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UMA CARACTERIZAÇÃO DOS ÂMBITOS INDIVIDUAL E SOCIAL EM TEORIA
DAS ORGANIZAÇÕES POR MEIO DA TEORIA DA COMPLEXIDADE
Ruben José Bauer Naveira
TESE SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DA COORDENAÇÃO DOS
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO DE ENGENHARIA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL
DO
RIO
DE
JANEIRO
COMO
PARTE
DOS
REQUISITOS
NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM CIÊNCIAS
EM ENGENHARIA DE PRODUÇÃO.
Aprovada por:
________________________________________________
Prof. Rogério de Aragão Bastos do Valle, D.Sc.
________________________________________________
Prof. Cláudio Fernando Mahler, D.Sc.
________________________________________________
Prof. Ivan da Costa Marques, D.Sc.
________________________________________________
Prof. Henrique Rozenfeld, D.Sc.
________________________________________________
Profa. Nilda Teves Ferreira, D.Sc.
________________________________________________
Prof. Fernando Guilherme Tenório, D.Sc.
RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL
SETEMBRO DE 2005
i
NAVEIRA, RUBEN JOSÉ BAUER
Uma Caracterização dos Âmbitos
Individual e Social em Teoria das Organizações por meio da Teoria da Complexidade [Rio de Janeiro] 2005
VI, 270 p. 29,7 cm (COPPE/UFRJ, D.Sc.,
Engenharia de Produção, 2005)
Tese - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, COPPE
1. Teoria das organizações
2. Teoria da complexidade
3. Fenomenologia organizacional
4. Fenomenologia
5. Funcionalismo
6. Redundância
7. Variedade
8. Cognição
9. Gestão do conhecimento
I. COPPE/UFRJ II. Título (série)
ii
Agradecemos o generoso apoio prestado pela PETROBRAS e pela
Fundação CAPES, sem o que esse trabalho não teria sido possível.
iii
Resumo da Tese apresentada à COPPE/UFRJ como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do grau de Doutor em Ciências (D.Sc.)
UMA CARACTERIZAÇÃO DOS ÂMBITOS INDIVIDUAL E SOCIAL EM TEORIA
DAS ORGANIZAÇÕES POR MEIO DA TEORIA DA COMPLEXIDADE
Ruben José Bauer Naveira
Setembro/2005
Orientador: Rogério de Aragão Bastos do Valle
Programa: Engenharia de Produção
São destacadas crescentes insuficiências do corpus teórico historicamente
predominante em Teoria das Organizações – a Administração como racionalização –
para a lida com as também crescentes complexidades em que se encontram imersas as
organizações. Para uma superação dessas limitações, são então delineadas as diretrizes
gerais para uma nova teoria das organizações, inspirada na vertente, em Teoria da
Complexidade, em que a grandeza “complexidade” de um sistema é referida ao
entendimento que se detém desse sistema. Como fundamento para esta nova teoria, é
formulada uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional, que consiste
dos processos de mútua produção entre as condicionantes de variedade e de redundância
presentes em toda organização. Um estudo de caso é desenvolvido, como modo de
demonstrar a validade e a adequação do emprego desta dinâmica gerativa ao estudo, à
compreensão e à descrição dos fenômenos organizacionais.
iv
Abstract of Thesis presented to COPPE/UFRJ as a partial fulfillment of the
requirements for the degree of Doctor of Science (D.Sc.)
CHARACTERIZATION OF SOCIAL AND INDIVIDUAL SCOPES IN
ORGANIZATION THEORY BY MEANS OF COMPLEXITY THEORY
Ruben José Bauer Naveira
September/2005
Advisor: Rogério de Aragão Bastos do Valle
Department: Production Engineering
This dissertation points to reasons why the corpus of theory historically
predominant in Organization Theory – Management as rationalization – has become
increasingly inadequate to address the also increasing complexities in which
organizations are immersed. As a means to overcoming these limitations, it sketches
general guidelines for a new organization theory inspired in the body of thinking within
Complexity Theory that refers the magnitude “complexity” of any system to the
understanding that may be attained of that system. As a foundation for such a theory, it
formulates a generative dynamic for organizational phenomenology, which consists in
the processes of mutual production between the conditioning factors “variety” and
“redundancy” that are present in every organization. It reports on a case study, carried
out as a means to demonstrate that this generative dynamic is valid and appropriate for
studying, understanding and describing organizational phenomena.
v
Índice
Introdução........................................................................................................................1
1. Racionalização: O Funcionalismo em Teoria das Organizações...........................10
Teorias da conciliação, 12. A vez do Japão, 17. A explicitação dos contratos,
19. Limites da racionalização, 24.
2. A trajetória em busca da complexidade..................................................................27
A mecanização da mente, 30. O estatuto do modelo científico, 38. Entropia e
complexidade, 44. A autonomia dos sistemas, 50. Ordem a partir do ruído, 55.
O computador por ferramenta, 60. Complexidade aos olhos do observador, 73.
3. A teoria da autopoiesis de Maturana e Varela........................................................77
Distinguindo Biologia de Física, 79. Cognição, um fenômeno biológico, 88. A
fenomenologia autopoiética dos seres vivos, 94. Autonomia coletiva –
organismos e sociedades, 99. Varela versus Maturana, 105. Cognição, um
fenômeno individualizado, 111. Comunicação e linguagem, 115. O peso da
tradição, 122. O observador em sua experiência, 133.
4. A teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan..........................................142
Uma teoria da informação, 143. Confiabilidade e aprendizagem, 147. Autoorganização multinivelar, 151.
5. Redundância e variedade como conceitos-chave a uma Teoria das
Organizações................................................................................................................159
Definições formais, 160. A vertente metafórica, 173. Outros autores, 176.
6. Um estudo de caso....................................................................................................193
Redundância e variedade, 196. A qualidade das interações humanas, 209.
Auto-organização, 213. Autonomia, poder e controle, 218. Conclusões, 227.
7. Por uma nova Teoria das Organizações................................................................230
Teoria da cooperação, 231. Teoria do conhecimento, 234. Teoria da natureza
dos conhecimentos, 244. Teoria da (inter)ação, 247. Teoria do Brasil, 250.
Teoria e prática, 255.
Sumário e conclusões finais........................................................................................258
Referências bibliográficas...........................................................................................262
vi
Introdução
O problema central desta tese é a articulação indivíduo-organização, ou os limites e as
possibilidades para a conjugação entre dois sentidos, ou significações, por natureza
distintos: o sentido, para um indivíduo, de pertencer a uma organização (prover
significação à sua existência, o que comporta, porém transcende, o aspecto pecuniário) e
o sentido para que essa organização conte em seus quadros com esse indivíduo (relativo
à contribuição deste à consecução dos objetivos organizacionais).
Este é um tema antigo. Já no século XIX Marx1 o definiu como antagonismo capitaltrabalho, e situou sua resolução na disputa pela propriedade dos meios de produção;
como é sabido, as experiências havidas de apropriação e coletivização dos meios de
produção não lograram produzir alternativas qualitativamente diferentes para as
insuficiências da conjugação indivíduo-organização2 (ainda que seja possível, em tese,
que se venham a descortinar novos caminhos para implantação das idéias originais de
Marx, e ainda que muito do valor diagnóstico dessas idéias possa ser considerado
atual 3). O âmbito capitalista, como veremos, tampouco mostrou-se bem-sucedido.
Compreender a articulação indivíduo-organização requer alguma inteligibilidade a
respeito de como dois âmbitos de natureza distinta (o individual e o social) se
determinam mutuamente. Propomos tomar como base para esta reflexão os referenciais
1
Karl Heinrich Marx; Alemanha (n. Prússia); 1818-1883; referência histórica: Das Kapital. Kritik der politischen
Ökonomie. Hamburg (Alemanha): Otto Meißner, vol. 1 (Der Produktionsprozeß des Kapitals), 1867, vol. 2 (Der
Zirkulationsprozeß des Kapitals, editado por Friedrich Engels), 1885, vol. 3 (Der Gesamtprozeß der kapitalistischen
Produktion, editado por Engels), 1894.
2
“O extraordinário desenvolvimento da tecnologia científica, da produtividade do trabalho e, em certo grau, dos
níveis ordinários de consumo da classe trabalhadora durante este século [XX] tiveram ... um profundo efeito sobre
os movimentos trabalhistas em geral. ... os marxistas foram compelidos a adaptar-se a ele [este contexto] em graus
variáveis. Essa adaptação assumiu formas diversas, muitas das quais podem ser encaradas agora como
ideologicamente destrutivas. ... a crítica do modo de produção cedia lugar à crítica do capitalismo como modo de
distribuição. Os marxistas ... adaptaram-se à maneira de ver a fábrica moderna como uma inevitável mas
aperfeiçoável forma de organização do trabalho. ... a industrialização soviética imitava o modelo capitalista; e à
medida que a industrialização avançava ... a União Soviética acomodava-se a uma organização do trabalho
diferente apenas em pormenores em relação aos países capitalistas. Assim, os trabalhadores soviéticos carregam
todos os estigmas das classes trabalhadoras ocidentais. ... a crítica do modo capitalista de produção, que era a mais
contundente arma do marxismo, gradualmente perdeu o seu gume ... o marxismo tornou-se mais frágil, precisamente
no ponto em que era originariamente mais forte” (BRAVERMAN, 1987 (1974): 21-23).
3
Cf., por exemplo, os chamados “Manuscritos Econômicos e Filosóficos” de 1844; ref. hist.: “ÖkonomischPhilosophische Manuskripte”. In: Karl Marx/Friedrich Engels: Historisch-kritische Gesamtausgabe.
Werke/Schriften/Briefe (coleção MEGA, editada por David B. Riazanov). Berlin: Max-Engels-Verlag, Erste
Abteilung, Band 3, 1932. Versão em inglês por Thomas B. Bottomore em: Early Writings. London: C. A. Watts and
Co., 1963.
1
de que dispomos quanto a determinações causais, que são os da ciência natural (faremos
uso, mais especificamente, dos da Biologia) – o que, reconhecemos, torna nossa análise
algo positivista4 (não de todo, porém: tais referenciais não são aqui tomados como leis a
que se deva submeter, mas tão somente como guias para reflexão).
Na tradição da ciência natural, a determinação causal recebeu a forma de mecanicismo,
a explicação dos fenômenos por meio das leis naturais da Física (mais especificamente
as da mecânica newtoniana). Ao mecanicismo acabou associado o reducionismo,
originalmente a noção de que fenômenos tidos como complexos possam ser explicados
por (ou seja, reduzidos a) causas mais simples ou fundamentais.5 A partir do sucesso da
mecânica newtoniana em explicar o movimento, tais causas fundamentais foram
atribuídas às causas físicas associadas às leis naturais que regem os movimentos e as
colisões da matéria, e já em meados do século XVII a Ciência adotou uma perspectiva
de Universo em que tudo seria composto por substâncias elementares de matéria que se
comportam por modos regulares, em conformidade com leis universais.6 Assim,
reducionismo tornou-se redução ao mecanicismo.
Tal visão mecanicista do Universo veio suceder uma visão teleológica (do grego telos:
fim, resultado + logos: palavra, discurso; um estudo a respeito das finalidades)
originada na Grécia clássica e predominante ao longo da Idade Média, por que os
fenômenos eram compreendidos como orientados a alguma finalidade, ou seja, dotados
de sentido, o que era compatível com a fé em Deus. Doravante, nos referiremos a essa
perspectiva como substancialismo.
Ora, a articulação indivíduo-organização não tem como ser compreendida nem
unicamente em termos reducionistas (pois isso pressuporia ser a sociedade governada
por completo pelas ações dos indivíduos em seu livre arbítrio; nossa experiência nos diz
4
O Positivismo é uma corrente filosófica surgida no século XIX a partir da crença de que a civilização ruma sempre
numa direção “positiva”, orientada pelo progresso científico e tecnológico; seu ideal é a unidade entre as ciências
naturais e as sociais, por meio da aplicação dos (já testados e comprovados) métodos daquelas a estas.
5
Denominado reducionismo metodológico, cujo referencial maior é a chamada “lâmina de Ockham” (ou princípio da
parcimônia), pelo qual não se deve fazer com mais aquilo que se possa fazer com menos: trata-se de um preceito que
valoriza a simplicidade na construção das teorias.
6
Denominado, este, reducionismo ontológico, ou analítico. Há ainda (de que não trataremos) os reducionismos
teórico (as teorias mais antigas não são superadas, mas complementadas e aperfeiçoadas pelas que surgem), científico
(a totalidade dos fenômenos pode ser reduzido a explicações científicas) e lingüístico (tudo pode ser descrito por
meio de combinações na linguagem, a partir de um número finito de conceitos fundamentais).
2
que as coisas não se passam bem assim) nem unicamente em termos substancialistas (o
que pressuporia o contrário, uma sociedade cuja evolução é dotada de sentido, ao qual
encontrar-se-iam subordinadas as ações dos indivíduos; nossa experiência também nos
diz que não é bem assim que as coisas se passam).
Sabemos, por experiência, que nossas ações têm algum poder (ainda que possamos
considerá-lo restrito) de determinar os rumos da sociedade, ao passo que a realidade
social, tal como se encontra disposta, também conta com algum poder (ainda que
possamos considerá-lo significativo) de determinar nossas ações. Dessa forma a
Sociologia, bem como a Teoria das Organizações, impõe a busca por algum meio-termo
epistemológico. Iremos, nesta tese, procurar por um tal meio-termo na assim chamada
Teoria da Complexidade.7
A tarefa de descrever um sistema complexo são na verdade duas: a tarefa de descrever
sua estrutura (por exemplo, o seqüenciamento do genoma humano) e a tarefa de
descrever a gama de comportamentos de que essa estrutura é capaz. Uma destas
dimensões não necessariamente implica a outra: por exemplo, a Teoria do Caos versa,
em grande medida, a respeito de sistemas estruturalmente simples cujo comportamento
é, precisamente, denominado caótico.8
A Teoria da Complexidade na verdade são várias. Grosso modo, é possível classificar
essas teorias de acordo com o viés por que elas enfocam estas duas dimensões de
complexidade, estrutural e comportamental.
7
No âmbito da Teoria das Organizações é muito utilizada a expressão Ciência da Complexidade, como forma de
contornar os preconceitos nos ambientes empresariais em relação à palavra “teoria” (da mesma forma que Ciência
das Organizações costuma ser empregada no lugar de Teoria das Organizações).
8
A Teoria do Caos versa sobre uma classe específica de fenômenos que são completamente descritos por equações
deterministas e não-lineares mas que, se sujeitos a ínfimas variações quanto às condições iniciais (ou seja, sob
condições reais), apresentam comportamentos imprevisíveis, ainda que circunscritos a limites. Por exemplo, ao se
colocar duas rolhas de cortiça juntas em um fluxo d’água que escoa a baixa velocidade sobre um leito regular
(fenômeno linear), a distância entre as rolhas aumenta proporcionalmente ao tempo, quantas vezes for repetido o
experimento. Se se aumenta a velocidade do fluxo d’água até que o escoamento adquira um comportamento
turbulento (fenômeno não-linear, caracterizado pelo surgimento de redemoinhos), ao se colocar as duas rolhas elas se
afastam uma da outra segundo dinâmicas próprias a cada vez que o experimento é repetido. Sob condições nãolineares, diferenças infinitesimais no posicionamento inicial das rolhas geram, com o tempo, efeitos
desproporcionais; é este o sentido da metáfora “o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um
tornado no Texas”. O comportamento do sistema não é, todavia, errático (as rolhas não saem voando, nem retornam
contra a correnteza): existe um atrator para o fenômeno (atrator estranho, ou fractal). O uso do termo “caos”,
inspirado na cosmogênese da mitologia grega (em que da desordem do Khaos advém a ordem harmoniosa do
Kosmos), uma metáfora que expressa que da aparente aleatoriedade advém a elegância estética da matemática fractal,
pode induzir ao equívoco de que se trata de fenômenos complexos no sentido amplo do tempo (complexidade tanto
comportamental como estrutural), o que não é o caso.
3
A perspectiva reducionista clássica em Ciência (que persegue a completa descrição dos
fenômenos por meio das leis fundamentais da Natureza que se supõe governá-los)
também se faz presente na Teoria da Complexidade, na sua vertente a que aqui
chamaremos “computacional” (e é a esta vertente que a expressão “teoria da
complexidade” mais comumente se refere). As pesquisas nesta área buscam chegar a
uma linguagem, expressa em algoritmos recursivos (ou seja, em linguagem
computacional), que permita a descrição, a um tempo, de fenômenos complexos
(dimensão comportamental) e dos sistemas que os geram (dimensão estrutural).9 O
objetivo último é uma resolução da complexidade, e devido a isso suas modelagens (na
verdade, simulações) têm despertado enorme interesse nos meios organizacionais.
De nossa parte, não consideramos a complexidade algo passível de resolução. É mais
realista (e mais profícuo) propor-se a dialogar com a complexidade, e auferir proveito
desse aprendizado. Nos referenciaremos aqui em duas abordagens não-reducionistas, ou
seja, que tratam por modos distintos as dimensões comportamental e estrutural da
complexidade. A articulação indivíduo-organização demanda ambas: compreender os
processos de evolução das organizações requer a primeira; compreender as dinâmicas
do seu funcionamento (de maneira a estar apto a atuar por modos adequados) requer
esta última.
A primeira teoria não-reducionista em que nos apoiaremos é a da autopoiesis de
Maturana10 e Varela,11 que dissocia de forma bastante explícita estas duas dimensões.
Para o operar dos sistemas, estes autores adotam uma abordagem assumidamente
mecanicista. Já para a compreensão do seu comportamento é adotada uma abordagem
de caráter fenomenológico. Soa estranho? À primeira vista, sem dúvida, mas trata-se de
um casamento entre mecanicismo e Fenomenologia que acaba por se mostrar bastante
consistente. O que eles negam com veemência é o reducionismo – seria não apenas
impossível, mas cientificamente equivocado, reduzir-se comportamento à estrutura. Não
9
Possivelmente, a mais ambiciosa empreitada nessa direção é a de Wolfram (Stephen Wolfram; EUA (n. Inglaterra);
1959–); ver A New Kind of Science. Champaign (Illinois): Wolfram Media, 2002.
10
11
Humberto Maturana Romesín (Chile; 1928–).
Francisco Javier Varela García (França; n. Chile; 1946-2001).
4
há “ciência única”, há aqui duas ciências, Biologia (comportamento) e Física (estrutura),
que atuam em arenas distintas, e irredutíveis uma à outra.
Mecanicismo dissociado de reducionismo? Ora, o único mecanicismo empiricamente
comprovável é aquele a que se consegue chegar – ou seja, reduzir. Um mecanicismo ao
qual não se possa ter acesso é um mecanicismo presumido, que toma assento na teoria
porque faz sentido – porque torna a teoria consistente. Com efeito, boa parte do trabalho
de Maturana e Varela é devotado a demonstrar como a totalidade dos fenômenos
biológicos (origem da vida, reprodução, adaptação ao meio, evolução, hereditariedade e,
aquele que nos interessa mais de perto, a cognição) pode ser explicada (ainda que não
possa ser comprovada empiricamente) por meio do “mecanismo autopoiético” por eles
proposto; ao mesmo tempo, eles apontam as insuficiências da teoria concorrente (a
biologia molecular, esta sim de índole reducionista, centrada no papel supostamente
causal exercido pelo DNA) para a explicação de todos esses fenômenos.
Não é outra a situação da Teoria das Organizações (bem como a da Sociologia). Se por
um lado nos é possível presumir que a sociedade seja o resultado do conjunto das ações
dos indivíduos em suas interações (o que corresponderia a um mecanicismo), é todavia
impraticável qualquer reducionismo do fenômeno social a um tal mecanicismo (o
conjunto das ações humanas), que assim permaneceria apenas presumido. Há portanto
alguma conveniência em se distinguir a dimensão dos fenômenos comportamentais da
sociedade (referidos ao âmbito social) da dimensão de seus fenômenos estruturais
(referidos ao âmbito individual). Construir uma explicação que permita articular estas
duas dimensões por um modo consistente (e, principalmente, inteligível) foi
precisamente o trabalho desenvolvido por Maturana e Varela no campo da Biologia, e é
o que nos propomos fazer nesta tese, no campo da Teoria das Organizações.
Ora, não existe procedimento empírico factível que permita desvendar a dinâmica de
encadeamentos causais envolvida – seja o caso de um tal mecanicismo ou de alguma
dinâmica de co-determinação entre os âmbitos individual e social (o que também
consideraremos); nisto consiste uma das distinções de natureza entre ciência natural e
social. Assim, o objetivo a ser alcançado passa a ser consistência ao invés de
fidedignidade (noção que, em Ciência, tem sua origem na busca por precisão para os
instrumentos de medida), e é nesse sentido que Maturana e Varela tencionam,
5
precisamente por meio da demonstração de que todos os fenômenos biológicos são
explicáveis pela teoria da autopoiesis, demonstrar também a consistência desta teoria.
De nossa parte, alinhamo-nos com a posição de Popper12 quanto a que, em ciência social
ainda mais que em ciência natural, toda validade que se possa postular para uma
pesquisa advém da amplitude de sua exposição à crítica por parte da comunidade
científica. Tal procedimento não permite uma comprovação definitiva da teoria
(objetivo que Popper considera inatingível), mas permite que esta venha a ser refutada
por argumentos melhores.
A segunda teoria a que faremos recurso é a da complexidade a partir do ruído de
Atlan,13 uma teoria a respeito do entendimento possível quanto à realidade, pelo que esta
se encontraria disposta em níveis hierárquicos sucessivamente superpostos. A cada
nível, seria possível medir-se a complexidade (estrutural) em termos da quantidade de
informação envolvida; já a complexidade comportamental em um dado nível seria
necessariamente relativa a algum outro nível (para o qual um tal comportamento
apresenta sentido), e corresponderia ao significado, daquela informação, de acordo com
a interpretação (a codificação da informação) própria a este outro nível.
Ora, atribuir significados distintos aos códigos que, a cada nível, dotam de sentido os
agregados quantitativos de informação equivale, no nosso entender (ressalve-se não ser
esta a posição de Atlan),14 a postular uma descrição fenomenológica para as dimensões
estrutural e comportamental da complexidade (ou: o que é complexidade estrutural em
um dado nível é complexidade comportamental em outro).
12
Karl Raimund Popper (Inglaterra; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1902-1994); ver “Die Logik der
Sozialwissenschaften”. In: ADORNO, Theodor W. et alii (eds.). Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie.
Neuwied (Alemanha): Hermann Luchterhand Verlag, pp. 103-123, 1969.
13
Henri Atlan (França; n. Argélia; 1931–).
14
Em termos do ramo da Filosofia a que se denomina Teoria do Conhecimento, Atlan pode ser considerado um caso
especial, pois suas proposições escapam tanto à corrente representacionista predominante (o conhecimento como uma
representação do real, formatada pela razão; devido à subjetividade, haveria representações mais ou menos fiéis à
realidade) quanto a seu contraposto, a fenomenologia (o conhecimento como atribuição de significado ao real pela
razão – somente se pode chegar a uma “realidade” individualizada, correspondente aos significados gerados por cada
um). Ambas pressupõem a razão como entidade pré-dada, enquanto Atlan a vê como fenômeno emergente
compreensível em bases biológicas; para lastro de sua própria teoria da consciência e da intencionalidade (ver
ATLAN, 1998) Atlan se referencia em Spinoza (Benedictus (Baruch) de Spinoza; Holanda; 1632-1677). O que nos
importa aqui é que Atlan também tem por individualizado o processo de atribuição de significados, e é somente nesse
sentido que, para os propósitos práticos a que aqui nos propomos, a sua epistemologia pode ser vista como
compatível com a Fenomenologia.
6
Não é por outra razão que escolhemos a teoria de Atlan como pilar fundamental para a
Teoria das Organizações que aqui propomos (e a partir de que conceberemos uma
dinâmica gerativa do fenômeno organizacional). Não que a teoria da autopoiesis não
sirva também a esse propósito, tanto que diversos autores (como Luhmann)15 a
transpuseram ao domínio sociológico. Em verdade, ela provê um entendimento muito
profundo (magistral, se o leitor nos permite) para a dimensão comportamental das
organizações; apenas, devido ao mecanicismo por que a dimensão estrutural é
compreendida não admitir redução (e ser portanto, em termos práticos, inatingível), seu
valor para as esferas da Administração (uma ciência aplicada por excelência) é
discutível (o que não é de forma alguma o caso da Sociologia, para que a autopoiesis é
deveras preciosa).
Podemos agora resumir (Quadro 1) nossa breve “tipologia” (entre aspas devido a este
não ser um levantamento exaustivo, para o que seria necessário a investigação de muitos
outros autores e correntes):
Teoria
relação entre complexidades
estrutural e comportamental
vertente
“computacional”
reducionista
Maturana e Varela
não-reducionista
Atlan
não-reducionista
dimensão
estrutural
dimensão
comportamental
variados enfoques funcionalistas
enfoque
mecanicista
enfoque
fenomenológico
enfoque
fenomenológico
enfoque
fenomenológico
Quadro 1: tipologia para as correntes em Teoria da Complexidade consideradas neste trabalho.
O que diferencia um enfoque fenomenológico de um funcionalista é a natureza
interpretativista do primeiro, em contraste com o caráter de “verdade última” de que
este é portador; tratam-se, pois, de visões de mundo distintas. O Funcionalismo tem esse
nome devido à conformação social, tal como se apresenta, ser compreendida como o
resultado fatal da evolução histórica, com o que cabe meramente tratar todo e cada
elemento constitutivo da sociedade como portador de sua função própria, sua
contribuição específica à funcionalidade geral do todo social. Por conseguinte, uma
15
Cf. LUHMANN, 1995 (1984); Niklas Luhmann (Alemanha; 1927-1998).
7
ciência social de viés funcionalista encontra-se voltada à busca por eficiência e
otimização.
Já por Fenomenologia (em que fenômeno é a realidade tal como percebida pela
experiência subjetiva) designa-se um modo em ciência social por que se admite toda
uma múltipla gama de possibilidades para a conformação da sociedade, com o que
ganham relevo a faculdade da percepção (individualizada) e a atividade de
interpretação.
De volta então à articulação indivíduo-organização: frente a uma realidade a cada dia
mais
complexa
(complexidades
de
mercado,
econômicas,
sociais,
políticas,
tecnológicas, ecológicas e outras), uma mera busca por otimização e por maior
eficiência para as funcionalidades da organização, tais como existentes, é evidentemente
insuficiente.
Desculpando-nos pela obviedade: problemas novos, no instante em que surgem, passam
a demandar soluções... que ainda não existem. Como descobri-las? A sabedoria popular
sempre soube indicar o caminho: “cada cabeça, sua sentença” (cada indivíduo
interpreta a realidade de forma individualizada); e “muitas cabeças pensam melhor que
uma” (a sinergia das diversas interpretações faz aflorar a melhor solução). Percepção.
Interpretação. Fenomenologia.
Reservamos neste trabalho, à teoria da autopoiesis de Maturana e Varela, um papel
específico (e em nada menos relevante que aquele de que dotamos a teoria de Atlan): o
provimento de bases biológicas para a Fenomenologia (mais precisamente, quanto à
cognição humana), para que esta cesse de ser desacreditada devido a seu caráter
meramente especulativo (inerente à Filosofia).
A autopoiesis será o objeto do capítulo 3, com a teoria de Atlan logo em seqüência (cap.
4). Antes (cap. 2), investigaremos as bases comuns de que brotam ambas estas teorias
(bem como aquela a que chamamos vertente “computacional” em Teoria da
Complexidade). Em seguida (cap. 5), sintetizaremos aquele que é o eixo de nossa
proposição de tese, a dinâmica gerativa do fenômeno organizacional, que nos propomos
a demonstrar (cap. 6) por meio de um estudo de caso. Discorreremos, por fim (cap. 7),
8
sobre a necessidade da consecução de uma nova Teoria das Organizações, e sobre as
bases a partir de que esta deva se assentar.
Iniciaremos agora (cap. 1) pelo exame do processo de esgotamento do corpus teórico de
caráter funcionalista historicamente predominante em Teoria das Organizações – a
racionalização.
9
1. Racionalização: O Funcionalismo em Teoria das Organizações
Os conhecimentos componentes do campo genericamente denominado Administração
provêm tanto da experiência prática quanto da proposição teórica. Exemplos pelo lado
prático: a linha de montagem que se tornou padrão para a indústria de produção de bens
de consumo surgiu pela sagacidade de Ford 16 como disposição prática, não como
proposição teórica; meio século depois, foi a realidade da penetração nos mercados
ocidentais dos produtos japoneses que chamou atenção para as formas de gestão
praticadas naquele país. Exemplos pelo lado teórico: a repercussão de textos como o
The Principles of Scientific Management 17 de Taylor18 ou o Organizations19 de March20
e Simon21 implicou significativas mudanças nos perfis de gestão então praticados.
Teoria e prática não estão jamais dissociadas, mas antes se nutrem uma da outra: as
teorias de Taylor são oriundas de seus anos de prática na Bethlehem Steel;22 já o
advento das práticas japonesas de gestão teve início nas proposições teóricas de
Deming23 e Juran.24
Nos últimos cem anos (mais precisamente a partir de Taylor) a Administração, tanto em
teoria como prática, assumiu o caráter de racionalização.25 Chamamos racionalização
ao processo de estabelecimento e consolidação de um modo particular de codeterminação entre razão e ação, que é tido pelos homens de um dado tempo histórico
como o mais, ou o único, natural, e que dispõe os limites e as possibilidades para os
16
Henry Ford (EUA; 1863-1947). Ver My Life and Work. Garden City (Nova Iorque): Doubleday, Page and
Company, 1922.
17
18
19
20
21
New York: Harper and Brothers, 1911.
Frederick Winslow Taylor (EUA; 1856-1915).
New York: John Wiley and Sons, 1958.
James Gardiner March (EUA; 1928–).
Herbert Alexander Simon (EUA; 1916-2001).
22
Referências históricas: “A Piece Rate System”. Transactions of the American Society of Mechanical Engineers,
vol. 16, pp. 856-893, 1895; “Shop Management”. Transactions of the ASME, vol. 24, pp. 1337-1480, 1903; e “On the
Art of Cutting Metals”. Transactions of the ASME, vol. 28, pp. 31-350, 1907.
23
William Edwards Deming (EUA; 1900-1993); ver Dr. W. Edwards Deming’s Lectures on Statistical Control of
Quality. Tokyo: Nippon Kagaku Gijutsu Remmei (Union of Japanese Scientists and Engineers – JUSE), 1950. 2nd.
ed. Elementary Principles of the Statistical Control of Quality, 1952.
24
Joseph Moses Juran (EUA; n. Romênia; 1904–); ver Juran’s Quality Control Handbook. New York: McGraw-Hill,
1951. Publicação contratada em 1945.
25
Esta é a principal tese de VALLE (2005).
10
seus modos de ver o mundo e agir nele. Weber26 descreveu o processo de racionalização
no Ocidente, ao longo da Era Moderna, como uma progressiva predominância de um
agir de caráter teleológico (que significa orientado a objetivos, ao sucesso; do grego
telos: fim, resultado).27 Ao tomar por referência última os seus próprios interesses, o
homem se posta diante de uma realidade objetivada sob forma de um encadeamento
entre fins e meios, estes subordinados àqueles.
Habermas,28 em um desenvolvimento das idéias de Weber, descreveu o agir teleológico
como comportando duas componentes, uma instrumental e outra estratégica.29 O agir
instrumental (ou técnico), referido ao universo material, busca controle e intervenção
eficientes sobre a realidade; trata-se, portanto, da eficiência no emprego dos meios
visando os fins (disso acaba conferida uma primazia aos conhecimentos de natureza
técnico-científica). Já o agir estratégico, referido ao universo das relações socais,
corresponde à decisão entre possíveis alternativas de ação por ponderações que levam
em conta as chances de se influenciar as ações de terceiros; trata-se, portanto, da
eficiência na seleção dos meios (pessoas incluídas) visando os fins.
A racionalização em Administração deu origem assim a um padrão particular de
ordenamento institucional que, em detrimento das demais possibilidades, privilegia os
conhecimentos de cunho eminentemente técnico, e as formas estratégicas de interação
social.
As sucessivas ondas de racionalização nas organizações surgiram como resposta aos
problemas, impasses e dilemas (isto é, à complexidade, no sentido coloquial do termo)
que as afetaram a cada momento histórico; não obstante, a resolução das complexidades
próprias a um dado tempo necessariamente acabou por concorrer para a gestação de
novas complexidades. Examinaremos agora, referenciados no minucioso levantamento
26
Karl Emil Maximilian (Max) Weber (Alemanha (n. Prússia); 1864-1920).
27
Cf. VALLE, 1990. Ver Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriß der verstehenden Soziologie. Tübingen (Alemanha):
J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1922. 2 vols.
28
Jürgen Habermas (Alemanha; 1929–).
29
Cf. VALLE, 1990. Ver Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp Verlag,
1981. 2 vols.
11
realizado por Valle,30 as trajetórias casadas da complexidade e da racionalização em
Administração, bem como os limites e possibilidades para esta última nos tempos
atuais.
Teorias da conciliação
As idéias de Taylor foram concebidas em meio a um contexto de crescentes conflitos
entre proprietários e trabalhadores. Aqueles compreendiam a posição que ocupavam
como decorrência natural da superioridade, como indivíduos, de que se supunham
dotados, o que lhes justificava o autoritarismo para com os trabalhadores; já estes
acorriam de forma maciça a uma sindicalização aguerrida. Inspirado nos avanços
científicos da segunda revolução industrial que haviam tornado viáveis máquinas a
vapor projetadas para um rendimento máximo, Taylor imaginou ser possível projetar-se
também as atividades humanas para rendimento máximo com base nas leis científicas
da fisiologia: haveria one best way de se executar o trabalho. Supôs ele que os aumentos
de produtividade que inevitavelmente se seguiriam trariam mais lucros para os
proprietários e melhores salários para os trabalhadores, permitindo uma superação, pela
razão, da violência então praticada por ambas as partes (para Taylor, recusar a ciência
seria irracional; numa leitura weberiana, recusar tais ganhos não seria agir
estrategicamente). Todavia, a supressão do controle pelos trabalhadores das fábricas
(blue collars) da condução das suas atividades viria a torná-los substituíveis como se
peças de máquina fossem – e, em grande parte das vezes, pior pagos.
A racionalização taylorista do trabalho, que o decompunha em unidades as menores
possíveis (as tarefas) cada vez mais velozmente realizáveis, implicou um novo
problema: o da velocidade no encadeamento das tarefas (o processo). Para resolvê-lo,
Ford concebeu a linha de montagem, e para aumentar o desempenho desta ele estendeu
a especialização à gerência, criando o modelo de empresa dividida em departamentos
funcionais que Sloan31 aperfeiçoaria na General Motors,32 numa racionalização também
do trabalho dos trabalhadores de escritório (white collars).
30
31
VALLE, 2005. Rogério de Aragão Bastos do Valle (Brasil; 1955–).
Alfred Pritchard Sloan Jr. (EUA; 1875-1966).
12
O taylorismo-fordismo veio agravar as já precárias condições de trabalho nas fábricas, o
que terminou por pôr os empresários na defensiva, ao atingir dimensões de questão
social (tema, por exemplo, de Tempos Modernos, de Chaplin33). Entrementes, eram
conduzidos estudos no campo da Ergonomia que dariam origem (a partir dos trabalhos
de Mayo)34 à Escola das Relações Humanas, cujos pesquisadores compreenderam que o
fator determinante para o comportamento no trabalho é o sentimento do trabalhador em
relação a seus pares, ou seja, o contexto psicossocial. Tomando por base a Psicologia
então nascente, a ênfase dos propositores da Escola das Relações Humanas saltou da
Ergonomia aos conceitos de satisfação no trabalho, também de função saneadora, e de
motivação (desejo de trabalho), numa retomada dos ideais de Taylor de uma conciliação
duradoura entre os interesses de patrões e operários. Novamente, subestimava-se a
capacidade humana de concepção de novas direções estratégicas quando sob
circunstâncias novas.
Também novamente, a modelagem de uma complexidade (agora, a subjetividade
humana) terminou na prática conduzida como racionalização, com predomínio (à
revelia de alguns dentre os teóricos, como Argyris35) da atitude funcionalista de estender
o procedimento científico clássico (a formulação de hipóteses verificáveis pela
experimentação empírica de variáveis isoladas) a arranjos sociais (em que por natureza
há afetividade, criatividade, reflexão e amadurecimento, e em que diferentes pessoas
reagem de modo particularizado a uma mesma situação), no intento de identificar one
best way de se motivar as pessoas – uma “objetivação da subjetividade”. Como
resultado, generalizações a respeito do comportamento humano, em que são
desconsideradas as diferenças individuais de personalidade, e em que a motivação é
vista como um processo “de fora para dentro”.
32
Ver My Years with General Motors. Garden City (Nova Iorque): Doubleday, 1963. Ver também DRUCKER, Peter
F. Concept of the Corporation. New York: John Day, 1946.
33
Charles Spencer Chaplin (EUA; n. Inglaterra; 1889-1977).
34
George Elton Mayo (EUA; n. Austrália; 1880-1949); ver The Human Problems of an Industrial Civilization.
Boston (Massachusetts): Harvard Business School, 1933; ver também ROETHLISBERGER, Fritz J., DICKSON,
William J. Management and the Worker. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1939.
35
Christopher (Chris) Argyris (EUA; 1923–); ver Personality and Organization: The Conflict between System and
the Individual. New York: Harper and Brothers, 1957.
13
Simon foi o pioneiro na racionalização de uma outra complexidade: o processo de
tomada de decisões, cuja aparente racionalidade foi por ele posta a nu. Uma vez que as
pessoas tomam decisões sem dispor de todas as informações pertinentes e sem ter como
antever as conseqüências, elas somente deveriam almejar para suas decisões resultados
satisfatórios, jamais ótimos – ainda que não se dêem conta disso. Elas na verdade
decidem com base em uma espécie de “modelo simplificado” da realidade em que se
encontram imersas – ou seja, as decisões são condicionadas por uma leitura
empobrecida das situações: uma racionalidade limitada (bounded).36
Com Simon, adveio uma melhor compreensão do agir estratégico, afinal passível de
alguma coordenação (uma vez que, ao agir, as pessoas levam em conta as expectativas
que possuem quanto às ações e reações dos outros). E buscou-se remediar as limitações
percebidas nos processos decisórios por uma ênfase ainda maior em rotinas (para que
haja menos, e mais simples, decisões) e pela modelagem desses processos (adveio a
pesquisa operacional) com farto uso das tecnologias de informação (Simon inaugurou o
campo da inteligência artificial);37 os resultados, todavia, situaram-se aquém das
expectativas.
Simon foi também um dos mentores da corrente do equilíbrio organizacional,38 uma
explicitação do agir estratégico: por um lado os trabalhadores contribuem não apenas
com trabalho, mas com dedicação e lealdade, e em contrapartida a organização lhes
confere não apenas salários e benefícios, mas a satisfação de algumas de suas
necessidades sociais e psicológicas – um contrato implícito. O equilíbrio provém de
uma correlação entre incentivos e contribuições: as pessoas contribuem para a
36
Ver Models of Bounded Rationality Cambridge (Massachusetts): MIT Press, vols. 1-2, 1982, vol. 3, 1997. Como
marcos iniciais, ver “A Behavioral Model of Rational Choice”. Quarterly Journal of Economics, vol. 69, n. 1, pp. 99118, 1955; “Rational Choice and the Structure of the Environment”. Psychological Review, vol. 63, n. 2, pp. 129-138,
1956; SIMON, CYERT, Richard M., TROW, Donald B. “Observation of a Business Decision”. Journal of Business,
vol. 29, n. 4, pp. 237-248, 1956; Models of Man. New York: Wiley, 1957; e MARCH, SIMON, op. cit. (nota 19, p.
10), 1958. Para abordagens contemporâneas das limitações e insuficiências da racionalidade nos processos decisórios,
ver KAHNEMAN, Daniel, TVERSKY, Amos. (eds.). Choices, Values and Frames. Cambridge (Reino Unido):
Cambridge University Press, 2000.
37
Ver NEWELL, Alan, SIMON. “GPS, a Program that Simulates Human Thought”. In: BILLING, Heinz (ed.).
Lernende Automaten. München (Alemanha): R. Oldenbourg, pp. 109-124, 1961. Reimpresso em: LUGER, George F.
(ed.). Computation and Intelligence: Collected Readings. Menlo Park (Califórnia): AAAI Press, pp. 415-428, 1995.
38
Ver Administrative Behavior. New York: MacMillan, 1947; SIMON, op. cit (nota 36, p. 14), 1957; MARCH,
SIMON, op. cit. (nota 19, p. 10), 1958; CYERT, Richard M., MARCH. A Behavioral Theory of the Firm. Englewood
Cliffs (Nova Jérsei): Prentice-Hall, 1963; e VROOM, Victor H. Work and Motivation. New York: John Wiley and
Sons, 1964. Como marco inicial, ver BARNARD, Chester I. The Functions of the Executive. Cambridge
(Massachusetts): Harvard University Press, 1938.
14
organização na expectativa de um retorno maior que as energias despendidas; já no
interesse da organização, é preciso identificar os motivos que levam as pessoas a
cooperar, para que suas contribuições sejam superiores ao custo de mantê-las
empregadas. Tal modelo é viável apenas na medida em que os incentivos e as
contribuições possuem diferentes significados de valor para os dirigentes e para os
trabalhadores (pois boa parte dos incentivos não é de natureza econômica); são porém
aqueles, não estes, que dispõem de margem de manobra para definir tal correlação em
seus próprios termos.39
Ainda outra contribuição oriunda da Escola das Relações Humanas foi o planejamento
estratégico,40 com o que a racionalização atingiu as atividades dos altos executivos.
Entrementes, os estudos no campo da motivação relativos ao comportamento dos grupos
conduziram à compreensão daquele que se tornaria um dos focos centrais do
planejamento estratégico: a cultura organizacional,41 um amálgama das estruturas
informais que moldam o comportamento humano nas organizações, compreendendo as
crenças, os valores, e as regras informais de conduta que mantêm os relacionamentos
interpessoais confinados a limites socialmente aceitáveis.
O desenvolvimento organizacional,42 uma das primeiras vertentes em planejamento
estratégico, teve por pressuposto a inexistência de um modelo ideal de organização
aplicável a todo e qualquer ambiente, com o que deveria ser buscado, para cada
organização, um perfil de adaptação indicado a suas circunstâncias específicas. Esta
39
Para a crítica do equilíbrio organizacional, ver PERROW, Charles. Complex Organizations: A Critical Essay. 3rd.
ed. New York: McGraw-Hill, 1986. 1st. ed. Glenview (Illinois): Scott, Foresman, 1972; e STORING, Herbert J. “The
Science of Administration: Herbert A. Simon”. In: STORING (ed.). Essays on the Scientific Study of Politics. New
York: Holt, Rinehart and Winston, pp. 63-105, 1962.
40
Como marcos iniciais, ver SELZNICK, Philip. Leadership in Administration: A Sociological Interpretation. New
York: Harper and Row, 1957; e CHANDLER, Alfred D. Strategy and Structure: Chapters in the History of the
American Industrial Enterprise. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1962. Para o quadro de referência ao
advento do planejamento estratégico, ver KNIGHT, Frank H. Risk, Uncertainty, and Profit. Boston (Massachusetts):
Houghton Mifflin, 1921; CHAMBERLIN, Edward H. The Theory of Monopolistic Competition: A Re-Orientation of
the Theory of Value. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1933; ALCHIAN, Armen A.
“Uncertainty, Evolution, and Economic Theory”. Journal of Political Economy, vol. 58, n. 3, pp. 211-221, 1950;
HEFLEBOWER, Richard B. “Toward a Theory of Industrial Markets and Prices”. American Economic Review, vol.
44. n. 2, pp. 121-139, 1954; BAIN, Joe S. Barriers to New Competition. Cambridge (Massachusetts): Harvard
University Press, 1956; e PENROSE, Edith T. The Theory of the Growth of the Firm. Oxford (Reino Unido): Basil
Blackwell, 1959.
41
Como marco inicial, ver BECKHARD, Richard. Organization Development: Strategies and Models. Reading
(Massachusetts): Addison-Wesley, 1969.
42
Como marco inicial, ver BRADFORD, Leland P., GIBB, Jack R., BENNE, Kenneth D. (eds.). T-Group Theory
and Laboratory Method: Innovation in Re-education. New York: John Wiley & Sons, 1964.
15
adaptação seria obtida pela mudança planejada das características próprias à
organização, tanto formais (a organização do trabalho) como informais (a cultura
organizacional).
A teoria da contingência43 surgiria posteriormente como uma variante do
desenvolvimento organizacional em que se reconhece que uma adaptação bem-sucedida
deve estar orientada mais às características do ambiente que às da organização, ou seja,
que são aquelas que determinam estas. A nova vertente herda assim do desenvolvimento
organizacional o ideal de que as organizações estão aptas a dirigir sua evolução e
moldar seu futuro – desde que sejam capazes de monitorar as tendências de evolução do
ambiente. Pode-se assim considerar a teoria da contingência como uma extensão, para
um nível macro, das considerações de Simon quanto à racionalidade limitada a um nível
micro, o do indivíduo: a compreensão quanto às incertezas do ambiente (de que decorre
o planejamento para a organização como um todo) não tem como ser perfeita ou
completa mas, por meio de racionalização, deve ser a melhor possível.
Cabe registrar que, já nos anos 80, adviria a corrente da ecologia populacional,44 em que
se pressupõe que a inércia inerente a qualquer instituição restringe sua capacidade de
adaptação às mudanças ambientais. Adaptação e sobrevivência seriam na verdade
atributos de “populações” de organizações (conjuntos com características comuns) em
competição por recursos finitos e desigualmente distribuídos tanto no espaço como no
tempo; assim, considera-se que somente uma parcela das organizações existentes a um
dado tempo permanecerá compatível com as condições ambientais futuras, ou seja, que
população organizacional seja mantida em um estado ótimo por mecanismos de seleção
natural.
43
Como marco inicial, ver DILL, William R. “Environment as an Influence on Managerial Autonomy”.
Administrative Science Quarterly, vol. 2, n. 4, pp. 409-443, 1958.
44
Como marco inicial, ver HANNAN, Michael T., FREEMAN, John H. “The Population Ecology of Organizations”.
American Journal of Sociology, vol. 82, n. 5, pp. 929-964, 1977.
16
A vez do Japão
A partir das contribuições originais de Taylor, e ao longo de mais de meio século, a
organização taylorista-fordista, com o aporte das contribuições da Escola das Relações
Humanas, pôde ser bem-sucedida no trato de suas complexidades internas, num
contexto de relativa estabilidade externa: mercados em expansão e ávidos por produtos
de massa, inovação tecnológica incremental, e ambiente regulatório dos negócios
estável (o welfare state). A integridade dos processos de produção, espalhados pelos
distintos departamentos funcionais, era assegurada por uma realidade física: a linha de
montagem. Ao longo dela, cada seção podia se ater à busca de suas eficiências próprias,
a otimização de cada função tornando o processo um somatório dos ótimos locais.
Essa própria dinâmica virtuosa do capitalismo nos países desenvolvidos terminou por se
esgotar, ao conduzir à saturação dos mercados, à demanda por produtos diversificados e
de mais qualidade, à explosão na inovação tecnológica, e a uma menor regulação pelo
Estado. De uma forma mais acentuada na indústria de bens de consumo, a busca por
eficiência com ênfase nas funções cedeu lugar a uma busca por flexibilidade com ênfase
nos processos, à medida que se percebia que, sob circunstâncias de mudança, a soma
dos ótimos locais não necessariamente corresponde ao ótimo global. Quanto à Escola
das Relações Humanas, sobretudo nas grandes corporações (sua influência nas pequenas
empresas foi mínima, devido aos elevados custos indiretos e à própria concepção de
organização adotada),45 também as buscas pela felicidade dos trabalhadores esbarraram
em seus limites – quando os incentivos oferecidos se haviam convertido em exigências
contratuais, quando adveio a necessidade de reduzir a centralização e os custos
indiretos, e quando por fim as empresas começaram a demitir e a comprimir salários.46
Na indústria de bens de consumo, a racionalização prosseguiu pela adoção dos métodos
de base estatística, em seu conjunto denominados gestão pela qualidade total (GQT),47
que tanto distinguiram as indústrias japonesas nas novas circunstâncias de mercado.
45
46
Cf. VALLE, 2005: 43.
Cf. ibid., p. 44.
47
Como marcos iniciais, ver SHEWHART, Walter A. “Some Applications of Statistical Methods to the Analysis of
Physical and Engineering Data”. Bell System Technical Journal, vol. 3, pp. 43-87, 1924; e DODGE, Harold F.,
ROMING, Harry G. “A Method for Obtaining and Analysing Sensitivity Data”. Bell System Technical Journal, vol.
8, pp. 613–631, 1929.
17
Como identidades para com o taylorismo: a qualidade baseada dos métodos ao invés da
inspeção, o planejamento prévio do trabalho a cargo de especialistas, e o ideal de
cooperação entre trabalhadores e direção. Como diferenciais em relação a ele (alguns já
advogados desde a Escola das Relações Humanas): o aperfeiçoamento contínuo (ao
invés da one best way) a partir de sugestões dos trabalhadores, o trabalho em equipe,
algum grau de delegação, o alargamento do escopo de tarefas (e conseqüentemente da
qualificação), e a referência ao método ao invés da Ciência.48
A diferença principal consiste na necessidade de uma comunicação horizontal ao longo
dos processos (o taylorismo-fordismo somente requeria uma comunicação vertical,
dados sobem e ordens descem), se se deseja dotá-los de flexibilidade em lugar de rotina.
Isso implica que os atores ao longo do processo (dentro da empresa, os trabalhadores e,
fora dela, os fornecedores e clientes) deixam de ser substituíveis, posto que sua
integração passa a fator primordial. Dito de outra forma, ao longo do processo torna-se
vital não apenas o fluxo de materiais e energia a serem transformados, mas também o de
informações, despontando a logística como a gestão combinada desses fluxos.
No interior das empresas, a logística desenvolveu-se em duas direções. Em uma
correção de rumos no fordismo (agora ajustado para um reequilíbrio entre função e
processo), foram desenvolvidas sofisticadas modelagens para previsão da demanda de
modo a propiciar um planejamento de fluxos descontínuos – ou seja, um controle dos
estoques. Este caminho resultou no MRP (inicialmente material requirement planning,
depois manufacturing resources planning), que viria a se transmutar no atual ERP
(enterprise resource planning). A alternativa foi importada do Japão juntamente com a
GQT: o JIT (just in time), o desenvolvimento da capacidade de resposta imediata às
oscilações da demanda sem se depender de quaisquer previsões, com os ritmos e os
volumes de produção sendo ditados pelos pedidos dos clientes. Trata-se aqui de uma
gestão de fluxos contínuos, e de um ideal de eliminação dos estoques. Ao contrário do
que indica a literatura mais superficial, JIT e MRP-ERP não são necessariamente
concorrentes, pois sob circunstâncias específicas um ou outro é mais indicado.49
48
49
Cf. VALLE, 2005: 52-53.
Cf. ibid., p. 123.
18
No que diz respeito ao Japão, é correto tomar a GQT por uma escola de gestão, para
além de um mero conjunto de métodos para maiores qualidade e flexibilidade na
produção; isso não se aplica, porém, ao Ocidente. No Japão, uma cultura ancestral que
preconiza a precedência do interesse coletivo sobre o individual (em termos
sociológicos, um desprendimento quanto ao agir estratégico, ou ainda um agir orientado
a valores, que são atributos necessariamente sociais) torna natural a cooperação nos
ambientes de trabalho enquanto que, no Ocidente, esta necessita ser induzida até que
venha a ser considerada uma vantagem mútua. A oportunidade para um resgate dos
conceitos sobre equipes da Escola das Relações Humanas que de algum modo
transcendiam o agir estratégico (e que foram aprofundados pela chamada escola sóciotécnica,50 influente apenas na Escandinávia) foi largamente desperdiçada; ao contrário,
foram os japoneses que aperfeiçoaram seus modos de gestão a partir dessas idéias.
Ainda outro aspecto: no Ocidente, a adoção da GQT pouco influenciou as formas de
direção (algo fundamental no Japão); testemunho disso é a quase ausência de
recomendações gerenciais nas normas ISO-9000.51
A explicitação dos contratos
Assimilado o que era palatável dos modelos japoneses, as sucessivas complexidades que
se seguiram foram, grosso modo, racionalizadas por variações sobre o receituário básico
estabelecido com Simon, naquela que consistiria a essência de um american way of
management: em tudo o que for possível, rotinas, com cada vez mais recurso às
50
Em que a organização é compreendida como composta por dois subsistemas em permanente interação, um técnico
(formal, composto pela tecnologia, pelas instalações físicas e pela especificação das tarefas) e outro social (informal,
composto pelas pessoas, suas relações sociais e valores, suas aspirações e expectativas); é proposto que, em adição à
tradicional função administrativa técnica (voltada a coordenar a execução das tarefas), deva haver uma função
administrativa social (voltada à facilitação dos relacionamentos entre as pessoas). Como marcos iniciais, ver TRIST,
Eric L., BAMFORTH, Ken W. “Some Social and Psychological Consequences of the Longwall Method of Coalgetting”. Human Relations, vol. 4, n. 1, pp. 3-38, 1951; RICE, Albert K. Productivity and Social Organisation: The
Ahmedebad Experiment. London: Tavistock Publications, 1951; e EMERY, Fred E., TRIST. “Socio-technical
Systems”. In: CHURCHMAN, Charles W., VERHULST, Michel (eds.). Management Sciences: Models and
Techniques. New York: Pergamon, pp. 83-97, 1960. Para um estudo compreensivo, ver RICE. The Enterprise and its
Environment: A System Theory of Management Organization. London: Tavistock Publications, 1963; KATZ, Daniel,
KAHN, Robert L. The Social Psychology of Organizations. New York: John Wiley and Sons, 1966; EMERY (ed.).
Systems Thinking: Selected Readings. Harmondsworth (Reino Unido): Penguin, 1969. 2 vols.; EMERY, TRIST.
Towards a Social Ecology: Contextual Appreciation of the Future in the Present. London: Plenum, 1972; e
PASMORE, William A., SHERWOOD, John J. (eds.). Sociotechnical Systems: A Sourcebook. La Jolla (Califórnia):
University Associates, 1978. Para uma antologia dos textos da Sócio-técnica, ver TRIST, E. L., MURRAY, Hugh,
TRIST, Beulah (eds.). The Social Engagement of Social Science: A Tavistock Anthology. Philadelphia (Pensilvânia):
University of Pennsylvania Press, vol. 2 (The Socio-technical Perspective), 1993.
51
Cf. VALLE, 2005: 50.
19
tecnologias de informação (o que pode ser chamado computer-aided taylorism, de que o
ERP é o estado da arte, uma racionalização da totalidade das atividades
administrativas);52 para tudo o mais, contratos.
No mundo anglo-saxão, os contratos são a forma tradicional de conciliação do agir
estratégico com o interesse mútuo: as interações entre os agentes econômicos têm por
pressuposto um cumprimento confiável dos contratos particulares firmados (negócios) e
dos contratos gerais vigentes (leis). Desde que confinado aos limites previstos (é esse o
calcanhar de Aquiles) nos contratos, observáveis de acordo com os requisitos de
transparência neles estipulados, o agir estratégico é a forma natural de se ser no mundo.
Nos anos 80, com Williamson,53 é resgatada uma teoria concebida nos anos 30 por
Coase54 como explicação da função das organizações no mercado, a teoria dos custos de
transação,55 agora como uma racionalização para a esfera cada vez mais complexa dos
contratos, ou seja, da regulação possível para o agir estratégico. Uma vez que a tomada
de decisões se dá a partir de uma compreensão restrita da realidade e de estimativas
imprecisas quanto aos desdobramentos futuros, as transações de negócio envolvem
necessariamente assimetrias de informação – diferenças entre os conjuntos de
informações que cada parte detém. A função primordial do contrato é então a atenuação
dos efeitos danosos dessas assimetrias, restringindo o espaço para que estas se tornem
alvo de manipulação oportunista (omissões, comunicações distorcidas etc.),
notadamente quando ainda não há juízo formado quanto à sinceridade da outra parte. A
ocorrência de oportunismo não é necessariamente prévia à formalização das transações,
podendo advir de situações imprevisíveis (por exemplo, um técnico que diante de um
52
53
Cf. ibid., p. 37.
Oliver Eaton Williamson (EUA; 1932–).
54
Ronald Harry Coase (EUA; n. Inglaterra; 1910–); ver “The Nature of the Firm”. Economica, vol. 4, n. 16, pp. 386405, 1937.
55
Esta retomada da teoria dos custos de transação tem por marco inicial “Hierarchical Control and Optimum Firm
Size”. Journal of Political Economy, vol. 75, n. 2, pp. 123-138, 1967; seguem-se “The Vertical Integration of
Production: Market Failure Considerations”. American Economic Review, vol. 61, n. 2, pp. 112-123, 1971;
“Managerial Discretion, Organization Form, and the Multidivision Hypothesis”. In: MARRIS, Robin, WOOD,
Adrian (eds.). The Corporate Economy: Growth, Competition, and Innovative Potential. Cambridge (Massachusetts):
Harvard University Press, pp. 343-386, 1971; e “Markets and Hierarchies: Some Elementary Considerations”.
American Economic Review, vol. 63, n. 2, pp. 316-325, 1973. Williamson dota de sistematização esta sua
reconcepção da teoria em Markets and Hierarchies: Analysis and Antitrust implications – A Study in the Economics
of Internal Organization. New York: Free Press, 1975; e lhe confere uma forma acabada em The Economic
Institutions of Capitalism: Firms, Markets, Relational Contracting. New York: Free Press, 1985.
20
problema inesperado recorre a uma solução cuja inadequação não tem como ser
percebida de imediato pelo cliente).56 Como o limiar a partir do qual o agir estratégico
se torna má fé é nebuloso (literalmente, oportunismo significa aproveitamento de
oportunidades), o contrato almeja a demarcação dessas fronteiras.
O fordismo preconizava a máxima integração vertical possível (Ford, nos anos 30,
chegou a adquirir minas e usinas siderúrgicas para o provimento de aço), numa época
em que a imobilização de capital sob forma de ativos implicava poucos riscos e,
sobretudo, custos suportáveis. Hoje, frente às oportunidades de remuneração do capital
em liquidez, mesmo a manutenção de estoques é um custo a ser evitado. A teoria dos
custos de transação apregoa que o grau ótimo de integração vertical para as cadeias de
suprimentos é determinado pelos menores custos de transação: entra em cena a
terceirização, ou a substituição de contratos de trabalho (internos) por contratos de
negócio (externos), com o repasse a terceiros de parte do processo de produção
juntamente com os ônus de especificidade57 dos ativos. Na direção oposta, busca-se
pelas fusões e aquisições reduzir os riscos de se transacionar ativos de elevada
especificidade por meio de contratos – o que muitas vezes termina por acarretar novas
complexidades, como choques entre as culturas das companhias reunidas.
A teoria dos custos de transação postula ainda que o grau ótimo de concentração nos
mercados (que, conforme o caso, pode consistir em monopólios ou oligopólios) é
também determinado pelos menores custos de transação, o que por sua vez pressiona
pela menor regulação pública dos negócios privados (relações de trabalho inclusive).
Uma tal redução da regulação de mercado a meros mecanismos de compensação das
assimetrias de informação sob o agir estratégico desconsidera as especificidades
culturais (dentre elas, os espaços do agir orientado a valores) dos diferentes países. Esta
teoria assume como universais as “leis” de mercado, o que, em tempos de uma
globalização que reprime diferenças e impõe padrões, soa natural e inevitável.
56
Cf. VALLE, 2005: 62.
57
O grau de especificidade de um dado ativo é proporcional ao seu grau de dependência de produtores, ou de
processos de produção, específicos: por exemplo, são ativos altamente específicos os equipamentos feitos sob
encomenda por um ou poucos fornecedores, os trabalhadores cujo desempenho é derivado da experiência (leaning by
doing), os produtos ou processos produtivos projetados para atendimento a um ou poucos clientes etc.
21
Para além do marco anglo-saxão, entretanto, estilos próprios de regulação de países com
cultura cooperativa (como na Europa central e Escandinávia) ou mesmo corporativa
(Japão, Coréia) entre empresas mostram-se mais benéficos que a livre competição, em
setores outros que não a produção de bens de consumo, e que requeiram vínculos mais
estáveis entre fornecedores e clientes bem como integração com a infra-estrutura de
P&D nas universidades.58 Tome-se ainda uma vez o caso do Japão, em que, para a
superação da crise de crescimento praticamente nulo e bancos à beira da insolvência, foi
insistentemente prescrito o receituário “universal”: um choque de competitividade pelo
fim das barreiras às importações, dos subsídios governamentais e das associações entre
empresas, e pela flexibilização das relações de trabalho. Descartado porém o corpus
teórico dominante, e decorrida mais de uma década, o país continua apresentando
sucessivos superávits comerciais, baixos desemprego e inflação, elevada poupança
interna e moeda valorizada, numa clara indicação de que são os traços culturais do país
que dotam sua economia de robustezas próprias.59
Entrementes, a busca por combinações ao mesmo tempo flexíveis e a custos suportáveis
entre as alternativas ditas “make” (que implica integração vertical, e complexidade
logística interna) e “buy” (que implica margens de segurança nos estoques, e
complexidade logística externa) ampliou em muito a diversidade de tempos e lugares
para a produção – ou seja, a complexidade nas relações entre fluxos (leia-se produção) e
demandas. Atingidos os limites da racionalização interna às empresas, o passo seguinte
foi a extensão da logística para fora delas (e aos respectivos contratos, que passaram a
perseguir estabilidade nas relações entre clientes e fornecedores), pelo que hoje se
denomina gestão integrada da cadeia de suprimentos. Nos ambientes MRP-ERP, é
implantado um sistema de previsão de demanda único para toda a cadeia; na alternativa
JIT, parâmetros quanto a quantidades, qualidade, prazos e preços são incorporados aos
contratos, sob uma perspectiva de longo prazo; em ambos, as racionalizações internas,
desde os indicadores de desempenho até a estratégia de competição, tornam-se
subordinadas às características e objetivos da cadeia como um todo.
58
59
Cf. ibid., pp. 66-67.
Cf. Ibid., p. 55.
22
Ainda outra vez, o ideal das “leis” universais de mercado, que se supunha propiciariam
uma regulação isenta do agir estratégico por meio dos contratos, veio mascarar as
assimetrias nas relações entre o elo mais forte da cadeia e os demais, aspecto em geral
omitido na literatura, que vai até mesmo à idealização de uma “cooperação”. A empresa
que domina a cadeia pode estar situada mais à montante ou mais à jusante (pode, por
exemplo, ser fabricante, como montadoras de automóveis, ou distribuidor, como redes
de supermercados ou de lojas de departamentos), mas é o seu perfil de racionalização o
que determina os objetivos e a estratégia da cadeia como um todo, e, por conseguinte, os
modos de racionalização para os demais elos, à medida que estes vão se tornando
progressivamente dependentes da empresa dominante.60 Em seguida à logística chega a
vez dos métodos de trabalho; se a integração logra atingir a estrutura de custos da
cadeia, isto na prática determina a lucratividade de cada elo.
Como a freqüência de rompimentos e disputas judiciais tem demonstrado na prática, a
ampla flexibilização para as relações de negócio e de trabalho preconizada pelo corpus
teórico dominante situa-se em contradição direta com a necessidade de se reduzir a
complexidade pela construção de estabilidade e confiança mútua nas relações internas
(entre pessoas) e externas (entre empresas). Evidentemente, não cabe transplantar para o
Ocidente a solução keiretsu dos japoneses (laços de lealdade entre empresas), que não
tem como ser dissociada da cultura local (e que mesmo no Japão encontra-se sob
questionamento). Mas a Europa continental possui toda uma antiga tradição de
organização industrial por concentração geográfica de produtores em pequena escala
sob relações simétricas – no passado, cidades industriais especializadas em tecelagem,
ou relojoaria etc.; hoje, clusters de pequenas e médias empresas em que os
trabalhadores são os herdeiros dessa longa tradição artesanal (por exemplo, o de
máquinas-ferramenta na região da Emília-Romanha italiana). Já apropriado pelo agir
estratégico, o termo cluster vem sendo citado de forma deturpada na literatura, de modo
a incluir sob esta denominação cadeias de produção estáveis, porém assimétricas, em
que uma empresa principal predomina.61
60
61
Cf. Ibid., p. 127.
Cf. Ibid., p. 131.
23
Limites da racionalização
Elegemos Simon como a figura central na história da Administração porque a ele coube
compreender o papel do agir estratégico nas organizações, apontar suas limitações (as
decisões são sempre tomadas a partir de um conhecimento parcial – em outra palavra,
local – da realidade, e de visões imprecisas quanto ao futuro) e sintetizar a essência
dessa disciplina, uma racionalização fundada no tripé rotinas (para simplificar as
decisões), tecnologia (para propiciar algum tratamento da incerteza por meio de novas
rotinas) e contratos (para tornar compatíveis as diversas racionalidades locais).
No passado, este tripé pode ser identificado já em Taylor (toda atividade como
rotinizável, o cronômetro, e o discurso dos ganhos econômicos para todos à guisa de
contrato) e Ford (os departamentos funcionais, a linha de montagem, e o five dollar day
como o princípio de contrato social que viria a inspirar o New Deal que retiraria os
Estados Unidos da depressão). Hoje, a busca frenética por modelar a complexidade e
eliminar a incerteza das decisões vem levando a um cada vez mais sofisticado (e caro)
computer-aided taylorism, que no mais das vezes requer que seja a empresa que se
adapte a ele – one best way – ao invés do contrário (como em boa parte das
implantações do ERP);62 para a gestão integrada da cadeia de suprimentos, o aporte
tecnológico vai do EDI (electronic data interchange) ao comércio eletrônico (ecommerce). Não se deve esquecer as lições deixadas pelo breve reinado da
reengenharia,63 o auge da vontade de poder-se racionalizar a organização como um todo
a partir do zero, com base nas tecnologias de informação.
Já no terreno das relações de trabalho, um extremo contemporâneo da motivação “de
fora para dentro” da Escola das Relações Humanas é a crescente tendência das
organizações em buscar suprir as necessidades de seus empregados por vida privada,
62
“... a maior desvantagem dos sistemas ERP – afora os preços exorbitantes dos softwares – é a dificuldade de
implantação. De fato, é preciso selecionar o fornecedor do sistema ERP; escolher os módulos a serem instalados;
redefinir os processos de negócio da organização, de forma a compatibiliza-los com o sistema adquirido; ajustar as
tabelas de configuração dos módulos, de acordo com os processos redefinidos; tratar os casos de incompatibilidade
entre o sistema e os requisitos da empresa” (VALLE, 2005: 123). Ver também ZANCUL, Eduardo, ROZENFELD,
Henrique.
Sistemas
ERP.
São
Carlos
(São
Paulo),
1999.
Disponível
em:
<http://www.numa.org.br/conhecimentos/conhecimentos_port/pag_conhec/ERP_v2.html>. Acesso em: 25 fev. 2005.
63
Ver HAMMER, Michael, CHAMPY, James. Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business
Revolution. New York: Harper Business, 1993.
24
sejam estas de natureza material, psicológica, afetiva ou de lazer,64 um padrão de agir
estratégico para com as pessoas que lhes impõe o risco de se tornarem crescentemente
dependentes da organização sem a contrapartida da estabilidade no emprego. No que diz
respeito a contratos, uma crescente burocratização (no sentido weberiano, significando
formalização das relações sociais) transmuta as formas habituais de avaliação dos
trabalhadores e de feedback a eles em termos de compromisso quanto a desempenho a
serem firmados; para os gerentes, isto se dá sob a denominação de governança
corporativa.
Foi aqui recapitulada a trajetória da racionalização como resposta aos sucessivos
acréscimos de complexidade: primeiramente, exigências por melhores condições de
trabalho, depois demandas dos consumidores por qualidade e diversidade dos produtos
que se refletiram no advento das legislações de defesa do consumidor, descontinuidades
trazidas pela inovação tecnológica, saturação dos mercados, desregulação da economia
e, mais recentemente, exigências quanto a cuidados para com o meio ambiente – que
não se limitam ao tratamento de resíduos, a exigências quanto aos produtos, e ao retorno
destes ou de suas embalagens após o consumo para reciclagem; mesmo a decisão sobre
a instalação de uma nova fábrica, que há cem anos requeria pouca coisa além da compra
ou arrendamento de um terreno, hoje envolve o cumprimento de exigências legais não
apenas nacionais mas também locais, atrai a interferência de ONGs etc.
Contemporaneamente, foram tornados alvo de atenção também os riscos associados ao
distanciamento entre o universo dos negócios e o restante da sociedade, com o advento
de um novo padrão de discurso, o da “responsabilidade social”.
Dentre todos os reflexos de tais complexidades externas sob forma de aumento da
complexidade interna às organizações, o mais dramático – porque em contradição direta
com os esforços de racionalização – é a crescente demanda por micro-decisões
64
Ver, por exemplo, ARNOTT, Dave. Corporate Cults: The Insidious Lure of the All-consuming Organization. New
York: Amacom, 2000; e WARDE, Ibrahim. “Surexploitation Joyeuse aux États-Unis: Cadres et Employés
Communient dans la ‘Religion’ du Travail”. Le Monde Diplomatique, p. 27, 16 mars 2002. Versão em inglês
disponível em: <http://mondediplo.com/2002/03/16work>. Acesso em: 25 fev. 2005. Em português, ver
STEINBERG, Gustavo, MASAGÃO, Marcelo. “Yes, Temos Motivação: Pérolas e Impressões Colhidas numa
Viagem ao Eletrizante Mundo da Nova Cultura Gerencial”. Carta Capital, vol. 9, 15 maio 2002.
25
(decisões operacionais pelos trabalhadores),65 em adição às desde sempre necessárias
meso- (decisões táticas, confiadas aos gerentes) e macro-decisões (decisões estratégicas
pelos executivos). Em todos estes níveis, cada vez menos as rotinas se mostram opções
adequadas. Também em todos eles, os fantasmas da leitura empobrecida da realidade e
da satisfação com a primeira alternativa viável denunciados por Simon estão à espreita.
Abraçar a complexidade ao invés de racionalizá-la – este, o desafio presente à teoria das
organizações.
65
Para o processo de crescente complexificação da esfera das micro-decisões, ver VALLE, Rogério A. B. La theorie
de l’agir communicatif face aux apports d’une sociologie comparative des organisations. Thèse (D.Sc. Sociologie) à
l’Université Paris V (Sorbonne, Sciences Humaines). Paris, 1989.
26
2. A trajetória em busca da complexidade
Teoria da Complexidade nada mais é que um dedobramento contemporâneo da busca
ancestral do homem (progressivamente sob forma de Ciência) por desvendar os
mistérios do mundo. O que a distingue nesse processo histórico é sua orientação ao
geral ao invés do específico: seu objetivo presumido é a elaboração e consolidação de
uma “ciência geral dos sistemas complexos”.
Podemos, inicialmente (revisaremos adiante), definir sistemas complexos por
contraposição aos sistemas simples, como aqueles cujas explicações não são robustas a
ponto de propiciar graus satisfatórios de previsibilidade quanto ao comportamento
futuro; ou seja, trata-se dos tais “mistérios do mundo”.
Essas são, obviamente, definições vagas – mas não as há mais precisas. Ou melhor, há –
às dúzias. Desde que, em meados do século XX, a grandeza “complexidade” de um
sistema passou a objeto do proceder científico, muitos cientistas criaram para ela
definições (ou adaptaram anteriores) de forma derivada de suas conveniências
específicas.66 Nem poderia ser diferente, uma vez que a complexidade de um sistema
não é algo conhecido: trata-se justamente de algo que se ignora, e se busca desvendar.
Só o que se pode ter por certo é que, sob a denominação genérica de “Teoria da
Complexidade”, abrigam-se linhas de pesquisa as mais diversas, que têm por traço
comum a perspectiva de que a natureza da complexidade dos sistemas também os mais
diversos seja a mesma, ou seja, que haja fundamentos universais para a complexidade.
Assim, por extensão – e no que nos interessa mais diretamente – a Teoria da
Complexidade representa também um desdobramento contemporâneo da busca histórica
por unificação entre as ciências naturais e sociais, na perspectiva de poder-se finalmente
chegar a aplicações práticas, em ciência social, de validade, abrangência e
funcionalidade correlatas às suas congêneres em ciência natural.
66
No mais das vezes, de forma associada às dificuldades envolvidas na tarefa de descrição dos sistemas em tela;
remeter à p. 3.
27
O homem sempre buscou elaborar explicações para o comportamento da Natureza, da
sociedade e de si próprio. Na Antiguidade, predominaram explicações centradas na
crença em um todo harmonioso, o Kosmos; na Idade Média, explicações em termos da
vontade de Deus; na Era Moderna, explicações emanadas da Ciência. Uma unicidade
para suas explicações também foi um objetivo sempre perseguido; para os antigos que
compreendiam o Universo como um todo coerente, era razoável crer que a posição dos
astros no céu determinasse os comportamentos humanos. Na Era Moderna, essa busca
por unicidade foi manifestada por diversos modos: Hobbes67 e depois Newton68
consolidaram uma compreensão mecanicista para tudo no Universo (em 1748 o médico
de La Mettrie69 lançou L’homme machine;70 quase dois séculos depois, Loeb71 escreveu
The Mechanistic Conception of Life72); Locke73 postulou serem as sociedades
governadas pelas leis da Natureza; para Madison,74 o equilíbrio entre as forças políticas
seria correlato ao equilíbrio gravitacional entre os corpos celestes, e devido a isso a
democracia seria intrinsecamente harmoniosa; as explicações de Darwin75 em termos de
sobrevivência dos mais competitivos e melhor adaptados foram em larga escala tomadas
para explicação das diferenças sociais; o Positivismo elevou a unidade entre as ciências
naturais e sociais a um ideal a ser alcançado, por meio da aplicação dos já validados
métodos das primeiras nas segundas. Já no século XX, a Cibernética surgiu como uma
teoria unificada do comportamento de sistemas orientados a objetivos, englobando
máquinas e seres vivos; a Teoria Geral dos Sistemas estabeleceu bases gerais e
universais para o seu estudo; e o Estruturalismo pressupôs a ação humana como
governada por uma estrutura de regras estáveis, que determinam o escopo de
possibilidades para a vida em sociedade. Contemporaneamente, a Teoria da
Complexidade é a herdeira de toda essa busca histórica por uma explicação universal.
67
Thomas Hobbes of Malmesbury (Inglaterra; 1588-1679); ref. hist.: Leviathan; or the Matter, Form and Power of a
Commonwealth, Ecclesiastical and Civil. London: Andrew Crooke, 1651.
68
Isaac Newton (Inglaterra; 1642-1727); ref. hist.: Philosophiae Naturalis Principia Mathematica. London: Joseph
Streater, 1687.
69
70
71
72
73
74
75
Julien Offray de La Mettrie (França; 1709-1751).
Leiden (Holanda): Elie Luzac, 1748.
Jacques Loeb (EUA; n. Alemanha (Prússia); 1859-1924).
The Mechanistic Conception of Life: Biological Essays. Chicago (Illinois): University of Chicago Press, 1912.
John Locke (Inglaterra; 1632-1704).
James Madison Jr. (EUA; 1751-1836).
Charles Robert Darwin (Inglaterra; 1809-1882).
28
As raízes da Teoria da Complexidade encontram-se, assim, imbricadas com a trajetória
toda da Ciência. Em busca dessas raízes, pode-se escolher para referencial a revolução
epistemológica representada pelo advento da física quântica, em que uma importante
interpretação do universo quântico como auto-organizante foi a de Bohm.76 Se se opta
pela Biologia, há que se citar Weiss.77 A linguagem como modeladora do entendimento
do real, Korzybski.78 A Ciência como literatura, Koestler.79 A Matemática, por seu
turno, comporta múltiplos caminhos, dentre eles a Teoria do Caos.80 Se se chega à
Filosofia, pode-se mesmo remontar ao pensamento de clássicos como Heráclito,81 para
quem...
... tudo flui e nada perdura; tudo cede lugar e nada se mantém fixo ... é no mudar que as coisas
encontram repouso.82 ... este Universo ... sempre foi, é, e será um fogo eternamente vivo, que se
acende e se apaga na medida certa.83
Pode-se atribuir validade a todas essas perspectivas. Rastrear as origens das teorias
científicas é rastrear a evolução do pensamento humano, em que jamais se chega a uma
origem única. Contudo, é sempre possível, ainda que de forma arbitrária, delimitar um
corpo de idéias que possa ser considerado um tronco principal em cujas ramificações
situar o campo em questão. No caso da Teoria da Complexidade, essa matriz original é
76
David Joseph Bohm (Inglaterra; n. EUA; 1917-1992); ver Wholeness and the Implicate Order. London: Routledge
and Kegan Paul, 1980; e BOHM, David, HILEY, Basil J. The Undivided Universe: An Ontological Interpretation of
Quantum Theory. London: Routledge, 1993.
77
Paul Alfred Weiss (EUA; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1898-1989); ver Dynamics of Development: Experiments
and Inferences. New York: Academic Press, 1968; e Within the Gates of Science and beyond: Science in its Cultural
Commitments. New York: Hafner, 1971. Como marco inicial, ver “Tierisches Verhalten als ‘Systemreaktion’. Die
Orientierung der Ruhestellungen von Schmetterlingen (Vanessa) gegen Licht und Schwerkraft”. Biologia Generalis,
vol. 1, pp. 168-248, 1925; ver também a transcrição da argumentação oral de Weiss, que antecipa o que viria a ser a
teoria da autopoiesis, em JEFFRESS, Lloyd A. (ed.). Cerebral Mechanisms in Behavior: The Hixon Symposium.
New York: John Wiley and Sons, pp. 72-74, 140-142, 1951.
78
Alfred Vladislavovich Habdank Skarbek Korzybski (EUA; n. Polônia (Rússia); 1879-1950); ver Science and
Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics. Lancaster (Pensilvânia): Science Press,
1933. 2nd. ed., 1941. 3rd. ed., 1948. 4th. ed., 1958.
79
Arthur Koestler (Inglaterra; n. Artur Kösztler, Hungria (Áustria-Hungria); 1905-1983), para quem a realidade é
composta por múltiplos níveis de complexidade sucessivamente acoplados. Ver The Ghost in the Machine. London:
Hutchinson, 1967; “Beyond Atomism and Holism – The Concept of the Holon”. In: KOESTLER, SMYTHIES, John
R. (eds.). Beyond Reductionism: New Perspectives in the Life Sciences. London: Hutchinson, pp. 192-232, 1969; e
Janus: A Summing Up. London: Hutchinson, 1978.
80
81
82
83
Remeter à nota 8, p. 1.
Heráclito de Éfeso (c. 540-470 AC).
Fragmentos de Heráclito compilados por WHEELWRIGHT, 1959: 29.
Ibid., p. 37.
29
a Cibernética, que revisitaremos tomando por fio condutor o criterioso trabalho de
historiador de Dupuy.84
A mecanização da mente
Como o pai fundador da Cibernética considera-se Wiener,85 autor desde a década de 20
de diversas inovações importantes,86 e que durante a Segunda Guerra Mundial
participou do projeto de dispositivos de artilharia antiaérea previamente programados
segundo a orientação de vôo dos aviões de manobra rápida, comportando correções no
padrão de tiro a partir das variações de movimento do alvo. Ora, tal correção pode se
dar tanto a partir da atualização das informações recebidas de radar (quanto a tipo de
aeronave, altitude, velocidade etc.) quanto pela coordenação motora do artilheiro que
busca manter o alvo em mira, com o que Wiener percebeu haver uma identidade de
natureza entre o ajuste fino de comportamento por meio de feedback (um conceito até
então incipiente) em máquinas e em organismos vivos.
À época, com o conceito de informação também incipiente, considerava-se o feedback
como o retorno de uma parcela da energia produzida pelo sistema em seu
comportamento orientado a um objetivo.87 O feedback era então denominado positivo
quando esta parcela retornada possuía sinal idêntico ao estímulo original (input),
somando-se a ele e desta forma reforçando-o e a seus efeitos (output). E o feedback era
dito negativo quando a parcela retornada possuía sinal oposto ao do input, desta forma
atenuando-o, e possibilitando assim um ajuste fino de aproximação entre os resultados
reais (output) e pretendidos (objetivo): “pode-se considerar que todo comportamento
84
Jean-Pierre Dupuy, (França; 1941–). A tese central de DUPUY, 1995 (1994) é que diversos importantes campos
científicos contemporâneos, coma as ciências cognitivas, a Teoria da Complexidade e a biologia molecular (além,
obviamente, das tecnologias de informação) têm como origem principal a Cibernética. Como outra referência para a
história da Cibernética, ver HEIMS, Steve J. The Cybernetics Group. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1991.
85
Norbert Wiener (EUA; 1894-1964); ver WIENER (1948), obra posteriormente adaptada para um maior acesso
pelo público leigo: The Human Use of Human Beings: Cybernetics and Society. Boston (Massachusetts): Houghton
Mifflin, 1950.
86
Zadeh (1991 (1962): 310) compilou uma lista de importantes contribuições à Matemática feitas por Wiener nos
anos 20 e 30, e que vieram a compor a base para o advento da Teoria dos Sistemas: a representação de um sistema
não-linear por meio de séries polinomiais de Laguerre e de Hermite, a sua teoria de filtragem e predição, a análise
harmônica generalizada, o cinema-intergraph, o teorema de Paley-Wiener, e o processo de Wiener.
87
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 47.
30
dotado de propósito requeira feedback negativo. Se um objetivo é para ser atingido,
alguns sinais quanto ao objetivo são necessários em algum momento para direcionar o
comportamento”.88
Estavam lançadas as bases para o que viria a ser o esquema input-output-feedback: uma
máquina capaz de, a cada momento, modificar seu estado interno (output) pela
combinação do input recebido e do seu estado no instante anterior (feedback). A
explosão combinatória produzida por um número finito para os estados internos e por
uma faixa de valores também finita para o input (ou seja, a aplicação recursiva de um
conjunto finito sobre si mesmo) dota a máquina de possibilidades de comportamento
incomensuráveis – o que seria mais uma identidade em relação aos organismos vivos.
Mais: um observador externo vê a máquina como capaz de processar o estímulo
recebido produzindo uma resposta específica de acordo com uma lógica interna, sendo
assim capaz de ajustar seu comportamento, com a correção de eventuais desvios, a
partir das respostas que produz; ou seja, ele a vê como perseguindo um propósito – o
que seria também uma identidade para com os organismos vivos.
Identidade que, à época, foi compreendida como o operar de “mecanismos
teleológicos”, como um modo de manter afastada da explicação científica qualquer
subjetividade. Por teleologia (do grego telos: fim, resultado + logos: palavra, discurso;
estudo das finalidades)89 compreende-se o comportamento regido por alguma “causa
final”, ou seja, uma causa posterior no tempo aos efeitos por ela provocados (um
propósito), o que era desacreditado por ir justamente... de encontro ao mecanicismo
(que pressupõe um encadeamento linear entre causas e efeitos). Os ciberneticistas
pretenderam contornar esta dificuldade ao (re)definir teleologia como o comportamento
propositalmente (não intencionalmente, porém) orientado a objetivos, devido a tal
comportamento se dar de uma forma mecanicamente regulada por feedback; eles
88
89
ROSENBLUETH, WIENER, BIGELOW, 1943: 19.
Remeter à p. 2.
31
reduziram assim a noção de teleologia a um recurso de linguagem, útil ao tipo de
descrição que propunham:90
Uma vez que nós consideramos o propósito como um conceito necessário à compreensão de
determinados modos de comportamento, nós postulamos que um estudo teleológico é útil, desde
que ele evite problemas de causalidade e se atenha meramente à investigação do propósito. Nós
restringimos a conotação de comportamento teleológico, ao empregar esta designação somente
para reações propositais que são controladas pelo erro da reação – ou seja, pela diferença entre o
estado em um dado momento do objeto que se comporta e o estado final, interpretado como o
propósito ... O conceito de teleologia guarda uma única coisa em comum com o conceito de
causalidade: um eixo do tempo. Mas a causalidade implica uma relação funcional unidirecional,
relativamente irreversível, enquanto que teleologia diz respeito a comportamentos, não a relações
funcionais.91
Até então, a Ciência havia sempre compreendido máquinas como o pêndulo, o relógio
ou a máquina a vapor como mecanismos desprovidos de organização, tida por
pensadores como Kant 92 e Maupertuis93 como propriedade exclusiva dos seres vivos.94
No início dos anos 40, ganha corpo a idéia de máquina organizada (que a Cibernética
denominará autômato) como uma noção universal, aplicável à compreensão tanto dos
organismos vivos como dos artefatos auto-reguláveis construídos pelo homem, e num
primeiro momento caracterizada pelas identidades percebidas (ainda) não nas formas de
organização interna, mas no comportamento de ambos:
A classificação de comportamentos proposta [por Wiener e seus pares] ... revela que uma análise
comportamental uniforme é aplicável tanto a máquinas como a organismos vivos, independente da
complexidade do comportamento ... Novas comparações entre organismos vivos e máquinas levam
às seguintes inferências. Os métodos de estudo para os dois grupos são, até o momento, similares.
Se deverão ser eles sempre os mesmos dependerá de haver ou não uma ou mais características
qualitativamente distintas, únicas, presentes em um grupo e ausentes no outro. Tamanhas
diferenças qualitativas não apareceram até agora. ... a análise comportamental de máquinas e
organismos vivos é amplamente uniforme...95
90
O recurso a esta solução de compromisso ou a variantes dela é ainda hoje largamente utilizado; não obstante, ela
foi criticada tanto em círculos acadêmicos mais conservadores (ver, por exemplo, as proposições para adoção do
conceito de teleonomia, mais adiante), como naqueles mais abertos à interdisciplinaridade: “A distinção, tão
fundamental na história da psicologia, entre comportamento voluntário e comportamento reflexo perde com eles [os
princípios cibernéticos] todo sentido, bem como a diferença entre consciência e inconsciente” (DUPUY 1995 (1994):
52).
91
92
ROSENBLUETH, WIENER, BIGELOW, 1943: 23-24.
Immanuel Kant (Prússia; 1724-1804); ref. hist.: Kritik der Urteilskraft. Berlin: Lagarde und Friederich, 1790.
93
Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (França; 1698-1759); ref. hist.: Système de la nature. Essai sur la formation
des corps organisés. 1a. ed. Alemanha (latim), 1751. 2a. ed. (francês), 1754.
94
95
Cf. ATLAN, 1992a (1979): 23.
ROSENBLUETH, WIENER, BIGELOW, 1943: 21-22.
32
Pelos padrões científicos tradicionais, identidades entre os entes estudados somente são
consideradas em termos de suas estruturas ou propriedades, as relações entre objeto de
estudo e ambiente tomadas como meramente incidentais. Já por meio da Cibernética em
sua fase nascente buscou-se discernir identidades entre sistemas a partir de seus
comportamentos, independentemente de suas organizações internas. O que ainda levaria
anos para ficar claro, e que somente seria empunhado por bandeira por uma nova
geração de ciberneticistas, é que qualquer comportamento pode somente ser
externamente considerado, e corresponde portanto antes a um atributo daquele que
observa o sistema do que a uma propriedade intrínseca deste. Ainda que despercebida à
época, uma tal perspectiva já se encontra latente em um dos textos fundadores da
Cibernética (de 1943):
Por comportamento entende-se qualquer mudança em um ente com respeito àquilo que o rodeia ...
qualquer modificação em um objeto, detectável externamente, pode ser denotada como
comportamento.96 (ênfase nossa)
Entrementes, uma outra revolução conceitual já estava em curso, e elas não tardariam a
se encontrar. Em 1931, para chegar a seu teorema da incompletude, Gödel 97
demonstrou ser possível codificar, por meio de números inteiros, os sistemas formais de
lógica, ou seja, as linguagens matemáticas.98 Em 1936, Turing99 concebe em termos
abstratos uma “máquina”, para a posteridade denominada máquina de Turing, na
verdade um formalismo lógico para a descrição de todo e qualquer procedimento
mecânico.100 No ano seguinte, ele iria demonstrar a natureza recursiva desses
procedimentos mecânicos,101 com o que atraiu atenção para a natureza mecânica – mais,
mecanizável – dos cálculos aritméticos.
96
97
Ibid., p. 18.
Kurt Friedrich Gödel (EUA; n. Tchecoslováquia (Áustria-Hungria); 1906-1978).
98
Ver “Über formal unentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme – I”. Monatshefte für
Mathematik und Physik, vol. 38, pp. 173-198, 1931.
99
Alan Mathison Turing (Inglaterra; 1912-1954).
100
Ver “On Computable Numbers, with an Application to the Entscheidungsproblem”. Proceedings of the London
Mathematical Society (2nd. series), vol. 42, pp. 230-265, 1936-1937.
101
Ver “Computability and Lambda-definability”. Journal of Symbolic Logic, vol. 2, n. 4, pp. 153-163, 1937.
33
Como, desde Gödel, a lógica simbólica já se havia tornado “aritmetizável”,102 a máquina
conceitual de Turing foi percebida pela comunidade científica da época, com surpresa e
choque,103 como o primeiro104 artefato materializável capaz de efetuar cálculos lógicos.
Com efeito, a lógica que uma máquina de Turing é capaz de comportar é ilimitada, mas
para isso ela foi idealizada como dotada de uma “fita” (isto é, uma memória) infinita – o
que, evidentemente, não é materializável. Esse aspecto, porém, terminou subestimado
diante das incomensuráveis potencialidades abertas, e que conduziriam ao advento dos
computadores;105 assim, quando em 1938 Shannon106 concebe uma descrição lógica de
uma disposição física (os circuitos elétricos),107 já pairava entre os cientistas a crença de
que toda lógica (leia-se toda matemática) pudesse ser expressa em termos materiais,
fossem estes os da Natureza ou os que viessem a ser concebidos pelo homem.
É nesse contexto que, em 1943, McCulloch108 e Pitts109 propõem uma compreensão da
mente humana como uma máquina lógica encarnada em uma máquina física (o
cérebro), em um trabalho que configura um marco em neurofisiologia,110 ciência
historicamente dividida entre paradigmas conhecidos como “continuísta” (ou
reticularista) e “neuronista”. De acordo com as teses continuístas, o comportamento do
cérebro só pode ser apreendido se este for considerado um todo indivisível, enquanto
que o neuronismo, na melhor tradição cartesiana e reducionista, busca apreender o todo
a partir das partes – os neurônios. Trata-se agora, porém – e nesse sentido a contribuição
102
É devido a isso que cálculos sofisticados (por exemplo, trigonométricos ou logarítmicos) são efetuados em
computadores por meio de sua decomposição em um grande volume de somas e subtrações.
103
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 55-56.
104
Um século antes, Charles Babbage (Inglaterra; 1791-1871) havia trilhado com razoável sucesso o caminho
inverso, da máquina para a Matemática; com Turing, o que surge é uma concepção matemática para as máquinas.
Ref. hist.: Passages from the Life of a Philosopher. London: Longman, Green, Longman, Roberts and Green, 1864.
105
As conseqüências – que se propagam até os dias atuais – dessa interpretação imperfeita são detalhadamente
analisadas em DUPUY (1995 (1994)).
106
Claude Elwood Shannon (EUA; 1916-2001).
107
Ver “A Symbolic Analysis of Relay and Switching Circuits”. Transactions of the American Institute of Electrical
Engineers, vol. 57, pp. 713-723, 1938.
108
Warren Sturgis McCulloch (EUA; 1898-1969); ver Embodiments of Mind. Cambridge (Massachusetts): MIT
Press, 1965.
109
Walter Harry Pitts Jr. (EUA; 1923-1969).
110
McCULLOCH, PITTS, 1965 (1943). Dupuy (1995 (1994): 70-71) chama atenção para o fato de que esse crédito
lhes é negado, de forma geral, no âmbito desta disciplina; como exceção à regra, ver LETTVIN, Jerome Y.
“Introduction to Volume 1”. In: McCULLOCH, Rook (ed.). The Collected Works of Warren S. McCulloch. Salinas
(Califórnia): Intersystems Publications, vol. 1, 1989; e LETTVIN. “Warren and Walter”. In: McCULLOCH, op. cit.
(supra), vol. 2, 1989.
34
de McCulloch e Pitts é decisiva – de uma articulação entre as partes, associadas em
forma de redes em que cada neurônio formal (denominação que surgiria posteriormente,
para distinção relativamente ao neurônio real), a cada momento (ou seja, a cada estado
do neurônio), recebe ou não dos neurônios vizinhos uma estimulação sob forma de
impulso, o que é digitalmente codificado como “0” ou “1”, com o que a soma
ponderada do conjunto de impulsos, caso venha a exceder um determinado limiar, ativa
o neurônio em questão e o leva a mudar de estado.111
A neurofisiologia continuísta privilegiava o tratamento matemático de variáveis
contínuas (por isso, percebidas como analógicas) do tipo químico-hormonal, enquanto
que a abordagem neuronista que McCulloch e Pitts impulsionam é vista como
“descontínua”, por privilegiar os estados discretos (por isso, digitais) dos neurônios em
redes, bem como seus impulsos sinápticos também discretos no tempo – em suma, o
operar mecânico de uma lógica, encarnada na matéria (no título da obra de McCulloch,
embodiments of mind). Nas primitivas redes neurais de McCulloch, originam-se as
ciências cognitivas.112
A busca inicial por correlações de comportamento entre autômatos naturais e artificiais
vai, aos poucos, sendo transcendida em uma busca de identidades não de conteúdo (nos
seres vivos proteínas e neurônios, nas máquinas tubos eletrônicos de vácuo então
denominados válvulas) mas de forma (a lógica interna: organização). Em 1947 Wiener
cunha o termo cibernética, (do grego kubernetes: aquele que governa o curso de um
navio), conferindo identidade própria a uma ciência centrada nas noções de
comunicação (a circulação de informações internamente ao autômato, e entre o
autômato e o ambiente) e controle113 (a auto-regulação do autômato frente às variações
no ambiente). O piloto de um navio opera como um processador de informações,
111
A neurofisiologia prossegue operando por meio desta soma ponderada, aferida a partir do que hoje se denomina
“pesos sinápticos”; McCulloch e Pitts consideraram todos os coeficientes de ponderação para cada sinapse como
iguais a 1, ou seja, o neurônio seria ativado desde que o número de impulsos recebidos excedesse o limiar estipulado.
112
Posição firmada por Dupuy (1995 (1994)), que foi particularmente feliz ao discorrer sobre as razões pelas quais
nas ciências cognitivas contemporâneas se desconhece, ou se prefere recusar, esta ancestralidade.
113
A tradução consagrada para o português do control cibernético é “comando”; assim se fala, por exemplo, em
máquinas de comando numérico (em que a ênfase reside na instrução, enquanto que para o autômato cibernético em
sentido amplo a ênfase está na regulação). Não obstante, entendemos ser “controle” mais apropriado, por expressar
melhor o sentido de ajuste, de sintonia, enquanto que “comando” pressupõe, ainda que implicitamente, a idéia de uma
instância de comando, o que não é, em absoluto, o caso. Lembramos ainda existirem, no idioma inglês, o verbo e o
substantivo command, deliberadamente preteridos pelos fundadores da Cibernética em favor de control.
35
perseguindo a rota previamente traçada por meio de comandos que a todo tempo
mudam (por exemplo, porque o vento mudou). Governar o curso de um navio equivale a
controlá-lo por meio da comunicação com todos os demais navegadores envolvidos; é a
comunicação o que faz do autômato um todo integrado, e é o controle o que regula seu
comportamento.
A Cibernética nasce portanto como uma teoria unificada da máquina e do vivente, fruto
de um casamento entre Matemática e neurofisiologia; seu objetivo maior, o de
desvendar os mecanismos lógicos que se supõe governar a mente humana. Nos termos
de Wiener...
A válvula eletrônica ... pode ser um instrumental bastante efetivo para o desempenho das
operações desejadas ... Nós estamos começando a nos dar conta de que elementos tão importantes
como os neurônios, os átomos do complexo nervoso de nosso corpo, realizam sua atividade sob
praticamente as mesmas condições das válvulas eletrônicas ... o recente estudo dos autômatos, seja
em metal ou em carne, é um ramo da engenharia de comunicações, e suas noções cardinais são as
de mensagem, volume de perturbação ou “ruído” – um termo tomado ao engenheiro de
telecomunicações – quantidade de informação, técnica de codificação, e assim por diante.114
... e nos de McCulloch:
Tudo o que nós aprendemos sobre os organismos nos leva a concluir que eles são não meramente
análogos às máquinas, mas que eles são máquinas. As máquinas feitas pelo homem não são
cérebros, mas os cérebros são uma variedade muito mal-compreendida de máquinas
computacionais. A Cibernética contribuiu para derrubar o muro entre o mundo grandioso da Física
e o gueto da mente.115
Tendo os ciberneticistas tomado a máquina de Turing por modelo universal, pelo que
toda lógica poderia ser compreendida em termos mecânicos, e estes por sua vez em
termos materiais, a abordagem daquela que foi sempre tida como a fronteira última da
complexidade – a mente humana – foi em sua origem mecanicista e materialista.116 Ao
longo das décadas seguintes, seria uma contínua evolução dessas idéias, como veremos,
o que conduziria à Teoria da Complexidade (e não qualquer ruptura deliberada para
com as tradições da Ciência – como muitos preferem vendê-la).
114
115
WIENER, 1948: 53-54.
McCULLOCH, 1965a (1955): 163.
116
Dupuy (1995 (1994): 149-158) desmistifica a noção, hoje corrente, de que a Cibernética já teria se originado
como uma ciência das “formas” (ou modos de organização), portanto imaterial; é o papel central da informação no
pensamento cibernético o que induz a esta incorreta apreensão. Todavia, seria apenas bem mais tarde, a partir da
reificação da noção de informação a reboque da cada vez mais dominante presença dos computadores nos diversos
domínios sociais (sobre o que falaremos adiante), que tal aura passaria a ser evocada.
36
Assim, malgrado ser McCulloch o campeão dentre os cibernéticos desse determinismo
do mental pelo material, é a seu gênio que são devidos diversos pioneirismos que irão se
revelar decisivos para um posterior questionamento dessa mentalidade. Um deles é o
papel desempenhado pelo feedback em sistemas complexos: McCulloch pretendeu
demonstrar que as faculdades atribuídas à mente (como pensamento, percepção,
memória, conhecimento e intencionalidade) poderiam ser deduzidas a partir dos ciclos
de feedback positivo117 das redes de neurônios, pelo aproveitamento de “rastros” de
acontecimentos passados em meio ao que, à época, eram denominados “circuitos
reverberantes” de neurônios.118
Outro avanço decisivo foi a introdução do acaso nos modelos de redes como forma de
simular o ruído oriundo do ambiente, por meio de redes de neurônios aleatoriamente
conectadas119 (cabe ressalvar que, à exceção de Wiener,120 a primeira geração de
ciberneticistas mostrava-se bastante refratária à idéia de que a desordem pudesse
concorrer para a produção de ordem e organização).121 E, já em 1948,122 McCulloch
117
Em que o feedback, ao invés de atuar no sentido de manter estável o estado do neurônio (a isso corresponde o
feedback negativo), exerce influências ao nível da rede como um todo, e é esta que poderá convergir rumo a alguma
estabilidade.
118
“... nós consideramos ... a aprendizagem como uma mudança duradoura capaz de sobreviver ao sono, anestesia,
convulsões e coma ... O sistema nervoso contém muitos caminhos circulares” (McCULLOCH, PITTS, 1965 (1943):
22); “é possível estabelecer-se atividade em um circuito que continue a reverberar em torno dele por tempo
indeterminado, de modo que as Pr [propriedades] resultantes podem referenciar eventos passados a um grau
indefinidamente remoto” (ibid., p. 30); “a atividade regenerativa dos círculos constitutivos torna infinda a referência
relativamente ao tempo passado” (ibid., p. 35).
119
Em apresentação conduzida por Pitts na segunda conferência do ciclo conhecido como “Conferências Macy”
organizado pela fundação filantrópica Josiah Macy Jr, ocorrida em Nova Iorque em outubro de 1946 e intitulada
“Teleological Mechanisms and Circular Causal Systems”; ver também a apresentação por McCulloch em 2 de maio
de 1946 como J. A. Thompson lecture em “Finality and Form in Nervous Activity”. American Lecture Series,
publication n. 11, Springfield (Illinois): Charles C. Thomas, 1952. Reimpresso em McCULLOCH, op. cit. (nota 108,
p. 34), pp. 256-275, 1965; cf. DUPUY, 1995 (1994): 63, 197.
120
Que advogava uma visão de mundo em que predomina o aleatório: “Em um mundo governado por uma sucessão
de milagres realizados por um Deus irracional, sujeito a caprichos súbitos, nós deveríamos ser forçados a aguardar
cada nova catástrofe em estado de perplexa passividade. Nós temos uma imagem de um tal mundo no jogo de croquê
em Alice no País das Maravilhas, onde ... as regras são o decreto da temperamental e imprevisível Rainha de Copas”
(WIENER 1948: 62-63); ver também HEIMS, Steve. John von Neumann and Norbert Wiener: From Mathematics to
the Technologies of Life and Death. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1980; cf. DUPUY, 1995 (1994): 159160.
121
Uma perspectiva incorporadora da desordem se consolida apenas a partir de Ashby (sobre quem falaremos
adiante), cujas idéias despertaram reações indignadas ao serem expostas à comunidade cibernética na nona
Conferência Macy, em 1952. Ver a leitura desse episódio por Dupuy (1995 (1994): 201-210); para a transcrição desse
debate, ver von FOERSTER, Heinz, MEAD, Margaret, TEUBER, Hans L. (eds.). Cybernetics: Circular Causal and
Feedback Mechanisms in Biological and Social Systems – Transactions of the Ninth Conference, New York, Mar.
20-21, 1952. New York: Josiah Macy, Jr. Foundation, pp. 73-108, 151-154, 1953.
37
reporta o aprendizado como o processo de estabelecimento de novas conexões (ou seja,
interações) entre os neurônios:123
Wiener calculou que o volume máximo de informação que nossos cromossomos podem portar ...
poderia especificar todas as conexões de dez mil neurônios, se isso fosse tudo o que houvesse por
ser feito. Uma vez que nós possuímos 1010 neurônios, nós apenas podemos herdar o esquema geral
de estrutura dos nossos cérebros. Todo o restante deve ser deixado ao acaso. O acaso inclui a
experiência, que dá origem à aprendizagem. Ramon y Cajal124 indicou que aprendizagem é o
desenvolvimento de novas conexões.125
Ainda outro pioneirismo de McCulloch foi o recurso à física de sistemas desordenados,
em que os processos de aprendizagem nas redes de neurônios eram comparados a
processos de imantação.126
O estatuto do modelo científico
Quem primeiro se deu conta das limitações do determinismo com que os cibernéticos
compreendiam a mente foi von Neumann,127 que destoava dos demais ciberneticistas por
sua atitude independente128 e não-dogmática. Como intuía que o modelo de uma
máquina lógica equivalente à máquina de Turing era insuficiente para dar conta das
faculdades superiores da mente, von Neumann propõe-se a dimensionar o tamanho do
autômato capaz de tais desempenhos, e conclui que o número de neurônios formais
necessários à reprodução dessas faculdades é, de muito, superior ao número de
neurônios reais contidos no cérebro.129
122
Em apresentação no simpósio Cerebral Mechanisms in Behavior, promovido pelo Hixon Fund Committee em
Pasadena (Califórnia) no California Institute of Technology, de 20 a 25 de setembro de 1948.
123
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 63, 156.
124
Santiago Ramón y Cajal (Espanha; 1852-1934); a referência na qual McCulloch se apoiou foi Histologie du
système nerveux de l’homme et des vertébrés. Paris: Maloine, 1909-1911. 2 vols. Do original: Textura del Sistema
Nervioso del Hombre y de los Vertebrados. Madrid: Imprenta y Librería de Nicolás Moya, 1899-1904. 3 vols.
125
126
McCULLOCH, 1951: 55.
Ver McCULLOCH, op. cit. (nota 119, p. 37), 1952.
127
John von Neumann (EUA; n. János von Neumann, Hungria (Áustria-Hungria); 1903-1957); ver The Computer
and the Brain. New Haven (Connecticut): Yale University Press, 1958.
128
Heinz von Foerster o chamava “inside-outsider”; cf. DUPUY, 1995 (1994): 79-81, 95, 192.
129
Cf. von NEUMANN, 1951. Von Neumann apresentou esta postulação em 1948, no simpósio Cerebral
Mechanisms in Behavior, promovido pelo Hixon Fund Committee em Pasadena (Califórnia) no California Institute of
Technology, de 20 a 25 de setembro.
38
Num encontro do grupo do qual estaria ausente,130 von Neumann envia aos demais uma
mensagem em que afirma que 1010 neurônios formais em um autômato são claramente
insuficientes para dar conta de faculdades como a memória.131 Repetidas vezes, ele
afirmará que a lógica formal, em seu estado presente, era demasiado rígida para poder
ser elevada à condição de lógica interna dos autômatos, naturais ou artificiais, e incapaz
de descrever as faculdades superiores da mente de forma completa e sem ambigüidade:
Nós aqui estamos lidando com porções da lógica com as quais nós não temos praticamente
nenhuma experiência passada. A ordem de complexidade está fora de qualquer proporção
relativamente a qualquer coisa que já tenhamos conhecido. Nós não temos o direito de assumir que
as notações e procedimentos lógicos utilizados no passado sejam adequados a esta parte da
temática. Não está de todo certo que, neste domínio, um objeto real não deva constituir a descrição
mais simples de si próprio, ou seja, qualquer tentativa de descrevê-lo pelo método usual da
literatura ou da lógica formal pode levar a algo menos administrável e mais complicado ... Assim,
não é de todo improvável que seja fútil procurar por um conceito lógico preciso.132
O que von Neumann procura dizer (não em termos tão crus) é que a principal
ferramenta da Ciência e sua linguagem por excelência, a Matemática, esbarrava em seus
próprios limites. Para fazer face a tal limitação, ele vislumbra uma saída nas crescentes
capacidades dos então ainda rudimentares computadores, máquinas que poderiam ser
postas pelo homem a sondar, veloz e incansavelmente, domínios de possibilidades por
mais vastos que fossem, como que tateando em busca das respostas até as encontrar
(como veremos adiante, essa antevisão de von Neumann mostrar-se-á decisiva ao
advento da Teoria da Complexidade).
Para von Neumann, o que permite estabelecer uma fronteira entre autômatos “simples”
e “complexos” é o grau de dificuldade envolvido na descrição de seu comportamento:133
descrever o comportamento de autômatos simples é tarefa mais fácil que descrever sua
estrutura (por exemplo, para uma máquina, descrever seus circuitos elétricos); já para
autômatos complexos dá-se o inverso, tornando-se mais fácil descrever sua estrutura do
130
A sexta Conferência Macy, intitulada Circular Causal Mechanisms in Biological and Social Systems, em Nova
Iorque em março de 1949.
131
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 69. Ver também von FOERSTER, Heinz (ed.). Cybernetics – Circular Causal
Mechanisms in Biological and Social Systems – Transactions of the Sixth Conference, New York, Mar. 24-25, 1949.
New York: Josiah Macy, Jr. Foundation, pp. 12-26, 1950.
132
133
von NEUMANN, 1951: 24.
Remeter à p. 3.
39
que descrever por completo e sem ambigüidade os comportamentos de que ele é capaz,
o que faria o grau de complexidade da descrição tender ao infinito. Todo modelo
matemático de um objeto complexo torna-se, ele próprio, um objeto complexo.
Cabem aqui algumas palavras a respeito da origem dos modelos científicos. Deve-se a
Newton,134 mais uma vez a partir das contribuições prévias de Hobbes,135 a consolidação
do edifício metodológico da ciência clássica, pela integração das abordagens indutiva de
Bacon136 (calcada na experimentação empírica) e dedutiva de Descartes137 (calcada no
raciocínio matemático). Pôde ele fazer isso por ter concebido uma ferramenta – o
cálculo138 com suas equações diferenciais – que lhe permitiu descrever a evolução, de
uma forma contínua no tempo, dos comportamentos sob estudo. Após Newton,
consolidava-se o modelo como o centro da metodologia científica: uma descrição
matemática dos fenômenos que é empiricamente validável em laboratórios ou
experiências de campo.
A afirmação de uma continuidade no comportamento dos fenômenos veio confirmar e
reafirmar a noção (precedente) de causalidade, uma causalidade unidirecional que, de
acordo com a mentalidade mecanicista vigente, estaria necessariamente direcionada das
partes para o todo. Consolidava-se assim também o reducionismo: o comportamento do
todo visto como efeito necessariamente causado pela mecânica dos comportamentos das
partes (e portanto a eles redutível); como ferramenta para o desvendamento dessas
correlações, o modelo.
134
135
Ver referência histórica à nota 68, p. 28.
Ver referência histórica à nota 67, p. 28.
136
Francis Bacon (Inglaterra; 1561-1626); ref. hist.: Novum organum, sive indicia vera de interpretatione naturae.
London: John Bill, 1620.
137
René Descartes (Holanda; n. França; 1596-1650); ref. hist.: Discours de la méthode pour bien conduire sa raison
et chercher la verité dans les sciences. Leiden (Holanda): Jean Maire, 1637.
138
A invenção do cálculo é também atribuída a Leibniz (Gottfried Wilhelm Leibniz; Ducado de Hanover (hoje
Alemanha); n. Eleitorado da Saxônia (hoje Alemanha); 1646-1716). De um modo geral é aceito (não sem alguma
controvérsia) que ambos tenham desenvolvido o cálculo de modo independente, Newton primeiro (na década de
1660), a partir da noção de limite, e Leibniz logo a seguir (na década de 1670), a partir do conceito de infinitesimais;
não obstante, Leibniz foi o primeiro a publicar suas descobertas. Ref. hist. (Newton): ver nota 68, p. 28; refs. hist.
(Leibniz): “Nova methodus pro maximis et minimis, itemque tangentibus, quae nec fractas, nec irrationales
quantitates moratur, et singulare pro illis calculi genus”. Acta Eruditorum. Leipzig (Alemanha): J. Gross und J. F.
Gleditsch, vol. 3 (Oct.), pp. 467-473, 1684; e “De geometria recondita et analysi indivisibilium atque infinitorum”.
Acta Eruditorum, vol. 5 (Juni), pp. 292-300, 1686.
40
O reducionismo e a modelagem mostraram-se particularmente bem-sucedidos para
explicações no campo da Física, enquanto que fenômenos como a vida e a psique
permaneceram irredutíveis; para estes, persistiram explicações alternativas, de cunho
substancialista, como o vitalismo (os seres vivos animados por uma energia vital) e o
dualismo (as idéias e demais estados mentais tidos como imateriais). Já no século XIX,
com o advento da termodinâmica, o decurso natural da evolução no mundo físico foi
visto como rumando para a máxima entropia (ou seja, para o equilíbrio térmico), noção
que foi estendida por Boltzmann139 para uma distribuição homogênea dos estados
moleculares – uma máxima desorganização; posto de outra forma, a matéria não se
organizaria sozinha. Instâncias de organização crescente (como a vida, a psique e a
cultura) chegaram a ser percebidas como improbabilidades estatísticas ou mesmo
aparências ilusórias, ao passo que explicações como o vitalismo e o dualismo foram se
tornando cada vez menos aceitáveis perante a ortodoxia científica.
O reducionismo ainda hoje ocupa vastos espaços: com a descoberta do DNA sobreveio
todo um arcabouço teórico (predominante porém jamais consensual, como veremos)
inspirado no funcionamento dos computadores e centrado na idéia de uma programação
genética, que intenta explicar a evolução biológica e suas crescentes complexidades por
sua redução a mecanismos físico-químicos ao nível molecular; no que tange à mente,
boa parte dos esforços (até aqui infrutíferos) das ciências cognitivas estiveram voltados
à identificação dos processos físicos supostamente causadores dos estados mentais.
De acordo com Dupuy,140 a partir de von Neumann o estatuto científico do modelo
matemático torna-se carente de redefinição, uma vez que ele é despojado de sua
principal finalidade – a de ser resolvível.141 O modelo, até então subordinado à Natureza
real que ele procura reproduzir, emancipava-se dela e, para fins metodológicos, tornavase equivalente a ela. No que tange aos sistemas complexos (como a vida e a psique), o
modelo deixava de ser o espaço do cientista para validação empírica de suas hipóteses;
doravante, tal papel viria a ser exercido pela simulação em computadores (Figura 1), e
foi esta crença o que impulsionou von Neumann (que se refere a um “uso heurístico”
para os computadores)142 a lançar-se em seu desenvolvimento. O objeto a ser testado, tal
139
Ludwig Eduard Boltzmann (Áustria; 1844-1906).
41
como se componente da Natureza fosse, seria doravante o modelo matemático em si, a
especulação a respeito da realidade cuja validade se deseja estimar.
Figura 1: Antevisão de von Neumann quanto à modelagem de sistemas complexos.
Nos termos de von Neumann:
... métodos completamente novos serão necessários para problemas não-lineares ... de um ponto de
vista heurístico ... existem vastas áreas em matemática pura em que ... a computação, que não é tão
matemática assim ... no sentido tradicional ... poderia ser uma ferramenta mais flexível e mais
adequada.143
O enfoque alternativo que von Neumann delineia recusa não apenas a pretensa
universalidade para a máquina de Turing como a mentalidade determinista que lhe deu
origem. Uma renovada abordagem da complexidade pressupõe que esta possa ser
140
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 79-81, 188-192.
141
A matemática, havia séculos, já não era resolvível em campos como a dinâmica dos fluidos, em que os fenômenos
são predominantemente não-lineares; acreditava-se, porém, que ela progrediria rumo a soluções para impasses como
esse. Seria somente na década de 70, com o advento da Teoria do Caos (em que os atratores dos fenômenos são
mapeados não mais analiticamente, mas por meio de computadores que experimentam possibilidades e selecionam
todas as que se mostram factíveis; cf. nota 8, p. 3) que a antevisão de von Neumann passaria ao terreno do óbvio.
142
Cf. von NEUMANN, 1966a. Trata-se de transcrição de palestra proferida na Universidade de Illinois em
dezembro de 1949.
143
Ibid., pp. 34-35.
42
descrita apenas parcialmente, e de modo probabilístico; o objetivo a que se pode almejar
é uma melhor compreensão das propriedades gerais dos sistemas estudados. É a partir
desse novo enfoque que a theory of automata, que versa sobre objetos reais, naturais ou
artificiais,
se
verá
transcendida
em
automata
theory,144
pura
matemática
“empiricamente” (nos termos de von Neumann, heuristicamente) testável por meio de
simulações computacionais. Tamanho desprendimento foi recusado por conservadores
como McCulloch:
... nos originais de Pitts e McCulloch de 1943 ... as expressões proposicionais temporais são
eventos que se dão no tempo e no espaço, em uma rede fisicamente real. Os neurônios propostos,
apesar de todas as suas extremas simplificações, são ainda neurônios físicos, tão verdadeiramente
quanto os átomos do químico são átomos físicos.145 ... Os fatos [temas científicos] com que nos
ocupávamos ao longo dos anos de 1947 a 1963 eram, simplesmente, que os cérebros reais ... são
compostos por componentes não-confiáveis, e capazes de computar em presença de ruído. A teoria
dos autômatos mostrou-se mais instigante que a automata theory divorciada dos autômatos.146
Um processo de bifurcação encontrava-se em marcha. Enquanto que aqueles que se
mantinham fiéis ao projeto fundador de desvendar a máquina natural que se supõe ser a
mente iriam, frente às limitações da abordagem determinista original, desenvolver as
direções delineadas por von Neumann e compor a chamada “segunda Cibernética” que
desaguaria na Teoria da Complexidade, ortodoxos como McCulloch, mais fiéis ao
sonho da máquina de Turing materializável, preferiram se desvencilhar dos rigores da
neurofisiologia e privilegiar a abstração, na busca de uma reprodução da mente na
máquina artificial que acaba de nascer (não por acaso inspirada na máquina de Turing),
o computador. O projeto cibernético viria assim a cindir-se entre aqueles, que
enxergavam uma máquina na mente, e estes, que sonhavam construir uma mente na
máquina, e que viriam a fundar o campo da inteligência artificial.147
Ora, uma vez tendo sido postulado ser o cérebro uma máquina natural, a indagação
quanto à viabilidade de “máquinas pensantes” era uma questão de tempo. A mídia
americana encarregou-se de promover essa especulação com uma série de artigos
144
Para uma apresentação das bases gerais, originadas na teoria dos autômatos, da então nascente automata theory,
ver BOOTH, Taylor L. Sequential Machines and Automata Theory. New York: John Wiley and Sons, 1967.
145
146
McCULLOCH, 1965b: 393.
Ibid., p. 394.
147
A existência desse processo de cisão é outra posição firmada por Dupuy (1995 (1994)), que o examina em
profundidade, e a seus desdobramentos.
43
sensacionalistas no início de 1950,148 recebidos com lamentação pelos ciberneticistas,
que os atribuíram ao primarismo da mídia e do público.149 A perspectiva, porém, era
tentadora demais para permanecer inexplorada, e antes do final dessa década
experimentos estariam sendo deslanchados. Em paralelo, os primeiros computadores
tornaram-se conhecidos como “cérebros eletrônicos”, e os engenheiros que os
projetaram se deixam também levar pela onda: assim, persistem na linguagem corrente,
até hoje, termos como “memória” e “linguagem” empregados como atributos de
computadores.
Entropia e complexidade
Nesse ínterim, foi novamente Shannon no campo da engenharia elétrica quem veio
contribuir com a Cibernética, dessa vez descortinando o caminho para as descrições
probabilísticas que von Neumann viria advogar: ao pesquisar o problema da perda de
conteúdo de mensagens ao longo de linhas de transmissão devido ao ruído, Shannon
chega a uma teoria estatística da informação,150 inspirada na noção de entropia.
Convém aqui outra digressão histórica, desta vez para elucidar esse conceito, pivô de
toda sorte de confusões e mal-entendidos.151 A primeira lei da termodinâmica, ou lei da
conservação da energia (da década de 1840), dispõe que nos processos de conversão de
energia (por exemplo, de potencial para cinética, ou de elétrica para térmica) a
quantidade total de energia envolvida é conservada. A segunda lei da termodinâmica (da
década seguinte) assevera que, embora a totalidade da energia seja conservada, a sua
parcela aproveitável (ou seja, disponível para futuros processos de conversão) é sempre
decrescente (por exemplo, alguma parcela da energia resultante da explosão da gasolina
nos cilindros de um motor de carro converge espontaneamente para o aquecimento
desse motor, não podendo ser aproveitada como força motriz para as rodas). Isso
148
149
150
Ver, por exemplo, “The Thinking Machine”, Time, vol. 55, n. 4, capa, pp. 54-60, Jan. 23, 1950.
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 111-112.
SHANNON, 1949 (1948).
151
Alguns elementos dessa digressão foram extraídos de KLYCE (2000). Outras visões para esta mesma
problemática podem ser encontradas em ATLAN (1992a (1979): 27-35) e em TONNELAT, Jacques.
Thermodynamique et biologie. Paris: Maloine, vol. 1 (Entropie, Désordre et Complexité), 1977, vol. 2 (L’Ordre Issu
du Hasard), 1978.
44
implica que um sistema fechado (ou seja, que não seja reabastecido de energia do
exterior) necessariamente convergirá para o estado de equilíbrio térmico, ou seja, para
uma mesma temperatura em todos os seus pontos (o que, óbvio hoje, à época foi
surpreendente, pois até então acreditava-se que o calor fosse um fluido, quando na
verdade ele resulta da diferença entre temperaturas).
Somente em 1865 Clausius152 introduz o conceito nada intuitivo de entropia,153 antes
uma abstração que uma manifestação física, expresso em joules (ou calorias) por grau
(ou seja, uma taxa entre energia e temperatura), que acabou por vingar como parâmetro
para mensuração desse inelutável processo de dissipação da energia disponível, e logo
passou a referencial para enunciação da (precedente) segunda lei (por exemplo sob a
forma “a entropia em um sistema fechado é sempre crescente”).
Posteriormente (em 1877), Boltzmann utilizou-se da noção de entropia para caracterizar
a evolução da distribuição estatística dos estados moleculares em um sistema (posições,
velocidades etc.) rumo à uniformidade,154 após o que o estatuto de universalidade155
conferido à segunda lei acabou inadvertidamente estendido, do campo da energia para o
da organização da matéria. Boltzmann demonstrou seu ponto com um experimento em
que se misturam dois gases distintos: eles se expandem, e com o tempo a mistura
homogeneiza-se. Uma máxima uniformidade na distribuição dos estados moleculares
significa a ausência de qualquer ordenação no sistema – uma máxima desordem. Ora,
entender que esta “entropia” será sempre crescente equivale a afirmar que a matéria não
se organiza sozinha, o que contradiz a evolução biológica. Ocorre que a entropia de
Boltzmann é uma grandeza matemática, enquanto que a entropia original da
termodinâmica é uma grandeza física; elas somente podem relacionar-se por analogia.
Com efeito, para que Boltzmann possa atribuir realidade física à sua entropia ele
152
Rudolf Julius Emanuel Clausius (Alemanha (n. Prússia); 1822-1888); ref. hist.: “Über verschiedene für die
Anwendung bequeme Formen der Hauptgleichungen der mechanischen Wärmetheorie”. Poggendorffs Annalen, vol.
125, pp. 353-400, 1865.
153
Do grego entrope: transformação; Clausius escolheu esta raiz para criar um termo similar à palavra “energia”.
154
Ref. hist.: “Über die Beziehung zwischen dem zweiten Hauptsatze der mechanischen Wärmetheorie und der
Wahrscheinlichkeitsrechnung respektive den Sätzen über das Wärmegleichgewicht”. Wiener Berichte
(Sitzungsberichte der Kaiserlichen Akademie der Wissenschaften), vol. 76, pp. 373–435, 1877.
155
Os enunciados de Clausius em seu artigo de 1865 (ver nota 152, p. 45) para as leis foram: primeira lei – “A
energia do Universo é constante”; segunda lei – “A entropia do Universo tende a um máximo”.
45
multiplica o seu valor por uma constante.156 Há ainda outra distinção de natureza: ao
contrário da entropia termodinâmica, uma grandeza absoluta, a entropia de Boltzmann
versa sobre a distribuição da matéria no espaço, e é portanto relativa ao mapeamento em
subdivisões, sempre arbitrário, adotado para o espaço justamente para que se possa
medir a entropia – muda a escala de divisão, muda a entropia.
Em resumo: a entropia termodinâmica é necessariamente crescente; não há, contudo,
bases seguras para afirmar-se o mesmo a respeito da entropia a que se pode chamar
“organizacional” (ou “configuracional”). É claro que, em um sentido intuitivo, presumese que um aumento de organização esteja associado a algum consumo de energia – mas
daí a estabelecer-se uma equivalência entre leis térmicas empíricas e “leis”
organizacionais supostas vai alguma distância (ou: conhecer as relações entre energia e
matéria não implica conhecer as relações entre energia e organização da matéria).
Desse modo, as duas distintas concepções de entropia acabaram confundidas como se
uma única fossem, e assim biólogos puderam (podem) considerar os sistemas biológicos
como de entropia decrescente (trata-se da organizacional) devido a serem abertos, por
receber energia do Sol; se o Sol for incluído como parte do sistema, a entropia (aqui,
termodinâmica) torna-se crescente: usa-se uma mesma palavra para referenciar coisas
diferentes. E, mesmo se não são confundidos os conceitos, a segunda lei continua
tomada por válida para ambos os domínios, com o que a evolução biológica na Terra
por decréscimo de entropia (organizacional) pôde ser compreendida como uma
improbabilidade estatística, no contexto da totalidade do Universo.
156
Posteriormente denominada K (constante de Boltzmann), que relaciona a energia cinética média de uma molécula
à sua temperatura.
46
Quando em 1948 Shannon formula a sua noção de entropia (a que poderíamos chamar
“informacional”) ele estava aparentemente ciente de todo esse imbroglio, pois a concebe
como uma grandeza estritamente matemática, omite-se quanto a especificar unidades de
medida e divisões no espaço,157 e desvencilha-se da constante de Boltzmann.158 A
escolha do nome “entropia” para sua medida contribuiu para acirrar ainda mais as
controvérsias, e assim até hoje a Teoria da Complexidade encontra-se impregnada de
confusões relativas à validade ou não da segunda lei. Esta é uma saborosa “confissão”
atribuída a Shannon:
Minha maior preocupação era do que chamá-la. Eu pensei em chamá-la “informação”, mas esta
palavra estava por demais utilizada, então decidi chamá-la “incerteza”. Quando discuti isso com
John von Neumann, ele teve uma idéia melhor. Von Neumann me disse, “Você deveria chamá-la
entropia, por dois motivos. Em primeiro lugar, a sua função de incerteza tem sido utilizada na
mecânica estatística [referia-se aos postulados de Boltzmann] sob essa denominação, logo ela já
tem um nome. Em segundo lugar, e mais importante, ninguém sabe direito o que é entropia, assim
você sempre terá a vantagem em um debate”.159
Shannon opta por definir entropia como a quantidade de informação transmitida em
uma comunicação, atribuindo assim à grandeza “informação” um significado técnico
específico160 (paradoxalmente, oposto à sua acepção corrente). Para o engenheiro de
linhas de transmissão, importa que as quantidades de informações enviadas sejam
corretamente recebidas, quaisquer que sejam os seus conteúdos, relevantes ou fúteis.
Assim, “informação” não se refere ao significado (reconhecimento) do que é
transmitido; ao contrário, ela é vista como uma medida da incerteza (desconhecimento)
acerca do que é transmitido. Ou seja, informação é aquilo que o receptor (ainda) não
conhece pois, se ele já a possui, não se pode dizer que tenha havido uma comunicação.
Segundo Shannon, a quantidade de informação contida em um único símbolo de uma
mensagem corresponde à probabilidade do aparecimento deste símbolo na mensagem;
quanto mais improvável, a priori, a ocorrência de um dado símbolo, mais informativa, a
157
“Há uma diferença importante entre as entropias contínua e discreta. No caso discreto a entropia mede, de um
modo absoluto, a probabilidade da variável aleatória. No caso contínuo a mensuração é relativa ao sistema de
coordenadas. Se nós alterarmos as coordenadas a entropia vai, em geral, mudar” (SHANNON, 1949 (1948): 57).
158
159
“... a constante K meramente corresponde à escolha de uma unidade de medida” (ibid., p. 20).
TRIBUS, McIRVINE, 1971: 180.
160
Porque ele não pôde utilizar o termo sinal (signal), o que seria o correto, uma vez que este termo já estava
associado às características elétricas das linhas de transmissão.
47
posteriori, será a sua ocorrência. Calculando-se a quantidade de informação contida em
cada símbolo do código empregado (por exemplo, as letras do alfabeto) pode-se,
estatisticamente, calcular a quantidade média de informação por símbolo; a quantidade
total de informação na mensagem será igual a essa quantidade média de informação por
símbolo multiplicada pelo número de símbolos da mensagem.
Shannon havia descoberto que a solução para o problema da distorção pelo ruído na
comunicação reside na aplicação de redundância à mensagem, ao constatar sua
existência na comunicação natural humana. Por exemplo, uma conversação em um
ambiente ruidoso (como uma festa) não impede a compreensão do que é dito, posto que
o idioma comporta uma significativa dose de redundância que permite a apreensão
daquelas palavras ouvidas de forma truncada. Pelo mesmo motivo, leitores são capazes
de detectar erros de digitação nas mensagens escritas que recebem (Shannon estimou
que a redundância ocupa cerca de 50% da língua inglesa). Quanto maior for a variedade
própria a cada conjunto de símbolos (código) empregado, mais incerteza haverá quanto
a qual será o próximo símbolo, e maior a redundância necessária a garantir uma
comunicação confiável frente ao ruído – o que por sua vez implica numa redução da
quantidade total de informação passível de ser transmitida. Não por outro motivo
Shannon concebeu o bit,161 cuja variedade é mínima (zero ou um), como a unidade de
informação ideal à codificação da comunicação.
Ao resolver seus problemas em transmissão de mensagens, Shannon acabou também
por oferecer aos ciberneticistas a “teoria do ruído” que eles tanto perseguiam,
incorporou a mensuração justamente no campo cibernético por excelência, o da
informação, e sepultou de vez a ambigüidade pela qual o feedback havia sido visto
como um “retorno de energia”. Já em 1949 162 von Neumann buscava tratar a grandeza
“complexidade” (mais precisamente, o potencial para a auto-organização associado) nos
termos de Shannon, sem ter ainda encontrado (embora usando-o!) um termo que a
expressasse:
Existe um conceito que será definitivamente útil aqui, de que temos uma certa idéia intuitiva, mas
que é vago, não-científico, e imperfeito. Este conceito claramente pertence ao campo da
161
162
Contração das duas primeiras com a última letra na expressão binary digit.
Em palestra proferida na Universidade de Illinois, no mês de dezembro.
48
informação, e considerações em termos termodinâmicos são relevantes para ele. Eu não conheço
nenhum nome adequado para ele ... Trata-se efetivamente ... da potencialidade para fazer coisas.
Eu não estou pensando a respeito de quão complicado é o objeto, mas de quão complicadas são as
suas operações voltadas a propósitos. Nesse sentido, um objeto é do mais alto grau de
complexidade se ele puder fazer coisas muito difíceis e complicadas.163 (ênfases nossas)
Nessa época, von Neumann passa a dedicar-se às duas questões que considerava
essenciais ao tratamento da complexidade (à época, os cientistas referiam-se a graus de
liberdade, o número de variáveis necessárias à descrição completa de um fenômeno) e
cuja resolução (esta empreitada foi interrompida por sua morte prematura)164 conduziria
a uma teoria unificada dos autômatos naturais e artificiais: em que condições um
autômato constituído por componentes não-confiáveis adquire confiabilidade;165 e com
que princípios de organização um autômato deve contar para se auto-reproduzir, ou seja,
para gerar cópias de si mesmo por sua vez capazes de gerar novas cópias, tal como na
reprodução biológica166 (lembrando que o conceito de autômato correspondia ao
conjunto de hardware e software; um exemplo contemporâneo de software autoreprodutor são os vírus de computadores).
Em 1951, ele concebe seu projeto para um autômato auto-reprodutor a partir da troca de
idéias com Ulam,167 que lhe recomenda uma disposição em grade de um grande número
de autômatos idênticos (chamados células) e identicamente programados, interagindo
com seus vizinhos imediatos de acordo com regras simples e fixas, num arranjo a que
denominou tesselation structure, e que seria posteriormente rebatizado como redes de
autômatos celulares (cellular automata).168 É atribuído um estado inicial a cada uma das
células que, de forma sincronizada (paralelismo), definem seu novo estado em função
do estado atual e do estado das células vizinhas às quais se encontram conectadas.
Presume-se que o comportamento coletivo de um grande número de células em
163
von NEUMANN, 1966b: 78.
164
Postumamente, Arthur W. Burks editaria e complementaria seus manuscritos, em von NEUMANN, John. Theory
of Self-reproducing Automata. Urbana (Illinois): University of Illinois Press, 1966.
165
Ver “Probabilistic Logics and the Synthesis of Reliable Organisms from Unreliable Components”. In:
SHANNON, Claude E., McCARTHY, John (eds.). Automata Studies. Princeton (Nova Jérsei): Princeton University
Press, pp. 43-98, 1956.
166
Ver von NEUMANN, op. cit. (nota 164, p. 49), 1966; as linhas gerais dessa investigação foram delineadas
primeiramente em von NEUMANN (1951).
167
Stanislaw Marcin Ulam (EUA, n. Polônia (Áustria-Hungria (hoje Ucrânia)); 1909-1984).
168
Para um estudo compreensivo dos autômatos celulares, ver WOLFRAM, Stephen (ed.). Theory and Applications
of Cellular Automata. Singapore: World Scientific Publishing, 1986; e TOFFOLI, Tommaso, MARGOLUS, Norman.
Cellular Automata Machines: A New Environment for Modeling. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1987.
49
interação possa, em um plano abstrato, simular os comportamentos complexos dos seres
vivos, o que foi posteriormente verificado em redes de autômatos celulares mais
sofisticadas como as redes booleanas aleatórias (como veremos).
A autonomia dos sistemas
Ao longo das décadas de 50 e 60, quem dá continuidade à jornada de von Neumann em
busca da complexidade é Ashby,169 referenciado na presumida universalidade para a
formulação de Shannon (afinal, inspirada na Física). No interior das linhas de
transmissão de Shannon, contava-se haver mais mensagem que ruído; Ashby viu no
cérebro um “canal de transmissão de informações” de caráter oposto, em que,
relativamente a cada mensagem em trânsito, haveria muitíssima mais capacidade
disponível – “ruído”, entendido como variedade.
A primeira rede de neurônios construída por McCulloch para o estudo de seu
comportamento coletivo possuía somente seis neurônios;170 o cérebro humano possui
cerca de 40 bilhões deles, e estima-se que para cada neurônio o número de sinapses é da
casa da centena, o que resulta em alguns trilhões de ligações estritamente físicas – sem
levar em conta que a atividade de cada neurônio influencia neurônios distantes, a ele
ligados apenas indiretamente.
McCulloch via no cérebro uma abundância de capacidades excedentes (que ele chamou
redundantes), o que explicaria porque o funcionamento do cérebro é confiável a
despeito de suas partes, os neurônios, não o serem (pois a todo instante morrem
neurônios sem aviso prévio, e mudam os limiares de ativação das sinapses; uma única
dose de bebida alcoólica altera toda a ecologia cerebral). Ocorre que apenas em parte
são as funções cerebrais dedicadas e localizadas. Para McCulloch, é a catálise
circunstancial de “informação” relevante em um dado conjunto de neurônios o que leva
169
William Ross Ashby (Inglaterra; 1903-1972); ver ASHBY (1952, 1956), e a coletânea de seus artigos em
CONANT, Roger C. (ed.). Mechanisms of Intelligence: Ashby’s Writings on Cybernetics. Seaside (Califórnia):
Intersystems Publications, 1981.
170
Ver McCULLOCH, Warren S. “A Heterarchy of Values Determined by the Topology of Nervous Nets”. Bulletin
of Mathematical Biophysics, vol. 7, n. 2, pp. 89-93, 1945; reimpresso em McCULLOCH, op. cit. (nota 108, p. 34),
pp. 40-45, 1965.
50
alguns deles a “comandar” os demais, numa atividade coordenada. O cérebro seria
assim dotado de “redundância de comando potencial”:171 a importância de cada
neurônio é, potencialmente, a mesma; a cada momento, é a capacidade de um dado
neurônio de contribuir para o resultado global o que lhe confere proeminência em
relação aos demais.
Já Ashby compreendeu o cérebro como um gigantesco repositório de variedade (ou seja,
diversidade),172 a contrapartida da redundância que Shannon identificara nos códigos de
comunicação. É preciso variedade para que possa haver seleção (escolha); o campo de
possibilidades em que um autômato pode perseguir sua auto-regulação é assim
delimitado pelo volume de variedade disponível. Nos termos dos princípios cibernéticos
clássicos, a comunicação está associada à circulação da variedade (de modo a fazer uso
da riqueza das informações, ou seja, da própria variedade) enquanto que o controle
requer sua redução por seleção. Um autômato que se proponha a controlar variações no
ambiente deve, pois, possuir suficiente variedade interna para poder representá-las:
“todo regulador ... tem de modelar aquilo que ele regula ... Não pode mais haver
dúvida quanto a se o cérebro modela o seu ambiente: ele está obrigado a isso”.173
Seguindo a trilha aberta por von Neumann, Ashby concebe a complexidade como
pertencente a uma classe de estruturas definíveis apenas em parte, e apenas de modo
estatístico;174 ele procurou então identificar quais seriam as suas propriedades gerais,
que fossem também universais.
171
Ver “Agatha Tyche: Of Nervous Nets – the Lucky Reckoners”. In: Mechanisation of Thought Processes:
Proceedings of the Symposium of the National Physical Laboratory, Teddington, England, Nov. 24-27, 1958.
London: Her Majesty’s Stationery Office, vol. 2, pp. 611-634, 1959. Reimpresso em: McCULLOCH, op. cit. (nota
108, p. 34), pp. 203-215, 1965.
172
Ashby não emprega o termo “diversidade”, mas seu conceito de variedade tem esse sentido (como veremos
adiante).
173
CONANT, ASHBY, 1981 (1970): 214.
174
“... tão logo é feita uma estimativa quantitativa a respeito de quanta informação tem de chegar ao observador, se
é para que ele compreenda plenamente o que está diante de si em um organismo humano, nós imediatamente nos
damos conta de que a quantidade de informação tende a exceder todos os limites do que é possível, mesmo com as
mais generosas tolerâncias. Parece claro que quando nós abandonamos os velhos métodos de pensamento a respeito
do cérebro, com suas excessivas e grosseiras simplificações, e alternamos para os métodos modernos, nós devemos
tomar a sério a questão da quantidade de informação, pelo medo de desperdiçar tempo tentando o impossível”
(ASHBY, 1981d (1967): 19).
51
Ele já vinha se dedicando também ao desenvolvimento do conceito de homeostasis de
Cannon:175 a capacidade de auto-regulação de um organismo que lhe permite se manter
em equilíbrio dinâmico pela retenção de determinadas variáveis vitais em faixas de
oscilação aceitáveis, ainda que as influências do ambiente as pressionem para fora
dessas regiões de conforto. Cannon já havia antevisto a aplicação deste conceito para
além da fisiologia, chegando até às sociedades: para um sistema simples como o
pêndulo, todo o equilíbrio se resume a uma situação única; ao contrário, quanto mais
englobante for o sistema (ou seja, mais complexo), mais vasta será a sua região de
homeostasis.
Asbhy chega então a uma lei da variedade indispensável (law of requisite variety),176
segundo o que quanto maior a variedade das ações internas de controle disponíveis a um
sistema, maior será a variedade de perturbações que ele estará apto a compensar, logo
mais preparado ele estará para lidar com contingências imprevistas. Dito de outra forma,
para que um sistema seja mantido numa variedade muito pequena de estados, mesmo
estando submetido a uma variedade muito grande de agressões, é preciso uma grande
variedade nas respostas possíveis. Nos termos de Ashby, “somente a variedade [ao
nível das partes] pode dar cabo da variedade [ao nível do todo, de modo a assegurar a
integridade do sistema]”.177
Ashby compreende a organização de um sistema como o conjunto das regras internas
que lhe conduzem a novos estados a partir de seu estado presente, e ele o vê como
“sistema isolado” desde que tais regras sejam imutáveis (ou seja, imunes à ação do
ambiente). Todo e qualquer sistema isolado seria auto-regulável por homeostasis, desde
que conte com suficiente variedade interna e disponha do tempo necessário à produção
de sua adaptação. Sempre que alguma mudança no ambiente trouxer uma ou mais
dentre as variáveis vitais para fora da região de conforto, o sistema irá se reconfigurar
mudando suas conexões internas ao acaso, até lograr atingir (na prática, selecionar, em
função das regras internas) um estado satisfatório, ou viável (não necessariamente –
aliás, pouco provavelmente – um estado ótimo).
175
176
177
Walter Bradford Cannon (EUA; 1871-1945); ver The Wisdom of the Body. New York: W. W. Norton, 1932.
ASHBY, 1981b (1958).
ASHBY, 1956: 207.
52
Para Ashby, a evolução (compreendida como adaptação ao ambiente por aumento de
complexidade) não ocorre de forma alguma por acidente; muito pelo contrário, ela seria
um processo inevitável, por razões estritamente matemáticas.
Toda adaptação de um sistema ao ambiente requer, evidentemente, que suas variáveis
vitais permaneçam restritas a um subconjunto muito pequeno, relativamente ao espaço
de possibilidades a que elas poderiam, em princípio, acessar. Seja um conjunto S de
estados internos e um conjunto I de inputs; a cada mudança de estado, o novo estado
para o autômato é determinado pela conjugação do estado interno (feedback) com o
input, por meio da função f que corresponde às regras de organização do autômato. Na
terminologia da teoria dos conjuntos, diz-se que f é a projeção do conjunto produzido
por I x S em S.
Dito de outra forma, um autômato é uma aplicação matemática de um conjunto finito
sobre si mesmo, de forma recursiva – o que necessariamente converge para um
subconjunto deste;178 em sistemas dotados de gigantescos volumes de variedade interna
como os organismos, cada equilíbrio alcançado representa uma redução do número total
de estados disponíveis ao sistema, porém esse total ainda continua vasto o bastante para
muitas novas adaptações frente a mudanças futuras no ambiente.
Partindo deste raciocínio, Ashby torna-se o pioneiro em um outro avanço que viria a se
mostrar decisivo, ao recusar a solução de compromisso da “mecanicidade teleológica”
dos primeiros ciberneticistas e partir para dissociar explicitamente o ponto de vista do
observador externo do ponto de vista do sistema, uma vez que, para ele, a evolução não
se dá por acidente (acaso) nem liberdade (intencionalidade na escolha) – o que há é
somente adaptação, fatal, matematicamente universal:
Uma máquina ou um animal comportou-se de uma dada maneira em um dado momento porque a
sua natureza física e química não lhe permitiu nenhuma outra ação. Nós nunca utilizaremos a
explicação segundo o que a ação é realizada porque mais tarde ela será vantajosa para o animal ...
178
A menos que a função f seja bijetora, uma classe de funções que é a minoria dentre o universo de funções
existentes; além disso, quanto maior o tamanho do conjunto S menor será, proporcionalmente, o número de funções
bijetoras a ele aplicáveis.
53
porque nosso propósito é o de explicar a origem do comportamento que aparenta estar
teleologicamente direcionado.179
As pessoas seriam então portadoras de percepções ilusórias acerca de coisas como
“liberdade”, “acidente” ou “intencionalidade”, uma vez que se encontram aferradas à
sua posição de observadores externos, e não alcançam o ponto de vista do sistema sobre
si próprio. Assim, é a Ashby que se deve esse pioneirismo, que viria a ser aprofundado
como afirmação da autonomia dos sistemas por von Foerster,180 Maturana e Varela.
Ashby foi também provavelmente o primeiro a empregar a expressão “autoorganização” em um artigo científico, em 1947,181 ainda que para atribuí-la às
aparências percebidas por um observador. Em 1962, ele enuncia sua demonstração
matemática para esta impossibilidade de qualquer auto-organização:182 para que a
função f que define a organização de um sistema possa ser internamente modificada, ela
teria que ou poder mudar a si própria ou tornar-se função do estado s do sistema;
matematicamente falando, ambas as proposições são absurdas. Seria plausível que a
função f fosse regida por uma função f ’ imutável e externa ao sistema – mas, então, já
não se trataria de uma auto-organização.
Para Ashby, as faculdades superiores da mente, e mesmo as propriedades biológicas dos
seres vivos, nada têm que lhes seja próprio e que não possa ser reproduzido em uma
máquina:
... todo sistema dinâmico gera sua própria forma de vida inteligente ... o grau de adaptação e de
complexidade a que este [qualquer] organismo pode chegar é limitado apenas pelo tamanho do
sistema dinâmico como um todo, e pelo tempo em que lhe for permitido avançar rumo ao
equilíbrio. ... todo sistema dinâmico determinado isolado desenvolverá organismos que estarão
adaptados a seus ambientes ... não há dificuldade, em princípio, quanto a se desenvolver
organismos sintéticos tão complexos e tão inteligentes quanto se deseje. Porém nós devemos
atentar a duas qualificações fundamentais: primeiro, suas inteligências serão uma adaptação a, e
uma especialização relativamente a, seus ambientes específicos, sem nenhuma implicação de
validade quanto a qualquer outro ambiente, tal como o nosso; segundo, suas inteligências serão
direcionadas à manutenção de suas variáveis essenciais próprias dentro de limites ... nós podemos
nos dar conta hoje de que a geração de sistemas artificiais com “vida” e “inteligência” não é
apenas simples – é inevitável, desde que os requerimentos básicos sejam satisfeitos. Estes não são
179
180
ASHBY, 1952: 9-10.
Heinz von Foerster (EUA; n. Förster, Áustria (Áustria-Hungria); 1911-2002);
181
Ver “Principles of the Self-organizing Dynamic System”. Journal of General Psychology, vol. 37, pp. 125-128,
1947.
182
ASHBY, 1981c (1962).
54
carbono, água, ou qualquer outra entidade material, mas a persistência, ao longo do tempo, da ação
de qualquer operador que seja tanto inalterável quanto de cardinalidade unitária.183 184
McCulloch, preso à crença na universalidade da máquina de Turing, perseguia na
matéria uma modelagem da mente, tendo a Matemática por ferramenta; Ashby persegue
idéias como “mente”, “vida”, “corpo”, “espírito” ou “inteligência” sob forma de
matemática pura, vista como estrutura universal. McCulloch abstraía a máquina lógica
(mente) da máquina física (cérebro); Ashby abstrai toda forma de toda matéria.
Ashby radicaliza e torna explícito aquilo que os ciberneticistas da primeira fase
contemporizavam pelo recurso à teleologia: a única definição racional para o
comportamento de qualquer autômato, natural ou artificial, passa a ser a aplicação
matemática de uma função que, para todo par estado do sistema – estado do ambiente
(todo par feedback – input), seleciona um dentre os estados possíveis para o novo estado
do sistema. Em suma, Ashby opõe a verdade (da Matemática) à aparência (as
percepções ilusórias de quem se situa na posição de observador dos demais sistemas).
Suas proposições iriam, por muito tempo, exercer considerável influência;185 diante da
força de seus argumentos, fundada na Matemática, aos demais pareceu precisarem optar
entre a aquiescência e a irracionalidade.186
Ordem a partir do ruído
Em 1958, von Foerster187 funda o Laboratório de Biologia Computacional da
Universidade de Illinois, o primeiro centro de pesquisas próprio com que a Cibernética
183
No original, single-valued. Um operador inalterável e de cardinalidade igual a 1 é a aplicação matemática
clássica, em que para todo elemento do conjunto domínio (ou argumento) corresponde necessariamente um único
elemento dentre os que compõem o conjunto imagem (ou função).
184
Ibid., pp. 67-69, 73.
185
No apêndice B de KLIR, George J. (ed.). Applied General Systems Research: Recent Developments and Trends.
New York: Plenum Press, 1978, constam os resultados de um levantamento, entre pesquisadores de sistemas, quanto
aos autores em quem se referenciaram. Ashby, disparado o mais citado, influenciou quase o dobro de pesquisadores
do segundo em número de menções, Bertalanffy (Karl Ludwig von Bertalanffy; Canadá; n. Áustria (ÁustriaHungria); 1901-1972), e quase o triplo de Wiener, que aparece em terceiro lugar; cf. KLIR, 1991: 36.
186
“O procedimento de Ashby ... não lhe deixa [ao leitor] outra escolha do que entre a submissão e o irracional”
(DUPUY, 1995 (1994): 207).
187
Ver as coletâneas de artigos Observing Systems. Seaside (Califórnia): Intersystems Publications, 1981; e
Understanding Understanding: Essays on Cybernetics and Cognition. New York: Springer-Verlag, 2003. Ver
55
pôde contar,188 e que funcionaria até 1975. A marca do Laboratório, e que caracteriza a
Cibernética em sua segunda fase pela manutenção do mecanicismo com abandono do
materialismo, foi a busca de isomorfismos que levassem a princípios matemáticos
universais,189 e em 1959 von Foerster chega a seu princípio de ordem a partir do ruído
(order from noise).190
O magnetismo foi percebido por von Foerster como um princípio organizador próprio à
Natureza e propício à extração de tais isomorfismos. Para desempenhar o papel das
“partes” que iriam interagir em seu autômato, ele aplicou sobre as faces de cubos feito
de material leve finas folhas quadradas transversalmente magnetizadas, ou seja, com os
pólos norte e sul correspondendo a suas duas faces (Figura 2).
Figura 2: Os cubos magnetizados de von Foerster; extraído de von FOERSTER (1984a (1960): 15).
Os cubos magnetizados eram então colocados dentro de uma caixa, que era fechada,
sacudida e novamente aberta. Caso a disposição de polaridade em todas as faces fosse a
mesma (por exemplo, norte para o lado de fora do cubo e sul para dentro), todos os
cubos repelir-se-iam, resultando em nenhuma ordem e máxima desordem; caso metade
dos cubos seguisse esse padrão, e para a outra metade fosse invertida a polaridade de
apenas uma das faces, os cubos se aglomerariam aos pares, havendo no sistema um
também Final Report: Analysis and Synthesis of Cognitive Processes and Systems. Urbana (Illinois): Biological
Computer Laboratory, Department of Electrical Engineering, University of Illinois, 1969.
188
Wiener conduzia suas pesquisas no MIT em Cambridge (Massachusetts), McCulloch no Departamento de
Psiquiatria da Universidade de Illinois em Chicago, e von Neumann no Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de Princeton (Nova Jérsei); Wiener e von Neumann, por razões distintas, se haviam desligado do grupo
em 1951.
189
Dentre as conferências publicadas pelo Laboratório estão: YOVITS, Marshall C., CAMERON, Scott (eds.). Selforganizing Systems. New York: Pergamon Press, 1960; von FOERSTER, Heinz, ZOPF Jr., George W. (eds.).
Principles of Self-organization: The Illinois Symposium on Theory and Technology of Self-organizing Systems. New
York: Pergamon Press, 1962; e YOVITS, JACOBI, George T., GOLDSTEIN, Gordon D. (eds.). Self-organizing
Systems. Washington DC: Spartan Books, 1962.
190
von FOERSTER, 1984a (1960). Desenvolvimentos posteriores do princípio de ordem a partir do ruído
conduziram ao conceito que hoje é conhecido como ressonância estocástica, ou princípio de noise induced order.
56
acréscimo de ordem que atinge seus limites, não sendo possível qualquer novo
acréscimo (Figura 3).
Figura 3: Os cubos, nas duas primeiras experiências; extraído de von FOERSTER (1984a (1960): 20).
Contudo, ao utilizar cubos em que três faces unidas pelo mesmo vértice tinham igual
disposição de polaridade, enquanto que para as demais três faces (vértice oposto) essa
polaridade era invertida, constatava-se ao abrir a caixa que os cubos haviam formado
um sofisticado arranjo ordenado, evocativo de uma obra de arte; a cada vez que
novamente se fechava e sacudia a caixa, o arranjo tornava-se ainda mais sofisticado
(Figura 4).
Figura 4: Os cubos, antes e depois da agitação; extraído de von FOERSTER (1984a (1960): 18-19).
57
A conjunção de um princípio organizador (o magnetismo) com o acaso oriundo do
ambiente (a energia da sacudidela) foi percebida como correspondendo à criação de
ordens até então inexistentes, e cada vez mais complexas. O sistema de von Foerster
atendia aos critérios de Ashby: ele era isolado, porque as regras de interação entre os
cubos não mudavam; ele encontrava ao acaso sua nova configuração; ele evoluía por
seleção a partir da variedade, porque o equilíbrio para o qual o sistema convergia após
cada sacudidela dava-se pela seleção de novas relações estáveis entre os cubos; o
resultado dessa seleção era base para o salto evolutivo seguinte (feedback); e colocavase em relevo o papel do ambiente (a sacudidela) para que houvesse evolução: “a
pergunta que eu gostaria de ver respondida é: Quanta ordem pode o nosso sistema
assimilar a partir de seu ambiente, se de todo alguma?” 191
Para responder a essa pergunta, von Foerster empregou a noção de redundância de
Shannon como uma medida do grau de ordem existente no sistema, e relativo à máxima
desordem (incerteza a respeito da organização do sistema) verificável caso o sistema
fosse totalmente desorganizado. Isso é expresso pela fórmula
H = Hmax ( 1 − R ) ,
em que H é
a incerteza ou desordem e Hmax a máxima desordem possível, compreendidas como
“quantidades de informação” (entropia de Shannon), um rearranjo da fórmula original
de Shannon
R =1−
H
Hmax
a partir de que se destaca a redundância R.
Assim, um sistema só pode ser auto-organizante (ou seja, em que haja aumento de R) de
modo permanente desde que seja capaz de, continuamente, absorver energia do
ambiente sob forma de aumento da informação internamente contida (aumentando
também tanto H como Hmax ; reparar a identidade entre energia e informação, fruto da
“universalidade” presumida para a noção de entropia). Desta forma, o valor de R (que
aqui é uma medida da proporção entre ordem e desordem) poderá ir se aproximando da
unidade mas sem chegar a ela.
191
Ibid., p. 5.
58
Trata-se de um raciocínio de base matemática, bem ao estilo de Ashby. Uma vez que tal
sistema contraria a segunda lei da termodinâmica, von Foerster postula que:
Não existe tal coisa como sistemas auto-organizantes.192 ... A despeito ... da inexistência de
sistemas auto-organizantes, eu proponho continuarmos a utilizar o termo “sistema autoorganizante”, desde que estejamos cônscios do fato que este termo se torna sem significado, a
menos que o sistema esteja em contato estreito com um ambiente, possuidor de energia e ordem
disponíveis, com o qual nosso sistema esteja em um estado de perpétua interação, de tal modo que
ele dê conta, de alguma forma, de “viver” às expensas desse ambiente.193
Dito de outra forma, um sistema auto-organizante necessita importar perpetuamente
energia de seu ambiente, com o conjunto composto por sistema e ambiente continuando
a ser entrópico, de modo a cumprir o disposto na segunda lei; como isso não é realista
(pois não haverá ninguém a sacudir a caixa indefinidamente), não existiriam sistemas
realmente auto-organizantes (em consonância com a posição de Ashby). O que o
sistema de cubos permite demonstrar é tão-somente o princípio de ordem a partir do
ruído, demonstração que impulsionaria pesquisas posteriores como as de Atlan194 (que
servirão de fundamento para as nossas propostas nesse trabalho). Em sua época, porém,
isso passou largamente menosprezado. Na consideração de Dupuy:
O lugar na História da segunda Cibernética [a capitaneada por von Foerster] ... é modesto, em
contraste com a importância dos conceitos por ela desenvolvidos e com a influência que estes
conceitos estavam por exercer ... Um de seus tópicos capitais de pesquisa, a auto-organização em
sistemas complexos, conduziu a feitos fascinantes ... Seu azar foi ter sido ofuscada pela
inteligência artificial e pelo cognitivismo, que estiveram na crista da onda naqueles mesmos anos.
Porque von Foerster e seus colaboradores tiveram a audácia – ou talvez apenas porque eles foram
tolos o suficiente – de adotar, por sua vez, o rótulo de “Cibernética”, que nesse meio tempo havia
adquirido uma reputação inferior, os líderes desses movimentos rivais, então em processo de
afirmação de sua primazia, lhes desqualificaram como amadores e chatos.195
192
193
Ibid., p. 2.
Ibid., p. 4.
194
Posteriormente, Atlan asseverou que apenas o caso dos cubos que se agrupam aos pares (Figura 3) é regido por
um princípio de ordem a partir do ruído (aumento da redundância R); a auto-organização ilustrada na Figura 4 seria
regida por um princípio de complexidade a partir do ruído (aumento da quantidade de informação H); o que faltou a
von Foerster foi precisamente a noção de que a complexidade está não no real em si (os cubos), mas nos olhos
daquele que observa o real (como abordaremos adiante); cf. ATLAN, 1992a (1979): 71-73.
195
DUPUY, 2000 (1994): 10-11.
59
O computador por ferramenta
No início da década de 60, a cisão já indicada do movimento cibernético – entre o
desvelamento da máquina na mente, e a construção da mente na máquina – está feita.
O campo da inteligência artificial nasce sob inspiração da tradição anglo-americana da
filosofia analítica196 que, como meio de legitimar a subjetividade humana, preconiza que
deva ser buscada uma caracterização científica dos estados psicológicos a partir
daquelas que seriam as suas causas físicas, numa “naturalização” da psique.
Segundo Dupuy, esta não era a orientação original da Cibernética, em que se
considerava ser a subjetividade psíquica desprovida de realidade objetiva – visão que
Ashby procurou levar às últimas conseqüências. Na comunicação entre os neurônios,
não haveria qualquer conteúdo simbólico, não haveria referência a significados. Tudo o
que se possa compreender por “subjetividade” já se encontraria incorporado à matéria,
desde que organizada em sistemas de suficiente complexidade.
Havia, contudo, identidades profundas: a máquina de Turing, a mente compreendida
como lógica, e a lógica compreendida como cálculo mecânico (ou seja, computação).
Como forma de compatibilizar o mundo semântico dos símbolos e seus significados
com o mundo dos neurônios e seus processos causais físicos, os propositores da
inteligência artificial advogaram a existência de um nível intermediário, o da sintaxe. A
mente foi vista como uma máquina de Turing portadora de uma lógica interna própria,
composta por regras de sintaxe (ou seja, um programa) análogas às linguagens formais
de lógica desenvolvidas para computadores; por sua vez, as faculdades superiores da
mente foram vistas como o resultado de operações sintáticas de inferência realizadas de
forma recursiva (como recursivos são os algoritmos de computador). Em suma, já não
se tratava mais do conjunto das computações diretas nos neurônios de seus próprios
estados, mas de uma computação de símbolos que corresponderiam a conteúdos mentais
– o que implica compreender a cognição como a construção de representações do real.
196
Esta ascendência é analisada em profundidade em DUPUY (1995 (1994)).
60
Este entendimento do conhecimento como a construção de representações predomina
amplamente nas sociedades contemporâneas: supõe-se que a realidade seja a mesma
para todos, logo o conhecimento que reside dentro das pessoas dar-se-ia pela captação e
processamento de informações oriundas da realidade para a produção de uma
representação desta. Pode-se desta forma falar em um “bom” ou “mau” conhecimento,
de acordo com seu grau de fidedignidade para com a realidade.
Uma tal concepção quanto à cognição tornou-se predominante após Kant,197 que
postulou ser a razão dotada de formas puras (isto é, anteriores à experiência dos
sentidos), por exemplo as faculdades que regem a apreensão quanto a espaço, tempo ou
quantidade – pelo que a razão passou a ser compreendida como um formato único para
todo e qualquer conhecimento. Tais formas puras seriam inatas, e universais a todos os
seres humanos (a razão lhes seria transcendental); os conhecimentos que a razão
formata, estes sim, dependeriam da experiência. Kant buscava enfatizar a natureza
subjetiva de todo conhecimento; os apóstolos do ideal de objetividade, contudo, vieram
a valer-se dessas suas idéias para supor que a razão propiciaria uma “regulação” da
objetividade (uma formatação a partir de premissas universais), que poderia ser
alcançada pela confrontação dos conhecimentos produzidos pela experiência subjetiva
de cada um.198
Com a inteligência artificial surgia, nas ciências cognitivas, o cognitivismo ortodoxo199
(também denominado “linha psicológica” ou “linha simbólica” dessas ciências), em que
se buscou uma simulação direta em computadores, sem a necessidade de guardar
qualquer correspondência com os processos biológicos reais que propiciam a cognição,
de faculdades como o raciocínio abstrato e a formação de conceitos (pensamento), a
tomada de decisão (intencionalidade) e a comunicação pela linguagem, compreendidas
como manipulação simbólica de conteúdos de conhecimento. Trata-se de uma
abordagem top-down, em que os resultados finais desejados são estabelecidos de
antemão, e em que todo processamento é serial (seqüencial).
197
Ref. hist.: Kritik der reinen Vernunft. Riga (Letônia): J. F. Hartknoch, 1871.
198
Para uma exploração das identidades entre a inteligência artificial e o pensamento de Kant, ver PROUST, Joëlle.
“L’intelligence artificielle comme philosophie”. Le Débat, n. 47, pp. 88-102, nov.-dec. 1987.
199
Como um marco inicial, ver NEWELL, SIMON, op. cit. (nota 37, p. 14), 1961. Para uma abordagem
contemporânea, ver CHALMERS, David. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. New York:
Oxford University Press, 1996.
61
Os
resultados
dessa
empreitada
mostraram-se
pífios,
devido
aos
volumes
incomensuráveis de informação contextual que a “inteligência” em computadores
pareceu requerer para poder mostrar-se proveitosa, e que se mostraram impraticáveis de
serem providos.200 Como alternativa, o foco foi direcionado para os chamados sistemas
especialistas, subconjuntos da “inteligência” voltados à solução de problemas
específicos, de modo a circunscrever a um corpo de conhecimentos (os de um
especialista em um dado domínio) a simulação dos processos genéricos de manipulação
simbólica do conhecimento. Assim, pressupôs-se como não-relevante o papel
desempenhado pela base genérica de experiências e conhecimentos do ser humano em
seu processo de tomada de decisões técnicas, com o que estes esforços, tampouco,
lograram atingir os resultados esperados.201
Na mesma época em que surgia a inteligência artificial, Rosenblatt 202 prosseguiria o
trabalho pioneiro de McCulloch em redes neurais, dando forma àquele que viria a ser o
outro ramo das ciências cognitivas, o conexionismo203 (também denominado “linha
biológica” dessas ciências), em que se busca a simulação dos processos cognitivos a
partir de suas faculdades básicas, como o reconhecimento de formas e de padrões no
ambiente, a capacidade de generalização quanto aos padrões distinguidos, e as
memórias associativas – em suma, a partir da percepção. Trata-se assim de uma
abordagem bottom-up de natureza heurística, em que os resultados finais são a princípio
imprevisíveis e em que as simulações buscam uma reprodução dos arranjos físicos de
cérebros reais, inspirada na capacidade destes de prosseguir operando com informações
incompletas e em meio ao ruído.
200
Para críticas históricas do cognitivismo ortodoxo, ver DREYFUS, Hubert. What Computers Can’t Do: The Limits
of Artificial Intelligence. 2nd. ed. New York: Harper and Row, 1979. 1st. ed., 1972; e What Computers still Can’t
Do: A Critique of Artificial Reason. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1992.
201
Ver DUTTA, Soumitra. “Strategies for Implementing Knowledge-Based Systems”. IEEE Transactions on
Engineering Management, vol. 44, n. 1, pp. 79-90, 1997; e McDERMOTT, Richard. “Why Information Technology
Inspired but Cannot Deliver Knowledge Management”. California Management Review, vol. 41, n. 4, pp. 103-117,
1999.
202
Frank Rosenblatt (EUA; 1928-1969).
203
Para uma antologia dos textos fundadores do conexionismo, ver ANDERSON, James A., ROSENFELD, Edward
(eds.). Neurocomputing: Foundations of Research. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1988.
62
Mais recentemente, uma compatibilidade no seio das ciências cognitivas204 entre o
cognitivismo ortodoxo e o conexionismo tem avançado com predominância deste
último, seja pela articulação de modelos híbridos ou, de forma mais freqüente, pela
busca de comprovação quanto a que os padrões de regras lógicas que regem a
manipulação simbólica de conhecimentos são, ao invés de pré-dados, também
fenômenos emergentes nas redes neurais.205 No que tange aos computadores, é também
plausível o surgimento futuro de máquinas híbridas que conjuguem processamento
paralelo (superior em reconhecimento de padrões, e em filtragem e tratamento de
grandes volumes de dados) e processamento seqüencial convencional (superior em
computação numérica).
Nesse percurso, coube a Rosenblatt no final dos anos 50 criticar, no procedimento de
McCulloch e Pitts, terem as faculdades superiores da mente sido tomadas como ponto
de partida (para delas se deduzir uma estrutura ótima para a rede) ao invés de
chegada.206 Ele então dotou suas redes, em que os neurônios foram arranjados em
camadas, de estruturas imprecisas voltadas a aprimoramentos sucessivos, num
procedimento exploratório inspirado em Ashby e condizente com os preceitos de von
Neumann.207 Em 1969, porém, um livro pelos principais nomes da inteligência artificial
à época208 logrou desmoralizar a perspectiva das redes neurais implicando o fim dos
financiamentos para pesquisas (à exceção das conduzidas na então União Soviética),
que somente foram retomadas nos anos 80, então com avanços notáveis nos modos de
interação dos neurônios em camadas para maior aprendizagem, e sobretudo pelo
emprego (intuído trinta anos antes por McCulloch)209 de técnicas associativas para
204
Para visões históricas das ciências cognitivas, ver DUPUY (1995 (1994)); OSHERSON, Daniel N., SMITH,
Edward E. (eds.). An Invitation to Cognitive Science. 2nd. ed. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1995. 1st. ed.,
1990; e GARDNER, Howard E. The Mind’s New Science: A History of the Cognitive Revolution. New York: Basic
Books, 1985; (para este último, cf. nota 275, p. 88).
205
206
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 75.
Cf. ibid., 72.
207
Ver ROSENBLATT, Frank. Principles of Neurodynamics: Perceptrons and the Theory of Brain Mechanisms.
2nd. ed. Washington DC: Spartan Books, 1962. 1st. ed. Buffalo: Cornell Aeronautical Laboratory, 1961.
208
Ver MINSKY, Marvin, PAPPERT, Seymour. Perceptrons. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1969; cf.
DUPUY, 1995 (1994): 73.
209
Remeter à p. 38; cf. DUPUY, 1995 (1994): 63.
63
armazenagem e recuperação de conteúdos de memória inspiradas nas pesquisas, em
física de sistemas desordenados, com os chamados vidros de spin.210
Também na década de 60, desenvolvimentos a partir das idéias originais de von
Neumann para as redes de autômatos celulares resultaram nas redes booleanas
aleatórias, em mais uma etapa na busca de uma maior identidade com os arranjos
físicos dos organismos vivos. Essas redes são compostas por autômatos celulares do
tipo binário (em que as células apresentam somente dois estados, ligado ou desligado),
numa simplificação que, além de proporcionar maior viabilidade (os autômatos de von
Neumann haviam sido projetados para transitar entre 29 estados), abriu espaço para que
fossem introduzidas maiores complexidades nas interações entre os autômatos.
Kauffman,211 para simular os processos de progressiva diferenciação celular nos seres
vivos pelas diferentes possibilidades de recombinação entre os genes, utilizou-se de
redes booleanas aleatórias em que cada célula é conectada a um mesmo número de
células aleatoriamente designadas, e em que a função booleana que converte as entradas
em uma saída é atribuída, a cada célula, também de modo aleatório.
O acaso, como perturbação oriunda do ambiente, já integrava os modelos de McCulloch
e Wiener, como vimos. A Ashby é devida a compreensão da existência de uma
aleatoriedade interna, em autômatos que preservam sua homeostasis experimentando ao
acaso – o que von Foerster procurou comprovar por meio de seus cubos. No final da
década de 60, Kauffman (de quem McCulloch fora professor) descobriu que redes de
autômatos booleanos que se reconfiguram ao acaso geram um comportamento coletivo
cíclico estável, ao convergir para um subconjunto relativamente pequeno do conjunto de
estados possíveis;212 na França, pesquisas subseqüentes por Atlan chegaram aos mesmos
210
Em que o marco inicial é HOPFIELD, John J. “Neural Networks and Physical Systems with Emergent Collective
Computational Properties”. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 79 (Apr.), pp. 25542558, 1982. Reimpresso em: ANDERSON, ROSENFELD, op. cit. (nota 203, p. 62), pp. 460-464, 1988.
211
Stuart Alan Kauffman (EUA; 1939–); ver The Origins of Order: Self-organization and Selection in Evolution.
New York: Oxford University Press, 1993; e At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-organization
and Complexity. New York: Oxford University Press, 1995.
212
Ver “Metabolic Stability and Epigenesis in Randomly Constructed Genetic Nets”. Journal of Theoretical Biology,
vol. 22, pp. 437-467, 1969; “Behaviour of Randomly Constructed Genetic Nets: Binary Element Nets”. In:
WADDINGTON, Conrad H. (ed.). Towards a Theoretical Biology. Chicago (Illinois): Aldine Publishing, vol. 3
(Drafts), pp. 18-37, 1970; e “Behaviour of Randomly Constructed Genetic Nets: Continuous Element Nets”. In:
WADDINGTON, op. cit. (supra), pp. 38-44. Para o desenvolvimento da noção de emergência em redes de autômatos
celulares, ver “Emergent Properties in Random Complex Automata”. Physica D, vol. 10, pp. 145-156, 1984. Para
uma síntese dessa trajetória e a postulação do princípio da auto-organização genética como motor da evolução
64
resultados.213 Com surpresa e deslumbramento,214 percebeu-se haver auto-organização
na matemática sob forma de algoritmos de que consistem as simulações em
computadores, pelo que a corrente (computacional) predominante em Teoria da
Complexidade considera essa descoberta o marco zero dessa teoria; para seus
seguidores, esta haveria de ser a nova matemática que, finalmente, lograria descrever as
emergências sob forma de descontinuidade presentes na Natureza – as transcendências
do quantitativo em qualitativo.
Havia muito que uma tal nova linguagem formal era buscada, porém a partir da
matemática clássica descritiva do contínuo (a novidade representada pela Teoria da
Complexidade foi passar a buscá-la nos computadores). A mais emblemática
empreitada nesse sentido foi a Teoria das Catástrofes, concebida por Thom215 como a
herdeira das proposições de fins do século XIX por Poincaré216 quanto à topologia dos
sistemas dinâmicos, ou seja, ela versa sobre uma classificação dos “comportamentos”
das representações espaciais (leia-se geométricas) das equações matemáticas descritivas
dos comportamentos desses sistemas; ela é assim a teoria de um meta-comportamento
dos sistemas. Voltada à descrição das transições possíveis (as catástrofes) entre seus
regimes de comportamento estável, ela discorre sobre estados meta-estáveis para os
sistemas; de outro modo: haveria uma natureza qualitativa para a solução das equações.
A Teoria das Catástrofes surgiu assim como uma “teoria geral das formas e das
mudanças de forma”, que seria indicada à descrição dos fenômenos que regem a
ocorrência, na Natureza, de formas “estáveis” porém (ou porque) recorrentemente
demarcadas por um mesmo tipo de descontinuidades: formas meta-estáveis. Exemplos
seriam: a linguagem, a transmissão de características hereditárias por gerações, a
estabilidade dos navios no mar e seus modos de emborcamento, o colapso de pontes, o
comportamento de luta-ou-fuga dos animais, desastres ecológicos ou motins em prisões.
biológica, ver “Antichaos and adaptation”. Scientific American, vol. 265, n. 2, pp. 64-70, 1991; e KAUFFMAN, op.
cit. (nota 211, p. 64), 1993.
213
Para uma recapitulação desses trabalhos, ver FOGELMAN-SOULIÉ, Françoise (dir.). Les théories de la
complexité. Autour de l’oeuvre de Henri Atlan. Paris: Éditions du Seuil, 1991.
214
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 208.
215
René Frédéric Thom (França; 1923-2002); ver Stabilité structurelle et morphogenèse. Reading (Massachusetts):
W. A. Benjamin, 1972.
216
Jules Henri Poincaré (França; 1854-1912); ref. hist: “Analysis situs”. Journal de l’École Polytechnique (2ème
série), vol. 1, pp. 1-121, 1895.
65
Thom chegou a mapear sete catástrofes elementares217 como compondo o domínio para
o comportamento meta-estável dos fenômenos governados por até quatro variáveis
independentes. A empreitada não teve, porém, vida longa: a Teoria das Catástrofes veio
a ser sucessivamente desacreditada nos meios acadêmicos e, por fim, pelo próprio
Thom.
No mesmo princípio dos anos 70 em que surgia a Teoria das Catástrofes, Zadeh218
formalizou um dos primeiros arcabouços que implicava recusa do instrumental clássico,
a lógica nebulosa,219 uma tentativa de superação da lógica clássica criada por
Aristóteles220 e elevada à fundamento da Ciência, segundo a qual uma dada asserção
somente pode ser “falsa” ou “verdadeira”, não podendo ser “parcialmente falsa” ou
“parcialmente verdadeira”. A lógica nebulosa propõe uma representação, sob forma de
valores numéricos (logo, processáveis em computadores) situados entre 0 e 1 (ou seja,
entre falso e verdadeiro) dessas situações intermediárias, que na linguagem cotidiana
são expressas por qualificadores tais como “muito”, “pouco”, “mais ou menos”, “por
volta de”, “quase” etc., bem como por palavras que comportam significado sem
expressar quantidade (por exemplo, “perto” – mas, quão perto?). Tais representações
são aproximativas ao invés de exatas (o exato corresponde a um caso limite), e assim a
lógica nebulosa busca retratar aquela que parece ser a lógica de funcionamento do
cérebro humano (a lógica nebulosa veio a contribuir com muitos dos já mencionados
progressos em redes neurais), em que a seleção e a associação de informações se dão
por processos “nebulosos” – que por isso mesmo são denominados intuitivos.221
217
218
Denominadas dobra, ruga, cauda-de-andorinha, borboleta e umbigos elíptico, hiperbólico e parabólico.
Lofti Asker Zadeh (EUA; n. Azerbaijão (União Soviética); 1921–).
219
ZADEH, 1973. Já uma década antes Zadeh havia proposto a teoria dos conjuntos nebulosos; ver “Fuzzy Sets”.
Information and Control, vol. 8, n. 3, pp. 338-353, 1965.
220
Aristóteles de Estagira (384-322 AC).
221
“De fato, a ampla presença da nebulosidade nos processos do pensamento humano indica que muita da lógica
por detrás do raciocínio humano é ... uma lógica com verdades nebulosas, conexões nebulosas, e regras de
inferência nebulosas. A nosso ver, é esta lógica nebulosa, e ainda não bem-compreendida, que desempenha um papel
fundamental naquela que pode bem ser uma das mais importantes facetas do pensar humano, a saber, a habilidade
para resumir informação – para extrair dos agrupamentos de massas de dados que atingem o cérebro humano
aqueles, e somente aqueles, subgrupos que são relevantes ao desempenho da tarefa à mão” (ZADEH, 1973: 28-29).
66
Para propósitos históricos, importa-nos registrar a denúncia por Zadeh da insuficiência
dos instrumentos clássicos, um anúncio do tipo de matemática a ser praticado pelos
adeptos da Teoria da Complexidade:
Dada a tradição profundamente entrincheirada do pensamento científico, que iguala a
compreensão de um fenômeno à habilidade para analisá-lo em termos quantitativos, certamente
desafina todo aquele que questiona a tendência crescente de analisar-se o comportamento dos
sistemas humanos como se estes fossem sistemas mecanicistas, governados por equações de
diferença, diferenciais, ou integrais ... Essencialmente, nossa discordância é a de que as técnicas
quantitativas convencionais para análise dos sistemas são intrinsecamente inadequadas à lida com
os sistemas humanos ou, por extensão, com quaisquer sistemas cuja complexidade seja
comparável à dos sistemas humanos.222
Zadeh pondera que, quanto maior a complexidade em um sistema, menor nossa
capacidade de descrever seu comportamento em termos que sejam, a um tempo,
precisos e relevantes, por se mostrarem estas características mutuamente excludentes,
com o que...
... análises quantitativas precisas do comportamento dos sistemas humanos provavelmente não têm
muita relevância para os problemas sociais, políticos, econômicos e de outras naturezas do mundo
real, que envolvem seres humanos como indivíduos ou em grupos.223
Um tal raciocínio é correlato ao de Klir,224 que distingue duas dimensões de
complexidade, uma descritiva (proporcional ao volume de informação necessário à
descrição do sistema; trata-se assim de precisão) e outra relativa à incerteza
(proporcional ao volume de informação necessário ao tratamento das incertezas
associadas; trata-se portanto de relevância), em que a redução de complexidade em uma
das dimensões implica aumento na outra.225
222
223
224
Ibid., p. 28.
Loc. cit.
Cf. KLIR, 1991: 115-121. George Jiri Klir (EUA; n. Tchecoslováquia; 1932–).
225
“A relação entre relevância (ou credibilidade) e os dois tipos de complexidades dos modelos sistêmicos ... até
aqui não foi bem compreendida. Em geral, nós tentamos construir modelos altamente relevantes (críveis) que sejam
simples (em um sentido descritivo) e, se possível, nós desejamos evitar a incerteza. Infelizmente, estes objetivos
conflitam entre si de um modo um tanto quanto complicado. Ainda que a incerteza seja indesejável quando
considerada sozinha, ela se torna bastante valiosa quando considerada juntamente com a complexidade descritiva e
a relevância. Ela é a única mercadoria que pode ser negociada em troca de uma redução da complexidade em um
modelo, um aumento em sua relevância, ou ambos” (KLIR, 1991: 119). Ver também KLIR, George J. “Is there more
to Uncertainty than some Probability Theorists might have us Believe?” International Journal of General Systems,
vol. 15, n. 4, pp. 347-378, 1989; para um estudo compreensivo, ver KLIR, FOLGER, Tina A. Fuzzy Sets,
Uncertainty, and Information. Englewood Cliffs (Nova Jérsei): Prentice-Hall, 1988.
67
Com as descobertas em autômatos booleanos, pôde-se constatar que Ashby esteve
percorrendo a trilha correta para a complexidade e a auto-organização. Afirmava ele que
sistemas compostos de um grande número de elementos em interação convergem, de
maneira espontânea, rumo a padrões estáveis e mais complexos de organização, em que
prevalece o ponto de vista do autômato sobre si mesmo – precisamente como viriam a
descobrir Kauffman e Atlan.226
O que faltou a Ashby foi abdicar da matemática pura, ou em prol de modos
comunicativos para descrição da complexidade observada como o único objetivo
alcançável (como Maturana e Varela e como Atlan lograram fazer, conforme veremos),
ou ainda em prol de simulações em computadores em busca de um desvendamento da
complexidade real (como empreitaram Kauffman e os demais propositores da corrente
“computacional” predominante em Teoria da Complexidade).227 Na análise de Dupuy:
Ashby levou tão a sério a questão da complexidade que, em certo sentido, toda a sua vida foi
dedicada a extrair sua quintessência ... sua influência foi, direta ou indiretamente, considerável
sobre aqueles de nossos contemporâneos, e eles são muitos, que se depararam em seu caminho
com as idéias da Cibernética ... O problema de Ashby é que, sem querer, ele administrou a prova
de que axiomatizar a complexidade é fazê-la desaparecer como fumaça.228 ... Ashby terminou por
elevar uma definição matemática e sua relativa arbitrariedade à condição de princípio universal da
Natureza.229
Fazia-se necessário edificar uma nova ciência que versasse sobre a autonomia dos
sistemas, uma “ciência das populações”, fossem de moléculas, autômatos celulares,
organismos ou pessoas. É assim que surge a corrente a que denominamos
“computacional” em Teoria da Complexidade, na esteira das simulações que haviam
logrado produzir alguma auto-organização, e na expectativa de que a expansão
exponencial das capacidades de processamento dos computadores viesse a propiciar
também uma reprodução da auto-organização existente na Natureza. Com efeito, nestas
simulações a aplicação de regras simples sobre partes que interagem em rede faz
emergir padrões sofisticados de comportamento; inferiu-se disso que seriam os
226
227
228
229
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 208.
Cujo centro de referência é o Santa Fe Institute, fundado em 1984 em Santa Fe no Novo México.
Ibid., p. 201.
Ibid., p. 203.
68
computadores a ferramenta para o desvendamento das regras simples que se supõe
fazerem emergir os padrões sofisticados de comportamento da Natureza.
Esta vertente da Teoria da Complexidade surge também na exigência de que fosse
abandonado um dos pilares históricos sobre os quais Física se pôde edificar na
Matemática: a função de estado, posto que nada indica que os fenômenos coletivos a
que se denomina “complexos” sejam integráveis;230 dito de outra forma, eles não têm
como ser descritos pelos meios matemáticos clássicos porque estes pressupõem
continuidade. A nascente ciência debruça-se sobre sistemas em que seus modos de
organização não são manifestações passivas e contínuas do arbítrio de leis mecânicas
sobre as partes, mas descontinuidades resultantes dos potenciais de auto-organização do
sistema, compreendido como uma rede em que há criação e renovação de ordem por
aproveitamento de desordens. Em outras palavras: a dinâmica de interação entre as
partes faz emergir, ao nível do sistema como um todo, comportamentos que
transcendem a reunião dos comportamentos das partes, e que configuram respostas do
sistema frente às mudanças no ambiente. Trata-se, portanto, de sistemas capazes de
produzir sua própria evolução (auto-organizar-se), pelo que se considerou a Teoria da
Complexidade como apropriada à descrição dos fenômenos biológicos, psíquicos e
sociais.
Era assim negado o reducionismo que subordina o todo às partes bem como os
substancialismos ou holismos que preconizam o oposto (vitalismo, dualismo), todos
eles recusados em prol de uma co-determinação entre o todo e as partes, uma
causalidade de acoplamento: a auto-organização corresponderia à emergência de
descontinuidades em uma rede complexa (ou seja, ao nível do todo) que,
simultaneamente, determinam e são determinadas pela dinâmica das interações entre os
elementos dessa rede (ou seja, ao nível das partes). A existência de tais
descontinuidades, ou passagens do quantitativo ao qualitativo, implica uma
multinivelaridade – a compreensão da realidade como composta por múltiplos níveis de
complexidade, sucessivamente acoplados. Não será possível reduzir-se a biologia
molecular à química, a biologia celular à biologia molecular, a psicologia à
neurofisiologia, a sociologia à psicologia...
230
Cf. ibid., p. 210.
69
Como havia intuído von Neumann, tamanhas mudanças de fundo ontológico vieram
consolidar outras mudanças de caráter metodológico que já se encontravam em curso.
Posto que a Matemática mostrava-se insuficiente para a descrição de inúmeros
fenômenos complexos, o advento dos computadores foi percebido como a chave para a
tão aguardada superação dessas limitações, por meio da simulação de possibilidades. O
objeto em estudo deixava de ser a Natureza e tornava-se o próprio modelo matemático,
a especulação a respeito da realidade cuja qualidade se deseja estimar. Da dedução
passa-se à heurística, da comprovação empírica em campo ou laboratório passa-se à
simulação em computadores, e da matemática fundada em equações diferenciais,
voltada à explicação dos sistemas e à predição de seu comportamento futuro, passa-se a
uma matemática fundada em algoritmos recursivos, voltada à exploração dos
comportamentos possíveis dos sistemas para seleção daquelas tentativas compatíveis
com os resultados desejados.231
Havia porém pelo menos dois sonoros senões, que passaram (ainda passam) largamente
despercebidos: as redes neurais e os autômatos celulares, disposições em paralelo (tal
como os neurônios reais) de grandes volumes de pequenas unidades localmente
interconectadas, não têm como ser modeladas em computadores, visto serem estes
máquinas seqüenciais; neles, elas podem apenas ser simuladas232 (como exemplo de
confusão, usa-se falar agent-based “modeling” ao invés da forma correta agent-based
simulation). O advento de computadores de processamento paralelo maciço em
arquiteturas que congreguem vários milhões de processadores simples (máquinas que
ainda estão por ser tornadas viáveis) poderá vir enfim a permitir modelagens como a das
redes de neurônios que compõem o cérebro – mas é ainda prematuro afirmar-se isto.
Além disso, nessas simulações o número de estados possíveis para a rede (o máximo
número possível de atratores, ou seja, de resultados possíveis) tende a ser muito menor
231
Um artigo da época, em que se defende essa necessidade da Ciência de, ao lidar com sistemas complexos,
deslocar sua metodologia do analógico/contínuo para o digital/discreto, é BARTO, Andrew G. “Discrete and
Continuous Models”. International Journal of General Systems, vol. 4, n. 3, pp. 163-177, 1978. Reimpresso em:
KLIR, 1991, pp. 377-396.
232
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 66, 78.
70
que o número de configurações possíveis da rede (ou seja, das “causas” que conduzem
aos resultados):233
... se os fatos observáveis são atratores estáveis em uma rede, está claro que milhares e milhares de
diferentes estruturas de conexão na rede, isto é, diferentes modelos dinâmicos, produzirão atratores
idênticos. Esta é uma situação obviamente desagradável para o teórico: a dificuldade não é a de
achar um bom modelo ou teoria de predição, mas a de escolher entre milhares de diferentes, e nãoredundantes, teorias igualmente boas de predição dos mesmos fatos observáveis.234
Em outras palavras, um resultado válido em uma simulação de um sistema complexo
não permite determinar que comportamento do sistema o acarreta – porque este mesmo
resultado pode ser obtido por meio de simulações diferentes e não-redundantes. É
portanto possível elaborar-se múltiplas teorias concorrentes a respeito do fenômeno
estudado, embaraço que os cientistas denominam subdeterminação das teorias pelos
dados.235
Por estas duas razões, não é possível considerar-se uma simulação que se apresenta
factível como uma reprodução (uma modelagem) da realidade, mas tão somente como
um insumo a mais para a composição de uma compreensão qualitativa do fenômeno
estudado. Tampouco há sentido em se fazer referência aos assim chamados “modelos”
da Teoria da Complexidade – simulações – pelos adjetivos da terminologia ortodoxa,
233
Cf. ATLAN, 1989: 251, 1992c: 57-58, 1998: 27-28. Seja um autômato com N células, s valores possíveis para o
estado de cada célula, e p valores possíveis para o estado de cada conexão entre duas células; o número de estados
2
possíveis para o autômato é s N , enquanto que o número de configurações possíveis é p N . Assim, um autômato de
apenas cinco células em que cada célula possa estar a cada momento ligada ou desligada (dois estados) e em que cada
conexão possa estar a cada momento ativada ou desativada (também dois estados) pode convergir para 2 5 = 32
estados possíveis; no entanto, o número de configurações possíveis é 252 ≅ 10 7 , ou seja, cerca de dez milhões. Se
cada conexão puder estar ativada, desativada ou inexistente (três estados), o que seria mais plausível (por exemplo
para uma simulação da atividade cerebral), o número de configurações sobe para cerca de 1012 , ou um trilhão; a
atribuição de pesos diferenciados para as conexões (ainda mais estados) forneceria simulações mais plausíveis de
sistemas reais. Um modo de se reduzir a subdeterminação seria considerar um número maior de estados para cada
célula, de modo a aproximar o número de resultados possíveis (estados da rede) do número de “causas” possíveis
(configurações); o número de estados possíveis pode ser levado para 35 = 243 (três estados), 4 5 = 512 (quatro) e
sucessivamente. Isso claramente não resolve o problema, além de tornar a simulação menos plausível para o cientista
que busca uma reprodução de um fenômeno natural. Um outro modo, que aumentaria a plausibilidade, seria associar
os resultados aos transientes (a seqüência de estados que o sistema percorre até estabilizar-se no atrator); porém,
como toda seqüência origina-se em um estado inicial, novamente haverá apenas 32 transientes possíveis para cada
resultado possível (considerando-se dois estados para as células), 243 (três estados) e assim por diante, o que também
não resolve o problema. Ainda outro modo seria coletar evidência empírica a respeito da estrutura da rede, tornando
irreais diversas dentre as possíveis configurações, mas isso tampouco seria suficiente para eliminar a
subdeterminação: o leitor deve atentar para o fato de que os cálculos ilustrados acima pressupõem um autômato
composto por apenas cinco células; as dificuldades tornam-se incomensuravelmente maiores se forem considerados,
por exemplo, os bilhões de neurônios existentes no cérebro.
234
235
ATLAN, 1998: 27-28.
Cf. ATLAN, 1989: 250-253, 1992c: 56-60, 1998: 27-29.
71
como verificáveis, ou válidos; é mais apropriado fazer-se uso da linguagem cotidiana de
modo a qualificá-los como bons ou ruins, melhores ou piores, mais ou menos críveis.236
A vertente predominante em Teoria da Complexidade (e que aqui denominamos
“computacional”) foi portanto erigida a partir de uma excitante expectativa, ao início da
década de 70, quanto a que o vertiginoso avanço tecnológico dos computadores
propiciaria simulações cada vez mais poderosas, a ponto de finalmente desvendar as
“poucas regras simples” que supostamente governam o comportamento dos sistemas
complexos (da mesma forma como uma faixa específica de regras em álgebra booleana
dota uma rede de autômatos celulares de um rico comportamento auto-organizante). Em
retrospectiva (três décadas e meia, e muitos milhões de dólares depois), ainda não se
sabe ao certo sequer se tais regras realmente existem, que dirá identificá-las.237
Tal é a dicotomia com que os cientistas têm se defrontado ao longo das últimas décadas:
a ciência de viés reducionista, malgrado toda sua elegante bagagem de comprovação
empírica, vem se revelando cada vez mais insuficiente para produzir teorias plausíveis,
e isso até mesmo na Física;238 já a Teoria da Complexidade atende à ontologia ao suprir
essa lacuna da plausibilidade, porém sua metodologia é ainda incompleta, e seu sucesso
em computadores está ainda distante de se refletir em descrições acabadas para a
complexidade do mundo real – se é que essa tarefa poderá um dia ser cumprida.
Em suma, entendemos não ser possível (pelo menos não até o momento) afirmar que a
auto-organização (noção fulcral da Teoria da Complexidade) corresponda a uma “lei”
da Natureza. Para tanto seria necessária uma reprodução do real que, como vimos, ainda
não foi obtida, e talvez jamais o seja: a incorporação da desordem à explicação
científica torna inviável qualquer reprodução da realidade, uma vez que esta precisaria
comportar também uma reprodução da desordem existente – tarefa que se mostra
impossível. De modo direto: uma realidade que se afigura complexa não tem como ser
reduzida a algo mais simples que ela mesma.
236
237
238
Cf. ORESKES, SHRADER-FRECHETTE, BELITZ, 1994.
Ver, por exemplo, HORGAN, John. “From Complexity to Perplexity”. Scientific American, vol. 272, n. 6, 1995.
Cf., por exemplo, ANDERSON, 1972.
72
Auto-organização (bem como emergência, multinivelaridade, e mesmo complexidade)
acabam assim antes como elementos de um discurso a respeito do real que como
propriedades intrínsecas dele. Como já se havia dado com os ciberneticistas,239 trata-se
de um discurso que expressa o melhor, o mais plausível entendimento do real a que se
pode chegar, de um modo consistente com as circunstâncias e os conhecimentos
vigentes.
Entendemos que, na medida em que as aplicações práticas originadas da vertente
“computacional” da Teoria da Complexidade sejam vistas como acréscimos ao
repertório de conhecimentos técnicos concernentes a casos particulares (e que, mesmo
aí, não sejam tomadas por modelos da realidade), tais contribuições poderão agregar seu
justo valor. Na medida porém em que elas sejam vistas como meio para domesticação
da complexidade (que é como tais ferramentas têm, repetidas vezes, sido anunciadas no
mundo das empresas e dos negócios), tais esperanças frustrar-se-ão. A incerteza não é
uma dentre as componentes de uma realidade que sem ela mostrar-se-ia ordenada, ela é
um modo imanente da realidade.
Complexidade aos olhos do observador
A Teoria da Complexidade comporta, não obstante, uma outra vertente, a que nos
filiamos, e que aqui denominamos “epistemológica”. Trata-se da legitimação da
incerteza que toda complexidade comporta, e da disposição ao diálogo para com ela.
Trata-se de buscar situar a complexidade não na realidade em si, mas no entendimento
que se tem dela, ou seja, trata-se de um deslocamento da ênfase, da ontologia (referente
à realidade) para a epistemologia (referente ao entendimento da realidade, e à interação
para com ela). Trata-se de estabelecer teorias que articulem aquilo que conhecemos com
aquilo que desconhecemos; teorias cujo objetivo não seja a previsão ou a completa
explicação, mas o avanço da compreensão (o que se traduz, sim, em implicações
práticas: no que tange às organizações, isso abre horizontes para uma atuação mais
compatível com a natureza precípua destas); teorias cujo critério de adequação (pois
não cabe qualquer “validação”) científica seja sua credibilidade, ou seja, sua aceitação,
239
O melhor que, à sua época, puderam produzir Ashby e von Foerster foram discursos que continham salvaguardas
quanto à Matemática (Ashby) e à segunda lei da termodinâmica (von Foerster).
73
condicionada à sua plausibilidade, pelas comunidades científicas (teremos oportunidade
de retornar a isso).
As raízes para uma epistemologia nesses termos remontam a trabalhos de autores da
tradição francesa em História e Filosofia da Ciência,240 que recusaram por simplista a
concepção de que o avanço da Ciência dá-se por circunstâncias felizes de acumulação
de evidências puramente empíricas, e trouxeram para relevo o caráter social de toda
atividade científica.
No seio do movimento cibernético, é exatamente essa atitude de buscar a complexidade
mais nos olhos do observador dos sistemas do que neles mesmos o que distingue a
chamada “segunda Cibernética” capitaneada por Ashby e von Foerster do movimento
original fundado por Wiener e McCulloch. Coube a von Foerster cunhar o seu lema: a
Cibernética de segunda ordem (como a chamavam) deixa de ser uma “cibernética dos
sistemas observados” (observed systems) para tornar-se uma “cibernética dos sistemas
observantes” (observing systems, um jogo de palavras que sugere também “observação
de sistemas”). Ashby, devotado a tornar seu trabalho inteligível ao público leigo,
recorria com freqüência a exemplos extraídos do cotidiano, como o do açougueiro, a
que ele recorreu para realçar o papel do observador: se se considera a complexidade de
um sistema pelo prisma do volume de informação necessário para descrevê-lo, então de
acordo com o senso comum o cérebro seria complexo e uma bicicleta simples. Do ponto
de vista de um açougueiro, porém, o cérebro de uma rês é simples; já uma bicicleta que
constitua a única pista para a elucidação de um crime, após exaustivamente estudada,
pode vir a apresentar uma quantidade muito grande de detalhes relevantes:
[Eu escolhi] medir o grau de “complexidade” pela quantidade de informação requerida para
descrever-se o sistema vital. Para o neurofisiologista o cérebro, como um feltro de fibras e uma
sopa de enzimas, é sem dúvida complexo; igualmente, a transmissão de uma descrição detalhada
sua demandaria bastante tempo. Para um açougueiro o cérebro é simples, na medida em que ele
tem de distingui-lo de cerca de apenas trinta outras “carnes”, então não mais que log230, ou seja,
em torno de 5 bits, estão em consideração. Este método assumidamente torna a complexidade de
um sistema puramente relativa a um dado observador; é recusada a tentativa de se medir uma
complexidade absoluta, ou intrínseca; porém a aceitação da complexidade como algo aos olhos do
observador é, na minha opinião, o único modo factível de se medir a complexidade.241
240
De que foram expoentes, dentre outros, Gaston Bachelard (França; 1884-1962), Alexandre Koyré (França; n.
Rússia; 1892-1964) e Georges Canguilhem (França; 1904-1995).
241
ASHBY, 1973: 1.
74
O encerramento, em 1975, das atividades do Laboratório de Biologia Computacional
capitaneado por von Foerster foi já um sinal de que a complexidade como
“epistemologia experimental” (a expressão é de McCulloch) não seria bem-vinda em
muitas comunidades acadêmicas. Quem encampou a tarefa de transformá-la
explicitamente em epistemologia foi Morin242 na França, novamente frente a resistências
e indiferença.
Entendemos que seja sob este prisma da complexidade vista como discurso a respeito
do real que deva ser considerada a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine,243 que
logra
explicar
como
auto-organização
experimentalmente observado por Bénard
244
o
até
então
enigmático
245
ao final do século XIX,
fenômeno
pelo qual, sob
certas condições, um grande número de moléculas amplia seu raio de interdependência
(ou seja, as moléculas interagem) convergindo para um comportamento coletivo
ordenado:
Essa é uma propriedade que todo mundo sempre aceitou nos sistemas vivos, mas em sistemas nãovivos ela era totalmente inesperada ... O aspecto espantoso é que cada molécula sabe de algum
modo o que as outras moléculas farão num mesmo momento, através de distâncias relativamente
macroscópicas. Estes experimentos provêm exemplos de modos pelos quais as moléculas se
comunicam.246
... nós sempre pensáramos que as moléculas apenas poderiam “sentir” a presença umas das outras
se elas estivessem “se tocando” (isto é, se seus campos de força individuais estivessem em
interação); assim, cada molécula poderia “conhecer” apenas as suas vizinhas. Porém, quando o
sistema aguenta uma instabilidade e advém uma organização espaço-temporal, então o
242
Edgar Morin (França; n. Edgar Nahoun; 1921–); ver Le paradigme perdu. La nature humaine. Paris: Éditions du
Seuil, 1973; La méthode. Paris: Éditions du Seuil, vol. 1 (La nature de la nature), 1977, vol. 2 (La vie de la vie), 1980,
vol. 3 (La connaissance de la connaissance), 1986, vol. 4 (Les idées. Leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur
organisation), 1991; Science avec conscience. Paris: Arthème Fayard, 1982; e Introduction à la pensée complexe.
Paris: ESF, 1990. Ver também “Self and autos”. In: ZELENY, Milan (ed.). Autopoeisis: A Theory of Living
Organization. New York: North-Holland, pp. 128-137, 1981; e “The concept of System and the Paradigm of
Complexity”. In: MARUYAMA, Magoroh (ed.). Context and Complexity: Cultivating Contextual Understanding.
New York: Spinger-Verlag, pp. 125-136, 1992.
243
Ilya Romanovich Prigogine (Bélgica; n. Rússia; 1917-2003); ver PRIGOGINE, STENGERS, Isabelle. La
nouvelle alliance. Métamorphoses de la science. Paris: Gallimard, 1979. Ver também NICOLIS, Gregoire,
PRIGOGINE. Self-organization in Nonequilibrium Systems: From Dissipative Structures to Order through
Fluctuations. New York: John Wiley and Sons, 1977; From Being to Becoming: Time and Complexity in the Physical
Sciences. San Francisco (Califórnia): W. H. Freeman, 1980; e NICOLIS, PRIGOGINE. Exploring Complexity: An
Introduction. New York: W. H. Freeman, 1989.
244
Henri Bénard (França; 1874-1939).
245
Bénard defendeu sua tese junto ao Collège de France em 15 de março de 1901; ref. hist.: “Les tourbillons
cellulaires dans une nappe liquide propageant de la chaleur par convection en régime permanent”. Annales de Chimie
et de Physique (7ème. série), tome 23, pp. 62144ff., 1901.
246
PRIGOGINE, 1983: 90.
75
comportamento coerente implica que cada molécula “sente” o que bilhões de outras estão
fazendo!247
Também sob esse prisma devem ser consideradas duas outras teorias (ambas inspiradas
na segunda Cibernética) que particularmente nos interessam por colocar em relevo o
papel do observador no entendimento da complexidade, e que tomamos por referencial
para a presente tese em Teoria das Organizações. Essas teorias são autopoiesis de
Maturana e Varela e a complexidade a partir do ruído de Atlan, que examinaremos em
seqüência.
247
PRIGOGINE, 1991 (1985): 484.
76
3. A teoria da autopoiesis de Maturana e Varela
A imagem da Cibernética que chega até nossos dias é a de ciência-mãe dos
computadores, estas máquinas que vêm a cada dia trazendo transformações profundas
para a vida das pessoas. Mas a Cibernética foi também decisiva para o advento (dentre
outros campos científicos) da biologia molecular que, valendo-se de uma metáfora de
inspiração cibernética (a de “programa” ou “código” genético) e de todo um vocabulário
correlato (informação, mensagem, organização), pôde construir a noção de que a vida se
desenvolve por seleção entre alternativas previamente codificadas – qual num programa
de computador – nas infinitas combinações e recombinações do DNA. A evolução nos
organismos vivos apenas aparenta estar direcionada, quando ocorreria que cada novo
estado seria apenas uma (selecionada por contingência) dentre as possíveis
continuidades para uma seqüência de estados anteriores, de acordo com uma
programação prévia.
Para que pudesse escapar a conotações de caráter vitalista, a biologia molecular
nascente necessitava desvencilhar-se o quanto antes da noção de teleologia (o
comportamento propositalmente, ainda que não intencionalmente, orientado a
objetivos), adotada pela Cibernética por conveniência,248 e que dava margem a que a
evolução biológica fosse compreendida como direcionada a estados de complexidade
sempre crescente. Assim, em 1958 Pittendrigh249 introduziu o conceito de teleonomia
(do grego telos: fim, resultado + nomos: lei, uso, costume; lei que acarreta resultados),
que expressa o cumprimento de objetivos por um modo não proposital, uma vez que
todas as possibilidades de evolução já estariam previamente dadas:250
... os físicos e engenheiros ao construir autômatos sintonizáveis por fins santificaram o uso do
jargão teleológico. Parece infeliz que o termo “teleologia” devesse ser ressuscitado e, tal como
penso, abusado dessa forma. A ancestral confusão do biólogo seria mais completamente removida
se todos os sistemas direcionados a fins fossem descritos por algum outro termo, como
“teleonômicos” ... Toda organização é relativa, e direcionada a fins ... [ou seja,] dizer que os seres
vivos são organizados é dizer que eles estão adaptados ... Uma organização é um estado
improvável em um Universo contingente ... Organização implica ... um conteúdo de informação. O
conceito de informação como entropia negativa tem sido desenvolvido em anos recentes por
248
249
Remeter à p. 31.
PITTENDRIGH, 1958. Colin Stephenson Pittendrigh (EUA; n. Inglaterra; 1918-1996).
250
Para o desenvolvimento desta noção pela biologia molecular, ver MONOD, Jacques L. Le hasard et la necessité.
Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne. Paris: Éditions du Seuil, 1970; e JACOB, François. La
logique du vivant, une histoire de l’hérédité. Paris: Gallimard, 1970.
77
físicos e engenheiros envolvidos com redes de comunicações e com o projeto de autômatos. ... A
idéia de informação é a idéia das instruções necessárias à especificação de uma configuração
particular em meio a um conjunto de muitas configurações, que são, fisicamente, igualmente
prováveis. ... Como pôde o conteúdo de informação do genótipo acumular, face à tendência
universal de maximização da entropia? A única resposta abrangente a esta questão é aquela
delineada por Darwin: seleção natural. Seleção ... é um dispositivo para geração de um alto grau
de improbabilidade.251 (ênfases nossas)
Como vimos, foi somente com a Cibernética, por analogia com o comportamento dos
seres vivos, que surgiu a noção até então inédita de máquinas organizadas
(autômatos).252 Com a posterior formulação de conceitos como o de “programação
genética”, o que se constata é uma inversão de princípios: de concepções tecnológicas
para as máquinas inspiradas na Biologia, se havia passado à transposição para os seres
vivos – entendidos como “máquinas naturais” – de noções cibernéticas concebidas
para... máquinas.253
Uma tal transposição que preconizava: que a reprodução das características hereditárias
ocorreria pela replicação do DNA; que essas características expressam-se em modos
particulares de atividade das células por meio da síntese de proteínas enzimáticas (uma
vez que estas catalisam de forma seletiva as reações metabólicas, direcionando assim a
atividade celular); por sua vez, que essa síntese seria uma conversão da informação
codificada no DNA sob forma de seqüências de bases nucleotídicas para um outro
formato, as seqüências de ácidos aminados – que determinam as propriedades
enzimáticas das proteínas. Em suma, esta explicação representa uma redução da vida a
um conjunto de processos físico-químicos (as interações moleculares), numa aparente
vitória tardia do projeto maior da Cibernética, o de construir uma ciência da mente
(agora, transmutada em uma ciência da vida) lastreada em princípios universais
aplicáveis a máquinas, naturais ou artificiais.
Por trás da aparente robustez desta explicação, entretanto, persistem lacunas nãorespondidas: como surgiu o primeiro programa? Como pode um programa (o genético)
necessitar dos resultados de sua leitura e execução (as proteínas enzimáticas)
exatamente para que possa ocorrer sua leitura e execução? E quanto sentido de fato há
251
252
PITTENDRIGH, 1958: 394-397.
Remeter à p. 32.
253
Cf. ATLAN, 1992a (1979): 17-26. Atlan revisa detidamente a trajetória da ascenção da biologia molecular por
meio desta inversão dos princípios cibernéticos.
78
no recurso ao artifício de atribuir-se a evolução (por exemplo, das bactérias aos seres
humanos) a uma improbabilidade estatística em um Universo supostamente entrópico
(no sentido de Boltzmann que, como vimos, não é seguro), apenas como escape à
afirmação de que o processo evolutivo de mutação-seleção conduz necessariamente ao
aumento da complexidade? Tanto Maturana e Varela quanto Atlan trariam respostas
inovadoras a essas perguntas.
Distinguindo Biologia de Física
Maturana, em fins da década de 50, toma parte na equipe de McCulloch de estudos em
neurofisiologia (sobre a percepção visual nas rãs).254 No início da década de 60 ele se dá
conta, a partir de reflexões quanto ao caráter circular e continuamente recursivo do
funcionamento da célula (pelo que o DNA especifica as proteínas do citoplasma ao
passo que as proteínas do citoplasma participam da síntese do DNA), de que a vida
caracteriza-se pela natureza fechada sobre si mesma de seus modos organizacionais. Em
meados desta mesma década, ao estudar a percepção das cores em pombos, Maturana
constata que o sistema nervoso pode chegar a uma percepção idêntica mesmo quando
estimulado por situações bastante diversas do espectro luminoso. Ele então compreende
que inconsistente é não a observação feita, mas a visão predominante quanto ao que seja
o processo da cognição. Em lugar da noção tradicional segundo o que o sistema nervoso
acessa sensorialmente a realidade objetiva externa de modo a construir uma
representação desta que lhe permita responder de modo apropriado às circunstâncias,
Maturana passa a ver o sistema nervoso como redefinindo suas correlações internas de
uma forma que é desencadeada por eventos no ambiente, mas que é consumada em
referenciais estritamente internos, ou seja, de modo organizacionalmente fechado.255
Em 1968, Maturana está no Laboratório de Biologia Computacional de von Foerster,
que o convida a escrever, para um simpósio de antropologia dedicado à cognição, um
254
Ver MATURANA, Humberto, LETTVIN, Jerome Y., McCULLOCH, Warren S., PITTS, Walter H. “Anatomy
and Physiology of Vision in the Frog (Rana Pipiens)”. Journal of General Physiology, vol. 43, n. 6, pp. 129-175,
1960; e LETTVIN, MATURANA, McCULLOCH, PITTS. “What the Frog's Eye Tells the Frog's Brain”.
Proceedings of the Institute of Radio Engineers, vol. 47, n. 11, pp. 1940-1951, 1959.
255
Ver MATURANA, Humberto, URIBE, Gabriela, FRENK, Samy G. “A Biological Theory of Relativistic Color
Coding in the Primate Retina: A Discussion of Nervous System Closure with Reference to Certain Visual Effects”.
Archivos de Biología y Medicina Experimentales, vol. 1, pp. 1-30, 1968.
79
artigo256 com foco nos aspectos neurofisiológicos envolvidos, em que Maturana pela
primeira vez dispõe que discorrer sobre processos metabólicos da célula como
organizacionalmente fechados e discorrer sobre correlações entre estados neuronais do
sistema nervoso como o operar de um sistema organizacionalmente fechado são uma
mesma e única coisa: a instância última organizacionalmente fechada é o ser vivo. O
que se entende por “cognição” é o próprio operar do ser vivo na conservação de sua
organização fechada, de que decorre uma congruência (internamente determinada) dele
para com as suas circunstâncias ambientais (externas): viver é conhecer, conhecer é
viver. Qualquer teoria sobre a cognição deve antes de tudo ser uma teoria sobre a vida, e
tal teoria não havia ainda sido concebida. Torna-se cada vez mais claro para Maturana
que seria necessário repensar por completo as fundações sobre as quais a Biologia se
assenta – desde a seleção natural darwiniana até o papel do DNA; em 1970, no Chile,
tem lugar a empreitada de edificação da teoria da autopoiesis,257 por Maturana258 e seu
ex-aluno Varela.259
256
MATURANA, 1980a (1969).
257
MATURANA, 1980a (1969), 1975 (1974), 1978, 1980b, 1980c, 1981, 2002 (1999); VARELA, MATURANA,
1972; MATURANA, VARELA, 1980 (1972), 1987 (1984); VARELA, MATURANA, URIBE, 1974; VARELA,
1979, 1981a, 1981b, 1984a (1981), 1984b, 1996; GOGUEN, VARELA, 1979.
258
Ver também “What Is it to See?”. Archivos de Biologia y Medicina Experimentales, vol. 16, pp. 255-269, 1983;
“The Biological Foundation of Self Consciousness and the Physical Domain of Existence”. In: CAIANIELLO,
Eduardo R. (ed.). Physics of Cognitive Processes. Singapore: World Scientific, pp. 324-379, 1987. Reimpresso
revisado em: “Ontology of Observing: The Biological Foundations of Self Consciousness and the Physical Domain of
Existence”. In: DONALDSON, Rodney E. (ed.). Texts in Cybernetic Theory: An in-depth Exploration of the
Thought of Humberto Maturana, William T. Powers and Ernst von Glasersfeld. Felton (Califórnia): American
Society for Cybernetics, pp. 4-52 (conference workbook), 1988; “Everything Is Said by an Observer”. In:
THOMPSON, William I. Gaia, a Way of Knowing: Political Implications of the New Biology. Hudson (Nova
Iorque): Lindisfarne Press, pp. 11-36, 1987; “Reality: The Search for Objectivity or the Quest for a Compelling
Argument”. The Irish Journal of Psychology, vol. 9, n. 1, pp. 25-82, 1988. Reimpresso em: LESER, Norbert,
SEIFERT, Josef, PLITZNER, Klaus (eds.). Die Gedankenwelt Sir Karl Poppers. Kritischer Rationalismus im Dialog.
Heidelberg (Alemanha): Universitätsverlag Carl Winter Verlag, pp. 282-357, 1991; Biologia de la Cognición y
Epistemologia. Temuco (Chile): Ediciones Universidad de la Frontera, 1990; El Sentido de lo Humano. Santiago de
Chile: Dolmen Ediciones, 1991; Desde la Biologia a la Psicologia. Viña del Mar (Chile): Fundación Synthesis, 1993;
“Biology of Self Consciousness”. In: TRAUTTEUR, Giuseppe (ed.). Consciousness: Distinction and Reflection.
Napoli (Itália): Editorial Bibliopolis, pp. 145-175, 1995; La realidad. ¿Objetiva o Construida? Barcelona: Anthropos,
vol. 1 (Fundamentos Biológicos de la Realidad), 1995, vol. 2 (Fundamentos Biológicos del Conocimiento), 1996; e
MATURANA, MPODOZIS, Jorge, LETELIER, Juan C. “Brain, Language and the Origin of Human Mental
Functions”. Biological Research, vol. 28, n. 1, pp. 15-26, 1995.
259
Ver também VARELA, THOMPSON, Evan T., ROSCH, Eleanor. The Embodied Mind: Cognitive Science and
Human Experience. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1991; e WEBER, Andreas, VARELA. “Life after Kant:
Natural Purposes and the Autopoietic Foundation of Individuality”. Phenomenology and the Cognitive Sciences, vol.
1, n. 2, pp. 97-125, 2002.
80
No melhor espírito ciberneticista, a “máquina lógica” que eles supõem ser o ser vivo (e
que chamarão sua organização) é abstraída das eventuais disposições materiais em que
se encontra passível de estar corporificada (o que eles chamarão suas estruturas):
Se alguém está para instanciar (construir ou implementar) uma dada máquina, então, ao escolher
os componentes, levará em conta apenas aquelas propriedades de componentes que satisfaçam os
interrelacionamentos desejados, e levem à seqüência de transições esperada que constitui a
descrição da máquina. Isso equivale a dizer que os componentes podem ser quaisquer, desde que
seus possíveis interrelacionamentos satisfaçam um dado conjunto de condições desejadas.260
Ao contrário da Física, em que a materialidade é implicada per se, e todos os conceitos
são dela derivados e sem ela não fazem sentido, em Biologia a materialidade é também
implicada, porém irrelevante no que diz respeito à caracterização dos fenômenos. Não
há nada que possa ser chamado de “vida” ao nível das moléculas (materialidade:
estrutura); ela apenas emerge ao nível da célula enquanto unidade autônoma (uma
organização). A Biologia requer uma descrição dual: estrutura e organização são
componentes distintos nas explicações biológicas, ainda que reciprocamente
complementares. Somente será possível caracterizar uma dada classe de sistemas (por
meio de uma organização que se supõe comum a todos eles) se for possível reconhecer
uma tal lógica como consubstanciada em alguma estrutura física concreta;
reciprocamente, não será possível apontar nenhuma estrutura em particular como
determinante para a fenomenologia decorrente do seu operar, a menos que se possa
caracterizar esta estrutura em termos da classe de sistemas a que pertença. Ainda que
consorciados, organização e estrutura não têm como ser reduzidos um ao outro:
Na medida em que a análise física de sistemas biológicos é ainda Física, o que é específico à
Biologia é precisamente a análise da classe de máquinas que são os sistemas vivos... a Biologia
não é redutível à Física... Aqui, usamos redução para significar um programa que possibilitaria
algum dia derivar a Biologia da Físico-química, de modo a produzir uma ciência unificada.261
260
261
VARELA, 1979: 9.
VARELA, MATURANA, 1972: 380.
81
A presença abundante em Biologia de descrições de cunho funcional seria uma
decorrência dessa atitude, oriunda da Física, de sempre buscar caracterizar os
fenômenos de uma forma exclusivamente referenciada na materialidade. Como
exemplos, eles oferecem a consideração das seguintes asserções:262
S1: A função dos elétrons em órbita é balancear as cargas do núcleo.
S2: Os elétrons em órbita balanceiam as cargas do núcleo.
T1: A função do DNA é codificar as proteínas.
T2: O DNA codifica as proteínas.
As duas primeiras (da Física), referem-se a uma organização que é uma unidade em si, o
átomo. S1 é dispensável em favor de S2, pois não há qualquer necessidade de adicionarse funcionalidade à descrição. Já as duas últimas (da Biologia) referem-se a um
“sistema” (DNA-proteínas) que na verdade é subsistema parcial de uma unidade muito
mais abrangente, a célula (o ser vivo), e é por este motivo que a funcionalidade da
descrição T1 mostra-se conveniente em comparação à T2: “uma descrição funcional,
quando não dispensável, é sintomática da ausência de uma teoria... [quanto à
organização] de um sistema em que o subsistema, descrito em termos funcionais,
existe”.263
A circularidade pela qual o DNA participa da síntese das proteínas que participam da
síntese do DNA até então não havia sido percebida como fechada justamente por esta
primazia conferida à materialidade física, e por ser a célula uma instância materialmente
e termodinamicamente aberta: há um permanente fluxo de moléculas e de energia para
dentro, para fora, e através dela. Qualquer invariância teria que ser buscada não na
matéria, mas em uma organização percebida para a célula. O que caracteriza um ser
vivo como tal não são moléculas (que entram, participam, e saem), são processos que
regem produções moleculares. O que é comum à vida, em todas as suas formas (e
portanto definidor da Biologia), não estaria nas propriedades da matéria (das partes),
mas nas relações constitutivas do todo, independente do substrato material a que estas
digam respeito.
262
263
Cf. ibid., p. 381.
Loc. cit.
82
Em 1971 é cunhado o termo autopoiesis (do grego autós: próprio + poiein: fazer;
produzir a si), e o ser vivo é definido como uma rede de processos (relações) de
produção de componentes que, por meio de suas interações, continua e recursivamente
regeneram e constituem (produzem) a rede que os produz, tornada distinguível
enquanto uma unidade no espaço físico.264 O ser vivo era compreendido como uma
máquina homeostática em que a variável fundamental a ser mantida constante é
justamente a sua organização. O ser vivo é, antes de tudo, produtor e mantenedor de sua
organização – produtor e mantenedor de si próprio.
O que caracteriza o ser vivo como tal é um domínio de relações entre processos de
produção de componentes, não um domínio de relações entre componentes – ainda que
aquelas somente existam de forma concreta (corporificada) como relações entre
componentes. São elas as relações constitutivas da organização: “as relações entre
componentes que têm de permanecer invariantes em uma unidade composta para que
esta não perca sua identidade de classe e torne-se alguma outra coisa, constituem a sua
organização”.265
Por sua vez, a totalidade das relações (quaisquer) entre componentes corresponde à
estrutura, ao arranjo físico particular (ao ser vivo particular) em que a organização
encontra-se materializada: a estrutura compreende tanto os componentes físicos
juntamente como o conjunto das relações entre eles. Já as relações definidoras da
organização correspondem a um subconjunto invariante das relações que, em cada ser
vivo, constituem sua estrutura; assim, uma mesma organização pode encontrar-se
corporificada em muitas estruturas distintas (por exemplo, os muitos seres vivos de uma
mesma classe, ou ainda, as diferentes etapas na vida de um ser vivo):
A natureza dinâmica da organização autopoiética como uma rede de produção de componentes
resulta em que a estrutura de um sistema vivo está necessariamente em mudança contínua. Além
disso, o fato de que tudo o que tem de permanecer invariante em um sistema autopoiético ... é a
sua organização autopoiética, implica em que as mudanças estruturais de um sistema vivo estão
necessariamente em aberto, e, em princípio, podem acontecer ininterruptamente, com
configurações recorrentes e não-recorrentes.266
264
Maturana e Varela fornecem, em seus textos (listados à nota 257, p. 80) uma série de definições muito próximas
umas das outras; optamos aqui por constituir esta definição do ser vivo em autopoiesis como uma síntese das deles.
265
266
MATURANA, 1980b: 48.
Ibid., p. 54.
83
Dando seqüência aos trabalhos de Ashby, Maturana e Varela buscaram expressar o
caráter autônomo e individualizado dos seres vivos como conseqüência inevitável do
mecanicismo; eles inverteram, assim, os termos de um embate histórico na Ciência, em
que toda sorte de vitalismos – o contrário do mecanicismo – foram aventados
justamente no intuito de afirmação dessa autonomia e individualidade.
Para tanto, eles propõem dissociar o mecanicismo de qualquer forma de reducionismo,
depurando-o de sua vinculação histórica às propriedades da matéria de modo a
distingui-lo como uma ciência daquelas relações que são as constitutivas dos
fenômenos. Fenômenos estritamente físicos e químicos são constituídos por relações
entre entes materiais definidos por suas propriedades (mecanicismo e reducionismo se
sobrepõem). Já os fenômenos biológicos decorrem de propriedades (biológicas) que
somente se manifestam em redes de relações entre processos de produção de
componentes materiais (mecanicismo puro: organização) – ainda que estes fenômenos
possam ser analisados por meio das propriedades (físicas e químicas) destes
componentes e de suas relações.
Um mecanicismo puro demanda que as interações entre as partes sejam vistas como
espontâneas (ou seja, não há qualquer “princípio organizador” derivado de propriedades
das partes – por exemplo, o papel atribuído ao DNA pela biologia molecular – que
governe a dinâmica dessas interações) e locais (ou seja, o todo não é fator operante nas
interações, ele é uma decorrência de interações que se dão, necessariamente, entre
partes vizinhas):
Moléculas interagem com outras moléculas de maneira que o resultado de suas interações não
participa em momento algum da gênese desse resultado. ... Os componentes de quaisquer sistemas
existem como entidades locais somente em relações de contigüidade com outros componentes, e
qualquer relação entre as partes e o todo sugerida por um observador pode apenas ser uma
metáfora para o seu mal-entendido, e não possui presença operacional. É somente no colapsar dos
domínios que nós, seres humanos, projetamos em nossas reflexões que o resultado de um processo
possa mostrar-se como se ele houvesse participado em sua gênese.267 ... não há princípio ou força
organizacional geral guiando o operar das moléculas que o compõem [sistema] na integração de
um todo. O sistema vivo como um todo é o resultado da operação local de suas moléculas
componentes, não a consumação de um plano. Além disso, um organismo em particular não é um
tipo de todo por si, antes ele decorre como um todo particular...268 (ênfases nossas)
267
268
MATURANA, 2002 (1999): 9.
Ibid., p. 17.
84
Para Ashby, um tal mecanicismo espontâneo e local implicava, inevitavelmente,
evolução e adaptação. Agora, pela autopoiesis, essa evolução e adaptação adquirem
caráter autônomo e individualizado. O que era visto como input passa a ser visto como
perturbações que desencadeiam (e são compensadas por) mudanças internas na
estrutura, internamente determinadas por modos necessariamente subordinados à
preservação da organização.
A cada instante, é a estrutura, tal como existente, o que determina o domínio das
perturbações que ela é capaz de compensar. Dito de outro modo, o ser vivo especifica o
domínio de sua própria plasticidade (transformações) frente às perturbações – trata-se
de um ser individualizado, que prescreve o domínio de suas próprias mudanças, e
autônomo, pois todas as mudanças estão subordinadas à manutenção de sua identidade
(organização) própria.
A autonomia de um sistema é também caracterizada por esse sistema fazer-se
distinguível, na qualidade de uma unidade, em meio a tudo o mais (que, como um todo,
configura “ambiente”). A rede de processos de produção de componentes conforma,
dentre esses componentes, uma fronteira (no caso da célula, a membrana), o que por sua
vez é um requisito para a conformação dessa rede, e que a torna distinguível, enquanto
uma unidade no espaço, por um observador externo:
... tomaremos a liberdade de invocar a idéia de um “observador”, uma ou mais pessoas que
encarnam o ponto de vista cognitivo que cria o sistema em questão, e a partir de cuja perspectiva
ele é subseqüentemente descrito.269
É o observador, a partir do seu ponto de vista, quem atribui a uma classe de sistemas a
identidade decorrente de uma organização em comum. Dito de outro modo, na
epistemologia da autopoiesis as propriedades do observador (elemento central à
epistemologia da Cibernética de segunda ordem a que se filiam Maturana e Varela)
devem ser destacadas ao invés de desconsideradas – sistemas observantes, ao invés de
sistemas observados.
269
GOGUEN, VARELA, 1979: 32.
85
O ser vivo apresenta assim uma fenomenologia dual: uma, a fenomenologia (física) das
interações e transformações de seus componentes; outra, a fenomenologia (biológica) de
suas interações e transformações enquanto uma unidade global, tais como percebidas
por um observador. Ao nível de seus componentes (estrutura), todas as interações e
transformações são determinadas pelas propriedades desses componentes; trata-se aqui
da dinâmica causal (ou operacional) de constituição de uma unidade pelas interações
entre seus componentes: seu domínio fisiológico. Já ao nível do ser vivo como um todo
(organização), as transformações e interações somente são determinadas pelas
propriedades de que o ser vivo é portador na qualidade de uma unidade; trata-se agora
da distinção cognitiva, pelo observador, das interações dessa unidade enquanto uma
totalidade: seu domínio comportamental, ou domínio biológico.
Tudo aquilo que observadores discernem em ser vivo distinguido como uma unidade
pertence ao espaço relacional em que ela é distinguida, e se refere a dinâmicas
relacionais que contam com a participação do meio em que a unidade interage: “para
que um fenômeno biológico aconteça, um sistema autopoiético tem de operar em um
contexto”.270 Já tudo aquilo que observadores discernem em um ser vivo por meio da
distinção de componentes seus refere-se ao operar interno da unidade, para o que o meio
é irrelevante.
A teoria da autopoiesis também distingue de forma precisa os seres vivos (“máquinas”
naturais) das máquinas artificiais: estas também contam com organização e estrutura,
porém seus componentes são produzidos por processos outros que não os constitutivos
de suas organizações (não é um automóvel, por exemplo, o que produz suas peças). O
que ainda resta de comum a ambas é somente o mecanicismo, esteio do caráter
eminentemente dinâmico das máquinas, naturais ou artificiais.271
Mais: do que advém o propósito de uma máquina? Da consistência percebida por um
observador humano quanto às correlações (também percebidas por ele) entre os
comportamentos da máquina e do ambiente, descritas (novamente, por ele) como
conexões em termos de inputs e outputs. Qualquer propósito diz respeito ao contexto
270
MATURANA, 1981: 32.
271
“... ‘máquinas’ e ‘sistemas’ indicam a caracterização de uma classe de unidades, em termos de sua organização”
(VARELA, 1979: 7).
86
(tal como compreendido pelo observador) em que a máquina opera, ou seja, trata-se de
sua função nele – propósito e função são noções necessariamente referenciais. Tudo isso
é perfeitamente aplicável a máquinas artificiais, construídas pelo homem precisamente
no intuito de satisfazer funções e propósitos por ele concebidos. Mas nada disso é
aplicável à fenomenologia do ser vivo. Noções como propósito ou função são
intrínsecas ao domínio descritivo no qual observadores constroem consensos a respeito
do mundo e por meio deles coordenam suas ações, mas não são constitutivos da
organização dos seres vivos, logo não têm serventia como explicações para sua
operação.
O conceito de teleonomia cunhado pela biologia molecular preconiza uma
“determinação ancestral” como mecanismo causal da estrutura dos seres vivos a cada
momento; já Maturana e Varela vêem nessa atribuição de “poderes” ao DNA (um
elemento dentre outros, ainda que essencial) o sucedâneo da “força vital” evocada pelo
vitalismo. A cada momento, o ser vivo é uma unidade em sua integridade, e não uma
transição entre um estágio incompleto (embrionário) e outro final (adulto) de acordo
com algum projeto inato; tampouco a evolução corresponde à realização de qualquer
“projeto” da espécie, ao qual os indivíduos encontrar-se-iam subordinados. O apego a
de tais idéias pelos partidários da biologia molecular corresponde a uma projeção sobre
a fenomenologia dos seres vivos de descrições pertencentes ao domínio do
entendimento lingüístico entre observadores:
... uma predição de um estado futuro de uma máquina consiste tão somente em uma apreensão
acelerada, na mente de um observador, de seus sucessivos estados, e qualquer referência a um
estado anterior como explicação para um estado subseqüente, em termos de função ou de
propósito, é um artifício dessa sua descrição, criada na perspectiva da sua observação mental
simultânea dos dois estados, o que induz, na mente do observador, a uma apreensão abreviada da
máquina.272
Em nosso entendimento, o advento da teoria da autopoiesis encerra o ciclo, iniciado em
Wiener, de identificação entre o natural e o artificial (não obstante tais esforços terem
prosseguimento até os dias atuais, por exemplo em empreitadas como as denominadas
inteligência artificial 273 e vida artificial 274), o que consuma a transcendência da
272
273
MATURANA, VARELA, 1980 (1972): 86.
Remeter às pp. 60-61.
87
Cibernética em Teoria da Complexidade – muito embora os próprios Maturana e Varela
recusem essa identificação,275 e tampouco recorram a termos como “complexidade” e
“auto-organização”.276 A Cibernética, de McCulloch a Ashby, não havia logrado
ultrapassar a noção de função matemática, um operador que converte input em output, e
em que a estrutura do input determina a estrutura do output. Ao contrário, do ponto de
vista do ser vivo, inexiste input; o ambiente passa ao papel de acionador, uma coleção
de eventos que podem (ou não) desencadear mudanças na estrutura do sistema que serão
internamente conduzidas e internamente determinadas: “um sistema é autônomo se as
relações que o caracterizam na qualidade de uma unidade dizem respeito apenas ao
sistema em si, e não a outros sistemas”.277
Cognição, um fenômeno biológico
Maturana e Varela anunciam a noção de autopoiesis como necessária e suficiente à
caracterização do ser vivo (por dar conta da fenomenologia do indivíduo, toda ela
subordinada à manutenção de suas relações constitutivas internas) e à explicação de
toda a fenomenologia biológica, como adaptação ao meio, reprodução, hereditariedade e
evolução (porque estas requerem o indivíduo e são dele derivadas, como veremos). Até
então, as caracterizações do ser vivo eram buscadas na enumeração de propriedades
274
Campo que surge na década de 90 pela perspectiva de que não somente os processos cognitivos, mas também os
genéricos processos biológicos de organismos, populações e ecossistemas (crescimento, envelhecimento, morte,
sobrevivência, adaptação, mutações, evolução, extinção, gregarismo, colônias, migração, acasalamento, reprodução
etc.) seriam suscetíveis de simulação em redes de autômatos celulares, em que agrupamentos de indivíduos (colônias,
populações, ecossistemas) podem ser considerados como um único agente “vivo” em interação com outros agentes.
275
Em nosso entender, por duas razões: porque a concepção deles quanto ao real é mecanicista (determinação do
todo pelas partes), ao invés da concepção “casada” (co-determinação do todo pelas partes e das partes pelo todo)
esposada por Atlan, Dupuy e outros, bem como pelos artífices da corrente a que denominamos “computacional”; e
também justamente para melhor se diferenciar desta corrente, então em franca ascensão: “... [a primeira Cibernética]
deveria ser vista como o berço e o local de nascimento da maior parte daquilo a que hoje conhecemos como
tecnologias da informação, inteligência artificial, Teoria da Complexidade, vida artificial, e ciências cognitivas. Não
obstante, esta surpreendente história somente tem sido contada de forma distorcida. No caso das ciências cognitivas,
por exemplo, o relato bastante conhecido de Howard Gardner [op. cit. (nota 204, p. 63), 1985] faz parecer como se a
opção computacional estabelecida nos anos 60 houvesse se originado como um deus ex machina. Ainda pior é o
relato de Mitchell Waldrop [Complexity: The Emerging Science at the Edge of Order and Chaos. New York: Simon
and Schuster, 1992], em que a se alega que complexidade já nasceu, esplendorosa e pronta para caminhar sozinha,
dos campos mágicos de Santa Fe” (VARELA, 1995: 285). De nossa parte, o que fazem Maturana e Varela é dar
conta da complexidade em Biologia, pelo que eles têm lugar, sim, em uma Teoria da Complexidade abrangente.
276
“Propriamente falando não existem sistemas auto-organizantes, apenas comportamentos auto-organizantes, que
são indicadores da necessidade de se chegar a uma caracterização explícita do fechamento organizacional de um
dado sistema que responde por um tal comportamento” (VARELA, 1984b: 26). A posição de Maturana e Varela em
relação à auto-organização é assim consonante com a de Ashby.
277
MATURANA, 1981: 21.
88
(justamente: adaptação, reprodução, hereditariedade, evolução) que juntas propiciam
uma explicação da mudança histórica (centrada no papel suposto para o DNA), mas que
todavia são insuficientes para caracterizar o ser vivo, por referir-se às espécies ao invés
dos indivíduos, vistos como meros transientes cuja organização se supõe subordinada a
uma fenomenologia histórica, ao invés de determinante desta. Mas a ocorrência de
reprodução requer a existência prévia do ser vivo, e é portanto operacionalmente
secundária a ele; a evolução, por sua vez, requer a reprodução, sendo secundária a ela: a
atual complexidade da vida sobre a Terra é assim antes uma decorrência da organização
autopoiética dos seres vivos que caracterizadora dela.
A máquina de estados da Cibernética produzia cada novo estado (novo output) pela
operação interna de input mais seu estado presente (output sob forma de feedback). Já
uma máquina de estados autopoiética produz cada novo estado (nova estrutura), a cada
interação com o ambiente, somente a partir de seu estado (estrutura) presente, de forma
desencadeada mas não determinada por esta interação (Maturana e Varela inicialmente
chamam-na state-determined,278 depois structure-determined). Assim, pode-se afirmar
que o que delimita (melhor, especifica) o escopo das interações em que o ser vivo pode
tomar parte é tanto sua organização (perene) quanto sua estrutura (presente), pois a
estrutura é a organização corporificada. Dito de outra forma, a organização circunscreve
o escopo potencial de mudanças na estrutura, enquanto que, a cada momento, é a
estrutura o que prescreve o domínio potencial de interações do ser vivo com o meio
(domínio das perturbações passíveis de serem compensadas), domínio este
individualizado (e necessariamente limitado) por ser a estrutura individualizada: “tudo o
que acontece com ele e a ele [o ser vivo] é determinado, a cada instante, pelo modo
como ele se encontra disposto (sua estrutura) naquele instante”.279
Em seu artigo fundador de 1969, Maturana supôs que os seres vivos incorram, de modo
recursivo, em inferências quanto a classes de interações, em que cada interação é um
evento único, mas tomado como se viesse a ocorrer novamente:
... a inferência indutiva ... emerge como o resultado da organização circular auto-referente que
trata toda interação e o estado interno que ela gera como se ela viesse a se repetir, e como se fosse
278
279
Cf. VARELA, MATURANA, 1972.
MATURANA, 2002 (1999): 6.
89
um elemento em uma classe. A partir daí, funcionalmente, para um sistema vivo toda experiência é
a experiência de um caso geral, e é o caso particular, não o geral, o que demanda muitas
experiências independentes de modo a que seja especificado pela interseção de várias classes de
interações.280 (ênfases nossas)
Seria esse caráter inferencial o que faria do domínio de interações de um ser vivo o seu
domínio cognitivo.
Entretanto, logo em seguida, Maturana e Varela passam a referir-se apenas à natureza
recursiva das interações – o que expressa as regularidades do meio. Ora, uma vez que a
homeostasis do ser vivo atua no sentido de preservar a regularidade das relações
constitutivas internas, acaba inevitável um “casamento” entre as regularidades
dinâmicas do meio (interações recorrentes) e do ser vivo (mudanças recorrentes na
estrutura, subordinadas à preservação da organização), ou seja, uma congruência entre
as trajetórias de mudança estrutural no meio e no ser vivo, que mutuamente modelamse, sem se determinar: um acoplamento estrutural, noção que transcende o que
historicamente se denomina “adaptação” em prol da compreensão de uma co-evolução
entre ambiente e seres vivos. A biosfera passa a ser compreendida como uma gigantesca
teia
multidimensional
de
acoplamentos
estruturais
recíprocos
que
emergem
espontaneamente como decorrência da conservação da autopoiesis dos seres vivos:
Nós biólogos não nos damos conta facilmente de que a conservação da adaptação é uma relação
invariante que constitui uma condição de existência para os sistemas vivos... e isto é assim porque
nós usualmente a tratamos como uma variável no discurso sobre a evolução.281 (ênfases nossas)
A autopoiesis traduz assim uma dupla vocação: a conservação da organização interna ou
da identidade (o operar do ser vivo), e a conservação da adaptação (uma decorrência
desse operar). O ser vivo sempre converge para um acoplamento estrutural com seu
meio, quaisquer que sejam as circunstâncias, enquanto estiver vivo: a morte como
evento corresponde precisamente ao término, seja por esgotamento ou colapso, da
capacidade homeostática do ser vivo de conservar sua organização frente ao curso das
interações com o meio (se se muda o referencial do ser vivo para o meio, pode-se
também dizer: frente a interações desintegradoras). Não existe adaptação “ótima”,
280
281
MATURANA, 1980a (1969): 49.
MATURANA, 2002 (1999): 17.
90
apenas adaptações viáveis. Não há seres vivos “mais” ou “menos” adaptados – enquanto
vivos, eles sempre aparentarão conhecer como viver em suas circunstâncias próprias:
Adaptação... é sempre uma expressão trivial do acoplamento estrutural de um sistema
estruturalmente plástico a um meio.282
... adaptação é ... um truísmo. ... Quando nós dizemos que uma espécie adapta-se a um nicho, nós
estamos dizendo nada mais nada menos que, na seqüência das etapas reprodutivas, unidades estão
capazes de plasticidade estrutural que resulta em sua reprodução viável.283
Os dois domínios fenomenológicos (fisiológico e comportamental) do ser vivo são
distintos, não há interseção entre eles, nem tampouco cabe qualquer reducionismo: não
há “causas” (propriedades) em um que possam ser apontadas como determinantes das
dinâmicas do outro: “a unidade assim constituída não participa de sua própria
constituição, porque é unicamente com respeito a um contexto que ela possui existência
operacional”.284 Eles não se determinam, apenas modulam-se mutuamente, à medida
que a conservação da adaptação (domínio cognitivo da unidade, domínio
comportamental) depende da conservação da autopoiesis (domínio constitutivo da
unidade, domínio fisiológico) e vice-versa:
... domínios diferentes não podem explicar um ao outro porque não é possível gerar os fenômenos
de um domínio a partir dos elementos do outro ... Um domínio pode gerar os elementos do outro
domínio, mas não a sua fenomenologia, que, em cada domínio, é especificada pelas interações dos
seus elementos, e os elementos de um domínio se tornam definidos apenas em meio ao domínio
que eles geram.285 (ênfases nossas)
Não há acesso direto possível a um observador à organização interna dos seres vivos;
esta apenas se torna evidente sob forma de seus resultados (ao nível do ser vivo como
um todo), jamais na dinâmica ou nas propriedades de seus componentes ou das
interações entre eles (ao nível das partes). A organização autopoiética do ser vivo pode
apenas ser inferida a partir daquilo que é passível de ser observado: a história de suas
interações e de sua dinâmica estrutural.
282
283
284
285
MATURANA, 1978: 39.
VARELA, 1979: 263.
MATURANA, 1981: 32.
MATURANA, 1980a (1969): 55.
91
Assim, cognição e conhecimento dizem respeito, para um observador, ao
comportamento percebido como adequado do ser vivo observado – seja este um
catedrático ou uma bactéria – num dado contexto dinâmico (meio). Aquilo de que a
presença de um sistema nervoso dota os animais, e em particular o homem, é tão
somente uma ampliação (ainda que incomensurável) do seu repertório de
comportamentos – uma ampliação de seu domínio cognitivo. Mas mesmo uma bactéria
é capaz de estabelecer correlações internas como modo de referência a variações
externas, tais como frio-quente ou alcalino-ácido; sob circunstâncias ambíguas, as
bactérias “decidem”:286 a cognição é corporal (estrutural).
Cada mudança na estrutura implica também a mudança, por menor que seja, do domínio
cognitivo; reciprocamente, interações inéditas implicam ou mudanças estruturais ou
desintegração: viver é conhecer, conhecer é viver. Uma vez que cada novo estado
interno (cada nova estrutura) é tanto desencadeado pelo evento externo (interação)
como determinado pelo estado presente, os estados internos podem eles próprios
também ser compreendidos como fontes de perturbação que desencadeiam no sistema a
necessidade de mudanças compensatórias: eles também compõem o domínio cognitivo,
ou domínio de interações, do sistema. Desnecessário lembrar que, no homem, seus
próprios estados mentais internos conduzem a novos estados mentais, com o que o
domínio cognitivo pode ser expandido indefinidamente.
A condição sine qua non aos entendimentos da cognição como um fenômeno biológico,
do conhecimento como comportamento (conhecer como viver) e vice-versa, e do
domínio de interações como domínio cognitivo é o abandono das noções de input e
output, em favor da autonomia e da individualidade. Se as interações forem
compreendidas sob forma de inputs e outputs, a correspondência espaço-temporal
percebida entre mudanças de estado do ser vivo e mudanças recorrentes no ambiente
acabará descrita (melhor, inferida) como um acoplamento de natureza semântica, a
partir das seguintes pressuposições: a cognição como atributo exclusivo dos organismos
dotados de sistema nervoso (visto como capaz de processar informações); a realidade
externa como objetiva, e passível de ser diretamente acessada pelo aparelho sensorial
dos seres vivos (percepção sob forma de captação de informação); o processamento pelo
286
Ver ADLER, Julius, TSO, Wung-Wai. “ ‘Decision’-making in Bacteria: Chemotatic Response of Escherichia coli
to Conflicting Stimuli”. Science, vol. 184, pp. 1292-1294, 1974.
92
sistema nervoso da informação captada, resultando em comportamento adequado à
situação (nos animais) e na construção de uma imagem (representação) da realidade (no
homem); a evolução como “codificadora” no sistema nervoso, sob forma de
comportamento instintivo, do legado histórico desse processo; em suma, a determinação
externa (alopoiesis) da cognição e do viver.
O que a autopoiesis nos diz é que a realidade externa não é apreendida, ela é
especificada. Ao gerar a si (o eu), o ser vivo gera também todo o não-eu – “o meio em
que um sistema existe também desponta espontaneamente quando o sistema surge”:287
não há realidade independente daqueles que a conhecem. Ao produzir a si próprio, o ser
vivo também produz, como conseqüência, a sua realidade, correspondente ao seu
conhecimento. O ser vivo, mais que ser capaz de conhecer por estar vivo, somente pode
estar vivo na cognição: “aquilo a que nós seres humanos chamamos cognição é a
capacidade que um sistema vivo apresenta de operar em congruência estrutural
dinâmica com o meio em que ele existe”.288 Os seres vivos, ao atualizar
permanentemente suas estruturas, estabelecem por meio de configurações internas
próprias referências a padrões de variação do ambiente, que correspondem a
especificações da realidade ao invés de representações dela. Não há transmissão ou
passagem de informação nos processos cognitivos – o conceito de “informação”
corresponde a uma abstração, um construto mental dos observadores pertencente a seus
discursos quanto ao fenômeno da cognição.
Já qualquer distinção entre aqueles comportamentos ou conhecimentos instintivos dos
aprendidos refere-se tão somente ao processo histórico que originou a estrutura gerativa
desses comportamentos: se essa dinâmica estrutural foi tornada estável ao longo do
transcurso evolutivo, falamos em comportamento (ou conhecimento) instintivo; do
contrário, se ela emerge em um dado ser vivo como resultado da sucessão de seus
encontros com o meio, falamos em aprendizagem.289
287
288
MATURANA, 2002 (1999): 18.
Ibid., p. 26.
289
“... dado um sistema com fechamento operacional e cuja estrutura varie ligeiramente sob um histórico de
perturbações, a um observador ele parecerá (como se houvesse) aprendido, e que guarda ele um registro daquilo
que se passou. Para o sistema, entretanto, um tal registro não é necessário ... É apenas para o observador que, se a
perturbação for recorrente, este evento parecer-se-á com um reconhecimento” (VARELA, 1984b: 29).
93
O que mais propriamente aqui nos interessa da vasta teoria da autopoiesis é o argumento
segundo o que a cognição humana, que emerge em meio à linguagem (medium
primordial para a intercompreensão entre os homens), é um fenômeno biológico, o que
quer dizer estrutural, o que por sua vez quer dizer corporificado: em suma, é um
fenômeno individual – ao invés de transcendental.
Uma vez que a teoria da autopoiesis dispõe que toda a fenomenologia biológica, desde a
origem da vida até a formação dos consensos culturais humanos lastreados na
linguagem (todos eles decorrências espontâneas da autopoiesis nos seres vivos), compõe
um continuum – uma trajetória de crescente complexificação estrutural – iremos, como
caminho para chegar até a cognição, discorrer agora sobre esta fenomenologia.
A fenomenologia autopoiética dos seres vivos
A vida surgiu na Terra, há cerca de quatro bilhões de anos, na forma de células com
organização bastante simples; desde então, essa organização tem-se mantido invariante.
O que lhe é peculiar, e que a distingue de todas as organizações dos sistemas não-vivos,
é que seu único produto é ela própria: seu ser e seu operar são inseparáveis. Também
desde então, suas estruturas têm se tornado crescentemente complexas – a história da
evolução da vida é a história da crescente complexificação das dinâmicas estruturais dos
seres vivos.
Mas, não se pode considerar que a organização dos seres humanos seja mais complexa
que a organização das amebas? Sem sombra de dúvida, mas então já não estaremos
falando da organização que define o conjunto da vida sobre a Terra como a classe dos
seres vivos (ou seja, a organização autopoiética), falamos agora de outras classes de
seres, subconjuntos daquela, com suas organizações próprias (por exemplo, a classe dos
seres humanos). Ao categorizarmos uma dada classe de seres vivos (ou seja, ao atribuirlhes uma organização em comum), podemos considerar determinadas dinâmicas
estruturais que nessa classe se mostram invariantes como constitutivas dessa
organização específica, e reservar o termo “estrutura” para as demais dinâmicas
estruturais variantes (por exemplo, na classe dos seres humanos, considerar as diferentes
etnias como variações estruturais) – ainda que não seja de muita valia, em termos de
94
caracterização científica, explicitar uma classe cuja organização seja tão complexa que
impossibilite na prática sua descrição.
Já a observação do operar da célula deixa evidente o caráter autopoiético de sua
organização: as relações constitutivas da célula são passíveis de serem descritas em
termos estritamente mecanicistas, referentes às reações físico-químicas espontâneas
entre compostos moleculares espacialmente vizinhos. Maturana e Varela classificaram
as relações constitutivas da organização da célula em três grandes grupos:
- As relações de constituição determinam que os componentes produzidos conformem a
topologia em que a autopoiesis opera (por exemplo, ao determinar que os componentes
estejam à distância adequada uns dos outros).
- As relações de especificidade determinam que os componentes produzidos sejam
especificamente aqueles definidos em conformidade com sua participação na
autopoiesis (ou seja, elas determinam as propriedades dos componentes).
- As relações de ordem determinam que a concatenação dos componentes nas relações
(de constituição, especificidade e ordem) seja aquela que configura dinamicamente a
autopoiesis (por exemplo, determinando que as quantidades corretas dos diversos
componentes sejam produzidas no momento correto ao ritmo correto).
95
A origem da vida passa a ser vista não como acidente, mas como inevitável. Uma vez
que estejam dadas as condições para que a interação de compostos moleculares
diversificados resulte na formação, em um espaço circunscrito, de uma rede de reações
moleculares que produza aqueles mesmos compostos moleculares iniciais, o advento
espontâneo desta rede constitui um ser vivo (a célula) que, uma vez originado, se autoconserva. A membrana dessa célula primitiva caracteriza o ser vivo como uma unidade
no espaço, não apenas delimitando o alcance da rede de produção de componentes, mas
participando dela: a rede de transformações dinâmicas produz sua própria fronteira, que
por sua vez é uma das condições do operar dessa rede. Pode-se supor que, mantidas as
condições que originaram o primeiro ser vivo, outros mais surgiram em diferentes
pontos da Terra, portando inúmeras configurações estruturais, por ainda muito tempo:
... toda vez que ocorrerem, no domínio molecular, as condições estruturais dinâmicas adequadas
para que surjam entes autopoiéticos moleculares, eles surgirão espontaneamente, e um sistema
vivo aparecerá como que do nada.290
Por sua vez, o fenômeno da reprodução é compreendido como o fracionamento de uma
unidade autopoiética (uma célula) cuja organização se encontra espacialmente
distribuída por meio de um espalhamento uniforme dos componentes, evento que gera
duas unidades operacionalmente independentes, que conservam a mesma organização
da unidade original porém corporificada em estruturas distintas.
Por muito tempo, a reprodução por fragmentação dava-se apenas por causas mecânicas
externas, ou seja, por acidente; progressivamente, ocorreu em algumas classes de
células um desenvolvimento daquelas suas dinâmicas estruturais que facilitavam a
fragmentação da célula (em uma complexificação da autopoiesis), o que
progressivamente aumentou a freqüência e a regularidade desse fracionamento até o
ponto em que ele se tornou independente de choques ou forças externas. Com o passar
do tempo, tais classes de células terminaram por prevalecer sobre as suas congêneres
que continuaram a somente se fragmentar por acidente, e assim a reprodução tornou-se
(literalmente) incorporada à vida. No que tange às células contemporâneas, naquelas
eucarióticas (com núcleo) dá-se a mitose, um processo de distribuição espacial dos
componentes do núcleo prévio à fragmentação, e naquelas procarióticas (sem núcleo),
290
MATURANA, 2002 (1999): 23.
96
componentes que porventura existam em dose única são também previamente
replicados.
A reprodução implica a evolução: a distribuição espacial dos componentes na unidade
autopoiética original deve ser suficientemente uniforme para conservar a organização
por ocasião do fracionamento (caso contrário, pelo menos uma das novas unidades não
será um ser vivo), mas não necessariamente a ponto de produzir duas estruturas
exatamente idênticas. Assim, a reprodução implica a regularidade estrutural (o que
permite precisamente a definição de classes de seres), ao mesmo tempo em que abre
espaço para alguma variação estrutural.
As novas unidades, por mais idênticas que sejam, acabarão por realizar suas autopoiesis
de forma diferenciada, devido ao meio também não ser dotado de uma uniformidade
absoluta. Por sua vez, as variações estruturais resultantes desse viver individualizado
poderão também ser conservadas por ocasião de novos eventos reprodutivos. O
mecanismo da reprodução seqüencial implica assim um progressivo espalhamento da
variação estrutural, oriundo tanto da autopoiesis diferencial (individualizada) quanto do
fracionamento reprodutivo. Também este, uma vez que corresponde a um estado tanto
da autopoiesis da unidade original (seu último) quanto da autopoiesis das unidades
originadas (seu primeiro), corresponde para estas a uma perturbação (a variação
estrutural decorrente do fracionamento) que requer para sua compensação alguma
complexificação da autopoiesis (novas atualizações estruturais).
Pode-se assim compreender a história de unidades encadeadas por reproduções
sucessivas como uma contínua complexificação da autopoiesis, em que os indivíduos
são os nós de uma rede temporal, e a espécie é a representação histórica dessa rede (é
uma descrição de um fenômeno histórico, referenciada na invariância estrutural que
permite distinguir uma dada classe de seres). Dito de outra forma, o que evolui não é a
espécie, são as dinâmicas estruturais, os padrões de operar autopoiético corporificados;
a espécie é uma decorrência dessa evolução:
... não é a mudança o que faz da evolução biológica um processo histórico, mas ... a contínua
conservação da autopoiesis e da adaptação como as condições relacionais em torno do que tudo o
mais se encontra aberto à mudança. ... o que é primariamente conservado na história dos sistemas
vivos é o viver (autopoiesis e adaptação). E o que é secundariamente conservado são as diferentes
97
formas de consumação do viver, por meio da conservação reprodutiva das diferentes maneiras de
realização da autopoiesis na conservação da adaptação.291
Uma vez que há reprodução seqüencial e há também a possibilidade de variação em
cada evento reprodutivo, o curso evolutivo da dinâmica estrutural nos seres vivos
consiste em uma função recursiva do domínio de suas interações com o meio: a
evolução dos seres vivos é a evolução de seus domínios cognitivos. Por exemplo, a
multiplicidade dos rebuscados formatos das conchas de certas espécies de moluscos
decorre da diversidade de materiais à disposição no meio para a satisfação de um
mesmo perfil de requisitos autopoiéticos.
Ao longo de milhões de anos, os modos (estruturas) inicialmente rudimentares de
conservação da autopoiesis sofisticaram-se gradativamente até chegar às formas atuais;
também de forma recursiva, a crescente sofisticação dos seres vivos implica a crescente
sofisticação daquilo que conforma meio para cada um deles.
Ao cunhar a expressão “seleção natural”, Darwin buscava uma metáfora que auxiliasse
no entendimento das conseqüências do processo evolutivo, que seriam não mais que
análogas aos processos de separação por meio de escolha intencionalmente levados a
cabo pelos seres humanos. Como é sabido, interpretações ao pé da letra dessa metáfora
abundaram, em que o meio foi visto como fonte de interações de natureza instrutiva
para com os seres vivos, o que de forma alguma ocorre.
Uma dada seqüência de interações meramente desencadeia uma dada seqüência de
modificações estruturais que são internamente determinadas; pode-se tão somente supor
que outras seqüências de interações (que não ocorreram) viessem a desencadear cursos
estruturais distintos. É apenas nesse sentido que se pode dizer que o meio seleciona o
curso de interações pelo qual a autopoiesis se dá de forma diferencial nos seres vivos;
ou, ainda, pode-se dizer: seleção natural e autopoiesis diferencial são um mesmo
fenômeno: “tanto unidade como meio operam como sistemas independentes que, ao
desencadear um no outro uma mudança estrutural, selecionam um no outro uma
mudança estrutural”.292 Unicamente aquelas linhagens estruturais cujo curso estrutural
291
292
Ibid., p. 11.
MATURANA, 1981: 29.
98
se mantenha complementar ao do meio lograrão efetivamente conservar seu
acoplamento estrutural com este meio; ou seja, serão por ele selecionadas para
prosseguir em suas trajetórias evolutivas.
Reciprocamente, pode-se considerar que a vida seleciona o curso das mudanças
estruturais da biosfera: o oxigênio liberado por formas de vida primitivas durante muitos
milhões de anos acarretou mudanças estruturais na atmosfera; recursivamente, o
progressivo aumento do teor de oxigênio na atmosfera atuou como seletor de variações
estruturais em muitas linhagens que implicaram nestas a estabilização de estruturas
respiradoras de oxigênio.
O fenômeno da hereditariedade corresponde, tanto quanto a reprodução, a um processo
estrutural. Hereditariedade é recorrência estrutural em uma série histórica. Assim, o que
se entende por genética (o estudo da hereditariedade) deveria ser o estudo da
distribuição, igual ou diferencial, das recorrências estruturais ao longo das seqüências
históricas, e não o estudo da associação entre algumas estruturas celulares (aquelas
relativas ao DNA) e a hereditariedade. Todos os componentes da célula participam de
sua dinâmica estrutural (conseqüentemente, da hereditariedade), ainda que cada um
deles reflita de forma diferenciada as recorrências estruturais ao longo de gerações. Não
há dúvida quanto a que, dentre todos os componentes, é o DNA o que mais apresenta
estabilidade transgeracional, e quanto a ser possível correlacionar variações suas com
modificações estruturais. O equívoco (que tem origem na ânsia pela identificação de
mecanismos causais) reside em confundir-se papel primordial com determinação
exclusiva.
Autonomia coletiva – organismos e sociedades
Quando duas ou mais unidades autopoiéticas tornam-se acopladas, mutuamente
especificando “ambiente” umas para as outras; quando tal acoplamento facilita a
autopoiesis individual das unidades; quando as interações entre estas tornam-se
recorrentes, e a conduta de cada unidade acaba por tornar-se função da conduta das
demais; e quando finalmente esse acoplamento recíproco termina por se tornar
99
invariante, emerge uma unidade autopoiética de segunda ordem – um organismo
multicelular:
Se o acoplamento advém como modo de satisfação da autopoiesis, então quanto mais estável for o
acoplamento, mais estável será qualquer unidade de segunda ordem formada a partir dos sistemas
autopoiéticos precedentes. De todo modo, em um sentido intuitivo, uma condição bastante estável
ao acoplamento se dá se a organização da unidade é gerada precisamente para a manutenção desta
organização – isto é, se a unidade se torna autopoiética. Parece, assim, existir uma pressão seletiva
sempre atuante para a constituição de sistemas autopoiéticos de ordem superior a partir do
acoplamento de unidades autopoiéticas de ordem inferior.293
Da mesma forma, um acoplamento estável entre unidades autopoiéticas de segunda
ordem (organismos) configura uma unidade autopoiética de terceira ordem: colônias de
insetos, bandos de animais, ecossistemas, sociedades humanas.294
A fenomenologia dual dos seres vivos (domínios fisiológico e comportamental) diz
respeito tanto à célula (a unidade autopoiética fundamental, trate-se de um organismo
unicelular ou de um componente de um multicelular) quanto às unidades autopoiéticas
de ordens superiores: os domínios fenomenológicos que elas conformam como
singularidade (unidade) e como composição (de compostos moleculares, no caso da
célula; de células, ou órgãos etc., no caso dos organismos) são distintos, e não redutíveis
um ao outro. A conservação da identidade (autopoiesis) e a conservação da adaptação
dependem uma da outra, mas não se determinam: esta é uma decorrência daquela, que a
precede; em contrapartida, se a conservação da adaptação cessa, as interações no meio
tornam-se interações desintegradoras, e a autopoiesis também termina por cessar.
Ao longo de uma história de mudanças estruturais, a autopoiesis das células dos
organismos foi tornada dependente da autopoiesis do organismo como um todo
(unidade), como um modo de satisfação dos próprios requisitos de conservação deste.
Da mesma forma, a dinâmica autopoiética em animais e insetos gregários convergiu
espontaneamente para o aprofundamento da dependência dos indivíduos ao bando ou
colônia; também da mesma forma, o homem paulatinamente sofistica sua dependência
da vida em sociedade.
293
VARELA, 1979: 53.
294
A princípio, colônias de seres unicelulares, como colônias de bactérias, não seriam unidades de segunda ordem
(porque não compõem um organismo), nem de terceira ordem (porque não são agregados de unidades de segunda
ordem); nos textos examinados, Maturana e Varela não são conclusivos a esse respeito.
100
Seriam as unidades autopoiéticas de ordens superiores também elas sistemas
autopoiéticos? No que tange às unidades de terceira ordem, certamente que não: as
redes que as constituem não têm como ser compreendidas como redes de processos de
produção de seus componentes, nem tampouco a fronteira que demarca uma tal rede
não tem como ser compreendida em termos topológicos.
Já no que tange às unidades de segunda ordem, a natureza autopoiética dessas unidades
é afirmada sem ter como ser caracterizada. Compreender uma unidade de segunda
ordem como um conjunto de moléculas, de células, ou de órgãos, implica definir
organizações distintas. A cada um destes níveis corresponde um modo específico de
organização constituinte de uma totalidade (a unidade de segunda ordem), e definidor
de uma classe particular de seres. A organização autopoiética, definidora da classe dos
seres vivos (pois engloba a totalidade das formas de vida sobre a Terra), se dá ao nível
molecular. No entanto, e ao contrário do caso da célula, qualquer descrição das redes de
interações moleculares constitutivas de um organismo multicelular (em termos de
relações de constituição, de especificidade e de ordem, tal como para a célula) é tarefa
que se mostra impossível. Uma vez que a produção dos componentes de um organismo
de fato ocorre de uma forma contínua e recursiva ao nível molecular (o que já não é
possível afirmar, se por componentes consideramos as células ou os órgãos), pode-se
assumir, sem se ter como caracterizar ou descrever, que as unidades de segunda ordem
são também sistemas autopoiéticos.
Há ainda outro fator que concorre para isso: os organismos multicelulares iniciam-se em
uma etapa unicelular. Tomando-se por exemplo um dos modos de reprodução mais
complexos, a reprodução sexuada, a produção dos gametas (por exemplo, óvulos e
espermatozóides) ocorre por fracionamento celular, eles adquirem uma dinâmica
operacional independente, e segue-se sua fusão em um organismo também unicelular (o
zigoto), a partir de que o organismo se desenvolve. Os seres multicelulares constituem,
por diversificados modos, variações sobre um mesmo tema: sua formação corresponde a
um processo de contínua divisão e diferenciação celular a partir de uma única célula
101
inicial,295 com acoplamento invariante entre as células originadas. Além disso, em uma
série histórica (evolução), é também na fase unicelular que a regularidade e a variação
reprodutivas são, respectivamente, conservada e produzida. Desta forma, toda a
fenomenologia
já
descrita
relativamente
à
célula
(adaptação,
reprodução,
hereditariedade, evolução) pode ser também estendida aos multicelulares.
Ora, se a organização das unidades de terceira ordem não é autopoiética, e se tampouco
há bases seguras para se afirmar que outras organizações constitutivas de unidades de
segunda ordem (em que os componentes sejam células, ou tecidos, ou órgãos, ou
sistemas fisiológicos) o sejam, como definir tais organizações? Varela e Maturana os
propõem como sistemas autônomos, caracterizados por modos organizacionais
fechados: uma organização autônoma é definida como uma rede de processos (relações)
de interação entre componentes que, por meio de suas interações, continua e
recursivamente regeneram esta rede, tornada distinguível enquanto uma unidade no
espaço (domínio) em que esses processos operam:296
É como se, uma vez alcançado o fechamento do sistema, este automaticamente se encarrega da
geração de suas regularidades internas.297
Dito de outro modo, o que caracteriza os sistemas autônomos é a recursão infinda
(indefinite recursion)298 de suas relações constitutivas. E o que permite distinguir classes
de sistemas autônomos é a natureza dessas relações constitutivas; por exemplo, os
sistemas autopoiéticos são um caso particular dos sistemas autônomos, em que os
processos constitutivos são processos de produção de componentes.
Os sistemas autônomos, tal como os sistemas autopoiéticos, são mantenedores de si
próprios: quaisquer contingências no ambiente somente podem atuar como fonte de
perturbações; quaisquer mudanças internas para compensação destas perturbações
estarão necessariamente subordinadas à conservação de sua identidade.
295
Ressalve-se que há seres multicelulares que são capazes de reproduzir-se por fracionamento, mas também por
meio da etapa unicelular; há ainda outros que apenas reproduzem-se por fracionamento, e nesses a variação
geracional não é celular, mas orgânica.
296
Novamente (cf. nota 264, p. 83), Maturana e Varela (especialmente este último) fornecem em seus textos mais de
uma definição para um sistema autônomo, de que sintetizamos esta.
297
298
VARELA, 1984b : 26.
Cf. VARELA, 1979: 56.
102
Do mesmo modo que a organização autopoiética implica a fenomenologia biológica, a
cada classe de organização autônoma corresponde uma fenomenologia própria (por
exemplo, a fenomenologia social). Assim, todo advento de uma classe de sistemas
autônomos implica a emergência de um domínio fenomenológico particular: o domínio
em que o sistema irá interagir sem perda de sua organização fechada (domínio
cognitivo); ou ainda, o domínio da correspondência percebida, por um observador, entre
os comportamentos do sistema e do ambiente (domínio comportamental). Autonomia
implica precisamente que qualquer observação somente se dê como um acoplamento
entre observador e sistema em alguma área de interseção entre os domínios de interação
de ambos; ou ainda, que o sistema se faça distinguível, pelo observador, por sua própria
coerência e viabilidade em um dado contexto (ambiente).
Qualquer caracterização dos sistemas sociais, unidades de terceira ordem, demanda a
caracterização das relações que definem a sociedade como uma unidade singular – esta,
a tarefa precípua da Sociologia. Acompanhando Varela,299 nos é suficiente, por ora,
caracterizar os sistemas sociais como sistemas autônomos, o que já incorre em
profundas implicações. Por exemplo, se uma dada corporação tem um propósito, este
pertence ao domínio descritivo de observadores que a ela o atribuem, mas não é
constitutivo do operar da corporação; a atuação de pessoas que esposem um tal
propósito, ainda que ocupantes de postos-chave, não corresponderá jamais a uma
“instrução” ou “programação”, mas a uma perturbação dentre outras, que o sistema
social (a corporação) compensará de um modo voltado à conservação de sua identidade,
de modo independente de quaisquer propósitos que lhe sejam formalmente atribuídos.
Dentre todos os que buscaram a caracterização dos sistemas sociais com base na teoria
da autopoiesis, aquele cujo trabalho obteve maior repercussão (e que muito
provavelmente foi o mais denso) foi Luhmann.300 Ao longo da década de 60 Luhmann
299
Ibid.
300
Cf. LUHMANN, 1995 (1984); ver também “The World Society as a Social System”. International Journal of
General Systems, vol. 8, n. 2, pp. 131-138, 1982. Reimpresso em: GEYER, R. Felix, van der ZOUWEN, Johannes
(eds.). Dependence and Inequality: A Systems Approach to the Problems of Mexico and other Developing Countries.
Oxford (Reino Unido): Pergamon Press, pp. 295-306, 1982; “The Autopoiesis of Social Systems”. In: GEYER, van
der ZOUWEN (eds.). Sociocybernetic Paradoxes: Observation, Control and Evolution of Self-steering Systems.
Beverly Hills (Califórnia): Sage, pp. 172-192, 1986; e “The Modern Sciences and Phenomenology”. In: LUHMANN.
Theories of Distinction: Redescribing the Descriptions of Modernity. Stanford (Califórnia): Stanford University
103
debruçara-se sobre o sistema jurídico-legal,301 tendo-o compreendido como autoreferenciado. A identidade desse sistema pode ser percebida como diretamente
associada a um, digamos, princípio de aplicação isenta das leis, independente de
estarem estas em consonância ou não com as circunstâncias do momento. Assim, devido
a que os mecanismos de atualização das leis não contam com agilidade suficiente para
acompanhar o ritmo das mudanças que se sucedem em todas as dimensões das
sociedades, os sistemas jurídico-legais em todo o mundo têm-se tornado cada vez mais
anacrônicos, uma vez que subordinam a compensação de qualquer perturbação oriunda
do ambiente (sociedade) à conservação de sua identidade historicamente consolidada.
Com o advento da teoria da autopoiesis, Luhmann pôde dispor das bases que lhe
faltavam para a consecução de sua teoria da sociedade,302 em que: tanto os sistemas
sociais como os sistemas psíquicos (as pessoas) são constituídos por processos de
produção de significados (Sinn) que, continua e recursivamente, produzem tais sistemas
(com o que Luhmann torna temporal a própria noção de sistema, de uma constituição
por componentes para uma constituição por eventos); o que distingue sistemas psíquicos
de sistemas sociais é a natureza dos processos produtores de significados (nos sistemas
psíquicos, estados de consciência; nos sistemas sociais, comunicações); ambos operam
de forma fechada na conservação de suas identidades; e eles compõem domínios
fenomenológicos distintos, mutuamente dependentes um do outro para sua própria
geração e conservação, porém não determinantes um do outro – o que implica não haver
qualquer causalidade direta entre as ações das pessoas e a constituição dos sistemas
sociais (!), perspectiva que acaba soando chocante frente a muitas noções usuais.
Press, pp. 33-60, 2002. Alternativamente, ver Ökologische Kommunikation. Kann die moderne Gesellschaft sich auf
ökologische Gefährdungen einstellen? Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, 1986; Essays on Self-reference.
New York: Columbia University Press, 1990; Soziologie des Risikos. Berlin: Walter de Gruyter, 1991;
Beobachtungen der Moderne. Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, 1992; Die Kunst der Gesellschaft.
Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp Verlag, 1995; e Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main
(Alemanha): Suhrkamp Verlag, 1997. 2 vols.
301
Ver Funktionen und Folgen formaler Organisation. Berlin: Duncker und Humblot, 1964; Grundrechte als
Institution. Ein Beitrag zur politischen Soziologie, Berlin: Duncker und Humblot, 1965; Zweckbegriff und
Systemrationalität. Über die Funktion von Zwecken in sozialen Systemen. Tübingen (Alemanha): Mohr, 1968; e
Legitimation durch Verfahren. Neuwied (Alemanha): Luchterhand, 1969.
302
LUHMANN, 1995 (1984).
104
Varela versus Maturana
Antes de prosseguir rumo ao tópico da autopoiesis que mais nos importa (a natureza
biológica da cognição humana), cabe considerar a validade de descrições estritamente
mecanicistas e causais para a caracterização das unidades de terceira ordem, em especial
as sociedades. Para tanto, reproduzimos a seguir a divergência de cunho epistemológico
havida entre Maturana303 e Varela304 quanto aos modos de explicação para a
fenomenologia das unidades de ordens superiores.
303
MATURANA, 1981. Ver também “Scientific and Philosophical Theories”. In: LESER, SEIFERT, PLITZNER,
op. cit. (nota 258, p. 80), pp. 358-374, 1991; e “The Nature of the Laws of Nature”. Systems Research and Behavioral
Science, vol. 17, n. 5, pp. 459-468, 2000
304
VARELA, 1979, 1981a.
105
Frente ao amplo predomínio do discurso da biologia molecular centrado na idéia de
teleonomia (o DNA como uma codificação que determinaria de antemão todos os
caminhos evolutivos possíveis),305 eles de início recusam por completo qualquer papel
causal, nos dois domínios fenomenológicos dos seres vivos (o domínio fisiológico de
sua constituição, ou domínio da conservação de sua autopoiesis, e o domínio cognitivo
de suas interações em um meio, ou domínio da conservação de sua adaptação), de
noções pertencentes ao domínio do entendimento discursivo entre observadores (como
código, informação, programa etc.). Tais noções seriam dispensáveis para uma
caracterização do ser vivo, e sua validade seria restrita a contextos puramente
pedagógicos
(por
exemplo,
como
metáforas).
Para
Varela,
entretanto,
o
desenvolvimento completo da teoria da autopoiesis (lembremo-nos, referenciado na
organização da célula) e suas repercussões terminaram por evidenciar a necessidade de
alternativas viáveis para a compreensão de organizações cujas descrições, ao contrário
da da célula, mostram-se inacessíveis (como as dos organismos). Ele passa a sustentar,
como Maturana, que a noção de autopoiesis é necessária e suficiente para caracterizar o
ser vivo; porém, e ao contrário deste, que ela não é suficiente para satisfazer a
necessidade por explicações compreensíveis para a totalidade da fenomenologia
biológica:
Isto, no entanto, é remanescente da afirmação de que toda a história do Universo poderia ser
determinada se apenas soubéssemos as posições e os momentos306 de todas as partículas do
Universo, de modo a que suas trajetórias futuras pudessem ser calculadas. ... O que nós estamos
dizendo, no caso da autopoiesis, é que se nós pudéssemos acompanhar todas as contingências
pertinentes, a fenomenologia biológica revelar-se-ia a partir do mecanismo autopoiético.307 ... Se
nós não aceitarmos mudar de uma descrição causal, a lida efetiva com o fenômeno evolutivo, que
depende de questões de confiabilidade e reprodução, torna-se literalmente impossível de
compreender. Como poderíamos conceber e refletir em termos puramente operacionais tudo a
respeito de seqüências de unidades autopoiéticas, se nós mal podemos fazê-lo em relação a um
único indivíduo? 308
Ambos continuam a concordar quanto a que qualquer relação de correspondência entre
os dois domínios fenomenológicos (fisiológico e comportamental) somente pode ser
estabelecida em um domínio de descrições por observadores (ou seja, um metadomínio)
capazes de correlacionar suas distinções quanto às partes e ao todo por meio de noções
305
306
307
308
Remeter à p. 77.
Produto da multiplicação de massa por velocidade.
VARELA, 1981a: 42.
Ibid., p. 44.
106
– derivadas da experiência humana – como propósito, controle, desenvolvimento,
informação ou representação, por exemplo em discursos que relatam a “função exercida
pelas células na regulação do organismo”. Maturana prossegue considerando o valor de
tais discursos como estritamente pedagógico, ao passo que Varela passa a perseguir
critérios que permitam dotá-los de valor explanatório relativo, e que os elevem à
condição de modo de explicação complementar ao modo operacional-causal; um modo
que ele denomina simbólico (mesmo porque qualquer modo de explicação é um
discurso pertencente a um domínio descritivo entre observadores).
Um símbolo corresponde a um distanciamento, em alguma medida arbitrário, entre
significante e significado, de que a linguagem é o exemplo maior: o curso histórico do
acoplamento entre as palavras e aquilo que elas referenciam nos é tão remoto que tudo o
que nos resta é tomar este acoplamento por válido, pela razão óbvia de que somos
capazes de compreendê-lo. Não nos será jamais possível rastrear os encadeamentos
causais entre ondas sonoras no ar e mudanças de estado no cérebro, havidos ao longo de
milênios. Podemos unicamente contar com as regularidades históricas desses processos,
que já nos chegam expressas sob forma de símbolos.
107
Enquanto a explicação operacional busca nexos causais como que correspondentes a
leis, a explicação simbólica busca padrões coerentes de comportamento, tornados
identificáveis pela desconsideração deliberada de um grande número de etapas causais
intermediárias, em uma abreviação das séries temporais (como se observássemos o
fenômeno por uma luz estroboscópica lenta). Por exemplo, as transformações no DNA
não são acompanhadas de modo contínuo, mas pela confrontação de instantes colhidos
ao longo de gerações, pressupondo-se (o que não tem validade operacional) que todos
os demais processos tenham se mantido dinamicamente estáveis. Ou ainda, como
vimos, a transição em neurofisiologia de que se valeu a Cibernética, do analógico
(contínuo) para o digital (descontínuo).309 Assim, a complementaridade entre
explicações operacionais e simbólicas recupera a clássica dualidade entre tempo
fisiológico e tempo evolutivo, ambos necessários à composição de um arcabouço
explicativo satisfatório para a fenomenologia biológica:
... para compreender por completo como o domínio cognitivo de um tal sistema pode operar e ser
modificado, nós temos de olhar para as regularidades dinâmicas que emergem no sistema e que
possam ser tratadas como eventos simbólicos. Estes são essenciais porque o comportamento do
sistema pode ser tratado como se operasse com base em um número discreto de regularidades, sob
forma de regras operando sobre os símbolos de um alfabeto. O domínio cognitivo de um tal
sistema pode operar como se sobre um conjunto de símbolos discretos, que respondem por uma
dinâmica complexa e no entanto regular.310 (ênfases nossas)
Em suma, a explicação operacional gira em torno do por que; a simbólica, do para que.
O valor da explicação operacional deve-se a ela propiciar previsão e manipulação; o
valor da explicação simbólica reside na comunicação de uma perspectiva inteligível a
respeito do sistema ou fenômeno em questão. Na explicação operacional presume-se
que os termos e as categorias utilizados sejam inerentes ao domínio em que operam os
elementos geradores do fenômeno em tela; já na explicação simbólica o observador
acrescenta associações e nexos que são estranhos a esse domínio, pois é ele, do seu
ponto de vista, quem as gera.
Referir-se a um papel alopoiético de uma unidade autopoiética (como acima, “a função
exercida pelas células na regulação do organismo...”) demanda uma mudança de
referencial, da autonomia (do sistema, no exemplo a célula) para restrições, dependência
309
310
Remeter à p. 35.
VARELA, 1979: 81.
108
ou controle (pelo ambiente, no exemplo o organismo). Somente neste novo contexto
pode ser considerado válido (valor comunicativo) o emprego de noções como input e
output. Alternar entre os modos de explicação exige mudar o quadro de referência em
que se opera, e Varela denomina admissíveis311 apenas aquelas explicações simbólicas
em que isso seja deixado explícito.
Qualquer obscurecimento quanto à dualidade para os modos de explicação acaba
conduzindo ao equívoco de se tomar elementos simbólicos (discursivos) como se
operacionais ou causais fossem, o que corresponde ao uso que Varela chama de tosco
(naive)312 de noções como informação, função, propósito etc., levado a cabo de forma
mesclada com noções de fundo material. Como exemplo maior, a visão
representacionista da cognição. E, como não poderia deixar de ser, o papel “codificado”
e “programador” do DNA, a que se atribui operacionalidade causal – um único
componente a que são subsumidas todas as relações de especificidade313 da célula. A
ânsia por explicações operacionais, tidas como as únicas portadoras de validade
científica, concorre para que noções simbólicas sejam açodadamente introduzidas em
uma explicação causal:
Ao persistir com descrições puramente operacionais, nós somos forçados a utilizar outros modos
descritivos de uma forma um tanto quanto descuidada e negligente, como é típico na biologia
molecular.314
... toda noção de informação, símbolo, ou sinal, é desprovida de substância e sempre codependente, jamais operacional. Não que alguém não possa fazê-la parecer bastante sólida em
situações particulares: o perigo está em esquecer que somos nós que fazemos isso. Se nos
esquecemos, então a informação se torna uma entidade mítica, um vago fluido boiando através da
Natureza, o estofo a ser descoberto no DNA e nas linguagens aí fora.315
Por outro lado, com as marcantes repercussões da Cibernética e seus desdobramentos
sob forma das tecnologias de informação (com os sistemas tornados objeto de projeto e
prescrição) deu-se de fato nas sociedades uma ampla transmutação de perspectiva (de
operacional para simbólico; teria sido impensável prescrever um computador por meio
311
312
313
314
315
Cf. ibid., pp. 79, 265-266.
Cf. ibid., p. 70, VARELA, 1981a: 38.
Remeter à p. 95.
Ibid., p. 45.
VARELA, 1979: 267.
109
das equações diferenciais relativas aos seus milhões de componentes eletrônicos) – que
não foi, contudo, reconhecida como tal:
O fato é que, no pós-guerra, a imaginação científica saltou dos watts para os bits, e em muito
pouco tempo produziu uma mudança dramática não apenas nos contornos daquilo sobre que versa
a pesquisa científica, mas, igualmente, na vida de todo mundo ... o computador de fato encarna a
metáfora em termos do que tudo o mais é mensurado. A passada veloz no campo do design, com
seu ethos inerentemente manipulativo, sobrepujou todas as demais fontes de imagens e de modos
de compreensão. A informação ... se torna, inequivocamente, aquilo que é representado, e o que é
representado é uma correspondência entre unidades simbólicas em uma estrutura e unidades
simbólicas em uma outra estrutura.316
Assim, acabou disseminada, para muito além do domínio meramente prescritivo das
engenharias, a noção de que “informação” seja portadora de realidade intrínseca (ao
invés de elemento de um discurso entre observadores), seja algo que possa ser
“captado” do ambiente, ou “transmitido” entre pessoas. Essas são explicações toscas,
que comprometem em muito a tarefa de tornar explícita a distinção de natureza entre
explicações operacionais e simbólicas, necessária sobremaneira no âmbito das ciências
sociais, em que o papel da comunicação e da compreensão inteligíveis para toda uma
comunidade de observadores é central (em detrimento de encadeamentos causais que se
mostram impossíveis de serem rastreados, ou sequer identificados).
Uma outra significativa contribuição de Varela foi o desenvolvimento de uma
matemática descritiva da recursão infinda característica das organizações autônomas e
autopoiéticas, em que a distinção entre operador e operando, um dos pilares da
matemática clássica, colapsa, e em que são simultaneamente levados em conta as partes
(domínio fisiológico), o todo (domínio comportamental) e a relação partes-todo
(metadomínio descritivo em que o observador correlaciona ambos).317
316
Ibid., pp. xiii-xiv.
317
VARELA, 1979; GOGUEN, VARELA, 1979. Ver também “A Calculus for Self-reference”. International
Journal of General Systems, vol. 2, pp. 5-24, 1975; “On Being Autonomous: The Lessons of Natural History for
Systems Theory”. In: KLIR, op. cit. (nota 185, p. 55), pp. 77-85, 1978; e VARELA, GOGUEN, Joseph A. “The
Arithmetic of Closure”. In: TRAPPL, Robert, KLIR, George J., RICCIARDI, Luigi M. (eds.). Progress in
Cybernetics and Systems Research. Washington DC: Hemisphere Publishing, vol. 3, pp. 38-64, 1978. Reimpresso
em: Journal of Cybernetics, vol. 8, pp. 291-324, 1978. Para a posição contrária de Maturana, ver “The Effectiveness
of Mathematical Formalisms”. Cybernetics and Human Knowing, vol. 7, n. 2-3, pp. 147-150, 2000.
110
Cognição, um fenômeno individualizado
Estamos agora aptos a retomar a trajetória de contínuas transformações estruturais nos
seres vivos, que inicia no surgimento das primeiras células e vai até às formas humanas
de cognição. O advento dos organismos multicelulares por acoplamentos estáveis entre
células desencadeou uma enorme diversidade estrutural, ao possibilitar incontáveis
modos de conservação do acoplamento estrutural com o meio (adaptação); por sua vez,
o advento da reprodução sexual trouxe ainda mais variedade estrutural, pela riqueza de
recombinações estruturais a cada evento reprodutivo.
Nessa miríade de linhagens, a conservação de alguns modos particulares de
acoplamento estrutural com o meio implicou o desenvolvimento, nestes organismos, de
um tipo especial de células que correlacionam as atividades de todas as demais: as
células nervosas. O advento de organismos dotados de sistema nervoso acarretou ainda
mais diversidade estrutural, pois foi tornada possível aos organismos a capacidade de
deslocamento (movimentação) no meio, o que veio ampliar imensamente seus domínios
de interação (domínios cognitivos); por exemplo, em muitas espécies (como os
animais), a alimentação e a reprodução foram tornadas dependentes do movimento, o
que por sua vez implicou uma ainda maior complexificação (mudança estrutural) dos
modos de autopoiesis.
O caráter, próprio ao sistema nervoso, de instância de correlação entre todas as demais
células (ou seja, instância de acoplamento entre elas) levou Maturana e Varela a propôlo como um sistema autônomo (ou seja, organizacionalmente fechado), um todo
integrado estruturalmente acoplado tanto ao meio externo quanto ao restante do
organismo. Sem a presença de um sistema nervoso, o acoplamento entre grupos
celulares diferenciados (sensórios, motores, digestivos etc.) e distantes uns dos outros
somente pode se dar pela circulação geral de humores no organismo; o sistema nervoso
veio propiciar o estabelecimento de correlações entre áreas distantes de uma forma
muitíssimo mais veloz, e por caminhos específicos sem afetação das áreas circundantes
(disto decorre a capacidade de movimento).
Ao longo das trajetórias de mudança estrutural da espécie (filogência) e do organismo
imerso em seu meio (ontogênica), o sistema nervoso opera necessariamente na
111
conservação de suas próprias correlações internas. Assim, por exemplo, quando um gato
volta seu olhar na direção de um pássaro que pousa, o que de fato ocorre é a
perturbação, por variações do espectro luminoso, de células da retina que mudam de
estado (estrutura), o que por sua vez representa uma perturbação para o sistema nervoso
como um todo; este imediatamente opera no restabelecimento de suas correlações
internas, que incluem acoplamentos entre suas superfícies sensoriais e superfícies
motoras. É a mudança de estado nas superfícies motoras que corresponde ao
comportamento, percebido pelo observador, de “voltar-se para o pássaro”, na verdade
uma compensação estrutural do sistema nervoso (e, em decorrência, do organismo a que
esse sistema encontra-se acoplado) a uma perturbação, associada à mudança estrutural
do meio (o movimento do pássaro). Eis aqui também um exemplo para a distinção de
natureza entre domínio fisiológico e domínio comportamental: qualquer coisa que seja
compreendida como comportamento para o gato é uma leitura externa da permanente
dança de correlações dinâmicas entre superfícies sensoriais e motoras acopladas, que
implica a totalidade do sistema nervoso; uma vez que o número de estados possíveis
para a rede neuronal é incomensurável, os comportamentos possíveis do organismo são
também praticamente ilimitados (quantas trajetórias possíveis há para o salto de um
gato?).
Não apenas as ações que envolvem atividade cerebral, mas os próprios atos reflexos são
expressão da manutenção das correlações internas do sistema nervoso: o encontro
acidental da superfície da pele de um animal com uma superfície pontiaguda
desencadeia uma mudança de estado em neurônios sensoriais conectados à medula
espinhal, por sua vez conectada a neurônios motores, que imediatamente contraem
músculos. O afastamento da pele da superfície pontiaguda desencadeia novas mudanças
de estado na superfície sensorial, e é o restabelecimento de uma correlação sensóriomotora que leva à cessação do movimento de afastamento. Todas essas mudanças
acabarão por refletir-se também em mudanças na atividade cerebral, por exemplo na
sensação de dor e em ainda outras movimentações, como um giro na direção do corpo
pontiagudo.
Há muitíssimos mais neurônios de ligação (interneurônios) que neurônios sensoriais ou
motores. No homem, apenas uns poucos milhares de músculos são ativados por cerca de
um milhão de neurônios motores, por sua vez conectados a cerca de cem bilhões de
112
interneurônios aos quais estão também conectados algumas dezenas de milhões de
células distribuídas pelas superfícies sensoriais do corpo, o que resulta em uma relação
sensório-interno-motora da ordem de 10/100.000/1 – claramente governada pela
dinâmica interna do sistema.
De volta ao experimento original de Maturana que o levou à idéia de autopoiesis (a
percepção visual das cores, em que situações diversas do espectro luminoso podem
levar a uma mesma “cor vista”),318 deve ser levado em conta que a região do cérebro
responsável pela visão (córtex visual) recebe, para cada neurônio oriundo da retina,
cerca de cem neurônios oriundos de outras regiões. Além disso, o feixe de neurônios
que conecta a retina ao córtex passa por uma “estação” intermediária (o núcleo
geniculado lateral), para o que convergem, com efeitos superpostos, outros feixes de
neurônios – oriundos inclusive do próprio córtex visual. Tudo isso indica não haver
qualquer correlação direta entre atividade da retina e atividade do córtex visual: “eu tive
de abandonar a questão, ‘como é que eu vejo essa cor?’, e perguntar ao invés, ‘o que se
passa comigo quando eu digo que vejo uma tal cor?’”.319
O que se passa é a permanente perturbação recíproca entre todas as (muitas) estruturas
envolvidas, em que as mudanças (moduladas, porém não determinadas, pela atividade
da retina) são determinadas pela atividade relativa de todas essas estruturas, não pela
atividade de nenhuma estrutura em particular; essas mudanças se dão de forma
subordinada à conservação da identidade do sistema como um todo, paulatinamente
constituída ao longo das trajetórias de mudança estrutural filogênica (evolução) e
ontogêntica (adaptação ao meio). A “cor” que o animal “vê” é assim uma correlação
neuronal interna que corresponde a uma expressão, no presente, dessa identidade
histórica, e não a uma “captação” de uma realidade objetiva exterior:
... nós tendemos a pensar na cor como um atributo dos objetos. No entanto, sob um exame acurado
a cor é virtualmente independente (exceto em situações muito restritas) da iluminação que chega
ao olho. A cor se define para nós, na experiência, por um mecanismo ao qual nós não temos acesso
experiencial direto. Tal mecanismo consiste, essencialmente, de uma operação de comparação
relativa entre níveis de atividade, e as invariantes provenientes desta espécie de mecanismo
correlacionam perfeitamente com nossa experiência de cores.320
318
319
320
Remeter à p. 79.
MATURANA, 2002 (1999): 5.
VARELA, 1984b: 28-29.
113
Por sua vez, qualquer comensurabilidade entre as “cores vistas” pelos diferentes
indivíduos de uma espécie expressa meramente a estabilidade das dinâmicas estruturais
que permite a distinção, na qualidade de espécie, de uma dada classe de seres vivos. No
caso dos seres humanos, os consensos lingüísticos historicamente constituídos
compõem também o lastro dessas dinâmicas estruturais, e assim atribuímos “nomes”
supostamente universais às cores – cada um somente vê o seu céu, mas todos o vêem
“azul”.
Experimentos anteriores aos de Maturana já demonstravam a subordinação, à
conservação da autopoiesis, da conservação da adaptação ao meio, expressão do caráter
essencialmente autônomo da organização dos seres vivos. Já na década de 40, foram
realizados experimentos321 com salamandras em que se secionava parte da musculatura
de um dos olhos de uma larva que era então invertido (girado 180 graus; deve-se
lembrar que o posicionamento lateral dos olhos da salamandra permite-lhe um campo de
visão de 360 graus). Após o desenvolvimento até a fase adulta eram sucessivamente
dispostos insetos em uma mesma posição, digamos, à frente e um pouco abaixo da
salamandra: ao se cobrir seu olho invertido, o animal projeta sua língua e captura com
perfeição o alvo; ao se cobrir seu olho normal, o animal projeta sua língua no vazio, na
direção exatamente oposta – para trás, e um pouco acima. As correlações estruturais
internas entre as células da retina e os nervos que contraem músculos motores da língua
mantêm-se inalteradas, independentemente da realidade exterior “vista”.
Poderia uma salamandra com os dois olhos invertidos e mantida viva por outros meios
que não a captura de alimento recuperar, com o tempo, sua capacidade de nutrição
autônoma (ou seja, de conservação ao meio), pela inversão também na motricidade da
língua? Teremos oportunidade de voltar ao tema das condições para um resgate da
conservação da adaptação. Não obstante, ao final do século XIX, movido pela
indagação quanto a como podemos ver corretamente o que vemos se as imagens são
projetadas de modo invertido na retina, Stratton322 adaptou a si próprio óculos que o
321
Ver SPERRY, Roger W. “Restoration of Vision after Crossing of Optic Nerves and after Contralateral
Transplantation of Eye”. Journal of Neurophysiology, vol. 8, pp. 15-28, 1945.
322
George Malcolm Stratton (EUA; 1865-1957); ver “Some Preliminary Experiments on Vision without Inversion of
the Retinal Image”. Psychological Review, vol. 3, pp. 611-617, 1896; “Upright Vision and the Retinal Image”.
114
faziam ver o mundo de cabeça para baixo. Após cerca de uma semana de severa
desorientação, sua visão voltou a gerar imagens em suas posições habituais; alguns dias
mais e ele retirou os óculos, com o que por várias horas tudo voltou a ser visto de
cabeça para baixo até que, finalmente, seu sistema nervoso resgatou suas correlações
originais (não deve ser negligenciado o fato de que Stratton, ao contrário das
salamandras, sabia o que se passava com sua visão).
Comunicação e linguagem
Como vimos, o surgimento de unidades de terceira ordem se dá pela estabilização dos
acoplamentos entre unidades de segunda ordem, por sua vez surgidos como modo de
satisfação da autopoiesis dessas unidades (na medida em que favorecem sua
viabilidade). Em unidades que são dotadas de sistema nervoso, o incomensurável
número de seus estados internos configura também perturbações a que o sistema
responde. Dessa capacidade do sistema nervoso de interagir de modo recursivo com
seus próprios estados internos advém um novo salto qualitativo, o potencial para
participação em um modo particular de acoplamentos temporários e recorrentes entre
duas ou mais unidades: um modo comunicativo, em que o operar de uma dada unidade
se destaca, no meio, como contexto privilegiado para a satisfação da autopoiesis da(s)
outra(s), e vice-versa.
Um acoplamento comunicativo advém sempre que um dado comportamento de uma
unidade deslancha uma seqüência de comportamentos encadeados, ao constituir uma
perturbação a ser compensada pela(s) outra(s) unidade(s), por meio de um novo
comportamento nesta(s), o que por sua vez é perturbação a ser compensada pela
primeira unidade implicando em um novo comportamento para esta, que implica,
recursivamente, novas perturbações... novas compensações... novos comportamentos... e
assim sucessivamente.
Os acoplamentos comunicativos surgem como modos de conservação da adaptação das
unidades ao meio na medida em que eles propiciam uma coordenação de
Psychological Review, vol. 4, pp. 182-187, 1897; e “Vision without Inversion of the Retinal Image”. Psychological
Review, vol. 4, pp. 341-360, 463–481, 1897.
115
comportamentos que favorece essa conservação (basta lembrar que a própria reprodução
sexuada, bem como em inúmeros casos o cuidado com os filhotes, requer condutas
coordenadas entre macho e fêmea). A comunicação é assim a natureza dos
acoplamentos em que as condutas das unidades envolvidas são reciprocamente
selecionadas (logo, mutuamente coordenadas). Por exemplo, ao perceber a presença de
um intruso, um bando de antílopes montanheses dispara na direção de alguma elevação
de onde possa, em segurança, acompanhar a movimentação do estranho, enquanto que
um antílope retardatário o mantém sob suas vistas até que o bando já esteja posicionado
para voltar a monitorá-lo, e somente então se reúne a ele – trata-se de uma fuga
coordenada. Ou ainda, um casal de leões, ou uma alcatéia de lobos, coordena suas
atividades de caça com especialização de papéis (impelir a caça na direção desejada,
cansar a caça, cortar suas rotas de fuga, abatê-la).
De um modo geral é necessária alguma compatibilidade estrutural mínima para que a
comunicação possa ocorrer (Maturana se refere a uma “vasta coincidência” entre os
domínios cognitivos envolvidos),323 e devido a isso ela se dá predominantemente entre
indivíduos de uma mesma espécie. Isso no entanto não impede a ocorrência de
interações comunicativas entre seres humanos e seus animais domésticos, ou entre cães
e gatos que tenham sido criados juntos, ou ainda entre indivíduos de espécies distintas
sob circunstâncias de exceção na Natureza selvagem, numa extraordinária demonstração
da capacidade de mudança estrutural nos indivíduos como modo de conservação de sua
adaptação ao meio.
O repertório de comportamentos comunicativos (que se dão por meio de interações
sonoras, olfativas, táteis ou visuais, estas englobando toda sorte de gestos, posturas e
movimentos; ou até mesmo pela troca de substâncias gástricas, entre insetos sociais
como as formigas) encontra-se corporificado em estruturas que podem ter origem
filogênica (ou seja, trata-se de comunicações instintivas para toda uma espécie),
ontogênica (comunicações aprendidas pelos indivíduos no curso de sua adaptação ao
meio), ou ainda cultural (comunicações aprendidas que são replicadas entre gerações
pela imitação dos adultos pelos jovens, e assim tornadas estáveis no tempo). Por
exemplo, as trocas químicas entre formigas são instintivas, enquanto que as melodias
323
Cf. MATURANA, 1980a (1969): 27.
116
entre casais de papagaios são próprias a cada casal, portanto aprendidas, sem serem
repassadas aos filhotes.
Já uma clara distinção entre comunicações instintivas e culturais na Natureza é tarefa
que apresenta dificuldades, e assim muitos dos exemplos de comunicações culturais de
que dispomos referem-se àquelas desencadeadas, intencionalmente ou não, pela ação
humana – portanto passíveis de terem seu início demarcado. Na Inglaterra, após a
substituição dos tradicionais lacres de papelão das garrafas de leite por lacres mais
delgados de alumínio, alguns chapins (pássaros que se deslocam em grupo e costumam
trocar freqüentemente de bando) e tordos (aves que vivem em áreas bem delimitadas e
comunicam-se agressivamente entre si nas fronteiras de seus territórios) aprenderam a
bicar os lacres das garrafas deixadas nas portas das casas até furá-los; o conhecimento
quanto a esse modo de obtenção de alimento disseminou-se rapidamente entre todos os
chapins da ilha, e perpetuou-se pelas gerações por meio da imitação (também uma
coordenação entre comportamentos), pelos jovens, do comportamento dos mais velhos.
O mesmo não ocorreu com os tordos, em que, a cada geração, apenas alguns indivíduos
dão conta de aprender a furar os lacres.324
Outro exemplo é um experimento feito com macacos habitantes das matas de
arquipélagos do Japão.325 Ao dispor na areia das praias batatas e trigo, os pesquisadores
inicialmente conseguiram que alguns macacos passassem a deslocar-se até a praia,
comportamento que logo se espalhou para os demais; posteriormente, uma fêmea, a que
se chamou Imo, descobriu que as batatas podiam ser limpas da areia se lavadas na água
do mar, e esse comportamento também se disseminou; finalmente, Imo descobriu uma
forma de mergulhar o trigo e deixá-lo flutuar para separá-lo da areia, e aos poucos todos
os outros macacos foram capazes de aprender tal técnica, transmissível entre gerações.
Dado interessante (a que retornaremos) é que os que se demoravam mais para assimilar
os novos comportamentos eram sempre os indivíduos mais velhos – ou seja, aqueles
com dinâmicas estruturais estáveis por mais tempo.
324
Ver WYLES, Jeff S., KUNKEL, Joseph G., WILSON, Allan C. “Birds, Behavior, and Anatomical Evolution”.
Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 80, n. 14, pp. 4394-4397, 1983.
325
Ver KAWAMURA, Shunzo. “The Process of Sub-culture Propagation among Japanese Macaques”. Primates,
vol. 2, pp. 43-60, 1959.
117
Ao conjunto das condutas comunicativas Maturana e Varela denominam domínio
lingüístico, devido a ser possível ao observador atribuir um significado (ou conteúdo
semântico) a cada comportamento comunicativo, e considerar tal significado como
determinante para o curso das interações.
Já a linguagem é um caso particular de comunicação, que emerge quando os
comportamentos comunicativos podem ser tornados, eles próprios, distinguíveis no
meio (ou seja, quando passam a guardar correspondência com correlações neuronais
específicas que, por sua vez, passam a operar como perturbações para o sistema
nervoso, fomentando a coordenação da condutas). Dito de outra forma, as comunicações
passam a conformar descrições desse meio, descrições com que se pode interagir (ou
seja, tornadas também componentes estruturais do meio a que se acopla, também
perturbações cuja compensação se vale da coordenação de comportamentos). É quando
o domínio lingüístico torna-se de fato um domínio semântico, porção indistinguível
(porque porção de estados do sistema nervoso) do domínio de interações em que tem
lugar a conservação da adaptação – para os seres humanos, as palavras (melhor, seus
significados percebidos) também operam como seletoras de suas mudanças estruturais.
Conservamos nossa adaptação em um mundo de significados em permanente expansão:
a recorrência das interações lingüísticas nos permite, em recursão infinda, “descrever
nossas descrições” – construir consensualmente novas distinções a partir de distinções
já estabelecidas. Uma vez que o homem desenvolveu a capacidade de interagir de modo
recursivo com seus próprios estados neuronais internos (capacidade de abstração), ele se
encontra em condições de expandir indefinidamente seu domínio cognitivo; e, por
dispor de uma linguagem, não há limites para o que ele possa descrever. A própria
concepção do termo “autopoiesis” é um exemplo disso:
Após alguns anos... eu me dei conta de que a dificuldade era tanto epistemológica quanto
lingüística... somente é possível dizer-se, com uma dada linguagem, aquilo que a linguagem
permite. Eu tinha de parar de olhar para os sistemas vivos como sistemas abertos definidos em um
ambiente, e eu precisava de uma linguagem que me permitisse descrever um sistema autônomo de
uma maneira que retivesse a autonomia como um atributo do sistema, ou entidade, especificado
pela descrição.326 ... [autopoiesis] era uma palavra sem uma história, uma palavra que poderia
diretamente expressar o que acontece nas dinâmicas de autonomia próprias aos sistemas vivos.327
326
327
MATURANA, 1980c: xiii.
Ibid., p. xvii
118
Denomina-se domínio semântico ao conjunto das condutas coordenadas por consensos
na linguagem devido a ser possível, a um observador, inferir a existência de algum tipo
de mapeamento, no sistema nervoso dos participantes, das circunstâncias de suas
interações (ou seja, uma representação do meio), e vê-lo como determinante para o
curso de suas mudanças de estado.
Não obstante, a linguagem é nada mais que um fenômeno biológico, um processo de
mudanças estruturais encadeadas em unidades autônomas acopladas que corresponde a
uma coordenação de coordenações de comportamentos, ou seja, a uma metacomunicação
(comunicações
a
respeito
de
comunicações
coordenadoras
de
comportamentos: descrições).
A distinção entre comunicação e linguagem pode ser exemplificada pela relação de um
homem com seu animal doméstico: um gato, como forma de pedir leite a seu dono, todo
dia pela manhã dirige-se até a geladeira e mia, com o que seu dono também vai à
geladeira e serve leite ao gato – o gato e seu dono coordenam mutuamente suas
condutas: eles se comunicam. Chega um dado dia em que o homem sabe que não há
leite na geladeira, portanto não vai à cozinha após o miado do gato, com o que o gato
continua a miar. Se nessa hora o gato dispusesse de algum modo de expressar para seu
dono algo como “bolas, eu já miei três vezes! Cadê o meu leite?”, isto configuraria uma
comunicação a respeito de uma comunicação anterior (o miado de sempre), ou seja,
uma descrição em que se distingue o próprio comportamento comunicativo – seria
linguagem.
A capacidade de operar na linguagem, natural no homem, não é exclusiva a ele: há
indicações de que os golfinhos detêm uma linguagem eminentemente auditiva; já
chimpanzés e gorilas são até mesmo capazes de aprender com os humanos os
rudimentos de linguagens gestuais, como as linguagens usadas pelos surdos-mudos.
Aparentemente, a principal limitação desses primatas para a linguagem falada está em
seu aparelho vocal, não em suas capacidades cognitivas; pode-se supor que foi o
advento da linguagem em suas formas primitivas que induziu, no homem, ao
progressivo desenvolvimento estrutural de seu aparelho vocal – e não o contrário.
119
Muito provavelmente, foi na coordenação de atividades como o transporte por longas
distâncias de alimentos coletados que os hominídeos primitivos começaram a distinguir
(descrever) elementos de seu mundo por meio de vocalizações, e a interagir com essas
distinções, expandindo assim seus domínios de interação – seus domínios cognitivos.
Seguiram-se distinções de distinções, num processo recursivo e infindo de contínua
criação de um mundo em comum na linguagem. Duas ou mais pessoas engajadas na
tarefa de cavar um buraco distinguem na linguagem, de modo consensual, elementos de
seu mundo tais como “pedra”, “terra” ou “pá”, e ao interagir com essas distinções
coordenam suas condutas. Mas, a partir do momento em que um deles passa a chamar o
buraco de “cisterna”, “silo”, “cova” ou “lixeira”, emerge um novo consenso a respeito
daquele mundo em comum.
O homem primitivo, a partir do instante em que descreve (distingue) a si próprio na
linguagem e converte a si mesmo em mais um elemento de seu mundo, emerge como
observador nele. Toda e qualquer descrição do mundo é uma descrição por alguém,
uma descrição que correlaciona elementos do mundo do descritor, inclusive ele próprio:
“tudo que é dito é dito por um observador”.328 É na linguagem que se dá a construção e
a renovação de consensos a respeito do mundo, um mundo que não tem como ser
conhecido em comum, posto que nele toda cognição é individual, mas que é
necessariamente vivido em comum – na linguagem.
A mais significativa expressão da diversidade cultural humana é a diversidade da
linguagem – a diversidade dos mundos historicamente construídos ao longo das
trajetórias de mudança estrutural de homens em mútua coordenação de condutas. Esses
mundos originam-se em muitos tempos e lugares, e continuamente se bifurcam, dando
origem a novos mundos. Por exemplo, dentre os inúmeros modos de distinção
consensual do elemento “pai” no mundo para que com ele se possa interagir, muitos
tiveram uma origem comum: pater, pai, père, padre, father ou vater, cada um deles
resultado de seleção havida em um curso particular de expansão de um dado domínio de
interações:
... a estrutura sintática, ou gramática, superficial em uma dada linguagem natural pode apenas ser
uma descrição das regularidades na concatenação dos elementos de conduta consensual. Em
328
MATURANA, 1980a (1969): 8.
120
princípio, esta sintaxe superficial pode ser qualquer uma, porque sua determinação é contingente à
história de acoplamentos estruturais, e não é um resultado necessário de alguma fisiologia
necessária. Reciprocamente, a “gramática universal” de que falam os lingüistas, como o necessário
conjunto de regras subjacentes comum a todas as linguagens naturais humanas, pode somente
referir-se à universalidade do processo de acoplamento estrutural recursivo que se dá nos
humanos, por meio da aplicação recursiva dos componentes de um domínio consensual no329
domínio consensual.330
O caráter aparentemente arbitrário das diversas formas semânticas tende a encobrir a
natureza histórica de sua constituição, na recorrência das interações que coordenam as
condutas humanas. Tal trajetória recursiva oculta necessariamente suas origens:
tendemos a tomar as regularidades de nossos mundos, que vão de cores a normas
sociais, como intrinsecamente reais, não como acumulações, construtos históricos.
Atingir uma tal consciência corresponde, nas palavras de Maturana, a “uma transição
fundamental, de um domínio de ontologias transcendentais para um domínio de
ontologias constitutivas”.331 A linguagem não é um “sistema de comunicação”
inventado por alguém em sua apreensão do mundo, e a seguir ensinado a outrem – logo,
ela não nos serve como meio para revelação desse mundo. A linguagem surgiu não
como modo de referenciar entidades independentes, mas como modo de prover
orientação, dentro de seu próprio domínio cognitivo, a cada participante de interações
em um domínio consensual de condutas. Toda realidade é recursivamente gerada e
renovada na linguagem:
Seres humanos podem falar sobre coisas porque eles geram as coisas sobre as quais falam ao falar
sobre elas. Isto é, seres humanos podem falar sobre coisas porque eles as geram ao fazer distinções
que as especificam em um domínio consensual, e porque, operacionalmente, o falar se dá no
mesmo domínio fenomenológico em que as coisas são definidas como relações entre atividades
neuronais relativas, em uma rede neuronal fechada.332
Nesse processo, é impossível identificar as origens de uma dada percepção. Ela é
sempre uma percepção a partir de uma percepção a partir de uma percepção... (a
descrição de uma descrição de uma descrição... a distinção de uma distinção...): “não há
329
330
331
332
No original, grafado como “without” ao invés de “within”, para nós um claro erro de transcrição.
MATURANA, 1978: 52.
MATURANA, 2002 (1999): 34.
MATURANA, 1978: 56.
121
lugar algum em que nós possamos lançar âncora e dizer: ‘Aqui foi onde a percepção se
iniciou; foi assim que ela se deu’”.333
Não há descrições fora da linguagem, e não há linguagem fora das interações (“uma
descrição implica sempre uma interação”).334 Nosso viver é indissociável da trama de
acoplamentos estruturais lingüísticos em que nos encontramos imbricados desde
sempre. É no viver na linguagem (“nós vivemos e respiramos no diálogo e na
linguagem”)335 que nossa cognição é o processo de uma permanente criação, no
contexto de um domínio consensual de condutas, de um mundo por cada um.
O peso da tradição
Pela teoria da autopoiesis, que examinamos em extensão, a chave para o entendimento
da cognição humana reside na compreensão do continuum biológico consistido pelos
processos históricos de transformação estrutural.
Vimos acima (p. 61) as origens da concepção representacionista para a cognição. Vimos
ainda (p. 92) que, para Maturana e Varela, o fenômeno da cognição corresponde a uma
decorrência (manifestada no domínio comportamental do ser vivo como conservação de
sua adaptação ao meio) de um outro fenômeno (este pertencente ao seu domínio
fisiológico): a conservação de sua autopoiesis (por sua vez manifestada como
especificação contínua de uma realidade). Também vimos que a idéia de uma apreensão
da realidade (consubstanciada na construção de uma representação sua) corresponde a
nada além de uma projeção, sobre o domínio operacional dos seres vivos, de descrições,
de natureza simbólica, pertencentes a um domínio lingüístico de construção de
consensos a respeito do real entre observadores: “realidade é uma noção explanatória
inventada para explicar a experiência da cognição”.336
333
334
335
336
VARELA, 1984a (1981): 320.
MATURANA, 1978: 61.
VARELA, 1979: 268.
MATURANA, 1978: 32.
122
Esta negação do representacionismo e de sua idéia de um mundo objetivo único não
implica, de forma alguma, o resvalar para o caos do solipsismo, a primazia da pura
subjetividade. Se não há acesso direto possível ao mundo, apenas a cognição, por cada
um, de seu mundo individualizado, tampouco há incomensurabilidade entre o conjunto
de mundos em uma comunidade ou sociedade – porque esses mundos somente podem
originar-se a partir de alguma tradição, ou seja, como eventos em uma trajetória
histórica de acoplamentos comunicativos de natureza cultural entre os indivíduos
componentes de unidades de terceira ordem (comunidades e sociedades – unidades
autônomas que também operam na conservação de suas identidades): “tudo o que é dito
é dito a partir de uma tradição. Toda afirmação reflete uma história de interações à
qual não podemos escapar, porque é isto o que torna possível a linguagem humana”.337
Assim, durante milênios os navegadores adentravam os mares aterrorizados com a
perspectiva de cair pela borda do mundo – um mundo que era então, para todos, plano.
Também durante milênios, os homens que viam o Sol nascer em lado do céu e pôr-se no
lado oposto acreditaram girar o Sol em torno da Terra; após construir um telescópio e
comprovar a tese de Copérnico338 de que é a Terra que gira em torno do Sol, Galileu339
veio a vivenciar de modo dramático o peso da tradição, e os riscos de propor uma
realidade (um mundo) diametralmente contrária à dos demais. É o caso de se perguntar:
quantas das “realidades” contemporâneas não estarão, no futuro, igualmente reduzidas à
condição de crendices? Há inúmeros outros exemplos: em um mundo que de início
somente Gandhi340 conhecia havia espaço para uma Índia independente da Inglaterra
sem recurso à violência; seu feito notável foi ter logrado compartilhar essa sua realidade
com milhões de compatriotas seus.
Há também espaço potencial para quaisquer conjecturas quanto aos mundos que os
homens possam se propor a criar juntos: por exemplo, no presente, sabe-se (conhece-se)
que já estão concebidos meios tecnológicos potenciais para prover condições dignas de
subsistência para a totalidade da população sobre a Terra; sabe-se (conhece-se) também
337
VARELA, 1979: 268.
338
Nicolaus Copernicus (n. Mikolaj Kopernik, Polônia (Prússia); 1473-1543); ref. hist.: De revolutionibus orbium
coelestium. Nürnberg (Alemanha): Johann Petreius, 1543. (Publicação póstuma por Andreas Osiander).
339
340
Galileo Galilei (República de Florença (hoje Itália); 1564-1642).
Mohandas Karamchand (Mahatma) Gandhi (Índia; 1869-1948).
123
que a instituição “emprego” (que correlaciona aplicação de trabalho com aquisição de
meios para subsistência) mostra-se cada vez mais ineficaz como meio para a
conservação das sociedades; é possível que, no futuro, se venha a conhecer também a
viabilidade de sociedades em que a todos sejam providos, de um modo dissociado, tanto
meios de subsistência quanto meios para o exercício de atividades (pois que ambos são
necessários à conservação da autopoiesis dos indivíduos).341
O papel de âncora desempenhado pela inércia da tradição nos domínios sociais humanos
encontra amplo correlato nos demais domínios biológicos. O observador chama os
comportamentos do ser vivo por ele percebidos como inadequados no meio, de
comportamento no vazio (se se trata de comportamento instintivo) ou de equívoco ou
erro (se se trata de comportamento aprendido); em todo caso, o que ocorre é
desacoplamento estrutural circunstancial, devido à independência operacional entre as
dinâmicas de mudança de estado no organismo e no meio, uma vez que os respectivos
ritmos (time courses)342 de transformação estrutural não propiciaram (ainda) o
acoplamento (ou, caso nunca logrem propiciá-lo, conformam desde já interações
desintegradoras). É ainda possível ao observador descrever como ansiedade os
comportamentos peculiares de um ser vivo ao tomar parte pela primeira vez em uma
classe de interações até então inédita para ele.
O potencial para mudanças de estado em uma unidade é dado por sua estrutura que, por
sua vez, resulta da história de acoplamento estrutural dessa unidade que, por seu turno,
traduz uma história de busca por estabilidade: a conservação da identidade em uma
unidade, seja de primeira, segunda ou terceira ordem, se dá na produção e renovação de
regularidades internas. Devido a isso, a contrapartida da conservação da identidade é a
inércia das regularidades estruturais, que face a mudanças buscas no meio tende a
constituir empecilho à conservação da adaptação. Como exemplo, a demarcação das
distintas eras e períodos geológicos, com durações de dezenas de milhões de anos, se dá
pela constatação de extinções maciças de espécies em períodos “curtos” de alguns
milhares de anos, atribuídas a mudanças climáticas profundas.
341
342
Cf. BAUER, 2002: 36.
Cf. MATURANA, 1978: 46.
124
De modo autônomo, o tempo para que a conservação da autopoiesis acabe por refletir-se
também em conservação da adaptação ao meio por via de mudanças estruturais é um
tempo necessariamente individualizado:
... se um organismo viesse a ser retirado do meio ao qual é estruturalmente acoplado, ele
prosseguiria em suas mudanças de estado estruturalmente determinadas independentemente da
inadequação destas às mudanças de estado do novo ambiente, e, cedo ou tarde, desintegrar-seia.343
É devido a isso que a transferência abrupta de seres vivos já adaptados a ambientes
muito poluídos para seus supostos ambientes “naturais” (limpos) pode levá-los à morte
por choque. Do mesmo modo, prisioneiros mantidos por longos períodos em ambientes
sem iluminação podem ficar cegos quando novamente expostos à luz; e, ao final da
Segunda Guerra Mundial, foi por oferecer rações militares enlatadas de alto teor
calórico a sobreviventes esqueléticos recém-libertados de campos de concentração que
soldados americanos inadvertidamente levaram muitos deles à morte.
No que diz respeito às adaptações de fundo cultural (tradições), a situação não é
diferente. Nosso perfil de acoplamento social mantém-se por tanto tempo estável que é
somente quando somos transplantados para um outro meio (uma outra tradição) que,
muitas vezes sob efeito de choque, nos damos conta de quantas dentre as nossas
“realidades” pouco ou nenhum sentido fazendo para os indivíduos da sociedade
estrangeira. Só se logra enxergar o óbvio na perturbação desse óbvio.
Mesmo no seio de nossas próprias tradições, a fase inicial de construção de
regularidades quando da formação de novos acoplamentos comporta tensões e risco de
mal-entendidos. Maturana distingue (e chama-a conversação) a etapa de interações
criativas em que há seleção de novos comportamentos e de um perfil específico de
acoplamento estrutural, quando então ela cede lugar à comunicação, a coordenação por
interações não-criativas de condutas já estabelecidas (rotina).344
343
344
MATURANA, 1975 (1974): 331.
Cf. MATURANA, 1978: 54-55.
125
Em suma, o homem é autônomo em sua cognição, porém seu domínio cognitivo é
modulado pela identidade, também autônoma, da sociedade a que pertence:
Nós fomos educados ... em meio a uma tradição, e com uma estrutura biológica aos quais não
temos como escapar, ou fingir não possuir. Portanto nós somos dotados, por necessidade, de um
mundo de regularidades compartilhadas o qual não podemos alterar por voluntarismo. De fato, o
ato de entendimento situa-se basicamente além da nossa vontade, precisamente porque a
autonomia do sistema sócio-biológico em que nos encontramos inseridos se estende para além dos
nossos miolos, porque a nossa evolução nos torna parte de um agregado social e de um agregado
natural, dotados de uma autonomia compatível com, porém não redutível a, nossas autonomias
enquanto indivíduos biológicos. É precisamente por isso que eu tenho insistido tanto [ao contrário
de Maturana] em falar a respeito de uma comunidade-observadora ao invés de a respeito de um
observador; o conhecedor não é o indivíduo biológico. Assim, esta epistemologia da participação
vê o homem em continuidade com o mundo natural, em que o conhecimento vem à vida em
unidades autônomas em meio a um emaranhado de histórias inertes entrelaçadas, como um castelo
de cartas – estruturado, a despeito de auferir seu conteúdo e solidez a partir de si.345 (ênfases de
Varela)
Compreender o papel desempenhado pelo social na conformação da cognição humana
requer uma vez mais recorrer ao continuum biológico dos processos de transformação
estrutural. Do ponto de vista da conservação da identidade da unidade de ordem
superior, os componentes (as unidades de ordem inferior) são individualmente
dispensáveis ou substituíveis; pode-se considerar que o grau de autonomia efetiva com
que contam as unidades de ordem inferior é inversamente proporcional ao tempo em
que se encontra estabelecida sua pertença à unidade de ordem superior. Assim, ao longo
dos processos de constituição das unidades de segunda ordem (centenas de milhões de
anos), a conservação da adaptação dos organismos termina por selecionar a
estabilização das propriedades das células que o compõem, e advêm inclusive
mecanismos para eliminação das células que saem da norma. Já no processo de
constituição de unidades de terceira ordem (centenas de milhares de anos), um
equilíbrio entre as conservações individual e coletiva advém na medida em que os
organismos incluem a conservação das estruturas sociais a que pertencem como parte da
dinâmica de sua própria conservação (como no exemplo apresentado do antílope
montanhês), ou seja, em que sua autopoiesis incorpora a pertença ao grupo de que faz
parte. Por fim, mesmo os acoplamentos sociais humanos, que são os mais recentes na
Natureza (e por isso mesmo os que menos inibem a autonomia de seus componentes)
também contam com mecanismos próprios de retenção dos indivíduos em faixas de
comportamento socialmente aceitáveis.
345
VARELA, 1979: 275-276.
126
Se de um lado a conservação da adaptação dos seres humanos ao meio demanda sua
operação nos domínios de coordenações de condutas tais como existentes, por outro
lado cada indivíduo opera antes de tudo na conservação de sua própria identidade.
Consideremos um caso pitoresco:346 em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, o
monitor propõe ao grupo uma experiência de contato direto com a realidade objetiva.
Ele toma então dois frascos de vidro, enche um com água e outro com álcool; pega um
pequeno verme e deixa-o cair no frasco com água: o verme afunda, alguns segundos
depois começa a se movimentar, chega à superfície e nada até a borda. O monitor
apanha novamente o verme, deixando-o desta vez cair no frasco com álcool: ele
novamente afunda, porém dessa vez permanece inerte; instantes depois ele começa a se
desintegrar. Depois de algum tempo, do verme só resta uma região turva em meio ao
líquido cristalino. O monitor então pergunta: “Todos viram?” Sim, todos. “E a que
conclusão podemos chegar?” Uma mão se levanta: “Entendo que, se bebermos álcool,
não teremos vermes”. Viver é conhecer, conhecer é viver. Aquele alcoólatra renovou o
seu conhecimento sobre a sua realidade de forma referenciada em quem ele era – um
alcoólatra. Aquilo que somos determina os limites para o que podemos conhecer, ao
mesmo tempo que aquilo que conhecemos é o que recria aquilo que somos –
autopoiesis:
... a referência última a qualquer descrição é o próprio observador... uma compreensão da cognição
como um fenômeno biológico tem de dar conta do observador, e de seu papel quanto a ela.347 ... A
pergunta, “O que é o objeto do conhecimento?” torna-se sem sentido. Não há objeto do
conhecimento. Conhecer é estar apto a operar adequadamente em uma situação individual ou
cooperativa.348
A compreensão biológica da condição humana proposta por Maturana e Varela abre
incontáveis desdobramentos em ciência social, e mesmo nas interseções desta com a
Biologia (pode-se, por exemplo, compreender o fenômeno da somatização como o
reflexo, na unidade de segunda ordem, das inconsistências entre conservação da
identidade e conservação da adaptação, oriundas dos modos particulares de
acoplamento nas unidades de terceira ordem a que o indivíduo pertence). É digno de
346
347
348
Extraído de BAUER, 2002: 32.
MATURANA, 1980a (1969): 8-9.
Ibid., p. 53.
127
destaque o que Maturana e Varela chamam “ética da responsabilidade”: construímos
internamente o mundo ao nosso redor, pautamos nessa construção toda a nossa atuação
nesse mundo, e somos por ele também construídos numa jornada em comum. A noção
até então prevalente de que seríamos meros processadores das informações provenientes
de um mundo previamente estabelecido induz à acomodação, como se fôssemos guiados
por instruções externas, e nos coloca no confortável papel de “consumidores” passivos
da realidade, ao invés do papel desafiante de construtores ativos dela. A individualidade
tem por contrapartida a responsabilidade: se vivemos nossas vidas de uma forma
insatisfatória para nós, se construímos destinos indesejados para nós, a responsabilidade
cabe unicamente a nós mesmos.
Explorar em detalhe os desdobramentos da autopoiesis nas ciências sociais exigiria um
trabalho ainda mais extenso; limitar-nos-emos a indicar aqui as contribuições feitas
nesse sentido à época da consolidação da teoria da autopoiesis349 e as que advieram
posteriormente, por um mais arrojado Maturana350 (focado na capacidade criativa do
indivíduo de operar como observador do meio social em que se encontra imerso) e um
mais parcimonioso Varela351 (mais atinente ao papel desempenhado pela tradição), que
enveredou pelos caminhos que aqui mais nos interessam: os que buscam desvendar os
meandros da cognição humana.352
349
MATURANA, 1978: 61-63, 1980d, 1980c: xxiv-xxx; MATURANA, VARELA, 1980 (1972): 117-118, 1987
(1984).
350
Ver Emociones y Lenguaje en Educacion y Politica. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1990; MATURANA,
VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Liebe und Spiel. Die vergessenen Grundlagen des Menschseins. Heidelberg (Alemanha):
Carl-Auer-Systeme Verlag, 1993; MATURANA, NISIS de REZEPKA, Sima. Formación Humana y Capacitación.
Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1995; MATURANA, VERDEN-ZÖLLER. “Biology of Love”. In: OPP,
Gunther, PETERANDER, Franz (eds.). Focus Heilpädagogik. München (Alemanha): Ernst Reinhardt, 1996;
MATURANA, BLOCH, Susana. Biología del Emocionar y Alba Emoting. Respiración y Emoción. Santiago de
Chile: Dolmen Ediciones, 1996; e MATURANA. Transformación en la Convivencia. Santiago de Chile: Dolmen
Ediciones, 1999.
351
Ver Un Know-how per l’ettica, The Italian Lectures 3. Roma: Editrice La Terza, 1992. Versão em inglês: Ethical
Know-How: Action, Wisdom, and Cognition. Stanford (Califórnia): Stanford University Press, 1999.
352
Ver Connaître: Les sciences cognitives, tendences et perspectives. Paris: Éditions du Seuil, 1988;
“Neurophenomenology: A Methodological Remedy for the Hard Problem”. Journal of Consciousness Studies, vol. 3,
n. 4, pp. 330-350, 1996. Reimpresso em: SHEAR, Jonathan (ed.). Explaining Consciousness: The Hard Problem of
Consciousness. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, pp. 337-358, 1997; “The Specious Present: A
Neurophenomenology of Time Consciousness”. In: PETITOT, Jean, VARELA, PACHOUD, Bernard, ROY, JeanMichel (eds.). Naturalizing Phenomenology: Issues in Contemporary Phenomenology and Cognitive Science.
Stanford (Califórnia): Stanford University Press, pp. 266-314, 1999; “Consciousness: The inside View”. Trends in
Cognitive Sciences, vol. 5, n. 7, pp. 318-319, 2001; e THOMPSON, Evan, VARELA. “Radical Embodiment: Neural
Dynamics and Consciousness”. Trends in Cognitive Sciences, vol. 5, n. 10, pp. 418-425, 2001. Ver também
VARELA (ed.). Sleeping, Dreaming, and Dying: An Exploration of Consciousness with the Dalai Lama. Boston
(Massachusetts): Wisdom Publications, 1997; e VARELA, SHEAR (eds). The View from Within: First-person
Approaches to the Study of Consciousness. London: Imprint Academic, 1999.
128
As questões concernentes à natureza do conhecimento são objeto de reflexão e
questionamento desde a Antiguidade, e compõem um ramo específico da Filosofia a que
se denomina Teoria do Conhecimento. Uma de suas correntes históricas, o empirismo,
desenvolvido por pensadores ingleses dos séculos XVI ao XVIII, atribui primazia aos
sentidos no processo de construção do conhecimento, em que a experiência sensorial
operaria como “importadora” da realidade, de fora para dentro. Após as contribuições
de Kant, como vimos,353 a visão representacionista tornou-se predominante, numa
sofisticação do antigo empirismo em que era concebida uma entidade universal a todos
os seres humanos, a “razão transcendental” que, ao formatar a experiência empírica
subjetiva, geraria conhecimentos passíveis de julgamento quanto a seu grau de
objetividade. Como linhas derivadas dessa corrente dominante, advieram o realismo (a
realidade existente em si e por si mesma), o pragmatismo (os critérios de verdade para o
conhecimento como sua eficácia e utilidade) e o positivismo (o conhecimento como um
contínuo processo cumulativo, e motor perpétuo do avanço social).
Todas estas linhas já se mostravam influentes nas ciências sociais quando, no início do
século XX, Malinowski,354 após estudar sociedades tribais, compôs uma teoria pelo que
a totalidade dos elementos da sociedade (instituições, costumes, crenças, mitos, ritos,
cerimônias, tabus etc.) integraria um todo cultural voltado à satisfação das necessidades
biológicas, psicológicas e sociais básicas dos indivíduos, para o que cada um desses
elementos concorreria pelo desempenho de sua função específica. Numa superação do
período de utopias que foi o século XIX, ganhava legitimidade e estatuto científico uma
visão conformista de sociedade que a compreendia como uma etapa em processo natural
de progressiva otimização, ao invés de circunstância cuja viabilidade acabou
selecionada por contingências. Assume-se a sociedade tal como existente como um
valor em si, com o que visões diagnósticas e críticas da sociedade são desqualificadas
em prol de proposições tecnicistas de ajuste para maior eficiência (com o que, por
exemplo, assuntos relativos à distribuição e uso de poder passam a ser vistos como
questões ou problemas de autoridade e controle). A política cada vez mais deixa de ser o
353
Remeter à p. 61.
354
Bronislaw Kasper Malinowski (Inglaterra; n. Polônia (Áustria-Hungria); 1884-1942); ver Argonauts of the
Western Pacific: An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea.
London: Routledge and Kegan Paul, 1922.
129
espaço do debate ético (“que sociedade queremos?”) e é rebaixada a mero espaço de
debates técnicos (“como fazer funcionar melhor a sociedade?”; “como corrigir suas
disfuncionalidades?”).
Em ciência social, esse paradigma passou a ser chamado Funcionalismo, congregando
explicações para a natureza dos assuntos humanos centradas em noções como ordem,
equilíbrio, estabilidade, controle, correção de desvios, eficiência e otimização. Tal
perspectiva amalgamou-se por completo com a visão representacionista para a cognição
humana: a apreensão de uma realidade objetiva dada, única a todos.
Ao final do século XIX surgiu um outro paradigma de muito menor penetração, a
Fenomenologia (aqui, grafada em maiúscula para distingui-la da acepção de “relativo
aos fenômenos”, como em “fenomenologia biológica”), originalmente concebida por
Husserl 355 como uma linha em Teoria do Conhecimento em que a cognição era
compreendida como um processo, necessariamente individualizado, de relação entre o
conhecedor (consciência: a razão transcendental)356 e o conhecido (o fenômeno): é a
consciência que constitui os fenômenos (e não a experiência sensorial), ao lhes atribuir
sentido e significado, referidos estes à história pessoal do conhecedor e integrantes do
seu viver. A “realidade” de cada um não são as coisas “lá fora”, são os sentidos e
significados produzidos pela sua consciência. Com o tempo, Fenomenologia passou a
designar o paradigma em ciência social em que múltiplas possibilidades de
conformação social podem ser percebidas, ganhando primazia o esforço de
interpretação.
A identidade da autopoiesis para com a Fenomenologia é evidente; em verdade,
concepções quanto à natureza subjetiva e individualizada do conhecimento foram
propostas desde a Antiguidade, e historiá-las (e a suas identidades para com a
autopoiesis) demandaria outro extensivo trabalho.357 Registramos aqui apenas que,
dentre todas elas, a que maior correspondência guarda para com a autopoiesis é o
355
Edmund Gustav Albrecht Husserl (Alemanha; n. Tchecoslováquia (Áustria); 1859-1938); ref. hist.: Logische
Untersuchungen. Halle (Alemanha): Max Niemeyer, vol. 1 (Prolegomena zur reinen Logik), 1900, vol. 2
(Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis), 1901.
356
Remeter à p. 61.
357
Que pode ser encontrado, por exemplo, em von GLASERSFELD, Ernst. Radical Constructivism: A Way of
Knowing and Learning. London: Falmer Press, 1995.
130
desdobramento da Fenomenologia husserliana levado a cabo por Merleau-Ponty,358 que
deslocou da consciência (a razão, ou sujeito, transcendental, concebida por Kant e
endossada por Husserl) para o corpo sensível a faculdade da cognição (de atribuição de
sentido e significado), numa superação da histórica dicotomia corpo-mente (res extensa
e res cogitans).
Também a realidade é vista por Merleau-Ponty como mundo sensível, estabelecendo-se
entre corpo e mundo sensíveis uma relação de modulação mútua (um “campo de
presença”), correlata à noção de acoplamento estrutural. A linguagem é também vista
como manifestação corporal (ou seja, estrutural), e as palavras, ao invés de portadoras
de significados dados, são vistas como expressões de uma maneira individualizada de
ser que implicam a permanente e recursiva construção de sentido nas interações. Ainda,
os conceitos de logos do mundo estético e logos cultural de Merleau-Ponty são em certa
medida correlatos, respectivamente, às noções de domínio cognitivo e de domínio
consensual de condutas na linguagem.
A grande novidade representada pela autopoiesis (e daí decorre o interesse por ela
despertado entre os cientistas sociais) é a fundação biológica das concepções
fenomenológicas, o que vem conferir um status de credibilidade ao que até então era
considerado estritamente especulativo.
Com isso, são renovadas as possibilidades para um diálogo entre as concepções
funcionalista e fenomenológica de sociedade. Ora, como vimos, qualquer função
atribuída a um elemento em uma sociedade (por exemplo, uma instituição) refere-se a
uma correlação entre o operar (o “comportamento”) desse elemento e o operar do
restante do todo social (o contexto para o elemento, ou seu “ambiente”), correlação que
é estabelecida a partir do ponto de vista daquele que interage simultaneamente com
ambos, elemento e contexto: o observador. A função é assim componente de uma
explicação de caráter simbólico para o fenômeno social em questão. Se essa função é
vista como constitutiva da organização da sociedade em questão pelo desempenho de
algum papel causal, estamos diante do que Varela denomina explicação simbólica tosca.
Se ela é vista como componente de uma comunicação inteligível no seio de uma
358
Maurice Jean Jacques Merleau-Ponty (França; 1908-1961); ver La structure du comportement. Paris: PUF, 1942;
Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945; e Signes. Paris: Gallimard, 1960.
131
comunidade de observadores quanto ao fenômeno social em questão, estamos diante do
que Varela denomina explicação simbólica admissível; mas, aí, é preciso aceitar que se
trata tão somente de uma interpretação desse fenômeno.
“Tudo o que é dito, é dito por...” observadores imersos em uma tradição cultural. O
cristalizar de uma tradição corresponde ao processo histórico de estabilização para os
significados advinda das regularidades nas interações lingüísticas recorrentes entre
observadores:
... o conhecimento é realmente pleno de detalhes, mas não se apóia em parte alguma, afora sua
tradição, e não leva a parte alguma, afora a uma nova interpretação dentro dessa tradição.359
Se nesta tradição o conhecimento (a cognição) é visto como apreensão de uma realidade
objetiva dada (como é notadamente o caso da tradição ocidental de base anglo-saxã),
será inevitável que cada interpretação oriunda do (con)senso comum acabe tomada não
como uma interpretação viável dentre outras, cujo valor reside em sua plausibilidade ou
credibilidade, mas como a única válida, a única possível – como “realidade”:
... nós estamos sempre tendentes a reverter a alguma forma de realismo, e a esquecer que o que nós
estamos pensando, ou falando sobre, é, em quaisquer circunstâncias, nossa experiência, e que o
“conhecimento” que adquirimos é conhecimento de invariâncias e regularidades derivado de, e
pertencente a, nossa experiência.360 (ênfase de Varela)
Nós aparentamos ter sido criados em um mundo visto através das descrições dos outros ao invés
de através de nossas próprias percepções. Isto tem como conseqüência que, ao invés de usarmos a
linguagem como uma ferramenta com a qual expressamos pensamentos e experiências, nós
aceitamos a linguagem como uma ferramenta que determina nossos pensamentos e
experiências.361
De outro modo: a função de qualquer elemento da sociedade somente adquire um tal
sentido de funcionalidade a partir de um ponto de vista próprio a uma dada tradição.
Não queremos dizer que o Funcionalismo carece de validade; estamos dizendo que
qualquer funcionalismo é um caso particular em uma fenomenologia, é uma
359
360
361
VARELA, 1979: xvii.
Ibid., p. 276.
von FOERSTER, 1984b (1972): 195.
132
interpretação (na terminologia fenomenológica), ou uma viabilidade (na terminologia da
autopoiesis), dentre outras.
Dada, porém, a forte e pervasiva presença da tradição funcionalista (já pudemos mostrar
o seu peso na tradição específica da Administração), urge fomentar as pontes para um
diálogo entre estas duas tradições em ciência social.
Novamente, quem opera nesse sentido é Luhmann que, inspirado em toda uma
sociologia funcionalista (a de Parsons),362 a estende para o interior de um arcabouço
fenomenológico. Assim, da mesma forma como se pode compreender a passagem da
primeira para a segunda Cibernéticas como uma abertura para a Fenomenologia a partir
de dentro do Funcionalismo (levada a cabo em meio à tradição cultural americana pela
tenacidade de um austríaco de nascença e formação, von Foerster), pode-se considerar a
sociologia funcionalista de Parsons como sociologia cibernética de primeira ordem, e a
sociologia “dialógica” de Luhmann uma sociologia cibernética de segunda ordem (ou
sociologia autopoiética).
Desnecessário dizer que tamanho pioneirismo epistemológico de Luhmann tornou sua
obra alvo de críticas por ambos os lados: ela tem sido vista no universo anglo-saxão
como demasiadamente complexa e pouco prática; no universo europeu continental,
como ideologicamente conservadora (uma vez que em Parsons a primazia da tradição –
no caso, anglo-saxã – é subjacente; já em Luhmann, a primazia de qualquer tradição é
reconhecida, e tornada elemento da teoria). Ambos os casos podem ser compreendidos
em termos de apego à tradição: aquele, como dificuldade de escapar ao paradigma
matriz; este, já no seio de uma tradição aberta à multiplicidade, como preconceito,
fidelidade a uma postura de proselitismo.
O observador em sua experiência
O melhor modo de concluir nossa exposição sobre a teoria da autopoiesis é mostrar que
sua validade somente pode advir de bases fenomenológicas.
362
Talcott Parsons (EUA; 1902-1979); ver The Social System. Glencoe (Illinois): Free Press, 1951.
133
Se assumimos a realidade como uma ontologia transcendental, então pressupomos o
espaço físico como domínio único de existência das coisas: a explicação para qualquer
fenômeno se dá nos termos de sua redução a esse domínio.
Porém, se assumimos a realidade como ontologia constitutiva, compreendemos que o
domínio de existência das coisas (bem como de nossa própria existência) é o domínio da
experiência humana, que emerge para nós de um modo muito concreto na linguagem. A
linguagem não é um elemento a mais dentre os que concorrem para o viver humano; a
linguagem é o modo de viver humano. A célula, bem como o espaço físico em que ela é
percebida, adquirem existência como entidades reais a partir de distinções na linguagem
feitas por observadores (distinções que não são criações arbitrárias, mas resultados de
uma coordenação de condutas). Tudo o que (para nós) existe, existe como experiência
humana. E toda explicação é explicação de nossas experiências por meio das coerências
de nossas experiências.
Dito de outro modo, toda explicação é uma reprodução da experiência, o que pode se
dar de um modo concreto pela síntese de um sistema físico equivalente, de um modo
abstrato por um formalismo matemático, ou ainda de um modo conceitual (como é o
caso da autopoiesis) pela proposição de uma dinâmica gerativa cujo resultado de seu
operar seja o fenômeno que se enseja explicar. Por exemplo, para explicar a célula, é
suficiente indicar a organização, ou a configuração de relações, definidora de uma rede
de processos de produções moleculares cujo operar gera uma fenomenologia
indistinguível da fenomenologia da célula.
Uma explicação de uma dada classe de sistemas, por meio da especificação de uma
mesma organização a todos os elementos dessa classe, principia em um ato cognitivo
por parte do observador, a distinção da classe de sistemas em tela. Por exemplo, se
aquilo a que o observador se propõe é o estudo da classe dos “vertebrados que nadam”,
sua tarefa seguinte será a caracterização de uma organização comum a pingüins (uma
ave), golfinhos (mamífero), cobras (réptil), rãs (anfíbio) além de, é claro, muitos peixes.
Uma vez identificada a classe de sistemas na pressuposição de ser sua organização
caracterizável, de modo algum esta organização encontra-se ontologicamente dada de
134
forma unívoca. Caberá ao observador, que percebe tanto o operar do sistema quanto
suas interações no meio, identificar regularidades (que são a própria razão da distinção
de uma classe de sistemas) e interpretá-las de modo a propor uma organização que
venha a tornar-se tema de conversações entre observadores, e ser então incorporada (ou
não) à tradição em que foi concebida. Em outras palavras, toda distinção se dá a partir
de critérios próprios ao observador.
O que Maturana e Varela (particularmente este último)363 apontam é que esse passo é
em nada trivial. Se o observador se propõe o estudo das possibilidades de controle sobre
o comportamento do sistema, será natural que ele foque sua atenção nas regularidades
percebidas nas interações do sistema com o ambiente; isto implica compreender as
propriedades do sistema como dadas, e o ambiente como fonte de instruções ao sistema
ou de restrições a seu comportamento – ou seja, como determinante para sua
especificação. Advém, por exemplo, a organização de tipo input-processamento-output
dos autômatos da primeira Cibernética, que deu origem aos computadores. Um tal
padrão de organização é claramente indicado às ciências tecnológicas voltadas a projeto
(como as engenharias), em que o observador especifica de antemão qual será o resultado
(output) aceitável.
Porém, se o que se propõe o observador é o estudo dos fenômenos decorrentes dos
comportamentos tidos como autônomos do sistema (como aprendizagem, adaptação e
evolução), será mais indicado buscar as regularidades percebidas nas interações internas
ao sistema (ou seja, suas coerências), o que implica compreender as propriedades do
sistema como emergentes, e todo comportamento do ambiente como perturbação nãoespecífica ou ruído, logo irrelevante para a especificação do sistema. Este é claramente
o caso das ciências biológicas e das ciências sociais, em que o problema central é
desvendar os modos pelos quais diferentes sistemas lidam com perturbações ambientais.
Adotar a primeira abordagem, em que os modos de organização são caracterizados a
partir do externo (o ambiente), implica compreender o fenômeno da adaptação como
otimização em um contexto específico (meio), a cognição como apreensão deste meio
pela construção de representações, a evolução como a sobrevivência do melhor
363
Cf. VARELA, 1979, 1984b.
135
adaptado, a linguagem como transferência de conteúdos semânticos, e a sociedade como
todo integrado de funcionalidades imanentes.
Adotar a segunda abordagem, em que os modos de organização são caracterizados a
partir do interno (o sistema), permite compreender o fenômeno da adaptação como
conservação da identidade por meio da mudança estrutural, a cognição como a
especificação de um mundo (pelo estabelecimento de correlações internas como modo
de referência a padrões de variação externos), a evolução como conservação da
adaptação (viabilidade) por acoplamento estrutural ao meio, a linguagem como
coordenação consensual de condutas por acoplamento mútuo, e a sociedade como etapa
transitória selecionada por contingências em uma trajetória cultural histórica.
Em suma, de um lado temos um paradigma de otimização a partir de interações de
natureza instrutiva vistas como inputs e outputs, em que os resultados insatisfatórios em
nossa interação com o sistema são erros; de outro, temos um paradigma de viabilização
a partir de interações de natureza construtiva vistas como perturbações ao invés de
inputs e compensações ao invés de outputs, e em que os resultados insatisfatórios são
lacunas de compreensão.
O reconhecimento de que quaisquer invariâncias e regularidades (de que provém a
caracterização dos sistemas), ainda que oriundas da experimentação empírica, são
construtos do observador ao invés de elementos ontológicos da realidade, rompe a
vinculação histórica entre empirismo e o ideal de objetividade. A Ciência prossegue
empírica, na apreensão das regularidades identificadas nos fenômenos, porém não mais
objetiva, pois para um mesmo fenômeno outras regularidades podem se mostrar tão
viáveis quanto, no “ambiente” dos domínios consensuais de conduta científica.
De acordo com Varela,364 passa-se assim a almejar um empirismo viável ao invés de
objetivo, o que guarda correspondência com as prescrições de Feyerabend 365 para a
Ciência. Já empirismos que venham a se mostrar inviáveis acabam por perder, tal como
364
Cf. VARELA, 1979: 277.
365
Paul Karl Feyerabend (EUA; n. Áustria; 1924-1994); ver Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of
Knowledge. London: New Left Books, 1975. Ver também Science in a Free Society. London: New Left Books, 1978;
e Farewell to Reason. London: Verso, 1987.
136
os seres vivos, a capacidade de conservação de sua “adaptação”, e não “sobrevivem” – o
que é de algum modo correlato aos procedimentos de exposição à falsificação
preconizados por Popper.366
A chave do trabalho de Maturana e Varela é mostrar que toda a fenomenologia
biológica tem lugar como conseqüência, direta ou indireta, do operar autopoiético. Disto
decorre que a teoria da autopoiesis pode ser falseada se vier a ser mostrado que há
algum fenômeno biológico que não implica, direta ou indiretamente, a autopoiesis:
... a única indicação possível de que nós atingimos nosso objetivo é a concordância do leitor
quanto a que toda a fenomenologia dos sistemas vivos, inclusive reprodução e evolução, realmente
requer a autopoiesis e dela depende.367 ... a validade dos nossos argumentos, bem como a validade
de qualquer argumento racional ou apreensão fenomenológica concreta, repousa sobre sua
validade.368
A única “prova” da teoria da autopoiesis é a observação do operar da célula, em que a
dinâmica de produções e transformações moleculares se dá de forma fechada e constitui
sua própria fronteira, ao passo que se mantém aberta ao permanente fluxo de matéria e
energia através de si. O operar autopoiético não tem como ser observado diretamente
uma vez que se dá, como um processo histórico, no fluxo de um presente em
permanente mudança; há, contudo, em Biologia, toda uma acumulação que propicia
admitir uma natureza autopoiética para a célula.
Ao invés de acompanhar a tradição que percebe o domínio físico como domínio
ontológico (ou seja, como domínio fenomenológico único), Maturana e Varela
escolheram privilegiar a experiência humana, que comporta tanto a experiência da
fisiologia (experiência dos fenômenos determinados pelas propriedades dos
componentes de um organismo) como a experiência do comportamento (experiência dos
fenômenos determinados pelas propriedades do organismo enquanto uma unidade), mas
que não necessariamente implica essas duas experiências como componentes de uma
mesma e única fenomenologia.
366
Ver Logik der Forschung. Vienna: Julius Springer Verlag, 1934. Versão em inglês (tradução por Popper): The
Logic of Scientific Discovery. London: Hutchinson, 1959; cf. nota 12, p. 6.
367
368
MATURANA, VARELA, 1980 (1972): 84.
Ibid., p. 122.
137
As explicações tradicionais para a fenomenologia biológica (cujas insuficiências foram
expostas), presas à tradição, vão perseguir sua redução a uma fenomenologia físicoquímica que tem lugar no espaço físico. Ora, se o espaço físico (como tudo o mais)
existe como ontologia constitutiva na experiência humana, ele não tem como ser
caracterizado em termos absolutos. Dito de outro modo: ao se lançar mão de uma lógica
explicativa (composta por noções consensuais como “identidade”, “interação”,
“seleção” etc.) como modo de caracterizar os fenômenos que ocorrem em um dado
espaço, é somente pela ausência de contradições que se pode concluir que,
ontologicamente, este é um espaço tal que, nele, a lógica empregada para as descrições
é intrinsecamente válida.
Mais: sobre o que pode versar uma tal lógica? Sobre as possíveis relações entre as
unidades que geram a fenomenologia em questão, não sobre as propriedades específicas
dessas unidades geradoras. É por respeitar antes de tudo a coerência da experiência
humana, ao invés do primado da tradição em Ciência, que Maturana e Varela propõem
então a existência de dois “espaços” distintos em que propriedades atuam (dois
domínios fenomenológicos), que dependem mutuamente um do outro para sua
conservação e que modelam mutuamente um do outro, porém não determinantes um do
outro (portanto não redutíveis mutuamente): o domínio fisiológico (no espaço físico,
determinado pelas propriedades das partes) e o domínio comportamental (naquele que
poderia ser chamado “espaço biológico”, determinado pelas propriedades do todo).
Não é outro o problema central das explicações para a fenomenologia social. A
chamada filosofia da consciência (em que consciência corresponde à razão, ou sujeito,
transcendental),369 paradigma matriz para as ciências sociais, estabelece como centro da
fenomenologia social o conceito de sujeito. Toda ação em um âmbito social é um agir
desempenhado pelo sujeito; dito de outro modo, qualquer fenômeno social é
necessariamente determinado pelo agir dos sujeitos. Denomina-se “individualismo
metodológico” à regra clássica em ciência social que exige jamais tratar os coletivos
(sociedades, comunidades, instituições, organizações) como se sujeitos fossem. Ora,
esta regra é claramente correlata à regra historicamente predominante nas ciências
naturais que exige a redução de toda fenomenologia à fenomenologia do espaço físico.
369
Remeter à p. 61.
138
É, no entanto, perfeitamente viável (e mesmo mais consistente) pressupor a existência
de dois domínios fenomenológicos distintos, mutuamente modeladores e dependentes
um do outro, mas jamais determinantes um do outro: o domínio individual (ou psíquico,
como o chama Luhmann) e o domínio social (no título desta tese, âmbitos individual e
social). Em outros termos, é isso o que nos diz Dupuy:
... o sujeito individual não tem mais o monopólio de certos atributos da subjetividade. É preciso
admitir que, ao lado dos sujeitos individuais, existem quase-sujeitos, que são entidades coletivas
capazes de exibir pelo menos alguns dos atributos que acreditávamos reservados aos sujeitos “de
verdade” – os indivíduos – e, em particular, a existência de estados mentais.370 (ênfase de Dupuy)
Tais “estados mentais” (uma subjetividade do coletivo) podem ser compreendidos como
os significados que emergem das interações humanas (como postularemos, com base em
Atlan). Evidentemente, não se trata aqui de uma identificação plena dessa subjetividade
coletiva para com a subjetividade individual, pois isto implicaria justamente o
reducionismo entre o psíquico e o social que se propõe superar.
Sem sombra de dúvida os homens “agem” sua sociedade; ela, porém, dotada de
complexidade instrínseca, lhes escapa: não haveria uma causalidade direta entre as
ações humanas e seus “efeitos” sociais. Reciprocamente, sem dúvida alguma a
sociedade molda os indivíduos; mas esta sua “ação” tampouco tem como ser vista como
diretamente determinante do curso das individualidades. Indivíduo e sociedade
dependem um do outro para sua própria geração, e permanentemente modelam-se
mutuamente; seriam, porém, determinados por suas dinâmicas internas próprias – e,
nesse sentido, autônomas.
Como referências de pensamento em ciência social que busca compreender a sociedade
em termos em alguma medida correlatos a esses, vale mencionar, além dos já citados
Luhmann371 e dos próprios Maturana372 e Varela,373 os nomes de Castoriadis,374
370
371
372
373
DUPUY, 1995 (1994): 217.
Remeter à nota 300, p. 103.
Remeter à nota 350, p. 128.
Remeter à nota 351, p. 128.
374
Cornelius Castoriadis (França; n. Kornelios Kastoriades, Turquia; 1922-1997); ver L’institution imaginaire de la
société. Paris: Éditions du Seuil, 1975; e Les carrefours du labyrinthe. Paris: Éditions du Seuil, 1978. Ver também
Domaines de l’homme. Les carrefours du labyrinthe II. Paris: Éditions du Seuil, 1986; Le monde morcelé. Les
139
Dupuy,375 Morin376 e Atlan,377 além daqueles que participaram da gênese da segunda
Cibernética: Bateson378 e Pask.379 Em termos históricos, Dupuy380 situa já em Adam
Smith381 (século XVIII) a noção de que os homens constroem a sociedade ao mesmo
tempo em que são por ela construídos; tal compreensão ganha bases mais consistentes a
partir da década de 30 com as proposições de von Hayek382 em Economia e de Elias383
em Sociologia.
carrefours du labyrinthe III. Paris: Éditions du Seuil, 1990; Philosophy, Politics, Autonomy. New York: Oxford
University Press, 1991; La montée de l’insignifiance. Les carrefours du labyrinthe IV. Paris: Éditions du Seuil, 1996;
World in Fragments. Stanford (Califórnia): Stanford University Press, 1997; Fait et à faire. Les carrefours du
labyrinthe V. Paris: Éditions du Seuil, 1997; e Figures du pensable. Les carrefours du labyrinthe VI. Paris: Éditions
du Seuil, 1999.
375
Ver Ordres et désordres. Enquête sur un nouveau paradigme. Paris: Éditions du Seuil, 1982; e Introduction aux
sciences sociales. Logique des Phénomènes Collectifs. Paris: Ellipses, 1992. Ver também DUMOUCHEL, Paul,
DUPUY (eds.). L’auto-organisation. De la physique au politique. Paris: Éditions du Seuil, 1983; DUPUY, LIVET,
Pierre (eds.). Les limites de la rationalité. Paris: La Découverte, vol. 1 (Rationalité, éthique et cognition), 1997;
DUPUY (ed.) Self-deception and Paradoxes of Rationality. Stanford (Califórnia): CSLI Publications (Stanford
University), 1998; Éthique et philosophie de l’action. Paris: Ellipses, 1999; e Pour un catastrophisme éclairé. Quand
l’impossible est incertain. Paris: Éditions du Seuil, 2002.
376
Remeter à nota 242, p. 75.
377
Ver A Tort et à raison. Intercritique de la science et du mythe. Paris: Éditions du Seuil, 1986; Tout, non, peut-être.
Education et vérité. Paris: Éditions du Seuil, 1991; ATLAN, 1992a (1979); “Is Reality Rational?” Cahiers
d’Épistémologie. Montréal: Université du Québec, Groupe de Recherche en Épistémologie Comparée, cahier n. 9314,
1993; ATLAN, 1994; Questions de vie. Entre le savoir et l’opinion (entrevistas editadas por Catherine Bousquet).
Paris: Éditions du Seuil, 1994; “Immanent Causality: A Spinozist Viewpoint on Evolution and Theory of Action”. In:
van de VIJVER, Gertrudis, SALTHE, Stanley N., DELPOS, Manuela. Evolutionary Systems: Biological and
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Academic Publishers, 1998; ATLAN, 1998; Les étincelles de hasard. Paris: Éditions du Seuil, vol. 1 (Connaissance
spermatique), 1999, vol. 2 (Athéisme de l’écriture), 2003; La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre necessité.
Paris: Bayard, 2002; e ATLAN, 2003.
378
Gregory Bateson (EUA; n. Inglaterra; 1904-1980); ver Steps to an Ecology of Mind. New York: Ballantine, 1972;
e Mind and Nature: A Necessary Unit. New York: Bantam, 1979. Como referência inicial à postulação por Bateson
da comunicação como chave para apreensão do social, ver RUESCH, Jurgen, BATESON, Gregory. Communication:
The Social Matrix of Psychiatry. New York: W. W. Norton, 1951.
379
Andrew Gordon Speedie-Pask (Inglaterra; 1928-1996); ver Conversation, Cognition and Learning. Amsterdam:
Elsevier, 1975; e Conversation Theory: Applications in Education and Epistemology. Amsterdam: Elsevier, 1976.
380
Cf. DUPUY, 1995 (1994): 212. Ver também “De l’émancipation de l’économie. Retour sur le ‘problème d’Adam
Smith’ ”. L’Année Sociologique, vol. 37, pp. 311-342, 1987; e Le Sacrifice et l’envie. Le libéralisme aux prises avec
la justice sociale. Paris: Calman-Lévy, 1992.
381
Adam Smith (Escócia, 1723-1790); ref. hist.: An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations.
London: W. Strahan and T. Cadell, 1776. 2 vols.
382
Friedrich August von Hayek (Alemanha; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1899-1992). Ver MOLDOFSKY, Naomi
(ed.). Order – With or Without Design? Selections from F. A. Hayek’s Contribution to the Theory and Application of
Spontaneous Order. London: Centre for Research into Communist Economies, 1989. Ver também The Constitution of
Liberty. London: Routledge and Kegan Paul, 1960; “The Theory of Complex Phenomena”. In: BUNGE, Mario (ed.).
The Critical Approach to Science and Philosophy. New York: Free Press of Glencoe, pp. 332-349, 1964; “A SelfGenerating Order for Society”. In: NEF, John U. (ed.). Towards World Community. Den Haag (Holanda): Dr. W.
Junk Publishers, pp. 39-42, 1968; Law, Legislation and Liberty: Rules and Order. London: Routledge and Kegan
Paul, vol. 1, 1973; e New Studies in Philosophy, Politics and Economics. London: Routledge and Kegan Paul, 1978.
Como marcos iniciais, ver “Economics and Knowledge”. Economica (new series), vol. 4, n. 13, pp. 33-54, 1937.
Reimpresso em: von HAYEK. Individualism and Economic Order. London: George Routledge and Sons, pp. 33-56,
1948; “The Use of Knowledge in Society”. American Economic Review, vol. 35, n. 4, pp. 519-530, 1945. Reimpresso
em: von HAYEK, op. cit. (supra), pp. 77-91, 1948; e The Sensory Order: An Inquiry into the Foundations of
Theoretical Psychology. London: Routledge and Kegan Paul, 1952.
140
De volta às condições de validade para a teoria da autopoiesis: ela é uma caracterização
da organização dos seres vivos. A organização autopoiética, por não ter como ser
reconhecida nos componentes que a realizam, somente pode ser concebida como uma
abstração pelo observador que tanto vê uma história de coerências e regularidades na
dinâmica estrutural do ser vivo quanto vê uma história de coerências e regularidades nas
suas interações com o meio; é assim que ele infere a organização do ser vivo como o
resultado do operar espontâneo de uma arquitetura de interações moleculares locais.
Dito de outro modo, o observador caracteriza uma unidade ao enunciar suas condições
de operação em um dado espaço (domínio); ele apenas a conhece, porém, ao interagir
com ela em um metadomínio de descrições relativo ao domínio em que a caracteriza.
Foi aqui mostrado que a fenomenologia dos sistemas autopoiéticos gera observadores,
que por sua vez geram a fenomenologia das descrições em que a lógica descritiva da
autopoiesis encontra validade. Toda a situação é circular. Como síntese: a teoria da
autopoiesis explica a experiência do observador por meio da experiência do observador.
Se os seres vivos são estruturalmente determinados, seria também a experiência humana
determinada? Sim. Ela não é no entanto, de forma alguma, previsível. Cogitar isso é
remeter ao tipo de pensamento que preconizava que, se fossem conhecidas a posição e a
velocidade de todas as partículas no Universo, tudo no Universo seria previsível. Em
que uma determinação biológica do nosso viver mudaria nossas vidas? Em nada. Tudo o
que para nós existe, existe de uma forma muito concreta como experiência humana. E é
como experiência humana que a aventura do viver e a beleza da Natureza continuarão a
ser, para todos nós, eterna descoberta.
383
Norbert Elias (Holanda; n. Alemanha (hoje Polônia); 1897-1990); ver especialmente o ensaio de 1939
originalmente publicado como Die Gesellschaft der Individuen. Eine Studie von Norbert Elias. Stockholm:
Stockholms Universitet, 1983. Ver também Über den Prozeß der Zivilisation. Soziogenetische und psychogenetische
Untersuchungen. Basel (Suíça): Haus zum Falken, 1939. 2 vols.; Was ist Soziologie? München (Alemanha): Juventa,
1970; e “Zur Grundlegung einer Theorie sozialer Prozesse”. Zeitschrift für Soziologie, vol. 6, pp. 127-149, 1977.
141
4. A teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan384
Uma outra perspectiva também centrada no papel do observador, em que o fenômeno da
auto-organização é referido à compreensão que este detém quanto ao operar do ser vivo,
é a teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan, construída ao longo da mesma
década de 70 385 em que foi concebida a teoria da autopoiesis, e sintetizada na obra
Entre o Cristal e a Fumaça.386
Retornando, uma vez mais, às perguntas que a biologia molecular não tinha como
responder:387 como surgiu o primeiro programa? Como pode um programa (o genético)
necessitar dos resultados de sua leitura e execução (as proteínas enzimáticas)
exatamente para que possa ocorrer sua leitura e execução? E por que insistir em negar o
óbvio (que o processo evolutivo de mutação-seleção conduz necessariamente ao
aumento da complexidade) pelo artifício de atribuir-se a evolução a uma
improbabilidade estatística em um Universo supostamente entrópico? Para Atlan,
384
Deste ponto em diante, retornaremos à significação consagrada no uso cotidiano de termos como “estrutura”,
“organização” e “acoplamento”, a que Maturana e Varela optaram por atribuir definições específicas para fins de
composição de um vocabulário adequado (e necessário) à amplitude da mudança de paradigma a que se propuseram.
385
Como etapas dessa construção, ver “Applications of Information Theory to the Study of the Stimulating Effects of
Ionizing Radiation, Thermal Energy, and other Environmental Factors: Preliminary Ideas for a Theory of
Organization”. Journal of Theoretical Biology, vol. 21, pp. 45-70, 1968; “Rôle positif du bruit en théorie de
l’information appliquée à une définition de l’organisation biologique”. Annales de Physique Biologique et Médicale,
vol. 1, pp. 15-33, 1970; “Du bruit comme principe d’auto-organisation”. Communications, vol. 18, pp. 21-36, 1972;
L’organisation biologique et la théorie de l’information. Paris: Hermann, 1972. 2ème. ed., 1990; “On a Formal
Definition of Organization”. Journal of Theoretical Biology, vol. 45, pp. 295-304, 1974; “Organisation em niveaux
hiérarchiques et information dans les systèmes vivants”. In: Réflexions sur de nouvelles approches dans l’étude des
systèmes. Actes du Colloque ENSTA, 10-12 juin, 1975. Paris: Centre d’édition de l’ENSTA, pp. 218-238, 1975;
“Conscience et désirs dans des systèmes auto-organisateurs”. In: MORIN, Edgar, PIATTELLI-PALMARINI,
Massimo (eds.). L’unité de l’homme. Invariants biologiques et universaux culturels. Paris: Éditions du Seuil, pp. 449465, 1975; “Le principe d’ordre à partir du bruit. L’apprentisage non dirigé et le rêve”. In: MORIN, PIATTELLIPALMARINI, op. cit. (supra), pp. 469-475; “L’homme: système ouvert”. In: MORIN, PIATTELLI-PALMARINI,
op. cit. (supra), pp. 487-490; “Source and Transmission of Information in Biological Networks”. In: MILLER, I. R.
(ed.). Stability and Origin of Biological Information. New York: John Wiley and Sons, pp. 95-118, 1975; “Les
modèles dynamiques en réseaux et les sources d’information en biologie”. In: LICHNEROWICZ, André,
PERROUX, François, GADOFFRE, Gilbert (eds.). Structure et dynamique des systèmes. Paris: Maloine-Doin
Éditeurs, pp. 95-131, 1976; “L’organisation du vivant et ses répresentations”. In: Le MOIGNE, Jean-Louis (coord.).
Modélisation et maîtrise des systèmes techniques, économiques et sociaux. Actes du Congrès AFCET, Versailles,
France, 21-24 nov., 1977. Paris: Editions Hommes et Techniques, pp. 118-150. 1977; “Hierarchical SelfOrganization in Living Systems”. In: ZELENY, op. cit. (nota 242, p. 75), pp. 185-208, 1981. (Apresentação: “The
Order from Noise Principle in Hierarchical Self-Organization”, State University of New York, 1977); e “Sources of
Information in Biological Systems”. In: DUBUISSON, Bernard. (ed.). Information and Systems: Proceedings of the
IFAC Workshop, Compiegne, France, 25-27 oct., 1977. Oxford (Reino Unido): Pergamon Press, pp. 177-184, 1978.
386
ATLAN, 1992a (1979). O título é uma analogia com as noções de ordem (o cristal) e desordem (a fumaça) e
também uma referência ao período de perseguição aos judeus a partir da noite dos cristais (9-10 de novembro de
1938) até a fumaça das chaminés dos campos de extermínio.
387
Cf. ATLAN, 1992a (1979): 17-26; remeter à nota 253, p. 78.
142
respostas a essas perguntas requeriam novos modelos explicativos, que incorporassem a
auto-organização como atributo dos sistemas.
Mas, de que sistemas se trata? Para que a auto-organização propicie a evolução pelo
aproveitamento das perturbações impostas pelo ambiente, isto requer, como uma précondição, a capacidade de resistir a tais perturbações. Ou seja, ela diz respeito à
confiabilidade dos sistemas frente ao ruído – incomparavelmente superior nos sistemas
naturais do que nas máquinas.
A confiabilidade do cérebro humano, por exemplo, não encontra paralelo em nenhum
autômato artificial; ele é capaz de operar continuamente, a despeito de estarem a todo
tempo morrendo células que não são substituídas, de variações bruscas no fluxo de
irrigação e na taxa de oxigenação do sangue, de oscilações de volume e pressão, e até
eventualmente da amputação de algumas de suas partes, tudo isto pouco afetando seu
desempenho. Von Neumann, em suas pesquisas sobre o aumento de confiabilidade dos
computadores, já havia concluído que tamanha disparidade impede que se vejam os
organismos como dispositivos “aperfeiçoados” em relação a seus “similares” artificiais,
mas sim a uns e outros como sistemas governados por princípios de organização
qualitativamente diferentes.388
Uma teoria da informação
É nesses termos que Atlan dá continuidade ao projeto de renovação da Cibernética
empreendido por von Foerster, só que agora buscando chegar a um princípio de
complexidade (e não apenas de ordem) a partir do ruído verificável no comportamento
de sistemas naturais, mas não em dispositivos artificiais.389 Ele compreende a
confiabilidade de um sistema frente ao ruído como função tanto de sua variedade
(necessária para compensar os efeitos do ruído, segundo Ashby) como de sua
redundância (necessária para neutralizá-lo, segundo Shannon). Por serem estas
388
Von NEUMANN, op. cit. (nota 165, p. 49), 1956, op. cit. (nota 164, p. 49), 1966.
389
“O conceito de sistema auto-organizador surgiu como uma maneira de conceber os organismos vivos sob a
forma de máquinas cibernéticas com propriedades específicas. Entretanto, está claro que os únicos sistemas autoorganizadores (e os únicos autômatos auto-reprodutores) conhecidos até o presente são as máquinas naturais, cuja
‘lógica’, justamente, não conhecemos de maneira precisa” (ATLAN, 1992a (1979): 25).
143
condicionantes opostas, Atlan percebe a auto-organização como um compromisso ótimo
entre elas. E, como forma de correlacionar redundância, variedade e ruído, ele recorre à
teoria quantitativa da informação de Shannon: “A quantidade de informação definida
por Shannon é uma maneira, mais elaborada e mais rica de aplicações, de exprimir a
variedade ... de um sistema, tal como definido por Ashby”.390
De modo correlato à meneira como Shannon lidou com a variedade dos símbolos
contidos em um código de comunicação, a variedade (ou diversidade) dos elementos em
um sistema pode ser medida em termos da probabilidade da ocorrência de cada
elemento. Quanto mais um sistema for composto por um grande número de elementos
diferentes, menor será a probabilidade de que uma reunião ao acaso dos seus
componentes resulte idêntica ao sistema tal como ele se encontra de fato disposto, e
portanto maior será a quantidade de informação necessária para descrevê-lo. Dito em
termos estritamente shanonnianos, quanto maior a quantidade de informação, maior o
número de símbolos necessários para descrevê-la em algum código, ou seja, mais
complexo é o sistema em questão.
Atlan estimou a medida da variedade de um sistema como a taxa de variação
dH
dt
de sua
quantidade de informação H ao longo do tempo (como será detalhado logo adiante). Ele
assim corroborou a antevisão (em 1949) de von Neumann sobre a complexidade, para
quem “este conceito claramente pertence ao campo da informação”.391
390
Ibid., p. 250. Ashby também considera, ainda que de modo mais implícito, a quantidade de informação para sua
definição de variedade (como veremos adiante).
391
von NEUMANN, 1966b: 78 (citação replicada; p. 48, nota 163). Ver também as considerações de Klir à p. 67.
144
Ora, ao contrário da via de comunicação considerada por Shannon, em que o ruído
implica a redução da quantidade de informação trafegável, a suposição aqui é a de que,
no interior de um sistema complexo, o ruído possa ser integrado como fator de
reorganização. Seja uma dada via de comunicação entre dois elementos A e B
integrantes de um sistema S (Figura 5) como uma dentre inúmeras relações existentes
entre os elementos desse sistema, em que A transmite informação para B:
Figura 5: Via de comunicação entre dois elementos A e B no interior de um sistema S;
extraído de ATLAN (1992a (1979): 43).
Se a transmissão ocorre sem erros (ausência de ruído), B se torna uma cópia exata de A
(aumento de redundância), e a quantidade total de informação contida no conjunto
{A, B} é igual à quantidade de informação em A. Se, ao contrário, o ruído
descaracteriza por completo a mensagem, isso acarreta o fim da relação entre A e B
(aumento de variedade), com a quantidade de informação de {A, B} sendo igual à
quantidade de informação de A mais a de B. Caso o sistema se limitasse a apenas esses
dois elementos, ambas essas situações o destruiriam: no primeiro caso, existiriam
apenas dois elementos idênticos; no segundo, a independência total entre os elementos
também descaracterizaria o sistema como tal.
Havendo ruído numa situação intermediária, porém, a quantidade de informação
transmitida de A para B é igual à informação em B menos as perdas por ruído; já a
quantidade de informação do conjunto {A, B}, entretanto, é igual à informação em B
mais o ruído. Dito de outra forma, do ponto de vista da transmissão de A para B o ruído
representa perda de informação mas, do ponto de vista da quantidade total de
informação contida no sistema, houve aumento de informação – algum aumento de
variedade às custas de alguma redução de redundância. E, por estarem A e B ligados a
inúmeros outros elementos de S por inúmeras outras vias (muitas das quais
possibilitando ligações indiretas entre A e B), nem as eventuais situações-limite de
igualdade ou independência entre eles implicam o desaparecimento do sistema.
145
O sistema S, tendo redefinido o seu compromisso variedade-redundância, continua a
operar, e conta agora com uma maior variedade de respostas que poderão ser
experimentadas frente a perturbações externas (em conformidade com o princípio da
variedade indispensável de Ashby), tendo assim ampliado seus horizontes de coevolução com o ambiente.
Atlan, em busca de uma mensuração quantitativa para a complexidade, rearruma a
equação de Shannon para a redundância
informação:
H = Hmax (1 − R) ,
dH
dR
dHmax
= − Hmax
+ (1 − R)
dt
dt
dt
R = 1−
H
Hmax
de modo a destacar a quantidade de
e a deriva então para obter sua variação ao longo do tempo:
; ele chega assim a uma formulação em que esta variação
corresponde à soma de dois termos, em que o primeiro deles expressa o papel
construtivo do ruído (aumento do total de informação contida no sistema às custas de
alguma perda de redundância).392 Uma vez que, evidentemente, o funcionamento de um
sistema requer a passagem de informação entre seus componentes, o segundo termo
expressa o (esperado) papel destrutivo do ruído (redução de informação ao longo do
tempo, em relação ao máximo possível Hmax).
Atlan foi assim mais um que perseguiu uma descrição para a complexidade com base na
clássica matemática diferencial descritiva do contínuo (e em breve ele seria também
mais um que a abandonaria, em prol de uma mensuração de ordem mais computacional
para a complexidade).393 Não obstante, em diversas passagens ele deixa transparecer que
a medida da variedade de um sistema em termos de sua quantidade de informação H
seria meramente indicativa para prover a medida de sua complexidade. Em suas
próprias palavras:
... no âmbito de algumas hipóteses simplificadoras... esse resultado pode ser compreendido como
uma explicação possível da mudança de alfabeto efetivamente observada em todos os organismos
vivos, quando passamos dos ácidos nucléicos, escritos numa “linguagem” de quatro símbolos (as
dR
392
A progressiva redução da redundância devida ao ruído faz dt tornar-se negativo, o que torna esse primeiro termo
positivo, expressando o aumento da informação pelo aumento da variedade.
393
Porque ele continuava a necessitar uma medida para a dimensão estrutural (remeter à p. 3) da complexidade a
cada nível, em um sistema hierarquizado. A essa sua nova mensuração ele denominaria sofisticação; ver KOPPEL,
Moshe, ATLAN, Henri. “An almost Machine-independent Theory of Program-length Complexity, Sophistication,
and Induction”. Information Sciences, vol. 56, pp. 23-33, 1991; ver também ATLAN, 1992b, 1992c, 1998.
146
quatro bases azotadas), para as proteínas, escritas na linguagem de vinte símbolos dos
aminoácidos.394 (ênfase nossa)
... a taxa de variação da quantidade de informação
dH
dt
é a soma de dois termos que correspondem,
esquematicamente, aos dois efeitos opostos do ruído... Esses dois termos, por sua vez, dependem
de duas funções,
dR
= f 1(t )
dt
e
dHmax
= f 2 (t ) do
dt
tempo, dependendo de parâmetros que exprimem
formalmente a natureza da organização com que estamos lidando... conforme o valor dos
parâmetros que determinam f 1 e f 2 , esse efeito será observado ou não e, em caso afirmativo, de
maneiras muito diferentes quantitativamente, de acordo com a “organização” do sistema com que
estejamos lidando.395 (ênfase nossa)
Atualmente, essas idéias se difundiram muito, a ponto de às vezes serem apresentadas como
evidências primordiais, a saber, que a criação da informação só pode ser feita a partir do ruído, o
que é lamentável, pois nos esquecemos do que constitui o essencial de seu interesse, qual seja, ...
como e em que condições a oposição entre organizado e aleatório pode ser substituída por uma
espécie de cooperação em que, inevitavelmente, o conceito de organizado e o de aleatório
adquirem novos conteúdos.396
[diversas] considerações ... levaram ao esboço de uma teoria da organização ... Essa teoria parece
ser de alguma utilidade para explicar, ao menos em alguns aspectos e de um ponto de vista
fenomenológico, o que parece ser a organização nas diferentes ciências do ser vivo.397 (ênfases
nossas)
Devemos portanto deixar claro nosso entendimento quanto a essa formulação
quantitativa ter sido proposta por Atlan antes como uma contribuição ao entendimento
em torno de uma perspectiva inteligível para o problema da complexidade em um ser
vivo do que como formalismo de valor operacional intrínseco.
Confiabilidade e aprendizagem
Deve-se notar que somente sistemas dotados de suficiente robustez e resiliência estão
em condições de resgatar as inevitáveis desorganizações impostas pelo ruído,
incorporando-o para restabelecer-se em um patamar superior de organização. Aos já
mencionados398 trabalhos de von Neumann para especificar requisitos de confiabilidade
394
395
396
397
398
ATLAN, 1992a (1979): 44-45.
Ibid., pp. 45-46.
Ibid., p. 56.
Ibid., pp. 61-62.
À nota 388, p. 143.
147
para os computadores a partir da confiabilidade dos organismos seguiram-se outros,399 e
Atlan concluiu por destacar o papel de dois dentre os diversos parâmetros arrolados
como primordiais à auto-organização: a redundância inicial e a confiabilidade. Esta
requer a existência daquela, mas elas são de naturezas distintas: a redundância inicial de
uma natureza a que Atlan chama estrutural (relativa aos componentes do sistema)
enquanto a confiabilidade de uma natureza a que ele chama funcional (relativa às
relações entre esses componentes).
Na Figura 6 são ilustrados diferentes perfis de resposta ao ruído, fruto de diferentes
perfis de confiabilidade (ou seja, diferentes organizações):
Figura 6: Diferentes organizações, expressas pela evolução da quantidade de informação H ao longo do
tempo, em função tanto da redundância inicial Ro , que define a quantidade de informação
inicial Ho = Hmaxo − (1 − Ro) , como da confiabilidade, que define a duração do período até tM , quando o
sistema atinge seu máximo de informação HM ; extraído de ATLAN (1992a (1979): 48).
Numa etapa inicial, predominam os efeitos construtivos do ruído, com elementos
inicialmente redundantes adquirindo especificidade (variedade) no curso do
399
Ver WINOGRAD, Shmuel, COWAN, Jack D. Reliable Computation in the Presence of Noise. Cambridge
(Massachusetts): MIT Press, 1963; e COWAN. “The Problem of Organismic Reliability”. In: WIENER, Norbert,
SCHADÉ, Johannes P. (eds.). Cybernetics of the Nervous System. Amsterdam: Elsevier, pp. 9-63, 1965.
148
desenvolvimento do sistema. Nesta fase, quanto maior a redundância inicial, maior o
ganho de complexidade de que o sistema será capaz; quanto maior a confiabilidade,
mais prolongado será este salto. Após a quantidade de informação ter atingido o seu
máximo, passam a predominar os (sempre presentes) efeitos destrutivos do ruído. Com
efeito, esse é o traço comum aos seres vivos, às estrelas e às organizações sociais
humanas: inicialmente, eles experimentam crescimento e amadurecimento; depois,
envelhecimento e morte.
Dentre as características dos sistemas auto-organizantes naturais estão o número
abundante de componentes, o número ainda mais abundante de relações entre esses
componentes, e a presença de variados níveis de redundância (e, portanto, de potencial
para mais variedade) em ambos, componentes e relações;400 assim, é somente em
sistemas complexos de alta redundância inicial e confiabilidade – como os seres vivos –
que um papel construtivo para o ruído pode coexistir ao lado de seu sempre presente
papel destrutivo.
É a conversão de redundância em variedade que possibilita aos seres vivos uma
superação criativa dos limites impostos pelo ambiente, por meio dos processos de
aprendizagem não-dirigida:401 processos cognitivos para o reconhecimento de formas
que são constituídas simultaneamente com as (outras) formas que servem de referência
a este reconhecimento:
... o que é aprendido é realmente novo e, portanto, perturbador, e aparentemente só poderia ser
rejeitado pelo estado anterior de organização do sistema cognitivo, caso este não fosse regido, ele
também, pela lógica da complexidade através do ruído.402
Numa aprendizagem dirigida, existe algum “professor” que indica o que deve ser
aprendido; numa aprendizagem não-dirigida, um sistema frente ao desconhecido reage
400
Ver, por exemplo, considerações a respeito do cérebro humano feitas à p. 50.
401
Para Piaget (Jean Piaget (Suíça; 1896-1980)), trata-se de assimilação cognitiva; ver La naissance de l’intelligence
chez l’enfant. Neuchâtel (Suíça): Delachaux et Niestlé, 1936.
402
ATLAN, 1992a (1979): 26.
149
pela criação de novos padrões de reconhecimento da realidade, ao mesmo tempo em que
se condiciona a reconhecer estes novos padrões.403
O processo de percepção da realidade se dá pela projeção dos padrões de
reconhecimento preexistentes sobre os estímulos oriundos do ambiente, de modo a
reconhecê-los (ou não) pela identificação destes com o padrão. Uma vez que os padrões
também estão sendo criados, esta identificação só pode ser aproximativa, jamais exata.
Esta ambigüidade, ou ruído, exerce então um papel positivo, na medida em que
modifica os padrões pelos estímulos. Ou seja, a definição dos novos padrões
corresponde a um processo de diferenciação, de especificidade – de transformação da
redundância em variedade, em que os padrões modificados tornam-se referência para o
reconhecimento de novos estímulos, e assim sucessivamente.
Um exemplo é o sistema imunológico. Os linfócitos travam contato com os agressores
externos e também entre si por meio de padrões de reconhecimento molecular ao nível
de suas membranas, e a variedade final é total – não existem duas pessoas com perfis
idênticos de resposta imunológica. É pelo aproveitamento do ruído que evoluem tanto o
sistema imunológico (no horizonte de tempo de uma vida) como as espécies (ao longo
de milhões de anos) – o que é consistente com a hipótese de Atlan de que o DNA exerce
um papel mais afeito ao de “dados a serem processados” que de um “programa
processador”:404
Qual a natureza computacional das cadeias de DNA: são elas programa, ou dados? ... Parece mais
plausível que as cadeias de DNA devam ser vistas como dados que alimentam o maquinário do
metabolismo celular, que operaria como um programa. Se é este o caso, fica óbvio que o principal
pressuposto teórico que dá base ao tão propalado projeto do Sequenciamento do Genoma Humano
está errado.405
403
Reparar a correlação (e a diferença) para com a noção de acoplamento estrutural por compensação de
perturbações de Maturana e Varela.
404
Ver ATLAN, Henri, KOPPEL, Moshe. “The Cellular Computer DNA: Program or Data?” Bulletin of
Mathematical Biology, vol. 52, n. 3, pp. 335-348, 1990; e ATLAN, Henri. La fin du “tout génétique”? Vers de
nouveaux paradigmes en biologie. Paris: INRA Éditions, 1999; cf. ATLAN, 1992b, 1998, 1992a (1979): 50-51, 246
nota 15.
405
ATLAN, 1992b: 43.
150
Assim, de uma forma correlata ao postulado por Maturana e Varela, também para Atlan
somente a totalidade das relações (para este, o metabolismo celular, para aqueles, a
“organização”) poderia desempenhar o papel de um “programa no governo” da célula:
... muitas vezes, a descrição linearmente causal – como na biologia clássica, onde se procura isolar
um parâmetro que é variado enquanto os outros ficam supostamente constantes – é inadequada.
Por exemplo, a causa de uma mudança do estado da célula num dado momento deve ser buscada
no estado da célula no instante anterior, e não na modificação de um único componente, isolado do
resto do sistema.406
Auto-organização multinivelar
Pode-se, intuitivamente, associar redundância (regularidade, repetição) à idéia de
ordem, bem como variedade (diversidade, diferença) à de desordem. Atlan, com efeito,
propõe tal associação, mas para tanto ele resgata a questão do significado da informação
(propositadamente ausente da teoria quantitativa da informação de Shannon) como a sua
maneira de descrever a realidade como composta por múltiplos níveis de complexidade,
sucessivamente acoplados. E é aqui que a teoria de Atlan se distingue como o que
Varela denomina explicação simbólica admissível – em contraposição às diversas
correntes inspiradas em Shannon e tributárias da primeira Cibernética que, por tomar a
grandeza “informação” pelo seu valor de face, situam-se no campo das explicações
simbólicas a que se pode denominar toscas.
Sejam, em termos dos meios de descrição existentes (ou seja, da perspectiva do
observador, que é quem descreve), os diferentes níveis de organização relativos a um
ser humano: partículas subatômicas, átomos, moléculas, macromoléculas, organelas
componentes das células, células, tecidos, órgãos, aparelhos, organismo, psique,
comunidade, sociedade: cada um desses níveis possui seu código próprio para o trânsito
de informação. O acoplamento entre níveis (ou seja, a passagem de informação) requer
assim alguma “tradução”, ainda que parcial, entre códigos de naturezas distintas. Mais
que isso: a mesma informação necessariamente porta significados diferentes em níveis
diferentes.
406
ATLAN, 1992a (1979): 86.
151
No intuito de descrever o sistema “organismo” a partir dos átomos que o constituem, o
observador pode chegar a um valor para H correspondente à quantidade de informação
de que ele não dispõe, inferida a partir do que é por ele conhecido: os componentes do
sistema, e sua distribuição em termos probabilísticos. Já se a descrição for em termos de
suas moléculas, poderá ser levado em conta o conhecimento existente a respeito de
como os átomos se associam em moléculas, acreditando-se agora ser possível estimar
um valor menor para H, indicativo de uma redução no déficit de informação
relativamente à descrição anterior.
No entanto, a passagem de um nível elementar (no caso, átomos) para um nível mais
abrangente (moléculas) na verdade implica um aumento de complexidade. A
informação que para o observador se afigura como “ruído” não somente não destrói o
sistema como lhe permite evoluir, de um modo que o observador desconhece – o que
significa que aquele conhecimento que ele supostamente possuía era incompleto. E é
por isso que aquilo que ao observador parece “ruído”, mas de que o sistema faz uso de
modo proveitoso como excedente de informação, representa de fato um aumento do
déficit da informação H necessária a uma descrição do sistema pelo observador.
A via de comunicação de A para B do sistema S (Figura 2) não “entrega” qualquer
informação (ruído incluso) a um observador externo, ela a entrega ao elemento B sob
forma de seu significado segundo o código próprio aos elementos do sistema S; já a
percepção que um observador externo tem dessa informação e do ruído que ela possa
comportar (uma vez que ele ignora em grande medida o código próprio ao sistema)
confere a ela um outro significado em um outro código, pertinente ao nível mais
abrangente em que se situa o observador.
Com efeito, considerar aquilo que sai da via de informação pelas ópticas do sistema ou
do observador equivale a situar a observação em níveis hierárquicos distintos. Supondo
que a via de comunicação de A para B seja uma das vias de comunicação constitutivas
de uma célula, para esta célula qualquer eventual ruído será tomado como negativo mas,
para o órgão que a contém – e que portanto se situa ao nível de um “observador” – ele
poderá ser positivo (desde que não mate a célula), à medida que aumenta sua própria
variedade interna e, em conseqüência, seus desempenhos reguladores para as demais
células.
152
Na concepção multinivelar de Atlan, o “observador” corresponde assim ao nível mais
abrangente considerado: o órgão em relação à célula, ou o organismo em relação ao
órgão, ou o organismo em relação à célula etc. – a depender da esquematização adotada
pelo observador humano real; este é assim um outro modo de assinalar a dualidade
fenomenológica que Maturana e Varela discerniram para o nível das partes
(componentes) e do todo (unidade)
Dito em outros termos, a medida da informação tomada a um nível abrangente ignora o
seu significado ao nível elementar, e é somente por isso que o que se afigura como
destruição de informação ao nível elementar pode ser visto como criação de informação
no nível abrangente. E é também por isso que se pode falar em complexidade como uma
correlação entre aquilo que se conhece, e que por ser conhecido é considerado ordem (a
redundância407 R), e aquilo que se desconhece,408 e que por ser desconhecido é
considerado desordem (a quantidade de informação H):
O princípio ... da complexidade pelo ruído significa ... que o ruído que reduz as restrições
[redundância] dentro de um sistema aumenta sua complexidade. Isso, evidentemente, ainda está
ligado à percepção do observador e ao fato de que o conhecimento que temos desses sistemas
(naturais) e de seus mecanismos de construção é (ainda ou sempre) imperfeito.409
É somente devido a desconhecer-se o ruído, desconhecendo-se também a dinâmica dos
processos que permitem ao sistema integrá-lo em sua reorganização evolutiva, que a
redução do conhecimento (R) e o aumento da incerteza (H) podem ser expressos sob
forma de conversão de redundância em variedade, com a atribuição de efeitos
“construtivos” ou “destrutivos” ao que é interpretado como aleatório, acaso, ruído –
interpretações que refletem o nosso desconhecimento quanto à complexa dinâmica de
encadeamentos causais própria ao sistema.
407
O grau de ordem em um sistema, expresso pela redundância R, não necessariamente implica uma repetição física
dos elementos, como em um cristal; basta que essa ordem seja dedutivamente repetitiva, à medida que o
conhecimento de um dado elemento acrescenta também algum conhecimento sobre os demais, reduzindo assim a
incerteza a respeito deles.
408
Esse foco no conhecimento de que não se dispõe tem origem em Brillouin (Léon Nicolas Brillouin; EUA; n.
França; 1889-1969). Ver Science and Information Theory. New York: Academic Press, 1956.
409
ATLAN, 1992a (1979): 70.
153
Para Maturana, seria devido a tal desconhecimento que o determinismo mecanicista por
ele pressuposto para os seres vivos não implicaria de modo algum sua previsibilidade.410
Varela, ao comentar o trabalho de Atlan,411 reitera que nem “ruído” nem “informação”
são estruturais ao sistema, e sim relativos à clivagem particular com que “sistema” e
“ambiente” (em Atlan, níveis hierárquicos) são distinguidos pelo observador. Já Atlan
(aquele que mais ostensivamente se assume como herdeiro da tradição cibernética) tem
por estéril a dicotomia ancestral entre mecanicismo e substancialismo (a que se refere
como finalismo), e busca justamente integrar a ambos por meio de sua teoria.412
O conceito de “ruído com efeitos positivos” é assim o modo possível de inserção da
questão do sentido, do significado, numa teoria quantitativa da organização, visando
superar a dificuldade de articulação entre duas lógicas de naturezas distintas: a nossa, de
observadores, e a do sistema, fechado em si mesmo no que concerne a seu sentido e
finalidade. Os distintos níveis hierárquicos, ou níveis de organização, correspondem na
verdade a distintos níveis de observação (tanto quanto Maturana e Varela afirmam que
considerar ora os componentes ora a unidade implica constituir, como experiência
humana, um domínio fenomenológico próprio àquilo que é considerado):
Quando nós, como biólogos, estudamos células vivas... ou qualquer organismo, estamos numa
posição de observador exterior... na medida do possível, o desintegramos e olhamos para as
diversas partes que o constituem... Observamos o funcionamento do organismo como um todo...
mas não presenciamos o todo e as partes conjuntamente, ao mesmo tempo, com as mesmas
técnicas de observação e de medida... quando se pensa na célula viva, imagina-se a célula com o
núcleo, a membrana... e tem-se também uma imagem daquilo que a célula está fazendo. Quem
pensa na célula sabe que existe o DNA, os cromossomos no núcleo, mitocôndrias no citoplasma,
membranas com as mais diversas propriedades... Esse é quadro tal como faz o biólogo. Pois bem –
esse quadro, uma célula dessas, isso nunca foi visto de fato assim. Quando se olha para uma célula
no microscópio, vê-se... o núcleo, e assim por diante, mas não se vê nenhuma das funções. Não se
vêem as moléculas. Para ver as moléculas, é preciso usar outra técnica, diferente do microscópio;
uma técnica química. Para ver o que a célula está fazendo, é preciso usar técnicas fisiológicas...
Portanto, o conceito de célula é uma reconstituição, é o resultado de uma teoria baseada em
diferentes técnicas que, entretanto, não podemos empregar ao mesmo tempo. Não podemos fazer
simultaneamente bioquímica, microscopia eletrônica, fisiologia... precisamos juntar todas essas
coisas e construir uma espécie de modelo.413
410
411
Cf. MATURANA, 1978: 61-62.
Bem como os de Shannon, von Foerster e Prigogine; cf. VARELA, 1979: 263-265.
412
Sobre o mecanicismo: “Desde as origens da Cibernética, ... uma espécie de neomecanicismo foi-se impondo
progressivamente na Biologia, consistindo em considerar os organismos vivos como máquinas de um tipo particular,
chamadas de máquinas naturais numa referência às máquinas artificiais concebidas e fabricadas pelos homens.
Entretanto, seria errôneo considerar essa atitude como uma continuação do mecanicismo do século XIX e do início
do século XX” (ATLAN 1992a (1979): 36). Sobre o finalismo: “Comumente se observa que é evidente que o nível
superior deve agir sobre o nível inferior” (ATLAN 1992a (1979): 60).
413
ATLAN, 2003: 126-127.
154
Atlan indica assim aquele que para nós é um ponto decisivo: da mesma forma como
“célula” é antes um conceito, uma teoria, “complexidade” e “auto-organização” são
antes um discurso (uma explicação, ou interpretação) que uma propriedade intrínseca
(uma “lei universal”) da Natureza. Em 1979 ele escreveu:
... nem toda desordem é necessariamente uma complexidade. Uma desordem só se afigura
complexa em relação a uma ordem que temos razões para acreditar que exista, e que procuremos
decifrar. Em outras palavras, a complexidade é uma desordem aparente onde temos razões para
presumir uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem cujo código não
conhecemos.414
O que ele complementou em 1987:
No caso dos sistemas naturais, ao tentar compreender sua complexidade, nós normalmente nos
damos conta de um hiato entre o que temos que explicar e a melhor explicação que conseguimos
dar. Eu uma vez defini complexidade natural como uma desordem aparente onde temos razão para
acreditar que exista uma ordem [ver acima]. Esta ordem encontra-se oculta de nós, mas, em geral,
nós suspeitamos que ela exista, com base na observação de uma função: a desordem aparente
parece realizar algo de forma organizada, o que faz algum sentido ... esta falta de conhecimento,
ou desordem aparente, pode ainda ser formalizada sob determinadas premissas, e ser usada como
uma medida para a complexidade natural.415
Em suma, o que Atlan propõe é um ponto de vista necessariamente externo a respeito de
sistemas que são informacionalmente (para Maturana e Varela, organizacionalmente)
fechados sobre si mesmos, como modo de articular por um lado o que se conhece e, por
outro, o que se ignora sabendo-se estar ignorante; é somente por medir-se a informação
por meio de uma abordagem (a de Shannon) que pressupõe a ausência de sentido que o
seu oposto, o ruído, pode ser gerador de informação.
414
415
ATLAN, 1992a (1979): 67.
ATLAN, 1988: 113.
155
Considerado frente à teoria da autopoiesis, que privilegia o ponto de vista interno ao
sistema, o pensamento de Atlan oferece assim uma significativa complementaridade:
Varela e Maturana deram um enfoque diferente a esse mesmo problema da auto-organização. Eles
enfatizam... uma dinâmica interna... que produz... a “criação de si mesmo”. Já eu enfatizo um
aspecto diferente... o da novidade, que aparece para nós como ruído... (Atlan)
P – Já se disse que essa também pode ser considerada a diferença entre Bateson e Luhmann.
Bateson estaria mais próximo desta sua posição. (entrevistador)
R – É o que penso.416
Dito de outro modo, Maturana e Varela tomam o observador como contraponto ao que
buscam destacar: a autonomia dos sistemas; por sua vez, Atlan atém-se ao ponto de
vista do observador que não tem como desvendar a totalidade dos encadeamentos
causais cujos resultados observa, e a que interpreta como “aumento de complexidade
por meio do ruído”.
Podemos agora compreender ordem e desordem, ou redundância e variedade, como
parceiras nos processos evolutivos da Natureza, simultaneamente produtoras e produtos
uma da outra (em terminologia autopoiética, domínios fenomenológicos que
mutuamente se modulam). Por exemplo, a sociedade (nível abrangente) tanto provê aos
indivíduos (nível elementar) uma tradição cultural (redundância) quanto possibilita,
justamente por meio desta cultura, o desenvolvimento da individualidade (variedade).
Em ambos estes níveis, as possibilidades de “tradução” das informações entre os
códigos são apenas parciais: a sociedade é ignorante e inconsciente sobre os desejos,
pensamentos e aspirações dos indivíduos, assim como os indivíduos são, ainda que
parcialmente, ignorantes e inconscientes a respeito da totalidade social que os engloba –
muito embora produzam-se reciprocamente.
Assim, entendemos que qualquer caracterização de “ordem” e “desordem” é
necessariamente uma atribuição da subjetividade do observador, em que uma é relativa
à outra: por exemplo, o bacilo da tuberculose é visto pelos seres humanos como
desordem, em oposição à saúde (ordem); frente à doença, os seres humanos terminaram
por criar os antibióticos (uma elevação dos níveis de ordem na ciência médica e na
saúde pública); expostos aos antibióticos, os bacilos terminaram por desenvolver
resistência (novos e imprevistos níveis de desordem), o que por sua vez tem levado os
416
ATLAN, 2003: 135.
156
cientistas a buscar novas formas de lidar com a doença (novos níveis de ordem), que por
sua vez poderão acarretar novos efeitos colaterais imprevistos, e assim por diante.
Curiosamente, do ponto de vista do bacilo, a perspectiva inversa é também válida: a
tuberculose nos pulmões humanos tem sido a ordem natural por milênios, o repentino
aparecimento dos antibióticos foi uma desordem imprevista, a que o bacilo reagiu
criando novos patamares de ordem (resistência) etc.
Como foi visto, uma alternativa elegante para explicar esta dança entre ordem e
desordem é o conceito de acoplamento estrutural de Maturana e Varela, segundo o qual
sistema e ambiente co-evoluem em estimulação mútua, a re-organização em um patamar
superior de complexidade de um correspondendo ao advento de uma (nova) desordem
(perturbação) para o outro, e assim sucessivamente. Novamente como exemplo, ao nível
da sociedade, a linguagem e a cultura são, a um só tempo, tanto moduladoras dos
indivíduos que a integram quanto moduladas por estes.
Uma vez examinado o processo de produção de variedade pela redução de redundância,
resta ainda abordar o seu inverso. No campo da físico-química, Prigogine,417 em nossa
interpretação, logrou demonstrar que, numa situação-limite – o afastamento do
equilíbrio termodinâmico – os sistemas inorgânicos podem tornar-se como que
“dissipadores” de entropia, pela importação maciça de energia externa que equivale a
uma “recarga” de redundância, ou seja, de potencial para a criação de variedade, o que
se reflete num salto qualitativo quanto ao padrão de organização do sistema.
Atlan também considera a possibilidade de “recarga” de redundância em uma situaçãolimite, a interrupção da passagem (tradução) de significado na transmissão de
informação entre níveis. Enquanto que sob circunstâncias normais ocorre perda de
informação pela ocorrência de ruído, numa tal circunstância de crise haveria produção
de ruído pela negação da informação, com a conseqüente redução da quantidade de
informação H e aumento da redundância R, como exemplificado a seguir.
417
Remeter à p. 75.
157
Nas sociedades, o colapso da passagem mútua de significado entre os níveis individual e
social pode ser contornado, segundo Atlan,418 mantendo-se a crise em estado latente, de
uma dentre duas formas: uma, pela projeção por parte dos indivíduos do sentido
produzido por seus códigos pessoais, numa “criação” pelo inconsciente de uma
realidade social tornada incompreensível; é o que ocorre nas sociedades de consumo,
pela ilusão de que nada é tão valorizado pela sociedade quanto a satisfação dos desejos
individuais. A outra, diametralmente oposta, é a imposição do código social aos
indivíduos, sob forma de convencimento ideológico compulsório, que ocorre nas
sociedades totalitárias. Em ambos os casos, resultam um aumento de redundância sob
forma de uniformização dos comportamentos, e uma diluição da variedade
(individualidade) naquilo a que se denomina “massas”.
Existem assim possibilidades de regeneração da redundância em sistemas naturais
submetidos a situações-limite, com conseqüente restauração dos potenciais para autoorganização futura. Como será visto mais à frente, a intencionalidade humana é capaz
de prover tais “recargas” de redundância no seio das organizações mesmo em situações
de normalidade – tanto quanto já se tornou capaz de provê-las de forma interventiva nos
sistemas naturais, por exemplo pelas terapias de regeneração de tecidos pelo implante
de células-tronco, matrizes repletas de redundância para a geração da variedade no
organismo humano.
418
Cf. ATLAN, 1992a (1979): 79-83.
158
5. Redundância e variedade como conceitos-chave a uma Teoria das Organizações
Foram, primeiramente, investigadas as raízes cibernéticas da Teoria da Complexidade,
delineadas então as premissas gerais de sua vertente mais conhecida (a que
denominamos “computacional”) e, em seqüência, examinadas em detalhe duas dentre as
principais teorias constituintes de uma outra vertente, a que nos afiliamos (e que
denominamos “epistemológica”; abordaremos ainda, logo à frente, a vertente a que
chamamos “metafórica”, particularmente presente em Teoria das Organizações).
Estamos agora em condições de (re)definir419 sistemas complexos como aqueles que se
mostram evolutivos ao longo do tempo pela compensação de perturbações externas
(dito de outro modo, frente à complexificação ambiental). Tal compensação, por sua
vez, corresponde a uma complexificação da organização interna aos sistemas, com o
que eles podem ser compreendidos como dotados de uma dinâmica autônoma própria e,
devido a isso, denominados auto-organizantes. Não há redução possível da
fenomenologia específica gerada por esses sistemas à fenomenologia das interações de
natureza física e química entre os seus componentes elementares (que admite
compreender os comportamentos desses componentes como contínuos no tempo).
Trata-se assim de sistemas cujos comportamentos (trajetória evolutiva) são
descontínuos no tempo, e que devido a isso não têm como ser descritos pelas
ferramentas clássicas, como as equações diferenciais. Como exemplos maiores dos
sistemas complexos auto-organizantes, o fenômeno da vida, a psique humana, e as
sociedades.
Tanto a teoria da complexidade a partir do ruído quanto a da autopoiesis surgiram para
dar conta das complexidades no âmbito da Biologia. Não obstante, como arcabouços
epistemológicos que são, elas estão em condições de servir de base também a uma
compreensão de complexidades em outras esferas, como a das sociedades. Para Atlan,
Vimos que, com a ajuda de métodos probabilísticos como os da teoria da informação ... podemos
fazer uma idéia de sistemas naturais dos quais temos apenas um conhecimento global, imperfeito
em seus pormenores. Tais métodos podem prestar serviços em diversas ciências do ser vivo
419
Ver definição preliminar à p. 27.
159
(Biologia, Sociologia, Economia etc.), onde podem servir para definir melhor os conceitos e para
fornecer um arcabouço interpretativo adequado.420
Foi precisamente esse o intento de Luhmann ao buscar, nos aportes da teoria da
autopoiesis, transcender a sociologia cibernética de Parsons para a elaboração da sua
teoria da sociedade, em que são caracterizados dois distintos domínios fenomenológicos
mutuamente moduladores porém não-determinantes um do outro (logo, não-redutíveis
um ao outro), o domínio da fenomenologia dos indivíduos (sistemas psíquicos) e o
domínio da fenomenologia social (sistemas sociais).
Assim, tanto quanto Maturana e Varela, Luhmann chegou a uma elegante explicação
operacional (no sentido de causal) que, precisamente devido a isso, apresenta enormes
dificuldades para seu desdobramento em aplicações “operacionais” (agora, no sentido
de práticas), devido precisamente a não ser possível identificar interseções entre esses
dois domínios em termos de nexos e encadeamentos causais.
Ora, tais interseções, sob formas que comportem tratamento empírico pelas ciências
sociais, somente podem se dar nos termos que Varela definiu como simbólicos. Faz-se
portanto necessária a construção de alguma explicação de caráter simbólico que
propicie correlacionar as fenomenologias do indivíduo e do coletivo, e dessa forma
proveja não apenas inteligibilidade para a compreensão das complexidades
organizacionais como perspectivas práticas para a lida com essas complexidades. É
esse, precisamente, o nosso intento.
Definições formais
Nossa concepção em Teoria das Organizações toma por conceitos-chave as grandezas
cibernéticas variedade e redundância tais como empregadas por Atlan, em que
variedade diz respeito às partes de um sistema (e pode assim ser compreendida como
um parâmetro descritivo da fenomenologia dos indivíduos), redundância diz respeito ao
sistema como um todo (e pode assim ser compreendida como um parâmetro descritivo
420
Ibid., pp. 84-85.
160
da fenomenologia do âmbito social que estes indivíduos constituem), e ambos geram-se
mutuamente.
Nesse sentido, iremos primeiramente constituir definições formais para estes dois
conceitos, para o que faremos uma recapitulação da compreensão das grandezas
redundância e variedade havida nas obras daqueles que os estabeleceram (pela ordem:
Shannon, Ashby, von Foerster e Atlan). Não serão incluídas no texto as definições
formais desses autores (que, para fins de referência, seguem em notas, no original), por
terem estas sido propostas em subordinação a contextos específicos (como transmissão
de sinais, ou biologia), e assim conterem terminologia e formulações matemáticas
próprias.
A Shannon é devida a concepção dessas noções. Ao longo de uma linha de transmissão,
a riqueza de informação que é enviada foi por ele compreendida em termos de
variedade, ou seja, de diversidade. Ele não se utiliza contudo desses termos, mas optou
por referir-se a uma quantidade de incerteza (a entropia de Shannon) na medida que,
quanto mais diverso (mais rico) o código utilizado (que à época era, usualmente, a
linguagem natural), mais incerteza existe quanto ao símbolo (o elemento do sistema
“código”) que é, a cada instante, transmitido. Shannon, frente ao problema da
transmissão de sinais em uma linha com ruído, compreendeu que o que chega para o
dispositivo receptor (que se espera capaz de recuperar a informação tal como
transmitida) é uma “quantidade de incerteza”, que comporta tanto a informação
transmitida como ruído.
Estudando a linguagem natural humana, em que a probabilidade de aparecimento dos
diversos símbolos é claramente desigual, Shannon percebeu uma identidade com o
conceito de entropia de Boltzmann, em que a distribuição das moléculas, expressa em
termos de probabilidades, converge para a homogeneidade, ou seja, para uma variedade
máxima, situação em que qualquer conhecimento quanto à condição de uma dada
molécula não acrescenta conhecimento a respeito das demais.421 Ele então deu-se conta
421
We have represented a discrete information source ... Can we define a quantity which will measure, in some
sense, how much information is “produced” by such a process? ... Suppose we have a set of possible events whose
probabilities of occurrence are p1, p2, ..., pn. These probabilities are known but that is all we know concerning which
event will occur. Can we find a measure of how much “choice” is involved in the selection of the event or of how
uncertain we are of the outcome? ... Quantities of the form H = − ∑ pi log pi ... play a central role in information
161
de que a distribuição necessariamente desigual de probabilidades no interior da
linguagem corresponde à existência de alguma parcela de redundância, regularidades
estruturais que correlacionam os elementos da linguagem, e que portanto operam como
delimitadoras da incerteza.422
Tal parcela de redundância é passível de ser reduzida por meio do uso de alguma
codificação especificamente desenvolvida para esse fim, o que libera “espaço” (vazão)
theory as measures of information, choice and uncertainty. The form of H will be recognized as that of entropy as
defined in certain formulations of statistical mechanics where pi is the probability of a system being in the cell i of its
phase space. H is, then, for example, the H in Boltzmann’s famous H theorem. We shall call H = − ∑ pi log pi the
entropy set of probabilities p1, ..., pn. If x is a chance variable we will write H(x) for its entropy; thus x is not an
argument of a function but a label for a number, to differentiate it from H(y) say, the entropy of the chance variable y
(SHANNON, 1949 (1948): 18-20).
Nós representamos uma fonte de informação discreta ... Podemos definir uma quantidade que medirá, em algum
sentido, quanta informação é “produzida” por um tal processo? ... Suponha que temos um conjunto de eventos
possíveis, cujas probabilidades de ocorrência são p1, p2, ..., pn. Estas probabilidades são conhecidas, mas isso é tudo o
que nós sabemos a respeito de qual evento irá ocorrer. Podemos encontrar uma medida de quanta “escolha” está
envolvida na seleção do evento, ou de quão incerto nos é o resultado? ... Quantidades na forma H = − ∑ pi log pi ...
desempenham um papel central em teoria da informação como medidas de informação, escolha, e incerteza. A forma
de H será reconhecida como a da entropia, como definido em certas formulações da mecânica estatística em que pi é a
probabilidade de um sistema estar no compartimento i de seu espaço de fase. H é, então, por exemplo, o H no famoso
teorema H de Boltzmann. Nós denominaremos H = − ∑ pi log pi ao conjunto entropia de probabilidades p1, ..., pn. Se
x é uma variável aleatória nós escreveremos H(x) para sua entropia; assim x não é um argumento de uma função, mas
um rótulo para um número, para diferenciá-lo de H(y), digamos, a entropia da variável aleatória y.
422
The ratio of the entropy of a source to the maximum value it could have while still restricted to the same symbols
will be called its relative entropy. This ... is the maximum compression possible when we encode into the same
alphabet. One minus the relative entropy is the redundancy. The redundancy of ordinary English ... is roughly 50%.
This means that when we write English half of what we write is determined by the structure of the language and half
is chosen freely (ibid., pp. 25-26). The redundancy is related to the extent to which it is possible to compress the
language [, ou código, em questão]. I think I can explain that simply. A telegraph company uses commercial codes
consisting of a few letters or numbers for common words and phrases. By translating the message into these codes
you get an average compression. The encoded message is shorter, on the average, than the original. Although this is
not the best way to compress, it is a start in the right direction. The redundancy is the measure of the extent to which
it is possible to compress if the best possible code is used. It is assumed that you stay in the same alphabet, translating
English into a twenty-six-letter alphabet. The amount that you shorten it, expressed as a percentage, is then the
redundancy. If it is possible, by proper encoding, to reduce the length of English text 40 per cent, English then is 40
per cent redundant. The redundancy can be calculated in terms of probabilities associated with the language; the
probabilities of the different letters, pairs of letters; probabilities of words, pairs of words; and so on. The formula for
this calculation is related to the formula of entropy ... Actually, to perform this calculation is quite a task
(SHANNON, 1951 (1950): 124).
A taxa da entropia de uma fonte, relativamente ao valor máximo que ela possa ter enquanto ainda restrita aos mesmos
símbolos, será denominada sua entropia relativa. Esta ... é a compressão máxima possível quando nós codificamos
para dentro do mesmo alfabeto. Um menos a entropia relativa é a redundância. A redundância do inglês corriqueiro ...
é de aproximadamente 50%. Isto significa que, quando nós escrevemos em inglês, metade do que nós escrevemos é
determinado pela estrutura da linguagem e metade é livremente escolhido. [...] A redundância é relativa ao grau a que
é possível comprimir a linguagem [, ou código, em questão]. Eu penso que possa explicar isso de modo simples. Uma
companhia telegráfica utiliza códigos comerciais que consistem de umas poucas letras ou números para palavras e
orações comuns. Ao traduzir a mensagem nesses códigos você obtém uma compressão média. A mensagem
codificada é mais curta, em média, que a original. Ainda que esta não seja a melhor maneira de comprimir, ela é um
começo na direção correta. A redundância é a medida do grau a que é possível comprimir, se o melhor código
possível for utilizado. Pressupõe-se que você permaneça no mesmo alfabeto, traduzindo inglês em um alfabeto de
vinte e seis letras. A quantidade de que você o reduz, expressa como uma percentagem, é então a redundância. Se for
possível, por codificação apropriada, reduzir a extensão do inglês em 40 por cento, então o inglês é 40 por cento
redundante. A redundância pode ser calculada em termos das probabilidades associadas com a linguagem; as
probabilidades das diferentes letras, pares de letras; probabilidades de palavras, pares de palavras; e assim por diante.
A fórmula para este cálculo é relacionada à fórmula da entropia ... Em verdade, efetuar este cálculo é uma tarefa e
tanto.
162
no canal para a aplicação, à mensagem, de algum outro padrão de redundância, próprio
à codificação escolhida e que, na recepção, é utilizado pelo dispositivo decodificador
para a recuperação da variedade original da mensagem transmitida sob condições de
ruído.423
A Ashby (e, antes dele, a Wiener)424 é devida a elevação dessas noções à categoria de
propriedades gerais dos sistemas. Ashby optou por referenciar o que Shannon
denominou “entropia” (quantidade de informação) sob o nome de variedade;425 já o que
Shannon havia denominado “redundância”, Ashby formalizou como restrição. O
raciocínio é simples, embora não-usual: um determinado sistema se comporta de
determinadas maneiras, e não de outras, devido a encontrar-se restrito a somente se
comportar daqueles modos; dito de outra forma, a liberdade para o comportamento do
sistema não é absoluta porque sobre ele incidem restrições.426
423
If the channel is noisy it is not in general possible to reconstruct the original message ... There are, however, ways
of transmitting the information which are optimal in combating noise (SHANNON, 1949 (1948): 35). ... by sending
the information in a redundant form the probability of errors can be reduced. ... It is possible to send information ...
through the channel with as small a frequency of errors ... as desired by proper encoding (ibid., p. 39). An
approximation to the ideal would have the property that if the signal is altered in a reasonable way by the noise, the
original can still be recovered. ... This is accomplished at the cost of a certain amount of redundancy in the coding
(ibid., p. 43).
Se o canal for ruidoso em geral não é possível reconstruir a mensagem original ... Existem, entretanto, maneiras de
transmitir a informação que são otimizadas ao combate ao ruído. [...] ao enviar a informação em uma forma
redundante a probabilidade de erros pode ser reduzida. ... É possível enviar informação ... através do canal com uma
freqüência de erros tão pequena ... quanto desejada, por codificação apropriada. [...] Uma aproximação ao ideal teria a
propriedade de, se o sinal for alterado de um modo razoável pelo ruído, o original poder ainda ser recuperado. ... Isto
é realizado ao custo de uma certa quantidade de redundância na codificação.
424
Que também tinha por foco os desenvolvimentos matemáticos derivados da noção de entropia (de Boltzmann); cf.
WIENER, 1948.
425
The word variety, in relation to a set of distinguishable elements, will be used to mean either (i) the number of
distinct elements, or (ii) the logarithm to the base 2 of the number [que corresponde ao número mínimo de bits
necessários para referenciar todos os elementos do conjunto] (ASHBY, 1956: 126).
O termo variedade, em relação a um conjunto de elementos distinguíveis, será empregado para significar ou (i) o
número de elementos distintos, ou (ii) o logaritmo de base 2 do número [que corresponde ao número mínimo de bits
necessários para referenciar todos os elementos do conjunto].
426
... [uma] constraint ... is a relation between two sets [de elementos de um sistema], and occurs when the variety
that exists under one condition is less than the variety that exists under another. ... It seems that constraints cannot be
classified in any simple way, for they include all cases in which a set, for any reason, is smaller than it might be
(ibid., pp. 127-128). ... when a constraint exists advantage can usually be taken of it. ... Most of it [o trabalho de
Shannon] is directed to estimating the variety that would exist if full independence occurred, showing that constraints
(there called “redundancy”) exist, and showing how their existence makes possible a more efficient use of the
channel. ... the existence of any invariant over a set of phenomena implies a constraint, for its existence implies that
the full range of variety does not occur. ... it follows that every law of nature is a constraint. Thus, [por exemplo,] the
Newtonian law ... excludes many positions and velocities, predicting that they will never be found to occur. ... Here
the larger set is composed of what might happen if the behaviour were free and chaotic, and the smaller set is
composed of what does actually happen. ... Seen from this point of view, the world around us is extremely rich in
constraints. We are so familiar with them that we take most of them for granted, and are often not even aware that
they exist. ... A world without constraints would be totally chaotic (ibid., pp. 130-131).
... [uma] restrição ... é uma relação entre dois conjuntos [de elementos de um sistema], e ocorre quando a variedade
que existe sob uma condição é menor que a variedade que existe sob a outra. ... Parece que restrições não podem ser
classificadas por nenhum modo simples, porque elas incluem todos os casos em que um conjunto, por qualquer razão,
163
Ashby, que como vimos preocupava-se em ser didático, fazia recurso freqüente a
metáforas, como as que aqui transcrevemos, da cadeira, do avião e da cobaia no
labirinto. Um objeto físico, no espaço tridimensional, tem seis possibilidades de
deslocamento: para frente, trás, cima, baixo, esquerda e direita (qualquer outro
movimento é uma combinação destes); a variedade das possibilidades de deslocamento
de um conjunto composto por quatro pernas de cadeira avulsas é de 6 x 4 = 24; contudo,
esta variedade para uma cadeira (uma unidade em si) de que façam parte as quatro
pernas é reduzida a seis: “... a essência de ser a cadeira uma ‘coisa’, uma unidade, ao
invés de um agrupamento de partes independentes, corresponde à presença da
restrição”.427
Para que a trajetória futura de um avião seja previsível (ou seja, para que se possa
estimar a variedade dessa trajetória) é necessário que ela seja restrita:
Se um avião, por exemplo, estivesse apto a movimentar-se, segundo após segundo, de um ponto a
outro no céu, então a melhor predição antiaérea seria inepta e inútil. ... um avião não pode
repentinamente disparar, seja em posição, velocidade ou direção. Existe restrição devida à
individualidade do projeto, que faz com que este avião se comporte como um A-10 e aquele se
comporte como um Z-20. Existe restrição devida à individualidade do piloto; e assim por diante.428
Da mesma forma, qualquer aprendizagem só é possível por haver restrições. Para que
uma cobaia de laboratório aprenda o caminho em um labirinto, este deve conservar um
mesmo padrão durante todo o período de aprendizagem. Se o labirinto não apresentar
restrições próprias, o animal será incapaz de desenvolver o esperado (e apropriado)
comportamento: “a aprendizagem somente vale a pena quando o ambiente apresenta
restrição”.429
é menor do que o que ele poderia ser. [...] quando uma restrição existe pode-se geralmente tirar proveito dela. ... A
maior parte dele [o trabalho de Shannon] é direcionado a estimar a variedade que existiria se total independência
ocorresse, mostrando que as restrições (lá, chamadas “redundância”) existem, e mostrando como a sua existência
torna possível um uso mais eficiente do canal. ... a existência de qualquer invariante sobre um conjunto de fenômenos
implica uma restrição, porque a sua existência implica que a gama plena de variedade não ocorre. ... segue-se que
toda lei da Natureza é uma restrição. Assim, [por exemplo,] a lei newtoniana ... exclui muitas posições e velocidades,
predizendo que nunca as veremos ocorrer. ... Aqui o conjunto maior é composto pelo que poderia acontecer se o
comportamento fosse livre e caótico, e o conjunto menor é composto pelo que realmente acontece. ... Considerado
desse ponto de vista, o mundo ao nosso redor é extremamente rico em restrições. Nós estamos tão familiarizados com
elas que nós tomamos a maioria delas por certas, e geralmente não estamos sequer cientes de que elas existem. ... Um
mundo sem restrições seria totalmente caótico.
427
428
429
Ibid., p. 131.
Ibid., p. 132.
Ibid., p. 134.
164
Já em relação a um idioma, o que confere a este uma coerência e identidade próprias são
as restrições a que ele se encontra sujeito, ou seja, é a sua redundância. Por exemplo,
para escrever corretamente em inglês deve-se necessariamente empregar “a” antes de
consoante (ou de vogal que soe como consoante, como em “a university”) bem como
“an” antes de vogal (ou de consoante que soe como vogal, como em “an hour”) – e não
qualquer outra coisa. A variedade à disposição daquele que fala ou escreve pode ser
ampla (tome-se, por exemplo, o Finnegans Wake de Joyce),430 mas ela não é absoluta;
por mais plásticos que sejam os seus limites, uma vez que estes sejam ultrapassados já
não se trata mais de inglês, o idioma terá se transmutado em alguma outra coisa:
The European Union commissioners have announced that agreement has been reached to adopt
English as the preferred language for European communications – rather than German, which was
the other possibility. As part of the negotiations, Her Majesty’s Government conceded that English
spelling had some room for improvement and has accepted a five-year phased plan for what will
be known as EuroEnglish (Euro for short).
In the first year, “s” will be used instead of the soft “c”. Sertainly, sivil servants will reseive this
news with joy. Also, the hard “c” will be replaced with “k”. Not only will this klear up konfusion,
but keyboards kan have one less letter.
There will be growing publik enthusiasm in the sekond year, when the troublesome “ph” will be
replased by “f”. This will make words like “fotograf” 20 per sent shorter.
In the third year, publik akseptanse of the new spelling kan be expekted to reach the stage where
more komplikated changes are possible. Governments will enkourage the removal of double
letters, which have always ben a deterent to akurate speling. Also, al wil agre that the horible mes
of silent “e”s in the languag is disgrasful, and they would go.
By the fourth year, peopl wil be reseptiv to steps such as replasing “th” by “z” and “w” by “v”.
During ze fifz year, ze unesesary “o” kan be dropd from vords kontaining “ou”, and similar
changes vud, of kors, be aplid to ozer kombinations of leters.
After zis fifz yer, ve vil hav a reli sensibl riten styl. Zer vil be no mor trubls or difikultis and
evrivun vil find it ezi tu understand ech ozer.
Ze drem vil finali kum tru.431
No que toca à questão organizacional: na medida que a existência de uma organização
requer que significados sejam compartilhados por toda uma comunidade de pessoas, a
variedade para esses significados pode ser ampla (diferentes pessoas possuem diferentes
idéias quanto ao que seja a organização), mas não tem como ser total: uma identidade e
430
431
James Augustine Aloysius Joyce (França; n. Irlanda; 1882-1941).
Anedota recolhida da Internet (autor desconhecido).
165
uma coerência próprias àquela organização advêm justamente da redundância que
perpassa as percepções dos indivíduos, restrições que inibem que a organização seja
percebida como aquilo que ela não é.
É portanto a redundância o que determina o escopo para a variedade. Nesse caso da
organização, quanto mais robusta a redundância (ou seja, quanto mais consistente a
identidade organizacional) mais convergência haverá de ações e comportamentos – o
que pode ser vantajoso ou desvantajoso, ou ambos, como será visto mais à frente.
Assim, uma restrição corresponde a uma redução não da variedade real, mas da
variedade potencial – uma realidade sobre que não incidissem restrições seria
completamente caótica. Isso torna imprecisa qualquer descrição e inexata qualquer
mensuração da redundância (os cálculos de Shannon a respeito do idioma inglês eram
aproximativos), pois ela refere-se ao que o sistema poderia ser – mas não é.
Por sua vez, a von Foerster é devida a caracterização do fenômeno da auto-organização
como uma dança evolutiva entre ordem e desordem, em que energia é importada do
ambiente, e em que cabe à redundância desempenhar o papel de ordem.432
A Atlan, por fim, é devida a caracterização, nos sistemas biológicos, da autoorganização como um processo de especificação de variedade por redução de
432
What we expect is that the systems [auto-organizantes] are increasing their internal order. ... In order to describe
this process, ... it would be nice if we would ... have some measure of order. ... we wish to describe by this term two
states of affairs. First, we may wish to account for apparent relationships between elements of a set which would
impose some constraints as to the possible arrangements of the elements of this system. As the organization of the
system grows, more and more of these relations should become apparent. Second, it seems to me that order has a
relative connotation, rather than an absolute one, namely, with respect to the maximum disorder the elements of the
set may be able to display. This suggests that it would be convenient if the measure of order would assume values
between zero and unity, accounting in the first case for maximum disorder and, in the second case, for maximum
order. ... what Shannon has defined as “redundancy” seems to be tailor-made for describing order as I like to think of
it (von FOERSTER, 1984a (1960): 8-9).
O que nós supomos é que os sistemas [auto-organizantes] estejam aumentando sua ordem interna. ... Para descrever
este processo, ... seria bom se nós pudéssemos ... ter alguma medida de ordem. ... nós desejamos descrever por este
termo dois estados de coisas. Primeiro, nós podemos desejar dar conta dos relacionamentos aparentes entre elementos
de um conjunto que imporiam algumas restrições com relação às possíveis disposições dos elementos deste sistema.
À medida que a organização do sistema aumenta, mais e mais destas relações devem se tornar aparentes. Segundo,
me parece que ordem tem uma conotação relativa ao invés de absoluta, quero dizer, com respeito à máxima desordem
que os elementos do conjunto podem ser capazes de exibir. Isto sugere que seria conveniente se a medida de ordem
assumisse valores entre zero e a unidade, respondendo no primeiro caso pela máxima desordem e, no segundo caso,
pela máxima ordem. ... o que Shannon definiu como “redundância” parece ser sob medida para descrever ordem
como eu prefiro considerá-la.
166
redundâncias no sistema433 (o que corresponde a um aumento de complexidade) com
aproveitamento de ruído, em que o grau de compromisso434 entre redundância435 e
variedade, condicionantes a um tempo opostas e complementares, é o que determina os
potenciais para auto-organização. Deve-se também a Atlan uma descrição da realidade
como composta por distintos níveis de complexidade436 funcionalmente acoplados, mas
que operam segundo códigos próprios.
Define-se complexidade, por tudo o que já foi exposto, como a legitimação da incerteza,
a aceitação da impossibilidade de se chegar a um conhecimento completo e final. A
complexidade em um sistema é portanto a parcela de desordem que corresponde à falta
de conhecimento quanto à ordem de que se conjectura ser ele dotado. Define-se agora
433
... il semble aujourd’hui plus légitime de réserver, comme le faisait von Foerster, le terme d’ordre à ce qui se
mesure par une redondance, la varieté et la complexité étant mesurées par l’information, fonction H de Shannon
(ATLAN, 1979: 74).
... parece, atualmente, mais legítimo reservar, como o fez von Foerster, o termo ordem ao que se mede por uma
redundância, a variedade e a complexidade sendo medidas pela informação, função H de Shannon.
434
... dans les systèmes complexes, le degré d’organisation ne pourra être réduit ni à sa varieté ... ni à sa redondance,
mais consistera en un compromis optimal entre ces deux propriétés opposées (ibid., p. 43).
... nos sistemas complexos, o grau de organização não poderá ser reduzido nem à sua variedade ... nem à sua
redundância, mas consistirá em um compromisso ótimo entre estas duas propriedades opostas.
435
... l’ordre n’apparâit dans une structure qui si on le connaît, si on le comprend les articulations, le code qui régit
l’agencement des éléments (ibid., p. 77). L’existence de contraintes internes à l’intérieur du système équivaut à une
redondance. En effet, du fait de ces contraintes, la connaissance d’un élément modifie celle qu’on peut avoir sur
d’autres éléments. Si cette connaissance est limitée à celle de leurs probabilités d’apparition comme éléments
constitutifs du système, les contraintes sont mesurées par des probabilités conditionnelles (de rencontrer un élément
sous condition qu’un autre ait été d’abord identifié) (ibid., pp. 78-79).
... a ordem não aparece numa estrutura a menos que a conheçamos, que compreendamos suas articulações, o código
que rege a disposição dos elementos. [...] A existência de restrições internas no interior do sistema equivale a uma
redundância. Com efeito, devido a estas restrições, o conhecimento de um elemento modifica aquele que se possa ter
sobre outros elementos. Se esse conhecimento é limitado ao das probabilidades de suas ocorrências como elementos
constitutivos do sistema, as restrições são medidas por probabilidades condicionais (de encontrar um dado elemento,
sob condição de que um outro já tenha sido identificado).
436
... comment peut-on mesurer ... quelque chose qu’on ne connaît pas, en l’occurrence ici l’information qu’on ne
possède pas sur le système (ou encore le déficit d’information, l’incertitude sur le système)? On le peut si on connaît
les éléments constitutifs du système et leur distribution de probabilités ... A partir de cette information minimale
(qu’on possède), on peut calculer l’information qui nous manque pour être capable de reconstruire le système à partir
de ses élements, c’est-à-dire de le comprendre. C’est en cela que cette fonction H de Shannon ... mesure la
complexité, pour nous observateurs, de ce système. On comprend alors en quoi cette mesure dépend de façon critique
du niveau d’observation, on plus exactement du choix de ce qui est considéré comme éléments constitutifs. ... La
valeur numérique de H peut varier considérablement car elle dépend du choix des éléments constitutifs : particules
élémentaires, atomes, molécules, macromolécules, organelles, cellules, organes, organismes, unités de production et
de consommation, sociétés, etc. (ibid., pp. 74-75).
... como se pode medir ... algo que não se conhece, e que se trata aqui da informação que não se possui sobre o
sistema (ou ainda o déficit de informação, a incerteza a respeito do sistema)? Isto é possível desde que se conheçam
os elementos constitutivos do sistema e sua distribuição de probabilidades ... A partir dessa informação mínima (que
se possui), pode-se calcular a informação que nos falta para que se seja capaz de reconstruir o sistema a partir de seus
elementos, ou seja, de compreendê-lo. É nesse sentido que essa função H de Shannon ... mede a complexidade, para
nós, observadores, deste sistema. Compreende-se então em que essa medida dependa de modo crítico do nível de
observação, mais exatamente da escolha do que são considerados elementos constitutivos. ... O valor numérico de H
pode variar consideravelmente, pois ele depende da escolha dos elementos constitutivos: partículas elementares,
átomos, moléculas, macromoléculas, organelas, células, órgãos, organismos, unidades de produção e de consumo,
sociedades etc.
167
variedade como a medida da complexidade de um sistema, e que é devida à
diversidade437 percebida nos elementos e na dinâmica de interações entre eles. E definese redundância como a medida em que essa variedade encontra-se restrita pelos graus
de ordem presentes (ou seja, pelo conhecimento disponível), e que são devidos à
regularidade percebida nos elementos e na dinâmica de interações entre eles.
Em suma, redundância é um atributo do sistema relativo ao todo, àquilo que as partes
implicam de comum, de coletivo; já variedade é relativa à especificidade, à
particularidade das partes. Por fim, os processos por natureza auto-organizantes de
mútua produção entre variedade e redundância constituem a dinâmica gerativa da
fenomenologia do sistema.
Queremos, por esta expressão, referenciar o conjunto de processos interdependentes que
produz a fenomenologia do sistema, no sentido de que a evolução no tempo de tais
processos constitui o conjunto de fenômenos que caracteriza o sistema como tal.
Já foi deixado claro que o que desenvolvemos aqui é uma explicação de natureza
simbólica ao invés de operacional, em que não cabe portanto qualquer relação causal
direta entre redundância e variedade (ou seja, entre as fenomenologias do todo e das
partes). Ainda assim, é importante ressaltar que até mesmo o formalismo cibernético da
equação
H = Hmax ( 1 − R )
correlaciona uma grandeza que na fórmula é tida como absoluta
(variedade) com outra que é tida como relativa (redundância); qualquer falta de clareza
quanto a que se trata de grandezas dissimilares induz ao risco de equívocos.438
Reconhecemos que, ao postular que redundância e variedade são mutuamente geradoras
uma da outra, estabelecemos um espaço (ou domínio) único para a fenomenologia
437
Em Ashby, a variedade de um sistema corresponde ao número de elementos distintos desse sistema, ou seja, à sua
diversidade em termos físicos (cf. nota 425, p. 163); para Shannon, ela corresponde à diversidade da distribuição
estatística desses elementos (cf. nota 421, p. Erro! Indicador não definido.); para von Foerster e Atlan, ela
corresponde a toda diversidade que ainda é percebida no sistema ao se conhecer, ainda que parcialmente, as restrições
(redundância) existentes. Esta última noção é a adotada aqui.
438
Por exemplo, ao extrair parte da redundância de uma mensagem, Shannon torna o sistema “mensagem” mais
complexo ou variado (o que, no caso, significa uma mensagem de mais difícil compreensão por um leitor humano)
em relação à sua complexidade ou variedade máxima possível. A distribuição (entendida como “quantidade”) da
variedade real foi alterada (aumento de H), mas a variedade potencial Hmax que se quer preservar ao longo da
transmissão foi mantida. Assim, na frase “o comprimento da mensagem (o tamanho do sistema) foi reduzido, mas
sua variedade foi mantida, sem perda de conteúdo da mensagem” fica subentendido que se trata da variedade
máxima Hmax . Já na frase “o sistema (mensagem) se tornou mais complexo ou variado pela redução de
redundância”, trata-se da distribuição H da variedade.
168
organizacional. O que Maturana e Varela preconizam é a existência de dois domínios
fenomenológicos (o fisiológico/físico-químico e o comportamental/biológico) que são
distintos porque existentes como experiência do observador, posto que a concepção
deles para o real é a de um determinismo mecanicista a que, contudo, não seria possível
qualquer acesso direto, e cuja realidade pode assim ser apenas inferida – pela simples
razão de que faz sentido frente aos acúmulos em Biologia. Já para Atlan439 (bem como
para Dupuy, Morin, Kauffman e outros) faz sentido (frente aos mesmos acúmulos)
considerar a existência de uma co-determinação causal entre o todo e as partes – o que,
nos termos de Varela, pode corresponder a uma descrição simbólica admissível, desde
que em conformidade com critérios que procuramos aqui atender.
O que nós buscamos aqui não é a palavra final quanto a esta controvérsia (que muito
possivelmente não será dada tão cedo, ou mesmo nunca), mas sim a construção de uma
teoria que guarde compatibilidade com ambas essas proposições (as de Atlan e a
autopoiesis), e possa assim incorporar os valiosos aportes de ambas. É nesse propósito
que afirmamos aqui que, enquanto experiência do observador, faz sentido considerar
que os âmbitos individual e social conformam, sim, domínios fenomenológicos
distintos, que se modelam mutuamente e que mutuamente dependem um do outro para
suas próprias geração e conservação; e que, enquanto descrição simbólica admissível,
faz sentido considerar que os âmbitos individual e social, interpretados respectivamente
em termos de variedade e de redundância, são sim mutuamente geradores um do outro,
no que consistem a dinâmica gerativa da fenomenologia organizacional.
Também já vimos que a Teoria da Complexidade não é adequada à modelagem.440
Entendemos contudo que ela propicia uma significativa expansão no horizonte de
compreensão qualitativa dos fenômenos – uma ampliação do pensamento humano – que
vem possibilitar uma atuação diferenciada (antes no sentido de compatível que no de
interveniente) nos ambientes organizacionais.441
439
440
441
Remeter à nota 412, p. 154.
Remeter à p. 71.
Cf. BAUER, 1999: 223, 225-228.
169
Toda organização é um sistema complexo, pois ela já conta, por sua própria natureza,
tanto com redundância como com variedade, em permanente mútua produção.
Entendemos assim que a essência da gestão em uma organização corresponde, antes de
tudo, a compreender a dinâmica gerativa consistida por esses processos de mútua
geração entre redundância e variedade, o que propicia uma atitude de facilitá-los – algo
necessariamente prévio a atitudes de caráter interveniente de balanceá-los, pela
promoção ou indução de um em detrimento do outro, ou de incrementá-los, por sua
importação.
Nosso argumento central é que facilitar os processos de mútua geração entre
redundância e variedade diz respeito essencialmente ao fomento de qualidade para as
interações humanas,442 a que denominamos convivencialidade.443 Passemos, agora, ao
exame dos papéis desempenhados por redundância e variedade para a geração da
fenomenologia organizacional.
A premissa básica para uma compreensão das organizações como sistemas complexos
(todos) compostos por indivíduos (partes) em interação é tomar cada individualidade
por única – não há como “entrar na cabeça” das pessoas para desvendar o que se passa
lá dentro. Na óptica da organização (ou, do ponto de vista de um observador, o que é
equivalente), as pessoas representam desordem (no sentido de incerteza, de
impossibilidade de conhecimento); elas são variedade.
442
Cf. BAUER, 2002, 1999: 184-188, 192-193, 207, 240.
443
“A relação do EU com o OUTRO (as pessoas, a natureza, a sociedade, o mundo) pode assumir diferentes formas
em função da perspectiva do EU. ... Há a separação, o EU diante do OUTRO. Isso em si é saudável: mesmo alguém
profundamente integrado à natureza, como um índio, diante de uma árvore é capaz de ver uma canoa, ou lenha para
sua fogueira; já nós podemos ver celulose, papel etc. Diante de outro membro da tribo, o índio vê um curandeiro, ou
um guerreiro; já nós vemos uns aos outros de acordo com os inúmeros papéis sociais de nossa sociedade complexa.
... E há a totalidade: diante do outro, devemos ser capazes de ver também a nós mesmos. Caso contrário, deixamos
de ser humanos, e nos reduzimos a meras máquinas de estratégia para uso e consumo do outro. ... O relacionamento
EU-OUTRO é uma dualidade, separação e totalidade se alternam o tempo todo. Convivencialidade é exatamente
isso – essa saudável alternância. ... Num relacionamento convivencial, o OUTRO é visto com um igual, se estabelece
um senso de respeito, abertura e cuidado. Convivencialidade é fazer-se presente ao outro – em todos os sentidos que
esta palavra comporta. ... Há, porém, o risco de irmos aos poucos nos esquecendo que fazemos parte de um todo.
Sem a contrapartida da totalidade, a separação degenera em utilitarismo. Num relacionamento utilitário, o EU
subordina o OUTRO aos seus interesses e objetivos pessoais. O outro é reduzido a objeto, instrumento; predomina o
controle” (REDE PARA A EDUCAÇÃO, O DOM E A EXPRESSÃO, 2002: passim); ver também REDE PARA A
EDUCAÇÃO, O DOM E A EXPRESSÃO (Brasil). “Convivencialidade ou Utilitarismo?”. In: AGOSTINHO, Márcia
E., BAUER, Ruben, PREDEBON, José (orgs.). Convivencialidade: A Expressão da Vida nas Empresas. São Paulo:
Atlas, pp. 15-24, 2002. Infelizmente, não será possível fazer uso da tradução para o inglês (conviviality) do termo
convivencialidade (do latim convivere: viver junto, viver em comum), uma vez que naquele idioma inexiste o verbo
“to convive” (conviver), porém existe o adjetivo convivial (do latim convivium: uma festa), com o que o termo
conviviality acaba referido às idéias de celebração e congraçamento.
170
Contudo, essa falta de conhecimento por parte do sistema “organização” (ou do
observador) quanto às partes nunca é absoluta, e assim não há como a desordem ser
total, pois as pessoas tanto agem como inter-agem entre si de maneiras que não são de
todo desconhecidas. Como exemplo óbvio, elas se comunicam por meio de um idioma
comum; neste, elas empregam vocabulários cujos significados elas pressupõem sejam
compartilhados por seus interlocutores.
Ou seja, a desordem encontra-se circunscrita (restrita) por alguma ordem – por
redundância, que se faz presente em diversos níveis. O sistema “organização” é assim
composto em parte por variedade ou desordem (o que se desconhece a respeito de suas
partes – os indivíduos – e da interdependência entre elas) e em parte por redundância ou
ordem (o que se conhece, e que delimita a desordem).
É o processo de interação entre as pessoas (variedade) que ocorre com base em algum
contexto comum (redundância) o que produz tanto mais variedade (por exemplo, novas
idéias na cabeça das pessoas) quanto uma renovação da redundância (por exemplo,
novos consensos).
A redundância em uma organização corresponde a tudo o que nela é compartilhado
pelas pessoas: a identidade organizacional; a cultura organizacional; bases
compartilhadas de informação; habilidades e competências comuns. Pode-se promover
ou induzir redundância (por exemplo, por iniciativas de reforço da identidade
organizacional) ou importá-la (por exemplo, pelo provimento de uma base comum de
treinamento).
Já a variedade em uma organização corresponde a tudo que se refira à individualidade:
os conhecimentos (chamados tácitos) de cada um; as habilidades e competências
individuais; as diferentes percepções e interpretações de uma mesma realidade pelas
diferentes pessoas; e a ambigüidade, a contradição e o conflito que necessariamente
advêm quando da confrontação dessas diferentes percepções e interpretações. Pode-se
promover ou induzir variedade (por exemplo, pelo estímulo à experimentação) ou
importá-la (por exemplo, contratando mais pessoas).
171
Seja, como modo de se compreender a auto-organização nos termos de Atlan:444 do
elemento A (um indivíduo) para o elemento B (outro indivíduo) em um sistema S (uma
organização) ocorre uma transmissão de informação (por exemplo, A participa a B sua
percepção de uma dada situação). Se sobre essa transmissão incide ruído, B recebe ao
menos parte da informação original (o que implica aumento de redundância no sistema)
juntamente com o ruído (o que implica aumento de variedade, uma vez que o ruído
também compõe o total de informação contida no subconjunto {A, B} do sistema S).
Em seguimento, agora nos termos de Maturana e Varela: qualquer “transmissão de
informação” de A para B necessariamente implica ruído, uma vez que exercerá sobre B
o efeito de uma perturbação que B irá compensar de uma forma subordinada à
conservação de sua identidade própria. Dito de outra forma: uma interação lingüística
entre A e B não é uma transmissão de conteúdo, é uma coordenação de comportamentos
por acoplamento mútuo em que cada mudança estrutural em uma unidade opera como
uma perturbação a ser autonomamente compensada pela outra.
Em síntese: toda interação humana envolve necessariamente alguma produção de
“ruído” (ainda que despercebido), pois toda cognição se dá de forma referenciada no
viver individualizado de cada um.
De volta a Atlan: na medida em que o sistema S, composto não apenas por A e B mas
por outros indivíduos que operam ou como “receptores” do que a A e B lhes
“transmitem” ou como observadores do que se passa entre A e B (o que é equivalente;
sobre esses outros indivíduos o que incide são também perturbações) for capaz de
auferir proveito desses ruídos internos (contradição, ambigüidade, conflito) em monta
superior ao efeito destrutivo desses mesmos ruídos, e assim elevar sua capacidade de
resposta às perturbações originadas no seu ambiente (do sistema), tem-se que a
organização (sistema S) evolui por auto-organização.
Ou ainda: se uma “quantidade de variedade” for a medida da informação em um dado
nível em um sistema hierarquizado (no caso, o âmbito individual), a redundância
444
Remeter à Figura 5, à p. 145.
172
corresponde ao significado que todo esse agregado de informação expressa em um outro
nível (no caso, o âmbito social).
Escolhemos tomar por teoria central a de Atlan, por suas já mencionadas vantagens
(descrição que incorpora uma dimensão simbólica ao invés de puramente operacional, o
que vem propiciar o estabelecimento de uma correlação entre redundância e variedade).
Não obstante, é também possível expressar nossa teoria exclusivamente nos termos da
autopoiesis: redundância corresponde precisamente às regularidades constitutivas de
uma unidade de ordem superior (no caso, terceira) geradas pelos acoplamentos
(interações) entre as unidades de uma dada ordem (no caso, segunda); do ponto de vista
da unidade de terceira ordem (ou seja, “de fora”: um observador), variedade
corresponde à autonomia (conservação da autopoiesis) em cada uma das unidades dessa
(segunda) ordem.
A vertente metafórica
Uma tal capacidade de evolução por auto-organização pode, também, ser ilustrada pelo
recurso a metáforas. Iremos agora discorrer sobre a vertente metafórica em Teoria da
Complexidade,445 particularmente ativa no que se refere ao universo organizacional.
Os abusos e excessos no emprego de metáforas (o que, lamentavelmente, tem sido o
caso de muitas dentre as proposições organizacionais inspiradas na Teoria da
Complexidade), no limite, induzem a tomar-se o metafórico por real (o que para nós é
tão equivocado quanto tomar simulação por modelagem), e têm acarretado um desgaste
desse importante instrumento, desde sempre integrante da prática científica: é por meio
de metáforas que são ensaiados os primeiros passos em todo processo de transposição
de conceitos científicos de uma disciplina para outra.
Desde Taylor, com sua metáfora do homem-máquina, as teorias organizacionais
lastrearam-se sempre em metáforas. A metáfora concorre para a consolidação de um
imaginário compartilhado (redundância...) que por sua vez proporciona uma
445
O que faremos com base em MORGAN, 1997 (1986); ver também LISSACK, Michael. “Mind your Metaphors:
Lessons form Complexity Science”. Long Range Planning, vol. 30, n. 2, pp. 294-298, 1997.
173
coordenação coletiva das ações, decisões e comportamentos. As metáforas mecanicistas
e, posteriormente, as organicistas, foram portadoras de imagens que emprestaram sua
coerência aos contextos organizacionais, facilitando a construção, preservação e
renovação de imagens de mundo compartilhadas, e o emprego de uma linguagem
comum delas resultante. Por exemplo, referir-se a uma organização como se uma
máquina fosse facilita a assimilação da idéia de que a organização foi projetada e
construída para a consecução de finalidades e objetivos dados, por meio de um
funcionamento estável, previsível e eficiente. A metáfora coletivamente aceita impõe
assim uma estrutura subjacente de pensamento (ou seja, um paradigma), que permeia os
modos de leitura e interpretação da realidade.
A utilidade da metáfora provém da perspectiva de esclarecimento de algum aspecto
ainda difuso da realidade em face de outro com que já se esteja familiarizado. O risco
do emprego da metáfora reside justamente em saltar-se da mera correlação de
similaridades para uma identificação da realidade com a metáfora – uma reificação. Por
exemplo, o entendimento de uma organização como uma máquina, malgrado suas
vantagens em termos da valorização da eficiência, traz embutido o risco de que as
dimensões humanas envolvidas sejam relegadas a um segundo plano – pessoas tratadas
como se peças de máquina fossem.
Metáforas tradicionais aos ambientes organizacionais são, por exemplo, disputar um
jogo ou combater em uma guerra – metáforas sem dúvida adequadas a forjar um espírito
competitivo, mas que implicitamente pressupõem ser o jogo disputado em um campo
(ou o combate disputado em um relevo) pré-dado e invariante, e que se mostram
portanto precárias para descrever um ambiente de mercado mutável. Por serem as
organizações sistemas complexos e evolutivos, metáforas inspiradas na Teoria da
Complexidade afiguram-se mais indicadas.
Assim, há tanto metáforas que reforçam os padrões cristalizados de pensamento como
outras que aguçam o pensamento crítico e estimulam novas perspectivas de se pensar e
ver o mundo, favorecendo o surgimento de formas criativas para se lidar com o caráter
multifacetado da realidade organizacional – metáforas consistentes com os rumos da
evolução humana, e capazes de contribuir para essa evolução.
174
Tome-se como exemplo a metáfora do mercado como um ecossistema:446 estudos
ecológicos demonstram que, quanto mais consolidada a rede de interrelacionamentos no
interior de um ecossistema, mais esta dota seus componentes de robustez para resistirem
a deslocamento por alguma espécie competidora intrusa. No ecossistema do arquipélago
havaiano, por exemplo, a introdução de espécies exóticas de pássaros e plantas levou à
constituição de duas regiões distintas: nas terras baixas, onde a ocupação humana
rompeu boa parte dos interrelacionamentos preexistentes, as espécies nativas tornaramse vulneráveis à competição pelos intrusos; já nas terras altas, onde a mata nativa
manteve-se praticamente intacta, preservou-se também uma robustez dos laços
preexistentes entre plantas e pássaros nativos, com poucas dentre as espécies intrusas
conseguindo
deslocar
seus
respectivos
oponentes,
malgrado
pudessem
ser,
individualmente, mais competitivas. Já em uma rede de negócios, quanto mais
produtores e consumidores houver interconectados durante mais tempo, mais o sistema
torna resistentes suas partes individuais. Essa seria uma consistente hipótese para o
fracasso comercial de produtos tecnologicamente superiores aos concorrentes
estabelecidos, como o computador NeXT da Apple ou o microprocessador Alpha da
Digital Equipments.
Outro aspecto das circunstâncias atuais de mercado é a dificuldade em se definir quem é
parceiro e quem é concorrente: a mesma empresa pode mostrar-se aliada em um
momento e competidora em outro, ou ainda desempenhar ambos estes papéis
simultaneamente. Já em ecossistemas, experiências de campo levam a constatações
similares:447 ao se remover um predador do ecossistema, espera-se um aumento
populacional de sua presa preferencial; isso de fato ocorre no início, mas depois de um
certo tempo a população pode vir a declinar, caso o predador controlasse também a
população de outra presa, concorrente da primeira e competitivamente superior. No
longo prazo, a presa preferencial do predador retirado pode vir a desaparecer.
Propomos agora considerar o sistema imunológico como metáfora à auto-organização
pelas interações entre as pessoas nas organizações: os diferentes glóbulos brancos
digerem (“processam”) por modos particulares um mesmo agente agressor (o ruído
446
447
Extraída de LEWIN, REGINE, 2000: 63.
Ibid., p. 70.
175
externo, perturbação para o sistema como um todo); antes de morrer, eles transmitem
suas
“interpretações
individualizadas” a outros elementos do sistema pela
permeabilidade de suas membranas, desta forma injetando informações diversificadas,
contraditórias e ambíguas dentro do sistema (ruído interno). É justamente esse
excedente de informação o que permite ao sistema experimentar alternativas para
chegar a um padrão de resposta imunológica até então inexistente (auto-organização).
Já em uma organização, toda novidade que surge no ambiente é “ruído” justamente por
ser novidade, ou seja, porque (ainda) não se encontra incorporada aos modos de
organização do sistema. Tal novidade chega a diferentes elementos do sistema (pessoas)
por diferentes formas, e além disso cada pessoa a interpreta de forma individualizada,
com o que o conjunto das interpretações comporta necessariamente algum grau de
contradição e ambigüidade. A circulação dessas interpretações no interior da
organização, por sua vez, é necessariamente geradora de conflito, que comporta
aspectos tanto negativos quanto positivos. Uma predominância dos aspectos positivos
tem o potencial de promover a convergência das distintas interpretações rumo a
consensos quanto àquela “novidade externa”, que deixa então tanto de ser novidade
quanto externa, e se torna algo incorporado ao (agora renovado) operar da organização.
Outros autores
Em síntese, a teoria das organizações que propomos fundamenta-se na teoria da
complexidade a partir do ruído de Atlan (que propicia uma compreensão das
organizações como compostas por redundância e variedade, mutuamente produtoras
uma da outra) com o concurso de uma teoria de suporte, a teoria da autopoiesis (que
permite compreender variedade como individualidade humana). Apresentadas as linhas
gerais de nossa proposição, procederemos agora a um histórico do emprego, em Teoria
das Organizações, dessas teorias de referência, bem como dos conceitos-chave
(redundância e variedade).
O emprego da teoria de suporte (autopoiesis) no âmbito da Teoria das Organizações é
vasto e diversificado; nos é suficiente apontar a obra de Luhmann, reconhecido como
expoente maior nesse campo, e que conta com trabalhos especificamente dedicados ao
176
universo organizacional:448 para ele, o que distingue a organização com um caráter
próprio frente aos demais sistemas sociais é que nela a decisão é a operação básica de
produção de significado.449 Tudo aquilo que comporte significado no interior de uma
organização é tornado objeto de decisões: as organizações são vistas como redes de
processos de produção de decisões que, continua e recursivamente, regeneram estas
redes.
Já a teoria de Atlan é praticamente desconhecida dos estudiosos organizacionais (com
pelo menos uma exceção, mencionada adiante). E ignoramos a existência de qualquer
outra proposição em Teoria das Organizações, que não esta,450 que configure uma
articulação entre essas duas teorias.
Segue-se agora um histórico das identidades, localizadas em pesquisa feita na literatura
de língua inglesa,451 para com as idéias aqui propusemos; tencionamos também
demonstrar que os diversificados modos de compreensão do fenômeno organizacional
podem ser tomados por expressões particularizadas desta nossa teoria das
organizações.452
O primeiro formulador de proposições organizacionais inspiradas na Cibernética foi
Beer,453 dentre as quais subsiste até hoje a pesquisa operacional. Já em 1967 Beer
ressaltava a impossibilidade de controle, pela direção, de todas as variáveis existentes
em uma organização, e propunha que se tomasse partido das capacidades homeostáticas
naturais a toda organização, por meio da articulação (por procedimentos de base
matemática) das homeostases intrínsecas aos seus diversos subsistemas, em prol de uma
preservação, em faixas de comportamento adequadas, de parâmetros considerados
448
Ver “Organisation”. In: KÜPPER, Willi, ORTMANN, Günther (eds.). Mikropolitik. Rationalität, Macht und
Spiele in Organisationen. Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, pp. 165-186, 1988; e Organisation und
Entscheidung. Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, 2000.
449
450
Remeter à p. 104.
Ver também BAUER, 1999.
451
A partir do pressuposto que autores em outros idiomas que desejem suas idéias conhecidas em âmbito mundial
divulgam-nas também em inglês.
452
Cf. ibid., pp. 241-242.
453
Anthony Stafford Beer (Inglaterra; 1926-2002); ver Cybernetics and Management. London: The English
Universities Press, 1959; BEER, 1967; Brain of the Firm: The Managerial Cybernetics of Organization. London:
Allen Lane, 1972; The Heart of the Enterprise. Chichester (Reino Unido): John Wiley and Sons, 1979; e BEER,
1994.
177
críticos ao sucesso da organização como um todo (por exemplo, retorno sobre capital
investido).454
Na década de 70, Beer cunha o termo “infoset” para designar os grupos que operam
com base em interpretações compartilhadas da realidade coletivamente construídas455 (o
que aqui chamamos geração de redundância a partir da variedade). Ao longo da obra de
Beer, os conceitos de “redundância” e “variedade” são importantes porém não centrais
(ele remete ao conceito de redundância de comando potencial, de McCulloch),456 e
tomados pelo prisma cibernético clássico, em que redundância corresponde à repetição
de elementos físicos ou à replicação de papéis funcionais para estes elementos, e
variedade a seu oposto (diversidade, também física ou funcional).
Quem primeiro confere centralidade a esses conceitos é Emery,457 um dos propositores
do movimento sócio-técnico,458 de volumosa produção acadêmica nas décadas de 60 e
70 mas que logrou obter aceitação ampla somente na Suécia e Noruega. Emery propôs,
dentre outros princípios, a adoção de uma “variedade ótima de tarefas” para o trabalho,
ao considerar que pouca variedade conduz ao tédio e à fadiga, enquanto variedade em
excesso é ineficiente à organização e frustrante para o trabalhador; já uma variedade
ótima lhe permitiria periodicamente descansar de altos níveis de concentração e atenção,
bem como exercitaria suas capacidades após períodos de rotina. Uma adequada
variedade na capacitação dos trabalhadores conferiria também, ao grupo de trabalho,
uma maior flexibilidade na condução de suas atividades. Assim, para os sócio-técnicos,
variedade é entendida fundamentalmente como variedade de experiências.
Emery foi também quem estabeleceu a distinção de natureza entre as formas
organizacionais fundadas em dois princípios,459 a “redundância das partes” (replicação
454
455
456
457
458
Cf. BEER, 1967: 150-167.
Ver BEER, op. cit. (nota 453, p. 177), 1972.
Cf. BEER, 1994: 157-158, 230-233. O conceito de redundância de comando potencial foi abordado à p. 51.
Frederick Edmund Emery (Austrália; 1925-1997).
Remeter à p. 19.
459
Princípios que no âmbito cibernético foram preliminarmente indicados em von NEUMANN, op. cit. (nota 165, p.
49), 1956, e sistematizados em WINOGRAD, COWAN, op. cit. (nota 399, p. 148), 1963, como os caminhos para um
aumento da confiabilidade dos sistemas: “... redundância ... é uma importante propriedade de qualquer sistema, uma
178
de elementos estruturais do sistema) e a “redundância das funções” (replicação, nos
elementos, de algumas dentre suas funcionalidades).460 Aquelas, de orientação
mecanicista, perseguem a otimização, para o que são requeridos trabalhadores de
capacitação e custo mínimos e de fácil substituição, bem como indivíduos
especializados em gerir tal processo de substituição; já nestas, organicistas, se toma
partido das capacidades excedentes de modo a, por auto-regulação, auferir-se a
flexibilidade e o potencial para a inovação necessários a uma sempre renovada
adaptação a ambientes turbulentos.
O princípio da redundância das funções (diferentes indivíduos capazes de desempenhar
uma mesma atividade) é assim complemento do princípio da variedade ótima de tarefas
(diferentes atividades componentes do leque de capacitação de cada indivíduo);
conjugados, estes princípios concorrem para o provimento de um repertório de respostas
que conte com a “variedade indispensável” (Ashby)461 ao acompanhamento da crescente
variedade do ambiente. Emery chega a estender tais princípios de projeto (design
principles) à sociedade como um todo, no que compreende, em uma sociedade fundada
no princípio da redundância das funções, os valores compartilhados pelos membros de
uma sociedade como o esteio para uma flexível atribuição de papéis sociais a cada um
deles.462
Em 1967, um clássico estudo empírico por Lawrence463 e Lorsch464 (intitulado
differentiation and integration in complex organizations)465 revelou que diferenciação
(para eles, a segmentação da organização em subsistemas diferenciados uns dos outros
em termos das características comportamentais466 dos indivíduos que deles fazem parte)
vez que um acréscimo aritmético na redundância tende a produzir um acréscimo logarítmico na confiabilidade”
(EMERY, 1967: 230).
460
Cf. EMERY, 1967: 230-231; estes princípios já haviam sido discernidos em WINOGRAD, COWAN, op. cit.
(nota 399), 1963.
461
462
463
464
465
Conceito exposto à p. 52.
Cf. EMERY, 1967: 230.
Paul Roger Lawrence (EUA; 1922–).
Jay William Lorsch (EUA; 1932–).
LAWRENCE, LORSCH, 1967.
466
Os atributos considerados neste estudo foram: o grau de formalização com que as atividades são conduzidas; a
orientação interpessoal (voltada ao cumprimento de tarefas, ou às relações sociais); a orientação quanto ao tempo
(voltada ao curto, médio ou longo prazos); e a orientação quanto a objetivos (mercadológica/voltada à competição,
179
e integração (para eles, o grau de convergência dos distintos subsistemas para a
consecução dos objetivos da organização) são características antagônicas no interior da
organização – em todas as organizações pesquisadas, nas correlações entre cada dois de
seus subsistemas (por exemplo, “vendas” com “pesquisa aplicada”), aos maiores graus
de diferenciação correspondiam as menores percepções de integração mútua, e viceversa.
Não obstante, ambas estas características mostravam-se essenciais ao sucesso: ao se
comparar diferentes organizações (todas indústrias de processo químico), aquelas (duas
entre seis) que logravam conjugar elevados índices de diferenciação interna com
elevadas percepções de integração eram as que apresentavam melhores resultados
operacionais (considerada a trajetória dos cinco últimos anos); duas outras (uma com
alta diferenciação e baixa integração, e outra na situação inversa) foram classificadas
como de média performance; por fim, as duas restantes (uma com alta diferenciação e
baixa integração e outra com ambos os parâmetros em baixa) apresentaram os piores
resultados.
Dois, dentre os fatores distinguidos pelos autores como determinantes para o perfil de
correlação entre diferenciação e integração, merecem destaque: o que eles denominaram
“locus de influência” (a localização, na hierarquia, da autonomia para a tomada de
decisões), e o modo de resolução de conflitos. Verificaram eles a seguinte consistência:
nas organizações de melhor performance, quanto maior a incerteza ambiental a cada
subsistema, para mais abaixo na hierarquia (ou seja, para onde residem os
conhecimentos operacionais específicos) era deslocada a autonomia para a tomada de
decisão. E também que, dentre três modos possíveis de resolução de conflitos –
imposição (forcing), docilidade (smoothing) e debate aberto (confrontation) – quanto
maior o recurso a este último melhor a performance, bem como inversamente (para
todas as seis companhias).
Outro mérito desse trabalho pioneiro por Lawrence e Lorsch é ilustrar que conceitos
como integração e diferenciação (tanto quanto redundância e variedade) são passíveis
técnico-econômica/voltada a custos e à produtividade, ou científica/voltada à geração de conhecimento); cf.
LAWRENCE, LORSCH, 1967: 22-24.
180
de receber tratamento empírico, de acordo com os critérios específicos que sejam
adotados.467
As visões de Lawrence e Lorsch quanto ao que seja diferenciado ou integrado são
certamente distintas das nossas em relação ao que, respectivamente, seja variado ou
redundante; por exemplo, aquilo que em um dado subsistema (como “vendas” ou
“produção”) é visto por eles como diferenciação (em relação aos demais subsistemas) –
e corresponderia assim a um modo de variedade – até certo ponto corresponde também
aos modos específicos de redundância que são próprios àquele subsistema, e que são
vividos em comum pelos indivíduos que dele tomam parte. Ainda assim, muitas de suas
conclusões são, em essência, similares às nossas: diferenciação e integração como
condicionantes opostas; necessidade de perseguir um compromisso ótimo entre elas;
necessidade de autonomia dos indivíduos para a tomada de decisão (tema a que
retornaremos); e geração da integração em meio à diferenciação pela qualidade das
interações entre as pessoas. É com base em similaridades como essa que afirmamos
existir inúmeros modos de se abordar uma mesma questão: a articulação dos âmbitos
individual e coletivo nas instâncias sociais que são as organizações.
O tema da variedade viria a ser enfocado por múltiplas formas. Por exemplo, nos
âmbitos da teoria da contingência468 (em que capacidade de monitoramento das
tendências de mudança no ambiente é tida como a chave para a conservação da
adaptação da organização; Lawrence e Lorsch filiam-se a esta corrente) e da ecologia
populacional 469 (em que a evolução do ambiente, mais que a da organização, é vista
como o determinante para essa conservação) a variedade, sob diversas denominações,
foi fundamentalmente compreendida como variedade de resposta à mudança ambiental
(no sentido de Ashby). Mais recentemente, variedade nas organizações veio a ser
compreendida como diversidade na composição dos quadros de pessoal (diversidade de
gênero, étnica, de orientação religiosa, de orientação sexual etc.).
467
No caso, Lawrence e Lorsch produziram uma medida de diferenciação por uma soma ponderada das diferenças, a
cada par de subsistemas, entre as mensurações relativas a cada atributo considerado (ver nota anterior), por sua vez
geradas por critérios específicos; já a medida de integração foi obtida por meio de questionários, com respostas
dispostas em escala, de avaliação pelos respondentes das condições de relacionamento entre os subsistemas a cada
par considerado.
468
469
Remeter à p. 16.
Remeter à p. 16.
181
Já o tema da redundância pôde contar muito menos prestígio e espaço, devido à
resistência (em boa parte dos casos, preconceito) dos gerentes e dos teóricos
organizacionais em relação a uma noção que, em um sentido intuitivo, vai de encontro
às idéias consagradas de eficiência, enxugamento de custos, e eliminação de
desperdícios. Remando contra a corrente, Landau470 foi o mais produtivo teórico a se
debruçar sobre os múltiplos papéis da redundância no interior das organizações. Já
contemporaneamente, outros autores realizaram um extensivo levantamento dos
diversificados modos e usos de redundância no universo organizacional.471
Qualquer proposição teórica centrada em uma noção de redundância (ainda que de
forma balanceada com seu oposto, a variedade) irá, inevitavelmente, se deparar com
essas resistências e preconceitos. Como agravante, há ainda casos particulares como o
do Reino Unido onde, a partir de um ato legislativo de 1965, “redundância” foi tornada
expressão legal na esfera das relações de trabalho (em que significa a circunstância de
extinção de posto de trabalho pela cessação, principalmente devida à mudança
tecnológica, da atividade específica que outrora demandara sua criação, e que implica a
estipulação de uma indenização ao trabalhador proporcional ao tempo trabalhado).472
Todo significado de que uma palavra possa se revestir para a coordenação de condutas
advém da tradição em que os indivíduos em interação se encontram desde sempre
imersos; após décadas de emprego específico desse termo, não será nada trivial aos
britânicos considerar que “redundância” possa significar alguma outra coisa.
470
Martin Landau (EUA; 1921-2004); ver “Redundancy, Rationality, and the Problem of Duplication and Overlap”.
Public Administration Review, vol. 29, n. 4, pp. 346-358, 1969; “Federalism, Redundancy, and System Reliability.”
Publius (The Journal of Federalism), vol. 3, n. 2, pp. 173-196, 1973; “On the Concept of a Self-correcting
Organization”. Public Administration Review, vol. 33, n. 6, pp. 533-542, 1973; LANDAU, CHISHOLM, Donald,
WEBBER, Melvin M. Redundancy in Public Transit. Berkeley (Califórnia): Institute of Urban and Regional
Development, University of California, vol. 1 (On the Idea of an Integrated Transit System), 1980; e LANDAU,
EAGLE, Eva. On the Concept of Decentralisation. Berkeley (Califórnia): Research Report of the Project on
Managing Decentralization, Institute of International Studies, University of California, 1981.
471
Ver LOW, Bobbi, OSTROM, Elinor, SIMON, Carl, WILSON, James. “Redundancy and Diversity: Do they
Influence Optimal Management?”. In: BERKES, Frank, COLDING, Johan, FOLKE, Karl (eds.). Navigating Socialecological Systems: Building Resilience for Complexity and Change. Cambridge (Reino Unido): Cambridge
University Press, pp. 83-114, 2003.
472
Para o caso britânico ver, por exemplo, WOOD, Stephen, DEY, Ian. Redundancy: Case Studies in Co-operation
and Conflict. London: Gower, 1983; e GRUNFELD, Cyril. The Law of Redundancy. 3rd. ed. London: Street and
Maxwell, 1989. 1st. ed., 1971.
182
Não obstante, optamos por manter a nomenclatura redundância/variedade. Em primeiro
lugar, porque se redundância e variedade dizem respeito também a significados outros
que não aqueles que aqui lhes atribuímos, problema idêntico ocorre, em maior ou menor
grau, com qualquer outro binômio que seja utilizado em seu lugar (igualdade/diferença,
regularidade/descontinuidade,
integração/diferenciação,
ordem/desordem,
coletividade/individualidade
identificação/distinção,
etc.).
A
conservação
da
nomenclatura cibernética (empregada em Teoria das Organizações não apenas no
passado, por exemplo por Beer ou pelos sócio-técnicos, mas também por teóricos
contemporâneos, como veremos), se não reduz o problema da multiplicidade de
significados, ao menos evita agravá-lo.
Em segundo lugar, mas não menos importante, entendemos ser preciso transcender a
mentalidade resistente à idéia de redundância, por ela ser fundamentalmente antihumana: como se poderia recusar capacidades por natureza redundantes nas pessoas,
por exemplo, a de falar um mesmo idioma (compartilhar uma base de significados que
permite a coordenação do viver em sociedade) ou a de “falar a língua da empresa”
(compartilhar uma base de significados a respeito da natureza da organização e de seus
negócios), precisamente para que seja possível não apenas uma compatibilidade para a
variedade existente sob forma de individualidade humana, mas mesmo a articulação e
conjugação dessa variedade?
Passemos agora ao exame de proposições de autores mais recentes, que referenciam
redundância e variedade por modos próximos ao nosso.
Em seu conhecido imagens da organização (de 1986), Morgan473 discrimina, com base
em metáforas, múltiplas abordagens ao fenômeno organizacional. Em uma delas,474
inspirada no operar do cérebro e referenciada em autores ciberneticistas e sóciotécnicos, as organizações são compreendidas como sistemas auto-organizantes que,
dentre outros princípios fundamentais, contam com redundância das funções e com
variedade indispensável. A redundância das funções é vista como uma projeção do todo
sobre as partes: indivíduos capazes de desempenhar diversas dentre as funções
473
474
Gareth Morgan (Canadá; 1943–).
O capítulo 4 em MORGAN (1997 (1986)), intitulado Learning and Self-organization: Organizations as Brains.
183
necessárias ao operar da organização. E, uma vez que não é factível replicar todas as
funções (“todo o todo”) sobre cada uma das partes, o princípio da variedade
indispensável prescreve que essa redundância deva corresponder a, pelo menos, o
mínimo necessário a que a organização possa contar com a variedade de respostas
requerida para que se mantenha em passo com as mudanças ambientais.
Pode-se considerar o raciocínio de Morgan como válido em um sentido intuitivo, uma
vez que a redundância interna concorre para um aumento da variedade interna, por sua
vez necessária ao acompanhamento da variedade externa. Em um sentido formal,
contudo, o que o princípio da variedade indispensável de Ashby prescreve é uma
variedade mínima ao sistema como um todo, não o grau de redundância que deve se
fazer presente em suas partes para que uma tal variedade se verifique (com o que se
pode incorrer no equívoco de supor que toda a variedade em uma organização advenha
da redundância nela presente). Com efeito, redundância e variedade acabam em alguma
medida confundidas, como que reduzidas a dois “estados no tempo” de uma mesma
coisa:
O princípio da variedade indispensável provê assim diretrizes claras quanto a como as idéias sobre
obter o “todo nas partes” e sobre funções redundantes devam ser postas em prática. Ele indica que
a redundância (variedade) deva ser sempre provida em um sistema onde seja diretamente
necessária, ao invés de à distância.475
Um entusiasta da redundância das funções, Morgan a vê como o catalisador das
condições propícias aos processos participativos de tomada de decisão, em que todos os
envolvidos contam com espaço para expor suas idéias, com o reinício, a cada nova
sugestão, desse processo de ausculta. Tais procedimentos mostram-se lentos porém
robustos, não apenas porque conduzem a decisões que incorporam a variedade de
pontos de vista mas porque o consenso final implica comprometimento, o que alavanca
sua implementação prática. É também a redundância das funções o que propicia práticas
como a de atribuir um mesmo projeto a duas ou mais equipes que operem de modo
independente, mas que periodicamente compartilhem resultados, informações e idéias,
de modo a ampliar a compreensão geral quanto aos temas em tela.476
475
476
Ibid., p. 112.
Cf. ibid., p. 110.
184
Para além da redundância nas capacidades e habilidades das pessoas (redundância das
funções), Morgan (sem voltar a se utilizar deste termo) discorre sobre fatores que em
nosso entender correspondem a outros modos de redundância. Para ele, metas e
objetivos acabam por configurar também constrangimentos potenciais à criatividade;
Morgan considera preferível operar a partir de normas, valores e sensos compartilhados
de visão e de propósito,477 segundo ele “pontos de referência” 478 para orientação geral,
limites que circunscrevem autonomia e liberdade suficientes para que emirjam
comportamentos e ações criativos, em condições mesmo de questionar tais limites e de
os redefinir. Uma especificação dos aspectos nocivos a serem evitados deve assim
tomar o lugar da especificação de metas e objetivos, de modo a que estes se tornem
também resultados emergentes do processo. Morgan recorre ao fato de que muitos
dentre os códigos de comportamento ao longo da evolução civilizatória, por exemplo os
Dez Mandamentos, foram expressos mais em termos de proibições que de
especificações quanto a como proceder em cada situação.479 Ainda uma vez referenciado
na sócio-técnica,480 ele propõe um princípio de mínima especificação crítica, segundo o
que nada deve ser especificado além do mínimo estritamente necessário para que uma
dada atividade seja desenvolvida.481
477
478
479
Cf. ibid., pp. 102-103.
Cf. ibid., p. 95.
Cf. ibid., p. 99.
480
Ver HERBST, Philip G. Socio-technical Design: Strategies in Multidisciplinary Research. London: Tavistock,
1974. Reimpresso em resumo como: “Designing with Minimal Critical Specifications”. In: TRIST, MURRAY,
TRIST, op. cit. (nota 50, p. 19), pp. 294-302, 1993.
481
Cf. MORGAN, 1997 (1986): 114-115.
185
Nonaka482 é outro autor que vê na redundância a chave para a conservação da adaptação
(geração de variedade de resposta) ao ambiente. Em um texto dedicado ao tema,483 ele
se refere à “redundância de informação”, o que é em alguma medida correlato à
redundância das funções (uma vez que a detenção de informação concorre para a
capacidade de desempenho de atividades). A informação redundante atuaria como um
balizador para a informação “variada”, em uma catálise do processo de inovação:
Quando informação em excesso é compartilhada em uma organização, isto clarifica o significado
da informação requerida específica detida pelos distintos indivíduos e grupos. ... A redundância de
informação estimula os poderes criativos da informação, e está associada à geração de informação
com novos significados.484
Já a existência de outras redundâncias (não referenciadas por este termo) ao nível da
organização como um todo é por ele vista como fator que permite à redundância de
informação exercer seus efeitos esperados com contenção dos riscos envolvidos:
A redundância de informação, enquanto provê contenção aos perigos do caos e do acaso, produz
ordem nas organizações japonesas porque a visão corporativa é clara, e os membros individuais
nos grupos compartilham um senso de direção.485
São evidentes as identidades dessas proposições para com as nossas. O pensamento de
Nonaka pode assim ser compreendido como (mais) um dentre os diversos possíveis
modos de expressar a descrição do fenômeno organizacional nos termos fundamentais
de redundância e variedade, e das condições para sua mútua produção.
A redundância de informação concorreria em múltiplos níveis para o processo de
inovação nas empresas japonesas: as equipes de projeto são compostas por indivíduos
com capacitação, comportamentos e percepções diversificados; entre departamentos, o
contato e a interação entre os indivíduos envolvidos são fortemente estimulados; entre
companhias parceiras, há também esse estímulo à interação, e evita-se ao máximo
qualquer divisão estanque dos encargos nos projetos conjuntos.
482
483
484
485
Ikujiro Nonaka (Japão; 1935–).
NONAKA, 1990.
Ibid., p. 28.
Ibid., p. 36.
186
Advêm, como subprodutos da redundância de informação: o que Nonaka denomina
“investigação mútua”,486 uma invasão consentida de territórios e especialidades de modo
a propiciar a aprendizagem por intrusão (learning by intrusion) e pela geração de
problemas; a redundância de comando potencial (McCulloch),487 em que o indivíduo em
melhores condições de lidar com o problema a cada momento assume um papel
circunstancial de liderança; e o favorecimento ao estabelecimento e reforço dos laços de
lealdade e confiança entre indivíduos, departamentos, e empresas parceiras.
Para Nonaka, os elevados volumes de informação resultantes da intensa interação
somente podem ser adequadamente manuseados no interior de um grupo caso este logre
contar com uma variedade mínima necessária de talentos e capacidades – não obstante
ser essa mesma variedade, segundo ele, a geradora da redundância de informação.
Assim, Nonaka é mais um que vê no princípio da variedade indispensável de Ashby o
“regulador” para a redundância (no caso, de informação), o que, ainda uma vez, pode-se
considerar como válido a um nível intuitivo ainda que equivocado em termos formais:
Devido a suas formações diversificadas, eles [os membros de equipes na Fuji Xerox] não apenas
geraram informação pertinente a suas funções específicas como também geraram informação para
funções outras. Além disso, uma tal rotação prévia de encargos assegurou que, se o membro do
grupo não detivesse uma dada informação requerida, ele ao menos saberia onde obtê-la. ... Isto
provê a habilidade para o processamento da significativa sobrecarga de informação oriunda da
interação intensiva entre os membros do projeto, e foca a criação de informação a um nível fixo.
Isto pode ser chamado o conceito da variedade indispensável em semântica, na medida em que
prescreve o nível de redundância. O conceito da variedade indispensável de Ashby em teoria das
organizações diz que a construção de canais de informação irá acompanhar o volume de
informação gerado no ambiente.488 ... o conceito de redundância de informação, juntamente com o
conceito de variedade indispensável, é um fator imprescindível à construção de uma teoria da
organização criadora de informação e de conhecimento.489
Morgan e Nonaka (pelo recurso ao princípio da variedade indispensável como
“sintonizador” para a redundância), como muitos outros (por modos próprios),
tencionam descrever uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional; é
precisamente uma tal dinâmica que acreditamos ter elucidado pela transposição, ao
universo organizacional, das proposições de Atlan em Biologia, com o aporte, como
Teoria do Conhecimento, da teoria da autopoiesis.
486
487
488
489
Cf. ibid., p. 33.
Conceito exposto à p. 51.
Ibid., p. 36.
Ibid., p. 37.
187
Contemporaneamente, é no quadro de uma outra dinâmica gerativa (a de Luhmann) que
Ahlemeyer490 vem retomar a dualidade variedade-redundância. Referenciado na segunda
Cibernética de Bateson, von Foerster e Ashby, Ahlemeyer também vê a complexidade
como componente do entendimento do observador quanto ao real, e os sistemas
complexos como uma mistura de redundância e variedade.
Para Ahlemeyer, que compreende as organizações como redes de processos recursivos
de produção de decisões (segundo Luhmann), a redundância corresponde às limitações
estruturais que circunscrevem tais processos – as premissas para a tomada de decisão
que, de um modo recursivo, implicam que decisões sejam necessariamente tomadas
com referência a decisões anteriores, e conformam assim mecanismos de conservação
das estruturas, regras etc. (em suma, da identidade) do sistema.
Em contrapartida, a única perspectiva para uma renovação dessas premissas reside
também, paradoxalmente, na própria tomada de decisões – consideradas agora pelo
prisma da variedade, daquilo que conduz à mudança. Ahlemeyer observa que, frente à
crescente complexificação dos ambientes, as organizações cada vez mais tomam a
mudança com um valor em si – o que não necessariamente implica menos redundância,
mas uma cada vez mais rápida ciclagem das redundâncias existentes.
490
AHLEMEYER, 2001. Heinrich Wilhelm Ahlemeyer (Alemanha; 1950–).
188
Em outras palavras, a própria aceleração nos tempos de ciclo da redundância convertese em norma – ou seja, em redundância (“a redundância da organização consiste em
seu aumento de variedade”).491 E Ahlemeyer percebe, como conseqüência desse
processo, uma dicotomia entre a conservação da adaptação do todo (a organização) e
adaptações crescentemente patológicas para vastos contingentes de suas partes (as
pessoas): aqueles que se frustram consigo próprios por não se sentirem em condições de
acompanhar o ritmo das mudanças, que se vêem como supérfluos e descartáveis, e que
se sentem vulneráveis e desorientados, desprovidos tanto das identidades do passado
como de horizontes de futuro. Para superar esta que seria a principal disfunção
organizacional, Ahlemeyer propõe o que aqui nós referenciamos como fomento à
qualidade das interações humanas:
A criação de contextos de comunicação não-ameaçadores entre gerentes e empregados, entre
inovadores [adaptados à mudança] e mantenedores [não- ou mal-adaptados] ... permite fazer dos
traumas do passado um tópico, e sinaliza para um processo de compreensão mútua. O que os
membros da organização necessitam são garantias críveis de que, enquanto praticamente tudo pode
ter-se tornado contingente para a organização, seus membros permanecem absolutamente
necessários a suas operações futuras. Sem a restrição da pertença, afinal de contas, sistemas
organizados são incapazes de operar.492
É por se ater ao modo de caráter operacional de Luhmann para descrição das
organizações que Ahlemeyer situa a variedade no âmbito das decisões que implicam
mudanças (e que terminam por afetar as pessoas), ao invés de situá-la nas pessoas em si
– com o que redundância e variedade acabam, mais uma vez, identificadas uma com a
outra. Paradoxalmente, as proposições originais de Luhmann quanto aos sistemas
sociais genéricos493 (que congregam desde conversações circunstanciais a instituições
consolidadas) situam-se mais próximas do que aqui propomos, ao circunscrever a
domínios fenomenológicos distintos os significados produzidos pelos estados de
consciência (para ele, sistemas psíquicos; para nós, variedade) daqueles produzidos pela
comunicação entre as pessoas (para ele, sistemas sociais; para nós, redundância).
491
492
493
Ibid., p. 69.
Loc. cit.
Menciondas à p. 104.
189
Finalmente, a única proposição organizacional especificamente referenciada em Atlan494
que logramos localizar é a de Langlois495 e Garrouste496 que, também em busca de uma
explicação para as organizações que incorpore seus aspectos ordenados e desordenados,
compreendem a capacidade evolutiva das organizações por auto-organização como o
aumento tanto de redundância (vista como ordenamento) quanto de variedade (vista
como complexidade).497
Devido precisamente a isso, porém, consideraram eles a teoria de Atlan como
insuficiente498 para dar conta da fenomenologia organizacional, por comportar a
produção de variedade a partir da redundância, mas não o seu inverso. Ora, os seres
vivos contam com redundâncias em patamares elevados, que os arranjos sociais
humanos jamais lograrão atingir (nem deveriam, pois isto significaria uma diluição
extrema da individualidade).499 Por exemplo, quando se diz que um ser humano utiliza
no máximo algo em torno de cinco por cento de sua capacidade cerebral, isso de modo
algum configura “desperdício” (esta seria mais uma projeção, sobre a Natureza, de uma
noção derivada do viver humano), mas sim o volume adequado para que o cérebro
opere, ao longo de toda uma vida, com a confiabilidade que lhe é peculiar (já na década
de 50, McCulloch estimou haver redundâncias no cérebro da ordem de 1:20.000).
Por seu turno, os âmbitos sociais humanos contam – e ao contrário dos seres vivos – não
somente com a produção de redundância a partir da variedade (por exemplo, na
construção de consensos) como com a possibilidade de recargas deliberadas de
redundância (por exemplo, pela comunicação de diretrizes por meio de um
pronunciamento, ou pela estipulação de normas, padrões e procedimentos, ou ainda por
inúmeros outros modos). O que cabe transpor ao domínio organizacional é a dinâmica
desvelada por Atlan de geração da variedade a partir da redundância (compreendidas
494
Mais precisamente, na primeira edição de L’organisation biologique et la théorie de l’information (ATLAN, op.
cit. (nota 385, p. 142), 1972).
495
496
497
Richard Normand Langlois (EUA; 1952–).
Pierre Garrouste (França; 1954–).
LANGLOIS, GARROUSTE, 1997 (1994).
498
Os autores propõem então complementá-la com o princípio de ordem a partir do ruído (order from noise) de von
Foerster, que para eles explicaria adequadamente o aumento da redundância; entretanto, o próprio Atlan (cuja teoria é
precisamente um desenvolvimento da de von Foerster) recusa essa perspectiva, por um raciocínio (que endossamos)
que não cabe transcrever aqui; cf. ATLAN, 1992a (1979): 71-73; remeter também à nota 194, p. 59.
499
Remeter à p. 126.
190
como tais por um observador) por intermédio das interações – e não o modo de
operação próprio a essa dinâmica nos domínios da Biologia.
Pudemos examinar autores em Teoria das Organizações cujas proposições
intersecionam as nossas quanto à referência a teorias e quanto ao emprego de
vocabulário
comum
(redundância,
variedade,
complexidade,
auto-organização,
autopoiesis), e que, malgrado as discrepâncias assinaladas, guardam compatibilidade
para conosco.
Não obstante, diversos outros autores também intersecionam conosco em termos de
premissas, idéias e conclusões, muito embora façam uso de outros vocabulários e
recurso a outras teorias. Ora, uma vez que nossa teoria das organizações consiste de
uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional, a compatibilidade com
outras teorias (outros modos de compreender, expressar e descrever o fenômeno
organizacional)
é
mais
que
esperada.
E
será
precisamente
uma
eventual
incompatibilidade com alguma outra teoria o que poderá operar no sentido da refutação
(no sentido de Popper, que expusemos)500 de uma das duas.
Dentre as inúmeras proposições que percebemos como compatíveis, mencionaremos
aqui, a título de exemplo, apenas uma delas: o bastante conhecido arcabouço conceitual
integrado pelas “cinco disciplinas” de Senge,501 por sua vez derivado da teoria da ação
de Argyris.502 A disciplina da visão compartilhada corresponde a um modo de produção
de redundância (visão de futuro, bem como outros componentes de direção estratégica)
a partir da variedade (compartilhamento das visões individuais); a disciplina dos
modelos mentais corresponde a um modo de legitimação da variedade (leituras
individualizadas da realidade) existente; a disciplina da aprendizagem em equipe
corresponde a um modo de fomento à qualidade dos processos de interação; a disciplina
da maestria pessoal corresponde a um modo de aprimoramento da variedade
500
501
Remeter às pp. 6, 137.
SENGE, 1990. Peter M. Senge (EUA; 1947–).
502
Ver ARGYRIS, Chris, SCHÖN, Donald A. Theory in Practice: Increasing Professional Effectiveness. San
Francisco (Califórnia): Jossey-Bass, 1974; ARGYRIS. “Theories of Action that Inhibit Individual Learning”.
American Psychologist, vol. 31, n. 9, pp. 638-654, 1976; ARGYRIS, SCHÖN. Organizational Learning: A Theory of
Action Perspective. Reading (Massachusetts): Addison-Wesley, 1978; e ARGYRIS, PUTNAM, Robert, SMITH
Diana M. Action Science: Concepts, Methods, and Skills for Research and Intervention. San Francisco (Califórnia):
Jossey-Bass, 1985.
191
(desenvolvimento da individualidade); finalmente, a disciplina do pensamento sistêmico
(inspirada na Cibernética) corresponde a um modo de compreensão do fenômeno
organizacional em termos que são adequados ao operar das demais disciplinas.
Há também significativas identidades para com muitos outros autores, tanto
referenciados na Teoria da Complexidade (por exemplo, Stacey)503 como mais
tradicionais (por exemplo, Drucker);504 desejamos externar nossa apreciação pela obra
de um em particular, Weick.505
503
Ralph Douglas Stacey (Inglaterra; 1942–); ver Complexity and Creativity in Organizations. San Francisco
(Califórnia): Berrett-Koehler, 1996; Complex Responsive Processes in Organizations: Learning and Knowledge
Creation. London: Routledge, 2001; e STACEY, GRIFFIN, Douglas, SHAW, Patricia. Complexity and Management:
Fad or Radical Challenge to Systems Thinking? London: Routledge, 2000.
504
Peter Ferdinand Drucker (EUA; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1909–). Vasta produção.
505
Karl Edward Weick (EUA, 1936–); ver The Social Psychology of Organizing. 2nd. ed. Reading (Massachusetts):
Addison-Wesley, 1979. 1st. ed., 1969; Sensemaking in Organizations. Thousand Oaks (Califórnia): Sage, 1995; e
Making Sense of the Organization. Oxford (Reino Unido): Blackwell, 2001.
192
6. Um estudo de caso
A finalidade desta tese é estabelecer os alicerces para a edificação uma nova Teoria das
Organizações que logre superar e transcender as limitações e os impasses a que chegou
o corpus teórico historicamente predominante em Administração (a racionalização).
Para seu fundamento fulcral, foi formulada uma dinâmica gerativa da fenomenologia
organizacional, que consiste dos processos de produção mútua entre variedade e
redundância, processos que sem dúvida podem ser induzidos ou facilitados pela
intencionalidade humana, mas que são por natureza espontâneos – são autoorganizantes.
A variedade de um sistema corresponde à sua complexidade, e comporta a diversidade
percebida nos elementos do sistema e na dinâmica de interações entre eles; ou seja,
trata-se do grau de desconhecimento (do observador que apreende a fenomenologia de
um dado sistema nos termos de variedade e de redundância) quanto ao sistema. Assim,
variedade é relativa à especificidade, à particularidade dos elementos e dos processos
que suas interações desencadeiam.
Em uma organização tida como um sistema, variedade é, essencialmente, a
individualidade das pessoas que a compõem. Ela é também tudo o mais que diga
respeito às pessoas em sua individualidade: seus conhecimentos, talentos, habilidades e
competências pessoais; suas percepções e interpretações individualizadas da realidade; e
– como dado essencial à constituição das organizações, por fenômenos sociais que são –
suas percepções e interpretações individualizadas daquilo que outros indivíduos
manifestam quando em interação para com elas.
Por sua vez, a redundância em um sistema corresponde aos modos percebidos de
restrição da variedade existente; ou seja, trata-se do conhecimento sobre o sistema de
que dispõe o observador, advindo dos graus de ordenamento e de regularidade
percebidos tanto nos elementos como na dinâmica de interações entre eles. Assim,
redundância é relativa a tudo àquilo que os elementos, e os processos que suas
interações desencadeiam, implicam de comum, de coerente.
193
Em uma organização, redundância é o que se pode discernir de comum ou coerente
quanto aos modos como agem e interagem as pessoas que a compõem: identidade,
cultura e propósito organizacionais; referenciais comuns quanto a habilidades e
competências (a começar do domínio do idioma, a competência comunicativa básica);
bem como estoques de informação padronizada (por exemplo, livros, documentos, bases
de dados, normas e procedimentos).
É com base no quadro conceitual proporcionado por estes dois conceitos que afirmamos
de modo terminante que toda organização necessariamente comporta a ambos,
variedade e redundância – e é, portanto, um sistema auto-organizante por natureza.
Nada raramente, porém, a busca por controlar os resultados de processos autoorganizantes termina por transtornar inadvertidamente a dinâmica espontânea desses
processos, e conduz a resultados percebidos como frustrantes relativamente às
expectativas depositadas.
Para a nova Teoria das Organizações que propomos, preconizamos que a atividade de
gestão nas organizações deva corresponder, antes de tudo, a uma compreensão da
natureza auto-organizante dos processos de mútua produção entre variedade e
redundância gerativos dos fenômenos organizacionais; e também (em decorrência) ao
desempenho de um papel de facilitação ao operar de tais processos, o que se dá
essencialmente pelo fomento à qualidade para as interações entre as pessoas.
O objeto do presente estudo de caso é a teoria aqui apresentada. Nesse sentido, o
objetivo deste estudo de caso deve ser o de concorrer para uma demonstração da
validade, da aplicabilidade e da adequação da dinâmica gerativa formulada ao estudo, à
compreensão e à descrição dos fenômenos organizacionais.
Nossa hipótese fundamental é a de que os fenômenos organizacionais são
conseqüências do operar desta dinâmica gerativa. Esta teoria é passível de refutação (em
conformidade com a epistemologia de caráter popperiano que esposamos) na medida
em que trabalhos posteriores logrem demonstrar a existência de fenomenologia
organizacional que não seja gerada pela dinâmica gerativa aqui formulada.
194
Como parte desta pesquisa de doutoramento, foi conduzido um estágio no Programa de
Pesquisas em Complexidade da London School of Economics and Political Science,506
em que nos foi demandada a confecção de um estudo de caso, o que levamos a cabo
como um primeiro teste de credibilidade/refutação para a teoria.
Este estudo de caso versa sobre uma corporação de atuação mundial do segmento da
indústria de processo, composta por diversas companhias individuais, identificadas por
uma marca tradicional e amplamente conhecida. O comando da corporação decidira
criar uma nova empresa, englobando uma incubadora de novos negócios e um braço de
participações corporativas (corporate venturing),507 com o objetivo de penetrar no
segmento de negócios pela Internet (e-business). A principal motivação para a criação
da nova empresa foi a incomensurável força da marca, vista como alavanca para esses
novos negócios.
Por diversos motivos, que envolvem as retrações a nível global do segmento de
negócios pela Internet a partir do primeiro semestre de 2000, bem como da própria
atividade de incubação de novos negócios, após cerca de dois anos o empreendimento
foi encerrado, com o que os ativos foram transferidos para outro ramo da corporação.
506
Quando da seleção da instituição estrangeira para sediar nosso estágio de doutorado, optamos pelo Programa de
Pesquisas em Complexidade da London School of Economics and Political Science (vinculado a seu Institute of
Social Psychology) por se tratar de instituição consolidada, especializada em modelos de organização e gestão
derivados da Teoria da Complexidade, que conta com um quadro fixo de pesquisadores, recebe visitas freqüentes de
especialistas de outros países e instituições para condução de oficinas e intercâmbio de idéias, sedia seminários,
conferências e congressos, e conduz (desde 1995) pesquisas em parceria com um significativo conjunto de empresas,
dentre elas British Telecom, Citibank (Nova Iorque), GlaxoSmithKline, Humberside Training and Enterprise Council
(Reino Unido), Legal & General, Mondragon Cooperative Corporation (País Basco, Espanha), Norwich Union,
Rolls-Royce Marine, Rolls-Royce Aerospace, Banco Mundial (Washington DC), AstraZeneca, National Health
Service (Reino Unido), bem como diversas companhias européias da indústria aeroespacial. Esses projetos de
pesquisa contam com acompanhamento e crítica por uma equipe internacional de pares acadêmicos; especificamente
para o projeto de que tomamos parte, esta equipe foi composta pelos Professores John Casti (Santa Fe Institute, Novo
México, e IIASA, Viena), Chris Clegg (University of Sheffield, Inglaterra), Raul Espejo (Lincoln Business School,
Inglaterra), Rachel Harrison (University of Reading, Inglaterra), Janis Kallinikos (London School of Economics and
Political Science), Bill McKelvey (Anderson School, UCLA, Califórnia), Arthur I. Miller (University College
London), Luciano Pietronero (Università degli Studi di Roma – La Sapienza), Alan Wilson (Leeds University,
Inglaterra) e Gerard de Zeeuw (Universiteit van Amsterdam). O projeto de que tomamos parte foi apoiado pela
agência de fomento à pesquisa EPSRC do governo britânico (Engineering and Physical Sciences Research Council)
com fundos da ordem de meio milhão de libras esterlinas, e compreende pesquisas em diversas dentre as empresas
parceiras.
507
Prática, por grandes empresas, da aquisição de parcela do capital de empresas menores, com vistas a se beneficiar
das capacidades e qualificações inovadoras destas. A corporação passa a prover financiamento, suporte à gestão e
canais de distribuição a que a empresa menor não teria acesso, ao passo que esta propicia àquela acesso privilegiado
às suas tecnologias e produtos. No mais das vezes, trata-se de uma etapa que, se bem-sucedida, precede a aquisição
integral da empresa-alvo.
195
O material de pesquisa consistiu de entrevistas semi-estruturadas com elementos-chave
do processo em todos os níveis: na corporação, na nova empresa criada em seus dois
ramos (incubação de novos negócios e participações corporativas), e em um dentre os
novos negócios incubados. Foram entrevistadas sete pessoas-chave no processo, a saber:
- o executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado;
- uma executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe;
- uma profissional de RH dos quadros da empresa-mãe;
- uma especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado;
- uma profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe;
- uma profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado; e
- o executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe.
O estudo de caso corresponde à leitura interpretativa, à luz da dinâmica gerativa
apresentada, das transcrições das entrevistas, em que a corporação é referenciada como
empresa-mãe, o empreendimento como empresa-nova, e os novos negócios incubados
como empresas-filha.
Redundância e variedade
A redundância se faz presente nas organizações sob diversas formas, desde as mais
óbvias (por exemplo, a comunicação entre as pessoas por meio de um idioma comum)
até as mais sutis (por exemplo, as identificações psicológicas entre os integrantes de
uma equipe). Sua contrapartida, a variedade, lhe é o reverso da moeda em todas essas
situações: por exemplo, uma equipe pode atribuir, ao vocabulário que compartilha,
sutilezas de significado que tendem a passar despercebidas aos que dela não fazem
parte, ainda que o idioma seja único a todos.
(1)
Há, portanto, distintas “classes” de redundância, desde as mais estáveis (ou seja, mais
cristalizadas) às mais voláteis (mas não menos essenciais ao dinamismo do sistema com
um todo). Pertencente ao primeiro grupo é a identidade da organização, que cumpre a
função vital de sinalizar a seus membros o sentido para estarem juntos. Na empresamãe, a marca é percebida como uma poderosa encarnação dessa identidade, e seu
196
prestígio a nível mundial foi a motivação primordial para que se desse início ao
empreendimento:
... nosso maior desejo é que ... Wall Street em três anos vai olhar para a [empresa-mãe] e dizer, a
marca e os pontos de venda são de fato ativos mais valiosos que os [ativos físicos] ... acreditamos
que a Internet irá facilitar esse crescimento no relacionamento com [x] milhões de consumidores ...
nós entramos em contato com [y] milhões de consumidores por dia, nós temos uma das mais fortes
marcas globais, e nós possuímos essa presença física de [z] [pontos de venda] globalmente.
(executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
... nós temos estado em todos esses países por mais de [x] anos. Nós entendemos as diferenciações
sutis. Nós sabemos como competir com sucesso na França e Itália e Bulgária e China. (executiva
da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
... esta é uma das mais bem reconhecidas marcas no mundo, e em geral ela expressa coisas como
confiabilidade... (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe)
Porque essa é a [empresa-mãe] ... você está com o [símbolo na logomarca da empresa-mãe] por
todo o mundo e todo mundo tipo, “puxa, você é [empresa-mãe], valeu”. Todo mundo
simplesmente tenta te agradar. Ele manda bem, o [símbolo], ele se impõe, ele te dá um bocado de
respeito. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado)
(2)
A marca pertence assim a uma classe de redundância tomada como indisponível para
conversão em variedade, o que implicou tensões nas empresas-filha, cujas identidades
nascentes, em processo de afirmação, necessitavam portar significados que dissessem
respeito aos ambientes de (novos) negócios em que se constituíam:
Existem algumas instruções [para a formatação de páginas para a Internet] que dizem: é desse jeito
que você deve montar o portal, agora, o uso da cor, o uso de concepções criativas, ou estilo,
qualquer coisa, deve ser adequado a um ambiente de negócios ... mas se você olha para a garotada
da escola [público-alvo da empresa-filha A] isso pode não parecer atrativo para eles. Então, que
caminho você segue? Você adere completamente às instruções da [empresa-mãe] e deixa mesmo
tudo desinteressante para as crianças? (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da
empresa-mãe)
... nós estivemos desenvolvendo os módulos de interação com o usuário ... tudo que eles
produziram por lá teve que vir para a [sede da empresa-mãe] para eu meio que dizer, “sim, isso
está de acordo com as instruções”, e daí eu tinha que levar tudo até o CMO [executivo de
marketing] e ganhar a benção dele. Então esse vem sendo um processo exaustivo ... se você
alguma vez conversou com [fulano], que é o cara do marketing por lá, ele se vê tendo que fazer o
nosso trabalho ... [ele] estava obviamente impondo suas opiniões ... parecia tão difícil e no fim nós
demos conta de tudo. Mas levou três meses ... o CMO ... é tipo, “por que diabos você está usando
todas essas cores? Isso está parecendo um quadro do Picasso”. E eu sou tipo, “porque eles
[nativos do país x, da empresa-filha A] adoram cores” ... Com imagens é a mesma coisa. Por lá
eles gostam de imagens muito alegres, muito família. Aqui [sede da empresa-mãe] eles querem,
você entende, que seja tudo certinho e direto e sóbrio. (especialista na atividade-fim de uma das
empresas-filha, contratada no mercado)
197
(3)
Para além da expansão da base de negócios da empresa-mãe pela incursão em um
segmento ainda inexplorado (os negócios pela Internet), o empreendimento embutia
também objetivos colaterais, como a oxigenação das práticas de negócio e dos
processos de trabalho (por conseguinte, da cultura) da empresa-mãe, pela
experimentação de alguma variedade em classes de redundância há muito cristalizadas:
... nós temos feito mudanças dramáticas. Nós tomamos decisões de investimento de cinco milhões
assim, ó. O que eu quero dizer é que nós não temos de voltar até o conselho. Isso é novidade na
[empresa-mãe], todo mundo tem que autorizar cada vinte centavos ... nós temos especialistas
externos no nosso comitê de investimentos e no nosso conselho trimestral. Já [empresa-mãe] é
tradicionalmente tipo, “eu não quero ninguém espiando a minha cozinha, eu não quero que eles
saibam o que eu estou pensando” ... Então nós temos, nas nossas operações do dia a dia, nas
nossas decisões, nós temos pessoas externas que são como conselheiros, não consultores, mas
conselheiros, e isso é um tanto quanto novo para a [empresa-mãe]. Toda vez que nós tomamos
uma decisão de investimento, você acha que tem uma pessoa externa fazendo perguntas? De jeito
nenhum ... as pessoas na [empresa-mãe] em geral têm aversão ao risco ... nós vamos tentar mil
coisas e duas vão ser grandiosas. Isso é novo na [empresa-mãe]. Geralmente nós começamos algo
e nós agüentamos firme, investimos mais dinheiro e fazemos a coisa. Então, tem também uma
educação quanto a más notícias. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da
empresa-mãe)
... até certo ponto, a postura que adotamos, como um negócio emergente, é que nós somos quem
quebra as regras, não quem as faz. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
... existe um grande desejo de, nos primeiros meses, introduzir contratos totalmente inéditos,
esquemas de remuneração totalmente inéditos que surgiram. Porque esse esquema de remuneração
tem aspectos que têm tudo para ser adotados por outras partes do grupo ... Foi realmente uma barra
fazer passar isso no nosso conselho, mas é fantástico que nós estejamos tentando e que nós
tenhamos sido autorizados a tentar, para então ver se o nosso modelo, ou uma modificação do
nosso modelo, possa, aí, ser implantada no corpo principal da [empresa-mãe]. O mesmo com as
participações corporativas, nossas metodologias, nós estamos mais avançados que outras partes do
grupo na introdução das nossas metodologias, que agora estão sendo adotadas de volta em outros
pontos da [empresa-mãe]. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
... existem diferentes modelos para esses diferentes negócios das [empresas-filha], mas o bom
senso da [empresa-mãe] foi não colocá-la [empresa-nova] debaixo de nenhum dos demais
negócios onde, se você estiver desafiando as normas existentes, ela vai ser esmagada. (executivo
de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
Se as possibilidades para qualquer gestão correspondem, como postulamos, às
possibilidades para uma “gestão” da evolução temporal de um sistema (a organização)
que em verdade é gerada por uma dinâmica a ele intrínseca, tal gestão não deve ser
nunca confundida com um poder de controle (que em verdade inexiste), mas ela
comporta, sim, potenciais para influenciar (no sentido de procurar orientar) esses
processos evolutivos (em outras palavras: o poder – tema a que retornaremos adiante –
configura alguma condição de contorno para a auto-organização; ou, na terminologia
dos sistemas não-lineares, ele conforma um atrator para o comportamento do sistema).
198
A experimentação para a empresa-mãe de que consiste a empresa-nova, tanto em novas
práticas de negócios como em novos processos de trabalho, nos vale aqui como uma
constatação empírica deste postulado.
(4)
Tais anseios por renovação eram compatíveis com algumas atitudes verificadas, dentro
da empresa-nova, de resistência à identidade da empresa-mãe (variedade como rejeição
à redundância):
... existe um número de pessoas que entrou para a [empresa-nova] ano passado, tanto de dentro
como de fora da [empresa-mãe], que estavam desesperadas para tocar a [empresa-nova] de um
modo inovador, em um novo prédio, em um novo modo de trabalhar e por aí vai ... Eu acho que
houve um enorme desejo ano passado e neste ano de realmente tentar criar alguma coisa
inovadora. Há um sentimento de que a [empresa-mãe] estava cansada e velha, já deu o que tinha
que dar ... blá blá blá, e que aqui estava uma oportunidade de se criar algo novo, com um monte de
gente nova, com um bocado de dinamismo... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo
da empresa-mãe)
... dentro da [empresa-nova], qualquer um que tenha sido transferido da [empresa-mãe] não quer
ser visto como uma pessoa da [empresa-mãe]. Então existe uma cultura anti-[empresa-mãe] que é
muito mais forte, eu diria, entre as pessoas da [empresa-mãe] do que entre as pessoas de fora da
[empresa-mãe]. As pessoas que têm chegado de fora, eu não acho que estejam realmente se
importando. Eles não vêem diferença. Minha intuição é que as pessoas que vieram transferidas são
aquelas que constantemente falam sobre, “isso aqui não é [empresa-mãe], nós não podemos deixar
que fique que nem a [empresa-mãe]”. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no
mercado)
(5)
Pôde-se também constatar o processo inverso, de conservação (latente) da redundância
representada pela identidade da empresa-mãe, mesmo quando da forja de valores
próprios:
Os valores no programa que foi conduzido em torno dessa coisa chamada “Espírito da [empresanova]”, não existe um só valor lá que eu não tenha visto expresso nas outras reinvenções, ou novos
negócios, a que eu tenha estado associado ... [estes] são valores que têm sido perseguidos pela
velha [empresa-mãe] e por equipes na velha [empresa-mãe], bem como por este time daqui. Então
a diferença não é tão grande assim, em termos de aspirações. (executivo responsável pela empresanova, oriundo da empresa-mãe)
Nós estamos tentando ser mais comunicativos, de igual para igual, abertos, entregando resultados,
pensando grande, entregando rápido, não burocráticos, trabalho em equipe. É muito interessante
que, se você faz essa lista, então todo mundo na [empresa-mãe] diz, “peraí, nós estamos tentando
fazer a mesma coisa”. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresamãe)
199
(6)
Por sua natureza mesma (uma incubadora de novos negócios em um segmento de
negócios também novo, a arena da Internet), era essencial à empresa-nova a constituição
e consolidação de uma identidade própria:
... Eu possuo uma carteira em que eu posso ter cinco negócios diferentes que são criados, que são
negócios independentes, que têm suas próprias equipes de gerentes, diferentes segmentos de
mercado e eles precisam ser gerenciados de algum modo coerente, de modo que todos eles
cumpram algum objetivo estratégico similar. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no
mercado)
... quando você está contratando tanta gente em sucessão rápida, como você poderia fazer uma
ambientação exaustiva? Porque eu ainda preciso me ambientar e a pessoa que chegou um mês
depois de mim acredita que eles não foram ambientados, mas eu não estou em posição de
ambientá-los, porque eu sei pouca coisa mais do que eles. Então eu acho que existe um sentimento
de frustração quanto ao processo incompleto de ambientação ... nós não temos nenhum senso
comum de história. Nós apenas conhecemos pessoas com quem nós nos sentamos ou com quem
interagimos na prática. Você não tem nada dessa coisa de rede ou de cola social, experiência em
comum ... então se você entra e diz, “qual é o jeito de fazer as coisas por aqui?”, eu não sei ...
você entende o que eu digo? Todo mundo ainda é um tanto quanto individualista nesse sentido.
(profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
(7)
Tal processo de construção e consolidação de uma identidade nascente era naturalmente
pleno de tensões, posto que a nova identidade teria, também, de preservar e nutrir laços
com a identidade tradicional da empresa-mãe:
... é claro que você ainda está na prática conectado à nave-mãe, e você precisa entender a cultura e
os processos de tomada de decisão da nave-mãe, e isso não é uma coisa que qualquer um que eu
tenha conhecido aprenda da noite para o dia. Então você realmente precisa de uma mistura das
duas culturas ... Então, como você mistura junto essas coisas? Como você cria uma identidade que
está vinculada à [empresa-mãe] mas que não está vinculada à [empresa-mãe]? ... [empresa-nova]
precisa possuir identidade suficiente para que seja atrativa, mas não tanta identidade que acabe
rejeitada ... esse é o paradoxo da [empresa-mãe] que é, para se sobreviver na [empresa-mãe], existe
uma enorme quantidade de foco interno, a respeito de administrar as políticas e as redes de
relacionamentos e, a meu ver, os negócios rolam numa rede de relacionamentos que são criados a
partir de uma carreira de uma vida inteira, e tem muita coisa sobre como o sistema da [empresamãe] funciona. Está nas paredes, não está por escrito, e os processos de tomada de decisão não são
claros, e ao mesmo tempo eles estão dizendo, “eu quero criar algo novo”, e trazem para dentro
uma penca de pessoas que não sabem como trabalhar aqui ... elas têm que estar dentro do sistema e
fora do sistema ao mesmo tempo, e o sistema é muito forte. (profissional de RH dos quadros da
empresa-mãe)
(8)
Tensões de caráter similar ocorreram também nos processos de formação das
identidades das empresas-filha:
... eu era uma pessoa da [empresa-filha A] mais do que qualquer coisa, e minha visão e minhas
lealdades até um certo ponto pertencem mais à equipe ... Eu trabalho para a [empresa-nova], mas
eu sou um membro da equipe da [empresa-filha A] ... Eu estou apaixonada por esse projeto em que
eu tenho estado trabalhando, eu ainda tento ficar conectada com eles e defender as visões locais o
200
máximo que eu possa. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no
mercado)
No [país y], onde nós estamos abrindo uma [empresa-filha B], e a maioria da equipe simplesmente
vem da [subsidiária local da empresa-mãe], isso traz uma outra forma de dificuldade, em termos de
onde a lealdade deles está ... No [país y] nós temos encontrado uma mentalidade de, “bem, eu
estou temporariamente com esse projeto. Minha verdadeira lealdade pertence à [subsidiária
local]”. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
(9)
Um obstáculo a esse processo de constituição de uma identidade simultaneamente
própria (variedade, para o sistema “empresa-mãe”) e pertencente (redundância) residia
no profundo enraizamento cultural da empresa-mãe em uma identidade de matiz
tecnológico próprio a seu segmento de atuação (indústria de processo contínuo),
consolidada ao longo de décadas – uma tradição, com todo o seu peso, e toda a sua
inércia:
... a cultura da [empresa-mãe] é, até certo ponto, uma cultura de engenharia, o que significa que é
uma cultura de fatos e dados ... Daqui da [empresa-nova] isso é, de algum modo, uma barreira para
a nossa cultura ... porque nós estamos lidando com ambigüidade e incerteza ... um bocado do que
nós fazemos é, até certo ponto, guiado por visão de futuro ... Isso volta e meia se choca com os
fatos e dados, com a mentalidade do prove que tem razão antes de sair fazendo ... imagine se ...
daqui a um ano ou dois ... nós [empresa-nova] sentimos que estamos na iminência de algo, mas
eles [empresa-mãe] podem achar que já está na hora de passar para o próximo [negócio] ... No
geral, [empresa-mãe] é uma cultura de perfeição ... não há lugar para erro nos processos [da
empresa-mãe], e então existe uma robustez para o planejamento por aqui que diz, “faça realmente
isso até o enésimo grau, noventa e nove ponto nove nove nove nove, porque não existe margem
para erro” ... é uma companhia que faz e planeja no longo prazo. Nós fazemos e planejamos no
curto prazo, e nós fazemos e planejamos baseados em uma confiabilidade de setenta a oitenta por
cento. Então nós não gastamos muito tempo na montagem das coisas, já que é um ambiente que
está sempre mudando ... essas são duas diferentes mentalidades culturais que, de vez em quando,
se chocam. Nós mudamos de direção três ou quatro vezes em um assunto. Você jamais mudaria de
direção três ou quatro vezes em um assunto na [empresa-mãe], você meio que tem que saber para
onde está indo e você deve então fazer com perfeição ... Assim, nós trabalhamos culturalmente em
escalas de tempo diferentes, e então isso tem implicações em termos do pessoal [na empresa-mãe]
com quem trabalhamos, e de suas visões de mundo. As visões de mundo deles tendem a ... “vamos
pensar sobre essa coisa, vamos ter certeza que nós sabemos fazê-la certo, e ter certeza de que
faremos para o resto da vida, e ter certeza de que fica expansível e robusta” ... Nós não, porque
nós temos que estar prontos para botar abaixo tão rápido quanto montamos as coisas ... nós não
temos uma estratégia em algumas coisas. Nós simplesmente reagimos a algumas coisas. Nós
simplesmente fazemos algumas coisas. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no
mercado)
(10) Sob tais circunstâncias, os próprios objetivos colaterais de oxigenação das práticas de
negócio e dos processos de trabalho eram também fonte de riscos ao sucesso do
empreendimento:
... nós implantamos um sistema de pagamento diferente para os empregados na [empresa-nova]
que difere do restante da [empresa-mãe], e é um sistema de pagamento que basicamente nos dá
uma parcela da geração da riqueza criada por nós ... na [empresa-mãe] isso é uma coisa muito
201
radical, particularmente quando você começa a pensar nos números envolvidos na [empresa-mãe].
[Empresa-mãe] faz [x] por ano de faturamento e [y] por ano de lucro ... eu penso que muitas
pessoas ficaram surpresas que eles [da direção da empresa-mãe] dessem suporte a isso, já que, de
fato, quando eu entrei, muita gente disse, “isso não vai acontecer, então não perca muito tempo
porque isso é perturbador para o resto do sistema”. Isto deixa você de fora do sistema. Isto faz
com que o seu potencial remunere mais do que o de outras pessoas na corporação, que estão
trabalhando para uma companhia muito bem sucedida fazendo coisas altamente técnicas e
maravilhosas. Então, porque você deveria ser mais bem pago por um empreendimento iniciante
que não possui retrospecto do que alguém que está trabalhando na atividade-fim da [empresamãe]? ... Mas eles concordaram com isso. Então isso nos surpreendeu de certo modo porque esse
foi um grande passo filosoficamente para eles ... [o novo sistema de remuneração] nos permitiu ser
competitivos em um segmento diferente de um mercado, em que nós precisávamos recrutar ... isso
também demonstrou aos candidatos em potencial que a [empresa-mãe] estava tomando uma
posição diferente quanto a isto, e que isto não estava sendo tratado como o restante da [empresamãe]... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
(11) Havia, na empresa-nova, algum grau de percepção quanto a esse risco, e quanto às
crescentes resistências ao empreendimento que se acumulavam na empresa-mãe:
O primeiro de todos [os perigos potenciais] é provavelmente ser visto como sendo muito
discrepante da ... quaisquer que sejam os limites da [empresa-mãe], o que quer que seja com que
estejamos confortáveis, sermos vistos como não tendo nada a ver com isso daqui. Algo que seja
assim muito desconectado, muito doido, muito dissociado. (profissional de RH dos quadros da
empresa-mãe)
Então por que eles [direção da empresa-mãe] ... deram suporte à [empresa-nova]? Eu acho que a
expressão é fazer vista grossa, eles fizeram vista grossa para com ela. Eles a toleraram. (executiva
da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
Nós estivemos nos dando conta, nos últimos doze meses, de que se nós realmente não vendermos
nossa “[empresa-mãe]-zice” nas demais partes da [empresa-mãe], aí nós encontraremos ainda mais
resistência do que seria o caso. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresamãe)
(12) Com efeito, o foco na empresa-mãe progressivamente centrou-se nas expectativas
(desde o início elevadas) quanto ao retorno em termos de lucratividade da empresanova, o que terminou por implicar uma erosão da imagem desta em termos de suas
perspectivas de sucesso:
No começo, todo mundo queria trabalhar para a [empresa-nova] ... as pessoas diziam que era
arriscado, mas era estimulante. Isso foi na primavera de [ano]. Agora nós entramos em um período
diferente. As pessoas estão dizendo, “não, eu não quero ir para a [empresa-nova]. Eles não
realizaram no ano passado, isso custa muito dinheiro”. Existe um risco para todo mundo que
trabalha na [empresa-nova], se você deseja continuar na [empresa-mãe] por muito tempo. Suponha
que isto tenha sido fechado daqui a um ano, você terá gasto dois anos da sua vida numa unidade
que não deu certo, ou deixou uma má reputação. Então existe um risco substancial, não um risco
financeiro, um risco em termos de reputação de se juntar à [empresa-nova] ... nós não conseguimos
achar talentos de topo para se juntarem a nós no momento, eu lhe digo com absoluta certeza ...
sinais disso são aquilo que outras pessoas pensam de nós no resto da [empresa-mãe]. Eu estava na
[sede da empresa-mãe] segunda-feira passada nutrindo meus relacionamentos com uma pessoa que
é bastante antiga na companhia e a primeira coisa que ele me disse foi, “você faz parte daquele
202
grupo que gasta um monte de dinheiro e não realiza nada?” ... eu vou ser a primeira a dizer que
existe um bocado de ceticismo na [empresa-mãe] em relação a isto. (executiva da empresa de
participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(13) Em contrapartida, os choques culturais implicaram também alguma erosão da imagem
da empresa-mãe na empresa-nova...
... [para ter sucesso, a empresa-nova deve] se manter separada e desvinculada do resto da
[empresa-mãe], de modo a não se emaranhar em toda a burocracia e toda a política e todas as
estruturas de tomada de decisão que tomam muito tempo ... Eu acharia que esse seria um critério
de sucesso porque eles [da empresa-nova] precisam andar mais rápido do que o resto da
organização, e no curto para o médio prazo não há como eles poderem ensinar isso ao resto da
organização [empresa-mãe]. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe)
(14) ... e, de forma ainda mais acentuada, nas empresas-fihas:
... nós temos um conjunto de ... processos bem específicos da indústria de [processo contínuo] que
não necessariamente têm a ver com os velozes empreendimentos de risco da Internet, e eu estou
passando por problemas ao tentar fazer as coisas andar para frente, e até aqui eu tenho sentido que
eu estou sendo travada por esses processos peso-pesado, que não necessariamente têm a ver com
um ambiente de empreendimento de risco típico ... pelo lado da [empresa-mãe], eles precisam
entender que nós estamos embarcando em um ambiente novo, e você precisa dessas pessoas que
de fato vêem que existe uma necessidade de se mudar isso, ao invés de dizer, “nós somos
[empresa-mãe], então nós impomos isto”. E eu vejo um bocado de gente dentro da [empresa-nova]
tentando fazer isso, e eu acho que vai haver conflito. (profissional de TI de uma das empresasfilha, oriunda da empresa-mãe)
... vocês, caras da matriz, vocês simplesmente não entendem. Vocês simplesmente não captam a
coisa. É tipo, nós estamos aqui nas trincheiras dando o nosso sangue e vocês só fazem tornar as
coisas mais difíceis ... Vocês têm que ouvir mais a equipe. Eles sabem o que estão fazendo. Vocês
têm uma equipe muito capaz por lá. Deixem eles serem quem são, lhes dêem direção, mas não
imponham a eles as suas visões ... [Empresa-mãe], como qualquer grande organização, tem
alguma arrogância. Tipo, por estar com a [empresa-mãe], nós somos bem-sucedidos. Nós sabemos
como fazer as coisas, logo tudo vai ser cor-de-rosa e não, as coisas não são sempre cor-de-rosa,
absolutamente ... Às vezes, se a matriz tivesse sido um pouco mais humilde e ouvido um pouco
mais a equipe local e as suas necessidades, algumas coisas poderiam ter sido evitadas, para falar a
verdade ... Nós estamos em um segmento não-relacionado, o da educação, que para mim, do ponto
de vista do marketing, foi como que super difícil conseguir vender a história. “Olá, nós somos uma
companhia [da indústria de processo] e nós queremos entrar em educação”. “Ah, sei, por que?”
Pois bem, nós precisamos contar com conhecimento em educação nos embasando. Não se tratava
somente de uma questão de obter aprovação. Era também porque nós estávamos tentando construir
um empreendimento em educação muito sofisticado e de primeira classe ... nós precisamos ter um
pedagogo ... [mas] nos disseram da matriz ... não, nós somos a [empresa-mãe], nós somos a
[empresa-mãe]. Nós sabemos como fazer as coisas. Quem se importa se nós não temos um
pedagogo? ... Nós sabemos como fazer negócios. Nós sabemos como implementar projetos. Nós
temos todos os recursos e os anos e anos de experiência, mas, me desculpe, se você quer nadar,
você precisa de um maiô. Se você precisa entrar em educação, você precisa de um pedagogo e esse
tem sido o principal problema e porquê ... tudo tem estado atrasado. (especialista na atividade-fim
de uma das empresas-filha, contratada no mercado)
(15) Dada a condição de novidade, tanto do empreendimento (empresa-nova) quanto de sua
arena de atuação, havia não somente consciência da necessidade de importação de
203
variedade em termos de habilidades e conhecimentos específicos (inexistentes no campo
tradicional de atuação da empresa-mãe) como também consciência de que a demanda
por esta classe de variedade poderia crescer abruptamente:
... Eu preciso desenvolver uma organização que ainda está enxuta porque eu não posso colocar um
monte de excedente nela, esperando que o volume apareça. Então eu devo saber que eu preciso de
seis gerentes ou de oito gerentes em dezembro, mas eu não posso incorporá-los agora, porque eu
não tenho o negócio. Então o que eu posso fazer agora é olhar para o que eu tenho, as capacidades
que eu tenho, e tentar organizar agora, mas eu também sei que este é um negócio orientado a
volume e os volumes podem crescer geometricamente, e por isso o tamanho e a estrutura
organizacional e os agrupamentos podem mudar rapidamente. Então vamos dizer que, com setenta
pessoas, se uma das nossas bandeiras de negócio realmente explodir, ela poderia demandar
duzentas pessoas em doze meses e isso a partir de uma base de setenta hoje ... Se você entra em
um novo negócio que requer novas habilidades, novas competências, você não pode simplesmente
cobrir isso com gente vinda dos negócios tradicionais ou existentes. (executivo de RH da empresanova, contratado no mercado)
(16) Havia também a consciência de que a empresa-nova deveria despojar-se de algumas
classes de redundância herdadas da empresa-mãe, de modo a prover condições
favoráveis à retenção das classes de variedade que estavam sendo importadas:
À medida que nosso recrutamento cresce no [país x, da empresa-filha A], então os valores que uma
penca de caucasianos na [sede da empresa-nova] reúnem, vão ser estes os valores corretos para a
[empresa-nova] amanhã, se de fato trinta e três por cento do nosso pessoal está no [país x]?
Provavelmente não. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
(17) Como se poderia esperar, a variedade recém-importada ressentiu-se de falta de
patamares básicos de identidade (redundância), tanto em termos de identificação com a
empresa-mãe...
Eu não sabia nada sobre a [empresa-mãe]. Houve inúmeros momentos em que eu não podia
realmente tomar decisões porque eu estava tipo, “eu vou estar me metendo em problemas
políticos? Existe uma estrutura que eu deveria respeitar e eu não estou fazendo isso?” ... isso
realmente me retardou um bocado. Então, se eu tivesse sabido um pouco mais o que a estrutura
era, como as pessoas reagem, o que eu poderia esperar da rede de relacionamentos, as coisas
teriam sido mais rápidas e fáceis ... às vezes eu estava indo tomar decisões e eu ficava meio que
hesitante quanto a isso, e eu tive que voltar até a matriz e pedir a benção para as minhas decisões.
Isso não deveria acontecer. Se eu tivesse sabido melhor onde era o meu lugar, teria sido mais fácil.
(especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado)
204
(18) ... quanto em termos de uma identidade própria mínima suficiente (consensos básicos)
que conformasse uma base comum para o aproveitamento da variedade, ou seja, da
diversidade de idéias, pontos de vista, talentos e habilidades etc.:
P – Quais deveriam então ... [ser] os critérios de sucesso, para que a [empresa-nova] se torne um
novo negócio bem-sucedido? (entrevistadora)
R – Ser claros quanto ao que e quem nós somos, e o que nós estamos tentando alcançar...
(profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe)
(19) Era, no entanto, o próprio ritmo de aquisição de mais variedade o que, na prática,
redefinia as formas e estruturas organizacionais na empresa-nova. Assim, a identidade
nascente ia sendo atualizada de forma muito rápida, com esse dinamismo na produção
da redundância dificultando sua percepção como tal (pois isto requer alguma
estabilidade):
... nós nos reestruturamos de novo em janeiro, após nosso início em [mês] de [ano], e nós estamos
agora esperando fazer isso de novo este mês, depois da de janeiro. Essas duas foram
provavelmente guiadas mais pelo processo de recrutamento, porque nós estamos incorporando
pessoal e nós temos trazido pessoas experientes que têm papéis chave a desempenhar, então nós
tivemos que reorganizar a organização de modo a refletir essa realidade ... isso tem sido guiado por
volume, por um ponto de vista de pessoal. Então, se você tem seis pessoas é uma estrutura
organizacional, se você tem trinta e seis provavelmente já é uma diferente, e se você tem oitenta e
dois, que é como nós estamos no momento, é provavelmente diferente ... à medida que nosso
volume aumenta, nós precisamos ter certeza que ela [a estrutura organizacional da empresa-nova]
ainda se adequa ao propósito ... eu esperaria ... que esses novos negócios irão nos mudar, porque
agora nós temos que operar esses negócios. Agora mesmo ... mais de noventa por cento das nossas
atividades ... são de construir, não de operar. À medida que nós começamos a avançar ... Minha
suposição é que isso vai impactar também as nossas formas organizacionais, e habilidades. Então,
eu desconfio que noventa por cento de construção neste ano, da próxima vez deveremos
provavelmente estar em quarenta por cento de construção e sessenta por cento de operação. Então,
a pergunta que faremos ano que vem é, “a estrutura é essa mesma? Os agrupamentos apropriados
... de habilidades e coisas, são estes mesmos?” (executivo de RH da empresa-nova, contratado no
mercado)
Temos aqui uma constatação empírica de nosso postulado quanto a que a qualidade da
gestão, em uma organização, decorre diretamente da qualidade da compreensão a que se
possa chegar quanto à dinâmica, evolutiva no tempo, do sistema “organização” – o que
requer uma adequada compreensão dos ritmos de geração de redundância a partir da
variedade e vice-versa.
205
(20) Não obstante esse dinamismo, o ritmo de importação de variedade nova era percebido
nas empresas-filha como aquém do necessário...
... a equipe da [empresa-filha A] estava correndo direto, estava trabalhando tantos dias numa
semana, e trabalhando tantas horas ... para continuar seguindo rumo ao cronograma original,
quando o recrutamento começou. E o processo de recrutamento tem sido um processo muito
demorado. Ele tem levado a um enorme acúmulo de frustração na equipe ... houve um ... período
de quatro meses em que a equipe local esteve dando tudo de si, e trabalhando loucamente, e
tentando cumprir o cronograma original ... enquanto eram perturbados por toda uma série de
entrevistas e negócios e debulhando ofertas e por aí vai, toda essa história de recrutamento.
(executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
... como tocar esse projeto que é um projeto de nove a doze meses, e nós estamos na expectativa de
crescer, aumentar em escala os recursos do projeto, e nós de fato estamos recrutando localmente
no [país x, da empresa-filha A] um pessoal permanente, e isso toma em torno de quatro meses.
Então, se este é um projeto de nove a doze meses, e se leva quatro meses ... para se recrutar
pessoal para um projeto ... isso não está apropriado ... alguma coisa não está muito certa por lá.
(profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe)
(21) ... ainda que houvesse alguma consciência a respeito de que esse ritmo de importação de
variedade já correspondia ao limite do possível (com o que se pode novamente constatar
as dificuldades quanto a se lidar com a evolução da organização no tempo):
Agora, em defesa do lado do RH, então existe a primeira vez que o lado de RH se engajou neste
processo, e assim ... eles estão aprendendo à medida que caminham e, do ponto de vista deles, eles
têm realmente estado operando numa velocidade de ruptura, comparado a como seria operar em
um negócio normal, maduro... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresamãe)
(22) A dificuldade de aceleração do processo de importação de variedade era percebida
como um calcanhar de Aquiles para a empresa-nova:
Eu penso que é uma carência de gente bem talentosa, mesmo. (executiva da empresa de
participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
... trazer as pessoas certas é tão chave para o sucesso que seria melhor atrasar um pouco o projeto e
trazer as pessoas certas, do que continuar a enrolar a nós mesmos de que nós somos capazes de
realizar o projeto sem as pessoas certas. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da
empresa-mãe)
P – ... olhando no futuro, se você pudesse ver o futuro da [empresa-nova], o que é que você estaria
mais interessado em saber? (entrevistadora)
R – ... [dentre outras coisas é] ter uma organização que possui a mistura, a reunião certa de
qualidades, e a quantidade certa de pessoas para realizar a visão. No momento, nós temos toda
uma penca de pessoas que não estão tão bem alinhadas quanto poderiam estar para realizar os
empreendimentos ... Nós temos bandos de pessoas motivadas, não se trata de uma questão de
atitude. Se trata de uma questão de habilidades básicas, habilidades para tocar negócios, número
um. Habilidades em gerenciamento de projetos, número dois, e habilidades profundas nos
domínios que nós estamos realmente tentando disputar ... nós somos um negócio recente. Nós
recrutamos mais cedo, e corremos o risco de sub-empregar, sub-utilizar as pessoas até que vários
206
empreendimentos adquiram maturidade para precisar dessas pessoas, mas pelo menos nós estamos
prontos, ou nós esperamos até que a necessidade apareça, como aconteceu com a [empresafilha A], e então descobrimos que na verdade leva de quatro a cinco meses para se trazer as
pessoas certas, tempo em que o nosso projeto pode bem ter desacelerado até parar? ... nós
recrutamos em qualidade na profundidade suficiente, e em quantidades suficientes, de modo a nos
capacitar a atingir nossas metas? Ou nós nos restringimos de modo a segurar os custos
operacionais, e então nós honramos nossos compromissos quanto a custos operacionais, mas
perdemos as oportunidades?
(23) Malgrado toda essa consciência quanto à necessidade de variedade, a compreensão a
respeito do que diversidade significa – em última análise, a valorização da
individualidade humana – mostrava-se, em alguns casos, restrita a sentidos estritos do
termo (diversidade de gênero, étnica, cultural etc.)...
E eu acho que uma coisa que é realmente, realmente especial é que nós temos o que ninguém mais
tem no grupo [empresa-mãe], e eu estou lhe dizendo isso, é diversidade ... Nós já temos diferentes
sexos, nacionalidades, religiões, orientações sexuais, nós temos isso tudo e nós já acolhemos isso
... Eu não acho que isto aconteça, não desse tanto, em nenhum outro lugar na [empresa-mãe]. Nós
somos verdadeiramente, verdadeiramente diversificados, e nós escolhemos ser diversificados ...
Nós também temos ... um monte de diferentes orientações sexuais. Já na [empresa-mãe] todo
mundo é hétero. Aqui, nem tanta gente é ... as pessoas daqui estão cientes que temos pessoal
homossexual, e assim talvez nós também criemos a cultura de que está tudo bem em ser assim.
(executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(24) ... ainda que estas mesmas pessoas pudessem chegar a percepções que comportassem
uma compreensão mais abrangente da diversidade:
... isso não tem a ver só com gênero. Isso é realmente sobre como nós trabalhamos com as pessoas.
Nós aceitamos ... Eu quero dizer, há uma total aceitação das habilidades deles ... este cara que
trabalha comigo ... tem um estilo muito diferente de gerenciar, e no começo nós não gostamos
disso, mas dissemos, isso também é diversidade. Então, nós acolhemos isso. Nós dissemos, tudo
bem, ele é diferente, mas isso também é bom... (executiva da empresa de participações
corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(25) Enquanto que outras já se mostravam conscientes que, para além do mero discurso, a
aceitação da diversidade (ou seja, dos “ruídos” internos – ambigüidade, contradição,
conflito) é na verdade uma prática, que, como tal, requer proficiência:
... o pessoal da matriz, é mandatório que eles tenham ... que eles sejam pessoas muito
diversificadas, no sentido que eles tenham conseguido ficar bastante mente aberta, sabedoria
cultural, e isso significa aceitar e respeitar e incorporar as diferenças culturais no projeto. Porque
não apenas depois da [empresa-filha A no país x], eu também fui mandada para a [empresa-filha B
no país y] e eu vi um padrão similar no sentido de que, mesmo que todos sejam muito
internacionais e todos nós entendamos as diferenças culturais, houve muitas ocasiões em que você
podia ver que coisas tinham que ser explicadas sete vezes para que houvesse um entendimento.
(especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado)
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(26) Um aspecto específico quanto ao compromisso entre variedade e redundância era
amplamente percebido como necessário – a conjugação de pessoal oriundo da empresamãe, capaz de preservar e nutrir os laços entre ela e a empresa-nova, com profissionais
oriundos do mercado, dotados das competências especializadas necessárias:
... é crítico reter laços bastante fortes realmente com o corpo principal da [empresa-mãe], o que
significa que é necessário contar com uma mistura de pessoas da [empresa-mãe] e pessoas de fora
da [empresa-mãe]. De modo a que as pessoas da [empresa-mãe] possam prover pontes robustas de
volta às redes de relacionamentos que existem dentro de uma corporação do tamanho da [empresamãe], e a linguagem da [empresa-mãe] é uma linguagem que tem que ser decodificada pelas
pessoas novas... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
Nós acreditamos que, se você não tem o lado de investimento de risco [refere-se a pessoas de fora]
na equipe, então ... você não tem os conhecimentos especializados, você não tem checagem
externa ... você somente tem padrão. Se você não tem o lado da [empresa-mãe] ... você não
consegue vender para parceiros externos do jeito que a [empresa-mãe] está fazendo, você não tem
redes de relacionamentos, você não tem nenhum acesso a ativos corporativos. Você não consegue
vender a coisa dentro do sistema, ou pedir mais dinheiro ... Então use as pessoas da [empresa-mãe]
que têm credibilidade e podem falar a língua, e use as outras pessoas que estão sendo vistas como
sendo especialistas no ramo... (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da
empresa-mãe)
Bem, na equipe de executivos é cinqüenta a cinqüenta. Na equipe de gerentes, que é um grupo
mais amplo, é provavelmente sessenta a quarenta. Sessenta externos. Eu quero dizer que eu penso
que isso esteja apropriado porque, realisticamente, no final das contas, nós somos um negócio da
[empresa-mãe]. Nós temos que nos reportar dentro da comunidade da [empresa-mãe]. Nós temos
que ter pessoas que sejam capazes de administrar as expectativas da [empresa-mãe] quanto a nós.
Assim, portanto, nós precisamos de pessoas que tenham credibilidade dentro da arena da
[empresa-mãe], e que saibam como administrar essa credibilidade. Então o fato do nosso CEO
[executivo principal] e nossa pessoa das finanças serem pessoas da [empresa-mãe] é
provavelmente muito importante, para que nós continuemos a conseguir os fundos com que nós
estamos contando. Mas, igualmente, para alcançar essa credibilidade nós temos que provar à
[empresa-mãe] que nós de fato possuímos experiência e entendimento da Internet, que é porquê ter
alguns dos contratados de fora tem sido tão importante, porque se não fosse assim nós não
teríamos credibilidade. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
(27) Pelo menos um dos entrevistados demonstrou perceber, ainda que de forma intuitiva,
que toda identidade (redundância) já foi, em sua origem, diversidade (variedade):
... existe um pouco de mito ... quanto a que ... a [empresa-nova] tenha de longe mais gente nova
em relação à [empresa-mãe] do que qualquer outra parte da [empresa-mãe]. Absoluta besteira ...
toda vez que nós sondamos um novo país ou começamos um novo negócio ... de onde vem o
pessoal? Eles não vêm de dentro da [empresa-mãe], afora um ou dois deles. A grande maioria é
recrutada de fora ... os negócios que foram criados no período de [ano] até [ano] eram todos
absolutamente novos, e foram povoados, predominantemente, por pessoal de fora da [empresamãe]. Talvez um CEO [executivo principal] ou alguma coisa da [empresa-mãe] e o resto era novo
em relação à [empresa-mãe]. Então, isso é um mito. (executivo responsável pela empresa-nova,
oriundo da empresa-mãe)
Com o que, ainda uma vez, constata-se o operar da dinâmica gerativa formulada.
208
A qualidade das interações humanas
(28) Como insistimos, o fator-chave aos processos de conversão mútua entre redundância e
variedade é a qualidade das interações entre as pessoas, lastreada na valorização da
alteridade – a valorização do convívio com aqueles que pensam diferente de nós. A
qualidade possível para as interações é, no entanto, muitas vezes percebida como uma
condição pré-dada, cuja melhora seria difícil ou mesmo inviável:
P – ... [em] sistemas humanos ... nós todos somos capazes de refletir e de mudar nossa atitude ao
interagir... (entrevistadora)
R – ... [mas] humanos, ou pelo menos humanos adultos, não mudam, fundamentalmente.
(executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
(29) O caminho mais óbvio de voltar o foco à quantidade das interações, por meio das
tecnologias de informação, pode mesmo acabar sendo um fator (a mais) de piora para os
níveis de qualidade existentes:
... correio eletrônico é muito bom para agregar pessoas e para manter um grupo grande de pessoas
informadas, mas no nosso caso as coisas têm que ser muito cuidadosamente explicadas e bem
extensamente detalhadas, para que sejam compreendidas corretamente. Como você sabe,
comunicações escritas às vezes podem ser mal interpretadas porque o estado de espírito e as
intenções por detrás de uma comunicação não são bem transmitidos por correio eletrônico ... Ah, é
assim como, “o que você quis dizer com isso? O que você está insinuando com isso?” E eu não
estou insinuando nada. Isso acontece com correio eletrônico, então esse é um meio de
comunicação traiçoeiro. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no
mercado)
(30) A tecnologia sem dúvida complementa e expande, mas não é capaz de suprir, os níveis
de qualidade inerentes à comunicação natural face-a-face:
... o telefone funciona melhor que o correio eletrônico nesse caso e, obviamente, você sabe, a
presença ... quando fulano [responsável pela empresa-filha A] ... também viaja para [país x, da
empresa-filha A], é tão impressionante como assuntos que pareciam gigantescos no correio
eletrônico, quando você está cara-a-cara ... eu não sei porque mas ... os problemas desaparecem.
(especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado)
209
(31) O próprio ritmo de crescimento acelerado da empresa-nova conduziu também a uma
mudança nos padrões de interação entre as pessoas que tendia a prejudicar a qualidade
dessas interações:
Todo mundo gosta de se sentir consultado e envolvido. É em parte porque, quando isto aqui foi
deslanchado, sendo tão pequeno com dez pessoas, todo mundo podia ser envolvido na decisão.
Então, eu acho que existe ressentimento das pessoas que foram contratadas inicialmente, mas não
mais consultadas no mesmo nível e grau. Mas elas não podem ser, porque a organização cresceu.
Se só existem três de você, você pode discutir qualquer coisa. Quando existem trinta e três você
não pode. Então isso é parte do crescimento, amadurecimento, evolução. (profissional de RH da
empresa-nova, contratada no mercado)
(32) Bastante significativo, verificou-se haver alguma consciência quanto a que o
aproveitamento da diversidade requer empatia – a atitude de se dispor a procurar ver o
mundo pelos olhos do outro – o que, por sua vez, demanda compreender o contexto em
que este outro se encontra inserido:
Nós temos gente em [diversos países] e nós temos como que uma pessoa no [país a], uma ou duas
pessoas no [país b], uma ou duas pessoas no [país c], e eu estou preocupado que nós não estejamos
gerenciando ... e isso me preocupa em termo dos comprometimentos deles, do engajamento deles,
do nosso entendimento de fundo sobre que está acontecendo por lá, o que está acontecendo com
aqueles negócios, o que eles realmente pensam em contraposição ao que os executivos naqueles
países possam pensar ... As pessoas estão lá, e elas estão muito desconectadas. ... Quanto mais
longe você está da [sede da empresa-mãe], mais desconectado você está das decisões, do modo de
pensar e do nosso entendimento do que aconteceu ... nós temos muito pouca visão do que está
acontecendo lá no dia-a-dia ... as conexões nos relacionamentos e coisas assim não estão
desenvolvidas ... Eu conheceria as pessoas, eu teria uma noção das pessoas. Então, se você me
dissesse o nome de alguém no [país y, da empresa-filha B], José, eu teria uma noção vaga do José,
o José provavelmente teria uma noção vaga a meu respeito ... Eu não tenho nenhum contexto em
termos daquela pessoa, daquele assunto, daquele ambiente para que possa realmente tomar
decisões ... É um ambiente hostil? É um ambiente de desconfiança? É um ambiente altamente
engajado, comprometido? A mesma decisão em dois ambientes diferentes pode ter implicações
totalmente diferentes. Então, é o caso de não alcançar as implicações das decisões, porque não se
tem a compreensão contextual. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
(33) É justamente o reconhecimento da ausência de um tal contexto o que pode tornar as
pessoas mais abertas à busca por empatia, com o que mesmo as dificuldades percebidas
(“ruído”) podem tornar-se fator de aprendizado e superação:
Eu acho que é ouvir, ouvir um pouco mais e não tentar impor tanto assim os sistemas. Você sabe,
no final das contas, ambos ... o gerente do projeto e [o responsável pela empresa-filha A] estavam
viajando muito e ... esse tipo de arrogância de que eu estava falando [imposição] meio que começa
a arrefecer, porque você aprende que existe uma tamanha diferença cultural e diferentes maneiras
de se fazer as coisas que você domina, que você percebe que pode ser que eles também tenham o
direito de pensar do seu jeito, e de fazer as coisas do seu jeito. (especialista na atividade-fim de
uma das empresas-filha, contratada no mercado)
210
Com o que se pode constatar a inelutabilidade da dimensão individual (a subjetividade
humana) na a conformação da dimensão social. Frente aos dilemas da (in)compreensão
mútua, algumas pessoas terminam por adotar atitudes de abertura e empatia, enquanto
outras mostram-se mais resistentes – tanto quanto uma mesma pessoa pode mostrar-se
mais aberta ou resistente conforme a situação específica vivida. A subjetividade humana
– variedade – com todas as percepções de ambigüidade e contradição que desperta (nas
demais subjetividades...), é componente imanente a todo sistema social humano, como
as organizações.
(34) A empatia torna também as pessoas mais abertas à relatividade geral dos pontos de
vista, cada qual portador de validade própria. Seguem-se duas asserções contraditórias;
pode-se, porém, perceber validade em ambas. É por meio do conflito construtivo de
idéias, por sua vez tornado possível pela qualidade das interações, que opiniões
divergentes como essas (ambas de pessoas em postos-chave do processo) agregam valor
rumo a consensos tanto mais ricos (porque incorporam a diversidade) quanto eficazes
(porque no processo de construção de consenso as animosidades são dirimidas):
... para uma organização que está em processo de evolução, eu acho que o fato de que nós
reestruturamos não é o problema. O fato de como nós comunicamos isso para as pessoas ... tem
sido a nossa ruína ... é algo muito pessoal, é o canto em que você se senta em uma organização, é
como você se sente, sua escrivaninha, tudo. Isso precisa ser administrado muito, muito bem. Não
por um anúncio de correio eletrônico por fulano [responsável pelo RH da empresa-nova] ... não
dando às pessoas diferentes descrições de atribuições sobre as quais não se conversou com
ninguém antes, e elas simplesmente receberam uma mensagem de correio eletrônico uma hora
antes delas partirem ... isso poderia ter ficado melhor, com um toque mais pessoal etc. Essas coisas
são transtornos? Sim, bem, é algum transtorno, mas você faz porque você acha que isso beneficia o
negócio no longo prazo. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresamãe)
Sim, é quando chega a hora de se fazer um anúncio dos fatos, quando eu, enquanto um indivíduo,
posso de repente ter um novo gerente imediato ... Isso meio que abrange o controle das coisas
também. Então, em termos de, você sabe, você precisa ter as decisões tomadas muito rapidamente.
Então isso implica que você pode ter apenas um número pequeno de pessoas incluídas na decisão
... isso significa que algumas pessoas são informadas, ao invés de consultadas. (profissional de RH
da empresa-nova, contratada no mercado)
(35) Segue-se um outro caso, este a respeito da atividade de participações corporativas:
... participações corporativas é algo simplesmente inovador, tentar essas mil coisas, claro. Não
existe um modelo comprovado, e muitos modelos falharam mas ninguém sabe qual é o modelo
certo, e eu acho que não existe o modelo certo. Eu acho que existem modelos que funcionam por
determinado período, para determinadas organizações que estão em processo de evolução. Eu
tenho cem por cento de clareza disso ... participações corporativas, muita gente faz isso como se
211
fosse uma arte. Ah, nós tentamos um pouco disso, e você tem que ter algum talento. (executiva da
empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
... do ponto de vista de uma concepção organizacional, não há muito desafio lá [em participações
corporativas]. Trata-se de um modelo estável de negócio. O mercado não é estável mas o modelo
de negócio de se investir em companhias externas é estável. É um negócio estabilizado onde há
toda uma indústria de firmas de captação de investimentos que têm estado no negócio já há algum
tempo... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
(36) A empatia diz também respeito à necessidade de se “falar a língua do outro”, ou seja, de
assumir a responsabilidade por se fazer entender. Para as pessoas na empresa-nova, foi
também o caso de aprender a “falar a língua” da empresa-mãe:
... [a empresa-nova precisa] fazer ... uma quantidade de pequenas coisas que sejam vistas como
sendo bem-sucedidas, e que tragam fé ao pessoal da [empresa-mãe] ... [alguns] gerentes com mais
tempo de casa entendem o mundo dos recém-formados de alto potencial [refere-se ao mundo das
empresas ditas ponto-com]. [Porém] a maior parte deles não deixou de ser operadores de [plantas
da indústria de processo contínuo], e não entende esse mundo ... Então na medida em que a
[empresa-nova] faça coisas que as pessoas aqui possam entender, pequeno, risco baixo, sucesso
grande, isso lhes dará mais espaço ... eu acho que alguns dos projetos que se encaixam nos espaços
em branco entre o que a Internet promete fazer e os negócios clássicos, se nós pudéssemos fazê-los
funcionar, isso deixaria as pessoas mais confortáveis porque isso seria sentido como uma investida
exploratória, e ainda que nós falemos a respeito do desbravamento em negócios, eu penso que nós
não fazemos a menor idéia do que isso realmente significa. Eu acho que há um fator de conforto
real. Nós somos comandados por engenheiros no topo da companhia. (profissional de RH dos
quadros da empresa-mãe)
Ficam também patentes as restrições (em termos do horizonte de possibilidades)
devidas às limitações intrínsecas às visões de mundo que são conformadas por uma
tradição específica (no caso, uma tradição gerencial de origem técnica, em uma
companhia do segmento da indústria de processo contínuo).
(37) A atividade de “falar a língua” da empresa-mãe era vista como primordial pelo
comando da empresa-nova – e esta foi a principal razão para a sua hipertrofia...
... [há] um engajamento muito pesado com outras partes da [empresa-mãe] por parte de pessoas da
equipe de gerenciamento da [empresa-nova]. Então cada um de nós tem a responsabilidade pela
administração de interesses, de volta na [empresa-mãe] mais ampla ... a razão pela qual esse papel
continua a existir ... tem muito a ver com a coordenação do ... gerenciamento interno de interesses.
Isso é crítico para um empreendimento novato como o nosso, que poderia ser espremido e poderia
desaparecer. Então é necessário para nós brigar acima das nossas forças e comunicar como o
diabo, sem irritar as outras partes da organização ... nós gerenciamos envolvendo essa equipe da
[direção da empresa-nova] na lida com a [empresa-mãe] mais ampla. (executivo responsável pela
empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
212
(38) ... a ponto do tamanho da equipe de comando ter, inadvertidamente, produzido um outro
problema de comunicação – uma sobrecarga de comunicação dentro de si própria...
Eu acho que o fluxo de comunicação tem a ver com liderança e gerenciamento. Tudo é sobre o seu
estilo de gerenciamento ... nossa equipe de executivos é em torno de sete ou oito, e nossa equipe
de gerentes são quinze. Agora, numa organização em que somos apenas setenta ao todo, eu
percebo que uma estrutura tão desproporcionalmente pesada no topo ... especialmente na nossa
organização, que é tão dinâmica ... você não consegue gerenciar ... com um consenso de quinze
pessoas. Você não consegue fazer isso. (executiva da empresa de participações corporativas,
oriunda da empresa-mãe)
(39) ... o que, somado à urgência para obtenção de resultados, gerou desencontros na equipe,
bem como uma percepção de escassez de contribuição relevante:
... é uma equipe razoavelmente grande ... numa companhia de oitenta e cinco pessoas, ter então dez
por cento da companhia de executivos, e você aí acrescenta mais outras, arredondando, dez
pessoas na equipe de gerentes. Então você está falando sobre em torno de um quarto da companhia
de uma forma ou outra em papéis de gerenciamento ... Esse é um percentual enorme. Então você
acrescenta pessoas que estão gerenciando projetos, que não foram mencionadas. Então você
provavelmente pega mais seis ou sete pessoas ... tentar alinhar um grupo grande desse tanto é
quase impossível. ... o empreendimento é então exposto a um painel de investimento em que
haverá com uma variedade de visões diferentes ... Existe um desejo de oferecer orientação, mas
muito freqüentemente a orientação se dá sob forma daquilo com o que as pessoas estão infelizes ao
invés de, “bem, se você mudar isto e mudar aquilo ... então essa será uma solução perfeita” ... se
a pessoas estão sendo solicitadas a contribuir, e elas são pessoas muito ocupadas, logo tem muita
coisa suspensa no ar, então não é surpreendente que a primeira rodada de contribuições, e a rodada
mais fácil de contribuições, seja de fato dizer, “bem, na verdade eu realmente não gosto disso, e
isto não funciona, e aquilo não funciona”. Um engajamento muito mais profundo porém mais
valioso é dizer, “bem, eu não gosto disso e disso e daquilo, mas eu tenho estado dedicando
reflexões sérias a respeito, e se você fizer isso, isso e isso, então isto vai ficar sensacional”. Há, de
longe, menos desse último e muito mais daquele primeiro no modo como nós estamos trabalhando
no momento, que é algo desconfortável ... Não existe aprofundamento nestas áreas para prover,
não apenas comentários, mas orientação a sério. (executivo responsável pela empresa-nova,
oriundo da empresa-mãe)
Auto-organização
Todas essas condicionantes ressaltam claramente a necessidade de tempo para que
alguma auto-organização possa ocorrer (em termos dos seus “resultados” emergentes
percebidos).
213
(40) Também para os profissionais das empresas-filha, o tempo necessário à construção de
consensos podia ser visto como um estorvo:
... é a constante reestruturação que está criando um bocado de confusão e de incerteza ... se você
tenta chegar ao consenso, todos eles terão seus próprios interesses de fundo ... então eles irão
brigar e brigar até que a coisa se torne aplicável ou adequada a seus próprios ambientes de
negócio, e às vezes isso não é alcançável, e aí, no processo de se fazer isso, vai levar dois anos
para se chegar a um acordo e dizer, o padrão é este, e até lá ele já pode ter se tornado obsoleto ...
Eu acho que, em termos do esforço, do dinheiro, do tempo, do esforço em alcançar um patamar
comum muito tênue, isso para mim pesa mais que todo o possível valor ou potencial que isso
possa trazer. Então é, como você dispende e o que você recebe de volta no final, e a proporção, é
apropriada? E para mim, você está dispendendo muito mais, porém o que você obtém é, quem
sabe, muito pouco, e às vezes você pensa, “esse esforço vale isso?” (profissional de TI de uma das
empresas-filha, oriunda da empresa-mãe)
(41) Não obstante, na empresa-nova a presença de desordem (ruído) sob forma de incerteza
pôde também ser vista como fator de estímulo à experimentação, ao aprendizado, e à
superação:
... realisticamente, nós estamos apenas seis meses à frente de alguns dos empreendimentos. Então,
algumas das coisas que nós estamos colocando no lugar, até certo ponto, nós estamos fazendo
coisas para nós mesmos simultaneamente ... A estrutura de organização vai provavelmente mudar
a cada seis meses, ou algo assim, e eu não tenho problemas com isso já que, se você olhar para a
[empresa-nova], nosso foco é a respeito da criação de novos negócios. (profissional de RH da
empresa-nova, contratada no mercado)
Bem, eu acho que nós temos tido problemas similares em todos os nossos projetos, para ser
perfeitamente honesto. Nós mesmos somos um empreendimento iniciante, [empresa-nova] é um
empreendimento novo e então eu acho que nós temos todos os problemas de sermos um
empreendimento novo criando empreendimentos novos. Então em relação aos problemas que
existem dentro do nosso empreendimento novo, há aí uma ressonância para, e com, os vários
outros empreendimentos que nós estamos tentando criar ... Existe uma visão em evolução sobre a
espécie de metodologia que nós deveríamos aplicar... (executivo responsável pela empresa-nova,
oriundo da empresa-mãe)
(42) A incerteza desempenhava um papel de indutora da abertura para a diversidade e para a
valorização do convívio com o “pensar diferente”, por sua vez requisitos para a
experimentação e o aprendizado (ou seja, para uma profícua auto-organização):
... esta é mesmo uma discussão em andamento ... conversando com eles, o que você precisa que
eles façam, no que eles estão de fato trabalhando, porque você precisa deles agora, por quanto
tempo ... Nesse tipo de processo de questionamento você está obtendo informação a respeito de
como a sua organização necessita mudar ... já que você está decidindo quanto a empreendimentos,
e quanto a quem tem decisões sobre o quê. Isto diz a você, se não estiver claro aonde reside a
autoridade para a tomada de decisão, quando que isso implica que você deva mudar. Então, devido
à natureza do negócio em que nós estamos, isso é mais em termos de você ficar constantemente
fazendo perguntas sobre “onde se encaixam os negócios?”, de um modo que isso encorajaria você
a dizer, “bem, agora é a hora em que eu preciso fazer outra mudança”. (profissional de RH da
empresa-nova, contratada no mercado)
214
(43) Os recém-chegados eram previamente alertados a não contar com certezas e seguranças
– este próprio procedimento correspondendo ao provimento de alguma segurança
mínima, relativo ao que eles não deveriam esperar contar com:
... parte do [programa] “Espírito da [empresa-nova]” é o que nós chamamos “assinatura”, que é
muito sobre ser explícito quanto ao trato, “é isto o que você pode esperar, é isto o que se espera de
você como retorno” ... e se você não estiver vendo alguma coisa por lá que você particularmente
valorize, algo assim como status ou hierarquia, então você precisa entender que isto não existe
dentro da [empresa-nova]. Então, está você realmente convencido de que você deveria vir? Porque
você irá encontrar essas lacunas, particularmente em termos de, se você está procurando por
clareza e direção, se você quer etapas bem claras do que está para acontecer depois, e se você não
consegue aprender a se virar sem elas, você não deveria entrar. (profissional de RH da empresanova, contratada no mercado)
(44) Uma atitude de aceitação da incerteza como algo inexorável (o que, ainda uma vez, é
necessariamente referido à subjetividade humana) estimulava a experimentação e o
aprendizado:
Nós estamos conjecturando sobre as tendências relativas à Internet, a partir da descoberta pelo
consumidor passando pela adoção, pela utilização, até os hábitos de consumo, mas esta ainda é
uma arena muito pouco testada, tudo está ainda nos estágios iniciais no mundo da Internet ... isso é
o mercado mudando porque as pessoas continuam experimentando, e existem sucessos e existem
fracassos, e então constantemente as pessoas estão esticando a corda para ver exatamente o que vai
funcionar. Então, às vezes é algo que ninguém sequer antecipou ... o mercado simplesmente
continua mudando. Ninguém realmente sabe, e coisas que ninguém espera que dêem retorno dão
retorno, e coisas que todo mundo espera que dêem retorno não dão retorno. (executivo de RH da
empresa-nova, contratado no mercado)
... você está trabalhando com aquelas que são as nossas melhores apostas nesse exato momento.
(profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
(45) Auto-organização pode, também, ser compreendida como a liberdade de ação para a
variedade (autonomia na ação das pessoas) pautada, ou balizada, pela redundância
necessária (um “sentido comum”, que também se faça presente nas pessoas).
Aparentemente, é isso o que se depreende do depoimento abaixo (não obstante poder a
autonomia ser também pautada ou balizada por mecanismos mais ou menos sutis de
controle):
... [inovação] é basicamente um problema de orçamento ou de dotação de fundos ... toda a questão
da [incubadora da empresa-nova] é pegar uma idéia completamente bruta e ver se você consegue
fazê-la funcionar. Então, a única restrição quanto a essas idéias é passar por esse processo de teste
de um modo suficientemente rigoroso, para que recebam os fundos de que necessitam para seguir
em frente. Se você vai além e, digamos, as pessoas querem fazer algo de uma maneira diferente,
mais uma vez, o único teste para uma pessoa é, “isso está nos fazendo progredir em termos de
215
valor?” Não há nada que impeça alguém de fazer algo diferente. Eu penso que seja simplesmente
em termos de, “isso faz sentido?” Então, é um ambiente bastante adulto, a um ponto de não se
fazer as coisas pelas coisas. Você faz as coisas porque você acredita genuinamente que elas farão
diferença... (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
(46) A aceitação e legitimação da incerteza favoreciam também uma percepção realista
quanto aos aspectos de oportunidade e de ameaça contidos em toda incerteza (papéis
construtivo e destrutivo do ruído):
... existe um monte de circunstâncias. Você deve retroceder a mais de um ano atrás, a Internet na
crista da onda, grandes altas de mercado, [empresa-mãe] não estava realizando tanto, alguém disse,
“vamos fazer alguma coisa”, e nós dissemos, “está certo, vamos fazer sim”. Confiança no
sistema, abundância de caixa. Ao mesmo tempo, uma preocupação ... “como diabos nós vamos
fazer crescer essa companhia?” ... “De onde nós vamos extrair esse crescimento?” Então nós
dissemos, “tudo bem, vamos tentar alguma coisa por aí”. Então eu penso que o ambiente macroeconômico e o ambiente interno de negócios foram favoráveis. Não são tão favoráveis agora, a
tecnologia está em baixa, as divisões de Internet em grandes corporações têm sido fechadas, há
depreciações significativas. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da
empresa-mãe)
... [no momento] eu não tenho os volumes imaginados ... Mas eu esperaria que, à medida que nos
mantenhamos bem-sucedidos, nós ficaremos maiores e maiores porque a vantagem da Internet é a
progressão em escala. Então nós podemos lançar um negócio na Austrália com sucesso, levar esse
negócio para os EUA ou o Reino Unido ... de todo modo, isso pode acontecer muito rapidamente.
(executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
(47) Havia mesmo alguma consciência a respeito da necessidade de se influenciar a evolução
do ambiente, rumo a uma co-evolução com ele...
... trata-se de continuar tocando isso e tentar sentir o que o consumidor vai comprar, e também o
outro lado é que tudo isso se trata, em essência, de retreinar o consumidor. (executivo de RH da
empresa-nova, contratado no mercado)
(48) Muito embora fosse também percebida a impossibilidade de que tal co-evolução
pudesse se dar por modos “controláveis”...
A tecnologia existe, mas um montão de oportunidades que foram identificadas no ano passado
dependiam da mudança maciça de comportamento dos consumidores, e isso foi totalmente
subestimado durante a era do ponto-com, e totalmente subestimado também durante o primeiro
ano e tanto de existência da [empresa-nova]. Existe uma noção de que, apenas porque uma solução
fantástica foi colocada em frente aos consumidores, ou consumidores em potencial, eles
começariam a utilizá-la. Como todos sabemos, esse não é o caso. A [empresa-filha A] requer dos
professores que mudem a maneira como ensinam. Agora nós podemos ver porque isso beneficiaria
os professores ... mas existe ainda todo um bando de professores que tiveram de fato que dispender
um tempo significativo para entender como eles poderiam integrar essa contribuição específica nas
suas contribuições cotidianas, para que de fato traga benefício, e os primeiros benefícios não vão
aparecer por ainda um bom tempo... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da
empresa-mãe)
216
(49) ... o que, por sua vez, aumentava a sensação de incerteza (conseqüentemente, de
insegurança):
Nós não podemos prever com nenhuma certeza qual será o nosso tamanho ou volume nos negócios
daqui a seis meses. Então, por exemplo, existem doze empreendimentos em vários estágios na
incubadora. Alguns deles vão fracassar, porque nós sabemos que provavelmente de quarenta a
cinqüenta por dento das coisas que entram na incubadora não vão sair na outra ponta, mas
simplesmente faz parte do portfólio, e da exposição ao risco que é intrínseca a esse negócio. Mas,
e é por isso que estamos aqui, nós esperamos que alguma parcela desses vá sair na outra ponta.
Agora, quais que irão sair, nós não sabemos. Quando? Nós não sabemos... (executivo de RH da
empresa-nova, contratado no mercado)
(50) Sob tamanha incerteza, inclinações controladoras da índole humana terminam por
sobressair. No depoimento que se segue, “pró-ativo” pode ser compreendido como
correspondendo a “capaz de controlar”, enquanto que “reativo” corresponderia a
posturas mais tendentes à auto-organização:
... isto provavelmente está ainda um bocado reativo, ao invés de pró-ativo ... nós esperamos até que
a evidência tenha chegado ao nível em que uma mudança precisa acontecer, ao invés de nos
sentarmos, e aí nós tiramos a nova estratégia para [ano] ... e nós anotamos como em uma agenda,
estas são todas as coisas que sentimos necessidade de fazer dentro de um ano no RH, mas nem
pensar que nós seremos fisicamente capazes de fazer todas elas. Então, você está constantemente
num malabarismo entre as coisas que são absolutamente críticas e as coisas que você pode esperar
até ficarem críticas antes de você mexer nelas ... você reage a algo quando é obrigado, ao invés de,
como em um negócio mais maduro, você poder contar com um processo mais estruturado de
revisão das coisas. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
(51) Por fim, frente à pressão por resultados no curto prazo, as próprias características do
empreendimento favorecedoras da auto-organização passaram a alvo de críticas:
... o que nós estamos propensos a fazer é tirar da incubadora todas essas pessoas multidisciplinares
e alocá-las nas suas áreas de excelência próprias, como o seu novo lar. Então, se elas são realmente
pessoas de finanças, nós vamos colocá-las no financeiro, se reportando ao gerente de finanças. As
pessoas de marketing, nós muito provavelmente teremos um executivo de marketing, e teremos
elas se reportando a ele. Então, a incubadora será apenas uma unidade de gerenciamento de
projetos ... Parte do problema das pessoas é que elas não têm um senso de identidade, por serem
apenas parte de um grande repositório de recursos... (executivo de RH da empresa-nova,
contratado no mercado)
(52) Enquanto que o desconforto proveniente da existência de erros (inerentes aos processos
de experimentação) acabou por concorrer para o desmantelamento das possibilidades de
aprendizagem (e, conseqüentemente, de inovação):
P – ... o funil está sendo usado agora de uma maneira diferente, ao invés de ter o [processo de
geração de novas idéias] totalmente aberto a cada idéia nova e fresca, e agora elas estão
217
tematizadas, o que de fato nos parecia uma maneira de reduzir a inovação, ao focar em demasia.
(entrevistadora)
R – Esse é sem dúvida o caso, mas de forma muito deliberada, porque a experiência da inovação, e
do sucesso da inovação, que estava acontecendo no ano passado quando a [empresa-nova] foi
criada, havia montanhas de idéias sendo geradas. Metade das idéias não deveria ter visto a luz do
dia ... como uma conseqüência da falta de experiência das pessoas que tocavam o sistema ... eles
não estavam experimentando idéias que já estavam de fato prontas ... e havia ainda ... dinheiro
sendo dado à investigação de oportunidades do mercado, e qual tecnologia poderia ser necessária,
e por aí vai. Então, um bocado de esforço desperdiçado, um bocado de dinheiro desperdiçado...
(executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
Autonomia, poder e controle
Resta ainda abordar as questões relativas ao poder e à sua contraparte, a autonomia, em
que se deve levar em conta uma inconsistência que tem se mostrado recorrente em
muitos discursos em Teoria das Organizações: costuma-se considerar não o poder como
aspecto danoso a ser atenuado, mas o controle508 – sem que se dê conta de que ambos
são completamente imbricados. Distinções conceituais entre poder e controle
correspondem, por exemplo em Filosofia, à distinção entre potência e ação, mas tratamse evidentemente de distinções muito sutis, em que não há qualquer “linha divisória” –
mas antes dois aspectos de uma mesma essência.
Por outro lado, diversos perspectivas abordam o poder de forma maniqueísta, em que as
organizações são divididas entre os “com” e os “sem poder”; não obstante, Foucault 509
asseverou que o poder encontra-se disperso por todos os níveis em parcelas
508
É quando surgem as idealizações em torno da noção de “liderança”, tomada como o exercício do poder sem (ou
com pouco) recurso ao controle. Os exercícios do poder e do controle podem ser dar por uma miríade de formas:
carisma, ascendência pessoal, reputação, persuasão argumentativa, influência social, coerção, imposição de sanções,
detenção de conhecimento, domínio de habilidades específicas, controle de recursos específicos, recurso a normas,
sedução, chantagem e outras. Com efeito, pode-se delinear um perfil de “liderança” lastreado numa combinação de
algumas dessas formas e na exclusão deliberada de outras; poucos são, no entanto, os trabalhos nesse sentido que
escapam à superficialidade, e que se pautam pelo necessário afastamento da normatividade institucional vigente no
sentido da maior isenção possível (que jamais poderá ser absoluta). Ver o capítulo 6 de MORGAN (1997 (1986)),
intitulado Interests, Conflicts, and Power: Organizations as Political Systems. Ver também BURRELL, Gibson,
MORGAN, Gareth. Sociological Paradigms and Organisational Analysis: Elements of the Sociology of Corporate
Life. London: Heinemann, 1979; DRUMMOND, Helga. Power and Involvement in Organizations: An Empirical
Examination of Etzioni’s Compliance Theory. Aldershot (Reino Unido): Ashgate, 1993; ALVESSON, Mats.
Communication, Power and Organization. Berlin: Walter de Gruyter, 1996; e CZARNIAWSKA-JOERGES,
Barbara. Exploring Complex Organizations: A Cultural Perspective. Newbury Park (Califórnia): Sage, 1992; (este
último, por um viés antropológico).
509
Michel Foucault (França; n. Paul-Michel Foucault; 1926-1984).
218
infinitesimais, cada qual com sua própria história e suas próprias táticas, compondo uma
cacofonia de práticas e situações sociais.510
Isto, evidentemente, não implica negar que, no interior dos arranjos sociais humanos,
toda distribuição de poder (conseqüentemente, de autonomia) é necessariamente
assimétrica; assim, o que é passível de ser considerado em cada caso é o quão favorável
(ou desfavorável) aos processos naturais de auto-organização se mostra a configuração
poder-autonomia, tal como existente.
(53) No caso da empresa-mãe, de cultura solidamente estabelecida ao longo de décadas (uma
tradição), pôde-se constatar ser essa cultura provedora de liberdade de ação, o que, no
âmbito da empresa-nova, era favoravelmente visto:
Se você sabe como usar a ambigüidade do sistema, e se você sabe como montar uma rede de
relacionamentos, então você tem muita liberdade. Assim, existe um bocado de pessoas na
organização que têm trabalhos um tanto quanto nebulosos, mas eles são ótimos pensadores, e a
organização os tolera de uma maneira que os meus empregadores anteriores diriam provavelmente,
“não, há um problema de problema de performance aqui”, e os expeliriam. Na medida em que
você cumpre com quaisquer tarefas, quaisquer objetivos que te forem dados, se você quiser
explorar outras coisas, a organização é razoavelmente tolerante quanto a isso, e claro, se ninguém
te disse, “não”, você pode continuar a trabalhar o assunto até que você consiga encontrar um jeito
de fazê-lo ser aprovado. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe)
(54) Na própria empresa-nova, os requisitos de flexibilidade inerentes à natureza da
atividade de incubação de novos negócios implicavam a necessidade por liberdade de
ação, vista como algo apreciado pelas pessoas:
... pessoas que são alocadas inicialmente a um projeto podem não necessariamente ser as melhores
pessoas para serem alocadas aos projetos, mas elas estão disponíveis e por isso elas tocam o
projeto, que é o que acontece em qualquer empreendimento iniciante. Você sabe, você tem cinco
pessoas e aí as cinco pessoas se vêem fazendo tudo, e não se incomodando muito a respeito de
especialização funcional. Mas isso faz parte da graça da coisa, que atrai um montão de gente para
cá. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
510
Ver Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975; e Microfisica del potere. Interventi
politici. Torino (Itália): Nuovo Politecnico Einaudi, 1977.
219
(55) A existência de autonomia suficiente, conjugada com uma identificação pessoal com as
atividades desempenhadas, pode conduzir à paixão, um estado de arrebatamento
emocional passível de acontecer também no trabalho, no âmbito individual de cada
subjetividade...
... talvez nós possamos tentar penetrar nesse mercado [país x, da empresa-filha A] pelos caminhos
da TI [tecnologias da informação] ... essa era uma idéia, e ela não saiu da [empresa-nova]. Eu me
senti tão arrebatada quanto a isso que eu disse, “eu vou cuidar disso”. Eu não tenho nada a ver
com a [empresa-filha A], eu estava ocupada, e eu simplesmente fiz. Eu reuni uma equipe e agora
nós temos três projetos no [país x]. Então, eu estou simplesmente dizendo que fazer isso é
realmente possível, mas requer pessoas que coloquem paixão por detrás disso e façam tudo ... nós
temos pessoas novas, você sabe, vinte e oito, elas diziam, “quando eu boto o olho nessa
companhia...”, e nós dizíamos, “pega o avião e vai, te vejo amanhã”. As pessoas são realmente
autorizadas por aqui, você simplesmente faz, e outras pessoas vêm aqui e ficam surpresas. Elas
supõem que, de início, quando você vem para o trabalho, você vai ficar atrás do computador. Nada
disso, pegue uma passagem e vá. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da
empresa-mãe)
(56) ... ou mesmo a um âmbito coletivo (social), como se depreende destre outro
depoimento:
... era muito desafiador ... Meus dias de trabalho, eles não tinham oito horas. Eles tinham quatorze,
e sábados, e domingos ... era como no velho oeste, “vamos nessa, pessoal”, e nós éramos uma
equipe. Era como uma grande família, trabalhando juntos por um grande projeto ... Bem, porque
uma vez que vocês estão por lá, e vocês estão batalhando juntos, e vocês têm todos esses desafios,
e vocês têm que agüentar as malditas linhas telefônicas que não funcionam, e vocês acabam super
cansados, e vocês saem para tomar uma cerveja todos juntos e por aí vai, você sabe, nós temos que
tocar isso adiante sim. Quando você começa a desenvolver essa paixão pelo projeto, você o
compreende, e você conhece ele pelo avesso ... quando você está completamente imerso nele, é
inevitável não realizá-lo ... também foi super difícil ficar vivendo num hotel semana após semana
após semana ... todos nós estávamos assobiando e chupando cana ao mesmo tempo ... tem sido
super, super intenso. Um pouco demais porque eu devo dizer que trabalhei até adoecer. Nós
trabalhamos tão pesado mas isso era inevitável, e essa é uma outra coisa, os [nativos do país x, da
empresa-filha A] trabalham tão pesado ... se você pedir e esperar que um europeu trabalhe o
mesmo número de horas, e com a carga de trabalho de um [nativo], eles vão te mandar ir para o
inferno. É impressionante. Então eu estava me sentindo compelida a trabalhar o mesmo número de
horas dos meus colegas, e no final eu estava tipo arrebentada ... Eu estava num país onde também
é super fácil ficar doente ... é um ambiente completamente diferente, e a comida, e tudo o mais ...
eu sinto orgulho disso ... é a paixão pelo projeto ... no final, como eu disse, nós todos acabamos
assobiando e chupando cana, porque eu também estava fazendo a parceirização, eu estava fazendo
as atividades de treinamento dos professores, eu estava, você sabe, trabalhando na preparação do
piloto ... isso foi ótimo, isso foi fantástico porque essa é, obviamente, a maneira de se aprender.
(especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado)
(57) As lacunas de formalismo na empresa-nova, mais que favorecer, impunham a
necessidade de iniciativa pela ação autônoma:
Eu fiquei bastante chocada quando eu me juntei. Eu sabia que a [empresa-nova] era bastante
nebulosa, e não tinha uma estrutura organizacional formal ... eu tinha imaginado que, por exemplo
... eu estaria em condições de solicitar para o RH um diagrama da organização. Isso não existe.
220
Então, ninguém pode me dar uma lista de, essas são as pessoas no RH, essas são as atribuições
delas, é assim que eles se reportam um aos outros, isso é quem decide o que. Essa coisa não existe
... isso roda sozinho num ambiente de redes de relacionamentos muito mais caótico do que eu tinha
me dado conta de cara ... Então, em termos de tomar decisões acerca dos empreendimentos ... até
certo ponto, eu posso fazer o que eu quiser. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no
mercado)
(58) Havia, no entanto, quem se manifestasse por menos liberdade de ação e mais controle:
... e sem uma clara cobrança de atribuições. Até onde vai a responsabilidade? Quem é responsável
por aquela idéia e, daqui a um ano, nós vamos olhar no olho de quem e dizer, “você concretizou
essa idéia?” Porque é tudo dividido, e gente trabalhando vinte por cento nisso e trinta por cento
naquilo ... eu acho que nós podemos assumir esse estilo de consultar as pessoas, desde que nós
tenhamos produzido lucros. Eu fico mais que feliz em proceder assim, mas até que nós tenhamos
provado à [empresa-mãe] que nós somos viáveis, sinto muito. (executiva da empresa de
participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(59) Contradições e dificuldades eram também reconhecidas pelo comando da empresa-nova
quanto ao exercício de suas funções precípuas:
O papel de todo mundo aqui [na direção da empresa-nova] não é um papel corporativo tradicional
... nós não temos um processo de gestão do conhecimento muito bom neste momento, em nenhuma
parte da organização... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
(60) Ao passo que os modos por que este poder era na prática exercido eram também alvo de
críticas:
Eu pessoalmente não acho que nós tenhamos suficiente talento de gerenciamento na [empresanova]. Eu não digo que nós não temos pessoas talentosas. Nós não temos é liderança de fato,
efetiva... (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(61) Com o que alguns chegaram mesmo a questionar a liberdade de ação com que o
comando da empresa-nova contava:
P – ... o que não está correto no momento em termos de gerenciamento? (entrevistadora)
R – ... Liderança e comunicação, e definição clara quanto a quais são os papéis deles [gerentes], e
as responsabilidades deles, e a cobrança quanto às atribuições deles. (profissional de TI de uma das
empresas-filha, oriunda da empresa-mãe)
221
(62) O objetivo precípuo da empresa-nova – a ampliação da base de negócios de uma
companhia do segmento da indústria de processo – foi gerador de expectativas quanto a
resultados, e quanto a produtos provenientes do empreendimento (independentemente
de qualquer eventual sucesso em seus objetivos colaterais, como a experimentação em
novas práticas de negócios e em novos processos de trabalho):
Nosso trato com a [empresa-mãe] é entregar uma determinada quantidade de valor, criar uma
determinada quantidade de valor ao longo de um determinado período de tempo. Nós fomos o
primeiro negócio dentro da [empresa-mãe] a fazer uso de gerenciamento baseado em valores como
o reporte financeiro. Então, nós estamos educando a matriz [empresa-mãe] em termos de, “é assim
que se faz, é assim que você calcula o valor do seu negócio, e observa o valor que está sendo
criado”. ... o único jeito de você conseguir fundos para isso é uma das coisas que nós temos que
fazer, que é mostrar que valor isso irá criar ... quando você está apresentando isso à matriz, você
está simplesmente agregando onze planos de negócios, cada qual criando diferentes quantidades de
valor, e dizendo, “é isto o que vai acontecer” ... no final das contas, nós simplesmente
conseguimos todos os fundos que nós pedimos ... da [empresa-mãe]. Assim, nós temos que estar
apresentando nossos dados de um modo com credibilidade suficiente para que eles acreditem que
há um mérito naquilo que nós dizemos que nós iremos estar fazendo, e no que nós tenhamos
entregue em contrapartida ao que nós dissemos que iríamos erguer até agora. Então ... até aqui,
tudo bem. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
Finanças é a maior área da [empresa-nova] porque é aonde o impacto dos processos de reporte do
grupo industrial ... é maior. Assim nós estamos sendo demandados ... a nos reportar como se nós
fôssemos um negócio operacional maduro ... e nós não somos, nós somos um empreendimento
iniciante. Mas nós estamos sendo tratados exatamente do mesmo jeito que um negócio maduro ...
de todo modo, fulana [responsável pelo financeiro na empresa-nova] ainda é obrigada a... a que
nós apliquemos exatamente os mesmos padrões da [empresa-mãe]. (executivo responsável pela
empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
... [empresa-mãe] tem um bocado de ... “prove para mim”, “prove porque eu deveria avançar
para a próxima etapa”. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe)
(63) Tamanhas expectativas fizeram da empresa-nova, desde o seu início, uma espécie de
corrida contra o relógio. Um traço comum a todos os depoimentos é a pressão por
resultados:
[Empresa-nova] está num estágio onde se sente que ela precisa demonstrar o seu profissionalismo.
Ela tem subsistido por dezoito meses, então há uma expectativa de que nós estejamos aplicando
uma parcimônia correta, e profissional, aos recursos que estão disponíveis para nós. Existe uma
pressão tremenda pela entrega de resultados. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo
da empresa-mãe)
... se nós entregarmos pelo menos um ou dois projetos que sejam levados em conta pelo restante da
organização [empresa-mãe] como sendo bem-sucedidos, e então ... eles têm alguma coisa para
oferecer, e por isso nós permitimos que eles consigam mais dinheiro, e permitimos que eles
cresçam, porque na minha opinião o que nós precisamos é de um sucesso inicial ... o estilo de
gerenciamento dele [o executivo-em-chefe da empresa-nova] é deixar todo mundo feliz, e eu acho
que não está na hora de deixar todo mundo feliz. É hora de se alcançar resultados ... [ele] é muito
bom ... [ele] vende filosofias. Bem, filosofia não te traz lucro. Então, você sabe, é melhor que você
222
tenha uma estória para contar ... Sim, isso é um experimento, mas tudo bem, você pode dizer, se a
coisa não está quebrada, essa pode ser a única oportunidade que você tem para concertá-la. Isso é o
que as pessoas também dizem. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da
empresa-mãe)
(64) Foi necessário tempo para que alguns percebessem que um sistema social complexo
como a empresa-nova comporta os seus próprios tempos (o seu ritmo próprio de autoorganização) para que possa emergir naturalmente o que, no senso comum, corresponde
a “resultados”:
... o que eu adoraria saber é se esses projetos irão dar retorno, porque no momento todos eles são
experimentos, e nós acreditamos que eles irão dar retorno, mas até que você coloque essa espécie
de coisas na frente dos consumidores você simplesmente não sabe, e pode ser que os consumidores
simplesmente as rejeitem por completo, ou as aceitem, desde que elas tenham certas coisas a mais
que custem tanto dinheiro que ela então não se torna tão lucrativa. Então eu acho que no momento
nós ainda estamos todos em um estado de acreditar nos projetos, mas não estando seguros que o
valor que nós esperamos que seja criado realmente será ... na verdade, com o passar do tempo, nós
descobrimos que não é possível entregar negócios muito rapidamente nesse ambiente, agora. Pode
ter sido há dois anos atrás, quando nós primeiramente concebemos isso. Certamente não é agora.
(executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
(65) Sob tais circunstâncias, as expectativas por resultados para a empresa-mãe levaram, no
interior da empresa-nova, a uma erosão da confiança em suas chances de sucesso:
Bem, o esquema [de remuneração] está aí, os números estão baixos, e se o pessoal não tem
segurança que estes lucros vão ser realizados, então para que ter um percentual nessa divisão?
Então, ele tem se mostrado não ser tão atrativo assim ... enquanto que, há um ano atrás, todo
mundo queria possuir participações, blá blá blá. (executiva da empresa de participações
corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(66) Tudo isso concorreu para uma redefinição da própria natureza da empresa-nova, com
um deslocamento de foco, com vistas a resultados rápidos – da ampliação do leque de
negócios por meio de uma permanente incubação, para uma consolidação daqueles
negócios já incubados:
... acreditou-se que as [empresas-filha] fossem capazes de entregar valor rapidamente. Com o
passar desse ano, o foco foi deslocado um pouco, em reconhecimento ao fato de que leva muito
mais tempo para se criar novos negócios a partir do nada do que havia sido imaginado há um ano
atrás ... haverá menos prestígio e menos dinheiro disponíveis ... para o próximo ano, e mais ênfase
na entrega dos empreendimentos existentes que estão no portfólio, que estão na linha de
produção... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
... ao passo que todas elas são plataformas de crescimento maravilhosas, e elas contêm todos os
jargões bacanas da moda, no final das contas nós somos tomadores de dinheiro na [empresa-mãe],
e não existe, penso eu, nenhum atalho para a lucratividade ... nós precisamos de sucessos, alguns
sucessos visíveis ... eu realmente acho que nós já temos plataformas de idéias suficientes ... alguma
hora, você tem que escolher. Ou bem você trabalha nos empreendimentos que você está
223
deslanchando, ou você está trabalhando na alimentação da incubadora, do funil. Quero dizer, você
não pode fazer os dois ... eu realmente acho que nós já temos uma linha de produção rica o
suficiente. Nossa fraqueza está na execução. Pegar uma idéia e dizer, daqui a um mês, isto é
alguma coisa ou não? É aí que está a nossa fraqueza. (executiva da empresa de participações
corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(67) De um modo deliberado, vieram a ser sacrificadas parcelas de flexibilidade e
experimentação (e, como decorrência, de aprendizado e inovação):
... [no que tange à incubadora da empresa-nova], acompanhar esta evolução organizacional ... nós
assumimos dividi-la em B2C [negócio-ao-consumidor (business-to-consumer)] e B2B [negócio-anegócio (business-to-business)], e no seu desaparecimento enquanto um departamento ... Agora,
essa foi exatamente a hora certa de se fazer isso? Bem, eu não sei ... este não é um experimento
controlado ... muito freqüentemente alguém morde a isca de rumar para a especialização um pouco
cedo demais, e em conseqüência perde alguns dos benefícios de flexibilidade ... há um ano e meio
atrás, a [empresa-nova] apenas queria que víssemos a nós mesmos como um projeto inovador,
como um grupo, e esse era o potencial para alguém vir se engajar nessa atividade, e por isso havia
o desejo de ser da [empresa-nova] ... A diferença com o passar desse ano é que não existe mais a
gana de tentar abraçar o mundo com as pernas em termos de inovação. Nós nos tornamos mais
objetivos em termos de identificar a estratégia que nós queremos perseguir, e os domínios em que
nós queremos operar. A conseqüência disto é que, inevitavelmente, nós queremos inovar em
menos áreas, e restringir a informação. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da
empresa-mãe)
(68) A geração de produtos foi tomada, desde o início do empreendimento, como um valor
em si, independentemente do grau de qualidade do processo que os gera. O
pragmatismo do agir racional orientado a objetivos (teleológico) pode ser constatado
neste depoimento:
... [imagine que] daqui a dois ou três anos nós tenhamos alavancado as habilidades coletivas e os
talentos de nossa organização, e tenhamos criado estes negócios. Assim, fazendo parte disso,
evidentemente estará a gestão de pessoas, fazendo parte disso evidentemente estará termos
estendido o relacionamento com o cliente, e fazendo parte disso estará termos alavancado as
tecnologias de conexão para se fazer essas coisas. Então, ter feito todas essas coisas não
necessariamente cria valor. No entanto a suposição é a de que, se você tiver criado valor em seu
aspecto de capital puramente humano, você fez essas coisas. Então, é numérico, mas chegar lá
implica que você tenha feito um montão de coisas. Assim, é como vencer a corrida, o que implica
que você provavelmente tenha praticado muito forte, que você tenha tomado cuidado com sua
dieta, que você tenha o equipamento correto, e que você tenha feito um montão de coisas. Nada
disso significa que você vai ganhar a corrida. Então, você não necessariamente quer medir
esforços. Então, você pode praticar mais pesado do que qualquer um, mas você ainda chega em
quinto. Chegar em primeiro, é esse o tipo da medida ... essa é basicamente a medição, nós
chegamos ou não em primeiro, por assim dizer. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no
mercado)
A empresa-nova sem dúvida foi, desde o seu início, concebida para conviver com (e
tomar partido da) incerteza – dessa forma tornada legítima. Mas, a quais incertezas (ou,
à qual “classe” de incerteza) isso diz respeito? Interpretamos que isso diga respeito
àquelas inerentes à natureza precípua do empreendimento: incertezas relacionadas à
224
evolução da tecnologia de informação, às expectativas dos consumidores quanto ao uso
da Internet, às especificidades das atividades de negócios pela Internet, e de incubação
de novos negócios.
Todavia, as razões para o prematuro encerramento do empreendimento dizem respeito
sobremaneira à mudança de percepção (a nível global) quanto às atividades tanto de
negócios pela Internet quanto de incubação de novos negócios, com o que o senso de
oportunidade que predominava ao final dos anos 90 cedeu lugar a uma atitude mais
cautelosa ou mesmo cética, a partir de meados de 2000.
Tais circunstâncias constituíram, portanto, uma outra classe de incerteza, imprevisível à
época da concepção do projeto. Mais: tratava-se agora de uma classe de incerteza que
afetava não somente os corações e mentes dentro da empresa-nova, mas também dentro
do comando da empresa-mãe – onde, evidentemente, não havia sido tornada legítima;
onde as expectativas quanto aos tempos de retorno do capital investido independiam do
que se passasse na empresa-nova; sobretudo, onde há poder e controle próprios,
efetivamente exercidos no sentido do encerramento do empreendimento bem antes dos
prazos inicialmente concebidos.
Resulta uma clara indicação: mesmo quando predispostas a aceitar a incerteza e a
dialogar com ela (como de fato era o caso), o advento de incertezas novas (imprevistas)
induz as pessoas a buscar refúgio – nas seguranças com que estão acostumadas a contar,
no aumento do controle, na impaciência quanto a suas expectativas, na mentalidade da
“resposta certa”.
(69) De diversos depoimentos pode-se depreender um tal padrão de reação, presentes nas
entrelinhas ou em atos falhos...
Mas uma boa idéia é uma boa idéia e uma má idéia é uma má idéia, e aplicar processos muito
robustos a uma má idéia não fará dessa má idéia uma boa idéia. (executivo responsável pela
empresa-nova, oriundo da empresa-mãe)
... não há sentido em se tentar chegar a mil por cento de precisão no planejamento do projeto...
(profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado)
225
Bem, eu tenho que te dizer ... O que eu quero dizer é que tudo mundo está ocupado, eu estou
extremamente ocupado ... se eles tiverem vinte minutos livres, pode haver algum assunto de
marketing, um projeto que esteja rolando em algum outro lugar que eles possam pegar pé.
(executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado)
P – Se você fosse explorar o futuro e ter certas perguntas respondidas ... quais seriam elas?
(entrevistadora)
R – Eu penso que uma provavelmente seria um vislumbre no mundo da Internet, e o que seriam os
comportamentos dos consumidores da Internet daqui a três a cinco anos ... o grande ponto de
interrogação para todo mundo nesta arena é, “como você monetiza a Internet?”
Eu acho que nós temos algumas pessoas que realmente não conseguem olhar para uma proposição
a partir de uma perspectiva estrita de negócios e dizer, sim ou não. ... Você sabe, incerteza é o que
mata. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
(70) ... ou mesmo de maneira mais explícita:
... então eu não posso simplesmente sair e dizer, “eu estou fazendo um projeto de pesquisa, me
diga o que você pensa, e daqui a dois meses, você sabe, daqui a dois meses eu dou retorno sobre
estes temas globais para os seus gerentes, e em algum momento de [ano] você irá ouvir falar
disso”, mas é tipo, eles [pessoal da empresa-mãe] querem saber o que vai estar diferente na
semana que vem. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe)
... há uma outra coisa que poderia ser a ruína dela [empresa-nova], ser vista como sendo caótica
demais. Nosso atual presidente e o atual diretor de [segmento de processo contínuo] são, para
mim, duas pessoas que gostam um bocado de controle ... eles fazem perguntas, “onde está o seu
planejamento de projeto? Qual será o seu próximo passo? O que você fará de diferente a partir de
segunda-feira, depois de você ter chegado em casa dessa reunião?” Um tipo muito linear de
pensadores ... assim, eu penso que ser vista como caótica, ou fora de controle, ou insegura de seus
resultados. (a mesma profissional de RH dos quadros da empresa-mãe)
... “como é que você faz, por que você fez desse jeito que você fez?” “Porque nós pensávamos que
essa fosse a melhor prática. Agora nós sabemos”. Então, não existe receita pronta, e eu acho que é
por isso que alguns gerentes mais antigos sentem-se expostos. Eles querem deter uma receita ...
Aquele livro ... eles dizem que eles querem torná-la [a atividade de participações corporativas]
mais como uma ciência, e eu acho que se nós tivermos sucesso em criar pelo menos a percepção
de que ela é uma ciência, a gerência tradicional e mais antiga vai se sentir melhor assim. Então,
eles entendem que existe um processo, que a coisa pode ser mensurada ... se isso é uma sensação
ilusória de segurança, é possível, mas eu realmente acho que pode haver algo nela que interesse, se
nós fizermos dela mais uma ciência do que uma arte. Eu penso que ela será mais bem aceita.
(executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe)
Isso é algo pessoal, tendo me juntado há três meses, para mim não ficou claro. Em termos do foco,
em termos da direção para dizer, “o seu foco é esse ou o seu foco é aquele”, eu de fato gostaria de
ver direções mais claras ... você simplesmente não consegue uma pista sobre quem está fazendo o
que, as atribuições e responsabilidades das pessoas, qual é a direção. Não existe sequer um
organograma que diga quem está sentado aonde, quem é responsável pelo que, que claramente
esteja definindo papéis e responsabilidades, e como eles se relacionam e como eles se reportam
entre si, ninguém sabe ... Se nós estamos tentando deslanchar novos empreendimentos, então eu
esperaria pelo menos contar com um bocado de suporte por parte da companhia, em termos de
suporte e condução de negócios, orientação, e eu não sinto que esteja obtendo muito disso ... Ser
claros quanto ao que e quem nós somos, e o que nós estamos tentando alcançar, e ter os processos
certos, ter o tipo certo de conhecimento especializado, gerenciamento forte, e recursos suficientes
para prover suporte aos empreendimentos. (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda
da empresa-mãe)
226
Conclusões
O estudo de caso apresentado exemplifica a aplicação prática da teoria proposta
(dinâmica gerativa), e concorre assim para uma demonstração desta teoria a mais
elucidativa possível, no sentido de promover sua correta apreensão de modo a facilitar o
trabalho de crítica pelos pares.
Procuramos, por meio do presente estudo de caso, deparar com constatações empíricas
que nos permitissem demonstrar a dinâmica gerativa concebida como originadora da
fenomenologia organizacional, objetivo que consideramos atingido.
O outro objetivo que almejamos foi o de pormenorizar o operar dessa dinâmica, para o
que as constatações empíricas havidas foram divididas em dois grupos:
1. Constatações relativas à dinâmica auto-organizante em si, gerativa da fenomenologia
organizacional; neste domínio, podemos mencionar:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
A caracterização da existência de diferentes classes de redundância (1, 43).
A resiliência de determinadas redundâncias (2, 51).
Processos de surgimento de novas redundâncias (2, 6, 41).
A produção de redundância a partir da variedade (19, 27, 41, 42).
A qualidade das interações como a chave para o aproveitamento da variedade (25,
29-33, 42).
Variedade como contradição e ambigüidade (24, 25, 29, 34, 35, 38, 39).
O sistema com um balanço entre redundância e variedade (26, 45).
A indução à produção de variedade por meio de experimentação (3, 10, 41).
A geração de variedade referenciada (seja positiva ou negativamente) nos modos de
redundância tais como existentes (4, 5, 7-9).
A indução à produção de variedade por sua importação (15, 22).
Espaços e limites à expressão da variedade (45, 53-58, 61).
Os tempos e ritmos próprios à auto-organização (40, 42, 48-50, 64, 66, 68).
2. Constatações relativas aos limites e as possibilidades para a apreensão, pelo
observador, dessa dinâmica gerativa; nesta esfera, pudemos registrar:
•
•
•
A necessidade por oxigenação de modos de redundância tidos por estagnados (3, 4,
10, 13, 14, 16).
A necessidade por referenciais de redundância (6, 17, 18, 40, 43, 51, 57, 59, 61).
As novas manifestações da variedade tomadas por ruído ou perturbação,
relativamente ao referencial (a redundância) existente (9, 10, 11, 36, 52).
227
•
•
•
•
•
•
Choques entre expectativa (desígnio de controle da evolução do sistema) e a
espontaneidade da auto-organização (12, 40, 46, 48, 50, 62-70).
Dificuldades em se dar conta da redundância existente (19).
Dificuldades em se dar conta da abrangência da variedade (23, 24, 28).
A legitimação da incerteza (44, 48, 49, 57, 64).
O diálogo para com a incerteza (47).
Os limites à legitimação da incerteza (58, 67-70).
Como conclusão-síntese, ter sido empiricamente constatada a essência do modus
operandi da dinâmica auto-organizante: o sistema permanentemente produz,
referenciado em si próprio, a sua própria identidade (redundância), pela qual torna-se
caracterizável como tal; para tanto, concorrem as perturbações ou ruído representados
pela expressão da variedade interna (as ações humanas), potencializada pela ocorrência
de mudanças externas (incerteza); ainda, o próprio processo de produção de novos
modos de redundância a partir da variedade é, ele mesmo, produtor também de novos
modos de variedade.
Em outras palavras, ordem e desordem são mutuamente produtoras uma da outra:
somente se renovam os modos de ordem em presença de desordens; somente concorrem
as desordens para a renovação da ordem se, de alguma forma, referenciadas nos modos
de ordem tais como existentes; e o processo de contínua renovação da ordem é, ele
mesmo, renovador também das desordens. O ideal taylorista da one best way, fulcro das
teorias das organizações historicamente predominantes, é em essência negador do ruído
(da desordem), e configura portanto apoio em falso para a teorização organizacional.
É ainda significativo assinalar a perspectiva da gestão como atuação na dinâmica autoorganizante geradora dos fenômenos organizacionais: é a partir de uma adequada
compreensão dessa dinâmica que os agentes de gestão podem procurar influenciar
variáveis críticas nos processos que a constituem, como por exemplo o ritmo de
expansão de variedade (seja por indução ou importação), de modo a que este não seja
tão lento que não logre vencer as inércias estruturais do sistema nem tão acelerado que
venha a desestruturá-lo – para o que deverão estar também cientes de que a evolução de
uma tal variável acarreta efeitos significativos ao âmbito individual, posto que cada
pessoa reage ao novo de modo próprio e individualizado.
228
Do estudo de caso apresentado (e expresso de forma contundente em sua parte final),
nossa conclusão mais significativa é a de que a transição rumo a um novo paradigma de
gestão, como o que viemos aqui propor, consiste muito mais em uma transição de
cultura (transição de valores: oxigenação da tradição) que em uma mera adoção de mais
um novo aporte de conhecimentos técnicos. Dedicaremos todo o próximo capítulo a
considerar algumas direções nesse sentido.
Cabe uma última consideração: o estudo de caso deve ter dado a perceber ao leitor que o
volume de transcrições de entrevistas é significativamente maior que o volume de
análise oferecido (que conforma, mais propriamente, um fio condutor). Ora, uma vez
que a dinâmica gerativa da fenomenologia organizacional tenha sido apreendida pelo
observador desta fenomenologia (neste caso, por intermédio da leitura do estudo de
caso), esta dinâmica, se de fato operacional, acabará por consumar-se na mente desse
observador de uma forma intuitiva, e não apenas analítica ou reflexiva. Dizer “a
realidade fala por si” seria funcionalista; digamos, então: “a realidade se deixa
interpretar por si”.
229
7. Por uma nova Teoria das Organizações
Como vimos ao longo do primeiro capítulo, a mentalidade da one best way – seja para a
execução da tarefa (Taylor), para o comportamento social no ambiente de trabalho
(Escola das Relações Humanas), para a modelagem do fluxo de informações (ERP) ou
para a (des)regulação dos mercados (teoria dos custos de transação), expressa a índole
funcionalista da Administração como racionalização, em que a tradição que lhe dá
origem (a ocidental, mais particularmente a anglo-saxã) opera como referencial
universal – e se trata aqui de uma tradição em que o status quo não é tomado por
viabilidade histórica, mas por destino.
Frente às recorrentes complexidades, a resposta desse paradigma continua a ser, sempre,
mais do mesmo: rotinas, tecnologia, contratos.511 Aplicada a receita, as incertezas que
porventura lhe escapem conformam, cada vez mais, substância, e, cada vez menos,
resíduo. Para tratá-las, indivíduos que sobressaem por sua peculiar aptidão à decisão
rápida e intuitiva, e pelo talento (ou sorte, ou ambos) de tomar decisões que terminem
por se mostrar adequadas, são filtrados para cargos de altos executivos com salários não
menos altos, em cujas mãos será depositado o destino de muitos, acionistas e
trabalhadores, conquanto dêem conta de devotar lealdade à organização e de agir
estrategicamente em relação a tudo o mais, e até que, eles também, acabem tragados
pelas caprichosas reviravoltas da mudança.
O esgotamento desse paradigma revela-se patente não apenas perante suas finalidades
precípuas, mas também por seus efeitos colaterais: a degradação da Natureza, a perda de
referenciais, a corrosão de valores, a exacerbação do individualismo, a desigualdade de
condições de vida e de oportunidades, a angústia, o stress etc. – efeitos colaterais que
acabam por conformar, também eles, novas complexidades a serem enfrentadas.
Uma superação desse paradigma, sem prejuízo da retenção de suas contribuições
válidas, principia em assinalar suas inconsistências e deficiências de fundo, ao que
passaremos agora.
511
Remeter à p. 24.
230
Teoria da cooperação
Uma dessas inconsistências é o modo como se compreende a relação entre indivíduo e
organização. Como vimos, a concertação implícita entre organização e indivíduos
preconizada pela corrente do equilíbrio organizacional 512 veio a ter explicitado seu
caráter de contrato por ocasião da teoria dos custos de transação,513 e foi finalmente
convertida em contratos propriamente ditos (sejam de valor jurídico ou simbólico) pelos
mecanismos ditos “de governança”.514
Tais perspectivas implicam uma redução da conjugação indivíduo-organização (em
prejuízo de todo um potencial de engajamento humano em atividades que comportem
significado de vida) a um contrato entre partes com interesses próprios; numa visão
crua, à regulação de uma barganha. Esse pensamento principia na percepção que se
constrói quanto ao indivíduo: ao invés de se considerar os seres humanos como
automotivados por natureza – desde que possam contar com espaço para expressão de
suas individualidades singulares – os modos funcionais de comportamento
organizacional acabam tomados como se correspondessem à natureza humana mesma,
com o que o conceito de motivação se converte em instrumento de controle e repressão
das energias psíquicas naturais das pessoas.515 De acordo como Guerreiro Ramos:516
... a maior parte daquilo que é usualmente chamado teoria das organizações carece de rigor
científico ... tal pensamento toma por seu valor de vitrine os critérios inerentes às organizações.
Trata-se de um subproduto dos próprios processos organizacionais. Consideram-se normais e
naturais os requisitos organizacionais tais como, casualmente, estes se encontram, em
sobreposição à conduta humana de um modo geral.517
Guerreiro Ramos chega mesmo a repudiar a noção de um comportamento humano: ao
contrário da ação autônoma, qualquer comportamento é sempre externamente
512
513
Mencionada à p. 14.
Mencionada à p. Erro! Indicador não definido..
514
Mencionados à p. 25. Para uma perspectiva contemporânea ver, por exemplo, SUNDER, Shyam. Theory of
Accounting and Control. Cincinnati (Ohio): SouthWestern College Publishing, 1997.
515
516
517
Cf. RAMOS, 1981: 70.
Alberto Guerreiro Ramos (EUA; n. Brasil; 1915-1982).
Ibid., p. 44.
231
referenciado, ou seja, ele expressa a satisfação de expectativas, exteriores ao indivíduo,
quanto a suas atitudes; apenas o homem manipulável se comporta, o homem senhor de
si age. Observa ele, com propriedade, que o termo “comportamento” apareceu no
Ocidente somente por volta do século XV, como expressão de conformidade a ordens e
costumes ditados por conveniências sociais; desde então, a exceção foi tornada regra: a
conformidade a normas socialmente estabelecidas encontra-se convertida em padrão
moral geral para a conduta humana.518
Essas perspectivas reducionistas quanto ao indivíduo se fazem acompanhar por leituras
estereotipadas da organização, desprovidas de uma compreensão quanto a que indivíduo
e organização constituem domínios fenomenológicos distintos. Com efeito, o equívoco
de se postular uma relação direta indivíduo-organização perpassa toda a Teoria das
Organizações, em que, por variadas formas, uma tal relação corresponde a uma
identificação por projeção, os “interesses” e as “necessidades” da organização
propalados como se interesses e necessidades de natureza humana fossem. No limite,
pode-se mesmo chegar a uma personificação explícita da organização,519 como em
Rush:520
O “sistema vivo” de uma organização é considerado como uma versão expandida do homem.
Acredita-se ser a organização dotada, em uma escala maior, de todas as qualidades de um
indivíduo, inclusive crenças, modos de comportamento, objetivos, personalidade, e motivações.521
Não resta dúvida quanto a que o que Taylor considerou mera convergência de interesses
pecuniários encontra-se convertido, desde a Escola das Relações Humanas, em uma
“teoria da cooperação”. Contudo, uma tal cooperação deveria ser considerada nos
termos de uma relação entre dissimilares: os indivíduos e a organização situam-se em
dois níveis de realidade distintos, ainda que acoplados; qualquer “comunicação” entre
eles é necessariamente indireta.
Qualquer realidade para a instância “organização” reside nos consensos a seu respeito
construídos e renovados na linguagem, no âmbito de toda uma sociedade. Expresso de
518
519
520
521
Cf. ibid., p. 45.
Cf. ibid., p. 68.
Harold M. F. Rush (EUA).
RUSH, 1969: 8.
232
outro modo, a organização participa, conosco, de um mesmo nível de realidade –
embora não diretamente com cada um de nós.
Ou ainda: a organização tem existência real, porém não no nível imediato do indivíduo;
neste, o que existe são outros indivíduos, alguns dos quais vistos como “encarnações”
da organização: supervisores, gerentes, executivos. Com efeito, é somente a totalidade
das interações entre esses e outros indivíduos (empregados, clientes, fornecedores,
revendedores, consumidores etc.) que confere realidade à organização.
Portanto, carece de sentido qualquer “teoria da cooperação” entre indivíduo e
organização; necessário é o desenvolvimento de uma verdadeira teoria da cooperação
entre pessoas, em que a organização seja percebida como uma realidade correlata, não
imediata.
Segue-se ainda que fomentar a “cooperação” entre indivíduo e organização se traduz, na
prática, em forma de fomento à qualidade para as interações humanas.
Tampouco este se trata de um raciocínio novo: já Dejours522 identificara duas linhas
clássicas em Teoria das Organizações, ambas voltadas à regulação do que ele denomina
“fator humano” (o papel desempenhado pelos indivíduos no concurso dos objetivos
organizacionais), e ambas em processo de esgotamento.
Uma, que se origina em Taylor, é derivada das ciências tecnológicas (como a
Engenharia, a Ergonomia, as tecnologias de informação e a vertente ortodoxa das
ciências cognitivas), e orientada a métodos, padrões, procedimentos, tempos e
movimentos, e tarefas. O fator humano é compreendido como sujeito a falhas, e as
abordagens nesta linha buscam controlá-las, preveni-las ou mesmo erradicá-las.
A outra, que se origina em Mayo, corresponde ao que genericamente se denomina
Administração, é derivada das ciências sociais (notadamente a psicologia social) e
orientada à cultura, valores, normas, clima e processos. O fator humano é visto como
522
DEJOURS, 1999 (1995). Christophe Dejours (França; 1949–).
233
um recurso, e nesta linha os enfoques são voltados a motivar, desenvolver e gerenciar
os assim chamados “recursos humanos”.
Dejours então indica precisamente aquele que para nós é o ponto central: propõe ele um
deslocamento do objeto de estudo, do comportamento e desempenho individuais para as
interações entre os indivíduos, posto que é na qualidade dessas interações, bem como na
perspectiva de conjugação da diversidade que ela abre, que reside o fator-chave para o
sucesso da articulação indivíduo-organização – para uma verdadeira “teoria da
cooperação”:
Ligar a noção de fator humano à noção de cooperação é indicar que a dimensão que
sobredetermina o fator humano é de ordem sociológica, estando os outros dois componentes,
fisiológico e psicológico, em posição secundária. ... A cooperação ... constitui ... o nível humano
de integração das diferenças entre as pessoas, e funciona precisamente como articulação dos
talentos específicos de cada sujeito. ... a cooperação é, no seu conjunto, muito mal-estudada.
Avaliar o fator humano é avaliar a qualidade ... dos coletivos de trabalho ... Mas as análises
convencionais do fator humano ... permanecem na análise das condutas individuais, o que é
insuficiente.523
Teoria do conhecimento
A desconsideração da individualidade e subjetividade humanas, desde a Escola das
Relações Humanas reduzidas a meios subordinados a fins, que é característica do
paradigma dominante em Teoria das Organizações, acarreta a mais crítica dentre suas
inconsistências: a ausência, em plena “sociedade do conhecimento”, de uma
compreensão adequada do que sejam o conhecimento e seu processo gerador, a
cognição. É simplesmente suposto que a realidade seja a mesma para todos, logo o
conhecimento que reside dentro das pessoas se dá pela captação e processamento de
informações oriundas da realidade, e na elaboração de uma representação desta. É assim
possível falar-se em um “bom” ou “mau” conhecimento, de acordo com seu grau de
fidedignidade para com a realidade, bem como em um conhecimento “correto” ou
“válido”, resultante de processos de confrontação (melhor, seleção natural) entre
conhecimentos concorrentes – ainda uma vez, a one best way.
523
Ibid., pp. 93-94.
234
Como vimos, o aumento da complexidade nos mercados converge para uma crescente
necessidade de tomada de micro-decisões pelos trabalhadores, para junto das desde
sempre legitimadas macro- e meso-decisões.524 A chave para a compreensão dessa
transição reside no enorme aumento havido no valor do trabalho sobre a informação,
relativamente à variação do valor do trabalho sobre a matéria, ou sobre a energia525 (foi
esta, evidentemente, a principal razão para a adoção em larga escala das tecnologias de
informação nas organizações).
Estas tecnologias, como já se pode constatar, mostram-se insuficientes para conter a
expansão das micro-complexidades cotidianas, com o que adveio uma mudança de
discurso, em que se destaca a transição da chamada “sociedade da informação” para
uma “sociedade do conhecimento”. Na prática, porém, a resposta oferecida pelo novo
campo denominado gestão do conhecimento foi, mais uma vez, racionalização, mera
correção de rumos no emprego das tecnologias de informação com o intento de
organizar o conhecimento (compilar, tratar, classificar, padronizar, armazenar,
recuperar, disponibilizar, disseminar etc.) com vistas a controlá-lo.526 De um modo
geral, considera-se que a produção de conhecimento compreenda um processo de
transformação da informação (ou seja, o conhecimento como um estágio “mais
avançado” ou “enriquecido” da informação), o que se encontra expresso pelo emprego
de termos como “conhecimento explícito” (formalizado, logo tomado por validado) e
“conhecimento tácito” (não-formalizado, logo ainda não-validado).
Já pudemos nos referir aqui aos processos históricos que levaram ao advento do
conceito abstrato de informação (na primeira metade do século XX), à sua consolidação
(com Shannon: informação como grandeza mensurável), e à sua ulterior reificação (a
reboque da ubiqüidade do computador), com a informação tornada componente mesmo
da realidade.527 Acabou “natural” que conhecimento – um tema milenar da humanidade
– viesse a ser compreendido nos termos empiricamente manipuláveis da informação.
524
Remeter à p. 25.
525
Cf. VALLE, 2005: 98. Ver também MARQUES, Ivan da C. O Brasil e a Abertura dos Mercados: O Trabalho em
Questão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.
526
Cf. BAUER, 2002: 34.
527
Remeter às pp. 30, 35, 109-110, 135-136. Ver também ROSENBERG, Victor. “The Scientific Premises of
Information Science”. Journal of the American Society for Information Science and Technology, vol. 25, n. 4, pp.
263-269, 1974.
235
Nem toda informação seria conhecimento, boa parte é tão somente dados brutos (como
séries de números); mas livros, documentos, bases de dados em computadores puderam
ser vistos como “conhecimento formatado” – como informação.528
A partir da década de 60, a empreitada da inteligência artificial 529 despontou como o
sonho de computação de todo e qualquer conhecimento; aos poucos, no entanto, se foi
dando conta da existência de um tipo peculiar de conhecimento que se mostrava
“resistente” à formalização, por se encontrar introjetado no indivíduo e imbricado à sua
trajetória pessoal de vivências, crenças e sentimentos. Ainda nessa mesma década de 60
(com Polanyi),530 este passa a ser considerado conhecimento tácito;531 por contraposição,
todo o restante, todo o conhecimento passível de formalização passa a ser considerado
conhecimento explícito. Entrementes, a inteligência artificial assumia a roupagem dos
sistemas especialistas,532 concebidos para reter o conhecimento de profissionais
especialistas na solução de problemas complexos e, tal como eles, resolvendo-os melhor
à medida que mais problemas são resolvidos, ou seja, aprendendo – “robôs de
conhecimento tácito”; malgrado as fortunas investidas, tais iniciativas resultaram quase
sempre em frustração.533 Ainda hoje, sob o guarda-chuva genérico de “gestão do
conhecimento”, prosseguem os esforços para formalização dos conhecimentos vistos
como tácitos, em mais uma racionalização fundada em uma compreensão particular
(histórica), tida como única, quanto ao que seja o fenômeno da cognição.
Ora, como vimos, nas ciências cognitivas contemporâneas a cognição passa a ser vista
como um fenômeno emergente ao invés de pré-dado que, a um só tempo, é tanto
determinado pela dinâmica das interações entre os neurônios em uma rede complexa
como a determina.534 Esta perspectiva para o clássico problema mente-corpo caminha
528
529
530
Cf. BAUER, 2002: 33.
Mencionada às pp. 60-61.
Michael Polanyi (Inglaterra; n. Mihály Polányi, Hungria (Áustria-Hungria); 1891-1976).
531
Polanyi concebe as bases para uma compreensão do conhecimento de natureza tácita em Personal Knowledge:
Towards a Post-critical Philosophy. Chicago (Illinois): University of Chicago Press, 1958; e ele formaliza esse
conceito em The Tacit Dimension. Garden City (Nova Iorque): Doubleday, 1966.
532
533
Mencionados à p. 62.
Ver DUTTA, op. cit. (nota 201, à p. 62), 1997; e McDERMOTT, loc. cit., 1999.
534
Para uma compreensão mais aprofundada da perspectiva fenomenológica contemporânea nas ciências cognitivas
quanto ao fenômeno da cognição, ver ROY et alii (1999).
236
para superar tanto os reducionismos que subordinam o todo às partes quanto os
substancialismos que subordinam as partes ao todo: das partes para o todo e vice-versa
não caberia qualquer causalidade unidirecional, só o que pode haver é alguma
“causalidade de acoplamento”. Assim, o que se entende por sujeito não pode mais ser
compreendido como pré-dado, mas antes corresponde às propriedades (entendidas como
subjetividade) manifestadas por uma rede complexa (um coletivo) – em outras palavras,
o sujeito seria antes um processo que um produto.
Estamos cientes que, quando Nonaka propõe seu conhecido modelo dual tácito-explícito
de gestão do conhecimento,535 sua intenção é comunicar ao Ocidente – onde o
conhecimento explícito tende a ser visto como patrimônio e o tácito como estorvo – o
valor que no Japão se confere a este último. Não há dúvida quanto a que alguma
identidade para com a tradição (no caso, orientada ao explícito) a que se fala favorece,
em muito, a receptividade de um discurso expressivo de uma outra tradição; com efeito,
Nonaka é hoje o mais influente nome da escola japonesa de gestão nos meios
ocidentais. Entendemos, porém, que é chegado o momento de sepultar de vez a idéia de
que o conhecimento possa ser dotado de uma natureza explícita (objetiva).
Mais uma vez lastreados na teoria da autopoiesis, afirmamos536 que tudo a que se chama
conhecimento explícito (livros, documentos, bases de dados em computadores etc.) é
tão somente informação (ou dados) – é “ambiente” para o conhecedor. Pode-se, nesse
ambiente, distinguir o que são “dados” do que é “informação” por meio de algum
critério de relevância – desde que se trate de critério atinente à individualidade singular
do conhecedor, que chamará “informação” aos elementos de seu ambiente que sejam,
para ele, portadores de significado.
535
Em que a geração de conhecimento explícito a partir do tácito se dá por um processo de externalização; de tácito
a partir do explícito, por um processo de internalização; de tácito a partir do tácito, socialização; e de explícito a
partir do explícito, combinação. Ver “A Dynamic Theory of Organizational Knowledge Creation”. Organization
Science, vol. 5, n. 1, pp. 14-37, 1994; bem como obras posteriores.
536
Cf. BAUER, 2002.
237
Já conhecimento tácito é, tão somente, conhecimento. Afirmamos não haver
conhecimento que não seja “tácito”, com o que esta adjetivação se torna pleonasmo, e
portanto dispensável.537
De modo mais detalhado: de acordo com a visão funcionalista tradicional, pode-se falar
na extração de conhecimento “de dentro para fora” das pessoas (por exemplo, a
preparação de um livro, ou de uma mensagem de correio eletrônico) e na absorção de
conhecimento “de fora para dentro” (por exemplo, a leitura desse livro ou dessa
mensagem). Porém, de acordo com a visão fenomenológica em ascensão que
esposamos, o conhecimento não é um conteúdo universal mas particular. A realidade,
ainda que seja única, não tem como ser a mesma para todos. A cognição é um processo
vital de construção de uma realidade individualizada, ainda que socialmente compatível
com as demais.
Assim, o conhecimento resultante da leitura de um livro ou de uma mensagem de
correio eletrônico por diferentes pessoas não tem como ser o mesmo, nem tampouco
algo que convirja, por confrontação, a um conhecimento “fidedigno” à realidade. E
intermediários – a linguagem natural, livros, ou tecnologias do tipo CSCW (computer
supported collaborative work) – são mediadores semânticos entre pessoas para
estimulação de seus processos vitais cognitivos, mas não são “portadores” dos
conhecimentos delas.538 Todo conhecimento reside dentro das pessoas, todo
conhecimento é do tipo a que se costumou denominar “tácito”.
Portanto, qualquer gestão do conhecimento é, inerentemente, uma gestão da
complexidade. Há assim tanto sentido na expressão “gestão do conhecimento” quanto
em se falar em uma gestão da incerteza ou da desordem (uma “gestão” daquilo que se
desconhece – uma gestão da diversidade humana).
537
A partir da década de 90, outros autores (alguns também referenciados na teoria da autopoiesis) têm chegado a
conclusões correlatas com nuances próprias; ver, por exemplo, von KROGH, Georg, ROOS, Johan. Organizational
Epistemology. Houndmills (Reino Unido): MacMillan, 1995. A título de outra referência para compreensão de
“conhecimento” e “informação” com base na teoria da autopoiesis, ver ZELENY, Milan. “Knowledge versus
Information”. In: ZELENY (ed.). The IEBM Handbook of Information Technology in Business. London: International
Thomson Business Press, pp. 162-168, 2000.
538
Cf. BAUER, 2002: 35.
238
No que toca à Teoria das Organizações, auferir proveito dos potenciais presentes na
diversidade humana significa buscar não mais a redução, mas o aproveitamento da
complexidade interna às organizações. Trata-se de transcender um paradoxo até então
despercebido: a complexidade externa (ambiente de mercado) vem cada vez mais sendo
tomada como irredutível, e é portanto aceita (ainda que a contragosto); já a
complexidade interna (diversidade humana) ainda é vista como confinável a limites, o
que na prática vem sendo levado a cabo precisamente... às expensas do potencial para
um acompanhamento da complexidade externa, ou seja, para uma co-evolução com o
ambiente.
A todo momento, surgem fatos novos no ambiente – em que o novo é, por definição,
incerto (leia-se desordem). Pela perspectiva tradicional, busca-se uma resolução dessa
incerteza por sua confrontação com os referenciais preexistentes, em um processo
cumulativo de identificação de regularidades, e orientado à solução de problemas. Há
(crescentes) riscos: problemas novos poderão ser considerados por perspectivas já
cristalizadas, idéias não diretamente associadas ao negócio poderão ser descartadas,
clientes que pedem outros tipos de serviços que não os oferecidos poderão ser
ignorados, tecnologias não identificadas com as práticas correntes da empresa poderão
não despertar interesse etc.
Já por uma perspectiva em que a diversidade seja vista como recurso, é aceito que as
informações oriundas do ambiente (novidade) sejam interpretadas de forma diferente
por diferentes pessoas, e que isso acarrete ambigüidade, contradição e conflito
(desordem), o que desencadeia um processo potencialmente construtivo que propicia
uma definição de problemas.
De outro modo: tornam-se aceitas e legitimadas a ambigüidade e contradição inerentes à
condição humana, e o conflito (que comporta aspectos tanto destrutivos como
construtivos) inerente à condição social. Por meio dos mediadores semânticos
disponíveis – o de maior qualidade a linguagem natural no contato face-a-face, o de
maior alcance as tecnologias CSCW (que requerem proficiência na primeira para seu
239
bom aproveitamento o que, apesar de óbvio, está longe de ser a norma)539 – os processos
vitais de cognição das pessoas são mutuamente estimulados de um modo recorrente
(interpretações das interpretações), o que por sua vez faz emergir significados
compartilhados na linguagem. Emergência por meio das interações entre elementos em
rede com aproveitamento de desordens: auto-organização.
Um senso estratégico comum é também algo que pode ou ser induzido pelos dirigentes
com o concurso de especialistas ou emergir como construção e renovação coletivas de
significados compartilhados. O caminho a ser cursado advém da perspectiva por que são
compreendidas noções como identidade, cultura e propósito organizacionais, e ambiente
de mercado (clientes, concorrentes, tecnologias, legislação, meio ambiente etc.). Uma
perspectiva em que se tome o conhecimento da realidade por objetivo conduz: à
compreensão de uma natureza descritiva para o conhecimento; à sua padronização (one
best way) como o ideal a ser perseguido (daí a ênfase nas tecnologias de informação);
por extensão, a uma busca por padronização também para os modos de ação; à
organização como um somatório dos desempenhos individuais; ao papel dos gerentes
como provedores de organização e controle para o conhecimento. Em suma, trata-se da
redução da complexidade interna. Já uma perspectiva em que se considere a cognição da
realidade como processo vital autônomo, e o fenômeno social como a emergência de
significados compartilhados por meio de interações recorrentes na linguagem, permite
compreender a natureza construtiva do conhecimento,540 a organização como dinâmica
social, e o papel dos gerentes como fomentadores de um padrão de interação social o
mais propício possível – trata-se agora do aproveitamento da complexidade interna.
Sem dúvida que uma tal transição não é tarefa simples. A nosso ver, predomina nas
sociedades ocidentais uma mentalidade linear causa-efeito, que incute nas pessoas a
crença de que todo problema tem sua causa específica e, conseqüentemente, admite
apenas uma explicação – e uma solução.541 Assim, primeiramente os pais, depois os
professores, acabam sucessivamente por adestrar as novas gerações a reconhecer os
“dois lados” de toda questão – o “certo” e o “errado” (tudo o mais). Como decorrência,
539
Ver, por exemplo, DAVENPORT, Thomas H. “Saving IT’s Soul: Human-centered Information Management”.
Harvard Business Review, vol. 72, n. 2, pp. 119-131, 1994.
540
541
Ver também ROY, Bernard. Méthodologie Multicritère d’Aide à la Décision. Paris: Economica, 1985.
Para este parágrafo e os quatro seguintes, cf. BAUER, 2002: 38-39, SENGE, 1990: 281-284.
240
as pessoas tendem a valorizar o convívio apenas com quem pensa igual ou parecido a
elas (expresso em termos autopoiéticos, toda identidade tende a preservar a si própria
frente ao novo; assim tanto mais será, se essa identidade se constitui precisamente na
recusa ao divergente).
Em que medida, no interior das organizações, as pessoas costumam expor com
franqueza e abertura o que pensam? Em que medida costumam, ao ouvir idéias alheias,
sentir-se à vontade para comentar, criticar, propor alterações? De outro modo: até que
ponto o conflito é bem-vindo (ou sequer aceito) no interior das organizações? Em que
medida as pessoas estão dispostas a valorizar o convívio com quem pensa diferente
delas?
É por recear o conflito que muitas pessoas evitam emitir suas opiniões de forma plena:
elas medem suas palavras sondando o contexto em que se encontram, arriscam-se aos
poucos na expressão de suas opiniões, recuam se for o caso. Elas sabem que os outros
também evitam a exposição de suas idéias caso estas possam vir a ser confrontadas, pois
temem que isso constitua risco para sua imagem profissional perante o grupo.
Pessoas que crêem que toda questão comporta uma “resposta certa” tenderão a delegar a
outros a responsabilidade (e o risco) de estabelecer uma tal resposta, seja o chefe
(autoridade formal), o especialista (autoridade técnica) ou algum colega mais antigo
(autoridade conferida pela experiência). Elas até podem intuir que detêm a “resposta
certa” mas, se a considerarem em posição frágil para competir com as demais, tenderão
a recusar o risco.
Questões de natureza complexa admitem não apenas uma, mas várias soluções
possíveis. Inexiste a “resposta certa”, somente a resposta melhor, que tanto melhor será
quanto emirja em meio ao potencial construtivo do conflito de idéias, que principia nas
diferentes percepções e intuições contidas nas diferentes respostas das pessoas, que por
sua vez advêm de suas diferentes interpretações da realidade. Isto, que nas organizações
costuma ser visto como daninho, precisa passar a ser visto como riqueza potencial. A
compreensão de que ninguém detém a “resposta certa” pode se mostrar libertadora, ao
eximir as pessoas de precisar sustentar suas opiniões contra as demais; ao ouvir uma
crítica ao que disseram, elas podem se permitir cogitar algo como: “que bom, alguém
241
está me dando uma oportunidade para refletir sobre as limitações das minhas idéias, e
aperfeiçoá-las”. É uma chance de aprendizagem que, em sendo recíproca, configura um
diálogo – qualidade para as interações humanas, e para o processo de auto-organização
que são as organizações.
Com efeito, as organizações são instâncias auto-organizantes por natureza, de resultados
tão mais ricos quanto mais vier a ser facilitada essa sua auto-organização por meio das
interações, e tão mais pobres quanto mais for perturbado esse processo. Ao perseguir a
one best way, os modelos administrativos clássicos incorrem na disposição de limites
(quantitativos e qualitativos) às interações humanas, o que restringe a criatividade
emergente do sistema, e tende a retê-lo em regiões de rigidez. O episódio da
reengenharia542 é exemplar: concebida precisamente para superação da inércia e da
rigidez, as empresas que a adotaram fracassaram em sua grande maioria, devido à
ruptura em larga escala dos laços de interrelacionamentos preexistentes (formais e
sobretudo informais), e do conseqüente depauperamento de sua capacidade de autoorganização.543
É uma compreensão do conhecimento como individualizado e da interpretação recursiva
na linguagem como o caminho para seu aperfeiçoamento o que permite transcender a
costumeira atitude para com a delegação para tomada de microdecisões em tempo real,
de um “mal necessário” para uma agilidade imprescindível. Se a criação de significados
compartilhados concorre para a qualidade das microdecisões, sua renovação conduz a
uma avaliação contínua dos cursos de ação que propicia uma correção de rumos
também em tempo real. A organização é assim dotada de uma capacidade de ajuste
dinâmico,544 uma reordenação por aprendizagem em que mesmo os erros cometidos são
também insumos ao conhecimento.
Quanto às interações entre empresas, vale citar que não é de outro modo que operam os
(verdadeiros) clusters de pequenos e médios produtores sob relações simétricas,545 em
542
543
544
545
Mencionado à p. 24.
Cf. KELLY, ALLISON, 1998: 7-8.
Cf. VALLE, 2005: 106.
Remeter à p. 23.
242
que a vantagem competitiva do conjunto esteia-se na perseguição da inovação e em sua
rápida disseminação (numa superação da antiga dicotomia entre flexibilidade e
escala).546
Há, em suma, uma bifurcação dos caminhos a cursar: o prosseguimento na compreensão
da racionalidade local e parcial apontada por Simon547 como uma limitação a ser
contornada, ou sua transcendência, para um recurso a ser explorado. Não se trata de
reinventar a natureza das organizações; muito pelo contrário, trata-se de ir ao encontro
dessa mesma natureza,548 há tanto tempo desconsiderada. Não é necessária a introdução
da “Complexidade” nas empresas por mais uma panacéia de consultores, mas sim sua
desobstrução (pela supressão de restrições à rica complexidade da sociabilidade
humana) e seu avanço (pelo fomento a essa sociabilidade).
Em outras palavras: práticas de gestão compatíveis com a natureza precípua das
organizações somente podem advir de uma adequada compreensão desta natureza.
Trata-se de edificar uma verdadeira Teoria das Organizações na acepção da expressão,
com o que muitas das que hoje são consideradas “teorias organizacionais” deve passar à
condição de meras técnicas, úteis sob circunstâncias particulares.549
Ou ainda, trata-se de, a partir de uma perspectiva fenomenológica, prover um arcabouço
abrangente que incorpore, na qualidade de um caso particular, o paradigma
(funcionalista) até aqui predominante, de aportes indicados a contextos específicos.
546
547
Cf. ibid., p. 131.
Remeter à p. 14.
548
Referimo-nos à natureza auto-organizante das organizações. Partimos do princípio de que as organizações são
sistemas complexos – ou seja, ainda que possamos supor que elas sejam sistemas regidos por leis mecanicistas (em
termos ontológicos), inexistem meios que permitam qualquer redução de sua fenomenologia a um tal mecanicismo.
Tudo o podemos é construir perspectivas quanto ao seu operar que provejam inteligibilidade a esta sua
fenomenologia, e deste modo forneçam esteio à compreensão em torno dela por meio do entendimento mútuo na
linguagem. Com base nesse raciocínio, e em tudo o mais exposto até aqui, afirmamos que as organizações são
sistemas auto-organizantes por natureza, e propomos a inteligibilidade desse seu operar auto-organizante nos termos
do mecanismo gerativo aqui apresentado.
549
Cf. LEWIN, REGINE, 2000: 18.
243
Teoria da natureza dos conhecimentos
As fundações da organização na Era Moderna – o conhecimento técnico, o agir
estratégico, e a racionalização pelo tripé rotinas-tecnologia-contratos550 – eficazes por
décadas para o desenvolvimento e a geração de riqueza sob condições de baixa
complexidade, permanecem úteis. O que é mister reconhecer é sua crescente
insuficiência sob circunstâncias de complexidade elevada.
Consideremos primeiramente os conhecimentos de cunho técnico (privilegiados pelo
agir de cunho instrumental).551 Segundo Jung,552 o ser humano é dotado de quatro
distintos modos (para ele, “funções”) de conhecimento da realidade: dois a que
denominou racionais, porque predominantemente referenciados em seu interior – o
pensamento (reflexão lógica) e o sentimento (apreciação subjetiva) – e dois irracionais,
porque predominantemente referenciados em seu exterior – a sensação (percepção por
meio dos sentidos) e a intuição (percepção por meio do inconsciente). Propôs ele um
arranjo diagramático em dois eixos, racional e irracional, posto que a ênfase em uma
dada função arrefece a função oposta: a reflexão a respeito de algo é perturbada por sua
valoração subjetiva, e vice-versa; a percepção intuitiva das possibilidades ocultas é
mitigada pela atenção conferida à experiência sensorial, e vice-versa.
550
551
552
Remeter à p. 24.
Mencionado à p. 11.
JUNG, 1971 (1921). Carl Gustav Jung (Suíça; 1875-1961).
244
Na elaboração de sua tipologia para a psique humana, Jung aventou combinações entre
uma função principal em um dos eixos com uma função auxiliar no outro eixo.553 E
Weil 554 referenciou-se nessa concepção diagramática de Jung para arranjar uma
tipologia do conhecimento humano (Figura 7):555
intuição
pensamento
Filosofia
Tradições de
sabedoria
Ciência e
Técnica
Arte
sentimento
sensação
Figura 7: Distintas naturezas de conhecimento, combinações entre modos primário e auxiliar de conhecer
a realidade; adaptado de WEIL (1993: 17 e 19).
Assim, a reflexão abstrata quanto aos conteúdos apreendidos pela experiência sensorial
resulta na ciência e na técnica; o conhecimento a que chegamos através da arte situa-se
no terreno da apreciação subjetiva da experiência sensível; a filosofia brota da reflexão
especulativa quanto a noções intuídas; finalmente, as tradições de sabedoria advêm da
valoração de conteúdos intuídos, abarcando não apenas os mitos, ritos e religiões mas
todo o legado das práticas éticas e morais da humanidade e de suas normas de convívio
social, legado este oralmente transmitido através dos séculos – ainda hoje, a passagem
possível de valores de uma geração para outra se dá por meio de conversas; qualquer
crise de valores é antes de tudo uma crise de entendimento entre as pessoas.
O mérito desta diagramação é indicar distinções de natureza entre os diferentes campos
de conhecimento, ainda que ela não permita esgotar todas as possibilidades (por
exemplo, do ponto de vista do artista em seu momento de criação a experiência se
553
“Para todos os tipos [psicológicos humanos] encontrados na prática, pode-se ter por certo que, por detrás da
função primária consciente, existe uma função auxiliar relativamente inconsciente, que é de todo distinta da natureza
da função primária. As combinações resultantes exibem a imagem familiar de, por exemplo, o pensamento prático
aliado à sensação, o pensamento especulativo avançando pela intuição, a intuição artística selecionando e
apresentando suas imagens com ajuda de valores sentidos, a intuição filosófica sistematizando sua visão em
pensamento inteligível por meio de um intelecto poderoso, e assim por diante” (JUNG, 1971 (1921): 406).
554
555
Pierre Gilles Weil (Brasil; n. França; 1924–).
Cf. BAUER, 1999: 130-131.
245
desloca do sensorial para o intuitivo, o teólogo procede à reflexão quanto à tradição
etc.).
Se ao longo dos últimos cem anos a Administração, tanto como teoria quanto como
prática, tomou por legítimos apenas aqueles conhecimentos de cunho técnico e
científico, cabe ressaltar a descontinuidade que este período configura em relação a um
passado em que sabedoria era fator preponderante para o sucesso daqueles em posições
de mando, ao passo que os trabalhadores eram herdeiros de uma rica tradição artesanal.
Ainda hoje, os conhecimentos de natureza essencialmente técnica que compõem os
cursos de MBA são considerados condição necessária à designação para altos cargos
executivos; seriam, porém, suficientes? O que distingue um executivo a ponto de tornálo uma legenda é sua fé (“certeza intuitiva”, digamos) nas decisões que toma e nas ações
que empreende. Foi um vislumbre intuitivo o que Ford teve diante de carcaças de bois
penduradas em um trilho no teto de um abatedouro de Chicago, e que o levou a
conceber a primeira linha de montagem; foi também pela ausência de um diploma de
graduação que o caráter intuitivo de Bill Gates556 atingiu seu enorme destaque.
Os exemplos a respeito de outras naturezas de conhecimento que não a técnica não se
restringem a indivíduos: a implantação no Ocidente dos modelos de gestão japoneses
deu-se sempre de forma limitada (correspondendo justamente à parcela dos
conhecimentos técnicos); os aspectos culturais desses modelos (como a valorização da
busca do consenso e do trabalho em equipe), que são derivados das tradições de
sabedoria do país, decorrem da primazia do interesse coletivo por sua vez lastreada na
legitimação dos distintos interesses particulares, e demandam por exemplo
demonstrações públicas de respeito aos superiores hierárquicos e aos mais velhos, e
mesmo rituais dentro das empresas – coisas inimagináveis nas empresas ocidentais.
556
William Henry Gates III (EUA; 1951–).
246
Uma eloqüente ilustração do valor do conhecimento em Administração, através dos
tempos, como uma complementaridade entre sabedoria, arte, filosofia e técnica, são os
escritos do século IV AC de Xenofonte557 a respeito de Sócrates,558 de quem fora
discípulo:
Nicomaquides – Você quer dizer, Sócrates, que é apropriado a um mesmo homem se encarregar
nobremente de um coral e ser um general?
Sócrates – O que eu, de minha parte, digo é que, o quer que seja que alguém governe, se ele souber
o que é necessário e estiver apto a providenciá-lo, será um bom dirigente, quer seja um coral ou
um lar ou uma cidade ou um exército aquilo que ele comande.
– Por Zeus, Sócrates, eu jamais imaginei que ouviria de você que bons administradores domésticos
podem ser bons generais.
– Então venha, vamos recapitular as tarefas de cada um deles ... Não é tarefa de ambos preparar os
comandados para ouvi-los com deferência e para obedecê-los? ... ordenar àqueles que estão aptos a
se encarregar de cada coisa a fazê-la? ... punir os maus, e honrar os bons? ... manter seus
subordinados bem dispostos? ... ganhar a confiança de aliados e daqueles que o irão ajudar? ...
estar pronto a guardar sua propriedade? ... ser atencioso e devotado ao trabalho no que tange às
suas próprias tarefas? ... [Portanto,] Nicomaquides, não desprezes homens habilidosos na
administração doméstica. Porque encarregar-se de negócios privados difere apenas em termos de
magnitude do encarregar-se de negócios públicos. Dentre outras significativas similaridades, a
maior de todas é que nenhum dos dois se dá sem seres humanos, tampouco as ações são levadas a
cabo nos negócios privados por intermédio de certos homens e nos negócios públicos por
intermédio de outros. Porque aqueles que se encarregam dos negócios públicos não lidam com
seres humanos outros do que aqueles com quem lidam nos negócios privados, ao cuidar de seus
assuntos domésticos. E aqueles que compreendem como lidar com estes seres humanos saem-se
bem tanto nos negócios privados quanto nos públicos; aqueles que não compreendem, deixam a
desejar em ambos.559
Teoria da (inter)ação
Consideremos agora o agir de cunho estratégico.560 Uma superação das limitações do
paradigma dominante em Teoria das Organizações demanda uma renovação nos modos
de co-determinação entre razão e ação – demanda uma renovada racionalização.561 A
construção de significados compartilhados pela interpretação recursiva na linguagem
requer que co-exista, com o agir estratégico, um agir cuja referência última sejam
557
558
559
560
561
Xenofonte de Atenas (431-355 AC).
Sócrates de Atenas (470-399 AC).
XENOFONTE, 1994: 78-80.
Remeter à p. 11.
Remeter à p. 10.
247
normas de convívio social, a que Habermas denominou agir comunicativo – um agir
orientado ao entendimento mútuo.562
Habermas é o herdeiro da tradição em Sociologia da chamada Escola de Frankfurt,563
que atribui o depauperamento da individualidade nas sociedades contemporâneas à
crescente autonomia dos agires estratégico e instrumental em detrimento das normas e
dos valores sociais, o que deságua na massificação, na manipulação das consciências, na
degenerescência cultural e na repressão das energias psíquicas naturais das pessoas.564
Marcuse,565 por exemplo, reporta tamanha alienação do homem como uma espécie de
“entrave cognitivo”, que faz com que uma realidade exterior opressiva seja percebida
como criação autônoma de sua própria consciência.566 Em um distanciamento em
relação a seus predecessores, contudo, Habermas distingue arenas de atuação próprias
ao agir estratégico e ao agir comunicativo, e atribui tais patologias não mais à existência
em si do agir estratégico – para ele, uma decorrência fatal da evolução das sociedades –
mas ao seu transbordamento e penetração em espaços de naturezas estranhas à sua.567
Habermas compreende os sucessivos estágios no percurso desde as sociedades
primitivas (em que a coesão social advém de mitos e ritos, e as identidades pessoais não
passam de “imagens no espelho” da identidade coletiva) até as sociedades
contemporâneas como o avanço da capacidade de entendimento mútuo por meio da
linguagem (que é o que propicia uma diferenciação das individualidades em compasso
com a integração social). Desenvolve-se paulatinamente uma base contextual de
significados implícitos compartilhados (o que Habermas denomina mundo-da-vida), que
esteia os esforços interpretativos das pessoas em busca de entendimento mútuo a cada
novo dissenso.
562
Ver HABERMAS, op. cit. (nota 29, p. 11), 1981.
563
Formalmente o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt (fundado em 1923), de orientação marxista nãoortodoxa e voltado às possibilidades de emancipação do homem, em uma retomada da obra do jovem Marx (anterior
a 1845; ver, por exemplo, os chamados “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”, citados à nota 3, p. 1), antes
filosófica que sociológica ou política, e orientada à natureza humana.
564
565
566
567
Ver, por exemplo, MARCUSE, Herbert. One-Dimentional Man. Boston (Massachusetts): Beacon, 1964.
Herbert Marcuse (EUA; n. Alemanha; 1898-1979).
Ver Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into Freud. Boston (Massachusetts): Beacon, 1955.
Cf. VALLE, 1990.
248
As crescentes complexidades econômicas e administrativas das sociedades, no entanto,
exacerbam os riscos de dissenso e pressionam por racionalização, com o que o recurso a
outros meios para coordenação das ações que não a linguagem (por exemplo, o
exercício do poder) acaba por apresentar-se como mais funcional, o que vem legitimar o
agir estratégico naqueles espaços voltados ao desenvolvimento material das sociedades,
como a fábrica, a corporação, o comércio e o mercado. Já os espaços dedicados ao
desenvolvimento simbólico das sociedades (ou seja, ao mundo-da-vida: a transmissão e
renovação do saber cultural, a integração social pelo estabelecimento de solidariedades,
e a formação e socialização das individualidades pela educação) como a família, a
escola, a política, a igreja, o clube, a praça e a rua, não têm como passar a ser regidos
pelo agir estratégico senão ao preço das deformações patológicas denunciadas pelos
frankfurtianos. A esse processo de invasão pelo agir estratégico dos espaços em que a
coordenação das ações pelo entendimento mútuo na linguagem é insubstituível,
Habermas denomina colonização do mundo-da-vida.
Ora, o que se constata é justamente a necessidade por alguma contra-colonização568 –
uma expansão do agir comunicativo nos espaços próprios ao mundo da produção.
Mesmo nestes, a adoção do agir estratégico como uma alternativa aparentemente mais
funcional (e certamente simplificadora) que o entendimento mútuo na linguagem
termina por mostrar-se limitada. Recorreram os homens a ela por medo e insegurança
diante da complexidade (governados por tais temores, é quase certo que boa parte deles
continue a proceder assim indefinidamente); abraçar a complexidade requer resistir à
tentação de atirar-se ao caminho aparentemente mais curto.
Afirmamos aqui que, para a promoção de um agir orientado a valores,569 fazem-se
necessárias naturezas de conhecimento outras que não a de base técnico-científica, em
568
Cf. ibid. O conceito de contra-colonização é a principal tese de VALLE, op. cit. (nota 65, p. 26), 1989.
569
De acordo com a terminologia formal em Sociologia após Weber, entende-se por agir orientado a valores o agir
balizado pela devoção (ou adoração, ou temor) a Deus (ou a alguma entidade mítica); ou seja, esta expressão referese aos modos de ação predominantes anteriormente ao advento da Era Moderna: um agir sem dúvida provedor de
solidariedades, porém ao preço da sublimação das individualidades em nome da coletividade, nos termos ditados pela
fé. Assim, para Habermas, um crescimento dos espaços do agir orientado a valores (no sentido weberiano), na atual
etapa da História (como fato ocorre, pelo recrudescimento dos fundamentalismos), corresponderia a uma involução
civilizatória. Portanto, o agir de cunho comunicativo identificado por Habermas (que impulsiona a individualidade ao
passo que preserva a coesão social) seria melhor referenciado (em respeito à terminologia sociológica consagrada)
pela expressão “agir orientado a normas de convívio social”. Entendemos todavia que – se se enseja convidar à
reflexão um público maior que os afeitos à Sociologia – pode-se nos tempos contemporâneos falar em valores
precisamente como os referenciais para tais normas de convívio social, ou seja, como os norteadores para um agir
249
complementaridade a esta: as tradições de sabedoria, que retêm o legado das formas de
integração social ao longo da evolução humana, e dos valores a elas associados; a arte,
um caminho por excelência para a transmissão de valores; e a filosofia, a reflexão sobre
valores (Figura 7, p. 245).
Malgrado desconsiderados, tais conhecimentos mantêm preservado seu potencial para
forja dos valores sociais, por exemplo retido na mitologia greco-romana ou nas peças de
Shakespeare570 – para ficarmos apenas em exemplos ocidentais. De modo oportuno,
Chomsky571 assevera que o aprendizado quanto a tudo que se refira à vida e à
personalidade humanas desenvolve-se mais proficuamente por meio de narrativas
romanceadas que pelos caminhos da Ciência:
Pode-se imaginar que, ao investigar a história da Ciência, e pela experimentação com sujeitos
humanos, nós poderíamos vir a aprender algo a respeito da natureza da capacidade humana de
produção de ciência. Se assim o é, nós poderíamos vir também a aprender algo a respeito das
classes de problemas que podemos e que não podemos abordar pelo recurso à capacidade de
proução de ciência, os métodos científicos.
Não há, incidentalmente, nenhuma razão para supor que todos os problemas com que nos
deparamos são melhor abordados nestes termos. Assim é perfeitamente possível – forçosamente
provável, poder-se-ia pensar – que nós sempre iremos aprender mais a respeito da vida e da
personalidade humanas a partir de romances do que a partir da psicologia científica. A capacidade
de produção de ciência é apenas uma faceta de nossa dotação mental. Nós a usamos onde
podemos, mas não estamos restritos a ela, felizmente.572
Teoria do Brasil
Uma última crítica à mentalidade da one best way: as pretensas universalidades para o
conhecimento de natureza técnica e para o agir de orientação estratégica vêm obscurecer
o fato de que mesmo o conhecimento técnico e o agir estratégico (tanto quanto os
comunicativo. Uma tal reabilitação do termo valor, agora não mais necessariamente vinculado a conotações
dogmáticas relativas à religião, permite expressar apropriadamente aquilo que possa motivar os indivíduos a
(inter)agir comunicativamente entre si – precisamente porque para Habermas o agir comunicativo é racionalmente
motivado, enquanto que para nós ele somente pode decorrer de uma integralidade do ser humano, que congregue em
complementaridade todas as dimensões de sua cognição (inclusive as dispostas no eixo na vertical da Figura 7 à p.
245, chamado “irracional” por Jung). Feitas assim as devidas ressalvas quanto a que não utilizamos aqui a expressão
“agir orientado a valores” no sentido eminentemente histórico e de finalidade didática tal como definido por Weber,
insistimos no emprego dessa expressão como equivalente do agir comunicativo habermasiano.
570
571
572
William Shakespeare (Inglaterra; 1564-1616).
Avram Noam Chomsky (EUA; 1928–).
CHOMSKY, 1988: 158-159.
250
demais) são dotados de uma riqueza de nuances própria a cada tradição específica (o
que se encontra documentado, por exemplo, nos trabalhos de Hofstede).573
Já tivemos oportunidade de ilustrar, como contrapontos à tradição anglo-saxã, aspectos
que são próprios ao Extremo Oriente e à Europa continental;574 devemos agora abordar
o Brasil. Em tempos recentes, as perspectivas para o desenvolvimento de nosso país têm
estado restringidas por conta de uma adoção acrítica de referenciais “universais” para
balizadores de nossas políticas industrial e regulatória, em uma abdicação voluntária da
perspectiva de vir a pautá-las por nossas especificidades culturais e históricas (que
sequer reconhecidas são – ou, quando o são, é para serem rotuladas como empecilhos).
573
Geert Hendrik Hofstede (Holanda; 1928–); ver Culture’s Consequences: International Differences in Workrelated Values. Beverly Hills (Califórnia): Sage, 1980; “Dimensions of National Culture”. In: RATH, R.,
ASTHANA, H. S., SINHA, D., SINHA, J. B. P. (eds.). Diversity and Unity in Cross-Cultural Psychology. Lisse
(Holanda): Swets and Zeitlinger, pp. 173-187, 1982; HOFSTEDE, G. H., HOFSTEDE, Gert Jan. Cultures and
Organizations: Software of the Mind – Intercultural Cooperation and Its Importance for Survival. New York:
McGraw-Hill, 1997; e Culture’s Consequences: Comparing Values, Behaviors, Institutions, and Organizations
Across Nations. Thousand Oaks (Califórnia): Sage, 2001.
574
Exemplificados às pp. 19, 22, 23.
251
Segundo Valle,575 no Brasil bem como no restante da América Latina, a prevalência nas
últimas décadas de uma diretriz ideológica de abertura comercial irrestrita significou, na
prática, a abolição da política como espaço para decisões econômicas em prol de uma
regulação exclusiva pelas “leis naturais” de mercado, tomadas como a única
racionalidade aceitável. A ampla adesão havida ao assim chamado “Consenso de
Washington” 576 foi impulsionada por uma crise financeira (crises de endividamento,
fiscal e inflacionária) sem precedentes, que já ao final da década de 70 implicava a
paralisação do investimento público; em muito pouco tempo, os ambientes de negócios
passaram de fortemente protegidos a fortemente competitivos, e a contar com
concorrentes estrangeiros muito mais capitalizados. Como conseqüência,
Em vez do esperado “choque de produtividade”, houve sérias dificuldades para as empresas que
persistiram produzindo no país, em vez de se transformarem em meras importadoras. Anos depois,
mais uma súbita mudança – desvalorizações monetárias destinadas a recuperar o “realismo
cambial” – penalizaram, ao contrário, as empresas que importavam peças ou que haviam contraído
dívidas em dólar.577 ... No exato momento em que se anunciava uma globalização da economia, as
poucas empresas nacionais que poderiam se tornar empresas globais – as estatais ... além de
alguma empresa privada na produção em massa de bens de consumo – foram privatizadas, ou
adquiridas por oligopólios internacionais. ... Na manufatura e produção em massa, a entrada de
capital estrangeiro desmontou e reconstruiu – em termos que finalmente se mostraram
desvantajosos para a economia nacional – setores industriais antes sólidos, construídos durante os
anos de industrialização acelerada. Os setores de autopeças e de eletrodomésticos, p. ex., ambos
núcleos da industrialização paulista, sofreram diretamente os efeitos da globalização produtiva,
perdendo quase toda a autonomia para estabelecer estratégias.578 (ênfase de Valle)
Identificar e compreender nossas especificidades culturais e históricas é tarefa prévia à
definição de qualquer projeto de nação que se pretenda soberano – uma obviedade para,
por exemplo, japoneses ou alemães. Sem um tal referencial (uma consciência da própria
identidade), os potenciais intrínsecos à tradição são desperdiçados, e seus acúmulos
históricos paulatinamente diluídos. A discussão sequer se inicia (a crítica, desprovida de
575
Cf. VALLE, 2005: 4, 70, 82.
576
Conjunto de recomendações em políticas públicas concebido como fórmula para a promoção do desenvolvimento
econômico na América Latina, sistematizado em WILLIAMSON, John. “What Washington Means by Policy
Reform”. In: WILLIAMSON (ed.). Latin American Adjustment: How Much Has Happened? Washington DC:
Institute for International Economics, pp. 7-20, 1990. (Documento de referência da conferência Latin American
Adjustment: How Much Has Happened?, organizada por Williamson em torno de representantes dos países latinoamericanos com o objetivo de prover entendimento, ao governo e ao congresso americanos, quanto ao grau efetivo de
“ajuste” de cada país frente à crise de endividamento, e que confluiu para o assim chamado “consenso”; Institute for
International Economics, Washington DC, Nov. 1989). Tais políticas públicas consistem de: disciplina fiscal,
concentração do gasto público em educação, saúde e investimento em infra-estrutura, racionalização tributária, taxas
de juros determinadas pelo mercado e positivas em termos reais, câmbio competitivo, liberalização do comércio com
tarifas baixas e uniformes, abertura ao investimento estrangeiro, privatização de empresas estatais, desregulação da
economia com abertura à competição, e segurança jurídica ao direito de propriedade.
577
578
VALLE, 2005: 70.
Ibid., p. 82.
252
alternativa, é vazia), e o “referencial de referência” (desculpem) acaba não tendo como
não ser tomado por único.
Se assim o é para a regulação dos mercados, tanto quanto para as práticas de gestão.
Apenas a título de atiçar dúvidas quanto ao lugar-comum: o que significam noções
como “liderança” e “confiança”? Seria a liderança predominantemente um dom de
nascença, predestinado a se expandir dadas condições favoráveis mínimas, e portanto
individual (o que faz todo o sentido em uma sociedade que rotula seus membros como
“vencedores” ou “perdedores”), ou se trataria mais de um atributo conferido a alguém
por aqueles que com ele convivem, portanto circunstancial – e social? Ou ainda, até que
ponto é ela um artifício socialmente consolidado de evitação de um tema tabu – a
necessidade natural das pessoas de exercer, e de contar com, alguma forma de poder em
seus relacionamentos sociais e gregários? 579
Quanto à confiança, seria ela mais o produto da constatação de um correto cumprimento
de contratos (formais ou verbais), ou um acúmulo em um processo de empatia mútua?
Se este for o caso, é precisamente o grau de confiança existente o que abre espaços para
que se venha a relevar um eventual descumprimento contratual, no contexto de fatores
imprevistos.
Distinguir parâmetros peculiarmente brasileiros no universo da Administração não é
tarefa trivial (registre-se que esforços são envidados nesse sentido).580 Ocorre que, frente
à necessidade premente por um novo paradigma de gestão, calcado na valorização do
convívio com o diferente, na abertura para o novo, e na experimentação e criatividade
coletivas, torna-se tentador apregoar o Brasil como o “país (da gestão) do futuro” – uma
nação receptiva à diversidade, em que os obstáculos são ludibriados no savoir-faire, de
579
Tal como, por séculos e ainda hoje, uma idealização do amor ajudou a evitar abordar os temas relativos à
sexualidade biológica humana; ou ainda (e também por séculos, e ainda hoje), a delegação da medicina para a
religião da tarefa de tratar junto aos pacientes da questão da morte; cf. OLIVEIRA, 1992; cf. nota 508, p. 218.
580
Como um marco inicial, ver RAMOS, A. Guerreiro. Administração e Estratégia de Desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1966. 2a. ed. Administração e Contexto Brasileiro: Esboço de uma Teoria Geral
da Administração. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983. Como contribuições mais recentes, ver, por
exemplo, BARROS, Betânia T. de. Gestão à Brasileira: Uma Comparação entre América Latina, Estados Unidos,
Europa e Ásia. São Paulo: Atlas, 2003; MOTTA, Fernando C. P., CALDAS, Miguel P. (orgs). Cultura
Organizacional e Cultura Brasileira. São Paulo: Atlas, 1997; e BARROS, Betânia T. de, PRATES, Marco A. S. O
Estilo Brasileiro de Administrar. São Paulo: Atlas, 1996; e COHEN, David. “Gestão à Brasileira”. Exame, pp. 200207, 19 abr. 2000.
253
uma gente de índole flexível, adaptativa e intuitiva, que celebra em multidão a alegria
do viver.
Mas, corresponde tal descrição a uma “teoria da alma brasileira” minimamente
fidedigna, em que seja possível fundear a edificação de uma escola brasileira de gestão?
Se este não for o caso, avançaremos por voluntarismo até pisar em falso. Benjamin581
reclama precisamente a ausência de uma “teoria do Brasil” atualizada aos tempos atuais,
que conte com suficiente respaldo para operar como representação ideológica da
sociedade sobre si mesma, como provedora de imaginário coletivo, e como forjadora de
valores.
Ele recapitula as etapas por que a teoria vigente foi gestada: com Gilberto Freyre,582
negros e índios foram legitimados como atores de nossa formação social, a casa-grande
vista como espaço de integração em meio à desigualdade; Sérgio Buarque583 elucidou os
meandros de nossa transição de um Brasil rural de raízes ibéricas para um Brasil urbano
de referenciais cosmopolitas; com Caio Prado,584 adveio a perspectiva de um Brasil
predestinado a construir caminhos próprios, que passamos a chamar “país do futuro”;
Celso Furtado585 nos legou a compreensão das condições, limites e potencialidades para
nossos processos de modernização e de inserção na economia mundial; finalmente,
coube a Darcy Ribeiro586 subverter os termos da lógica etnocêntrica européia há muito
introjetada em nós, pela transcendência de nosso caráter miscigenado e tropical, de
motivo de vergonha a fator de superioridade ímpar frente à “pureza” dos povos de clima
temperado.587
581
BENJAMIN (2004); César de Queiroz Benjamin (Brasil; 1954–).
582
Gilberto de Mello Freyre (Brasil; 1900-1987); ver Casa-grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o
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583
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584
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585
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586
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Paulo: Companhia das Letras, 1995; e O Brasil como Problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
587
Porque nós contaríamos com o potencial de consolidar, na forma de uma tradição própria (e inovadora perante o
mundo), valores como solidariedade, afetividade etc., devido a termos sido constituídos por “índios destribalizados,
brancos deseuropeizados e negros desafricanizados”, ainda portadores de suas identidades étnicas mas já apartados
254
Benjamin não contradiz essa “teoria do Brasil”, mas se pergunta em que medida ela
prossegue válida, sem que se consiga ponderar a extensão da dilapidação de tais
acúmulos históricos e da corrosão de nossos valores sociais peculiares,588 face à
prolongada exposição às crescentes violência urbana, exclusão social, e inculcação,
pelos meios de comunicação de massa, dos valores de uma “sociedade de consumo”
também estranha à nossa formação social (ainda uma vez, a one best way universal,
imposta pelas conveniências de mercado).
De nossa parte, registramos seu questionamento como válido e pertinente, muito
embora creiamos que o lastro de uma tradição preserva o potencial para seu resgate,
mesmo dilapidada. E cremos também não apenas na possibilidade, mas na necessidade
de compreensão, legitimação e desenvolvimento de nossos talentos e práticas de gestão
peculiares, sufocados, porém não extintos, por décadas de encantamento com modelos
gestados no ventre de uma cultura díspar da nossa, portanto mal-ajustados à nossa
realidade.
Teoria e prática
Cabem-nos ainda algumas breves palavras, no sentido de ressalvar que a busca por um
paradigma alternativo é quase tão antiga quanto o próprio em questão.
O pioneirismo em termos teóricos (para além dos autores já mencionados)589 remonta à
década 20, quando Follett 590 idealizou as atividades de gestão em termos que hoje
de suas tradições originárias, e desta forma uma tal tradição-nova não teria de se basear em nenhum dos fulcros
daquelas tradições originárias, como raça, religião, vocação para a expansão imperial, recusa do outro (xenofobias),
ou desejo de manter-se isolado.
588
Uma postulação de Benjamin quanto à educação como forjadora de valores que provejam base a um agir
comunicativo
é
“Economia
e
Educação:
Um
Debate
Invertido”.
Disponível
em:
<http://www.espacoacademico.com.br/012/12col_cesar.htm>. Acesso em: 25 fev. 2005.
589
Como TRIST, BAMFORTH, op. cit. (nota 50, p. 19), 1951, ou RICE, loc. cit., 1951, trabalhos que deram início à
Escola Sócio-técnica; ou ainda ARGYRIS, op. cit. (nota 35, p. 13), 1957, cujos trabalhos desembocariam na corrente
da Aprendizagem Organizacional.
590
Mary Parker Follett (EUA; 1868-1933).
255
podem perfeitamente ser tomados por auto-organizantes.591 Largamente ignorada em seu
próprio país, a América, sua obra veio a compor no Japão da década de 50, juntamente
com as contribuições592 de Juran e Deming, a base teórica sobre que se edificou a escola
japonesa de gestão.
Já em termos práticos, incontáveis iniciativas pessoais (grande parte levada a cabo de
modo puramente intuitivo) intentaram transcender as limitações do status quo.593 Hoje,
mais que nunca, arranjos organizacionais inovadores contam com receptividade, de
forma atrelada às circunstâncias de mercado.
Assim, é abundante a massa crítica tanto teórica quanto prática ao estabelecimento e
consolidação de um novo paradigma em Teoria das Organizações, que integre as
contribuições fragmentadas surgidas, bem como aproprie os acúmulos do paradigma
tradicional que permanecem válidos e o transcenda em suas limitações.
Um tal novo paradigma já despontou como realidade prática há muito (mesmo que
desacompanhado de bagagem teórica consistente); no que diz respeito às atividades dos
chamados “trabalhadores do conhecimento”, ele é cada vez mais a norma.594 Se de
modo geral o antigo paradigma ainda predomina, isso é devido em grande medida à
inércia em perceber que a sinergia do convívio oferece resultados em muito superiores
ao somatório das individualidades – quanto mais em tempos de crescentes
complexidades.
Especificamente quanto à contribuição que procuramos aqui prestar, compreendemos
(como não poderia deixar de ser) o processo de construção do conhecimento como um
591
Ver The New State: Group Organization, the Solution for Popular Government. New York: Longmans, Green,
1918; Creative Experience. New York: Longmans, Green, 1924; Dynamic Administration: The Collected Papers of
Mary Parker Follett (Henry C. Metcalf, Lyndall F. Urwick, eds.). New York: Harper and Brothers, 1940; Freedom
and Co-ordination: Lectures in Business Organization (Lyndall F. Urwick, ed.). London: Management Publications
Trust, 1949. Ver também a conferência “The Psychological Foundations of Business Administration”, Bureau of
Personnel Administration, New York, 1925; e as conferências “The Psychology of Control”, “The Psychology of
Consent and Participation”, “The Psychology of Conciliation and Arbitration” e “Leader and Expert”, de 1925 e
1926, transcritas em METCALF, Henry C. The Psychological Foundations of Management. Chicago (Illinois): A. W.
Shaw, 1927.
592
Ver notas 23 e 24, à p. 10.
593
A título de exemplo, ver o relato do processo de criação da operadora de cartões de crédito Visa, em HOCK, Dee.
Birth of the Chaordic Age. San Francisco (Califórnia): Berrett-Koehler, 1999.
594
Cf., por exemplo, LEWIN, REGINE, 2000.
256
empreendimento coletivo, de que toma parte a totalidade da comunidade científica de
pares, e em que cada nova contribuição (e cada nova crítica) em parte complementa e
em parte contesta a base acumulada de contribuições anteriores. Nosso trabalho não é,
portanto, nem ponto de partida nem ponto de chegada. Consideramo-nos devedores de
todos os autores aqui mencionados (146 ao todo); do mesmo modo, nenhum deles
chegou a suas contribuições originais de uma forma totalmente solitária. Por exemplo,
as proposições de Wiener sobre a auto-regulação dos sistemas são tributárias das noções
de Andronov595 e Pontryagin596 quanto à sua “estabilidade estrutural”;597 o recurso à
entropia como medida para a informação contida em um sistema é antecipado em vinte
anos a Shannon por Szilard;598 o conceito de “circuitos reverberantes”,599 base de todo o
trabalho de McCulloch e Pitts, tem por antecessores a proposição teórica por Kubie600
quanto à persistência de atividades de natureza circular em redes de neurônios, e a
demonstração empírica desse fenômeno por Lorente de Nó;601 um delineamento da
autopoiesis foi em duas décadas antecipado, por Weiss,602 a Maturana e Varela; e assim
se pode prosseguir indefinidamente.
595
596
Aleksandr Aleksandrovich Andronov (Rússia; 1901-1952).
Lev Semenovich Pontryagin (Rússia; 1908-1988).
597
Ver ANDRONOV, Aleksandr A., PONTRYAGIN, Lev S. “Systèmes grossiers”. Doklady Akademii Nauk SSSR,
vol. 14, pp. 247-251, 1937.
598
Leo Szilard (EUA; n. Leo Spitz, Hungria (Áustria-Hungria); 1898-1964); ver “Über die Entropieverminderung in
einem thermodynamischen System bei Eingriffen intelligenter Wesen”. Zeitschrift für Physik, vol. 53, pp. 840-856,
1929.
599
Mencionado à p. 37.
600
Lawrence Schlesinger Kubie (EUA; 1896-1973); ver “A Theoretical Application to some Neurological Problems
of the Properties of Excitation Waves which Move in Closed Circuits”. Brain, vol. 53, n. 2, pp. 166-177, 1930.
601
Rafael Lorente de Nó (EUA; n. Espanha; 1902-1990); ver “Analysis of the Activity of the Chains of Internuncial
Neurons”. Journal of Neurophysiology, vol. 1, pp. 207-244, 1938.
602
Observação constante da nota 77, à p. 29.
257
Sumário e conclusões finais
As insuficiências e dificuldades, por parte das organizações, em acompanhar a evolução
dos ambientes de mercado, constituem contemporaneamente o mais agudo problema
sobre que se debruça a Teoria das Organizações.
Para que possam fazer frente a tais crescentes complexidades externas, as organizações
necessitam contar com suficientes complexidades internas, em termos de seu repertório
de respostas às mudanças e surpresas no ambiente.
Ocorre que já existe uma complexidade interna natural e inerente às organizações, em
vasta monta: a sinergia potencial advinda das interações entre as individualidades
singulares que as compõem. Todavia – e contrariamente ao que se deveria esperar – tal
riqueza potencial tem sido objeto de restrição por parte das teorias e práticas
tradicionais no campo da Administração.
Não obstante, um volume significativo de organizações – notadamente as que
congregam os chamados “trabalhadores do conhecimento” – já logram operar por
modos em que se busca auferir proveito dessa complexidade interna potencial, ainda
que de maneiras desacompanhadas de uma base teórica consistente, e em boa parte dos
casos de forma meramente intuitiva e pragmática (“porque percebemos que assim
funciona”).
Na presente tese, foram propostas as linhas gerais para um arcabouço teórico em Teoria
das Organizações orientado à lida com as complexidades externas por meio do
aproveitamento das complexidades internas, o que por sua vez principia em sua
aceitação e legitimação. O objetivo último é a superação do esgotamento das teorias
tradicionais, e dos impasses para que estas convergiram.
Para referencial teórico, foram selecionadas duas teorias componentes de uma dentre as
vertentes em Teoria da Complexidade (em que a complexidade é compreendida como
componente do entendimento quanto ao real, ao invés de componente mesma do real),
ambas da década de 70: a teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan, a partir de
que concebemos uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional, e a teoria
258
da autopoiesis de Maturana e Varela, que propicia uma compreensão em bases
fenomenológicas (ou seja, referenciadas na individualidade) para o conhecimento e para
seu processo gerador, a cognição.
Percorremos, como etapas desta tese:
– Foi inicialmente recapitulada (com base em Valle) a trajetória da corrente
predominante em Teoria das Organizações, consumada como reação à, e busca de
neutralização da, complexidade externa, com domesticação da complexidade interna – a
racionalização (ela mesma um caso particular em uma Teoria das Organizações de
caráter fenomenológico).
– Foi a seguir historiado (com base em Dupuy) o advento das diferentes vertentes em
Teoria da Complexidade, a partir de sucessivas inovações de um punhado de cientistas
de espírito a um tempo reducionista e desbravador (e não, como reza o imaginário
corrente, por qualquer ruptura deliberada para com a Ciência clássica).
– Sobre a base conformada por estas contribuições, puderam ser edificadas as teorias de
Maturana e Varela, e de Atlan; foram, em seqüência, apresentadas estas duas teorias, em
seu contexto originário, a Biologia.
– A seguir, constituímos definições formais para redundância e variedade, elementoschave da dinâmica gerativa que propomos. Foi então sistematizado o operar desta
dinâmica no domínio organizacional, e foram também recapituladas as contribuições
anteriores (aquelas que identificamos) que fazem também recurso aos elementos-chave
empregados; procuramos assim demonstrar que a dinâmica gerativa proposta as abarca,
bem como a inúmeras outras contribuições orientadas à valorização da individualidade
no seio das organizações.
– Foi em seqüência apresentado um estudo de caso em que se procurou demonstrar o
operar da dinâmica gerativa concebida.
– Finalmente, como indicações para o desenvolvimento ulterior desta pesquisa de tese,
foram examinadas as limitações dos principais pilares da racionalização em
Administração: o conhecimento técnico (derivado do agir instrumental) e o agir
estratégico – limitações passíveis de serem transcendidas não por superação, mas por
complementaridade (respectivamente, por outras naturezas de conhecimento, e por um
agir de cunho comunicativo).
259
Foi-nos possível discriminar as falências mais severas (que se almeja superar e
transcender) do corpus teórico historicamente (e ainda hoje) predominante, a saber:
1. As barreiras a uma percepção quanto a que todo conhecimento é individualizado
(“tácito”), e portanto que as tecnologias ditas de informação podem e devem operar
como mediadoras semânticas em estímulo a seu processo gerador (a cognição), mas
jamais como “processadoras” ou “portadoras” de conhecimentos (desconhecem-se, até o
momento, quaisquer tecnologias “de conhecimento”);
2. A incapacidade em transcender a mentalidade por que se toma a singularidade da
individualidade humana por estorvo, ao invés de chave ao acompanhamento das
crescentes complexidades do ambiente;
3. As barreiras a uma percepção quanto a que qualquer cooperação entre indivíduo e
organização somente se consubstancia como uma cooperação entre indivíduos, para o
que contratos podem ser úteis, mas são insuficientes;
4. A incapacidade quanto a compreender que gestão corresponde, essencialmente, ao
fomento do padrão de interação social o mais fecundo possível;
5. Neste sentido, a insuficiência em suprir as necessidades por complementaridade, ao
agir estratégico, de um agir orientado a valores, ou agir comunicativo;603
6. Também neste sentido, a insuficiência em suprir as necessidades por
complementaridade, aos conhecimentos técnicos e científicos, de conhecimentos de
outras naturezas.
A todas essas falências, acrescente-se outra, no seio daquelas tradições que não a
originadora do paradigma clássico, e até aqui incapazes de cultivar modos de gestão
próprios:
7. A inadequação do paradigma clássico a contextos culturais outros que não aquele que
lhe deu origem, pelo sub-aproveitamento de seus aportes e, principalmente, pelo
desperdício dos potenciais próprios à tradição hospedeira.
Ao longo da trajetória de formação da Teoria da Complexidade, sucessivos autores
(Shannon, Ashby, von Foerster e finalmente Atlan) vieram a compreender ordem como
aquilo que é tomado como geral (ou seja, ao nível do todo), tendo denominado-a
redundância (o que restringe o todo de ser distinto de como de fato é), e desordem
603
Esclarecimentos quanto à adequação desta terminologia à nota 569, p. 246.
260
como aquilo que é tomado como particular (ou seja, ao nível das partes), tendo
denominado-a variedade (a diversidade das partes). A dinâmica gerativa concebida
propõe compreender os significados compartilhados (coletivos) como redundância, os
conhecimentos (individuais) como variedade, e o papel dos gerentes como provedores
das condições o mais propícias possível aos processos de mútua produção entre
variedade e redundância – cuja chave reside nas interações entre as pessoas.
O quanto isso tudo comporta de novidade? Uma das características mais perniciosas dos
modos por que se tem considerado o conhecimento nas organizações é tomar por
obsoleto tudo o que não seja estritamente contemporâneo. Pois muito do que aqui foi
exposto quanto à natureza subjetiva do conhecimento já foi postulado por diversos
filósofos, séculos atrás.604 E, se nos é possível sintetizar a essência do que foi aqui
proposto por meio da frase “somente a complexidade interna pode dar conta da
complexidade externa”, isso foi exatamente o que disse um daqueles cientistas de
espírito a um tempo reducionista (pois objetivava a modelagem com vistas ao controle)
e desbravador que pavimentaram o caminho para o advento da Teoria da Complexidade,
Ross Ashby, sob uma outra terminologia – “somente a variedade pode dar cabo da
variedade” – há cinqüenta anos.605
604
Uma reconstituição dessa trajetória histórica pode ser encontrada em von GLASERSFELD, op. cit. (nota 357, p.
130), 1995.
605
ASHBY, 1956: 207 (citação replicada; p. 52, nota 177).
261
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