O bordado de Tibaldinho (um segredo bem guardado)

Transcrição

O bordado de Tibaldinho (um segredo bem guardado)
O bordado de Tibaldinho
(um segredo bem guardado)
por Ana Pires
in “Bordado de Tibaldinho” – Catálogo da Exposição no Museu Nacional do Traje
Edição da Câmara Municipal de Mangualde, Instituto Português de Museus
e Museu Nacional do Traje, 1998
1.
Tibaldinho. Onde?
A aldeia é fácil de encontrar.
Tibaldinho é um daqueles lugares onde as novas casas se dispõem ao longo de uma das estradas que, de Mangualde, sede do
concelho, se dirige a Viseu, atravessando a freguesia. O núcleo antigo enovela-se num conjunto denso de pequenas casas de granito,
com ruas e becos estreitos e pardos, que contrasta fortemente com as cores claras e o tamanho das novas construções.
Outros lugares integram a freguesia de Alcafache como Banho, junto ao rio Dão, nome local das termas de Alcafache, Casal
Sandinho, Peso, Casal Mendo, Aldeia do Carvalho, Mosteirinho e Tibalde. Os pinhais que envolviam aqueles lugares, ficam, a cada
Verão que passa, mais reduzidos, pelo que as pequenas aldeias se recortam, com nitidez, no Planalto da Beira, tornada mais
clara a relação que apresentam com o sulco profundo onde, límpido e veloz, corre o rio Dão. Os carvalhos e os castanheiros
tornaram-se raros, mas ainda se encontram nas extremas das hortas e quintais que tecem o espaço das aldeias. Omnipresentes,
vinhas e pomares constituem o pano de fundo onde a economia das gentes ganha quase todo o sentido.
Situada no extremo Nordeste do concelho de Mangualde, a freguesia de Alcafache, limita a Ocidente com a freguesia de Santar,
do concelho de Nelas, a Norte, já na outra margem do rio, com S. João de Lourosa, do concelho de Viseu, a Sul com Lobelhe do Mato
e a Oriente com Fornos de Maceíra Dão, onde se localiza um grandioso mosteiro, abandonado desde 1834. Não existindo uma
única aldeia, um promontório, um qualquer local que seja a que se possa chamar Alcafache, a igreja matriz, dedicada a S. Vicente,
surge isolada, sensivelmente no lugar geométrico do centro da freguesia, como que reafirmando que é chão sagrado, pertença
de todos.
Mas, Tibaldinho só é nome de lugar para aqueles que aí habitam, ou nas suas imediatas proximidades. Para a grande maioria das
pessoas que conhece a designação ela evoca, sobretudo, uma das artes mais tradicionais e características da Beira: o Bordado
de Tibaldinho. A exposição que agora se apresenta, no Museu Nacional do Traje, sobre este bordado, significa, antes de mais, o
reconhecimento de um produto único, que merece esta nova e acrescida visibilidade, mas ainda, e sobretudo, a força e o valor
desta arte, ignorada de forma tão injusta. A ocultação que até hoje tem caracterizado o Bordado de Tibaldinho tem tudo a ver
com a forma como se terá definido, com o tipo de peças em que se apresenta, com as características da sua produção, com a
economia que lhe está implícita. A exposição não se realiza, no entanto,
pretendendo responder a todas estas questões, que não são de resposta fácil. Temos esperança, contudo, que o seu
desconhecimento não iniba, nem seja suficiente para bloquear, a descoberta do que aqui se propõe e apresenta.
2. Tibaldinho. Que peças?
O Bordado de Tibaldinho é um bordado a branco com que se enfeita roupa de casa. De início ter-se-á bordado roupa de cama,
avultando os lençóis (o lençol de casamento) e toalhas (o toalha da Páscoa), a que se juntaram toalhas de altar e toalhas de
mãos, muitas usadas como toalhas de baptizado. Posteriormente, a estas peças, acrescentam-se os conjuntos de aventais,
"cristas", golas e punhos de enfeitar a farda das criadas que serviam à mesa das casas nobres e abastadas da zona. Roupa
interior de senhora como camisas, combinações, saias-de-baixo ou saiotes, calças e camisas de dormir terá sido bordada
logo nos primeiros tempos da difusão deste bordado, provavelmente ainda antes de 1850. Contudo, as peças que chegaram
até aos dias de hoje serão, as mais antigas, do último quartel do século XIX.
Panos e paninhos de todos os tamanhos terão sido sempre executados pelas bordadeiras, para as mais diversas finalidades:
enfeitar arcas, cómodas, mesas de cabeceira, mesas de sala de jantar, cestos do pão, bases de copos. À febre dos "naperons" dos
anos trinta e quarenta, deste século, juntou-se, a partir dos anos cinquenta o gosto pelos "individuais", que substituíam, nas
casas mais sofisticadas, as toalhas de mesa. Em tempos muito recentes, nos últimos dez anos, banalizou-se a utilização do
Bordado de Tibaldinho em cortinas e cortinados e as toalhas para a mesa de camilha começaram a tomar o lugar das toalhinhas
de chá.
Outras peças nos aparecem, com carácter verdadeiramente excepcional como é o caso de babeiros de criança, sacas de
guardanapo ou "entrecamas", espécie de folho que se usa colocar, nas camas altas, tapando o espaço que vai do colchão ao
soalho.
Todas estas peças nos remetem, no entanto, para a esfera das preocupações, femininas, do arranjo do lar, sendo que, no caso do
Bordado de Tibaldinho, esse alindamento aparece a sublinhar o que há de mais íntimo e privado. Estamos claramente num
universo marcado por uma óbvia domesticidade de que resulta, desde logo, uma importante consequência: o Bordado de Tibaldinho
não se vê. Só num chá ocasional ou numa refeição de festa é possível, a um estranho à casa, ver peças bordadas. No entanto, até pela
natureza daquelas situações este estranho não o é de facto, pertence, certamente, ao mesmo grupo social e provavelmente
habitará muito próximo.
As peças que se apresentam resultam de uma pesquisa e de um trabalho de recolha que incidiu, como seria de esperar, na área
de Viseu e Mangualde. Se correspondem à preocupação de obter o maior e mais diversificado conjunto de peças, não significa
que não tenha havido previamente, de uma forma não controlada, um processo de selecção que conduziu ao resultado que a
exposição patenteia.
Desde logo há que reflectir que estas são as peças que subsistiram a muitos anos de uso, limpas em barrelas feitas com cinza e
água a ferver, ou então batidas nas pedras do rio, coradas nas margens, enxaguadas, secas por cima de arbustos e finalmente
engomadas por ferros, quentes, da sua pequena fornalha de brasas. Terá havido outras peças, mais banais, que o uso intenso
degradou. Pode conservar-se a barra de um lençol ou de uma toalha, para serem novamente aplicados, mas, roupa interior de
senhora ou criança, depois de estragada, dificilmente será conservada. Talvez seja esta a mensagem que nos traz o Menino Jesus de S.
Vicente de Alcafache, muito composto e aconchegado, nos seus calções, camisa e combinação até aos pés. Que outros meninos e
meninas terão usado combinações e "culottes" de que hoje nada sabemos?
Maravilhamo-nos com as peças que a gentileza dos seus donos permite serem aqui observadas. Sabemos, no entanto, que,
porventura as melhores, as mais ricas, foram, segundo velho costume, usadas como mortalha.
Há seis ou sete gerações atrás ter-se-á iniciado a produção deste bordado, naturalmente para um mercado muito local. Mais de
150 anos passados, na presunção de que as peças adquiridas em tão recuados tempos não se degradaram, onde estão agora
essas famílias, que primeiro as possuíram? As grandes casas senhoriais, tão características das terras de Azurara da Beira, de
Santar, de Canas de Senhorim, de Viseu, de Oliveira do Conde, de Lagares da Beira, do Ervedal, mesmo quando permanecem
na posse da mesma família, encontram-se, na maior parte do ano vazias de gente, que passou a fazer a sua vida noutro local,
sobretudo em Lisboa. Fomos até Nelas, Santar, quase até Tondela, Coimbra. Houve indicação de algumas hipóteses a explorar
em Lisboa e uma no Porto, que não houve disponibilidade para concretizar. Se tivéssemos possibilidade teríamos encontrado,
questão de procurar, Bordados de Tibaldinho em Oliveira do Hospital, Carregai do Sal, Penalva do Castelo, S.Pedro do Sul... A
quantidade de peças acolhidas, bem como o valor de algumas recolhas, faz-nos pensar, no entanto, que nada de muito
diferente possa ainda aparecer. Contudo vale sempre a pena reter este facto e as possibilidades que encerra.
3. Tibaldinho. Quando?
Data de 1929 a primeira referência ao Bordado de Tibaldinho. Quase de certeza se terá escrito anteriormente sobre esta
actividade, mas não o conseguimos descobrir, que não foi possível explorar um conjunto de fontes potenciais de que se
destaca a imprensa local. O Capitão Almeida Moreira, um estudioso e grande coleccionador de Viseu, desaparecido em 1939,
que recolheu um espólio significativo de peças, presentes, na sua grande maioria nesta exposição, não nos deixou a mínima
informação sobre as mesmas. Se não sabemos a quem pertenciam, ou as circunstâncias e data da sua obtenção, ainda menos
se verificou a preocupação de averiguar sobre o momento da execução ou da sua autoria.
O texto que Maria Júlia Antunes apresentou ao IV Congresso Beirão realizado em Junho de 1929, em Castelo Branco, constitui a
primeira referência escrita este bordado. As Actas do Congresso foram posteriormente publicadas por Jaime Lopes Dias, em
1931, podendo ler-se (pág. 224):
"... aportemos a Tibaldinho, povoado da freguesia de S. Vicente de Alcafache, onde se produzem decorativos bordados feitos em
pano grosseiro, tecido com linha de algodão sem brilho, parecidos com os bordados de Guimarães. Estes bordados a branco,
desprovidos daquela finura que caracteriza os bordados da Ilha, são compostos de grandes abertos contornados a ponto real, e
os troncos a que aderem folhas bordadas a cheio, são feitos a ponto de nó, assim como outros motivos circulares. Os maiores abertos são
raiados a ponto torcido e contornados a ponto de recorte. Os recortes que completam estes trabalhos, caracterizam-se por terem os
pontos quási sempre da mesma largura.
As bordadeiras de Tibaldinho, fazem os bordados sentadas às portas e despreocupadamente, sem obedecer a risco próprio, numa toada
natural."
Temos algumas dúvidas que Júlia Antunes tenha de facto "aportado" a Tibaldinho ou, nessa suposição, que tenha falado com
alguma bordadeira. Repare-se que ela não menciona os nomes por que são conhecidos os pontos ou os motivos mais banais do
bordado. Fala de um "ponto real" que não existe na nomenclatura usada em Tibaldinho, chama "grandes abertos" aos
vulgaríssimos ilhozes, refere "troncos a ponto de nó" em vez de borbotes, menciona "outros motivos circulares" sem dar mais
qualquer outra indicação e descreve os banais óculos de rede por "os maiores abertos são raiados a ponto torcido e contornados a
ponto de recorte". Como, seguramente, não terá falado nem observado directamente uma bordadeira, conclui a sua comunicação pela
espantosa afirmação de que as bordadeiras de Tibaldinho bordam "despreocupadamente, sem obedecer a risco próprio, numa toada
natural". Como a asneira lança raízes fundas esta, da toada, embalou um autor tão insuspeito como M. Calvet de Magalhães, que no
seu livro Bordados e Rendas de Portugal, segue de muito próximo o texto de J. Antunes.
Maria Clementina Carneiro de Moura no artigo que escreve para a Arte Popular em Portugal, começada a editar pela Verbo em 1961,
denuncia alguma confusão geográfica:
"A Beira contribui em larga escala para enriquecer a família dos bordados a branco nacionais, com a produção dos centros de
Tibaldinho (Viseu) e Alcafache (pequena estância de águas sulfurosas de S. Pedro do Sul)"...
no entanto, identifica com mais propriedade, embora sumariamente, as características do Bordado de Tibaldinho, sublinhando as
"sequências de ilhós", que não designa por enleios ou canoas (conforme se apresentam bem enroladas ou de arco mais abatido), na
saborosa terminologia de Tibaldinho. No entanto os já mencionados óculos de rede são descritos como "aberturas circulares
preenchidas por aranhas" e o famoso, porque único, crivo de Tibaldinho, conhecido localmente em duas versões (crivo de duas e crivo
de três pernas) é referido como "um crivo peculiar tecido pelo avesso". Maria Clementina Carneiro de Moura tem, apesar de tudo,
uma ideia precisa do bordado, nomeadamente quando refere a riqueza dos pontos empregues e a variedade dos motivos utilizados,
embora só cite as folhas de carvalho. Num livro que terá escrito bastante antes (?), Bordados Tradicionais de Portugal, Maria Clementina
Carneiro de Moura apresenta uma fotografia de um canto de uma toalha bordada, talvez por ela mesmo, com motivos bem
característicos de Tibaldinho "tirados de um velho lençol". A facilidade no manejo da gramática de Tibaldinho, que o desenho
denuncia, mostra que a sua provável autora conhecia bem o trabalho (que não as bordadeiras) de Tibaldinho, tão bem que no seu
artigo "O desenho e as oficinas no curso de formação feminina", ao mencionar as características do Bordado de Tibaldinho
refere:
"...a produção actual prova, pela falta de interesse dos desenhos e pela pobreza dos pontos, a franca decadência desta pequena
indústria beiroa". Para esta conhecedora, entusiasta, dos bordados portugueses havia com clareza um "antes" e um "depois".
Mas quem, verdadeiramente conheceu e deu a conhecer o Bordado de Tibaldinho, quem correu as casas todas procurando,
conversando, querendo sempre saber mais e melhor, foi Fernando Louro de Almeida que em 1960/61 aí desenvolve intensa
pesquisa de campo. O resultado desse trabalho foi publicado pela primeira vez em 1964, no n° 35 do Boletim das Escolas Técnicas.
Louro de Almeida não consegue "identificar bordados anteriores a 1810-1830". Tratando-se de obras não autoradas, só por
dedução se consegue situar as peças que chegaram até nós. Cerca de duas gerações passadas, que quase 40 anos correram sobre o
trabalho desenvolvido por Louro :e Almeida, mais difícil se torna precisar a datação das peças, pois para além de duas gerações,
torna-se quase impossível, através de testemunhos directos, situar o momento em que a peça entrou na posse da família:
"Já a minha Avó trouxe esta toalha quando casou", "Este lençol veio do lado da minha sogra" é tudo o que agora se consegue
saber, o que nos remete, no caso de uma informadora com 80 anos para situações que, no máximo, remontam ao principio
do século. Para as peças mais antigas torna-se quase impossível obter dados interessantes, até porque enxovais, roupas de casa,
bordados, são coisas de mulheres, participando da invisibilidade e desqualificação com que, muitas vezes, são entendidas as
preocupações características do universo feminino.
O trabalho de Fernando Louro foi, contudo, suficientemente rigoroso para nos permitir acei tar que muito provavelmente
terá razão em datar os mais antigos exemplares ainda do primeiro quartel do século XIX. Na preparação desta exposição
tivemos o privilégio de o conhecer e de nos apercebermos do seu grau de exigência e do modo como soube calcular e datar
as peças que teve hipótese de apreciar. A corroborar as suas deduções, a publicação de desenhos de papéis recortados, datados
de 1835, na já mencionada Arte Popular em Portugal, evidencia algumas semelhanças com motivos de bordados detectados. Na
mesma direcção, aponta ainda um álbum, norte-americano, de desenhos, de 1815.
Na realidade a questão da datação dos bordados remete-nos para outros processos e metodologias de que se destaca o estudo
comparativo e estatístico dos elementos decorativos. Organizar uma tipologia, a acompanhar (ou não) patamares cronológicos,
só será possível com uma aturada pesquisa no domínio da História de Arte e, mesmo assim, duvidamos da sua exequibilidade.
Identificar, com segurança, as produções por bordadeira, permitirá, talvez, avançar neste campo, pelo menos para os últimos
70 anos. Mas, e antes, o que é que aconteceu? De imediato, levanta-se-nos o problema do aparecimento desta arte em
Tibaldinho.
4. Tibaldinho. Porquê?
Sim, com efeito, porque razão se define um bordado opulento, em Tibaldinho e lugares próximos, com uma imagem que de
imediato no-lo identifica? Porquê aqui e não noutro local? Explicar esta ocorrência é o desafio que se aceita na exacta medida
em que se duvida do seu resultado pois que, na ausência de quaisquer elementos que apoiem as nossas conclusões, permanece, e a
isso nos cingiremos, o conhecimento das regras e modelos que explicam o funcionamento e organização dos territórios.
Bordar corresponde a decorar um tecido, ou outro material, pré-existente, incorporando-lhe fios ou materiais que lhe eram
exteriores, para o que se utiliza uma agulha. Esta definição tanto serve para um bordado a missangas como para um bordado em
que se utilizam linhas ou fios. No bordado a branco a linha tem, evidentemente, a cor branca do tecido. Ao que tudo indica o
bordado a branco terá surgido, na Europa, na tentativa de imitar os efeitos decorativos produzidos pelas rendas. Data de 1678,
a amostra que corresponde à mais antiga e segura datação de um trabalho de desfiados ou crivos. O trabalho de Dresden abriu
caminho à imaginação e, cerca de 1760, um bordado como o Hedebo aparece na Dinamarca, ou ainda, nos finais do século XVIII,
o Hardanger, na Noruega, que constituem exemplos, bem datados e referenciados, desse movimento que se difundiu com
extraordinária rapidez por todo o Velho Continente. Nas Ilhas Britânicas, em locais como Ayrshire, Carrickmacross, Cogeshall ou
Mountmellick o bordado a branco, com diferentes técnicas, de que se destaca o recurso aos ilhozes (pequenos orifícios circulares,
rematados a ponto de cordão), desenvolve-se com imensa rapidez, invadindo os enxovais, a roupa interior e a de criança, de uma
forma decisiva que a moda vitoriana, em Inglaterra, ou a do Segundo Império, em França, ajudou a dar todo o destaque.
Para além do caso da Madeira, em Portugal, pouco se sabe do que aconteceu. Quanto ao bordado da Ilha, como é referenciado
nos escritos mais antigos, ele beneficia das ligações comerciais, que a Inglaterra tem com a Madeira, a qual promove o seu
bordado, na Exposição Universal de Londres de 1850, ganhando o mercado, muito rapidamente, aos ingleses.
Pode imaginar-se que no país a difusão das técnicas do bordado a branco se tenha feito através dos conventos ou colégios onde
as educandas, da melhor sociedade, têm acesso à aprendizagem dos lavores apropriados a meninas da sua classe social. Isto
mesmo transparece da leitura do Relatório Geral da Exposição de Productos de Indústria Portugueza do Anno de 1844,
verificando-se (pag. 901 e seguintes) que são as responsáveis de colégios (nem todos religiosos), ou senhoras com eles
relacionadas, que expõem, em 1844, os seus bordados de "seda a matiz" e "a branco".
Aquelas meninas, de regresso aos seus lares, aí se entretém a bordar os seus enxovais, conjuntamente com suas mães, irmãs,
familiares que frequentem a casa e as suas criadas. Num tempo em que as comunicações se restringiam às cartas, as novidades
eram especialmente apreciadas. Assim um ponto desconhecido, um motivo ou um desenho mais original suscitavam, de
certeza uma atenção apaixonada e eram motivo de muita conversa e experimentação. Ajeitavam-se as fitas nos cabelos,
acomodavam-se as crinolinas e... bordava-se, com risos e mexericos à mistura.
Localiza-se, em Tibaldinho, a casa de Santa Eufémia também referenciada como "Casa de Tibaldinho" cuja construção virá, pelo
menos do século XVII. Próximo, em Fornos de Maceira Dão, uma outra grande casa terá sido iniciada ainda no século XVI. Do
outro lado Santar, com todos os seus palácios. Nada nos impede de imaginar que nalgum destes solares, talvez mesmo no de Santa
Eufémia, as meninas e as senhoras da casa, tenham iniciado algumas das suas criadas nas artes do bordado a branco. Esta hipótese
aparece bem explícita no trabalho de António Teixeira de Sousa, Bordados e Rendas nos Bragais de Entre-Douro e Minho, e nada
existe que a infirme para o caso do Bordado de Tibaldinho.
Num primeiro momento este saber circunscrevia-se à economia daquele agregado, mas muito cedo as bordadeiras manipulam
os conhecimentos adquiridos, tomando consciência que à arte de bordar corresponde um valor de mercado, o qual se apressam a
utilizar. Para isso muito contribuiu a situação da freguesia, no limite dos concelhos de Mangualde, Nelas e Viseu, áreas onde a
existência de casas senhoriais tem uma grande expressão. Só no concelho de Mangualde, uma publicação recente, identifica 28
destas nobres construções armoriadas, a que correspondem famílias que, no princípio do século XIX, ocupando o topo da
pirâmide social, ainda aí habitariam de forma continuada.
No lugar de Banho, a 2 kilómetros de Tibaldinho, funcionam as termas de Alcafache, onde, por modestos que sejam os números,
passam todos os anos largas dezenas de aquistas (em 1940, já numa fase de refluxo, contaram-se 240), ou seja, pessoas com
algumas posses, uma vez que a:e podem ir a águas, e que põem a freguesia em contacto com o exterior. Desde 1884 a freguesia
é servida pela Linha da Beira Alta, que coloca as Caldas de Felgueira a poucos minutos, ou andando um pouco mais, põe o
Luso, Curia ou Coimbra a uma distância de ida-e-volta compatível com um dia de trabalho. Viseu, a cidade abastada e
aristocrática, que sempre aliou o dinheiro ao requinte, dista pouco mais de duas léguas, e o que são duas horas e meia de
caminho? Quer isto dizer que Tibaldinho, onde a electricidade chegou em 1965, não era um local isolado. O mercado estava
ali. A duas horas de caminho, ao preço de um bilhete de comboio, ao alcance de uma encomenda.
O saber bordar deu origem a uma nova actividade: bordadeira. Há mais de cento e cinquenta anos que as mulheres de
Tibaldinho e dos outros lugares da freguesia de Alcafache romperam o círculo fechado de uma magra economia de subsistência,
própria de camponeses com pouca terra. Muito cedo os ganhos obtidos com a venda dos bordados significaram uma melhoria na
validade de vida das gentes da freguesia passando as mulheres a contribuir, com dinheiro, cara o sustento familiar. A
importância que tinha o bordado na economia familiar é-nos dada pela lenda de que em Tibaldinho "até os homens
bordavam". Podiam, num caso de aperto excepcional, dar uma ajuda nos recortes finais, mas o que muitos, de facto, faziam
era facilitar a vida às mulheres para que estas pudessem bordar mais.
O valor económico do Bordado de Tibaldinho foi, aliás, o que lhe deu origem. Antes terá havido bordados, que hoje definimos
como eruditos, correspondendo a uma evolução do que, noutros locais, se chamava "bordado inglês", como aconteceu em
Guimarães ou na Madeira. Quando as bordadeiras se apropriam do bordado e o integram na sua estratégia de melhoria de
vida, começam, naturalmente, a introduzir-lhe motivos ao jeito do seu gosto e sensibilidade. Privilegiam uns pontos em
detrimento de outros, afeiçoam-se a motivos, ritmos, criam e definem uma outra imagem.
As bordadeiras nunca se terão circunscrito a Tibaldinho e, noutros locais da freguesia ou limítrofes, ter-se-á sempre verificado a
sua ocorrência. Também já se referiu como a moda do bordado a branco, em tule, mousselina, linho ou algodão, se espalhou
por toda a Europa. Não é, pois, de estranhar que, bordados muito semelhantes aos mais antigos, que se encontram em
Tibaldinho, apareçam em freguesias ou concelhos próximos.
Verdadeiramente, a questão é exactamente a inversa: se não se aparecem, deveriam aparecer, pois correspondem à expressão
daquele mesmo movimento. Só que, é por referência a Tibaldinho, o lugar mais populoso da freguesia, que o bordado ganha uma
imagem específica, que o identifica e autonomiza e que o transforma num produção de mercado. Acresce ainda que, em português, Tibaldinho, tem uma sonoridade particularmente agradável. Por todas estas razões, não parece crível que alguma
vez a designação "Bordado de Alcafache" (que o Pe. Manuel Messias, organizador de uma exposição de Bordado de Tibaldinho
em 1961, juntamente com Louro de Almeida tanto defende), tenha sido muito popular ou generalizada. O número de pessoas
que em Tibaldinho, Mangualde, Nelas ou Viseu confrontámos com as duas designações, confirmou esta suposição.
O caso deste bordado apresenta, no entanto, uma característica que o individualiza, no confronto com outras áreas de
bordado tradicional. Em Tibaldinho, que é como quem diz, no Banho, Tibalde ou qualquer outra aldeia próxima, a bordadeira
é uma verdadeira artífice, que controla o ritmo do seu negócio. É ela que se antecipa, que compra o material, que risca, que
borda e que, finalmente, vai vender o seu produto. Raramente aqui se encontram bordadeiras por conta de outrém, numa
relação patrão/empregada, embora, acontecesse serem contratadas para as casas, onde prestavam o serviço de bordar, situação
um pouco diferente da que se verificaria numa oficina.
A bordadeira de Tibaldinho não está, nem nunca esteve, espartilhada numa organização do trabalho que não lhe permita ser dona
e senhora daquilo que faz. Esta situação é rara, tanto mais que, ao contrário do que aconteceu para outros tipos de bordado,
desde sempre utilizados para a ostentação e criação de uma imagem de poder, o bordado a branco nunca foi executado por
homens. Ao invés dos bordadores, que no nosso país, já aparecem organizados, com um regimento próprio, em 1572, que
bordam a ouro e fios nobres, como a seda, os trajes que com que a nobreza e o clero sublinham a sacralização do poder e o valor
do sagrado, as mulheres, que trabalham bordado a branco, nunca se organizaram e foram sempre, em qualquer circunstância e
local, muito mal pagas.
5. Tibaldinho. Como?
Entende-se agora melhor a singularidade das mulheres da freguesia de Alcafache, que desde o princípio exploraram
sabiamente um mercado, que não se restringe à freguesia e suas imediações, mas que integra, desde o início do processo, Viseu,
Mangualde e municípios vizinhos como Nelas ou Oliveira do Hospital. Esta área de mercado inclui ainda as estâncias termais de
Caldas de Felgueira, S. Pedro do Sul, Luso ou Curia, locais onde se juntava gente com dinheiro e gosto pela aquisição dos bordados,
bem como as praias da Figueira da Foz e Granja, frequentadas pela "elite" dos anos 10, 20 e 30 deste século.
Outros destinos asseguravam o escoamento dos bordados. Pela linha da Beira Alta e depois pela do Norte, as bordadeiras "faziam
Coimbra e localidades próximas". Ligações familiares permitiam a venda para Lisboa e até para o Brasil. E, ainda há trinta anos,
era possível encontrar estas mulheres, vindas a pé de Alcafache, "a correr" a cidade de Viseu, logo pela manhã, bem cedinho, com
as cestas cheias de panos bordados...
Tal capacidade de iniciativa por parte de pessoas de parquíssimos recursos, que investem em matérias primas o dinheiro da
comida ou do agasalho da família, dá toda a dimensão da extrema dignidade e sabedoria destas mulheres. Durante o Inverno
elas bordam peças, que muitas vezes não tinham sido encomendadas, para vender no Verão. A imagem que existe das
bordadeiras a bordar ao ar livre, nas escadas ou nos alpendres tem muito a ver com situações de falta de luz e de espaço,
típicas de uma casa tradicional de gente pobre, de uma pobreza que, felizmente, nos nossos dias já só é uma má recordação.
Vale a pena referir como a evolução demográfica espelhou de forma clara o significado que chegou a ter o valor económico do
bordado no "amortecer" das pulsões migratórias que tanto afectaram o concelho e a região. Assim considerando a evolução da
população de 1911 a 1960 verifica-se que, enquanto o concelho cresce 4%, a freguesia apresenta um decréscimo populacional de
6%. Contudo as localidades de Banho e Tibaldinho aumentam, respectivamente, 10% e 24%!
Tibaldinho encontra-se abaixo do limiar dos 500 habitantes pelo que as suas 35/40 bordadeiras constituem parte apreciável
da população activa feminina. De facto não andará longe dos 25% desse total. A dificuldade de saber com exactidão o número
das bordadeiras reside no carácter supletivo e esporádico que caracteriza o trabalho da generalidade das bordadeiras. Se a
premência e a necessidade já não são tão fortes como há décadas atrás, cada vez mais a bordadeira tem dificuldades em colocar
um produto cuja incorporação de trabalho manual o torna muito caro.
Esta valorização do trabalho manual, tem vindo a encarecer de forma acentuada as peças bordadas, pelo que as formas
tradicionais da sua comercialização se tornaram obsoletas, não respondendo de forma eficaz ao escoamento desta produção.
Não se vendem toalhas, que facilmente ultrapassam os cem mil escudos, a andar a bater às portas, ou em feiras de artesanato.
Por outro lado, mesmo em Tibaldinho, introduziu-se, durante a 2a Grande Guerra o Bordado de Arraiolos, que desde logo
concorreu com o bordado a branco na preferência das bordadeiras: vende-se bem e dá "mais rendimento".
Os tapetes e carpetes bordados com o ponto de Arraiolos constituem objectos que, ao contrário do bordado a branco, têm
uma enorme visibilidade. No entreabrir de uma porta de entrada é possível vê-los a cobrir o vestíbulo, os corredores.
Adivinham-se a atapetar quartos e salas. Os tapetes de Arraiolos devem muito do seu sucesso (e toda a gente os quer ter,
apesar do preço elevado), ao modo como associam a sua imagem a ambientes requintadamente portugueses. Simbolizam
riqueza e poder. Dão "status". A ironia é que os bordados a branco de Tibaldinho, são tudo isso e muito mais, porque muito
menos vulgarizados, porque ainda mais específicos, caracterizando os enxovais ricos doutros tempos...
6. Tibaldinho. Quem?
Estas mulheres, que quando se inicia a individualização do bordado serão quase todas analfabetas, têm problemas com o
desenho. Nunca prescindiram do risco (a toada natural e o espontaneismo do bordado, como pretendia Júlia Antunes não tem
qualquer razão de ser), só que, por vezes, recorriam ao trabalho de alguma mais dotada para resolverem a sua vida, mas sempre
salvaguardando a sua autonomia, nunca na base de uma qualquer relação hierárquica com a "riscadeira". Esta fazia o seu
melhor.
Os papéis com os "riscos" eram usados até se rasgarem e daí ser tão popular o resistente papel pardo. Os "enleios", essas
características espirais definidas por sequências de ilhozes ou "buracos", como por lá se diz, eram esboçados, um a um, num traço
rápido, o qual funcionava como indicativo por onde a bordadeira fazia correr, golpe a golpe, ligeirinha, a tesoura. Como resultado os enleios de uma mesma toalha, teoricamente iguais uns aos outros, raramente apresentam o mesmo número de ilhozes.
Outras vezes não "calhava" à bordadeira respeitar o desenho: ao pretender corrigir um alinhamento mais discutível, interferia
com o equilíbrio, sempre precário, do motivo, pelo que logo a seguir se deparava com situações que lhe exigiam uma
interferência directa, compondo, acrescentando, melhorando, na definição do desenho. O modo como os desenhos, "os riscos",
se passavam ao tecido, e a intensa utilização a que eram sujeitos, tudo contribuía para a sua degradação e empobrecimento,
nomeadamente no que dizia respeito à sua complexidade e apuro geométrico.
A escassez de capital que se verificava, permite ainda entender a perda de qualidade que se foi verificando na utilização de
tecidos e das linhas. O linho foi substituído pelo algodão, nalguns casos até com fibras artificiais, e a linha foi, durante muito
tempo e caracteristicamente, a linha baça de alinhavar, a mais barata.
A concorrência feita pelo "bordado a lã", nome local do Arraiolos, ao bordado "a algodão", (Tibaldinho), explica como, aos
poucos, este começasse a ser abandonado, por tal forma que, no início dos anos oitenta, Azevedo e Silva deparava-se com a
existência de toda uma geração de mulheres que já não sabia bordar a branco.
A situação começou a preocupar um conjunto de pessoas e entidades para quem o desaparecimento do Bordado de Tibaldinho é
entendido como uma perda e é assim que, alguns anos passados sobre o alerta de Azevedo e Silva, em 1988, se iniciou, em
Tibaldinho, um ciclo caracterizado pela existência de intervenções que incidem sobretudo nas questões da formação profissional,
que deixa de ser informal e familiar, para ser organizada e mediada por pessoas e instituições, exteriores ao local.
Uma primeira acção, desenvolvida em 1988, terá tido resultados muito limitados, pelo que, em 1991/92, se concretiza uma
outra acção de formação profissional, ao abrigo do Programa "Conservação do Património Cultural" do Instituto do
Emprego e Formação Profissional, em que a entidade hospedeira foi a Extensão Educativa a funcionar em Mangualde,
diligência promovida por Teresa Soares, sua dinâmica responsável. Nesta acção a mestra de bordado foi, muito justamente,
Fernanda Ferreira Lopes. Transformar um saber num ofício, constitui, todavia, um desafio exigente e difícil, pelo que, a
posterior constituição "O Borboto", um grupo que integra mulheres jovens, que sabem que a união faz a força, dá a medida
certa do sucesso dessa primeira intervenção... Revezam-se na oficina, nas estadias em feiras, promovem, em conjunto a sua
produção.
Em Novembro de 1994, Madalena Braz Teixeira, que eu acabara de conhecer, no âmbito da realização, em Portugal, das "Rotas da
Seda" (programa da responsabilidade do Conselho da Europa), incita-me a trabalhar na concretização de uma exposição sobre
Bordado de Tibaldinho, no Museu Nacional do Traje. O desafio foi aceite, tendo sido entendido, desde logo, como elemento
detonador de uma acrescida visibilidade para este bordado que quase só é conhecido nas Beiras.
Entre os dois momentos, o do convite e o da exposição, definiu-se um percurso em que muitos se juntaram ao projecto, que
só com tais presenças ganhou sentido, verdade e coerência. Tal foi o caso da Câmara Municipal de Mangualde, que desde o
primeiro momento assumiu o compromisso de financiar a exposição bem como a edição do respectivo catálogo. Integraram
ainda a cadeia de boas vontades, que tornaram possível a exposição, a Junta de Freguesia de Alcafache, a Sociedade do Grupo Coral
de Tibaldinho, a Associação de Desenvolvimento do Dão, o Museu Grão Vasco, a Casa da Ribeira, em Viseu, bem como a Comissão
de Coordenação da Região Centro, onde na altura trabalhava, e o CEARTE - Cento de Formação Profissional do Artesanato.
De facto, garantida a efectiva possibilidade da exposição se vir a realizar, a perspectiva de sensibilizar um mercado, ao nível
nacional, exigia a preparação de uma resposta de qualidade. Foi na constatação deste facto que se desenvolveu, de imediato,
uma frutuosa parceria com o CEARTE, que levou a cabo duas acções de formação e qualificação profissionais (1995 e
1996/1997), tendo juntado às habituais valências lectivas, um aprofundado trabalho de recuperação dos desenhos de peças,
fotografadas e identificadas, como genuínas e antigas, por Fernando Louro de Almeida.
Iniciou-se então um trabalho em que aqueles motivos depois de passados pelo "scanner" de um potente computador eram
manipulados informaticamente tendo em vista a recuperação da sua geometria e equilíbrio iniciais, sendo desta maneira
que Delfim Santos, técnico do CEARTE, e eu própria, na época a trabalhar na Comissão de Coordenação da Região Centro, nos
tornámos bordadores virtuais, especializados noutro "ponto", apropriadamente chamado "ponto Macintosh"... Este
investimento permite agora uma muito significativa facilidade na obtenção de colecções de motivos próprios do Bordado de
Tibaldinho, sendo que subsistem os problemas habituais na passagem dos desenhos ao tecido.
Mas as acções de formação e qualificação levadas a cabo pelo CEARTE, não se esgotaram na recuperação dos desenhos, antes
sublinharam outras componentes essenciais na apreciação destes lavores. Com efeito, o próprio acto de bordar não contemplava, para
a larga maioria das bordadeiras, todo o leque de possibilidades presentes na gramática de Tibaldinho pelo que foram reintroduzidos
pontos caídos em desuso por razões várias, de que se salienta a sua complexidade ou o facto de estarem associados a motivos também
eles objecto de algum esquecimento.
A reintrodução de motivos antigos, reposta a beleza e geometria originais, foi acompanhada assim, pela aprendizagem de pontos
patentes nas peças antigas. Sara Malho, professora reformada da Ex-Escola Comercial e Industrial Emídio Navarro, em Viseu, onde tinha
acompanhado o trabalho do professor Louro de Almeida, foi a competente mestra destas acções, que abrangeram cerca de 20
bordadeiras, tendo-se assistido, também, à reutilização dos esquecidos furadores e arcos, nome que localmente identifica os
bastidores, tão necessários no bordar dos crivos ou redes.
Há muito boa gente que considera trabalho manual sinónimo de imperfeição e tradicional equivalente a rústico. Assim não
surpreende que, de início, se tenham levantado algumas resistências, quanto ao alcance da intervenção. As bordadeiras, contudo, foram
quem mais depressa entendeu o que se pretendia e reagiram da melhor maneira. Sabem melhor que ninguém que a hora é de luta e
trabalho, para quem quer vencer a difícil e feroz concorrência feita por bordados de outras terras, nomeadamente do ExtremoOriente. As peças bordadas durante as acções de formação do CEARTE, foram, posteriormente, adquiridas pela Câmara Municipal de
Mangualde e figuram nesta exposição.
Este bordado mais do que uma imagem, um conjunto de pontos e motivos constitui uma actividade a que corresponde um produto,
único, pelo seu valor patrimonial e simbólico. Num contexto de revalorização de elementos, entendidos como periféricos, dentro da
economia rural, o bordado, como outras produções de carácter tradicional, tem vindo a ser encarado como alternativa que, de novo
com carácter supletivo, apoie a economia dos agregados familiares.
O caminho não é fácil. Passa por um querer colectivo que co-responsabilize cada um dos intervenientes, passa pelo associativismo, passa
pela organização de mecanismos que protejam a especificidade do Bordado de Tibaldinho, "capital de memória" de uma Beira, que
ainda existe.
Ana Pires
Delegada Regional da Cultura do Centro
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AGRADECIMENTOS
Devo a Maria Rita Telles Dinis de Souza, de Lagares da Beira, o ter-me ensinado a apreciar "Tibaldinho". 25 anos após a sua
morte, sei que esta exposição não seria a mesma sem a sua contida ternura.
Maria das Dores de Sousa Christina, ensinou-me tudo o que sei de rendas e bordados. Ensinou-me ainda o valor dos objectos na
tessitura de memórias e testemunhos, com que (também) se constrói a própria noção de família.
O muito que lhe devo e o quanto a aprecio não cabe nestas linhas, escassas e públicas.
Madalena Braz Teixeira constitui outro elo de uma cadeia, que liga um conjunto fortuito de boas-vontades, que originou esta
mostra de Bordado de Tibaldinho. Acreditou em mim de um modo que nunca esquecerei.
Dizer que lhe estarei sempre muito grata é dizer muito pouco.
As bordadeiras de Tibaldinho sabem o quanto as admiro e respeito. Este trabalho, que há muito ganhou toda a sua
cumplicidade, é-lhes inteiramente dedicado.
Finalmente, esta exposição não teria sido possível sem a colaboração de todos aqueles que nos confiaram as suas peças.
Testemunhos, quantas vezes, de acontecimentos de grande valor afectivo, todos sabemos que nenhum seguro do mundo está
em condições de os cobrir.
Por essa confiança e pelo modo como nos abriram as portas das suas casas um "Bem-Hajam" muito sentido e beirão.