violência contigo. Por esse lado, fica tra n q ü ila . Sei o q u e
d e v o fazer. S e m e q u isesses o u v ir com se re n id a d e , eu te d iria q u e esse re ­
ceio cle te e n tre g a re s n ã o é caso ú nico no m u n d o . („ .)"
(A décim a n o ite, p. 2 0 5 )
Vê-se que, mesmo se
boca do Autor, numa frase
mente do fluxo de consciên*
de solilóquio dramático de í
Poderíamos citar aind
interior ou do simples solilá
Lins do Rego, Lúcio Cardosc
perto de nós, Fernando Sabi
Entretanto, em nenhu
em solilóquio (estamos adol
incoerente ou caótica em t;
autor que dispõe de grandes
se sente nítida influência de
The sound and the fury, que
sensibilidade elementar de u
nato de A barca dos homens.
Seu romance A barca
um semilouco, de um desaju
mais ou menos inocentement
onde nascera e se criara. Cen
acossado pelos policiais da itt
mada com o perigo que signil
quilibrado. Ferido numa qued;
A partir daí, a história se de
adotada por Aldous Huxley ei
com adaptações, por Érico \fe
dos habitantes da ilha, princip
amigo, e o do drama íntimo c
evocações de experiências rece
As divagações do herói
branças, tudo, enfim, que lhe
ta, todo esse fluxo de conscíê.
Dourado simula reconstituí-lo
que se vão encadeando por si
ve-se, então, do legítimo moro
indireto e semi-indireto livre, i
Ulysses, sobretudo nas suas qu
edição de The Modern Librar
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rece o singular monólogo de ^
marido, ressona ao lado.
Em, A barca dos homén.
se exterioriza como se o narra
fora” em expressão lingüística
|U F P E Biblioteca O n * "
O t h ô n
M.
G a r c i a
♦
141
Vê-se que, mesmo sendo homem de certa cultura, Abelardo fala pela
boca do Autor, num a frase coerente, lógica, escorreita. Nada tem propria­
mente do fluxo de consciência; não se trata assim de monólogo interior, mas
de solilóquio dramático de feição tradicional.
Poderíamos citar ainda outros autores que se servem ou do monólogo
interior ou do simples solilóquio, como, por exemplo, Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Lúcio Cardoso (sobretudo em A l u z n o su b so lo , 1936) e, mais
perto de nós, Fernando Sabino (E n c o n tro m a rc a d o , 1960).
Entretanto, em nenhum deles a estrutura da frase em monólogo ou
em solilóquio (estamos adotando a distinção que faz Robert Humphrey) é
incoerente ou caótica em tão acentuado grau como em Autran Dourado,
autor que dispõe de grandes recursos de fabulação e introspecção, e no qual
se sente nítida influência de Joyce e Faulkner — sobretudo do Faulkner de
T h e s o u n d a n d th e furyr ; que nos oferece uma visão do mundo através da
sensibilidade elementar de um idiota ou débil mental, semelhante ao Fortunato de A b a rc a d o s h o m e n s.
Seu romance A b a rca d os h o m e n s (1961) é, em síntese, a crônica de
um semilouco, de um desajustado mental — Fortuna to — que perambulava
mais ou menos inocentemente pela ilha de Boa Vista, recanto de veraneio,
onde nascera e se criara. Certo dia, tendo-se apossado de um revólver, viu-se
acossado pelos policiais da ilha, cuja população se mantinha justamente alar­
mada com o perigo que significava uma arma de fogo em mãos de um dese­
quilibrado. Ferido numa queda, Fortunado refugiara-se num recanto da praia.
A partir daí, a história se desenrola em dois planos (técnica semelhante à
adotada por Aldous Huxley em P o in t c o u n te r p o iitt , 1928, e seguida também,
com adaptações, por Érico Veríssimo em O lh a i o s lírio s d o c a m p o , 1938): o
dos habitantes da ilha, principalmente Luísa, mãe de Fortunato, e Tonho, seu
amigo, e o do drama íntimo de Fortunato com suas aflições entremeadas por
evocações de experiências recentes.
As divagações do herói débil mental, os fiapos difusos das suas lem­
branças, tudo, enfim, que lhe vai passando pela mente conturbada e atôni­
ta, todo esse fluxo de consciência ou torrente do pensamento de Fortunato,
Dourado simula reconstituí-lo em fragmentos de frases soltas e incoerentes,
que se vão encadeando por simples associação livre de idéias. O Autor ser­
ve-se, então, do legítimo monólogo interior, sob a forma de discurso direto,
indireto e semi-indireto livre, tal, exatamente tal, como faz James Joyce em
U lysses , sobretudo nas suas quarenta e cinco últimas páginas (738 a 783 da
edição de The Modern Library, New York, 1961, na tradução de Antônio
Houaiss, para a Civilização Brasileira, 1966, páginas 791 a 846), onde apa­
rece o singular monólogo de Molly deitada na cama, enquanto Leopold, seu
marido, ressona ao lado.
Em, A b a rc a d o s h o m e n s é o fluxo da consciência de Fortunato que
se exterioriza como se o narrador o surpreendesse “por dentro” e não “por
fora” em expressão lingüística. Mesmo num a personagem de tipo mental
142
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C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
equilibrado, essa torrente de pensamentos e emoções íntimas já se revesti­
ria de um a roupagem idiomática fragm entária ou desconexa: na m ente de
um retardado, sua configuração assume aspectos surpreendentes, tipica­
m ente joycianos. E, diga-se em abono do Autor, esse revestim ento lingüísti­
co adequa-se perfeitam ente à situação e à natureza do conflito íntimo do
protagonista.
Mas Autran Dourado “ajuda” o leitor, assinalando os trechos de stream
o f consdousness com um a linha pontilhada, trechos que em geral se alon­
gam por um a página e meia, constituindo um total de cerca de vinte, in­
tercaladas no texto do primeiro plano. Desde a de núm ero 147, onde se
inicia o monólogo interior, até a de número 236, onde term ina, há, se não
nos enganamos, treze interpolações, mas o trecho é um só, não interrom pi­
do por ponto (no monólogo de Molly, não há pontuação de espécie algu­
ma: Dourado pinga pelo menos algumas vírgulas).
Vejamos um exemplo, colhido ao acaso para dar um a idéia do que é
a frase caótica em monólogo interior como exteriorização do fluxo de cons-
Dizer muitas vezes seguidas paizinho, seu pai, muito mais que pai,
porque tem gente que tem pai e não gosta dele, anda a vida inteira buscan­
do um pai para gostar e seguir, era assim que devia ser um pai, como Tonho, quando saía com ele na Madalena pelo mar adentro, lhe dizia escolhe
uma para sua madrinha, é bom, no mar sempre faz companhia, por que ele
não vinha, meu Jesus, como a mãe dizia, está doendo muito a perna, levou
a mão no lugar que mais doía, estava inchado, os urubus voando em torno
dele, quando o dia clareasse, o cheiro da gangrena chamava muita atenção,
nem precisava cheiro, que de longe não podiam sentir, os urubus tinham um
faro muito fino, podiam ver de longe que tinha carne podre por perto, meu
Jesus, não deixa eles chegarem primeiro que o Tonho, não deixa os solda­
dos chegarem primeiro, não podiam chegar, ninguém sabia daquela grota, da­
quele esconderijo, só ele e Tonho, será que Tonho se lembraria, se lembraria,
não podia esquecer (...)
Essa é um a am ostra de frase caótica, em grau m uito mais acentua­
do do que a do exemplo de Assunção de Salviano. Note-se que a lingua­
gem do herói é cândida, de pura inocência, não porque ele seja ainda jo ­
vem, mas porque o monólogo interior, a “conversa com os nossos botões”,
se faz sempre revestida duma forma verbal de escassa contaminação de
hábitos lingüísticos socializados. É o pensam ento na sua essência, na sua
fluidez, em quase estado de inocência, desinibido, desordenado. Quem di­
vaga em colóquio consigo mesmo não pensa de m aneira coerente, não co­
ordena suas idéias num a estrutura sintática rígida, em períodos e parágra­
fos pontuados: o pensamento simplesmente flui entregue a si mesmo, sem
cogitar de ouvinte atento.
As três característii
controlam a associação li
primeiro, a memória (evo<
segundo, a imaginação (i<
dos urubus voando quant
terceiro, os senados (a pe
ingredientes do monólogo
deles pode resultar obra c
bituado aos padrões tradic
A parentem ente fácil
to, experiência e alto grau
contaram certam ente Jami
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não foi o primeiro entre nó
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quem, entretanto, a praticc
lizar obra de mérito.
2.8 Frases parentél
Existe, no âmbito c
de orações que não pertei
do mesmo período, no qu
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pósito esclarecedor. Múltip
ria dos casos, um como q
pensam ento em surdina. 1
regra, entre parênteses, el;
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(ao p é da letra, nem toda:
58
'
A propósito cia obra desse A
técnica do romance.
59 Essas (e outras) características
desafio, e o maior deles Antônic
petência, ao nos dar em 1966 a
60
Curnpre agradecer aqui a s
chamou a atenção para o cas<
este capítulo saiu publicado, co
61 Agradeço ao amigo e colega
tópico.
O t h o n
m
.
G arc ia
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143
As três características desse fluxo de idéias que, por assim dizer,
controlam a associação livre, estão, presentes no monólogo de Fortunato:
prim eiro, a memória (evocação do pai e aventuras marítimas com Tonho);
segundo, a imaginação (idealização de “um, pai para gostar”, a antevisão
dos urubus voando quando o dia clareasse, a perspectiva de gangrena);
terceiro, os sentidos (a perna inchada doendo). São esses, de fato, os três
ingredientes do monólogo interior em frase caótica. Da hábil manipulação
deles pode resultar obra de mérito, ainda que insólita para quem está h a­
bituado aos padrões tradicionais.
A parentem ente fácil, a frase caótica exige do autor am adurecim en­
to, experiência e alto grau de capacidade de introspecção. Com esses dons
contaram certam ente James Joyce, Virgínia Woolf, Conrad Aiken, William
Faulkner58 para a criação da obra que nos legaram .59 Autran Dourado, se
não foi o primeiro entre nós a exercitar-se nesse tipo de frase caótica de mo­
nólogo interior (temos o exemplo, mais comedido, de Antônio Callado),60 foi
quem, entretanto, a praticou com maior ousadia, e não ficou longe de rea­
lizar obra de mérito.
2.8 Frases parentéticas ou intercaladas61
Existe, no âmbito da justaposição (rever 1.4.2 e 1.4.3), uma classe
de orações que não pertencem propriam ente à seqüência lógica das outras
do mesmo período, no qual se inserem como elemento adicional, sem travam ento sintático e, freqüentem ente, se não predom inantem ente, com pro­
pósito esclarecedor. Múltiplas nas suas acepções, elas denunciam, n a maio­
ria dos casos, um como que segundo plano do raciocínio, uma espécie de
pensam ento em surdina. Habitualmente intercaladas no período e, via de
regra, entre parênteses, elas se infiltram na frase pelo processo da justapo­
sição; daí a sua tríplice denominação: justapostas/intercaladas/parentéticas
(ao pé da letra, nem todas são, pelo menos m aterialm ente, parentéticas —
58 A propósito da obra desse Autor, leia-se o excelente ensaio de Assis Brasil — Faulkner e a
técnica do romance.
59 Essas (e outras) características estilísticas tornam a tarefa cle traduzir esses autores um grande
desafio, e o maior deles Antônio Houaiss enfrentou, cotn lucidez, criatividade e excepcional com­
petência, ao nos dar em 1966 a magistral versão de Ulysses, de James Joyce.
60 Cum pre agradecer aqui a sugestão de Assis Brasil, que. em bilhete muiro simpático, nos
chamou a atenção para o caso de Callado, que nos teria escapado, como escapou, quando
este capítulo saiu publicado, com adaptações, no Correio da M anhã, de 6 /2 /1 9 6 5 .
61 Agradeço ao amigo e colega Antônio de Pádua a valiosa contribuição para a revisão deste
tópico.
144
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C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n
pois, podem vir entre vírgulas ou travessões — ou legitimamente intercala­
das — muitas vêm no fim e não no meio [entre, inter] do período).
Dentre as de acepções mais facilmente identificáveis, destacam-se as
que servem:
1. para intercalação, ou aposição:
I
de um esclarecimento de valor circunstancial de:
a) tempo: “Naquele mesmo dia (era ao almoço), ele achou o café delicio­
so...” (M. de A., Esaú e Jacó, XXXII)
b) concomitância (às vezes com certo matiz de oposição): “É homem de ses­
senta anos feitos (ela tem cinqüenta)...” (Id M em o ria l, 1888, 25 de jan.)
c) causa (explicação ou motivo): “Parei na calçada a ouvi-lo (lado são pretex­
tos a um coração agoniado), ele viu-me e continuou a tocar.” (Id., D. Cas­
murro, CXXVII)
d) conformidade: “É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais pró­
prio a tal fim (disse-me uma senhora um dia [i.e., conforme me disse...]) é
ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.” (Id. i b i d CXIII)
e) comparação: “Como estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora [i.e.,
tal como ainda estou agora]), ele, que o percebeu, falou-me com muito
carinho...” (Id., Papéis avulsos, “Uma visita de Alcibíades”)
II — de um esclarecimento ou informação adicional com valor de adjetivo
ou de aposto: “Rubião compôs o rosto para que seus habituados (tinha
sempre quatro ou cinco [i.e., que eram sempre...]) não percebessem nada.”
(Id., Q. Borba, XCI) “Mas I-Iumanitas (e isto importa antes de tudo [aposto
catafórico, i.e., referente ao que se vai dizer, e não ao que já se disse]), Humanitas precisa comer.” (Id. ibid., VI)
de am a espécie de aparte afetivo-desiderativo (com verbo no optati­
vo): “Meu tio (Deus lhe fale n'aima!) respondeu que fosse beber ao rio ou
ao inferno.” (Id., Papéis avulsos, “O alienista”). Nem sempre entre parênte­
ses, essas intercaladas optativo-desiderativas (do tipo “benza-o Deus”, “dia­
bos o levem”) são em geral exclamativas, e sua estrutura lhes permite au­
tonomia sintática.
III —
IV — de um a escusa: “Os seus eclipses (perdoe-me a astronomia) talvez
não sejam mais que entrevistas amorosas.” (Id., Q. Borba, XL) — “Ou en­
tão (releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu
agora tais ou quais remorsos...” (Id., Memorial, 1889, 25 de fev.)
V — de uma ressalva ou ob
a) exclusão: “Além disso (e n
os demais]), quando ama
ver...” (Id., Mem. póstumai
b) correção: “Achei-a outra; n
preocupação e cisma. Acl
“Cantiga velha”)
c) hipótese: “...os que houve
sessão inaugural da Uni
dessa obra grave...” (Id., .
d) advertência: “Titia disse là
(não diga nada) que seu p;
Esaú e Jacó, LII).
e) dúvida: “...o doutor João
(não sei, o protonatário i
meio inclinados a acabar
f) apelo (solicitação ou exigé
intercalada, parece consti
“Não deixe de comparece
“Venha almoçar conosco, j
com parecer”, “faço questãi
g) desejo ou esperança: “Voc*
tenção de ofendê-lo.” (É (
pero que você compreend
h) concessão (ou simples con<
“Comíamos, é verdade, ma
ces...” (M. de A., Memórias
intercaladas entre vírgulas
pada (“é verdade”, “é certi
sarnento concessivo, resultí
va (rever 1.6.7.2 — “Estr
Em estruturas da mesma
verdade”, de “é certo”, alg
a ou concordância com hip
dar”, “confessar”, “admitir”
mito, concordo, confesso),
adversativa (quase sempre
Nore-.se que, não sendo interc
equivalente "é certo”, pode presc
cessão, correspondendo assim a
quando recebeu a confirmação d
perdido grande parte do entusi.as
|_UFPE Biblioteca O n t
O t h o n
m
.
G a r c ia
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145
V — de u m a re ssa lv a o u o b se rv a ç ã o d e n o ta d o r a de:
a) e x c lu sã o : “Além disso (e r e firo -m e se m p r e a o s ca so s d efeso s [Le.} e x c lu e m -se
o s dem ais]), quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um de­
ver...” (Id.t M e m . p ó s tu m a s , CXXXI)
b) co rreç ã o : “Achei-a outra; não triste, nem silenciosa, mas com intervalos de
preocupação e cisma. Achei-a, d ig o m a l; no mom ento...” (Id, R e líq u ia s,
“Cantiga velha”)
c) h ip ó te s e : “...os que houverem lido teu recente discurso (s u p o n h a m o s ) na
sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão... o autor
dessa obra grave...” (7d, P a p éis a v u ls o s , “Teoria do m edalhão”)
d) a d v e rtê n c ia : “Titia disse lá em casa que D. Cláudia contara em segredo
(não diga n a d a ) que seu pai vai ser nomeado presidente da província.” (/d,
E sa ú e Ja có , UI).
e) duvida; “...o doutor João da Costa enviuvou há poucos meses, e dizem
( n ã o se i , o p r o to n a tá r io é q u e m e c o n to u ), dizem que os dois andam
meio inclinados a acabar com a viuvez...” (7d„ D. C a s m u r r o , C)
0 a p e lo (solicitação ou exigência), em estruturas tais que a parentética, ou
intercalada, parece constituir um caso de oração principal transposta:
“Não deixe de comparecer, p e ç o -lh e , ao em barque do nosso amigo.” —
“Venha almoçar conosco, fa ç o q u e s tã o .” (Cf.: up e ç o -lh e que não deixe de
com parecer”, “fa ç o q u e s tã o de que venha alm oçar”.)
g) d esejo ou e s p e ra n ç a : “Você há de compreender, es p e ro , que não tive in­
tenção de ofendê-lo.” (É outro caso de oração principal transposta: “Es­
pero que você com preenda...”)
h) co n c essã o (ou simples concordância com hipotética ou explícita objeção):
“Comíamos, é v e r d a d e , mas era um comer virgulado de palavrinhas do­
ces...” (M. de A., M e m ó ria s p ó s tu m a s , LXXIII). — Essas parentéticas — ou
intercaladas entre vírgulas —, que assumem geralmente feição estereoti­
pada (“é verdade”, “é certo”), infiltram-se num período que encerra pen­
sam ento concessivo, resultante da presença nele de uma oração adversativa (rever 1.6.7.2 — “Estruturas sintáticas opositivas ou concessivas”).62
Em estruturas da mesma natureza, costumam aparecer, em lugar de “é
verdade”, de “é certo”, alguns verbos que expressam a idéia de anuência
a ou concordância com hipotética ou explícita objeção, tais como “concor­
dar”, “confessar”, “admitir”, “reconhecer”; cf.: “Comíamos (reconheço, ad­
mito, concordo, confesso), mas era um comer...”. Quando não há oração
adversativa (quase sempre introduzida por “m as”), fica apenas a idéia de
82 Note-se que, não sendo intercalada, e sim a principal do período, Mé verdade*', como a sua
equivalente “é certo", pode prescindir de uma oração adversativa para indicar a idéia de con­
cessão, correspondendo assim a uma oração introduzida por “embora”: “Ficou muito feliz
quando recebeu a confirmação do convite para assessor de imprensa. E verdade que já tinha
perdido grande parte do entusiasmo... (= embora já tivesse perdido...)."
concordância ou de confirmação: “Encalveceu mais, é certo, terá menos
carne, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija aos sessenta anos.” (Esaú
e Jacó, XXXII) — ‘Você também não era assim, quando se zangava com
alguém... — Quando me zangava, concordo; vingança de menino.” (W.,
Dom Casmurro, CXII) — Por confinarem semanticamente com os de elo­
cução, esses mencionados verbos entram — geralmente na 3§ pessoa —
como núcleo do predicado das orações intercaladas ditas “de citação”, tí­
picas do discurso direto (ver a seguir itens 2 e 3): cf.: “Comíamos, é ver­
dade (= reconheço, confesso, admito), mas era um comer virgulado de
palavrinhas doces — concordou (admitiu, reconheceu, confessou) ele.”
2. (servem) para notações descritivas (de um gesto, atitude, modo de falar),
inseridas pelo narrador na fala de uma personagem: “Deus, disse ele, de­
pois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa péro­
la da coroa divina (e o oradoi; arrastava tiiunfalmente esta frase de uma
ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista.”
(id., Papéis avulsos, “O alienista”)
3. para indicação, no discursos direto, do interlocutor que está com a pala­
vra, bem como do autor ou fonte de uma frase citada (trata-se aqui das
parentéticas, justapostas ou intercaladas ditas “de citação”, nucleadas
sempre em verbos dicendi, ou vicários deles; ver, a seguir, 3.0 e 4.0):
“Você parece que não gosta de mim, disse-lhe um dia Virgüia. — Virgem
Nossa Senhora! exclamou a boa dama...” (/d., Mern. póst., LXXIII)63
3.0 Discursos c
3.1 Técnica do diál
Ao transm itir pensair
ria, o narrador pode servii
zes, de um a contaminação
ou misto ou semi-indireto.
No discurso direto —
duz (ou im agina reproduzir
personagens ou interlocutor
Carlota, que ests
motivo paia deixar de a
— Estou com prc
— Bom, é um m<
rá escapar de Mère Blan
— Quem sabe va
No primeiro parágrafo
vras apenas a essência do
Carlota: “Carlota (...) observ
xar de atender ao pedido de
A parte restante do ti
traduzem o pensam ento das
rador) são as mesmas que
mesm as idéias poderiam, en
curso indireto:
63 Há outra ciasse de justapostas ou intercaladas — constituídas pelos verbos impessoais “h a­
ver” ou “fazer”, cujo complemento é uma expressão denotadora de tempo — as quais têm
sem pre valor adverbial: “quando o conheci, já fa z mais de dez anos, ele ainda era inspetor de
alunos”; “todos já saíram há quase um a hora”. São, em essência, simples adjuntos adverbiais
de tempo e, por isso, raram ente vêm entre parênteses.
Eu disse-lhe (a Cai
me respondeu que era ui
escapar de Mère Blandine
3.0 Discursos direto e indireto
3.1 Técnica do diálogo
Ao transm itir pensam ento expresso por personagem real ou im aginá­
ria, o narrador pode servir-se do discurso direto ou do indireto, e, às ve­
zes, de um a contaminação de ambos — o cham ado discurso indireto livre
ou misto ou semi-indireto.
No discurso direto — a oratio recta do latim —, o narrador repro­
duz (ou im agina reproduzir) textualm ente as palavras — i.e., a fala — das
personagens ou interlocutores:
C a rlo ta, q u e estav a a m eu lado , o b se rv o u q u e, afin al, eu n ã o tin h a
m o tiv o p a ra d e ix a r d e a te n d e r ao p e d id o d e M ère B lan d in e (...)
— E stou com p re g u iç a e s te an o , d isse-m e.
— Bom, é u m m o tiv o resp eitáv el, re s p o n d e u ; m as você n ão co n se g u i­
rá e s c a p a r d e Mère B lan d in e (...)
— Q u em sa b e v aleria a p e n a v o lta r? p e rg u n te i (...)
(C iro d o s A njos, A bdias, p. 197)
No primeiro parágrafo, o Autor transm ite com as suas próprias pala­
vras apenas a essência do pensam ento da personagem ou interlocutora
Carlota: “Carlota (...) observou que, afinal, eu não tinha motivo para dei­
xar de atender ao pedido de Mère Blandine." Trata-se de discurso indireto.
A parte restante do trecho está em discurso direto: as palavras que
traduzem o pensamento das personagens (uma das quais é o próprio n ar­
rador) são as mesmas que teriam sido, presumivelmente, proferidas. As
mesmas idéias poderiam, em essência, assumir a seguinte versão em dis­
curso indireto:
Eu disse-lhe (a C a rlo ta) q u e e sta v a co m p reg u iç a n a q u e le a n o , e ela
m e respondeu q u e e ra u m m otivo resp e itá v el, m a s q u e eu n ão co n seg u iria
e s c a p a r d e Mère B landine. E ntão, perguntei se v a le ria a p e n a voltar.
148
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Os verbos (disse, respondeu, perguntei), que no discurso direto indi­
cam o interlocutor que está com a palavra, fazem parte de orações ju sta­
postas, independentes, já que o enlace com a fala da personagem prescin­
de de qualquer conectivo, havendo apenas, entre as duas orações, uma li­
geira pausa, marcada ora por um a vírgula, ora por u m travessão.
No discurso indireto — a oratio obliqua do latim —, esses verbos
constituem o núcleo do predicado da oração principal: eu disse..., ela me
respondeu..., eu perguntei..., cujo complemento (objeto direto) é representa­
do pelas orações que se lhes seguem, introduzidas pelos conectivos que
(para dizer, responder e seus equivalentes) e se (para perguntar e seus equi­
valentes). Em outras situações, funcionam tam bém como partículas de liga­
ção os pronom es e os advérbios interrogativos indiretos (quem, qual, on­
de, como, quando, por que, etc.):
I n t e r r o g a ç ã o D ireta
I n t e r r o g a ç ã o I n d ir e t a
(discurso direto)
(discurso indireto)
In te rro m p i-o p e rg u n ta n d o -lh e conto
ia o G o n za g a.
...o sim p á tic o in fo rm a n te (...) p e r­
g u n to u -m e :
— Por q u e n ã o se ou v e a S e c re ta ­
ria d e P ro p a g a n d a , e m R om a?
(Id. ibid., p. 8 0 )
...o sim p á tic o in fo rm a n te (...) perg u n to u -m e p o r que n ã o se o u v ia a Se­
c re ta ria d e P ro p a g a n d a , em R om a.
(P e rg u n to u ) qu em
sua co n sciê n cia .
acreditaria
3.2 Verbos dícei
Os verbos dicendi,
está com a palavra, pen
um a das quais inclui vár
F nterrom pi-o p e rg u n ta n d o : — E o
G o n zag a, com o vai?
(L. B a rre to , Vida e m orte..., p. 145)
(P e rg u n to u :)
— Q u e m a c re d ita rá e m su a co n s­
ciência?
(Id. ibid., p. 1 3 7 )
ante de si”.65 Por isso
nos, convictos da vanta
form a de quadros conc
m étodo de narração, at
que se compraziam os ]
reto perm ite m elhor ca
de m aneira mais viva,
de expressão (gíria, mo
narrador incorpora na s
nos apenas a essência d
em
A esses verbos que, no discurso direto, indicam o interlocutor e, no
indireto, constituem o núcleo do predicado da oração principal, chamam
os gram áticos verbos “de elocução”, dicendi ou declarandi, e, a muitos dos
seus vicários, sentiendi.^
No discurso direto, o narrador “emerge do quadro da história visua­
lizando e representando o que aconteceu no passado, como se o tivesse di-
64 Dicendi, declarandi e senfiendi são genitivos do gerúndio dos verbos dicere, dedarare. e sentire, respectivamente, e significam: de dize?; de declarar,; de sentir.
a) de
de
c) de
d) de
e) de
0 de
g) de
h ) de
i) de
b)
dizer (afirmar, de<
perguntar (indaga
responder (retruca
contestar (negar, (
concordar (assenti
exclamar (gritar, t
pedir (solicitar, ro;
exortar (animar, a
ordenar (mandar,
Esses são os mais
dalm ente na literatura d
específicos, mais caractei
65 JESPERSEN, Otto. The philc
vre em Machado de Assis”, in:
CÂMARA JR., J. Matoso, ar
Eis alguns deles em lista c
dar, explicar, esclarecer, suge
mentar, repetir, estranhar, insi
tir, dissentir, aprovar, acudir, ii
trapor, desculpar, justificar(-se
se, ameaçar, atalhar, cortar (J
(M. de A., Mem. póst, p. 218)
ror, Perto do cor., p. 130), len
ção, ou vicários deles.
U F P E 8 iblioteca Centr?
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
149
ante de si”.65 Por isso é “am plamente utilizado pelos romancistas m oder­
nos, convictos da vantagem da evocação integral dos fatos narrados sob a
forma de quadros concretos, que se vão sucedendo, em contraste com o
método de narração, abstraída de um mom ento e um lugar, definidos, em
que se com praziam os primeiros novelistas do séc. XVHI”.66 O discurso di­
reto perm ite melhor caracterização das personagens, com reproduzir-lhes,
de m aneira mais viva, os matizes da linguagem afetiva, as peculiaridades
de expressão (gíria, modismos fraseológicos, etc.). No discurso indireto, o
narrador incorpora na sua linguagem a fala das personagens, transm itindonos apenas a essência do pensamento a elas atribuído.
3.2 Verbos dicendi ou de elocucào
i
Os verbos dicendi, cuja principal função é indicar o interlocutor que
está com a palavra, pertencem, grosso modo, a nove áreas semânticas, cada
uma das quais inclui vários de sentido geral e muitos de sentido específico:
a)
b)
c)
d)
e)
f)
g)
h)
i)
de
de
de
de
de
de
de
de
de
dizer (afirmar, declarar);
perguntar (indagar, interrogar);
responder (retrucar, replicar);
contestar (negar, objetar);
concordar (assentir, anuir);
exclamar (gritar, bradar);
pedir (solicitar, rogar);
exortar (animar, aconselhar);
ordenar (mandar, determ inar).
Esses são os mais comuns, de sentido geral; mas muitos autores, espe­
cialmente na literatura do nosso século, costumam servir-se de outros, mais
específicos, mais caracterizadores da fala.67 Chegam mesmo, os mais imagi-
65 JESPERSEN, Otto. The philosophy o f grammai; p. 258, ap. Câmara Jr., M. “Estilo indireto li­
vre em Machado de Assis”, in: MISCELÂNEA de estudos em honra de Antenor Nascentes.
66 CÂMARA JR., J. Matoso, artigo citado.
67 Eis alguns deles em lista caótica: sussurrar, murmurar, balbuciar, ciciar, cochichar, segre­
dar, explicar, esclarecer, sugerir, soluçar, comentar, tartam udear, propor, convidar, cum pri­
mentar, repetir, estranhar, insisir, prosseguir, continuar, ajuntar, acrescentar, arriscar, consen­
tir, dissentir, aprovar, acudir, intervir, repelir, rosnar, berrar, vociferar, inquirir, protestar, con­
trapor, desculpar, justificar(-se), largar (M, Rebelo, Mar., p. 168), tornar, concluir, escusarse, ameaçar, atalhar, cortar (J. Amado, Pastores..., p. 61), bramir, m entir (E. Ver.), respirar
(M. de A., M em . póst, p. 218), suspirar (/d., D. Casn i., p. 277), rir (“-rira Joana”, C. Lispector, Peno do cor., p. 130), lembrar... A língua portuguesa é riquíssima em verbos de elocu­
ção, ou vicários deles.
150
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
nativos, a em pregar verbos que nenhum a relação têm com a idéia de elo­
cução, o que, do ponto de vista da sintaxe, poderia ser considerado como
inadmissível pois os dicendi deveriam ser, teoricamente pelo menos, transiti­
vos ou admitir transitividade. Mas a língua não é rigorosamente lógica, prin­
cipalmente a falada, cuja sintaxe é ainda menos rígida. Nem precisa sê-lo
para tornar-se expressiva; pelo contrário, quanto mais expressiva, quanto
mais viva, quanto mais espontânea, tanto menos logicamente ordenada. A
carga de expressividade, os matizes afetivos tão característicos na língua oral
não teriam veículo adequado, se os ficcionistas se limitassem, por uma ques­
tão de rigidez lógico-sintática, aos legítimos verbos dicendi.
É verdade que às vezes a “heresia lógico-sintática” em nada contri­
bui p ara a expressividade dos diálogos, como é o caso, para citar apenas
um exemplo, do em prego do verbo “fazer” como se fosse vicário de qual­
quer dicendi (ver 4.0 “Disc. ind. livre”): ‘Já era tempo, fe z Carlos..." (Lima
Barreto, Triste fim ..., p. 274), certamente por influência do francês.
Outras vezes, a situação que se cria chega a ser estranha, quando não
absurda, como é o caso daquele autor que em vez de “disse Fulano” em pre­
gou “mergulhou Fulano seu biscoitinho no chá” (exemplo que cito de segun­
da mão e de memória, sem que me seja possível no momento identificar a
fonte). M arouzeau,68 comentando o abuso no emprego de variantes dos ver­
bos dicendi, cita um exemplo de Alphonse Allais: “— Quel système? nous in­
terrompîmes-nous de boire." Clarice Lispector usa alguns estranhos: “— A
tortura de um homem forte é maior do que a de um doente — experimenta­
ra fazê-lo falar” (Perto do coração..., p. 102); “— Mas não se assuste, a infe­
licidade nada tem a ver com a maldade, rira Joana.” (Jd., p. 130). C. Heitor
Cony, que, aliás, usa poucos verbos dicendi, às vezes se serve de alguns in­
sólitos: “— Hotel Inglês — atendem” (em vez de respondem ao telefone)
»— Hotel Inglês? — Cláudio decifra a charada.” Com freqüência emprega
apenas um auxiliar: “Cláudio senta-se no meio da cama, abaixa a cabeça e
começa (i.e., começa a dizer): — Um anão era o Sol, outro o Vento” (Tijolo
de segurança, p. 101 e 189). B. Lopes serviu-se de um dicendi metafórico
bastante expressivo: “Sim — violinara...” (em Plumário, p. 47).
Mas há uma classe bastante numerosa de verbos de elocução, emprega­
dos com freqüência a partir do realismo, que não são propriamente “de dizer"
mas “de sentir”, e que, por analogia, podem ser chamados sentiendi: gemer,
suspirar lamentar(-se), queixar-se, explodir, encavacar, e outros, que expres­
sam estado de espírito, reação psicológica de personagem, emoções, enfim:
— Qual! gemia ele, desamparam-me (M. de A., Mem. póst., p. 319).
Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, é suspirou:
|
|
— O coitadinho ti
ríssimo, op. cit., p. 129).
Mas João de Deu:
,
— Você pensa, se
ções (sic)? (Jd. íbid., p. 1
... o bom Silvério
l
— Ah! V Exâs rier
Esses e seus similares
1 di, com função predominanti
! ou qualquer manifestação de
te que não adm item de forar.
i de regra, antepostos à fala, c
ponto de vista lógico-sintátio
cia de um legítimo dicendi o
I ou “explode, d i z e n d o Mas t<
| é inadmissível, a menos que :
tiendi no gerúndio: “— O co:
I lamentando-se (seria insólito ‘
I
O utra função dos dicen
i o interlocutor que está com a
adverbiais (quase sempre rec
adverbial com que o narrado
lhes a reação física ou psíquk
— Dá licença? perj
— Está bom, acabo
O narrador hábil, que se
berá tirar proveito dessas opoi
e sentiendi, juntando-lhes oraçt
vai pouco a pouco retratando
não sobrecarregar todas as fala
enfadam o leitor mas também
— Mas viessem! (kl ibiá., p. 330).
3.3 Omissão dos verb
68 précis de stylistique française, p. 158.
N em sem pre os verbos i
da, por exemplo, omiti-los n a
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
151
— O c o ita d in h o te m a n d a d o tã o ab o rrecid o ! — la m e n ta -se e la (E. Ve­
ríssim o, o p . cít., p. 1 2 9 ).
M as J o ã o d e D eus, v e n d o q u e Vasco n ã o lh e d á a te n ç ã o , exp lo d e:
— Você p e n sa , se u Vasco, q u e e sto u d isp o sto a a tu r a r su a s m a lcria­
ções (sic)? (Id. ib id ., p. 1 5 5 ).
... o b o m S ilvério en ca va co u :
— Ah! V Exas riem ?... (Eça, A C id.3 p. 2 9 0 ).
Esses e seus similares constituem um a espécie de vicários dos dicen­
di, com função predom inantem ente caracterizadora de atitudes, de gestos
ou qualquer m anifestação de conteúdo psíquico, e quando o narrador sen­
te que não adm item de forma alguma a idéia de transitividade, eles vêm,
de regra, antepostos à fala, como no caso de “encavacou” e “explode”. Do
ponto de vista lógico-sintático, esses verbos sentiendi presum em a existên­
cia de um legítimo dicendi oculto: “...o bom Silvério encavacou, dizendo”,
ou “explode, d i z e n d o Mas tal só é possível quando antepostos. Pospostos,
é inadmissível, a menos que se alterne a forma dos verbos, pondo-se o sen­
tiendi no gerúndio: “— O coitadinho tem andado aborrecido! — disse ela
lamentcindo-se (seria insólito “lamenta-se ela dizendo”).
O utra função dos dicendi — a principal, já anotamos, é a de indicar
o interlocutor que está com a palavra — é permitir a adjunção de orações
adverbiais (quase sempre reduzidas de gerúndio) ou expressões de valor
adverbial com que o narrador sublinha a fala das personagens, anotandolhes a reação física ou psíquica:
— Dá licença? p e rg u n to u m e te n d o a cabeça p e la p o rta .
(M. d e A., D. C asm ., p. 3 7 3 )
— E stá b o m , ac ab o u , d isse eu fin a lm e n te .
(Id. ib id ., p. 161)
O narrador hábil, que seja observador e analista da alma humana, sa­
berá tirar proveito dessas oportunidades que lhe oferecem os verbos dicendi
e sentiendi, juntando-lhes orações ou expressões breves e concisas com que
vai pouco a pouco retratando o caráter de suas personagens. Mas convém
não sobrecarregar todas as falas com essas adjunções, que não só cansam ou
enfadam o leitor mas também prejudicam a espontaneidade dos diálogos.
3.3 Omissão dos verbos dicendi
Nem sem pre os verbos dicendi estão expressos. É norm a generaliza­
da, por exemplo, omiti-los nas falas curtas entre apenas dois interlocuto­
152
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P r osa
M o d e r n a
res, bastando, p ara orientar o leitor, a abertura de parágrafo precedido por
travessão, como é de praxe na maioria das línguas m odernas, com exce­
ção do inglês, que usa aspas antes e depois de cada fala ou de cada frag­
m ento de fala. O seguinte exemplo, de José de Alencar, é típico dessa nor­
m a; são apenas dois os interlocutores, e, com exceção d a inicial, acom pa­
nhada do “perguntou”, todas as falas vêm sem dicendi:
recuados do nosso tempo, 1
José de Alencar no que res;
aos de sentido específico. S
bastante.
3.4 Os verbos e os
Q u a n to s sã o ? p e rg u n to u o h o m e m q u e c h e g a ra .
V inte ao todo.
I — Verbos
R estam -n o s...
Salvo os casos sujeite
cos da frase, em contextos s
os m odos verbais nos diseur
ficiente para perm itir um a t<
ticos. É isso que se procura
D ezenove.
Bem . A se n h a ?
P ra ta .
E o fogo?
Quando o verbo da f;
ção justaposta, no pretérito ;
feito do mesmo modo, mas
P ro n to .
A o n d e?
N o s q u a tro cantos.
Q u a n to s so b ram ?
D is c u r s o D ire t o
D ois a p e n a s.
(Guar., p. 18 0 )
A brevidade das falas e a tensão nervosa das duas personagens tor­
nariam im portuna a inclusão desses verbos: — imagine-se a monotonia da
série “perguntou”, “respondeu”, “perguntou”, “respondeu”, repetição abso­
lutam ente desnecessária por se tratar de apenas dois interlocutores, cujo
estado de espírito o narrador se “julga” incapaz de retratar, tão rápidas são
as palavras que trocam na expectativa de um acontecimento dramático.
Nas falas longas, os verbos dicendi usuais, i.e., os de sentido mais
geral, aparecem quando o narrador acha conveniente sublinhar o estado
emotivo das personagens, ou então quando lhe parece necessário ajudar o
leitor a identificar o interlocutor.
Portanto, a inclusão pura e simples de apenas verbos dicendi de sen­
tido geral, do tipo “disse ele”, “perguntou ele”, desacom panhados de ora­
ções ou adjuntos adverbiais, só se justifica quando tem propósito esclarece­
dor. Fora disso, o diálogo torna-se enfadonho.
Alguns autores modernos chegam ao extremo de omiti-los quase sis­
tem aticam ente, como Carlos H. Cony: nas 237 páginas de Tijolo de segu­
rança eles não vão, talvez, a três dezenas, quase todos insólitos. Outros
contem porâneos, como Ciro dos Anjos, em Abdias, ou Érico Veríssimo, nos
rom ances da prim eira fase, deles se servem sem parcimônia. Entre os mais
— E stou co m p reg u iç a esi
d isse-lh e.
M antém-se, entretante
declarada na oração integra
la: “Disse-lhe que estou corr
fala expressa um juízo, um
proverbial, notória, tradicioi
de diálogo, e sim de simples
D is c u r s o D ire t o
— O re m o rso é o bom p
to d o s m au s, d iss e G arre tt.
— A n o ite é b o a co n selh e
s a b e d o ria popular.
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
153
recuados do nosso tempo, Machado de Assis é mais parcimonioso do que
José de Alencar no que respeita aos de sentido geral, e mais fértil quanto
aos de sentido específico. Sob esse aspecto, Machado e Eça se aproximam
bastante.
3.4 Os verbos e os pronomes nos discursos direto e indireto
I — Verbos
Salvo os casos sujeitos a variações decorrentes de torneios estilísti­
cos da frase, em contextos singulares, a correspondência entre os tempos e
os modos verbais nos discursos direto e indireto apresenta regularidade su­
ficiente para perm itir um a tentativa de sistematização com propósitos didá­
ticos. É isso que se procura fazer nos tópicos seguintes.
Quando o verbo da fala está no presente do indicativo e o da ora­
ção justaposta, no pretérito perfeito, o primeiro vai para o pretérito im per­
feito do mesmo modo, mas o segundo não sofre alteração:
D is c u r s o D ir e t o
D isc u r so In d ir e t o
— Estou com preguiça este ano,
disse-lhe.
Disse-lhe que estava com preguiça
naquele ano.
Mantém-se, entretanto, o pres. ind. no discurso indireto, se a ação
declarada na oração integrante perdura ainda no m om ento em que se fa­
la: “Disse-lhe que estou com preguiça este ano.” Assim também quando a
fala expressa um juízo, um a opinião pessoal ou tem feição de sentença
proverbial, notória, tradicional; mas, então, já não se trata propriam ente
de diálogo, e sim de simples frase de citação:
D is c u r s o D ir e t o
D is c u r s o In d ir e t o
— O remorso é o bom pensamen­
to dos maus, disse Garrett.
Garrett disse que o remorso é o bom
pensamento dos maus.
— A noite é boa conselheira, diz a
sabedoria popular.
Diz a sabedoria popular que a noi­
te é boa conselheira.
1 5 4
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P r osa
M o d e r n a
Se ambos estão no presente do indicativo, continuam no mesmo
tem po e m odo no discurso indireto:
D is c u r s o D ir et o
I
— E stou co m
d iz ele.
p reg u iç a e ste a n o ,
D is c u r s o In d ir eto
Ele d iz q u e está com p re g u iç a este
an<J.
Convém notar, entretanto, que o verbo dicendi só costuma aparecer
no presente do indicativo quando um dos interlocutores serve de intérpre­
te entre dois outros, porque a fala não foi ouvida ou entendida.
Quando uma interrogação direta, com o verbo no presente do indi­
cativo, implica dúvida quanto a um a resposta afirmativa, no discurso in­
direto se usa o futuro do pretérito, em vez do imperfeito do indicativo,
que seria o norm al:
D is c u r s o D ir eto
D is c u r s o In d ir e t o
— R ep ara, d isse-m e G o n zag a d e
S á , co m o e s ta g e n te se m ove sa tisfe i­
ta . P ara q u e irem o s p e rtu rb á -la com
n o ssa s angustieis e n o sso s d esesp e ro s?
N ã o se ria m a l?
— Q u em sa b e (se) vai
v o lta r? — p e rg u n te i.
Estando o verbo d;
vo, o primeiro assume a
— Foi u m m o tiv o respei
Usa-se o imperfeitc
direto o verbo da fala est
— Chora no m eu peito
co m o v id a.
Nesse caso — imp<
disc. ind. o auxiliar “devei
ção é “dizer”; mas, via de
do o verbo dicendi perteni
É u m ca so d e consciência.
— D e q u e m c vaie e s se te s te m u i n h o ? Q u e ip te m a c e r te z a d a s s u a s
j re v e la ç õ e s? Q u e m a c r e d ita r á n a su a
I c o n s c iê n c ia ? S o u p e la d ú v id a sistei m á tíc a ...
Mas, se estiver no
(P e rg u n to u ) d e q u e lh e valeria a q u e le
te s te m u n h o e (p e rg u n to u ) q u e m teria
c e rte z a d as s u a s rev elaçõ es e q u e m
a c re d ita ria n a s u a co n sciên cia.
(L. B a rreto , V ida e m o rte..., p. 13 7 )
D is c u r s o D ir e t o
— C h o ra n o m e u p eito , i
— A p e rte m os cin to s, p
d a , o rd e n a ) o M in istro d a Fs
Note-se que os verbos “vale” e “tem ” da terceira fala do discurso di­
reto passaram a “valeria” e “teria” no indireto.
Quando o verbo da fala está no futuro do presente (“acreditará”, no
exemplo supracitado), no discurso indireto ele vai para o futuro do pretéri­
to (“acreditaria”, no mesmo exemplo).
O imperfeito do ir
em bora seja comum consei
O th o n
M.
G a rc ia
♦
155
Mas, se estiver no futuro do pretérito, não haverá alteração:
|
— Q u em sa b e (se) v a le ria a p e n a
I v o lta r? — p e rg u n te i.
P e rg u n te i se v a le ria a p e n a voltar:
Estando o verbo da fala e o dicendi no pretérito perfeito do indicati­
vo, o primeiro assume a forma de mais-que-perfeito no discurso indireto:
— Foi u m m otivo resp e itá v el, disse.
D isse q u e tin h a sid o um m o tiv o res­
peitáv el.
Usa-se o imperfeito do subjuntivo no discurso indireto, quando no
direto o verbo da fala está no imperativo:
— C hora n o m e u p e ito — disse ela
c o m o v id a.
Ela d isse co m o v id a q u e (ele) chorasse n o seu peito.
(C am ilo , A m o r d e sa lv a ç ã o , p. 120)
Nesse caso — imperativo no verbo da fala — é comum aparecer no
disc. ind. o auxiliar “dever” (e às vezes “poder”), quando o verbo de elocu­
ção é “dizer”; mas, via de regra, usa-se o subjuntivo (sem o auxiliar), quan­
do o verbo dicendi pertence à área de “pedir” ou “ordenar”:
D isc u r so D ir e t o
D isc u r so In d ir eto
— C h o ra no m e u p eito , disse ela
Ela d isse q u e ele d eve (d ev ia, p o ­
d e, p o d ia ) c h o ra r n o seu p eito.
— A p e rte m os cintos, p e d e (m an d a, o r d e n a ) o M in istro d a F azenda.
O M in istro d a F azen d a p ed e (m a n ­
d a, o rd e n a ) q u e a p e rte m o s os cintos.
O imperfeito do indicativo é substituído pelo futuro do pretérito,
em bora seja comum conservar-se como tal (rever 1.6.5.3, II, a):
156
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
— Ia visitá-lo, m as n ão tiv e te m ­
p o, clisse ele.
M o d e r n a
Ele disse q u e iria
(q u e) n ão tev e te m p o .
v isitá-lo,
m as
1
— T enho-o v is ita d o com
d a , d isse:
fn
J á o tin h a visita d o , disse.
(Note-se, de passagem, que aqui, ao contrário do que afirmamos an­
tes, se m antém o pret. perf., pois, no contexto, “ter tem po” indica fato pos­
terior à intenção de visitar, de forma que não é cabível o mais-que-perfei­
to, que expressa um fato passado anterioi; e não posterior, a outro tam ­
bém passado. Daí, “teve” em vez de “tivera”.)
Entretanto, se as ações expressas pelo verbo dicendi e pelo da ora­
ção integrante (no caso “dizer” e “ir visitar”) são simultâneas, ou concomi­
tantes, deve-se m anter o pret. imperf. do indicativo no discurso indireto.
Assim, em “Disse que ia visitá-lo” subentende-se “no m om ento em que dis­
se, estava indo”, e não “que pretendia ir”, tanto assim que, se usarmos a
locução “ter o propósito, ou a intenção, de ir”, só poderem os em pregar o
pret. imperf. de “ter”, e nunca o fut. do pretérito, tempo este que, no caso
em pauta, já insinuaria a idéia de propósito ou intenção. “Disse que teria o
propósito de ir (ou “que pretenderia ir”) visitá-lo” é um a estrutura contrá­
ria k índole da língua.
Também o pretérito imperfeito do subjuntivo, assim como o futuro
do pretérito, se m antém no discurso indireto:
Se p u d esse, iria visitá-lo, disse.
— T ê -lo -ia visita d o , se d vess
te m p o , disse.
— Se o tivesse
c o n v id a d o , disse.
v isita d o ,
— A m an h ã à ta rd e já o tere
ta d o , d isse.
H — Pronomes
Os pronomes dem onsa
quer dizer, aqueles que apon
ou, acom panhados de um s\
dia), indicam o m om ento em
ano, esta hora), são, no disci
(aquele, aquela, aquilo; aquel
ao p retérito perfeito.
D isse q u e, se p u d e sse , iria v isita
isilá-lo.
—
E sto u com p re g u iç a este
disse.
O futuro do subjuntivo pode manter-se ou ser substituído pelo im­
perfeito do mesm o modo:
Se o verbo de elocução
vos continuam os mesmos:
— Se puder, ire i visitá-lo, d isse ele.
Disse q u e, se puder, irá visitá-lo (h i­
p ó te se realizável).
D isse que, se p u d e s s e , iria visitá-lo
(h ip ó te se irre a liz á v e l).
— E sto u com p reg u iç a este
d iz ele.
(É evidente que se deve m anter a correlação: puder-irá, pudesse-iria.)
Os tempos compostos não sofrem alteração, salvo quanto à pessoa,
que é sempre a terceira no discurso indireto:
t
Também o locativo adv
como o advérbio de tempo a g e
sando, respectivam ente, a lá e
UFRÊBibiiotecacent'
O t h o n
— Tenh o -o v is ita d o c o m
cia, d isse:
freq ü ên -
G ar c ia
♦
157
D isse q u e o te m v is ita d o co m freq ü ên c ia .
D isse q u e já o tin h a v isita d o .
— J á o tin h a v is ita d o , disse.
— T ê-lo -ia v is ita d o , se tivesse tid o
te m p o , disse.
tid o te m p o .
— Se o tivesse
c o n v id a d o , disse.
ria co n vid a d o .
v is ita d o ,
M.
tê -lo -ia
— A m an h ã à ta rd e já o terei visirado, disse.
D isse q u e o teria visita d o se tivesse
D isse que, se o tivesse visita d o , o te-
D isse q u è a m a n h ã à ta rd e já o
terá v isita d o .
II — Pronomes
Os pronomes dem onstrativos correspondentes à prim eira pessoa,
quer dizer, aqueles que apontam o objeto que está perto de quem fala
ou, acom panhados de um substantivo de sentido tem poral (ano, mês,
dia), indicam o m om ento em que se fala ou se age (este, esta, isto; este
ano, esta hora), são, no discurso indireto, substituídos pelos da terceira
(aquele, aquela, aquilo; aquele ano, aquela hora) se o verbo dicendi está
no pretérito perfeito.
—
E sto u co m p re g u iç a este ano,
D isse q u e esta v a com p re g u iç a naq u ele a n o .
disse.
Se o verbo de elocução está no presente, os pronomes dem onstrati­
vos continuam os mesmos:
—
d iz ele.
E stou com
p reg u iç a este ano,
Ele d iz q u e está co m p reg u iç a este
ano.
Também o locativo adverbial (ou advérbio pronominal) aqui assim
como o advérbio de tempo agora sofrem as necessárias acomodações, pas­
sando, respectivamente, a lá e naquele momento:
158
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P r osa
M o d e r n a
— E sioli a q u i , e m casa, m as agora n ã o p o sso rec eb ê-lo , disse.
D isse q u e e s ta v a lá, e m casa, m as
q u e n a q u e le m o m e n to n ã o p o d ia re c e ­
bê-lo.
Nos exemplos supracitad
ria inadmissível sua partição, a
fase a um desses fragmentos:
— Quem morreu —
Os pronomes possessivos, sejam quais forem no discurso direto,
irão, salvo raros casos excepcionais, para a terceira pessoa no discurso in­
direto. Confrontem-se as seguintes versões, adaptadas (“quarto” em vez de
“seio”) do trecho de Camilo:
;
— C h o ra no m e u q u a rto , disse ela
I ( = p e d iu , o rd e n o u )
Ela disse q u e ch o ra sse n o seu
q u a rto (seu d e la , re fe rin d o -se ao su je i­
to d e d isse).
|
Ela disse q u e
c h o ra sse n o seu
q u a rto (seu d ele, re fe rin d o -se ao su je i­
to d e c h o ra sse ).
]j
Ii
j
I
j ela.
— C h o ra n o teu q u a rto , disse ela.
—
C h o ra no q u a r to deles, disse
I
I
—
| ela.
C h o ra
no no sso
q u a rto , disse
— C h o ra n o n osso q u a rto , disse
; ela, i.e., n o q u a rto p e rte n c e n te ao s suI je ito s d e disse e d e ch o ra .
Ela disse q u e ch o ra sse no se u q u a r­
to (deles, relè rin d o -se a p e rso n a g en s
au sen te s).
Ela d isse q u e
c h o ra s se no seu
q u a rto (d ele s, d o su je ito d e disse e d e
m ais alg u ém q u e n ão o su je ito d e c h o ­
rasse) .
Ela disse q u e ch o ra sse n o seu q u a r­
to (deles).
— Isto — exclamou
caso em que a primeira parte d;
uma pausa longa, sobressairia n<
Além dessa intercalação (
(como sujeito e predicado, verb
com propósito enfático, o dicendi
três palavras iniciais a que na coi
— Sr. Pereira, disse C
se incomode comigo de mar
lá
— Pois então, retorqi
dentro ver as novidades (
O vocativo — “Sr. Pereir;
“pois então” — vêm sempre segi
Da mesma forma se interj
dependentes ou dois períodos:
— P u d era! — ex clam
d e u s , p o r á sp ero s se m ita s (..
3.5 Posição do verbo dicendi
No discurso direto de moldes tradicionais, vale dizer, vigorantes até
os prim órdios da escola realista, o verbo dicendi vem em geral no meio ou
no fim da fala, e excepcionalmente antes.
No fim, evidentem ente, quando a fala é muito breve e/o u constitui
um a unidade com entoação íntegra que lhe torne desaconselhável a ruptu­
ra em dois fragmentos com intercalação do dicendi:
— Q u e m m o rre u é rez ar-lh e pela a lm a — a ta lh o u com m á g ra m á ti­
ca, m as co m p ie d o sa in te n çã o , o tio p a d re H ilário.
— N ão e s tá cá! — a
p o r ca u sa d o av ô G alião (...)
— E curioso! — excla
— Isto p o r aq u i está
cio te m u m so b e rb o ar...
Mas, quer intercalado qu<
trapassa a terceira linha da fala;
(Camilo, op. cit., p. 37)
— Isto é um insu lto a to d o s — ex c la m o u D. J o s é d e N o ro n h a .
(Id. ibid ., p. 9 4 )
69 No monólogo não é raro. Lembramo
(Fronteira, 157), com verbo dicendi na a
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
159
Nos exemplos supracitados, as duas falas têm entoação tal, que se­
ria inadmissível sua partição, a menos que o autor quisesse dar m aior ên­
fase a um desses fragmentos:
— Q u em m o rre u — a ta lh o u ... — é re z a r-lh e p ela alm a.
— Isto — ex clam o u D. Jo sé d e N o ro n h a — é u m in su lto a to d o s.
caso em que a primeira parte da fala, posta em suspenso porque seguida de
uma pausa longa, sobressairia no discurso como o elemento mais enfatizado.
Além dessa intercalação entre dois termos mutuamente dependentes
(como sujeito e predicado, verbo e seu complemento, nome e seu adjunto)
com propósito enfático, o dicendi aparece com freqüência logo após as duas ou
três palavras iniciais a que na corrente da fala se segue uma pausa natural:
— Sr. P ereira, d isse C irino re c o sta n d o -se a u m a só lid a m a rq u e sa , n ão
sc in c o m o d e com igo d e m a n e ira a lg u m a (...)
— Pois e n tã o , re to rq u iu o m in e iro , d e ite -se u m p o u co e n q u a n to vo u
lá d e n tro v e r as n o v id a d es (...)
(Taunay, Inocência, p. 8 0 )
O vocativo — “Sr. Pereira” — e a partícula de valor conclusivo —
“pois então” — vêm sempre seguidos de um a ligeira pausa na língua falada.
Da mesma forma se interpõe o verbo dicendi entre duas unidades in­
dependentes ou dois períodos:
— P u d era! — ex c la m av a o m e u P ríncipe. — U m livro esc rito p o r ju ­
d e u s , p o r á sp e ro s se m ita s (...)
— N ão e s tá cá! — ac u d iu Ja c in to . — Vim a T orm es e x p re ssa m e n te
p o r ca u sa d o avô G alião (...)
— É curioso! — ex clam o u Ja c in to . — P arec e o m e u p resé p io ...
— Isto p o r a q u i está lindo! — g rito u ele d e b aixo. — E o te u p a lá ­
cio te m um so b e rb o ar...
(Eça, A Cid., p. 2 6 6 , 2 4 7 , 3 6 7 , 3 3 9 e 3 0 5 )
Mas, quer intercalado quer posposto, o verbo dicendi raram ente ul­
trapassa a terceira linha da fala;69 o normal é vir na primeira, como pude-
No monólogo não è raro. Lembramo-nos de pelo menos um exemplo, em Cornélio Pena
(Fronteira, 157), com verbo dicendi na sétima linha.
160
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P rosa
M o d e r n a
mos verificar em alguns milhares de amostras em algumas dezenas de au­
tores, desde o romantismo até os nossos dias.
Às vezes, com o propósito de reavivar a naturalidade e espontanei­
dade características da língua oral, o narrador intercala curtas orações do
verbo dicendi nas falas muito longas, mas raram ente o faz depois de mais
de uma unidade de entoação, quer dizer, depois de um grupo de força,
como se diz em fonologia.
Nos diálogos filosóficos, do tipo socrático ou platônico, raram ente
aparece verbo de elocução, talvez por se tratar de dissertações doutriná­
rias que nada têm que ver com a naturalidade da língua falada. Nesse ca­
so, a indicação do interlocutor se faz como no gênero dramático, antepondo-se-lhe o nome à fala, tal como se pode ver em toda A República e na
quase-totalidade de O banquete, de Platão, pelo menos na versão de que
disponho.
Muitos escritores contemporâneos, principalm ente a partir do m oder­
nismo, preferem antepor o verbo dicendi ou um vicário seu, o que nos p a­
rece ser mais comum. Esse vicário é, de regra — como já assinalamos —,
um verbo com que se apontam sintomas de reação psicológica: o gesto, a
expressão do olhar, o tom de voz, a atitude, a posição do corpo:
O m e u P rín c ip e espreguiçara lo n g a m e n te o s b raço s: — N ão e s tá cla­
ro! e u é q u e hei d e v isitar te u tio (...)
(Eça, op. r it., p. 2 9 7 )
J a c in to fra n z ia o n a riz e n e rv ad o :
— M as, ao m e n o s, e s tã o feitos os estu d o s? (...)
(/d., op. cit., p. 77)
O d o id o esp a lm o u a m ã o n o ar, co m o b ra ç o e n f ia d o a tra v é s d a
g ra d e :
— Vá! Vá com D eus!... com D eus, n ão , q u e eu já a c ab e i co m a n e ­
c e ssid a d e d e D eus...
(R ach el d e Q u eiro z , João M ig u e l p* 170)
Eça de Queirós foi quem, em língua portuguesa, mais explorou, com
primazia, os recursos dessa técnica, principalmente em seu romance póstu­
mo A cidade e as serras. Mas o precursor parece ter sido Flaubert, em Madame Bovary (1857), com a diferença de que, no estilista francês, o que se
antepõe mais freqüentem ente é mesmo um verbo de elocução, e não um
vicário, veículo do conteúdo psíquico.
De qualquer forma, parece certo que a predom inância da anteposiçâo dos verbos dicendi d ata do realismo, Numa novela tipicam ente ro­
m ântica como Valentine (1832), de George Sand, ou na série de três n a r­
rativas que constituem Servidão e grandezas militares (1835), de Alfred
a e Vigny, am bas da fase
dos verbos dicendi vêm
(1832), de Stendhal, a<
apesar de já considerai
igualm ente um a percen
5%. No entanto, Madan
sições. No nosso José c
mesma de Valentine: 5°á
do nosso realismo, apes;
1857 e As rnemoVias de \
o verbo dicendi antepôs
M achado de Assis, mesn
porção não vai além <
(1881) e D. Casmurro 0
Essa preferência p
d a a partir de 1930, e c
chel de Queiroz, Os Co:
(1935), de José Américo
ríssimo, e Eurídice (1947
di antepostos é de cerca
3.6 A pontuação
O leitor deve ter n
ção do verbo dicendi veir
são. De propósito não un
que não nos cabia esse
deixar claro que há certa
Alguns autores, é a
do travessão inicial tambi
— “S ão as fér
im a g in a ç ã o ...”
O utros, como Ceei
aspas a fala, usando o t
dicendi:
“Você co stu m a
Pôr entre aspas a f<
teratura em língua ingles
0 TH O N
! auaneis do
mais
orça,
tente
rrináe caspone na
; que
.oder>s pa}S
—
sto, a
M .
Garcia
♦
161
de Vjgny, ambas da fase do apogeu do rom antism o francês, menos de 5%
dos verbos dicendi vêm antepostos à fala. Também Le rouge et le noir
(1832), de Stendhal, assim como Le Colonel Chabert (1832), de Balzac,
apesar de já considerados como de fase inicial do realismo, oferecem
igualm ente um a percentagem m ínim a de anteposições: mais ou menos
5%. No entanto, Madame Bovary já apresenta cerca de 45% de antepo­
sições. No nosso José de Alencar, a percentagem é aproxim adam ente a
mesm a de Valentine: 5%. Mas em M anuel Antônio de Almeida, precursor
do nosso realismo, apesar de contem porâneo de Alencar (O guarani é de
1857 e As memórias de um sargento de milícias, de 1855), encontram os já
o verbo dicendi anteposto em mais de 25% dos casos. Entretanto, em
Machado de Assis, mesmo nos rom ances e contos da fase realista, a p ro ­
porção não vai além de 25% em Memórias póstumas de Brás Cubas
(1881) e D. Casmurro (1900).
Essa preferência pela anteposição parece que se acentuou mais ain­
da a partir de 1930, e de tal forma, que em João Miguel (1932), de Ra­
chel de Queiroz, Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, O boqueirão
(1935), de José Américo de Almeida, Música ao longe (1935), de Érico Ve­
ríssimo, e Eurídice (1947), de José Lins do Rego, a percentagem de dicen­
di antepostos é de cerca de 65%.
tá cla). 2 9 7 )
p. 77)
:vés d a
3.6 A pontuação no discurso direto
O leitor deve ter notado que, nas citações que vimos fazendo, a ora­
ção do verbo dicendi vem separada da fala ora por vírgula, ora por traves­
são. De propósito não uniformizamos o sistema da pontuação, mesmo por­
que não nos cabia esse direito; mas não o fizemos principalm ente para
deixar claro que há certa indecisão quanto a esse aspecto.
Alguns autores, é verdade que raros, usam desnecessariamente além
do travessão inicial também as aspas:
n a nep. 17 0 )
u, com
póstuim Maque se
ião um
— “S ão as férias” — d isse-lh e este. “As férias, às vezes c o rro m p e m a
im a g in a ç ã o ...”
(D in ah S ilv eira d e Q u eiro z, in: Q uadrante 2 , p. 8 7 )
O utros, como Cecília Meireles (esta, ocasionalm ente), cercam por
aspas a fala, usando o travessão apenas para separar a oração do verbo
dicendi;
“Você co stu m a Ler os jo r n a is ? ” — p erg u n te i-lh e.
antepo;nte rorês nar: Alfred
(Jbid., p. 13 3 )
Pôr entre aspas a fala ou fragmentos dela parece ser influência da li­
teratura em língua inglesa, onde, como se sabe, as reticências são repre­
162
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
sentadas por um traço ( d a s l i ) , o que torna contra-indicado o emprego do
travessão, que com elas se confundiria. No Brasil não se usam senão quan­
do, ocasionalmente, o autor quer distinguir o diálogo do monólogo inserto
num parágrafo de discurso indireto puro ou livre; nesse caso, é de regra
omitir-se o travessão inicial:
A belardo, calm o, p aciente, d ava-lhe ouvido, sem le v a n ta r os o lh o s dos
papéis qu e ia se p a ra n d o e ro m p en d o . “Eu sei o n d e ela q u e r ch e g ar — dizia
consigo. — T udo isso é desabafo..."
(Jo su é M o n teio , A décim a noite, p. 171)
Também às vezes se põe entre aspas a fala isolada, de um interlocu­
tor, quando, inserida num parágrafo, não vem seguida de réplica, caso em
que tam bém se omite o travessão:
“A s e n h o ra n ã o sab e o m ilag re q u e m e a c o n te c e u ”, c o n to u -m e com
firm eza. “C om ecei a re z a r n a ru a, a re z a r p a ra q u e D eu s m e m a n d a sse u m
an jo q u e m e salvasse, fiz p ro m e ssa d e n ão co m er q u a s e n a d a a m a n h ã . E
D eus m e m a n d o u a se n h o ra .”
(C. Lispector, A legião estrangeira, p. 154)
No passado — e até mesmo no presente, mas de m aneira esporádi­
ca —, era mais comum cercar-se a oração do verbo d i c e n d i por meio de
vírgulas, salvo se o sentido da fala exigia ponto-de-exclamação, de-interrogação ou reticências:
— Sr. P ereira, disse C irino rec o stan d o -se a u m a s ó lid a m a rq u e sa , n ão
se in c o m o d e com igo d e m a n e ira alg u m a...
(Taunay, op.
c ll,
p. 35)
— Patrícios! Ó! gente! g rito u eie em se g u id a...
(Ic l, op. cit:., p. 36)
— A in d a n ão rep a re i, resp o n d i.
(I,. B a rre io , op. cit., p. 127)
o
Atualmente, entretanto, é de praxe cercar a fala ou fragmentos dela
por meio de travessões, para evitar, como acontece com freqüência, que se
confundam as palavras do autor com as da personagem:
— O b rig ad o . N ão q u e ro fu m a r — rep lico u , o lh o s caídos n a m e sa e
g u a r d a n d o o cig arro q u e ia le v ar ao s lábios. — D ê-m e o p ro b lem a. N ão foi
p a ra isso q u e m e ch a m o u ?
(J. M o n te io , op. cit., p. 125)
O t h o n
m
.
G arc ia
♦
163
Note-se que o travessão antes de “replicou” torna prescindível o ponto-período que seria normal depois de “fumar”. Raramente se usam os dois.
O travessão é indispensável quando afala que o precede vem segui­
da de ponto-de-interrogação, de-exclamação ou de reticências; neste caso,
um a simples vírgula seria absurda:
— V am os... — disse Je su ín o .
— O n d e ? — fez O tália.
(Jorge Amado,
P a sto res...,
p. 38)
— Marialva! — cortou Mariim brusco, o rosto fechado.
CId. ibid., p. 61)
Em suma: nas obras mais recentes, ou em muitas reedições atualiza­
das de antigas, se vêm firmando as seguintes normas, segundo pudemos
observar em inúm eros autores:
a) travessão inicial em vez de aspas;
b) oração do verbo dicendi precedida por travessão
ouvírgula;
c) aspas só para fala isolada dentro de parágrafo em discurso indireto,
quando não seguida de réplica;
d) o travessão torna prescindível qualquer outro sinal de pontuação, salvo
os pontos-de-interrogação, de-exclamação e as reticências;
e) novo período de fala no mesmo parágrafo, após a oração do verbo di­
cendi, deve vir precedido por travessão, para que não se confundam p a­
lavras do autor com as da personagem;
f) a oração do verbo dicendi, quando intercalada na fala, pode vir tam ­
bém cercada por vírgulas, em vez de travessões, desde que o fragmen­
to da fala que a preceda não exija ponto-de-interrogação ou de-excla­
mação ou reticências;
g) quando a oração do verbo dicendi precede toda a fala, deve vir obriga­
toriam ente seguida de dois-pontos;
h) qualquer que seja a posição da oração do verbo dicendi, não se costu­
m a separá-la da fala por meio de um ponto.
São essas as normas geralmente seguidas pelos autores modernos,
quer como resultado de um acordo tácito, quer como conseqüência de con­
venções adotadas pelas editoras mais importantes.
4.0 Discurso indireto livre ou sem í-indíreto
Se os discursos direto e indireto, como formas de expressão peculiares
o gênero narrativo, são tão antigos quanto a própria linguagem, o chamado
iscurso ou estilo indireto livre é relativamente recente. O latim e o grego
.esconheciam-no. Charles Bally70 encontrou traços dele no francês antigo,
nas não no período do Renascimento. Rabelais dele se serviu ocasionalmene. Era, segundo ainda Bally, o processo favorito de La Fontaine. Mas os clásicos, dada a influência da sintaxe latina, não o empregaram. Na literatura
uso-brasileira da era clássica, não há dele senão esporádicos exemplos, cono, segundo nos lembra o Prof. Rocha Lima, o de Camões (Lus. VIII, 1):
N a p rim e ira fig u ra se d e tin h a
O C a tu a l, q u e v ira e s ta r p in ta d a ,
Q u e p o r d iv is a u m ramo na m ão Linha,
A b a rb a b ra n c a , lo n g a e p e n te a d a :
“Quem era e por que causa lhe convinha
A clivisa, que tem na mão tomada?”
Trata-se (versos quinto e sexto) de pergunta que faz o Catual a Pau­
lo da Gama; portanto, discurso direto. No entanto, os verbos “era” e “con­
vinha” (quinto verso), dada a situação, surgerem discurso indireto. O total
d a fala é, assim, um vestígio de discurso misto ou, pelo menos, de discur­
so direto livre.
O que é certo, porém, é que, a partir dos m eados do século XIX, o
estilo indireto livre começou a generalizar-se, por influência de Flaubert e
Zola. No entanto, somente em 1912 foi que Charles Bally chamou a aten­
ção para a nova técnica, até então ignorada pelas gramáticas,71 à qual deu
70 “Le style indirect libre en français moderne”, artigo publicado na revista Gennanisch-Romanisch
Monatschrift em 1912.
71 Porque, diz Bally, “o estilo indireto livre 6 uma forma dc pensamento, c os gramáticos par­
tem das formas gramaticais" (op. cit., p. 605).
o nome por que e mais
de, Albert Thibaudet far
de Flaubert. Em 1926, ?
saio que se tornou clássk
Como o nome sug*
direto apresenta caractei
gem ou fragmentos deli
através do qual o autor r
No indireto puro, o
tivo integrante; no direto,
oculto; no indireto livre,
sem verbos dicendi, mas
imperfeito) e dos pronoir
cendi, não é cabível sua t
vo — e é isto que o distii
Vejamos um exempl
Os trabalhador
do me viram sem ch<
dias desconfiados. Tal
dar uni homem àquel;
co cie pés no chão coi
A parentemente, tod<
tanto, há expressões que
um a das personagens: a i
por ele se se tratasse de e
O último período t<
pessoa, ou de um dos trab
pecto, e essa ambigüidade
ração se faz na primeira p*
No seguinte trecho <
puro e o indireto livre estã
clamações e as reticências:
Se nã o fo s s e isso
grade da rua. Chi! que
m e n te o h o m e m da esca
A oração condicional
dor, pois denuncia o estade
na sua indignação, incapaz
U F P E Biblioteca C e n t n
O t h o n
m
.
G arc ia
♦
165
o nom e por que é mais conhecida: estilo indireto livre. Dez anos mais car­
de, Albert Thibaudet faria um estudo sistemático desse processo na obra
de Flaubert. Em 1926, Marguerite Lips escreveu sobre o assunto um en­
saio que se tom ou clássico: Le style indirect libre (Paris, ed. Payot).
Como o nom e sugere, o estilo ou discurso indireto livre ou semi-indireto apresenta características híbridas: a fala de determ inada persona­
gem ou fragmentos dela inserem-se discretam ente no discurso indireto
através do qual o autor relata os fatos.
No indireto puro, o processo sintático é o da dependência por conec­
tivo integrante; no direto, é o da justaposição, como verbo díccrzdr claro ou
oculto; no indireto livre, as orações da fala são, de regra, independentes,
sem verbos dicendi, mas com transposições do tempo do verbo (pretérito
imperfeito) e dos pronomes (3- pessoa). Como não inclui nem admite di­
cendi, não é cabível sua transformação em objeto direto do verbo transiti­
vo — e é isto que o distingue do direto e do indireto puro.
Vejamos um exemplo de José Lins do Rego:
Os trabalhadores passavam para os partidos, conversando alto. Quan­
do me viram sem chapéu, de pijama, por aqueles lugares, deram-me bonsdias desconfiados. Talvez pensassem que estivesse doido. Como poderia an­
dar um homem àquela hora, sem fazer nada, dc cabeça no tempo, um bran­
co de pés no chão como eles? Só sendo doido mesmo.
(Bangüê, p. 62)
A parentem ente, todo o trecho está em discurso indireto puro: no en­
tanto, há expressões que não poderiam ser atribuídas ao Autor, senão a
uma das personagens: a interrogação, por exemplo, não poderia ser feita
por ele se se tratasse de estilo indireto.
O último período também: será do narrador, que fala na primeira
pessoa, ou de um dos trabalhadores? A frase é ambígua, quanto a esse as­
pecto, e essa am bigüidade do indireto livre é mais freqüente quando a nar­
ração se faz na prim eira pessoa, como é o caso de Bangüê.
No seguinte trecho de Graciliano Ramos, os limites entre o indireto
puro e o indireto livre estão nitidam ente marcados pelas interrogações, ex­
clamações e as reticências:
Se não fosse isso... An! cm que estava pensando? Meteu os olhos pela
grade da rua. Chi! que pretume? O lampião da esquina se apagara, provavel­
mente o homem da escada só botara nele meio quarteirão de querosene.
(Vidas secas, p. 39)
A oração condicional reticenciosa não pode ser atribuída ao narra­
dor, pois denuncia o estado de espírito da personagem Fabiano, impotente
na sua indignação, incapaz de reagir, porque, apesar de tudo, se sentia
166
C o m u n i c a ç ã o
em
P rosa
M o d e r n a
preso à Sinhá Vitória, aos filhos, à própria Baleia, que o im pediam de pra­
ticar desatino como reação natural contra a injustiça de que era vítima. O
mesmo se pode dizer quanto aos demais trechos em itálico. Em todo o pa­
rágrafo, enfim, só há duas orações em discurso indireto puro: “M eteu os
olhos pela grade” e “O lampião da esquina se apagara”. Até mesmo a ora­
ção final, a partir de “provavelmente”, está em discurso indireto livre, pois,
como, no caso, o narrador é onisciente, não seria admissível sua incerteza
quanto à quantidade de querosene posta no lampião: a dúvida é da perso­
nagem Fabiano.72
Não cremos que haja outro romance brasileiro em que o discurso in­
direto livre seja tão freqüente e tão habilmente em pregado como em Vi­
das secas. Essa técnica, o Autor já havia ensaiado tim idam ente em S. Ber­
nardo (1934), desenvolvendo-a em Angústia (1936), até alcançar a sua ple­
nitude na história dram ática de Fabiano e Sinhá Vitória.
Às vezes, os três processos se mesclam no mesmo parágrafo. É o que
faz, por exemplo, Fernando Sabino:
M afra o conso lo u , b a te n d o -lh e n as co stas: tira ra o te rc e iro lu g a r [ n u ­
m a p rova d e n a ta ç ã o ]. Foi p a ra casa so zin h o , a cab eç a n u m tu m u lto . P or
q u e afin a l tu d o aqu ilo , S a n to D eus? Q ue id é ia d e s c a b id a , q u e e s tra n h a te i­
m o sia a q u e la , e sq u e c e r tu d o d u r a n te u m m ês, p a ra d e d ic a r-se com o u m lo u ­
co a u m a e x p e riê n c ia tã o d u ra q u e n ã o lh e tra ria p ro v e ito algum ! V aidade,
a p e n a s? S o lid a rie d a d e p a ra com se u clube? O ra, sa b ia m u ito b em q u e essas
coisas n ã o ex istia m m ais p a ra ele. Por q uê, e n tã o ? O p ai ih e d iss e ra a p r e e n ­
sivo: “Você e s tá ex a g e ra n d o , m e u filho. Isso n ã o p o d e fa z e r b e m ”.
(E ncontro m arcado, p. 1 2 7 )
Os dois prim eiros períodos estão em discurso indireto puro. A partir
de “Por que afinal?” até “Por quê, então?” é discurso indireto livre, pois as
interrogações e exclamações não denotam perplexidade do narrador, mas
da personagem Eduardo, num a espécie de monólogo. A parte final encer­
ra discurso direto claramente expresso, com verbo dicendi anteposto. Exa­
minemos, porém, mais de perto, o período iniciado por “ora”. Esta partícu­
la, na acepção em que está em pregada, é exclusiva do discurso direto, mas
o pronom e “ele” no fim do período indica que se trata d e discurso indire­
to. A frase é assim híbrida. Ora, esse hibridismo é uma das características
familiares. Em alguns auto
reto (às vezes, até mesmo
cário seu) dentro de um p
to puro. Em outros, um p<
em geral, introduzido ou st
go”, “disse consigo”) ou ui
sos, não se pode falar de i
ve não só para minimizar
tam bém — e aqui está a :
fragm entos do fluxo de cc
no relato dos fatos e na a
traduzidos em palavras do
postas do discurso direto rr
quando “as reflexões expost
lação verbal nítida”73 é qu<
Rachel de Queiroz:
E a q u e le caso d;
ra v ez tin h a b o ta d o a i
m e m o tin h a p o sto a té
A intercalada “Deus 1
mas seria descabido, dada ;
grafo em discurso direto, a
quando as reflexões das pei
ticas as peripécias do relato
Autora. O parágrafo que pn
Chico Bento inclui um fragT
Á gora felizm e n u
tra b a lh o ; p o rq u e a con
p o m a l ch e g av a p a ra a
C o nceição conco
— Eu sei, eu sei
ta u m serviço b ru to , p e
do indireto livre.
Na literatura brasileira contem porânea, a técnica do discurso indi­
reto livre apresenta m atizes estilísticos m uito variáveis, como, aliás, tam ­
bém no francês e no inglês, para só citarmos as línguas que nos são mais
O primeiro parágrafo
o denunciam os pronomes
a estrutura passa a ser até mesmo de
73 CÂMARA JR., J. Matoso. “O es
estudos, em honra de A ntenor Na&
: Mudando o tempo do verbo — boiara para botou
scurso direto.
O thon
M.
Garcia
♦
167
familiares. Em alguns autores, ocorre apenas intercalação de discurso di­
reto (às vezes, até mesmo entre aspas, acom panhado de dicendi ou de vi­
cário seu) dentro de um parágrafo de narração feita em discurso indire­
to puro. Em outros, um parágrafo inteiro assume a feição do monólogo,
em geral, introduzido ou seguido por um verbo de elocução (“disse comi­
go”, “disse consigo”) ou um vicário (“pensou”, “pensei”). Mas, nesses ca­
sos, não se pode falar de indireto livre, recurso de que o narrador se ser­
ve não só p ara minimizar a m onotonia dos diálogos interm ináveis mas
tam bém — e aqui está a sua mais relevante função — para exteriorizar
fragm entos do fluxo de consciência de determ inada personagem . Então,
no relato dos fatos e na análise das reações psicológicas da personagem ,
traduzidos em palavras do Autor, inserem-se frases ou expressões tran s­
postas do discurso direto mas sem o auxílio dos conectivos integrantes. Só
quando “as reflexões expostas são tão intensas que justifiquem uma formu­
lação verbal nítida”73 é que o Autor se serve do discurso direto. Assim faz
Rachel de Queiroz:
E aquele caso da cabra em que — Deus me perdoe! — pela primei­
ra vez tinha botado a mão em cima do alheio... E se saíra tão mal, e o ho­
mem o tinha posto até de sem-vergonha (...)
(O quinze, p. 79)
A intercalada “Deus me perdoe” não pode ser atribuída ao narrador;
mas seria descabido, dada a sua escassa relevância, abrir com ela um pará­
grafo em discurso direto, a que Rachel de Queiroz só recorre mais adiante,
quando as reflexões das personagens são mais intensas, porque mais dram á­
ticas as peripécias do relato feito pelo vaqueiro Chico Bento com palavras da
Autora. O parágrafo que precede imediatamente o diálogo entre Conceição e
Chico Bento inclui um fragmento de discurso indireto livre:
Agora felizmente estavam menos mal. O de que carecia era arranjar
trabalho; porque a comadre Conceição bem via que o que davam 110 Cam­
po mal chegava para os meninos.
Conceição concordou:
— Eu sei, eu sei, é uma miséria! Mas você assim, compadre, lá agüen­
ta um serviço bruto, pesado, que é só 0 que há para retirante?!
(p. 80)
O primeiro parágrafo está, todo ele, em discurso indireto puro, como
o denunciam os pronomes da terceira pessoa e os verbos no pretérito im­
73 CÂMARA .JR, J. Matoso. "O estilo indireto livre em Machado de Assis”, in: MISCEIÂNEA de
estudos, em honra de Antenor Nascentes, Rio, 1941.
168
♦
Com unicação
em
P rosa
M oderna
perfeito; mas nele se insinua sutilmente um vestígio do indireto livre n a­
quele “comadre”, que a Autora, se falasse por si mesma, não poderia de
forma alguma em pregar: a comadre é de Chico Bento, e não de Rachel de
Queiroz. Esse exemplo, aliás, é semelhante ao que assinala Matoso Câma­
ra (loc. cit., p. 21) em Quincas Borba, a propósito de “com adre Angélica”.
Em Josué Monteio (A décima noite), o monólogo dram ático de feitio
tradicional e o discurso indireto livre freqüentemente se mesclam em lon­
gos parágrafos de discurso indireto; mas o Autor distingue sistem aticam en­
te o primeiro do segundo, pondo-o entre aspas, precedidas às vezes por
travessão. No primeiro dos dois trechos dados abaixo, há intercalação de
indireto livre (em itálico); no segundo, o que aparece é mesmo discurso
direto sob a forma de monólogo indicado por travessão e aspas:
Voltou-se então para o fundo da casa, atravessou a varandinha que
acompanha o correr dos quartos e saiu à copa. Alaíde estaria ainda no jar­
dim? Saltou ao quintal e veio contornando a casa (...)
(p. 193)
Na iminência da crise, Abelardo não perdia o domínio de si mesmo.
E dizia consigo, sereno, confiante, cigarro esquecido na ponta dos dedos:
— “Daqui a pouco terás de deitar-te, Alaíde. E eu também. Crês que pode­
rás fugir de mim, como se eu fosse um estranho? (...)”
(p. 205)
A interrogação, no primeiro trecho, não expressa dúvida do Autor,
mas da personagem: trata-se de discurso indireto livre. Os períodos entre
aspas, precedidos por um travessão, no segundo, denotam monólogo dra­
mático, em discurso direto puro, com um verbo dicendi claro (“dizia consi­
go”). Mas, quando o Autor quer impregnar suas palavras de certa tonalida­
de afetiva própria do discurso direto, quando, enfim, Autor e personagem
como que se fundem num a espécie de interlocutor híbrido, então aparece
o legítimo indireto livre, sem aspas nem travessões:
Por vezes, adiantava o braço, para ajudá-la a descer. E ela baixava
sozinha, não raro saltando o último degrau com os pés unidos, como a di­
zer-lhe que só mais tarde, quando fossem marido e mulher, aceitaria o am­
paro que ele lhe oferecia. E por que melindrar-se com os longos silêncios de­
la? Por acaso, ali junto ao relógio, com o seu livro e a sua caixa de costura,
Sinharinha não fora também assim, esquiva e cismarenta?
(p. 158)
Quanto à sua natureza e sentido, os trechos em itálico seriam verda­
deiros monólogos, não fosse a presença daquele pronome de terceira pes­
soa, “se”, em vez de “m e”. Por isso, não aparecem as aspas: o fluxo do
pensam ento da personagem Abelardo, o Autor como que o surpreendeu in
natura, exteriorizando-o cc
na sua formulação verbal.
Em suma, o discurse
to fértil em recursos estili
rico para pesquisas capaze:
leiro dos nossos dias. Os p:
de M arguerite Lips, o artig
ra atrás citados.
O thon
M.
G arcia
♦
169
natura, exteriorizando-o como se o tivesse apenas gravado sem interferir
na sua formulação verbal.
Em suma, o discurso indireto livre é uma técnica de narrativa m ui­
to fértil em recursos estilísticos. Os estudiosos encontrariam aí um veio
rico para pesquisas capazes de revelar novas dimensões no romance brasi­
leiro dos nossos dias. Os principiantes poderiam abrir caminho com a obra
de M arguerite Lips, o artigo de Charles Bally e o artigo de Matoso Câma­
ra atrás citados.
S egunda
P arte
2. VOC. - 0 vocabulário
1.0 Os sentidos das palavras
1.1 Palavras e idéias
Em pesquisa que realizou, o Dr. Johnson O’Connor, do Laboratório de
Engenharia Humana, de Boston, e do Instituto de Tecnologia, de Hoboken,
Nova Jersey, submeteu a um teste de vocabulário cem alunos de um curso
de formação de dirigentes de empresas industriais (industrial executives), os
executivos. Cinco anos mais tarde, verificou que os dez por cento que haviam
revelado maior conhecimento ocupavam cargos de direção, ao passo que dos
vinte e cinco por cento mais “fracos" nenhum alcançara igual posição.
Isso não prova, entretanto, que, para vencer na vida, basta ter um bom
vocabulário; outras qualidades se fazem, evidentemente, necessárias. Mas pa­
rece não restar dúvida de que, dispondo de palavras suficientes e adequadas
à expressão do pensamento de maneira clara, fiel e precisa, estamos em m e­
lhores condições de assimilar conceitos, de refletir, de escolher, de julgar, do
que outros cujo acervo léxico seja insuficiente ou medíocre para a tarefa vi­
tal da comunicação.
Pensamento e expressão são interdependentes, tanto é certo que as pa­
lavras são o revestimento das idéias e que, sem elas, é praticamente impossí­
vel pensar.1 Como pensar que “amanhã tenho uma aula às 8 horas", se não
prefiguro mentalmente essa atividade por meio dessas ou de outras palavras
equivalentes? Não se pensa in vacuo. A própria clareza das idéias (se é que
as temos sem palavras) está intimamente relacionada com a clareza e a preci­
são das expressões que as traduzem. As próprias impressões colhidas em con­
tato com o mundo físico, através da experiência sensível, são tanto mais vi­
vas quanto mais capazes de serem traduzidas em palavras — e sem impres­
sões vivas não haverá expressão eficaz. É um círculo vicioso, sem dúvida:
“...nossos hábitos lingüísticos afetam e são igualmente afetados pelo nosso
comportamento, pelos nossos hábitos físicos e mentais normais, tais como a ob­
1 “...não há pensar a não ser em termos de linguagem”, diz Adam Schaff em Introdução à se­
mântica, p. 163. — “A forma lingüística é [pois] não apenas a condição de transmissibilidade
do pensamento mas também, acima de tudo, a condição de realização do pensamento.” (Émilc Benvenisie, Problèmes de linguistique génércile, v. I, p. 64)
174
♦
Com unicação
em
P rosa
M oderna
servação, a percepção, os sentimentos, a emoção, a imaginação”.2 De forma
que um vocabulário escasso e inadequado, incapaz de veicular impressões e
concepções, mina o próprio desenvolvimento mental, tolhe a imaginação e o
poder criador, limitando a capacidade de observar, compreender e até mes­
mo de sentir. “Não se diz nenhuma novidade ao afirmar que as palavras, ao
mesmo tempo que veiculam o pensamento, lhe condicionam a formação. Há
século e meio, Herder já proclamava que um povo não podia ter uma idéia
sem que para ela possuísse uma palavra”, testemunha Paulo Rónai em artigo
publicado no Diário de Noticias, do Rio de Janeiro, e mais tarde transcrito na
2- edição de Enriqueça o seu vocabulário (Rio, Civilização Brasileira, 1965), de
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Portanto, quanto mais variado e ativo é o vocabulário disponível, tan­
to mais claro, tanto mais profundo e acurado é o processo mental da refle­
xão. Reciprocamente, quanto mais escasso e impreciso, tanto mais dependen­
tes estamos do grunhido, do grito ou do gesto, formas rudim entares de co­
municação capazes de traduzir apenas expansões instintivas dos primitivos,
dos infantes e... dos irracionais.
1.2 Vocabulário e nível mental
Acreditam alguns que o nível mental, apurado segundo a técnica dos
testes de Stanford-Binet — aquilo a que os americanos em geral dão tanta
importância e que se traduz na sigla com aura meio cabalística I. Q. (intelligence quotient) — se relaciona muito de perto com o domínio do vocabulá­
rio. São conhecidas as experiências levadas a efeito com grupos de colegiais
para apurar essa relação entre o quociente de inteligência e o conhecimento
de palavras. Tais experiências consistem em selecionarem-se dois grupos de
estudantes da mesma comunidade, da mesma idade, do mesmo nível social
(até onde seja possível pôr à prova tudo isso), dando-se a cada um trata­
m ento diverso: o primeiro grupo recebe ensinamento normal, seguindo o
currículo escolar; o segundo é especialmente treinado em exercícios de voca­
bulário, além das aulas em comum com o outro grupo. Ao termo de perío­
do convencionado, as notas são confrontadas, verificando-se então que o apro­
veitamento do segundo grupo é muito maior do que o do primeiro, e não ape­
nas em inglês (para o caso das experiências realizadas nos Estados Unidos),
mas também nas outras matérias, inclusive matemática e ciências.3
Para outros entendidos, entretanto, essa relação é falaciosa; conside­
ram eles o elevado índice de vocabulário não como sintom a de inteligên­
cia e am adurecim ento mental, mas apenas como sinal de um a experiência
2 GURREY, P The teaching o f written English, p. 2.
:i Cf. FUNK, Wilfred c LEWIS, Norman. 3 0 days to a more powerful vocabulary, p. 2, onde co­
lhemos também o relato da experiência feita pelo Dr. Johnson O'Connor.
variada. Vocabulário rico é,
cia. Não há, segundo esses
mir que se possa estimular
rio. Em suma: conhecemos
mos inteligentes só porque
Por outro lado, não é
mínio do vocabulário não ir
se assim fosse, os que se de
autores de dicionários serian
que nem sempre, ou rarame
se pode pensar sem palavra
las, se disponha igualmente <
pois é sabido que o comanc
nhoream ento de suas estruti
cenir, discriminar e estabele
não apenas veiculem idéias
atitude mental.
A conclusão óbvia que
peito da importância do vocí
lavras não é suficiente para
te estulto presumir que bast
satisfatoriamente. Nenhum p
nós, por vício, tradição ou dar e m andar decorar mil e
que vão muito além do mín
O que acontece é que não sc
se resto que está o essenciaL
1.3 Polissemia e coi
A linguagem — seja i
— é um sistema de símbolc
produzidos e convencionalm
m unica com seus sem elhant
sejos. Suas três primordiais
exteriorização psíquica (sentü
quer Karl Bühler, (op. cít., p.
Cf. Language in general education:
General Education, p. 48.
5 Para C. K. Ogden e I. A. Richards,
do de significado), símbolo correspoti
te, e referente, ao que o mestre ger*
(imagem acústica) com o significaA
O thon
M.
G arcia
♦
175
variada. Vocabulário rico é, assim, manifestação e não fator de inteligên­
cia. Não há, segundo esses entendidos, fundamentos seguros para presu­
mir que se possa estimular o nível mental através do ensino do vocabulá­
rio. Em suma: conhecemos palavras porque somos inteligentes, e não so­
mos inteligentes só porque conhecemos palavras.4
Por outro lado, não é ocioso advertir ainda que apenas um grande do­
mínio do vocabulário não implica necessariamente igual domínio da língua;
se assim fosse, os que se dedicam ao passatempo das palavras-cruzadas e os
autores de dicionários seriam forçosamente grandes escritores ou oradores, o
que nem sempre, ou raramente, ocorre, como se sabe. Se praticam ente não
se pode pensar sem palavras, é errôneo presumir que, dispondo apenas de­
las, se disponha igualmente de agilidade mental e de facilidade de expressão,
pois é sabido que o comando da língua falada ou escrita pressupõe o assenhoream ento de suas estruturas frasais combinado com a capacidade de discenir, discriminar e estabelecer relações lógicas, de forma que as palavras
não apenas veiculem idéias ou sentimentos, mas reflitam também a própria
atitude mental.
A conclusão óbvia que se pode tirar dessas assertivas e objeções a res­
peito da importância do vocabulário é que, se apenas o conhecimento de pa­
lavras não é suficiente para a expressão do pensamento, tom a-se igualmen­
te estulto presumir que basta estudar gramática para saber falar e escrever
satisfatoriamente. Nenhum professor ignora isso. Não obstante, quase todos
nós, por vício, tradição ou comodismo, achamos mais fácil e mais simples
dar e m andar decorar mil e uma regrinhas gramaticais malsinadas e inúteis,
que vão muito além do mínimo indispensável ao manejo correto da língua.
O que acontece é que não sobra tempo para o resto — e infelizmente é nes­
se resto que está o essencial.
1.3 Polissemia e contexto
A linguagem — seja ela oral ou escrita, seja mímica ou semafórica
— é um sistema de símbolos,5 signos ou signos-símbolos, voluntariam ente
produzidos e convencionalmente aceitos, m ediante o qual o homem se co­
m unica com seus semelhantes, expressando suas idéias, sentimentos ou de­
sejos.. Suas três primordiais funções são, assim, a representação (idéias), a
exteriorização psíquica (sentimentos) e o apelo (desejos, vontade), ou, como
quer Karl Bühler, (op. ciLf p. 41), “expressão, apelo e representação”.
4 Cf. Language in general editcation; A report to the Committee on the Function of English in
General Education, p. 48.
5 Para C. K. Ogden e I. A. Richards, no seu hoje clássico The m eaning o f m eaning (O significa­
do de significado ), símbolo corresponde ao que Saussure (op. ctí\, p. 98-9) chama de significante, e referente, ao que o mestre genebrino denomina significado. A combinação do significanre
(imagem acústica) com o significado (conceito) constitui o signo.
176
♦
Com unicação
em
P rosa
M oderna
A linguagem ideal seria aquela em que cada palavra (significante)
designasse ou apontasse apenas uma coisa, correspondesse a um a só idéia
ou conceito, tivesse um só sentido (significado). Como tal não ocorre em
nenhum a língua conhecida, as palavras são, por natureza, enganosas, por­
que polissêmicas ou plurivalentes. Muitas constituem mesmo um a espécie
de constelação semântica, como, por exemplo, ponto e linha, que têm (se­
gundo o Dicioruírio de Laudelino Freire) cerca de cem acepções.
Isoladas do seu contexto ou situação,6 as palavras quase nada signi­
ficam de m aneira precisa, inequívoca (Ogden e Richards são radicais: “as
palavras nada significam por si m esm as”): “...o que d eterm in a o valor
(= sentido) da palavra é o contexto. A palavra situa-se num a ambiência que
lhe fixa, a cada vez e m om entaneam ente, o valor. É o contexto que, a des­
peito da variedade de sentidos de que a palavra seja suscetível, lhe impõe
um valor ‘singular’; é o contexto também que a liberta de todas as repre­
sentações passadas, nela acumuladas pela memória, e que lhe atribui um
valor ‘atual’. Mas, independentem ente do emprego que dela se faça, a pa­
lavra existe no espírito com todos os seus significados latentes e virtuais,
prontos a surgir e a se adaptarem às circunstâncias que a evoquem”.7 As­
sim, por mais condicionada que esteja a significação de um a palavra ao seu
contexto, sempre subsiste nela, palavra, um núcleo significativo mais ou m e­
nos estável e constante, além de outros traços semânticos potenciais em con­
dições de se evidenciarem nos contextos em que ela apareça.8 Se, como que­
rem Ogden e Richards, as palavras por si mesmas nada significam, a cada
novo contexto elas adquiririam significação diferente, o que tornaria pratica­
m ente impossível a própria intercomunicação lingüística.
Geralm ente, quando queremos saber o sentido de um a palavra recor­
remos ao dicionário; mas pode acontecer: a) que ela não esteja averbada;
b) que a definição dela não se ajuste ao sentido da frase que ouvimos ou
lemos; c) que o dicionário dê mais de um significado ou acepção. Em
qualquer hipótese, só mesmo o contexto é que nos pode ajudar.
No seguinte passo de Manuel Bernardes, só o contexto verbal nos
perm ite saber em que sentido estão empregadas as palavras “explicando”,
“rem os” e “golfo”:
Ao tratarm os de frase de situação (1. Fr., 1.2), adotamos a definição de contexto que nos dá
J. Matoso Câmara Júnior: “ambiente lingüístico onde se acha a frase". Todavia, outros autores
preferem atribuir a esse termo sentido mais amplo, incluindo nele o que Matoso Câmara cha­
ma de “situação” (“ambiente físico-social onde a frase é enunciada”) e acrescentando ainda, al­
guns, o fator “experiência”. Existem assim três espécies de contexto: o verbal, o da situação e o
da experiência (do emissor e do receptor). Seja como for, é usual o emprego do termo contex­
to com o sentido amplo de qualquer ambiência em que se encontre a palavra.
7 VENDRYES, Le langage, p. 211.
8 Aos traços significativos mínimos que entram na constituição de uma palavra dá a semânti­
ca estrutural o nome de semas. Há os sernas básicas (núcleo significativo estável e constante) e
os virram.s (ou potenciais), que indicam as possibilidades de aplicação num determinado con­
texto. O conjunto dos semas básicos e virtuais constitui o seme/nu (também dito sem antem a).
Depois de um e
do o passarinho os bre
golfo de ares, e desaps
que nada do que se pc
A narrativa é conhec
reparando no Salmo 89, on
dia de ontem”, saiu para ui
desta admirável sentença”,
quando um passarinho se p
ceu do tempo. Quando reg
correndo-se então “à fé da:
meado que, no tempo do al
um monge, e, feito o cômp
trezentos.
Não cremos que qual
do das três palavras grifada
Aurélio”:
Explicar: tomar ii
ficar; lecionar; ensinar, s
origem ou o motivo de;
satisfação ou explicação;
Remo: instrumen
pequenas embarcações;
Golfo: porção de
tura é muito larga; nom
Tomadas no seu sentic
essas palavras deixariam o le
levando-o a tomar explicandc
remos e golfo duas metáfora
que o Autor procurou tom ar
dão do espaço aéreo.
Estamos vendo assim
e intenções, interligadas uma
sociá-las da frase é desprovi
contextuai. Isso é o que oco
quer falada ou coloquial, qui
do dissociado do contexto na
9 Como passam m il anos diante de
(Coimbra, 1964, p. 21), onde, aliá
ções sobre a importância do conrex
U FP E Biblioteca Centre
♦
177
Depois de um espaço, a seu parecer [do monge] mui curto, explican­
do o passarinho os breves remos de suas ligeiras peninhas, foi cortando esse
golfo de ares, e desapareceu, deixando ao seu ouvinte assaz magoado, por­
que nada do que se possui com gosto, se perde sem desconsolação (...y
A narrativa é conhecida (aparece em várias antologias): um religioso,
reparando no Salmo 89, onde diz que “mil anos diante de Deus são como o
dia de ontem”, saiu para um pomar ou jardim a fim de “penetrar o espírito
desta admirável sentença”. Estava o monge entregue às suas meditações,
quando um passarinho se pôs a cantar tão maviosamente, que ele se esque­
ceu do tempo. Quando regressou ao mosteiro, ninguém o reconheceu. Re­
correndo-se então “à fé das crônicas e memórias antigas”, lá se achou no­
meado que, no tempo do abade a que ele se referia, realmente desaparecera
um monge, e, feito o cômputo dos anos, verificou-se que se tinham passado
trezentos.
Não cremos que qualquer dicionário elucide o leitor quanto ao senti­
do das três palavras grifadas no trecho transcrito. Vejamos o “dicionário do
Aurélio”:
Explicar: tornar inteligível ou claro (o que é ambíguo ou obscuro); justi­
ficar; lecionar; ensinar, significar; expressar; expor; explanar; dar a conhecer a
origem ou o motivo cle; exprimir-se; dar razão das suas ações ou palavras; dar
satisfação ou explicação; pagar (gíria brasileira).
Remo: instrumento de madeira que serve para fazer avançar na água
pequenas embarcações; indígenas da tribo dos Remos (Javari).
Golfo: porção de mar que entra profundamente pela terra e cuja aber­
tura é muito larga; nome de planta.
Tomadas no seu sentido literal, referencial ou denotativo (ver a seguir),
essas palavras deixariam o leitor perplexo. Só o contexto poderia esclarecê-lo,
levando-o a tom ar explicando 110 sentido de desdobrando, abrindo e a ver em
remos e golfo duas metáforas (sentido figurado, conotativo ou afetivo) com
que o Autor procurou tom ar mais vivas e pitorestas as idéias de asas e imensi­
dão do espaço aéreo.
Estamos vendo assim que as palavras são elos num a cadeia de idéias
e intenções, interligadas umas às outras por íntimas relações de sentido: dis­
sociá-las da frase é desprovê-las da camada do seu significado virtual, i.e.,
contextuai. Isso é 0 que ocorre na língua viva, 11a língua de todos os dias,
quer falada ou coloquial, quer escrita ou literária. Conhecer-lhes o significa­
do dissociado do contexto não é suficiente. Portanto, exercícios de vocabulá­
9 Como passam mil anos diante de Deus. segundo o texto comentado por Jesus Belo Galvão
(Coimbra, 1964, p. 21), onde, aliás, se fazem, com erudição e argúcia, oportunas observa­
ções sobre a importância do contexto como pauta para os valores semânticos das palavras.
/
178
♦
Co m unicação
em
P rosa
M oderna
rios que constem de listas de palavras para decorar pouca utilidade têm. Só
através da leitura e da redação é que se pode construir um vocabulário vivo
e atuante, incorporado aos hábitos lingüísticos. Isso, entretanto, não impe­
de, antes, pelo contrário, justifica se lance mão de artifícios capazes de per­
mitir a simulação de situações reais, de uma espécie de contexto ad hoc. É o
que se faz às vezes, se bem que nem sempre com a necessária freqüência,
quando se abrem lacunas em frases completas para preenchei; ou quando se
propõem séries de palavras sinônimas ou não para escolha da(s) que se
adapte(m) ao contexto verbal. Outro tipo de exercício também eficaz consiste
em se criarem situações globais em tom o de certas áreas semânticas, como,
por exemplo, as dos sentidos, para a expressão de impressões (cores, formas,
sons, odores, etc.). No entanto, o melhor processo para a aquisição de voca­
bulário é aquele que parte de uma experiência real e não apenas simulada,
pois só ela permite assimilar satisfatoriamente conceitos e idéias que tradu­
zam impressões vivas. E inútil ou, pelo menos, improfícuo tentarmos traduzir
impressões ou juízos que a experiência, lato sensu, não nos proporcionou.
1.4 Denotação e conotação: sentido referencial e sentido
afetivo
Por mais variados que sejam, os sentidos das palavras situam-se em
dois níveis ou planos: o da denotação e o da conotação, duas antigas deno­
m inações,10 que a lógica e a lingüística m oderna vêm rem anipulando e reconceituando em term os nem sempre muito claros e nem sempre coinci­
dentes, o que dá margem — como dizem os autores do Dictionnaire de linguistique,
no verbete “connotation” — a uma “desordem terminológica”.
Para a sem ântica estrutural, denotação é aquela parte do significado
de um a palavra que corresponde aos semas específicos e genéricos, í.e., aos
traços semânticos (rever nota 8) mais constantes e estáveis, ao passo que
conotação é aquela parte do significado constituída pelos semas virtuais,
i.e., só atualizados em determ inado contexto. A mesma conceituação pode
ser expressa em term os um pouquinho mais claros: denotação é o elem en­
to estável da significação de um a palavra, elemento não subjetivo (grave-se
esta característica) e analisável fora do discurso (= contexto), ao passo
que a conotação é constituída pelos elementos subjetivos, que variam se­
gundo o contexto. “Em alguns sistemas semânticos — diz Umberto Eco em
A estrutura ausente (trad. port., p. 22) — indica-se como denotação de um
símbolo a classe das coisas reais que o emprego do símbolo abarca (‘cão*
denota a classe de todos o:
propriedades que devem se
(entender-se-ão como conoi
diante as quais a ciência d
patas). Nesse sentido, a der
conotação com a intenciona
Dictionnaire de linguistique
cão um pouco mais clara t
aquilo que, no sentido de u
dade lingüística. Assim, roiç
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então, o que a significação t
grupo dentro da comunidad
não será idêntica para toda
Bem: a esta altura, o
já deve ter assimilado os o
sim, tentem os tornar a “cois
mais acessível.
Quando um a palavra i
“próprio”, isto é, não figura*
dela nos dão os dicionários,
que a mesma coisa para m in
bros da com unidade sócio-li
se diz que essa palavra tem
ta, rem ete ou se refere a um
ou imaginário. A palavra ass
te de interpretações individu;
cional, o seu significado não
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digamos assim, “pão3 pão, qu
Se, entretanto, a signii
mim e para você, leitor, coi
membros da coletividade de i
sa da interpretação que cada
mete a um objeto do mund
evoca, por associação, outra(s
riva ou emocional, então se d
ou afetivo. Exemplifiquemos. ,
do denota, aponta, designa o ;
no; mas é pura conotação (e,
pressa o desprezo que me cai
10 Já em pregadas pela lógica escolástica e, mais tarde, por John Stuart Mill no seu S/stcma de
lógica (1843).
11 Organizado por Jean Dubois e outros, em edição da l.ibrairie Larousse, Paris, 1973.
^ Ver, a seguir, 1.5 e nota 15.
O thon
M.
Garcia
♦
179
denota a classe de todos os cães reais), e como conotação o conjunto das
propriedades que devem ser atribuídas ao conceito indicado pelo símbolo
(entender-se-ão como conotações de ‘cão’ as propriedades zoológicas m e­
diante as quais a ciência distingue o cão de outros mamíferos de quatro
patas). Nesse sentido, a denotação identifica-se com a extensionalidade, e a
conotação com a intencionalidade (sic)12 do conceito.” O há pouco citado
Dictionnaire de linguistique nos dá, no verbete “connotation”, uma defini­
ção um pouco mais clara e mais acessível aos leigos: denotação é “tudo
aquilo que, no sentido de um termo, é objeto de um consenso na comuni­
dade lingüística. Assim, rouge (vermelho) denota uma cor precisa em ter­
mos de am plitude de onda, para a comunidade francesa. A conotação é,
então, o que a significação tem de particular para o indivíduo ou um dado
grupo dentro da comunidade; por exemplo, a conotação política de rouge
não será idêntica para toda a coletividade de fala francesa”.
Bem: a esta altura, o leitor não iniciado nessas sutilezas semânticas
já deve ter assimilado os conceitos de denotação e conotação. Ainda as­
sim, tentem os tornar a “coisa” mais clara, servindo-nos de um a linguagem
mais acessível.
Quando um a palavra é tom ada no seu sentido usual, no sentido dito
“próprio”, isto é, não figurado, não metafórico, no sentido “prim eiro” que
dela nos dão os dicionários, quando é empregada de tal m odo que signifi­
que a mesma coisa para mim e para você, leitor, como para todos os mem­
bros da com unidade sócio-lingüística de que ambos fazemos parte, então
se diz que essa palavra tem sentido denotative ou referencial, porque deno­
ta, rem ete ou se refere a um objeto do mundo extralingüístico, objeto real
ou imaginário. A palavra assim em pregada é entendida independentem en­
te de interpretações individuais, interpretações de natureza afetiva ou em o­
cional, o seu significado não resulta de associações, não está condicionado
à experiência ou às vivências do receptor (leitor, ouvinte). O seu sentido é,
digamos assim, “pão, pão, queijo, queijo”.
Se, entretanto, a significação de uma palavra não é a mesma para
mim e para você, leitor, como talvez não o seja tam bém para todos os
membros da coletividade de que ambos fazemos parte, e não o é por cau­
sa da interpretação que cada um de nós lhe possa dar, se a palavra não re­
mete a um objeto do mundo extralingüístico mas, sobretudo, sugere ou
evoca, por associação, outra(s) idéia(s) de ordem abstrata, de natureza afe­
tiva ou emocional, então se diz que seu valor, i.e., seu sentido, é conotativo
ou afetivo. Exemplifiquemos. A palavra “cão” tem sentido denotativo quan­
do denota, aponta, designa o animal doméstico, mamífero, quadrúpede, cani­
no; mas é pura conotação (e, no caso, também metaforização) quando ex­
pressa o desprezo que me causa uma pessoa sem caráter ou extremamente
12 Ver, a seguir, 1.5 e nota 15.
180
♦
Co m u n ic a ç Ao
em
P rosa
M oderna
servil. Verde, no sentido de cor resultante da combinação do azul com o
am arelo no espectro solar, de cor das ervas e das folhas da maioria das
plantas, é pura denotação: se peço um a camisa verde, o lojista não me tra­
rá um a vermelha (a menos que seja daltônico). Mas, se verde me sugere es­
perança, se verde significa que algo ainda não se desenvolveu completamen­
te, então seu sentido é conotativo ou afetivo (e, no caso, tam bém metafó­
rico). Branco = cor resultante da combinação de todas as cores no espectro
solar = denotação; mas branco = inocência, pureza, imaculação = conotação.
A palavra rosa não significa a mesma coisa (do ponto de vista afetivo, lato
sensu) para o botânico interessado na classificação das espécies vegetais,
para o jardineiro profissional incumbido de regá-la, para o am ador que a
cultiva como passatem po nos fins-de-semana e procura, por simples delei­
te, obter, através de enxertos e cruzamentos, uma espécie nova para exibir
a amigos e visitas. Muito diversa há de ser ainda a conotação para a dona-de-casa que com ela adorne um centro de mesa, para o florista que vê
nela apenas um objeto de transação comercial rendosa. Para o jovem que a
oferece à nam orada, a rosa é muito mais do que um a rosa: é assim como
“uma rosa é uma rosa, é uma rosa”, do consabido verso de Gertrude
Stein...
Conotação implica, portanto, em relação à coisa designada, um esta­
do de espírito, um julgam ento, um certo grau de afetividade, que variam
conforme a experiência, o tem peram ento, a sensibilidade, a cultura e os
hábitos do falante ou ouvinte, do autor ou leitor. Conotação é, assim, uma
espécie de em anação semântica, possível graças à faculdade de associação
de idéias inerente ao espírito hum ano, faculdade que nos permite relacio­
nar coisas análogas ou assemelhadas. Esse é, em essência, o traço caracte­
rístico do processo metafórico, pois toda metaforização é conotação (mas a
recíproca não é verdadeira: nem toda conotação é m etaforização).
A palavra “ouro”, por exemplo, aparece em qualquer dicionário defi­
nida (i.e., denotada) como “metal amarelo, brilhante, muito pesado e m ui­
to dútil, do qual se fazem moedas e jóias de alto preço e que tem grande
valor comercial”. (Dicionário de Laudelino Freire). Não há nessa definição
de “ouro” uma só característica que não seja de ordem material. Esse é o
seu sentido denotativo ou referencial, sentido exato, inconfundível, porque
relacionado com o objeto concreto.
Mas o mesm o dicionário indica mais adiante, no mesmo verbete: “ri­
queza, opulência, grande estima, grande valor”, acepções a que podería­
mos ainda acrescentar outras: ostentação, avareza, adorno. Neste caso, não
se trata da coisa “ouro”, mas da idéia, do juízo, da opinião a respeito dela
ou que ela nos sugere, pela sua capacidade de evocar-nos, por associação
ou p or convenção, conceitos abstratos, ou de despertar-nos sentim entos ou
emoções. Seu sentido será assim afetivo ou conotativo, vale dizer, sugesti­
vo, evocador, metafórico. Da palavra “ouro” irradiam-se ou em anam ondas
sem ânticas desgarradas da realidade concreta. Todos os escritores, princi­
palm ente os poetas, têm
se poder de evocar outn
lação com o objeto. Qu<
“ouro pérfido”, nos segi
sentido denotativo ou re
de poeta contemporânec
dicionários”, não entendi
Desiludido aii
N am o ro a ph
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Nenhum leitor, poi
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que se fazem jóias e mo<
sam a periferia do sentk
mânticas para serem cap
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termos, expressões, frases
dade de fatores de order
güísticos, preconceitos, te
ção do texto, nem sempn
tos casos, diferente para
que Valéry dizia que “il n
un appareil dont chacun
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que cada qual se pode se
1.5 Sentido intei
Relembrando-nos
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aparecem , S. I. Hayakav
and action — 14 chama-n
pre o valor denotativo d
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seus corolários: a declar
13 Varieté Ult p. 68.
14 I
1... l - , A l U n O. II,
U F P E Biblioteca C e n t r
O thon
M.
G arcia
♦
181
palm ente os poetas, têm consciência dessa magia latente nas palavras, des­
se poder de evocar outras idéias além da que lhes é implícita pela sua re­
lação com o objeto. Quem atribuísse às expressões “plum agem do galo” e
“ouro pérfido”, nos seguintes versos de Carlos Drummond de Andrade, o
sentido denotaLivo ou referencial, quem visse nelas, como diz outro gran­
de poeta contem porâneo, João Cabral de Melo Neto, apenas “palavras de
dicionários”, não entenderia, por certo, a mensagem poética:
Desiludido ainda me iludo.
Namoro a plumagem do galo
no ouro pérfido do coquetel.
(.Fazendeiro do ar..., “O procurador do amor”)
Nenhum leitor, por mais desprevenido que fosse, veria em “plumagem
do galo” as penas do galináceo, ou em “ouro pérfido” o metal precioso com
que se fazem jóias e moedas. É que essas palavras, nesse contexto, ultrapas­
sam a periferia do sentido exato ou concreto, desdobrando-se em ondas se­
mânticas para serem captadas pelas antenas da sensibilidade do leitor. É o
que acontece quase sempre na poesia, onde os símbolos verbais — palavras,
termos, expressões, frases — evocam significados dependentes de uma infini­
dade de fatores de ordem pessoal e íntima (experiência, cultura, hábitos lin­
güísticos, preconceitos, temperamento, sensibilidade), que levam à interpreta­
ção do texto, nem sempre a mesma para todos os leitores, sendo até, em cer­
tos casos, diferente para o mesmo leitor em momentos diversos. É por isso
que Valéry dizia que “il n’y a pas de vrai sens d’un texte; un texte est comme
un appareil dont chacun peut se servir à sa guise et selon ses moyens...”13
(não há verdadeiro sentido de um texto; um texto é como um aparelho de
que cada qual se pode servir a seu talante e segundo seus meios...)
1.5 Sentido intensional e sentido extensional
Relembrando-nos que nenhum dicionário pode dar todos os senti­
dos das palavras, em virtude das inumeráveis situações (contextos) em que
aparecem, S. I. Hayakawa, no seu conhecido livro — Language in thought
and action — 14 chama-nos a atenção para a necessidade de distinguir sem­
pre o valor denotativo do conotativo, que ele denom ina de preferência, ex­
tensional e intensional respectivamente. O exemplo que nos oferece para
frisar a im portância dessa distinção é bastante elucidativo, inclusive pelos
seus corolários: a declaração de que “anjos veiam à noite junto a meu lei­
13 Variété ///, p. 68.
14 Londres, George Allen & Unwin, 1952, p. 58.
182
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
to” só tem sentido in te n s io n a l (com “s”, adverte o A utor)15 pois não nos é
possível vê-los, tocá-los, fotografá-los, o que não significa que não exis­
tam, mas que apenas não se pode provar sua existência. Trata-se de uma
declaração que não se refere a objeto tangível, que não se apóia em fato
concreto. O resultado é que a discussão sobre a existência ou não dos an­
jos jam ais chegará a um a conclusão satisfatória para qualquer dos interlo­
cutores. É uma questão de opinião ou convicção. Tem sentido in te n s io n a l
Por outro lado, quando se diz — o exemplo é ainda de Hayakawa — que
esta sala tem quinze metros de comprimento, não haverá margem para
disputas estéreis: basta alguém pegar a fita m étrica e medi-la. Trata-se
aqui de uma declaração de sentido e x íe n s io n a l
‘Aí está, pois — citamos agora textualmente — a importante diferen­
ça entre sentido extensional e sentido intensional, a saber: quando as decla­
rações têm sentido intensional, a discussão pode prosseguir indefinidamen­
te, daí resultando conflitos irreconciliáveis. Entre indivíduos, pode provocar a
ruptura de laços de amizade; na sociedade, ocasiona a formação de grupos
antagônicos; entre as nações, pode agravar tão seriamente as tensões já exis­
tentes, que se criam obstáculos à solução pacífica dos desentendimentos"
(op. cit., p. 59).
Essa imprecisão do sentido das palavras, que torna difícil ou às ve­
zes impossível a com preensão entre os homens, decorre principalm ente da
falta de um referente concreto, pois “somente o m undo objetivo é que dá
à linguagem significação específica”, como diz R Gurrey (op. cit., p. 24),
que acrescenta ainda o testem unho de Roger Frys: “o significado decorre
do completo contato que a inteligência faz com as coisas, da mesma for­
ma como a sensação resulta do contato que os sentidos fazem com as coi­
sas”. A não ser assim, as palavras expressam idéias vagas ou plurivalentes,
situação agravada ainda por outras circunstâncias tais como os preconcei­
tos e a polarização, que de um modo geral sempre marcaram a atividade
m ental e o com portam ento social dos indivíduos.
É claro que, ern certas situações e contextos, a linguagem intensio­
nal se impõe por si mesma como decorrência da própria natureza do as­
sunto. É o que acontece com a filosofia, a moral e a religião, que abusam
15 O Aulor frisa a grafia com “s”, mas, na p. 65, ao justificá-la, dá-lhe como étimo a palavra
mtentton (intenção, propósito), o que levaria ã forma (inglesa) com “c”; para propor “s”, teria
de adm itir sua filiação etimológica com intension (cognato de intenso , tensão , intensivo), e, de
fato, assim é: em La linguistique — guide alphabétique, obra publicada sob a direção de An­
dré M artinet, conceitua-se a denotação como “définition en extension ”, e a conotação como
“définition intensive." (cf. p. 342). Entretanto, na citada obra de Umberro Eco — A estrutura
aiwcnre, p. 22 — a tradutora preferiu grafar “intencionalidade” (com “c”). A terminologia
(“intension”, “intensional”, “extensão", “extensional"), é como se sabe, de Carnap (cf. “Significations et synonymie dans les langues naturelles”, trad. fr., Langages 2, 1966, p. 108-23; ver
também Todorov, “Recherches sémantiques", idem, nQ 1, p. 9, e Bar-Hillel, “Syntaxe logique et
sérnantique”, idem. n® 2 . p. 39).
de abstrações. Já o velho i
losophie ennuyeuse, c’est s
inúmeros exemplos de filó
Bergson:
“A rigor, poder-se-ia i
um a língua especial destin
Mas abra-se qualquer livro
sas deste jaez: 1d é fic its d a
sio ló g ica s , que são os a d ju t
sem esquecer as suspetções,
h e te ro g e n e id a d e , a e x istê n c i
n ã o - e u fe n o m e n a l, os fe n ô m
1.6 Polarização e
Outro óbice à coima
ção, essa “tendência a re<
posições intermediárias”, <
que exerceram influência $
zou as palavras do Deus
mim”.17 Desde Abel e Cair
vados ainda mais pela coi
ou parece estar dividido e:
lam apenas contrastes geo
tre desenvolvidos e subde
problem a do nosso séculc
pacto desse conflito, impz
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idéias, conceitos, opiniões
linguagem ainda mais pol
mentos. Que se entende ei
cio n á rio , por d e m o c ra ta , p<
ve rsiv o ? Há trinta anos ou
da se opõem, a comunistas
nacionalistas são com freqi
reacionários. Os partidários
nistas, mas eles mesmos se
vada é anticomunista para
democrata e progressista. 1
tros, xenofobia... Polarizaçz
lh Comment ií ne fa u t pas écrire
17 WMITAKER PENTEADO, J. R
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
183
de abstrações. Já o velho Albalat dizia que “ce qui rend, en effect, la phi­
losophie ennuyeuse, c’est sa langue abstraite”, ilustrando sua censura corn
inúmeros exemplos de filósofos do seu tempo, inclusive, e principalm ente,
Bergson:
“A rigor, poder-se-ia admitir, em algumas raras obras, a necessidade de
uma língua especial destinada a um reduzido número de leitores iniciados.
Mas abra-se qualquer livro de filosofia, sem exceção: o que aí se lê são coi­
sas deste jaez: 4d e fic its d a v o n ta d e , p ro g e n e re sc ê n c ia d a s fa c u ld a d e s , ta r a s f i ­
sio ló g ica s, que são os a d ju to r e s p o ssíveis e não os s u b s titu to s d a s fa c u ld a d e s \
sem esquecer as su sp e içõ e s, as tr a n s fo r m a ç õ e s q u a lita tiv a s , as id io ssin c ra sia s , a
h e te r o g e n e id a d e , a e x istê n c ia n u m e n a l, as m a n ife s ta ç õ e s p o te n c ia is , o eu e o
tiã o -e u fe n o m e n a l, o s fe n ô m e n o s s u p e r o r g â n ic o s ..” ^
1.6 Polarização e polissemia
Outro óbice à comunicação é o que se costuma cham ar de p o la r iz a ­
essa “tendência a reconhecer apenas os extremos, negligenciando as
posições interm ediárias”, cujas raízes se encontram “nos sistemas de ética
que exerceram influência sobre o mundo moderno. O Cristianismo generali­
zou as palavras do Deus dos hebreus: Q u e m n ã o e s tá c o m ig o e s tá c o n tr a
m i m ”} 7 Desde Abel e Caim o mundo se dicotomiza em antagonismos, agra­
vados ainda mais pela complexidade da vida moderna. Hoje o m undo está
ou parece estar dividido entre o Oriente e o Ocidente — que já não assina­
lam apenas contrastes geográficos — , entre comunismo e imperialismo, en­
tre desenvolvidos e subdesenvolvidos. Essa polarização constitui o grande
problema do nosso século, e a comunicação hum ana tem de sofrer o im­
pacto desse conflito, impacto tanto mais grave e daninho quanto mais in te n s io n a l for o sentido das palavras com que os homens procuram traduzir
idéias, conceitos, opiniões. A polarização e o sentido intensional tornam a
linguagem ainda mais polissêmica, agravando os conflitos e os desentendi­
mentos. Que se entende exatamente por n a cio n a lista , por eníreguista, por re a ­
c io n á rio , por d e m o c r a ta , por im p e ria lista , por c o m u n is ta , ou so c ia lista ou s u b ­
v e rsiv o ? Há trinta anos ou menos, nazistas e fascistas, que se opunham, e ain­
da se opõem, a comunistas, diziam-se, e ainda se dizem, nacionalistas; hoje os
nacionalistas são com freqüência tachados de comunistas, e aqueles outros, de
reacionários. Os partidários da estatização eram antes fascistas, hoje são comu­
nistas, mas eles mesmos se dizem nacionalistas. Quem defende a iniciativa pri­
vada é anticomunista para uns, reacionário para outros, embora se considere
democrata e progressista. Para muitos, nacionalismo é amor à pátria, para ou­
tros, xenofobia... Polarização e polissemia de mãos dadas.
çã o ,
1(1 Comment il ne fa u t pas écrire, p. 178.
17 WHITAKER PENTEADO. J. R. A técnica tftf comunicação hum ana, p. 124.
184
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
No Brasil contem porâneo, um a das polêmicas mais extrem adas foi a
que se travou entre “nacionalistas” e “entreguistas”. W hitaker Penteado no
seu excelente livro citado, transcreve um trecho de Guerreiro Ramos que
nos permite fazer um a idéia mais exata do que é sentido intensional e dos
riscos a que estão sujeitos os homens quando se servem de palavras desse
tipo:
2.0 Generalizaç
o concreto e o
1) O e n tre g u is ta n ã o a c re d ita no povo co m o p rin cip a l d irig e n te d o p ro cesso
b rasileiro .
2) N ão a c re d ita q u e o Brasil p o d e , com os rec u rso s in te rn o s, reso lv e r os
se u s p ro b lem as, e tcncle a co n sid erar o desen v o lv im en to brasileiro essen­
cialm ente d e p e n d e n te d a e n tra d a d e ca p itais e s tra n g e iro s e d a a ju d a ex ­
te rn a .
3 ) A cred ita q u e o d e s tin o d o B rasil está invariavelm ente v in c u la d o ao d o s
E stad o s U nidos.
4 ) O en tre g u ista contribui objetivam ente e com seu trabalho pa ra o êxito de
em preendim entos, lesivos ao interesse nacional.
5) O entreguista não participa conscientem ente, pelo seu trabalho, de n en h u m
dos esforços coletivos tendentes a p rom over a em ancipação n a c io n a l
Comentando esse conceito de entreguista, diz W hitaker Penteado: “O
que será uma pessoa que acredita no povo como um dos principais dirigen­
tes do processo brasileiro? E que não acredita que o Brasil possa, com seus
recursos internos, resolver seus problemas, tendendo a considerar o desenvol­
vimento brasileiro parcialmente dependente da entrada de capitais estrangei­
ros e da ajuda externa? E que acredita estar o destino do Brasil intermitente­
mente (sic: deve ser invariavelmente como está na transcrição do trecho de
Guerreiro Ramos) vinculado aos Estados Unidos?” (op. c it, p. 131). O que
acontece com esse neologismo, “entreguista”, ocorre com a maioria das pala­
vras de sentido não referencial sujeitas ao impacto da polarização e dos pre­
conceitos. Infelizmente, nem sempre é possível evitar — pelo menos em cer­
tas áreas do conhecimento humano — essa plurivalência semântica, essa im­
precisão de linguagem. Ein certos casos, entretanto, é possível diminuir esses
riscos, como veremos.
Darwin, em seu livn
seres em filos, classes, orc
dades. Mas, fora da sisten
quização não costum a sei
coisas pelo gênero (ou cia
um objeto ou ser, podemt
aplique apenas a cada uir
fundível — palmeira, sabk
clua tam bém seus asseme
evocar um aspecto da pai
rência generalizadora, fala
ros”, terá assinalado some
to am pla de coisas ou sei
zer como o poeta que se s
m aneira mais precisa aque
sabiá”. No prim eiro caso,
do, serviu-se de termos d
sentido de um a palavra,
quanto mais específico, ta
m unho valioso de Paulo 1
concreto, será preciso enc
sil, m ostruário imenso de
que repositório de variad
m ente ampliado pela cor
câmbio comercial?” (artig*
cessemos bastante a impe
sos alunos talvez aprende
redações generalidades int
Há palavras que sã
mais específico do que sim
e este, mais do que anime
ra, e palmeira mais do qu
Trabalhador é termo de s
i
2.0 G eneralização e especificação
o concreto e o abstrato
Darwin, em seu livro S o b r e a o r ig e m d a s esp éc ies (1959), distribui os
seres em filos, classes, ordens, grupos, famílias, gêneros, espécies e varie­
dades. Mas, fora da sistemática, L e., da classificação racional, essa hierar­
quização não costuma ser assim tão rígida: norm alm ente designamos as
coisas pelo gênero (ou classe) ou pela espécie. Q uando temos de nom ear
um objeto ou ser, podemos servir-nos de um term o próprio, i.e .} que se
aplique apenas a cada um deles de m aneira tanto quanto possível incon­
fundível — p a lm e i r a , s a b iá — ou indicá-los pela classe ou gênero que in­
clua tam bém seus assemelhados — á rv o re , p á s s a r o . Se, ao descrever ou
evocar um aspecto da paisagem campestre, o autor se limita a um a refe­
rência generalizadora, falando apenas em “árvores onde cantam os pássa­
ros”, terá assinalado somente traços indistintos, comuns a um a classe mui­
to am pla de coisas ou seres. Sua referência é incaracterística. Mas, se fi­
zer como o poeta que se serviu de termos específicos, te rá caracterizado de
m aneira mais precisa aquele aspecto da paisagem: “palm eiras onde canta o
sabiá”. No prim eiro caso, empregou palavras de sentido g e r a l; no segun­
do, serviu-se de termos de sentido esp ecífico . Ora, quanto mais geral é o
sentido de um a palavra, tanto mais vago e impreciso; reciprocamente,
quanto mais específico, tanto mais concreto e preciso. Cabe aqui o teste­
m unho valioso de Paulo Rónai: “Quanto ao conhecimento do vocabulário
concreto, será preciso encarecer-lhe a importância num país como o Bra­
sil, m ostruário imenso de espécies animais e vegetais, ao mesmo tempo
que repositório de variado patrimônio sociológico e cultural, incessante­
m ente am pliado pela contribuição das correntes im igratórias e do inter­
câmbio comercial?” (artigo citado). Se, pelo menos, os professores encare­
cêssemos bastante a importância do vocabulário concreto, específico, nos­
sos alunos talvez aprendessem a “dar nome aos bois”, evitando nas suas
redações generalidades inexpressivas.
Há palavras que são mais específicas do que outras; cão p o lic ia l é
mais específico do que simplesmente cão; m a m ífe r o , mais do que v e r te b r a d o ,
e este, mais do que a n im a l; p a lm e ir a im p e r ia l é mais específico que p a lm e i­
ra , e p a lm e ir a mais do que á iv o r e , e á rv o re mais do que p la n ta ou v e g e ta l
T r a b a lh a d o r é term o de sentido geral, muito amplo: constitui um a classe;
186
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
tem sentido mais restrito; adaptando-se à escala de Darwin, seria o
gênero; m e ta lú r g ic o seria a espécie, e soldador, a variedade. Ao descrever
um a cena de rua, posso referir-me indistintamente a tr a n s e u n te s (sentido ge­
ral), ou particularizar em escala descendente (do mais geral para o mais es­
pecífico): homens, jovens, estudantes, alunos do colégio tal.
No entanto, generalização e especificação têm sentido relativo. A
palavra m e s a , por exemplo, tem sentido específico, quando com ela de­
signam os ou apontam os determ inado tipo de móvel constituído geralm en­
te p or um tam po sustentado por três ou quatro pés ou colunas; mas terá
sentido geral, vale dizer muito próximo da abstração, quando se referir a
um a classe de objetos assemelhados, sem se fixar em nenhum deles isola­
dam ente. Existe acentuada diferença entre esse tipo de abstração e aque­
le outro em que as gramáticas incluem os substantivos abstratos propria­
m ente ditos, como lib e r d a d e , j u s t i ç a , a m o r, d e v e i; v ir tu d e , c a r id a d e , no­
mes de entidades que não têm existência física, criadas que são pela
m ente hum ana como resultado da experiência em situações m uito com ­
plexas. Por isso, preferem alguns teóricos a denom inação sugerida por
Bentham : “entidades fictícias” ou “nomes fictícios”, reservando-se o ter­
mo “abstrato” para os nomes que designam q u a lid a d e s , a ç õ e s ou e s ta d o s
(;f o r m o s u r a , a d o r a ç ã o , morte).
O grau de generalização ou de abstração de um enunciado depende
do seu contexto. Na série de declarações que se seguem, a primeira, por
ser de ordem geral, encerra um juízo falso ou inaceitável em face da expe­
riência; no entanto, os termos essenciais que a constituem são os mesmos
da última que, por ser mais específica, se torna incontestável.
o p e r á r io
1.
Aprática dos esportes é prejudicial à saúde.
2.
Aprática dos esportes é prejudicial à saúde dos jovens.
3.
Aprática dos esportes é prejudicial à saúde dos jovens subnutridos.
4.
Aprática dos esportesviolentos é prejudicial à saúde dos jovens sub­
nutridos.
5. A prática indiscriminada de certos esportes violentos é prejudicial à saú­
de dos jovens subnutridos.
As especificações expressas pelos adjuntos d o s jo v e n s , s u b n u tr id o s , v io ­
le n to s, certos, in d is c r im in a d a tornam absolutamente aceitável a última decla­
ração.
A linguagem é tanto mais clara, precisa e pitoresca quanto mais es­
pecífica e concreta. Generalizações e abstrações tornam confusas as idéias,
traduzem conceitos vagos e imprecisos. Que é que expressamos realm ente
com o adjetivo “belo”, de sentido geral e abstrato, aplicável a um a infini­
dade de seres ou coisas, quando dizemos um a b e la mulher, um b elo dia,
um b elo caráter, um b elo quadro, urn b elo filme, uma b e la notícia, um belo
exemplo, uma b e la cabeleira? É possível que a idéia geral e vaga de “bele­
za” lhes seja comum, mas
zá-los de m aneira inconfu
esse adjetivo aplicado ind
possível assinalar-lhes trai
mais especificadores: mull
g a n te , g ra c io sa , m e ig a ...; i
vo...; caráter re to , im p o lu t
til, c o r d ia l, e d u c a d o ... E ce
de coisa, pois muitos dos
imprecisos, se bem que ei
a m etáforas e comparaçõe
ços mais característicos e
As palavras abstrac
inteligência. Por traduzire
sensível, seu teor se nos a
to maior esforço para lhe
Aristóteles, vulgarizada p<
p r iu s n o n f u e r i t in se n s u —
teligência sem passar ante
a linguagem humana deve
tas vezes, mesmo traduzid
na também obscura. Porta
processos. É o que ocorre,
hipóteses, conclusões, gen
se esclarecem, se fundam
concretos. Tudo depende <
ção e do nível mental do
A propósito da com
gem concreta, vale a pena
cadores expressa num reli
em geral, publicado em U
“Os estudanteí
a usar ‘palavras de S€
sendo dito, como se
mo deixar claro o qt
thur Quiller-Couch (<
1916, p. 122-4), por
diz que é um cânon t
ticular ao geral. Mas
casos e com propósit
tâncias o geral talvez
fato de que o particu
ser geral em relação
por exemplo, quadrúi
respeita a cão); mas,
todas as formas de d
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
187
za” lhes seja comum, mas não suficiente para distingui-los, para caracteri­
zá-los de m aneira inconfundível. Praticamente quase nada se expressa com
esse adjetivo aplicado indistintam ente a coisa ou seres tão díspares. Seria
possível assinalar-lhes traços singularizantes por meio de outros adjetivos
mais especificadores: m ulher atraente, tentadora, sensual, arrebatadora, ele­
gante, graciosa, meiga...; dia ensolarado, límpido, luminoso, radiante, festi­
vo...; caráter reto, impoluto, exemplar...; rapaz esbelto, robusto, guapo, gen­
til, cordial, educado... É certo que, ainda assim, o resultado não seria gran­
de coisa, pois muitos dos adjetivos propostos são ainda bastante vagos e
imprecisos, se bem que em m enor grau do que “belo”. No caso, o recurso
a m etáforas e comparações teria maiores possibilidades de salientar os tra­
ços mais característicos e pitorescos do que a simples adjetivação.
As palavras abstratas apelam menos para os sentidos do que para a
inteligência. Por traduzirem idéias ou conceitos dissociados da experiência
sensível, seu teor se nos afigura esmaecido ou impreciso, exigindo do espíri­
to m aior esforço para lhes apreender a integral significação. A sentença de
Aristóteles, vulgarizada pela frase de Locke — Nihil est in intdlectu quod
prius non fuerit in sensu — é incontestável: realmente, nada nos chega à in­
teligência sem passar antes pelos sentidos. Isso não significa, entretanto, que
a linguagem hum ana deve prescindir de abstrações para se fazer clara; mui­
tas vezes, mesmo traduzida em termos exclusivamente concretos, ela se tor­
na também obscura. Portanto, o que se aconselha é uma conjunção dos dois
processos. É o que ocorre, por exemplo, nas ciências experimentais, em que
hipóteses, conclusões, generalizações — vale dizer, abstrações — se apóiam,
se esclarecem, se fundamentam em especificações — vale dizer, em fatos
concretos. Tudo depende da natureza do assunto, do propósito da comunica­
ção e do nível mental do leitor ou ouvinte.
A propósito da conveniência de se usar linguagem abstrata ou lingua­
gem concreta, vale a pena citar a opinião de um grupo de professores e edu­
cadores expressa num relatório sobre o papel da língua inglesa na educação
em geral, publicado em Language in general education, há pouco citado:
“Os e s tu d a n te s são ac o n se lh a d o s a e v ita r 'p a la v ra s d e se n tid o g e ra l’ e
a u s a r ‘p a la v ra s d e se n tid o esp ecífico ’, sem le v a r em c o n s id e ra ç ã o o q u e está
se n d o d ito , co m o se isso fosse u m a reg ra p a ra to d o s o s casos, e sem m es­
m o d e ix a r c la ro o q u e é q u e se e n te n d e p o r ‘g e ra l’ o u ‘esp ecífico ’. S ir Ar­
th u r Q u iller-C o u ch (O n the a rt o f writing, N ova York, G.H P u tm a n ’s Sons,
1 9 1 6 , p. 1 2 2 -4 ), p o r exem plo, n o seu e n sa io 'O n ja r g o n ’ (‘S o b re o ja r g ã o ’)
d iz q u e é u m c â n o n d a retó ric a p re fe rir o te rm o c o n c re to ao a b s tra to , o p a r ­
tic u la r ao g era l. M as n ão se a d v e rte q ue isso é v e rd a d e a p e n a s em ce rto s
casos e co m p ro p ó sito s p a rtic u la re s; não se esclarece q u e e m c e rta s c irc u n s­
tâ n c ia s o g e ra l talv ez seja p referível; ta m p o u c o se c h a m a a a te n ç ã o p a ra o
fato d e q u e o p a rtic u la r e o g era l n ão sã o te rm o s a b s o lu to s, já q u e u m p o d e
se r g era l e m rela çã o a o u tro , c p a rtic u la r em relação a um Lerceiro (com o,
p o r e x e m p lo , quadrúpede, p a rtic u la r em re la ç ã o a an im a l, m as g e ra l n o q u e
re sp e ita a c ã o ); m as, acim a d e tu d o , n ão se a d v e rte ta m b é m q u e em q u ase
to d a s as fo rm a s d e d isc u rso q u e n ã o a sim p les d e sc riç ã o o u e n u m e ra ç ã o d e
188
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
No gênero descririvc
lavras de sentido concreto,
ria de determ inado jardim
do apenas que é muito bo
de viçosas flores, com algi
um a árvore muito fronde
plantas rasteiras? Uma árv
ficar tudo isso, para que a
d e ta lh e s físicos, o re la tiv a m e n te p a rtic u la r e o re la tiv a m e n te g e ra l se e n tro ­
sa m , -an te s e m h a rm o n ia d o q u e em opo sição , ta n to nas p a la v ra s d o a u to r
q u a n to n a m e n te d o leitor. À h a b ilid a d e e m p a s s a r fácil e s e g u ra m e n te d e
u m p a ra o u tro , s e n d o co m o sã o fo n te d e p e n s a m e n to c laro , b a se d o racio cí­
n io ta n to in d u tiv o q u a n to d e d u tiv o , se ria d o m a io r p ro v e ito no e s tu d o a d e ­
q u a d o d e q u a lq u e r lín g u a ” (p. 1 5 9 -5 0 ).
Mesmo no estilo literário propriamente dito, essa conjunção é ou deve
ser freqüente. E os bons escritores sabem disso, e por sabê-lo é que recor­
rem, em maior ou menor grau, a comparações e metáforas de teor concretizante. O conceito de vida, por exemplo, é muito abstrato, ou muito vago
para ser facilmente apreendido em toda a sua extensão; traduzido, entretan­
to, em linguagem concreta, toma-se mais claro. Foi o que fez o padre Antô­
nio Vieira: “Que coisa é a vida, senão uma lâmpada acesa — vidro e fogo?
Vidro, que com um assopro se faz; fogo, que com um assopro se apaga?” As
idéias abstratas de fragilidade e fugacidade da vida aparecem aí expressas
em termos concretos, de sentido metafórico (vidro, lâm pada acesa, assopro,
fogo, se faz, se apaga), que nos lembram sensações físicas, oriundas da ex­
periência do cotidiano; graças a isso, como que se materializam, tornandose-nos mais familiares, mais conhecidas, mais facilmente apreensíveis.
Monteiro Lobato, ao
os traços predominantes, n
E ra o c a sa rã o
e rg u ia -se em alicerces
a n te , d e p a u -a -p iq u e .
xó, nos trech o s d o n d í
b a n d e ira s em p an d a re
b aias e, n as faces d e
cas. N u m c u n h a l cres<
d o a lh a te n tac u la r. À j
p e n d re em cim a e pai
A sabedoria popular traduzida nos provérbios é um exemplo de lin­
guagem concreta, concisa, freqüentemente metafórica e pitoresca. A senten­
ça “onde impera a mediocridade ou a ignorância, os que têm algum mereci­
m ento se destacam facilmente” não tem o mesmo vigor nem a mesma conci­
são do conhecido provérbio “em terra de cego, quem tem um olho é rei”.
Confrontem-se a concisão, a exatidão e o pitoresco dos seguintes provérbios
com a vaguidade e a imprecisão das sentenças que procuram traduzi-los ou
interpretá-los em linguagem abstrata:
Q u e m te m te lh a d o d e v id ro não
jo g a p e d ra n o d o vizinho.
Q uem e stá su je ito a críticas n ã o :
tem o d i r e i lo d c c e n s u ra r o c o m p o r ta - !
m e n to alh eio .
!
É um a descrição nã
zante, graças aos pormeni
ramento de pedra e de pai
va (e não apenas esteios
sugeridor ainda mais de \
raara o reboco (note-se o
por exemplo, cair), janelt
pandarecos (locução adjeti
ticas (e não apenas plant
metafórico de raquíticas),
tentacular (observe-se aqi
to mais evocadora do qu
palavras de sentido espec
para alguns verbos: “entn
laçando”, e até mesmo “i
de um escritor medíocre,
vos: viam-se esteios, o re
baias, cobrindo as pedras,
vras de que o Autor se :
bos e os substantivos —.
grande parte, do seu sem
M ais v ale um p á s sa ro n a m ã o do
q u e d o is v o an d o .
O q u e nos p are ce p o u co m as é cer- j
to e seg u ro é p referív el ao q u e p are ce j
m uito m as é d u v id o so ou inacessível.
\
18 A p ud OLIVEIRA, Cleófano Lo
M a is C o n c r k t o , m ais P r e c is o
M a i s A b s t r a t o , m a i s Va g o
1
(co n o taüvo ou m etafórico)
(denota tivo ou n ã o fig u ra d o )
j
1
C ada qual d ev e lim ita r-se âs s u a s ,
atrib u içõ e s.
|
C a d a m a ca co no seu galho.
Á g u a m o le em
b a te a té q u e fura.
p e d ra d u ra
ta n to
L onge d o s o lh o s, lo n g e d o co ração .
À p e rse v e ra n ç a a c a b a le v an d o à !
co n sec u ção d o s o b jetiv o s co lim ad o s.
;
O a fa sta m e n to a fe ta as afeições.
i
O t h o n
M .
G a rc ia
♦
189
No gênero descritivo principalmente, impõe-se a preferência por pa­
lavras de sentido concreto, específico e metafórico. N enhum a idéia nos da­
ria de determ inado jardim o autor que se limitasse a generalidades, dizen­
do apenas que é muico bonito, muito florido, com os seus canteiros cheios
de viçosas flores, com algumas plantas rasteiras, uma gram a bem tratada e
um a árvore muito frondosa. Flores? Que flores? Plantas rasteiras? Que
plantas rasteiras? Uma árvore muito frondosa? Que árvore? Há que especi­
ficar tudo isso, para que a descrição do jardim se torne inconfundível.
M onteiro Lobato, ao descrever uma velha casa de fazenda, destaca-lhe
os traços predominantes, traduzindo-os em termos específicos:
E ra o c a sa rã o clássico d a s a n tig a s fa z e n d a s n e g re ira s . A sso b rad ad o ,
e rg u ia -s e cm alicerces o in u ra m e n to , d e p e d ra a té m eia a ltu ra e, d ali em d i­
a n te , d e p au -a -p iq u e . E steios d e cab riú v a e n tre m o s tra v a m -s e , p icad o s a e n ­
xó, nos trec h o s d o n d e se e s b o ro a ra o reb o co . J a n e la s e p o rta s e m arc o , d e
b a n d e ira s em p a n d a re c o s. Pelos in te rstíc io s d a p e d ra , am oiL avam -se s a m a m ­
b aias e, nas faces d e n o ru e g a (n ã o b a n h a d a s p elo so l], av e n q u in h a s ra q u íti­
cas. N u m cu n h a l crescia a n o s a figueira, e n la ç a n d o a s p e d ra s n a te rrív e l cor­
d o a lh a te n tac u la r. À p o rta d e e n tra d a ia te r u m a e s c a d a ria d u p la , com a l­
p e n d re em cim a e p a ra p e ito e s b o rc in a d o .18
É uma descrição não apenas pitoresca mas principalm ente singularizante, graças aos pormenores concretos, alguns de sentido metafórico: muramento de pedra e de pau-a-pique (e não apenas paredes), esteios de cabriú­
va (e não apenas esteios), picadas a enxó (porm enor bastante específico,
sugeridor ainda mais de um a técnica de construção antiga), donde se esbo­
roara o reboco (note-se o valor específico do verbo, mais preciso do que,
por exemplo, cair), janelas em arco (e não apenas janelas), bandeiras em
pandarecos (locução adjetiva a sugerir desleixo e ruína), avenquinhas raquí­
ticas (e não apenas plantinhas, ou plantas rasteiras; assinale-se o sentido
metafórico de raquíticas), /igueira anosa (e não apenas árvore), cordoalha
tentacular (observe-se aqui também o valor metafórico da expressão, m ui­
to mais evocadora do que o term o geral “raízes”). Ocorrem ainda outras
palavras de sentido específico, metafórico ou não; atente-se, por exemplo,
para alguns verbos; “entremostravam -se”, “esboroara”, “amoitavam-se”, “en­
laçando”, e até mesmo “ia ter” e “crescia”. Na pena de um principiante ou
de um escritor medíocre, esses verbos seriam de sentido geral, inexpressi­
vos: viam-se esteios, o reboco estava esburacado, havia ou viam-se sam am ­
baias, cobrindo as pedras, havia um a escada, havia um a figueira... As pala­
vras de que o Autor se serve têm, quase todas — principalm ente os ver­
bos e os substantivos — , grande valor descritivo, qualidade decorrente, em
grande parte, do seu sentido específico.
18 A pud OLIVEIRA, Cleófano Lopes de. Flor do IÂcio, p. 22.
190
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Vaga e imprecisa é a idéia do trajar dos cariocas sugerida pela leitura de um a descrição como a seguinte:
)
Os c a rio ca s se m p re se v estiram m u ito m al, com m u ito d esleix o . S em ­
p re fo ra m m u ito d isp lice n tes n a esco lh a d o trajo . U ltim a m e n te e n tã o esse
d esleixo se to rn o u a in d a m ais lastim áv el. É v e rd a d e q u e as m u lh e re s se v e s­
te m u m p o u q u in h o m elhor, m as m esm o assim rev elam a in d a m a u g o sto n a
esco lh a d o p e n te a d o q u e fazem nos cab eleireiro s.
i
Muito diversa é a impressão que nos deixa o trecho de Marques Re­
belo, onde as coisas vêm ditas não apenas com certa graça e malícia, mas
tam bém com propriedade, pitoresco e precisão:
O c a rio c a veste-se com o a c a ra d ele, q u e n ão é p rim o ro sa , e é vício
a n tig o q u e ele te m e b a s ta n te m e n te p ro v ad o p elo s v isita n te s es tra n g e iro s,
co lo n iais o u im p e riais. T em po h o u v e em q u e o te rn o b ra n c o e o sa p a to d e
v e rn iz p re to c o n s titu ía m o su p re m o ch iq u e p o p u la r — o tra je a rig o r p a ra
o s sa ra u s. U ltim a m e n te a d o ta o in d ig e n te re fin a m e n to d o c a b e lo g ra n d e , d a
b lu s a colo rid a, d o sa p a to ca m b a io c se m m eias, e d a ca lç a d e p e sc a r siri
co m u m a ir rita n te e tiq u e ta nos fu n d ilh o s. As m u lh e res, c u ja re b o la d a g raç a
s u p r e p e rfe ita m e n te a te ó rica b eleza, v estem -se u m p o u c o m e lh o rz in h o e
tê m ab issal a tra ç ã o p e lo a fe m in a d o m u n d o do s c a b e le ire iro s, d o n d e sa em
c o m p e n te a d o s q u e ja m a is d e v ia m u sa r.19
A primeira versão, forjada, poderia aplicar-se ao trajo dos habitan­
tes de qualquer cidade, dada a ausência de traços individualizantes: no
fim das seis ou sete linhas, o leitor fica sabendo apenas que os cariocas se
vestem mal. Ora, h á mil maneiras de vestir-se mal, e é a um a delas que
Rebelo se refere, distinguindo-a das demais, graças ao em prego de ter­
mos de sentido específico: terno branco, sapato de verniz preto, refinamen­
toindigente do cabelo grande, blusa colorida, sapato cambaio e sem meras,
calças de pescar siri, irritante etiqueta nos fundilhos... A descrição de Rebe­
lo, ainda que não exem plar quanto a outros aspectos estilísticos e gram a­
ticais, é, quanto à precisão e ao pitoresco, sem dúvida, digna de imitar. E
note-se: o Autor não se serve de palavras difíceis; seu vocabulário é sim­
ples mas adequado.
Outro modelo de descrição viva e expressiva é o que nos oferece
Aluísio de Azevedo:
Era u m d ia ab a fad iç o e ab o rrec id o . A p o b re c id a d e d e S ão Luís d o
M a ra n h ã o p a re c ia e n to rp e c id a p elo calor. Q u ase q u e se n ã o p o d ia sa ir à
ru a : as p e d ra s esca ld a v a m ; as v id raç as e os la m p iõ e s faisc av a m ao so l com o
e n o rm e s d ia m a n te s ; as p a re d e s tin h a m re v e rb e ra çõ e s d e p r a ta p o lid a ; as fo­
lh a s d a árv o re s n e m se m exiam ; as ca rro ças cfág u a p a s s a v a m ru id o s a m e n ­
te , a b a la n d o o s p rédios, e os a g u a d e iro s, em m a n g as d e c a m isa e p e rn a s
19 A pud B A N D E I R A ,
verso, p. 388.
M a iu ie l
& DRUMMOND
DE
ANDRADE, Carlos. Rio de Janeiro em prosa &
I
*
[calças] a rre g a ç a d a s,
n h e ira s e o s p o te s, f
tu d o e s ta v a c o n c e n rr
o ja n ta r, o u an d av am
E um excelente pai
núcleo, expressa nos dois
dem geral, e, por isso, p
gem precisa do aspecto (
so, Somente os pormeno
nas linhas seguintes, nos
abafadiço e aborrecido”.
— “as vidraças e os Iam
na escolha do verbo,
de brilho, de reflexo
to individualizante. N
comparação “como er
nhecida pela experiêr
faiscar das vidraças e
— “as paredes tinham r<
lho” — idéia de orde
fico. Essa tonalidade
estar reforçada pelo ;
metafórico, equivalen
tes”. Note-se que o }
da cidade ensolarada
— “as folhas das árvore
expressivo o dessa e.
pela causa ou o con:
ço, a idéia de que n;
ver as folhas das árv
to e entorpecim ento.
— carroças dágua, aguc
concretos, funcionan
de indício ou de sugi
me de escravidão, o
não é a de hoje, m a
A expressividade
seu freqüente preciosisi
dacle e da riqueza dos j
descrições. Os senões e
estudante pode e deve
excessos léxicos e sintát
O t h o n
M .
G a rc ia
♦
191
[calças] a rre g a ç a d a s, in v a d iam sem c e rim ô n ia as ca sa s p a ra e n c h e r as b a­
n h e ira s e os potes. Em c e rto s p o n to s n ão se e n c o n tra v a viva a lm a n a ru a;
tu d o e s ta v a c o n c e n tra d o , ad o rm e cid o ; só os p re to s faz iam as co m p ra s p a ra
o ja n ta r, o u a n d a v a m no gan h o .
E um excelente parágrafo descritivo: claro, simples, objetivo. A idéianúcleo, expressa nos dois períodos iniciais, constitui um a declaração de or­
dem geral, e, por isso, por ser de ordem geral, não nos permite uma ima­
gem precisa do aspecto da cidade de São Luís naquele dia de calor inten­
so, Somente os pormenores específicos e concretos, que o Autor encadeia
nas linhas seguintes, nos vão m ostrando com nitidez o que era aquele “dia
abafadiço e aborrecido”. Comentemos alguns:
— “as vidraças e os lampiões faiscavam como enormes diam antes”. — Já
na escolha do verbo, de sentido específico — faiscavam, forma peculiar
de brilho, cie reflexo luminoso, de cintilação — se denuncia o propósi­
to individualizante. Mas o Autor particulariza ainda mais, por meio da
com paração “como enormes diam antes”. O diam ante, coisa concreta, co­
nhecida pela experiência, ajudava-nos a visualizar com mais precisão o
faiscar das vidraças e lampiões.
— “as paredes tinham reverberações de pedra polida”. — Não tinham “bri­
lho” — idéia de ordem geral —, mas “reverberações” — sentido especí­
fico. Essa tonalidade particular de brilho torna-se ainda mais viva por
estar reforçada pelo adjunto “de pedra polida”, locução adjetiva de teor
metafórico, equivalente à comparação anterior “como enormes diam an­
tes”. Note-se que o Autor insiste em assinalar os traços predom inantes
da cidade ensolarada.
—■“as folhas das árvores nem se mexiam”. — Pormenor também bastante
expressivo o dessa espécie de metonímia, em que se emprega o efeito
pela causa ou o conseqüente pelo antecedente: se era um dia abafadi­
ço, a idéia de que não corria nenhum a viração ou brisa (capaz de m o­
ver as folhas das árvores) reforça ou reaviva a impressão de abafamen­
to e entorpecim ento.
— carroças dágua, aguadeiros, pretos no ganho são outros tantos detalhes
concretos, funcionando aqui, ainda mais, como um a espécie de signos
de indício ou de sugestão: a ausência de sistema de canalização e regi­
me de escravidão, o que leva o leitor a concluir que a cidade descrita
não é a de hoje, mas a de uma época relativam ente remota.
A expressividade do estilo de Euclides da Cunha, em que pese ao
seu freqüente preciosismo vocabular, decorre em grande parte da proprie­
dade e da riqueza dos pormenores concretos que tornam vivíssimas as suas
descrições. Os sertões encerram excelentes exemplos desse gênero, que o
estudante pode e deve imitar, desbastando-os, é claro, de alguns dos seus
excessos léxicos e sintáticos. O trecho antológico sobre a resistência física e
192
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
m oral do sertanejo (“O sertanejo é antes de tudo um forte”) seria inconvincente, se o Autor se restringisse às generalizações com as quais sinteti­
za o seu julgam ento ou expressa sua opinião sobre o sertanejo. Só nos
convence, só nos comunica realm ente alguma coisa quando as desenvolve
nos detalhes concretos e específicos com que as acom panha:
cura traduzir as idéias abstn
saço doentio e deselegância
G en er a l iz a ç ã o
É o homem permanentemt
tigado. Reflete a preguiça inv
a atonia muscular perene em l
í
|
G en e r a l iz a ç ã o
E spe c ific a ç õ e s
I
(idéias vagas)
(idéias precisas)
O se rta n e jo é a n te s d e tu d o um
fo rte . N ão te m o raq u itism o ex a u stiv o
d o s m estiço s n e u ra stê n ic o s d o lito ral.
A su a a p a rê n c ia , e n tre ta n to , ao p ri­
m e iro la n c e d e v ista , re v e la o c o n trá ­
rio . F alta-lh e a p lá stic a im pecável, o
d e s e m p e n h o , a e s tru tu ra co rretíssim a
d a s o rg a n iz a ç õ e s atlética s. E d e s g ra ­
cioso, d e s e n g o n ç a d o , to rto .
(a este trecho segue-se im ed ia ta m en te o
q u e está na colu n a à d ireita.)
H ércules-Q uasím odo reflete n o as­
pecto a feald ad e típ ica dos fracos. O a n ­
d a r sem firm eza, se m ap ru m o , q uase
gingante e sinuoso, a p a ren ta a tra n sla ­
ção d e m em b ro s d esartic u lad o s. A g ra­
va-o a p o stu ra n o rm a lm e n te ac u rv ad a,
n u m m a n ifesta r d e displicência, q u e
lhe d á u m c a rá te r d e h u m ild a d e d e p ri­
m en te. A pé, q u a n d o p a ra d o , recosta-se
in v a riav elm en te ao p rim e iro u m b ra l ou
p a re d e que en c o n tra ; a cavalo, se so ­
freia o an im al p a ra tro ca r d u a s p a la ­
vras com um co n h ecid o , cai logo so ­
b re um dos estrib o s, d e sc a n sa n d o so ­
b re a es p en d a [p a rte d a sela em q u e
assen ta m as coxas d o cavaleiro] d a se­
la. C am in h an d o , m e sm o a p asso rá p i­
do, n ão tra ç a tra je tó ria retilín ea e fir­
m e. A vança ce le re m en te, n u m b a m b o ­
le ar característico , d e q u e p are cem se r
o traço g eo m étric o os m e an d ro s d as
trilhas sertan ejas.
\
j
Note-se, na especificação, o valor expressivo da m etoním ia compósita “Hércules-Quasímodo” com que o Autor nos transm ite a idéia de “forte”
(Hércules) e “feio ou disforme” (Quasímodo, aqui personagem do rom an­
ce Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, figura disforme, de grotesca apa­
rência física). O recurso a essa metoním ia de sentido concreto torna mais
precisa a im agem que do sertanejo se forma na mente do leitor, apesar da
aparente contradição entre a sugestão de força física e compleição atléti­
ca, implícita em Hércules, e a verdadeira aparência do sertanejo que co­
nhecem os e que o próprio Autor diz refletir a “fealdade típica dos fracos
Atente-se ainda para outros detalhes das diferentes posturas do sertanejo:
o andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, a postura
norm alm ente acurvada, o recostar-se “invariavelmente ao primeiro umbral
ou parede que encontra”, o cair logo “sobre um dos estribos, descansando
sobre a espenda” — referências de ordem concreta com que o Autor pro-
Aqui, Euclides desen\
e abstrata de fadiga e pregi
enganoso nessa aparência dc
I
*
E n tre ta n to , to d a essa ap arê
ca n sa ç o ilu d e. N ad a é m ais si
d e n te d o q u e v ê-la d e s a p a re c e i
p ro v iso . N a q u e la o rg an iz aç ão
lid a o p era m -se, em seg u n d o s, t
ta çõ e s co m p letas. Basta o ap are
d e q u alq u er incidente exigindo-11
se n c a d e a r d a s en e rg ias ad o rm e
O h o m e m tran sfig u ra-se .
Até o fim do trecho, ç
reproduzem justam ente por
lando), pode o leitor obsen
ordem geral com especificai
passagem, não exclusivo deí
des da Cunha, mesmo os ei
gem da História.
Todos os grandes esti
so. Exemplifiquemos novame
sim dizer quase tangíveis, qi
ral, religiosa, ou filosófica, c
U F P E Biblioteca C en tra
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
193
cura traduzir as idéias abstratas de disformidade, indolência mórbida, can­
saço doentio e deselegância na atitude e no caminhar.
G e n e r a l iz a ç ã o
E s pe c ific a ç õ e s
É o homem permanentemente fa­
tigado. Reflete a preguiça invencível,
| a atonia muscular perene em tudo:
na palavra demorada, no gesto contra­
feito, no andar desaprumado, na ca­
dência langorosa das modinhas, na ten­
dência constante à imobilidade e à quie­
tude.
1
i!
u.
Aqui, Euclides desenvolve com outros detalhes a m esm a idéia geral
e abstrata de fadiga e preguiça, para logo a seguir m ostrar o que há de
enganoso nessa aparência do
Entretanto, toda essa aparência de
cansaço ilude. Nada é mais surpreen­
dente do que vê-la desaparecer de im­
proviso. Naquela organização comba­
lida operam-se, em segundos, transmu­
tações completas. Basta o aparecimento
de qualquer incidente exigindo-lhe o de­
sencadear das energias adormecidas. /
O homem transfigura-se.
i
Empertiga-se estadeando novos re­
levos, novas linhas na estatura e no
gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, so­
bre os ombros possantes, aclarada pelo
olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga ner­
vosa, instantânea, todos os efeitos do
relaxamento habitual dos órgãos; e da
figura vulgar do tabaréu achamboado
[abobado, simplório], reponta, inespera­
damente, o aspecto dominador de um
titã acobreado e potente, num desdo­
bramento inesperado de força e agilida­
de extraordinárias.
Até o fim do trecho, que quase todas as antologias reproduzem (e o
reproduzem justam ente por essas qualidades estilísticas que vimos assina­
lando), pode o leitor observar esse processo de intercalar declarações de
ordem geral com especificações de ordem concreta, processo, diga-se de
passagem, não exclusivo desse texto, mas de quase toda a obra de Eucli­
des da Cunha, mesmo os ensaios de Contrastes e confrontos e de À mar­
gem da História.
Todos os grandes estilistas recorrem com freqüência a esse proces­
so. Exemplifiquemos novam ente com um dos maiores: Vieira torna, por as­
sim dizer quase tangíveis, quase concretas, idéias abstratas, de ordem m o­
ral, religiosa, ou filosófica, que de hábito discute, analisa, interpreta. Veja-
194
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P rosa
M o d e r n a
se como a idéia vaga de ambição se torna facilmente compreensível graças
aos exemplos específicos:
3.0 Famílias i
G e n e r a l iz a ç ã o
E s p e c if ic a ç õ e s
C
O s in s tru m e n to s q u e crio u a n a tu ­
re z a , o u fa b ric o u a a rte , p a r a o se rv i­
ço cío h o m e m , to d o s tê m ce rto s te r ­
m o s d e p ro p o rç ã o , d e n tr o d o s q u a is
se p o d e m c o n s e rv a r e fo ra d o s q u ais
n ã o p o d em .
ii
I
M as tu d o se d e sc o n c e rta e se p erí d e , p o rq u e em tu d o q u e r a am bição
j h u m a n a e x c e d e r a esfe ra e p ro p o rç ã o
1d o p o d e r
C om a c a rg a d e m a s ia d a cai o j u ­
m e n to , re b e n ta o c a n h ã o e v ai-se o
n a v io a p iq u e . P or isso se v ê e m ta n ­
tas q u e d a s , ta n to s d e s a s tre s e ta n to s
n a u frá g io s n o m u n d o . Se a c a rg a fo r
p ro p o rc io n a d a ao c a lib re d a p eç a, ao
bojo d o n av io e à fo rç a o u fra q u e z a
d o ju m e n to , n o m a r far-se-á v iag em ,
n a te rr a e n o m a r tu d o a n d a r á c o n ­
c e rta d o .
O segundo trecho da generalização (“Mas tudo se desconcerta e se
perde...”) encerra a conclusão do parágrafo, a qual costuma ser também,
quando ocorre, um a declaração de ordem geral, uma abstração, a que se
deve obrigatoriam ente chegar pelos argumentos apresentados nas especifi­
cações, como o mostra o exemplo de Vieira.
Estamos vendo assim o valor expressivo das especificações e concreções conjugadas com generalizações e abstrações. Os trechos que acaba­
mos de com entar parecem bastante convincentes: o estudante pode tomálos como exemplos dignos de imitar. A norma que deles se pode deduzir é
válida para todos os gêneros literários, principalmente para a descrição e a
dissertação (ver 10. Ex., 201-208).
3.1 Famílias etii
Como não se igi
agregação de dois ou m
de com a própria raiz),
antes de ligação e de ap
aqueles que passaram p
cessário. Basta relembra
etimológica, responsável
m um a uma série de pa
diários, principalmente <
Se o estudante st
vras, pode ter o seu v&
do o significado básico
sível, em muitos casos j
vezes bastante considen
rer ao dicionário. Seja,
te loc (u), que signific;
m esm o outros radicais
identificáveis, visto ser *
cerca de vinte palavras
locução: maneira
um a só; expressão (radi
locutor: aquele qt
visão (o sufixo — tor ir
loquaz: falador, p;
cia ou excesso: o que h
loquacidade: quai
(o sufixo — idade indic
locutório: literalm
variante — douro — cf.
dicam lugar onde se pr<
3.0 Famílias de palavras e tipos de vocabulário
3.1 Famílias etimológicas
Como não se ignora, as palavras são formadas, geralmente, pela
agregação de dois ou mais elementos: o ra d ic a l (que freqüentem ente coinci­
de com a própria raiz), os a fix o s (prefixos e sufixos), v o g a l te m á tic a , c o n s o ­
a n te s de lig a ç ã o e de a p o io , e d e s in ê n c ia s. São noções consabidas por todos
aqueles que passaram pelo curso fundamental: repeti-las aqui seria desne­
cessário. Basta relem brar que o radical é o elemento básico de um a família
etimológica, responsável pelo seu núcleo significativo, isto é, pela idéia co­
mum a uma série de palavras formadas pela agregação de elementos subsi­
diários, principalmente os afixos e as desinências.
Se o estudante se lembra ainda do processo de formação das pala­
vras, pode ter o seu vocabulário extraordinariam ente aum entado. Conheci­
do o significado básico de certo radical e dos afixos comuns, ser-lhe-á pos­
sível, em muitos casos pelo menos, reconhecer pelo sentido um núm ero às
vezes bastante considerável de vocábulos novos sem necessidade de recor­
rer ao dicionário. Seja, por exemplo, o radical latino lo q u (i) e sua varian­
te lo c (u), que significa “falar”. Juntando-se-lhes prefixos e sufixos — e
mesmo outros radicais — formam-se derivados e compostos facilmente
identificáveis, visto ser conhecido o seu núcleo semântico. Obtêm-se assim
cerca de vinte palavras novas:
lo c u çã o : maneira especial de falar; grupo de palavras equivalentes a
um a só; expressão (radical + sufixo — ção = condição, estado).
lo c u to r : aquele que fala; anunciador de programas de rádio ou tele­
visão (o sufixo — to r indica o agente, i.e., o que pratica a ação de falar).
lo q u a z : falador, palrador, verboso (o sufixo — a z indica aí abundân­
cia ou excesso: o que fala m u ito ) .
lo q u a c id a d e : qualidade do que é loquaz; verbosidade, tagarelice
(o sufixo — id a d e indica a qualidade; condição ou natureza de).
lo c u tó rio : literalm ente, o lugar onde se fala (o sufixo — tó r io e sua
variante — d o u r o — cf. m a ta d o u r o , b e b e d o u r o , r e fe itó r io , d o r m itó r io — in­
dicam lugar onde se pratica a ação).
196 ♦ c O M U N I C A Ç Ã O
EM
PROSA
MODERNA
loqüela: fala, verbosidade (o sufixo — ela tem sentido diminutivo, e
às vezes pejorativo, o que acrescenta a essa palavra o matiz semântico de
falazinha, conversa sem muita importância).
alocução: discurso breve.
elocução: forma de se exprimir, falando ou escrevendo (o prefixo e
— (ex) significa para fora, exteriorização).
elóquio: fala ou discurso; sinônimo pouco em pregado de alocução.
eloqüência (e eloqüente): faculdade de falar de modo que se conse­
gue dominar o ânimo de quem ouve (sufixos — (ê)ncia — estado, qualidade,
condição, ação — e — (e)nte — agente).
circunlóquio: rodeio de palavras; perífrase (prefixo circum — em torno,
em redor).
colóquio: conversação ou palestra (prefixo — co (cum) — agrupa­
m ento, reunião). Cognatos: coloquial, coloquialismo.
colocutor: aquele que fala com outro.
antelóquio: literalmente, o que vem dito antes; prefácio, prelóquio
(sinônimo pouco usado de antelóquio).
prolóquio: provérbio, máxima, sentença, ditado (prefixo pro — para
a frente).
grandíloquo, grandiloqüente, magniloqüente: que tem linguagem ele­
vada, nobre, pomposa; muito eloqüente (radicais grand — e magn — que
são sinônimos).
3.2 Famílias ideológicas e campo associativo
Mas as palavras não se irmanam apenas pela sua comunidade de ori­
gem, como acabamos de ver em “famílias etimológicas”: associam-se também
pela identidade de sentido, constituindo então o que é de hábito chamar-se
de “famílias ideológicas”, isto é, séries de sinônimos afiliados por um a noção
fundamental comum. Citemos o exemplo que nos dá Celso Cunha (Manual de
Português, 3- e 4- séries, p. 166):
“a) casa, domicílio, habitação, lar, mansão, morada, residência, teto, vivenda;
b) mar, oceano, pego, pélago, ponto.”
“O estudo sistemático dos grupos de sinônimos — acrescenta Celso
Cunha — é, como o das famílias de palavras, de capital im portância para
a aquisição e domínio do vocabulário da língua. Não se deve, porém, es­
quecer que esse estudo não consiste apenas em ju n tar palavras enlaçadas
pelo sentido; é indispensável que nele se considerem também os matizes
que as distinguem .” A seguir transcreve o Autor um trecho do Dicionário
de sinônimos, de Antenor Nascentes, um dos melhores, se não o melhor, de
que dispõe a nossa língua:
“M ar é u m a vas
d a su p e rfíc ie d a T erra,
ral, a q u e seu s lim ites
reg ím en , tais com o mí
d u a lid a d e : Mar do Non
e x te n sã o d o m a r e, em
tu iç ã o é o u p a re c e S€
vam,’ (Lusíadas, I, 19,
Pego, form a p o p u la r d o
d o p a ra o pego to d a a
é o alto-m ar. / Ponto é
a lm e n te ao Ponto Euxit
Mas as palavras se <
semântica; muito freqüenti
outras que, embora não síj
da situação ou contexto, ;
de idéias, pelo processo d
o agrupam ento por afini<
“campo associativo” ou Mc<
pio, pode evocar-nos um a
como nos ensina Souza da
“T om em os a p í
su g e rir:
vastidão, amplie
campo, e aq u i se recc
com q u e os p o etas às
d e s te com u m cam p o ,
ca arados de estranho
u m reg o n a face d a ti
d o rso d as ág u as; é o J
esp écie d c re d e d e pr
cie d o m ar; cham a-se“A su p erfície d
o ra em p o la-se em o n
v a n ta m tã o alto , q u e
so es q u e e n tre eles s
po, alterado; o ra vare
e m carneirada, q u e re
“Pode, debaixo
nar-se-ão, a propósito,
chões; p ode sem ear-se
c/topos, abrolhos, recift
n a baixa-mar, q u e são
m acarcus, e com o en<
UFPE Biblioteca C entrai
O t h o n
M.
G arc ia
♦
197
“M a r é u m a v a s ta ex te n sã o d e ág u a sa lg a d a q u e c o b re g ra n d e p a rte
d a su p e rfíc ie d a T erra. Em se n tid o restrito , é p a rte d o d o m ín io m a rítim o g e­
ral, a q u e seus lim ites g eográficos precisos o u c e rta s p a rtic u la rid a d e s d e seu
re g ím e n , ta is com o m arés, c o rren te s, etc, c o n stitu e m u m a so rte d e in d iv i­
d u a lid a d e : M ar do N orte, M ar Báltico. / O ceano, em se n tid o g eral, é a v asta
e x te n sã o d o m a r e, cm se n tid o restrito , g ra n d e esp aço m a rítim o , cuja co n sti­
tu iç ã o é o u p are ce se n siv elm en te u n ifo rm e: J á no la rg o Oceano n a v e g a ­
v a m / (Lusíadas, I, 19, 1). O ceano A tlâ n tico , Oceano Pacífico, Oceano Índico. /
Pego, form a p o p u la r d o latim pelagu, é a p a rte m ais p ro fu n d a d o m ar: ‘D eitan ­
d o p ara o pego to d a a a rm a d a ’ (Lusíadas, v. 73, 4 ). / Pélago, p alav ra eru d ita,
é o alto-m ar. / Ponto é a desig n ação do mar, d e orig em greg a, ap licad a especi­
a lm e n te a o P onto Euxino, isto é, o m ar N egro (Eúxeios Póntos
Mas as palavras se associam também por uma espécie de imantação
semântica; m uito freqüentemente, uma palavra pode sugerir um a série de
outras que, em bora não sinônimas, com elas se relacionam, em determ ina­
da situação ou contexto, pelo simples e universal processo de associação
de idéias, pelo processo de palavra-puxa-palavra ou de idéia-puxa-idéia. É
o agrupam ento por afinidade ou analogia, que poderíamos cham ar de
“campo associativo” ou “constelação semântica”. A palavra mar; por exem­
plo, pode evocar-nos uma série de outras não necessariam ente sinônimas,
como nos ensina Souza da Silveira em A língua nacional e o seu estudo:
“T om em os a p alav ra m a r e v am o s re g istra n d o as id éias q u e ela nos
su g e rir:
vastidão, am plidão, im ensidade, infinito; m obilidade; h o rizo n te; planície,
cam po, e aq u i se re c o rd a rã o expressões com o azul ca m p in a , cerúleo ca m p o,
com q u e os p o etas às vezes d esig n am o mar, e, a in d a d e n tro da co m p araç ão
d e s te co m u m cam p o , ind icarem o s o v erb o arar; cm frases com o m ares n u n ­
ca arados de estranho ou próprio lenho. E assim com o a relh a d o a ra d o ab re
um reg o n a face d a te rra, assim a quilh a d a em b a rc a ç ã o rasga u m su lco no
d o rso d a s águas; é o friso , listão o u esteira. M as esteira é, além d isto , aq u ela
espécie d e re d e d e p ra ta o u d e o u ro q u e a lua e o s o l e s te n d e m na su p e rfí­
cie d o m a r; ch am a-se-lh e ta m b é m trem ulina.
“A superfície d o m a r o ra o n d u la b ra n d a m e n te : o m a r e s tá b a n zeiro;
o ra e m p o la-se em o n d as, vagas, m a ro u ço s, esca rc éu s, q u e p o r vezes se le ­
v a n ta m tã o alto , q u e os p o etas os c o m p a ra m a serras, e a vales as d e p re s ­
sões q u e e n tre eles se cavam : o m a r e s tá encapelado, ag itad o , revolto, cres­
po, a lte ra d o ; o ra v a re ja d a d e v en to teso , a face d a s ág u a s a p e n a s se eriça
em ca rn eira d a , q u e rec o rd a um b a n d o d e o v elh as p a s ta n d o .
“P ode, debaixo de seu sorriso azul, esco n d er perigos ao s n au tas; m encionar-se-ão, a propósito, os baixos o u baixios, bancos de areia, sirtes, vaus, m a ra ­
chões; p o d e sem ear-se de fragas, penhascos, rochedos, penedos, rochas, penhas, ca­
chopos, abrolhos, recifes, parcéis; pode crescer na pream ar; m in g u ar na vazante,
na baixa-mar, qu e são m ovim entos da m aré; agitar-se com as ressacas, com os
m acaréus, c com o encontro do caudal d e u m rio re b e n ta r e rugir nas pororocas.
198 ♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
“O v o cáb u lo m a r ev oca-nos a in d a u m q u a d ro c o m u m : ro ç a n d o a lí­
q u id a e s m e ra ld a p assam as g aivotas, e n u m bafejo d e v e n to p a lp ita m as v e­
las b ra n c a s d e u m barco. A codem -nos e n tã o ex p re ssõ es com q u e se d e sig ­
n am as v elas d a s em b arcaçõ es: p a n o , brim , grandes lenços, asas...
“D e asas, significando velas, se passa, m u ito n a tu ra lm e n te , a iw dantes
aves, com q u e C am ões d esignou navios, em barcações, a q u e os p o etas ch a ­
m a m a in d a lenho, m adeiro, p a u , pinho, fa ia . O m astro se d iz arvore, o co n ju n ­
to d eles arvoredo, e d a í a expressão nau dcsaw orada. O s m o v im en to s q u e o
b u lir das águas im prim e à em b arcação en u n c ia m -se com os verbos balançar
o u balouçar, arfar, zimbrar. Se o barco inclina u m lado, aderna, e está varado
q u a n d o se acha em seco ou encalhado.
“D o m a r disse Jo sé A gostin h o d e M aced o Vasto im pério do vento to r­
m entoso’. Tem , pois, lu g a r referir os n o m es d e v en to s: B óreas, À quilo, A qui­
lão, N oto, A ustro, E uro, Zéfiro, q u e além d e v en to d e o e s te d e sig n a v en to
b ra n d o : A frico o u ávrego; v en to g alern o , p o n te iro , so ã o , n o rta d a , n o rtia ; tu ­
fão, ra ja d a , p eg ão , ou p é-d e-v en to ; viração, terral, te rr e n o o u te rre n h o , a ra ­
g em , a u ra , b risa ...”
Os professores nos impressionamos a todo m om ento com a pobreza
do vocabulário dos nossos alunos, que se sentem incapazes de traduzir
idéias ou sentim entos a respeito das suas relações sociais, a respeito do
m undo que os cerca. São incapazes, por exemplo, de caracterizar o com­
portam ento, a atitude, o caráter, os sentimentos dos colegas, porque lhes
faltam palavras para isso. Por que, então, não lhes pomos ao alcance, em
exercícios que não seriam assim tão numerosos, recursos de expressões
para as impressões que a experiência cotidiana lhes fornece a todo instan­
te? Tais exercícios não constituiriam, de forma alguma, outro dicionário
analógico, porque abrangeriam apenas certas áreas semânticas relaciona­
das com a experiência e as necessidades de comunicação dos jovens (jo­
vens e adultos cultos) de certo nível mental, na faixa dos dezesseis aos
vinte anos. Eis aí um a tarefa que gostaríamos de realizar — e é possível
que o façamos com o material que vimos reunindo nestes dois últimos
anos. Mas, se não dispusermos de meios ou tempo para isso, os exercícios
correspondentes a este capítulo (ver 10. Ex., 220-46) talvez sirvam de
am ostra ou padrão para outros que os professores queiram organizar.
3.3 Quatro tipos de vocabulário
Todo indivíduo medianamente culto dispõe de quatro tipos de vocabu­
lário: o da língua falada ou coloquial, o da linguagem escrita, o de leitura e
o de simples contato. Os incultos ou analfabetos conhecem certamente ape­
nas o primeiro.
O vocabulário da linguagem coloquial, relativamente pequeno, é o de
que nos servimos na vida diária para satisfazer as necessidades triviais da
comunicação oral. Comp
concreto, que, ligadas a
na corrente da fala. São
d a corrente de articulaçã
O segundo tipo é
mente na linguagem e sa
dática. Seu acervo é cons
cidas de outras que rarar
O terceiro tipo cc
empregamos nem na líi
nos é familiar. O vocab
um a página impressa se
O quarto tipo, a <
siderável número de pa
cujo significado preciso i
costumamos dizer “conh
palavras lidas ou ouvida
potético, anódino e inút
O primeiro e o s
que é muito m enor do
ativo serve à expressão
nas pela compreensão di
O t h o n
M.
G ar c ia
♦
199
comunicação oral. Compõe-se, na sua grande maioria, de palavras de teor
concreto, que, ligadas a coisas ou situações reais, fluem espontaneam ente
na corrente da fala. São em geral aprendidas de ouvido, constituindo moe­
da corrente de articulação franca na transação das idéias.
O segundo tipo é representado pelas palavras que usamos ocasional­
mente na linguagem escrita, seja literária ou técnico-científica seja apenas di­
dática. Seu acervo é constituído em parte por palavras do primeiro tipo, acres­
cidas de outras que raramente, ou nunca, circulam na linguagem coloquial.
O terceiro tipo compreende aquelas palavras que pessoalm ente não
empregamos nem na língua literária nem na coloquial, mas cujo sentido
nos é familiar. O vocabulário de leitura nos permite entender facilmente
um a página impressa sem necessidade de recorrer ao dicionário.
O quarto tipo, a que chamamos vocabulário de contato, abrange con­
siderável número de palavras ouvidas ou lidas em situações diversas, mas
cujo significado preciso nos escapa. São dessas palavras a respeito das quais
costumamos dizer “conheço mas não sei exatamente o que significam”. São
palavras lidas ou ouvidas mas não apreendidas. É assim um vocabulário hi­
potético, anódino e inútil, não obstante, bem numeroso.
O primeiro e o segundo tipos constituem o nosso vocabulário ativo,
que é muito m enor do que o passivo, representado pelos dois últimos. O
ativo serve à expressão do nosso pensamento, o passivo é responsável ape­
nas pela compreensão do pensamento alheio.
4.1 Paráfrase e r
4.0 Como enriquecer o vocabulário
Há vários modos de enriquecer o vocabulário; o mais eficaz, entre­
tanto, é aquele que se baseia na experiência, isto é, num a situação real
como a conversa, a leitura ou a redação.
É através da língua falada de um modo geral, inclusive a que se
ouve no rádio, na televisão e no cinema, que se forma grande parte do
nosso léxico ativo. As crianças e os incultos — assim como tam bém os m e­
dianam ente cultos que não se dediquem a atividades intelectuais — só ex­
cepcionalmente recorrem ao dicionário, e se o fazem é a posteriori: quer
dizer, não em busca de palavras novas mas à procura do sentido de pala­
vra ouvida ou lida.
Entretanto, a leitura atenta de obras recomendáveis, a leitura que se
faz, literalmente, de lápis na mão para sublinhar as palavras desconheci­
das e, depois de consultar o dicionário, anotar-lhes o significado, esse é,
sem dúvida, o m elhor processo de aprim orar o vocabulário. Mas, para do­
m inar realm ente o sentido das palavras assim conhecidas, para transformálas em vocabulário ativo, urge procurar empregá-las. Só assim elas se in­
corporaram , de fato, aos nossos hábitos lingüísticos.
Daí a importância da redação nas suas mais variadas formas: a com­
posição livre propriam ente dita, a paráfrase, a amplificação, o resumo (con­
densação, sinopse), a mudança no torneio de frases e, até, a tradução. Mas,
dado o propósito e dadas as limitações deste tópico, tratarem os aqui apenas
da paráfrase e da amplificação, sugerindo a seguir (4.3), sumariamente, es­
quem aticamente, outros exercícios que o professor poderá propor a seus alu­
nos, inspirando-se ainda nos de números 103 a 115 e 204 a 252, que se en­
contram em 10. Ex.
Quanto ao resumo (a tradução, é evidente, escapa aos moldes desta
obra, em bora nos refiramos, de passagem, a um equivalente dela — a metáfrase — , tradução de poesia), impunha-se deslocar o seu estudo para ou­
tra parte do livro, por nos parecerem indispensáveis certas noções prévias,
tais como, sobretudo, as referentes à estrutura do parágrafo (3. Par.) e ao
planejam ento dos tipos tradicionais de composição em prosa (descrição,
narração, dissertação e argum entação).
A paráfrase constitii
bui para o aprimorament
ras oportunidades de rees
como não devb, de fato,
um texto A (explicandum,
nônimas, num texto B (ex
Na Antigüidade cl;
ráfrase consistia — segu
transpor em prosa um i
tio, amplificação) ora al
cisão). No seu sentido
no desenvolvimento expl
sentido que se fala em
tretan to (estamos pensai
palavra como sinônimo <
tende mesm o como “de:
expressão e, até, de oui
ção lexicográfica — qu<
como um a paráfrase d;
pensando naqueles profe
esse tipo de exercício a
cie de tradução dentro
mais clara, num texto E
m arginais, sem nada ac
ciai, tudo feito com ou
com outras palavras, e c
sucinta sem deixar de se
to original.
O português arcaic
ra se exija do “parafrase
convém não confundir, m
dernização (gráfica, morf
co. É atualização o que
ga de am or de Joan Gai
transcrevemos, para servi
20 CURTIUS, Ernest Robert. Ü
21 Reduzida à fórmula “o texto
tos da gramática gerativa.
22 Didática da língua portuguest
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
201
4.1 Paráfrase e resumo
A paráfrase constitui exercício dos mais proveitosos, pois não só contri­
bui para o aprimoramento do vocabulário mas também proporciona inúme­
ras oportunidades de reestruturação de frases, sobretudo se ela se limita —
como não deve, de fato, limitar-se — a simples substituições de palavras de
um texto A (e x p lic a rtd u m , isto é, o original a ser parafraseado) por outras, si­
nônimas, num texto B ( e x p lic a tw n , í e . } a paráfrase propriamente dita).
Na Antigüidade clássica, assim como na Idade M édia latina, a pa­
ráfrase consistia — segundo nos ensina Curtius —20 essencialm ente em
transpor em prosa um texto em verso, ora desenvolvendo-o (a m p lifi c a tio, amplificação) ora abreviando-o (a b b r e v ia tio , abreviação, isto é, con­
cisão). No seu sentido usual — ou num deles — a paráfrase consiste
no desenvolvim ento explicativo (ou interpretativo) de um texto. É nesse
sentido que se fala em “paráfrase (s) dos Evangelhos”. Alguns autores, en­
tretanto (estam os pensando em alguns autores am ericanos), em pregam a
palavra como sinônimo de condensação ou resum o; m as a m aioria a en­
tende mesmo como “desenvolvimento explicativo” de um texto, de um a
expressão e, até, de outra palavra (neste último caso, a própria defini­
ção lexicográfica — que consta dos dicionários — pode ser entendida
com o um a paráfrase da... palavra-verbete). Entre nós (estam os agora
pensando naqueles professores que ocasional ou habitualm ente propõem
esse tipo de exercício a seus alunos), paráfrase corresponde a um a espé­
cie de tradução dentro da própria língua, em que se diz, de m aneira
mais clara, num texto B o que contém um texto A,21 sem com entários
m arginais, sem nada acrescentar e sem nada om itir do que seja essen­
cial, tudo feito com outros torneios de frase e, tanto quanto possível,
com outras palavras, e de tal forma que a nova versão — que pode ser
sucinta sem deixar de ser fiel — evidencie o pleno entendim ento do tex­
to original.
O português arcaico pode prestar-se a esse tipo de exercício, embo­
ra se exija do “parafraseador” o conhecimento da história da língua. Mas
convém não confundir, no caso, paráfrase com simples atualização, ou m o­
dernização (gráfica, morfológica, sintática e semântica) de um texto arcai­
co. É atualização o que faz Leodegário de Azevedo Filho22 de um a canti­
ga de am or de Joan Garcia de Guilhade (trovador do séc. XIII), da qual
transcrevemos, para servir de exemplo, apenas a primeira estrofe:
20 CURTIUS, Erncst Robert. Lireratura européia e. Idade Média latina, p. 153 e 528.
21 Reduzida à fórmula “o texto B contém o texto A”, a paráfrase constitui um dos fundam en­
tos da gramática gerativa.
22 Didática da língua portuguesa, p. 102.
202
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Se se p u d esse o espi
Ver a tra v é s d a m á s a
Q u a n ta g e n te , talvez
N os cau sa, e n tã o , p i
A m igos, n o n p o ss'eu n e g a r
a g ra n c o y ta q u e cTamor ey,
ca m e v e jo s a n d e u a n d a r
e con s a n d e ç e o d irey
Os o lh o s u e rd e s q u e eu ui
m e faz en o r’a n d a r assi.
Q u a n ta g e n te q u e ri
G u ard a u m atro z, re
C om o invisível chagí
Versão atualizada:
Q u a n ta g en te q u e ri
C uja v e n tu ra ú n ica c
Em p a re c e r aos o u tr
A m igos n ã o posso n eg a r
a g ra n d e m á g o a d e a m o r q u e sin to ,
pois m e vejo co m o louco
e co m o lo u c o é q u e digo:
pode ser resumido nos s
F oram un s olhos v erd e s q ue vi
q u e m e fizeram ficar assim .
Quando a paráfrase se distingue por sua versão de um texto em ter­
mos mais simples para facilitar a sua compreensão, dá-se-lhe também o
nom e de “m etáfrase” (termo empregado igualmente para designar a trad u ­
ção de poesia, e, a nosso ver, com grande propriedade, pois poesia não se
traduz: “recria-se” num a língua o que em outra se “criou”).
O exemplo a seguir não é simples atualização de outra cantiga m e­
dieval, mas verdadeira paráfrase (ou metáfrase, se quiserem):
C om o m o rre u q u e n n u n c a b en
o u v e cla r e n q u e m ais am o u
e q u e n v iu q u a n d o reçeo u
d ’ela e foi m o rto p o r én:
Ay, m h a senhor, assi m oyrieu!
(Pai S o ares d e T aveiros)
C o m o a q u e le e n a m o ra d o q u e m o rre u d e d e sg o sto p o r a m a r a q u em
n ão lh e tin h a a m e n o r afeição, o q u e ele ta n to rec eav a e foi ca u sa d o seu
g ra n d e so frim e n to , assim , m in h a a m a d a , m o rro eu.
Como se vê, a paráfrase segue, pari passu, com o máximo de fideli­
dade, a ordem das idéias contidas no original mas expressas em lingua­
gem mais clara e, na medida do possível, com vocabulário e estrutura de
frase que não sejam a repetição do que está no texto parafraseado. Mais
ainda: paráfrase não é condensação, e o fato de não o ser é que a distin­
gue do resumo. O conhecidíssimo soneto de R a i m u n d o C o r r e i a :
Se a c ó le ra q u e esp u m a , a d o r q u e m ora
N’a lm a e d e s tró i ca d a ilusão q u e nasce;
T lido o q u e p u n g e , tu d o o q u e d ev o ra
O c o ra ç ã o , no ro sto se estam p asse ;
Se
do rosto,
que hoje
para elas
tudo quanto nc
se traduzisse e:
nos causam inv
a única felicida
4.2 Amplificação
Como figura de i
ter desfrutado de grane
também entre os m oder
de todas as épocas). Un
dundância, ela consiste,
idéia ou tema, por meio
definições sinonímicas, i
outros adornos de lingu;
tremos na pena daquele
ricos de palavras mas pi
formas de redundância
Opõe-se, assim, à conc
obstante, podem-se enc<
ções que não são puro *
da, sim, mas com recun
co. Mas, seja como for, |
escritor” por levá-lo a te
rentes, o que — e é iste
indo para o enriquecime
apresentam os e com ent
idéia do que é a amplifi
O th o n
m
.
G a r c ia
♦
203
Se se p u d e s se o esp írito qu e ch o ra
Ver a tra v é s d a m á sca ra d a face,
Q u a n ta g e n te , talvez, q u e inveja ag o ra
N os c a u sa , e n tã o , p ie d a d e nos causasse.
Q u a n ta g e n te q u e ri ta lv ez consigo
G u a rd a u m atro z , re c ô n d ito inim igo,
C om o invisível chaga cancerosa!
Q u a n ta g e n te q u e ri talvez existe,
C uja v e n tu ra ú n ica consiste
E m p a re c e r aos o u tro s v e n tu ro sa .
pode ser resumido nos seguintes termos:
Se
do rosto,
que hoje
para elas
tudo quanto nos faz sofrer intimamente se refletisse na expressão
se traduzisse em gestos ou atitudes, veríamos que muitas pessoas
nos causam inveja nos despertariam compaixão, tanto é certo que
a única felicidade consiste apenas em parecerem felizes.
4.2 Amplificação
Como figura de retórica, a amplificação (amplificado) parece não
ter desfrutado de grande prestígio entre os antigos, como não desfruta
também entre os modernos (o que não significa a sua ausência em textos
de todas as épocas). Uma espécie de “primo rico” da prolixidade e da re­
dundância, ela consiste, essencialmente, em repetir, alongar, estirar uma
idéia ou tema, por meio de circunlóquios, de diferentes torneios de frases,
definições sinonímicas, metáforas e símiles excessivos e ociosos, além de
outros adornos de linguagem que se esgotam em si mesmos. Levada a ex­
tremos na pena daqueles escritores verborrágicos (ou na boca de oradores
ricos de palavras mas parcos de idéias), ela pode disfarçar-se em variadas
formas de redundância (perissologia, tautologia, macrologia, pleonasmo).
Opõe-se, assim, à concisão (brevitas, abbreviatio) e â sobriedade. Não
obstante, podem-se encontrar — em todas as línguas, aliás — am plifica­
ções que não são puro exercício estéril de estilo: a mesma idéia é tornea­
da, sim, mas com recursos de expressão de inegável valor estético-estilístico. Mas, seja como for, praticar amplificações pode ser útil ao “aprendiz de
escritor” por levá-lo a tentativas de dizer a mesma coisa de maneiras dife­
rentes, o que — e é isto que importa aqui neste tópico — acaba contribu­
indo para o enriquecimento do seu vocabulário. Os exemplos que a seguir
apresentam os e comentamos (louvando ou censurando) podem dar uma
idéia do que é a amplificação.
204 ♦ CO M U N I C A Ç Ã O
EM
PROSA
MODERNA
A vicia é o d ia d e hoje,
A v ida é o ai qu e m a l soa,
A v ida é n u v em q ue voa.
A vida é s o n h o tã o leve,
Q u e se d e sfa z com o a neve
E com o o fu m o se esvai.
A v id a d u ra u m m o m e n to .
M ais leve q u e o p e n s a m e n to ,
A vida, le v a-a o ven to .
grafo se distingue da ampi
diversa da idéia-núcleo, m<
os dois exemplos de parág
idéia-núcleo de “pátria”:
A p á tria n ã o é
m esm o d ire ito à idéia
n em u m a seita, n em i
solo, o povo, a tradiçi
d o s a n te p a ssa d o s, a <
se rv e m são os q u e ni
ra m , os q u e n ão su b i
q u e n ão se acobardanr
cu tem , m as p raticam
A vida é fo lh a q u e cai.
A vida é flor n a c o rre n te ,
A v id a é so p ro suave,
A vida é e s tre la c a d e n te ,
Voa m ais le v e q u e a ave.
N uvem q u e o v en to nos m ares,
U m a após o u tr a lan ço u ,
A vida — p e n a ca íd a
Da asa d e a v e ferid a —
De v ale em v a le im pelida,
A vida, o v e n to a levou.
(Jo ã o dc D eus, “A v id a”, C am pos de flo res)
Nesse belo exemplo de João de Deus, a amplificação se faz através
de um a série de m etáforas de “vida” e mais duas ou três comparações.
Exemplo de amplificação redundante típica (versos grifados) está na
conhecida “Canção do tamoio” (in: Últimos cantos), de Gonçalves Dias:
N ão ch o res, m e u filho;
N ão ch o res, q u e a vida
É luta re n h id a :
Viver é Lutar
A vida é com bate,
Q u e os fraco s ab a te ,
Q ue os fo rte s, os bravos,
Só p o d e exaltar.
Não é outra coisa senão amplificação da idéia de “am or” o célebre
soneto de Camões — “Amor é fogo que arde sem se ver”, tão conhecido,
que nos escusamos de aqui transcrevê-lo. Também o é a primeira estrofe
de outro, que çomeça assim:
M u dam -se o s tem pos, m u d a m -se as v o n ta d es,
M u d a -se o ser, m u d a -se a confiança;
T odo o m u n d o é co m p o sto de m u d a n ça s,
T o m an d o s e m p re novas q u alid ad e s.
Muitos parágrafos são verdadeiras amplificações feitas através de exem­
plos, ilustrações, confrontos, analogias, metáforas e comparações; mas o pará-
A p á tria n ão é
árv o re, a b o n in a : são
ria d a vida; é a oraç
q u e, p ela p rim e ira v e
Na Bíblia — sobren
pios de amplificações feité
cas, de m ostrar a validad
— e a lição que dela se
diz.
Senhor, o u v e
a p a rte s o te u ro sto d
in clin a p a ra m im o
o u v e-m c p ro n ta m e n u
Às vezes, a amplil
que incorrem mesmo o s
sar de sua riqueza de k
pressão — ou justamenti
na prática de amplificaçc
O se rtã o n ão
cam. Não se v êem . 1
Política e poli
cio n am u m a co m a ■
m e n te.
[ Ui-F£ Biblioteca Central
O t h o n
M.
G arc ia
♦
205
grafo se distingue da amplificação porque inclui idéias secundárias de ordem
diversa da idéia-núcleo, mas a ela logicamente associadas. São amplificações
os dois exemplos de parágrafos seguintes, nos quais se desenvolve a mesma
idéia-núcleo de “pátria”:
A p á tria n ã o é n in g u é m , são todo s; e ca d a q u al te m no seio d e la o
m e sm o d ire ito à idéia, à p alav ra, à asso ciação . A p á tria n ã o é um sistem a,
n em u m a se ita , n em u m m on o p ó lio , n em u m a fo rm a d e g o v ern o : é o céu, o
solo, o povo, a trad ição , a consciência, o lar, o b erç o d o s filhos e o tú m u lo
d o s a n te p a ssa d o s , a c o m u n h ã o d a lei, d a lín g u a e d a lib e rd a d e . O s q u e a
se rv e m são os q u e n ão invejam , os q u e n ão in fam am , os q u e n ã o c o n sp i­
ram , os q u e n ão sublevam , os q u e n ã o d e la ta m , o s q u e n ão e m u d e c e m , os
q u e n ã o se ac o b a rd a m , m as resistem , m as esfo rçam , m as p acificam , m as d is­
c u te m , m as p raticam a ju stiç a , a a d m iraçã o , o e n tu sia sm o .
(Rui B arbosa)
A p á tria n ão é a te rra ; n ã o é o b o sq u e, o rio , o v ale, a m o n ta n h a , a
á rv o re , a b o n in a : são -n o os ato s, q u e esses o b je to s n o s re c o rd a m n a h istó ­
ria d a vida; é a o ra ç ã o e n sin a d a a b alb u cia r p o r n o ssa m ãe, a lín g u a em
q u e, p ela p rim e ira vez, ela nos disse: — M eu filho!
(A. H ercu ian o )
Na Bíblia — sobretudo nos Salmos — encontram-se freqüentes exem­
plos de amplificações feitas com o propósito de evitar interpretações equívo­
cas, de m ostrar a validade de uma declaração ou a veracidade de um fato
— e a lição que dela se tira — e com a intenção de dar ênfase ao que se
diz.
S enhor, ouve a m in h a o raç ão , e ch e g u e a m im o te u clam or. N ão
a p a r te s o te u rosto d e m im . Em q u e q u a lq u e r d ia q u e m e a c h a r a trib u la d o ,
in c lin a p a ra m im o te u ouvido. Em q u e q u a lq u e r d ia em q u e te invocar,
o u v e -m e p ro n ta m e n te .
(S alm o [D avi], 101, 2-3)
Às vezes, a amplificação degenera em pura tautologia, pecado em
que incorrem mesmo os melhores autores. O próprio Rui Barbosa — ape­
sar de sua riqueza de idéias e dos seus incomensuráveis recursos de ex­
pressão — ou justam ente por isso — dâ mostras freqüentes de deliciar-se
na prática de amplificações que raiam pela perissologia:
O s e rtã o n ão co n h e ce o mar. O m a r n ão c o n h e c e o se rtã o . N ão se to ­
cam . N ão se vêem . N ão se buscam .
Política e poliLicalha n ão se co n fu n d e m , n ã o se p are cem , n ã o se re la ­
c io n a m u m a com a o u tra . A ntes se n eg a m , se ex clu em , se rep u lsa m m u tu a ­
m e n te .
206
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
É uma tentação a que devemos resistir, essa de tom ar a mesma idéia
e repeti-la, repeti-la, apenas torneada e revestida de roupagem diferente,
pelo simples deleite de m anipular palavras que nada acrescentam ao que
tenha sido dito antes, nem mesmo ênfase. Reduzida à condição de mero
encadeam ento em plum ado de palavras e expressões sinonímicas, a amplifi­
cação só pode mesmo servir ao “aprendiz de escritor” como exercício de
vocabulário e de reestruturação de frases.23
4.3 Outros exercícios para enriquecer o vocabulário
k) redação de períodos
sugiram situação rei
rações de incidente:
1) exercícios de substiti
determinada área se
m) leitura extradasse e
nhecidas; classificaç
específico, geral ou
n) mudança do torneio
ordenar, de indicar
Além desses, outros exercícios podem ser feitos com o propósito de
m elhorar o vocabulário do estudante:
a) série de definições diversas para a escolha da que se ajuste a determinada
palavra a elas aposta. Valiosos exercícios desse tipo encontram-se no de­
licioso livrinho de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira — Enriqueça o
seu vocabulário —, volume em que o Autor reuniu grande parte do m a­
terial publicado há vários anos por Seleções do Reader's Digest, em se­
ção que deve ser, como é para mim, de leitura obrigatória por todos os
que desejam realm ente “enriquecer o seu vocabulário”, de modo am e­
no e divertido;
b) adaptação de textos com interpolação de sinônimos para escolha;
c) listas de coisas ou seres (sugeridos por situação real) de form a ou aparên­
cia inconfundível para caracterização concreta (exercícios de adjetivação);
d) caracterização de ações, gestos, atitudes, movimentos, em exercício do tipo
“o pêndulo (oscila)”, juntando-se ou não lista de verbos para escolha;
e) texto medíocre ou mediocrizado para aprimoramento do vocabulário;
f) ruptura de clichês (substituição de clichês, frases-feitas, metáforas surra­
das, lugares-comuns fraseológicos);
g) busca ou escolha de impressões despertadas pela experiência de uma situa­
ção concreta, e procura das palavras adequadas à sua expressão;
h) definições claras e sucintas que permitam a identificação do termo a que
se referem;
i) definições denotativas de determinados termos e sua conversão em conotativas ou metafóricas;
j) derivação e cognatismo (exercícios sobre famílias etimológicas);
23 Para
o u t ro s d e t a lh e s s o b re a p a rá fra se e
H ê n io T a va re s,
Técnica de leitura e redação ,
a
a m p lif i c a ç ã o , c o n s u l t e - s e o e x c e l e n t e l i v r i n h o
p. 1 0 9 - 1 0 e 1 2 1 - 3 .
de
24 P a ra a p lic a ç ã o d o q u e
c io s
s
1 0 3 a 1 1 5 e 2 0 4 a 25;
O t h o n
M.
G ar c ia
♦
207
10 r e d a ç ã o de períodos ou p a r á g r a fo s c u rto s, a p a r ti r d e d a d o s in ic ia is q u e
s u g ir a m s itu a ç ã o re a l (descrição de ambientes, paisagens, pessoas, nar­
rações de incidentes, etc.);
1)
e x ercíc io s d e s u b s titu iç ã o , e s c o lh a o u p r e e n c h im e n to d e la c u n a s d e n tr o de
d e t e r m in a d a á re a s e m â n t ic a ;
m) le itu r a e x tr a d a s s e e e x ig ê n c ia d e a n o ta ç ã o à m a r g e m d a s p a la v r a s d e sc o ­
n h e c id a s ; classificação dessas palavras quanto ao sentido (concreto ou
específico, geral ou abstrato, denotativo ou conotativo);
n) m u d a n ç a d o torneio d e fr a s e s (modos de afirmar, de negar, de pedir, de
ordenar, de indicar as circunstâncias, etc.).24
2/| P a r a a p l i c a ç ã o
d o q u e se re c o m e n d a
c io s 1 0 3 a 1 1 5 e 2 0 4 a 2 5 2 .
n a s a lí n e a s d e s s e t ó p ic o 4 . 3 , v e r, e m
1 0 . E x . , e x e r c í­
b) os habitualm ente ditos ne a palavra-verbete, d;
centam também antônii
5.0 Dicionários
c) os de idéias analógicas
dito, que constitui um a
como veremos adiante.
Quaisquer que sejam os exercícios para o aprim oram ento do vocabu­
lário, é óbvio que o dicionário constitui, por assim dizer, a última instân­
cia, a que recorremos sempre que desejamos saber o sentido exato das pa­
lavras. Em si mesmo, entretanto, o simples manuseio dos léxicos, dissocia­
do de situações reais, nem sempre nos traz grande proveito, em que pese
à opinião de muitos, que acreditam ser esse o único e o m elhor meio de
adquirir vocabulário. Alguns chegam mesmo a recomendar, ou pelo menos
a praticar, a leitura assídua dos calepinos, leitura que consideram não ape­
nas imprescindível, mas tam bém amena e divertida. É possível. A verdade,
entretanto, é que as palavras procuradas nos dicionários só se incorporam
de fato aos nossos hábitos lingüísticos quando as ouvimos ou lemos. Listas
de palavras, resultantes de leitura corrida de dicionários, podem não ser
de todo inúteis, mas o que delas nos fica não paga o tem po gasto: valem
quase tanto quanto o passatem po das palavras-cruzadas.
Há duas classes de dicionários25 unilíngües: os comuns e os especiali­
zados ou técnicos. Os comuns são geralmente de três tipos:
a) os usualm ente ditos de definições, em que — como o nom e diz — atra­
vés de definições semânticas (ditas, no caso, lexicográficas) se dão, além
dos significados das palavras (o significado básico, as diferentes acep­
ções, o sentido figurado), outras informações sobre os signos (classe
gramatical da palavra-verbete, e, às vezes, sua pronúncia e sua etimolo­
gia). Alguns acrescentam ainda exemplos ocasionais para esclarecer o
em prego da palavra, e dão sinônimos;
25 “D i c i o n á r i o ” e " e n c i c l o p é d i a ” s ã o t e r m o s q u e , c o m
cru za m ,
c o m o na e x p re ssã o co m u m
d if e r e n ç a e n tre a m b o s. O
que,
lato sensu,
ç õ e s s o b r e a s c o is a s ( e n ã o
próprios
e, m e s m o , s e
d e f in e o s s i g n o s e
( a t e n t e - s e p a r a e s t a c a r a c t e r ís t ic a ) . A
s ig n i f i c a o c o n j u n t o c o m p l e t o d o s c o n h e c i m e n t o s —
s o b r e o s s i g n o s ) , a r i g o r n ã o d e f in e e s ó
V ia d e re g ra , s ó a s e n c ic lo p é d ia s in c lu e m
a r ro la
en­
n o m e s p ró p rio s .
ilu s tr a ç õ e s p a r a o s v e rb e te s; o s d ic io n á r io s r a r a m e n ­
d a c o is a s ig n if ic a t i v a e / o u in f o r m a ç õ e s , t é c n ic a s s o b r e e la. O s d i c i o n á r i o s d e s s e r ip o q u e a r r o le m
n o m e s p r ó p r i o s s ã o u s u a lm e n t e c h a m a d o s " e n c i c l o p é d ic o s ”.
5.1 Dicionários an
d á in fo rm a ­
te o f a z e m , e q u a n d o i s s o a c o n t e c e ( s a l v o o c a s o d a s i l u s t r a ç õ e s p u r a m e n t e d e c o r a t i v a s o u
p r o m o c i o n a i s ) é p o r q u e n ã o s e l i m it a m à d e f in i ç ã o d o s s i g n o s , i n c l u i n d o t a m b é m a d e s c r iç ã o
tam b é m
Antes de utilizar-se
meiro, de que se trata de
realm ente como consultá-1
os inexperientes a respeite
pulares, cujo manuseio dei
pítulo vem uma lista dos
cia, não é demais aconselh
cios ou notas prévias, ond>
critério de averbação, mas
m ente adotados. Assim ad
sas, que nem todas as pa
procurar um adjetivo pela
é a mesma, ou um advérbi
radical é o mesmo, sempr
abreviaturas e sinais conve
não apenas indicam a claf
gên._t substantivo comum c
dão também informações
técnico de agricultura; arc.
e n t a n t o , e x is r e u m a c l a r a
d ic i o n á r i o , q u e , i n c l u i n d o a s p a r t e s d o d is c u r s o ,
d á i n f o r m a ç õ e s s o b r e e le s , e x c lu i o s n o m e s
c ic lo p é d ia —
f r e q ü ê n c ia , s e c o n f u n d e m
“d i c i o n á r i o e n c i c l o p é d i c o ” . N o
Os dicionários espec
vocabulários, glossários ou >
po do conhecimento huma
sociologia, de psicologia, dt
nário de literatura, de gíri
cionário gramatical, etimo
lista é numerosa. Muitas \
nos desfazer dúvidas a res
Isso acontece quando o tei
não admite sua inclusão nc
Muita gente que líc
escrita como tarefa cotidií
a utilidade dos dicionáios
rência especial.
UFPEBiblioteca Centrai'
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
209
b) os habitualm ente ditos de s in ô n i m o s , em que, via de regra, não se defi­
ne a palavra-verbete, dando-se apenas os seus sinônimos (alguns acres­
centam tam bém antônimos);
c) os de id é ia s a n a ló g ic a s o u a f i n s : é o dicionário analógico propriam ente
dito, que constitui um a versão mais prestimosa do que o de sinônimos,
como veremos adiante.
Os dicionários especializados ou técnicos — ditos também, às vezes,
ou e lu c id á r io s — abarcam apenas determ inado cam­
po do conhecimento humano ou da experiência: dicionário de filosofia, de
sociologia, de psicologia, de artes plásticas (pintura, arquitetura, etc.), dicio­
nário de literatura, de gíria, de arte poética, dicionários bibliográficos, di­
cionário gramatical, etimológico, dicionário de botânica, de mitologia... A
lista é numerosa. Muitas vezes, só um dicionário especializado é capaz de
nos desfazer dúvidas a respeito do sentido exato de determinadas palavras.
Isso acontece quando o termo procurado tem significado tão específico que
não admite sua inclusão nos dicionários comuns.
v o c a b u lá r io s , g lo s s á r io s
Antes de utilizar-se do dicionário, o estudante deve certificar-se, pri­
meiro, de que se trata de obra digna de crédito, e, segundo, de que sabe
realm ente como consultá-lo. Quanto à primeira condição, convém advertir
os inexperientes a respeito de um grande número de dicionários ditos p o ­
p u la r e s , cujo m anuseio deve ser feito com m uita cautela (no fim deste ca­
pítulo vem um a lista dos mais recomendáveis). Quanto à segunda exigên­
cia, não é demais aconselhar ao consulente a leitura não apenas dos prefá­
cios ou notas prévias, onde o autor faz em geral observações a respeito do
critério de averbação, mas também da lista de abreviaturas e sinais comum ente adotados. Assim advertido, o leitor ficará sabendo, entre outras coi­
sas, que nem todas as palavras vêm averbadas: será inútil, por exemplo,
procurar um adjetivo pela sua forma feminina, se a acepção do masculino
é a mesma, ou um advérbio terminado em — m e n te , se o significado do seu
radical é o mesmo, sempre o mesmo, do do adjetivo de que se derive. As
abreviaturas e sinais convencionais merecem igualmente muita atenção, pois
não apenas indicam a classe da palavra (s. ;n., substantivo masculino; s. 2
gên., substantivo comum de dois gêneros; v. t., verbo transitivo; etc.) mas
dão também informações subsidiárias a respeito do vocábulo (a g r termo
técnico de agricultura; arc., arcaísmo; prov., provincianismo, etc.).
5.1 Dicionários analógicos ou de idéias afins
Muita gente que lida com palavras, servindo-se delas na linguagem
escrita como tarefa cotidiana, desconhece, se não a existência, pelo menos
a utilidade dos dicionáios analógicos. Por isso merecem eles aqui um a refe­
rência especial.
210
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Os dicionários de definições e de sinônimos só nos prestam realm en­
te ajuda valiosa, quando já temos a palavra cujo sentido exato desejamos
saber ou para a qual procuramos um sinônimo que m elhor se ajuste a de­
term inado contexto. Nesse caso, “a luta pela expressão” parte das palavras
para as idéias. Muito freqüentemente, entretanto, só nos ocorrem idéias ge­
rais, muito vagas, sem que nos venham as palavras de sentido específico
capazes de traduzir nosso pensamento. Aqui, a luta pela expressão parte
das idéias para as palavras.
Ora, os dicionários analógicos são os que mais nos ajudam a achar a
palavra exata para a idéia imprecisa que nos ocorra. Eles são organizados de
tal forma que permitem uma distribuição racional do vocabulário da língua,
facilitando o encontro da palavra ignorada pela oportunidade que se ofere­
ce ao consulente de percorrer um grande número de outras que se lhe asso­
ciem ideologicamente, que pertençam ao mesmo campo semântico ou asso­
ciativo, o que pode redundar, até certo ponto, em fonte de novas idéias.
As obras desse gênero vêm, de regra, divididas em capítulos de or­
dem geral, correspondentes às categorias filosóficas (relações abstratas, espa­
ço, matéria, faculdade cognoscitiva, faculdade volitiva, afetiva, etc.). Cada
um desses capítulos se subdivide em títulos mais específicos, e estes, em ver­
betes, onde se encontram não apenas os sinônimos e antônimos mais co­
muns, mas tam bém uma série de termos de sentido metafórico.
Suponhamos que o estudante esteja à procura de um verbo de senti­
do específico com preendido na idéia geral de movimento; trata-se de dizer
que alguma coisa se move. Ora, todos os seres e objetos podem mover-se
ou dar-nos a impressão disso, mas cada um deles, em determ inado mo­
m ento, mover-se-á de maneira especial: uns simplesmente andam , outros
correm, saltam, pulam , saltitam, saracoteiam, tremem, tremulam, trepidam;
alguns voam, disparam, desembestam, arremessam-se, atiram-se, precipitamse; uns deslizam, arrastam-se, rastejam, seipeiam, serpenteiam; outros voltei­
am ou planam no espaço aéreo; há os que se insinuam, se infiltram, enve­
redam, muitos oscilam, pendulam, balançam, circulam, rolam; vários galo­
pam , troteiam, marcham... A série é quase inumerável, o que nos permite
adm itir que nela se encontrará sem dúvida a palavra exata para a idéia que
temos em mente. Mas como descobri-la? É possível que a tenhamos esqueci­
da lá nos escaninhos da memória; mas como desencavá-la e pô-la em circula­
ção, consultando apenas os dicionários de definições ou de sinônimos, se eles
nos dão em cada verbete apenas os termos que mais de perto se relacionam
pelo sentido específico, não pela idéia geral? Tomemos, por exemplo, o verbo
deslizar.
D eslizar.; v. t. P assar em silêncio; om itir; int. e s c o rre g a r b ra n d a m e n te ;
resv a lar; r e i desviar-se; afa star-se pouco a po u co ; d esv iar-se d o b o m cam i­
nh o ; p. escorregar su a v em e n te; p a ssa r d e leve; d esv iar-se. (Cf. deslisar:)
(Pequeno dicionário brasileiro da língua
portuguesa , s u p e rv is io n a d o p o r A urélio
B u a rq u e d e H o lan d a F erre ira, 10“ ed ição )
iN cw c v c i u e ie s u s e i
geral de movimento; mas pt
so contexto. Portanto, a ps
encontrado, sem grande pe
Tomemos, como exei
eidos e mais acessíveis. Re
rá a “palavra-mestra" ou 1
onde se relacionam os sin
caso em apreço, ele encont
m o b ilid ad e , 104
m óvel, 10 4 — 114 —
m o v er-se, 796 — 19 8 ■
m o v im en to , 2 1 2 — 21.
Os números em itáli
betes, vale dizer, aqueles <
nados à idéia geral, inclusi
três classes: Sfubstantivos),
fileiram-se os antônimos co
mos respigados nos verbete
196. M ovim ento (v. 191
S (u b stan tiv o s). Locom oção, n
ag ilidade, azougue, nôm ade,
viajar, am b u lan te, corrida, s
cha, vôo...
V (erbos). M over-se, nã<
sar, m archar, cam in h ar, tro ta
gar, rastejar, p atin ar, desli;
lear, colear, serp ear, voltear...
A (d je tiv o s). M óvel, m ovec
tico , in q u ie to , vivo, ágil, >
c o rre d io , se m o v en te, rem ovív
Mas, se do índice rei
la para a qual o consulenti
resta-lhe recorrer ao plan
agrupadas de acordo com <
idéia de movimento im plia
26 gpiTZiiR Carlos. Dicionário am
O t h o n
M.
G arc ia
♦ 211
Nesse verbete só se indicam dois ou três aspectos particulares da idéia
geral de movimento; mas pode acontecer que nenhum deles se ajuste ao nos­
so contexto. Portanto, a palavra procurada, o termo específico, só pode ser
encontrado, sem grande perda de tempo, nos dicionários analógicos.
Tomemos, como exemplo, o de Carlos Spitzer,26 um dos mais conhe­
cidos e mais acessíveis. Recorrendo ao índice remissivo, o leitor encontra­
rá a “palavra-m estra” ou “palavra-guia”, seguida do núm ero dos verbetes
onde se relacionam os sinônimos e antônimos a ela correspondentes. No
caso em apreço, ele encontrará alguns sinônimos ou cognatos de mover:
m o b ilid ad e , 104
m óvel, 1 0 4 — 1 1 4 — 128
m over-se, 7 9 6 — 198 — 199
m o v im en to , 212 — 213
Os núm eros em itálico (196, 212 e 213) indicam os principais ver­
betes, vale dizer, aqueles onde estão os termos mais intim am ente relacio­
nados à idéia geral, inclusive os de sentido figurado, distribuídos todos em
três classes: S(ubstantivos), A(djetivos) e V(erbos). No verbete colateral enfileiram-se os antônimos correspondentes. Vejamos como amostra alguns ter­
mos respigados nos verbetes 196 e 197:
196.
M ovim ento (v. 198-223) —
197.
im o b ilid a d e; d escan so — S. Fi­
S (u b stan tiv o s). Locom oção, m obilidade,
xação, p au sa, alto, p a ra d a , trav a m en agilidade, azo u g u e, nôm ade, vadiagem ,
to, estagn ação .
viajar, am b u lan te, corrida, salto, m ar­
cha, vôo...
VÇerbos). M over-se, n ã o d e s c a n ­
sar, m archar, cam in h ar, tro tar, e sc o rre ­
gar, rastejar, p atin ar, deslizar, rebolear, coleàr, se rp e ar, voltear...
V. N ão m over, fica r q u ie to , p la n ta rse, e s ta r fixo, firm e, in ab aláv el, e m ­
perrar, aq u ietar...
i
A (d jetiv o s). M óvel, m ovediço, e r r á ­
tico , in q u ie to , vivo, ágil, corrediço,
c o rre d io , se m o v e n te , rem ovível...
A. Q uieto, im óvel, fixo, qu ed o , p a ra ­
do, letárgico, es tag n a d o , calm o, d e ita ­
do, basbaque, en tre v ad o , rem ansoso...
Mas, se do índice remissivo não constar como “palavra-m estra” aque­
la para a qual o consulente está procurando um sinônimo mais específico,
resta-lhe recorrer ao plano de classificação, onde as idéias gerais estão
agrupadas de acordo com as categorias filosóficas e suas subdivisões. Ora a
idéia de movimento implica a de espaço. Efetivamente, na categoria de es­
26 SPITZER, Cíirlos. Dicionário analógico da Kngtta portuguesa, Porio Alegre, Etl. Globo, 1958.
paço (Classe III, segundo o plano de Carlos Spitzer), encontram-se as se­
guintes subseções: I. Espaço em geral; II. Dimensões; III. Forma; IV Moção.
Ao lado de Moção vêm os números dos verbetes 196 a 223. Neles se acha­
rão, por certo se não todas, pelo menos a quase-totalidade das palavras
portuguesas que expressam movimento ou imobilidade.
O plano do dicionário de Spitzer coincide, em linhas gerais, com o da
maioria das obras desse gênero. É o caso, por exemplo, do Appendice ao 2o
volume do Traité de stylistique française, de Charles Bally, com a diferença de
que deste se excluem as palavras puramente concretas, salvo as que, como
diz o próprio Autor, possam ter algum valor simbólico; do Diccionario ideoló­
gico de la lengua espafiola, de Julio Casares, e ainda, em língua portuguesa,
do Dicionário analógico da língua portuguesa, de Francisco Ferreira dos San­
tos Azevedo.
Seja, por exemplo, a idéia geral de causa. No Appendice de Bally não
há índice remissivo onde o consulente possa encontrar a “palavra-guia”, de
forma que terá de recorrer aos títulos das categorias de ordem geral e suas
subdivisões, onde achará o verbete causalité:
114. Causa — S (u b sta n
í sa , o rig em , m o tiv o , o p o r
m ó v el, b ase, m a n an c ial, foi
j te ... etc.
V (erbos). C ausar, pro
I tu ar, gerar, ac a rre ta i; d a r ;
I o ca siã o , m otivar; la n ç a r os
! to s d e ..., etc.
A (djetivos). Prim eiro, báj
í dial, originário, original, radi
| brião, causal..., etc.
Os demais dessa á
por palavras ou expressõ
C. C au salité
i
14. Causes concordantes: Causes op­
13.
Cause: Effet. (C onclusion 1 3 3 ).27
posées. Concourir, co n sp irer: aller con­
Avoir Lolle ou telle cause: — tel ou tel
tre, contrarier, s’o p p o se r (cf. 2 0 7 ); agir
effet; venir, p ro v en ir de: ab o u tir à;
d an s le m êm e sens q u e, co n trib u er à:
n aître, d éco u ler d e , tenir à: résulter,
réagir, n eu tra lise r (aid er: e n tra v e r 206).
s’en su iv re. — Être cause; causer, provo­
C oncordant: opposé. C oncours: conflit;
quer, susciter (cf. 8 0 ); faire (to m b er en,
action co nco rd an te: réaction. Facteur.
1etc.); influer, agir sur; contribuer à (cf. 14).
R ésultante. — M algré, en d é p it de;
• — A ttribuer la ca u se à: im p u ter à (accep en d an t, toutefois; b ien que, etc.
ic u se r 2 9 1 ). — C ause, principe, origine,
| source: conséquence, résultat. Raison
15. Nécessité, fa ta lité : H asard. N e­
; (m o tif 191 a). Influence, action, ascencessaire, fatal, in év itab le: fo rtu it, accijd a n t; actif: (passif)- — Pourquoi?; c’est
d e n ta le (cf. 2 a). Ê tre d e stin é à. D éte r­
■p o u rq u o i, en conséquence; en effet, car:
m inism e (: libre a rb itre 1 5 3 ). D estiné,
I p a r co n séq u en t, do n c; parce que; de
d estin, so rt (cf. 153); Etc.
; so rte que. (M ourir) d e (faim , etc.)
Vejamos agora, no dicionário de Spitzer, um a am ostra parcial dos
verbetes relacionados com essa mesma idéia de causa. A palavra-m estra —
causa — encontra-se na Seção VIII da Classe I (Relações abstratas), verbe­
tes 114 a 128, assim como no índice remissivo:
27 Os números entre parênteses remetem para outros verbetes.
116.
Indicação da
(d e riv a ç ã o , filiação, geneal«
1
118. Força criadora, en
j que p ode a tu a r ou se m an
ça , p o tê n c ia , e n e rg ia ..., e tc
120.
Força violenta
(im p e tu o sid a d e , ím p e to ..., i
E assim prosseguei
falta de influência; depent
curso de causas; ação cont
Depois de consulta
tudante fique decepciona*
antes de “adotá-la”, é acc
pecífico. Se ela faz parte
sentido exato não porque
acostumado a lê-la ou ot
sem prejuízo para a clare
dizer, quando a palavra
lingüístico ou outras raz
melhor é recorrer então
seu verdadeiro sentido ar
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
213
114.
Causa — S (u b sta n tiv o s). Cau115.
F f eito — 5. efeito, co n seq ü ên -i
I sa, o rig em , m otivo, o p o rq u ê, razão ,
cia, resultado, pro d u to , nascim ento, pro- ]
| m óvel, b a se , m a n a n c ia l, fonte, n a sc e n ­
dução, reb en to , fruto, colheita, seara, I
te... etc.
criação..., etc.
V (erb o s). C ausar, produzir, efe­
tuar, gerar, ac a rre ta r, d a r aso, ensejo,
o casião, m otivar, la n ç a r os fu n d a m e n ­
tos d e ..., etc.
V. S er re s u lta d o , resu ltar, provir, I
sc r o b ra d e, filho d c, re b e n ta r, germ i-1
nar, desenvoL ver-se, te r fo n te, o rig em S
em , v ir d e..., etc.
1
A (djetivos). Prim eiro, básico, prim or­
dial, originário, original, radical, em em ­
brião, causal..., etc.
A . D eriv ad o , d eriv a tiv o , e m b rio n á ­
rio (sic).
Os dem ais dessa área semântica de causa e efeito vêm encabeçados
por palavras ou expressões mais específicas; por exemplo:
!
116. ind icação da causa eficiente
\ (d eriv aç ão , filiação, g en e alo g ia..., etc.)
117.
Falta de causas determ inadas; j
acaso (azar, s o rte , fo rtu n a ..., etc.)
j
;
118. Força criadora, energia ativa,
| que pode a lu a r ou se m anifestar (for! ça, p o tê n c ia , e n e rg ia ..., etc.)
Ii
119. Inércia; im produtibilidade; p re -'
guiça; fra q u e za (im p o tên cia, cansaço...,
etc.)
[
120. Força violenta, viva,
| (im p e tu o sid a d e , ím p e to ..., etc.)
121.
Força branda, suavidade (ca l­
m a, b o n an ça, te m p eran ç a..., etc.)
I
brutal
E assim prosseguem os demais verbetes: força destruidora, influência;
falta de influência; dependência de algum influxo; tendência para influir; con­
curso de causas; ação contra, causa contrária ou efeito.
Depois de consultar dicionários como esses, não é provável que o es­
tudante fique decepcionado: a palavra que ele procura tem de estar lá. Mas,
antes de “adotá-la", é aconselhável certificar-se do seu verdadeiro sentido es­
pecífico. Se ela faz parte do seu vocabulário passivo, isto é, se lhe conhece o
sentido exato não porque a use habitual ou ocasionalmente, mas porque está
acostumado a lê-la ou ouvi-la, a escolha se faz sem maiores dificuldades ou
sem prejuízo para a clareza da idéia a ser expressa. Em caso contrário, quer
dizer, quando a palavra é inteiramente desconhecida, ou apenas o instinto
lingüístico ou outras razões às vezes misteriosas parecem recomendá-la, o
melhor é recorrer então a um dicionário de definições para certificar-se do
seu verdadeiro sentido antes de empregá-la.
214
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
5.3 Lexicologia e
5.2 Dicionários de sinônimos
A maioria dos dicionários ditos “de sinônimos” se limitam a dar as
palavras de sentido equivalente ao da entrada ou cabeça do verbete; al­
guns, entretanto, reservam um a parte de suas páginas para elucidar as di­
ferenças, às vezes sutis, entre várias de significação assemelhada, e não
propriam ente sinônimas, pois, na realidade, não há em qualquer língua
duas palavras que signifiquem exatamente a mesma coisa: todas, já vimos,
dependem do contexto. Existe quase sempre a palavra exata para traduzir
nosso pensam ento, mas só existe uma, e não mais. De forma que as distin­
ções de sentido que se fazem, levando-se em consideração determ inado
contexto, são indispensáveis. Exemplo de dicionário desse tipo é o de J. I.
Roquete e José da Fonseca — Dicionário dos sinônimos — poético e de epí­
tetos — da língua portuguesa. Nele, além do rol de sinônimos, encontra-se
tam bém uma parte em que os Autores mostram os matizes semânticos de
inúmeras palavras. Já que estamos falando de dicionários, vá lá o seguinte
verbete como ilustração:
Lexicologia28 é o es
cabulário tom ado aqui nc
língua”; distingue-se da le.
nários. A primeira é ciênc
de a mais alta antigüidad<
to de vocábulos de um i
como sinônimo de “dicioi
capaz de se enriquecer se:
de correntes lingüísticas r
do, opor-se tanto a “dici<
das palavras usadas por t
a “vocabulário”, pois o k
passo que o vocabulário p
5.4 Dicionários dê
D icionário, vocabulário, glossário, elucidário
Para se ac h arem p ro n ta c com o d am en te as palavras e dicções próprias
d e u m a língua, su a significação, seu uso e su a c o rre sp o n d ê n c ia com as de
o u tra , se d istrib u e m po r rigorosa o rd em alfab ética, e a isto ch a m a m o s p ro ­
p ria m e n te dicionário. Um d ic io n ário , disse um lite ra to fra n cê s, é o in v e n tá ­
rio d a lín g u a p o r o rd em alfab ética. — Por e x te n sã o se d iz d a s vozes Lécnicas d e q u a lq u e r ciência ou arte , e a in d a de pesso as ilu stres, te rras, coisas
n o táv eis, cic.
A p a la v ra vocabulário só significa ca tá lo g o d e vozes d e u m a lín g u a
o u ciência, m as não se e ste n d e , n em d ev e e s te n d e r a m ais exp licaçõ es que
a s m a té ria s do s vocábulos.
Glossário vem d a p a la v ra greg a glossa, líng u a, lin g u a g em ; é às vezes
id io tism o ; se a sse m e lh a aos dicionários e vocabulários na co lo ca çã o maLerial
d o s .seus artig o s p o r o rd e m alfab ética, e d iferen ç a-se em que. tra ta d e p a la ­
v ra s e frases o b sc u ra s, difíceis, b á rb a ra s, d e su sa d a s, em esp ecial nas lín g u as
m o rta s, v ic iad a s no uso ou tra z id a s de lín g u as e s tra n h a s.
Elucidário ê um glossário talvez m enos com pleto, p o ré m m ais difuso,
q u e n ão só elucida, explica m uitas palavras e frases, a n tiq u a d a s e o bsoletas,
se n ã o q u e e x a m in a usos, costum es antigos, e au to riza sua ex plicação com d o ­
cu m en to s, inscrições, etc. Tal é o d o Pe. S an ta Rosa, que, se n ão é tão co m ­
p le to com o o Glossário de Du C ange, é po r certo m u ito p recio so p ara os p o r­
tu g u e ses pelas riquíssim as notícias que ali lhes dá d c coisas an tig as, que sem
e le se ria m d esco n h e cid a s aos m odernos.
Como se vê, os quatro verbetes transcritos da segunda parte desse
dicionário de Roquete fogem às rígidas normas lexicográficas usuais, até na
sua disposição tipográfica. Quanto à distinção entre “dicionário” e “vocabu­
lário”, conviria propô-la em termos mais atualizados, e partir daí para ou­
tras (breves) informações pertinentes, assunto do tópico seguinte.
(Para as referência:
bliografia).
1. D icionários de definiç
I
Dicionário da língua pc
m oderna, essa obra sa
lírigua portuguesa);
II Novo dicionário da lín
Ferreira;
III Dicionário contemporân
IV Dicionário da língua po
V Grande e novíssimo dici
VI Dicionário de sinônimos
28 Gramáticos e filólogos luso-bn
(ou sua variante gráfica "lexiolos
consideradas em relação ao seu 1
flexões” — como a definia Emes
Said Ali: “a lexeologia (assim gra
por um, como o faz o dicionário
registra os fatos comuns e consc
da língua portuguesa, p. 15). A l
“lexicologia", incluindo-a implide
ção de Said Ali (cf. op. cif., p. 1É
O th o n
M.
G a r c ia
♦
215
5.3 Lexicologia e lexicografia - Dicionário e léxico
Lexicologia28 é o estudo teórico, ou científico, do vocabulário — vo­
cabulário tom ado aqui no sentido lato de “catálogo das palavras de uma
língua”; distingue-se da lexicografia, que é a técnica da confecção de dicio­
nários. A prim eira é ciência moderna, mas a segunda já era praticada, des­
de a mais alta antigüidade. Uma e outra cuidam do léxico, que é o conjun­
to de vocábulos de um idioma, e, como tal, ordinariam ente em pregado
como sinônimo de “dicionário”, que é um repertório “aberto”, quer dizer,
capaz de se enriquecer sempre (com nelogismos, por exemplo). Mas, à luz
de correntes lingüísticas mais em voga, “léxico” pode até, em certo senti­
do, opor-se tanto a “dicionário” — quando com preende apenas o elenco
das palavras usadas por um autor, um a ciência ou um a técnica — quanto
a “vocabulário”, pois o léxico, lato sensu, pertence à língua (langue), ao
passo que o vocabulário pertence ao discurso (parole).
5.4 Dicionários da língua portuguesa mais recomendáveis
(Para as referências relativas a editor, local, edição e data, ver Bi­
bliografia).
1. D icionários d e definições e sinônim os
I
Dicionário da língua portuguesa — Antônio de Moraes Silva (em edição
moderna, essa obra saiu com o título de Novo dicionário compacto da
língua portuguesa);
II Novo dicionário da língua portuguesa — Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira;
I I I Dicionário contemporâneo da língua portuguesa — C aldas A ulete;
IV Dicionário da língua portuguesa — Cândido de Figueiredo;
V Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa — Laudelino Freire;
VI Dicionário de sinônimos e locuções da língua portuguesa — Agenor Costa;
28 Gramáticos e filólogos luso-brasileiros cle outras gerações (quantas?) entendiam a lexicologia
(ou sua variante gráfica “lexiologia”) como aquela “parte cia gramática que trata das palavras
consideradas cm relação ao seu valor, à sua etimologia, h sua classificação e às suas formas ou
flexões” — como a definia Ernesto Carneiro Ribeiro (Serões gramaticais, p. 5); ou, como queria
Said Ali: “a lexeologia (assim grafava a palavra o grande mestre) não examina os vocábulos um
por um, como o faz o dicionário. Divide-os em um pequeno número de grupos ou categorias ç
registra os fatos comuns e constantes e os fatos variáveis e excepcionais” (Gramática secundária
da língua portuguesa, p. 15). A Nomenclatura Gramatical Portuguesa ignorou, como se sabe, a
“lexicologia”, incluindo-a implicitamente na “morfologia”, no que parece ter seguido, aliás, a li­
ção de Said Ali (cf. op. cit., p. 16).
♦
Com a \
c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
VII Dicionário de sinônimos — Antenor Nascentes;
VIII Dicionário dos sinônimos — poético e de epítetos — da língua portu­
guesa — J. I. Roquete e José da Fonseca.
\
2. Idem , enciclopédicos e /o u ilustrados
I
II
Pequeno dicionário enciclopédico Koogan Larousse — Antônio Houaiss
(dir.).
Dicionário prático ilustrado — Jaim e Séguier (dir.).
3. D icionários analógicos
I
II
III
IV
Dicionário geral e analógico da língua portuguesa — Arthur Bivar;
Dicionário analógico da língua portuguesa — Carlos Spitzer;
Dicionário de idéias afins — Eduardo Vitorino;
Dicionário analógico da língua portuguesa — Francisco Ferreira dos
Santos Azevedo.
'
4. D icionários etim ológicos
I
II
III
Dicionário etimológico Nova Fronteira — Antônio Geraldo da Cunha;
Dicionário etimológico da língua portuguesa (Tomo I: nomes comuns;
Tomo II: nomes próprios) — Antenor Nascentes;
Dicionário etimológico da língua portuguesa — José Pedro Machado.
I
TERCEIRA
PAR
1.0 O parágrafo como unidade de composição
1.1 Parágrafo-padrão
O parágrafo é uma unidade de composição constituída por um ou
mais de um período, em que se desenvolve determ inada idéia central, ou
nuclear.; a que se agregam outras, secundárias, intimamente relacionadas pelo
sentido e logicamente decorrentes dela.
Trata-se, evidentem ente, de um a definição, ou conceito, que a p rá­
tica nem sem pre confirma, pois, assim como há vários processos de d e­
senvolvim ento ou encadeam ento de idéias, pode haver tam bém diferen­
tes tipos de estruturação de parágrafo, tudo dependendo, é claro, da
natureza do assunto e sua complexidade, do gênero de composição, do
propósito, das idiossincrasias e com petência (competence) do autor, tanto
quanto da espécie de leitor a que se destine o texto. De forma que esse
conceito se aplica a um tipo de parágrafo considerado como padrão, e
padrão não apenas no sentido de modelo, de protótipo, que se deva ou
que convenha imitar, dada a sua eficácia, mas tam bém no sentido de ser
freqüente, ou predom inante, na obra de escritores — sobretudo m oder­
nos — de reconhecido m érito. Tal critério nos leva, por conseguinte, a
resistir k tentação de... de... ten tar sistem atizar o que é assistemático,
quer dizer, de procurar características comuns e constantes em p arág ra­
fos carentes de estrutura típica. Isso, todavia, não nos im pede de apon­
ta r e /o u com entar exemplos tanto dos que, fugindo à norm a, se distin­
guem pela eficácia dos recursos de expressão e do desenvolvim ento de
idéias, quanto dos que, tam bém atípicos — mas atípicos por serem pro­
duto da inexperiência ou do arbítrio inoperante —, denunciam desordem
de raciocínio (incoerências, incongruências, falta de unidade, hiatos lógicos,
falta de objetividade e outros defeitos) e, por isso, revelam-se ineficazes
como forma de comunicação.
1.0 O parágrafo como unidade de composição
1.1 Parágrafo-padrão
O parágrafo é uma unidade de composição constituída por um ou
mais de um período, em que se desenvolve determ inada idéia central, ou
nuc/ear, a que se agregam outras, secundárias, intimamente relacionadas pelo
sentido e logicamente decorrentes dela.
Trata-se, evidentem ente, de um a definição, ou conceito, que a p rá­
tica nem sem pre confirma, pois, assim como há vários processos de d e­
senvolvim ento ou encadeam ento de idéias, pode haver tam bém diferen­
tes tipos de estruturação de parágrafo, tudo dependendo, é claro, da
natureza do assunto e sua complexidade, do gênero de composição, do
propósito, das idiossincrasias e com petência (competence) do autor, tanto
quanto da espécie de leitor a que se destine o texto. De forma que esse
conceito se aplica a um tipo de parágrafo considerado como padrão, e
padrão não apenas no sentido de modelo, de protótipo, que se deva ou
que convenha imitar, dada a sua eficácia, mas tam bém no sentido de ser
freqüente, ou predom inante, na obra de escritores — sobretudo m oder­
nos — de reconhecido mérito. Tal critério nos leva, por conseguinte, a
resistir à tentação de... de... ten tar sistem atizar o que é assistemático,
quer dizer, de procurar características comuns e constantes em p arág ra­
fos carentes de estrutura típica. Isso, todavia, não nos im pede de apon­
tar e /o u com entar exemplos tanto dos que, fugindo à norm a, se distin­
guem pela eficácia dos recursos de expressão e do desenvolvim ento de
idéias, quanto dos que, tam bém atípicos — mas atípicos por serem p ro ­
duto da inexperiência ou do arbítrio inoperante —, denunciam desordem
de raciocínio (incoerências, incongruências, falta de unidade, hiatos lógicos,
falta de objetividade e outros defeitos) e, por isso, revelam-se ineficazes
como forma de comunicação.
220
♦
Co municação
em
P rosa
M oderna
1.2 Importância do parágrafo
1
2
Indicado m aterialm ente na página impressa ou m anuscrita por um
ligeiro afastam ento da margem esquerda da folha,1 o parágrafo facilita ao
escritor a tarefa de isolar e depois ajustar convenientem ente as idéias prin­
cipais da sua composição, permitindo ao leitor acom panhar-lhes o desen­
volvimento nos seus diferentes estágios.
3
4
5
Como unidade de composição “suficientemente ampla para conter um
processo completo de raciocínio e suficientemente curta para nos permitir a
análise dos componentes desse processo, na medida em contribuem para a
tarefa da comunicação",2 o parágrafo oferece aos professores oportunidades
didáticas de aproveitamento, em certa medida, mais eficaz do que rodo o
contexto de um a composição, pelas razões que apontaremos em tópicos sub­
seqüentes.
8
1.3 Extensão do parágrafo
Tanto quanto sua estrutura, varia também suà extensão: há parágra­
fos de um a ou duas linhas como os há de página inteira. E não é apenas o
senso de proporção que deve servir de critério para bitolá-lo, mas tam ­
bém, principalm ente, o seu núcleo, a sua idéia central. Ora, se a composi­
ção é um conjunto de idéias associadas, cada parágrafo — em princípio,
pelo menos — deve corresponder a cada um a dessas idéias, tanto quanto
elas correspondem às diferentes partes em que o Autor julgou conveniente
dividir o seu assunto (ver 7. Pl., 1.0).
É, pois, da divisão do assunto que depende, em grande monta, a ex­
tensão do parágrafo, admitindo-se, por evidente, que as idéias mais comple­
xas se possam desdobrar em mais de um parágrafo.
É verdade, como já assinalamos, que indiossincrasias pessoais nem
sem pre levam em consideração esse critério, do que resulta, muitas vezes,
uma paragrafação arbitrária: a idéia-núcleo fragm entada em grupos de li­
nhas que do parágrafo só têm a disposição tipográfica, como se pode ver
no seguinte exemplo:
1 Nos códices não aparece esse espaço livre (“branco paragráfico” ou “alínea”), assinalandose, entretanto, à margem a separação do trecho anterior por um signo tipográfico constituído
p o r dois “ S S " (abreviatura de s ig n u m se c tio n is, i.e., sinal de separação o u de seção), que, dis­
postos, mais tarde, verticalmente, deram o sinal de parágrafo (§), cal com o é conhecido hoje
e em pregado ainda nos códigos e leis principalmente.
2 TRAINOR, Francis X. e MCLAUGHLIN, Brian K. “An inductive m ethod of teaching com posi­
tion", The English Journal, vol. 3. n. 6, set., 1963. p. 422.
6
7
<
9
10
11
12
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15
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17
18
19
Consideremos, por
um trecho descritivo, pass
dade, encontramos nele n
Se o núcleo do pará
terminada idéia, se o da n
crição é ou deve ser um qi
te num determinado instai
Ora, o núcleo dessí
perspectiva; esse é o seu
der um só parágrafo, adn
das restantes como um a e
pósito de enunciar, de sa
"Estávamos em plena secs
de toda a narrativa, a qu<
Dando ao trecho es
Autor fracionou o que j á
idéias secundárias correia
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
221
E stávam os cm p len a seca.
A m an h ecia. Um c re p ú sc u lo fu lv o a lu m ia v a a te rra
com a c la rid a d e de u m in c ên d io a o longe.
A p r e tid ã o d a n o ite e s m a e c ia . J á c o m e ç a v a a se
in d iv id u a liz a r o c o n to rn o d a f lo r e s ta , a s ilh u e ta d a s
m o n ta n h a s ao longe.
A luz foi pouco a pouco tornando-se mais viva.
No oriente assomou o Sol, sem nuvens que lhe velassem
o disco. Parecia uma brasa, uma esfera candente, suspensa
no horizonte, vista através da ramaria seca das árvores.
A flo re sta c o m p le ta m e n te d e s p id a , n u a , s o m e n te
e s q u e le to s n eg ro s, te n d o n a fím b ria a c e s o o fa c h o q u e
a in c en d io u , e ra d e u m a e lo q ü ê n c ia trágica!
A m anhecia, e n ão se o u v ia o trin a d o d e u m a ave,
o zu m b ir d e um inseto!
R einava o silêncio d a s coisas m o rta s.
C om o m a n is fe s ta ç ã o d a v id a p e rc e b ia m -s e o s g e ­
m id o s d o g a d o , n a a g o n ia d a fo m e , o c r o c ita r d o s
u ru b u s nas carniças.
(R odolfo Teófilo, in: N ova a n tologia brasileira,
d e C lóvis M o n te iro , p. 8 5 )
Consideremos, por ora, apenas as dez primeiras linhas. Trata-se de
um trecho descritivo, passível de nova disposição tipográfica, pois, na reali­
dade, encontram os nele matéria para apenas um parágrafo e não cinco.
Se o núcleo do parágrafo de dissertação e de argumentação é um a de­
terminada idéia, se o da narração é um incidente (episódio curto), o da des­
crição é ou deve ser um quadro, i.e., um fragmento de paisagem ou ambien­
te num determinado instante, entrevisto de determinada perspectiva.
Ora, o núcleo dessas dez linhas é o amanhecer, entrevisto de certa
perspectiva; esse é o seu quadro, a que, em princípio, deveria correspon­
d er um só parágrafo, admitindo-se apenas que a prim eira linha se isolasse
das restantes como uma espécie de introdução posta em realce com o pro­
pósito de enunciar, de saída, o aspecto geral da paisagem. Na realidade,
“Estávamos em plena seca” nada mais é do que uma espécie de subtítulo
de toda a narrativa, a que o Autor dá o nome de “0 bebedouro
Dando ao trecho essa disposição tipográfica em pequenos blocos, o
A utor fracionou o que já era um fragmento da paisagem, separando das
idéias secundárias correlatas a idéia-núcleo de “am anhecer”, cuja caracte­
222
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
rística principal é o cambiar de cores e luzes (crepúsculo fulvo, claridade
de incêndio, preridão da noite, luz mais viva, assomo de Sol, ausência de
nuvens) e o delinear-se gradativo do perfil da paisagem (contorno da flo­
resta, silhueta das montanhas, ramaria seca das árvores).
Entretanto, as linhas 11, 12 e 13 correspondem realm ente a um pará­
grafo, pois seu núcleo já não é o amanhecer, mas a “floresta despida”, focali­
zada mais de perto, com outra perspectiva. Se, nas dez linhas iniciais, o que
o Autor pretendeu realçar foi a impressão visual da paisagem, a sua inten­
ção nas três seguintes foi traduzir-lhe a repercussão emotiva: “a floresta
completamente despida... era de uma eloqüência trágica
As restantes (14 a 19) deveriam por sua vez agrupar-se num só p a­
rágrafo: seu quadro ainda é o amanhecer, mas o propósito do Autor é,
agora, traduzir não as impressões visuais e sim as predom inantem ente au­
ditivas (trinado, zumbir, silêncio, gemidos, crocitar).
Estamos vendo assim que não é apenas o núcleo (no caso da descri­
ção, o quadro) que justifica a paragrafação mas também a perspectiva em
que se coloca o Autor e a prevalência das impressões (visual, no primeiro pa­
rágrafo; auditiva, no último, de acordo com a estruturação que estamos pro­
pondo).
Em certos casos específicos, a brevidade do parágrafo decorre da pró­
pria natureza do assunto. É o que acontece nos diálogos, nas cartas comer­
ciais, nos sumários, conclusões, instruções ou recomendações (parágrafos ge­
ralm ente numerados), na redação oficial de um modo geral (ofícios, avisos,
editais, etc.) e nos propriamente ditos parágrafos, itens e alíneas de leis e
decretos.
1.4 Tópico frasal
Em geral, o parágrafo-padrão, aquele de estrutura mais comum e
m ais eficaz — o que justifica seja ensinado aos principiantes —, consta, so­
bretudo na dissertação e na descrição, de duas e, ocasionalmente, de três
partes: a introdução, representada na maioria dos casos por um ou dois pe­
ríodos curtos iniciais, em que se expressa de maneira sum ária e sucinta a
idéia-núcleo (é o que passaremos a cham ar daqui por diante de tópico fra ­
s a l ) 8 o desenvolvimento, isto é, explanação mesma dessa idéia-núcleo; e a
conclusão, mais rara, mormente nos parágrafos pouco extensos ou naque­
les em que a idéia central não apresenta maior complexidade.
Constituído habitualm ente por um ou dois períodos curtos iniciais, o
tópico frasal encerra de modo geral e conciso a idéia-núcleo do parágrafo.
É, como vimos em 2. Voc., 2.0 uma generalização, em que se expressa opi­
3 ‘Tópico frasal” é uma tradução do inglôs topic sentence, a que damos sentido mais amplo
para nos permitirmos outras conclusões.
nião pessoal, um juízo, s
nem todo parágrafo apr<
núcleo está como que d
sendo apenas evocada pt
tículas de transição (ver
Pesquisa que fizemos em
res permite-nos afirmar c
sentam tópico frasal inic
praticam ente todos os d
quando damos como exe
trutura de parágrafos poi
(livros, editoriais da impi
É provável que tai
guas modernas, todas ind
tina, decorra de um proa
frasal, quando inicial, se
cações contidas no desem
idéias é, em essência, o i
do o tópico frasal vem n
sua conclusão —, precedi
indutivo: do particular pa
Se a maioria dos i
tomemos como padrão pa
remos de verificar que o
por ou explanar idéias. Ei
sal garante de antemão a
definindo-lhe o propósito
no seguinte exemplo de (
O Brasil é a i
espécie humana pan
mesmo, debaixo dos
mentadores de uma
da se acharam em
que chegaram até n
priram um feito que
era o país que desco
do que em redor se
se cumprira.
O primeiro peri
ção de m ostrar que s<
pico frasal, que tradi
dente. O rumo das i
desconcertante se o i
O t h o n
m
.
G a r c ia
♦ 223
nião pessoal, um juízo, se define ou se declara alguma coisa. É certo que
nem todo parágrafo apresenta essa característica: algumas vezes a idéianúcleo está como que diluída nele ou já expressa num dos precedentes,
sendo apenas evocada por palavras de referência (certos pronomes) e par­
tículas de transição (ver 4.4.4). Mas a maioria deles é assim construída.
Pesquisa que fizemos em muitas centenas de parágrafos de inúmeros auto­
res permite-nos afirmar com certa segurança que mais de 60% deles apre­
sentam tópico frasal inicial. Essa proporção vem sendo ainda confirmada
praticam ente todos os dias em nossas aulas, principalm ente particulares,
quando dam os como exercício aos nossos alunos a tarefa de estudar a es­
trutura de parágrafos por eles mesmos escolhidos nas mais variadas fontes
(livros, editoriais da imprensa diária, artigos de revista).
É provável que tal estrutura, predominante também em muitas lín­
guas modernas, todas indo-européias, todas marcadas pela herança greco-la­
tina, decorra de um processo de raciocínio dedutivo. De fato, que é o tópico
frasal, quando inicial, se não uma generalização a que se seguem as especifi­
cações contidas no desenvolvimento? Esse modo de assim expor ou explanar
idéias é, em essência, o método dedutivo: do geral para o particular. Quan­
do o tópico frasal vem no fim do parágrafo — e neste caso é, realmente, a
sua conclusão —, precedido pelas especificações, o m étodo é essencialmente
indutivo: do particular para o geral (ver 4. Com., 1.5, “Métodos”).
Se a maioria dos parágrafos apresenta essa estrutura, é natural que a
tomemos como padrão para ensiná-la aos nossos alunos. Assim fazendo, have­
remos de verificar que o tópico frasal constitui um meio muito eficaz de ex­
por ou explanar idéias. Enunciando logo de saída a idéia-núcleo, o tópico fra­
sal garante de antemão a objetividade, a coerência e a unidade do parágrafo,
definindo-lhe o propósito e evitando digressões impertinentes. É isso que se vê
no seguinte exemplo de Gilberto Amado:
O Brasil é a primeira gi’ande experiência que faz na história moderna a
espécie humana para criar um grande país independente, dirigindo-se por si
mesmo, debaixo dos trópicos. Som os os iniciad o res, os e n s a ia d o re s, os ex p e ri­
m e n ta d o r e s d e u m a d a s m ais am p las, p ro fu n d a s e g ra v e s em p re sa s q u e a in ­
d a se a c h a ra m em m ão s d a h u m a n id a d e . Os n a v e g a d o re s d a s d e s c o b e rta s
q u e c h e g a ra m a té nó s im pelid o s p ela v ib ra ç ã o m a tin a l d a R e n ascen ça, cu m ­
p rira m u m feito q ue te rm in av a com o triu n fo n a lu z d a p ró p ria glória; belo
era o p aís q ue descobriam , o p u le n ta a te rra q u e p isav am , m arav ilh o so o m u n ­
d o q ue e m re d o r se desd o b rav a; p o d ia m voltar, co n ten te s, q u e tu d o p ara eles
se cu m p rira.
(Ti'ês livros, p. 3 3 2 )
O primeiro período — grifado, aliás, pelo próprio Autor, com a inten­
ção de m ostrar que se trata de idéia central do parágrafo — constitui o tó­
pico frasal, que traduz uma declaração sobre o Brasil como país indepen­
dente. O rum o das idéias a serem desenvolvidas já está aí traçado: seria
desconcertante se o Autor não explanasse, especificando, justificando, funda­
224
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
mentando, nas linhas seguintes, o que anunciou nas três primeiras. O seu
propósito já está definido. Se o Autor julgasse oportuno fazer digressões, o
próprio tópico frasal o controlaria, impedindo-o de ultrapassar certos limites,
além dos quais elas se tom ariam descabidas, e forçando-o a voltar antes do
fim ao mesmo rum o de idéias que tom ara no princípio.
Na hipótese de o trabalho ter sido composto à base de um plano ou
esquema, mais ou menos minucioso, pode o conteúdo do parágrafo já es­
tar aí previsto como um dos seus itens, até mesmo n a sua forma definiti­
va de tópico frasal, se não for muito extenso. Assim sendo, na redação fi­
nal, poderá o autor limitar-se a desenvolver cada um desses itens do seu
plano, com o que estará garantida a coerência entre as diferentes partes
da composição. Demais, a presença do tópico facilita o resumo ou sum á­
rio, bastando para isso destacá-lo de cada parágrafo.
Por isso tudo, principalm ente por ser um excelente meio de discipli­
n a r o raciocínio, recomenda-se aos pricipiantes que se em penhem em se­
guir esse m étodo de paragrafação, até que maior desenvoltura e experiên­
cia na arte de escrever lhes deixem maior liberdade de ação.
1.4.1 Diferentes feições do tópico frasal
Admitindo-se como recomendável essa técnica de iniciar o parágra­
fo com o tópico frasal, resta-nos m ostrar algumas das suas feições mais co­
muns. Há vários artifícios, que a leitura dos bons autores — contem porâ­
neos de preferência — nos pode ensinar. Conhecê-los talvez contribua para
abreviar aqueles momentos de indecisão que precedem o ato de redigir as
prim eiras linhas de um parágrafo, pois, com freqüência, o estudante não
sabe como começar. Ora, o tópico frasal lhe facilita a tarefa, porque nele
está a síntese do seu pensamento, restando-lhe fundamentá-lo.
a) Declaração inicial — Esta é, parece-nos, a feição mais comum: o autor
afirm a ou nega alguma coisa logo de saída para, em seguida, justificar
ou fundam entar a asserção, apresentando argum entos sob a forma de
exemplos, confrontos, analogias, razões, restrições — fatos ou evidência,
processos de explanação que veremos a seguir em 2.0.
Vivem os n u m a época de ím petos. A V ontade, d iv in iz a d a , afirm a su a p re ­
p o n d e râ n c ia , p a ra d e s e n c a d e a r o u e n c a d e a r; o d elírio fascista o u o to rp o r
m a rx ista sã o ex p ressõ es p o u co d iferen tes d o m esm o im p é rio d a v o n ta d e . À
re a lid a d e su b stitu iu -se o d in a m ism o ; à in telig ên cia su b stitu iu -se o g esto e o
g rito ; e na m esm a lin h a d esse d in a m ism o e s tã o os a m a d o re s d e im p recaçõ es
e os a m a d o re s d e m o rd aç as (...)
(G ustav o C o rçã o , D ez a n o s, p. 8 4 )
O t h o n
M .
G a r c ia
♦ 225
O Autor abre o parágrafo com uma declaração sucinta, que, no ca­
so, é uma generalização (“Vivemos num a época de ím petos”), fundam en­
tando-a a seguir por meio de exemplos e pormenores (delírio fascista, tor­
por marxista, império da vontade, dinamismo, gesto e grito, imprecações são
term os que sugerem a idéia de ímpeto).
Às vezes, a declaração inicial aparece sob a form a negativa, seguindo-se-lhe a contestação ou a confirmação, como faz Rui Barbosa no trecho
abaixo:
Generalização
(tópico frasal)
Não há sofrimento mais confrangente que o da priva­
ção da justiça. As crianças
Especificação
(desenvolvimento)
o trazem no coração com os primeiros instintos da
humanidade, e, se lhes magoam essa fibra melin­
drosa, muitas vezes nunca mais o esquecem, ainda
que a mão, cuja aspereza as lastimou, seja a do pai
extremoso ou a da mãe idolatrada (...).
(Apud Luís Vianna, Antologia, p. 95)
O prim eiro período poderia servir de título ao parágrafo: é uma sín­
tese do seu conteúdo.
b) Definição — Freqüentemente o tópico frasal assume a forma de uma defini­
ção. E método preferentemente didático. No exemplo que damos a seguir,
a definição é denotativa, i.e., didática ou científica (ver 5. Ord., 1.3):
Estilo é a expressão literária de idéias ou sentimentos. Resulta de um con­
junto de dotes externos ou internos, que se fundem num todo harmônico e se
manifestam por modalidades de expressão a que se dá o nome de figuras.
(Augusto Magne, Princípios..., p. 39)
c) Divisão — Processo também quase que exclusivamente didático, dadas as
suas características de objetividade e clareza, é o que consiste em apre­
sentar o tópico frasal sob a forma de divisão ou discriminação das idéias
a serem desenvolvidas:
O silogismo divide-se em silogismo simples e silogismo composto (is­
to é, feito de vários silogismos explícita ou implicitamente formulados). Dis­
tinguem-se quatro espécies de silogismos compostos: (...)
(Jacques Maritain, Lógica menor; p. 246)
Via de regra, a divisão vem precedida por uma definição, ambas no
mesmo parágrafo ou em parágrafos distintos.
226 ♦ c O M U N I C A Ç A O
EM
PROSA
MODERNA
1.5 Outros modos de iniciar o parágrafo
Além do tópico frasal, há outros — na verdade, inúmeros — meios de
se iniciar o parágrafo, pois tudo depende das idéias que inicialmente se im­
ponham ao espírito do escritor, das associações implícitas ou explicitas, da
ordem natural do pensamento e de outros fatores imprevisíveis. Todavia, al­
guns deles podem ser devidamente caracterizados, como os seguintes, para
servirem de exemplo aos principiantes, até a posse da autonomia de expres­
são, até atingirem sua maioridade estilística.
Nesse trecho —
Demóstenes o mérito d
p ertar a curiosidade do
volvimento das idéias c
pécie de introdução ao
dade e a mania das no1
João Ribeiro, em
título mas tam bém pel;
Nova floresta — favorec
im itar pelos principiam*
se com um parágrafo e
da ou episódio real ou
15.1 Alusão histórica
Recurso que desperta sempre a curiosidade do leitor é o da alusão a
fatos históricos, lendas, tradições, crendices, anedotas ou a acontecimentos
de que o Autor tenha sido participante ou testem unha. É artifício em prega­
do por oradores — principalmente no exórdio — e por cronistas, que, com
freqüência, aproveitam incidentes do cotidiano como assunto não apenas
de um parágrafo mas até de toda a crônica.
No exemplo seguinte, Rui Barbosa tira grande partido da alusão a
um a tradição am ericana — a do Sino da Liberdade — para tecer conside­
rações sobre a im portância da justiça e do poder judiciário na vida políti­
ca de um povo:
C onta u m a tradição cara ao povo am ericano q u e o S ino d a L iberdade,
cujos sons a n u n c ia ra m , em F iladélfia, o n ascim en to dos E stad o s U nidos, in o p i­
n a d a m e n te se fendeu, estalan d o , pelo p assam e n to d e M arshall. E ra u m a d e s­
sas ca su a lid a d e s elo q ü en tes, em q u e a alm a ig n o ta d as coisas p are ce le m b rar
m iste rio sa m e n te aos h o m e n s as g ran d es v erd a d es esq u ec id as (...).
(R. IL, op. cit., p. 4 1 )
O padre Manuel Bernardes é, entre os clássicos da língua, quem tal­
vez com mais habilidade e mais freqüência se serve desse recurso. Em sua
Nova floresta, obra cuja leitura é ainda hoje motivo de prazer, oferece-nos
inúm eros e excelentes exemplos, como o seguinte:
O ra n d o u m a v ez D em ó sten es em A tenas so b re m a té ria s d e im p o rtâ n ­
cia, e a d v e rtid o q u e o a u d itó rio estav a p o u co a te n to , in tro d u z iu com d e s tre ­
za o co n to ou a fáb u la d e u m c a m in h a n te q u e a lq u ila ra [alu g a ra ] u m j u ­
m e n to e, p a r a se d e fe n d e r no d e sc a m p a d o d a força d a ca lm a [ca lo r], se a s­
s e n ta ra à s o m b ra d ele, e o alm o crev e [c o n d u to r ou p ro p rie tá rio d e b e s ta s de
ca rg a p a ra alu g u el] o d e m a n d a ra p a ra m a io r p a g a , a le g a n d o q u e lh e a lu g a ­
ra a b e s ta m as n ã o a so m b ra dela.
(Nova flo r e s ta , “C u rio sid a d e ”)
N a flo resta v
sis, tal foi a m aravü
ro c id a d e d o s in stin t
Aqui também o A
são, como introdução à :
15.2 Omissão á
Não encontramos
essa técnica de iniciar i
se m antenha suspensa c
tir certos dados necessá
dadeira intenção do aut
mãos de um cronista ou
Vai c h e g a r d>
p assará d esp erce b id í
m ais afo ito q u e sejí
q u e ta n to as su sto u /
rá e m lu g a r n e n h u n
se d eix am co m o v er
p ró p ria , em h o ra s ir
q ü ên c ia s d ire ta s d o !
(C
O Autor anuncia t
indicação clara sobre a ]
expectativa, não apenas
crônica. É processo muil
habilidade, sem a qual ■
com a peneira ou esconc
[ ü F P E Biblioteca C e n tra l \
O thon
M.
Garcia
♦
227
Nesse trecho — que vem a calhar pois nele já se reconhece desde
Demóstenes o mérito desse recurso à alusão —, a anedota, além de des­
pertar a curiosidade do leitor, prepara-lhe tam bém o espírito para o desen­
volvimento das idéias que se seguem. Todo o parágrafo constitui um a es­
pécie de introdução ao capítulo onde o Autor condena o vício da curiosi­
dade e a -mania das novidades.
João Ribeiro, em Floresta de exemplos — obra em que, não só pelo
título mas tam bém pela técnica da narrativa, se nota clara influência da
Nova floresta — favorece-nos com grande número de exemplos, muitos de
im itar pelos principiantes. A maior parte das suas crônicas-narrativas abrese com um parágrafo encabeçado por uma alusão histórica (anedota, len­
da ou episódio real ou imaginário):
N a flo resta vizinha d e Cenci A ssisa, n o te m p o d e S ão F ran cisco d e As­
sis, ta l foi a m a ra v ilh a das prédicas d o sa n to , q u e os an im ais, p e rd e n d o a fe­
ro c id a d e do s in stin to s, ab ra çav a m as leis d iv in as q u e g o v e rn a v a m o m u n d o .
(Floresta de exem plos, “O n o v o E so p o ”)
Aqui também o Autor usa o parágrafo, todo ele constituído pela alu­
são, como introdução à narrativa inspirada na tradicional astúcia da raposa*
1.5.2 Omissão de dados identificadores num texto narrativo
Não encontramos outra expressão menos rebarbativa para designar
essa técnica de iniciar um parágrafo de tal modo que a atenção do leitor
se m antenha suspensa durante largo tempo, técnica que consiste em omi­
tir certos dados necessários a identificar a personagem e apreender a ver­
dadeira intenção do autor. E um artifício, um truque, em geral eficaz nas
mãos de um cronista ou contista hábil. Veja-se o exemplo:
Vai c h e g a r d e n tro d e p o ucos dias. G ra n d e e b o ticelesca fig u ra, m as
p a s sa rá d esp erce b id a. N ão te rá fo tógrafo s à esp e ra , n o G aleão. N in g u ém , p o r
m a is afoito q u e seja, sa b e rá p re sta r-lh e essa h o m e n a g e m e p itelial e d ifu sa,
q u e ta n to assu sto u Ava G ardner. E stará u m p o u co p o r to d a p a rte , e n ão e s ta ­
rá e m lu g a r n e n h u m . Tem u m a v a rin h a m ágica, m as as coisas p o r aqui n ão
se d e ix a m co m o v er facilm ente, ou, n a su a re b e ld ia , se co m o v em p o r co n ta
p ró p ria , em h o ra s indevidas, d e so rte q u e n ão d e v e m o s e s p e ra r p elas co n se­
q ü ê n c ia s d ire ta s d o se u sortilégio.
(C arlos D ru m tn o n d d e A n d ra d e , Fala, a m en d o eira , p. 121)
O Autor anuncia um fato, de chofre, mas não nos fornece nenhum a
indicação clara sobre a personagem de que se trata, m antendo o leitor na
expectativa, não apenas até o fim do parágrafo, mas até o fim da própria
crônica. É processo muito eficaz para prender a atenção, mas exige certa
habilidade, sem a qual o autor acaba tentando, a seu modo, tapar o sol
com a peneira ou esconder-se deixando o rabo de fora.
228
♦
Co m unicação
em
Prosa
M oderna
15.5 Interrogação
Às vezes, o parágrafo começa com uma interrogação, seguindo-se o
desenvolvim ento sob a forma de resposta ou de esclarecimento:
S a b e você o q u e é m a n h o sa n d o ? Bem , e u Ihé ex p lico , q u e v o cê é h o ­
m e m d e a sfa lto , e esse e s tra n h o v erb o só se co n ju g a p e lo s e rtã o n o rd e stin o .
T alvez o am ig o nem te n h a tem p o p ara m an h o sar, ou q u em sa b e se
d o rm e ta n to , q u e ignora esse e stad o d e b e a titu d e , situ a d o nos lim ites d o so n o
e d a vigília. O espírito está recolhido, m as o ou v id o a n d a c a p ta n d o os sons,
q u e n ão m a is in terferem , todavia, com a q u ie tu d e, com a p az interior. N esses
m o m e n to s som os d e um u niverso d e som bras, em q u e o nosso p e n s a m e n to
flu tu a livre, im itan d o a q u e le p rim eiro d ia d e C riação, q u a n d o a v o n ta d e d e
D eus a in d a era a ú n ic a an tes d e sep arad a s as trev as e a luz. (...)
(D inah S ilveira d e Q u eiro z , “M a n h o s a n d o ”
In: Q u a d ra n te 2 , p. 10 9 )
Como artifício de estilo, a interrogação inicial freqüentemente camu­
fla um tópico frasal por decfarapão ou por definição, como no exemplo su­
pra. Seu principal propósito é despertar a atenção e a curiosidade do leitor.
Se D.S.Q. tivesse começado com a definição inicial de “m anhosando”, gran­
de parte do interesse do parágrafo seguinte estaria prejudicada. Admitamos
que dissesse: “Manhosar é ficar naquele estado de beatitude, situado nos li­
mites do sono e da vigília.” Seria uma definição meio didática, inadequada
ao clima da crônica e, além de tudo, insatisfatória, pois, segundo a Autora,
“m anhosar” é mais do que a sua simples definição nos pode sugerir. Então,
lança ela mão desse artifício de interrogar primeiro o leitor para ir dando
depois as respostas “aos pouquinhos” a fim de prender-lhe a atenção, espica­
çada desde a primeira linha.
1.6 Tópico frasal implícito ou diluído no parágrafo
Conforme já assinalamos em 1.4, a maioria dos parágrafos tidos como
padrão (cerca de 60% deles) se iniciam com uma declaração sumária, decla­
ração de ordem geral, seguindo-se as especificações, os dados particulares, do
que resulta uma estrutura que, em linhas gerais, reflete o processo de racio­
cínio dedutivo (do geral para o particular; ver 4. Com., 1.5.1 e 1.5.2, e 6.
Id., 1.5.2.1). Quando ocorre o contrário (tópico frasal no fim), o desenvolvi­
m ento das idéias segue, também em linhas gerais, o m étodo indutivo. Mas
não são raros os casos em que o tópico frasal está implícito ou diluído no
parágrafo, sendo este, então, constituído apenas pelo desenvolvimento (deta­
lhes, exemplos, fatos específicos), e constituído de tal forma que se possa
deduzir (ou induzir) claramente a idéia nuclear. É o que se observa no se­
guinte exemplo:
“O G ra n d e !
c irc u n d a m — j á a
A p esar d a a lta arre
p lic am a o lh o s vis
c a p ita l p a u lista ser
d e h o sp ita is é noto
tax a d e poluição qu
O trâ n sito é u m toi
c id a d e d e d a r solu<
d e três h o ra s d o se
e d ito ria l d o Jornal
A idéia-núcleo de
cito) não é “o Grande
população brasileira”, n
blemas urbanos. Explicit
guinte feição: “Graves
Posta no fim, essa decl;
tícula conclusiva (porta
equivalente. (“Esses sãc
ta o Grande São Paulo.’
U F P E Biblioteca Centra
O thon
M.
Garcia
♦
229
“O G ra n d e S ão P aulo — isto é, a c a p ita l p a u lis ta e as c id a d e s q u e a
c irc u n d a m — já a n d a em to rn o d a d écim a p a r te d a p o p u la ç ã o b rasileira.
A p e sa r d a a lta a rre c a d a ç ã o d o m u n ic íp io e d a s o b ra s cu sto sas, q u e se m u lti­
p lic a m a olh o s vistos, a p e n a s u m te rç o d a c id a d e te m esg o to s. M e ta d e d a
c a p ita l p a u lis ta serv e-se d e á g u a p ro v e n ie n te d e p o ço s d o m iciliares. A re d e
d e h o sp itais é n o to ria m e n te d e fic ie n te p a ra a p o p u la ç ã o , a m e a ç a d a p o r u m a
ta x a d e poluição que técnicos internacionais co n sid eram su p erio r à d e Chicago.
O trâ n sito é um to rm e n to , pois o acréscim o d e novos veículos s u p e ra a ca p a­
c id a d e d e d a r solução d e u rb a n ism o ao p ro b lem a. E m m éd ia, o p a u lista p e r­
d e três h o ras d o seu dia p ara ir e voltar, e n tre a casa e o tra b a lh o .” (De um
ed ito ria l d o Jornal do B rasil.)
A idéia-núcleo desse parágrafo (o tópico frasal nele diluído ou implí­
cito) não é “o Grande São Paulo... já anda em torno da décima parte da
população brasileira”, mas a série de fatos que refletem os seus graves pro­
blemas urbanos. Explicitado no início, o tópico frasal poderia assumir a se­
guinte feição: “Graves problemas urbanos enfrenta o Grande São Paulo.”
Posta no fim, essa declaração viria naturalm ente introduzida por um a par­
tícula conclusiva (portanto, assim, por conseguinte) ou frase de transição
equivalente. (“Esses são alguns dos graves problemas urbanos que enfren­
ta o Grande São Paulo.”)
2.0 Como desenvolver o parágrafo
E um parágrafo de
pressa no tópico frasal ii
através dos pormenores:
São detalhes que tom am
aborrecido”. (O trecho p
gênero: basta m udar o qi
desenvolvimento.)
Tópico
í
Desenvolvimento é a explanação mesma da idéia principal do p ará­
grafo. I-Iá diversos processos, que variam conforme a natureza do assunto e
a finalidade da exposição; mas, qualquer que seja ele, a preocupação maior
do autor deve ser sempre a de fundam entar de maneira clara e convincen­
te as idéias que defende ou expõe, servindo-se de recursos costumeiros tais
como a enum eração de detalhes, comparações, analogias, contrastes, apli­
cação de um princípio, regra ou teoria, definições precisas, exemplos, ilus­
trações, apelo ao testem unho autorizado, e outros.
Os exemplos que a seguir comentamos talvez ajudem o estudante a es­
truturar o seu parágrafo de maneira mais satisfatória. Mas, advirta-se, nossos
ocasionais comentários valem menos do que os modelos que apresentamos.
Desenvol­
v im e n to
Conclusão
A arte (.
(tópico fi
nossa ser
fazendo j
das e am
realidade
mundo nt
sombra, *
pressentir
E, em cot
2.1 Enumeração ou descricão de detalhes
O desenvolvimento por enum eração ou descrição de detalhes é dos
mais comuns. Ocorre de preferência quando há tópico frasal inicial explíci­
to, como no exemplo já citado de Aluísio Azevedo (2. Voc., 2.0):
T ó p ico
frasal
Desenvol­
vimento
{
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís
do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não
podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lam­
piões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes ti­
nham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem
se mexiam; as carroças d’água passavam ruidosamente a todo o
instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de
camisa e pernas [calças] arregaçadas, invadiam sem cerimônia
as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos
não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado,
adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar, ou
andavam no ganho.
Observe-se como o i
um a idéia suficientemente
parte da declaração geral i
2.2 Confronto
Processo muito com
consiste em estabelecer coi
nos. Suas formas habituais
paralelo (que se assenta ní
oposição entre idéias isola<
se, baseia-se na sem elhanç
conhecido pelo conhecido, o
Exemplo clássico de
paralelo que A. F. de Casti
O thon
M.
Garcia
♦
231
É um parágrafo descritivo bastante bom. Note-se a idéia-núcleo, ex­
pressa no tópico frasal inicial (em itálico) e desenvolvida ou especificada
através dos pormenores: as pedras, os lampiões, as paredes, as folhas, etc.
São detalhes que tornam mais viva a generalização “era um dia abafadiço e
aborrecido”. (O trecho pode servir de modelo para exercícios do mesmo
gênero: basta m udar o quadro da descrição e seguir o mesmo processo de
desenvolvimento.)
J
T ópico
D esen vol­
v im e n to
A a rte ( ...) é tu d o o q ue p o d e c a u sa r u m a em o çã o estética
(tópico fr a s a l), tu d o q u e é c a p a z d e e m o c io n a r s u a v e m e n te a
<
^
C o n c lu sã o
•<
n o ssa se n sib ilid ad e , d a n d o a v o lú p ia d o so n h o e d a h a rm o n ia ,
faz en d o p e n s a r em coisas v ag a s e tra n s p a re n te s , m as ilu m in a ­
d a s e am p las com o o firm am e n to , d a n d o -n o s a v isão d e u m a
re a lid a d e m ais a lta e m ais p e rfe ita , tra n s p o rta n d o -n o s a um
m u n d o novo, o n d e se a c la ra to d o o m is té rio e se d esfa z to d a a
so m b ra, e o n d e a p ró p ria d o r se ju stifica co m o rev e la ç ã o o u
p re sse n tim e n to d e u m a vo lú p ia sa g ra d a.
É, e m co n clu são , a e n e rg ia c ria d o ra d o id e al.
(Farias B rito, a p u d Clóvis M o n teiro ,
N ova a n to lo g ia brasileira, p. 91)
Observe-se como o Autor, através de certos detalhes, consegue dar-nos
um a idéia suficientemente clara do que ele considera como emoção estética,
parte da declaração geral contida no tópico frasal.
2.2 Confronto
Processo muito comum e muito eficaz de desenvolvimento é o que
consiste em estabelecer confronto entre idéias, seres, coisas, fatos ou fenôme­
nos. Suas formas habituais são o contraste (baseado nas dessemelhanças), e o
paralelo (que se assenta nas semelhanças). A antítese é, de preferência, uma
oposição entre idéias isoladas. A analogia, que também faz parte dessa clas­
se, baseia-se na semelhança entre idéias ou coisas, procurando explicar o des­
conhecido pelo conhecido, o estranho pelo familiar (ver 2.3, a seguir).
Exemplo clássico de desenvolvimento por confronto e contraste é o
paralelo que A. F. de Castilho faz entre Vieira e Bernardes:
232
♦
Com unicação
em
P rosa
M oderna
L endo-os com a te n ç ã o , se n te-se q u e V ieira, a in d a fa la n d o d o céu, ti­
n h a o s o lh o s nos seus o u v in te s; B e rn a rd es, a in d a fa la n d o d a s c ria tu ra s, e s ta ­
v a a b s o rto no C riador. V ieira vivia p a ra fora, p a ra a cid ad e , p a ra a co rte,
p a ra o in u n d o , e B e rn a rd es p a ra a cela, p a ra si, p a r a o se u co ração . V ieira
e s tu d a v a g ra ç a s a lo u ç ain h a s d e e stilo (...); B e rn a rd e s e ra co m o essas fo r­
m o sa s d e se u n a tu ra l qu e se n ã o c a n sa m com a lin h a m e n to s (...) V ieira fa­
zia a elo q ü ên c ia; a p o esia p ro c u ra v a a B e rn a rd e s. Em V ieira m o ra v a o g ê­
nio; c m B e rn a rd es, o am or, q u e, em se n d o v e rd a d e iro , é ta m b é m g ên io (...).
(A p u d
Fausto Barreto e Carlos de Laet,
cer”, “lembrar”, “dai
no, de tão quente
imaginárias. Por me
o que nos é estranht
dático. Sua estrutur
da comparação (cor
Fr., 1.6.8). Para dar
lor, observe-se o pre
A n to lo g ia n a cio n a l, p. 1 8 6 ).
O Sol é
q u e é com o u r
n o com lu z e <
se m a lu z e o
m esm o ta n to 1
p a ra o b te rm o s
p la n ta s n ã o po*
Sol to rn o u posí
É um parágrafo sem tópico frasal explícito, pois a idéia-núcleo é o pró­
prio confronto entre Vieira e Bernardes. O Autor poderia iniciar o parágrafo
com um tópico frasal mais ou menos nestes termos: “Vejamos o que distin­
gue Vieira de Bernardes” ou “Muito diferentes (ou muito parecidos) são Viei­
ra e Bernardes”. Mas seria inteiramente supérfluo, pois essa idéia está clara
no desenvolvimento.
Exemplo, também muito conhecido, de parágrafo com desenvolvi­
m ento por contraste é o de Rui Barbosa sobre política e politicalha:
Política e politicalha não se confundem , não se p arecem , n ão se relacio­
n am u m a com a o utra. A ntes se negam , se excluem , se rep u lsam m u tu a m e n te
0tópico frasal). A política é a arte de gerir o E stado, se g u n d o princípios defini­
dos, reg ras m orais, leis escritas, o u tradições respeitáveis. A politicalha é a in ­
d ú stria d e o exp lo rar a benefício d e interesses pessoais. C onstitui a política u m a
fun ção , ou conjunto d as funções do organ ism o n acional: é o exercício norm al
d as forças de u m a nação consciente e se n h o ra d e si m esm a. A politicalha, pelo
c o n trário , é o en v e n en a m e n to crônico dos povos n eg lig en tes e viciosos pela co n ­
ta m in a çã o d e parasitas inexoráveis. A política é a h ig ien e dos países m o ralm en ­
te sadios. A politicalha, a m alária dos povos d e m o ralid ad e estrag ad a.
Sol tão quente
forma, uma compar;
car o desconhecido (
lhança apenas parcia
de fogo).
No trecho sej
verdade”, estabelece
r
(A pud Luís V ia n n a Filho, op. c i t p. 3 2 )
Vê-se logo pelo tópico frasal que se trata de um contraste, e não pro­
priamente de um paralelo ou confronto (como no exemplo de Castilho), pois
o que o Autor ressalta entre política e politicalha é o seu antagonismo e não
a sua identidade. Ora, o valor do contraste — de que a antítese é a figura
típica — reside precisamente na sua capacidade de realçar certas idéias, pela
simples oposição a outras, contrárias. (Rever 1. Fr., 1.6.7 a 1.6.7.3.)
Descrição d e ta
d a do elen x
concreto e coi
d d o (cachoeiras
semi)
<
l-H
O
o
-J
<
2:
<
2.3 Analogia e comparação
A analogia é uma semelhança parcial que sugere uma semelhança
oculta, mais completa. Na comparação, as semelhanças sao reais, sensíveis,
expressas num a forma verbal própria, em que entram norm alm ente os cha­
mados conectivos de comparação (como, quanto, do que, tal qual), substi­
tuídos, às vezes, por expressões equivalentes (certos verbos como “pare­
Idem d o elerr
to d esco n h ed d
abstrato (paixão
verdade)
L
O th o n
M.
G ar c ia
♦ 233
cer”, “lem brar”, “dar um a idéia”, “assemelhar-se”: “Esta casa parece um for­
no, de tão quente que é.”). Na analogia, as semelhanças são apenas
imaginárias. Por meio dela, se tenta explicar o desconhecido pelo conhecido,
o que nos é estranho pelo que nos é familiar; por isso, tem grande valor di­
dático. Sua estrutura gramatical inclui com freqüência expressões próprias
da comparação (como, tal qual, sem elhante a, parecido com, etc. Rever 1.
Fr., 1.6.8). Para dar à criança uma idéia do que é o Sol como fonte de ca­
lor, observe-se o processo analógico adotado pelo Autor do seguinte trecho:
O Sol é m u itíssim o m a io r d o q u e a T erra, e está a in d a tão q u e n te
q u e é com o u m a e n o rm e b o la in c a n d e sc e n te , q u e in u n d a o e sp a ç o em to r ­
no com luz e calor. N ós aq u i n a Terra n ã o p o d e ría m o s p a s sa r m u ito te m p o
sem a luz e o c a lo r q ue nos v êm d o S ol, a p e sa r d e sa b e rm o s p ro d u z ir aq u i
m esm o ta n to luz co m o calor. R e a lm e n te p o d em o s a c e n d e r u m a fo g u eira
p a ra o b te rm o s luz e calor. M as a m a d e ira q u e u sa m o s veio d e árv o res, e as
p la n ta s n ã o p o d e m v iver sem luz. A ssim , se te m o s le n h a , é p o rq u e a luz d o
Sol to rn o u possível o cre scim en to d as flo restas.
(O sw ald o F ro ta Pessoa, Iniciação à ciência, p. 3 5 )
Sol tão quente, que é como uma enorme bola incandescente é, quanto à
forma, uma comparação, mas, em essência, é uma analogia: tenta-se expli­
car o desconhecido (Sol) pelo conhecido (bola incandescente), sendo a seme­
lhança apenas parcial (há outras, enormes, diferenças entre o Sol e uma bola
de fogo).
No trecho seguinte, o Autor torna mais clara a idéia de “paixão da
verdade”, estabelecendo uma analogia com a de “cachoeiras da serra”:
r
L
D escrição d etalh a­
d a d o elem ento
concreto e conhe­
cido (icachoeiras da
setra)
A paixão d a v erd a d e sem elha, p o r vezes, as cachoei­
ras d a serra. A queles b orbotões d 5ág u a, que re b e n ­
tam e e sp ad a n am , m a ru lh an d o , eram , po u co atrás, o
regato q u e serp eia, ca n ta n d o p ela encosta, e v ão ser,
d a í a pouco, o fio d e p rata q u e se desd o b ra, sussur­
rando, na esp lan ad a. Corria m u rm u ro so e descuida­
do; encontrou o obstáculo: cresceu, aírontou-o, envol-.
veu-o, cobriu-o e, afinal, o transpõe, d esfazendo-se
em pedaços d e cristal e flocos d e espum a. A convicção
Idem do elem en­
to desconhecido e
abstrato (paixão da
vmladé)
d o bem , q u a n d o co n tra riad a pelas h o stilid ad es p erti­
nazes d o erro , d o sofism a ou d o crim e, é com o es­
sas c a ta d u p a s d a m o n ta n h a. V inha d eslizan d o ,
q u a n d o to p o u n a b arreira, q u e se lh e atrav essa no
cam inho. E n tã o rem o in h o u a rre b a ta d a , ferveu, avul­
tando, em p in o u -se, e ag o ra b ram e n a voz d o o ra­
dor, a rre b a ta -lh e em rajadas a palavra, sacode, es­
trem ece a trib u n a , e d esp en h a-se-lh e em to rn o , b o r­
bulhando.
(Rui B arbosa, op. cit., p. 77)
234
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
O tópico frasal (primeiro período) assume a forma gramatical de uma
comparação, mas o desenvolvimento se faz por analogia. Na primeira parte
do parágrafo, que vai até “espuma”, o Autor descreve, em linguagem parcial­
mente metáforica, os “borbotões d’água”. Este é o primeiro termo da analo­
gia, o term o conhecido, familiar, através do qual se vai tornar mais clara a
idéia do segundo,4 o desconhecido, o menos familiar: “a paixão da verda­
de”, “a convicção do bem”. Como se vê, a semelhança aparente é parcial,
mas oculta uma outra mais completa, concebida apenas como abstração e
não como realidade sensível. E é isso exatamente o que distingue a analo­
gia da comparação, como já assinalamos. Note-se ainda que, entre o termo
desconhecido e o conhecido, o Autor aponta somente as semelhanças, e não
os contrastes ou diferenças. Por isso é analogia. A esse tipo de analogia cha­
mavam os retóricos “comparação oratória”, que não se deve confundir com a
“comparação poética” (metáfora, símile). São distinções mais ou menos bi­
zantinas — é certo — pois, na realidade, comparação e analogia são em ge­
ral consideradas, se não como sinônimas, pelo menos como equivalentes.
No seguinte trecho, ainda de Rui Barbosa, não há, legitimamente,
analogia nem comparação, nem contraste mas simples paralelo ou confronto:
O ra çã o e tra b a lh o são os recu rso s m ais p o d e ro so s na cria çã o m o ral
d o h o m e m . A o ra ç ã o é o ín tim o su b lim a r-se d a alm a p elo c o n ta to co m
D eus. O tra b a lh o é o inteirar, o desenvolver, o a p u ra r das en e rg ias d o corpo e
d o esp írito , m e d ian te a ação co n tín u a so b re si m esm o s e so b re o m u n d o o n d e
la b u ta m o s.
(A ntologia nacional, p. 128)
Não há comparação porque lhe falta a estrutura gramatical peculiar
(como, p a r e c e , s e m e lh a , etc.); não é analogia porque a aproximação entre
“oração” e “trabalho” não se baseia num a semelhança, e, ip so f a c t o , não há
um termo m a is c o n h e c id o com o qual se tenta explicar como m e n o s c o n h e ­
c id o ; não ocorre tampouco nenhum contraste porque não se assinala qual­
quer oposição de sentido entre os dois termos. O que existe, portanto, é
um paralelo ou confronto.
2.4 Citação de exemplos
Para sermos coerentes, deveríamos incluir este caso na categoria do
desenvolvimento por analogia. Entretanto, a explanação p o r e x e m p lo ( s ) pode
assumir duas feições típicas: uma exclusivamente d id á tic a , e outra, digamos,
4 Por causa dessa função esclarecedora da analogia é que os lógicos a chamam também de
exempltun. Raciocinamos por analogia ou por semelhança, quando, para nos explicarmos me­
lhor, juntam os um exemplo: “Pedro não sabe nada. Por exemplo, não foi capaz de dizer quais
os afluentes do rio Amazonas.” Exemplo é argumento por analogia.
lite r á r ia . Na p rim e
d e s e n v o lv im e n to , i
s o , a s s u m e u m a f<
v a s p e c u lia r e s (p o
p ro c e sso e m in e n te
n iç ã o d e n o ta tiv a ( l
ta fó r ic a , q u e n ã o í
p io , r e g r a o u teo rié
e x e m p lo , d id á tic o í
Analog
d ên c ia p a ra i
m am pela for
Q uand
p o r o u tra s já
A definição
ao âmbito exclusr
tor, para m aior rei
mesmo, que pode
por exemplo”). M;
mo parágrafo:
As cor
d o is so n s disi
v a-se g u t-ta ; i
No parágraf
e s o b r ie d a d e d o s b
propriam ente didá
C om o
ra n te s é a r e
m o. Os q u e \
lares, o q u e i
p a ra o prim e
tu d o é e n ig m
O leitor sen
exemplo que cham
mite a introdução
ver no trecho de J<
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
235
literária. Na primeira, a citação de exemplos não constitui, propriamente, o
desenvolvimento, mas um a espécie de comprovante ou elucidante. Nesse ca­
so, assume um a forma gramatical típica graças a certas partículas explicati­
vas peculiares (por exemplo, ex. g.s v. g.). E, como todos reconhecem, um
processo eminentemente didático. Na maioria das vezes, segue-se, um a defi­
nição denotativa (i.e., didática ou científica, em oposição à conotativa ou m e­
tafórica, que não admite aposição de exemplo), à enunciação de um princi­
pio, regra ou teoria, ou, ainda, a uma simples declaração pessoal. Vejamos um
exemplo, didático e muito a propósito:
A nalogia é u m fen ô m en o d e o rd e m psicológica, q u e consiste n a te n ­
d ê n c ia p a ra nivelar palav ras o u constru çõ es q u e d e ce rto m o d o se ap ro x i­
m a m p ela fo rm a o u p elo sentido, lev an d o u m a d e la s a se m o d e la r p e la o u tra.
Q u a n d o u m a c ria n ç a diz fa z i e cabeu, co n ju g a essas fo rm as v erb ais
p o r o u tra s já co n h e cid as, com o do rm i e correu.
(R ocha Lim a, Português no colégio, 1- an o , p. 94)
A definição de analogia restringe-se, como não podia deixar de ser,
ao âm bito exclusivamente lingüístico. O exemplo (fazi, cabeu), que o Au­
tor, para maior realce, deixou num parágrafo à parte, é tão evidente por si
mesmo, que pode prescindir das partículas ou expressões próprias (“como,
por exemplo”). Mas no trecho seguinte julgou oportuno fazê-lo, e no mes­
mo parágrafo:
As co n so a n te s d uplas, dobradas ou g em in a d a s co n stitu ía m , em L atim ,
d o is sons d istin to s. A ssim , u m a p alav ra co m o , p o r ex e m p lo , g u tta p ro n u n c ia ­
v a -se gut-ta ; carru p ro fe ria-se c a r -m ; ossu lia-se os-su.
(I b i d p. 4 5 )
No parágrafo abaixo, o Autor desenvolve o tópico frasal (resignação
e sobriedade dos bandeirantes) através de exemplos mais literários do que
propriam ente didáticos:
C om o as carav an as d o d eserto africano, a p rim e ira v irtu d e d o s b a n d e i­
r a n te s é a resignação, que é q uase fatalista, é a so b ried a d e le v ad a ao e x tre ­
m o . Os q u e p a rte m n ão sabem se v o lta m e n ã o p en sam m ais em v o ltar ao s
la re s, o q u e freq ü en tes vezes suced e. As p rovisões q u e lev am ap e n a s b a s ta m
p a ra o p rim e iro p erc u rso d a jo rn a d a ; d a í por d ia n te , en tre g u es à v en tu ra,
tu d o é en ig m ático e d esconhecido.
(Jo ã o R ibeiro, H istória do B ra sil, p. 2 2 5 )
O leitor sente a diferença entre os dois tipos de desenvolvimento: o
exemplo que chamamos “literário” (por falta de melhor termo) raramente ad­
mite a introdução daquelas partículas que lhe são peculiares, como se pode
ver no trecho de João Ribeiro.
236 ♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Em muitos casos, a enumeração de exemplos confunde-se com a enu­
meração de detalhes. No trecho seguinte, em que Eça de Queirós evoca a vi­
rilidade física de Antero de Quental, o desenvolvimento d a idéia-núcleo fazse ao mesmo tempo por detalhes e por exemplos, não sendo muito fácil dis­
tinguir uns dos outros:
T oda esta alm a d e S an to [A ntero] m o rav a , p a ra to r n a r o h o m e m m ais
e s tra n h a m e n te ca tiv a n te , n u m corpo de A lcides [so b re n o m e p a tro n ím ic o d e
H ércu les]. A ntero foi n a su a m o c id ad e u m m agnífico v arã o (tó p ico frasal
c o n stitu íd o p o r dois p erío d o s d e se n tid o eq u iv ale n te ). A iroso e leve ( d e ta ­
lh e ), m a rc h a v a lé g u as (ex em p lo g era l), em rijas c a m in h a d a s (ex em p lo esp ec í­
fico) q u e s e a lo n g av a m a té à m a ta do B ussaco: com a m ã o seca e fina, d e
v elh a raç a (d e ta lh e ), le v an ta v a p esos (ex em p lo esp ecífico ) q u e m e faz iam g e­
m e r a m im , ra n g e r to d o , só d e o c o n te m p la r n a fa ç a n h a ; jo g a n d o o sa b re
p a ra se a d e s tr a r (exem plo) tin h a ím p eto s d e R oldão (d e ta lh e p o r c o m p a ra ­
ção), os am ig o s ro lav a m p elas escad as, a n te o seu im e n so sa b re d e p a u ,
com o m o u ro s d e sb a ra ta d o s: — e em b rig as q u e fo ssem ju s ta s o se u m u rro
e ra triu n fa l (d e ta lh e ). C onservou m esm o a té à id a d e filosófica este m u rro fá­
cil: e a in d a recordo u m a no ite n a rua do O iro, em q u e u m h o m e m c a rra n c u ­
d o, b a rb u d o , alto e rústico co m o u m c a m p a n ário , o p iso u , b ru ta lm e n te , e p a s­
sou, em b r u ta l silêncio... O m u rro d e A ntero foi tão vivo e certo, q u e teve d e
a p a n h a r o im enso h o m e m d o lajead o em q u e ro lara...
(N otas contem p o râ n ea s. Col. N ossos C lássicos,
Agir, v. 9, p. 8 3 )
Às vezes, a enumeração de exemplos não serve de esclarecer, mas de
provar uma declaração, teoria ou opinião pessoal, como ocorre habitualm en­
te nos estudos filosóficos, na análise estilística e em todo trabalho de pesqui­
sa de um modo geral:
T odo d e a n títe se é o estilo d o p a d re A n tô n io V ieira. Eis a q u i três
ex e m p lo s, com as a n títe se s su b lin h a d a s:
a) “C om ra z ã o co m p a ro u o seu ev a n g elh o a d iv in a p ro v id ê n c ia d e C risto a
u m te so u ro esco n d id o n o cam p o . Uma coisa é a q u e to d o s v ê e m na s u ­
perfície; o u tr a , a q u e se o cu lta no in te rio r d a te rra , e, onde m enos se
im a g in a m as riq u ez as, ali estão depositadas. (...);
(Jo sé O iticica, M a n u a l de estilo , p. 111)
Q uando cada exemplo é muito extenso ou extensa é a série deles, e
se lhes quer dar maior realce, é costume abrir-se parágrafo para cada um,
como se faz no trecho citado, de que omitimos, por desnecessários à nos­
sa argum entação, os exemplos b) e c) além de parte de a), no qual, digase de passagem, o Autor deixou de assinalar a antítese entre superfície e
interior da terra.
2.5 Causacão i
t
Legitimamente,
atitudes praticados ou
cações. Da mesma fom
cias. Não cremos que
efeitos de ato praticad
te “quais as conseqüêt
vendo o resultado do <
(ou do que você fez)7
qiiências” ou de “resu
o motivo ou razão (e i
la forma: “Qual o mo
“qual a causa da sua
nos, não é comum. T;
pos é o calor” ou que
centro da Terra”. Dir-:
nômenos físicos.5 É ce
tido mais amplo e m<
tos que não apenas o:
físico-químicas; as cie
política e outras) dei
fala em “causas histór
Guerra do Paraguai?”
des m odernas?”
Mas, além diss
(ou motivo) com “efe
tra. Dizer, por exemp!
ros é a causa do sub*
na verdade, efeito. Tc
tâncias (simples ante
ocasionais, casuais ou
re o fato com a caus
D. João VI ao Brasil
ou da criação da Bibl
Há que se disti
diatas. A grande depi
ou subjacentes da Se;
peito de causa, ver 4.
Baseados nessa
nas quão sibilinas, m
5 Não estará aí um critém
das causais? A questão, pc
[
ufpe
B ib lio t e c a Ç pnT ,
O t h o n
M.
C a rç ia
♦ 237
2.5 Causacão
e motivação
*
>
Legitimamente, só os fatos ou fenômenos físicos têm causa; os atos ou
atitudes praticados ou assumidos pelo homem têm razões, motivos ou expli­
cações. Da mesma forma, os primeiros têm efeitos, e os segundos, conseqüên­
cias. Não cremos que seja linguagem adequada perguntar quais foram os
efeitos de ato praticado ou atitude assumida por alguém; dir-se-á certamen­
te “quais as conseqüências ou o(s) resultados(sy\ E comum ouvir-se: “Está
vendo o resultado do que você fez?” ou “Viu as conseqüências da sua atitude
(ou do que você fez)?” Quem diria “efeito" ou “efeitos” em lugar de “conse­
qüências” ou de “resultado(s)”? Similarmente, dever-se-á perguntar qual foi
o motivo ou razão (e não a causa) que levou alguém a agir desta ou daque­
la forma: “Qual o motivo (ou razão) da sua atitude?” Embora possa dizer
“qual a causa da sua atitude?”, “sente-se” que não se deve, que, pelo m e­
nos, não é comum. Tampouco se dirá que “o motivo da dilatação dos cor­
pos é o calor” ou que “razão da queda dos corpos é a atração exercida pelo
centro da Terra”. Dir-se-á, sem dúvida, “causa”, pois trata-se de fatos ou fe­
nômenos físicos.5 É certo, entretanto, que a palava “causa”, dado o seu sen­
tido mais amplo e mais claro, se emprega também para explicar outros fa­
tos que não apenas os da área das ciências exatas, das ciências naturais ou
físico-químicas; as ciências ditas sociais ou hum anas (história, sociologia,
política e outras) dela se servem com a mesma acepção. E assim que se
fala em “causas históricas” ou “causas políticas”: “Quais foram as causas da
Guerra do Paraguai?” “Quais são as causas do congestionamento das cida­
des m odernas?”
Mas, além disso, é preciso estar alerta para não confundir “causa”
(ou motivo) com “efeito” (ou conseqüência), tom ando uma coisa pela ou­
tra. Dizer, por exemplo, que o analfabetismo de cerca de 30% dos brasilei­
ros é a causa do subdesenvolvimento do Brasil é d ar como causa o que é,
na verdade, efeito. Tampouco se deve confundir causa com outras circuns­
tâncias (simples antecedentes — post hoc, ergo propter hoc —, condições
ocasionais, casuais ou propícias, mas não causais, o m om ento em que ocor­
re o fato com a causa desse fato). Seria absurdo dizer que a chegada de
D. João VI ao Brasil em 1808 foi a causa da fundação da Im prensa Régia
ou da criação da Biblioteca Nacional.
Há que se distinguir ainda as causas remotas ou subjacentes das ime­
diatas. A grande depressão de 1929-30 teria sido um a das causas remotas
ou subjacentes da Segunda Grande Guerra. (Para outras informações a res­
peito de causa, ver 4. Com., 2.2.5.)
Baseados nessas distinções, que podem parecer ao leitor tão bizanti­
nas quão sibilinas, mas na verdade não são, vamos mostrar a seguir como
3 Não estará aí um critério para distinguir as orações coordenadas explicativas das subordina­
das causais? À questão, posto que irrelevante, aflige muitos alunos e professores.
238
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
se desenvolve um parágrafo por apresentação de razões ou motivos e por
indicação de causas. São dois processos muito comuns de desenvolvimento
ou explanação de idéias, isto porque não apenas a curiosidade inata do es­
pírito hum ano mas também o seu estado de perm anente perplexidade em
face do m undo objetivo o levam a querer saber sem pre a causa ou o moti­
vo de tudo quanto o cerca, cerceia, alegra ou aflige. Não será exagero di­
zer que o hom em vive a maior parte dos seus dias querendo saber por que
as coisas acontecem. O modo e o tempo dos atos e dos fatos parecem
preocupá-lo m enos do que a causa ou motivo deles.
2.5.1 Razões e conseqüências
O desenvolvimento de parágrafo pela apresentação de razões é ex­
trem am ente comum, porque, não raro, as razões, os motivos, as justificati­
vas em que se assenta a explanação de determ inada idéia se disfarçam sob
várias formas, nem todas explicitamente introduzidas por partículas expli­
cativas ou causais, confundindo-se muitas vezes com detalhes ou exemplos.
No seguinte trecho, extraído de trabalho de aluno, as razões são in­
dicadas de m aneira explícita:
Tanto do ponto de vista individual quanto social, o trabalho é uma
necessidade, não só porque dignifica o homem e o provê do indispensável à
sua subsistência, mas também porque lhe evita o enfado e o desvia do vício e
do crime.
A declaração inicial, contida na primeira oração (que é o tópico fra­
sal) seria inócua ou gratuita, porque inegavelmente óbvia, como verdade re­
conhecida por todos, se o Autor não a fundamentasse, não a desenvolves­
se, apresentando-lhe as razões na série das orações explicativas (ou cau­
sais?) seguintes.
Carlos Drummond de Andrade apresenta no trecho abaixo um a sé­
rie de razões ou explicações para a sua declaração inicial, sem indicá-las
expressam ente como tais:
E sina de minha amiga penar pela sorte do próximo, se bem que seja
um penar jubiloso (tópico frasal). Explico-me. Todo sofrimento alheio a preo­
cupa, e acende nela o facho da ação, que a torna feliz. Não distingue entre
gente e bicho, quando tem de agir, mas, como há inúmeras sociedades (com
verbas) para o bem dos homens, e uma só, sem recurso, para o bem dos
animais, é nesta última que gosta de militar. Os probLemas aparecem-lhe em
carclume, e parece que a escolhem de preferência a outras criaturas de me­
nor sensibilidade e iniciativa (...)
(Fala, amendoeira, p. 178)
O t h o n
M.
G ar c ia
♦ 239
A declaração inicial fundamenta-se nas duas razões ou motivos que
se lhe seguem: é sina de minha amiga penar pela sorte do próximo por­
que todo sofrimento alheio a preocupa, porque não distingue gente de bi­
cho... As razões não estão suficientemente introduzidas por meio de partí­
culas próprias (porque, em virtude de, por causa de...), mas são facilmen­
te subentendidas como tais.
Mas o Autor não expressa apenas os motivos: indica tam bém as con­
seqüências; o período final “os problemas aparecem-lhe em cardume, e pa­
rece que a escolhem de preferência a outras criaturas...” enuncia certam en­
te duas conseqüências (não seria cabível dizer aqui “efeitos” pois trata-se de
atos, atitudes ou comportamento humano) do penar da amiga do Poeta
pela “sorte do próximo”. É como se dissesse: “preocupa-se tanto com a sor­
te do próximo, que os problemas lhe aparecera em cardume”. Normalmente,
entretanto, os parágrafos desenvolvidos por apresentação de razões já têm
enunciada(s) a(s) conseqüência(s) no tópico frasal.
Não é raro confundirem-se razões com pormenores descritivos, o que
facilmente se explica. Se faço uma declaração a respeito de alguém ou al­
gum a coisa e considero necessário justificá-la ou fundamentá-la para que
m ereça fé (ver em 4- Com., 1.2 — “Da validade das declarações”), apre­
sento a seguir alguns detalhes característicos que justifiquem a m inha opi­
nião ou impressão. Querendo provar que a cidade do Rio de Janeiro conti­
nua a ser a capital do povo brasileiro, em bora já não seja a capital oficial
do País, Augusto Frederico Schmidt apresenta, após a declaracão inicial em
que expressa a sua opinião, um a série de porm enores que funcionam como
razões convincentes:
E sta C idade já n ão é m ais a cap ital oficial d o País, m as c o n tin u a se n ­
d o a cap ital d o povo brasileiro, q u e r q u e ira m , q u e r não. E a cap ital política,
em b o ra as C âm aras (a lta e baixa) estejam e m Brasília, d e o n d e nos vêm , diluí­
d o s e d is ta n te s , a m o rte c id o s e m u d a d o s, o s ecos d a s ag itaç õ es p a r la m e n ta ­
res. Aqui fu n cio n o u o Brasil; aq u i e n c o n tro u a sua síntese, o seu ce n tro d e
g rav id a d e, esse com plexo q u e é o nosso P aís u n ificad o e ín teg ro . Aqui, ain d a
hoje, está a capital brasileira, sensível, viva, m artiriza d a, criv ad a d e setas
com o o se u p ró p rio p ad ro eiro . N as m as, nas casas, nos locais d e e n c o n tro
co n c en tra -se a m ais politizad a d a s p o p u la çõ e s brasileiras. Aqui se sen te, em
p ro fu n d id a d e , o d e s a b a r d a s te rras q u e o s nossos m a io res co n stitu íra m em
N ação. Aqui se ouve m ais n itid am e n te o ru íd o d a s raízes d o Brasil irem sen d o
pouco a pouco arran cad as. E um singular, u m co n stra n g ed o r esp etácu lo . Todas
as m u d a n ç a s são tristes q u an d o significam n ã o ap e n as novas fo lh ag en s ou flo­
rações, m as a g ra n d e m u d a n ç a d o essencial, d a alm a, a tra n sm u ta ç ã o d o q u e
d ev e ria se r p e rm a n e n te em nós.
(A. E S ch m id t, Prelúdio à Revolução, p. 131)
Com exceção dos dois últimos períodos, os demais, a partir do se­
gundo, são, de fato, razões com que o Autor fundam enta a declaração de
que o Rio de Janeiro continua sendo a capital do povo brasileiro.
240
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
A apresentação de razões é processo típico da argumentação propria­
m ente dita, isto é, daquela variedade de composição em prosa ou de expo­
sição oral, cuja finalidade é não apenas definir, explicar ou interpretar (dis­
sertação) mas principalmente convencer ou persuadir. Ora, só convencemos
ou persuadimos quando apresentamos razões. Se os fatos provam, as razões
convencem. Mas os fatos quase sempre constituem as verdadeiras razões; é
com eles que argumentamos mais freqüentemente. Um folheto de propa­
ganda que se limite a descrever o funcionamento de uma enceradeira faz
apenas explanação ou descrição. Explica mas não convence. Só nos conven­
ce a partir do momento em que começa a m ostrar as vantagens do objeto:
o preço, as facilidades de pagamento, a facilidade do manejo, a resistência
e a qualidade do material, o seu acabamento, etc. Isso são fatos e são ra­
zões, ou são razões porque são fatos. Grande parte do que escrevemos ou
dizemos é essencialmente argumentação, pois, mesmo explicando, explanan­
do ou interpretando, estamos sempre procurando convencer.
2.5.2 Causa e efeito
Parece ter ficado claro no tópico 2.5 que o desenvolvimento do pará­
grafo por apresentação de razões e conseqüências ocorre quando se trata de
justificar uma declaração ou opinião pessoal a respeito de atos ou atitudes do
homem, e que se deve falar em relação de causa e efeito, quando se procu­
ra explicar fatos ou fenômenos, quer das ciências naturais, quer das sociais.6
O seguinte parágrafo mostra-nos o que é desenvolvimento por indi­
cação de causa e efeito, partindo deste para aquela:
Pressões nos líquidos — A p ressã o ex ercid a so b re u m co rp o só lid o
tra n sm ite -se d e s ig u a lm e n te n a s d iv e rsa s d ireç õ es p o r ca u sa d a fo rte co esão
q u e d á ao só lid o s u a rigidez. N u m líquido, a p re ssã o tra n sm ite -se em to d a s
as d ire ç õ e s, d ev id o à flu id e z. Um líquido p recisa d e ap o io la te ra l d o vaso
q u e o co n tém , p o rq u e a pressão d o seu peso se e x e rce em to d as as direções.
Se u m co rp o for m e rg u lh a d o n u m líquido, e x p e rim e n ta rá o efeito d a s p res­
sõ e s re c e b id a s o u ex e rcid a s p elo líquido.
(Irm ão s M a ristas, Física, v. I, p. 53 6 )
Note-se que as causas estão claramente indicadas por partículas pró­
prias (por causa de, devido a, porque), forma comum, posto que não exclusi­
va desse processo de explicação ou de demonstração. A exposição nesse tre­
cho faz-se a partir do efeito para a causa; no primeiro período, por exem­
plo, a transmissão desigual da pressão exercida sobre um corpo sólido é o
efeito da forte coesão que dá ao sólido a sua rigidez. O período final, por
sua vez, é um a inferência ou conclusão, vale dizer, uma generalização, de­
corrente dos fatos anteriormente indicados.
Leia-se a respeito de causa e efeito, SUBERVIU.E, Jean, op. cit., p. 67-8, e COURAULT, M.
Manuel pratique de Vart d’écrire, v. II, p. 168.
No exemplo
para o efeito:
Os fo g ii
ralizaçãOj tópic
o u u m busca-f
n o c a rtu c h o qt
tã o d e ta l póhi
b o. A fo rça da
u m a força d e
g ases. D estarte
e m p u rra m o ai
Note-se: a cc
gases, e estes deten
voca (causa) a elim
de reação, que, por
são). A subida do f<
No parágrafo
seguida as causas:
Cinco c
n a l [a aboliçã
v am a o p in iãc
ler p o r m eio <
d o p ú lp ito , do
tru ir m aterialrr
vos ao p o d e r <
rios [...]; 4®, í
O parágrafo
ca, partindo do efe
porque a ação mot
escravatura foram:
A indicação
cias é em essência
verso implica racio
2.6 Divisão
Freqüenteme
co frasal, divide-a
um a de per siy par;
ridos, principalmei
ção (ver tópico seg
fos diferentes, se a
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
241
No exemplo a seguir, o desenvolvimento faz-se a partir da causa
para o efeito:
Os fo g u e tes — Tais en g e n h o s são m o v id o s p ela fo rç a d a reação (gene­
ralização, tópico fra s a l). A ssim , q u a n d o u m m o le q u e so lta u m fo g u ete -m irim
o u um b u sc a-p é em festa s ju n in a s , a p ó lv o ra q u ím ica e n c e rra d a n o tu b o ou
n o c a rtu c h o q u e im a ra p id issim a m e n te , p ra tic a m e n te n u m átim o . D a co m b u s­
tã o d e ta l p ó lv o ra re su lta m gases q u e d e te rm in a m p re ssã o a lta d e n tro d o tu ­
b o , A força d a ação a tira c o n tin u a m e n te os g a se s p a ra fo ra d o tu b o . E n tão ,
u m a força d e re a fã o , ig u a l e o p o sta
ação , é ex ercid a so b re o tu b o p elo s
g ases. D estarte o foguete-m irim sobe. E co n ceito eirado p e n sa r q u e os gases
e m p u rra m o ar, p ro d u zin d o a força. No v ácuo, os fo g u etes fu n cio n a m m elhor.
(Id. ibid., p. 4 4 1 )
Note-se: a combustão da pólvora provoca (causa) o aparecimento de
gases, e estes determinam (causam) a pressão dentro do tubo; a pressão pro­
voca (causa) a eliminação dos gases (ação); esta provoca (causa) uma força
de reação, que, por sua vez, faz com que o foguete suba (causa a sua ascen­
são). A subida do foguete é efeito dessas causas.
No parágrafo abaixo, enuncia-se primeiro o efeito, enumerando-se em
seguida as causas:
C inco ações o u co n c u rso s d ife re n te s c o o p e ra ra m p a ra o re su lta d o fi­
n a l [a ab o lição d a e s c ra v a tu ra ]: 1Q, a ação m o to ra d o s esp írito s q u e c ria ­
v a m a o p in iã o pela id éia, pela p alav ra, p elo s e n tim e n to , e q u e a faziam v a­
le r p o r m eio d o P arlam en to , d o s m eetings, d a im p re n sa, d o e n sin o su p erio r,
d o p ú lp ito , d o s trib u n a is; 2 9, a aç ão co ercitiv a d o s q u e se p ro p u n h a m a d e s­
tru ir m aterialm en te o form idável ap arelh o d a escravidão, a rre b a ta n d o os escra­
vos ao p o d e r dos se n h o re s; 3-, a ação c o m p le m e n ta r d o s p ró p rio s p ro p rie tá ­
rio s [...]; 4-, a aç ão p o lítica do s e sta d ista s [...]; 5Q, a ação d in ástica.
(J. N ab u c o , M in h a fo rm a ç ã o , p. 2 2 7 )
O parágrafo poderia ter assumido feição mais banal ou mais didáti­
ca, partindo do efeito — “a escravidão foi abolida pela ação motora... ou
porque a ação motora... etc.” — onde a causa: “as causas da abolição da
escravatura foram: l 9..., 29..., etc.”
A indicação das causas ou razões antes dos efeitos ou conseqüên­
cias é em essência um proceso de raciocínio dedutivo, ao passo que o in­
verso implica raciocínio indutivo (ver 4. Com., 1.5.1 e 1.5.2).
2.6 Divisão e explanação de idéias "em cadeia"
Freqüentem ente, o Autor, depois de enunciar a idéia-núcleo no tópi­
co frasal, divide-a cm duas ou mais partes, discutindo em seguida cada
uma de per si, para o que poderá servir-se de alguns dos processos já refe­
ridos, principalm ente da enumeração de detalhes e exemplos e da defini­
ção (ver tópico seguinte), pondo tudo no mesmo parágrafo ou em parágra­
fos diferentes, se a complexidade e a extensão do assunto o justificarem.
242 ♦ c O M U N 1 C A Ç Â O
EM
PROSA
MODERNA
Para nos dar idéia das manifestações concretas da vocação literária,
Alceu Amoroso Lima adota o critério da divisão da idéia-núcleo em diferen­
tes partes, definindo-as sucessiva e sucintamente no mesmo parágrafo:
A v o ca çã o lite rá ria é se m p re co n c reta . M a n ife sta -se co m o te n d ê n c ia ,
n ã o só à a titu d e geral, m as a in d a a e ste ou à q u e le g ê n e ro d e a titu d e . E n tre
as in ú m e ra s p o sições possíveis (e n e s te te rre n o a s classificações c h e g a m às
m a io re s m in ú c ia s), h á cinco a m a rc a r b em n itid a m e n te in c lin a çõ e s d ife re n ­
tes d o g ên io c ria d o r — o lirism o, a epopéia, o d ra m a , a crítica e a sá tira . O
lirism o é a ex p re ssão d a p ró p ria alm a. A ep o p é ia , a re p re se n ta ç ã o n a rra tiv a
d a v id a . O d ra m a , a re p re se n ta ç ã o ativ a d ela. A critica , o ju íz o so b re a c ria ­
ção feita. E a sá tira , a ca ric a tu ra d o s c a ra c te re s (...)
(A. A. L im a, Estética literária, p. 9 9 )
No resto do parágrafo (omisso na transcrição), o Autor retom a a mes­
ma idéia-núcleo, dividindo-a, segundo novo critério, em lirismo, epopéia e
crítica, e conclui com algumas considerações sobre os gêneros literários.
No exemplo seguinte, o mesmo Autor destina um parágrafo à divisão
e outros, sucessivos, mas não transcritos aqui, a cada um a de suas partes:
D e v ária s espécies são as co ndições su sc ep tív eis d e in flu ir so b re a li­
te r a tu r a . P od em o s m e n c io n a r q u a tro o rd e n s p rin c ip a is d e co n d içõ es d esse
g ê n e ro — geográficas, biológicas, psicológicas e sociológicas.
Esse parágrafo encerra apenas a idéia-núcleo, cuja complexidade ju s­
tifica venha a ser desenvolvida em outros, um ou mais para cada um a das
partes em que o Autor a dividiu. Assim é que só as condições geográficas —
como diz o Autor — vão ser desenvolvidas em três longos parágrafos, ocor­
rendo o mesmo com as demais.
Esse processo de expor a idéia-núcleo num parágrafo isolado e fazer o
desenvolvimento em outros, sucessivos, é muito comum nas explanações alon­
gadas, pois juntar tudo num só não apenas prejudica a clareza mas também
impede se dê o necessário relevo a outras idéias decorrentes da principal.
Portanto, se os fatos, exemplos, detalhes, razões que constituem o de­
senvolvimento merecem destaque, dada a sua relevância, é sempre recomen­
dável destinar-lhes parágrafos exclusivos. Isso se faz, tomando cada um des­
ses elementos do desenvolvimento como tópico frasal de outros parágrafos.
E o que nos mostra A. A. Lima, ao tratar dos fatores sociológicos, por exem­
plo, incluídos no parágrafo anteriormente transcrito como uma das “condi­
ções susceptíveis de influir sobre a literatura”:
cied a d e". Sei
se r n a tu ra lm i
d a m e n te so ri
reto . (O A urt
tism o literárii
Mas esse p.
diferentes espécie:
Esses
p o s p rin c ip a l
Desencadeia
dos pelo que contt
cada um dos tipos
terizá-los:
Os fat
tir esta fora e
dicadas no po
b ém o futuro
vive no tempi
s e n ta r em sei
A u to r justifica
Esse é, sem
comum — de se
ciocínio funciona 4
tras como que “er
do cada vez mais
que de um a idéia
Em suma: <
mar os fatos, detá
parágrafo e transi
ma ordem, em idé
2.7 Definit
Os fato res sociológicos, enfim , influ em d e m o d o in eq u ív o co so b re o
m o v im e n to e as in stitu iç õ es lite rá ria s (tópico fr a s a l co nstituído pelo que eraf
no parágrafo da idéia-núcleo de toda a explanação, apenas um dos elem entos
do desenvolvim ento). Foi B onald, creio, o p rim e iro so ció lo g o a c h a m a r fo r­
m a lm e n te a a te n ç ã o so b re esse asp ec to d a lite r a tu r a co m o “e x p re ssão d a so ­
O desenvoh
volver tam bém oi
tação de exemplo
qüente na exposiç
O t h o n
m
.
G arc ia
♦
243
c ie d a d e ”. S en d o a lite ra tu ra a tiv id a d e tip ic a m e n te h u m a n a e o h o m e m u m
s e r n a tu ra lm e n te social, n ã o p o d e a lite r a tu r a d e ix a r d e te r a sp e c to ac e n tu a d a m e n te social. M an ifesta-se esse so c ietism o lite rá rio d o m o d o d ire to e in d i­
reto . (O A u to r prossegue m ostra n d o esses dois m odos de m anifestar-se o socie­
tism o literário.)
(7d. ibid., p. 167)
Mas esse parágrafo sugere ainda outro, em que o Autor m ostra as
diferentes espécies de fatores sociológicos:
Esses fato res sociológicos, em s u a d u p la m o d a lid a d e, são d e q u a tro ti­
pos principais: históricos, culturais, políticos e econômicos.
(Id. ibid., p. 1 6 8 )
Desencadeiam-se assim, pelo mesmo processo, novos parágrafos sugeri­
dos pelo que contém a idéia-núcleo: o Autor vai destinar um ou mais deles a
cada um dos tipos de fatores sociológicos, começando por defini-los ou carac­
terizá-los:
Os fatores históricos influem na Literatura pelo sim ples fato d e n ão exis­
tir esta fora do tem po (tópico f i ’asal cuja idéia-núcleo é um a das especificações in­
dicadas no parágrafo anterior). In co rp o ra-se o p assad o no p resen te, com o ta m ­
b ém o futuro, sob a form a d e rem em o raçõ es, tradições e aspirações. O artista
vive no tem po, e o problem a d a h e ra n ç a é sem p re u m dos prim eiros a se a p re ­
se n ta r em seu esforço criador. (Seguem-se outros detalhes e exemplos com que o
A u to r justifica a sua declaração in icia i)
(ld. ibid., p. 168)
Esse é, sem dúvida, um processo m uito eficaz — e, por isso, muito
com um — de se desenvolver determ inada idéia rica de implicações. O ra­
ciocínio funciona “em cadeia”, as idéias se vão desenrolando umas das ou­
tras como que “em espiral”, e a explanação se vai alargando e aprofundan­
do cada vez mais. O m étodo fertiliza a própria imaginação, fazendo com
que de uma idéia surjam outras, numa espécie de explosão em cadeia.
Em suma: a explanação de idéias por esse processo consiste em to­
m ar os fatos, detalhes, exemplos, razões contidos no desenvolvimento de um
parágrafo e transformá-los, todos ou apenas alguns, de preferência na mes­
m a ordem, em idéias-núcleos de outros, e assim sucessivamente.
2.7 Definição
0 desenvolvimento por definição (ver 5. Ord., 1.3) — que pode en ­
volver tam bém outros processos, como a descrição de detalhes, a apresen­
tação de exemplos e, sobretudo, confrontos ou paralelos — é muito fre­
qüente na exposição didática:
I
244
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Os d o is tro p o s o u figuras d e d e sig n a ç ã o m a is co m u n s — “a s d u a s fi­
g u ra s p o la re s d o e stilo ”, co m o as c h a m a R. Ja k o b s o n — sã o a m e tá fo ra e a
m e to n ím ia . A p rim e ira co n siste em d iz e r q u e u m a coisa (A) é o u tra (B), em
v ir tu d e d e q u a lq u e r se m e lh a n ç a p e rc e b id a p elo e s p írito e n tre o tra ç o c a ra c ­
te rístic o d e A e o a trib u to p re d o m in a n te , o a trib u to p o r ex celên cia, d e B. A
m e to n ím ia co n siste em d e s ig n a r u m a coisa (A) p e lo n o m e d e o u tra (B), em
v ir tu d e d e u m a rela çã o n ã o d e se m e lh a n ç a ou sim ila rid a d e m as d e c o n tig ü i­
d a d e , d e in te rd e p e n d ê n c ia re a l e n tre am b as.
Se a clareza o recomenda, não é raro, no estilo didático pelo menos,
alongar-se a definição em verdadeira descrição ou justaporem-se-lhe alguns
exemplos.
Com freqüência, a definição exerce o papel de justificativa, constitui
um a razão de declaração expressa no tópico frasal. No seguinte exemplo, a
definição conotativa de “martírio” e de “suicídio” poderia vir expressamen­
te introduzida por uma conjunção explicativa (pois, porque):
Na v e rd a d e , o m á rtir n ã o d e s p re z a a v id a. Ao c o n trá rio , v a lo riz a -a d e
ta l m o d o q u e a to rn a d ig n a d e se r o ferec id a a D eu s. M artírio é o b lação , o fe ­
re c im e n to , d á d iv a ; suicídio é su b tra ç ã o e recusa. O m á rtir é te s te m u n h a d e
C risto ; o su ic id a se rá te s te m u n h a de Ju d a s.
(G. C orção, D ez a n o s, p. 2 4 8 )
Aí, o tópico frasal, constituído pelo primeiro período — de que o se­
gundo é apenas um reforço —, vem desenvolvido peias definições (metafó­
ricas) de “m artírio”, “m ártir”, “suicídio” e “suicida” e sim ultaneam ente pelo
contraste ou confronto entre esses quatro termos, dois a dois.
São esses os processos mais comuns de desenvolvimento do parágra­
fo. Haverá certamente outros, mas difíceis de distinguir e classificar, pois o
raciocínio, ainda que sujeito a dois métodos básicos — a indução e a de­
dução — , não pode ser bitolado em moldes rígidos e esquemáticos. É cer­
to, entretanto, que os outros processos ou são variantes desses ou resul­
tam da conjugação de vários deles.
Mas o que nos parece incontestável — e a longa prática do m agisté­
rio disso nos convenceu — é o valor didático do estudo do parágrafo como
uma unidade de composição. Na realidade da sala de aula, onde se encon­
tram por vezes mais de quarenta alunos, é difícil corrigir e com entar ao
mesmo tempo, com relativo proveito, mais de duas ou três composições, a
menos que o professor se limite a assinalar apenas errinhos gramaticais de
acentuação, grafia, regência e concordância. A estrutura da frase e a orde­
nação das idéias só podem ser ensinadas, transcrevendo-se trechos no quadro-negro. Mas que trechos? Fragmentos apenas? Só os trechos que apre­
sentem certo caráter de individualidade podem oferecer margem a com entá­
rios razoáveis no qi
eficaz. Ora, o parági
dade de composição
tários adequados. To
ra, é possível ensinai
parágrafo de narraçã
forma diversa; ver a
tuídas apenas por ui
nar com relativa fac
ção através de exerc
Um dos exen
de que nos servimo:
sal de determinado
do determinado pro
ve-se o desenvolvin:
confronto. Variante
nado modelo de pai
o seu desenvolvime
desenvolvido da m<
quadro-negro o rest
zeram e o que est;
veis. Se a sala disp
lhor é que todo o e
Esse é o m é
se baseia num prin
zer fazendo o que i
Ex. — encontra-se
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
245
rios razoáveis no que respeita à organização das idéias e à sua expressão
eficaz. Ora, o parágrafo, dada a sua relativa extensão e a sua feição de uni­
dade de composição, permite-nos transcrição no quadro-negro para comen­
tários adequados. Tomando-o como um a espécie de composição em m iniatu­
ra, é possível ensinar aos alunos como fazer uma descrição ou dissertação (o
parágrafo de narração tem outras características que devem ser exploradas de
forma diversa; ver adiante 3.2). Pode haver descrições ou dissertações consti­
tuídas apenas por um parágrafo. Mas, ainda que assim o fosse, pode-se ensi­
nar com relativa facilidade a ordenar os vários parágrafos de uma composi­
ção através de exercícios de planejamento (ver 7. Pl.).
Um dos exercícios de maior rendim ento didático que conhecemos, e
de que nos servimos habitualmente, consiste em tomar apenas o tópico fra­
sal de determinado parágrafo e pedir aos aiunos que o desenvolvam segun­
do determinado processo. Em seguida — tudo no quadro-negro — transcre­
ve-se o desenvolvimento do parágrafo original para que os alunos façam o
confronto. Variante desse processo é o que consiste em apresentar determi­
nado modelo de parágrafo, principalmente de descrição, mostrar como se faz
o seu desenvolvimento e, em seguida, dar outro tópico frasal para que seja
desenvolvido da mesma forma; feito isso, o professor transcreve então no
quadro-negro o restante do parágrafo. Do confronto entre o que os alunos fi­
zeram e o que está transcrito no quadro, resultam ensinamentos memorá­
veis. Se a sala dispõe de quadro-negro espaçoso, ou de mais de um, o me­
lhor é que todo o exercício seja aí feito.
Esse é o método da amostragem mesclado com o da imitação, que
se baseia num princípio didático de valor incontestável: só se aprende a fa ­
zer fazendo o que se viu como se faz. (Na parte prática deste livro — 10.
Ex. — encontra-se um a série de exercícios desse tipo.)
N
3.0 Parágrafo de descrição e parágrafo de narração
3.1 Descrição literária
Descrição é a apresentação verbal de um objeto, ser, coisa, paisagem
(e até de um sentimento: posso descrever o que eu sinto; cf. 5. Ord., 1.3 —
“Definição”), através da indicação dos seus aspectos mais característicos, dos
seus traços predominantes, dispostos de tal forma e em tal ordem (ver a se­
guir 3.1.2), que do conjunto deles resulte um a impressão singularizante da
coisa descrita, isto é, do quadro, que é a matéria da descrição.
A exatidão e a minúcia não constituem sua primordial qualidade:
podem até representar defeito. A finalidade da descrição (estamos nos re­
ferindo à descrição literária) é transm itir a impressão que a coisa vista des­
perta em nossa m ente através dos sentidos. Ela é mais do que fotografia,
porque é interpretação também, salvo se se trata de descrição técnica ou
científica (ver 8. Red. Téc.).
Descrição m iudam ente fiel é, como em certos quadros, um a espécie
de natureza-m orta. Portanto, o que é preciso é captar a alma das coisas,
ressaltando aqueles aspectos que mais impressionam os sentidos, destacan­
do o seu “caráter”, as suas peculiaridades. É preciso saber selecionar os de­
talhes, saber reagrupá-los, analisá-los para se conseguir uma imagem e não
um a cópia do objeto. É preciso m ostrar as relações entre as suas partes
para m elhor compreendê-lo no seu conjunto e m elhor senti-lo como im­
pressão viva. Para conseguir isso é preciso saber observar, é preciso ter
imaginação e dispor de recursos de expressão.
Mas recurso de expressão não significa obrigatoriam ente vocabulá­
rio exuberante ou requintado. Pode-se dizer quase tudo com um acervo de
palavras até mesmo corriqueiras (veja-se o exemplo de M. de Assis), des­
de que se disponha de alguma imaginação para associações de idéias e sua
expressão em linguagem figurada, sobretudo m etáforas e metonímias, tro­
pos que revivificam e multiplicam o vocabulário. Veja-se o que faz Eça de
Queirós, servindo-se de um vocabulário rotineiro, mas com muito espírito
de observação seletiva:
O c a m in fr
m e d a s lo u re ja v a i
d o s te lh a d o s bai:
n o r a d ia n te c é u
to lh o . (...)
Em b rev e
pois c a v a d o en tre
ao fu n d o o sol fa
rea, com p o rta t
te lh a d o e u m qi
N u m a e s q u in a pe
se b e, o n d e a d ia n
D efro n te, no vasi
trav e s; p assav a u
m ilde. P ara além ,
Nesses dois pai
rem para que a desci
tor. Os pormenores si
não se confunde com
mos dizer comuns; o
deu Eça de Queirós,
dom inante e peculiar.
3.11 Ponto de
O ponto de visl
ria quer técnica. Não
tam bém na sua atitu
ser descrito.
3.1.2 Ponto de
O ponto de vis
jeto, a qual pode det
nificativos. Ao contrá
progressivamente, det
combinar suas im pn
Não é, por exemplo,
num só período. Dev
co, variando-se as pa
retrato de um a pera
ria, seguindo-se depc
U F P E Biblioteca Centra
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
247
O c a m in h o p a r a a lé m d a p o n te a lte a v a e n tre c a m p o s ce ifad o s. As
m e d a s lo u re ja v a m , p e s a d a s e c h e ia s, p o r a q u e le a n o d e f a rtu ra . Ao lo n g e
d o s te lh a d o s b a ix o s d u m lu g a re jo , v a g a ro s o s fu m o s su b ia m , lo g o d e sfe ito s
n o r a d ia n te c é u (...) U m a re v o a d a d e p e rd iz e s e rg u e u v ô o d e e n tr e o re s­
to lh o . (...)
Em breve o ca m in h o to rc e u , c o s te a n d o u m s o u to d e so b reiro s, d e ­
pois c a v ad o e n tre silv ad o s com la rg o s p e d re g u lh o s a flo ra n d o na p o e ira ; — e
a o fu n d o o sol faiscava so b re a cal fresca d e u m a p a re d e . E ra u m a c a sa té r ­
rea , com p o rta b aix a e n tre d u a s ja n e la s en v id ra ç a d a s, re m e n d o s novos no
te lh a d o e um q u in te iro q u e u m a e s c u ra e im en sa fig u eira asso m b rea v a.
N u m a e s q u in a p eg a v a um m u ro b aix o d e p e d ra so lta, c o n tin u a n d o p o r u m a
se b e, o n d e a d ia n te u m a v elh a can cela a b ria p a ra a so m b ra d u m a ra m a d a .
D efro n te, no v asto te rre iro q u e se a la rg a v a , ja z ia m c a n ta ria s, u m a p ilh a cle
trav es; p assav a u m a e s tra d a , lisa e c u id a d a , q u e p a re c e u a G o n çalo a d e Ram ild e. P ara além , a té a u m d is ta n te p in h e ira l, d escia m ch ãs e lam eiro s.
(A ilustre Casa de R a m ires, p. 3 5 6 -7 )
Nesses dois parágrafos não há um só traço supérfluo; todos concor­
rem para que a descrição se desdobre em imagens vivas aos olhos do lei­
tor. Os pormenores singularizam essa paisagem ■rural de tal forma que ela
não se confunde com nenhum a outra. No entanto, são traços que podería­
mos dizer comuns; o que a torna inconfundível é o tratam ento que lhes
deu Eça de Queirós, inconfundível porque deles ressalta um a impressão
dom inante e peculiar.
5.1.1 Ponto de vista
O ponto de vista é de suma im portância num a descrição, quer literá­
ria quer técnica. Não consiste apenas na posição física do observador, mas
tam bém na sua atitude, na sua predisposição afetiva em face do objeto a
ser descrito.
5.1.2 Ponto de vista físico: ordem dos detalhes
O ponto de vista físico é a perspectiva que o observador tem do ob­
jeto, a qual pode determ inar a ordem na enum eração dos pormenores sig­
nificativos. Ao contrário da pintura, a descrição vai apresentando o objeto
progressivamente, detalhe por detalhe, em ordem tal, que o leitor possa
com binar suas impressões isoladas para form ar um a imagem unificada.
Não é, por exemplo, boa norma apresentar todos os detalhes acumulados
num só período. Deve-se, ao contrário, oferecê-los ao leitor pouco a pou­
co, variando-se as partes focalizadas e associando-as ou interligando-as. No
retrato de um a personagem, pode-se com eçar por uma apreciação sum á­
ria, seguindo-se depois os traços fisionômicos, mas não como se se tratas­
2 4 8
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
se de um a aula de anatomia: o tom da voz, o gesto, a expressão do olhar,
a cor dos olhos, o feitio dos lábios, contrastes evidentes, expressões que
possam traduzir o estado d’alma, etc.
A ordem dos detalhes é, pois, muito im portante (ver ainda Par.,
4.4.1). Não se faz a descrição de um a casa de m aneira desordenada; po­
nha-se o autor na posição de quem dela se aproxima pela prim eira vez;
comece de fora para dentro, à medida que vai cam inhando em sua dire­
ção e percebendo pouco a pouco os seus traços mais característicos com
um simples correr d’olhos: primeiro, a visão de conjunto, depois, a facha­
da, a cor das paredes, as janelas e portas, anotando alguma singularidade
expressiva, algo que dê ao leitor uma idéia do seu estilo, da época da
construção. Mas não se esqueça de que percebemos ou observamos com
todos os sentidos, e não apenas com os olhos. Haverá sons, ruídos, chei­
ros, sensações de calor, vultos que passam, mil acidentes, enfim, que evita­
rão se torne a descrição um a fotografia pálida daquela riqueza de impres­
sões que os sentidos atentos podem colher. Continue o observador: entre
na casa, exam ine a primeira peça, a posição dos móveis, a claridade ou
obscuridade do ambiente, destaque o que chame de pronto a atenção (um
móvel antigo, um a goteira, um vão de parede, uma mossa no reboco, um
cão sonolento...). Continue assim gradativam ente. Seria absurdo começar
pela fachada, passar à cozinha, voltar à sala de visitas, sair para o quin­
tal, regressar a um dos quartos, olhar depois para o telhado, ou notar que
as paredes de fora estão descaiadas. Quase sempre a direção em que se
caminha, ou se poderia normalmente cam inhar rum o ao objeto, serve de
roteiro, impõe um a ordem natural para a indicação dos seus pormenores.
(Para a descrição de objetos e não de paisagem, ver 8. Red. Téc.)
3.1.3 Ponto de vista mental: descrição subjetiva e objetiva ou
expressionista e impressionista
O ponto de vista m ental ou psicológico tem igualm ente grande im­
portância para a eficácia de um a descrição. É o elem ento subjetivo, aque­
le que determ ina a impressão pessoal, a interpretação do objeto. A predis­
posição psicológica do observador — sua simpatia ou antipatia antecipa­
da, por exemplo — pode dar como resultado imagens muito diversas do
mesmo objeto.
Desse ponto de vista mental, decorrem dois tipos de descrição: a
subjetiva e a objetiva. Na primeira, reflete-se predom inantem ente o estado
de espírito do observador, suas idiossincrasias, suas preferências, que fa­
zem com que veja apenas o que quer ou pensa ver e não o que está para
ser visto. O retrato que faça de um a paisagem não traduzirá a realidade do
m undo objetivo, fenomênico, mas o seu próprio estado psíquico, onde se
gravaram as impressões esparsas e tum ultuadas captadas pelos sentidos,
quase alheios ao crivo da razão ou da lógica. Ele assim não descreve o que
vê mas o que pensa v<
tivas ou impressionist
precisa, em penum bn
do século passado, m,
A descrição rea
lhes não se diluem, n
tidos em forma, cor, ]
crição técnica ou cie
Azevedo, o próprio <
Queirós em grande p
Os autores de novel;
Quem aprecia o gêr
Graham Greene, para
los de descrição de a
sar de não estarem ir
3.1.4 Descricãi
9
Na prosa de fi
as mais complexas —
go de toda a narrath
revelados em breves
aparência física, dos
idéias. Mas, com freq'
discurso narrativo de
fo, ou em parte dele.
Os dois exempl
diferentes quanto ao
para não falar do mc
senrola a narrativa di
m eida e Raul Pomp<
exemplos oferecidos s
O autor de Me\
costumes e tipos pop
servir de modelo, se t
tos moldes de constn
As chama*
p o u c a s sa ias p re
p e rn a , to d a s elaí
n a s tra z ia m um a
d a s d e re n d a : ac
os m ais p o b res t
tu r b a n te a q u e
b ra n c o m u ito tes
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
249
vê m as o que pensa ver. O resultado dessas descrições m arcadam ente subje­
tivas ou impressionistas é, com freqüência, uma imagem vaga, diluída, im­
precisa, em penum bra, nebulosa como os quadros impressionistas dos fins
do século passado, mas rica de conotações.
A descrição realista ou objetiva é exata, dimensional. Nela os deta­
lhes não se diluem, não se esmaecem em penum bra, antes se destacam ní­
tidos em forma, cor, peso, tam anho, cheiro, etc. E o que caracteriza a des­
crição técnica ou científica. Os realistas (Zola, Flaubert, M aupassant, A.
Azevedo, o próprio Coelho Neto, o próprio Euclides da Cunha, Eça de
Queirós em grande parte) deixaram-nos modelos de descrição desse tipo.
Os autores de novelas policiais tam bém se exercitam nessas descrições.
Quem aprecia o gênero, como nós, encontrará em George Simenon e
G raham Greene, para não falar no mestre de todos, Conan Doyle, m ode­
los de descrição de ambientes e paisagens, dignos de notar e imitar, ape­
sar de não estarem incluídos nas antologias nacionais.
3.1.4 Descrição de personagens
Na prosa de ficção, a caracterização das personagens — sobretudo
as mais complexas — em geral se vai delineando gradativam ente, ao lon­
go de toda a narrativa, pela acumulação dos traços físicos e psicológicos,
revelados em breves e sumárias ou longas e detalhadas descrições da sua
aparência física, dos seus gestos, atitudes, com portamento, sentimentos e
idéias. Mas, com freqüência, muitas dessas descrições — principalm ente no
discurso narrativo de feitio tradicional — se concentram num só parágra­
fo, ou em parte dele.
Os dois exemplos que oferecemos a seguir pertencem a autores bem
diferentes quanto ao estilo, quanto à cultura, quanto ao tem peram ento,
para não falar do mom ento histórico e do ambiente social em que se de­
senrola a narrativa das suas duas obras principais: M anuel Antônio de Al­
m eida e Raul Pompéia. Mas justam ente por serem diferentes é que os
exemplos oferecidos se tornam instrutivos.
O autor de Memórias de um sargento de milícias é fácil retratista de
costumes e tipos populares; por isso, muitos dos seus parágrafos poderão
servir de modelo, se desprezarmos ocasionais incorreções gramaticais e cer­
tos moldes de construção desatualizados:
As c h a m a d a s b a ia n a s n ão u sa v a m d e v estid o s; tra z ia m s o m e n te u m a s
p o u c a s sa ias p re sa s à c in tu ra , e q u e c h e g a v a m p o u co ab a ix o d o m e io d a
p e rn a , to d a s elas o rn a d a s d e m a g n ífica s re n d a s; d a c in tu ra p a ra cim a a p e ­
n as tra z ia m u m a Finíssima cam isa, cuja g o la e m a n g a era m ta m b é m o rn a ­
d a s d e re n d a : a o pescoço p u n h a m u m c o rd ã o d e o u ro , u m c o lar d e co rais,
os m ais p o b re s era m d e m iç an g a s; o rn a v a m a ca b eç a co m u m a esp éc ie d e
tu r b a n te a q u e d a v a m o n o m e d e tru n fa s, fo rm a d o p o r u m g ra n d e laço
b ra n c o m u ito te so e e n g o m a d o ; ca lç av a m u m a s ch in ela s d e sa lto a lto e tã o
250 ♦
C OMUNICAÇÃO
EM
PROSA
MODERNA
p e q u e n a s q u e a p e n a s c o n tin h a m os d e d o s d o s pés, fican d o d e fo ra to d o o
c a lc a n h a r; e, além d e tu d o isto, en v o lv iam -se g ra c io sa m e n te e m u m a ca p a
d e p a n o p reto , d e ix a n d o d e fora os b raço s o rn a d o s d e a rg o la s d e m e ta l si­
m u la n d o pu lseiras.
(M em órias..., cap. XVII)
A idéia principal desse parágrafo descritivo é o trajo das baianas,
enunciada logo na prim eira linha à guisa de tópico frasal; “as chamadas
baianas não usavam de vestidos”.
Nos parágrafos descritivos, o propósito do autor deve ser prim or­
dialm ente o de apresentar o objeto, pessoa ou paisagem através dos seus
traços típicos, de tal forma que se perm ita ao leitor distinguir de outros
sem elhantes o objeto da descrição. Mas, como já vimos, os porm enores
não são relevantes por si mesmos: é inútil descrever um a mesa, enum e­
rando-lhe as partes com ponentes (pés, gavetas, tam po), se essas partes
nada apresentarem de característico, isto é, se os seus aspectos forem
idênticos aos de qualquer outra mesa (salvo se a intenção do autor é
exatam ente m ostrar a vulgaridade do objeto). Na descrição de M. A. de
Almeida, os porm enores tornam o trajo das baianas realm ente inconfun­
dível, revelando inclusive o que há nele de pitoresco. É um a representa­
ção viva do objeto feita por quem sabia observar e distinguir o detalhe
expressivo da minúcia anódina.
Compare-se agora o retrato de Aristarco traçado pela pena irónica,
quase sarcástica, de Raul Pompéia:
N as ocasiões d e a p a ra to é q u e se p o d ia to m a r o p u lso ao h o m em .
N ã o só as c o n d e co raç õ es g rita v am -lh e n o p e ito co m o u m a c o u ra ç a d e g ri­
los: A ten eu ! A teneu! A ristarco to d o e ra u m a n ú n c io ; os g esto s, calm o s, s o b e ­
ra n o s, e ra m d e u m rei — o a u to c ra ta ex celso d o s silab ário s; a p a u sa h ie rá ti­
c a d o a n d a r deix av a s e n tir o esforço, a ca d a p asso , q u e ele fazia p a ra le v ar
a d ia n te , d e e m p u rrã o , o p ro g re sso d o e n s in o p ú b lico ; o o lh a r fu lg u ra n te ,
s o b a c risp a çã o á s p e ra do s su p e rc ílio s d e m o n stro ja p o n ê s, p e n e tra n d o d e
lu z as a lm a s circ u n sta n te s — e ra a e d u c a ç ã o d a in te lig ê n cia; o queixo, sev e­
r a m e n te e s c a n h o a d o d e o re lh a a o re lh a , le m b ra v a a lis u ra d a s co n sciên cias
lim p a s — e ra a e d u c a ç ã o m oral. A p ró p ria e s ta tu ra , na im o b ilid a d e d o g es­
to , na m u d e z d o culto, a sim p les e s ta tu ra d iz ia d ele: aq u i e s tá u m g ra n d e
h o m e m ... n ã o vêem os côv ad o s d e G olias?!... R eforça-se so b re tu d o isto u m
p a r d e b ig o d es, v o lu ta s m aciças d e fios alvos, to rn e a d a s a cap rich o , c o b rin ­
d o os lábios, fecho d e p ra ta so b re o silên cio d e o u ro , q u e tã o b e la m e n te im ­
p u n h a co m o o re tra im e n to fec u n d o d o seu e s p írito — te re m o s e sb o ç a d o m o ­
ra lm e n te , m a te ria lm e n te , o p erfil d o ilu stre d ir e to r [...]
(O A teneu, p. 9-1 0 )
A descrição é modelar. Note-se como, através dos traços físicos, dis­
torcidos pela intenção caricatural, dosados mesmo de certo desdém, vai o
Autor delineando ao mesmo tempo, gradativam ente, o retrato psicológico
da sua personagem . Mesmo eliminada essa carga de ironia ou desdém, o
que se grava no
tarco, graças ao:
dar, o olhar fulg
mente escanhoa
o par de bigode
e não de qualqi
cos, sem a sob:
felicíssimas — i
ria a imagem d<
Estamos \
m a — ou, melh
vo: M. A. de AL
ta a personagei
exato, até certo
de Memórias de
Ateneu retrata o
sionista; o segui
e Raimundo Lid
sional, o expres:
tração subjetiva
se refere ao que
para fora” (cf. “
guaje, de Charl
Universidade de
3.15 Det
Outro exe
sionista \ mas a
oferece Coelho '
razão — pelo s
tor de Inverno e
bastante aprecia
como se pode v
Larj
sussurro, a
rência do
sempre, dc
cedro, tosi
orla das r
ciam, nas
nheiros, d*
O t h o n
M .
G a r c ia
♦
251
que se grava no espírito do leitor é uma imagem viva e palpitante de Aris­
tarco, graças aos pormenores expressivos e singularizantes: os gestos, o an­
dar, o olhar fulgurante, os supercílios de m onstro japonês, o queixo severa­
m ente escanhoado de orelha a orelha, a estatura, a imobilidade do gesto,
o p ar de bigodes retorcidos — são traços inconfundíveis dessa personagem
e não de qualquer outra. Mas, se se limitasse ao desenho dos traços físi­
cos, sem a sobrecarga expressionista, traduzida, em parte, em metáforas
felicíssimas — irônicas, pejorativas, hiperbólicas —, muito mais pálida se­
ria a imagem do diretor do Ateneu.
Estamos vendo assim o que é óbvio: não se descreve da m esm a for­
ma — ou, melhor, com a mesma atitude — a coisa inanim ada e o ser vi­
vo: M. A. de Almeida descreve os trajos das baianas, mas R. Pompéia retra­
ta a personagem Aristarco. Por isso, o parágrafo do primeiro é objetivo,
exato, até certo ponto minucioso; o do segundo é vivo, sugestivo. O Autor
de Memórias de um sargento de milícias reproduz o que viu; o Autor de O
Ateneu retrata o que quis ver ou lhe pareceu ter visto. O primeiro é impres­
sionista; o segundo, expressionista (já que — como ensinam Amado Alonso
e Raimundo Lida — “o impressionista se refere ao motivo ou estímulo oca­
sional, o expressionista ao mundo interior; experiência objetiva e sua pene­
tração subjetiva. Impressão é a percepção do objeto como tal; a expressão
se refere ao que minha alma lhe empresta. De fora para dentro, de dentro
para fora” (cf. “El impresionismo linguístico”, in El impresionismo en el lengitaje, de Charles Bally, Elise Richter e os autores citados. Buenos Aires,
Universidade de Buenos Aires, 1956, p. 159).
3.1.5 Descrição de paisagem
Outro exemplo de descrição, que tam bém poderíamos dizer “im pres­
sionista”, mas agora de paisagem e não de objetos ou pessoas, é a que nos
oferece Coelho Neto. Censurado com freqüência — e, até certo ponto, com
razão — pelo seu preciosismo vocabular, pela sua afetação retórica, o Au­
tor de Inverno em flor revela-se, não obstante e não raras vezes, paisagista
bastante apreciável, quando sua frase não peca pela falta de naturalidade,
como se pode ver no trecho seguinte:
L arga a la m e d a d e b am b u s, o sc ila n d o fle x u o sa m e n te com e s tra le ja d o
su ssu rro , a b o b a d a v a u m c a m in h o se re n o , a lfo m b ra d o d e fo lh as. N a tra n s p a ­
rê n c ia d o a r a z u la d o cru z av am -se , d e c o n tín u o , lib é lu la s e b o rb o le ta s, e
se m p re , d o c e m e n te , soava u m esv aíd o e trê m u lo m u rm ú rio d ’ág u a . S eb es d e
ce d ro , to sa d a s à a ltu ra cPhom em , m u ra v a m a s trilh a s, fo rm a v am ta p ig o à
o rla d a s ram p a s. C a ra m a n ch é is em c ú p u la s ou à feição d e c a b a n a s o fe re ­
ciam , nas h o ra s cálidas, ag a sa lh o e fre scu ra, e, em b aix o , r e n te co m os esp i­
n h eiro s, d e s g re n h a d a s ca su a rin a s d e s fe ria m g em id o s eólios.
(C o elh o N eto, R ei Negro, cap . I)
252
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
É o quarto parágrafo de um a série de doze em que o Autor descre­
ve a casa da fazenda, e na qual focaliza de perto um fragmento de paisa­
gem, representado aqui pela alameda e os caramanchéis, cujos traços, mais
característicos a seu ver, apresenta ao leitor com certa mas comedida sim­
patia. Note-se que o parágrafo não está cum ulado de pormenores insignificativos: é como se o Autor usasse binóculos, para v er “mais de perto” os
aspectos mais atraentes da paisagem, e não microscópio, como se estives­
se exam inando num a lâmina as nervuras de um a folha. Em suma, fora
um a ou duas amostras de preciosismo vocabular (uma, pelo menos de gos­
to discutível: “gemidos eólios” é para o Autor o que, com menos afetação,
qualquer outro cham aria de “sussurrar do vento” ou “gemidos do vento”) a
descrição é suficientem ente caracterizadora para deixar no espírito do lei­
to r um a im agem satisfatória da cena focalizada.
Outro é o tipo de parágrafos descritivos que encontramos na obra de
José de Alencar — este, sim, paisagista admirável. Os seus são, em geral,
parágrafos curtos, soltos, encadeados mais pelo sentido do que por partí­
culas de transição. Constam, na m aioria dos casos, de períodos não m ui­
to extensos, como pode servir de exemplo o trecho antológico “A prece”
(cap. VII da 1- parte de O guarani, se é que se pode cham ar de “capítulo”
cada um a das subdivisões das quatro partes do seu conhecido romance).
As duas seções em que se divide esse trecho descritivo — a prim eira, até
“Era a Ave-Maria”, e a segunda a partir daí até “Todos se descobriram” —
são constituídas por um a série de pequenos parágrafos, que, isoladamente,
não chegam a retratar um quadro, mas apenas um fragmento dele, a que se
ajustam outros, sucessivos, como nesses quebra-cabeças infantis formados
por recortes sinuosos que é preciso ajuntar para se ter uma paisagem. São
inúmeros os exemplos dessa espécie na obra do romancista cearense.
Entretanto, o trecho que a seguir transcrevemos é representado por
um parágrafo mais longo do que a maioria dos que distinguem a sua obra.
Trata-se de um modelo no gênero (modelo que o estudante pode e deve
mesmo im itar como bom exercício de estilo): descrição viva, pessoal, afeti­
va. Ao contrário do que se pôde sentir pelo exemplo de Coelho Neto, o
A utor de Iracema não é um observador frio, apressado ou distante, não é
simples espectador turista, mas alguém que se deixou contagiar do pró­
prio encanto da natureza, como que se integrando nela:
Aí [trê s o u q u a tro lé g u as acim a d a s u a fo z], o P a q u e q u e r la n ç a -se rá ­
p id o s o b re o seu le ito e a tra v e ss a as flo restas co m o o tapir, e s p u m a n d o , d e i­
x a n d o o pêlo esp arso p elas p o n ta s d o ro ch e d o e e n c h e n d o a so lid ã o co m o
e s ta m p id o d e su a c a rre ira . D e re p e n te , falta-lh e o e sp aç o , foge-lhe a te rra ; o
s o b e rb o rio re c u a u m m o m e n to p a ra c o n c e n tra r su a s fo rças e p re c ip ita -se d e
u m só a rre m e sso , co m o o tig re so b re a presa.
O núcleo do parágrafo é o ímpeto e arrem esso do rio; mas, no se­
guinte, já é outro o quadro — o do Paquequer na sua mansidão:
D epois, fa t
m e ce n u m a lin d a
le ito d e n o iv a, sol
O ritm o e a flui
pressivas, criam aque
descrições de José de
dida de “como o tap
pontas do rochedo” alexandrino m oderno
tuosidade. Notem-se z
gem: “como o tapir e
gundo trecho, a idéia
ções igualm ente simpl
num a linda bacia”, “c
e flores agrestes”.
Em suma: a de
comportar-se como sei
que José de Alencar é
Essa, por assim
linguagem carregada <
de Alencar do paisagi:
como se o primeiro fa
gundo, simples testem
m ente por serem poét
tem-se de muitas das i
se um sopro de vida 1
leitor se afeiçoa à ima
ra hum ana em luta co
3.1.6 Descricâo
t
Essa qualidade
distintivos, típicos — i
de Queirós, de quem i
Jacinto em A cidade e
M as n a s a
tre la s, J a c in to a r r
r a essa “g ra n d e z í
M a d e ira , a m p la s
c h ita . S o b re a mc
m irei u m c a n d ee i
d e p e n a s d e pato.
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
253
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra e ador­
mece numa linda bacia que a natureza formou e onde o recebe como em
leito de noiva, sob cortinas de trepadeiras e flores agrestes.
(Op. cit., Quarta parte, cap. XI)
O ritm o e a fluência da frase, aliados a imagens e com parações ex­
pressivas, criam aquela atm osfera poética que caracteriza a m aioria das
descrições de José de Alencar. Observe-se, por exemplo, o ritmo e a m e­
dida de “como o tapir, espum ando, deixando” e “o pêlo esparso pelas
pontas do rochedo” — um decassílabo galego-português (4-7-10) e um
alexandrino m oderno (4-8-12), com a aliteração em “p”, a sugerir im pe­
tuosidade. Notem-se ainda as com parações adequadas ao am biente selva­
gem: “como o tapir espum ando”, e “como o tigre sobre a presa”. No se­
gundo trecho, a idéia de mansidão está sugerida em imagens e com para­
ções igualm ente simples e espontâneas: “fatigado do esforço”, “adormece
num a linda bacia”, “como em leito de noiva, sob cortinas de trepadeiras
e flores agrestes”.
Em suma: a descrição é tão anim ada, que o rio Paquequer parece
com portar-se como ser vivo e atuante, graças a esses recursos de estilo em
que José de Alencar é prodigalíssimo.
Essa, por assim dizer, comunhão com a natureza, insinuada num a
linguagem carregada de afetividade, é que distingue o paisagismo poético
de Alencar do paisagismo mais ou menos convencional de Coelho Neto. É
como se o primeiro fosse cúmplice da natureza nos seus sortilégios, e o se­
gundo, simples testem unha do seu espetáculo. Por outro lado — ou ju sta­
m ente por serem poéticas — as descrições do romancista cearense reves­
tem-se de muitas das características da narrativa, como se o autor insuflas­
se um sopro de vida hum ana nos acidentes da natureza. É por isso que o
leitor se afeiçoa à imagem do rio Paquequer como se se tratasse de criatu­
ra hum ana em luta com os elementos.
3.1.6 Descrição de ambiente (interior)
Essa qualidade primeira da descrição — assinalar apenas os traços
distintivos, típicos — m arca também o estilo de outro grande escritor, Eça
de Queirós, de quem damos abaixo mais um belo exemplo: o gabinete de
Jacinto em A cidade e as serras:
Mas na sala imensa, onde tanto filosofáramos considerando as es­
trelas, Jacinto arranjara um centro de repouso e de estudo — e desenrola­
ra essa “grandeza” que impressionava o Severo. As cadeiras de verga da
Madeira, amplas e de braços, ofereciam o conforto de almofadinhas de
chita. Sobre a mesa enorme de pau branco, carpinteirada em Tormes, ad­
mirei um candeeiro de metal de três bicos, um tinteiro de frade armado
de penas de pato, um vaso de capela transbordando de cravos. Entre duas
254
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
janelas, uma cômoda antiga, embutida, com ferragens lavradas, recebera
sobre o seu mármore rosado o devoto peso de um Presépio, onde Reis Ma­
gos, pastores de surrões vistosos, cordeiros de esguedelhada lã se apressa­
vam através de alcantis para o Menino, que na sua lapinha lhes abria os
braços, coroado por uma enorme Coroa Real. Uma estante de madeira en­
chia outro espaço de parede, entre dois retratos negros com caixilhos ne­
gros; sobre uma das suas prateleiras repousavam duas espingardas; nas
outras esperavam, espalhados, como os primeiros Doutores nas bancadas
de um concílio, alguns nobres livros, um Plutarco, um Virgílio, a Odisséia,
o Manual de Epicteto, as Crônicas de Froissart. Depois, em fila decorosa,
cadeiras de palhinha, muito novas, muito envernizadas. E a um canto um
molho de varapaus.
o quê: o fato, a
quem: personag
como: o modo i
quando: a époc
onde: o lugar d
porquê: a causa
por isso: resulta
(Cap. IX)
Nem sempre
quê, sem os quais n
O quadro aqui não é a paisagem externa m as o ambiente: a “sala
im ensa”, onde Jacinto “arranjara um centro de repouso e de estudo”. Tra­
ta-se, como se vê, de parágrafo iniciado por tópico frasal. Ao descrever a
sala, o A utor lhe assinala apenas os traços característicos — móveis e per­
tences —, mas sem se deter dem oradam ente em nenhum deles. Seria des­
cabido alongar-se na descrição detalhada de cada um a das peças do mobi­
liário — da cômoda, por exemplo —, particularizando em dem asia os seus
aspectos em prejuízo do conjunto. Todavia, se o julgasse necessário, pode­
ria fazê-lo em parágrafo à parte, pois a idéia-núcleo, expressa no tópico
frasal, é a sala e não a cômoda. Os mais graves defeitos de estrutura de
parágrafo decorrem , na maioria dos casos, dessa falta de equilíbrio e pro­
porção entre as duas partes, dando-se realce ao que é secundário ou pon­
do-se no mesmo plano da idéia principal outra, subordinada. Eis aí a ra­
zão por que o Autor não entrou em minúcias ao se referir à cômoda, ano­
tando-lhe apenas um ou dois detalhes caracterizadores: “antiga, embutida,
com ferragens lavradas” e “seu m árm ore branco”. (Ver em “Redação Técni­
ca, 1.3”, outros aspectos da descrição.)
Porque n
Silva, (quem —
vier, 25, Penha
com uma facade.
— antagonista)
Está aí, em li
narrativa, com quas
de um a novela ou c
cos. Vá o estudante
Quem: imagin
trato físico e mora
nervosos, gênio e te
sões de gíria habitu
balho, nos divertim«
uma espécie de mot
mesmo com Joaquir
e de outro: retrate
filho, mau pai; apre
faça de ambos bons
de interesses, imagi
za-lhes o diálogo...
Ihão, como é prová
ta: em outra experii
Onde e quanc
aspecto do dia, ou
tes, a posição dos
plena rua? na casa
gum lugar conhecid
O quê e comi
conte tudo de um j
em suspenso... Leve
3.2 Narração
3.2. / A matéria e as circunstâncias
A m atéria da narração é o fato. Tal como o objeto (m atéria da des­
crição), tem igualmente sentido muito amplo: qualquer acontecimento de
que o hom em participe direta ou indiretam ente.
O relato de um episódio, real ou fictício, implica interferência de to ­
dos ou de alguns dos seguintes elementos (personagens, fato e circunstân­
cias; rever 1. Fr., 1.6.2):
■í
U F P E Biblioteca Cenír?
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
255
o quê: o fato, a ação (enredo);
quem: personagens (protagonista(s) e antagonista(s));
como: o modo como se desenrolou o fato ou ação;
quando: a época, o momento em que ocorreu o fato;
onde: o lugar da ocorrência;
porquê: a causa, razão ou motivo;
por isso: resultado ou conseqüência.
Nem sempre todos esses elementos estão presentes, salvo quem e o
quê, sem os quais não há narração (ver ainda 3.3 a seguir).
Porque não lhe quis pagar (porquê) uma garrafa de cerveja, Pedro da
Silva, (quem — protagonista) pedreiro, de trinta anos, residente na Rua Xa­
vier, 25, Penha, matou (o quê) ontem (quando) em Vigário Geral, (onde)
com uma facada no coração, (como) a seu colega Joaquim de Oliveira, (quem
— antagonista)
Está aí, em linguagem chã mas objetiva e clara, a essência de uma
narrativa, com quase todos os seus ingredientes. Pode servir como germe
de um a novela ou conto: basta porm enorizar cada um dos elementos bási­
cos. Vá o estudante dando largas à sua imaginação:
Quem: imagine como seria Pedro da Silva, descreva-o, faça-lhe o re­
trato físico e moral: estatura, idade, traços fisionômicos, hábitos, tiques
nervosos, gênio e temperam ento; ponha-o a falar, reproduza-lhe as expres­
sões de gíria habituais, imagine-o em casa, com a família, na rua, no tra­
balho, nos divertimentos... Continue: a imaginação às vezes funciona como
uma espécie de moto-contímio, a que basta d ar o primeiro impulso. Faça o
mesmo com Joaquim de Oliveira, confrontando os hábitos, o caráter de um
e de outro: retrate um como vilão, rebelde, desordeiro, desajustado, mau
filho, m au pai; apresente o outro como mocinho, bom filho, bom pai... Ou
faça de ambos bons moços... Tire partido dos contrastes, mostre o conflito
de interesses, imagine o encontro entre eles, ponha-os a discutir, reproduza-lhes o diálogo... A história está nascendo; pode resultar num dramaIhão, como é provável, dada a qualidade desses ingredientes. Não im por­
ta: em outra experiência, a narrativa m elhorará.
Onde e quando: imagine a hora em que se deu o crime, descreva o
aspecto do dia, ou da noite, retrate o local do crime, as pessoas presen­
tes, a posição dos protagonistas. Feche os olhos e imagine: um bar? em
plena rua? na casa de um deles? Sirva-se de retalhos de lembranças de al­
gum lugar conhecido e reajuste os aspectos à cena que vai se desenrolar.
O quê e corno: continue imaginando... O imprevisto da cena... Não
contc tudo dc um jato só; vá espicaçando a atenção do leitor, m antendo-o
em suspenso... Leve a narrativa a um ponto de saturação tal, que não seja
256
♦
COMU NICAÇAO
EM
PROSA
MODERNA
mais possível adiar o desenlace ou desfecho... E... o gesto fatal... Imagine a
faca ou punhal na mão do assassino, o gesto repentino de sacá-la, a vio­
lência do golpe... a queda... o sangue em borbotões (Puxa! até eu mesmo
já estou ficando impressionado com essa tragédia!) Continue o estudan­
te... o dram alhão está-se avolumando... É dramalhão, sim, mas em outras
experiências, o principiante já terá apurado o gosto... O caminho é esse
mesmo: só os contistas natos não conhecerão essa fase (nem passarão os
olhos por estas páginas, que são para principiantes).
Mas falta o epílogo. É fácil começar um a narrativa; o difícil é che­
gar ao clímax e ao desfecho. Imagina o leitor a m elhor m aneira de term i­
nar a narrativa, de forma que não se acrescente nenhum fato novo depois
do desfecho. É o epílogo.
3.2.2 Ordem e ponto de vista
A ordem no relato dos fatos ou acontecimentos é, normalmente, a
cronológica, í.e., a da sua sucessão no tempo. Todavia, o propósito de ser
original ou de despertar mais interesse no leitor ou de dar maior ênfase a
certos incidentes ou pormenores, pode levar o autor a adotar outra, come­
çando, por exemplo, por onde devia acabar, como se faz em muitos ro­
mances policiais (ver 4.4.1).
O ponto de vista tem, aqui também, como na descrição, importância
primordial. Quem conta a história? Um observador neutro, distante, ou um
co-participante dos acontecimentos? Será um a personagem de primeiro
plano ou um a figura secundária? Será um narrador onisciente e onipresen­
te, um a espécie de testem unha invisível de tudo quanto ocorre, em todos
os lugares e todos os momentos, capaz de nos dizer não só o que as per­
sonagens fazem mas também o que pensam e sentem? O autor escolherá
naturalm ente o ponto de vista que mais se adapte aos seus recursos técni­
cos e à sua imaginação criadora.
Q uando o narrador se põe na pele de qualquer personagem, a narra­
tiva é feita n a primeira pessoa (eu, nós). Sendo apenas testem unha, servese o autor d a terceira (ele, ela, eles). No primeiro caso relata apenas o que
vê; no segundo, ele pode ser onisciente e onipresente.
3.2.3 Enredo ou intriga
O enredo (intriga, trama, história ou estória, urdidura, fábula) é aque­
la categoria da narrativa constituída pelo conjunto dos fatos que se enca­
deiam, dos incidentes ou episódios em que as personagens se envolvem, num
determ inado tempo e num determinado ambiente, motivadas por conflitos
de interesse ou de paixões. É, em si mesmo, um artifício artesanal, estrutura­
do por um nexo de causa e efeito entre as peripécias que se enovelam e ca­
minham para um desfí
va mesma.
Até os fins do s
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t u d o o s a r t ig o s d e R . B a r
U F P E B ib lioteca Cent
O.THON
M.
G a rc ia
♦
257
minham para um desfecho. Enredo é, em suma, o que acontece, é a narrati­
va mesma.
Até os fins do século XIX e a prim eira década do XX, quando escre­
ver um conto, um a novela, um romance ainda era, acima de tudo, contar
um a estória (tanto quanto possível interessante), estória em que os inci­
dentes se encadeassem de m aneira conseqüente, entrosando-se até com
certo rigor, o enredo constituía a substância mesma do gênero de ficção, a
sua categoria por excelência. 0 enredo era tudo, ou quase tudo (pelo m e­
nos até os últimos espasmos do realismo).
Mas depois veio Freud, veio a Primeira Grande Guerra, veio Kafka,
veio Proust, veio Joyce, veio o surrealismo, veio a Segunda Grande Guer­
ra. E estourou o estruturalismo. E veio o llnouveau roman” francês, esse
“anti-rom ance”, esse “laboratório da narrativa”, esse “romance do rom an­
ce” (irmão gêmeo do “poema do poema”) em que nada praticam ente acon­
tece, pois o tempo e o espaço (ou melhor: o objeto) constituem a única
(ou a principal) obsessão do ficcionista, em que a descrição deixou de ser
a ancilta narrationis (serva da narração), em que a análise psicológica des­
ce a profundidades abismais.7 O enredo, esse, passou à condição de total
subalternidade, sendo mesmo encarado com certo desprezo. Mas ainda há
os romances policiais, ainda se escrevem estórias que têm um começo, um
meio e um fim e é nessas, de enredo clássico típico, que se podem distin­
guir, com maior ou m enor nitidez, com maior ou menor freqüência, três
ou quatro estágios progressivos da intriga; a exposição (menos freqüente),
a complicação, o clímax e o desenlace ou desfecho.8
Na exposição, o narrador explica (ou explicava) certas circunstâncias
da estória, situando-as em certa época e certa ambiência e introduzindo ou
apresentando algumas personagens. A complicação é a fase em que se ini­
cia propriam ente o conflito, o choque de interesses entre o(s) protagonista(s) e o(s) antagonista(s). Salvo, evidentem ente, o caso do nouveau ro­
man, é por aí que em geral começam as narrativas não de todo desviadas
do modelo tradicional. O clímax é o ápice da estória, o seu ponto de maior
tensão, aquele estágio em que o conflito entre as personagens centrais che­
ga a um ponto tal, que já não é possível procrastinar o desfecho. O des­
fecho ou desenlace é a solução mesma dos conflitos, é “o momento da
grande destruição trágica, da morte, das revelações de identidade, da solu-
7 So b re
o
“n o v o
ro m a n c e ” re c o m e n d a -se
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1 9 6 3 ) , e d e P E R R O N E - M O J S É S , L e y la , O n o v o
P a u lo , D e s a , C o l e ç ã o B u r it i, 1 9 6 6 ) .
e v id e n t e q u e e s t a m o s c o n s i d e r a n d o a p e n a s a n a r r a t i v a d e f e it io t r a d i c i o n a l ; o le it o r i n t e ­
r e s s a d o e m f a m ilia r iz a r - s e c o m
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8 d a r e v is t a C o m m u n i c a t i o n s ( P a r is , E d . d u S e u i l , 1 9 6 6 ) —
t u d o o s a r t i g o s d e R . B a n h e s , T. T o d o r o v e G é r a r d G e n e t t e .
so b re ­
258
♦
C OMUNICAÇÃO
EM
PROSA
MODERNA
cão dos mistérios, da união dos amantes, da descoberta e m orte dos vi­
lões, etc.”9
3.2.4 Tema e assunto
3.2.6 Variedi
A m atéria do enredo é o terna, que, por sua vez, resulta do trata­
m ento dado pelo autor a determ inado assunto. Por exemplo: a escravi­
dão, como fonte de situação dram ática, constitui um assunto, mas o seu
aproveitam ento no rom ance de Bernardo G uim arães (A escrava Isaura) e
no de H arriet Beecher Stowe (A cabana de Pai Tomás) transform a-o em
tema, pois diversa é a interpretação que lhe dá cada autor, diverso é o
com portam ento das personagens, diverso é o conflito entre protagonista
e an tag o n ista.10
5.2.5 Situações dramáticas
f
Em síntese, toda narrativa consiste numa seqüência de fatos, ações
ou situações que, envolvendo participação de personagens, se desenrolam
em determ inado lugar e momento, durante certo tempo. As circunstâncias
e motivações da atuação das personagens e a configuração dos seus confli­
tos e antagonismos constituem situações dramáticas. Georges Polti,11 basea­
do no estudo do enredo de grande número de narrativas, identificou trin­
ta e seis situações dramáticas, de que damos aqui apenas as que nos pare­
cem mais típicas: crime praticado por vingança, peregrinação, regresso (do
herói), empresa temerária, rapto, enigma, rivo/icíade, imprudência fatal, ju l­
gamento errôneo, vitória, derrota, libertação, auto-sacrifício, perda e recon­
quista (de pessoa ou de coisa), ambição, conflito íntimo, remorso, etc. An­
tes dele, entretanto, j á Vladimir Propp, em Morfologia do conto — estudo
sobre o conto popular russo, cuja I a ed. data de 1928, mas que, fora do
círculo restrito dos especialistas, só se tornou conhecido no Ocidente atra­
vés da 1“ ed. em inglês,12 em 1958 — apontara trinta e um a “funções” da
narrativa (popular), algo equivalente mas não exatam ente correspondente
a essas situações dramáticas de Polti: ausência, interdição, violação, decep­
ção, submissão, traição, mediação, partida (do herói), regresso, prova, luta,
vitória, peregrinação, libertação, empresa difícil, reconhecimento, revelação do
traidor, etc. As “funções” acabaram sendo o termo consagrado pelos adep­
tos da sem ântica estrutural, sobretudo Greimas e Todorov (cf., do primei-
y C O U T IN H O , A fr â n io .
10 C f. L E W I S , C . D a y .
11 C f. 77ie
12
A ntologia brasileira de. literatura ,
The poetic im age,
th ir ty -six dram atic situations.
M orphology o f the fo lk ta le .
ro, Sémantique stru
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p. 1 0 1 - 2 .
v o l. I, p. X X I V
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O t h o n
M.
G a rc ia
♦
259
ro, Sémantique structurale, p. 172 e ss., e, do segundo, “Les catégories du
récit littéraire”, in Communications, n 9 8).
3.2.6 Variedades de narração
O fato relatado pode ser real ou fictício. A história do gênero hum a­
no, a biografia de um herói, a autobiografia, um a reportagem policial
constituem relatos de fatos reais. O romance, o conto, a novela, a anedota
(no seu sentido vulgar) são algumas das espécies do gênero de ficção, e
ficção (do latim fingire = fingir) é invenção, é “fingimento”, é produto da
imaginação.
O conto, a novela e o romance — principalm ente este último — têm
um a técnica especial, e tão complexa, que exige tratam ento à parte, o que
escapa à finalidade deste trabalho. Entretanto, após as características ge­
rais expostas nos tópicos precedentes, o aluno poderá tentar algumas das
espécies menores (incluindo-se aí o próprio conto), tais como a anedota, o
incidente, o perfil, o esboço biográfico ou autobiográfico.
3 . 2 . 6 . 1 A n e d o t a , que, etimologicamente, quer dizer “inédito”,
(do gr. an-ekdotos, i.e., não publicado), é um a particularidade pouco co­
nhecida da História. O seu sentido usual, porém, é o de qualquer n arrati­
va curta, picante, curiosa, divertida, epigramática e, com freqüência, obsce­
na. Muitas vezes aparece como uma espécie dc “a propósito”, sugerida por
associação com outros fatos (ver “Alusão histórica”, Par. 1.5.1).
3 . 2 . 6 . 2 I n c i d e n t e é t a m b é m u m a n a r r a t i v a c u r t a , r e a l o u f ic tí­
c ia , c u j a p r i n c i p a l f in a l id a d e p a r e c e s e r a d e f r i s a r tr a ç o s d o c a r á t e r d e a l­
g u m a p e rs o n a g e m , d o a m b ie n te e a té m e sm o d o n a rra d o r.
3.2.6.3
B iografia
é
o relato da vida de personagem real (ver
autobiografia).
3 . 2 . 6 . 4 A u t o b i o g r a f i a é a vida de uma personagem real con­
tada por ela mesma. E o retrato do próprio narrador, um relato dos episó­
dios em que esteve envolvido, uma descrição dos lugares que conheceu e
dos costumes de sua época. São recordações, que nos mostram como se
fez a sua educação, como se formou o seu caráter, que nos falam das in­
fluências que sofreu, que nos revelam os seus conflitos íntimos, as suas
crenças políticas e religiosas, os seus interesses, ambições, idiossincrasias,
conquistas, derrotas, frustrações, seu anseio de felicidade. Se o autor dá
m aior ênfase aos homens e costumes de seu tem po do que à sua própria
pessoa, o que se tem são memórias.
3 . 2 . 6 . 5 P e r f i i . é uma variedade de biografia, dela se distinguin­
do não apenas por ser em geral mais curta, mas também por ser interpreta-
260
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
tiva e levemente irônica e humorística. São muito conhecidos os “perfis poé­
ticos”, com que membros de certos grupos ou classes costumam divertir-se,
ironizando ou louvando alguns dos seus companheiros. Ao contrário da bio­
grafia, o perfil não tem qualquer propósito didático: é uma narrativa livre, li­
geira, brejeira, em que se procura sublinhar os traços mais característicos da
pessoa, com malícia às vezes, com simpatia quase sempre.
5.2.7 Dois exemplos de parágrafos de narração
O núcleo do parágrafo narrativo é — repitamos — o incidente, vale
dizer, episódio curto ou fragmento de episódio.
Nele não há, via de regra, tópico frasal explícito, pois o seu conteú­
do é um fiat, um devem'?; um instante no tempo, e, portanto, teoricam ente
imprevisível, tecnicamente impossível de antecipar. Lembra um instan­
tâneo de película cinematográfica com a m áquina posta em repouso para
permitir a análise dos detalhes da ação.
Em princípio, pelo menos, o que distingue a narração da descrição
é a presença de personagens atuantes — homens ou animais. Pode não
haver m ovim entação das personagens: basta que haja tensão. Veja-se o
exemplo que nos oferece Rachel de Queiroz em seu romance Caminho de
pedras: os protagonistas estão praticam ente imóveis, em expectativa, mas
tensos:
Levou [R oberto] co n stra n g id o a m ão ao ca b e lo , p e n te o u -o com os d e ­
dos. N oem i so rriu . Jo ã o Ja q u e s, ag o ra , o lh av a o te to , n u m a d essas a b s tra ­
ções q u e lhe era m fre q ü e n te s. R oberto ta m b é m se calara e esta v a ali, g ra ­
ve, m u d o , su fo ca n d o o u sa d ias. L em brav a um p o u c o o R o b erto fu g itiv o e
d e s lig a d o dos p rim e iro s tem p o s, m as N oem i b em v ia os o lh o s com q u e ele a
o lh a v a. M esm o Jo ã o Ja q u e s talvez já se n tisse a q u e le a r te n so e p assio n al
q u e a b a fa v a ali. E ela, no m eio d e am b o s, im ó v el, p o b re p e d a ç o d e ca rn e
d o lo ro sa , m a ltra ta d a , cu ja v ida se esvaía ao s p o u co s, e n q u a n to os d o is h o ­
m e n s se d e fro n ta v a m , p ro n to s a d isp u tá -la , p ro n to s am b o s a s a lta r u m so ­
b re o o u tro . B astaria u m a p alav ra, um m o v im en to , p a ra q u e to d a a tra n q ü i­
la ig n o râ n c ia d e J o ã o Ja q u e s sa lta sse com o u m a ro lh a. E o o u tro , esse já e s­
ta v a à esp re ita , a té lhe fazia m e d o co m seu s o lh o s am arelo s, d u ro s d e
d e s e jo e d e am or, q ue a fitavam im p la c a v e lm e n te . N oem i co m eç o u a se re ­
v o lv e r no leito.
(Caminho de pedras, p. 2 8 4 )
A A utora focaliza o instante em que se defrontam dois rivais junto
ao leito onde a m ulher de um deles repousa doente. É um m om ento de
tensão e expectativa, um incidente que a n arradora isola da urdidura ou
intriga p ara poder focalizar de perto a reação das personagens. Tudo ocu­
pa um só parágrafo, e todo o parágrafo gira em torno desse único inciden­
te: eis o princípio básico que o narrador principiante deve ter sempre em
to, um a determ inada
minúcia, aqui tam bér
m a: não se deve part
nas o instante ex p ra
co, ao conjunto da in
Confronte-se ag
da Silva, que abaixo t
quase nenhum : as pe:
peto agressivo. No se
em ím peto incontido:
O m ancebi
q u e seu s o lh o s fú
ro co m a p o n ta d
sistível. O cavalo
p ô d e le v an ta r-se .
ares, e s p ero u -lh e
ta n d o -lh e as p a t a
São ambos exce
dramático diverso — í
cia desencadeada no i
vras e expressões bast
R achel de Q
(palavras que sugen
ímpeto refreado)
c o n s tra n g id o
o lh a v a o te to
calara
g ra v e
s u fo c a n d o o u sa d ias
fu g itiv o e d eslig a d o
a b a fa v a
s e d e fro n ta ra m
o te o r d o a n te p e n ú l
à e sp re ita
fitavam implacavelir
O th o n
M.
G a rc ia
♦
261
m ente. N ada im pede, entretanto, que se fragm ente ainda mais, ao infini­
to, um a determ inada cena ou episódio. Mas — convém relem brar — a
m inúcia, aqui tam bém , como na descrição, não é um a virtude em si m es­
m a: não se deve particularizar o supérfluo, o irrelevante, mas captar ape­
nas o instante expressivo, sintom ático, que se ajuste, como num m osai­
co, ao conjunto da intriga.
Confronte-se agora o trecho de Rachel de Queiroz com o de Rebelo
da Silva, que abaixo transcrevemos. No primeiro o movimento é lento, ou
quase nenhum : as personagens como que se refreiam, dominando seu ím­
peto agressivo. No segundo, a ação se desencadeia já em pura violência,
em ímpeto incontido:
O m a n c e b o d e sp re z a v a o p erig o , e, p ag o a té d a m o rte p elo s so rriso s
q u e seus olhos fu rta v am d e lo n g e, le v o u o arro jo a a rre p ia r a te sta d o to u ­
ro com a p o n ta d a lança. P re cip ito u -se e n tã o o an im a l com fú ria ceg a e irre ­
sistível. O cavalo b a q u e o u tre sp a ssa d o , e o cav aleiro , ferid o n a p e rn a , n ão
p ô d e le v an ta r-se . V oltando so b re ele, o b o i en ra iv e c id o arre m e sso u -o aos
a re s, e s p e ro u -lh e a q u e d a n as arm a s, e n ã o se a rre d o u s e n ã o q u a n d o , a s se n ­
ta n d o -lh e as p a ta s so b re o p eito , c o n h e c e u q u e o se u in im ig o e ra cadáver.
(“Ú ltim a co rrid a d e to u ro s ...”,
in: Antol. N a c p. 2 0 7 )
São ambos excelentes exemplos de parágrafos narrativos, cujo clima
dram ático diverso — ímpeto refreado ou expectativa no primeiro, e violên­
cia desencadeada no segundo — está denunciado por um a série de pala­
vras e expressões bastante caracterizadoras. Compare-as:
R a c h e l d e Q u e ir o z
R e b e l o d a S il v a
(palavras que sugerem
ímpeto refreado)
(palavras que sugerem violência
desencadeada)
c o n s tra n g id o
arro jo
o lh a v a o te to
a rre p ia r a te sta d o to u ro
c a la ra
p recip ito u -se
grav e
fú ria ceg a e irresistív el
s u fo c a n d o o u sa d ias
b a q u e o u tre sp a ssa d o
fugitivo e d eslig a d o
v o lta n d o so b re ele
ab a fa v a
boi en ra iv ec id o
se d e fro n ta ra m
arrem e sso u
o teor do antepenúltimo período
esp e ro u -lh e a q u e d a
à e s p re ita
a s se n ta n d o -lh e as p a ta s
fita v am im p la c a v e lm e n te
262
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
m o d e r n a
O parágrafo de Rebelo da Silva é, em essência, um a narrativa com­
pleta, em m iniatura, com suas quatro fases nitidam ente marcadas:
Roteiro
a) exposição: o primeiro período (até “ponta da lança”);
I Dados sumários sobi
b) complicação: o segundo e o terceiro períodos, períodos curtos, densos de
dramaticidade (até “não pôde levantar-se”);
1.
c) clímax: as três primeiras orações do quarto e último período (até “a
queda nas arm as”); é o momento de maior tensão dramática;
d) desfecho: as quatro últimas orações (a partir de “e não se arredou...”).
O autor: nome o
dos biográficos e
lo da época).
2.
A obra: romance
edição lida (ver '
Resumo ou reser
o.
3.3 Roteiro para análise literária de obras de ficção
As lições contidas nos tópicos precedentes sobre o parágrafo de n ar­
ração (3.2 a 3.2.7) encontram seu complemento e aplicação prática no
presente roteiro para análise literária de obras de ficção.
A leitura de obras-primas da literatura de ficção (nacional ou univer­
sal), habitualm ente ou esporadicamente feita por estudantes do curso fun­
dam ental (principalmente do segundo grau) e das faculdades de letras,
pode ser muito mais proveitosa quando devidam ente orientada, isto é,
quando precedida de uma espécie de questionário à guisa de roteiro como
o que apresentam os a seguir.
Os professores que costum am recom endar a seus alunos leitura
extraclasse lim itam -se geralm ente a pedir uma notícia biográfica do Au­
tor e um resum o da obra lida. Às vezes, exigem tam bém um “ligeiro
com entário”. E é aqui que bate o ponto: “ligeiro com entário”. Como
fazê-lo o estudante, se não recebeu nenhum a orientação didática, clara
e objetiva, capaz de m ostrar-lhe os aspectos a encarar, as qualidades a
sublinhar, as virtudes a ressaltar no que respeita à técnica da n a rra ti­
va, sua estrutu ra, à caracterização das personagens, à linguagem ou es­
tilo e outros aspectos? Sem essa orientação, as im pressões da leitura re ­
sultam vagas, caóticas, difusas, traduzindo-se em apreciações in funda­
das ou desconexas.
O Roteiro que segue, adotado em minhas aulas, sobretudo particula­
res, deu resultados tão satisfatórios (alguns trabalhos se revelaram dignos
de publicação), que me animo a incluí-lo aqui. O professor que dele se
queira servir pode selecionar ad libitwn os itens que mais se ajustem às ca­
racterísticas da obra recom endada ou à orientação adotada, dando eviden­
tem ente informação prévia sobre alguns deles. Importa, entretanto, reco­
m endar (a) que leiam e releiam os tópicos do Roteiro, (b) que façam a lei­
tura de lápis na mão (da obra a ser analisada ou comentada) para assinalar
à m argem observações por eles sugeridas, (c) que resumam cada capítulo
logo que acabem de lê-lo.
II Estrutura (os elem<
1. Personagens
1.1 Quanto à variedc
mais importantes
1.2 Quanto à imporù
antagonista (s), e
a) confidentes, b
1.3 Quanto à caracte,
1.3.1 O autor de
1.3.2 A análise {
ou convem
1.3.3 As personé
rias, fantáí
timento lh
mas figura
ta notorie
assim, enti
2.
2.1
2.2
2.3
2.4
Enredo (intriga, í
Há exposição ou
Onde começa a £
Onde começa o (
Em que trecho 0
fecho? Acha que
o leitor em susp€
13 Alguns itens desta pan*
p. XIX-XXX.
j U F P E Biblioteca Centra
O t h o n
i com-
M.
G a r c ia
♦
263
Roteiro
I Dados sumários sobre o autor e a obra
sos de
1.
O autor: nome completo, local e data de nascimento (e m orte). — Da­
dos biográficos essenciais. — Época, escola ou corrente literária (esti­
lo da época).
2.
A obra: romance, novela ou conto? — Local (cidade), editor e data da
edição lida (ver 9. Pr. Or., 1.2,11).
Resumo ou resenha.
até “a
3.
II Estrutura (os elementos da narrativa)13
ie nar:ica no
univer­
so funletras,
isto é?
0 como
leitura
do Au“ligeiro
Como
a, clara
iades a
narratit ou estura renf u ndaarticula1 dignos
dele se
:n às caeviden:o, recoim a leiassinalar
capítulo
1. Personagens
1.1 Quanto à variedade: são individuais? típicas? caricaturais? Nomeie as
mais importantes.
1.2 Quanto à importância: identifique primeiro o(s) protagonista(s) e o(s)
antagonista(s), e, em seguida, se houver, asdemais (as secundárias):
a) confidentes, b) de contraste, c) narrador.
1.3 Quanto à caracterização
1.3.1 O autor descreve-as fisicamente logo de início ou paulatinamente?
1.3.2 A análise psicológica, se ocorre, é clara, penetrante? é superficial
ou convencional? é dem orada ou lenta, ou rápida e sumária?
1.3.3 As personagens lhe parecem fiéis à realidade ou são im aginá­
rias, fantásticas? São normais? mórbidas? patológicas? Que sen­
tim ento lhe despertam: simpatia, comiseração, repulsa? Algu­
mas figuras parecem retratar vultos históricos ou figuras de cer­
ta notoriedade do contexto social descrito pelo autor? Será,
assim, então roman à c/e/?
2,
2.1
2.2
2.3
2.4
Enredo (intriga, estória, trama, urdidura)
Há exposição ou apresentação? Se há, onde termina?
Onde começa a complicação (capítulo ou cena ou episódio)?
Onde começa o clímax (auge, ápice, suspense)?
Em que trecho (episódio) ocorre a solução, isto é, o desenlace ou des­
fecho? Acha que o desfecho foi artificialmente protelado para m anter
o leitor em suspense (como acontece nas telenovelas)?
13 Alguns itens desta parte (de 1. a 6.3) baseiam-se nas lições de Afrânio Coutinho, op. cit.,
p. XIX-XXX.
264
♦
COMUNICACÃO
EM
PROSA
MODERNA
2.5 O enredo parece-lhe ser de pura invenção ou evidenciam-se nele tra­
ços autobiográficos do autor?
2.6 Há unidade e organicidade na narrativa, quer dizer, os fatos, episó­
dios ou incidentes encadeiam-se naturalmente, m antendo certo nexo ló­
gico entre si? ou, ao contrário, trata-se de um a série de episódios mais
ou m enos independentes, relacionados apenas pela presença de uma
ou de outra personagem? Há unidade de ação, quer dizer, uma só in­
triga, ou duas ou mais, paralelas?
2.7 A intriga é complexa (abundância de episódios entrelaçados) ou extre­
m am ente simples (um fiapozinho de estória, quase ausência de enre­
do, como ocorre no “novo romance” francês, em que praticam ente
nada acontece)?
5.2 parece-lhe rápida,
acontecimentos (inc
ca, as descrições e <
5.3 A ordem da narrat
tempo)?
5.4 Em que época se d<
6.
Ponto de vista
6.1 O narrador é tamb*
cal é feita a narrati
6.2 E o narrador onisc
ria é muito restrit
participa? O narrac
lugares e/o u época
sistir? Acompanha
tro, ou interfere, j
delas?
3. Ambiente (cenário, paisagem, situação)
3.1 Qual é o local dos acontecimentos? Há mais de um ou há unidade de
lugar?
3.2 Qual é o tipo de ambiente predominante? Físico (a natureza, o cam­
po, a cidade) ou social (algum agrupam ento social específico, alguma
parcela da comunidade: fábrica, colégio, clube, família)?
3.3 Cor local e atmosfera: nas descrições predom inam os elementos físicos
do am biente (cor local.), ou, ao contrário, sobressaem os de natureza
emocional, intelectual ou psicológica (atmosfera)? Especifique, exem­
plifique.
3.4 Alonga-se o autor em descrições detalhadas do ambiente? Julga essas
descrições condicionadas ou ajustadas à ação e ao com portamento das
personagens? Considera-as indispensáveis ao desenrolar da estória?
São descrições impressionistas ou expressionistas? São minuciosas?
São convencionais? Constituem lugares-comuns do estilo da época ou
escola literária? Há originalidade nessas descrições? Você costuma ler
os trechos descritivos ou “passa por cima”? Você é capaz de transcre­
ver um parágrafo e assinalar nele algumas das características aponta­
das nos tópicos 3.1 a 3.1.6 de 3. Par.?
III Linguagetn e estilo
4. Tema (assunto)
1.5 Há distinção entre
gens e o do autori
Trata-se de romance (conto, novela) de aventuras ou de ação? E
narrativa policial ou de espionagem? É romance histórico? Seu tema é
um a intriga amorosa? Há conflitos psicológicos? Será romance de costu­
mes (urbanos, rurais, regionalistas)? Terá conotação social, política, religio­
sa? (ver a seguir item IV).
6.3 Tem o autor o hábi
1.
O estilo do autor p
vencional, vulgar, r
1.2 Há traços estilísti*
certas estruturas d*
1.3 Serve-se o autor c
guagem é predomi
1.4 Há desleixos gram:
1.6 A fala das persona
de do cotidiano?
1.7 Há modismos estil
do autor, gíria, reg
5. Tempo
1.8 Há exemplos insof
de que tratam os e
plifique.
5.1 A narrativa parece-lhe morosa ou lenta, quer dizer, há nela pouca ação
e m uita análise psicológica entrem eada de descrições e reflexões ou
comentários do autor? ou, ao contrário,
1.9 Você é capaz de a
tativos do estilo d
mantismo, realism
O th o n
m
.
G a r c ia
♦
265
5.2 parece-lhe rápida, acelerada, em virtude da sucessão contínua dos
acontecimentos (incidentes), que reduz ao mínimo a análise psicológi­
ca, as descrições e comentários do autor?
5.3 A ordem da narrativa é cronológica ou do tipo flashback (recuo no
tempo)?
5.4 Em que época se desenrola a narrativa? Qual a duração?
6.
Ponto de vista
6.1 O narrador é também um a das personagens? Em que pessoa gram ati­
cal é feita a narrativa (na primeira — eu — ou terceira — ele, eles)?
6.2 É o narrador onisciente e onipresente, ou seu conhecim ento da estó­
ria é m uito restrito, limitando-se aos fatos de que ele diretam ente
participa? O narrador relata episódios ocorridos sim ultaneam ente em
lugares e/o u épocas diferentes e aos quais, por isso, não poderia as­
sistir? Acompanha ele as personagens como simples espectador neu­
tro, ou interfere, julgando, com entando, prevendo o com portam ento
delas?
6.3 Tem o autor o hábito de dirigir-se ao leitor? Exemplifique e comente.
III Linguagem e estilo
1.
O estilo do autor parece-lhe correto? É vivo, espontâneo, afetado, con­
vencional, vulgar, retórico? Exemplifique.
1.2 Há traços estilísticos nitidam ente individualizantes (preferência por
certas estruturas de frase, certas palavras, expressões ou metáforas)?
1.3 Serve-se o autor com freqüência de recursos metafóricos, ou sua lin­
guagem é predom inantem ente não figurada? Exemplifique.
1.4 Há desleixos gramaticais graves? Exemplifique.
1.5 Há distinção entre o estilo (fala, diálogos, vocabulário) das persona­
gens e o do autor? Há discurso indireto livre?
1.6 A fala das personagens ajusta-se à sua categoria social e/o u à realida­
de do cotidiano?
1.7 Há modismos estilísticos individuais ou coletivos (“cacoetes” de estilo
do autor, gíria, regionalismos, vulgarismos, arcaísmos, neologismos)?
1.8 Há exemplos insofismáveis ou apenas vestígios daqueles tipos de frase
de que tratamos em 1. Fr., 2.0 — “Feição estilística da frase”? Exem­
plifique.
1.9 Você é capaz de assinalar ou transcrever e com entar trechos represen­
tativos do estilo da época, corrente ou escola literária (classicismo, ro­
mantismo, realismo, impressionismo, modernismo em geral)?
266
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P rosa
M o d e r n a
IV Idéias e concepções
1. Ponto de vista filosófico
Revela o autor uma concepção realista, fantasista, fatalista, pessimis­
ta ou otimista da vida e dos homens?
2. Ponto de vista moral e religioso
Tem a obra — no seu conjunto ou em alguma de suas partes — pro­
pósito moralizador? Revela o autor preocupação com o problema religio­
so? Há sinais de intolerância religiosa, de preconceitos de ordem moral, ra­
cial, social? Do ponto de vista moral, pode a obra ser considerada im pró­
pria para m enores? Por quê? Como encara o autor o problema do sexo e
do am or em geral?
3. Ponto de vista político e ideológico
Deixa o autor perceber claramente suas tendências políticas? Parecelhe um escritor “engajado (“comprometido”) ou “alienado”? Representa a
obra um testem unho ou depoimento sobre sua época e os problemas que
afligem a hum anidade ou um a parte dela? Faz o autor crítica social, pro­
paganda ou proselitismo? Como? Justifique, ilustre, prove.
V. Outivas impressões provocadas pela leitura
Gostou? Sentiu-se empolgado pela narrativa em si, pela psicologia
ou com portam ento ou destino de alguma personagem? pelo estilo? pelas
reflexões do autor? A leitura o enriqueceu espiritualm ente? culturalm en­
te? provocou-lhe reflexões ou foi apenas um passatempo? Leu outras obras
do mesmo autor? Leu obras de outros autores, cujo estilo, técnica de n ar­
rativa, tem a e/o u enredo se assemelhem aos do livro que você acaba de
ler e comentar?
Você seria capaz de fazer dele uma adaptação teatral ou dramática,
quer dizer, um a peça ou roteiro cinematográfico?
4.0 Qualidad
As observações p
zer uma idéia mais pr
Resta-nos agora falar d
ral, as mesmas da frase
ção inteira: correção, ci
da, entretanto, a orien
las que dizem respeito
realce das idéias denrn
4.1 Unidade, cc
A correção gran
qualidades do estilo. N
ção pode estar absolun
lar-se absolutam ente ir
com exemplos disso. É
tras qualidades do esc
mais graves nas redaçc
rior — decorrem meno:
ração da frase, da inco
de realce. Quando o e:
suas relações de depene
rente e objetivo, a form
chegam a invalidar a r
com um mínimo de “re:
Isoladamente, un
quase sempre a falta d
já assinalamos — pode
diente do tópico frasal;
adequada e do em preg
advérbios, locuções adv
4.0 Qualidades do parágrafo e da frase em geral
As observações precedentes talvez tenham ajudado o estudante a fa­
zer uma idéia mais precisa da estrutura e da importância do parágrafo.
Resta-nos agora falar de suas principais qualidades, que são, de modo ge­
ral, as mesmas da frase, tanto do simples período quanto de um a composi­
ção inteira: correção, clareza, concisão, propriedade, coerência e ênfase. Da­
da, entretanto, a orientação que vimos seguindo, vamos limitar-nos àque­
las que dizem respeito mais de perto à ordenação, ao entrosam ento e ao
realce das idéias dentro do parágrafo: unidade, coerência e ênfase.
4.1 Unidade, coerência e ênfase
A correção gramatical é, sem dúvida, uma das mais im portantes
qualidades do estilo. Mas nem sempre a mais importante: uma composi­
ção pode estar absolutamente correta do ponto de vista gramatical e reve­
lar-se absolutam ente inaproveilável. Os professores topamos todos os dias
com exemplos disso. E verdade que erros grosseiros podem invalidar ou­
tras qualidades do estilo. Mas a experiência nos ensina que os defeitos
mais graves nas redações de alunos do curso fundam ental — e até supe­
rior — decorrem menos dos deslizes gramaticais que das falhas de estrutu­
ração da frase, da incoerência das idéias, da falta de unidade, da ausência
de realce. Quando o estudante aprende a concatenar idéias, a estabelecer
suas relações de dependência, expondo seu pensamento de modo claro, coe­
rente e objetivo, a forma gramatical vem com um mínimo de erros que não
chegam a invalidar a redação. E esse mínimo de erros seconsegue evitar
com um mínimo de “regrinhas” gramaticais.
Isoladamente, unidade e coerência têm características próprias, mas
quase sempre a falta de uma resulta da ausência da outra. A primeira —
já assinalamos — pode ser em grande parte conseguida graças ao expe­
diente do tópico frasal; a segunda depende principalmente de uma ordem
adequada e do emprego oportuno das partículas de transição (conjunções,
advérbios, locuções adverbiais, certas palavras denotativas e os pronomes).
268
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Em síntese, a unidade consiste em dizer um a coisa de cada vez, omitindo-se o que não é essencial ou não se relaciona com a idéia predom inan­
te no parágrafo. Evitem-se, portanto, digressões descabidas e indiquem-se
de maneira clara as relações entre a idéia principal e as secundárias.
A falta de unidade do parágrafo seguinte decorre da ausência de co­
nexão entre os seus dois períodos.
A ca b am d e c h e g a r a C uba reforços m ilita re s d a U n ião S o v iética p a ra
o reg im e c o m u n ista d e F idel C astro. A co n d e co raç ão d e “C h e” G u ev ara, u m
d o s c o lab o rad o res castristas, pelo ex -p resid en te Jâ n io Q u ad ro s, p o r afro n to sa ,
e s c a n d a liz o u a o p in iã o p u blica e c o n trib u iu p a ra a s u a re n ú n c ia .
(R ed ação d e a lu n o )
Pergunta-se: qual é a idéia principal desse parágrafo? A chegada de
reforços, a condecoração, o escândalo da opinião pública ou a renúncia do
presidente? Se é a chegada de reforços, que relação há — ou mostrou seu
autor haver — entre esse fato e os restantes? Há, sem dúvida, um a rela­
ção implícita, histórica, ocasional, entre as três personagens referidas, mas
não entre suas ações indicadas no trecho. Falta, pois, ao parágrafo qual­
quer traço de unidade, coerência e ênfase. Para consegui-lo, seria necessá­
rio dar-lhe um a nova estrutura. Uma das versões possíveis seria esta:
A cabam d e c h e g a r a C u b a refo rço s m ilita re s d a U n ião S oviética p ara
o reg im e c o m u n ista d e F idel C astro. Pois foi a u m dos c o la b o ra d o re s c a stris­
ta s — “C h e ” G uevara — q u e o ex -P re sid e n te J â n io Q uaclros co n d e co ro u , es­
c a n d a liz a n d o a o p in iã o p ú blica e c o n trib u in d o p a ra a s u a p ró p ria re n ú n c ia.
A partícula de transição “pois” (conjunção conclusiva) e a expletiva
“foi... que” já denunciam certa relação entre a chegada de reforços e o que
se segue. Esse “pois” indica vestígios de um silogismo incompleto (ver 4.
Com., 1.5.2 — “Método dedutivo”), cuja premissa m aior está implícita. O
raciocínio que teria levado a essa estrutura deve ter sido mais ou menos o
seguinte:
A cabam d e ch eg ar a Cuba reforços m ilitares d a U níão Soviética. Isso
nos lev a a a d m itir q ue o reg im e de Fidel C astro é co m u n ista. O ra, os co m u ­
n istas n ã o d ev em se r cond eco rad o s sem q ue se esca n d aliz e p a rte d a o p in ião
p ública d e país n ão com unista. Pois esse escâ n d alo p ro v o co u -o a co n d eco ra­
ção d e “C he" G uevara pelo ex -p resid en te Jâ n io Q u ad ro s, escâ n d alo q u e foi,
p ro v av e lm en te, um a d a s causas d a su a renúncia.
Note-se, porém, que na versão proposta a idéia principal é “condeco­
rar”; portanto, a “chegada de reforços”, sob a forma de tópico frasal, ilude o
leitor, que supõe ver aí a idéia predominante do parágrafo. Sugere-se então
nova estrutura, de forma que as idéias secundárias assumam feição gramati­
cal mais adequada: oração subordinada ou adjunto adverbial:
C om a chegí
c o m u n ista d e Fidel
d e n te Jâ n io Q u ad re
cia — to rn a -se aind
Sob a forma de í
ser um a idéia secundári
oração principal (“a con
ceira idéia desse parági
ção de subalternidade s»
Assim, nesta últir
denciadas as três princij
bém do período):
a) unidade: um a só idéi
b) coerência: relação (n
nante e as secundári
c) ênfase: a idéia prede
ção principal mas tai
fim ou próximo ao fi
O seguinte trecho
D izer q u e vi;
ab su rd o . Im ed iatam
a id a d e M éd ia, q u a
p en o sa.
Ora, se dizer que
bentende-se: na realidai
te), como se explica a
dia) que prova justam e
mento deveria ser feito
D izer
a b s u rd o , poi
d e s d e tra n s
d e s e atra ç õ
As facilidades, a <
tempos modernos são it
hoje em dia não é , coi
triste”.
_
.....
J
U F P E Biblioteca Cenír-
O t h o n
M.
G arc ia
♦
269
C om a c h e g a d a a C uba d e refo rço s m ilita re s d a URSS p a ra o reg im e
c o m u n ista d e Fidel C astro, a c o n d e c o ra ç ã o d e “C h e” G u ev a ra p elo ex -p resi­
d e n te Jâ n io Q u a d ro s — g esto q u e talvez te n h a co n trib u íd o p a ra s u a r e n ú n ­
cia — to rn a -se a in d a m ais a fro n to sa à o p in iã o pública.
Sob a forma de adjunto adverbial, a “chegada de reforços” passa a
ser um a idéia secundária, permitindo que se dê maior realce à contida na
oração principal (“a condecoração... torna-se ainda mais afrontosa”). A ter­
ceira idéia desse parágrafo, por ser tam bém irrelevante, assume uma fei­
ção de subalternidade sob a forma de aposto: “gesto que...”.
Assim, nesta última versão estão mais ou menos razoavelmente evi­
denciadas as três principais qualidades do parágrafo (que no caso são tam ­
bém do período):
a) unidade: um a só idéia predominante;
b)
coerência: relação (no caso, de conseqüência) entre essa idéia predom i­
nante e as secundárias;
c) ênfase: a idéia predom inante não apenas aparece sob a forma de ora­
ção principal mas também se coloca em posição de relevo, por estar no
fim ou próximo ao fim do período-parágrafo.
O seguinte trecho também peca pela falta de unidade e de coerência:
D izer q u e v ia jar é um p ra z e r triste, u m a a v e n tu ra p en o sa, p a re c e um
a b s u rd o . Im e d ia ta m e n te nos o co rrem as d ific u ld a d e s d e tra n sp o rte s d u r a n te
a Id a d e M édia, q u a n d o v ia jar d ev ia se r re a lm e n te u m a a v e n tu ra a rris c a d a e
p en o sa.
(R ed ação d e alu n o )
Ora, se dizer que viajar é um prazer triste parece um absurdo (su­
bentende-se: na realidade não é um absurdo, viajar não é um prazer tris­
te), como se explica a apresentação de um exemplo (viajar na Idade Mé­
dia) que prova justam ente o contrário? Falta de coerência. O desenvolvi­
m ento deveria ser feito com a apresentação de outro exemplo:
D izer q u e v ia ja r é um p ra z e r triste, u m a a v e n tu ra p en o sa, p a re c e um
ab s u rd o , pois im e d ia ta m e n te n o s o co rrem as in ú m e ra s e te n ta d o ra s fac ilid a­
d e s d e tra n sp o rte s, o co n fo rto d a s ac o m o d a çõ e s, en fim , to d a s as o p o rtu n id a ­
des e a tra ç õ e s q u e fazem d a itin e râ n c ia tu d o m e n o s um p ra z e r triste .
As facilidades, a comodidade, a rapidez dos meios de transporte nos
tempos modernos são idéias que só nos podem levar a adm itir que viajar
hoje em dia não é, como teria sido durante a Idade Média, um “prazer
triste”.
270
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
4.2 Como conseguir unidade
4.2.1 Use sempre que possível tópico frasal explícito
O parnasianism o exerceu tão drástica tirania com o seu ta n tã métrico,
que, no espírito subm etido a esse imperativo e po r ele deform ado, a fra se poética
era previam ente m odelada em dez ou doze sílabas. O céreb ro d e u m p arn a sian o
tornava-se, co m o passar d o tem po, se m elh an te a u m a lin o típ o . O n ú m e ro diri­
gia a idéia, atra in d o -a e reduzindo-lhe a extensão à calha m étrica p re d e te rm i­
n ad a. O riginou-se disto u m antagonism o, em razão d o q u al alguns p o etas só
escreviam facilm ente em verso. R aim undo C orreia, no Brasil, e C esário Verde,
e m Portugal, eram desses “albatrozes” que, em bora n ão possuíssem gran d es
asas, tinham dificuldade “d e m arch ar” no chão vu lg ar d a prosa...
(E u g ên io G om es, Visões e revisões„ p. 2 3 5 )
A unidade desse parágrafo resulta, principalmente, da declaração ini­
cial contida no tópico (primeiro período): os detalhes e exemplos incluídos no
desenvolvimento sempre se reportam à drástica tirania do tantã métrico no
parnasianismo. Não ocorre nenhuma digressão impertinente, nenhum porme­
nor dispensável.
O tópico frasal, como já vimos, não precisa vir obrigatoriamente no iní­
cio do parágrafo, mas o escritor inexperiente muito lucraria em assim fazer até
adquirir maior desembaraço. Há autores (como Xavier Marques, por exemplo,
nos seus excelentes Ensaios, Publicações da A. B. L., Rio, 1941, 2 vols.) que
adotam esse critério quase que sistematicamente, o resultado é sempre um pa­
rágrafo uno, claro, coerente, objetivo, digno de imitar:
O inconsciente da história vem dirigindo a ativ id ad e dos povos, d es d e as
m ais antigas civilizações, p ara os labores pacíficos q u e co n stro em a econom ia, o
bem -estar, a felicidade coletiva (tópico frasal). Essa ativ id ad e, po rém , n ão se
lim itaria a satisfazer necessidades físicas. N em só d e pão vive o hom em . O seu
d estino é a sce n d er d a m aterialidade à mais alta esp iritu alid ad e, ascen d er pela
fé, q ue lhe revela a presença do Criador, pela ciência, q u e lhe d esv en d a os se­
g redos d a n a tu re z a , pela cultura das letras e d a s artes que lhe am en izam , com
a do çu ra d a s em oções estéticas, a asp ereza d a luta pela existência.
(Ensaios, vol. I, p. 8 7 )
4.2.2 Evite pormenores impertinentes, acumulações e redundâncias
O assassínio do P residente Kcnnedy, naquela triste tarde de novem bro,
quando percorria a cidade de Dallas, aclamado por num erosa m ultidão, cercado
pela sim patia do povo do grande Estado do Texas, terra natal, aliás, do seu suces­
sor, o Presidente Johnson, chocou a h u m a n id ad e inteira n ã o só pelo im pacto
em ocional provocado pelo sacrifício do jovem estadista am ericano, tão cedo rouba­
do à vida, m as tam b ém p o r um a espécie de se n tim en to d e culpa coletiva, que
nos fa zia , p o r assim dizei; como que responsáveis por esse crim e estúpido, q u e a
H istória, sem dúvida, gravará corno o mais abom inável d o século.
(R ed ação d e a lu n o )
wuÊmw^mmmrr!
Temos aí um es
res em excesso (grifac
em nada reforçam ou
do Presidente Kenned]
— naquela triste tarde
cente, e a indicaçã
ficar a carga aferiv.
— quando percorria a
data, o nome da c
na memória do leit
— aclamado..., cercadt
pormenores óbvios,
estabelecer um con
— terra natal, aliás, dc
son nada tem a ver
— provocado pelo saa
fato referido no tre
— tão cedo roubado à \
— que nos fazia, por i
sentim ento era de i
que responsáveis; n
Eliminadas as e:
concisão e unidade:
O assassíni
n ã o só p e lo impa<
to d e cu lp a c o le th
m in á v el d o século.
O seguinte pará]
so secundário:
Q u a n d o eu
c já id o sa, q u e p a
d o s e n ta d a n u m a
no ssa casa, q u e fu
e ra lo u c o p o r futel
Parece que o pro
de a idade de quatro aj
peito da tia velha e viú
suburbana (“que ficava
retamente se relaciona
O thon
M.
G arcia
♦
271
Temos aí um exemplo de período prolixo e centopeico. Os porm eno­
res em excesso (grifados no texto) são, na sua maioria, dispensáveis, pois
em nada reforçam ou esclarecem a idéia-núcleo do período (“o assassínio
do Presidente Kennedy... chocou a hum anidade inteira...”):
— naquela triste tarde de novembro: o fato que se comenta era ainda re­
cente, e a indicação da data, portanto supérflua, em bora se possa ju sti­
ficar a carga afetiva de “triste tarde de novembro”;
— quando percorria a cidade de Dallas: também dispensável, pois, como a
data, o nome da cidade onde ocorreu o crime estava ainda muito vivo
na memória do leitor;
— aclamado..., cercado pela simpatia do povo do grande Estado do Texas:
pormenores óbvios, dadas as circunstâncias. Talvez se justifiquem só por
estabelecer um contraste emotivo com o assassínio;
— terra natal, aliás, do seu sucessor, o Presidente Johnson: o Presidente John­
son nada tem a ver com o crime nem com o comentário que dele se faz;
— provocado pelo sacrifício do jovem estadista americano: nenhum outro
fato referido no trecho poderia ter provocado o impacto emocional;
— tão cedo roubado à vida: clichê ou lugar-comum que não diz nada de novo;
— que nos fazia, por assim dizer, responsáveis por esse crime estúpido: se o
sentim ento era de culpa coletiva, é claro que todos nos sentíamos como
que responsáveis; redundância.
Eliminadas as excrescências e redundâncias, o período ganharia em
concisão e unidade:
O assassín io d o P re sid e n te K en n ed y ch o co u a h u m a n id a d e in teira,
n ão só p elo im p a cto em o cio n al m as ta m b é m p o r u m a esp écie d e s e n tim e n ­
to d e cu lp a coletiva p o r esse crim e q u e a H istó ria g ra v a rá co m o o m ais a b o ­
m in áv el d o século.
O seguinte parágrafo revela os moldes habituais de redação no cur­
so secundário:
Q u a n d o eu tin h a q u a tro a n o s d e id a d e e m o rav a com u m a tia viúva
e já idosa, q u e p assav a a m a io r p a r te d o d ia a c a ric ia n d o u n i g a ta rrã o p e lu ­
d o s e n ta d a n u m a v elh a e ra n g e n te c a d e ira d e b alan ço , n a sa la d e ja n ta r d a
n o ssa casa, q u e ficava nos su b ú rb io s, p ró x im a ao H o sp ital S ão S eb astiã o , já
e r a louco p o r futebol.
Parece que o propósito do autor era dizer que gostava de futebol des­
de a idade de quatro anos. Então, para que alongar-se em pormenores a res­
peito da tia velha e viúva (“que passava a maior parte do dia...”) e da casa
suburbana (“que ficava próxima ao Hospital...”), pormenores que nem indi­
retam ente se relacionam com a preferência do autor por aquele esporte?
Fale-se da tia em outro parágrafo ou pelo menos em outro período. Com a
eliminação dessas excrescências, o trecho ganharia não apenas unidade mas
tam bém maior clareza, por mais se aproximarem a prótase e a apódose:
Q u a n d o e u tin h a q u a tro an o s e m o rav a com u m a tia viúva e idosa,
n u m a c a sin h a d o s su b ú rb io s, já e ra louco p o r fu teb o l.
4.2.3 Frases entrecortadas (ver 1. Fr., 2.3) freqüentemente
prejudicam a unidade do parágrafo; selecione as mais importantes
e transforme-as em orações principais de períodos menos curtos
O r ig in a l
R e v is ã o
S aí d e casa h o je d e m a n h ã m u ito
ce d o . E stava ch o v e n d o . Eu tin h a p e r ­
d id o o g u a rd a -c h u v a . O ô n ib u s cu s­
to u a chegar. Eu fiquei to d o m o lh ad o .
A p an h e i u m b ru to resfriado.
Q u an d o sa í d e casa h o je d e m a n h ã
m uito cedo, estav a ch o v en d o . C om o ti­
nha p erd id o o g u ard a -c h u v a e o ô n i­
bus custasse a chegar, fiquei to d o m o­
lhad o e ap a n h ei u m b ru to resfriado.
As três idéias mais importantes são estar chovendo, ficar todo molha­
do e apanhar um resfriado: daí, a sua forma de orações independentes.
Com essa nova estrutura, ganha o parágrafo maior unidade e coesão, em ­
bora a prim eira versão seja perfeitam ente aceitável como forma de expres­
são em língua falada.
4.2.4 Ponha em parágrafos diferentes idéias igualmente
relevantes, relacionando-as por meio de expressões
adequadas à transição
O Brasil d e hoje em penha-se, com in ten so esforço, n a ta re fa d e v en cer
o seu su b d e sen v o lv im en to crônico. M uitos obstáculos, c o n tu d o , se o p õ e m a
esse pro p ó sito . P roblem as inadiáveis, d e im po rtân cia fu n d a m e n ta l, im p ed em o
p rogresso d o país. O crescim ento in d u strial e a ex p lo ra çã o d e novas fontes d e
riq u e z a e s tã o a exigir um a elite d e técnicos cap azes d e re a lm e n te ac io n a r o
ap ro v e itam en to de nossas potencialidades econôm icas em benefício d o p ro g res­
so nacional. As universidades vêm falhando la m en tav e lm en te em virtu d e d a sua
in c ap a cid a d e de p ro v er a form ação d e técnicos em alto nível. Seus currículos
d esatu a liz ad o s, a p re c a rie d a d e dos laboratórios, a au sên c ia d o esp írito d e p e s­
quisa, o d e s a m p a ro das au to rid ad es, q ue se viciaram n a ro tin a b u ro crática, e
o u tro s fato res c o n stitu e m óbices ao p rep a ro d e p rofissionais capazes.
formar. O último períodc
sas universidades. São e
num só parágrafo, o aui
mas mas também deixo'
elas, o que seria fácil o
mento industrial”, e um;
com a qual marcaria o i
cos e a incapacidade d
versão do trecho, com li
O Brasil d e 1
ce r o seu su b d e se ir
s e n ta d o s p o r p ro b le
esse p ro p ó sito , dific
O ra, o cresc
q u e z a , com q u e no
e lite d e técn ico s ca
p o te n c ia lid a d e s ecoí
d o la m e n ta v e lm e n u
res, tais com o c u rr
sê n c ia d o esp írito d
Eliminadas as red
as duas idéias mais im
m ento e a necessidade i
dições de formar.
4.2.5 0 desenvoi
fragmentar-se et
D iversos fat<
e s tã o v erifican d o ní
O rád io é u i
com e s tra d a s e veíc
O rád io é u t
g am -se n o tícias d e
les, n o tícias d e a n h
O cin em a, ig
vila te m o seu p e q i
N as cid ad es,
(R ed ação d e a lu n o )
A idéia-núcleo dos três primeiros períodos é o em penho do Brasil em
vencer o seu subdesenvolvimento crônico; a dos dois seguintes, a necessida­
de de uma elite de técnicos que as universidades se revelam incapazes de
14 Na sua forma original, o ti
culpe o Autor a liberdade de
O thon
m
.
Garcia
♦
273
formar. O último período mostra mais detalhadamente o despreparo das nos­
sas universidades. São essas as três principais idéias do trecho; juntando-as
num só parágrafo, o autor não apenas reduziu a importância das duas últi­
mas mas também deixou de indicar, de maneira explícita, as relações entre
elas, o que seria fácil com uma simples partícula “ora”, antes de “o cresci­
mento industrial”, e uma conjunção adversativa antes de “as universidades”,
com a qual marcaria o contraste entre a necessidade de uma elite de técni­
cos e a incapacidade das nossas universidades para formá-los. A seguinte
versão do trecho, com ligeiras alterações, seria mais satisfatória:
O Brasil d e h o je e m p e n h a -se , com in te n so esforço, n a ta re fa d e v e n ­
c e r o seu su b d e sen v o lv im en to crô n ico . E n tre ta n to , m u ito s o b stá cu lo s, re p re ­
se n ta d o s p o r p ro b lem as in ad iáv eis, d e im p o rtâ n c ia fu n d a m e n ta l, se o p õ em a
esse p ro p ó sito , d ific u lta n d o o p ro g re sso d o País.
O ra, o cre scim en to in d u stria l e a ex p lo ra çã o d e n o v as fo n tes d e ri­
q u ez a, com q u e nos liv ra re m o s d o su b d e sen v o lv im en to , e s tã o a ex ig ir u m a
elite d e técn ico s ca p az es d c re a lm e n te a c io n a r o a p ro v e ita m e n to d e n o ssas
p o te n c ia lid a d e s econôm icas. No e n ta n to , as n o ssas u n iv e rsid a d e s v êm fa lh a n ­
d o la m e n ta v e lm e iu e n a su a m issão d e form á-los, em v irtu d e d e v ário s fa to ­
res, tais com o cu rrícu lo s d e s a tu a liz a d o s, p re c a rie d a d e d o s la b o ra tó rio s, a u ­
sê n cia d o esp írito d e p esq u isa e d e s a m p a ro d a s a u to rid a d e s.
Eliminadas as redundâncias, ficaram distribuídas em dois parágrafos
as duas idéias mais importantes: o em penho em vencer o subdesenvolvi­
mento e a necessidade de técnicos que as universidades não estão em con­
dições de formar.
4.2.5 0 desenvolvimento da mesma idéia-núcleo não deve
fragmentar-se em vários parágrafos
D iversos fato res têm sid o resp o n sáv eis p elas tra n sfo rm a ç õ e s q u e se
es tã o v erifican d o n a reg ião d e co lo n iza çã o estra n g e ira .
O rád io é um d eles; o c in e m a , o o u tro ; a facilid ad e d e tra n sp o rte s,
com e s tra d a s e veículos, ig u a lm e n te.
O rád io é u tiliza d o no m e io ru ra l e n as cid ad es, e a tra v é s d e le d iv u l­
g am -se notícias d e to d o s os tip o s, p ro p a g a n d a , tran sm issõ e s d e jo g o s e b a i­
les, n o tícias d e an iv ersário s, etc.
O cin em a , ig u a lm e n te , v ai p e n e tra n d o m esm o nos m eio s ru ra is; cad a
vila te m o seu p eq u e n o cin em a, o n d e h á p ro jeçõ es, u m a v ez p o r se m an a.
Nas cid ad es, o cin em a e s tá a b e rto to d o s os d ia s .14
(M. D iégues Jú n io r, Regiões culturais do Brasil, p. 3 6 7 )
14 Na sua forma original, o trecho corresponde, como deve, a um só parágrafo; que nos des­
culpe o Autor a liberdade de fragmentâ-lo para servir de ilustração.
274 ♦
Com unicação
em
P rosa
M oderna
O núcleo desses cinco pseudoparágrafos é um só: a declaração conti­
da no primeiro, que é, verdadeiramente, o tópico frasal, sendo os demais
apenas desenvolvimento dele. Fragmentada como está a idéia-núcleo (re­
lembramos, para evitar falso julgamento, o teor da nota do rodapé), perdese a noção de unidade; fica-se com a impressão de que o Autor enunciou
vários tópicos frasais mas não os desenvolveu.
É certo que, por motivos não relacionados com o desenvolvimento ló­
gico do parágrafo — propósito de ser mais claro ou de tornar a leitura mais
fácil — muitos autores, principalmente jornalistas, atomizam seus parágra­
fos, reduzindo-os a poucas linhas sem levar em conta a íntima relação entre
as idéias. Também a intenção didática pode justificar o desmembramento do
que deveria ser um parágrafo longo em vários curtos. É o que faz sistemati­
cam ente Antenor Nascentes, e não apenas nos seus livros didáticos. No tre­
cho abaixo transcrito, depois de se referir à influência francesa na cultura
brasileira a partir do século XVIII, prossegue o Autor:
E c o n tin u a a d o m in a r a F ra n ça in te le c tu a l e a rtístic a . S o m o s trib u tá ­
rios d a c u ltu ra fra n ce sa p o r in te rm é d io d o g ra n d e v eícu lo q u e é a lín g u a.
A in d a h o je n ã o são n u m e ro so s os q u e e n tre n ó s cu ltiv am o inglês e o
alem ã o .
L ínguas n ão latin a s, m u ito d ife re n te s d a n o ssa , só d e s p e rta m o in te ­
re sse d o s h o m e n s d e ciência.
O esp a n h o l e o ita lia n o , latin as e fáceis, n ã o serv em e n tre ta n to a
u m a c u ltu ra com a u n iv e rsa lid a d e d a fran cesa.
Os m iudinhe
E co rrem az
C ad a m iudir
Os m iudinho
E q u a n d o n<
O g ig a n te é
José de Alencar,
sobretudo em Ubirajara
tuídos por um e no m;
personagens — abusa d
cleo numa série de pari
Em outros casos
um critério pessoal arb
de injunções de um est
m ultuária do m odem isr
De qualquer forn
m ento da mesma idéte
(não é sua extensão qu<
organização ou planejar
pico frasal para outro si
Em conclusão: pa
grafo, deve o estudante
D aí e s ta situ a ç ã o p re d o m in a n te d a v elh a G ália.
U m a vez afeito s aos m o ld es franceses, n u n ca m ais d eix am o s d e s e ­
gui-los.
Lá v êm n a tu ra lista s após ro m ân tico s, m ais ta rd e p a rn a sia n o s , m o d e r­
n istas, etc.
(E studos filológicos, p. 16)
A idéia-núcleo de todo o trecho está contida no primeiro parágrafo,
e os seis restantes nada mais são do que o desenvolvimento dela. Numa
paragrafação com características menos pessoais e mais de acordo com os
nossos hábitos lingüísticos em língua escrita, teríamos aí matéria para ape­
nas um parágrafo, e não sete.
É verdade igualmente que a intenção do autor, a sua atitude em face
do tema, refletida num feitio de frase mais ou menos sentencioso, com tona­
lidade lírico-filosófTca, pode até mesmo aconselhar esse tipo de paragrafação
fragmentada. É o que fazem, entre outros modernos, Álvaro Moreira e Aní­
bal Machado:
a) dar atenção ao que
em tópico frasal;
b) não se afastar, por c
frasal;
c) evitar digressões irrel
damentação das idéi
nais, e não as que dc
mo de palavra-puxadigressões ser mais e
mento central, a que
fo, e não no seguinte
d) evitar a acumulação
cleo;
e) inter-relacionar as ft
conectivos de transiç
da qual depende tan
obter coerência”).
U F P E Biblioteca Centra l
O thon
M.
G arcia
♦
275
Os miudinhos fincam, fincam, refincam os alfinetes na pele do gigante.
E correm azafamados, fazendo combinações.
Cada miudinho com sua miudinha.
Os m iudinhos -niebehmgen cavatn a terra, cavam o n ariz e cavam n a vida.
E quando nada mais têm que cavar, beliscam o gigante.
O gigante é o inacreditável Outro, o indevido gigante.
(Aníbal Machado, Cadernos de João, p. 199)
José de Alencar, principalmente nos seus romances indianistas — e
sobretudo em Ubirajara, onde praticam ente todos os parágrafos são consti­
tuídos por um e no máximo dois períodos curtos, salvo algumas falas de
personagens — abusa desse processo de desenvolvimento de um a idéia-nú­
cleo numa série de parágrafos de extensão muito limitada.
Em outros casos e autores, a paragrafação fragm entada decorre de
um critério pessoal arbitrário — uma espécie de cacoete estilístico — ou
de injunções de um estilo de época, como aconteceu na fase inicial e tu­
m ultuaria do modernismo, tanto no Brasil quanto alhures.
De qualquer forma, ressalvados os casos particulares, o desenvolvi­
mento da mesma idéia-núcleo num a série de parágrafos breves ou não
(não é sua extensão que se condena) é freqüentem ente sintoma de falta de
organização ou planejamento, como se o autor estivesse pulando de um tó­
pico frasal para outro sem desenvolver suficientemente cada um deles.
Em conclusão: para conseguir unidade através da estrutura do pará­
grafo, deve o estudante:
a) dar atenção ao que é essencial, enunciando claramente a idéia-núcleo
em tópico frasal;
b) não se afastar, por descuido, da idéia predom inante expressa no tópico
frasal;
c) evitar digressões irrelevantes ou impertinentes, i.e., que não sirvam à fun­
damentação das idéias desenvolvidas. São cabíveis apenas as intencio­
nais, e não as que decorrem somente de associações de idéias num ludismo de palavra-puxa-palavra. Mas, de qualquer forma, nunca devem as
digressões ser mais extensas do que o próprio desenvolvimento do pensa­
mento central, a que o autor deve voltar logo, dentro do mesmo parágra­
fo, e não no seguinte;
d) evitar a acumulação de fatos ou pormenores que “abafem” a idéia-nú­
cleo;
e) inter-relacionar as frases ou estágios do desenvolvimento por meio de
conectivos de transição e palavras de referência adequados à coerência,
da qual depende também, em grande parte, a unidade (ver 4.4, “Como
obter coerência”).
4.3 Como conseguir ênfase
Em tópicos anteriores (1. Fr., 1.4.1 e 1.5.3), já nos referimos a al­
guns dos recursos de que dispõe a língua para dar realce a determ inada
idéia. Vejamos agora outros de maneira mais especificada.
se quisesse realçar “à
posição:
A su a imt
Se o propósito
4.3. / Ordem de colocação e ênfase
Como se sabe, a colocação das palavras na frase constitui um dos pro­
cessos mais comuns e mais eficazes para dar relevo às idéias. Todas as lín­
guas têm o seu sistema próprio de ordenar termos e orações dentro do perío­
do, mas em geral a disposição desses elementos está condicionada ao rumo
do raciocínio, à seqüencia lógica, à clareza e à ênfase. No que se refere ao
Português, a chamada ordem direta consiste, teoricamente pelo menos, em
antepor-se o sujeito ao verbo e este aos seus complementos essenciais. Mas a
própria gramática admite uma série de exceções, já que o “uso, a rapidez, a
concisão, o vigor, a harmonia do discurso, a impetuosidade das paixões e
dos sentimentos que salteiam o espírito na enunciação das idéias e muitas
vezes a clareza do pensamento e a perspicuidade do estilo, contrapondo-se a
essa ordem analítica ou ordinária [direta], obrigam a linguagem a recorrer
constantemente às inversões para com mais exação debuxar o mesmo pensa­
mento de que é ela o transunto fiel” (Ernesto Carneiro Ribeiro, Serões gra­
maticais, 2- ed., p. 853).
À figura de construção com que se designa a alteração da ordem di­
reta dão as gramáticas modernas o nome genérico de inversão; algumas
continuam, entretanto, a servir-se daquela nom enclatura consagrada pela
retórica dos velhos tempos: anástrofe, hipérbato, prolepse e sinquise, de dis­
tinção nem sempre fácil mas quase sempre inútil. O vernáculo inversão é
mais simples e mais claro.
Diz-se que há inversão quando qualquer term o está fora da ordem
direta, fora da sua posição normal ou habitual. A inversão pode dar à fra­
se mais vigor e mais energia, o que é o mesmo que dizer: mais ênfase, real­
ce ou relevo. Se, pela ordem direta, o objeto direto, o objeto indireto e o
predicativo se pospõem ao verbo, basta antepô-los para que eles, por ocu­
parem um a posição insólita, ganhem maior relevo. Confrontem-se as duas
versões seguintes:
O rdem d ireta; D eus fez o h o m e m à su a im a g em e se m elh an ça .
Fez D eus
Na seguinte fr;
reto “a mim”, porque
A m im t n
te m su c e d id o im
s á ria e insupríve
gas m ais clara, €
Há no períodc
seu modo, o sentido
ordem direta, a frase
saconselhável quanto
E n co n trar
pressiva e eleg ar
ca lo n g a, atu ra d
in su p rív el u m a lc
Nesta versão, z
vo “encontrar”, que,
acontecido”.
Na conhecida i
antologias sob o títul
mingúes, se construíc
dignação de que se
dado a outro o cargo
sobrecarga afetiva de
posição dos predicatr
— A rq u itt
m e tiro u esse en
g u n s o d izem .
O rdem inversa: O h o m e m , fê-lo D eus à su a im a g em e se m elh an ça .
É evidente que a posição incomum de homem no início da segunda
versão lhe dá maior realce do que o que lhe advém da colocação normal
na primeira. Pode-se conseguir o mesmo efeito com os demais termos. Se
Note-se ainda c
objeto indireto e p ra
pleonástico, repetindo
(o homem... fê-lo, a m
O thon
m
.
Garcia
♦
277
se quisesse realçar “à sua imagem e sem elhança”, bastaria, no caso, a anteposição:
À sua im agem e sem elh a n ça, fez D eus o h o in em .
Se o propósito é fazer sobressair a ação, inicie-se a frase com o verbo:
Fez D eus o h o m e m à su a im a g e m e se m elh an ça .
Na seguinte frase de Rui Barbosa, maior ênfase ganha o objeto indi­
reto “a mim”, porque, anteposto ao verbo, com ele se inicia o período:
A m im , n a m in h a lo n g a, a tu ra d a e c o n tín u a p rática d o escrever, me
te m su c e d id o in ú m e ra s vezes, d e p o is d e c o n s id e ra r p o r m u ito te m p o n ec es­
s á ria e in su p rív e l u m a lo cu ção n o v a, e n c o n tra r v e rtid a em ex p re ssõ es a n ti­
gas m ais clara, expressiva e e le g a n te m e n te a m e sm a id éia.
Há no período
seu modo, o sentido
ordem direta, a frase
saconselhável quanto
outras inversões, que vão ressaltando, cada um a a
das expressões ou termos em que incidem. Posta na
assumiria feição menos satisfatória, e até mesmo deà posição do último adjunto adverbial:
E n c o n tra r a m e sm a idéia v e rtid a em ex p ressõ es an tig as m ais clara, ex ­
pressiva e e le g a n te m e n te tem -m e ac o n te cid o in ú m e ras vezes n a m in h a p rá ti­
ca lon g a, a tu ra d a e co n tín u a d o escrev er d ep o is d e c o n sid e ra r n ecessária e
insuprível u m a locução nova p o r m u ito tem po.
Nesta versão, até onde for aceitável, a m aior ênfase está no infiniti­
vo “encontrar”, que, com seu complemento, constitui o sujeito de “tem-me
acontecido”.
Na conhecida narrativa de Alexandre Herculano, transcrita em várias
antologias sob o título de “O rei e o arquiteto”, a resposta de Afonso Domingues, se construída em ordem direta, não chegaria a revelar toda a in­
dignação de que se sentiu possuído o velho arquiteto cego por ter o rei
dado a outro o cargo de mestre-de-obras do mosteiro de Santa Maria. Essa
sobrecarga afetiva decorre em grande parte da ênfase resultante da anteposição dos predicativos “arquiteto” e “sabedor”.
— Arquiteto d o m o steiro d e S a n ta M aria, já o n ão so u ; Vossa M ercê
m e tiro u esse en c arg o ; sabedor n u n c a o fui, p elo m en o s assim o crê em e al­
g u n s o dizem .
Note-se ainda que, quando se verifica a anteposição do objeto direto,
objeto indireto e predicativo, é muito comum dar-se à oração um torneio
pleonástico, repetindo-se esses termos nos pronomes átonos correspondentes
(o homem... fê-lo, a mim... me tem acontecido, arquiteto... já o não sou).
278
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
m o d e r n a
Esse processo de iniciar orações, principalmente curtas, com o termo
a que se quer dar maior ênfase, era comum no latim. Em Alexander vicit
Darium, o que se salienta é a personalidade de Alexandre (sujeito); em Darhun Alexander vicit, ressalta-se o sentido de Dario (objeto direto). Mas se é
a ação de vencer, se é a vitória propriamente que se deseja pôr em primei­
ro plano, a frase assume outra feição: Vicit Dariam Alexander Essa liberda­
de de colocação só é possível, entretanto, nas línguas de declinações, como
o latim e o grego. O português se vê até certo ponto tolhido, mas ainda as­
sim dispõe de recursos bem numerosos, como veremos a seguir.
Em tese, todos os termos da oração podem ser deslocados para ga­
n h ar m aior realce (e também por questão de clareza, ritm o e eufonia). Ao
tratarm os do parágrafo de narração (3.2), demos como exemplo um tópi­
co de reportagem policial em que a ênfase incide na circunstância de cau­
sa (porque), expressa como está no princípio do período. Variemos essa po­
sição e consideremos os matizes enfáticos daí resultantes:
a) ê n fa se n o “q u e m ” re fe re n te ao p ro tag o n ista:
Pedro da Silva, pedreiro, d e trin ta anos, resid en te na R ua Xavier, 25, Penha,
m ato u o n tem , em Vigário Geral, seu colega Jo aq u im d e Oliveira, com um a
facada n o coração, porque este n ão lhe quis p ag a r u m a g arrafa d e cerveja.
b) ên fa se n o “q u e m ” re fe re n te ao a n ta g o n ista :
Jo a q u im de Oliveira foi a ssassin ad o o n te m , em V igário G eral, com u m a
fac ad a n o co ra ção , d a d a po r seu colega P edro d a Silva, p o r se te r n e g a ­
d o a p a g a r-lh e u m a g arra fa d e cerveja.
c)
ê n fa se n o “c o m o ” (o u n o “com q u ê ”):
Com u m a faca d a no coração, Pedro d a Silva m a to u o n te m seu co lega J o a ­
quim d e O liveira porq u e... etc.
d ) ê n fa se n o “o n d e ” :
Em Vigário G eral, P edro d a Silva m a to u o n te m seu co leg a ... etc.
e) ê n fa se n o “q u an d o ":
O ntem , em V igário G eral, P ed ro d a Silva m a to u ... etc.
São frases típicas do estilo jornalístico, em que a procura da ênfase
através da posição das palavras no texto, nos títulos ou manchetes, consti­
tui preocupação constante de redatores e repórteres.
Vejamos outro exemplo, sugerido também pelo noticiário jornalísti­
co: a legenda que acompanha um clichê onde aparece, digamos, o Sr. Joa­
quim Carapuça recebendo das mõas do Reitor da Universidade de Jacutin­
ga o seu diploma de bacharel em Direito. Nesse caso, a ênfase não resulta
apenas da posição mas também da função do termo, a qual por sua vez
decorre do ponto de vista em que se coloca o autor da frase com o propó­
sito de focalizar mais de perto determ inado fato ou personagem . Os dize­
res da legenda podem ser mais ou menos os seguintes:
a) O Sr. Jo a q u im C a ra p u ç a rec eb e d as m ãos do M ag n ífico R eitor d a U n iv er­
sid a d e d e J a c u tin g a o se u d ip lo m a d e b a c h a re l em D ireito.
nsta seria a fonr
cabeça a frase, funcion
Mas talvez não agrada
maneira:
b) O M agnífico R<
rei em D ireito.
Se, entretanto, ;
‘promoção”, a ordem c
c)
Na U niversidad
tu ra d o s seu s t
v id ad e.
Se o Sr. J. Carap
veria de querer se acr
“quando o Sr. J. C. rec
dade do período, essa t
que tem Universidade c
Os adjuntos adno
vas vêm, em geral, pos
realce pode justificar a
adjetivos, em certos cas
tos, e abstrata, quando
pobre e pobre homem, /
vos (demonstrativos, pa
regra, antes do nome, j
lísticas de ordem enfátic
Quanto aos adju
pospostos ou antepostos
harmonia da frase. Se }
conveniente distribuí-los
verbo. A verdade, entret
ro à posição desse term<
ele ou eles a oração, se
ções que possam tom ar
Observe-se a gra
tar” nas diferentes pos
período:
15 Consulte-se, a propósito.
JUCÁ (filho), Cândido, O fatc
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
279
Esta seria a forma preferida pelo J. Carapuça, pois nela seu nome en­
cabeça a frase, funcionando ainda como sujeito do único verbo da legenda.
Mas talvez não agradasse ao Reitor, que preferiria vê-la redigida de outra
maneira:
b ) O M agnífico R eitor e n tre g a ao Sr. J. C a ra p u ça o se u d ip lo m a d e b a c h a ­
rel e m D ireito.
Se, entretanto, a Universidade de Jacutinga desejasse fazer a sua
“promoção”, a ordem dos termos e estrutura da frase seriam diversas:
c) N a U n iv ersid a d e d e J a c u tin g a re a ü z o u -se o n te m a so le n id a d e d e fo rm a ­
tu ra d o s se u s b ac h aréis e m D ireito . A fo to fixa um m o m e n to d essa festi­
v id a d e.
Se o Sr. J. Carapuça tivesse interferência na redação da legenda, ha­
veria de querer se acrescentasse a “dessa festividade”, a oração temporal
“quando o Sr. J. C. recebia o seu diploma”. Posta assim na outra extremi­
dade do período, essa oração daria ao nome de J. C. ênfase proporcional à
que tem Universidade de Jacutinga.
Os adjuntos adnominais representados por adjetivos ou locuções adjeti­
vas vêm, em geral, pospostos ao nome que modificam; mas aqui também o
realce pode justificar a sua anteposição. E sabido, por outro lado, que certos
adjetivos, em certos casos, exprimem caracterização concreta quando pospos­
tos, e abstrata, quando antepostos: homem gi-ande e grande homem, homem
pobre e pobre homem, período simples e simples período. Os pronomes-adjetivos (demonstrativos, possessivos, indefinidos) e também os numerais vêm, de
regra, antes do nome, pospondo-se em casos excepcionais, por sutilezas esti­
lísticas de ordem enfática.
Quanto aos adjuntos adverbiais, é de norma pô-los junto ao verbo,
pospostos ou antepostos conforme a seqüência lógica, a clareza, a ênfase e a
harmonia da frase. Se houver mais de um e a seqüência lógica o permitir, é
conveniente distribuí-los, pondo um ou uns antes e outro ou outros depois do
verbo. A verdade, entretanto, é que não existe nenhum princípio rígido quan­
to à posição desse termo acessório, embora seja recomendável: 1-, iniciar com
ele ou eles a oração, se se pretende dar-lhes maior realce; 2Q, evitar desloca­
ções que possam tornar a frase ambígua ou obscura.15
Observe-se a gradação enfática do adjunto adverbial “antes do ja n ­
tar” nas diferentes posições que ocupa nas seguintes versões do mesmo
período:
ls Consulte-se, a propósito, SAID ALI, M. Gramática s c a m c tó ric i, p. 198 e seg., e também
JUCÁ (filho), Cândido, O fa to r psicológico na evolução sintática , p. 164-5.
280
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
a ) Eu, antes do ja n ta r, co stu m o ler o jornal.
b ) A ntes do jantar., co stu m o le r o jo rn a l.
Confronte-se essa \
que se pretendesse dar u
c) C o stu m o le r o jo rn a l a n tes do jantai:
d ) C o stu m o ler, antes do ja n ta r, o jo rn a l.
E u m político
g ra n d e am ig o .
e) C o stu m o , a n te s do ja n ta r ; ler o jo rn a l.
Parece que a melhor versão é aquela em que o adjunto ganha maior
relevo, colocado como está no princípio da oração. As intercalações nas ver­
sões a), d) e e) aparentem ente interrompem a cadência da frase, sobretudo
em d), onde os dois grupos de força — costumo ler e antes do jantar — têm
um a extensão e um a cadência diversas do terceiro — o jornal O período se
tornaria mais harmonioso se se fizessem isócronos ou similicadentes os três
grupos de força, isto é, os três estágios rítmicos da frase, alongando-se o ter­
ceiro com um adjunto adequado:
C o stu m o ler, a n te s d o ja n ta r, o jo rn a l da tarde.
em que cada grupo passaria a ter quase o mesmo número de sílabas (4, 5
e 6, respectivam ente).
Conviria indagar se a segunda versão (b) é mais enfática por ser mais
comum na corrente da fala ou se é mais comum por ser mais enfática. É
possível que, ainda aqui, se aplique aquela norma de estruturação do perío­
do a que nos referimos em 1. Fr. — 1.5: a prótase de antes do jantar deixa
em suspenso o sentido do resto da frase, sentido que só se vai completar
com o termo jornal. Na terceira versão, o adjunto, elemento acessório da
frase, está em posição de destaque mais adequada a termos essenciais (su­
jeito, verbo ou complementos). Desfeita a prótase, o sentido principal da
oração se completa no objeto direto o jornal, antes, portanto, do fim. As­
sim, a posição que ocupa é a que, de preferência, deveria caber a um ter­
mo essencial, ou, no caso do período composto, à oração principal.
Vejamos um caso em que a posição de termos em fim de oração pode
contribuir para a ênfase. Admitamos que se queira fazer um a declaração a
respeito de Joaquim Carapuça, lançando-se mão dos seguintes elementos:
a) p olítico d e g ra n d e fu tu ro ;
b) m e u m e lh o r am igo;
c) p a i d a E steia.
Na primeira versão, o que se deseja é realçar a qualidade de “político
de grande futuro”:
Como o sentido ir
logo de saída, os termos ;
meu melhor amigo), ao in
que o entendimento do e
Na versão seguintí
condição de “pai da Este
O m e u m elho
o p a i da Esteia.
A terceira variant
Lm eu melhor amigo”:
J. C a ra p u ça ,
m elh o r am igo.
Note-se nas três ve
termos essenciais da oraçi
tos); 2° um dos termos e
cou-se para o fim da fras
pio de Alexandre Hercula
Há um a infinidadt
guintes, como decorrênri
a) Só e le g a n h o u
d u as sem anas.
b) Ele só g a n h o u
d u a s se m a n a s .
c) E le g a n h o u só
du as sem an as.
d ) E le g a n h o u m il
d u as sem an as.
e ) E le g a n h o u m il
d u a s se m a n a s .
0 E le g a n h o u m il
d u as sem anas.
O m e u m e lh o r am igo, Jo a q u im C a ra p u ça , pai d a E steia (o u “q u e é
p ai d a E ste ia”), é u m poKdco de grande fa tu r o .
g) Ele g a n h o u m il
d u as sem anas.
O t h o n
M.
G ar c ia
♦
2 8 1
Confronte-se essa estrutura com aquela que se iniciasse pelo term o a
que se pretendesse dar maior ênfase:
É um político de grande futuro o J. Carapuça, pai da Esteia e meu
grande amigo.
Como o sentido mais importante está completo na oração enunciada
logo de saída, os termos secundários ou acessórios (os apostos pai da Esteia e
meu melhor amigo), ao invés de se destacarem, tomam-se quase supérfluos, já
que o entendimento do essencial da comunicação deixa de depender deles.
Na versão seguinte, o que se ressalta em Joaquim Carapuça é a sua
condição de “pai da Esteia”:
O meu melhor amigo, Joaquim Carapuça, político de grande futuro, é
o pai da Esteia.
A terceira variante destacará em J. Carapuça a sua condição de
“meu melhor amigo”:
J. Carapuça, pai da Esteia e político de grande futuro, é o meu
melhor amigo.
Note-se nas três versões: l e, a idéia mais importante está expressa nos
termos essenciais da oração, e as secundárias, nos termos acessórios (os apos­
tos); 2Q, um dos termos essenciais dessa oração (no caso, o predicativo) deslo­
cou-se para o fim da frase, cuja estrutura, mais complexa do que a do exem­
plo de Alexandre Herculano, não aconselharia sua anteposição.
Há um a infinidade de matizes semânticos e enfáticos nas frases se­
guintes, como decorrência da posição da partícula “só”:
a) Só ele ganhou mil reais pela remoção
duas semanas.
b) Ele só ganhou mil reais pela remoção
duas semanas.
c) Ele ganhou só mil reais pela remoção
duas semanas.
d) Ele ganhou mil reais só pela remoção
duas semanas.
e) Ele ganhou mil reais pela remoção só
duas semanas.
0 Ele ganhou mil reais pela remoção do
duas semanas.
g) Ele ganhou mil reais pela remoção do
duas semanas.
do lixo acumulado durante
do lixo acumulado durante
do lixo acumulado durante
do lixo acumulado durante
do lixo acumulado durante
lixo só acumulado durante
lixo acumulado só durante
282
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
h ) Ele g a n h o u m il re a is pela rem oção cio lixo a c u m u la d o d u r a n te só d u a s se­
m anas.
i)
Ele g a n h o u m il re a is p e la re m o ç ã o d o lixo a c u m u la d o d u r a n te d u a s se ­
m a n a s só.
As nove posições diferentes da partícula “só” são perfeitamente cabí­
veis sem injúria à estrutura da língua. Poder-se-á preferir uma ou outra,
segundo se deseje realçar esta ou aquela idéia, do que resultará também
ligeira mudança de sentido:
a) ele a p e n a s e m ais n in g u é m g a n h o u m il re a is; o u a q u a n tia q u e ele g a ­
n h o u foi m u ito con sid eráv el;
Ilid o cu ra o u
b ) ele p o d e ria te r g a n h o m ais; m e re cia m ais;
c) m ais o u m e n o s o m esm o se n tid o d e b);
Arranca o esta
d ) o tra b a lh o foi pouco p a ra os mil re a is q u e rec eb eu ;
e) n ão tin h a d e re m o v e r m ais n a d a : só o lixo;
f) a rem o ção n ão era d e iodo o lixo, m as ap e n a s d o a c u m u la d o d u ra n te as
d u as se m an a s;
g) , h ), i) tê m o m esm o se n tid o d e f).
É evidente que a liberdade de colocação encontra seus limites nas exi­
gências da clareza e da coerência, qualidades que devem sobrepor-se à da ên­
fase, quando não é possível conciliar as três na mesma frase.
Por vezes, a simples deslocação de um adjunto adverbial torna as
idéias obscuras ou incoerentes, como no seguinte período:
O p ro ta g o n is ta d a h istó ria d iz q u e n ão q u e r c a sa r n o prim eiro ca p ítu ­
lo, m as já c o n c o rd a em fazê-lo no quarto.
A má colocação de “no primeiro capítulo” e “no quarto (capítulo)”
dá à frase um sentido ambíguo e chistoso. Pelas mesmas razões, é igual­
m ente ambíguo e incoerente no seguinte trecho:
E stou p ro n to a d isc u tir com você, q u a n d o quiser, esse assu n to .
em que “esse assunto” não é, por certo, o complemento de “quiser”, mas
de “discutir”; nem mesmo as duas vírgulas que separam “quando quiser”
eliminam totalm ente a ambigüidade.
Casos como esses levam-nos a contrapor a regrinha da ênfase (“colo­
que em posição de destaque as palavras de maior relevância”) às da clare­
za e da coerência: aproxime tanio quanto possível termos ou orações que se
relacionem pelo sejuido. Da aplicação equilibrada dessas duas diretrizes po­
dem depender em grande parte as três qualidades primordiais da frase: a
clareza, a coerência e a ênfase.
4.3.2 Ordem gradativa
A gradação, recurso de ênfase tanto quanto propriam ente de coerên­
cia, consiste em dispor as idéias em ordem crescente ou decrescente de im ­
portância: uAndat corre, voa, se não perdes o trem" (crescente); “Uma pala­
vra, um gesto, um olhar bastava" (decrescente).
Alguns autores — como Vieira, Eça de Queirós e Rui Barbosa — p a­
recem deliciar-se no apelo a esses recursos típicos da oratória clássica. São
trechos antológicos os seguintes:
De Vieira:
T udo cu ra o tem p o , tu d o faz esquecer, tu d o g asta, tu d o digere, tu d o
acaba.
A rranca o e sta tu á rio u m a p ed ra dessas m o n ta n h a s, tosca, bruta, d u ra ,
inform e.
De Eça:
...é só relem brando, revivendo, ressofrendo as su a s d o re s q u e a A lm a se
corrige, se liberta, se aperfeiçoa, se torna m a is pró p ria pa ra D eus,
De Rui:
(O re g a to ) co rria m u rm u ro so e d e s c u id a d o ; e n c o n tro u o o b stá cu lo :
cresceu, afrontou-o, envofvew-o, cobriu-o e, afin al, o transpõe...
Numerosos modelos desse gênero de gradação encontram-se em
obras do século XVII, principalm ente na oratória de Vieira, de quem cita­
mos abaixo outro trecho também antológico, e dos mais conhecidos:
E a g u e rra a q u e le m o n stro q u e se s u s te n ta d a s faz e n d a s, d o sa n g u e ,
d a s vidas, e q u a n to m ais co m e e co n so m e ta n to m en o s se farta. É a g u e rra
a q u e la te m p e s ta d e te rre s tre q u e leva os cam p o s, as casas, as vilas, as c id a ­
des, os castelos, e taiv ez em u n i m o m e n to so rv e os rein o s e m o n a rq u ia s in ­
te ira s. É a g u e rra a q u e la c a la m id a d e co m p o sta d e to d a s as c a la m id a d e s, e m
q u e n ã o h á m al alg u m q u e ou n ã o se p a d e ç a ou n ão se te m a , n em b e m q u e
seja p ró p rio e se g u ro : o p ai n ã o te m se g u ro o filho; o rico n ã o te m se g u ra a
faz en d a; o p o b re n ã o te m se g u ro o seu su o r; o n o b re n ã o te m se g u ra a su a
h o n ra ; o eclesiástico n ão te m s e g u ra a im u n id a d e ; o relig io so n ão te m s e g u ­
ra a su a cela; e a té D eus, nos te m p lo s e nos sa crário s, n ão e s tá seg u ro .
(S e rm ã o ... nos anos da R ainha D. M aria
Francisco Isabel de S a b ó ia )
Todo o parágrafo é constituído por uma série de gradações ostensi­
vas, a começar do primeiro período, onde os três substantivos — fazendas,
sangue e vidas — se enfileiram em ordem crescente de importância: a per­
da das fazendas (bens materiais) é menos lastimável do que a do sangue, e
a deste, menos do que a das vidas.
284
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Nas três definições metafóricas de guerra (É a guerra aquele mons­
tro..., aquela tempestade..., aquela calamidade) há outra gradação intensiva
quanto ao significado, ainda mais viva porque o Autor parte do concreto
para o abstrato. No segundo período, a enumeração iniciada por “campos” é
tam bém crescente quanto à intensidade: os campos valem menos do que as
casas, estas menos do que as vilas, as cidades e os castelos (“por natureza
mais próprios para sua defesa”); os reinos, menos do que as monarquias
(“compostos por vezes de vários reinos”). O mesmo sentido de progressão se
observa na série iniciada após os dois-pontos, passando do ambiente familiar
(o pai não tem seguro o filho) para o social (os ricos, os pobres, os eclesiás­
ticos, os religiosos) “até chegar ao universal e ultra-sensível” (Deus, nos tem ­
plos e nos sacrários).16
4.3.3 Outros meios de conseguir ênfase
4.3.3.1 Repetições intencionais
Se a repetição resultante da pobreza de vocabulário ou de falta de
imaginação para variar a estrutura da frase pode ser censurável, a repetição
intencional representa um dos recursos mais férteis de que dispõe a lingua­
gem para realçar as idéias:
Tudo se en c a d e ia , tudo se p ro lo n g a, tudo se c o n tin u a n o m u n d o ...
(O. Bilac)
Vieram os h o rro re s d a n te sc o s d a ilha d a s C obras. V ieram c e n a s trá g i­
cas d o Satélite. Vieram os escâ n d alo s m o n stru o so s d a c o rru p ç ã o a d m in is tra ti­
va. Vieram a s a fro n ta s in so len te s à so b e ra n ia d a ju stiç a . V ieram as d ila p id a ­
ções o rg ía c a s d o d in h e iro d a n a ç ã o (R. B arbosa).
Os clássicos, notadam ente os do período barroco, abusavam dessa fi­
gura, que a velha retórica se esmerava em esmiuçar em reduplicação (repe­
tição seguida), diácope (com intercalação de outras palavras), anáfora (re­
petição no início de cada frase ou verso), epanalepse (no meio), epístrofe
(no fim), simploce (no princípio e no fim), anadiplose (no fim de urna ora­
ção e no princípio da seguinte). Só mesmo parodiando a frase latina (O
têmpora, o mores!) para expressar nosso espanto diante dessa nom enclatu­
ra rebarbativa, com que até não faz muito tempo alguns mestres e gram á­
ticos ainda se deliciavam: Ó tempos, ó termosí (Nos tempos modernos, crí­
ticos, lingüistas, semiólogos deliciam-se com outros termos, igualmente rebarbativos. E a nova “retórica”.)
16 Esse parágrafo final de interpretação é quase paráfrase de irecho de um excelente livrinho de
F. Cosia Marques — Problemas de análise literária, Livraria Coimbra, Gonçalves, 1948, p. 107. O
texto está entre aspas, mas a ordem das idéias é do Autor citado.
Se à repetição se z
dação (ascendente e desc
turar-se de intensificaçõe*
M entira d e tu
M entira nas p ro m e ss
tira nos p ro g resso s. .
n as tra n sm u ta ç õ e s. Aí
coisas. M entira n o roí
M en tira nos p a rtid o s,
Note-se a superabu
Autor para realçar as idé
tira, as aliterações (protes
ecos (convicções, transmui
das três fases finais consri
“nos homens” até “nos bk
ses e o seu feitio entrecort
4.3.3.2 Pleonasmo;
Quando resulta de
das palavras, o pleonasm
gado com habilidade, res
gos, mais do que os moc
Rui Barbosa chegou a dei
(4.3.1) nos referimos a ui
jeto direto, do indireto e
mais raram ente, pode se
(Novos estudos): “Os medi
rente das inovações.” O <
vel fundamental, onde o
ro de exemplos do que a
4.3.3.3 Anacolutos
A interrupção
rum o do raciocínio, e
17 Consulte-se a propósito o a
estudos de língua portuguesa, p,
U F P E Biblioteca Centra l
O th o n
M.
G arcia
♦ 285
Se à repetição se aliam ainda outros artifícios de estilo como a gra­
dação (ascendente e descendente) e efeitos melódicos, a frase chega a sa­
turar-se de intensificações, como o seguinte exemplo de Rui Barbosa:
M entira d e tu d o , em tu d o e p o r tu d o (...) M entira nos p ro testo s.
M entira nas p ro m essas. M entira n o s p ro g ra m as. M entira n o s p ro jeto s. M en ­
tira nos pro g resso s. M entira n a s refo rm as. M entira n a s convicções. M entira
n a s tra n sm u ta ç õ e s. M entira n as so lu çõ es. M entira nos h o m e n s, n o s ato s, n a s
coisas. M entira no rosto, n a voz, na p o stu ra , no gesto, n a p alav ra, n a escrita.
M entira no s p artid o s, n a s coligações, n o s blocos.
Note-se a superabundância dos recursos oratórios de que se serve o
Autor para realçar as idéias: a repetição intencional da palavra-chave men­
tira, as aliterações (protestos, promessas, programas, projetos, progressos) os
ecos (convicções, transmutações, soluções), as gradações ascendentes (clímax)
das três fases finais constituídas pela enumeração dos adjuntos, a começar de
“nos homens” até “nos blocos”. Assinale-se ainda a estrutura nominal das fra­
ses e o seu feitio entrecortado ou asmático.
4.3.3.2 Pleonasmos intencionais
Quando resulta de descuidos ou de ignorância do verdadeiro sentido
das palavras, o pleonasmo constitui defeito abominável. Entretanto, em pre­
gado com habilidade, realça sobremaneira a expressão das idéias. Os anti­
gos, mais do que os modernos, recorriam a essa figura de construção, que
Rui Barbosa chegou a defender com certo ardor na Réplica. Ainda há pouco
(4.3.1) nos referimos a um dos casos mais comuns — o da repetição do ob­
jeto direto, do indireto e do predicativo. Também o sujeito, é verdade que
mais raram ente, pode ser pleonástico, como no exemplo de Mário Barreto
CNovos estados): “Os medíocres, esses deixam-se levar sem resistência na tor­
rente das inovações.” O assunto vem tratado em todas as gramáticas de ní­
vel fundamental, onde o leitor encontrará mais informações e maior núm e­
ro de exemplos do que os que julgamos sensato incluir neste tópico.17
4.3.3.3 Anacolutos
A interrupção da ordem lógica, como decorrência de um desvio no
rum o do raciocínio, é o que as gramáticas chamam de anacoluto. Esta figu­
17 Consulte-se a propósito o excelente estudo de Jesus Belo Galvão, O pleonasmo e mais dois
estudos de língua portuguesa , p. 17-56.
’
286
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
ra, estereotipada em construção do tipo “eu, quer-me parecer que não lhe
sobram razões", é usual tanto na língua do povo quanto na obra dos bons
escritores. Se é intencional, ou estereotipado como no exemplo supra, seu
valor enfático pode ser considerável. Na maioria dos casos, entretanto, cons­
titui um grave defeito de estilo, por traduzir desconhecimento de princípios
elementares de estrutura sintática, ou resultar de distrações que redundam
em fragmentos de frase muito comuns no estilo dos principiantes ou incau­
tos. O emprego eficaz e expressivo do anacoluto exige assim muito cuidado;
só o exemplo dos bons autores pode servir ao principiante como guia. Rui
Barbosa, na Réplica, Júlio Ribeiro, na sua Gramática, Latino Coelho, em
Elogios acadêmicos, fazem a louvação do anacoluto. Said Ali, 110 seu magis­
tral livrinho — Meios de expressão e alterações semânticas (Organização Si­
mões, 1961, 2- ed.) — dedica-lhe todo um capítulo, rico de lucidíssimas ex­
plicações e exemplos.
4.3.3.4 Interrupções intencionais
Interrom per bruscamente a frase, deixando-a em suspenso com o
propósito de cham ar a atenção para 0 que se segue, é outra m aneira de
enfatizar idéias. Machado de Assis é freqüentemente reticencioso, sobretudo
em Memórias póstumas de Brás Cabas:
Não entendo de política, disse eu depois de um instante; quanto à
noiva... deixe-me viver como um urso, que sou. (cap. XXVI)
Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um homenzarrão!
(7d., XXIX)
4.3.3.5 Parênteses de correção
Semelhante, pelos efeitos, a essas reticências intencionais, é 0 parên­
tese de correção, que permite se insinue no meio de uma frase uma idéia
nova, um a observação marginal curta, uma ressalva, ou retificação: “Vol­
tando-se depois o Senhor (não digo bem), não se voltando 0 Senhor...”
(A. Vieira). As vezes, essas frases ou fragmentos incidentes vêm entre reti­
cências, mas o seu efeito ou propósito é 0 mesmo: “Demais, a noiva e o
parlam ento são a mesma coisa... isto é, não... saberás depois..." (M. de As­
sis). (Rever 1. Fr., 2.8 — “Frases parentéticas”)
4.3.3.6 Paralelismo rítmico e sintático
Também, o paralelismo rítmico e sintático ou gramatical contribui para
a ênfase (rever 1. Fr., 1.4.5 e 1.4.5.1).
L
4.4 Como obter c
A coerência (do la
consiste em ordenar e ir
acordo com um plano d
obter-se ao mesmo temp<
m a” da composição. Os <
cionam quando suas parte
dade compósita. Podem-se
visão, mas o conjunto só
ajustadas e conectadas seg
gadores de futebol, onze
não se conjugarem as hal
ção dentro do campo, seg
tras palavras: assim como
não se entendam, que nã
por de excelentes idéias q
ra, harmoniosa e coerente
Em geral, escrevem
como nosso raciocínio ne
cações extremamente prej
conveniente, torna-se neo
do-as numa ordem adequt
por meio de conectivos e p
pois, os principais fatores
4.4.1 Ordem cron
No gênero narrativ
fatos. Não se deve, assim
tende conseguir 0 que, m
suspense, em que o inten
te ação provisória de certc
tros. São freqüentes os r<
onde deviam term inar —
tuindo-se depois, paulatir
tâncias) com a apresentai
gráfica se chama de flash
Se, entretanto, a n
da ordem cronológica se
cia. É verdade que, mesr
gica mas somente nas ce
exemplo, a de determina
A ordem dos fato:
são não visa aí, nem pot
O t h o n
m
.
G arc ia
♦
287
4.4 Como obter coerência
A coerência (do latim cohaerens, entis: o que está junto ou ligado)
consiste em ordenar e interligar as idéias de maneira clara e lógica e de
acordo com um plano definido. Sem coerência é praticamente impossível
obter-se ao mesmo tempo unidade e clareza. Ela é, por assim dizer, a “al­
ma” da composição. Os organismos vivos, os próprios mecanismos, só fu n ­
cionam quando suas partes componentes se ajustam, se integram num a uni­
dade compósita. Podem-se reunir as mil e uma peças de um aparelho de tele­
visão, mas o conjunto só funcionará quando todas estiverem adequadamente
ajustadas e conectadas segundo o esquema de montagem. Onze excelentes jo­
gadores de futebol, onze Pelés, pouco rendimento obterão numa partida, se
não se conjugarem as habilidades de cada um na sua posição e movimenta­
ção dentro do campo, segundo o plano do jogo e o objetivo do gol. Em ou­
tras palavras: assim como não basta encontrarem-se em campo onze Pelés que
não se entendam, que não se articulem, assim também não é suficiente dis­
por de excelentes idéias que não se ajustem, não se entrosem de maneira cla­
ra, harmoniosa e coerente. (Rever 1. Fr., 1.1.1.)
Em geral, escrevemos à medida que as idéias nos vão surgindo: mas,
como nosso raciocínio nem sempre é lógico, ocorrem lapsos, hiatos e deslo­
cações extremamente prejudiciais à coerência e à clareza. Para evitar esse in­
conveniente, torna-se necessário planejar o desenvolvimento das idéias, pon­
do-as numa ordem adequada ao propósito da comunicação e interligando-as
por meio de conectivos e partículas de transição. Ordem e mansição constituem,
pois, os principais fatores de coerência.
4.4.1 Ordem cronológica
No gênero narrativo, adota-se normalmente a ordem da sucessão dos
fatos. Não se deve, assim, relatar antes o que ocorre depois, salvo se se pre­
tende conseguir o que, nos romances policiais e seus similares, se chama de
suspense, em que o interesse da narrativa decorre muitas vezes da escamo­
teação provisória de certos incidentes ou episódios ou da antecipação de ou­
tros. São freqüentes os romances policiais ou de mistério que se iniciam por
onde deviam term inar — digamos, o relato sumário do crime —, reconsti­
tuindo -se depois, paulatinamente, os antecedentes (causas, motivos, circuns­
tâncias) com a apresentação dos personagens. É o que em técnica cinemato­
gráfica se chama de flmhback.
Se, entretanto, a narrativa é, legitimamente, histórica, essa subversão
da ordem cronológica se torna absurda, pois prejudica a clareza e a coerên­
cia. É verdade que, mesmo nesse caso, se pode subverter a ordem cronoló­
gica mas somente nas cenas isoladas de intenso teor dramático, como, por
exemplo, a de determ inada fase de uma batalha.
A ordem dos fatos históricos no seguinte trecho é caótica: a inver­
são não visa aí, nem poderia visar, ao suspense:
288
♦
C OMUNICAÇÃO
EM
PROSA
MODERNA
U m a das características d o progresso efetu ad o pela H u m an id ad e d o sé­
culo XIX é a facilidade crescente dos m eios d e com unicação. Em 1 8 3 0 funcio­
n ou a prim eira via férrea p ara tran sp o rte d e passageiros, com eçada em 1828. Já
e m 1807, F ulton navegava em barco a v ap o r n o H udson, de N ova York a
Albany. S tephenson criou a locom otiva p ro p ria m e n te d ita , evitan d o a ad erên cia
d a s ro d as em 1814. Em 1819, o Savannah, p eq u en o steamer, foi d e S av an n ah a
Liverpool, e d aí a S. Petersburgo. O vapor, cuja força P apin já o b serv ara n o sé­
culo anterior, chegou, graças a W att, Jouffroy, F ulton e Stephenson, a realiza­
ções adm iráveis: m áquinas, navegação e viação férrea.
O trecho deveria desdobrar-se em dois parágrafos: no primeiro, as
idéias gerais correspondentes aos períodos inicial e final; no segundo, as es­
pecificações representadas pela série de inventos e experiências, historiandose os fatos na ordem sugerida pelas datas (1807 —► 1814—►1819 -> 1 8 3 0 ),
ou dispondo-os, tam bém cronologicamente, em torno das duas idéias
principais — “barco a vapor” e “locomotiva”. É o que faz o Autor, Jônatas
Serrano:
G eneralizações
U m a d a s características do p ro g resso e fe tu a d o p ela
H u m an id ad e no século XIX é a facilid ad e crescen te
dos m eios d e com unicação. O vapor, cuja força Pa­
pin já observ ara no século anterior, ch eg o u graças a
W att, Jouffroy, F u lto n e S tep h en so n , a realizações
adm iráveis: m áq u in as, n av eg ação , v iação férrea.
mento de natural curi*
até as suas extremida*
dem laços de cetim. Dí
riverde), notando, por
nhorões e crótons”:
A c a m a est
d o d e la b irin to , q
d e u m a s e n h o ra d
sil; arre p a n h a v a m ra m o s d e flores i
m as m u ito vistoso,
ras fig u rav a u m a <
ram ro sas e b o g a r
o te to , u m im enso
A coerência des:
do fato de todos os po
pacial sugerida pela pi
tude natural, parece a
4.4.3 Ordem lói
Especificações em ordem
cronológica: “barco a
v ap o r” (1 8 0 7
1819),
“locom otiva” ( 1 8 1 4 —►
—► 1830).
F u lto n , em 1 807, n a v e g a v a em b arc o a v ap o r no
H u d so n , d e N ova York a Albany. Em 1 8 1 9 , o S a ­
vannah, p e q u e n o steam er, foi d e S a v a n n a h a L iver­
pool, e d a í a S. P ete rsb u rg o . S te p h e n so n crio u a lo ­
co m otiva p ro p ria m e n te d ita , e v ita n d o a ad e rê n c ia
d a s ro d as (1 8 1 4 ); m as só em 1 8 3 0 fu n c io n o u a
p rim e ira via férre a p a ra tra n s p o rte d e p assag eiro s,
c o m eç ad a em 1828.
(H istória da civilização, p. 2 1 5 )
4.4.2 Ordem espacial
Nas descrições é sempre aconselhável e, em certos casos, até mesmo
imperioso, seguir a ordem em que o objeto é observado, isto é, a ordem por
assim dizer imposta pelo ponto de vista: dos detalhes mais próximos para os
mais distantes, ou destes para aqueles; de dentro para fora, da direita para es­
querda, ou vice-versa, e assim por diante (rever Par., 3.1.2 e ver 8. Red. Téc.).
Note-se como Aluísio Azevedo descreve, em traços rápidos mas bas­
tante identificadores, um a cama preparada para recém-casados. O observa­
dor tem primeiro uma visão de conjunto, a de quem acaba de entrar no
quarto (“a cama estava im ponente”). Em seguida, como que num movi­
Na dissertação,
importantíssima a ord*
por um a generalizaçãc
dam entem (método d<
chegar à conclusão (ir
sa e efeito, pode-se co:
depois as conseqüênci
xar sempre para o fim
No parágrafo qc
inicia com um a genen
que a fundamentam , *
em que se amplia o se
A mocidad*
interessam. A aná
diatista da mocida
rais que tudo abn
concluírem com fa
vasta dose de sufi
preendimentos qu
avante. A mocida*
interessam ou peh
O t h o n
m ento de natural curiosidade, o olhar se
até as suas extremidades, onde encontra
dem laços de cetim. Daí passa para outros
riverde), notando, por fim, em posição de
nhorões e crótons":
M.
G ar c ia
♦
289
detém no cortinado, “descendo"
as quatro colunas de que pen­
detalhes contíguos (a colcha audestaque, o “imenso feixe de ti-
A c a m a esta v a im p o n e n te : d escia -lh e d a c ú p u la u m en o rm e c o rtin a ­
d o d e la b irin to , q u e a avó d o Luís, q u a n d o m o ça, re c e b e ra com o p re s e n te
d e u m a se n h o ra d o P orto, a cujo filho a m a m e n ta ra a n te s d e v ir p a ra o B ra­
sil; a rre p a n h a v a m -n o p elas ex tre m id a d es, à b a s e d a s q u a tro co lu n as, g ran d e s
ra m o s d e flores n a tu ra is, d o n d e p e n d ia m laços d e c e tim azu l, b a ra tin h o ,
m a s m u ito vistoso. P or cim a d a fam o sa c o lch a a u riv e rd e co m arm a s b rasilei­
ra s fig u rav a u m a ce rim o n io sa c o b e rtu ra d e re n d a s , so b re a q u a l se d e s fo lh a ­
r a m ro sas e b o g aris; e lá no alto , p o r fora d o so b rec éu , esp arra lh ac lo co n tra
ü te to , u m im e n so feixe d e tin h o rõ e s e cró to n s.
(O h o m e m , p. 17 7 )
A coerência desse parágrafo de descrição decorre, em grande parte,
do fato de todos os pormenores do quadro se encadearem num a ordem es­
pacial sugerida pela própria observação do objeto, feita por quem, em ati­
tude natural, parece contemplá-lo pela primeira vez.
4.4.3 Ordem lógica
Na dissertação, nas explanações didáticas, na exposição em geral, é
im portantíssim a a ordenação lógica das idéias. Pode-se iniciar o parágrafo
por um a generalização, acrescentando-se-ihe fatos ou detalhes que a fun­
dam entem (método dedutivo), ou partir dos detalhes (especificação) para
chegar à conclusão (método indutivo). Se se estabelecem relações de cau­
sa e efeito, pode-se começar pela apresentação da primeira, enum erando-se
depois as conseqüências, ou adotar processo inverso. Mas procure-se dei­
xar sem pre para o fim as idéias ou argum entos mais im portantes.
No parágrafo que damos a seguir, a ordem lógica é evidente. Ele se
inicia com um a generalização (tópico frasal), seguindo-se as especificações
que a fundam entam , e term ina por um a conclusão claram ente enunciada,
em que se amplia o sentido da declaração introdutória:
A m o cid ad e é essen c ialm en te g e n e ra liz a d o ra . Os casos p articu la re s n ão
in te ressa m . A análise, exigindo d e m o ra e p aciên cia, rep u g n a ao esp írito imed ia tista d a m ocidade, q u e n ão q u er apenas m as quer já. E q u e r em lin h as g e­
rais q u e tu d o ab ra n jam . Esse esp írito d e fácil g en e raliz aç ão leva os m oços a
co n c lu írem com facilidade e a ju lg a re m d e tu d o e d e to d o s com p recip itação e
v a s ta d o se d e suficiência. Tudo isso, po rém , é utilíssim o p ara os g ra n d e s e m ­
p re e n d im e n to s q u e exigem certa d o se d e te m e rid a d e p ara serem levados
av a n te . A m o cid ad e é n a tu ra lm e n te to ta litá ria e as soluções parciais n ão lhe
in te re ssa m ou pelo m enos n ão a satisfazem .
(A. A m o ro so L im a, Idade, sexo e tem p o , p. 72)
290
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
m o d e r n a
Todos os estágios do raciocínio do Autor se encadeiam coerentemen­
te, graças inclusive ao emprego de palavras de referência e transição (“esse
espírito”, “tudo isso”, “porém”), e a insistência nas idéias centrais, como a de
“mocidade generalizadora”, por exemplo, que vem desenvolvida sob varian­
tes adequadas: “os casos particulares não a interessam”, “a análise repugna
ao espírito imediatista”, “quer em linhas gerais”, “que tudo abranjam”, “espí­
rito de fácil generalização”, “concluírem com facilidade”, “julgarem com pre­
cipitação”. A de “querer”, que corre paralela à anterior, também se desdobra
em variantes: “querer em linhas gerais”, “dose de tem eridade”, “a mocidade
é totalitária”, “as soluções parciais não lhe interessam”. Além disso, o enlace
entre a introdução e a conclusão torna o parágrafo coerente.
Como se vê, pelo trecho citado, a ordem lógica depende em grande
parte do encadeam ento dos componentes da frase por meio da associação
de idéias. Mas não é ordem apenas verbal ou sintática, pois implica subs­
tancialmente um processo de raciocínio dedutivo ou indutivo.
Não se acredite, entretanto, que só escreverão de maneira coerente os
que tiverem compulsado manuais de lógica, embora se façam necessários
exercícios práticos capazes de disciplinar o raciocínio. Há, por exemplo, uma
ordem lógica de fatos ou eventos que está ao alcance até mesmo dos espíritos
menos privilegiados: a que se baseia nas relações de causa e efeito. Qualquer
indivíduo pode percebê-la pelo simples fato de estar vivendo. É a lógica dos
acontecimentos, que nos força a uma resposta, a um a reação ou comporta­
mento em determinado sentido, às vezes de maneira inevitável. A grande e
constante perplexidade do homem em todos os tempos advém da ignorân­
cia da causa dos fatos ou eventos que o rodeiam, que o assaltam, que lhe
condicionam o comportamento, mesmo no cotidiano e rotineiro. Descobrir a
causa, saber o “porquê, perceber a verdadeira relação entre o fato e sua(s)
conseqüência(s) é estabelecer uma ordem lógica.
Qualquer estudante de primeiro grau que tenha recebido algumas li­
ções elementares sobre fenômenos físicos estará em condições de explicar,
em ordem lógica, por que chove, por que entre as extremidades dos trilhos
das vias férreas fica sempre um pequeno intervalo ou por que um martelo,
atirado de janela de apartamento, chega ao solo mais depressa do que uma
folha de papel. Mostrada a relação de causa e efeito, ele estará habilitado a
redigir um parágrafo coerente e lógico. Em plano mais elevado, é o que se
faz nas pesquisas, nas dissertações, quer nas ciências quer na filosofia.
4.4.4 Partículas de transição e palavras de referência
A ordem de colocação é, assim, indispensável à coerência; mas não
é suficiente. Urge cuidar também da transição entre as idéias, da conexão
entre elas. Palavras desconexas são como fragmentos de um jarro de por­
celana. É preciso “colá-las”, interligá-las para se obter uma unidade de co­
municação eficaz.
O th o n
M.
G a rc ia
♦
291
É certo que na língua falada ou escrita, quando se traduzem situa­
ções simples, a inter-relação entre as idéias pode prescindir das partículas
conectivas mais comuns. Ao tratarmos da justaposição (1. Fr,, 1.4.2), mostra­
mos como o liame entre orações e períodos muitas vezes se faz implicita­
mente, sem a interferência desses conectivos: um a pausa adequada, uma en­
tonação de voz podem ser suficientes para interligar e inter-relacionar idéias:
E stou m u ito p reo c u p ad o . Há vários d ia s q u e n ão rec eb o n o tíc ia s de
m in h a filha.
Temos aí dois períodos justapostos. A pausa e o tom da voz mos­
tram que o segundo indica o motivo ou a explicação do primeiro. A ausên­
cia da conjunção explicativa (pois, porque) não impede que se perceba niti­
dam ente essa relação.
Mas, em situações complexas, a presença dos conectivos e locuções de
transição se tom a quase sempre indispensável para entrosar orações, perío­
dos e parágrafos.
Quanto mais civilizada é uma língua, quanto mais apta a veicular o ra­
ciocínio abstrato, tanto maior o acervo desses utensílios gramaticais. Alguns
são legítimos conectivos: os intei'vocabulares, como, ocasionalmente, as conjun­
ções aditivas e, sempre, todas as preposições; e os interoracionaú», como to­
das as conjunções, os pronomes relativos e os interrogativos indiretos. Outros
seriam mais apropriadamente chamados palavras de referência: os pronomes
em geral, certas partículas e, em determinadas situações, advérbios e locu­
ções adverbiais. (Em sentido mais amplo, até mesmo orações, períodos e pa­
rágrafos servem de transição no fluxo do pensamento.) A uns e outros englo­
bamos aqui na dupla designação de partículas de transição e palavras de refe­
rência, que, na sua maioria, têm valor anafórico (quando no texto relacionam
o que se diz ao que se disse) ou catafórico (quando relacionam o que se diz
ao que se vai dizer).
Tal é a importância desses elementos, que muitas vezes todo o sentido
de um a frase, parágrafo ou página inteira deles depende. Dois enunciados
soltos, isto é, duas orações independentes e desconexas como “Joaquim Cara­
puça costuma vir ao Rio” e (ele) “Ganha muito dinheiro em São Paulo” assu­
mem configuração muito diversa, conforme seja a conexão que entre eles se
estabeleça:
quando
e n q u a n to
J o a q u im C a ra p u ça co stu m a
v ir ao Rio
po rq u e
se
em b o ra
g a n h a m u ito d in h e iro em
São Paulo
(g a n h e )
Omitam-se as expressões de transição de um parágrafo ou de um a
série deles, e o sentido se desfigura:
tivem os d e a m p lia r as in stala çõ e s d o p ré d io .
fom os o b rig ad o s a a d m itir novos p ro fesso res.
a Lei de D iretrizes e Bases tornou possível a reorganização dos currículos.
o colégio p asso u p o r tran sfo rm aç õ es rad icais.
to d a s as ativ id a d es p ro sse g u ira m n o rm a lm e n te .
As linhas pontilhadas correspondem a partículas ou expressões de tran­
sição (inclusive uma oração reduzida do infinitivo) que encadeiam de manei­
ra coerente os cinco enunciados soltos:
Para a te n d e r ao crescente núm ero de pedidos de m a tric u la , tiv em o s d e
a m p lia r as in stalaçõ es d o prédio.
Também, pela m esm a razão, fom os obrigados a ad m itir novos professores.
Por outro lado, a Lei d e D iretrizes e Bases to r n o u possível a re o rg a n i­
z a ç ã o dos currículos.
Em virtude desses fa to res, o colégio p asso u p o r tran sfo rm aç õ es raclicaís.
Não o bstante, as ativ id a d es p ro sse g u ira m n o rm a lm e n te .
Assim inter-relacionados pelos elementos de transição, esses cinco pe­
ríodos passam a constituir realmente um parágrafo coerente.
Na lista que damos abaixo, demasiadamente extensa, mas ainda as­
sim incompleta, o estudante encontrará alguns advérbios ou locuções que
talvez o deixem intrigado. O advérbio “hoje", por exemplo, não traz em si
nenhum a idéia de referência ou de transição num a frase isolada como “Ho­
je não choveu". Mas não será assim num período composto em que se con­
traponha “hoje" a “ontem": “Ontem choveu muito, mas hoje não” — em. que
a idéia de oposição, indicada pela adversativa “mas", se junta à de referên­
cia a um fato passado. Em “Realmente, você tem razão”, o advérbio “real­
mente” mostra de maneira clara a continuação de algo que terá sido ante­
riormente dito. É assim palavra de referência ou transição, de valor discreta­
mente anafórico.
Os exemplos que acompanham alguns itens devem ser lidos com aten­
ção, pois acumulam outras informações sobre o assunto.
As “cabeças" ou verbetes das alíneas encerram o sentido geral de cada
grupo analógico.
a)
Prioridade, relevância:
em prim eiro lugar, antes de mais na­
da, p rim eiram en te, acim a de tudo,
precipua m ente, m orm ente, principal­
m ente, prim ordialm ente, sobretudo;
Em primeiro lugar; é preciso deixar bem
claro que esta série dc exem plos não é
com pleta, principalm ente no que diz res­
peito às locuções adverbiais.
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
293
b) Tempo (freqüência, duração, ordem , su­
cessão, anterioridade, posterioridade, si­
m ultaneidade, eventualidade):
então, enfim, logo, logo depois, imedia­
tam ente, logo após, a princípio, pouco
antes, pouco depois, anteriormente, poste­
riormente, em seguida, afinal, por fim, fi­
nalmente, agora, atualm ente, hoje, fre­
qüentemente, constantemente, às vezes,
eventualm ente, por vezes, ocasional­
m ente, sem pre, raram ente, não raro, ao
mesmo tempo, simultaneamente, nesse ín­
terim, nesse meio tempo, enquanto isso
— e as conjunções tem porais;
Finalmente, é preciso acrescentar que al­
guns desses exem plos se revelam por ve­
zes um pouco ingênuos. A princípio. nossa
intenção era omiti-los p ara não alo n g ar
este tópico: m as, por fim , nos convence­
mos d e que as ilustrações são freqüentemence m ais úteis do que as regrinhas.
c) Semelhança, comparação, conformidade:
igualm ente, da m esm a forma, assim
tam bém , do mesmo modo, sim ilarmen­
te, sem elhantem ente, analogam ente, por
analogia, de m aneira idêntica, m utatis
m utandis, de conform idade com, de
acordo com, segundo, conforme, sob o
mesm o ponto de vista — e as conjun­
ções comparativas;
No exem plo anterior (valor anafórico), o
p ronom e dem onstrativo “desses” serve
íguaímenrc com o partícu la de transição: é
um a p alav ra de referência à idéia an terio r­
mente expressa. Da m esm a fo rm a , a rep eti­
ção de “exem plos” ajuda a interligar os
dois trechos. Também o adjetivo “an teri­
o r” funciona como palavra de referência.
“T am bém ” expressa aqui sem elhança. No
exem plo seguinte (valor catafórico), indica
adição.
d) Adição, continuação:
além disso, (a)demais, outrossim, ainda
mais, ainda por cima, por outro lado,
tam bém — e as conjunções aditivas (e,
nem , não só... mas também, etc.);
Além d as locuções adverbiais indicadas na
coluna à esquerda, tam bém as conjunções
aditivas, com o o nom e o indica, “ligam,
aju n tan d o ”.
e) Dúvida:
talvez, provavelm ente, possivelmente,
quiçá, quem sabe? é provável, não é
certo, se é que;
f)
O leito r ao chegar até aqui — se é que
chegou — talvez já ten h a adquirido um a
idéia d a relevância das partículas de tra n ­
sição.
Certeza, ênfase:
de certo, por certo, certamente, indubita­
velmente, inquestionavelmente, sem dú­
vida, inegavelmente, com toda a cer­
teza;18
Cerra/nenre, o au to r destas linhas confia
dem ais na paciência do leitor ou duvida
dem ais do seu senso crítico. A lista ao
lado — estard eíe pensando com toda a cer­
teza — inclui advérbios ou locuções adver­
biais em que é difícil perceb er a idéia de
transição.
Sem dúvida, é o que parece. Q uer a p ro ­
va, leitor? Qual é a função desse “sem d ú ­
vida" se não a de desen cad ear neste
exem plo os argum entos com que d efen d e­
mos nosso p o n to de vista?
18 Talvez valha a pena lembrar que “certamente”, “com certeza” e até mesmo “sem dúvida”,
com muita freqüência insinuam “dúvida” mais do que “certeza”. É uma situação contraditória
semelhante à que se verifica em “pois não”, que indica assentimento (apesar do “não") e “pois
sim”, que âs vezes expressa negação, negação meio irônica ou desdenhosa.
g)
Surpresa, imprevista:
inesperadam ente, inopinadam ente, de
súbito, imprevistamente, surpreendente­
m ente;
h) Ilustração, esclarecimento:
por exemplo (v.g., ex. g. = verbi gratia,
exem pli gratia), isto é (i.e. - kl est),
quer dizer, em outras palavras, ou por
outra, a saber;
i) Propósito, intenção, finalidade:
c:om o fim de, a fim de, com o propósi­
to de, propositadam ente, de propósito,
incencionalmenre — e as conjunções fi­
nais;
j) Lugas; proximidade, distância:
perto de, próximo a ou de, junto a ou
de, dentro, fora, mais adiante, além,
acolá — outros advérbios de lugar, algu­
mas outras preposições, c os pronomes
dem onstrativos;
k) Resumo, recapitulação, conclusão:
em sum a, em síntese, em conclusão,
enfim, em resuino, portanto;
Causa e conseqüência:
daí, por conseqüência, por conseguin­
te, como resultado, por isso, por causa
de, em virtude de, assim, de fato, com
efeito — e as conjunções causais, con­
clusivas e explicativas;
m) Contraste, oposição, restrição, ressalva:
pelo contrário, em contraste com, sal­
vo, exceto, m enos — e as conjunções
adversativas e concessivas;
n) Referência em geral:
os pronomes demonstrativos “este” (o
mais próximo), “aquele” (o mais distan­
te), “esse” (posição intermediária; o que
está perto da pessoa com quem se fa­
la); os pronom es pessoais; repetições da
mesma palavra, de um sinônimo, perífrase ou variante sua; os pronomes adjeti­
vos último, penúltim o, antepenúltim o,
anterior, posterior; os num erais ordinais
(prim eiro, segundo, etc.).
Kssas partículas, ditas “explicativas”, vêm
sem pre entre vírgulas, ou entre um a vírgu­
la e dois-pontos.
Em suma, leitor: as partículas de transição
são indispensáveis à coerência entre as idéi­
as e, portanto, à unidade do texto.
l)
Este caso exige ainda esclarecimentos. Com
referência a tempo passado (ano, mês, dia,
hora) não se deve em pregar esre, mas “es­
se” ou “aquele". “Este ano choveu muito. Di­
zem os jornais que as tempestades e inunda­
ções foram muito violentas em certas regi­
ões do Brasil.” (A transição neste último
exemplo se faz pelo em prego de sinônimos
ou equivalentes de palavras anteriormente ex­
pressas (choveu): tem pestades e inundações.)
“Km 1830 corria o primeiro irem de passagei­
ros. A invenção da locomotiva a vapor data,
entretanto, de 1814. Nesse ano, Stephenson
construíra a locomotiva a vapor 'Blüclier,'.” (A
transição entre os períodos do último exem­
plo faz-se por meio d a expressão “invenção da
locomotiva”, da conjunção “entretanto” e do
demonstrativo “nesse”.) (Repetição ou perífrase de palavra anteriormente expressa é tam­
bém outra maneira de se estabelecer conexão
cnire idéias.)
O t h o n
M.
G a rc ia
♦
295
4.4.5 Outros artifícios estilísticos de que depende a coerência
e, em certos casos, também a clareza. (Pela redação dos tópicos
e pelos exemplos comentados, o leitor verá quais deve empregar
e quais deve evitar)
4.4.5.1 Omissão do sujeito de uma subordinada reduzida gerundial
o u ^' r
ele não é o mesmo da principal
S ain d o d e casa, a p o rta fech o u -se com ím p eto .
Dada a estrutura do período (e desprezada a evidência do contexto
ou situação), o sujeito de “saindo” é “porta”, por ser esta o de “fechou-se”,
pois, em princípio pelo menos, não havendo explicitação, o sujeito de uma
reduzida de gerúndio ou de infinitivo é o da sua principal ou o da princi­
pal do período, fato que pode dar margem a uma frase incoerente, ambí­
gua e até risível. Pode-se evitar esse risco: a) explicitando-se o sujeito da
reduzida: ‘'Saindo ele (fulano) de casa, a porta fechou-se...”; b) desenvol­
vendo a reduzida: “Quando ele saiu de casa, a porta fechou-se...” (Assim o
leitor não rirá por você ter dito que a “porta saiu de casa...”).
Mutatis mutandis, é o que ocorre, às vezes, com as reduzidas de infi­
nitivo: “Ao mudar-se para o Rio, o trabalho de meu pai obrigou-o a fre­
qüentes viagens pelo Brasil.” Pelas razões já expostas, o sujeito de “mudarse” é o de “obrigou”, o que é inadmissível. Evita-se o absurdo de dizer
que... o trabalho m udou para o Rio, a) explicitando-se o sujeito do infiniti­
vo (“ao mudar-se meu pai...”) e fazendo as devidas acomodações sintáti­
cas no resto do período (“seu trabalho obrigou-o...”); b) desenvolvendo a
reduzida: “Quando meu pai se m udou...” (ver 10. Ex., 312).
4.4.5.2 Falta de paralelismo sintático (ver 1. Fr., 1.4.5)
Passei alg u n s d ia s ju n to à m in h a fam ília e re v e n d o velhos am ig o s d c
infância.
Pode-se evitar a incoerência:
a) omitindo-se a conjunção “e”, que não deve coordenar “passei” a “reven­
do”, formas verbais de estrutura e valor sintáticos diferentes; se a preci­
são o exigir, pode-se acrescentar um advérbio que expresse inclusão ou
sim ultaneidade (inclusive, ao mesmo tempo):
Passei a lg u n s dias ju n to à m in h a fam ília, re v e n d o ao m esm o te m p o
v e lh o s am ig o s d e infância.
296
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
b) tom ando paralelas as duas orações ou partes delas:
— Passei alg u n s dias ju n to à m in h a fam ília e revi (ao m esm o te m ­
p o ) v elh o s am ig o s d e infância.
— Passei alguns dias ju n to à m inha família e a velhos am igos d e infância.
4.4,5.3 Falta de paralelismo semântico (falta de correlação
e associação de idéias desconexas)
a ) H á u m a g ra n d e d ife re n ç a e n tre os c a n d id a to s a m a tríc u la s e as v ag a s
n as escolas.
Nao é possível estabelecer, dessa forma, relação de coordenação en ­
tre “candidatos” e “vagas”; diga-se: “diferença entre o número de candida­
tos e o (núm ero) de vagas”.
b) E n q u a n to os E stados U nidos se d istin g u e m p e lo se u a lto p a d rã o d e vi­
d a , os n o sso s n o rd e stin o s vivem em co n d içõ es q u a s e m iseráv eis.
É incoerente o confronto entre país (Estados Unidos) e indivíduos
(nordestinos), isto é, entre um todo e as partes de um todo.
c)
Z u lm ira n ã o esta v a n a casa n e m n a v ara n d a*
É um dos princípios da lógica, um dos seus axiomas, que o maior
com preende o menor, que a parte está com preendida no todo, que o espe­
cífico está subentendido no geral. Se casa é o maior, é o todo, e se Zulmira
não estava nela, não poderia, ipso facto, estar numa das suas partes, a va­
randa. (Ver 10. Ex., 311)
Na poesia m oderna e, no caso do Brasil, sobretudo na de certa fase
do Modernismo, são freqüentes os exemplos de alogismo semântico, de as­
sociação ou coordenação de idéias desconexas, um dos aspectos que a vêm
caracterizando desde que Mallarmé e outros investiram contra o logismo
neoclássico dos parnasianos. Uma das inúmeras formas desse paralelismo
alógico é também a enumeração caótica, em que se coordenam disparidades
tais como o maior e o menor, o concreto e o abstrato, o geral e o específico,
o todo e a parte e coisas heterogêneas de toda a ordem.
* Invertida a ordem dos termos coordenados, isto é, antepondo-se a pane (varanda) ao todo
(casa), a declaração torna-se logicamente indiscutível: Zulmira não estava na varanda nem na
casa (i.e., nem tampouco no resto da casa). C.f. “Nunca fui à Europa nem à França” e “Nun­
ca fui à França nem à Europa”. (Ver 10. Ex., 311)
O th o n
M.
G arc ia
♦
297
4.4.5.4 Falta de concisão (redundâncias)
A redundância estilística ou retórica é uma das mais comuns formas
de prolixidade (rever 2. Voc., 4.2 — ‘Amplificação”). Confundindo-se às ve­
zes com o pleonasmo típico, ela consiste não apenas em explicitar em dem a­
sia, em detalhar superfluamente, em acrescentar idéias já claramente expres­
sas (pleonasmo propriamente dito) ou implicitamente subentendidas, logica­
mente deduzíveis, mas também em sobrecarregar a frase com adjetivos e
advérbios, com acumulação de sinônimos e repetição de palavras sem qual­
quer efeito enfático. A seguinte frase, por exemplo, é abusivamente, ingenua­
mente redundante:
Conforme a última deliberação unânime de toda a Diretoria, a entra­
da, a freqüência e a permanência nas dependências deste Clube, tanto quan­
to a participação nas suas atividades esportivas, recreativas, sociais e cultu­
rais, são exclusivamente privativas dos seus sócios, sendo terminantemente
proibida, seja qual for o pretexto, a entrada de estranhos nas referidas de­
pendências do mesmo.
Impõe-se uma “poda em regra" nesta galhada seca de palavras su ­
pérfluas:
a) Conforme a última deliberação unânime de toda a Diretoria: em prim ei­
ro lugar, a informação é óbvia e desnecessária; em segundo, que é que
o adjetivo “última” está fazendo aí? Nada. Omita-se. Em terceiro, se a
deliberação é unânime tem de ser de toda a Diretoria. Pleonasmo. Eli­
mine-se o “toda”, ou o “unânim e”.
b) Entrada, fi'eqiiência e permanência: não haverá freqüência nem perma­
nência se não houver entrada; basta freqüência, ou permanência.
c) Exclusivamente privativas: em privativas já subjaz a idéia de exclusividade;
advérbio supérfluo, redundante.
d) Participação nas suas atividades: se até a entrada já é privativa dos sócios, é
óbvio que a participação nas atividades também o é. Além disso, que é que
o adjetivo “suas” está fazendo aí?
e) Atividades esportivas, recreativas, sociais e culturais: que outras atividades
“clubistas” poderia ainda haver para justificar a especificação? Se a “poda”
preservasse esse “galho seco”, bastaria, então, dizer apenas “atividades”.
0 Sendo terminantemente proibida, seja qual for o pretexto> a eritrada de estra­
nhos: é óbvio, é lógico que, se a freqüência já é privativa dos sócios, a en­
trada de estranhos tem de ser também, ipso facto, proibida. Mas ainda há
outras superfluidades: se é “terminantemente proibida” a entrada, não se
há de admitir qualquer pretexto. Redundância.
g) Nas referidas dependências do mesmo: em que outro lugar estaria o aviso
proibindo a entrada de estranhos? no céu? no inferno? E esse “do mes­
mo”, que é que está fazendo aí? De que outras dependências se trataria?
Só do próprio clube. Redundância.
C o m u n i c a ç ã o
Feita a “poda” a frase ficaria reduzida ao essencial, sem prejuízo para a
eficácia do aviso:
“É proibida a entrada (ou freqüência, ou a permanência) de estranhos”
ou “Só é permitida a entrada de sócios”.
4A5.5 Falta de unidade - acumulamentos e digressões impertinentes
também concorrem para a incoerência da frase (rever 3. Par., 4.2.2)
4.4.5.6 Certas estruturas de frase difíceis de bem caracterizar - o tipo
mais comum é aquele em que, no mesmo período, o sujeito, comum
a várias orações, assume feição diversa: ora como agente (voz ativa)
ora como paciente (voz passiva perifrástica ou analítica), ora como
uma figura indeterminada ("se" na passiva pronominal)
ía m o s to d o s ju n to s, m as, à ú ltim a h o ra , em v irtu d e d o m a u te m p o ,
d e sistiu -sc d a excursão.
Devia dizer-se: “íamos... mas... desistimos”.
N ão sa b em o s se eles virão p a ssa r a lg u n s d ias co nosco; m e sm o assim
a g e n te e s tá p re p a ra d o p a ra recebê-los.
Diga-se: “não sabemos...; mesmo assim estamos preparados”. A forma
em que “a gente” fosse o sujeito das duas orações seria admissível em lingua­
gem coloquial. A construção com o pronome “se” seria também correta, embo­
ra se ajuste mais ao verbo saber do que ao preparar; já que este se emprega
também como reflexivo. (Em “a gente está preparado”, a concordância faz-se
por silepse de gênero, quer dizer, pelo sentido e não pela forma: em “gente”
se subentende um falante do sexo masculino.)
Q uarta
P arte
4. COM. - Eficácia e falácias
da comunicação
. 1.0 Eficácia
1.1 Aprender a escrever é aprender a pensar
Aprender a escrever é, em grande parte, se não principalmente, apren­
der a pensar, aprender a encontrar idéias e a concatená-las, pois, assim
como não é possível dar o que não se tem, não se pode m m sm itir o que a
mente não criou ou não aprovisionou. Quando os professores nos limitamos
a dar aos alunos temas para redação sem lhes sugerirmos roteiros ou rumos
para fontes de idéias, sem, por assim dizer, lhes “fertilizarmos” a mente, o
resultado é quase sempre desanimador: um aglomerado de frases descone­
xas, mal redigidas, mal estruturadas, um acúmulo de palavras que se atrope­
lam sem sentido e sem propósito; frases em que procuram fundir idéias que
não tinham ou que foram mal pensadas ou mal digeridas. Não podiam dar o
que não tinham, mesmo que dispusessem de palavras-palavras, quer dizer,
palavras de dicionário, e de noções razoáveis sobre a estrutura da frase. É
que palavras não criam idéias; estas, se existem, é que, forçosamente, aca­
bam corporificando-se naquelas, desde que se aprenda como associá-las e
concatená-las, fundindo-as em moldes frasais adequados. Quando o estudan­
te tem algo a dizer, porque pensou, e pensou com clareza, sua expressão é
geralmente satisfatória.
Todos reconhecemos ser ilusão supor — como já dissemos — que se
está apto a escrever quando se conhecem as regras gramaticais e suas ex­
ceções. Há evidentem ente um mínimo de gramática indispensável (grafia,
pontuação, um pouco de morfologia e um pouco de sintaxe), mínimo sufi­
ciente para permitir que o estudante adquira certos hábitos de estrutura­
ção de frases m odestas mas claras, coerentes, objetivas. A experiência nos
ensina que as falhas mais graves das redações dos nossos colegiais resul­
tam menos das incorreções gramaticais do que da falta de idéias ou da sua
má concatenação. Escreve realmente mal o estudante que não tem o que
dizer porque não aprendeu a pôr em ordem seu pensamento, e porque não
tem o que dizer, não lhe bastam as regrinhas gramaticais, nem mesmo o
melhor vocabulário de que possa dispor. Portanto, é preciso fornecer-lhe os
meios de disciplinar o raciocínio, de estimular-lhe o espírito de observação
dos fatos e ensiná-lo a criar ou aprovisionar idéias: ensinai; enfim, a pensar.
302
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
Ora, a ciência das leis ideais do pensam ento, a “arte que nos faz
proceder, com ordem, facilmente e sem erro, no ato próprio da razão” é a
Lógica. Por conseqüência, se este capítulo tem a pretensão de ajudar o es­
tudante a pensar com um pouco mais de clareza e objetividade, terá de in­
vadir os domínios dessa ciência ou arte. Mas será uma invasão pacífica, ou
melhor, um a “incursão meio turística”, que perm ita ao principiante uma vi­
são panorâm ica, muito superficial e apressada, desse território da arte de
pensar. As noções que se seguem sobre métodos ou processos de raciocí­
nio, procuram os traduzi-las em linguagem acessível e, tanto quanto possí­
vel, amena. Por isso, não esperem os entendidos ver aí um “tratado” de
Lógica, mas apenas um escorço mais ou menos assistemático com finalida­
de exclusivamente prática.
1.2 Da validade das declarações
D eclarações, apreciações, julgam entos, pronunciam entos expres­
sam opinião pessoal, indicam aprovação ou desaprovação. IVIas sua vali­
dade deve ser dem onstrada ou provada. Ora, só os fatos provam ; sem
eles, que constituem a essência dos argum entos convincentes, toda d e­
claração é gratuita, porque infundada, e, por isso, facilm ente co n testá­
vel. O pronunciam ento “Fulano é ladrão” vale tan to quanto a sua con­
testação: “Não, Fulano não é ladrão”. E nenhum dos dois convence. Li­
m itando-se apenas a afirm ar ou negar sem fundam entação, isto é, sem
a prova dos fatos, que são, grosso modo, especificações em que se apoi­
am as generalizações traduzidas em pronunciam entos, os interlocutores
acabam travando um “bate-boca” estéril da m esm a ordem daqueles a
que seriam levados se argum entassem apenas com palavras de sentido
intencional (rever 2. Voc., 1.5). Nenhum dos dois convence porque am ­
bos expressam opinião pessoal, certam ente não isenta de prevenções ou
preconceitos. Respeitável ou não, essa opinião ou julgam ento terá de
ser posta de quarentena... até que seja provado o que se nega ou se
afirm a. Sua validade é muito relativa; num caso como esse, nem se
pode invocar aquilo que se costum a cham ar de “testem unho au to riza­
do”, vale dizer, um a opinião abalizada, uma opinião de quem , pela re ­
putação baseada no saber e na experiência, m erecesse tal crédito, que a
prova dos fatos se tornasse desnecessária ou supérflua. N enhum dos in­
terlocutores seria mais convincente se declarasse que “Fulano é ladrão
porque B eltrano disse que é”. Se, en tretanto, afirm asse que “Fulano é
ladrão porque foi preso em flagrante quando assaltava a Joalheria Es­
meralda, na m adrugada de anteontem ”, sua declaração teria muito maior
grau de credibilidade, pois estaria apoiada num fato observado, com ­
provado ou com provável. Isso é prova, isso é que constitui a evidência
dos fatos. Só isso convence e põe fim ao pingue-pongue do “é ladrão”,
“não é la d rã o ”.
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
303
Em suma: toda declaração (ou juízo) que expresse opinião pessoal ou
pretenda estabelecer a verdade só terá validade se devidamente demonstra­
da, isto é, se apoiada ou fundamentada na evidência dos fatos, quer dizer, se
acompanhada de prova. Mas há certas ordens de declarações que prescin­
dem de prova:
I
II
III
rv
quando
quando
quando
quando
a declaração expressa uma verdade universalmente aceita;
é evidente por si mesma (axiomas, postulados);
tem o apoio de autoridade (testemunho autorizado);
escapa ao domínio puram ente intelectual:
a) é de natureza puram ente sentim ental (“o amor desconhece outras ra­
zões que não as do próprio coração”);
b) implica a apreciação de ordem estética, em que o que se discute ou
afirma diz respeito à beleza e não à verdade (“gosto não se discute”,
“gosto porque gosto”);
c) diz respeito à fé religiosa (não se provam dogmas; apresentam-se ape­
nas “motivos de credibilidade”. uCredo quia absurdurrí\ creio porque é
absurdo (ou ainda que seja absurdo.).1
1.3 Fatos e indícios - observações e inferência
$
Fatos não se discutem; opiniões, sim. Mas que é fato? É a coisa fe i­
ta, verificada e observada. Mas convém não confundir fato com indício. Os
fatos, devida e acuradam ente observados, levam ou podem levar à certeza
absoluta; os indícios nos permitem apenas inferências de certeza relativa,
pois expressam somente probabilidade ou possibilidade.
Inferir é concluir, é deduzir pelo raciocínio apoiado apenas em indí­
cios. Dizer, por exemplo, que “Fulano é ladrão, porque, de repente, come­
çou a ostentar um padrão de vida que seu salário ou suas conhecidas fon­
tes de renda não lhe poderiam jam ais proporcionar”, é inferir, é deduzir
pelo raciocínio a partir de certos indícios. O que assim se declara a respei­
to desse fulano é possível, é mesmo provável, mas não é certo porque não
provado.
É evidente que o grau de probabilidade das inferências varia com as
circunstâncias: há inferências extremamente prováveis e inferências extrema­
mente improváveis. É extremamente provável que no verão chova com mais
freqüência do que no inverno; mas é improvável que a precipitação pluvial
no mês de janeiro deste ano seja maior do que a do mês de janeiro do ano
1 Cf. CUVILLIER, A. Nouveau précis de philosophie; à l’usage des classes de philosophie, I, §61,
64, 317, 321 e 324, e La dissertation philosophique , p. 211-2.
próximo. É o maior ou menor grau de probabilidade que condiciona o nos­
so comportamento diário e o nosso juízo em face das coisas e pessoas. Se o
céu está carregado de nuvens densas que obscurecem o Sol, é provável que
chova: levo o guarda-chuva. Se o professor, que, durante anos, nunca faltou
a uma aula, deixou de comparecer hoje, é provável que esteja doente: va­
mos visitá-lo ou telefonar-lhe. Se um aluno, durante a prova, se comunica
com um dos colegas ou parece consultar caderno de notas sob a carteira, é
provável que esteja colando: tomemos-lhe a prova e demos-lhe zero. Não
obstante: pode não chover, o professor pode estar viajando, o aluno pode es­
tar apenas pedindo ao colega que o espere após a prova, ou o caderno con­
sultado pode não ter nenhum a relação com a m atéria da prova. Nossa rea­
ção ou comportamento em face desses indícios foi de uma pura inferência;
daí, os enganos em que verificamos ter incorrido, quando nos defrontamos
com os fatos: não choveu (e o guarda-chuva se revela o trambolho ridículo
que é em dia de Sol), o professor não está doente (e a nossa visita ou tele­
fonema podem significar perda de tempo, se bem que não lastimável) e o
aluno não estava colando (a punição foi injusta). Agimos por presunção, por­
que inferimos, baseados apenas em indícios.
Posso provar que a água congela a 0°C: basta servir-me do term ô­
metro. O congelamento é um fato que pode ser verificado, testado, medi­
do. Por isso prova. Pode-se provar que Fulano m atou Beltrano: o fato foi
testem unhado por pessoas dignas de crédito e o exame de balística pro­
vou que a bala, encontrada no corpo da vítima, foi indiscutivelmente dis­
parada pela arm a em que o acusado deixara suas impressões digitais. Mas
não se pode provar que o acusado tinha, realm ente, a intenção de matar,
pois os elementos disponíveis — como, por exemplo, saber a quem apro­
veitaria a eliminação da vítima — constituem apenas indícios, e não fatos
ponderáveis e mensuráveis. Indícios podem persuadir, mas não provam.
São argum entos persuasivos capazes de levar os jurados a presumir que o
acusado é o criminoso; mas o grau de certeza desse julgam ento é muito
relativo: a sentença será possivelmente mas não justa certamente.
1.4 Da validade dos fatos
Mas os fatos em si mesmos às vezes não bastam : para que provem é
preciso que sua o/xservapão seja acurada e que eles próprios sejam adequa­
dos, relevantes, típicos ou característicos, suficientes e fidedignos.
A simples leitura de uma reportagem sobre o crime supostamente
praticado por Fulano não me pode permitir afirm ar com certeza que o sus­
peito é de fato o criminoso: nessas circunstâncias não houve exame acura­
do dos fatos, não houve sequer observação direta, pois os dados disponí­
veis me vieram de segunda mão. Além disso — supõe-se — não sou enten­
dido em direito penal ou processo criminal para chegar a uma conclusão
válida e incontestável, baseado na observação acurada dos fatos.
O i h o n
M.
G a r c i a
♦
305
O estrangeiro que passar um a sem ana nas areias de Copacabana não
estará em condições de afirmar, generalizando, que no Rio de Janeiro to­
dos andam de short ou de maiô: o núm ero de fatos considerados não foi
suficiente e, ademais, a área de observação foi muito restrita. São, pois, fa­
tos insuficientes. Além disso, nem todo o Rio de Janeiro é constituído por
praias arenosas povoadas de banhistas. Desprezadas essas condições, os fa­
tos nada provarão por serem inadequados.
Se um correspondente de agência noticiosa estrangeira fizesse entre
operários de salário mínimo um inquérito sobre suas condições de m ora­
dia, “arm aria” o seu raciocínio da seguinte forma: José mora num barra­
co, João mora num barraco, Joaquim tam bém mora num barraco, o Fran­
cisco, o Manuel, o Pedro também moram em barracos; logo, no Rio de Ja­
neiro, todos m oram em barracos. Os dados colhidos seriam insuficientes,
constituindo o que se chama de enumeração imperfeita ou incompleta, por­
que a área (ou universo) da pesquisa não foi típica nem suficientemente
ampla: o Rio de Janeiro não é habitado apenas por pessoas que ganham
salário mínimo. A conclusão — vale dizer, a generalização — é falaciosa
porque apoiada em fatos insuficientes. Isso é concluir do particular para o
geral ou, como diz a Lógica, “ab uno disce omnes”.
Quem alegasse como motivo para a abolição dos exames orais a in­
tensidade do calor no mês de dezembro, estaria apresentando um fato irrele­
vante: o calor não constitui argumento “de peso”; nenhum a atividade im­
portante cessa, no Brasil pelo menos, só por causa dele. Se recomendo a um
amigo que não ande de bicicleta, porque, certa vez, ao fazê-lo, levei um bru­
to tombo, meu argumento é falho, pois as circunstâncias em que se veria
meu amigo, se fizesse a experiência, poderiam ser bem diversas: diferença
de idade, de hábitos esportivos, de senso de equilíbrio, e outras. Meu argu­
mento não vale: os fatos que apresento como razões não são adequados.
O cabo eleitoral que, com veemência demagógica, exaltar as virtu­
des do seu candidato, certamente não fornecerá ao eleitor em potencial se­
não os dados abonadores, manejados a jeito para tentar convencer: não se­
rão fatos fidedignos, isto é, não merecerão fé, pois é suspeita a fonte de
onde provieram. Há interesse e pode haver malícia.
Se alguém nos tentasse convencer de que a fundação de Brasília foi
apenas desperdício de dinheiro porque Goiânia ou Belo Horizonte, cidades
tam bém do interior, poderiam perfeitamente funcionar como capital do Bra­
sil, não estaria apresentando como razões fatos típicos nem característicos.
Portanto, conclusões baseadas em fatos dessa ordem hão de ser for­
çosamente, ou provavelmente, falsas.
1.5 Métodos
Em linguagem vulgar, método é a m elhor maneira de fazer as coi­
sas. Quando se diz que alguém não tem m étodo de trabalho, quer-se dar a
entender que os meios de que se serve para realizar determ inada tarefa
não são os mais adequados nem os mais eficazes; por isso, perde tempo,
desperdiça esforço e energia, faz, desfaz, refaz e não realiza a contento os
propósitos colimados.
Etimologicamente, método (meta = através de, odos — caminho) é o
cam inho através do qual se chega a um fim ou objetivo. Do ponto de vis­
ta da Lógica, é o conjunto dos meios ou processos em pregados pelo espíri­
to hum ano para a investigação, a descoberta e a comprovação da verda­
de. Método implica, assim, uma direção, um rumo, regularm ente seguido
nas operações mentais.
Distinguem-se primordialmente dois tipos de operações mentais na
busca da verdade, vale dizer, dois métodos fundamentais de raciocínio: a in­
dução (que vai do particular para o geral) e a dedução (que parte do geral
para o particular): “Mostrar como uma conclusão deriva de verdades univer­
sais já conhecidas (...) é proceder por via dedutiva ou silogístico (resolutio
formalis). Mostrar como uma conclusão é tirada da experiência sensível, ou,
em outras palavras, resolver um a conclusão nos fatos dos quais nosso espíri­
to a extrai como de uma matéria (resolutio materialis) é proceder por via in­
dutiva. (...) É neste sentido que Aristóteles e Sto. Tomás ensinam que nós te­
mos somente dois meios de adquirir a ciência, a saber, o Silogismo, que pro­
cede a partir das verdades universais, e a Indução, que procede a partir dos
dados singulares, dependendo formalmente todo o nosso conhecimento dos
primeiros princípios evidentes por si mesmos, e tirando materialmente sua
origem da realidade singular e concreta percebida pelos sentidos.”2
Mas há outros métodos, por assim dizer subsidiários ou não funda­
mentais, que tam bém contribuem para a descoberta e comprovação da ver­
dade, métodos que constituem o que se costuma cham ar de tnodus sciendi,
m odo(s) de saber: a análise, a síntese, a classificação e a definição (ver 5.
Ord., 1.1 a 1.3.1). Além disso, existem ainda os m étodos particulares de
algumas ciências, em que a indução e a dedução, sem desobedecer às leis
imutáveis do conhecimento, adaptam o seu processo à natureza variável da
realidade. Assim se pode dizer que cada ciência tem seu método próprio:
dem onstrativo, comparativo, histórico, normativo, etc.
15.1 Método indutivo
O que já dissemos a respeito da generalização e d a especificação, da
validade das declarações e dos fatos, pode ajudar o estudante a fazer uma
idéia do que é o método indutivo. Pela indução, partimos da observação e
análise dos fatos, concretos, específicos, para chegarmos à conclusão, Le., à
norm a, regra, lei, princípio, quer dizer, à generalização. Em outros termos:
2 MARITAIN, Jacqucs, Lógica menor, p. 251.
O t h o n
A /l.
G a r c i a
♦
307
o processo mental busca a verdade partindo de dados particulares conheci­
dos para princípios de ordem geral desconhecidos. Parte do efeito para a cau­
sa. E um raciocínio a posteriori. Tentemos explicar isso em linguagem mais
acessível.
Vejamos um fato específico, um caso particular: a substituição dos
bondes pelos ônibus elétricos. Trata-se de chegar a uma conclusão, de des­
cobrir o que é m elhor — e filosoficamente, moralmente, o melhor é a ver­
dade. Mas os caminhos que levam à verdade nem sempre são muito fá­
ceis. A opinião pública está dividida: uns defendem a medida como solu­
ção ideal para o problema dos transportes coletivos, que os bondes já não
atendem satisfatoriamente; outros a condenam de m aneira taxativa. Na
própria Assembléia Legislativa, a questão tem dado motivo a longos deba­
tes. Pois bem: que faria um repórter ou um assessor técnico, desejosos de
“tirar a questão a limpo”, como vulgarm ente se diz? Sairiam pelas ruas a
colher dados concretos, exemplos, testem unhos, fatos, em suma, fatos ca­
pazes de provar a conveniência ou não da medida preconizada pelas auto­
ridades: quantos passageiros conduzem os bondes em cada viagem, e
quantos conduzirão os ônibus elétricos? quantas viagens pode fazer cada
tipo de veículo num período de vinte e quatro horas? qual a duração do
percurso de ida-e-volta de cada um deles? quanto tempo haverá de espera
nas filas dos ônibus elétricos? quais as condições de conforto em uns e ou­
tros? qual dos dois tipos “atrapalha” menos o trânsito dos outros veículos?
qual deles é mais barato?
Eis aí alguns dos fatos a serem observados, analisados, confrontados
antes de se chegar a uma conclusão. Se os fatos observados forem típicos,
adequados, suficientes, relevantes e fidedignos, a conclusão a que se che­
gue representará a melhor solução para o caso. O chefe de relações públi­
cas da em presa concessionária (admitamos que a solução seja favorável
aos ônibus elétricos) poderá, então, baseado n o s/ato s apurados pelo asses­
sor técnico, fazer a declaração: “O ônibus elétrico é a solução para o gra­
ve problema dos transportes urbanos nesta luminosa cidade de São Sebas­
tião do Rio de Janeiro”, ou o jornal onde trabalhe o repórter-pesquisador
poderá abrir sua manchete: “Os ônibus elétricos resolvem o problema dos
transportes coletivos.”
Agindo dessa forma, o assessor e o repórter teriam adotado o méto­
do indutivo, partindo, como partiram , dos fatos particulares ou específicos
para a conclusão ou generalização. Partiram do que era conhecido (bondes
e ônibus elétricos) para o desconhecido (sd ônibus elétricos), isto é, a solu­
ção, a conclusão, o princípio ou norma ou diretriz, em suma: a verdade,
que é sempre a melhor solução.
O estudante quer fazer um trabalho sobre... a reforma agrária? so­
bre a vida nas favelas? sobre a conveniência ou inutilidade dos exames
orais? sobre os problemas de ordem sexual que obcecam os jovens dos
nossos dias? sobre a co-educação? sobre as atividades das agremiações es­
tudantis? sobre a prática dos esportes nas escolas do curso fundamental?
308
♦
C o m u n i c a ç A o
em
P r o s a
M o d e r n a
sobre os atritos entre pais e filhos adolescentes? sobre os program as de te­
levisão? sobre as novelas de rádio? sobre as oportunidades de divertim en­
to de que dispõem os jovens de mesada que mal d á para os cigarros e a
condução? sobre o que lêem (se é que lêem) os seus colegas? sobre a
ONU? sobre a OEA? sobre estatização e iniciativa privada? sobre naciona­
lismo e entreguismo? sobre a crise do petróleo? sobre as concessões para a
exploração de minérios por empresas privadas? sobre o transporte ferroviá­
rio ou rodoviário ou marítimo do Brasil? quer saber como funciona a nos­
sa Assembléia Legislativa? como se fabrica sabão? como se faz um a lâm pa­
da? como se criam galinhas?
Se pretende fazer trabalhos dessa ordem — sejam dissertações breves
sejam monografias ou ensaios mais alentados — procure primeiro Sciber o
que há, o que é, o que se fez, o que se fa z, o que se diz; enfim, observe os
fatos, colha os dados, analise-os, classifique-os, discuta-os e conclua.
1.5.1.1 Testemunho autorizado
Mas talvez não lhe seja possível, ou mesmo necessário, exam inar to­
dos os fatos “ao vivo", vale dizer, observá-los diretam ente, pessoalmente in
loco. Outros já podem tê-lo feito, em condições satisfatórias, tendo em vis­
ta outros propósitos, visando a outras conclusões. O estudante poderá
aproveitar o resultado dessas pesquisas e acrescentar o das suas próprias.
A ciência — usemos o term o — não é obra exclusivamente indivi­
dual, mas resultado de um esforço coletivo, ao longo do tempo, através de
gerações, pelo acúmulo de pesquisas e conclusões parciais, provisórias ou
definitivas. Quando, na pesquisa da verdade, nos baseam os em afirmações
alheias dignas de crédito, nos servimos de testem unhos autorizados, esta­
mos aplicando o que se chama de métodos de autoridade. Desde que o pes­
quisador não se subm eta servilmente, cegamente, ao testem unho alheio,
mas, ao contrário, o acolha com espírito crítico, o m étodo de autoridade
constitui processo de investigação da verdade indispensável ao progresso
da ciência. “A pretensão de Descartes e Bacon de im por ao pesquisador a
regra de só adm itir o que pode ser visto, ouvido ou verificado por si mes­
mo, sem levar em conta nenhum a autoridade, tornaria não somente a his­
tória impossível como também entravaria o desenvolvimento das ciências.
Com efeito, desde que uma ciência atingisse certo grau de complexidade, o
trabalho de verificação pessoal a ser exigido de cada cientista absorveria
sua vida inteira. Isto representaria a estagnação de todas as ciências. Por
outro lado, a prática científica não concorda absolutam ente com o ponto
de vista cartesiano. Cada geração de pesquisadores apela sempre para a
autoridade dos seus predecessores, apoiando-se sobre os seus trabalhos
para a realização de suas investigações.”
“A autoridade, quando revestida de certas condições que a tornam
legítima, desem penha, portanto, um papel de grande importância no pro­
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
309
gresso da ciência, pois os cientistas, sob pena de se condenarem à parali­
sia intelectual, aceitam, a título de base histórica, devidamente controla­
da, todas as observações e experiências dos seus antecessores que eles não
podem verificar por si mesmos.”3
Se, portanto, o estudante pretende colher material para um traba­
lho, sobre, digamos, a ONU, não precisará assistir aos debates dessa orga­
nização, nem percorrer suas instalações, nem entrevistar seus funcionários
ou dirigentes, nem mesmo, talvez, consultar in loco seus arquivos: basta
acolher o testem unho de outros pesquisadores, testem unho a que — con­
vém frisar — deverá acrescentar a sua contribuição pessoal, as suas con­
clusões parciais (que talvez venham a servir a outros). Isso tam bém é in­
vestigação da verdade, isto é pesquisa. Não é só nos laboratórios ou em
contato com a realidade viva que se descobre a verdade: tam bém nas bi­
bliotecas se chega a ela, sobretudo quando se trata das ciências formais
(como a matemática, a física teórica, a lógica matem ática, etc.) e das ciên­
cias hum anas (política, economia, sociologia, etc.). Ver 6. Id., 1.3.0.
7.5.2 Método dedutivo
Se, pelo m étodo indutivo, partimos dos fatos particulares para a ge­
neralização, pelo dedutivo, “cam inham os” em sentido inverso: do geral
para o particular, da generalização para a especificação, do desconhecido
para o conhecido. É método a priori: da causa para o efeito.
1.5.2.1 Silogismo
A expressão formal do método dedutivo é o silogismo, que é um a
“argum entação na qual, de um antecedente que une dois termos a um ter­
ceiro, infere-se um conseqüente que une esses dois termos entre si”.4 Ilus­
tremos: o aluno Joaquim Carapuça, candidato a presidente do Grêmio nas
eleições do ano passado, foi acusado de fraudar as atas de votação. Aber­
to inquérito, ficou provado o seu crime. O método foi indutivo: chegou-se
à conclusão — Joaquim Carapuça fraudou realm ente as atas — pela análi­
se dos fatos revelados durante o inquérito.
Ora, o mesmo Joaquim Carapuça teve a coragem, a desfaçatez, de
candidatar-se novamente ao mesmo cargo nas eleições deste ano. Como ra­
ciocinará o eleitor consciente antes de depositar seu voto na urna? Racioci­
nará pelo método dedutivo, “arm ando”, sem o saber talvez, um silogismo.
O seu raciocínio “se resolverá”, como se diz, da seguinte forma:
3 SANTOS. Theobaldo M. M atutai de filosofia, p. 223.
4 MARITATN, J., op. c it, p. 174.
310
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
T odo c a n d id a to c o n d e n a d o p o r fra u d e é in elegível; o ra, Jo a q u im C a­
ra p u ç a foi c o n d e n a d o p o r lra u d e ; log o , Jo a q u im C a ra p u ça é in elegível.
Das três proposições que constituem o silogismo, as duas prim ei­
ras cham am -se premissas, e a últim a, conclusão. A prim eira prem issa
diz-se maior; a segunda, menor. Mas entre am bas deve haver um a idéia
(ou term o) com um: condenado por fraude (no sujeito da prim eira e no
predicado da segunda). Esse é o termo médio, condição indispensável
ao silogism o verdadeiro. Além disso, a prem issa m aior deve ser univer­
sal: todo ou nenhum. Não pode ser alguns, pois sua característica é a
universalidade.
O silogismo pode ser válido, quanto aos seus aspectos formais, e
verdadeiro, quanto à m atéria, ou ser um a coisa sem ser outra. No exem ­
plo dado, ele é um a coisa e outra: válido e verdadeiro. Por quê? Porque
a conclusão só pode ser verdadeira, se as duas prem issas tam bém o fo­
rem . Vejamos. O fato de nenhum candidato acusado de fraude dever ser
eleito é um a prem issa verdadeira? Sem dúvida. Mas como se chegou a
essa conclusão? Pelo m étodo indutivo, pela observação de um núm ero
suficiente de casos ou fatos, de exemplos, pela experiência, enfim, de se
ter verificado que outros candidatos nas m esm as condições sujeitos à
m esm a acusação, processados e condenados pelos mesmos motivos, se
revelaram m aus representantes ou maus presidentes de grêmios ou as­
sem bléias, função para a qual se exige, não apenas com petência, mas,
principalm ente, integridade m oral. Admitamos, portanto, que a prem is­
sa m aior é verdadeira. E a menor? sê-lo-á? Ficou provado que sim, atra­
vés do inquérito, no qual se m anipularam fatos. Se as duas premissas
são verdadeiras, a conclusão, que delas decorre naturalm ente, é tam ­
bém verdadeira. Por conseguinte, o eleitor consciente não vota no Jo a­
quim Carapuça...
Vejamos agora se Joaquim Carapuça é comunista porque lê as obras
de Carlos Marx:
P rem . m aior: T odo c o m u n ista lê C arlos M arx.
Prem. m enor: O ra, Jo a q u im C a ra p u ça lê C arlos M arx;
Conclusão: logo, Jo a q u im C a ra p u ça é c o m u n ista .
Pela forma do silogismo, parece que J. C. é realm ente comunista.
Mas examinemos as premissas: a maior, pelo menos, será verdadeira? Todo
com unista lê, realmente Carlos Marx? Sabemos que muitos, de Carlos
Marx, só conhecem o nome e, talvez, um extracto da sua doutrina. Mas, se
de fato o lêem, como prová-lo? Só pelo exame dos fatos: será necessário
consultar, então, todos os confessadamente comunistas — ou pelo menos
um núm ero suficiente deles — para sabermos, com segurança e certeza,
que todos lêem Carlos Marx. Será isso possível? Se não é possível, a nossa
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
311
generalização — todo comunista lê C. Marx — talvez não seja verdadeira,
pois baseou-se no que se chama “enum eração imperfeita ou incompleta”,
vale dizer, na observação de um núm ero insuficiente de fatos. E se não é
verdadeira a premissa maior, não im porta que o seja a m enor (é possível
provar que Joaquim Carapuça lê Carlos Marx): a conclusão será falsa. O
silogismo está bem armado, por isso é válido quanto à form a, mas é falso
quanto à matéria. (Há, evidentemente, outras condições necessárias à sua
validez e verdade, mas seria descabido discuti-las num capítulo como este,
cujo propósito é dar ao estudante noções de Lógica apenas elem entares e
indispensáveis ao encaminhamento de outras questões.)
Acabamos de ver, assim, que na prática a busca da verdade se faz
ao mesmo tempo pela indução (dos fatos particulares para a generaliza­
ção) e pela dedução (da generalização — premissa maior — para explicar
ou com preender um fato particular). Raram ente chegamos à descoberta da
verdade apenas por via indutiva ou apenas por via dedutiva: os dois m éto­
dos conjugam-se para o mesmo fim.
1.5.2.2 Silogismo do tipo non sequitur
Ninguém, em são juízo, tentaria ou conseguiria convencer-nos de
que o Rio de Janeiro é uma cidade só porque tem igrejas, arm ando um si­
logismo como o seguinte:
T oda c id a d e tem igrejas;
o ra , o Rio d e Ja n e iro tem igrejas;
logo, o Rio d e J a n e iro é u m a c id a d e .5
Esse silogismo traz no bojo um sofisma (ver, a seguir, 2.2) do tipo
non sequitur (“não se segue”); quer dizer, do fato de ter igrejas não se se­
gue necessariamente, não se pode concluir obrigatoriam ente que o Rio é
uma cidade: pode haver cidades que não tenham igrejas assim como pode
haver igrejas onde não existam cidades.
No entanto, dessa espécie de silogismo muita gente se serve a todo
momento, por descuido ou por malícia. Defendendo a candidatura de Joa­
quim Carapuça, seu cabo eleitoral poderá tentar convencer-nos da conveni­
ência da sua eleição, armando maliciosamente, isto é, falaciosamente, sofis­
mando enfim, uma série de silogismos do tipo non sequitur.
s Normalmente separam-se por um ponto as proposições do silogismo; mas pode-se também
adotar o ponio-e-vírgula, que é, aliás, mais cabível, pois se trata de três proposições (ora­
ções) que formam um só período.
3 1 2
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
T odo m in e iro é hábil;
o ra, J. C. é m in eiro ;
logo, J. C. é hábil.
T odo in d iv íd u o h áb il é bom político;
ora, J. C. é u m in d iv íd u o hábil;
logo J. C. é b o m político.
T odo b o m político é b o m a d m in istra d o r;
o ra, J. C. é b o m político;
logo J. C. é (será) b o m ad m in istra d o r.
T odo b o m a d m in istra d o r m e re c e se r eleito ;
o ra, J. C. é bom a d m in istra d o r;
logo J. C. m e re c e se r eleito.
Temos aí um a série de silogismos em que a conclusão do primeiro
serve de base à premissa maior do segundo, a conclusão do segundo pas­
sa a ser a da maior do terceiro, e assim sucessivamente. É o que a lógica
chama de polissilogismo, que pode ser falacioso ou não; no caso, é, pois in­
cide num sofisma de non sequitur: o fato de ser indivíduo hábil não impli­
ca necessariam ente a qualidade de bom político, da m esm a forma como o
ser bom político não significa que alguém seja ou venha a ser bom admi­
nistrador. Pura presunção, e presunções, superstições, tabus, preconceitos
não funcionam como argumentos válidos, não constituem princípios ou
norm as de que se possam tirar conclusões logicamente aceitáveis; em ou­
tras palavras: não podem servir como premissas, a menos que o raciocínio
seja vicioso. Convém, portanto, evitar o emprego de silogismos desse tipo
ou não se deixar iludir por eles.
1.5.2.3 Epiquirema: premissas munidas de prova
Outro tipo de silogismo também muito comum na vida prática é o
cham ado epiquirema, que se caracteriza por ter uma ou ambas as premis­
sas seguidas ou munidas de prova, quer dizer acom panhadas de uma pro­
posição causal ou explicativa, ou adjunto equivalente:
T odos os p ro fesso res d e v e m s a b e r u m p o u c o d e p sicologia, porque o
c o n ta to co m m e n ta lid a d e s em fo rm ação exige d eles c e rta c a p a c id a d e d e
c o m p re e n d e r o c o m p o rta m e n to e as rea çõ es d o s jo v e n s p a ra m e lh o r o rien tálos e ed u c á-lo s.
O ra , você é, professor; logo, precisa sa b e r u m p o u c o d e p sico lo g ia...
m am ente freqüentes r
car nossas opiniões oi
ma do espírito humai
quase sempre se tradt
que é?”. As primeiras
ções de causas ou mol
nui a partir do momei
sas duas perguntas.
Q uando desejar
atitude, m uitas vezes
gem coloquial, caso e
tando-se à premissa rr
de norm a ou diretriz,
que dele nos servimo:
nam facilmente subent
lheiro — em linguage:
dadosa ao filho recalci
dentes pelo menos du
que provocam a cárie
certeza, algumas outra
que seja o menino, eh
tras proposições (Ora,
os dentes, “seu” teimos
1.5.2.4 0 raciocín
O raciocínio dedu
de do nosso comportarr
tudes mentais tanto qu;
dúzia de laranjas, seja a
ciocínio dedutivo.
Nem sempre, en t
em nos mesmos um siloj
consciência é apenas a
ações, impulsos ou com,
subjaz como nos iceberg
chega a ser bem extens;
mos, fornece os elemen
premissa maior do siloj
m aior quando se aceita
nela se contém. Resulta i
lógica dá o nome de ent
ser eleito”,
C. lê Carlc
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
313
Situações que provocam raciocínio silogístico dessa ordem são extre­
m am ente freqüentes na vida cotidiana. A necessidade de provar ou justifi­
car nossas opiniões ou declarações parece que faz parte da natureza mes­
m a do espírito hum ano. A perplexidade do homem em face de realidade
quase sempre se traduz em indagações, em perguntas de “que é?” e “por
que é?”. As primeiras resolvem-se em definições, as segundas em indica­
ções de causas ou motivos. A bem dizer, nossa perplexidade cessa ou dimi­
nui a partir do momento em que ficamos conhecendo as respostas para es­
sas duas perguntas.
Quando desejamos convencer, aconselhar ou sugerir determ inada
atitude, m uitas vezes nos servimos de epiquirem as, sobretudo na lingua­
gem coloquial, caso em que o silogismo nem mesmo se com pleta, limi­
tando-se à prem issa maior, que assume então, assim isolada, o seu papel
de norm a ou diretriz, de regra de conduta; mas o tom e a situação em
que dele nos servimos são tais, que as duas outras proposições se to r­
nam facilmente subentendidas. Assim falará, por exemplo, em tom conse­
lheiro — em linguagem epiquirem ática, poderíam os dizer — a m ãe cui­
dadosa ao filho recalcitrante: “Meu filho: todo m enino asseado escova os
dentes pelo m enos duas vezes ao dia, porque assim elimina os germes
que provocam a cárie e... Como você sabe, a cárie...” — seguem-se, com
certeza, algum as outras razões bem convincentes. Por menos inteligente
que seja o menino, ele há de com preender ou subentender as duas ou­
tras proposições (Ora, você é um m enino asseado: logo, trate de escovar
os dentes, “seu” teim oso...).
1.5,2.4 0 raciocínio dedutivo e o cotidiano - o entimema
O raciocínio dedutivo preside ou condiciona praticam ente a totalida­
de do nosso com portam ento diário. As mais simples ações, reações ou ati­
tudes m entais tanto quanto as mais complexas — seja a compra de uma
dúzia de laranjas, seja a dem onstração de um teorem a — implicam um ra­
ciocínio dedutivo.
Nem sempre, entretanto, temos consciência de se estar elaborando
em nós mesmos um silogismo completo. Às vezes, o que aflora no plano da
consciência é apenas a conclusão, traduzida em expressão verbal, em
ações, impulsos ou comandos. Mas, antes dela, ou melhor, por baixo dela,
subjaz como nos icebergs uma elaborada série de processos rnentais, que
chega a ser bem extensa quando inclui ainda a indução, que, como sabe­
mos, fornece os elementos ou dados para a generalização que vai ser a
prem issa maior do silogismo dedutivo. É freqüente omitir-se a premissa
m aior quando se aceita pacificamente, tacitam ente, a regra ou norm a que
nela se contém. Resulta daí um silogismo truncado ou incompleto, a que a
lógica dá o nome de entimema: “J. C. é acusado de fraude; logo, não deve
ser eleito”, “J. C. lê Carlos Marx; logo, é comunista”.
314
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
Não é preciso declarar expressamente que “nenhum indivíduo acusa­
do de fraude deve ser eleito” ou que “todo indivíduo que lê Carlos Marx é
com unista” (relembrem-se as observações anteriores sobre a validade da
premissa maior) para se chegar à conclusão. Na prática, às vezes nem
mesmo a premissa m enor é enunciada: vai-se logo à conclusão. Nesta hi­
pótese, porém, quase sempre se impõe um a justificativa, isto é, a prova ou
razão do que se declara. A justificativa ocorre espontaneam ente ou resulta
de pergunta do interlocutor, quando se trata da língua falada: “Por quê?
Por que diz você que J. C. não deve ser eleito (ou que é com unista)?”
A vida cotidiana está cheia de situações que sc “resolvem” em encimemas. Não é preciso dizer com todas as letras que os mentirosos não m e­
recem crédito para não dar ouvidos ao que nos diz um mentiroso notório.
Basta afirmar: J. C. é um mentiroso (“logo, não acredite no que ele diz” é
um a conclusão tão espontânea, que se tom a desnecessário formulá-la).
A experiência nos ensina que às pessoas nervosas ou irritadas con­
vém ouvi-las com certa paciência ou tolerância. Se o nosso herói J. C.,
por estar nervoso ou irritado, nos dirige im propérios, um amigo mais to ­
lerante, “de cabeça mais fria”, nos advertirá: “Ele está nervoso.” A essa
advertência não precisa seguir-se a recom endação “logo, tenha um pou­
co de paciência”; a conclusão é facilm ente subentendida. De qualquer
forma, nosso amigo serviu-se de um silogismo incom pleto ou truncado,
cuja finalidade m esm a é persuadir e não propriam ente dem onstrar, como
já ensinava Aristóteles,6 a quem se deve, aliás, a criação da palavra enthymemci (en = em, thymos, espírito, pensam ento). E um raciocínio de
fácil m anejo, mesmo entre os incultos. É pensando “entim em aticam ente”
que, com freqüência, agimos e reagimos em face de situações concretas
do nosso dia-a-dia. E é nessa capacidade de o homem comum pensar,
sem grande esforço, entim em aticam ente, que se inspiram os profissionais
d a propaganda comercial: legendas, slogans e cartazes publicitários são
essencialm ente entim em áticos — e tam bém metonímicos. (Ver, a respei­
to, U. Eco, A estrutura ausente, p. 156-84.)
Os exemplos que acabamos de apresentar são apenas algumas das
variedades mais comuns de silogismo categórico; mas, além deste, há ou­
tros tipos — o expositório, o condicional, o apodítico, etc. — que, por sua
vez, se revestem de formas as mais diversas: dizem os entendidos que há
sessenta e quatro espécies, das quais, entretanto, apenas dez ou doze são
válidas.
Se são assim tão variadas as formas do silogismo, é fácil admitir que
em quase tudo quanto fazemos ou dizemos haja sempre pelo menos vestí­
gios ou resíduos de raciocínio dedutivo. Tentando mostrar como esse tipo de
raciocínio é freqüente na vida diária, Gorrell e Laird7 nos oferecem um
6 Cf. Arte retórica e arte poética, p. 21 e 27.
7 GORRELL, Robert M. c LAIRD, Charlton. M odem English handbook, p. 109-10.
I u f r p E Biblioteca C en tra
O thûn
M.
G arcia
♦
315
exemplo tão interessante, que não resistimos à tentação de transcrever al­
guns trechos dele, pondo entre parênteses algumas informações para orien­
tar o leitor: “...um estudante, pouco antes de começar uma das suas aulas,
sente um a indisposição no estômago. Dirige-se então ao bar e pede um m ilk
s h a k e de chocolate. Provavelmente nem sequer pensou no que fez. Se al­
guém lhe perguntasse porque pediu o m ilk s h a k e , certamente responderia
que o fez porque “teve vontade”. Na realidade, seu raciocínio foi muito mais
complexo e essencialmente dedutivo. Deve ter sido mais ou menos assim:
“Sinto um a estranha dor no estômago; já uma vez, quando experimentei sen­
sação igual, estava com fome (premissas maior e menor reversas); portanto,
devo estar com fome. Quem está com fome deve comer alguma coisa. (Ora)
eu estou com fome; logo, devo comer alguma coisa. Quem precisa comer al­
guma coisa apressadamente deve procurar algo que possa ser preparado e
servido em alguns instantes (ora, m i l k s h a k e pode ser preparado e servido
em alguns instantes); logo, m ilk s h a k e é uma boa coisa para ser pedida ao
garçom, se é que estou com pressa. Quem tem de estar na sala de aula den­
tro de sete minutos está com pressa; (ora) eu tenho uma aula de Economia
dentro de sete minutos; logo, estou com pressa. M ilk s h a k e de chocolate é
servido nos bares; (ora), isto aqui é um bar: logo, m ilk s h a k e deve ser servi­
do aqui. Pode-se tomar m ilk s h a k e quando se tem dinheiro; (ora) eu tenho
dinheiro; logo, posso tomar m ilk s h a k e . E assim por diante. A decisão de to­
m ar um copo de m ilk s h a k e , considerada mais atentam ente, implica um a sé­
rie tão elaborada de raciocínios dedutivos, que o estudante que começar a
analisar seu pensamento acabará certamente por perder a aula de Econo­
mia, para não falar do próprio m ilk s h a k e .”
2.0 Falácias
se superficial deles) i
sos afetivos, a expres:
Os lógicos divi
formais (erro resultai
de um engano da ap
Os principais s
mente), as verdadein
definição inexata, a c
desconhecimento) da
vicioso, a obsei-vação .
acidente e a falsa ana>
2.1 A natureza do erro
Ainda que com etam os um núm ero infinito de erros, só há, na ver­
dade, do ponto de vista lógico, duas m aneiras de errar: erram os racioci­
nando mal com dados corretos ou raciocinando bem com dados falsos.
(Haverá certam ente um a terceira m aneira de errar: raciocinando mal
com dados falsos.) O erro pode, portanto, resultar de um vício de form a
— raciocinar mal com dados corretos — ou de matéria — raciocinar bem
com dados falsos.
Todavia, não se deve confundir o erro em si (a opinião falsa) com o
raciocínio que o produziu. Não cabe à Lógica investigar as causas do erro
(isso é missão da psicologia, da metafísica, talvez, e das ciências), mas
descrever-lhe as formas. As crendices, as superstições, os tabus são erros:
não com pete à Lógica debatê-los, mas apenas m ostrar que as falsas opi­
niões deles decorrentes tiveram como ponto de partida um raciocínio ilegí­
timo ou vicioso.
2.2 Sofismas
A esse raciocínio vicioso ou falacioso é que a Lógica chama de sofis­
ma, í.e., falso raciocínio elaborado com a intenção de enganar.8
Bem, mas para que haja erro é preciso haver um julgamento, uma de­
claração, um a opinião expressa, que nega o que é e afirma o que não é. Er­
ramos, pois, quando declaramos ou generalizamos apressadamente. Mas,
quando dizemos: “Fulano é antipático” ou “Fulano só falou comigo uma vez
e já me considera antipático”, não há propriamente, raciocínio; manifestou-se
apenas um a impressão resultante daquilo que, em Lógica, se chama “sim­
ples inspeção”. E a simples inspeção (ausência de análise dos fatos ou análi-
8 Ao sofisma que não é intencionalmente vicioso, isto é, que não tem o propósito de enga­
nar, chamam os lógicos paralogismo. O sofisma implica má-fé; o paralogismo pressupõe boa-fé
(Cf. LIARD, L. Lógica, p. 198).
2.2.1 Falsos a.
Axioma é um \
por si mesmo, não pr
necessária, tal é a evi<
te, duas quantidades i
dos, pelo menos de n
do excessivo pelo geô
obra com o mesmo tít
termo se aplique de
extensão, no sentido
nas ciências ou na m<
tarde, se descobre a v
Essa máxima d
esta outra: “Tudo o q
no tempo de duração
ou máximas assumen
tenta construir o seu
de relativa, acaba... :
m a” a sua argumenta
mas, dando como e\
aquilo que é, apenas,
rância, malícia ou insi
2.2.2 Ignorânci
Esta é uma da
principalm ente quand<
te da questão em foco
sunto discutido, substit
O t h o n
M.
G a r c i a
♦ 317
se superficial deles) que nos leva a pronunciamentos motivados por impul­
sos afetivos, a expressão de sentimentos e não a juízos pautados pela razão.
Os lógicos dividem os raciocínios falazes, quer dizer, os s o fis m a s , em
f o r m a i s (erro resultante de um vício de forma) e m a te r ia is (erro resultante
de um engano da apreciação da m a t é r i a , vale dizer, dos f a t o s ) .
Os principais sofismas materiais (de que trataremos aqui preferente­
mente), as verdadeiras falácias do raciocínio são, segundo os entendidos: a
d e fin iç ã o in e x a ta , a d iv isã o in c o m p le ta , os fa ls o s a x io m a s , a ig n o r â n c ia (ou
desconhecimento) d a q u e s tã o (ou assunto), a p e tiç ã o d e p r in c íp io , ou c írcu lo
v ic io s o , a observação in e x a ta , a ig n o r â n c ia d a c a u s a (falsa causa), o erro de
a c id e n te e a fa ls a a n a lo g ia , sendo alguns de indução e outros de dedução.
2.2.1 Falsos axiomas
Axioma é um princípio necessário, comum a todos os casos, evidente
por si mesmo, não propriamente indemonstrável, mas de demonstração des­
necessária, tal é a evidência do que se declara: o todo é maior do que a par­
te, duas quantidades iguais a um a terceira são iguais entre si. (São conheci­
dos, pelo menos de nome, os doze axiomas de Euclides, número considera­
do excessivo pelo geômetra francês Legendre, que os reduziu a cinco, numa
obra com o mesmo título da de Euclides: E le m e n to s de G e o m e tiia .) Embora o
termo se aplique de preferência à matemática, é costume empregá-lo, por
extensão, no sentido de qualquer proposição ou máxima geralmente aceita
nas ciências ou na moral: “E um a x io m a geralmente admitido que, cedo ou
tarde, se descobre a verdade” (J. J. Rousseau).
Essa máxima de Rousseau será um verdadeiro ou falso axioma? E
esta outra: “Tudo o que existe e tem limites no espaço os tem igualmente
no tempo de duração?” (M. de Maricá, M á x im a s , 3333), Muitas sentenças
ou máximas assumem, às vezes, a imponência de axiomas, e aquele que
tenta construir o seu raciocínio sobre essa aparência de verdade, ou verda­
de relativa, acaba... sofismando. Muito orador ou polemista ousado “ar­
ma” a sua argumentação com essas verdades aparentes, esses falsos axio­
mas, dando como evidente por si mesmo, dando como indemonstrável
aquilo que é, apenas, o resultado da sua presunção, da sua ousadia, igno­
rância, malícia ou insuficiência de argumentação.
2.2.2 Ignorância da questão
Esta é um a das falácias mais comuns nas polêmicas ou debates,
principalmente quando a veemência e a paixão nos desviam insensivelmen­
te da q u e s tã o em foco, até um ponto em que já não nos le m b r a m o s d o a s ­
s u n to d is c u tid o , substittiindo-o por outro ou outros não pertinentes, mas ca­
318
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
pazes de comover, irritar ou desesperar o ouvinte ou leitor. Fugimos aos fa ­
tos; ao raciocínio frio, como se diz, apelando para a emoção.
Que faz o advogado de defesa, em face das provas concludentes,
irrefutáveis, de que o acusado praticou realm ente o crime que lhe é im­
putado? Não podendo negar a evidência dos fatos, apelará para o “bom
coração”, para os “sentim entos de hum anidade” dos jurados, dizendo
que o acusado é um excelente chefe de fanriiia, um pai extrem oso, tra ­
balhador honesto, cidadão exemplar... O advogado de defesa “esqueceu”
a questão, desviando-se, m aliciosam ente, falaciosam ente, para outro te r­
reno onde, com o apelo aos sentim entos, acom panhado, certam ente, da
teatralid ad e dos gestos, espera comover e convencer os jurados. Mas
não provou nada: sofismou.
A ignorância da questão assume outros aspectos muito comuns nas
assembléias políticas e nos comícios, assim como em certa imprensa, em
que políticos e jornalistas demagógicos, por lhes falecerem argumentos vá­
lidos com que rebater a evidência dos fatos apresentados pelos oponentes,
descam bam para o insulto, o impropério, a calúnia: Fulano é ladrão. Fula­
no é entreguista. Fulano é comunista. Fulano é “gorila”.
Argumentam? Não. Sofismam.
O adm inistrador ou homem público acusado de não cumprir a lei
que o obrigava a abrir concorrência para a pavimentação de certo trecho
de estrada, poderá alegar que a simples tom ada de preços trouxe econo­
mia de tempo e de dinheiro, e que os serviços prestados foram os mais sa­
tisfatórios. Sua resposta será uma defesa, uma alegação, um a desculpa, en­
fim. E desculpa não convence. O adm inistrador não provou que tinha ra­
zão, não provou que suas providências eram legais; sofismou, ignorando a
verdadeira questão.
2.2.5 Petição de princípio
É também argumento de quem... não tem argumentos, pois apresen­
ta a própria declaração como prova dela, tom ando como coisa dem onstra­
da o que lhe cabe demonstrar, isto é, adm itindo já como verdadeiro exata­
m ente aquilo que está em discussão. Só por gracejo ou então com o pro­
pósito de “encerrar o assunto”, diria alguém: “Fulano morreu de velho
porque viveu muitos anos” ou “Fulano morreu pobre porque não tinha di­
nheiro”. As orações de “porque”, dadas como causa da declaração (mor­
reu de velho, m orreu pobre), são a própria declaração disfarçada em ou­
tras palavras. É a petição de princípio, também cham ada círculo vicioso. Não
é raro ouvirmos, ditas com tom de auto-suficiência, coisas desta ordem: o
fumo faz mal à saúde porque prejudica o organismo; os corpos pesados
tendem sempre a cair porque são atraídos para o centro da Terra; estas
crianças são muito mal-educadas porque nunca aprenderam boas m anei­
ras; Machado de Assis é o maior escritor brasileiro porque nenhum outro
[U P P E B ib lio teca Centrai*
O thon
M.
G arcia
♦ 319
jam ais atingiu as mesmas alturas no que respeita à criação literária; por is­
so , sua obra é imortal: jamais será esquecida...
Isso, evidentem ente, não é argum entar mas alinhavar palavras que
nada acrescentam à própria declaração: não a fundamentam, não a justifi­
cam. Todo aquele que se inicia ou se exercita na arte de escrever deve evi­
ta r esse tipo de falsa argumentação, que a gramática chama ora de t a u t o ­
lo g ia (dizer a mesma coisa com outras palavras), ora de redu/iddncia (repe­
tir pormenores já implícitos em declaração prévia). Ao tratarm os da
c o n c is ã o d o p a r á g r a fo , mostramos como “pegar pelo pescoço” esse tipo de
sofisma e “torcê-lo”, tal como nos recom enda Verlaine que façamos com a
eloqüência:
Prends 1’é.loquence et tnrds-lui son cou!
(Jadis et naguère. “A rt p o é ti q u e ”)
2.2.4 Observação inexata
O erro de julgamento resultante da o b se rv a ç ã o in e x a ta é antes um pa­
ralogismo do que um sofisma propriam ente dito, a menos que se trate de
“escamoteação” de fatos para falsear a conclusão. Nas suas experiências de
laboratório, ou melhor, nas suas aulas práticas de ciências, o estudante inci­
de, por vezes, em erro por não ter observado adequadamente as fases de
unia reação química, por exemplo. Na d escriç ã o de u m p ro c e sso (funciona­
m ento de aparelho ou máquina) ou de um o b je to , o estudante, não raras
vezes, também, omite certos e stá g io s ou certas p a r te s , chegando assim a con­
clusões falsas ou a declarações incompletas, simplesmente porque não o b se r­
v o u os f a t o s ou dados concretos (ver “Descrição técnica” 8. Red. Téc., 1.2).
2.2.5 Ignorância da causa ou falsa causa
O espírito humano não se contenta com a simples observação dos
fatos: procura também a sua explicação, a sua razão de ser, a sua causa,
enfim. Partindo da simples o b s e r v a ç ã o , criando h ip ó te s e s , v e r ific a n d o (tes­
tando), chega-se à g e n e r a liz a ç ã o , à lei ou princípio científico. Observação,
hipótese, verificação e generalização constituem, de fato, os estágios nor­
mais do m étodo experimental. Nas ciências ditas experimentais ou da na­
tureza (as físico-químicas, por exemplo), o observador (cientista, pesquisa­
dor) busca a re la ç ã o c o n s ta n te e g e r a l entre fenômenos (fatos) simultâneos
ou sucessivos. Se descobre essa relação, descobre a lei ou p r in c íp io c ie n tífi­
c o . Dos fenômenos observados, o que determ inou o outro é a c a u s a ; o de­
term inado é o e fe ito . Estabelece-se assim um a relação de causa-e-efeito.
E verdade que nas ciências ditas morais e sociais, ou humanas (a
história, a sociologia, a política, por exemplo) a descoberta das causas não
320
♦
Comunicação
em
P rosa
M oderna
se faz com a mesma segurança; por isso, muitos contestam serem elas ver­
dadeiras ciências, já que as suas conclusões parecem simples opiniões pes­
soais mais ou menos plausíveis. Entretanto, os fenômenos que estudam,
nem por serem distintos dos das ciências experimentais, deixam de ter as
suas causas e suas leis, causas e leis que são ou indicam relações necessá­
rias quer entre fatos quer entre atos. Suas conclusões podem ter assim um
incontestável caráter de certeza, ainda que de outra ordem, diversa da das
ciências experimentais.
(estudados pelas cic
sa única mas a um
sempre constituem J
rem muitas generali:
É inegável que a característica predom inante da natureza hum ana é
querer saber sempre não apenas o que acontece mas também porque e
como acontecem as coisas. Essa curiosidade, essa verdadeira ânsia de que­
rer saber sempre a causa dos fatos, nos pode, entretanto, levar, não raro, a
erros de julgam ento, quando o nosso raciocínio é falho em qualquer dos
seus estágios. Incidimos, por exemplo, em erro, quando, por falsa ou mali­
ciosa observação e interpretação dos fatos, lhes citribuímos como verdadei­
ra causa o que é simples aparência ou coincidência. Se, pouco antes de me
deitar, tom o um a xícara de café e custo a conciliar o sono, sinto-me incli­
nado a adm itir que a causa da minha insônia ten h a sido a infusão, o que
é provável, mas não certo. Se, à noite, cruzo com um gato preto na rua, e
logo adiante tropeço e caio e admito que a causa da minha queda foi o
encontro com o felino, estou raciocinando por indução, sim, mas incidin­
do em erro, ao crer que o que vem antes é a causa do que ocorre depois:
post hoc ergo propter hoc (“depois disso, logo, por causa disso”). Maneira
simplista de explicar os eventos, pois o que vem antes não é, necessaria­
mente, a causa do que vem depois. No entanto, não é raro raciocinarmos
assim, por preguiça ou por malícia, chegando a conclusões apressadas ou
intencionalm ente buscadas, por considerarmos como causa o que não é
causa (non causa pro causa, como também é conhecida essa espécie de fa­
lácia ou sofisma).
Todavia, a busca da relação de causa-e-efeito caracteriza o mais efi­
caz e talvez o único método verdadeiram ente científico. Em que se baseia,
por exemplo, a previsão do tempo, se não na observação de certas condi­
ções atmosféricas (fatos), que a experiência provou serem a causa da chu­
va? Olho para o céu, vejo nuvens densas, “carregadas”, venta com intensi­
dade, troveja e relampeja, e sentencio: Vai chover. Estabeleci um a relação
entre causa (verdadeira) e efeito. Mas quem nos garante que o aum ento
da população tem como causa única a existência de famílias prolíferas? ou
que a causa da cabeça chata da maioria dos nordestinos é a rede onde
dormem? ou que a causa da prolificidade é a subnutrição? ou que o de­
senvolvimento do Brasil tem como causa o tem peram ento latino ou a mis­
cigenação?
Erro de aciden
se fosse um atribute
um a generalização f;
nando com erro de a
tos. Certo médico en
medicina é inútil, e t
barriga de alguém é
rurgiões são uns crii
não é dessa ordem gi
lemos todos os dias?
ou não se deixando c
Afirmações como essa são gratuitas, ou o são até que realm ente se
estabeleça a relação necessária entre o fato declarado e o que se conside­
ra como sua causa.- Isso, entretanto, nem sempre é possível, pois, como vi­
mos, os fenômenos de natureza espiritual, social, política, e até econômica
2.2.6 Erro de
2.2.7 Falsa an\
Analogia é seme
ção, mas indução pare
de alguns fatos singuk
clusão universal, mas i
infere em virtude de u
É, assim, a an á
tos do espírito, em qu
das para outras não ol
plicar a desconhecida.
Quando querem
qüentem ente de um ej
m iliar ao leitor ou ou\
laranja, tam bém achat
servindo-nos de um a «
habitado (é um a hipóu
como a Terra, também
fera, além de se parece
são tirada por analogi
M A R I T A I N , J .,
10
C f. L A H R , C h .
op. cit., p.
2
M a n u el de f
O thon
M.
Garcia
♦
321
(estudados pelas ciências humanas) não podem ser atribuídos a uma cau­
sa única mas a um complexo delas, nem sempre identificáveis porque nem
sempre constituem fatos materiais mensuráveis ou ponderáveis. Daí decor­
rem muitas generalizações falsas ou parcialmente falsas.
2.2.6 Erro de acidente
Erro de acidente é aquela falácia em que se toma o acidental como
se fosse um atributo essencial, constante, do que resulta, evidentem ente,
um a generalização falsa. Certo político revelou-se desonesto; logo, racioci­
nando com erro de acidente, concluímos que todos os políticos são desones­
tos. Certo médico enganou-se no tratam ento de um parente nosso; logo, a
medicina é inútil, e todos os médicos são charlatães. Quem mete a faca na
barriga de alguém é criminoso: ora, os cirurgiões fazem isso; logo, os ci­
rurgiões são uns criminosos: silogismo sofístico por erro de acidente. Pois
não é dessa ordem grande parte das “sentenças judiciosas” que ouvimos ou
lemos todos os dias? Acautele-se, portanto, o estudante, evitando emiti-las
ou não se deixando convencer por elas.
2.2.7 Falsa analogia e probabilidade
Analogia é semelhança: ela nos pode levar a uma conclusão pela indu­
ção, mas indução parcial ou imperfeita, “na qual o espírito passa de um ou
de alguns fatos singulares (ou de uma enunciação universal) não a uma con­
clusão universal, mas a uma outra enunciação singular ou particular, que ele
infere em virtude de uma semelhança”.9
É, assim, a analogia uma relação entre coisas ou entre procedimen­
tos do espírito, em que o raciocínio conclui de certas semelhanças observa­
das para outras não observadas,10 isto é, parte da coisa conhecida para ex­
plicar a desconhecida.
Quando queremos fazer-nos com preender melhor, servimo-nos fre­
qüentem ente de um exemplo constituído por coisa, fato ou objeto mais fa­
miliar ao leitor ou ouvinte: “A Terra é um a espécie de bola, ou melhor de
laranja, também achatada nos pólos” — diríamos a uma criança curiosa,
servindo-nos de uma analogia, no caso, de um exemplo. “Marte deve ser
habitado (é uma hipótese, e a analogia cria hipóteses e não certezas), pois,
como a Terra, tam bém tem rotação e revolução, tam bém tem um a atm os­
fera, além de se parecer com a própria Terra pela forma” — é um a conclu­
são tirada por analogia, por semelhança, mas um a conclusão provisória,
9 M A R IT A IN ,
op. cit.,
p. 2 7 3 .
10 C f. L A H R , C h . M an u el de p h ilosophie , p. 4 0 7 .
322
♦
C omunicação
em
P rosa
M oderna
um a hipótese, enfim, sujeita que está a confirmação resultante da observa­
ção de outros fatos. E, por ser uma hipótese, diz-se que o raciocínio por
analogia é uma forma de indução imperfeita, já que parte de um caso sin­
gular para outro singular: do planeta Terra para o planeta Marte.
O cão do nosso vizinho coçava-se dia-e-noite e perdia o pêlo. Seu
dono, depois de lhe aplicar sem resultado mil e um preparados contra sar­
na, resolveu cham ar o veterinário, que diagnosticou como causa o ácido
úrico, provocado por alimentação inadequada. Raciocinando por analogia,
concluímos que nosso cão também tinha ácido úrico, pois os sintomas
eram os mesmos e os mesmos preparados não surtiram efeito. Nosso vizi­
nho nos forneceu (gentilm ente) a receita, e nosso cão ficou bom sem pre­
cisar de veterinário. O cão sarou. Mas podia não ter sarado, pois só leva­
mos em consideração as semelhanças entre os casos particulares — sinto­
mas idênticos nos dois cães — sem termos em conta as possíveis diferenças
que talvez recomendassem outro tratamento. Pode assim a analogia ser um
processo falaz; não obstante, dela nos servimos a todo momento: “Sentes
uma dor do lado? É fígado. Toma Hepatolina, que passa logo.” (Às vezes,
passa: de médico e louco todos temos um pouco...)
O raciocínio por analogia é uma indução parcial ou imperfeita, que
conclui do particular (a sarna do cão do meu vizinho, a minha “dor do la­
do”) para o particular (a sarna do meu cão, a “dor do lado” do meu ami­
go), apenas em virtude de uma semelhança:
O cão d o m e u vizin h o ficou bo m com o p re p a ra d o q u e o v e te rin á rio
lh e receito u .
O ra, m e u cão a p re se n ta v a sin to m a s se m e lh a n te s;
lo g o , m eu cão há d e s a ra r com o m esm o p re p a ra d o q u e cu ro u a sa rn a do
c ã o d o m e u vizinho.
ou
Você s e n te u m a d o r d o lado.
O ra, e u ta m b é m se n tia u m a d o r s e m e lh a n te , ta m b é m “d o la d o ”, e fi­
q u e i b o m com H epatolina.
lo g o . se você to m a r H epatolina , ficará b o m ta m b é m .
Mas a cura do cão e a cura do meu amigo são coisas prováveis, por­
que o raciocínio por analogia, embora exerça papel considerável na desco­
berta da verdade, só nos fornece probabilidades e não certezas. É assim
uma forma de inferência a partir de um fato isolado para outro fato isola­
do. Porque só nos fornece probabilidades, é sem pre preferível recorrer ao
silogismo ou à indução de enum eração perfeita ou completa.
Othon
M.
G arcia
♦ 323
Comparações e exemplos constituem tam bém formas elem entares
de raciocínio por analogia ou semelhança, destinadas não propriam ente a
chegar a um a conclusão mais ou menos provável, mas apenas a ilustrar
ou esclarecer uma proposição ou declaração, tornando-a mais sensível
pelo cotejo com outro fato particular, porém mais conhecido (rever 3.
Par., “Desenvolvimento por analogia e com paração”, 2.3).
\
Q ui nta
P ar t e
5. ORD. - Pondo ordem no caos
1.0 Moàus sciendi
A análise, a síntese, a classificação e a definição constituem outros tan­
tos processos de disciplina do raciocínio, de organização e ordenação de
idéias com o propósito de sistematizar a pesquisa da verdade. São, assim,
métodos ditos sistemáticos, embora a análise corresponda, em essência, à in­
dução, e a síntese, à dedução. São também chamados modus sciendi, isto é,
modo(s) de saber.
1.1 Análise e síntese
Todo método é, em essência, analítico ou sintético. Análise é a de­
composição de um todo em suas partes, uma operação do espírito em que
se parte do mais complexo para o menos complexo, ou, em outras pala­
vras, do todo para suas partes.
Ora, a grande dificuldade do conhecimento científico decorre da natu­
reza complexa das coisas. Para perceber as relações entre as idéias, fatos, fe­
nômenos, seres ou objetos, a inteligência humana precisa discriminar, dividir,
isolar as dificuldades para resolvê-las. Daí a necessidade de análise, método
geral de que se servem todas as ciências. O espírito analítico caracteriza-se
pelo senso do detalhe, da exatidão, preocupando-se mais com as diferenças
entre os objetos do que com as suas semelhanças ou analogias. Mas a análi­
se, por si só, não alcança toda a verdade dos fatos ou fenômenos. Nas opera­
ções mentais em busca da verdade, o espírito humano tem de servir-se tam ­
bém da síntese, que é a reconstituição do todo decomposto pela análise. Se,
sem esta última, todo conhecimento é confuso e superficial, sem aquela, ele
é, certamente, incompleto, ou, como diz Victor Cousin (citado por Theobaldo
M. Santos, op. cit., p. 224), “síntese sem análise é ciência falsa, e análise sem
síntese é ciência incompleta”. O espírito sintético nos permite uma visão de
conjunto, pois, ao contrário do analítico, apóia-se nas semelhanças ou analo­
gias entre seres, fatos, fenômenos ou idéias.
Esses dois processos, inversos mas complementares, estão na base de
todos os métodos científicos sem exceção, e sua aliança constitui, por as­
sim dizer, o verdadeiro m étodo geral de que se servem as ciências.
328
♦
C omunicação
em
P rosa
M oderna
/ . / . / Análise formol e análise informal
Há dois tipos de análise: a form al (científica ou experimental) e a
informal (racional ou m ental). A primeira é peculiar às ciências m atem áti­
cas e físico-naturais ou experimentais. A segunda, que não pode ser com­
pleta nem caracterizar-se pela exatidão absoluta consiste em discernir por
vários atos distintos da atenção os elementos constitutivos de um todo, os
diferentes caracteres de um objeto ou fenômeno. Este último tipo constitui
a condição da abstração e da formação de idéias gerais.
Faz análise formal o naturalista que, para nos dar uma idéia do que
são os seres vivos, divide (i.e., analisa) as características gerais do seu com­
portam ento, de acordo com a finalidade da exposição, levando em conta as
diferenças entre elas:
P ara d esco b rirm o s as c a ra cterísticas g e ra is d o s se re s vivos e v erificar
em q u e d ife re m eles d e m a té ria b ru ta , v am o s e x a m in á -lo s sob os d e z as p e c ­
to s se g u in te s: 1. C om posição. 2. O rg a n iz açã o . 3 . M etab o lism o . 4. C o o rd e­
n a ç ã o . 5. E xcitabilidade. 6. R ep ro d u ção . 7. C rescim en to . 8. H e re d ita rie d a d e .
9. E volução. 10. R elações com o a m b ie n te .
(O. F ro ta Pessoa. Biologia n a escola secu n d á ria , p. 8 5 )
É análise formal ou científica porque baseada nas relações constan­
tes e invariáveis entre os seres e seu com portamento.
Faria análise informal o constitucionalista que, desejoso de estudar
certo aspecto da estrutura governamental, assim discriminasse (i.e., dividis­
se ou analisasse) o seu tema:
a) a co n stitu ição ;
b ) o g o v ern o federal;
c)
o g o v ern o reg io n a l o u local;
d ) a a d m in istra ç ã o p ú b lica;
e) a s funções ec o n ô m icas e sociais d o G overno;
0
a s in stitu iç õ es políticas c o n s a g ra d a s .1
7.7.2 Exemplo de análise de um tema especifico
O aluno que quisesse fazer uma redação a respeito, digamos, das ri­
quezas do Brasil, não poderia desenvolver o seu tem a sem o trabalho pre­
liminar da análise, tão numerosas e variadas são as idéias implícitas em
1 C A V A L C A N T I , T h e m í s t o c l e s B r a n d ã o . “A m e t o d o l o g i a n a c i ê n c ia p o l ít i c a ” , in R evista do In sti­
tu to de C iências Sociais da Universidade do Brasil ,
v. 1, n ° 2 , j u l h o - d e z e m b r o d e 1 9 6 2 , p. 1 0 0 .
O thon
m
.
Garcia
♦
329
“riquezas”. Na prática, esse trabalho consistiria num a lista preliminar, mais
ou menos caótica, de todos os “sinais” de riqueza que lhe fossem ocorren­
do como conseqüência das suas leituras ou experiência. Arrolaria certa­
mente as que mais importassem ou todas aquelas de que tivesse conheci­
mento. O resultado, i.e., o rol desses dados (ou fatos) seria mais ou m e­
nos desta ordem: riquezas minerais: ferro, carvão, petróleo, café, solo
fértil, cacau, babaçu, ouro, pedras preciosas, rios caudalosos, madeiras,
matérias-primas, cana-de-acúcar, terra imensa, topografia acessível, clima
ameno... A lista, por longa que fosse, ainda assim seria incompleta — ou
talvez dem asiadam ente longa, pois tudo dependeria das dimensões do tra­
balho, do propósito dele e do tipo de leitor a que se destinasse. Na prim ei­
ra hipótese — enum eração incompleta — o aluno poderia tom ar cada um
dos itens ou alguns deles e submetê-los a uma nova análise, decompondoos, especificando-os cada vez mais. Sirva de exemplo o primeiro: riquezas
minerais. Basta saber um pouco de geografia econômica do Brasil para
enum erar sem esforço várias espécies delas e verificar, aliás, que algumas
já estão incluídas na lista caótica. O segundo estágio da análise daria coi­
sa mais ou menos assim:
I.
R iquezas m inerais:
a)
ferro
b) m a n g a n ê s
c) cobre
d) e s ta n h o
e) c a ssiterita
0
p e d ra s preciosas, etc.
Se quisesse prosseguir, era só tom ar o subtópico f) e por sua vez tam ­
bém decompô-lo (as diferentes espécies de pedras preciosas). Fazendo a
mesma coisa com os outros tópicos ou itens, o aluno acabaria dispondo de
tanto material (idéias, fatos) que daria para um livro e não uma simples re­
dação de cinqüenta ou cem linhas. Com isso, o plano se estaria delineando,
mas ainda de maneira desordenada. O segundo estágio desse processo preli­
minar de elaboração mental, isto é, o segundo modits sciendi — a classifica­
ção — de que trataremos no tópico seguinte, levaria a uma disposição mais
adequada da matcria.
1.2 Classificação
*
Se, pela análise, decompomos o todo em suas partes, pela classifica­
ção estabelecemos as relações de dependência e hierarquia entre essas par­
tes. Em outras palavras: classificar é distribuir os seres, as coisas, os obje­
330
♦
Com unicação
em
P rosa
M oderna
tos, os fatos ou fenômenos de acordo com suas semelhanças e diferenças.
Constitui essa operação uma das funções essenciais da inteligência hum a­
na. A formação de qualquer idéia geral é um ato de classificação, que tan­
to pode consistir num processo cômodo, prático mas arbitrário, que nos
permita coordenar, esclarecer e transm itir nosso conhecimento quanto re­
presentar realm ente as relações intrínsecas, essenciais e invariáveis, a hie­
rarquia, enfim, entre as idéias. No primeiro caso, a classificação se diz arti­
ficial, no segundo, natural, sendo esta própria de ciências tais como a zoo­
logia e a botânica, por exemplo.
Mas análise e classificação ligam-se tão intimamente, que às vezes se
podem confundir, pelo menos entre os leigos. Tanto isso é verdade, que, com
freqüência, os dois termos são empregados como sinônimos, imprecisão que
se deve evitar: análise é decomposição, e classificação é hierarquização.
Q uando o zoólogo divide (ou classifica) o reino animal em 12 ra­
mos (um dos quais corresponde aos vertebrados), 44 classes (cinco das
quais são subdivisões dos vertebrados: peixes, batráquios, répteis, aves e
mamíferos), 80 ordens (doze das quais correspondem a subdivisões dos
mamíferos), e prossegue, tomando, por exemplo, a principal ordem dos
mamíferos — os primatas — e subdividindo-a em famílias ou subordens, e
estas em gênero e espécies (macaco, homem) — quando assim age, está o
zoólogo classificando os animais de acordo com seus caracteres ao mesmo
tempo com uns e diferenciadores.
Mas, fora das ciências ditas naturais, a classificação pode consistir
num processo mais ou menos arbitrário, em que se tomam os caracteres
comuns e diferenciadores de maneira mais ou menos convencional, segun­
do os propósitos que se tenham em vista, ou um a série de fatores circuns­
tanciais. Considere-se a seguinte lista de coisas e seres: relógio, bicicleta,
arroz, sabiá, barbeador elétrico, motocicleta, batata, canário, ventilador, au­
tomóvel, feijão, galinha. Trata-se de um a enum eração caótica; só a classifi­
cação pode pôr-lhe ordem, classificação que se fará segundo as afinidades
comuns entre os elementos da série:
M e c a n is m o s
Ve íc u l o s
A l im e n t o s
A ves
relógio
bicicleta
a rro z
sab iá
b a rb e a d o r
e létric o
m otocicleta
b a ta ta
c a n á rio
v e n tila d o r
au to m ó v el
feijão
g alin h a
2 Exemplo, adaptado, de Robert M. Gorrell e Charlton Laird, op. cít., p. 128.
|UFPE Biblioteca Centra
O thon
M.
G arcia
♦
331
Os alunos de uma turma podem ter classificação segundo diferentes
critérios: a cor dos cabelos, a idade, o aproveitamento, a religião, a aplica­
ção, a disciplina, etc., tudo dependendo do propósito. As palavras, num dicio­
nário comum, estão arroladas pela ordem alfabética; mas, num dicionário
analógico, podem vir agrupadas pela afinidade de sentido. Nas gramáticas,
elas estão classificadas (distribuídas em classes) em substantivo, adjetivo, arti­
go, numeral, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição.
7.2.7 Coordenação e subordinação lógicas
O mesmo se pode fazer com todos os fatos, fenômenos ou idéias, mas
o que importa — e este é o princípio geral da classificação — é que se le­
vem em conta duas relações básicas entre as unidades ou elementos: a coor­
denação e a subordinação. Retomemos a classificação do reino animal, de
que tratamos há pouco: na ordem dos mamíferos encontramos os primatas,
os insetívoros, os quirópteros, os carnívoros e outros. Como subdivisão, os
primatas, os insetívoros, os quirópteros, os carnívoros são termos subordinad.os a mamíferos, mas coordenados entre si, pois têm caracteres básicos co­
muns. Assim também a classe de palavra substantivo subordina as suas varie­
dades: próprio, comum, concreto, abstrato, simples, composto, primitivo, de­
rivado. Estas variedades estão coordenadas entre si, porque são, de certo
modo, paralelas, tendo relativamente a mesma extensão, mas extensão que é
menos ampla do que a do conceito geral de substantivo.
7.2.2 Classificação e esboço de plano
Servindo-se do tema “riquezas do Brasil”, ao correr os olhos pela lista
caótica da fase preliminar do seu trabalho, verificaria o estudante que nem
todos os itens têm a mesma extensão; quer dizer: uns são mais amplos, mais
gerais, do que outros, mais específicos. Já teria verificado, como mostramos,
que “riquezas minerais” inclui ferro, manganês, cobre, estanho, etc. Admitin­
do que “riquezas minerais” viesse a ser o primeiro tópico (a ordem depende­
ria da ênfase e do desenvolvimento que lhe fosse dado), o aluno numerá-loia (algarismo arábico, de preferência), sotopondo-lhe os subtópicos (especifi­
cações), encabeçados por letras minúsculas, ou por algarismos romanos, se
alguns deles ou todos viessem a ser subdivididos. Resultado:
1. R iq u ezas m in e rais:
a) ferro
b) m a n g a n ê s, etc.
0 p e d ra s p recio sas
332 ♦ c O M U N I C A Ç Ã O
EM
PROSA
MODERNA
Mas, como “pedras preciosas” pode ser especificado, a nom enclatura
dos tópicos passaria a ser:
1. R iquezas m in erais:
I — ferro
II — m a n g an ê s, etc.
IV — p e d ra s preciosas;
a) d ia m a n te s
b) tu rm a lin as,
etc.
2. R iquezas v egetais:
Fazendo a mesma coisa para os demais itens ou tópicos, o aluno te­
ria concluído a classificação e, ipso facto, teria delineado o plano ou roteiro
ou esquema do seu trabalho (ver ainda a aplicação desse processo no pre­
paro de plano de um a descrição, em 7. Pl., 1.0, e, quanto à disposição e
num eração dos tópicos, “Observações”, em 7. PL, 2.4).
1.3 Definição
A definição, como modus sciendi, é um recurso de expressão de que
nos servimos para dizer o que é que queremos dar a entender quando em­
pregamos um a palavra ou nos referimos a um objeto ou ser. Como uma
das categorias da lógica, traduz-se num a “proposição afirmativa que tem
por fim fazer conhecer exatamente a extensão e a com preensão de um ter­
mo e da idéia correspondente”. Consiste, assim, num a fórmula verbal atra­
vés da qual se exprime a essência de uma coisa (ser, objeto, idéia). É, por­
tanto, uma operação do espírito em que se determ ina a compreensão que
caracteriza um conceito.3
A sem iologia distingue duas espécies de definição: a) a que se faz
por referência à coisa denotada pelo signo (definição denotativa, referen­
cial ou ostensiva); b) a que se faz por meio de signos pertencentes a um
sistem a construído, a um a língua artificial ou m etalíngua (definição se­
mântica ou metalingiiística; nos dicionários, essa definição se diz lexico­
gráfica) .
3 C f. L A L A N D E , A n d r é . op. c i t p. 2 0 9 , v e r b e t e définition.
O th o n
M.
G arcia
♦
333
Nos dicionários, a definição é uma análise semântica da palavra-ver­
bete, análise que, com freqüência, se confunde com a descrição do pró­
prio objeto, da coisa a que se refere. Portanto, podem-se definir palavras
(definição metalingüística) como se podem definir (descrever) coisas.4
Mas, se todas as palavras podem ser definidas semanticamente, nem
todas as coisas adm item definição, segundo os rigores da lógica. Só se de­
finem as classes; as espécies, os indivíduos, as obras individuais, lato sensu,
só podem ser descritos ou caracterizados. Definimos o homem (a classe dos
hom ens): “é um animal racional”; mas não podemos definir um homem
que se cham a Joaquim Carapuça (uma espécie dentro da classe): este só
podem os descrever, caracterizando-o, apontando nele os traços que o dis­
tinguem dos outros indivíduos da mesma classe. Posso definir o am or em
geral, mas não uma determ inada espécie de amor, aquele que levou Joa­
quim Carapuça a m atar por ciúmes a sua querida Serafina. Na prática, en­
tretanto, é usual em pregar “definir” no sentido de descrever, caracterizar;
explicar.
A definição é um dos mais eficazes e mais freqüentes recursos da
expressão de que nos servimos na exposição ou explanação de idéias. Nas
ciências — sobretudo nas ciências exatas — dificilmente se pode dela pres­
cindir. Não há, praticam ente, um a só m atéria — mesmo que seja geogra­
fia ou história, ciências essencialmente descritivas — em que o professor
não se veja na contingência de definir algo. Definir é um a das contingên­
cias do cotidiano. E válido dizer que, grosso modo, toda nossa ânsia de sa­
ber, de conhecer — como todo nosso propósito de ensinar, de informar —
se resolve, em última análise, em termos de definição. Viver é, em grande
parte — ou é essencialmente — um indagar perm anente, um perguntar a
todo instante “que é isso?”, é um a constante busca de respostas que, tra­
duzidas em definições, saciam nossa curiosidade, esclarecem nossas dúvi­
das, informam-nos ou levam-nos a conhecer.
Ora, se é nas escolas que mais perguntas se fazem e mais respos­
tas se dão — respostas que não são apenas a perguntas de “por quê?”,5
de “como?” e de “quando?”, mas sobretudo de “que é isso?” — , nada
mais justificável do que ensinar a definir. A maioria dos testes e dos exa­
mes consistem em responder a “que é isso?” (ou era assim antes da ob­
sessão dos de “múltipla escolha”), e responder com definições. Ora, m ui­
tos estudantes (só estudantes?) erram nas respostas não porque ignorem
a m atéria mas porque, na sua maioria, não sabem definir. Se assim é, lei­
tor, a feição e o desenvolvimento do tópico seguinte estarão em parte
justificados.
4 C f . D U B O I S . J e a n e f a l.} op. cif., p. 1 3 6 . v e r b e t e défin itio n .
5 S o b r e a s m o d a lid a d e s d a s e x p r e ss õ e s d e c a u s a e d e t e m p o —
que re sp on d e m
e a " q u a n d o ” — , v e r 1. Fr., 1 .6 .1 a 1 . 6 . 5 . 5 . 1 , e 1 0 . E x . , 1 0 7 a 1 1 1 ,
a “p o r q u ê ? ”
334
♦
Comunicação
Prosa
em
M oderna
1.3.1 Estrutura formal da definição denotativa
No que diz respeito à sua formulação lógica e à sua estrutura ver­
bal, a definição traduz-se num a proposição, dita “predicativa”, constituída
por quatro elementos:
a) termo (definiendum) — a coisa a ser definida;
b) cópula = verbo ser (ou seu equivalente em estruturas menos rígidas, co­
mo, por exemplo, “consistir em ”, “significar”);
c) gênero (genus) — a classe (ou ordem) de coisas a que pertence o termo;
d) diferenças (differentiae) — tudo aquilo que distingue a coisa representa­
da pelo term o de outras coisas incluídas n a mesma classe.6
A “fórmula” da definição que daí se pode tirar
T = G T d j -I- d 2 + ...d q
corresponde à própria estrutura da proposição predicativa, em que T = sujei­
to, G = predicativo, e d = adjunto(s) do núcleo do predicativo.7 Exemplo:
Retângulo é um quadrilátero de ângulos retos e lados iguais dois a dois.
Sujeito = termo (T): retângulo
Verbo de ligação = cópula: é
Predicativo = gênero (G): um quadrilátero
Adjuntos = diferenças: de ângulos retos (d x), lados iguais (d2), dois a
dois (d3).
1.3.1.1 Requisitos da definição denotativa
Para ser exata, verdadeira e válida, a definição deve apresentar cer­
tos requisitos:
6 a ) é o d e fin ien d u m ( o cjue d e v e ser definido); c ) e d ) , o definiens ( o que define).
7
P a r a a s e m â n t ic a e s t r u r u r a lis r a , a d e f in iç ã o ( m e t a lin g ü ís t ic a ) é a a n á lis e d o s ig n if ic a d o d e
um
s i g n o , a n á l i s e q u e s e fa z , d e c o m p o n d o - o
ma —
S ),
S)
de
um a
S 2 . Sr|. E n t ã o ,
(d e â n g u lo s re to s)
p a la v r a
( íw r e m a )
o sem em a
+
(S )
n o s s e u s se / n a s. A s s i m , o s e n t i d o g e r a l
in c lu i o s e le m e n t o s m ín im o s
re tâ n g u / o c o m p r e e n d e
S 3 ( d e la d o s ig u a is )
+
cie s i g n i f i c a ç ã o
os sem as S ( q u a d r ilá t e r o )
T, e S |
+
+
—
S2
S 4 ( d o is a d o is ) . C o m o se v ê , a m o d e r n a “f ó r ­
m u l a ” s e m â n t i c a d e d e f i n i ç ã o c o r r e s p o n d e à s u a t r a d i c i o n a l “ f ó r m u l a ” ló g ic a , o u s e j a :
S =
(s e m e -
(se m a s
S 2 +■ ••• S t) =
G
+
d
\
T
d2 +
dq
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
335
a) o term o deve realmente pertencer ao gênero (classe) em que vem incluí­
do na definição: “mesa é um m over e não “uma ferram enta” ou “uma
instalação” (ver item seguinte).
b) o gênero deve ser suficientemente amplo para com preender a espécie de­
finida, e suficientemente restrito para que as características individualizantes possam ser percebidas sem dificuldade nem confusão com ou­
tras espécies. Segundo esse princípio — dito do “gênero próximo e dife­
rença específica” —, não é admissível dizer que “mesa é um objeto de
uso doméstico” (gênero demasiadamente amplo, pois inclui um grande
núm ero de outros “objetos” que nada têm a ver com a mesa), ou que “é
um móvel de sala de jantar” (gênero demasiadamente restiito, pois ex­
clui outras espécies de mesa, mesa de cozinha, mesa de “centro”, mesa de
escritório...).
c) deve ter um a estrutura gramatical rígida tal, que o termo (sujeito) e o
gênero (predicativo) pertençam à m esm a classe de palavras. Em virtu­
de desse requisito — que é tanto imposição da gramática quanto da ló­
gica — , é inaceitável uma definição do tipo da seguinte, muito comum
no estilo dos colegiais (só colegiais?): “M adrugar é quando a gente acor­
da muito cedo”, em que o gênero está expresso num a oração que não
pode ser predicativa (“quando a gente acorda”) pois não equivale a um
nome e, portanto, não pode pertencer a mesma classe do term o sujei­
to “m adrugar”, forma nom inal do verbo, equivalente a um nome. É,
assim, um a definição (?) inadmissível, tanto do ponto de vista lógico
(a oração tem poral não representa o gênero) quanto gramatical (a con­
junção “quando” não pode introduzir oração predicativa).
Essa norma referente à rigidez gramatical não impede, entretanto,
que, nas definições que visam a efeitos estilísticos, se possa adotar uma es­
trutura algo diferente. Isso ocorre, sobretudo, nas definições conotativas ou
metafóricas, isto é, aquelas em que o gênero tem sentido metafórico.
d) deve ser obrigatoriam ente afirmativa; não há, em verdade, definição,
quando se diz que “triângulo não é prism a”.
e) deve ser recíproca para' não ser incompleta ou insatisfatória: “o homem
é um ser vivo” não constitui definição suficiente porque a recíproca —
“todo ser vivo é homem” — não é verdadeira (o gato é um ser vivo
mas não é homem).
f) deve ser breve (contida num só período, ou proposição predicativa).
Quando a definição — ou o que se pretenda como tal — é muito lon­
ga e constituída por uma série de períodos (ou mesmo parágrafos), pas­
sa a ser uma descrição do objeto, um a explicação, a que, então, se cos­
tum a dar o nome de “definição expandida” ou “alongada”.
g) deve ser expressa em linguagem mais simples, mais familiar ao leitor
ou ouvinte. Esta norm a diz respeito principalm ente ao gênero. Se, no
33 6
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
caso da definição de retângulo, se adm ite que o gênero — quadriláte­
ro — não é familiar ao leitor ou ouvinte, deve-se substituí-lo por ou­
tro mais claro: figura plana de quatro lados, ou paralelogramo. Q uan­
do o gênero não é mais conhecido do que o term o, torna-se necessá­
rio defini-lo também,
h) não se pode usar no gênero o termo que se está definindo.
Essas normas sobre a estrutura e os requisitos da definição não consti­
tuem, como se poderá objetar, simples bizantinices; são, ao contrário, segun­
do nos parece, indispensáveis à clareza, à precisão e à objetividade da comu­
nicação, vale dizer, da exposição ou explanação de idéias ou da simples in­
formação. Um estudante de ciências — sobretudo de ciências naturais —
corre o risco de cometer graves erros, de revelar ignorância, apesar de ter o
conhecimento da matéria, simplesmente porque desconhece a técnica da de­
finição.
S e xt a
P arte
6. ID. - Como criar idéias
1.0 A experiência e a pesquisa
Acabamos de ver como disciplinar o raciocínio, como ordenar e co­
ordenar idéias para a descoberta da verdade. Mas onde e como encontrar
idéias? Como criá-las, inventá-las ou produzi-las?
1.1 Experiência e observação
A experiência é, certamente, a fonte principal das nossas idéias —
em certo sentido é mesmo a única, pois ela pode ser tão variada e m ulti­
forme, que acaba abrangendo toda a atividade humana, seja física, seja
mental. A frase de Locke* já mais de um a vez aqui citada — “Nihil est in
inteilectu quod prius non fuerit in sensu” — é indubitavelmente válida (em
que pese ao idealismo de Hegel, que a subverteu radicalmente, invertendolhe os termos: “Nihil est in sensu quod prius non fuerit in inteilectu” — “n a­
da nos chega aos sentidos sem ter antes passado pelo espirito”). Para Locke
(e outros) todas as idéias provêm da sensação (vale dizer: da experiência)
e da reflexão. (An essay concerning human understanding, liv. II, cap. I). A
alma hum ana é um a tabula rasa sem nenhum a idéia inata, pois todas lhe
vêm da experiência, “que é o fundam ento de todos os nossos conhecimen­
tos” (Id. ibid.). Também assim pensa David Hume, quando diz que “só pela
experiência conhecemos, sem exceção alguma” (Philosophical essays concer­
ning human understanding, seção Y citado por Joel Serrâo e Rui Gracio, Ló­
gica e teoria do conhecimento, p. 229).
Mas a experiência não é um fato isolado, arrolado, classificado, e
sim uma situação global, que se integra em nós, pautando nosso com porta­
mento, regrando nossas atitudes. Viver é adquirir experiência, e adquirir
experiência é aprender, ou, como diz a sabedoria popular, “vivendo é que a
gente aprende” (porque está aprendendo a pensar).
Adquirir experiência é observar. Mas o espírito é como um a caixa de
ressonância: as impressões colhidas através da observação dos fatos, atra­
vés da experiência, consubstanciam-se em idéias ou representações que,
por sua vez, graças à imaginação e à reflexão, se associam, se entrecruzam, se multiplicam, se desdobram em outras. E evidente, portanto, que
340
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
não estará em condições de escrever quem não dispuser de uma capacida­
de m ínim a de refletir, quer dizer, de selecionar, ordenar e associar impres­
sões e idéias advindas da observação dos fatos. Isto porque “la fonction vi­
tale de l’esprit littéraire consiste à appréhendre le contenu concret pour le
dissocier e t l’inform er en combinaisons imaginatives, selon un mécanisme
individuel, un métabolisme psychique, si l’on p eu t dire”.1 Nossas abstra­
ções inspiram-se sempre na justeza da observação. Quanto mais observa­
mos, quanto maior for a acuidade de nossa observação, tanto maior será o
acervo de nossas idéias. “C’est donc aux faits qu’il faut revenir, c’est à la
réalité qu’il faut puiser. (...) ^expérience est la loi, le Fiat Lux de tout sa­
voir.”2
Mas a experiência da vida é desordenada, indiscriminada: aprendese o útil e o inútil, o bom e o mau, o agradável e o desagradável; de for­
ma que, quando se visa a um objetivo imediato, distinto, específico, ela
tem de ser provocada, regrada, dirigida, controlada pela atenção e pela ob­
servação acurada. Muitas vezes, entretanto, circunstâncias várias limitam as
oportunidades de experiência pessoal. Neste caso, temos de servir-nos da
alheia, o que, em síntese, consiste em saber o que outros observaram, fize­
ram, viram , sofreram, pensaram, sentiram. Ora, n a realidade, parece que
só há mesmo três modos de aproveitar a experiência alheia: o convívio, a
conversa e a leitura.
Convivendo, estamos de qualquer forma assimilando hábitos, atitu­
des, form ando conceitos e preconceitos, adquirindo padrões de com porta­
mento, criando ou desenvolvendo idéias, enfim. Não é assim apenas conta­
to físico, epidérmico, mas tam bém intercâmbio de idéias. Constitui, portan­
to, um a forma híbrida de experiência: a nossa e a alheia.
A conversa é, talvez — como já assinalamos — o meio mais assí­
duo de aprendizado de palavras, e, ipso facto, de idéias. Mas, quando se
tem em vista um propósito imediato, a simples conversa avulsa, desordena­
da, ocasional não nos pode prover daquelas idéias de que precisamos. Nes­
te caso, h á que criar uma situação que as canalize para o nosso objetivo;
isso se consegue, “dirigindo a conversa”, transformando-a, por assim dizer,
em inquérito, interrogatório ou entrevista, a fim de aproveitar a experiên­
cia alheia, traduzida em depoimento ou testemunho.
Suponhamos que o estudante queira fazer um trabalho — que neste
caso será de pesquisa, i.e., de coleta de dados (fatos) — sobre as condi­
ções de vida nas favelas do Rio de Janeiro. Se se limitar a generalidades
em linguagem lírica ou, mesmo, de protesto, linguagem desapoiada dos fa­
tos, sua redação poderá ficar muito “bonitinha”, muito bem escrita, mas
será apenas mais uma “redaçãozinha” anódina.
1 DUCHIEZ, 1: e JAGOT, P C. L’E ducation du style, p. 94.
2 I d op. cit., p. 84.
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
341
Para evitar isso, será preciso que o estudante (aprendiz de sociólo­
go, assistente social, repórter) tome papel e lápis e... suba às favelas para
colher os fatos “ao vivo” ou através do testem unho alheio, vale dizer, do
depoim ento dos favelados. Ora, isso se faz da m aneira mais simples, que é
aquela de que a gente lança mão quando quer saber alguma coisa: pergun­
tando. Mas perguntar a esmo é... bisbilhotar. Trata-se aqui de perguntar...
sistem aticamente, com vistas a um determ inado fim. Para isso, é preciso
planejar o questionário, é preciso saber previamente o que se vai indagar
através dessa espécie de entrevista com os favelados, quer dizer, com aque­
les cuja experiência se pretende aproveitar. Planejado o questionário e ano­
tadas as respostas, o estudante talvez desça do morro com um acervo de
dados (fatos, depoimentos) suficiente para o preparo de um trabalho que
será, sem dúvida, aproveitável, que constituirá, certam ente, um a contribui­
ção apreciável, desde que — convém relem brar — se tenha certificado de
autenticidade, da fidedignidade e da relevância dos testem unhos colhidos e
anotados.
Mas a pesquisa não deve limitar-se apenas a essa coleta de dados;
há outras fontes de testemunhos: os entendidos, quer dizer, pesquisadores
(sociólogos, assistentes sociais, psicólogos, sanitaristas, urbanistas, etc.) que
tiveram contato com os mesmos fatos, que se familiarizaram, em suma,
com a questão. Sua experiência lhe será útil, e mesmo indispensável: con­
sulte-os e anote seu testem unho, que será, neste caso, certam ente... autori­
zado.
Colhidos assim os dados, arrole-os, classifique-os (ver “Classifica­
ção”, 5. Ord., 1.2). Mas, se quer fazer coisa que se aproveite, ainda é cedo
para começar a elaboração do trabalho propriam ente dito (dissertação, en­
saio, monografia, tese): o estudante talvez não se tenha assenhoreado ain­
da de todas as idéias (dados, fatos) necessários. Urge recorrer a outra fon­
te: a leitura.
1.2 Leitura
Nem sempre é possível, por questão de tempo, espaço, e outras cir­
cunstâncias, entrevistar pessoalmente todos os entendidos cujo testem unho
seja necessário à preparação do trabalho. É aí que entra a leitura,3 vale di­
zer, a pesquisa bibliográfica propriam ente dita. Desça então o estudante
das favelas, dê por term inadas as entrevistas com os entendidos e... entre
nas bibliotecas.
3 Consulte-se, □ respeito, PENTEADO, J. R. Whitaker. A técnica da comunicação hum ana, cap.
V "Teoria e prática da leitura", p. 185-213 e TAVARES, Hênio. Técnica de ieitura e redação ( I a
parte).
342
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
1.3.0 Pesquisa bibliográfica
7.3,7 Classificação bibliográfica
As grandes bibliotecas têm milhares de obras (a Nacional, por exem­
plo, tem cerca de três milhões) 4 Já imaginou o estudante o que será a
distribuição desses livros todos pelas estantes, distribuição feita de tal for­
m a que seja possível, em breve prazo, localizar a obra desejada? Diria o
leigo que basta num erar as estantes e os livros, e fazer um a lista disso.
Sim, é mais ou menos o que acontece. Mas estarão eles distribuídos pelo
seu tam anho, pela sua espessura, pela cor de sua lombada, pelo seu pre­
ço? Evidentemente que não. Estão classificados de acordo com o assunto.
Os sistemas de classificação bibliográfica mais conhecidos são o de
Melvil Dewey (CDD = Classificação Decimal de Dewey), o da Biblioteca do
Congresso, de Washington, e a Classificação Decimal Universal (CDU), ba­
seada na de Dewey. No Brasil, a mais difundida é a primeira.
Diz-se que a CDD é decimal, porque, tom ando o campo do conheci­
m ento como a unidade, divide-o em dez classes de um mínimo de três al­
garismos precedidos pelo ponto (ou vírgula) decimal (na prática, hoje em
desuso), sendo as divisões subseqüentes lidas também como números deci­
mais. Vejamos uma amostra:
000
O b ra s g e ra is
500
C iências p u ras
0 1 0 B ibliografia
5 1 0 M a te m á tic a
0 2 0 B iblio teco n o m ia
5 2 0 A stro n o m ia
100
Filosofia
5 2 2 .2 T elescópios
200
R eligião
53 0 Física
300
C iên cias sociais
5 3 2 H id ro stá tic a , H id ráu lica
3 5 0 A d m in istra çã o
400
L ingüística, Filologia
4 6 9 L ín g u a p o rtu g u e sa
5 3 4 .8 A cústica
600
C iências a p lic a d a s
T ecnologia
6 1 0 M edicina
4 Segundo dados fornecidos em 1987, a B.N. tem atualm ente mais de cinco milhões de pe­
ças, total que com preende toda espécie de impressos e manuscritos.
U F P E Biblioteca Centr
O thon
M.
G arcia
♦
343
6 2 0 E n g e n h a ria
8 3 0 Lit. alem ã
B elas-A rtes
8 3 9 .8 3 6 4 (H ans C hristian A ndersen) j
i
7 2 0 A rq u ite tu ra
8 4 1 .4 5 (La F o n tain e)
\
700
77 8 F otografia
I 800
900
H istó ria. G eo g rafia
7 8 0 M úsica
9 2 0 B iografia
L ite ra tu ra
9 4 0 .1 E u ro p a m e d iev a l
8 1 0 Lit. arb e ric an a
8 2 0 Lit. inglesa
Sabendo em que consiste a classificação decimal, o estudante pode
orientar-se satisfatoriam ente não apenas para a organização da bibliogra­
fia mas também, até certo ponto, para a escolha do seu tema.
A classificação adotada pela Biblioteca do Congresso, de Washing­
ton, que é pouco difundida, mesmo nos Estados Unidos, em prega as letras
do alfabeto para as classes maiores, e algarismos arábicos ou letras adicio­
nais, para as subdivisões:
Belas-A rtes
A
O b ras g erais
N
B
F ilosofia, Religião
O
...
C
H istória, C iências
P
L ínguas e lite ra tu ra s
au x ilia re s
Q
C iências
H istó ria e T opografia
R
M edicina
E eF
H istó ria a m e ric a n a
S
A g ricu ltu ra
G
G eografia, A ntro p o lo g ia
T
T ecnologia
H
C iências sociais
U
C iências m ilita re s
D
V
C iências n av ais
J
C iências políticas
w
...
K
D ireito
X
I
E ducação
Y
M
M úsica
z
I
B ibliografia, B ibliote
As classes correspondentes às letras I, O, W, X e Y estão ainda em
branco para ulterior aproveitamento.
344
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
1.3.2 Obras de referência
Simulemos um a visita à biblioteca. Mesmo naquelas em que os li­
vros ficam fora do alcance do leitor, há algumas obras, geralmente em es­
tantes baixas, próximas às mesas de leitura, que ele pode consultar sem in­
terferência do bibliotecário ou funcionário encarregado de atender ao pú­
blico. São as cham adas obras de referência: dicionários, enciclopédias, catá­
logos e boletins bibliográficos.
Comece pelas enciclopédias, que podem ser gerais (a Encyclopaedia
Britannica, a Barsa, a Larousse, a Delta, a Mirador Internacional) 5 e especiali­
zadas (a Catholic Encyclopaedia, a Jewish Encyclopaedia, e muitas outras so­
bre assuntos específicos, como ciências sociais, artes plásticas, etc.).
Consultando previamente as enciclopédias, o aluno pode ter um a
idéia geral do assunto escolhido, uma visão sucinta que lhe perm ita orien­
tação preliminar. Assim informado, ser-lhe-á talvez mais fácil delinear o
plano do seu trabalho.
1.3.3 Catalogação
Mas o acervo das obras de um a biblioteca de grande porte — como
a Nacional ou a Estadual — fica fora do alcance do leitor. De forma que
ele tem de “pedir” o livro que lhe interessa. Neste caso, deve consultar an­
tes o catálogo ou fichário, e listas ou boletins bibliográficos impressos.6
Em lugar de acesso imediato (na Biblioteca Nacional, fica à direita
do saguão, no andar térreo), o estudante encontra uma fileira de fichários
(estantes com “gavetinhas” cheias de fichas). Essas fichas, que constituem
o catálogo, estão distribuídas (classificadas) em ordem alfabética por au­
tor e por assunto.
Se o estudante ainda não sabe o nome do autor ou título da obra
que lhe interessa, deve consultar o catálogo ou fichário por assunto, orien­
tando-se pela classificação decimal. Admitamos que ele esteja preparando
uni trabalho sobre filologia portuguesa mas desconhece os livros que lhe
s Há anos vem sendo preparada, sob a égide do Instituto Nacional do Livro, ti E nciclopédia
mas, por enquanto, ao que parece, não saiu ainda dos planos.
6 Exemplo de obras desse tipo é a Pequena b ib lio g ra fia crítica <la lite r a tu r a b ra sile ira , de Oito
Maria Carpeaux, obra indispensável a quem pretenda estudar qualquer aspecto da literatura
brasileira. Por exemplo: suponhamos que o estudante se aveniure a um trabalho de certo fô­
lego a respeito de José de Alencar. Recorrendo ao índice onomástico, encontrará em A lencar;
José de — remissão para a página 97 {ed. de 1964) onde se acham: a) nome completo do
autor, local e data do seu nascimento e morte; b) lista das obras publicadas: c) edições mais
importantes ou mais recentes; d) ligeira apreciação sobre o autor e a obra; e) bibliografia (na
3S edição, arrolam-se 72 títulos de trabalhos — livros, artigos, ensaios — sobre o autor de
/raccmcj).
B ra sileira ,
O t h o n
M.
♦
G a r c i a
345
possam ser úteis. Se recorrer ao fichário por assunto, na Biblioteca Nacio­
nal, encontrará, num a das “gavetinhas” correspondentes à letra “F”, aque­
la em que se acham as fichas sobre Filologia portuguesa, como, por exem­
plo, a seguinte:
I
FILOLOGIA PORTUGUESA
)
11-286, 4, 30
Silva N eto, Serafim da, 1917-1960
introdução ao estudo da filologia portu g u esa. São Paulo,
Comp. Ed. Nac. [1956]
i
!
j
1
\
221
1. Filologia portuguesa. 2. Língua p o rtuguesa. — História.
252.725 — CL — 56
4 6 9 .0 9
j
!
Sobreposta ao nome do autor, vem a indicação do assunto (Filolo­
gia portuguesa). O núm ero à esquerda (11-286, 4, 30) é o “de cham ada”,
isto é, aquele pelo qual o livro deve ser pedido. Abaixo do nome do autor
vem o título completo da obra, seguido, nesta ordem, do local da publica­
ção (São Paulo), do nome da editora (Comp. Ed. Nacional) e da data da
publicação (1956).7 Abaixo do título, o núm ero de páginas da obra (221),
acom panhado às vezes da indicação em centímetros da altura do livro (in­
dicação ausente nessa ficha). O que se segue (1. Filologia portuguesa...
etc.) é o que se chama de “pista do livro”, quer dizer, outros nomes pelos
quais a obra pode ser também localizada no fichário. O número à direita,
469.09, é o da classificação decimal, e o da esquerda — já não incluído
em fichas mais recentes — o do registro do livro. (O CL indica que se tra­
ta de contribuição legal, isto é, doação do editor e não aquisição por com­
pra; 56 (= 1956) é data da entrada da obra na Biblioteca.
Para pedir o(s) livro (s), o estudante deve preencher um a papeleta
ou formulário com as referências indispensáveis à sua localização: número
de cham ada, título completo e nome do autor. Feito isso, sente-se à mesa
que lhe for destinada, espere a obra e... mãos à obra.
7 A re spe ito da técnica de citação e referências b ib lio g rá fica s, v e r “P rep aração dos o rig in a is ”,
9. Pr. Or.
1.4.0 Como tomar notas
1.4.1 O prim eiro contato com o livro
Se o leitor está interessado em colher apenas alguns dados sobre de­
term inado assunto, pode ser que, no momento, não lhe interesse ou não
lhe seja possível a leitura completa do livro. Neste caso, comece pelo índi­
ce geral (ou sumário) para ter uma idéia do que nele se contém. Se hou­
ver índice remissivo — também dito “analítico” — , isto é, índice por as­
sunto distribuído em ordem alfabética com indicação das páginas onde são
tratados os tópicos arrolados — corra os olhos por ele para localizar os
itens que possam ter relação com o tema do seu trabalho. F, vá tomando
notas.
1.4.2 Notas
Saber tomar notas de leitura é coisa muito importante. Mas, primei­
ro, é preciso saber o que anotar, segundo, como anotar, terceiro, onde anotar.
Não se toma nota de tudo, evidentemente, m as apenas daquilo que
possa interessar ao esquema do trabalho. Procure resumir as informações
que lhe interessem; neste caso, convém Ler presente ao espírito que a maio­
ria dos parágrafos tem a sua idéia-núcleo expressa no tópico frasal. Se o tó­
pico frasal for muito extenso, rcduza-o a nominal (ver, a seguir, 7. Pl.).
Mas, se pensar em aproveitar textualmente a opinião do autor, copie ipsis
veiiris (palavra por palavra), tendo o cuidado, sempre, de anotar de manei­
ra precisa todas as indicações necessárias à localização do trecho transcrito
(nome do autor, título completo da obra, local, editora, data e páginas; ver
Pr. Or., 1.2.9 a 1.2.11),
1.4.3 Fichas
M uita gente toma notas em cadernos ou folhas avulsas. Processo
desaconselhável, porque, com o acúmulo de anotações, o estudante vai-se
ver depois em palpos de aranha para pôr seu m aterial em ordem, de for­
ma a dele poder servir-se no momento da elaboração do trabalho. Para
evitar essa “atrapalhação”, o melhor é tom ar notas em fichas de cartolina
de mais ou menos 15cm x lOcm (o formato padrão é de 125mrn x
75mm), que se encontram nas papelarias. Mas, como tais fichas estão
agora pela hora da morte, é mais prático e mais econômico reduzir uma
folha de papel de máquina, tipo ofício, a oito fichinhas de mais ou me-
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
347
nos 11 x 8, tam anho reduzido, sem dúvida, mas suficiente para a m aio­
ria das notas.8
1.4.3.1 Ficha de assunto
A primeira coisa que o leitor deve fazer é indicar sucintamente o as­
sunto na cabeça da ficha, de maneira clara para facilitar a ordenação alfa­
bética. Em seguida, resuma o que interessa ou transcreva ipsis litteris, se
achar necessário.
Se na m esm a ficha de assunto não couberem todas as notas referen­
tes ao tópico, passe a outra (não escreva jam ais no verso), repetindo a palavra-tópico e num erando no ângulo superior direito. No fim das fichas
subseqüentes, indique sempre, abreviadam ente, a fonte, e junto a cada no­
ta, a página. No caso de o mesmo tópico se alongar por mais de uma fi­
cha com notas de mais de um autor, é aconselhável (assim fazemos nós,
pelo menos) adotar uma sigla ou abreviatura convencional referente às
fontes de cada anotação. Mas isso exige que, nas fichas bibliográficas —
quer dizer, naquelas em que só se anota o título de determ inada obra, o
nom e do autor, o local, o editor e data — se repita a sigla ou abreviatura.
Exemplo de ficha desse tipo:
... .
F
!i
■
Parágrafo
( 6)
(D esenvolvim ento)
— p o r confronto ou com paração:
—
—
—
—
—
|
j
í
Eça, C. E M., 76
N abuco, M. F.t 100, 101, 227
Rui, Oração, 33
A. Lins, A glória, 164, 165
M. Aires, Re/, 50
— J. Rib., Est., 20, 29, 130
— A. Mcycr, M. de A., 129
— Corção, Dez. 19, 61
Quando a fonte é uma só, basta sotopor ao tópico a sigla ou abrevia­
tura convencionada da obra, seguindo-se as notas acompanhadas da página:
8 C onsulte-se, a respeito de fichas e p esquisas, N A S C E N T E S , Antenor. “M étodos de estudo e
de p esquisa em m atéria de F ilo lo g ia Portuguesa", in ; Revista da Univ. de M inas Gerais. B. H o ri­
zonte, n - 9, p. 14 8 -59 , e VERA, A rm and o Asti. M etodologia da pesquisa científica (tra d . port.).
348
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
A d je tiv a ç ã o
!
(N e g a tiv is ta e d é fo rm a n te )
1. c o n d e n s a r
C D A , F a z. ( 1 )
'
!
—
—
—
o lh o to rto , 1 2
a n d a im e s h irto s , 1 5 , 1 7 ,
a m o r c a c h o rro , 1 6
—
—
—
—
—
—
—
b a n d id o tre m , 1 6
ja n e la s d o lo ro s a s , 18
c id a d e c a la d a , e n tre v a d a , 1 9 , 2 0
to rto , to rc id o , p a ra lític o , 2 1 , 2 2 , 2 3
b ru to ro m a n c e , 3 7
á rv o re b a n a l, g o rd a , 3 8 ,
39
p a ra lít ic o s s o n h o s, 4 0
18
2. n ã o use a s
i
|
3 . c a d a t ó p ia
j
5. não anote
j
6. u se, se p o s
cap. d o se i
j
!
j
|
i
Esse é um exemplo de ficha com material para um estudo que vi­
mos preparando sobre a adjetivação negativista e déform ante em Carlos
Drummond de Andrade. As trinta e tantas fichas já preparadas sob o mes­
mo tópico com portam, cada uma, de dez a doze exemplos colhidos em Fa­
zendeiro do ar & poesia até agora, cuja ficha bibliográfica é:
AN D R A D E , C a d o s D ru m m o n d de (C D A , F a z.)
F a ze n d eiro do a r & p o e sia a té a g o ra
R io , Jo s é O lím p io , 1955
561 p.
Quando não se possui o livro, é sempre aconselhável indicar à es­
querda da ficha, embaixo, o número de cham ada e as iniciais da bibliote­
ca onde ele foi consultado.
1.4.3.2 Fichas de resumo
As vezes só interessa a essência do pensam ento de um autor em de­
term inada obra. Faz-se então ficha de resumo:
4. titu le as fit
(P- 2
A abreviatura “q.
da(s) pela palavra “leit
sido anotados. Kierzek
tante de ficha bibliográf
lan Handbook of. Englisí
rênteses é o número-sé
De forma que, se o esti
ta recorrer a Kierzek, n
Aí estão as normí
mo pedante, que deverr
quisa. A prática e o méi
esses princípios básicos
trário do que parece, ec
É certo que mui
como a denominou cert
Ataíde. Mas a verdade
de anotar e fichar — p<
lativo fôlego. Esta obra
vários anos, mas só o
3.000 fichas, nos absor
zam o que chamam de
fazem com razão, quai
pelo deleite e vaidade
ante com a pazinha dt
freqüência desse métod
zer fichas’ leva a dois t
mais tirar disso qualqu
nunca ter um a idéia pi
pia confusamente um a
simplesmente um meio
U F P E Biblioteca Centrai
O thon
I
!
I
j
G arcia
♦ 349
Notas de leitura (q.v.)
I
1
A/l.
Kierzek, M. H. B. (1)
1. co ndensar o que é essencial, m as acuradam ente;
2. não use aspas, a m enos que p reten d a citar textualm ente;
3. cada tópico nu m a íicha;
4. titule as fichas e indique as fontes;
5. não anote no verso da ficha;
6. use, se possível, títulos que correspondam já às divisões ou
cap. do seu trabalho;
(p. 207)
A abreviatura “q.v.” (quod vide) rem ete para a(s) ficha(s) encabeçada(s) pela palavra “leitura”, onde outros aspectos do assunto podem ter
sido anotados. Kierzek é o nome do autor, e M.H.B. a sigla da obra cons­
tante de ficha bibliográfica onde se encontra: Kierzek, John M. The Maanillan Handbook of.English, N.Y., The Macmillan Co., 1947. O “1” entre pa­
rênteses é o número-série das fichas desse tópico tiradas da mesma obra.
De forma que, se o estudante não se lem brar do que significa M.H.B., bas­
ta recorrer a Kierzek, nas fichas bibliográficas.
Aí estão as normas elementares, sugeridas com o mínimo de tecnicis­
mo pedante, que devem presidir à elaboração de qualquer trabalho de pes­
quisa. A prática e o método de trabalho podem sugerir “acomodações”, mas
esses princípios básicos não devem ser totalm ente desprezados: eles, ao con­
trário do que parece, economizam tempo, trabalho e... “atrapalhações”.
É certo que muitos chegam a ironizar essa... “cultura de fichário”,
como a denominou certa vez Matos Pimenta em crítica dirigida a Tristão de
Ataíde. Mas a verdade é que, sem esse trabalho — trabalho quase braçal
de anotar e fichar — pouca gente está em condições de realizar obra de re­
lativo fôlego. Esta obra, por exemplo, vinha sendo pensada, m entada, há
vários anos, mas só o trabalho de pesquisa, que se traduziu em mais de
3.000 fichas, nos absorveu durante três anos. Só os improvisadores ironi­
zam o que chamam de “cultura de fichário”. Mas às vezes eles e outros o
fazem com razão, quando estigmatizam a erudição acumulada nas fichas
pelo deleite e vaidade de... acumulá-la sem proveito, sem transmiti-la adi­
ante com a pazinha da sua contribuição: “Tem-se escarnecido com muita
freqüência desse método de fichas. E com muita razão, se o hábito de 'fa­
zer fichas’ leva a dois ou três absurdos: fazer fichas a vida inteira sem ja ­
mais tirar disso qualquer proveito, anotar nas fichas as idéias alheias sem
nunca ter uma idéia própria, escrever obras inextricáveis em que se reco­
pia confusamente uma infinidade de fichas... Entretanto, ‘fazer fichas’ é
simplesmente um meio cômodo de trabalhar melhor e de maneira mais rá-
350
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
pida. Não é um substituto da reflexão, e sim um recurso material destina­
do a torná-la mais clara e mais fácil.”9
A censura não se dirige, portanto, à acum ulação de fichas mas à fal­
ta de propósito delas. Toma-se nota para algum fim, imediato ou remoto.
Muitas notas tomadas hoje ficam esquecidas no fichário toute sa vie\ mas
outras nos vão servir quando menos esperamos. De qualquer forma, a in­
tenção com que as tomamos não deve ser apenas a de acumulá-las para...
exibi-las. Todos os que se especializam em algum assunto são levados, qua­
se por instinto, a tom ar notas que lhes pareçam relevantes e que, espe­
ram, ou supõem, algum dia serão aproveitadas em trabalho apenas mentado ou já concretam ente planejado.
1.5.0 Outros artifícios para criar idéias
Admitamos agora que o estudante se encontre diante da “página em
branco”, sentado diante da máquina ou de lápis em punho a esperar que
as idéias lhe jorrem da mente com ímpeto proporcional à sua ansiedade. É
um m om ento de transe a que estão sujeitos todos os que ainda não adqui­
riram o desembaraço natural advindo da prática diuturna do escrever
(transe e aflição traduzidos em mordiscar a ponta do lápis ou em acender
inúmeros cigarros). O assunto sobre que se propõe escrever é vago, não
depende d a pesquisa mas apenas da experiência e das vivências. Como ini­
ciar o trabalho? De que artifícios servir-se para despertar as idéias?
Vejamos como conseguir isso, mas agora através da sábia lição do
Professor Júlio Nogueira: o trecho que da sua obra — A linguagem usual e
a composição — a seguir transcrevemos, dadas as suas virtudes de clareza
didática, passa a constituir a m elhor parte deste capítulo:
“Eis-nos face a face com o assunto sobre que temos de discorrer,
produzindo um a composição de trinta ou quarenta linhas, no mínimo. O
assunto é um desses temas abstratos, que nos parecem áridos, avaros de
idéias. Seja: a amizade, por exemplo.
“Que dizer sobre a amizade? Como encher tantas linhas, form ulan­
do períodos sobre períodos, se as idéias nos escapam, se a imaginação está
inerte, se n ada encontramos no cérebro que nos pareça digno de ser ex­
presso de forma agradável e, sobretudo, correta? Qual a orientação que
devemos seguir versando tal assunto até a conclusão, de m aneira que nos
desem penhem os dessa tarefa superior às nossas forças?
“Agora a resposta, o remédio. Antes de tudo: se o nosso estado de
espírito é de perplexidade, se nos domina essa preocupação pungente, esse
desânim o de chegar a um resultado satisfatório, o que temos de fazer é —
não começar a tarefa imediatamente. Em vez de lançar a esmo algumas ex­
9 MORNET, Daniel. Conimcnf préparer et rédiger une dissertation, p. 36-7.
O t h o n
M.
G arc ia
♦
351
clamações, algumas frases inexpressivas sobre o papel, reflitamos; concen­
trem o-nos. Empreguemos uma quarta parte do tempo de que dispomos em
pensar, em m etodizar o assunto, em dividi-lo nos pontos que ele comporta
e em submetê-lo aos coeficientes amigos que aqui vamos enum erar e que
nos darão mais que a matéria necessária. Esses coeficientes protetores não
serão sempre os mesmos nem no mesmo grau para todos os assuntos, mas
há-os para tudo. Chamam-se definição, distinção, considerações gerais, ante­
cedentestem p o , lugar, comentários, narrações a propósito d.o tema (fato co­
nhecido, anedota, fábula), conseqüências, discurso direto e outros que o en­
genho de cada um poderá estremar. Vamos escolher aqui o que nos pode
servir para o assunto dado: a amizade.
“A definição nos dirá ser a amizade um sentim ento que consiste em
estim ar a outrem, querer a sua presença, desejar-lhe todo o bem possível;
sentim ento que traz um grande encanto à vida. A distinção nos sugere que
a amizade pode ser verdadeira ou apenas aparente. Nesta segunda classe
estam os a ver os interesseiros, os que se dizem nossos amigos, pensando
ern obter vantagens e favores, e que, passada essa possibilidade, nos vol­
tam as costas, nem nos reconhecem nos dias difíceis para nós. Por esse ca­
minho virão também outras idéias. As considerações gerais serão no senti­
do de cada um semear amizade por toda parte, fazer-se estimar por to­
dos, desarm ar prevenções que, às vezes, sentimos contra certas pessoas em
quem depois só reconhecemos bons predicados e a quem estendemos fran­
cam ente a mão de amigo. Citemos a propósito o provérbio que diz: ‘Mais
vale amigo na praça que dinheiro na caixa/ O tempo nos poderia servir. É
justo considerá-lo o cadinho da verdadeira amizade, a qual se perpetua, re­
sistindo aos embates da vida. O lugar nos dirá que a distância não é noci­
va à verdadeira amizade. Os amigos, ainda separados, continuam a interes­
sar-se pela sorte recíproca: correspondem-se, trocam notícias de caráter
pessoal. Podemos recorrer a fatos históricos ou lendários que se apliquem
à m atéria. Aludamos ao caso de Dãmon e Pítias, que nos dará muitos pa­
res de linhas. Se não o conhecemos, contemos um fato da vida real e, se
não nos ocorre nenhum : inventemo-lo! Imaginemos alguém que chega de
um a longa viagem, a quem dizem que um seu amigo está m orrendo à
míngua num casebre dos subúrbios, porque os negócios lhe correram mal e
um a moléstia cruel o salteou, quebrando-lhe toda a atividade. Descreva­
mos o encontro dos dois; as medidas que o recém-chegado toma, transfe­
rindo para o conforto de sua residência o amigo enfermo: a cham ada do
médico, a compra de remédios e dieta necessária, e, por fim, o restabeleci­
m ento do amigo, que volta à atividade da vida e, ainda apoiado pelo ou­
tro, faz bons negócios e satisfaz os seus compromissos. Imaginemos agora
o que aconteceria se não fosse esse ato de amizade.
“Procedendo com este método ainda parecerá difícil a tarefa? Decer­
to que não! A dificuldade primacial estava na produção das idéias, mas os
coeficientes amigos nos salvaram. Pensando nele, investigando a melhor m a­
neira por que se podem aplicar ao assunto, facílimo será organizar o nosso
352
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P r osa
M o d e r n a
plano, isto é, o arcabouço, as linhas gerais da nossa composição, antes do
que não devemos absolutamente iniciar a tarefa. Falamos ou escrevemos
quando temos alguma coisa que dizer. A idéia surge no cérebro e exteriori­
za-se pela palavra. No colóquio o apoio ou a contestação dos nossos ouvin­
tes vai despertando novas idéias. O nosso cérebro por si só é que não há de
fazer o trabalho. Por isso devemos separar todas as peças da nossa composi­
ção e procurar materiais por esses processos, um a vez que não tenhamos o
dom de escrever de improviso, o que só é dado a raros indivíduos.”10
Adaptando esses “coeficientes amigos” do Prof. Júlio Nogueira e al­
guns outros artifícios, poderíamos esboçar um a espécie de plano-padrão
passe-partout, que pode ser fonte de sugestões para o desenvolvimento de
idéias similares à que serviu de ilustração no trecho transcrito (a amizade):
1.5.1 Plano-padrõo passe-partout ou plano-piloto
1. Definição
a) denotativa;
b) conotatíva;
c) alongada.
N.B.: Se o tema o permitir, usem-se os três tipos de definição (ver 5.
Ord., 1.3 a 1.3.1.1),. inclusive por citação. Se possível, ilustre tam bém com
exemplos ou “casos”, provérbios, etc.
2. Considerações gerais
3. Distinção
Exemplo: as várias espécies de amizade (de curiosidade, de vaida­
de, etc.). Cite exemplos ou “casos”.
4. Comparação ou analogia
N.B.: Este tópico pode vir isolado ou estar incluído no precedente ou
no seguinte, mas vai aqui como lembrete, já que é sem pre possível estabe­
lecer comparações entre fatos ou idéias.
5. Contraste
N.B.: Quase tudo, como as medalhas, tem duas faces: a idéia de
am izade opõe-se à de ódio, à de curiosidade, à de indiferença ou apatia.
10 NOGUEIRA, Júlio. A linguagem usual e a composição, p. 161-3. Transcrição autorizada pelo Autor.
O t h o n
M.
G arc ia
♦
353
6. Circunstâncias
(Causa, origem, efeito; motivos, conseqüências; tempo, lugar, etc.).
N.B.: Nem todas as circunstâncias podem ser sempre aproveitadas;
no caso da amizade, por exemplo, é possível referência a lugar (a amiza­
de, a verdadeira, não depende da presença física) ou a tempo (ela resiste
ao tempo. Não obstante, já diz o provérbio que “longe dos olhos, longe do
coração”).
7. Ilustração real ou hipotética (ver 7. PL, 4.2.1)
(Caso, exemplo histórico ou inventado, anedota, que se ajuste ao
tem a como ilustração).
8. Conclusão
1.5.2 Silogismo dedutivo, criação, planejamento e
desenvolvimento de idéias
Já vimos sum ariam ente (4. Com., 1.5.2.1) o que é silogismo e como
pode ele servir de teste da eficácia ou da falácia do raciocínio.
Vejamos agora se é possível aproveitá-lo também como um a espécie
de esboço de plano ou roteiro que sirva ao mesmo tempo de fonte de su­
gestões para a criação e desenvolvimento de idéias.
O “artifício” consiste em tom ar determ inada declaração como tese
ou tema para uma dissertação11 em três partes ou estágios corresponden­
tes, grosso modo, às três proposições do silogismo.
Portanto, a prim eira coisa a fazer é arm ar o silogismo, e armá-lo de
tal forma que a declaração — ou tópico assim desdobrado — venha a ser
a conclusão. Exemplifiquemos.
Suponhamos que se queira fazer um a dissertação a respeito da leitu­
ra das histórias (ou estórias) em quadrinhos. O tópico (nominal) ou tema
ou título do trabalho é:
As histórias em quadrinhos
Desdobremos esse tópico num a declaração, isto é, num a frase ou
sentença que expresse opinião favorável ou contrária (rever 4. Com., 1.2).
11 Servimo-nos aqui do termo “dissertação” por ser ele mais familiar ao leitor; o caso cm
pauta, entretanto, é de verdadeira argumentação, visto que seu propósito é convencer o lei­
tor, é formar-lhe a opinião através do raciocínio dedutivo. Seria assim outra espécie de argu­
m entação informal (ver 7. Pl., 4.0).
354
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
Digamos que seja contrária e venha traduzida em term os claros e suficien­
tes específicos para perm itir uma tom ada de posição:
A leitura das histórias em quadrinho s é prejudicial à fo rm a ç ã o do cará­
ter dos jo v e n s.
Essa declaração é a tese que se pretende defender ou sustentar com
argumentos convincentes e de maneira coerente. Adotando-se o método
dedutivo, arma-se o silogismo de tal modo que ela venha a ser a conclu­
são. Mas para isso é preciso “inventar” as duas premissas. Ora, a primeira
ou maior, como já sabemos, consiste num a proposição que encerra — ou
deve encerrar — uma verdade universal, incontestável, já provada ou acei­
ta pacificamente (rever 4. Com., 1.5.2). O meio mais prático e mais eficaz
de “inventar” a premissa maior, quando já se tem o teor da conclusão,
consiste em encontrar razões, causas ou motivos (rever 1. Fr., 1.6.3 e 3.
Par., 2.5) que tornem aceitável a declaração. Para isso, basta fazer a per­
gunta “por quê” e dar a resposta. Exemplo:
Pergt/nra;
— Por que a leitura das histórias em quadrinhos é prejudicial à for­
mação do caráter dos jovens?
Resposta (possível ou provável):
— Porque, em gerai, elas consistem em narrativas, descrições ou dra­
matizações de cenas e peripécias marcadas pela extrema violência, pelo espí­
rito de agressividade, pela explosão de instintos selvagens, pela exaltação de
falsos heróis, ou pela caracterização de criminosos e marginais, o que, sem
dúvida, vicia a imaginação dos jovens, deturpa-lhes a mente e os leva, por
imitação, a reações e comportamento anti-sociais. Além disso...
É certo que nem todas as histórias em quadrinhos apresentam essas
características condenáveis: algumas são cômicas, outras têm propósitos
educativos, m uitas são inócuas. Em vista disso, é indispensável, para evi­
tar contestação ou ressalva do interlocutor ou leitor, restringir o sentido de
“histórias em quadrinhos” ao âmbito das que tratam de crimes — homicí­
dios, assaltos, roubos, chantagens —, ao âmbito, enfim, das típicas histó­
rias de “mocinho contra bandido”. Estas, sem dúvida, são em geral condená­
veis. Feita a restrição — que, gramaticalmente, se expressa, via de regra,
por meio de adjuntos adnominais (= restritivos) ou adverbiais —, as ra­
zões apresentadas na resposta tornam-se perfeitam ente aceitáveis pelos nos­
sos padrões morais, nossa experiência, cultura e tradições; expressam, por­
tanto, a verdade. Se assim é, oferecem a condição mínima indispensável à
formulação da premissa maior, que é a de ser verdadeira para que a con­
clusão possa também sê-lo, se a m enor o for igualmente. A outra condi­
ção — a universalidade — é de natureza formal: todo ou nenhum. Ora, p a­
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
355
rece incontestável que toda história em quadrinhos cujos personagens são
o mocinho e o bandido e cujo assunto seja o crime, apresenta característi­
cas de extrem a violência e agressividade, além das outras arroladas na res­
posta.
Quanto à forma verbal das premissas, o respeito à estrutura rígida
do silogismo exige seja cada um a delas constituída por uma só proposi­
ção. Se levássemos em conta esse preceito, teríamos de escolher uma das
razões dadas na resposta; mas aqui essa rigidez formal não precisa ser as­
sim tão severam ente respeitada: bastam as condições mínimas da universa­
lidade e da veracidade.
Maior:
T oda n a rra tiv a d e p erip é cia s m a rc a d a s p ela ex tre m a v io lên cia, pelo
e s p írito d e ag re ssiv id a d e, p ela e x a lta ç ã o d e falsos h eró is, etc., etc... é p re ju ­
dicial à fo rm a çã o d o c a rá te r dos jo v e n s.
No corpo da dissertação, é evidente que se podem adm itir outras
versões, incluindo-se outros detalhes, desde que se conserve em essência o
mesmo teor da premissa.
A segunda premissa não oferece dificuldades:
M enor:
O ra, as h istó ria s em q u a d rin h o s d o tip o “m o c in h o c o n tra b a n d id o "
d istin g u e m -se p ela d escriçã o d e c e n a s ou n a rra ç ã o d e p e rip é c ia s m a rc ad a s
pela ex tre m a violência... etc., etc. (Ju stifiq u e -se a d e c la ra ç ã o com ex em p lo s,
fato s, casos, etc.)
A conclusão, já a conhecemos: é a própria declaração que serviu de
tema: basta introduzi-la pela conjunção adequada:
Conclusão:
Logo, a le itu ra d a s h istó ria s em q u a d rin h o s d o tip o “m o c in h o c o n tra
b a n d id o ” é p reju d icia l à fo rm a çã o d o c a rá te r dos jo v en s.
Aí está, em linhas gerais, o roteiro ou plano da dissertação. Resta
agora desenvolver mais m iudam ente cada uma das três proposições. Esse
desenvolvimento consiste em apresentar outros detalhes, em especificar, em
ilustrar com exemplos ou casos concretos, em amplificar (rever “Amplifica­
ção”, 2. Voc., 4.2, e 3. Par., 2.0), em abonar com citações de opinião de
entendidos — sociólogos, psicólogos, educadores (testem unho autorizado).
Para um a redação do tipo das que se fazem no curso secundário — vinte
ou trinta linhas — bastariam três parágrafos, um para cada proposição, e
talvez mais um como introdução. Além desse limite de linhas, é evidente
que o núm ero de parágrafos poderá ser maior.
356 ♦ c O M U N I C A Ç Ã O
EM
PROSA
MODERNA
Quanto à conclusão, é possível, e mesmo aconselhável e habitual,
“alongá-la” em conseqüência de segundo plano, associando-a a um caso es­
pecífico, a um a determ inada situação, que haja provocado a defesa da te ­
se. Nesta hipótese, o “alongam ento” ou “desdobram ento” da conclusão
pode perfeitam ente — e isso é usual — assumir a feição de conselho, de
advertência, de lição prática ou de preceito moral. Exemplo:
Por c o n seq ü ê n cia , os pais e p ro fe sso res d e v e ria m proibir, re s trin g ir ou
s e le c io n a r a le itu ra d a s h istó ria s em q u a d rin h o s d esse tip o . C u m p re -lh es o ri­
e n ta r os jo v e n s, p ro p o rc io n a n d o -lh e s o p o rtu n id a d e s d e le itu ra m ais s a u d á ­
v eis, etc., etc. U rge m esm o um a c a m p a n h a d a im p re n sa v isa n d o a esse p ro ­
p ó sito ... As a u to rid a d e s ed u c ac io n a is d o País n ão p o d e m fec h ar os o lh o s à
in flu ê n c ia m aléfica d e sse g ê n e ro d e p u b lic aç õ es, q u e... etc., etc.
É claro, parece-nos, que esse esquema ou roteiro silogístico só ofere­
ce m argem para desenvolvimento quando a declaração é argumentável
(ver 7. PL, 4.1), isto é, quando está sujeita a debates porque sujeita a di­
vergências. Nos casos concretos, que apresentam fatos, não há possibilida­
de senão de arm ar o silogismo. Seu desenvolvimento seria descabido, tolo
ou inútil. Como desenvolver, por exemplo, a declaração de que “esta laran­
ja está (ou deve estar) azeda”? Arme-se o silogismo:
Pergunta: Por que está (ou deve estar) azeda?
Resposta: Porque está verde.
Tal resposta é aceitável porque a experiência assim me ensinou: tan­
tas vezes chupei laranjas verdes que estavam azedas, que me é possível ge­
neralizar, formulando a premissa maior:
Toda laranja verde é azeda.
O caminho que nos leva à generalização, isto é, à premissa maior é,
como já sabemos, a indução. A premissa m enor e a conclusão “brotam ”
com facilidade:
Ora, esta laranja está verde.
Logo, está (ou deve estar) azeda.
Foi fácil arm ar o silogismo mas não será fácil ou possível desenvol­
vê-lo num a dissertação, pois se trata de um fato concreto indiscutível: bas­
ta chupar a laranja, e a questão está encerrada. O mesmo não acontece
com a tese das histórias em quadrinhos, como se viu; trata-se aí de uma
declaração argumentável, que lida com imponderáveis tais como as idéias
de “prejudicial” e “formação do caráter”. Será possível ver, tocar, pesar,
m edir a deformação do caráter dos jovens como decorrência indiscutível
O t h o n
M.
G a r c ia
♦
357
da leitura das histórias em quadrinhos? Percebem-se, é certo, as suas m a­
nifestações, que, porém, tanto podem ser atribuídas a essa leitura quanto a
outras influências (ambiente social, vícios de educação, temperamento, etc.).
A psicologia já dispõe de meios e processos experimentais capazes de tes­
tar, até certo ponto pelo menos, questões dessa ordem; mas ainda assim
os resultados são relativos, pois o espírito hum ano, como imponderável
absoluto, não pode ser pacificamente pesado, medido, dosado pelo m es­
mo instrum ental a que nos laboratórios se subm ete a m atéria inerte e pas­
siva.
1.5.2.1 Exemplo de parágrafos com estrutura silogística dedutiva
São freqüentes, sobretudo na pena dos escritores mais hábeis, os pa­
rágrafos com estrutura silogística, tanto indutiva quanto dedutiva, como já
assinalamos, de passagem, ao tratarm os do tópico frasal (3. Par., 1.4). Em
princípio, quase todos os que se iniciam com a indicação de idéias ou fa­
tos particulares (exemplos, detalhes, etc.) e term inam por uma apreciação,
declaração ou conclusão assentada neles (caso de tópico frasal no fim do
parágrafo) seguem o m étodo indutivo. Por outro lado, os que apresentam
logo de início uma idéia de ordem geral, um juízo, um a declaração sum á­
ria de feição ou teor universal (princípio, regra, lei, teoria, norm a), seguin­
do-se casos, fatos ou idéias particulares que se ajustem à declaração ini­
cial, prosseguindo ou não para um a conclusão explícita, pautam-se pelo
padrão dedutivo.
Vejamos o seguinte exemplo, extraído do trabalho de um aluno a
quem orientáram os quanto a esse processo de desenvolvimento, recom en­
dando-lhe que desenvolvesse o tema pelo m étodo dedutivo. Trata-se do pa­
rágrafo de introdução sobre o tema: “Dadas as circunstâncias da conjuntu­
ra internacional, até onde é possível o Brasil seguir uma política extena in­
dependente?”
G eorge W ash in g to n afirm o u c e rta v ez q u e n ão h á p aíses d e s in te re s s a ­
dos: tu d o aq u ilo q u e u m a n a ç ã o rec eb e d e o u tra com o fav o r te rá d e p a g a r
m ais ta rd e com u m a p a rte d e su a lib e rd a d e . Essa d e c la ra ç ã o foi feita q u a n ­
d o se u país d e p e n d ia a in d a d a a ju d a e c o n ô m ic a d a In g la te rra . O ra, se (...) o
B rasil do s n ossos d ia s ta m b ém d e p e n d e d e a ju d a e x te rn a p a ra se d e se n v o l­
ver, n ã o se rá difícil d e d u z ir q u e ta m b ém te m p o u ca lib e rd a d e p ara se g u ir o
se u p ró p rio ca m in h o no q u e ta n g e à p o lítica in te rn a c io n a l (...)
A transcrição é fiel, salvo no que respeita aos dois trechos omitidos
por necessidade de economizar espaço, omissão que, entretanto, não preju­
dica absolutam ente a estrutura silogística.
Desmontemos o mecanismo do parágrafo para lhe surpreenderm os o
arcabouço dedutivo.
358
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
P rosa
M o d e r n a
A premissa maior está clara, formal e materialm ente, no primeiro
período, no trecho justaposto: “tudo aquilo que um a nação recebe de ou­
tra...” etc.:
PM — T udo aq u ilo q u e u m a n aç ão rec eb e d e o u tra com o fav o r te rá
d e p a g a r m ais ta rd e com u m a p a rte d e sua lib e rd a d e .
Não nos interessa aqui discutir a validade ou veracidade da declara­
ção de G. Washington (testemunho, aliás, autorizado); aceitemo-la como
verdadeira. Se é verdadeira — e parece que sim — é também válida do
ponto de vista formal, já que apresenta a característica de universalidade
(tudo...).
A premissa m enor está igualmente clara na essência do período in­
troduzido por “ora”:
P m — O ra (...), o Brasil (...) ta m b é m d e p e n d e d e a ju d a (ec o n ô m i­
ca) e x te rn a ... (q u e r dizer, “rec eb e favor d e o u tra n a ç ã o ”, já q u e re c e b e r a ju ­
d a é re c e b e r fav o r).
A conclusão também está incluída no mesmo período em que se en­
contra a Pm: “não será difícil deduzir (‘deduzir’ é aqui o termo adequado)
que também tem pouca liberdade para...” etc. — ou, formalmente:
Concl. — Logo, o Brasil te rá d e p a g a r m ais ta rd e com u m a p a rte d e
sua lib e rd a d e (“...te m p o u ca lib e rd a d e p a ra se g u ir s e u p ró p rio c a m in h o no
q u e ta n g e à p o lítica in te rn a c io n a l" ).
Se a PM e a Pm são verdadeiras, a conclusão se impõe também como
tal.
Os demais parágrafos (cinco no total, cerca de quinhentas palavras),
como, aliás, toda a redação, em bloco, seguem o mesmo processo, de tal
forma que todas as conclusões dedutivas dos quatro primeiros parágrafos
passam a ser a série de premissas em que se baseia a conclusão do último.
Mas nem sempre — e no caso em foco nem todos — os parágrafos
apresentam essa nitidez — e também rigidez — formal do silogismo dedu­
tivo. Isso, aliás, é muito mais comum. No seguinte exemplo, penúltimo pa­
rágrafo da dissertação em pauta, a estrutura silogística vem mais diluída.
Depois de mostrar, no segundo e no terceiro parágrafos, outros fatos que
corroboram a tese enunciada no de introdução, diz o autor:
F in a lm e n te , o Brasil é p resa d e sua p ró p ria c o n d iç ã o d e p aís s u b d e ­
se n v o lv id o . C om o tal, te m d e a c e ita r as im posições d a q u e le s q u e o au x ilia m
com té c n ic a e cap ital. Por isso, se vê o b rig a d o a a g ir n o p la n o in ie rn a e io n a l
d e a c o rd o com a o rie n ta ç ã o d o bloco d e n aç õ es q u e lh e p re sta m as sistê n cia
e a ju d a ...
O t h o n
M.
G arc ia
♦
359
A premissa maior, em que se firma a conclusão final, está subjacen­
te, ou melhor, oculta (rever 4. Com., 1.5.2.4, entim em a): o aluno partiu
do princípio (certo ou errado; não importa aqui discutir) de que todo país
subdesenvolvido é presa da sua própria condição e deve aceitar as imposi­
ções daqueles que o auxiliam:
PM — Todo país subdesenvolvido tem de aceitar as imposições da­
queles que o auxiliam.
Pm — Ora, o Brasil é um país subdesenvolvido (“presa da sua condi­
ção de país subdesenvolvido”).
Concl. — Logo, o Brasil tem de aceitar as imposições daqueles que o
auxiliam.
O resto do parágrafo encerra os corolários dessa conclusão: “Por is­
so, se vê obrigado a agir no plano internacional de acordo com a orienta­
ção do bloco de nações que lhe prestam assistência e ajuda...”
O que nos im porta aqui é mostrar a estrutura cerrada do raciocínio
dedutivo. A conclusão em si, do ponto de vista formal, é absolutam ente
válida. Quanto a ser verdadeira, isso depende da premissa maior: “todos os
países subdesenvolvidos têm de aceitar as imposições daqueles que os auxi­
liam”? e da menor: “o Brasil é um país subdesenvolvido”? E os corolários?
Essas “imposições” verificam-se também no plano da política internacio­
nal? Para confirmar a verdade do corolário, o aluno talvez tivesse de se­
guir agora o m étodo indutivo, que consistiria em arrolar tantos casos parti­
culares, tantos exemplos concretos de que o Brasil tem agido no plano da
política internacional “de acordo com a orientação do bloco de nações que
lhe prestam assistência e ajuda” — tantos exemplos — fidedignos, adequa­
dos e suficientes (rever 4. Com., 1.4, — “Da validade dos fatos”) — que a
conclusão se tornaria necessária, se imporia por si mesma.
Os comentários que acabamos de fazer parecem suficientes para
m ostrar a importância e a eficácia do raciocínio silogístico na explanação
de idéias.
fÜTpEBiblioîe c a C e n t r a
S é t i ma
P arte
7. PL. - Planejamento
1.0 Descrícão
i
As noções precedentes sobre análise, síntese, classificação e criação
de idéias provêem o estudante das bases indispensáveis ao planejam ento e
à elaboração de qualquer tipo de composição. Vejamos agora, praticam en­
te, como fazer um plano ou esquema. O primeiro exemplo, a seguir, é de
uma descrição, mas descrição em que podem ocorrer trechos de narração,
pois, como se sabe, esses dois gêneros freqüentem ente se permeiam.
Admitamos que o estudante se proponha fazer um trabalho sobre o
colégio que freqüenta. É um tema dos mais comuns no curso ginasial. Via
de regra, o aluno, falho de orientação, limita-se a redigir meia-dúzia de
parágrafos sem consistência, sem coerência e sem objetivo determ inado,
contentando-se com generalidades. Embora pressinta que há m uita coisa a
dizer, não sabe como fazê-lo: as idéias lhe ocorrem da maneira esparsa,
caótica, desordenada. Pois bem: se a elaboração do seu trabalho for prece­
dida pela observação atenta, pela análise e classificação dessas idéias, seu
plano se irá delineando, e ele acabará sabendo facilmente não apenas o
que dizer mas também como fazê-lo. Vejamos:
Comece o aluno por fazer, mais ou menos a esmo, um a lista das
idéias que lhe forem ocorrendo. É o estágio preliminar da análise ou divi­
são. Em seguida, procure arrum ar essas idéias em ordem adequada, de
acordo com as afinidades comuns, pondo no mesmo grupo as que se coor­
denam, e subordinando-as a um termo de sentido mais amplo. É o estágio
da classificação. Meditando, pensando no seu assunto, o aluno acabará che­
gando a um esboço de plano mais ou menos como o seguinte:
1. A cidade, o bairro, a rua onde está situado o colégio.
2. Os edifícios, seu estado de conservação, seu estilo arquitetônico, suas aco­
modações, etc.
3. Cursos que oferece: primeiro e segundo graus, etc.
4. Os alunos: sexo, condições sociais, econômicas, etc.
5. Data da fundação, o fundador, o nome; ligeiro esboço histórico.
6. Regime: internato, semi-internato, externato.
7. Horas vagas: recreios, biblioteca, jogos, etc.
364
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
8. Os professores: número de professores, qualificações e méritos.
9. As aulas: horários, duração, aulas teóricas, aulas práticas, etc.
10. Gosto (ou não gosto) do meu colégio porque...
A análise do assunto mostrou ao aluno a variedade, a fertilidade
mesmo, das idéias nele implícitas. Mas os dez tópicos desse esboço refle­
tem ainda o caos. A classificação virá pôr-lhes ordem.
Tomemos o primeiro tópico ou item: “a cidade, o bairro, a rua onde
está situado o colégio”. Haverá, por acaso, um a idéia geral a que possam
estar subordinados os elementos desse tópico? Cremos que sim. Vejamos:
que significa “onde está situado”? A sua localização, a sua situação. E que
há de comum entre “cidade, bairro e rua”? A idéia de situação. Logo, esta
é a idéia geral, a que se subordinam as outras, específicas e coordenadas
entre si. Temos assim a verdadeira estrutura do primeiro tópico do esboço
do plano:
1. Situação:
a) a cidade;
b) o bairro;
c) a rua.
(Observe o aluno a gradação decrescente que existe entre os subtópicos a), b) e c): de “cidade” para “ru a”, isto é, do term o de maior exten­
são para o de m enor extensão. Mas pode-se preferir a ordem crescente (de
rua para cidade).
Continue o aluno a exam inar cada uma das partes em que a análise
decompôs a idéia geral, que é o tem a ou assunto. Mas atente sempre para
a relação de igualdade (coordenação) e de desigualdade (subordinação)
entre os tópicos e subtópicos. Tome o de n9 2, que com preende várias idéi­
as. Que relação há entre elas? Qual delas tem maior extensão: edifícios ou
estado de conservação? edifícios ou estilo arquitetônico? edifícios ou d e­
pendências? Edifícios, é claro. Então, este será o term o geral, o tópico subordinante, e os demais, específicos e subordinados:
2. Os edifícios:
a) estilo arquitetônico;
b) estado de conservação;
c) dependências.
Ora, descrevendo os edifícios estamos dando uma idéia de sua apa­
rência, não? Podemos, portanto, ampliar ainda o quadro da descrição, servin­
do-nos de um termo de maior extensão: Aspecto externo não englobará, por
acaso, as idéias de edifícios, sua aparência, seu estado de conservação, seu
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
365
estilo arquitetônico, suas dependências? Pois será esse o tópico maior, cuja
extensão é paralela da do primeiro (Situação). Mas como só temos em vista
descrever os edifícios (e não jardins ou outras áreas), delimitamos o tópico
por meio de um aposto:
3. Aspecto externo — os edifícios:
a) estilo arquitetônico;
b) estado de conservação;
c) dependências.
Prossiga o aluno no exame dos outros tópicos, para verificar se es­
tão distribuídos em ordem lógica. Vejamos. O de n9 5 não lhe parece des­
locado? Não é natural que, depois de falar da situação e do aspecto exter­
no do colégio, se faça referência ao seu histórico (data da fundação, o fun­
dador, o nome)? Então, o de nQ 5 deve antepor-se ao de ne 3 (cursos). O
de nQ 4 trata dos alunos; é natural, portanto, que a referência aos profes­
sores dele se aproxime. O de ne 7 refere-se às horas vagas; ora, o mais ló­
gico seria indicar primeiro as horas “não vagas”. Neste caso, o de ne 9
deve antepor-se ao 7g.
O resultado dessa ordenação lógica — aliás, antes de bom senso do
que de lógica — é o seguinte:
P lano
1. Situação:
a) cidade;
b) bairro;
c) rua.
2. Aspecto externo — os edifícios:
a)
b)
c)
d)
estilo arquitetônico;
estado de conservação;
dependências;
....... (outros detalhes).
3. Histórico:
a)
b)
c)
d)
data da fundação;
o fundador;
origem do nome do colégio;
....... (outros detalhes: fatos, episódios dignos de nota).
366
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
4. Cursos:
a) primeiro grau;
b) segundo grau;
c) ...... (outros, se houver).
5. Corpo discente:
a) sexo e idade;
b) condições sociais e econômicas;
c)
(outros detalhes).
6. Corpo docente:
a) núm ero de professores;
b) qualificação e méritos;
c) ...... etc.
7.
R e g im e :
a) internato;
b) externato;
c) semi-internato.
8. Atividades curriculares:
a)
b)
c)
d)
número de aulas;
horário;
aulas práticas;
aulas teóricas.
9. Atividades extracurriculares:
a ) r e c r e a ti v a s ;
b) esportivas;
c) culturais.
10. Conclusão: apreciações de ordem geral e impressões pessoais.
Pronto? Definitivo? Parece que ainda não. Repasse os olhos e procu­
re descobrir falhas ou incoerências no plano: detenha-se, por exemplo, no
exam e do subtópico c) do tópico 2: “dependências". Todas as dependên­
cias serão externas, para que se justifique a sua inclusão como subtópico
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
3 6 7
de “aspecto externo”? Se o autor descrever ou mencionar salas de aula, la­
boratórios, biblioteca e outras dependências internas, estará fazendo um
plano sem levar em conta uma classificação das idéias, pondo como subor­
dinado a outro um termo (idéia) que, logicamente, m aterialm ente, a ele
não se subordina (rever 5. Ord., 1,2 a 1.2.2).
Observe ainda o leitor-aluno, aprendiz de escritor, que alguns tópi­
cos foram ligeiram ente alterados em relação à lista primitiva. Note, p. ex.,
que o item ou tópico 10 aparece agora como Conclusão e que alguns ter­
mos específicos foram substituídos por outros, de sentido mais geral: “da­
ta da fundação” por “histórico”; “alunos” por “corpo discente”; “professo­
res” por “corpo docente”; “aulas” por “atividades curriculares”; “horas va­
gas” por “atividades extracurriculares”.
No decorrer da redação do texto e como conseqüência de imprevis­
tas associações de idéias, podem impor-se novas alterações nesse plano pri­
mitivo, plano rascunho ou plano provisório, que, servindo, preliminarmen­
te, apenas ao autor, não deve ser considerado como um leito de Procusto,
como um molde rígido, mas sim como um roteiro maleável, remanipulável, sujeito a acomodações e reajustam entos ao texto. Só depois desse tra­
balho simultâneo — do plano para o texto e do texto para o plano —,
quando a composição está concluída, é que o autor, então, elabora o pla­
no definitivo ou formal, que, refletindo fielmente mas sum ariam ente as
idéias centrais da composição, vai servir ao leitor para lhe dar uma visão
de conjunto do teor do trabalho, da m aneira como o autor desenvolveu o
tem a. Nas composições escolares, salvo exigência explícita do professor —
o que ocorre às vezes —, não é costume virem elas acom panhadas de pla­
no; isso, entretanto, pode acontecer, quando o trabalho, por ter implicado
pesquisas dem oradas e metódicas e por ter adquirido extensão e feição de
m onografia, se destinar a publicação.
Essa fase preliminar, representada pela procura e acham ento das
idéias, que vão sendo registradas na “lista caótica” — fase que a retórica
clássica denom inava inventio (invenção) — e a seguinte, que compreende
a preparação do plano (dispositio = disposição) muito facilitam a tarefa da
composição propriam ente dita (elocutio = elocução), contribuindo para a
sua unidade e coerência. Quando o plano é relativamente pormenorizado e
a composição não muito extensa (digamos: cerca de 500 palavras), a cada
um dos seus tópicos (seções primárias, indicadas pelos algarismos arábi­
cos) pode corresponder um parágrafo no texto, do que resultarão cerca de
11, pois deverá haver pelo menos um destinado à introdução (ver, a se­
guir, 2.0 Narração, 2.2 e 2.3). Se tiverem estrutura de frase, poderão ser
aproveitados quase que literalmente como tópicos frasais (rever 3. Par.,
1.4) dos parágrafos correspondentes; se forem nominais, i.e., constituídos
— como está no plano proposto — apenas por nomes (substantivos, adjeti­
vos, pronomes, formas nominais do verbo), já encerrarão pelo menos as
idéias nucleares dos períodos ou parágrafos respectivos.
368 ♦ c O M U N I
CAÇÀÛ
EM
PROSA
MODERNA
É certo que a elaboração do plano (e o ieitor-aluno já deve ter pensa­
do nisso lá com os seus botões) toma algum tempo; mas não é tempo perdi­
do: o que se gasta no elaborá-lo recupera-se, com juros, dividendos e corre­
ção (não monetária, evidentemente) no executá-lo. Se o aluno (agora au­
tor) se servir da sua experiência, das suas lembranças, se tiver algum
espírito de observação e um pingo de imaginação, e se tiver aproveitado as
lições sobre a organização do período (rever 1. Fr., 1.5.0 a 1.5.3) e o desen­
volvimento do parágrafo (3. Par., sobretudo 2.0 a 3.1.6), acabará fazendo
um a descrição (entrem eada provavelmente de trechos de narração; rever 3.
Par., 3.2 a 3.2.7, e ver, a seguir, 2.0 — “Narração") bastante aceitável, algo —
quem sabe? — que se aproxime do exemplo que oferecemos a seguir:
1.1 " 0 Ginásio Mineiro de Barbacena"
(D aniel d e C arv alh o , De outros tem pos, Rio,
Jo sé O lím p io , 1 9 6 1 , p, 7-32)
o
“L ocaliza-se n a m eia e n c o sta d a c o lin a d o M atin h o , a
1 .2 6 0 m e tro s d e a ltitu d e , à d ire ita d a lin h a fé rre a d a C e n tra l d o
Brasil, e n tre as estaç õ es d e B arb a ce n a e S a n a tó rio . O cu p av a te r ­
ren o espaçoso, d e d e z h ec ta re s.
V*
3
X I
O
f
<
“E stava, p a ra a ép o ca, m a g n ific a m e n te in sta la d o em ed ifí­
cio d e p ro p o rç õ es co n v e n ie n tes, c o n stitu íd o d e alg u n s p av ilh õ es,
s e n d o d e dois p a v im en to s em to d a a e x te n sã o d e su a fre n te , c o r­
po p rin cip al v o lta d o p a ra a cidade. A p a rte c e n tra l, p ro v id a d e
p la tib a n d a e d e e sc a d a ria para acesso ao a n d a r su p erio r, d isp u ­
n h a d e sala d e v isita, G ab in ete d o Reitor, S ecre taria , sala d e
C o n g reg a çã o e B iblioteca.
“N a ala d ire ita , estav am : em b aix o , o g ra n d e refeitó rio ,
com co zin h a e su a s div ersas d e p e n d ê n c ia s , nos fu n d o s; em ci­
m a, am p lo d o rm itó rio d o s a lu n o s “m a io res". L ig ad a a e ssa ala,
p e rp e n d ic u la rm e n te , ach av a-se a casa d e re sid ê n c ia d o reitor.
“O té rreo , na ala e s q u e rd a ,...
“O ‘rec re io g ra n d e ’, d e fo rm a q u a d r a d a ,...
“Na p a rte in te r n a ,...”
A descrição continua ainda detalhando outros aspectos dos edifícios,
por mais uma página e meia. Em seguida, term inado esse tópico (o aspec­
to externo: os edifícios), passa o Autor ao histórico do colégio, iniciando
essa parte com um pequeno parágrafo de transição:
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
369
“F eita a d escriçã o to p o g ráfica, p assem o s ao m o m e n to h istó rico .
“O co rp o an tig o d o p réd io , d e p és-d ire ito s d e m a d e ira , p a re d e s d e
p a u -a -p iq u e e rip as, so b re alicerces d e p e d ra , foi c o n s tru íd o p elo P ad re J o ã o
F erre ira d e C astro q u e nele fu n d o u , n a s e g u n d a m e ta d e d o sé cu lo XIX, o a n ­
tigo C olégio P ro v id ên cia. F oram se u s a lu n o s ...”
Nas páginas seguintes, em continuação ao histórico, o A. abre títulos
para referência a alguns personagens mais importantes — Reitores e Professo­
res; Soares Ferreira; O Dr: Remmers e o Barão Hugo von Kraus — e algumas
atividades curriculares e extracurriculares — A Banda. A Educação Física. As
Diversões. A Formação Cívica. Os Clubes. Os Companheiros (p. 12-32).
♦.
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
2.0 Narração
M
Servindo-se dos mesmos recursos, há pouco m encionados — experi­
ência, memória, espírito de observação e um pingo mais grosso de im agina­
ção —, o aluno-aprendiz-de-escritor pode elaborar o plano (esquema, rotei­
ro) de um a narração (ou narrativa, como se prefere dizer hoje) inspirada
em episódios, pequenos incidentes ou peripécias do dia-a-dia e, evidente­
mente, “tem perada” com certa dose de fantasia. A crônica abaixo transcri­
ta — que entrem eia trechos de narração com outros de descrição (a pri­
meira raram ente prescinde da segunda: a descrição é a “ancilla narrationis”, serva da narração) — m ostra como o autor, capitalizando lembranças
e impressões do passado, pôde reconstituir cenas fragm entárias da sua in­
fância. Observe o aprendiz de escritor a estrutura tem ática dessa crônica e
tome-a como modelo:
No \
carregado c
vera: mas í
se o morro
um amigo «
A ca
numa tarde
ceira; e cau
telhado de
da, pensant
mãos que j;
sustaram, n
Foi
de flores.
2.2 Análise das
a) IrWodução: linhas 1
b) Desenvolvimento: 1?
3- parte: linhas 27 a
c) Conclusão: linhas 34
1. Introdução (linhas
2.1 "O cajueiro"
1
2
3
4
O ca ju e iro já dev ia s e r v elh o q u a n d o nasci. Ele
vive n as m ais a n tig a s rec o rd a çõ es d e m in h a in fân c ia: belo, im en so , no a lto d o m o rro a trá s d a ca sa . A gora v em
u m a c a rta d iz e n d o q u e ele caiu.
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
Eu m e le m b ro d o o u tro caju eiro q u e e ra m enor, e
m o rre u h á m uito tem p o . Eu m e lem b ro d o s pés d e p in h a,
d o cajá-m anga, d a g ra n d e to u c eira d e esp ad as-d e-S ão -Jo rge (q u e nós ch am áv am o s sim p lesm en te “ta la ”) e d a alta
sa b o n e te ira q ue e ra no ssa aleg ria e a co b iça d e to d a a m en in a d a d o bairro p o rq u e fornecia ce n te n as d e bolas p reta s
p a ra jo g o d e g u d e. L em bro-m e d a ta m a re ira , e d e ta n to s
arb u sto s e folhagens coloridas, lem b ro -m e d a p a rre ira q u e
cobria o ca ram a n ch ã o , e dos ca n teiro s d e flores hu m ild es,
beijos, violetas. TUclo su m ira ; m as o g ra n d e p é d e frutap ão ao lado da casa c o im enso caju eiro lá n o alto era m
com o árv o res sa g ra d as p ro te g e n d o a fam ília. C ada m en in o
q u e ia cre sce n d o ia a p re n d e n d o o je ito d e seu tro n co , a
cica d e seu fruto, o lu g a r m e lh o r p a ra a p o ia r o p é e su b ir
pelo cajueiro acim a, v er d e lá o telh ad o das casas do o u tro
laclo e os m orros além , se n tir o leve b alan c eio n a brisa d a
ta rd e.
— apresenta a idéia-nú
— sugere temas ou idé
a) “recordações de i
b) infância remota:
—
—
—
—
sugere o plano: a c;
sugere um a atmosfe
sugere a situação: “i
cria condições para
cajueiro (belo, imen
vai desenvolver no
2. Desenvolvimento (1
A —
I
P r im e ir a
pa rte
idéia principal: evo*
cia da queda do ca;
O t h o n
M.
G a r c i a
22
23
24
25
26
27
28
29
30
N o ú lt im o v e r ã o a in d a o v i ; e s t a v a c o m o s e m p r e
c a r r e g a d o d e fr u t o s a m a r e lo s , t r ê m u lo d e s a n h a ç o s . C h o v e r a : m a s a s s im m e s m o f iz q u e s t ã o d e q u e C a r ib e s u b is se o m o r r o p a r a v ê - lo d e p e rt o , c o m o q u e m a p r e s e n t a a
u m a m ig o d e o u t r a s t e r r a s u m p a r e n t e m u it o q u e r id o .
A c a rta d e m in h a ir m ã m a is m o ç a d iz q u e e le c a iu
n u m a ta rd e d e v e n t a n ia , n u m f r a g o r t re m e n d o p e la rib a n c e ir a ; e c a iu m e io d e la d o , c o m o se n ã o q u is e s s e q u e b r a r o
te lh a d o d e n o s s a v e lh a c a s a . D iz q u e p a s s o u o d ia a b a ti-
31
32
33
34
35
d a , p e n s a n d o e m n o s s a m ã e , e m n o s s o p a i, e m n o s s o s irm ã o s q u e j á m o r r e r a m . D iz q u e s e u s f ilh o s p e q u e n o s s e ass u s t a r a m , m a s d e p o is fo ra m b r in c a r n o s g a lh o s to m b a d o s .
F o i a g o ra , e m f in s d e s e t e m b ro . E s t a v a c a r r e g a d o
d e flo re s .
♦
371
(R u b e m B ra g a , Cem crônicas escolhidas,
R io , J o s é O lím p io , 1 9 5 6 , p p . 3 2 0 - 2 2 )
2.2 Análise das partes
a) Introdução: linhas 1 a 4;
b) Desenvolvimento: 1 - parte: linhas 5 a 2 1 ; 2- p arte: linhas 2 2 a 2 6 ;
3- parte: linhas 2 7 a 33 (três partes, correspondentes a três parágrafos);
c) Conclusão: linhas 34 e 35.
1. Introdução (linhas 1 a 4):
— apresenta a idéia-núcleo ou idcici principal: o cajueiro (linha 1) caiu (4)
— sugere temas ou idéias secundárias:
a) “recordações de minha infância";
b) infância remota: “antigas” recordações;
—
—
—
—
sugere o plano: a carta com a notícia da queda do cajueiro;
sugere um a atmosfera afetiva: cajueiro velho, belo, imenso;
sugere a situação: “no alto do morro, atrás da casa”;
cria condições para um contraste dramático entre a beleza e o viço do
cajueiro (belo, imenso) e a sua queda e morte (eíe caiu), que o Autor
vai desenvolver no penúltim o parágrafo.
2. D esenvolvim ento (linhas 5 a 33):
A —
I
P rim eira parte
(5
a
21):
idéia principal: evocações de peripécias da infância sugeridas pela notí­
cia da queda do cajueiro.
372
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
II idéias secundárias:
a) sugestão de ruína e abandono: “Tudo sumira” (14);
b) sugestão de solidão: mas (apenas) o pé de fruta-pão e o cajueiro per­
m aneciam (14-15);
c) sugestão de espírito fam iliar e afinidade afetiva: o cajueiro e o pé de
fruta-pão “eram como árvores sagradas protegendo a família” (15-16);
d) sugestão de comunhão nos brinquedos infantis: “Cada menino que ia cres­
cendo...” (16 a 21).
B —
I
S egunda parte
( linhas
22
a
26):
Idéia principal: última visão do cajueiro (22).
II Idéias secundárias:
a) caracterização: viço e vigor do cajueiro: “carregado de frutos amarelos”
(23);
b) intewenção de personagem: “fiz questão de que Caribé subisse o m or­
ro...” (24-25);
c) afetividade (animização do cajueiro): “como quem apresenta a um ami­
go de outras terras um parente muito querido” (25-26).
C —
I
Terceira parte
( linhas
27
a
3 3 ):
Idéia principal: “ele caiu numa tarde de ventania”. Verdadeiro motivo de
toda a crônica-narrativa; é o desenlace da história, apenas brevemente
enunciado na introdução (ele caiu).
II Idéias secundárias:
a) dramaticidade sugerida pelos pormenores caracterizadores: “tarde de venta­
nia”, “fragor tremendo”, “pela ribanceira”, a irmã “ficou abatida” (28-31);
b) animização do cajueiro: “como se não quisesse quebrar o telhado de nos­
sa velha casa” (29-30);
c) sugestão de tristeza: “passou o dia abatida” (30-31) e “pensando em nos­
sa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram" (31-32);
d) traços da psicologia infantil:
— prim eiro: susto (“seus filhos pequenos se assustaram ”) (32-33);
— segundo: indiferença (as ocasionais aflições infantis não costumam
ter ressonância prolongada: “mas depois foram brincar nos galhos
tom bados”) (33).
3. Conclusão: a emoção provocada no espírito do Autor, emoção discreta e
indiretam ente sugerida por palavras-signos ou signos de indício:
[Ü
f
P E B ib lio te c a C e n tra !
O t h o n
M.
G a r c i a
♦ 373
a) fato recente, vivo ainda na memória do Autor: “Foi agora” (34);
b) contraste afetivo entre a tristeza causada pela queda do cajueiro e o as­
pecto festivo da natureza na prim avera (idéia sugerida por “em fins de
setem bro”, (34) com o cajueiro “carregado de flores” (34-35) a denun­
ciar ainda viço e vigor frustrados pela morte.
2.3 Função das partes
A introdução já vem definida desde Aristóteles: “é o que não admite
nada antes e pede alguma coisa depois”. O que sugere ou se apresenta na
introdução deve ser (acrescido de outros pormenores) desenvolvido no nú­
cleo ou miolo do trabalho, como se viu na análise da crônica. Sua exten­
são varia de acordo com a extensão do próprio trabalho. Varia tam bém
conforme a natureza do assunto. Mas é difícil estabelecer princípios rígi­
dos. De qualquer forma, ela deve apresentar a idéia diretriz, de modo que
o leitor fique sabendo, de saída, o que se vai narrar, discutir ou descrever
nos parágrafos (ou capítulos) subseqüentes.
O desenvolvimento, no gênero narrativo, de que pode servir de exem­
plo a crônica de Rubem Braga, constitui o entrecho, o enredo, a intriga, a ur­
didura ou a história propriamente dita, onde a idéia principal é apresentada
através de peripécias, i.e., fatos ou acontecimentos. (Em otitros gêneros de
composição em prosa como a dissertação — que compreende a explanação e
argumentação — o desenvolvimento se faz através de argumentos, fatos ou
dados objetivos, isto é, através da discussão da idéia principal ou tese.)
A história ou enredo é apenas o suporte, o arcabouço, que, desper­
tando a curiosidade do leitor, prendendo-lhe a atenção por mantê-la sem ­
pre em suspenso, na expectativa de episódios futuros, permite o desenvol­
vimento da idéia principal. No trecho comentado, a história é constituída
por um fiozinho muito tênue, resumindo-se apenas na recepção da carta
com a notícia da queda do cajueiro. Pois foi esse fiozinho de enredo que
permitiu ao Autor criar, através da reconstituição de fiapos do seu passa­
do, o “clima dram ático” da sua crônica-narrativa.
2.3.1 0 que a "história" ou "estória" proporciona:
a) a criação de uma atmosfera psicológica, moral ou afetiva (na crônica de
Rubem Braga, saudade de infância, tristeza, ruína, abandono, morte);
b) a situação dos fatos ou episódios:
— no espaço: descrição do ambiente (cenário, paisagem): a casa da famí­
lia, a localização do cajueiro, a paisagem, telhado das casas, os morros;
— no tempo: a época dos acontecimentos. Na crônica de R. B. há dois
planos temporais: o atual (o da queda do cajueiro) e o remoto ou
passado (o da infância do Autor);
374
♦
C OMUNICAÇÃO
EM
PROSA
MODERNA
c) a indicação de causa ou circunstâncias (se houver): a causa da queda
do cajueiro terá sido a sua idade e a ventania;
d) a indicação de conseqüências (se houver): o abatim ento da irmã (explí­
cita) e a tristeza do Autor (implícita);
e) a introdução de personagens: Caribe, amigo do narrador;
f) a invenção de peripécias significativas que perm itam :
— caracterização das personagens, sua psicologia, suas reações, sua
classe social, sua linguagem, etc.;
— dramaticidade (conflito entre personagens e situações);
— descrição e caracterização da paisagem ou am biente;
— apresentação de circunstâncias ou fatores de ordem vária (social, po­
lítica, econômica, etc.);
— artifícios que despeitem a curiosidade do leitor e lhe prendam a aten­
ção graças à expectativa ou suspense e à surpresa.
Na crônica de R. B., o suspense desfaz-se logo na terceira linha
(“Agora vem uma carta dizendo que ele caiu”); não obstante, o leitor m an­
tém-se ainda na expectativa dos pormenores dramáticos, o que só ocorre
no penúltim o parágrafo.
A conclusão não é um apêndice à narrativa ou a qualquer gênero de
composição; não é um resumo nem uma nova idéia; não é um pormenor que
se acrescenta. Não é tampouco a repetição da introdução. Pode ser uma apre­
ciação sucinta, um comentário pessoal do Autor, uma generalização, tudo fei­
to de tal modo que se sinta ser desnecessário, e até mesmo descabido, qual­
quer acréscimo. Como a introdução, já está também definida por Aristóte­
les: “O fim (conclusão) é o que pede alguma coisa antes e não admite nada
depois”.
2.4 Plano de " 0 cajueiro"
Vejamos agora como essa crônica de Rubem Braga “se traduz” no
seu plano ou esquema:
A (Introdução) — Recebimento da carta com a notícia da queda do cajueiro.
B (Desenvolvimento) — Evocações da infância e queda do cajueiro.
I
Paisagem e peripécias:
a)
b)
c)
d)
o outro cajueiro;
outras árvores e plantas;
brinquedos infantis;
ruína causada pelo tempo: sobrevivência do cajueiro e do pé de fhita-pão.
|UFPEBiblioteca Centrai
O t h o n
M.
G arcia
♦
375
II Última visão do cajueiro:
a) a aparência do cajueiro;
b) a presença do amigo Caribe.
III A carta da irmã:
a)
b)
c)
d)
e)
a queda do cajueiro;
pormenores da queda;
repercussão do fato no espírito da irmã;
evocação de entes queridos;
a reação dos meninos.
C (Conclusão) — A emoção do Autor; implícita na referência indireta à pri­
mavera — “fins de setem bro” — e direta ao cajueiro, que, apesar de vi­
çoso — “carregado de flores” — tom bou para morrer.
O b s e rv a ç õ e s :
1.
À s d iv is õ e s m a io r e s ( in t r o d u ç ã o , d e s e n v o lv im e n t o e c o n c lu s ã o ) s ã o g e r a l­
m e n te a s s in a la d a s p e la s m a iú s c u la s (A , B , C ) o u , m a is ra r a m e n t e , p o r a l ­
g a r is m o s a r á b ic o s . A s p r im e ir a s s u b d iv is õ e s s ã o m a r c a d a s p e lo s a lg a r is ­
m o s ro m a n o s ( I , I I , I I I ) e as ú lt im a s , a s m e n o re s , d e v e m s e r s e m p r e i n d i ­
c a d a s p e la s m in ú s c u la s s e g u id a s d e p a rê n t e s e - d e - fe c h a r ; a ) , b ), c ) . . . Se
h o u v e r n e c e s s id a d e d e m a is u m a s u b d iv is ã o , in s ir a m - s e e n t r e A e I o s a l ­
g a r is m o s a r á b ic o s 1 , 2 , 3 , e tc . S e g u n d o e s s a s n o rm a s , o esqueleto d e u m
p la n o p o d e a p r e s e n t a r - s e a s s im :
A —
......
1 — ....
I — ......
a ) ......
b ) ......
I I — ......
2
—
.............
B — ....
e tc.
2.
N o te -s e a d is p o s iç ã o d e c a d a it e m o u tó p ic o : o s id ê n t ic o s , i.e ., c o o r d e n a ­
d o s , le v a m o m e s m o s ím b o lo a lf a b é t ic o o u n u m é r ic o , d e v e n d o f ic a r a
ig u a l d is t â n c ia d a m a rg e m e s q u e r d a , m a s d e ta l fo r m a q u e o s in a l d e
c a d a n o v a s u b d iv is ã o fiq u e lo g o a b a ix o d a p r im e ir a le t r a d o te x to d o tó ­
p ic o p re c e d e n t e .
3.
A t e n t e -s e a in d a p a r a a c o n v e n iê n c ia d e se a d o t a r a m e s m a e s t r u t u r a d e
t ó p ic o p a r a o s q u e se c o o r d e n a m . P o r e x e m p lo : s e a ) t e m e s t r u t u r a n o ­
m in a l, t o d o s o s d e m a is a e le c o o r d e n a d o s — b ) , c ) , d ) , e tc . — d e v e ­
r ã o s e r ig u a lm e n t e n o m in a is . S e I — é f r a s a l, f r a s a is d e v e r ã o s e r I I , I I I ,
I V e tc.
3.0
Dissertação
Vejamos agora como planejar e elaborar um a dissertação que tam ­
pouco exija leitura ou pesquisa especializada, isto é, um a dissertação que
pode ser feita — como acontece em exames e provas — com os conheci­
mentos gerais já de posse do estudante.
No trecho que abaixo se transcreve e que serve de introdução a todo
um artigo-ensaio1 de cerca de dez páginas, o Autor mostra a unidade real
do Brasil, para, em seguida (p. 378 a 388), assinalar, como contraste, a ab­
surda falta de unidade “na vida política dessa esplêndida coletividade una”.
Apesar de ser apenas parte de um todo, o trecho abaixo transcrito
apresenta características de unidade e independência. De estrutura muito
simples, mas harmoniosa e proporcionada, distingue-se principalmente pela
sua construção paralelística: a segunda parte desenvolve, na mesma ordem,
as idéias expostas na primeira (ver, a seguir, 3.2).
Convém observar atentam ente o processo adotado pelo Autor: o de­
senvolvimento da idéia geral baseia-se na divisão e enumeração de seus vá­
rios aspectos, seguindo-se a sua comprovação ou justificação.
3.1 "Meditações"
$
1
2
3
D iante d e m im se e ste n d e em face d o m a r az u l o
Brasil im enso, esse g ran d e todo, esse c o n tin e n te u n ido. Na
co n tem p laç ão dele v ieram -m e as seg u in tes reflexões.
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
O fato m ais d e stac ad o q u e se im p õ e a q u em estu d a
o Brasil é o d a esp lên d id a u n id a d e d o p aís. U n id ad e física
afirm a d a n a ad m iráv el co n tin u id a d e d o territó rio . U n id ad e
m o ral d e m o n stra d a pela religião, p ela lín g u a , pelos costum es, pelas relações m ateriais; o b jetiv ad a no co n ju n to d e
elem e n to s constitutivos da econo m ia, d a p ro d u çã o , d o trab alh o , in d u stria e com ércio; e u n id a d e in te le c tu a l expressa na id e n tid a d e d a form ação e d a cu ltu ra. U n id ad e política m a n ifesta d a na c o m u n id ad e cle idéias, d e se n tim e n to s e
d e interesses d e su a p opulação.
1 “M editações”, in: Dês livros, de Gilberto Amado, p. 378-88.
O t h o n
M.
G a r c i a
14
15
16
17
18
19
20
21
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38
39
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41
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43
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45
46
N enhum país d o m un d o é m ais uno d o q u e o Brasil
na su a aparência e na su a realid ad e, no seu corpo com o na
sua alm a.
E e ste o p rim e iro c a ra c te rístic o d a n o ssa p á tria , o
fa to p rim o rd ia l q u e se a ssin a la a o observ ad o r.
No seu aspecto exterior, na su a constituição geográfica,
o Brasil é um rodo único. N ão o separa n en h u m lago interior,
nenhum m ar m editerrâneo. As m ontanhas que se erguem dentro dele, em vez de divisão, são fatores de unidade. Os seus
rios prendem e aproxim am as populações entre si, assim os que
correm dentro do país como os que m arcam fronteiras.
Por sua produção e p o r seu com ércio, é o Brasil um
dos raros países que se bastam a si m esm os, que p o d em prover ao susten to e asseg u rar a existência dos seus filhos. De
norte a sul e d e leste a oeste, os brasileiros falam a m esm a
língua quase sem variações dialetais. N en h u m a m em ória d e
outros idiom as subjacentes n a sua form ação p ertu rb a a unid a d e ín tim a d a consciência d o brasileiro na enunciação e na
com unicação do seu p ensam en to e d o seu sen tim en to .2
U m a só religião disciplina os nossos corações e constitui o substratum espiritu al d a nação. Tradições as m esm as
com pequenas diferenças locais, to d a s o riu n d as d a m esm a
fonte, d a su a unidade.
Se h á u m fen ô m e n o social típ ico n a face d o p lan eta é esse d a u n id a d e in c o m p aráv e l d o Brasil. E sse g ran d e país, p o v o ad o h o je p o r m ais d e 4 2 m ilh õ es3 d e habita n te s , é u m a co letiv id ad e n ac io n a l u n a , u m to d o , m aterial, m o ral, in te le c tu a l ú n ico . N ão se n d o u m E sta d o inte g ra l, u m E stad o to ta litá rio , p a ra u sa r e x p re ssão d o direito pú b lico m o d e rn o , é o Brasil u m a n aç ão in te g ral, tota litá ria , com o talv ez n ã o h aja o u tr a assim n a te rra . S eu
povo é o m esm o em to d a a e x te n sã o d o seu te rritó rio .
N ão há distinções específicas q u e estrem em u m brasi-
47
leiro do outro, pelos costumes, pela língua, pela religião, pela
48
49
50
51
52
53
54
55
form ação, pela cultura. A im igração d e indivíduos d e raças
diferentes d a prim itiva raça colonizadora n en h u m a influência teve com o fator d e diferenciação. Q uestão d e raça não
existe no Brasil. Os im igrantes p erd e m o caráter d e origem
logo à prim eira geração. Na atm osfera brasileira em breve se
apaga q ualquer traço diferencial alienígena.
O Brasil apresenta-se, assim , co m o um país uno, com o
a u n id a d e m esm a.
♦
377
(G ilb erto A m ado, Três livros, Rio,
Jo sé O lím p io , 1 9 6 5 , p. 3 7 8 -9 )
2 O aluno poderia deier-se na análise desse parágrafo (linhas 25-32) e comentá-lo à luz das
lições contidas nos tópicos referentes à unidade e a coerência do parágrafo garantidas pelo
enunciado do tópico frasal.
3 O artigo-ensaio foi escrito há mais de cinqüenta anos.
i
1
'
378
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
3.2 Análise das partes e plano de "Meditações"
1 Tnti'odução (linhas 1 a 3):
a) apresenta a idéia-núcleo ou idéia principal: o Brasil, “esse grande todo,
esse continente unido” (2), servindo-se o Autor de um fato circunstancial
como ponto-de-partida: “Diante de mim se estende em face do mar azul o
Brasil imenso” (1-2);
b) sugere o plano: “Na contemplação dele vieram-me as seguintes refle­
xões:” (2-3).
2 Desenvolvimento (linhas 4 a 53): Desenvolvimento constituído de duas par­
tes, seguidas respectivamente de dois parágrafos-sínteses (linhas 14 e 18),
à guisa de arremate ou confirmação, com a inclusão de outras idéias se­
cundárias:
I
Primeira parte: O Autor discrimina os vários aspectos da unidade do Brasil
(idéia-núcleo enunciada na introdução):
a) unidade física: “na continuidade do território” (5-6);
b) unidade econômica (9);
c) unidade moral: na língua, religião, costumes (7-8);
d) unidade intelectual: “na identidade da formação e da cultura” (11);
e) unidade política: “na comunidade de idéias, de sentim entos e de inte­
resses” (12-13).
II Dois parágrafos-sínteses:
l 9 unidade singular do Brasil: “Nenhum país é mais uno” (1 A);
29 a unidade do Brasil como característico primordial (1.7-18);
III Segunda parte: O Autor fundamenta com razões, provas, exemplos ou por­
menores — quer dizer: fatos — a declaração da primeira parte, seguindo
mais ou menos a mesma ordem de idéias:
a) unidade geográfica (19-24);
b) auto-suficiência econômica (25-27);
c) unidade lingüística (28-32);
d) unidade religiosa (33-34);
e) unidade de costumes e tradições (34-36).
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
379
rv Parágrafos-sínteses:
1®:
a) a unidade do Brasil é um fenômeno
social típico (37);
b) o Brasil é uma coletividade nacional (40);
c) o Brasil é um a nação integral (43).
2*:
a) não h á distinções específicas entre os brasileiros (46-47);
b) a imigração de outras raças não é fator de diferenciação (48-49);
c) não existem questões de raças (50-51).
3
Conclusão (linhas 54 e 55): “O Brasil apresenta-se, assim, como um país
uno, como a unidade mesm a.”
Trata-se de um a conclusão sucinta, marcada apenas pela partícula “as­
sim”, na qual o Autor se limita a repisar a idéia-núcleo, generalizando-a na
expressão “como a unidade mesma”.
O trecho cuja estrutura acabamos de analisar é o que, em linguagem
didática, se poderia chamar dissertação, nome com que se designa a exposição
ou explanação de idéias. Notam-se nele, entretanto, alguns traços de verda­
deira argumentação na maneira como o Autor procura convencer o leitor,
formar-lhe a opinião, pela evidência dos fatos, quer dizer, pelas provas com
que vai fundamentando suas declarações. (Veremos nos tópicos seguintes o
que é e em que consiste a argumentação.)
4.0 Argum entação
Nossos compêndios e manuais de língua portuguesa não costumam dis­
tinguir a dissertação da argumentação, considerando esta apenas “momen­
tos” daquela. No entanto, uma e outra têm características próprias. Se a pri­
meira tem como propósito principal expor ou explanar, explicar ou interpre­
tar idéias, a segunda visa sobretudo a convencer, persuadir ou influenciar o
leitor ou ouvinte. Na dissertação, expressamos o que sabemos ou acredita­
mos saber a respeito de determinado assunto; externamos nossa opinião so­
bre o que é ou nos parece sei: Na argumentação, além disso, procuramos
principalmente Jbnnar a opinião do leitor ou ouvinte, tentando convencê-lo de
que a razão está conosco, de que nós é que estamos de posse da verdade.
Na dissertação podemos expor, sem combater, idéias de que discor­
dam os ou que nos são indiferentes. Um professor de filosofia pode fazer
um a explanação sobre o existencialismo ou o marxismo com absoluta isen­
ção, dando dessas doutrinas uma idéia exata, fiel, sem tentar convencer
seus alunos das verdades ou falsidades num a ou noutra contidas, sem ten­
ta r formar-lhes a opinião, deixando-os, ao contrário, em inteira liberdade
de se decidirem por qualquer delas. Mas, se, por ser positivista, fizer a res­
peito da doutrina de Comte uma exposição com o propósito de influenciar
seus ouvintes, de lhes formar a opinião, de convertê-los em adeptos de po­
sitivismo, com o propósito, enfim, de mostrar ou provar as vantagens, a
conveniência, a verdade, em suma, da filosofia comtista — se assim proce­
der, esse professor estará argumentando. Argumentar é, em última análise,
convencer ou tentar convencer m ediante a apresentação de razões, em face
da evidência das provas e à luz de um raciocínio coerente e consistente.
4.1 Condições da argumentação
A argum entação deve basear-se nos sãos princípios da lógica. Entre­
tanto, nos debates, nas polêmicas, nas discussões que se travam a todo ins­
tante, na simples conversação, na imprensa, nas assembléias ou agrupa­
m entos de qualquer ordem, nos Parlamentos, a argum entação não raro se
desvirtua, degenerando em “bate-boca” estéril, falacioso ou sofismático. Em
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
381
vez de lidar apenas com idéias, princípios ou fatos, o orador descamba
para o insulto, o xingamento, a ironia, o sarcasmo, enfim, para invectivas
de toda ordem, que constituem o que se costum a chamar de argum ento ad
hominem; ou então revela o propósito de expor ao ridículo ou à execração
pública os que se opõem às suas idéias ou princípios, recorrendo assim ao
argum ento ad populum. Ora, o insulto, os doestos, a ironia, o sarcasmo por
mais brilhantes que sejam, por mais que irritem ou perturbem o oponente,
jam ais constituem argumentos, antes revelam a falta deles. Tampouco valem
como argumentos os preconceitos, as superstições ou as generalizações apres­
sadas que se baseiam naquilo que a lógica chama, como já vimos, juízos de
simples inspeção.
A legítima argumentação, tal como deve ser entendida, não se confun­
de com o “bate-boca” estéril ou carregado de animosidade. Ela deve ser, ao
contrário, ltconsti'utiva na sua finalidade, cooperativa em espírito e socialmente
útil. Embora seja exato que os ignorantes discutem pelas razões mais tolas,
isto não constitui motivo para que homens inteligentes se omitam em advo­
gar idéias e projetos que valham a pena. Homens mal-intencionados discutem
por objetivos egoístas ou ignóbeis, mas este fato deve servir de estímulo aos
homens de boa vontade para que se disponham a falar com maior freqüência
e maior desassombro. O ponto de vista que considera a discussão como vazia
de sentido e ausente de senso comum é não só falso, mas também perigoso,
sob o ponto de vista social” (J. R. Whitaker Penteado, op. cit., p. 233).
4.2 Consistência dos argumentos
A argumentação esteia-se em dois elementos principais: a consistên­
cia do raciocínio e a evidência das provas. Quanto ao primeiro, já fornece­
mos ao leitor algumas noções preliminares (cf. 4. Com. e 5. Ord.). Tratemos
agora apenas do segundo.
4.2. / Evidência (fatos, exemplos, dados estatísticos, testemunhos)
Evidência — considerada por Descartes como o critério da verdade
— é a certeza manifesta, a certeza a que se chega pelo raciocínio (evidência
de razão) ou pela apresentação dos fatos (evidência de fato), independente­
m ente de toda teoria.
São cinco os tipos mais comuns de evidência: os fatos propriamente
ditos, os exemplos, as ilustrações, os dados estatísticos (tabelas, números, m a­
pas, etc.) e o testemunho.
Fatos — Os fatos — termo de sentido muito amplo, com que se costu­
ma até mesmo designar toda a evidência — constituem o elemento mais im­
portante da argumentação em particular assim como da dissertação ou expla­
nação de idéias em geral.
C o m u n i c a ç ã o
P rosa
M o d e r n a
Temos dito mais de uma vez que só os fatos provam, só eles conven­
cem. Mas nem todos os fatos são irrefutáveis; seu valor de prova é relativo,
sujeitos como estão à evolução da ciência, da técnica e dos próprios concei­
tos ou preconceitos de vida: o que era verdade ontem pode não o ser hoje.
De forma que é indispensável levar em conta essa relatividade para que eles
sejam convincentes, funcionem realmente como prova.
Os fatos evidentes ou notórios são os que mais provam. Provo a defi­
ciência da previdência social, citando o fato de contribuintes se verem força­
dos a recorrer a hospitais particulares para operações ou tratamentos de ur­
gência, porque o instituto de previdência a que pertencem não os pode aten­
der em condições satisfatórias.
Exemplos — Exemplos são fatos típicos ou representativos de determina­
da situação. O fato de o Professor Fulano de Tal se ver na contingência de dar,
em colégios particulares, dez ou mais aulas diárias é um exemplo típico dos
sacrifícios a que estão sujeitos os membros do magistério particular no Brasil.
Ilustrações — Quando o exemplo se alonga em narrativa detalhada e
entrem eada de descrições, tem-se a ilustração. Há duas espécies de ilustra­
ção: a hipotética e a real. A primeira, como o nom e o diz, é invenção, é hi­
pótese: narra o que poderia acontecer ou provavelmente acontecerá em de­
term inadas circunstâncias. Mas, nem por ser im aginária, prescinde da con­
dição de verossimilhança e de consistência, para não falar da adequação à
idéia que se defende.
Sua introdução no corpo da argumentação faz-se com naturalidade,
num a forma verbal típica: “Suponhamos que o leitor (ou ouvinte) seja pro­
fessor particular. Seu dia de trabalho começa invariavelmente às 7 horas da
m anhã, com a sua primeira aula a uma turma de quarenta ou mais alunos.
Ao meio-dia já terá dado quatro ou cinco aulas. Depois de um a ou duas ho­
ras para o almoço...” E a narrativa prossegue com outros detalhes e peripé­
cias capazes de, enfim, ilustrar a tese para tornar aceitável a conclusão.
O propósito principal da ilustração hipotética é tornar mais viva c mais
impressiva um a argumentação sobre temas abstratos. É, ademais, um recurso
de valor didático incontestável, capaz de, por si só, tornar mais clara, mais
convincente, um a tese ou opinião. Entretanto, seu valor como prova é muito
relativo, e, em certos casos, até mesmo duvidoso.
A ilustração real descreve ou narra em detalhes um fato verdadeiro.
Mais eficaz, mais persuasiva do que a hipotética, ela vale por si mesma como
prova. O que se espera da ilustração real é que, de fato, sustente, apóie ou
justifique detenninada declaração. Para isso, é preciso que seja clara, objetiva,
sintomática e obviamente relacionada com a proposição. Sua feição dramática
deve ser tanto quanto possível explorada, desde que o exagero não a transfor­
me em dramalhão. Muitas vezes, a ilustração se faz por referência a episó­
dios históricos ou a obras de ficção (romances-tese, romances de protesto, pe­
ças dramáticas de conteúdo social), cujo enredo se pode então ligeiramente
resumir.
O t h o n
ven:ivo,
iceiioje.
eles
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M.
G a r c i a
♦
383
Dados estatísticos — Dados estatísticos são também fatos, mas fatos es­
pecíficos. Têm grande valor de convicção, constituindo quase sempre prova
ou evidência incontestável. Entretanto, é preciso ter cautela na sua apresen­
tação ou manipulação, já que sua validade é também muito relativa: com os
mesmos dados estatísticos tanto se pode provar como refutar a mesma tese.
Pode ser falsa ou verdadeira a conclusão de que o ensino fundamental no
Brasil é muito deficiente, porque este ano, só no Rio de janeiro, foram re­
provados, digamos, 3.000 candidatos às escolas superiores. Três mil candida­
tos é, aparentem ente, uma cifra respeitável. Mas, quantos foram, 110 total, os
candidatos? Se foram cerca de 6.000, a percentagem de reprovação, com
que se pretende provar a deficiência do nosso ensino médio, é de 50%, índice
realmente lastimável. Mas, se foram 30.000 os candidatos? A percentagem de
reprovados passa a ser apenas de 10%, o que não é grave, antes pelo contrá­
rio, é. sinal de excelente resultado. Portanto, com os mesmos dados estatísti­
cos, posso chegar a conclusões opostas.
Testemunho — O testemunho é ou pode ser o fato trazido à colação
por intermédio dc terceiros. Se autorizado ou fidedigno, seu valor de prova é
inegável. Entretanto, sua eficácia é também relativa. Têm-se feito experiências
para provar como o testemunho pode ser falho (refiro-me, evidentemente, ao
testemunho “visual”, e não ao “autorizado”): 0 mesmo fato presenciado por
várias pessoas pode assumir proporções e versões as mais diversas. Entretan­
to, apesar das suas falhas ou vícios, o testemunho continua a merecer fé até
mesmo nos tribunais. Sua presença na argumentação em geral constitui, as­
sim, desde que fidedigno ou autorizado, valioso elemento de prova.
4.3 Argumentação informal
A argumentação informal está presente em quase tudo quanto dizemos
ou escrevemos por força das contingências do cotidiano. Quase toda conversa
— salvo 0 caso, aliás freqüente, da exposição puramente narrativa ou descriti­
va — é essencialmente argumentação. Se é certo que muitas pessoas — sobre­
tudo as mulheres — só sabem conversar “contando, narrando, descrevendo,
inventando”, isto é, relatando episódios ou incidentes do cotidiano, revivendo
casos ou peripécias, não é menos certo que, toda vez que, em conversa, ex­
pressamos nossa opinião sobre fatos ou idéias, estamos, de qualquer forma,
tentando convencer aquele pequeno auditório das “rodinhas”, procurando fazêlo aceitar nosso ponto de vista, fazê-lo, enfim, concordar conosco.
Toda argumentação consiste, em essência, numa declaração seguida de
prova (fatos, razões, evidência). Argumento quando declaro com a m aior
naturalidade:
Joaquim Carapuça está muito bem de vida (declaração), porque com­
prou um apartamento dúplex na Avenida Atlântica e passou dois anos excursionando pela Europa (razões = prova — evidência).
384 ♦ c O M U N I C A Ç Â O
EM
PROSA
MODERNA
Mas esse tipo de argumentação informal corre freqüentemente o risco
de ser falacioso, quando a declaração se baseia apenas em indícios. Se digo
que “Fulano já deve ter recebido o salário do mês porque me pagou os mil
reais que me devia”, estou certo apenas quanto à declaração (ter-me pago os
mil reais) mas posso estar errado quanto às razões (ter recebido o salário do
mês), visto ser possível terem sido outros os motivos (acertou no jogo-do-bicho ou numa acumulada do jóquei, tirou a sorte grande, recebeu uma heran­
ça ou... pediu emprestados dois mil reais para pagar os mil que me devia).
Neste caso, houve apenas inferência, dedução pelo raciocínio, a partir de indí­
cios e não de fatos.
4.3. / Estrutura típica da argumentação informal em língua
escrita ou falada
Q uando a natureza da declaração implica desenvolvimento de idéias
abstratas, a argumentação assume estrutura mais complexa, com um a “ar­
quitetura” mais trabalhada. Embora seja mais comum na língua falada — o
que talvez justifique a denominação informal — dela nos servimos também
com m uita freqüência na linguagem escrita. Cremos que o conhecimento da
sua estrutura pode ajudar grandemente o estudante a argumentar com segu­
rança e objetividade. Vejamos um exemplo:
Suponhamos que alguém diz ser o castigo físico a melhor maneira de
educar a criança. Trata-se de uma proposição argumentável, porque admite
divergência. Portanto, pode-se:
a) provar a validade dessa declaração;
b) contestá-la.
Admitamos que se queira contestá-la, isto é, provar que o castigo fí­
sico não educa. O esquema, constituído por três ou quatro estágios, será,
portanto, de uma argumentação por contestação da proposição:
Primeiro
e st á g io
1. Proposição (declaração, tese, opinião)
Como se trata de contestar ou refutar, é evidente que a declaração
deve ser atribuída a outrem , através de um a forma verbal do tipo:
“Dizem que (ou Você diz que, Fulano declarou que, muitos acredi­
tam que, é opinião generalizada que) só o castigo físico, a pancada, educa,
só ele é realmente eficaz quando se deseja corrigir a criança, formar-lhe o
caráter...”
2 . Concordância parcial
Na concordância parcial (não sabemos que outro nome dar ao segun­
do estágio deste tipo de argum entação informal), o autor, ou falante, reco­
nhece que em certos casos, excepcionais, é possível que a pancada eduque,
seja um bom corretivo, mas — frise-se bem— só em certos casos, só em cer­
ta medida, só em condições muito especiais e, assim mesmo, em poções medi­
camentosas, homeopáticas...
A concordância parcial (fique a denominação) reflete um a atitude
natural do espírito em face de certas idéias ou teses, pois é incontestável
que existem quase sempre “os dois lados da m edalha”; muitas idéias adm i­
tem concordância parcial ou contestação parcial: basta encará-las do ponto
de vista geral ou do ponto de vista particular, basta atentar em certas cir­
cunstâncias, em certos fatores.
Portanto, é natural admitir que, em certos casos particulares, a panca­
da seja aconselhável. Na argumentação, este estágio assume usualmente, ou
mesmo invariavelmente, uma feição verbal semelhante às seguintes (de teor
concessivo):
“E v e rd a d e (é certo, é ev id en te, é indiscutível) que, em certos caso s...”
“F. p ossível qu e, em certo s caso s, você te n h a ra z ã o ...”
“Em p a rte , talv ez te n h a m r a z ã o ...”
Em seguida, juntam -se as razões, provas, fatos, exemplos de casos
particulares que parecem confirmar a tese, a qual se vai adiante contestar
(criança muito rebelde, ineficácia de outros corretivos, reincidência provo­
cadora, etc.). Mas, para dispormos de argumentos favoráveis à nossa tese,
convém dosar bem ou restringir, sem “escam otear”, o número de casos ex­
cepcionais. Sem essa cautela, corremos o risco de ser contraditórios ou de
oferecer as melhores razões à parte contrária. Neste caso, nossa argum en­
tação acaba... tiro pela culatra.
Entretanto, pode não haver, ou é possível que não encontremos, ra­
zões para uma concordância parcial; então, passamos diretam ente da pro­
posição à contestação, que é o
Terceiro
est á g io
3. Contestação ou refutação (é o “miolo” desse tipo de argum entação)
Aqui tam bém a forma verbal assume feição típica; quase sempre —
já que se trata de opor aos argum entos favoráveis precedentes, ou à propo­
sição toda, outros, contrários — o período ou parágrafo, ou o trecho da
fala na língua oral, que lhe correspondam, se iniciam com um a conjunção
adversativa ou expressão equivalente:
“Mas, por outro lado...”
“Entretanto, na maioria dos casos... a pancada não educa, é um mé­
todo de educação condenável, porque...”
Seguem-se então a essa frase inicial da contestação as razões expressas
em orações encabeçadas geralmente por conjunções explicativas ou causais:
“...porque humilha, revolta, cria complexos...”
E claro que a série de razões deste terceiro estágio deve ser mais nu­
merosa e, principalmente, mais ponderável, pois é evidente que não se con­
testa com provas mais frágeis do que aquelas com que se justificou a concor­
dância parcial.
Em conjunto, esses dois estágios expressam um pensam ento essenci­
alm ente concessivo, resultante do enlace semântico entre os enunciados in­
troduzidos, respectivamente, por “é verdade”, “é certo”, e por um a oração
adversativa. E evidente que a idéia de concessão — que se filia à de oposi­
ção e de ausência de condição (rever 1. Fr., 1.6.7 e 1.6.7.2) — advém da
presença da oração adversativa, tendo “é verdade que”, “é certo que...” a
função, primeiro, de indicar em que termos ou extensão se concorda com
o que está declarado antes, e, segundo, de preparar o espírito do leitor, ou
ouvinte, para a restrição (contestação, discordância, objeção parcial), que
se vai enunciar a seguir (a partir da oração adversativa). Tanto é pensa­
m ento concessivo, que se pode, aproveitando a tese proposta, construir um
simples período em que entre uma oração de “em bora” ou equivalente:
“Embora o castigo físico possa, em certa m edida, ser eficaz, na maioria dos
casos, entretanto (esse “entretanto” é, aqui, pleonástico, mas aceitável
como reforço ou ênfase e, por isso, habitual nessas estruturas concessi­
vas), na maioria dos casos, ele é condenável, é antipedagógico, porque...”
Q uarto
e st á g io
4. Conclusão
Não existe argumentação sem conclusão, que decorre naturalmente das
provas ou argumentos apresentados. As principais partículas típicas da conclu­
são são, como se sabe, “logo”, “portanto”, “por conseqüência” e, até mesmo,
“de forma que”. Tais partículas encabeçam períodos ou parágrafos em que ne­
gamos (argumentação por refutação) ou confirmamos o teor da proposição:
“Logo (por conseqüência, portanto, de forma que) nao se devem es­
pancar as crianças..."
O t h o n
m.
G a r c i a
♦
387
Muitas vezes, principalmente na língua falada, a argumentação é
provocada por um a situação real (fato, incidente); no caso do castigo físi­
co, por exemplo, um pai que espanca o filho diante de nós, ou que defen­
de em conversa a conveniência da pancada. Nesses casos, é comum repor­
tar-se a conclusão à situação que a criou:
“Porianto, não acho que você deva espancar seu filho como acaba de
fazer...”
Na língua escrita, esse tipo de argumentação pode reduzir-se a um
simples parágrafo (correspondente na oral a uma só fala não interrompida
pelo interlocutor), ou a vários deles, tudo dependendo da maior ou menor
complexidade das idéias postas em discussão. No primeiro caso, a proposi­
ção será verdadeiramente o tópico frasal, e os demais estágios, o desenvolvi­
mento. Entretanto, a complexidade do assunto, o teor da proposição, pode
exigir, como acontece com mais freqüência, maior número de parágrafos:
quatro pelo menos, um para cada estágio. Muitas argumentações alongam-se
por várias páginas.
Essa é a estrutura típica da argumentação informal, tanto na língua fa­
lada quanto na escrita. Em alguns casos, ela se faz por contestação ou refuta­
ção, com ou sem concordância parcial, quando se procura negar tese ou opi­
nião alheia; em outros, por confirmação.
4.4 Normas ou sugestões para refutar argumentos
W hitaker Penteado, na sua excelente obra já citada, arrola algumas
sugestões para refutar idéias ou argumentos. Depois de dizer que a maneira
de contestar argumentos depende de fatores pessoais e de circunstâncias vá­
rias, o Autor apresenta-nos as seguintes sugestões:
“l 9 Procure refutar o argumento que lhe pareça mais forte. Comece por
ele.
2- Procure atacar os pontos fracos da argum entação contrária.
39 Utilize a técnica de “redução às últimas conseqüências”, levando os
argumentos contrários ao máximo de sua extensão.
49 Veja se o opositor apresentou uma evidência adequada ao argumento
empregado.
59 Escolha um a autoridade que tenha dito exatam ente o contrário do
que afirma o seu opositor.
69 Aceite os fatos, mas demonstre que foram mal empregados.
79 Ataque a fonte na qual se basearam os argumentos do seu opositor.
89 Cite outros exemplos semelhantes, que provem exatam ente o contrá­
rio dos argumentos que lhe são apresentados pelo opositor.
9°
Demonstre que a citação feita pelo opositor foi deturpada, com a omis­
são de palavras ou de toda a sentença que diria o contrário do que
quis dizer o opositor.
10s Analise cuidadosamente os argumentos contrários, dissecando-os para
revelar as falsidades que contêm.”
(Op. cit., p. 242)
4.5 Argumentação formal
A argum entação formal pouco difere, em essência, da informal: até
sua estrutura e desenvolvimento podem ser, em parte, os mesmos. Mas a
formal exige outros cuidados.
4.5.1 Proposição
A proposição, por exemplo, deve ser clara, definida, inconfundível quan­
to ao que afirma ou nega. Além disso, é indispensável que seja... argumentáve/, quer dizer, não pode ser uma verdade universal, indiscutível, incontestá­
vel. Não se pode argumentar com idéias a respeito das quais todos, absoluta­
mente todos, estão de acordo. Quem discutiria a declaração ou proposição de
que o homem é mortal ou um ser vivo? Quem discutiria o valor ou a impor­
tância da educação na vida modema? Se argumentar é convencer peia evi­
dência, pela apresentação de razões, seria inútil tentar convencer-nos daquilo
de que já estamos... convencidos. Argumentação implica, assim, antes de mais
nada, divergência de opinião. Isto leva a crer que as questões técnicas fogem
à argumentação, desde que os fatos (experiências, pesquisas) já tenham pro­
vado a verdade da tese, doutrina ou princípio. Fatos não se discutem.
Por outro lado, a proposição deve ser, de preferência, afirmativa e su­
ficientemente específica para permitir uma tom ada de posição contra ou a
favor. Corno argumentar a respeito de generalidades tais como a previdência
social, a propaganda, a democracia, a caridade, a liberdade? Proposições va­
gas ou inespecíficas que não permitam tomada de posição só admitem dis­
sertação, Le., explanação ou interpretação. Para submetê-las à argumentação
é necessário delimitá-las e apresentá-las em tennas de opção: previdência so­
cial, sim, mas em que sentido? Trata-se de mostrar a sua importância? Quem
o contestaria? Trata-se de assinalar as suas falhas ou virtudes em determ ina­
do instante e lugar? Sim? Então, é possível argumentar, pois deve haver
quem discorde da existência de umas ou de outras. Nesse caso, a proposi­
ção poderá configurar-se como: Porque a Previdência Social oferece (ou não)
aos trabalhadores toda a assistência que dela se deve esperar ou Deficiências da
assistência médica prestada pelo instituto X no ano tal no Estado tal. Posta em
termos semelhantes, a proposição torna-se argumentável, já que admite diver­
gências de opiniões.
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
389
4.5.2 Análise da proposição
A análise da proposição, que não costuma aparecer na argumentação in­
formal, principalmente na língua falada, constitui na formal estágio da maior
importância. Antes de começar a discutir é indispensável definir com clareza o
sentido da proposição ou de alguns dos seus termos a fim de evitar mal-enten­
didos, a fim de impedir que o debate se tome estéril ou inútil, sem possibilida­
de de conclusão: os opositores, por atribuírem a determinada palavra ou ex­
pressão sentido diverso, podem estar de acordo desde o início, sem o saberem.
Urge, portanto, definir com precisão o sentido das palavras (rever, a propósito,
5. Ord., 1.3 a 1.3.1.1, a respeito da definição). Se a proposição é, por exem­
plo, “A democracia é o único regime político que respeita a liberdade do indiví­
duo”, torna-se talvez necessário conceituar ou definir primeiro, pelo menos,
“democracia” e “liberdade”, palavras de sentido intencional, vago, abstrato, e
por isso sujeitas ao malabarismo das múltiplas interpretações.
Além da definição dos termos, importa que o autor ou orador defi­
na também, logo de saída, a sua posição de maneira inequívoca, que de­
clare, em suma, o que pretende provar.
4.5.3 Formulação dos argumentos
A formulação dos argumentos constitui a argumentação propriamente
dita: é aquele estágio em que o autor apresenta as provas ou razões, o supor­
te das suas idéias. É aí que a coerência do raciocínio mais se impõe. O autor
deve lembrar-se de que só os fatos provam (fatos no sentido mais amplo:
exemplos, estatísticas, ilustrações, comparações, descrições, narrações), desde
que apresentem aquelas condições de quantidade suficiente (enumeração per­
feita ou completa), fidedignidade, autenticidade, relevância e adequação (rev. 4.
Com., 1.4).
Além disso, é de suma importância a ordem em que as provas são
apresentadas; o autor deve escolher a que melhor se ajuste à natureza da sua
tese, a que seja mais capaz de impressionar o leitor ou ouvinte. Quase sem­
pre, entretanto, ao contrário do que se faz na refutação, adota-se a ordem
gradativa crescente ou climática, isto é, aquela em que se parte das provas
mais frágeis para as mais fortes, mais irrefutáveis.
Outro recurso de convicção consiste em manter o leitor como que em
suspense quanto às conclusões, até um ponto de saturação tal, que, várias ve­
zes iminentes mas não declaradas, elas acabem impondo-se por si mesmas:
esse é o momento de enunciá-las. Mas deve lembrar-se da paciência e da re­
sistência da atenção do leitor para não cansá-lo nem exasperá-lo, mantendoo por tempo demasiado na expectativa da conclusão.
Existem ainda outros artifícios de que o argum entador pode servir-se
para convencer, para influenciar o leitor ou ouvinte.
Muitos são comuns também à dissertação: confrontos flagrantes, compa­
rações adequadas e elucidativas, testemunho autorizado, alusões históricas per­
tinentes, e até mesmo anedotas.
Por fim, cabe ainda lembrar dois outros fatores relevantes. O primeiro
diz respeito à conveniência de o autor frisar, nas ocasiões oportunas, os pon­
tos principais da sua tese, pontos que ele, sem dúvida, englobará na conclu­
são final, de maneira tanto quanto possível enfática, se bem que sucintamente.
O segundo refere-se à necessidade de se anteciparem, ou se preverem possí­
veis objeções do opositor ou leitor, para refutá-las a seu tempo.
4.5.4 Conclusão
A conclusão “brota” naturalmente das provas arroladas, dos argumen­
tos apresentados. Sendo um arremate, ela não é, entretanto, uma simples re­
capitulação ou mero resumo: em síntese, consiste em pôr em termos claros,
insofismáveis, a essência da proposição. Sua estrutura verbal é, como aliás em
toda conclusão explícita, semelhante à da argumentação informal.4
4.5.5 Plano-padrão da argumentação formal
1. Proposição
(afirmativa, suficientemente definida e limitada; não deve conter em si mes­
ma nenhum argumento, isto é, prova ou razão)
2. Análise da proposição
3. Formulação dos argumentos (evidência):
a)
b)
c)
d)
e)
fatos;
exemplos;
ilustrações;
dados estatísticos;
testem unho.
4. Conclusão
4
R e f e r in d o - s e a o s e r m ã o , q u e é, e m e s s ê n c ia , a r g u m e n t a ç ã o , j á d i z i a o p a d r e A n t ô n i o V ie ir a , e m
1 6 5 5 , n o s e u c o n h e c id o
Serm ão da Sexagésima:
“ H á d e t o m a r o p r e g a d o r u m a s ó m a t é ria , h á d e
d e f in i- la p a r a q u e s e c o n h e ç a , h á d e d iv id i- l a p a r a q u e s e d i s i i n g a , h á d e p r o v á - la c o m a E s c r i t u ­
ra, h á d e d e c la r á - la c o m
a r a z ã o , h á d e c o n f ir m á - l a c o m
o e x e m p l o , h á d e a m p lif ic á - la c o m
as
c a u s a s , c o m o s e fe ito s, c o m a s c ir c u n s t â n c ia s , c o m a s c o n v e n iê n c ia s q u e s e h ã o d e s e g u ir , c o rn o s
in c o n v e n ie n t e s q u e s e d e v e m
e v ita r; h á d e r e s p o n d e r à s d ú v id a s , h á d e s a t is f a z e r a s d i f i c u l d a ­
d e s, h á d e i m p u g n a r e r e f u t a r c o m
t o d a a fo rç a d a e l o q ü ê n c ia o s a r g u m e n t o s c o n t r á r io s , e d e ­
p o is d is s o h á d e c o lh e r , h á d e a p e rta r, h á d e c o n c lu ir , h á cle p e r s u a d ir , h á d e a c a b a r .”
O i t av a
P arte
8. RED. TÉC. - Redação técnica
tira, em
i, há de
Escrirucom as
com os
ficulda3, e de-
1.0 Descricão técnica
1.1 Redação literária e redação técnica
Os compêndios e manuais adotados no curso fundamental ensinam
que há três gêneros principais de composição em prosa: a descrição, a narra­
ção e a dissertação. E a classificação tradicional, que leva em conta, precipuam ente ou exclusivamente, o feitio artístico da composição. Seguindo es­
ses moldes, os professores vimos ensinando como fazer descrições de “pôr-dosol”, de “praias de banho”, narrações de “passeios ao campo”, de “piqueni­
ques”, de “minhas férias”, dissertações sobre “meus colegas”, a “amizade”, o
“dever” e temas quejandos. São evidentemente exercícios úteis e indispensá­
veis, que servem, além do mais, como “abertura de caminhos para outros ru­
mos”, propiciando a revelação de vocações literárias. Mas tais revelações são
raras, e, ainda que o não fossem, os que as têm acabam mais tarde “abrin­
do caminho” por si mesmos. E os outros, os que não serão literatos, mas
profissionais de quem se exige preparo mais prático?
Esses outros, futuros técnicos em geral, quer de nível universitário
— engenheiros, médicos, economistas, pesquisadores — quer de nível m é­
dio — mecânicos, eletricistas, desenhistas — terão de fazer outras espé­
cies de composição, das quais nem sequer ouviram falar nas salas de aula,
tanto do curso fundamental quanto do universitário: descrição de peças e
aparelhos, de funcionamento de mecanismos, de processos, experiências e
pesquisas, redação de artigos científicos, relatórios e teses, de m anuais de
instrução, de sumários e resenhas científicas e outros tipos de redação téc­
nica ou científica.
Os únicos exercícios de composição não literária propriam ente dita
que se fazem no curso fundam ental (de hum anidades ou de comércio) são
os de “redação oficial” e de “correspondência comercial e bancária”, que
poderiam ser englobadas na denom inação genérica de “correspondência
administrativa”. Apesar de apresentarem ambas certa feição cabalística, que
exige treinam ento especial, com muitas das suas variedades todos nos fa­
miliarizamos facilmente, tanto é certo que existe ern cada um de nós, nos
quatro cantos deste Brasil imenso, um funcionário público em estado de latência como sinal da nossa brasílica vocação burocrática.
394
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
Ora, há m uito tempo, felizmente, que o Brasil deixou de ser essen­
cialmente terra de bacharéis e funcionários públicos; há muito tempo que
seu futuro já não depende exclusivamente da habilidade am anuense de re­
digir minutas de decretos, ofícios e requerimentos. Hoje — um “hoje” que
já não é recente —, as atividades de iniciativa privada se avolumaram de
tal forma e tal complexidade atingiram, que já não tem cabimento limita­
rem-se as nossas escolas e compêndios ao ensino exclusivo de descrições
de “pôr-do-sol” ou de redação de ofícios. Urge, portanto, ensinar também
aos nossos jovens coisas menos líricas ou menos burocráticas, com o du­
plo objetivo de lhes ensejar melhores oportunidades de trabalho e de aten­
der à crescente dem anda de pessoal especializado, que é enorme nas em­
presas privadas.
1.2 0 que é redação técnica
Por essa introdução, pode o leitor pensar que redação técnica é al­
gum bicho-de-sete-cabeças. Não é. Na verdade, os princípios básicos em que
se assenta são os mesmos de qualquer tipo de composição (clareza, corre­
ção, coerência, ênfase, objetividade, ordenação lógica, etc.), embora sua es­
trutura e seu estilo apresentem algumas características próprias.
Na definição sumária de M argaret Norgaard, redação técnica é
“qualquer espécie de linguagem escrita que trate de fatos ou assuntos téc­
nicos ou científicos”, e cujo estilo “não deve ser diferente de outros tipos
de composição”.1 Ressalte-se, entretanto, como faz a própria Autora, a re­
levância da clareza, da lógica e da precisão, qualidades que não excluem a
imaginação. “A redação técnica — acrescenta a Autora — é necessariamen­
te objetiva quanto ao ponto de vista, mas um a objetividade com pletamen­
te desapaixonada torna o trabalho de leitura penoso e enfadonho por le­
var o Autor a apresentar os fatos em linguagem descolorida, sem a marca
da sua personalidade. Opiniões pessoais, experiência pessoal, crenças, filo­
sofia da vida e deduções são necessariamente subjetivas, não obstante
constituem parte integrante de qualquer redação técnica m eritória.”2
A bem dizer, toda composição que deixe em segundo plano o feitio
artístico da frase, preocupando-se de preferência com a objetividade, a efi­
cácia e a exatidão da comunicação, pode ser considerada como redação
técnica. Nesse caso, a redação oficial, a correspondência comercial e ban­
cária, os papéis e documentos notariais e forenses constituem redação téc­
nica. Entretanto, parece conceito pacífico o de que tal expressão designa
apenas aquelas formas de comunicação escrita de incontestável caráter ci­
entífico, e especialmente da área das ciências experimentais. É nesse senti­
1 A te c /m ic íií w r ite r f c h a n d b o o k , p . 1
2 O p. cit., p . 6 .
do restrito que passamos £
técnica ou redação científica.
1.2.1 Tipos de redai
Há diversos tipos de i
cas propriam ente ditas, os
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O estudo da estrutur;
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1.3 Descrição de ol
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recer, convencendo; a literi
se em objetividade; a outra
m inantem ente denotativa; <
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cia, dimensões, peso, etc.),
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fatos, lugares, eventos. Mas
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de composição é o objeciv
Queirós faz da sala de Jac
Par. 3.3.1.6 — é bem divei
encarregado de um incuen
de morte. Muito diversas %
um a borboleta feitas por j
mologista debruçado sobre
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
395
do restrito que passamos a em pregar as expressões equivalentes redação
técnica ou redação científica.
1.2.1 Tipos de redação técnica ou científica
Há diversos tipos de redação
técnica: as descrições e narrações técni­
cas propriam ente ditas, os manuais de instrução, os pareceres, os relató­
rios, as teses e dissertações científicas (monografias em geral) e outros. Al­
guns não chegam a ter individualidade própria, já que são sempre parte de
outros, como as duas primeiras citadas e mais o sumário científico. O mais
im portante de todos, entretanto, é o relatório, não só porque há dele vá­
rias espécies mas também porque, dada a sua estrutura, nele se pode in­
cluir um grande número de trabalhos de pesquisas usualm ente publicados
em revistas científicas sob a denominação genérica de “artigos”.
O estudo da estrutura e das características formais dos diferentes ti­
pos de redação técnica exigiria um desenvolvimento que esta obra já não
pode comportar, pois, além das prescrições de ordem geral, seria indispen­
sável apresentar certo número de modelos comentados. Em virtude disso,
vamos limitar-nos à descrição técnica, que está presente em todos os tipos
de redação científica, e ao relatório.
1.3 Descrição de objeto ou ser
A descrição técnica apresenta, é claro, m uitas das características ge­
rais da literária, porém, nela se sublinha mais a precisão do vocabulário, a
exatidão dos pormenores e a sobriedade de linguagem do que a elegância
e os requisitos de expressividade lingüística. A descrição técnica deve escla­
recer, convencendo; a literária deve impressionar, agradando. Uma traduzse em objetividade; a outra sobrecarrega-se de tons afetivos. Uma é predo­
m inantem ente denotativa; a outra, predom inantem ente conotativa.
A descrição técnica pode aplicar-se a objetos (sua cor, forma, aparên­
cia, dimensões, peso, etc.), a aparelhos ou mecanismos, a processos (funcio­
nam ento de mecanismos, procedimentos, fases de pesquisas), a fenômenos,
fatos, lugares, eventos. Mas nenhum desses tem as lhe é exclusivo; eles po­
dem sê-lo também da literária. O que, então, distingue essas duas formas
de composição é o objetivo e o ponto de vista: a descrição que Eça de
Queirós faz da sala de Jacinto — segundo o exemplo que oferecemos em
Par. 3.3.1.6 — é bem diversa, quanto ao objetivo, da que faria um policial
encarregado de um inquérito, se na mesma sala tivesse ocorrido um crime
de m orte. Muito diversas hão de ser, pelo mesmo motivo, as descrições de
um a borboleta feitas por um romancista em cena bucólica e por um entomologista debruçado sobre o microscópio.
396
♦
Comunicação
em
P rosa
M oderna
O ponto de vista é tão im portante quanto o objetivo; dele dependem
a forma verbal e a estrutura lógica da descrição: qual é o objeto a ser des­
crito (definição denotativa)? que pane dele deve ser ressaltada? de que
ângulo deve ser encarado? que pormenores devem ser examinados de pre­
ferência a outros? que ordem descritiva deve ser adotada? (lógica? psicoló­
gica? cronológica?) a quem, a que espécie de leitor se destina? a um leigo
ou a um técnico?
Assim, um a vitrola ou um a máquina de lavar roupa podem ser des­
critas do ponto de vista: a) do possível com prador (legenda de propagan­
d a); b) do usuário (o jovem ou dona-de-casa que de uma ou de outra se
vão servir); c) do técnico encarregado da sua m ontagem ou instalação;
d) do técnico que terá eventualm ente de consertá-la. São fatores que preci­
sam ser levados em conta, pois deles dependem a extensão, a estrutura e
o estilo da descrição técnica.3
O seguinte exemplo pode dar-nos um a idéia do que deve ser esse
tipo de composição:
O m o to r e s tá m o n ta d o n a tra se ira d o ca rro , fix ad o p o r q u a tro p a ra fu ­
sos h caixa d e câm b io , a qual, p o r su a vez, está fix a d a p o r coxins d e b o r ra ­
ch a na e x tre m id a d e b ifu rc a d a d o chassi. Os cilin d ro s e s tã o d isp o sto s h o ri­
z o n ta lm e n te e o p o sto s dois a dois. C ada p a r d e c ilin d ro s tem u m cab eço te
c o m u m d e m e ta l leve. As válv u las, situ a d a s nos cab eç o te s, sã o c o m a n d a d a s
p o r m e io d e tu e h o s e balan cin s. O v irab req u im , livre d e v ib raçõ es, d e co m ­
p rim e n to re d u z id o , com tê m p e ra esp ec ial n o s colos, g ira em q u a tro p o n to s
d e a p o io e ac io n a o eixo ex c ên tric o p o r m eio d e e n g re n a g e n s o b líq u as. As
bielas c o n ta m com m a n ca is d e ch ttm b o -b ro n z e e os p istõ es são fu n d id o s d e
u m a lig a d e m e ta l leve.
M an u a l de instruções (V olksw agen)
Trata-se de parágrafo de descrição que tem em vista o usuário —
em geral, leigo —, pois o emprego de termos técnicos está reduzido ao mí­
nim o indispensável ao seu esclarecimento.
A descrição tipicamente científica, descrição de campo ou de laborató­
rio, consiste muitas vezes numa enumeração detalhada das características do
objeto ou ser vivo. Neste caso, ela se caracteriza por um a estrutura de fra­
ses curtas, em grande parte nominais, como no seguinte exemplo, em que o
Autor faz a descrição de um holótipo de Hyla rizibilis. A ordem da descri­
ção é a lógica: o Autor começa pela cabeça (suas dimensões em relação ao
corpo), e vai detalhando: os olhos, o tímpano, as narinas, os dentes, a lín­
gua, os membros superiores e inferiores, etc. O último parágrafo da descri­
ção é destinado a indicar a aparência cio conjunto, destacando o colorido
dorsal. O seguinte fragmento é ilustrativo:
■* O exemplo é de Norgaard, op. cit., p. 164.
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
397
M em bros a n te rio re s cu rto s e ro b u sto s; o a n te b ra ç o m a is d esen v o lv i­
d o d o q u e o braço. D edos lo n g o s e ro b u sto s, os e x te rn o s u n id o s p o r u m a
m e m b ra n a v estig iá ria. Discos d o ta m a n h o d o tím p a n o , o d o p o le g a r um
p o u co m enor. P olegar com p re p ó le x ru d im e n ta r; calos su b a rtic u la re s e carpais b em d esen v o lv id o s.4
Note-se: vocabulário de sentido exclusivamente denotativo ou extensional, frases curtas, muitas delas nominais, ausência de afetividade lingüística.
Eric M. Steel dá-nos um exemplo muito ilustrativo de descrição de
objeto — um relógio de parede, daqueles antigos. Como o trecho é muito
extenso, limitamo-nos apenas ao plano, suficiente por si mesmo como ori­
entação:
Plano da descrição de um relógio de parede5
1. Visão de conjunto:
a)
b)
c)
d)
função ou finalidade: marcar o tempo;
modo de operação ou funcionamento (pêndulo);
aparência: alto, de madeira, com tais e tais dimensões, etc.;
partes componentes: a caixa, o mostrador, etc.
2. Descrição detalhada das partes:
a) a caixa;
b) o mostrador;
c) o mecanismo.
3. Conclusão
1.4 Descrição de processo
Quando o propósito é mostrar o funcionamento de aparelho ou me­
canismo ou os estágios de um procedimento (como, por exemplo, as fases
da fabricação de um produto, de um trabalho de pesquisa, de um a investi­
gação ou sindicância), tem-se a descrição de processo, a que Gaum6 dá o
nome de exposição narrativa, cujas características principais são:
4 BOKERMANN, Werner C. A. “Unia nova espécie de Hyla da Serra do Mar em São Paulo".
Revista Brasileira de Biologia , Rio. v. 24. n. 4, dezembro, 1964, p. 431.
5 STEEL, Eric M. Readable writing, p. 33.
A transcrição do plano foi feita com ligeiras adaptações na tradução.
r> GAUM, Cari G., et alii. Report w riting , p. 61.
398 ♦
a)
b)
c)
d)
e)
C o m u n i c a ç ã o
em
P r o s a
M o d e r n a
exposição em ordem cronológica;
objetividade: nada de linguagem abstrata ou afetiva;
ênfase na ação, que deve ser suficientemente detalhada;
indicação clara das diferentes fases do processo;
ausência de suspense: ao contrário da narração literária, o interesse da
descrição de processo não deve depender da expectativa ou suspense.
O núcleo, miolo ou corpo de quase todos os relatórios técnicos é,
em essência, um a descrição de processo, um a exposição narrativa.
Esse tipo de descrição é, talvez, o mais difícil por exigir do autor
não apenas conhecimento completo e pormenorizado do assunto, mas tam ­
bém muito espírito de observação e senso de equilíbrio: se ela sai por de­
mais detalhada, pode tom ar-se confusa; se muito simplificada, pode revelar-se incom pleta ou inadequada. Por isso é que quase toda descrição de
processo vem acom panhada de ilustração (desenho, m apas, diagramas, grá­
ficos, etc.), não apenas como esclarecimento indispensável mas ainda como
meio, por assim dizer, de “dosar” os detalhes.
O seguinte parágrafo pode servir como amostra de descrição de pro­
cesso:
Transm issão de um program a de rádio
Os sons q u e se p ro d u z e m d e n tro d o c a m p o d e a ç ã o d o m ic ro fo n e são
p o r estes ca p ta d o s e tra n sfo rm a d o s e m c o rre n te e lé tric a eq u iv a le n te . E stas
c o rre n te s, d ev id o ao fato d e se re m e x tre m a m e n te fra c a s, sã o co n d u z id a s a
u m pré-am plificador de m icrofone, q u e as am p lifica c o n v e n ie n te m e n te , d e ­
p ois d o q u e são tra n sfe rid a s p a ra u m a m p lifica d o r d e g ra n d e s d im e n sõ e s,
c h a m a d o m odulador. Existe n o e q u ip a m e n to tra n sm isso r u m circ u ito g e ra ­
d o r d e a lta fre q ü ên c ia, q u e fo rn ece a o n d a a se r irra d ia d a p ela E stação . Esta
o n d a d e R.E (a lta fre q ü ên c ia) se rá m is tu ra d a com as c o rre n te s d e so m a m ­
p lific ad a s p e lo m odulador, e tra n sm itid a s n o esp aç o p o r m e io d e u m a a n te­
na transm issora. A fig u ra 7 9 7 m o stra-n o s r e s u m id a m e n te to d o o p ro cesso
a c im a d e sc rito .
(M artins, O.N., Curso p rá tico de rádio, p. 127)
Note-se:
a) o propósito (transmissão de programa de rádio);
b) os estágios sucessivos do processo (1Q, sons captados, 29, transformados,
39, correntes elétricas conduzidas e 49, amplificadas, 5e, transferidas a
um amplificador de grandes dimensões, 69, onda de R.E m isturada com
as correntes amplificadas e, por fim, 79, transm itidas pela antena);
7 Omitimos a ilustração da fig. 79, referida no texto.
O t h o n
M.
G a r c i a
♦
399
c) as partes componentes (microfone, pré-amplificador, modulador, etc.); e,
por último,
d) o resultado (transmitidas no espaço por meio de um a antena).
O relato de experiência de laboratório é um a descrição de processo,
como se vê no seguinte exemplo:
O xidação com p erm a n g a n a to em m eio peridínico
D issolveram -se 0 ,5 g d e cia n to lin a em 5 0 0 m l d e p irid in a , em e b u li­
ção, e a d ic io n a ra m -se com p e q u e n o s in te rv alo s 2g d e p e rm a n g a n a to d e p o ­
tássio. A m is tu ra foi reflu x ad a d u r a n te 7 h o ra s e d e ix a d a em rep o u so p o r
um dia. A pós esse p erío d o , a q u e c e u -se m ais u m a h o ra e fiitro u -se o líq u id o
p erid ín ico a q u e n te . D estilou-se a m a io r p a rte d a p irid in a , re c o lh en d o -se ao
e s fria r 0 ,3 g d a cia n to lin a c ristaliza d a com P K 2 7 8-279°C . O resíd u o d o fil­
tro foi la v ad o com 20m l d e ág u a q u e n te (80°C ), q u a tro vezes, e o to ta l dos
líquidos, d e p o is d e frio, acid ificad o co m ácid o clo ríd rico ao v e rm e lh o C o n ­
go. P recip ito u -se o ácid o o rg ân ico , co m a sp e c to g e latin o so , q u e foi, p o r c e n ­
trifu g aç ão , se p a ra d o e la v ad o v ária s v ezes, se ca n d o -se a se g u ir em u m desse c a d o r a v ácu o . O btiv eram -se 0 ,0 8 6 g (1 3 ,5 % ) d o ácid o I, fu n d in d o -se a
36 8-372°C . D epois d o tra ta m e n to co m á g u a a c id u la d a (a p ro x im a d a m e n te
pH 4; HCI), em ebulição, e u lte rio r c ristaliza ção em d io x a n o e ta n o l (1 :1 ), o
seu p o n to d e fu são elev o u -se a 3 7 5 -3 7 8 °C (d e c o m p o siç ão ).8
Note-se que, apesar do vocabulário técnico, a descrição se faz de m a­
neira clara e objetiva: a cada fase ou estágio da experiência corresponde um
período sucinto (o mais extenso deles tem apenas três orações) com escassa
subordinação. Note-se ainda o feitio impessoal da exposição narrativa: “dissolveram-se...”, “a mistura foi refluxada...”, “aqueceu-se...”, etc., em vez de
“dissolvemos”, “refluxamos” ou “aquecemos”, isto é, voz passiva e não ativa.
1.5 Plano-padrão de descrição de objeto e de processo
Apoiados nesses elementos básicos (estrutura, características, objeti­
vo e ponto de vista), podemos esboçar o seguinte plano-padrão para a des­
crição técnica de objeto e de processo, de modo geral:
A Objeto
1. Qual é o objeto?
8 M A R T IN S FILHO, Guilherme, et alii : “Síntese de derivados p-subsiituídos dá cafeína”. A nais da
Academia Brasileira de Ciências, Rio, v. 35, n. 2, junho, 1963, p. 192.
2. Para que serve?
3. Qual é a sua aparência (forma, cor, peso, dimensões, etc.)?
4. Que partes o compõem?
a)
(descrição detalhada);
b) ........ (idem)
etc.
B Processo (funcionamento)
1. Princípio científico em que se baseia.
2. Normas a seguir para pô-lo em funcionamento.
3. Fases ou estágios do funcionamento.
C Conclusão (p. ex.: apreciação das qualidades, visão de conjunto, aplica­
ções práticas, etc.)
2.0 R elatório adm inistrativo
O relatório é um dos tipos mais comuns de redação técnica, dada a
variedade de feições que assume: muitos artigos publicados em revistas ci­
entíficas, muitos papéis que circulam em repartições públicas ou empresas
privadas, contendo informações sobre a execução de determ inada tarefa ou
explanação circunstanciada de fatos ou ocorrências, pesquisas científicas,
inquéritos e sindicâncias, nada mais são do que relatórios. É verdade que
só recebem essa designação aqueles documentos que apresentam certas ca­
racterísticas formais e estilísticas próprias: título, “abertura” (origem, data,
vocativo, etc.) e “fecho” (saudações protocolares e assinatura). Algumas ve­
zes, consiste num a exposição rápida e informal de caráter pessoal; outras,
assume formas mais complexas e volumosas, como os relatórios de gestão,
quer do serviço público quer de empresas privadas.
O relatório, seja técnico seja administrativo, engloba variedades m e­
nores de redação técnica propriam ente dita: descrição de objeto, de meca­
nismo, de processo, narrativa minuciosa de fatos ou ocorrências, explana­
ção didática, sumário, e até mesmo a argum entação, que, entretanto, não
é um gênero menor.
Há várias espécies de relatório. Odacir Beltrão9 nos dá um a lista
bem num erosa deles: de gestão (relatórios empresariais periódicos), de in­
quérito (administrativo, policial e outros), parcial, de rotina, de cadastro,
de inspeção (ou de viagens), de pesquisa (ou científico), de tomada de con­
tas, de processo, contábil, e o relatório-roteiro (elaborado com base em mo­
delo ou formulário impresso).
São, como se vê, variedades especiais, que só a prática pode ensi­
nar. Entretanto, quase todos têm certas características comuns de que o lei­
tor se poderá assenhorear. É o que pretendem os proporcionar-lhe nas pági­
nas seguintes, distinguindo apenas o relatório administrativo do técnico
propriam ente dito.
y BELTRÃO, Odacir. Correspondê/ida, p. 167.
4 0 2
♦
C o m u n i c a ç ã o
e m
p r o s a
M o d e r n a
2.1 Estrutura do relatório administrativo
O relatório administrativo é uma exposição circunstanciada de fatos
ou ocorrências de ordem administrativa: sua apuração ou investigação para
a prescrição de providências ou medidas cabíveis. Sua estrutura com preen­
de, além da “abertura” e do “fecho”:
1. Intfodução: indicação do fato investigado, do ato ou da autoridade que
determ inou a investigação e da pessoa ou funcionário disso incumbido.
Enuncia, portanto, o propósito do relatório.
2. Desenvolvimento (texto, núcleo ou corpo do relatório): relato minudente dos fatos apurados, indicando-se:
a) a data;
b) o local;
c) o processo ou método adotado na apuração;
d) discussão: apuração e julgam ento dos fatos.
3. Conclusão e recomendações de providências ou medidas cabíveis.
Todo relatório propriam ente dito, seja administrativo seja técnico ou
científico, tem um a “abertura” e um “fecho”, cuja forma e disposição va­
riam de acordo com as praxes adotadas nas empresas ou repartições públi­
cas. Mas, em geral, na primeira vem a indicação do local ou origem, da
data, da repartição ou serviço, às vezes a em enta ou sumário, e o vocativo. No segundo, as formas protocolares usuais. Em certos casos, quando o
relatório é muito extenso, como costumam ser os de gestão, relatórios perió­
dicos destinados a publicação, esses elementos costumam vir em separado,
constituindo uma espécie de carta ou ofício de “encam inham ento”, ou de
apresentação, a que os americanos dão o nome de letter of transm ittal
Alguns relatórios costumam incluir ainda m aterial ilustrativo: diagra­
mas, mapas, gráficos, desenhos, etc., que podem vir incorporados no texto
ou sob a forma de apêndice e anexos.
Benedicto Silva apresenta na sua monografia Publicidade administrativa10 os critérios recomendados na organização de relatórios, critérios que
resultaram de um a sondagem da opinião pública feita nos Estados Unidos
em 1927 pela National Municipality Review. No que respeita à composição
ou estrutura, lá se recomenda a inclusão dos seguintes elementos:
10 Publicada pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Cíetulio Vargas na
coleção Cadernos de Administração Pública, n. 3, Rio, 11954], p. 16-7.
mmssmfSSST
a) “Sumário — Um
consultas.
b) “Organograma —
gão, se colocado
der m elhor o qu*
c) “Ofício de apresei
apresentação, dc
veis e as recome
d) “Realizações e rt
passadas com o
dício das realiza
e) “Extensão — No
f) “Estilo — Além
atenção à grami
g) uDisposição — A
vem correspond
rio lógico.
h) “Equilíbrio na ê
zer um a pintun
nal à sua impoi
i) “Estatísticas —
dicado, devem
simples.
j) “Dados compara
paradas com as
ção todos os fa
k) “Demonstrações
nanceiras que i
ciamento relati1
1) “Propaganda —
tições ou servii
tratos de autoi
ficam inteiram*
Como se v<
relatórios públicos
ção dos nossos p<
legislação especiá
l i A transcrição é feii
enumeração dos tópic
O thon
M.
Garcia
♦
4 0 3
a) “Sumário — Um sumário no início do relatório facilita enorm em ente as
consultas.
b) “Organograma — Os organogramas dos serviços prestados por cada ór­
gão, se colocados no início do relatório, auxiliam o leitor a com preen­
der melhor o que se segue.
c) "Ofício de apresentação — Abrir o relatório com um pequeno ofício de
apresentação, do qual constem um resum o das realizações mais notá­
veis e as recomendações para o futuro.
d) “Realizações e recomendações — Uma comparação das recomendações
passadas com o progresso feito na execução das mesmas serve como in­
dício das realizações anuais.
n-
e) “Extensão — No máximo 50 páginas.
0 “Estilo — Além de claro e conciso, o texto deve refletir a necessária
atenção à gramática, sintaxe e propriedade de expressão.
g) “Disposição — As partes referentes às várias repartições ou serviços de­
vem corresponder à estrutura do governo ou seguir algum outro crité­
rio lógico.
h) liEquilibrio na distribuição da matéria — O material exposto deve perfa­
zer um a pintura completa, ocupando cada atividade espaço proporcio­
nal à sua importância.
i) “Estatísticas — Aconselha-se a inclusão de estatísticas, mas, quando in­
dicado, devem as mesmas ser completadas por diagramas ou gráficos
simples.
j) “Dados comparativos — As realizações do ano em curso devem ser com­
paradas com as dos anos anteriores, tomando-se, porém, em considera­
ção todos os fatores ocorrentes.
k) “Demonstrações financeiras — Incluir três ou quatro demonstrações fi­
nanceiras que indiquem a im portância despendida e os meios de finan­
ciamento relativos a cada função e órgão.
1) ltPropaganda — A inclusão de m atéria para exaltação de pessoas, repar­
tições ou serviços é considerada contrária à ética e de m au gosto. Re­
tratos de autoridades, especialmente de administradores em exercício,
ficam inteiram ente deslocados num relátório oficial.”11
Como se vê, trata-se de recomendações aplicáveis à preparação de
relatórios públicos e periódicos, assunto que tem merecido tam bém a aten­
ção dos nossos poderes públicos, tanto assim que já existe, de longa data,
legislação especial, como é o caso dos Decretos 5.808, de 13 de junho de
11 A cranscrição é feita ipsis liUeris, salvo no que respeita ao emprego das minúsculas para a
enum eração dos tópicos.
4Ü 4
♦
C o m u n i c a ç ã o
em
P rosa
M oderna
1940, e 13.565, de l Q de outubro de 1943, este último acom panhado de
uma Exposição de Motivos do DASP com “Normas para relatório anual”.
O m odelo que se transcreve abaixo, apesar de muito simples, dá ao
leitor uma idéia da estrutura dos relatórios mais comuns:
Rio d e J a n e iro , 2 8 d e o u tu b ro d e 1 9 4 6
S e n h o r D ireto r
T endo sid o d e s ig n a d o p a ra a p u r a r a d e n ú n c ia d e irre g u la rid a d e s
o c o rrid a s n o D e p a rta m e n to d o s C orreios e T elégrafos, su b m e to à a p re c ia ç ã o
d e V S-, p a ra os d evidos fins, o re la tó rio d a s d ilig ê n c ia s que, n esse se n tid o ,
e fe tu e i.
2.
Em 10 d e se te m b ro d e 1946, dirig i-m e ao chefe d a S eção “A”, p a ra
in q u irir os fu n cio n á rio s X e Y , ac u sa d o s d o e x tra v io d e v alo res e n d e re ç a d o s
à firm a S e L, d e s ta praça.
3.
A m bos n e g a ra m a a u to ria d a v io lação d a m a la d a c o rre sp o n d ê n c ia ,
c o n fo rm e te rm o s c o n sta n te s d as d e c la ra ç õ e s a n e x as.
4.
No in q u é rito a q u e se p ro c e d e u , ressa lta a c u lp a b ilid a d e d o fu n c io n á ­
rio X, so b re q u e m rec aem as m ais fo rte s acu saçõ es.
5.
O se g u n d o , a p e sa r d e n ão se p o d e r c o n s id e ra r m a n c o m u n a d o com o
p rim e iro , te m p a rc e la d e resp o n sa b ilid ad e, pois a g iu p o r o m issão , s e n d o n e­
g lig e n te no exercício de su a s funções. C om o ch e fe d e tu rm a , d ev ia e s ta r
p re s e n te , na o ca siã o da a b e rtu ra d a m ala e m a p re ç o — o q u e n ã o o co rreu ,
c o n fo rm e d e p o im e n to d e íls. ...
6.
Do exposLO conclui-se q u e so m e n te o in q u é rito policial p o d e rá escla­
rec er o crim e p e rp e tra d o com a v io lação da m ala d e c o rre sp o n d ê n c ia d a Se­
ção “A” .
7.
Im põe-se in sta u ra ç ã o im e d ia ta d e p ro cesso a d m in istra tiv o . É o q u e
m e c u m p re le v ar ao c o n h e c im e n to d e V S'3.
A proveito a o p o rtu n id a d e p a ra a p re s e n ta r-lh e p ro te sto s d e m in h a d is­
tin ta co n sid eraç ão .
a)
12
Apud NEY, João Luís. Prontuário de redação oficial, p. 163.
12
3.1 N o m en d ati
Na categoria d a
destinadas a publicaçãt
variedade de trabalhos
dos “artigos” (às vezes
tanto, em conseqüêncie
generalizando entre nó
trabalhos que não se a
ginas. Além das já lonj
(esta, quando universit
periódicos) e de outro
“sinopse”), tornaram-se
ria científica”, “informi
nas as das espécies ma
Ao que parece, i
rização e classificação
científicas, apesar de \
nicação apresentada à
nal de Documentação)
de trabalhos cientifica
teiro (dados de 1958:
26.000 periódicos), m<
Internacional das Unit
aos editores e redatoi
três categorias: a) méi
noticias); c) rapports à
balhos em progresso).
em 1967 (P-TB-49) ur
cumentos” técnico-ciei
mentos científicos” esi
co, a tese; entre os
fia, o relatório e mais
3.0 Dissertações cien tífic as : teses e m o n o g rafias
3.1 Nomenclatura das dissertações científicas
Na categoria das chamadas “dissertações científicas” precipuamente
destinadas a publicação em periódicos especializados, inclui-se uma grande
variedade de trabalhos, com freqüência, genérica e sumariamente designa­
dos “artigos” (às vezes, “estudos”, às vezes, “ensaios”). Ultimamente, entre­
tanto, em conseqüência sobretudo da nossa “explosão universitária”, vêm-se
generalizando entre nós denominações mais específicas para esses tipos de
trabalhos que não se corporificam em alentados volumes de centenas de pá­
ginas. Além das já longamente consagradas “memória”, “monografia”, “tese”
(esta, quando universitária, não necessariamente destinada a publicação em
periódicos) e de outros gêneros menores (“recensão”, “resenha”, “resumo”,
“sinopse”), tornaram-se também freqüentes denominações tais como “memó­
ria científica”, “informe científico” e “relatório de pesquisa”, para citar ape­
nas as das espécies mais importantes.
Ao que parece, não se firmou ainda critério satisfatório para a caracte­
rização e classificação inconfundíveis dos principais tipos dessas dissertações
científicas, apesar de várias tentativas nesse sentido. Já em 1960, em comu­
nicação apresentada à 26- Conferência Geral da F.I.D. (Federação Internacio­
nal de Documentação), G.-A Boutry, depois de se referir à grande variedade
de trabalhos científicos publicados em milhares de periódicos do mundo in­
teiro (dados de 1958: mais de 1.000.000 de artigos ou memórias em mais de
26.000 periódicos), mencionava a proposta levada a discussão pelo Conselho
Internacional das Uniões Científicas (I.C.S.U.) no sentido de se recomendar
aos editores