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Transcrição

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Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano I - nº 2
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Violência, Mídia
e
Criminalização
da Pobreza
ADUFF
SSind
Seção sindical do Andes
Filiado à CONLUTAS
SUMÁRIO
Associação dos Docentes da UFF
“Cantamos porque chove sobre os
sulcos... e somos militantes desta
vida. E porque não podemos e nem
queremos deixar que a canção se
torne cinzas.”
(Mário Benedetti)
Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua
professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ.
CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811.
Correio eletrônico: [email protected]
EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes Caputo.
PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes
Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco.
ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina Barreto.
REVISÃO: Isabel Correia.
Conselho Editorial: Marina Barbosa Pinto,
Suenya Santos da Cruz, Gelta Theresinha Ramos
Xavier, Juarez Torres Duayer, Elisabeth Carla Barbosa, Eliane Arenas Mora, Paulo Cresciulo de Almeida,
Larissa Dahmer Pereira, Claudia March, Julio Carlos
Figueiredo, José Raphael Bokehi, Ângela R.M.B Tamberlini, Eunice Treim, Catharina Marinho Meirelles.
Colaboraram nesta edição, além de todos os
que assinam textos e fotos: Roberto Leher,
Marcelo Badaró Mattos, Juliana Caetano, Isabel
Correia e Luiz Fernando Nabuco.
Gestão: Autônoma, Democrática e de Luta
Editorial ........................................................................................ pág. 2
Contra Corrente
Guetos e antiguetos: a nova anatomia da pobreza urbana ..................................... pág. 4
Amauta
Criminalização dos movimentos sociais na América Latina ................................... pág. 10
Pública, Gratuita e de Qualidade
Desvio do caráter da Universidade:
administração mercantil fere a democracia
e deturpa essência da instituição ............................................................ pág. 14
“Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá” ............................... pág. 19
Estação Terminal ............................................................................... pág. 25
Lima Barreto: um intelectual militante ................................................... pág. 26
De Capa
Violência, mídia e criminalização da pobreza .............................................
Entrevista com Cel. Mário Sérgio Duarte, Presidente do ISP .............................
Entrevista com Cecília Coimbra,
Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais ...............................................
Entrevista com José Damião de Lima Trindade,
Procurador do Estado de São Paulo .....................................................
pág. 28
pág. 30
pág. 36
pág. 46
Mídia e política
Comunicação e controle social .............................................................. pág. 53
Mais do mesmo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro ............................... pág. 56
Filmes
Algumas reflexões a partir do filme “Quanto vale ou é por quilo?” .......................... pág. 58
Nossa resenha
Planeta favela ................................................................................... pág. 61
Histórias de Vida
Professor Ronaldo Coutinho ................................................................. pág. 66
Poesia
Deley de Acari .................................................................................. pág. 69
Diálogos com a cidade
Aldeia Imbuhy: clima de tensão com o
Exército há mais de uma década ........................................................... pág. 70
ADUFF: 30 anos de luta! ..................................................................... pág. 76
Hiperfocal
João Ripper .................................................................................... pág. 79
Editorial
De Maio a Dezembro
40 anos, depois?
Em maio deste ano a ADUFF lançou o primeiro número de sua revista Classe. 40 anos depois do
maio de 1968 francês refletíamos sobre como nossas
expectativas de mudar o mundo se apresentavam
(e se apresentam ainda) na produção artística. Arte
e política – há arte e cultura não-política? – era o
tema central daquele primeiro número. Arte e política estarão sempre presentes nas páginas de Classe,
como nas páginas seguintes, através das músicas de
BNegão, dos poemas de Deley, das fotos de Ripper,
das peças e filmes aqui comentados.
Mas é em dezembro que trazemos a público
este segundo número de Classe. Por isso, 40 anos
depois do AI-5 e 60 anos após a assinatura da Declaração dos Direitos Humanos indagamos sobre
Violência, Mídia e criminalização da pobreza. Mais
uma criança de favela assassinada. Dessa vez, o
menino Matheus Rodrigues Carvalho, de 8 anos,
morto por um policial na manhã de 4 de dezembro, ao sair de sua casa, na Maré, para comprar
pão. Questionamos então: que democracia é essa
que afirma ter superado a ditadura e seu AI-5 mas
mantém de pé, e mais forte do que nunca, a institucionalização da violência contra os cidadãos que
constituía o cerne daquele Ato Institucional?
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Sim, os alvos hoje não são
os mesmos, os “subversivos” de
1968 já não estão aí (ou estão,
só que agora do outro lado dos
gabinetes – e das baionetas).
Mas, isso ajuda a desvelar as
máscaras: o inimigo continua
sendo criminalizado, mas o inimigo tem várias faces, numa só,
de Classe. O inimigo, criminalizado, é o(a) trabalhador(a), especialmente o(a) trabalhador(a)
empobrecido(a), precarizado(a), Menino morto pela polícia no Complex
desempregado(a), negro(a),
favelado(a). Porque assim como na fase inicial de implantação do capitalismo o grau violentíssimo de expropriação a que se submeteu a maioria da população, para se criar uma massa de homens e mulheres
“livres como um pássaro” para que vendessem sua
força de trabalho por um salário, exigiu a criação de
corpos profissionalizados de “impositores de regras”
e “mantenedores da ordem” – a polícia – a extrema
violência do capitalismo contemporâneo, nessa sua
contraditória e necessária fúria para superar a(s)
sua(s) crise(s), que impõem novas expropriações
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Foto: Naldinho Lourenço/Imagens do Povo
xo da Maré quando ia comprar pão, no dia 4 de dezembro.
(entre elas a de direitos) aos(às) trabalhadores(as),
exige o reforço da repressão policial, da criminalização de comportamentos, da jurisdicialização dos
conflitos. Criminalização da pobreza é como chamam mais corriqueiramente esse processo. E se
esses mesmos trabalhadores ousam ainda se organizar e, eventualmente, mobilizar-se para exigir, a
receita não poderia ser outra: criminalização dos
movimentos e organizações da Classe.
Esse não é um fenômeno brasileiro: Loïc Wacquant, Claudia Koroll e Mike Davis (resenhado por
Maurício Vieira) demonstram a escala planetária
(como planetário é o violento avanço expropriativo
e exploratório do capital) do fenômeno da implantação de um verdadeiro Estado policial-penal cujo objetivo é controlar as populações trabalhadoras e os
territórios que habitam. Todos sabemos, entretanto,
pela simples leitura dos relatórios das organizações
internacionais envolvidas na questão dos direitos
humanos, que o Brasil não é campeão apenas de
futebol, mas que a violência de Estado contra os cidadãos assume aqui proporções absurdas.
Neste número de Classe, através de três
entrevistas, damos voz ao coronel Mário Sérgio Duarte, ex-comandante do BOPE e atual
presidente do Instituto de Segurança Pública,
de forma a deixar evidente as bases da atual
política de “segurança” pública. Ouvimos Cecília Coimbra, professora aposentada da UFF e
presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, para
entender como a ditadura militar ainda vive na
ditadura do mercado. E José Damião Trindade,
ex-presidente da Associação de Procuradores do
Estado de São Paulo, que nos deu uma aula sobre a história dos direitos humanos. Ao fim da
leitura dessas entrevistas assumimos a escolha por Prometeu, que nos apresenta Damião e
diante de um capitalismo regressivo em que “não
há mais nenhuma esperança de melhoria social
significativa” escolhemos lutar pelos direitos humanos da única e necessária forma em que ela
pode ser feita hoje, como uma luta de Classe(s),
contra a ordem do capital. E com Cecília afirmamos que como “toda identidade é conservadora
se não lutar contra o capital”, nossa identidade é anti-capitalista, pela humanidade livre,
é identidade de Classe.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Contra Corrente
GUETOS E ANTIGUETOS
ANATOMIA DA NOVA
POBREZA URBANA
Entrevista com Loïc Wacquant
Realizada por Caroline Keve para a Debate (julho de 2007)
Nascido no sul da França em 1960, Loïc Wacquant é professor da Universidade da CalifórniaBerkeley e Pesquisador do Centro de Sociologia
Européia – Paris. Autor de numerosos trabalhos
sobre desigualdade urbana, dominação etno-racial, Estado penal, corpos e teoria social, traduzido em mais de uma dezena de idiomas. Entre
seus livros, encontram-se, em português, “As
prisões da miséria” (Jorge Zahar, 2001), “Os
condenados da cidade. Estudos sobre marginalidade avançada” (Revan, 2001) “Corpo e alma”
(Relume-Dumara, 2002), “Punir os Pobres”
(Revan, 2007), “Repensar os Estados Unidos”
(Papirus, 2003), “O mistério do mistério” (Revan, 2005), “Um convite à sociologia reflexiva”
(Relume-Dumara, 2006) e “As duas faces do
Gueto” (Boitempo Editorial, 2008).
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Em “Os condenados da cidade”, você traça uma comparação metodológica entre
a evolução do gueto negro nos Estados
Unidos e da periferia francesa operária, o
banlieue¹, durante as últimas três décadas.
Por que você se aprofundou nessa comparação e o que ela revela sobre a mutante
cara da pobreza na cidade?
Loïc Wacquant: Esse livro nasceu da confluência
de dois choques, o primeiro pessoal e o segundo,
político. O choque pessoal foi o descobrimento em
primeira mão do gueto negro estadunidense – ou do
que resta dele – quando me mudei para Chicago e
vivi no South Side por seis anos. Vindo da França,
me chamou à atenção a intensidade da desolação
urbana, as privações sociais e a violência das ruas
concentrada nessa terra non grata que era univer-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
salmente temida, evitada e denegrida pelo mundo
exterior, inclusive por muitos acadêmicos.
O choque político foi a difusão de um pânico moral
sobre a “guetização” na França e em muitas partes
da Europa Ocidental. Na década de 90, a mídia, os
políticos e até alguns pesquisadores acreditavam
que os bairros operários das periferias das cidades
européias estavam se transformando em “guetos”
ao estilo daqueles dos EUA. Desse modo, o debate
público e as políticas de Estado se reorientaram
para lutar contra o crescimento disso que chamavam de gueto. Baseavam-se na premissa de que
a pobreza urbana estava sendo “americanizada”,
ou seja, marcada por uma divisão étnica cada vez
mais profunda, por uma crescente segregação e
pela criminalidade desenfreada.
Juntando esses dois choques, chegamos à pergunta
que provocou uma década de pesquisa: o gueto dos
EUA e os distritos de classe baixa da Europa convergem? Se não, o que está acontecendo com eles?
O que provoca sua transformação? Para responder
a essas perguntas, juntei dados estatísticos e observações de trabalho de campo de uma seção dilapidada do “cinturão negro” de Chicago e do subúrbio parisiense desindustrializado, o “cinturão
vermelho”. Também reconstruí a trajetória histórica desses bairros – porque não se pode entender
seu declínio na década de 90 sem considerar o que
sucedeu no século XX, marcado pelo auge e pela
desaparição da industrialização fordista, assim
como do Estado de bem-estar social keynesiano.
Então, o que aconteceu no cinturão negro
americano e no cinturão vermelho francês?
Eles, de fato, convergem?
Do lado americano, mostro que depois das re-
voltas da década de 60 o gueto negro implodiu,
entrou em colapso por si mesmo devido à simultânea contração da economia de mercado e retirada do Estado social. O resultado foi uma nova
forma urbana que denomino “hipergueto” e que
se caracteriza por uma dupla exclusão, baseada
na raça e na classe, e reforçada por uma política
de retirada do Estado de bem-estar e de abandono
urbano. Assim, quando falamos do gueto estadunidense, devemos contextualizá-lo historicamente, sem confundir o “gueto comunal” da década
de 50 com sua descendência do final do século.
O gueto comunal era um mundo paralelo, uma
“cidade negra dentro da branca”, como os sociólogos afro-americanos St. Clair Drake e Orase
Cayton o chamam na sua obra-livro Black Metropolis. Esse gueto funcionava como uma reserva de
trabalho não qualificado para as fábricas. Essa
reserva fazia parte de uma densa rede de organizações, que oferecia proteção contra a dominação
branca. Com a desindustrialização e a mudança
para o capitalismo financeiro, o hipergueto perde
sua função econômica e se desprende das organizações comunais, que, por sua vez, são substituídas por instituições estatais de controle social.
Este é claramente um instrumento de exclusão,
um mero receptáculo para as estigmatizadas e
superficiais frações do proletariado negro: os desempregados, os beneficiários da assistência social, os criminosos e os participantes da expansiva economia informal.
Do lado francês, a percepção dominante politicamente e nos meios de comunicação é fatalmente
equivocada: os municípios de classe baixa passaram por um processo de empobrecimento e deteriorização gradual que os afastou do padrão de gueto.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Um gueto é um território encravado noutro, etnicamente homogêneo, que abarca todos os membros
de uma categoria subordinada e suas instituições e
também previne sua expansão para a cidade. Atualmente, os banlieues, em deterioração, são muito
heterogêneos e se tornaram mais diversificados em
termos de composição étnica nas três últimas décadas; tipicamente, contêm uma maioria de cidadãos
franceses e imigrantes de cerca de duas ou três dezenas de nacionalidades. A crescente presença desses migrantes pós-coloniais é o resultado de uma
diminuição da separação espacial: eles costumavam ter seu acesso negado às habitações públicas e,
em conseqüência, mais se segregavam. Os residentes que ascendem nessa estrutura de classe, seja
pela escolarização, pelo mercado de trabalho ou
por empreendimentos, rapidamente abandonam
essas áreas degradadas.
Os banlieues do cinturão vermelho também perderam a maioria das instituições locais ligadas
ao Partido Comunista (ao qual devem seu nome),
que costumava organizar a vida ao redor das fábricas, os sindicatos e o próprio bairro, e dava
às pessoas um orgulho coletivo da sua classe e
da sua cidade. Sua heterogeneidade étnica, as
fronteiras porosas, a decrescente densidade institucional e a incapacidade de criar uma identidade cultural comum fazem com que essas áreas
sejam o oposto dos guetos: são antiguetos.
Isto vai contra a imagem pintada pela mídia e pelos políticos franceses (de direita e
de esquerda), assim como dos ativistas mobilizados em torno dos temas imigratórios,
raciais e de cidadania.
Esta é uma boa ilustração, uma contribuição cha-
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ve da sociologia
ao debate civil:
através da conceituação precisa e
da observação sistemática, vêem-se
as grandes brechas – que nesse
caso configuram
uma total contradição entre a
percepção pública
e a realidade social. Os imigrantes e seus filhos se
Protesto contra a morte de três jovens do Morro da Pr
mesclaram mais
a traficantes do Morro de São Carlos. Foto: Marcelo Sa
nas cidades francesas, não se separaram; por seus perfis sociais e
oportunidades, se parecem mais com os nativos da
França, deixaram de ser diferentes. Dispersaramse no espaço, em vez de se concentrarem. Precisamente porque agora estão mais “integrados” na
vida nacional dominante e competem pelos bens
coletivos, eles são vistos como uma ameaça, e a
xenofobia aparece entre os segmentos nativos da
classe trabalhadora, ameaçada pela instabilidade
social agravada.
As periferias urbanas na Europa Ocidental não
sofrem de “guetização”, mas da dissolução da classe trabalhadora tradicional como resultado da normalização do desemprego massivo e da expansão
de trabalhos instáveis a médio prazo, além de serem difamadas no debate público. Objetivamente, o
discurso da “guetização” faz parte da demonização
simbólica dos distritos de classe baixa, que os debilita socialmente e os marginaliza politicamente.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
“Os Condenados” demonstra
que a tese da
“convergência”
entre Europa e
América dentro
do modelo do
gueto negro é
empiricamente
incorreta e enganosa em termos
políticos. Em seguida, revela a
“emergência” de
um novo regime
rovidência, entregues por militares
de pobreza urbaalles
na em ambos os
lados do Atlântico, distinto do regime da metade
do século passado, que estava ancorado no trabalho industrial estável e na rede de segurança
do Estado keynesiano. A atual marginalidade
avançada se alimenta da fragmentação do trabalho assalariado, da reorientação das políticas
de Estado, contrária à proteção social e a favor
da compulsão do mercado, e do generalizado ressurgimento da desigualdade – isto é, marginalidade produzida pela revolução neoliberal. Isso
significa que tal marginalidade não está ficando
para trás, mas que ainda vem muito pela frente.
Está destinada a persistir e a crescer enquanto
os governos implementarem políticas de desregulação econômica e de “acomodação” dos bens
públicos. Mas esta nova realidade social, engendrada pela escassez e instabilidade do trabalho
e pelo volúvel papel do Estado, é ofuscada pelo
“etnizado” idioma da imigração, da discrimi-
nação e da “diversidade”. Tratam-se de temas
reais, sem dúvida, mas não são a força motriz
da marginalização da periferia urbana européia.
Mais do que isso, não servem para esconder a
nova questão social do trabalho inseguro e suas
conseqüências para a formação de um novo proletariado urbano do século XXI.
No livro, você ressalta a indignidade coletiva sentida por aquela gente imobilizada no
hipergueto e no desindustrializado banlieue.
Os moradores do cinturão negro perderam
o orgulho racial e seus correlatos do cinturão vermelho perderam o orgulho de classe.
Você sustenta que a “estigmatização territorial” é uma nova dimensão da marginalidade urbana, tanto nos EUA, como na Europa,
no amanhecer de um novo século.
De fato, uma das características distintivas da
marginalidade avançada é a propagação do estigma espacial, que desdenha das pessoas vindas
dos bairros relegados. Em toda sociedade avançada, determinados distritos ou bairros urbanos
se tornaram símbolos nacionais e referenciais
como portadores de todos os males da cidade. A
crescente difamação dos distritos de classe mais
baixa das metrópoles é uma conseqüência direta
do enfraquecimento dos afro-americanos no sistema político estadunidense e da classe trabalhadora no cenário político europeu.
Quando um distrito é amplamente visto como um
“ninho de criminosos”, onde só os detritos da sociedade podem tolerar viver, quando seu nome,
para a imprensa e para a política, é sinônimo de
vício e violência, o lugar é infectado e essa condição se sobrepõe ao estigma da pobreza e etnicida-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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de (que significa raça, nos EUA, e origem colonial
na Europa). Aqui, me remeto às teorias de Irving
Goffman e de meu mestre Pierre Bourdieu para
ressaltar como a desgraça pública que afeta essas
áreas desvaloriza o sentido de ser de seus residentes e corrói seus laços sociais. Em resposta à difamação espacial, os residentes recorrem a estratégias de distanciamento mútuo e denegrimento
uns dos outros, se voltam para a esfera privada da
família, saem do bairro (quando têm opção). Essas
práticas de auto-proteção simbólica disparam um
mecanismo de realização pessoal, no qual a reação
às representações negativas do lugar acabam por
produzir a mesma anomia cultural e pulverização
social que tais representações acusam existir.
A estigmatização territorial não só debilita a capacidade de identificação e ação coletiva das famílias de classe baixa, como também desencadeia
prejuízos, burocracias e discriminação por parte
de quem se encontra no mundo exterior, como os
funcionários públicos, por exemplo. Os jovens de
La Courneuve, o estigmatizado cinturão vermelho
parisiense que estudei, se queixam constantemente
de serem obrigados a esconder seu endereço quando se candidatam a um emprego, começam algum
relacionamento ou freqüentam a universidade,
para evitar reações negativas de medo ou rechaço.
A polícia, considerando que os jovens vêm desse
gueto freqüentemente visto como temível, já “infectados”, é particularmente suscetível a tratá-los
com maior severidade. O estigma territorial é um
obstáculo a mais no caminho da integração sócioeconômica e da participação civil.
Note-se que o mesmo fenômeno se observa na
América Latina entre os habitantes das malreputadas favelas do Brasil, das poblaciones do
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Chile e das villas miréria da Argentina. Suspeito
que os residentes da vila do Bajo Flores, La Cava
ou da vila do Retiro, em Buenos Aires, sabem
muito bem o que é a “discriminação domiciliar”.
Esse estigma territorial se anexa aos distritos
de classe baixa da cidade argentina pela mesma
razão que se anexa ao hipergueto dos EUA e ao
antigueto da Europa: a concentração de desempregados, de sem-teto, de imigrantes sem documentos, assim como dos mais pobres segmentos
do novo proletariado urbano, empregado na desregulada economia de serviços. Outro motivo é
que a tendência das elites de Estado é usar esses
espaços como “pára-raios” para evitar o enfrentamento dos problemas cuja raiz se encontra nas
transformações do trabalho.
Esse estigma territorial, por acaso, facilita
um giro ao Estado penal e à implementação
de políticas de tolerância zero, cuja expansão mundial você analisou em seu livro anterior, As prisões da miséria?
A contaminação espacial oferece ao Estado maior
amplitude para justificar políticas agressivas
de controle da nova marginalidade, que podem
assumir a forma de dispersão ou contenção, ou,
melhor ainda, uma combinação de ambos os enfoques. A dispersão aponta para dispersar os pobres no espaço e recuperar os territórios que eles
tradicionalmente ocuparam, sob o pretexto de
seus bairros serem áreas demonizadas, às quais
“não se pode chegar” e que simplesmente não
têm salvação. Atualmente, isso funciona a partir da demolição massiva de moradias públicas
no coração dos guetos das metrópoles estadunidenses e nas empobrecidas periferias de muitas
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
cidades européias. Milhares de habitações são
destruídas no meio da noite, e seus ocupantes
são espalhados por zonas adjacentes ou por
distritos pobres nas cercanias, criando a aparência de que “o problema foi resolvido”. Mas
dispersar os pobres só os torna menos visíveis
e menos capazes de intervenção politicamente; não lhes oferecem trabalho, nem tampouco
um status social viável.
A segunda técnica utilizada para lidar com o
avanço da marginalização tem enfoque oposto:
busca concentrar e conter as desordens geradas
pela fragmentação do trabalho. O que faz é jogar
uma rede policial cerrada ao redor dos bairros relegados e expandir os aprisionamentos e cárceres,
para enviar os elementos mais rebeldes para um
exílio crônico. Esta contenção punitiva é normalmente acompanhada, na frente social, por medidas destinadas a forçar o encaixe dos receptores
de assistência pública na desregulada economia
de serviços, em nome do “workfare”² (falo da
invenção dessas novas políticas de pobreza nos
EUA, casadas com o restritivo sistema de “workfare” e o expansivo “prisionfare” no meu livro
seguinte, “Castigar os pobres”). Mas a política
“pulso firme” ou “tolerância zero” é também de
autoderrota. Enviar os desempregados, os empregados marginalizados e os pequenos criminosos
para a cadeia os torna ainda menos empregáveis
e mais desestabiliza os bairros e as famílias de
classe baixa. Acionar a polícia, o judiciário e os
cárceres para terminar com a marginalidade não
só é enormemente custoso e ineficiente, mas também agrava o mal que se quer curar. Assim, voltamos a entrar no círculo vicioso há muito tempo
delimitado por Michel Foucault: o fracasso do
aprisionamento como resolução para o problema
da marginalidade serve para justificar a contínua expansão da mesma.
Além do mais, na Argentina e em seus países vizinhos, que durante o século XX atravessaram décadas de governos autoritários, a própria polícia é
um vetor de violência e o aparato judicial abunda
em desigualdade. Assim, estender o Estado penal
à correlação de classes e lugares equivale a restabelecer uma ditadura sobre as frações marginais
da classe trabalhadora. Viola, na prática, o ideal
da democracia cidadã, que teoricamente guia as
autoridades. O que o Estado deve combater não é
o sintoma, a insegurança criminosa, mas a causa
da desordem urbana: a insegurança social que o
mesmo Estado gerou ao se converter em um diligente servidor do despotismo do mercado.
Tradução do original em espanhol
de Juliana Caetano
Notas da tradutora:
¹ Zona periférica urbanizada, localizada em torno de uma grande
cidade, sem ser independente dela; o que poderia ser traduzido por
“subúrbio”. Entretanto, acabou por nomear especificamente as comunidades e comunas suburbanas francesas, sejam bairros ou municípios,
onde vivem os trabalhadores que a metrópole emprega, mas não abriga,
dotadas das características sociais abordadas na presente entrevista.
² Programa de assistência social que se contrapõe ao antigo welfare,
ou Estado de bem-estar social, ou, ainda, Estado providência. No workfare,
é preciso trabalhar para receber em troca o benefício social básico, ou seja,
os desempregados participam de iniciativas do governo para que a renda
do próprio trabalho seja sua providência.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Amauta
Criminalização dos movimentos
sociais na América Latina¹
Claudia Koroll - Especial para a revista Classe
Professora da Universidad popular Madres de Plaza de Mayo (Argentina)
Terminado o ciclo de ditaduras militares na
América Latina, quando os povos comemoram a
“conquista da democracia”, as classes dominantes
começam o processo de readequação dos mecanismos de controle, de afirmação de sua hegemonia,
de produção de consenso, de fragmentação social e
de repressão, necessários para assegurar o modo de
acumulação capitalista na presente etapa. As “democracias realmente existentes” asseguram a livre
movimentação de capitais e reagem furiosamente
se os movimentos populares criam obstáculos à sua
reprodução ou circulação. Os organismos internacionais de gestão do “governo mundial das multinacionais” (FMI, Banco Mundial, OMC, G-8, etc.) criam
programas para garantir que o saque sistemático
dos bens dos territórios subordinados a suas estratégias tenha vias de saída para o Primeiro Mundo.
Promovem legislações para defender seus direitos.
Criam forças militares para patrulhar e controlar
essas regiões (como a IV Frota norte-americana).
O capital ganhou direitos nessas “novas democracias”. O que não se observa suficientemente
é como, ao mesmo tempo, os povos perderam direi-
10
tos, em especial @s socialmente excluíd@s, enclausurados em verdadeiros guetos de miséria e indigência, em regiões onde não há direitos nem lei,
salvo o grito de ordem das forças repressivas. Da
Doutrina de Segurança Nacional, passou-se à Doutrina de Segurança Cidadã, ou à Doutrina de Segurança
Democrática. A primeira perseguia preferencialmente @s “subversiv@s”, ou seja, os que não aceitavam a
“ordem” imposta pelas burguesias e pelo imperialismo
para defender e reproduzir seu sistema. Hoje se perseguem “os criminosos”, entendendo por criminoso tanto
um movimento social que se levanta para recuperar a
terra, cuidar do território que habita, evitar a destruição da natureza, fazer produzir uma fábrica abandonada por seus patrões, como alguém que, empurrado
violentamente ao desamparo, cata comida no lixo, ou
papelão nas ruas para sobreviver penosamente.
A criminalização dos movimentos populares é
um aspecto orgânico da política de controle social do
capitalismo para garantir sua reprodução e ampliação. Articula planos diversos que vão desde a criminalização da pobreza e judicialização do protesto social até a repressão política aberta e a militarização.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A chamada “globalização” elevou a “guerra
dos ricos contra os pobres” a uma dimensão mundial. Se os governos imperialistas, em nome da
“democracia”, da “liberdade”, do “desenvolvimento”
e do “progresso” invadiram e destruíram países e
civilizações, promoveram a fragmentação dos Estados que se negavam a agir de maneira subordinada a seus interesses, assassinaram presidentes
e colocaram numa lista de “criminosos” líderes populares como integrantes do “Eixo do Mal” (num
discurso fundamentalista que tange o fascismo),
isto, no âmbito local, se traduz na perseguição aos
movimentos de defesa dos bens da natureza, dos
direitos sociais, humanos, políticos.
Como conseqüência das políticas de exclusão
social e de precarização de todos os planos da vida,
se produzem novos fenômenos nas relações sociais.
O medo “do outro” é um dos dados significativos “organizadores” dessas relações de desigualdade, desconfiança e diluição das solidariedades. A fragmentação social funciona como estímulo desses medos.
Os novos “desaparecidos sociais” configuram uma
“fantasmática” aterrorizante, num corpo social várias vezes ferido e vulnerabilizado pelas contínuas
perdas materiais e simbólicas.
A exclusão social faz com que se busque satisfazer as carências de modo imediato para garantir
a sobrevivência, tanto em termos individuais como
coletivos, gerando, no imaginário construído a partir
da hegemonia cultural, a identificação das zonas de
pobreza com territórios de crime. Essas noções, que
estimulam respostas conservadoras, são alimentadas pelos grandes meios de comunicação, que ativam deliberadamente os mecanismos de terror para
levantar as exigências de “segurança”, que significam, em última instância, garantias para os direitos
do capital. A ruptura de identidades leva a entender
a pobreza, a marginalidade, a miséria do outro como
ameaça e a carregar esses sentimentos de conteúdo
racista, xenófobo, violento, repressivo e autoritário.
Esses mecanismos de alienação social são reforçados
pela perda de sentido e despolitização da luta social,
o que favorece que a mesma ingresse no índice da
criminalização como “causa penal”.
Os meios de comunicação cumprem um papel central na construção de uma subjetividade
alienada. O discurso midiático se reforça a partir
de políticas públicas que fragmentam o campo social e também territorial, com propostas diferenciadas de educação, saúde, habitação, construindo
realidades geográficas que acentuam a distância
entre incluíd@s e excluíd@s, inclusive no interior
dos setores populares. Muitas universidades, centros de pesquisa, fundações e espaços de produção
intelectual que respondem às agendas de interesses definidas pelo Banco Mundial e pelos grandes
centros de poder produzem um amplo espectro de
interpretações que tendem à dissociação de saberes, a uma funcionalidade que condiga com os interesses do poder mundial, à apropriação dos saberes
populares e à assimilação até mesmo dos discursos
progressistas para fundamentar propostas de desarticulação das possíveis alternativas populares.
Uma medida essencial para reforçar a dominação é a criação de dispositivos de controle da pobreza. Esteban Rodríguez² escreve:
“Neste contexto, caracterizado pela irrupção
da exclusão, o Estado redefiniu sua intervenção. O
Estado continuará intervindo, ainda que não seja no
sentido da integração social. Sua intervenção será
excludente. Se intervém para assegurar essa capacidade de excluir, ou para manter a exclusão, ou, o
que dá no mesmo, para evitar a irrupção, a intervenção estatal torna-se desruptiva. A desrupção é a for-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
11
ma que o controle social assume quando se trata de
manter a exclusão, quando o inviável se torna insustentável e, portanto, já não cabe mais qualquer inclusão. Essas tecnologias de controle têm a ver com:
a) as agências políticas que, sobre a base do clientelismo, organizam a cooptação; b) as agências sociais
que, baseadas na cooptação, organizam o assistencialismo; c) as agências repressivas, que articulam
diferentes práticas (gatilho fácil, antitumulto, esquadrões da morte), que são formas de administrar
o crime e o ascenso das mobilizações sociais; e d) as
agências judiciais, que organizam a criminalização
da pobreza e, logo, a criminalização do protesto. (...)
Quando as multidões irrompem, é preciso intervir
e a intervenção será brutal, ainda que focalizada,
e contundente, ainda que imperceptível, se a multidão não se resignar. Da “doutrina de segurança
nacional”, passamos à “tolerância zero” , da mesma
maneira que a “mão invisível” se torna “mão dura”.
Uma mão que se torna um punho fechado, mas fica
invisível, intermitente, difusa e errante. Por isso não
se consegue percebê-la como tal. O terror do qual falamos é um terror espectral, que já não tem base
real num ponto determinado, numa instituição, mas
se dissemina em diferentes práticas que organizam
e administram a desrupção. Esse será o terrorismo
de Estado nesta nova época marcada pela crise de
representação: um punho sem braço”.
Algumas das modalidades da criminalização
da pobreza são o gatilho fácil, o aniquilamento das
populações pobres, a discriminação no sistema penal e a militarização de determinados bairros ou
regiões. Todos atuam como dispositivos de disciplinamento, sem outros critérios além do castigo
à miséria e a violência constante como única face
da lei. Geram-se verdadeiros assaltos à população
mais vulnerável, que buscam estabelecer a ordem
12
armada diante dos mais fracos.
As organizações feministas vêm denunciando
diversas modalidades de criminalização das mulheres pobres. Elas são capturadas pelas redes de prostituição, perseguidas por legislações que reprimem
as vítimas enquanto protegem os chefes do tráfico,
vítimas de assassinatos, em grande parte relacionados a essas redes de tráfico de mulheres. Também a
proibição do aborto é uma forma de criminalizar as
mulheres pobres e controlar seus corpos.
Há um fio contínuo entre as políticas de criminalização da pobreza, a judicialização do protesto social e a criminalização dos movimentos sociais. O enquadramento d@s excluíd@s como ameaça e de suas
ações como delitos interfere na representação simbólica que considerava o lutador social um militante
solidário, justiceiro. Hoje, os que lutam são apresentados como delinqüentes, e sua prisão é propagada
como castigo exemplificador.
A partir dos meios de comunicação e de vozes oficiais do poder, se produz uma forte desqualificação do protesto social, o que promove sua ilegitimidade social. O resultado é outro mecanismo
fundamental, a mudança das figuras penais empregadas nos processos dos militantes, utilizada
pelo sistema judicial para evitar as libertações.
Assim, o castigo se produz já no próprio processo. O trânsito pelas torturas nas delegacias e nas
cadeias faz parte do dispositivo de criminalização
da manifestação política e se tornou uma enorme
pressão sobre as organizações sociais.
A criminalização dos movimentos populares
se exprime, então, em políticas como o avanço do
processo de judicialização dos conflitos, visível na
multiplicação e agravamento das figuras penais,
na maneira como elas são aplicadas por juízes e
afins, no número de processos contra militantes po-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
pulares, na estigmatização das populações e grupos
mobilizados, no incremento das forças repressivas
e na criação de tropas de elite especiais, orientadas para a repressão e militarização das zonas de
conflito. Por todos esses caminhos, os problemas
sociais e políticos tornam-se processos penais, nos
quais o povo não tem mecanismo de intervenção, a
não ser como espectador ou como réu. De possíveis
atores sociais, os sujeitos em conflito se reduzem a
excluídos, vítimas ou criminosos em potencial.
No plano continental, a Colômbia é o país
que funciona como laboratório privilegiado para os
experimentos repressivos contra as organizações
populares. Utilizando-se sempre do mesmo argumento – sua hipotética vinculação às guerrilhas –,
se estabelece um regime ditatorial com aparência de
“democracia representativa” e justifica-se a liquidação completa de organizações, a prisão de seus dirigentes e de seus militantes, assim como de comunidades inteiras. Entretanto, é preciso advertir que
os repressores – polícias, militares, juízes, legisladores, jornalistas, políticos – hoje estão “assessorando” seus pares em vários países da América Latina.
Torna-se alarmante o processo de criminalização do
movimento popular no México, Peru, Haiti – sob comando da MINUSTAH –, mas também os ensaios de
criminalização do Movimento Sem Terra do Brasil,
no Rio Grande do Sul, a judicialização do movimento
campesino do Paraguai (a Justiça continuando sob
controle do Partido Colorado)³ e a perseguição e extermínio do povo mapuche no Chile.
Destacando-se essas situações, vale chamar
a atenção para o fato de que as modalidades descritas não são a “exceção”, mas as formas mais
agudas dos mecanismos de repressão que se utilizam em praticamente todos os países da América
Latina. Esses mecanismos são amparados por Leis
Antiterroristas - que parecem mais uma cópia que
vai passando de um país a outro, e são executadas
por forças repressivas que estudam os mesmos manuais e trabalham conjuntamente sob o comando
norte-americano, ou em experiências humanistas
de invasão de países, como é o caso do Haiti.
Talvez seja uma necessidade e uma urgência
dos movimentos populares do continente reativar
os mecanismos de solidariedade internacionalista,
promovendo uma forte campanha de denúncia da
criminalização dos movimentos sociais, de luta pela
retirada de processos contra @s militantes sociais
judicializad@s, pela libertação dos presos e presas
polític@s e pela legitimidade de defender todos e
cada um dos direitos humanos, incluindo o direito
à rebelião frente a todas as opressões.
Tradução do original em espanhol
de Juliana Caetano
Notas:
¹ A maioria das opiniões que se apresentam neste artigo é a síntese
pessoal de uma investigação coletiva, realizada para o seminário
“Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América
Latina” – realizado pelo Instituto Rosa Luxemburgo e pela Rede Social
de Direitos Humanos do Brasil, entre os dias 18 e 20 de junho, na
Escola Nacional Florestan Fernandes, com participantes da Argentina,
Chile, México, Paraguai, Brasil e Alemanha.
² RODRÍGUEZ, Esteban. “Un puño sin brazo. ¿Seguridad ciudadana
o criminalización de la multitud?” In: H.I.J.O.S. La Plata, La criminalización de la protesta social, Ediciones Grupo La Grieta, La Plata,
Argentina: novembro de 2003.
³ Neste caso, os mecanismos de repressão também funcionam combinados. Seis campesinos paraguaios estão presos injustamente há
dois anos na Argentina. O governo “dos direitos humanos” é um dos
que mais fez presos políticos desde a “recuperação da democracia”.
Quando escrevo este artigo, os presos paraguaios na Argentina completam 50 dias de greve de fome, pedindo por asilo político no país.
Mas também há presos campesinos, lutadores chilenos, peruanos,
trabalhadores petroleiros, em diferentes cárceres argentinos.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Pública, Gratuíta e de Qualidade
DESVIO DO CARÁTER da universidade:
administração mercantil fere a
democracia e deturpa essência
da instituição
Luiz Henrique Schuch
Professor da UFPEL
Surpreendentemente, apesar de ter-se desenvolvido sob as asas de um Estado tipicamente patrimonialista, a jovem universidade brasileira, forjada há menos de um século, produziu,
a partir do seu interior, considerável consciência da função eminentemente pública que deve
desempenhar. Nisto, aproximou-se da trajetória
que já vinha sendo traçada há mais tempo em
outros países latino-americanos e das melhores
tradições do pensamento humanista.
Segundo o sociólogo Francisco de Oliveira,
em palestra proferida na abertura do 6º Conselho Extraordinário do ANDES-SN - CONAD,
realizado em Brasília, no mês de agosto de
2005, o surgimento desta consciência procedeu-se quase como um milagre e significa um
escândalo aos olhos da elite político-econômica brasileira, ainda tão condicionada a uma
relação do tipo colonial frente aos interesses e
modelos impostos de fora.
14
Por isso, não é casual surgirem em todos os
períodos históricos abertos à expansão do ensino
superior brasileiro avaliações produzidas alhures
- imediatamente repetidas por membros da burocracia nacional - que localizam a raiz das mazelas
das universidades públicas no seu descompasso
em relação às conveniências empresarias.
Tanto na década de 60, sob a vigência do
acordo MEC/USAID, como na década de 90,
nos documentos vindos dos grupos de economistas de Chicago e do Banco Mundial, foram
formuladas engenhosas construções retóricas
para justificar que “os muros das universidades deveriam ser derrubados” não para responder às indagações do povo brasileiro nem
para ajudar a resolver os seus problemas fundamentais, mas como disfarce da intenção de
conquistar o seu atrelamento instrumental
aos interesses estratégicos dos negócios.
Recentemente, a mesma coisa volta a se
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
fotos: Stela Guedes Caputo
Anúncios de cursos pagos estão espalhadas pela UFF. Na foto, faixas no campus do Valonguinho (note o erro de concordância na primeira delas).
O primeiro custa 18 prestações de R$ 950,00 e o segundo, 18 de R$ 190,00..
repetir, agora com outras artimanhas, em decorrência do processo de internacionalização
do chamado setor de serviços, transformado na
“bola da vez” da expansão das possibilidades de
lucro fácil mundo afora. A partir dele, são determinados novos contornos na distribuição internacional do trabalho e a sua conseqüência: novas exigências impostas aos sistemas nacionais
de ensino, reservando, mais uma vez, posição
subalterna a países como o Brasil.
As políticas educacionais preponderantes nesses períodos resultaram em perda de
qualidade social do ensino superior, em precarização do trabalho docente, em ampliação
do setor privado e ampliação da privatização
por dentro do setor público, apesar de todas
as lutas desenvolvidas pela comunidade universitária. A privatização por dentro do setor
público sempre esteve associada à tentativa de
transferir a pesquisa e a educação do âmbito
da esfera pública para o regime fundacional.
Na década de 60, a via empreendida foi o registro das próprias universidades públicas com o
estatuto de fundações. Mas, como os dois regimes, autárquico e fundacional, foram praticamente igualados pela Constituição de 88, a
privatização por dentro das instituições passou
a trilhar uma via paralela: a transferência de
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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razão que lhe tem garantido sustentação social desde quando e
onde existem universidades como
as que conhecemos.
Desvio de caráter, no caso,
não se refere ao componente moral, mas às características essenciais da instituição universitária,
em particular aquelas que justifi“Investimento”: 15 parcelas de R$ 450,00, num total de R$ 6.750,00.
cam o atributo da autonomia.
Pelo menos dois pólos externos vêm
atividades e funções das universidades para
fundações inteiramente privadas, chamadas atuando no sentido de tirar proveito particular do patrimônio social representado pelas
eufemisticamente de fundações de apoio.
Não existe, por maiores que sejam as de- universidades públicas. Por um lado, govermandas acadêmicas, nenhum argumento ca- nantes tentam reduzi-las a meras repartipaz de legitimar a necessidade de fundações ções, obrigadas a cumprir caprichos e acordos
privadas em uma universidade pública. Cria- imediatistas muitas vezes condicionados aos
das com o pretexto de contornar dificuldades períodos de governo e aos interesses eleitode natureza administrativa e entraves legais, rais. Por outro, setores econômicos operam a
acabaram por gerar enormes distorções nas des-instituição do espaço público destinado à
atividades de ensino, pesquisa e extensão de- produção de conhecimento para transformásenvolvidas na universidade, submetendo-a à lo em mais um campo dos seus empreendilógica do mercado. Lógica essa da qual deri- mentos. Ambos incorporam em suas táticas
vam prioridades incompatíveis com a ativida- a transferência de funções das universidades
de acadêmica crítica e socialmente referencia- públicas para as fundações privadas. Somente a existência desses interesses externos é
da, que é a essência da universidade pública.
Diante do descaso dos governos com o fi- capaz de explicar o acobertamento das afronnanciamento das universidades públicas e das tas à Constituição e a neutralização dos efeidificuldades administrativas, os burocratas têm tos de tantas condenações dos Tribunais de
incentivado e tirado proveito da fuga pela via Contas, apontamentos de irregularidades
paralela, privatizante e ilegal, pelo desvio de das controladorias, denúncias do Ministério
caráter acadêmico imprimido pelas fundações. Público e das comunidades universitárias.
As fundações privadas ditas de apoio nada
No sentido inverso, o equacionamento daquelas
dificuldades só terá sucesso com o fortalecimen- mais são do que entes privados intermediando
to do caráter público da universidade, da sua a relação financeira entre órgãos públicos, evaautonomia e da sua democracia, pois é esta a dindo-se dos controles e imprimindo, a partir
16
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
dessa interposição, o interesse subjetivo, particular, nas decisões que, nesse caso, deveriam
ser da esfera pública. Ferem, estruturalmente,
o princípio da legalidade, que é uma das diretrizes básicas na conduta dos agentes públicos. Tal
princípio tem origem histórica próxima à criação
do Estado de Direito, consagrado por séculos de
evolução política, e é uma das cláusulas fundamentais da Constituição brasileira. A lição dos
juristas Ely Lopes Meirelles e José dos Santos
Carvalho Filho é sintética e suficiente a respeito do tema: “Na administração pública, não há
liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na
administração particular é lícito fazer tudo o
que a lei não proíbe”. Além disso, a moralidade
administrativa, que ultrapassa o princípio da
legalidade, segundo os mesmos autores “não é
meramente subjetiva, porque não é puramente
formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de
regras e princípios da Administração”, distinguindo-se também da esfera do que é privado.
Como seria possível, então, de boa fé,
imaginar que a melhoria da regulamentação,
ou o aperfeiçoamento de sistemas de controle, garantiriam resultados positivos ante a
promiscuidade parasitária entre a
esfera pública e a
privada, estruturalmente operada
entre as universidades públicas
e as fundações
privadas ditas
de apoio? Na
prática, a soma
de umas poucas vontades e interesses pessoais decide, discretamente, mas com grande poder, as operações desenvolvidas pelas
fundações privadas, apesar de atuarem com
recursos públicos e no espaço que deveria
ser público. O que se identifica, claramente,
nas tentativas de estabelecer pontes administrativas entre as fundações privadas e as
universidades públicas, além da ilegalidade,
é que estas servem muito mais para que os
interesses privados nelas organizados controlem as universidades por meio do poder
econômico do que para o estabelecimento de
tutela pública sobre as fundações.
Somente para citar alguns dos casos que
mais repercutiram na imprensa, note-se que
meses antes de sair algemado durante a operação RODAN da polícia federal, juntamente com outros dirigentes universitários, um
dos conselheiros que também era dirigente
da fundação privada de apoio levou “embaixo
do braço”, para relatar na reunião do Conselho Universitário da Universidade Federal de
Santa Maria, o processo que deveria chancelar as contas da FATEC.
“Investimento”: 12 parcelas de R$ 600,00.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Vários conselheiros protestaram denunciando
evidente conflito de interesses, mas as contas
acabaram sendo aprovadas, assim mesmo,
em uma reunião subseqüente.
A crise que levou à exoneração do reitor
da UNB, cujo emblema foi a lixeira adquirida
pela FINATEC, já exaustivamente debatida e
denunciada, revelou de forma maiúscula não
só até onde pode chegar o arbítrio subjetivo
na aplicação do dinheiro público quando gerido na lógica de uma instituição privada, mas
também como, em pouco tempo, consolidouse uma cunha de poder a partir da fundação
a controlar o funcionamento da instituição
pública que deveria ser apoiada. O rodízio
estabelecido nos cargos de mando financeiro
da universidade e da fundação, nos últimos
quinze anos, de um núcleo de poucos nomes,
e o controle que passaram a exercer, estabeleceu uma situação na qual dificilmente alguém
chegaria ao cargo de reitor sem o beneplácito
desse núcleo, mesmo que processos eleitorais
viessem a ser promovidos.
Uma lição importante recolhida da experiência recente é a relação entre nível de promiscuidade da rés-pública com organismos privados patrocinado por determinadas reitorias
na administração das universidades e nível de
autoritarismo no exercício dos seus mandatos.
Ao crescimento das denúncias, ao vazamento de
evidências das falcatruas com dinheiro público,
aos sinais de manipulação dos órgãos superiores das universidades, os gabinetes se fecham
em comportamento despótico e passam a criminalizar o simples direito de divergir, reprimido
com violência, como se divergir fosse elemento
18
estranho ao ambiente acadêmico. Percebe-se
uma perniciosa e crescente mudança de sentido no exercício do poder institucional, praticado
cada vez mais ostensivamente de cima para baixo e relegando tarefa apenas homologatória aos
conselhos e colegiados.
Muitos anos de denúncias emanadas do
movimento docente, dos estudantes e dos funcionários não sensibilizaram o reitor, fechado
em sua cidadela que parecia inexpugnável, na
Universidade Federal de São Paulo, a antiga
Paulista de Medicina, até que as ilegalidades
apontadas pelos órgãos de fiscalização, a maioria vinculadas às fundações privadas, foram
publicadas com destaque em jornais de grande
circulação nacional. Aquele que até a véspera
usava mão-de-ferro para reprimir quem não lhe
atendesse as conveniências foi forçado a pedir
demissão, juntamente com todo o gabinete, e
responde a vários processos.
Os exemplos generalizam-se de norte a
sul do país. Citá-los restringe-se simplesmente à necessidade de destacar algum aspecto
específico, pois parece que a única diferença é
o momento em que as máculas vieram ou virão a público, quanto à perniciosa relação das
universidades públicas com as suas fundações
privadas ditas de apoio. O quadro é nítido e
desfaz, por si, qualquer possibilidade de buscar
aperfeiçoamentos daquela relação gerada como
uma aberração incorrigível. Caberá às próprias
universidades públicas, em primeiro lugar, reacender a força de sua mobilização interna e,
em decorrência disso, pressionando as administrações, retomar o papel que paulatinamente foi
delegado às fundações privadas.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
“Na trincheira da música nossa
principal luta é contra o Jabá”
Entrevista: B Negão
Por Stela Guedes Caputo
Fotos: Divulgação
Bernardo Ferreira Gomes dos Santos, conhecido como BNegão, é um dos rappers mais
respeitados, mas desses que não tocam nas
rádios e nem freqüentam o “Domingão do
Faustão”. Ex- vocalista do “Planet Hemp”
e “Funk Fuckers”, hoje ele experimenta a
carreira solo com a indescritível banda “Os Seletores de Freqüência”. Seu CD “Enxugando Gelo”
foi considerado um dos melhores de 2003 e vencedor do prêmio Dynamite (o maior da música
independente no Brasil), como melhor disco de
Rap/Black Music, o que rendeu duas turnês pela
Europa. Militante da luta pela produção independente, foi também um dos pioneiros
no Brasil a liberar suas músicas para download
na Internet. Prejuízo? Nenhum. O álbum continua sendo um dos 20 mais vendidos pela distribuidora Tratore e é justamente graças ao MP3
que seus fãs não param de crescer, inclusive na
Europa. Rock, Hip-Hop, funk, jazz, os estilos são
muitos, assim como são muitas as suas bandeiras de luta, que vão da liberação da maconha ao
movimento Jabasta, contra os jabás, um tipo de
arrego que os músicos precisam pagar se quiserem tocar nas rádios. Para Bnegão, que lançou
este ano o CD “Turbo Trio”, suas músicas posicionadas são “mensagens que joga na garrafa”,
seu jeito de “seguir incomodando”.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
19
Classe - Como foi acontecendo o interesse por
música?
BNegão – Sempre gostei de
música. Primeiro música de
rádio, normal. Depois, ouvia
alguns discos do meu pai (Martinho da Vila Chico Buarque...).
Ouvia Kiss(!), depois Michael Jackson e, em 82, veio o Rap... daí
lascou.... Em 1987, junto com os
primeiros lançamentos de
rap nacional (Cultura de
Rua, Racionais ...), eu comecei a ouvir muito punk
rock (Inocentes, Cólera,
Ratos de Porão, Garotos Podres, Olho Seco...), via
Rádio Fluminense FM e Circo Voador.
Classe - Tinha gente na família que tocava?
BNegão – Eu tinha um tio que tocava, mas era
considerado a “ovelha negra” da família. Ele
tinha sido o primeiro cara a se separar que eu
vi na vida, desde que o divórcio foi aprovado
como lei (isso foi apenas em 1977,acreditem!!).
Era meu tio Meirelles. Ele sumiu de tudo e
todos por décadas, vendeu o sax, largou a música, virou semi-mendigo por muito tempo...
Depois, eu já era fã dele há milênios, mas não
ligava o meu tio (que sabia que tinha sido um
maestro importante, por alto e que eu só conheci quando era criança), ao grande maestro
J.T. Meirelles, que fez os arranjos e tocou sax
e flauta nos cinco primeiros e clássicos discos
do Jorge Ben (aquele sax de “Mas Que Nada”
é composição dele, tocada por ele, naquela
20
clássica gravação que ele mesmo produziu e
arranjou...). Ele comandou a lendária banda
Copa 5, que teve, entre seus componentes, músicos lendários como Edison Machado, Eumir
Deudato, Dom Um Romão e Roberto Menescal,
entre outros. No final dos anos 90, ele foi resgatado e voltou com força total. Tocamos juntos em São Paulo e ele ficou fã dos “Seletores”,
o que para mim foi a maior honra que eu já
tive musicalmente em toda a minha vida.
Classe: Você divulga a cultura livre, a generosidade intelectual e a publicação aberta.
Poderia falar um pouco sobre isso?
BNegão – Não quero que as coisas que eu produzo, que normalmente freqüentam o meio alternativo, e que contêm elementos que considero
de mudança (mínima que seja) fiquem restritas
aos que conseguem comprar ou achar. Quero
que o maior número de pessoas tenha acesso ao
que faço. Quando comecei tudo isso nem sabia
dessas nomenclaturas. Fiz porque senti e sinto necessidade de fazê-lo. Respeito quem pensa
por outros caminhos. Cada um dá o destino que
quiser à sua obra, à sua produção, mas o meu
caminho é esse. Mesmo que um dia eu lance
algo por algum selo/editora/gravadora que vete
essa postura, ficarei muito feliz quando vir que
alguém publicou meus textos ou minhas músicas na net para acesso gratuito.
Classe – Por isso você disponibiliza seus
CD´s na internet?
BNegão – Para facilitar o acesso. E também
porque, na época, estava tendo a primeira campanha mais forte contra o download no mundo,
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
criminalizando esse ato de forma absurda. Os
caras do “Metallica” encampando essa insanidade, perseguindo e mandando prender moleques de 15, 17 anos, as gravadoras querendo
dizer que o Napster era o Bin Laden da net, e por
aí vai. Achei que precisava dar a minha opinião
e me posicionar politicamente sobre isso.
Classe – Isso ajuda a desconstruir a versão de que a pirataria prejudica o artista? Na verdade, quem perde e quem ganha com a pirataria?
BNegão – Os grandes vendedores de discos, os
que estão ali pelo jabá, realmente perdem. Os que
são grandes vendedores pela qualidade, às vezes,
não perdem. É só ver o caso do Radiohead, do AC/
DC e tantos outros. É importante diferenciar cultura livre e download gratuito de pirataria. Tem
gente que junta tudo no mesmo saco. Quem ganha
com a pirataria são os chineses (hahahaha) e os
consumidores de baixa renda, já que estes podem
ter acesso à cultura por um preço acessível.
Classe - Você é um militante na música.
Quais as principais lutas que devem ser
travadas hoje nessa trincheira?
BNegão – Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá, que nega o acesso da
cultura brasileira aos meios de comunicação,
em especial às rádios, que, nos seus contratos
de concessão, têm a OBRIGAÇÃO de divulgar
a cultura brasileira. Isso move todo o resto. Outra coisa importante é a questão da Ordem dos
Músicos do Brasil (OMB), que é uma entidade
fundada na Ditadura Militar e mantém várias
pessoas ali,desde aquela época. Sua existência
não faz sentido. Ainda mais, cobrando taxas
dos músicos que já têm um trabalho suado para
sobreviver nessa profissão e não proporcionando a estes nenhum benefício.
Classe - Quem são os verdadeiros piratas
criminosos? Os camelôs que vendem as cópias dos CD´s ou os empresários das rádios
que pirateiam o espaço da concessão pública?
BNegão – Opção número 2 ...
Classe – Por que música é uma arte tão
cara no Brasil? O processo todo, eu quero dizer, desde fazer um CD e comercializar esse CD e botar esse CD nas rádios.
Por que isso é tão caro?
BNegão – Não precisava ser tão caro. Nestes
CD´s de grandes gravadoras que chegam a ser
vendidos a R$30,00 (ou mais),
está embutido o preço milionário que eles têm de pagar de
JABÁ, o cartão de crédito
dos diretores de gravadora e por aí vai... Essa crise
do mercado fonográfico foi criada pelas
próprias gravadoras,
as grandes gravadoras, por uma série de
atitudes bizarras ao
longo de décadas, em
todo o mundo. As gravadoras atiraram tanto que acertaram o próprio pé.
Classe – Como você pode-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
21
ria analisar o seu próprio processo de consciência política dentro da música? Ou seja,
como eram as músicas que você fazia quando começou a compor e como elas são hoje?
Como a sua visão de mundo mudou e, conseqüentemente, a música que você fez e faz?
BNegão – Meu pai teve papel ativo na resistência contra a Ditadura, então, aqui em casa,
o assunto “política” sempre foi muito discutido. Ele sempre conversou muito conosco sobre
tudo isso. Eu comecei a fazer músicas próprias
(fora versões que eu fazia quando era criança)
por causa do punk, aos 16 anos. Arrumei uma
guitarra (bem ruim) e fazia (e gritava) letras
sobre polícia, política, o Brasil e o mundo.
Hoje, logicamente, escrevo mais profundamente sobre as coisas que acho importantes: o ser
humano, a situação do mundo, nosso momento atual no Estado, no país e no planeta.Uma
mudança enorme: antes eu escrevia “vocês,
você, eles fazem...”, e agora eu escrevo “nós fazemos...”... muda bastante o ponto de vista.
BNegão – Tem de tudo. Eu tenho uma treta
com o Marcelo por atitudes dele como pessoa,
não por coisas como essas. Porque, se for por
isso, o “Planet” era de uma grande gravadora,
e, mesmo sendo uma banda única e disseminando várias idéias libertárias, estava inserido dentro desse esquema. Claro que o Marcelo
pisou no acelerador na carreira solo dele. Fez
coisa que, antes, recusávamos fazer. Há casos
e casos. Esse tipo de discussão tem mais a ver
com o público do “Planet” - que se sentiu enganado por coisas que o Marcelo dizia e depois
fez o oposto - do que comigo, em relação a ele.
Classe – Você mistura funk, rap, rock... isso
cria uma outra música? Qual o seu estilo
hoje?
BNegão – Música Negra Universal
Classe: Eu pego um funk seu como a “Dança
do Patinho” e outros funks onde mulheres
são chamadas de cadelas, mesmo em letras
que asseguram estar criticando a discriminação da mulher... Então, como olhar o
universo tão diverso do funk sem ser moralista e sem ser populista e demagógico?
BNegão – A verdadeira “Dança do Patinho”
não tem nada a ver com esse tipo de funk depreciativo da mulher... não tem literalmente nada
a ver. Nenhuma vírgula em comum. Acho que
no funk, assim como na maioria dos outros estilos musicais, tem música boa e música ruim.
Classe – Existe a seguinte polêmica quando se fala de você e do D2: que o D2, por
estar na mídia, teria se vendido e você,
por continuar independente, por não tocar nas rádios... não se vendeu. Todo artista que está na mídia se vendeu? E o
destino de quem não está... seria se vender para tocar?
Classe – Muitas produções de periferias,
como músicas e filmes, afirmam um desejo de “dar visibilidade” a seus produtores para que assim aconteça uma aproximação entre classes sociais distintas e se
promova um diálogo. Essa é a função da
arte de periferia ou esse poderia ser mais
um refrão para a “Dança do Patinho”?
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A Verdadeira
dança do patinho
BNegão – Pois é... boa pergunta. Acho
que arte da periferia, como qualquer outra arte,
tem que ser encarada como expressão do que se
vive, ou do que quer necessita ser dito. Tem gente
que se interessa por isso porque realmente quer
saber o que está acontecendo, quer saber o que
essas pessoas pensam para tentar compreender
ou intervir positivamente naquela situação. E
tem outras pessoas que tratam a coisa como um
zoológico, ou um filme de suspense/terror, com
bastante adrenalina, onde podem ver, sentadas
em suas cadeiras, protegidas, aquele universo
tenebroso e saem do cinema ou desligam o som e
seguem suas vidas sem uma mínima mudança
de atitude. Tem outros tipos também, mas grosso modo, é assim. E, no meio de tudo isso, está
quem precisa ser escutado...
Eles traçam e destraçam o seu caminho – É a dança – dança do patinho
Eles mandam uma qualquer e tu leva fé direitinho – É a dança – dança do patinho
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA)
Você que assina contrato sem ler
Acha que a O.N.U. se importa com você
Você que acredita no ouro nacional
Chegou a sua hora isso é fenomenal
Você que acredita no que falam na tv
Dá seu dinheiro pro pastor pra fazer sua fé valer (eh, eh…)
E pra você que acredita no velho azul-marinho, essa é sua dança
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)
Você que acredita na mega-sena, toto-bola, raspadinha e na garota de Ipanema
Você que acredita nos caras pintadas, acredita que o Brasil
vai tá ganhando com a ALCA
Acreditou em inflação zero, no salário-desemprego
Mas não viu que o governo tava botando no seu …
Parabéns, você é perfeito, foi feito pra isso
Pra dançar a dança, a verdadeira…
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)
Você que toma volta quando quer ficar ligado
Acredita no bicho papão e no aumento de salário
Você que paga seus impostos religiosamente, esperando algum
dia uma aposentadoria decente
Você que acredita em alguma punição pros que roubam
e colocam no… da população
E pra você que acredita que nunca foi lesado, cante comigo
esse hino, esse é o meu recado:
braço em forma de asa, alterna pé e faz biquinho tu entrou na dança
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!).
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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O tio Meirelles
Mencionado na entrevista por BNegão, o “tio Meirelles” é o saxofonista, arranjador e compositor João Theodoro Meirelles (mais conhecido como J.T Meirelles), um
dos principais nomes do samba-jazz e falecido em junho
deste ano. O músico iniciou sua carreira aos 17 anos e, aos
23, fez alguns arranjos, entre eles o de “Mas que Nada”, o
primeiro sucesso do então Jorge Ben e hoje Benjor, para o
disco “Samba Esquema Novo”, de 1963.
Graças à repercussão de “Mas que Nada” e “Chove, Chuva”, J.T pôde fazer seus próprios discos livre de
pressões comerciais ou artísticas por parte de gravadoras. No mesmo ano, juntamente com Manuel Gusmão
(baixo), Luiz Carlos Vinhas (piano), Dom Um Romão
(bateria) e Pedro Paulo (baixo), formou o grupo instrumental chamado “Copa 5”, com o qual se apresentou no
Bottle’s Bar do Beco das Garrafas (RJ), executando suas
próprias composições.
A partir de 1964, começou a trabalhar como instrumentista, maestro, arranjador e produtor musical da
gravadora Odeon, onde permaneceu durante 11 anos.
Apresentou-se, em 1966, no Festival de Jazz de Berlim (Alemanha), ao lado de Dom Salvador, Sérgio Barrozo, Rosinha de Valença e Edu Lobo, entre outros. Viveu
durante três anos no exterior (França. Suécia e Monte
Carlo), integrando várias orquestras, como a do maestro
Aimée Barelli. Em 2005, lançou o CD “Esquema novo”
Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Estação Terminal
Espetáculo baseado no Cemitério dos Vivos
e Diário do Hospício de Lima Barreto pode
voltar ao Rio no início do próximo ano
Por três vezes Lima Barreto foi interno num
manicômio. Escritor, alcoólatra, negro, pobre, indignado. Escreveu um diário. Teve seus sonhos e
desejos destruídos pelo sistema correcional. Seu
diário revela sua experiência de reclusão. Dividese um homem em pedaços como em uma autopsia.
A observação é por camadas. O mesmo e o outro.
Por camadas também é a Velatura, obra da artista
plástica Suzana Queiroga, que serve de suporte cenográfico para o espetáculo. Com a Velatura criada
por Suzana podemos ver dentro, fora e através. Ao
nos envolver em epidermes vermelhas, nos remetemos a outra velatura: nosso próprio corpo e seu
interior, também vermelho. É quando sentimos que
podemos ser/conter as pulsações da arte, músculo
sensório e motor de vida.
Estação Terminal, última criação da
Companhia Ensaio Aberto, estreou no SPILL
Festival/2007, em Londres. No Brasil, permaneceu seis meses em cartaz no Fórum de Ciência da
UFRJ. Nesse fim de ano dá uma parada, mas logo
recomeça a temporada podendo voltam ao Fórum,
no início de 2009. Atriz, produtora e fundadora da
Ensaio Aberto, Tuca Moraes (na foto) e Luiz Fernando Lobo, diretor artístico, perseguem a dialética
em seu trabalho. “Esse espetáculo é uma síntese de
uma longa pesquisa sobre o teatro épico. Fizemos
esse texto no mesmo local na estréia da Companhia
Ensaio Aberto há 17 anos. O espetáculo tinha 21 ato-
res. Revisitá-lo agora foi um presente. Tivemos de
desconstruir uma memória e criar um novo diálogo.
Também foi muito importante como ele nasceu: um
convite do diretor inglês Robert Pacitty para estrear um trabalho solo no Spill Festival, em Londres.
Talvez a companhia que sempre trabalha com grandes elencos não tivesse ousado essa criação se não
fosse pelo convite. O espetáculo foi nossa espinha
dorsal em 2008”, conta Tuca, que adianta também
o próximo projeto do grupo: “Sobre o Suicídio”, de
Karl Marx, com estréia prevista para o SESC de
Copacabana no primeiro semestre de 2009.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Lima Barreto:
um intelectual militante
Magali Gouveia Engel
Professora da UERJ-FFP
Lima Barreto foi um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Não há quem,
ao ler um de seus romances, contos ou crônicas,
não se apaixone perdidamente pelas suas idéias
ou, pelo menos, passe a respeitá-lo, mesmo discordando de suas posições. Falar dele é falar de
militância, de coerência, de compromisso com a
construção de uma sociedade melhor, sem discriminações, mais solidária e igualitária.
Talvez não por acaso, Afonso Henriques de
Lima Barreto veio ao mundo no dia 13 de maio
de 1881, sete anos antes da promulgação da Lei
Áurea que aboliu a escravidão no Brasil. Herdou
da mãe, a professora primária Amália Augusta, a
cor da pele mulata, que ele sempre fez questão de
assumir, transformando sua literatura em instrumento de luta contra os preconceitos raciais, infelizmente ainda hoje presentes em nossa sociedade.
Proprietária de um pequeno colégio, o Santa Rosa,
nas Laranjeiras, alfabetizou o filho, mas deixou-o
muito cedo, falecendo em 1887.
Órfão de mãe, mais velho dos três irmãos,
Lima Barreto construiria uma forte relação afetiva com o pai, o tipógrafo João Henriques. Aos sete
anos, começou a freqüentar a Escola Pública e em
março de 1891 foi matriculado como aluno interno
do Liceu Popular Niteroiense. Cinco anos depois,
26
passou a estudar no curso
anexo de preparatórios
para a Escola Politécnica
do Colégio Paula Freitas.
Em março de 1897, ingressou naquela instituição de ensino superior.
Seus estudos foram custeados por Afonso Celso,
o Visconde de Ouro Preto,
protetor da família.
Em agosto de 1902,
João Henriques não consegue encontrar uma diferença nas contas das Colônias
de Alienados da Ilha do Governador, onde ocupava o cargo de
escriturário, começando a temer que
o acusassem de desvio de dinheiro público. Sofre neste momento sua primeira crise de
alucinação/perseguição. No ano seguinte, com a
abertura de inquérito para apurar irregularidades no Serviço de Assistência aos Alienados – do
qual as colônias da Ilha do Governador faziam
parte – o estado de saúde do pai de Lima Barreto agrava-se e ele acaba sendo aposentado.
Nesta época, após ter sido sucessivamente
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
reprovado em Mecânica e vendo-se obrigado a assumir a responsabilidade pela sobrevivência da
família, Lima Barreto abandona a Escola Politécnica e inscreve-se no concurso para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria de
Guerra, sendo aprovado em segundo lugar. Foi
nomeado em 27 de outubro de 1903 e muda com
o pai e os irmãos para a Rua Boa Vista, n. 76
no subúrbio de Todos os Santos.
O escritor teve importante colaboração na
imprensa carioca, intensificada, sobretudo, depois de sua aposentadoria concedida em dezembro de 1918, quando então passou a sentir-se
mais livre para emitir opiniões profundamente
críticas em relação aos poderes e autoridades
públicas republicanas. Escreveu para jornais e
revistas cariocas de grande projeção, incluindo
uma expressiva atuação na imprensa anarquista. Embora Lima Barreto tenha afirmado categórica e recorrentemente não pertencer a qualquer
corrente política organizada, é inegável que tenha
buscado uma crescente aproximação com certas
concepções anarquistas que acabariam por marcar
profundamente os posicionamentos políticos que assumiria como escritor.
Sua obra extensa e diversificada inclui romances, sátiras, contos, crônicas e epistolografia,
toda ela marcada por uma linguagem direta e simples, através da qual pretendia fazer de sua arte
um instrumento de libertação e de união entre os
seres humanos. Entre seus romances, destacamse o controvertido “Recordações do escrivão Isaías
Caminha” e o aclamado “Vida e Morte de Gonzaga
de Sá”, ambos provavelmente escritos entre 1905
e1907 e, ainda, “Clara dos Anjos”, “Triste fim de Policarpo Quaresma” e “Numa e a Ninfa”.
As muitas e profundas angústias e medos
que passaram a assombrá-lo, sobretudo a partir
da doença do pai e das dificuldades financeiras
que o impediam de se dedicar inteiramente ao seu
projeto intelectual e literário; o tédio e as frustrações produzidos pela rotina do serviço burocrático
e da vida no subúrbio; o fracasso do projeto da Revista Floreal são provavelmente alguns dos fatores que levariam Lima Barreto a começar a beber
por volta de 1908. Os excessos de álcool provocariam crises de alucinações que o conduziriam por
duas vezes ao Hospício Nacional de Alienados. A
primeira internação ocorreu durante o período de
18 de agosto a 13 de outubro de 1914 e a segunda
entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de
1920, quando escreveu o Diário do Hospício, onde
registrou as vivências naquela instituição, durante os dois momentos em que lá esteve. Pretendia
utilizar essas anotações para elaborar um novo
romance intitulado “Cemitério dos Vivos”, que infelizmente ficou inacabado.
Tendo que lutar contra as dificuldades materiais, sobretudo por ter que arcar com a sobrevivência do pai doente e dos irmãos mais jovens
e sentindo na própria carne o peso e a dor provocados pelas discriminações sociais, entre as
quais os preconceitos raciais, a trajetória literária e intelectual de Lima Barreto oscilou entre a
marginalidade e o reconhecimento. Se apesar de
todos os obstáculos editoriais seu talento artístico foi reconhecido e exaltado por importantes
críticos da época, o sonho de ingressar na Academia Brasileira de Letras jamais seria alcançado,
após três tentativas. Lima Barreto morreu antes
de completar quarenta e um anos de idade no dia
1o de novembro de 1922, vítima de uma gripe torácica e de um colapso cardíaco. Dois dias depois,
morreria também seu pai, João Henriques.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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De Capa
Violência, mídia e
criminalização da pobreza
PM ameaça menor com a pistola. No detalhe da foto da capa, o momento posterior em que, indignado, rapaz que aqui
aparece ao fundo, enfrenta o policial. Fotos: Gabriel de Paiva/Agência O Globo.
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Stela Guedes Caputo, texto e entrevistas.
Um jovem enfrenta um policial armado.
Seu rosto transtornado. A arma na mão direita do
policial. O dedo mindinho de sua mão esquerda
enruga o peito do rapaz e mostra a força que faz
para segurá-lo. Ao fundo, uma menina olha a cena
e se prepara para tapar os ouvidos. Dois adultos
tentam impedir o pior. À esquerda, um menino
não teve os olhos “tarjados” e por isso posso ver
seu medo e desespero. Atrás deste, um policial
que, ainda que decepado pelo corte da foto, deixa à
mostra que está preparado para intervir.
A foto que escolhemos para a capa desta edição de nossa revista foi publicada na primeira página de O Globo, em 23/3 deste ano pouco acima
da manchete: “Mangueira fecha rua em protesto
violento”. Na página 16 onde a matéria continua,
mais seis fotos reforçam o título desta página inteira de reportagem: “Cenário de guerra e baderna
na Mangueira”. Numa delas, a legenda: “Vandalismo...”. O primeiro parágrafo descreve as imagens: “Motoristas apavorados atacados a pedradas, tiros para o alto, veículos incendiados....” e
informa que a morte de um “traficante, segundo a
polícia, teria causado o tumulto”.
Apenas no último parágrafo lemos que, “segundo uma tia da vítima, o morto de 30 anos era
um contínuo desempregado”, portanto, podia até
ser que não fosse um traficante (ainda que fosse
não poderia ter sido executado).
Entrevistado a respeito, o fotógrafo Gabriel
de Paiva, autor da foto, fotografar é “tentar fazer
com que o leitor sinta o que eu senti na hora do
fato jornalístico”. Assim, a ilusão especular (Machado, 1984) que faz com que a fotografia possa
ser vista como “espelho do real” vai além daquilo
que se pretender “revelar” e alcança o que se deve
“sentir”. Para garantir o sentido único as legendas da edição ajudam, já que, para o fotógrafo,
“estas impedem que o leitor tenha interpretação
errada do acontecimento”. Paiva concordou com
a edição que o jornal fizera de suas imagens e que
tudo tinha sido mesmo uma “baderna”. Um box,
na mesma página, vai relembrar outros casos
“em que a rotina da cidade já foi sacudida outras
vezes por protestos de moradores da favela”.
Mas o fotógrafo também disse que “o tumulto começou quando a polícia chegou para conter
os moradores que, misturados a traficantes, estavam no asfalto incendiando ônibus”. O próprio
texto informa que a polícia esteve no morro antes
e matou um homem. Paiva disse que talvez fosse
revolta e indignação os motivos do protesto, já que
todos os depoimentos dos moradores davam conta de que a polícia executara Wallace, o nome do
morto. Além de uma frase da tia da vítima, esses
depoimentos que o fotógrafo ouviu não estão na
matéria. Faltam as fotos do morto, da tia, e dos
moradores sem que estes estejam lançando tijolos
em carros ou depredando ônibus. “Devíamos ter
voltado lá”, concluiu o fotógrafo. Não voltaram.
Não houve mais vestígio desse caso no jornal.
Não desse especificamente, mas, todos os dias, de
forma semelhante, outras matérias reproduzem
cotidianamente a mesma política de criminalização dos moradores de favelas implementada
pela grande mídia. Nas entrevistas que seguem
abordamos sob diferentes aspectos a questão da
violência no Rio de Janeiro.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Foto: Débora Agualuza
Entrevista: Mário Sérgio de Brito Duarte, Coronel da PM
– Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP)
Ex-Comandante do BOPE
“O exército tem que
estar investido de
poder de polícia”
Nomeado pelo Governador Sérgio Cabral
em 22 de fevereiro de 2008, o atual Diretor- Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP),
Mário Sérgio de Brito Duarte, 49 anos, é Coronel
da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Ingressou na corporação em 1980 e já comandou a
Academia da Polícia Militar, o Batalhão da Maré
e o Batalhão de Operações Policiais Especiais
(BOPE), no qual, em 1989, recebeu a designação
de “Caveira n. 37”. Na estrutura da Secretaria
de Estado de Segurança do Rio de Janeiro ele
ocupou os cargos de Superintendente de Planejamento Operacional e o de Diretor de Inteligência.
Aluno do curso de Filosofia da UFRJ, escreveu,
em 1994, o livro “Incursionando no Inferno – a
verdade da Tropa”, que só conseguiu publicar depois do sucesso do filme “Tropa de Elite”. Nesta
entrevista ele dá sua opinião sobre o ISP e diz o
que pensa sobre a utilização dos “caveirões” nas
comunidades cariocas.
30
Classe – O senhor assumiu o cargo de presidente do Instituto de Segurança Pública quando a
cúpula da Polícia Militar foi substituída, o que,
na verdade, tratava-se de uma reestruturação
da política de segurança para o Estado?
Cel Mário Sérgio – Não creio que minha indicação
para o cargo de Diretor-Presidente do ISP tenha alguma conexão com as substituições no comando da
PM. Na verdade, já de algum tempo a Secretaria de
Segurança pensava em dar ao Instituto um aspecto
diferente daquele com o qual foi idealizado. O ISP
foi criado para ser uma espécie de “superestrutura
da segurança pública”, cuja ideologia, em formato acadêmico, deveria ser absorvida pelas polícias.
Não obstante o poder que lhe foi conferido pela lei
de criação, que lhe autorizava “assegurar, executar,
gerenciar e administrar a política de segurança pública do Estado, através das polícias”, o ISP jamais
conseguiu penetrá-las ao preferir a imposição e não
a negociação de suas intenções.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Classe – O Secretário de Segurança Pública,
José Mariano Beltrame, disse que desejava
um Instituto mais “pró-ativo”, mas o que se
veiculou na época, era que a mudança significava uma opção do governo por uma linha
ainda mais dura de repressão...
Cel Mário Sérgio – O ISP trabalha episteme. É
marcadamente uma instituição voltada para a construção do conhecimento e desvelamento de saberes
de interesse da Segurança Pública. Há três eixos no
órgão: o Núcleo de Pesquisas em Segurança Pública e Justiça Criminal, a Coordenadoria dos Conselhos Criminais e a Coordenadoria de Projetos de
Segurança Pública. Destes, apenas a Coordenação
dos Conselhos não tem um formato marcadamente
científico e sim sócio-organizacional. Todavia, sua
atuação é fundamental para o Sistema de Segurança, pois lhe dá a chave necessária à interface com a
população com vistas à participação comunitária. O
ISP, como disse, não formula a política, não sugere
as ações e não determina as estratégias. O ISP apenas exibe o que mensura e o que conhece.
Classe – Com a demissão da antropóloga Ana
Paula Miranda, da presidência do ISP e sua
substituição por um tenente-coronel, o senhor, a integridade e a independência desse
órgão não ficam comprometidas?
Cel Mário Sérgio – O ISP é uma autarquia do
Estado vinculada à Secretaria de Segurança. A
isenção que possui hoje é mesma que a doutora
Ana Paula possuía antes de minha assunção. Não
sou o primeiro coronel da PM a assumi-la; antes,
dois já haviam passado pela função. Ocorre que
o ISPestava sendo entendido como uma espécie
de departamento de ciências sociais, quando ele
não deve ser isso. A sociologia, a ciência política e a antropologia têm grande contribuição a
dar ao ISP, mas há outras ciências e saberes que
podem e devem concorrer para essa construção
de conhecimento. A hegemonia de uma ciência a
partir da “embocadura” da chefia é compreensível, mas temos que cuidar para não nos fecharmos em círculos de idéias. Estamos buscando
fazer um ISP mais plural.
Classe – Depois de sete meses já é possível
fazer um balanço da sua gestão? O ISP está
mais “pró-ativo”?
Cel Mário Sérgio – Estamos trabalhando muito;
celebrando convênios, estabelecendo novas parcerias. Para exemplificar com trabalhos mais recentes
de nossa gestão, a Secretaria Estadual de Educação, o DETRAN, a Secretaria Estadual de Saúde e
a Petrobrás nossos mais novos parceiros, com projetos em fase de desenvolvimento. Da gestão anterior
concluímos o Observatório de Análise Criminal e o
convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, com recursos da União Européia. Sobre estar mais ou menos pró-ativo eu não gostaria de fazer
comparações com outras gestões.
Classe – No ano passado, o governador do Rio,
Sérgio Cabral, chamou de “débil mental” o
policial que matou o vigia Rubineu Nobre, de
29 anos, em um posto de gasolina, na Baixada
Fluminense, no dia 10 de fevereiro. Se um governador se refere assim à sua própria polícia,
como a população pode pensar o contrário?
Cel Mário Sérgio – Creio que “a boca fala daquilo que está cheio o coração”. Num momento
marcado pelo paroxismo da dor, dizemos muitas
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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vezes o que não diríamos em outro momento.
Classe – O governador também já defendeu o
modelo colombiano de polícia.O ISP tem uma
avaliação sobre esse modelo, que também recebe críticas por parte da esquerda por considerar que este modelo criminaliza a pobreza
e os movimentos sociais?
Cel Mário Sérgio – Avaliação não, mas eu conheço o trabalho realizado na Colômbia, marcadamente
em Bogotá e Medellín. Estive três vezes com o sociólogo colombiano Hugo Acero somente neste ano de
2008. Como policial, digo sem medo de errar que deveríamos seguir o mesmo caminho. Sobre críticas da
esquerda àquele modelo, conversei com pessoas nas
ruas e nas favelas que visitei e mesmo na esquerda
encontrei aprovação do projeto, mas, claro, não estive com ninguém das FARCS e nem do ELN.
Classe – O que é e o que deveria ser a Segurança Pública?
Cel Mário Sérgio – Deveria ser o conjunto de ações
necessárias à promoção da ordem pública e da paz
social. Todavia, embora seja uma opinião pessoal, o
Rio de Janeiro tem um quadro que ultrapassa a dimensão da Segurança Pública, neste conceito, quando se fala de normalidade. Há pelos menos quinze
anos o Rio convive com um “conflito urbano armado
de baixa intensidade”, com combates cotidianos travados entre agentes da lei e quadrilhas, e essas entre
si. Faz-se mister a retomada definitiva dos espaços
onde o poder público perdeu o controle para as “facções”
criminosas que dominam os territórios das áreas
mais carentes do Rio de Janeiro. Através de uma
estrutura de coerção despótica e assassina, assente
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no poder de fogo das armas de guerra que dispõem,
o narcotráfico se exibe como um pequeno exército imprevisível na dimensão de suas violações. Sua força
motriz é a “ideologia de facção”, que se sobrepõe à
vontade de lucro no comércio ilícito de drogas.
Classe – Qual seria o papel da polícia dentro da Segurança Pública?
Cel Mário Sérgio – Seu papel constitucional.
Classe – De acordo com os jornais, a Secretaria de Segurança do Rio comprou mais
nove blindados, os chamados “caveirões”,
ao custo de R$ 403 mil cada que se somarão
aos 12 atuais. Os novos veículos são mais
potentes e com mais saídas para armas, ou
seja, vai matar mais?
Cel Mário Sérgio – O “Caveirão” não é uma
viatura militar, mas um carro civil; não possui
acopladas metralhadoras, lança-granadas e outros petrechos. É utilizado, essencialmente, para
conduzir policiais a locais de alto risco e nenhum
equipamento mortal transporta além do armamento dos soldados. É forçoso utilizá-lo em áreas onde
os traficantes estão à espreita, seja em lajes, becos,
interior de construções ou trilhas de florestas para
letal emboscada. A viatura blindada é uma estratégia de ação policial que preconiza a proteção do
policial individual e coletivamente.
Classe – É verdade que a Secretaria quer, ainda, comprar um blindado israelense capaz de
explodir pequenas áreas? Qual a função de um
veículo assim atuando em favelas?
Cel Mário Sérgio - Não creio ser verdade. Embora eu não mais acompanhe a seleção de equipamen-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
não estão onde mora a
burguesia?
Cel Mário Sérgio - Porque
o veículo blindado objetiva
proteger os policiais dos disparos das armas de guerra
e elas estão nas mãos dos
narcotraficantes justamente
nas favelas. São fuzis AK47, AR-15, RUGER, SIGSAUER, NORINCO, granadas M3, M4 e assim por
diante. Compreende-se, e
devemos concordar que palavras ofensivas não devem
ser dirigidas a nenhuma
Em mais um dia de ação da PM no Morro de São Carlos em busca das armas roubadas de
seguranças do governador, um uspeito, conhecido como Risadinha, foi morto no confronto.
pessoa de nenhum estrato
Desesperada, a mãe tentou barrar o caveirão. Foto: Agência JB
social, de orientação sexual
tos por não ser este meu trabalho no ISP, creio que específica ou religiosa por essa condição. As polínão seja verdade. Todavia, a idéia de que as polícias cias devem respeitar pessoas e espaços públicos, insempre atentam contra o estrato social pobre, “crimi- distintamente; sobre isto concordo plenamente. Tonalizando a pobreza”, é espraiada a todo tempo por davia, reitero, as ações marcadamente de conflito
grupos com interesses particulares, seguindo a orien- urbano armado são protagonizadas por criminosos
tação ideológica que infere o crime como um processo que se estabeleceram nas favelas, subjugando seus
coletivo de “luta de classes”. Assim, quando o Estado moradores com uma estrutura de poder cruel.
adquire um equipamento de proteção para os policiais
é natural que esse tipo de discurso surja, procurando Classe – Foi divulgado que a Secretaria de
desqualificá-lo e exibindo-o como objeto de opressão.
Segurança comprou um helicóptero modelo
Huey II, empregado pelos Estados Unidos
Classe – Para aprofundar essa lógica que o em operações no Iraque e no Afeganistão
senhor expõe... então, o senhor diria que o que já está sendo chamado de “caveirão voEstado é neutro? E, por que os veículos ci- ador”. O custo divulgado foi de US$ 4,5 mivis blindados só atuam nas favelas? Os blin- lhões. Há um balanço do quanto se investe
dados permitem disparos sem que policiais em formação para os policiais, em salários
sejam identificados, transmitem gravações e em armas? Há uma correlação importante
ofensivas contra a população... Por que eles de ser avaliada nesse tipo de investimento
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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para que se observe o perfil da política de
Segurança Pública de um Estado?
Cel Mário Sérgio – Sobre o helicóptero blindado,
sua aquisição se deve em razão dos muitos tripulantes que foram baleados por atiradores do narcotráfico, em terra, quando em operação nos helicópteros
que as policias dispõem. Eu mesmo perdi dois amigos baleados dentro de aeronaves em vôo, um em
Niterói e outro no Morro do Adeus, na Penha. Em
relação ao balanço sobre investimentos em formação
policial é uma questão que não está afeta ao ISP.
Classe - O ISP divulgou que entre janeiro e março
desse ano, 358 pessoas foram mortas pela polícia
no estado nos chamados “autos de resistência”,
12% a mais do que o registrado no mesmo período de 2007. Qual a metodologia aplicada nesses
levantamentos? E os desaparecidos? Os mortos
de quem não se acham os corpos? Como entram
nesse levantamento?
Cel Mário Sérgio – O auto de resistência, como
indica o nome, é um documento lavrado pela autoridade policial quando ocorre resistência frente a
uma ação legal e legítima do agente do Estado. A
classificação é retirada daí. Sobre os desaparecidos gosto de lembrar que a estatística é uma ciência, e com tal, possuí regras e métodos que devem
ser aplicados com rigor para que seus resultados
possuam verossimilhança. Assim, podem existir
desaparecimentos que são provenientes de homicídio, contudo, num primeiro momento não há como
saber. O fato exposto é o simples desaparecimento
de uma pessoa. Se, e somente se, for comprovada
a morte por causa externa, é que, efetuando um
registro de aditamento, o delegado irá trocar o
título da ocorrência para o que melhor definia
34
o acontecido. Mas, um homicídio ser registrado,
em primeira instância, como desaparecimento de
uma pessoa, é uma situação que não é prerrogativa do estado do Rio de Janeiro, isto pode acontecer em São Paulo, Minas Gerais, Nova Iorque
ou em qualquer lugar.
Classe – Como o senhor vê a ocupação dos
morros pelo exército?
Cel Mário Sérgio – Sou a favor. Todavia, entre
muitos cuidados, um é fundamental: o Exército tem
que estar investido de Poder de Polícia. Como disse
anteriormente, perdemos há pelo menos quinze anos
o controle de muitas favelas para o tráfico, e retomá-lo é trabalho duríssimo para o qual as polícias
não possuem efetivos. A participação do Exército é
sempre bem recebida pela população e mal-vista nos
círculos intelectuais; haveria aplausos e críticas. Eu
creio que estando o Exército com seus efetivos preparados para garantia da lei e da ordem, seu papel
poderia se tornar definitivo para a mudança desse
quadro atual. Insisto na questão do Poder de Polícia
porque sem ele a participação da força terrestre seria
inócua; num primeiro momento somente a presença
do Exército já promoveria alguma dissuasão, mas
logo que os traficantes percebessem sua limitação,
haveria provocação e desrespeito à tropa, e isso poderia trazer conseqüências desastrosas.
Classe – Vendo por outro lado coronel, a presença do exército dos morros cariocas já trouxe conseqüências desastrosas. A morte de
Davi, Wellington e Marcos Paulo, entregues
por militares a traficantes da facção rival, em
junho desse ano, prova isso. E os protestos que
se seguiram na comunidade também provam
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
que a presença do exército não é bem vinda.
Cel Mário Sérgio - O que aconteceu no Morro
da Providência teve início justamente no erro de
se colocar a força terrestre numa área geográfica
onde havia um grupo armado, com representações simbólicas próprias, inserido socialmente,
ditando valores aceitos sem reflexão, sem poder
legal para superá-los com ações legítimas. Se o
Exército entra com seu “ethos”, seus símbolos e
seu aparato de força, que leve consigo o poder
de agir como polícia, para conter, preventiva e
moderadamente, no nascedouro, quaisquer manifestações provocativas contra sua presença.
Naquelas condições em que foi colocado, exibindo-se, mas eximindo-se, era certo que logo teria
problemas com a população local. Com “poder de
polícia” pequenos problemas não ultrapassariam
tal dimensão; sem “poder de polícia”, pequenos
problemas tendem a se tornar hecatombes.
Classe – Como a mídia ajuda a construir a
imagem da polícia no Rio?
Cel Mário Sérgio – Isso não é de interesse da
mídia.
Classe – Toda divulgação do filme “Tropa de
Elite”, por exemplo, não constrói uma certa
imagem da polícia?
Cel Mário Sérgio – Sim, eu creio, mas não é uma
imagem real e sim uma imagem idealizada pelo
cineasta. Comandei o BOPE e asseguro que grande
parte do filme é acidente e não essência.
Classe - Como o ISP pode ajudar a melhorar
não a imagem da polícia no Rio, mas, efetivamente, a atuação da polícia no Rio?
Cel Mário Sérgio – Apresentando dados confiáveis e projetos consistentes para uso das polícias.
Classe – Como o senhor vê a aproximação da polícia com as universidades via cursos de segurança pública nas
graduações e especializações?
Cel Mário Sérgio – Estamos falando dos cursos
da área de humanidades? Acho ótimo, mas é bom
que se estabeleçam algumas questões muito pouco definidas, ainda. Policiais têm preferido cursos da área tecnológica e da ciência jurídica. Por
que? Bem, tenho a intuição de que isso decorre da
posição adotada pelos centros de ciências sociais,
ou por alguns de seus maiorais, que postulam um
saber válido e de oposição ao saber policial, o que
fomenta a rejeição. Afinal, quem é “especialista
de quê e por que?”. Qual ciência, e qual corrente
acadêmica, possui o privilégio do saber de algo
marcadamente de interesse das polícias e superior ao seu saber? E quem disse à “Academia”
que o saber policial não é acadêmico? Bem, são
algumas questões importantes em forma de escolhos teóricos a serem removidos.
Classe – O que o senhor poderia falar da sua
experiência como ex-comandante do BOPE e
como atual diretor-presidente do ISP. Como
esses dois espaços dialogam?
Cel Mário Sérgio - Como comandante do BOPE
pertenci ao “mundo dos encarnados”; mexi, revolvi, manuseei os problemas; senti os odores e enxerguei a escuridão do crime e suas conseqüências
mais imediatas. Como presidente do ISP participo
do “mundo dos espíritos” e aí enxergo as “luzes” e
tenho contato com a perfeição abstrata das idéias.
Transito bem nos dois mundos.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Entrevista: Cecília Coimbra, Presidente do Grupo
Tortura Nunca Mais e professora da UFF.
“Vivemos a fascistização
do cotidiano”
Foto: Stela Guedes Caputo
Professora do curso de Psicologia da
UFF, Cecília Maria Bolsas Coimbra, é presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, fundado
em 1985, por iniciativa de ex-presos políticos
torturados durante o regime militar brasileiro
e por familiares de mortos e desaparecidos políticos. A entidade, que faz questão de afirmar
que não é uma ONG e sim um Movimento Social, tornou-se uma das principais referências
nas lutas em defesa dos Direitos Humanos. Cecília é uma sobrevivente de 67 anos. Foi presa
e torturada em agosto 1970, mas teimou em
viver para contar a sua e outras histórias dos
que foram massacrados pela Ditadura brasileira. Seu objetivo não é vingança, é justiça
e, para isso, é incansável na luta para denunciar e responsabilizar torturadores neste País.
Em entrevista, ela critica o governo Lula que,
segundo Coimbra, “faz uma política pífia de
Direitos Humanos. Fala também da ligação
entre a tortura e o extermínio dos presos políticos durante o regime militar e a tortura e o
extermínio dos pobres de nossos dias.
36
Classe – Como está a questão da luta pela
abertura dos arquivos da Ditadura? O Legislativo aprovou a lei de reparações, mas
retrocedeu com a lei do sigilo de documentos. Que pacto é esse, mantido pelo Governo
Lula, que faz com que, mesmo submetido à
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não haja justiça para as vítimas da Ditadura e para suas famílias?
Cecília - Tem duas questões aí. A primeira é a interpretação que foi dada à lei da Anistia, uma interpretação dos juristas da Ditadura naquele período
e que até hoje é vigente, ou seja, aqueles que teriam
cometido os chamados “crimes conexos” teriam sido
anistiados também. O Grupo Tortura Nunca Mais,
desde que surgiu, questiona essa interpretação da Lei
da Anistia porque não existe nenhuma conexidade
entre o fato de você seqüestrar, prender ilegalmente,
torturar, ocultar cadáveres, com a oposição que se fez
ao regime militar naquele período. Crime conexo é a
forma deles dizerem que a repressão usada contra os
opositores políticos é uma ação conexa aos atos praticados contra a Ditadura Militar, o que é uma coisa
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
totalmente perversa. Ora, existem dois grandes juristas como Hélio Bicudo e Fábio Konder Comparato
que já provaram que não há nenhuma conexidade
entre as duas coisas e que os torturadores não estão
anistiados. Mas a interpretação dada pelos juristas
da Ditadura foi engolida pela sociedade e pela própria esquerda brasileira quando também diz que os
torturadores estão anistiados. Não estão!
Classe – Pedir a punição dos torturadores é
ser taxado de revanchista....
Cecília - A gente não quer revanche, a gente quer
justiça. E hoje, mais do que nunca, temos argumentos jurídicos que embasam que não houve crimes conexos ali. A segunda coisa é que não queremos anular a Lei de Anistia. O que queremos é
uma outra leitura da Lei de Anistia. A questão dos
arquivos é puramente política. Nós sabemos dos
acordos que foram feitos desde a anistia, como ela
foi feita, que não foi ampla, social e irrestrita como
os movimentos sociais pediam na época e que vem
com essa interpretação da conexidade. Todas as
forças que apoiaram a Ditadura continuam hoje
apoiando os governos civis. O Governo Lula não
tem nada de diferente dos governos civis anteriores. O Governo Lula está complementando, em termos neoliberais, a obra iniciada pelos militares,
que é a implantação efetiva do neoliberalismo no
país. O que o Governo Lula tem feito é pior, inclusive, do que os governos anteriores. Com relação
à questão dos direitos humanos, os avanços que
aconteceram foram mínimos para um governo que
se colocava comprometido com a democracia e que
se dizia um governo popular. Posso dizer isso de
cadeira porque fui fundadora do PT no Rio e saí
do PT há 3 anos e hoje não tenho partido nenhum.
O Governo Lula está
complementando, em
termos neoliberais,
a obra iniciada
pelos militares”
Além disso, o GTNM é um grupo suprapartidário.
A política de direitos humanos que esse governo
vem efetivando é pífia. É uma política semelhante à de FHC, ou seja, é para “inglês ver”, apenas
para dar satisfação às entidades internacionais.
Classe – Amílcar Lobo era o médico que examinava os presos políticos para atestar até
onde eles agüentariam. Você conseguiu identificá-lo, ele foi denunciado e teve seu registro
cassado. Quem mais teve algum tipo de restrição? Onde estão os torturadores hoje?
Cecília – Fui presa em agosto de 70, fiquei 2 dias
no DOPS e depois fui para a polícia do Exército, o
DOI-COD. Fui encapuzada e levada para uma cela.
Quando me tiraram o capuz, entrou um homem vestido de militar que se disse médico, mas estava com
um esparadrapo cobrindo sua identificação. Ele verificou a pressão, perguntou se eu era cardíaca e, logo
depois, comecei a ser torturada. Fiquei presa 3 meses
e meio sem nenhuma acusação contra mim. Um dia,
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
37
esse mesmo médico esqueceu seu receituário na cela
em que eu estava com uma companheira, a Dulce
Pandolfi, que tinha ficado praticamente paralítica
de tanto ser torturada. Apenas por isso consegui ver
seu nome: Amílcar Lobo Moreira da Silva. Quando
saí, fiz a denúncia. Foi uma celeuma internacional.
A notícia saiu em uma revista de psicanalistas progressistas da Argentina chamada “Questionamos”
onde se denunciava o Amílcar Lobo como assessor de
tortura e, pasmem, ele era então candidato a psicanalista, fazia formação em psicanálise. Em 81, ainda na Ditadura, período do Figueiredo, fomos num
grupo de ex-presos políticos ao consultório dele e saiu
na primeira página do Jornal do Brasil. Três ministros militares fizeram um manifesto dizendo que não
aceitariam revanchismo e a coisa recuou. Só em 85
o Conselho Regional de Medicina abriu um processo
contra ele e nós ajudamos muito conseguindo depoimentos. Eu fui testemunha e, em 86, conseguimos
a cassação dele. Isso foi muito importante porque a
Anistia Internacional nos disse que criamos jurisprudência. Nenhum outro médico, de nenhum outro
país, que tenha passado por recente ditadura e que
assessorava tortura havia sido denunciado e tido seu
registro cassado. O Brasil foi o primeiro. E, embora
isso seja limitado porque foi conseguido via Conselhos, e se limita ao campo profissional, pelo menos a
sociedade fica sabendo quem são essas pessoas..
Classe – Como a ditadura “legalizava” o extermínio sob tortura e que herança isso deixa?
Cecília – A Ditadura tinha 3 formas de divulgação oficial para legalizar seus assassinatos: morto
em atropelamento, suicídio e resistência à prisão.
A herança é justamente este último que encontramos agora nos famosos “autos de resistência”
38
praticados pelo Estado contra a pobreza. Ou seja,
a polícia extermina e, na delegacia, se registra: “
morto ao reagir à prisão”. Outra herança é a figura do desaparecido. O número de pessoas desaparecidas é incalculável, outra prática de agentes
do Estado para a qual não há dados. A Ditadura
não inventou a tortura. A tortura sempre existiu
nesse país para a pobreza. O que a Ditadura fez
foi sofisticar as práticas de tortura.
Classe – Em 12 de agosto deste ano, o presidente Lula disse que toda vez que falamos
dos estudantes e dos operários que morreram, falamos xingando quem os matou e que
esse martírio nunca vai acabar “se a gente
não aprender a transformar nossos mortos
em heróis, não em vítimas”...
Cecília – Papo furado do Lula. E a gente também
deve ter cuidado para não transformar ninguém
em herói. Essas pessoas foram de uma generosidade muito grande porque deram suas vidas por
um outro Brasil. Mas sou contra a heroificação de
qualquer coisa e sou contra também a vitimização.
Fomos atingidos sim pela violência do Estado. Somos sobreviventes dessa violência. Não usamos a
palavra vítima porque esta expressão desqualifica o
outro e todos passam à condição de “coitadinhos”.
Não somos isso. A fala do Lula é extremamente demagógica por tudo isso. O que queremos é que os
crimes que essas pessoas cometeram às escuras nos
porões da Ditadura e nos aparatos clandestinos venham a público e que essas pessoas sejam conhecidas, com seus nomes publicados e seus atos publicizados. Agora, não estamos pedindo prisão perpétua
e nem pena de morte para ninguém. Disso a Justiça
vai cuidar. O que a gente quer é que essas pesso-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
as digam publicamente o que fizeram e assumam
os crimes contra a humanidade que praticaram.
Então, essa fala do Lula, como sempre, é uma fala
em nome de uma pseudo-governabilidade, que é o
que se vem falando desde o primeiro governo dele.
Quando a gente fala de questões como a da abertura
dos arquivos, a gente percebe que não há vontade
política. E por quê? Porque as forças que apoiaram
a Ditadura continuam presentes no cenário político
apoiando os diferentes governos civis.
Classe – Qual a diferença entre indenização e reparação? Quem já conseguiu receber a reparação do governo?
Cecília – Indenização para nós é apenas indenizar
financeiramente, o que, embora seja um direito, é
pouco, muito pouco. A ONU usa o termo reparação como um processo onde primeiro se investiga
o que aconteceu, responsabiliza e repara os atingidos com a colocação de que isso não volte a acontecer. Então, estamos muito longe de um processo
reparatório. A reparação financeira é o final desse
processo, é quando o Estado assume sua responsabilidade com o que fez. Isso não foi feito no Brasil
até hoje. O que vem sendo feito no Brasil é o que
chamamos de “cala a boca”. É pagar para esquecer
o que aconteceu quando a gente sabe que nenhum
dinheiro paga o que as pessoas sofreram, o que os
familiares dos desaparecidos, por exemplo, sofrem
até hoje. Tem mãe que ainda acha que o filho vai
voltar. Mães que não mudam de telefone nem de
endereço achando que os filhos podem estar por aí
com alguma amnésia e que vão aparecer. Quando
a gente inaugurou, há alguns anos, ruas com nomes de companheiros mortos e desaparecidos, alguns familiares não quiseram ir porque ver o nome
dos filhos em uma placa de rua era confirmar sua
morte. A figura do desaparecido, criada pela ditadura brasileira e exportada para outras ditaduras
latino-americanas, é uma coisa perversa porque
tortura até hoje. A própria Ditadura caçoava dos
familiares dizendo: “de repente, não desapareceu,
está morando em um país comunista! Abandonou
a família!” É uma perversidade sem tamanho.
Classe - Só as pessoas mais conhecidas
recebem?
Cecília – Só as que aparecem mais. Veja bem, a
reparação financeira é um direito, mas acho que
os critérios tinham de ser mais transparentes.
Ela deve ser o final do processo e não como esse
grande “cala boca” que a caracteriza hoje no Brasil. Acho que umas mil pessoas já receberam. Eu
mesma fui presa, torturada, perdi meu emprego,
fui anistiada e até hoje não recebi nada. Não é
por acaso que algumas pessoas mais conhecidas,
escritores e jornalistas, recebam as reparações,
às quais, repito, essas pessoas têm direito. Mas,
lamentavelmente, essas pessoas quando recebem
o dinheiro não lembram que sua história precisa
ser contada. O Estado brasileiro, além de reparar
financeiramente, precisa contar o que aconteceu.
Ele precisa apontar os crimes cometidos em nome
da Segurança Nacional. O triste é que companheiros que recebem as reparações não lembrem
de falar isso, de contar o que foi o sofrimento e
essa história desse sofrimento. Os critérios devem
ser transparentes e publicizados porque, do contrário, a direita e a grande mídia adoram fazer
isso, fica aquela coisa de “vejam as indenizações
milionárias!”, que é uma forma de se jogar uma
cortina de fumaça em cima do que efetivamente
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
39
é uma reparação financeira. O Brasil exportou
know-how de tortura para as ditaduras latinoamericanas, exportou torturador, pau-de-arara,
manual de tortura. Apesar disso, é o mais atrasado de todos os países da América Latina em relação às reparações e de contar uma outra História,
porque o que temos é a História dos milicos.
Classe – Como você comentaria a recente frase do deputado federal e capitão da reserva do
Exército, Jair Bolsonaro, “O erro foi torturar e
não matar!” , diante de uma manifestação que
exigia punição para os torturadores no Brasil?
Cecília – Mostra a mentalidade fascista hoje desse
país. O que foi e o que continua sendo. Para alguns
segmentos da sociedade, a morte. Para os “terroristas” daquele período, que era como eles nos chamavam, e para a pobreza hoje, a morte. Para alguns
segmentos rotulados de “perigosos” você justifica a
tortura e o extermínio. Essa fala mostra muito bem
o que hoje está se espraiando na sociedade e não só
a brasileira, mas em todo o planeta.
Classe – Uma fascistização generalizada?
Cecília – É... vivemos hoje uma fascistização
do cotidiano. Queremos um Estado punitivo,
pedimos um Estado forte, penal. Todo mundo
acha que a sua segurança está em cima de maior
policiamento, de leis mais duras e repressivas,
de se criminalizar todo e qualquer pequeno delito. Isso é o que vivemos hoje. Um Estado penal
punitivo e uma política de tolerância zero. Isso
se espraia por todo o planeta e está aqui. A política do casal Garotinho foi desenvolvida dentro
dessa concepção de se criminalizar a pobreza, os
movimentos sociais e todo e qualquer delito.
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Classe – Em que medida a impunidade em
relação aos militares que torturaram na Ditadura se relaciona com a polícia que tortura
hoje?
Cecília – A Ditadura fez escola. E o fato da gente
não conhecer nossa história recente contribui. Num
primeiro momento da repressão brasileira, que vai
até 70, 71, era só porrada pura e simples. A partir
daí, se inaugura o que eles chamam de tortura científica. Você não encosta um dedo no sujeito, mas o
desestrutura. Por exemplo, se colocava a pessoa em
uma cela, que chamávamos de geladeira por sua
temperatura baixíssima, com gritos e sons que você
não identifica, ininterruptos, onde a pessoa simplesmente enlouquece. Nos EUA, algumas prisões de
segurança máxima são assim: através da privação
sensorial se produz a loucura. No Brasil, nem foi
muito utilizado, mas teve sim companheiros que enlouqueceram em função disso. O golpe do Brasil foi
o primeiro e os militares passaram a exportar essas
técnicas que experimentavam aqui.
Classe – Você disse, em seu livro “Operação
Rio – o mito das classes perigosas”, que muitas pessoas ficam horrorizadas porque houve
tortura na Ditadura Militar brasileira não
por serem contra a tortura, mas porque esta
foi praticada contra a classe média. Ou seja,
tortura contra os pobres tudo bem?
Cecília – Eu sempre digo isso. Não é que no movimento de oposição ao regime militar não estivessem
presentes operários e camponeses, muitos estavam,
mas não são falados e ficam esquecidos. Os que
são falados são os intelectuais e estudantes, mas a
tortura, a prisão e o desaparecimento se naturali-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A política de direitos
humanos que esse governo
vem efetivando é pífia.
É uma política semelhante à
de FHC, ou seja, é
para‘ inglês ver’”
zaram como sendo só para a pobreza e não para a
classe média e a elite. Se há horror da sociedade, é
só em relação a isso, mas temos de nos horrorizar
independente da classe social.
Classe – Por que está cada vez mais comum
pensar que falar em direitos humanos é “querer passar a mão na cabeça dos bandidos”?
Cecília – Por que está sendo disseminado na sociedade através dos grandes meios de comunicação de
massa, mas não só eles, isso é uma construção histórica no Brasil. Ou seja, vai se ligando indissociavelmente e naturalmente pobreza e criminalidade.
Ou seja, onde está o pobre, está o perigo. Onde está
o pobre, está o crime. É o que o psicanalista francês
Félix Guattari fala quando se refere a produção de
subjetividades. Ou seja, tão importante como a produção do aço, das riquezas, é a produção de modos
de viver e de existir. Através dessas subjetividades
produzidas, você domina. A ligação entre pobreza e
criminalidade é algo que está naturalizado em cada
um de nós. Essas forças nos atravessam. E isso, na
Europa, começa em meados do séc. XIX e, no Brasil,
chega no final do século XIX e início do XX.
Classe – No livro, outro conceito com
o qual você trabalha bastante é o de
periculosidade, do Foucault...
Cecília – É, o Foucault falava que no século XIX
emerge um dispositivo presente entre nós chamado de periculosidade. Ou seja, tão perigoso quanto
aquilo que o sujeito fez é aquilo que ele poderá vir
a fazer, dependendo da essência desse sujeito. Aí
você dá uma essência para a pobreza, de perigosa e
de criminosa, uma coisa perversa.
Classe - Se pensarmos que os empresários financiaram a ditadura e a tortura, isso define o
caráter de classe da Ditadura Militar brasileira. Esse ainda é o caráter de classe que marca
a tortura contra os pobres em nosso país?
Cecília – As Madres da Praça de Maio têm uma:
“Da Ditadura Militar à ditadura de mercado”.
Obviamente sabemos que os militares foram testasde-ferro das multinacionais. Os golpes militares
na América Latina, nos anos 60 e 70, servem à implantação das multinacionais. Vários empresários
deram dinheiro para a formação dos DOI-CODIS
para a Operação Bandeirantes, o laboratório que
começou a funcionar em 69 em São Paulo, onde se
unificou toda a repressão. Daí é que se originaram
os DOI-CODIS. É por isso que muitos historiadores
afirmam que não devemos usar o termo Ditadura
Militar, e sim civil-militar. Os empresários deram
um apoio muito grande à tortura. Raros não fizeram isso. Portanto, o caráter de classe está presente
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
41
porque é o caráter do capital. A Ditadura vem para
implementar um determinado momento do capitalismo internacional. Os militares iniciam a implantação do projeto neoliberal e os governos civis vão
complementando, mantendo e aprofundando esse
projeto. E chega ao ponto em que temos um governo
do Partido dos Trabalhadores, que tem uma responsabilidade social enorme em completar essa obra.
Classe – Em novembro de 2007, o médico
Harry Shibata, que foi diretor do IML e
assinava atestados de óbito durante a Ditadura, deu uma entrevista. Nela, ele diz
que bandido tem “um componente genético” e defende a eugenia porque, para ele,
“o pessoal lá do Norte e Nordeste não tem
cultura nem inteligência para entender
que é melhor qualidade do que quantidade” e precisa ser controlado. Um mês antes, o governador do Rio, Sérgio Cabral,
defendeu a legalização do aborto para reduzir a violência, afirmando que o índice
de natalidade nos bairros de classe média
e alta do Rio possuem padrão “europeu”,
enquanto as periferias e favelas possuem
níveis “africanos”. Já em agosto deste ano,
o senador Marcelo Crivella, candidato do
PRB (derrotado) à prefeitura do Rio, defendeu a redução da idade mínima para
laqueadura de trompas e vasectomia, “sobretudo nas áreas carentes”. Esse pensamento que relaciona natalidade, pobreza
e violência vem da direita, mas cria cada
vez mais lastros na sociedade?
Cecília – Essas teorias ditas “científicas” estão
presentes no Brasil desde o início do século XX,
42
como a eugenia, que pregava a esterilização dos
considerados “perigosos”, e o higienismo, que vai
dizer que os pobres não têm condições de criar
seus filhos. Uma aliança entre o Direito e a Medicina aponta quem são os indesejáveis e vai dar
uma essência a essas pessoas, a esses segmentos
pobres da sociedade. Isso se atualiza hoje e de várias formas, no Congresso Nacional por exemplo.
Hoje, existem 1457 projetos de lei, todos versando
sobre penas mais duras e severas, não só para
diminuição da maioridade penal, mas para que
a criança possa civilmente responder a processos
como testemunha. Existem projetos para que pedófilos sejam esterilizados quimicamente. Hoje
vemos novas modalidades de eugenia e higienismo. Isso é o avanço do Estado penal. Quando falo
do fascismo social, estou falando desse resgate
dessas teorias ditas científicas, que voltam a ser
utilizadas no século XXI com outras caras e fisionomias. É uma forma de se dizer que sim, alguns
merecem a tortura e o extermínio.
Classe - Shibata também disse o seguinte: “A
repressão tinha de combater a subversão na
Ditadura. É a mesma coisa que a Tropa de
Elite fez e faz combatendo o tráfico no morro. Tem que acabar com a liderança, tem que
matar a liderança mesmo. Mas é pouca gente na Tropa. Por que quantos morros tem?”
Cecília – Então é isso, bota mais “homens de preto
no morro”. Essa é a mensagem do filme, que é muito bem feito tecnicamente e totalmente fascista. De
uma forma heróica e naturalizada, mostra a participação da polícia na tortura e no extermínio. Não
é por acaso que eles dão tanta ênfase aos treinamentos. Os treinamentos militares hoje produzem
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
torturadores. Isso precisa ser pensado pelo Estado
brasileiro porque acontece tanto na Polícia Militar,
como na Guarda Municipal e nas três Forças Armadas. Inclusive há casos de jovens que morrem
em treinamento no Exército e que as famílias não
conseguem denunciar porque têm medo.
Classe - O que as Forças Armadas
representam hoje?
Cecília – O que sempre representaram: o braço armado do capitalismo, como as polícias também. Se
o atual governo diz que é popular e democrático, as
Forças Armadas deveriam ser as primeiras a desejar trazer à tona o que aconteceu em nossa História
para toda a sociedade. Trazer os crimes que foram
praticados em nome da Segurança Nacional, crimes praticados por seus agentes, com o apoio dos
comandantes militares, dos presidentes militares.
Se as Forças Armadas querem pensar na construção de uma sociedade um pouco mais aberta e democrática, essa História precisa ser contada.
Classe – Como se gestou esse conceito de
“classes perigosas?”
Cecília – Ele aparece em 1857 na Europa, num
livro do Morel chamado “Teoria da Degenerescência”. É a primeira vez que se usa esse termo e
o Morel diz que na sociedade existe uma variedade de “espécies” perigosas. Daí por diante, esse
pensamento veio se alastrando.
Classe – Como a imprensa ajudou e continua
ajudando na construção desse pensamento?
Cecília – Naturalizando isso, a essência. A imprensa ajuda quando não cessa de repetir que o pobre, se ainda não é perigoso, vai se tornar. Quando
produz o terror e o inimigo: o negro, o pobre.
O Milton Santos dizia que, nesse processo, não só
caracteriza como perigosos os segmentos pobres
da população, mas também os territórios que
eles habitam. São territórios perigosos, como as
favelas. Então, a sociedade passa a achar que
isso é natural. A situação é tão terrível que tem
um filósofo italiano, Agamben, que diz que se
produziu hoje o que ele chama de “vida nua”,
aquele que é matável e que, portanto, não é considerado homicídio. O que se dissemina é que
para a minha segurança é necessário que esses
“matáveis” sejam mortos. Daí a política de segurança pública militarizada.
Classe – A maximização desse Estado penal é propícia para a criminalização do
movimento social?
Cecília – Sim, e principalmente a criminalização dos que não foram capturados pelo Governo
Lula. Vivemos também um momento de judicialização do cotidiano. Ou seja, a justiça penetra
no cotidiano e a gente não se dá conta disso.
Passamos a defender também que para a nossa
segurança precisamos de leis mais duras, penas
mais severas e mais agressivas como prisão perpétua, diminuição da maioridade penal, pena
de morte. Aqui na UFF, por exemplo, já existe
um curso de especialização em segurança pública que eu acho muito estranho. É um curso que,
para meu espanto, ao que parece, substituiu um
curso que havia na PM. Ou seja, para se chegar
a coronel era necessário passar por esse curso,
que se assemelha a um doutorado. Acho que a
formação de policiais, civis ou militares, precisa ser feita em academias próprias para isso.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
43
Classe – E po r onde passaria essa discussão na universidade?
Cecília - A questão da segurança pública precisa ser discutida nas ciências humanas e sociais.
Essa discussão tem de estar presente na Psicologia, na Sociologia, no Direito, nas ciências políticas. Hoje, se tenta criar um curso de graduação
em segurança pública (* o curso não foi aprovado),
o que eu acho muito perigoso dentro desse contexto em que vivemos. Por que criar um especialista
em segurança pública se o sociólogo pode discutir
isso? Se o psicólogo pode discutir isso? Se o antropólogo pode discutir isso? A resposta que encontro
é porque a segurança pública virou também um
grande mercado, outra conseqüência desse Esta-
44
do Penal que se maximiza. Hoje, os estudantes
que criticam a implantação desse curso são também criminalizados.
Classe - A quem interessa difundir essa idéia
de que vivemos uma guerra civil?
Cecília – Aos poderosos, já que, uma vez aceita essa idéia, entramos no vale-tudo. Significa
dizer que se a minha segurança depende da eliminação do outro, que morra o outro. Mas a segurança em questão é sempre a do rico e o outro
que precisa morrer é sempre o pobre.
Classe – Isso
subjetividade?
gerou
um
novo
tipo
de
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Cecília - É o que eu chamo de uma subjetividade moralista-policialesca-punitiva-paranóica:
todos com medo de todos, mas o alvo maior de
nosso medo e, portanto, alvo da maior punição,
é o pobre. A Vera Malaguti fala muito bem que a
produção do medo na cidade do Rio de Janeiro
é uma forma de controle social.
foto: Stela Guedes Caputo
Classe – É esse medo produzido que faz com
que se exija mais leis?
Cecília – Sem dúvida. O homossexual quer criminalizar o homofóbico, os ecologistas os que poluem, os pais que não mandam seus filhos para a
escola são criminalizados. Você criminaliza tudo
e a gente acaba achando que a solução é por aí.
Não adianta pedir mais leis, pedir mais tutela
do Estado: as leis estão aí. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, está fazendo 18
anos e nunca foi implementado. A criança pobre continua sendo chamada de menor e não de
criança. O meu filho é criança, o filho da pobreza
é menor. Para que mais leis?
Classe – Em que medida a construção dicotômica da “cidade partida”, do Zuenir
Ventura, atrapalha a compreensão da cidade como uma única realidade onde o
embate, das mais variadas formas, é entre
as classes sociais?
Cecília – Eu acho que nada melhor do que voltar para Karl Marx, que dizia que miséria e capital se complementam. Não existem duas cidades
partidas. O capital precisa da miséria e a miséria é efeito do capital. A cidade se integra e é
uma só, onde o capital produz os explorados que,
juntos, precisam se insurgir contra o capital.
Classe – Como os movimentos culturais podem ajudar no avanço da consciência da classe trabalhadora e como também podem atrapalhar? Em que medida alguns movimentos
reforçam o mito da “cidade partida” e se
conformam numa luta pelo “diálogo entre o
morro e o asfalto e pela visibilidade?”
Cecília – Eu acho que alguns movimentos sociais são atravessados não só por essas dicotomias, mas também pela crença de que a luta pela
visibilidade resolve alguma coisa. Não resolve
nada. Essa coisa da visibilidade até reforça isso,
sou contra tudo isso, que não passa de assistencialismo. Além disso, toda identidade é conservadora se não lutar contra o capital.
Classe – Por onde passa a mudança de
tudo isso?
Cecília – Pelos movimentos sociais. Eu só entendo as lutas institucionais vinculadas aos
movimentos sociais. Quando ocupamos espaços
de poder, é para apoiar os movimentos sociais,
e não para capturá-los, mas importantes lideranças foram capturadas por esse governo neoliberal do Lula e isso não pode mais acontecer.
O problema é que os movimentos que não foram capturados pelo governo estão sendo capturados pela subjetividade penal, pela luta dos
movimentos culturais pura e simples e devemos
também estar alertas para isso. As mudanças
não virão nem em curto nem em médio prazo,
mas, para que as alcancemos algum dia, é preciso deixar de achar que tudo o que acontece é
natural. É preciso desconfiar dos meios de comunicação, da mídia de uma forma geral e dos
movimentos conformadores.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
45
Entrevista com José Damião de Lima Trindade,
ex-presidente da Associação dos Procuradores
do Estado de São Paulo
“Só a esquerda socialista pode carregar a bandeira
dos Direitos Humanos”
O ex-presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo, José Damião de
Lima Trindade, lançou recentemente a segunda
edição de seu livro “A História Social dos Direitos
Humanos” (Editora Petrópolis). O livro e a atuação incansável em defesa dos Direitos Humanos fizeram com que o advogado recebesse, no dia 24/10,
no auditório central da UFRJ, o prêmio “João Canuto de Direitos Humanos”, na categoria “Destaque em Educação em Direitos Humanos”, promovido pela entidade carioca “Movimento Humanos
Direitos”. No ano em que a Declaração Universal
completa 60 anos (10/12/2008), a visão singular
deste autor recoloca a questão da classe social nesta importante discussão. Na entrevista que segue
ele fala sobre o livro, polícia, criminalização dos
movimentos sociais, mídia e segurança pública.
46
Classe – O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou que, entre
janeiro e março deste ano, 358 pessoas foram mortas pela polícia no estado nos chamados “autos de resistência”, 12% a mais
do que o registrado no mesmo período de
2007. A polícia está matando cada vez mais.
Como avaliar essa realidade?
José Damião – O crescimento da violência policial, tanto nas ruas quanto no interior das delegacias, é uma tendência estatisticamente verificável em praticamente todas as grandes cidades
brasileiras. O caso do Rio chama mais atenção
devido a certas especificidades muito conhecidas. Primeiro, porque a topografia carioca faz
com que bairros de classes média e alta convivam
lado a lado com bolsões de miséria – diferente-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
mente de outras capitais, onde já vai adiantado o
processo de expulsão da miséria para a periferia.
São Paulo, que outrora tinha favelas em regiões
centrais da cidade, empurrou-as para longe nas
últimas décadas. Quem entra ou sai da cidade
por qualquer das rodovias de acesso tem de atravessar o ostensivo cordão de favelas. E é sobre a
pobreza que a violência policial mais se abate.
Por isso, no Rio, a violência policial acaba sendo
mais “visível” para a classe média. Outro aspecto
que chama a atenção no Rio é o sério envolvimento de policiais militares e civis com as violentas
“milícias” criminosas das zonas norte e oeste, bem
armadas e municiadas, até representadas politicamente, cada vez mais atrevidas. Não fosse o episódio de torturas praticadas durante horas contra
repórteres do jornal “O Dia”, em março de 2008,
talvez sequer tivesse sido instalada na Assembléia
Legislativa a CPI sobre as milícias, que o deputado Marcelo Freixo havia proposto um ano antes.
Outro fator a conferir notoriedade à violência policial carioca é, digamos, de ordem “publicitária”:
os “caveirões” tornaram-se símbolos aterrorizantes
da brutalidade institucional no estado.
Classe – Como repensar a segurança pública
dentro dos marcos do capitalismo, posto que
nesta ordem é impossível uma sociedade justa? Afinal, segurança pública para quem?
José Damião – No capitalismo, seja aqui, seja na
Noruega, a função primária do aparato policial e
dos aparatos privados complementares não é propiciar segurança ao “público” em geral, mas sim
assegurar proteção, difusa ou ostensiva, à propriedade privada e aos seus detentores. Essa condicionante básica já limita severamente todos os projetos
de “democratizar” ou “humanizar” o corpo policial
numa sociedade capitalista. Mas numa Noruega,
em que as contradições sociais foram minimizadas
pelo Estado de Bem-Estar (que só agora começa a
ser destruído por lá), a polícia não precisa ser tão
violenta para defender a propriedade privada. Já
na América Latina e África, com desigualdades sociais extremadas, a violência policial erigiu-se em
principal método profissional das instituições de
segurança. No caso brasileiro, há um agravante: a
impunidade dos assassinos e torturadores da época
da Ditadura Militar acabou sendo uma espécie de
“garantia” de impunidade para os assassinos e torturadores fardados e sem farda de hoje. Philip Alston, o relator especial da ONU para execuções sumárias asseverou que, no Brasil, a polícia tem “carta branca” para matar. Basta registrar: “resistência
seguida de morte” ou “morte em troca de tiros”.
Classe – É possível pensarmos em ações
específicas para o combate ao racismo
nas instituições de segurança pública, já
que a juventude negra é a principal vítima da violência policial?
José Damião – Ações educativas interna corporis
na instituição policial têm se mostrado de eficácia
duvidosa, ao menos até agora. O policial civil ou
militar é convocado para assistir umas aulinhas
sobre direitos humanos, igualdade racial, respeito
ao cidadão, e fica nisso. A “ideologia” da violência,
da bala, da pancada, do choque elétrico e do preconceito racista e classista, que fincou raízes em toda a
instituição policial desde a Ditadura Militar, acaba
pesando mais. Essas aulinhas acabam se tornando
objeto de galhofa. Eu mesmo, chamado para dar
aulas de direitos humanos em cursos de formação
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
47
Edna Ezequiel, mãe
de Alana, de 12 anos,
assassinada por
policiais militares, em
março de 2007, no
Morro dos Macacos.
Foto: Agência O Globo
de policiais militares em São Paulo, percebia o enfado e o escárnio em muitos semblantes. Não que tais
ações educativas devam ser interrompidas, mas, sozinhas, são impotentes para transformar mentalidades e práticas. Faz falta um conjunto de medidas
que amenizaria a situação: salários dignos, para
que os policiais não precisem “trabalhar” para o
tráfico de drogas/armas e para as milícias; recursos tecnológicos modernos, para que o pau-de-arara
deixe de ser o principal “método” de interrogatório
e investigação; e a mobilização da sociedade, que
deveria se organizar e pressionar para exigir rigor
e verdade na ação da Corregedoria das polícias.
Mas, note bem: usei o verbo amenizar. Essas e ou-
48
tras medidas poderiam amenizar a situação, o que
já seria um avanço em termos de vidas poupadas,
redução da truculência policial e colocação da corrupção policial “sob certo controle”. Porque a função policial básica exigida pelas instituições, pelas
classes dominantes e pela grande mídia, porta-voz
das classes dominantes, continuaria a ser a mesma: reprimir a pobreza, mantê-la afastada da propriedade, mantê-la trabalhando quietinha e conformada. Sob o capitalismo, não nos transformaremos
numa Noruega. Mais fácil, com essa crise mundial,
a Noruega retroceder para Brasil.
Classe – Passou a ser comum que manifes-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
tações contra a violência reúnam mães que
perderam seus filhos. Consolam-se mutuamente os pais de João Hélio, comerciantes;
os pais de Gabriela Prado, psicólogos (a
mãe faleceu recentemente); a mãe da menina Alana, morta no Morro dos Macacos,
empregada doméstica; a mãe de Hanry da
Silva, morto por policiais no Lins. O que
une e o que separa essas pessoas?
José Damião – A dor comum as une. E a dor humana é território sagrado. Consegue, durante certo
tempo, diluir as fronteiras de classe que separavam essas pessoas. Mas se a dor e a revolta não se
amalgamarem com um projeto de democratização
profunda das nossas corporações policiais, a dor
que hoje arma vozes acabará, por falta de resultados, se cansando e se calando. Já aconteceu antes.
Classe - No dia 22 de agosto de 2007, a tropa de choque invadiu a Faculdade de Direito da USP. Em artigo, na ocasião, você
disse que o ato, além de configurar, por si
mesmo, uma agressão à autonomia universitária, pôs a nu sua natureza de preconceito de classe, já que, dentre os presos
naquela madrugada, somente os ativistas
de movimentos sociais foram fichados
na delegacia de polícia.
José Damião – É verdade, os estudantes foram
liberados sem fichamento. A ideologia dominante até admite que os filhos das classes dominantes
às vezes cometam alguns “excessos”, como protestar, denunciar, participar de ocupações simbólicas.
Coisa de juventude: quando começarem a ganhar
dinheiro isso passa, é o que dizem – e geralmente
passa mesmo. O patrimônio familiar, a consciência
No capitalismo, não há mais nenhuma
esperança de melhoria social significativa,
o movimento é regressivo, aponta
para a supressão de direitos que,
em alguns casos, os trabalhadores
haviam conquistado já no
final do século dezenove”
de pertencer à elite econômica ou de estar em suas
imediações, quase ingressando nela, acaba se impondo, salvo as exceções de plantão. Mas pobres, negros, índios, camponeses, favelados, desempregados
ocuparem por algumas horas o pátio de uma faculdade pública para protestar contra as injustiças da
sociedade, isso é intolerável: chamem a polícia!
Classe – Como você vê a crescente criminalização dos movimentos sociais,
em especial, do MST?
José Damião – Vejo com temor devido à falta
de uma reação apropriada, enérgica, da sociedade.
Os movimentos sociais ainda padecem de desnorteamento político-ideológico, muitos estão paralisados
pela cooptação institucional de seus líderes ou depositam esperanças em bolsas assistenciais. O movimento sindical chegou ao fundo do poço, encolhido, desmobilizado, com uma parcela imensa corrompida.
Mas as contradições sociais, a desigualdade brutal e
a concentração de renda continuam operando, geran-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
49
do dor social, mal-estar, criminalidade, desemprego.
Isso ainda pode ser contido por uma polícia repressiva. O que não pode ser admitido é a atividade daquela franja de movimentos que não se rendeu, que
insiste em organizar os oprimidos, mobilizá-los para
a ação consciente. Isso pode crescer, tornar-se perigoso no primeiro abalo econômico que o país sofrer.
Antes que saia de controle, é preciso cortar o “mal”
pela raiz. Demissão de sindicalistas, imposição judicial de “interditos proibitórios” para que os piquetes
de greves não possam se aproximar dos portões das
empresas, multas milionárias contra os sindicatos
combativos, tentativa de colocar o MST na ilegalidade, uso até da infame Lei de Segurança Nacional
da ditadura... Um novo macartismo começa, aos
poucos, a tomar os poros da sociedade. E não temos
conseguido reunir forças para dar resposta à altura.
Muito preocupante. Se a crise econômica mundial
se precipitar com severidade, isso pode piorar muito, e rapidamente. Em épocas de crise, as classes dominantes sempre encontram os seus Roosevelts ou
Mussolinis e usam um ou outro conforme for mais
conveniente para manter seus interesses.
Classe – Muitas universidades estão organizando pós-graduações e graduações em
Segurança Pública. Como você vê isso?
José Damião – O tema “segurança pública”,
como qualquer outro tema relevante, poderia ser
objeto de atenção científica na academia. O problema não reside aí. O problema surge na ideologia
que perpassa tais cursos. Estamos numa época em
que o Estado Social cede lugar ao Estado Penal e
a burguesia, em vez de, como antes, administrar
as contradições sociais mediante concessões pontuais, mas reais, aos trabalhadores, passa a fazê-lo
50
mediante a combinação de um duplo movimento:
anestesiamento da miséria (assistencialismo) e repressão ao que restar de manifestações daquelas
contradições. Com esse espírito dos tempos, o tema
“segurança pública” acompanha esse movimento:
estudar a segurança pública na academia tem o
propósito de torná-la “mais eficiente”, assimilar
técnicas de contenção social que deram certo em
outros países, sem atenção às conexões sociológicas
da criminalidade e sem investigar a função social
que o capitalismo atribui às forças de segurança.
Isso torna toda transgressão legal um fenômeno
merecedor de atenção puramente “técnica”, “neutra”, alienada. Exatamente o tipo de formação de
profissionais que convém ao status quo.
Classe - É comum que parentes e pessoas amigas de vítimas da violência peçam
mudanças no Código Penal, em geral o
endurecimento das penas e a redução da
maioridade penal. A mídia é responsável
por essa associação?
José Damião – A mídia é cúmplice consciente, cínica. Que familiares e amigos de vítimas, trespassados
pela dor por perdas violentas, queiram “vingar” o
derramamento de sangue com mais derramamento
de sangue, é compreensível. A dor humana, malgrado sagrada, pode cegar, toldar a lucidez e conduzir
ao insensato. Mas a grande mídia burguesa toma
essa dor humana e transforma-a em espetáculo, com
o propósito de adicionar mais cegueira à cegueira,
para que as vítimas escolham o caminho errado, o
caminho da vingança penal, e não tomem consciência das raízes sociais da criminalidade. Os juristas,
os políticos, os intelectuais orgânicos das classes dominantes sabem disso e ocultam. Está demonstrado
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
internacionalmente que o “endurecimento” penal é
inócuo, não altera a curva estatística do delito. Nenhum delinqüente “consulta” o Código Penal antes
de transgredir. Também está nauseantemente demonstrado que calabouços não “ressocializam” ninguém. A privação de liberdade, salvo naqueles raros
casos de psicopatas violentos, fracassou no mundo
todo enquanto instrumento de defesa social. É baixíssimo o índice de reincidência após o cumprimento de
penas alternativas (prestação de serviços à comunidade, restrição de direitos, etc.). E é cada vez maior o
índice de reincidência após o cumprimento de penas
de encarceramento. Esses dados são públicos, estão
disponíveis. Mas, como a burguesia não consegue
aliviar o mal-estar social – precisaria mexer com os
lucros – ela prefere alimentar essas ilusões penais de
Talião, trágicas para os oprimidos.
Classe – Quando se vai contra essa lógica,
seus defensores criticam “a turma dos direitos humanos”. Como responder a esse endurecimento social cada vez mais cimentado?
José Damião – É muito difícil dar essa reposta porque, como se sabe, a ideologia dominante
numa sociedade é sempre a ideologia da classe
dominante. Se não conseguirmos estabelecer uma
conexão eficiente entre cada uma das mazelas sociais e o verdadeiro epicentro do problema – a
divisão social em classes – não conseguiremos
manter um discurso coerente nem convincente.
Classe – No seu livro “A história social dos
Direitos Humanos”, relançado agora, o
senhor diz que a burguesia, que originalmente concebeu o discurso dos direitos
humanos, precisa hoje rejeitá-lo e que a es-
querda, que o identificava como mistificação ideológica, tomou-o para si. Mas como
a esquerda deve carregar essa bandeira?
José Damião – Só a esquerda socialista pode
hoje carregar a bandeira dos direitos humanos. A
burguesia desinteressou-se dela – não pode mais
sustentá-la. Poderia hoje o capitalismo universalizar direitos econômicos, sociais e culturais, da Namíbia à Holanda? Obviamente, não. O movimento
do capital, a acelerada incorporação da ciência e
da tecnologia nos processos produtivos e a desregulamentação dos mercados acirraram dramaticamente a concorrência mundial inter-capitalista
nas últimas duas ou três décadas. Para sobreviver
nessa guerra hobbesiana, o capital precisa cortar
custos de produção de mercadorias. Economizar
com meios de produção tornou-se impossível, a
produtividade despencaria. O único “custo” que
restou disponível para ser cortado é o da própria
força de trabalho. Redução/supressão de direitos
econômico-sociais – eis a sacrossanta consigna que
entoam os capitalistas ao redor do planeta. Desunidos e confusos ideologicamente, acuados pela maré
montante do novo exército industrial de reserva (o
desemprego estrutural), os trabalhadores não têm
conseguido resistir. No capitalismo, não há mais
nenhuma esperança de melhoria social significativa, o movimento é regressivo, aponta para a supressão de direitos que, em alguns casos, os trabalhadores haviam conquistado já no final do século
XIX. E os direitos individuais? Quanto a eles, qual
o significado de Abu Ghraib, Guantánamo, dos
navios-prisões que hoje os EUA mantêm em águas
internacionais do Pacífico, dos centros secretos de
tortura que instalaram na Europa Ocidental, no
Egito, no Paquistão? Qual o significado das guer-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
51
A esquerda está
“condenada” a
defender os direitos
humanos ou capitula
miseravelmente”
ras de agressão da maior potência imperial? Qual
o significado da covarde conivência/complascência
da “comunidade internacional” em relação a tais
violações? A esquerda está “condenada” a defender
os direitos humanos ou capitula miseravelmente.
Classe – O senhor também explica que a Declaração de 1948 tentou conciliar liberalismo e socialismo, mas manteve o direito de
propriedade ilimitado. Os socialistas porém
querem socializar os meios de produção.
Como resolver a contradição?
José Damião – Essa contradição é reveladora do duplo discurso existente sobre direitos
humanos. Um discurso hipócrita, para uso
político e diplomático, e outro discurso inescapavelmente libertador. O discurso hipócrita
é o da diplomacia norte-americana e de seus
repetidores em todos os países, que separa a
humanidade em duas classes distintas de “hu-
52
manos”: de um lado, as classes dominantes do
mundo; de outro lado, os subalternos de toda
parte. Aos primeiros, vale tudo para defender
seus interesses egoístas, predadores, destruidores da humanidade e do planeta, desde sanções econômicas até disparos de mísseis. Aos
subalternos, nega-se direitos os mais elementares. Que importância tem para Wall Street
a miséria apavorante da África subsaariana?
Ante a perspectiva da globalização da barbárie, é Karl Marx – não Adam Smith ou Hayek
– quem tem algo a nos dizer. E que o ouçamos
logo, se é que ainda não renunciamos ao sonho
belo, possível e, hoje, crucialmente necessário
de edificarmos um mundo que permita a todos
sobreviver – sobreviver com dignidade e com
um pouco de amor, sem desperdício e sem terrores pré-históricos. Temos escolha, e é esta:
entre Sísifo e Prometeu. Ambos foram condenados a tormentos eternos. Prometeu, porque
roubou fogo aos deuses e o entregou à humanidade, libertando-a. Já o tormento de Sísifo
é acabrunhante, porque sem sentido: carregar
nos ombros uma grande rocha até o alto de
uma montanha, perdê-la logo antes de chegar
ao cume, vê-la rolar de volta ao sopé, retomar
a pedra, subir novamente a montanha, a rocha
a escapar-lhe novamente das mãos... Ambos
os mitos podem ser tomados como metáforas
da condição humana. O de Sísifo, metáfora da
persistência, do eterno recomeçar – mas um recomeçar solitário e trágico, sem sentido e sem
liberdade. Já Prometeu, mesmo acorrentado e
com uma ave de rapina a devorar-lhe o fígado,
é livre e libertador: porque escolheu transgredir
a lei dos deuses em favor da humanidade.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Mídia e Política
Comunicação e controle social
Marcelo Salles
Jornalista
As corporações de mídia são as principais responsáveis pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. Não há outra
instituição da república com maior poder de
produzir e reproduzir o discurso que associa
pobre a bandido – e organizações de trabalhadores a bandos criminosos. Mais que a família, a escola, as Forças Armadas ou qualquer
outra instituição, a mídia alcança um poder
desmedido e destrutivo no Brasil basicamente
por dois motivos: a brutal concentração dos veículos de comunicação de massa nas mãos da
direita e o avanço das tecnologias da informação, o que permite que sua mensagem alcance
praticamente a totalidade da população.
Apenas para se ter uma idéia, nos EUA
é proibido que um mesmo grupo empresarial
controle, na mesma praça, um veículo de comunicação impresso e uma emissora de rádio;
ou uma emissora de rádio e outra de televisão;
e assim por diante. Além disso, o conselho federal de comunicação estadunidense proíbe que
o mesmo proprietário detenha mais de 30% da
audiência dos veículos de radiodifusão num
mesmo local. Aqui no Brasil, por outro lado,
uma única empresa controla 40% da audiência
e recebe 60% das verbas publicitárias.
Para piorar o quadro, há um dado impressionante do Instituto Paulo Montenegro,
que foi citado pelo pesquisador da UnB Venício Lima em seu livro “Mídia: teoria e política” (Fundação Perseu Abramo): apenas 26%
da população brasileira entende o que lê. Isso
significa que o rádio e a televisão ganham
ainda mais poder, já que para transmitir suas
mensagens não dependem que o público seja
alfabetizado. Esta característica da mídia de
massa poderia ser um dado positivo, já que no
Brasil os veículos de radiodifusão são concessões públicas e, portanto, deveriam ser controlados pelo povo brasileiro – e em seu benefício. Erradicar o analfabetismo, por exemplo,
levaria apenas 30 meses pelo método cubano
“Yo sí Puedo”, que emprega o sistema audiovisual. Entretanto, os parlamentares que autorizam a renovação das concessões são, muitas
vezes, proprietários de emissoras afiliadas
às grandes redes – o que fere o artigo 54 da
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
53
Constituição Federal – uma situação que perpetua a relação fisiológica estabelecida com a
ditadura civil-militar de 1964.
O resultado é que hoje, em 2008, o Brasil, país de 190 milhões de habitantes, possui
apenas 7 emissoras abertas de televisão, sendo que seis delas são ideologicamente afinadas e estão a serviço da exploração dos povos
para garantir os lucros das corporações privadas mundo afora. A outra emissora apenas
agora começa a buscar uma outra narrativa,
mas ainda não ofereceu elementos concretos
que apontem para uma alternativa ao pensamento único. Não parece casual que um dos
países mais desiguais do mundo seja também
um país com esse nível de concentração midiática. Uma pesquisa da ONU revela que os
meios de comunicação estão em segundo lugar
entre os poderes de fato da América Latina,
muito à frente dos três poderes da república e
um pouquinho atrás do poder econômico (ver
tabela). O cruzamento dos dados permite afirmar: as corporações de mídia são diretamente
responsáveis pelas mazelas brasileiras.
Esse monopólio midiático atua em todos os setores da sociedade. Desde política e
economia, passando pela cultura e pelo entretenimento, até chegar nas questões internacionais, ciência e turismo, entre outros. Suas
intervenções nunca são neutras ou imparciais, como alguns sustentam. Como as corporações de mídia estão organizadas enquanto
empresas, elas também buscam o lucro acima
de tudo – para si e para as empresas associadas. Essa característica, por si só, inviabiliza
a busca do equilíbrio e, mais além, torna-se
54
determinante na elaboração das mensagens
(objetivas e subjetivas) que projeta.
Esse olhar interessado também é percebido no tratamento das classes trabalhadoras
e dos movimentos sociais. A solução encontrada pelo capitalismo tardio na América Latina para lidar com a pobreza é inspirada no
“Tolerância Zero”, nascido em Nova York, de
modo que as medidas punitivas são cada vez
mais direcionadas aos que não se submetem
aos postos de trabalho mal remunerado e sem
qualificação. O sistema coloca a seguinte alternativa: salário mínimo de R$ 415 ou trabalho informal. Num, o cidadão vai ser oprimido
pelo patrão e pela remuneração insuficiente;
noutro, pelas forças de segurança do Estado.
Os movimentos sociais são igualmente reprimidos pela imprensa hegemônica. Como esses grupos querem transformar a realidade, os
porta-vozes dos que lucram com o atual estado
de coisas vociferam – e distorcem e mentem. Foi
o que aconteceu com uma chamada na primeira página do jornal O Globo de 30 de setembro
de 2008, que teve a intenção de criminalizar o
MST: “Maiores desmatadores do país são semterra, revela Minc”. A informação foi desmentida na página do movimento (www.mst.org), mas
o jornal não a publicou nos dias seguintes.
Está claro que o objetivo desse sistema é
manter o controle social. Um controle voltado,
notadamente, para pobres, negros e jovens. E
os veículos de comunicação de massa jogam
papel decisivo. Eles disseminam o medo e
afirmam que os pobres são bandidos e os movimentos sociais, criminosos. O resultado é
um clamor público pela repressão. Obediente,
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
a polícia reprime, promove chacinas, mas logo
tudo volta a ser como era antes.
Se os movimentos sociais quiserem promover mudanças substanciais, mudanças que
causem impacto positivo na vida das pessoas,
será preciso enfrentar a luta pelo controle dos
meios de comunicação de massa. Só assim o
povo deixará de ser manipulado e passará a
defender os interesses da maioria em vez de
se voltar contra eles.
Quem exerce o poder na América Latina?
Poderes
de fato
Grupos econômicos/empresariais/setor financeiro 79,7%
Meios de comunicação
65,2%
Poder executivo
36,4%
Poderes
Poder legislativo
constitucionais
Poder Judiciário
Forças de
segurança
Instituições
e líderes
políticos
Fatores
extraterritoriais
12,8%
8,5%
Forças armadas
21,4%
Polícia
2,7%
Partidos políticos
29,9%
Políticos/líderes políticos/operadores políticos
6,9%
EUA / Embaixada dos EUA
22,9%
Organismos multilaterais de crédito (FMI, BID, Banco Mundial, etc.)
16,6%
Empresas multinacionais
4,8%
Base: 231 entrevistas com líderes políticos, incluindo presidentes em exercício (51% do total), intelectuais
(14%), empresários (11%), jornalistas (7%), lideranças da sociedade civil (6%), etc.
Fonte: La Democracia en America Latina.PNUD, 2004
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
55
Mais do mesmo na Câmara
Municipal do Rio de Janeiro
Fernanda Chaves
jornalista
O povo do Rio de Janeiro acaba de eleger
para mais quatro anos a nova formação da Câmara Municipal. Entre os representantes, tem
de um tudo. Dos de sempre aos chamados fichassujas. Do que há de mais conservador às figuras
polêmicas. E nem sempre uma classificação invalida a outra. Entre eles, alguns com ligações
com o crime organizado ou já respondendo a processos criminais, em situações já mais que esplanadas pela imprensa.
Hoje, existem acusações do Ministério
Público e condenações de quadros políticos do
vários partidos. O ex-vereador Jerominho Guimarães (PMDB), o deputado Natalino Guimarães (DEM) e Carminha Jerominho (PTdoB),
todos da mesma família, estão presos por liderar, segundo a polícia, a quadrilha autodenominada Liga da Justiça, que atua na Zona Oeste do Rio de Janeiro. No entanto, estar num
56
presídio em regime disciplinar diferenciado
não impediu que Carminha tivesse conquistados astronômicos 22 mil votos.
Jorge Babu, deputado estadual (PT), é
também acusado pelo Ministério Público por
envolvimento com milícias. Seu apoio foi fundamental para eleger o irmão, Elton Babu,
o segundo vereador mais votado do PT, com
mais de 11 mil votos. É possível considerar,
contudo, que um provável “efeito-CPI das milícias” tenha recaído sobre alguns candidatos
- já um pouco desgastados, é verdade - como
Nadinho de Rio das Pedras (DEM) e Luiz André Deco (PR), que não conseguiram manter
suas vagas na Câmara Municipal.
É possível também ter a sensação de que
a CPI que investiga as milícias, na Assembléia
Legislativa, está vencendo a batalha pedagógica de entendimento do que elas representam:
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
o tema está na pauta, nos papos, já não é mais
considerado um mal menor. Mas, paradoxalmente, quadros como Cristiano Girão (PMN)
(que chegou a admitir durante seu depoimento
à CPI que na “sua” área ele não permitia “maconheiros e cheiradores”) e o já citado Elton
Babu figuram na leva de 40% de renovação do
parlamento municipal do Rio de Janeiro. Isso
para ficar no crime de milícias - que até recentemente sequer tinha tipificação no código penal brasileiro - porque, se giramos o foco para
outro tipo de crime representado na Câmara,
temos Claudinho da Academia, do PSDC, suspeito de ser o candidato apoiado pelo tráfico
varejista de drogas na favela da Rocinha, na
zona sul do Rio, eleito com 11.513 votos.
Ok, Carminha Jerominho teve sua candidatura impugnada e, caso o recurso dela seja
rejeitado, seus votos serão considerados nulos.
Tudo bem. Mas o fato é: ela recebeu 22 mil votos. De eleitores. Pessoas físicas, como eu e como
qualquer cidadão, não é isto? Canso de ouvir falar sobre a responsabilidade do eleitor, coisa e
tal. Outro dia era o motorista do táxi. Acabava de
dar no rádio que os dados na cidade davam conta de cariocas votando em uma candidata presa,
um suspeito de integrar milícias e outro de ser
o candidato apoiado pelo tráfico de drogas na
Rocinha. Ele, o motorista, revoltado com a configuração do novo legislativo carioca e naquela
de que “o povo tem o que merece porque dá seu
voto a esses bandidos para se representar, e não
é porque não sabe, pois os jornais estão aí”. Discurso que você quase absorve. Quase.
Porque, nem que seja intuitivamente,
você se dá conta de que ser humano algum
quer ser representado por um corrupto. E não
é difícil concluir que a política é produto de um
processo que não é individual, do meu ou do
seu voto. E o que prevalece é a idéia de sustentação política clientelista - seja legal ou criminosa, seja oficial ou paralela, utilizando-se ou
não do Estado - é que permite que essas pessoas sejam eleitas. O motorista de táxi já estava
longe a essa altura da minha lenta reflexão, e
já não era mais possível compartilhar com ele
a opinião do cientista político Eduardo Alves:
“Não há diferença POLÍTICA entre o
clientelismo de Estado e outros tipos de clientelismos. As diferenças são legais e morais.
Algumas morais assimilam o clientelismo de
Estado e não o clientelismo ilegal. Outras morais assimilam o clientelismo consentido, mas
rechaçam o clientelismo feito por meio da coerção. Mas do ponto de vista POLÍTICO não há
diferença entre esses modelos de clientelismo. A
política clientelista das milícias, do tráfico, dos
chamados centros sociais, do setor privado, das
organizações assistenciais mantidas por vários
políticos ou do Estado (em qualquer dos seus
níveis), possui como objetivo manter o controle sobre um determinado setor da sociedade;
justamente o setor mais penalizado pelo empobrecimento, mais sacrificado pela prática da
exploração, mais discriminado por sua condição social. É esse setor que está mais suscetível
às políticas clientelistas. E como tais políticas
fazem diferença concreta, real, objetiva para
a reprodução da vida dessas pessoas, que são
maioria na sociedade brasileira, as conseqüências dessa política nos processos eleitorais são
das mais profundas perversidades”.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Filmes
Algumas reflexões a partir do filme
“Quanto vale ou é por quilo?”
Dora Henrique da Costa e Lea Calvão da Silva
Professoras da Faculdade de Educação da UFF
“Há meio século, os escravos fugiam com
freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente
apanharem pancada, e nem todos gostavam de
apanhar pancada”, conta Machado de Assis.
58
Cento e vinte anos passados do que se
chamou o fim da escravidão negra no Brasil,
uma imensa maioria de homens, mulheres e
crianças livres - descendentes, muitos deles,
daqueles que fugiam e apanhavam - sofre de
outra tortura. Não a pancada, a chibata, a
máscara de folha de flandres, os anéis de ferro
ao pescoço, a argola aos pés. Não mais esses
sinais ostensivos de dominação e dor. Igual
em crueldade, o instrumento de agora é outro
e, como aqueles, humilha e avilta. Mais que
isso. Mata. No século da produção abundante
de alimentos, da prosperidade deslocada de
uns poucos, dos cânones do trabalho flexível,
esses homens – também são muitos e também
não gostam da tortura – não conseguem fugir
da fome e do que a provoca, o não-trabalho.
“Quanto vale ou é por quilo?” fala desses dois tempos. O filme situa-se ora como
documental, ora ficcional. Ao basear-se em
material pesquisado no Arquivo Nacional,
introduz-nos na linguagem documental; ao
apoiar-se no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, remete-nos a momento histórico-literário. Ao trazer a ação para os dias
atuais, e embora partindo de análises científicas sobre a realidade, introduz-nos à ficção.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Seu autor, Sérgio Bianchi, entrecruzando
cenas do conto, registros em documentos oficiais de época e ações exercidas por ONG´s,
denuncia a lógica da desumanização.
A cena inicial do filme é a de uma negra
alforriada, lutando para reaver sua propriedade, um escravo que lhe fora roubado. Na
seqüência, cenas de iniciativas individuais
ou empresarias voltadas à ajuda aos pobres.
Divulgando-se como ação humanitária, a disputa pela propriedade e pelo ganho de dinheiro, tendo como fonte a miséria, marca todo o
desenvolvimento do filme.
A trama partida em dias da escravidão e
dias de hoje vai revelando faces da realidade.
Assim contada em dois tempos, é a história de
uma mesma totalidade.
O termo totalidade é aqui tomado como a
idéia que ampara o mecanismo de apropriação
da realidade. Portanto, a que é usada para a
explicitação de aspectos importantes do tratamento metodológico dado a qualquer objeto de
estudo. Milton Santos entende ser a totalidade
uma noção das mais fecundas legadas pela filosofia clássica, constituindo-se em elemento fundamental para o conhecimento da realidade.
Podemos dizer que as faces da realidade
mostradas no filme expressam o mesmo sistema – totalidade em movimento – resultado do
processo histórico que a elas deu origem. O filme
deixa claro que, ontem como hoje, são as relações
mercadológicas as que predominam nas relações
interpessoais. São elas que evidenciam, como
mostra o filme, o quanto a pobreza e a miséria se
transformam em negócios lucrativos.
Ao analisar o momento atual, o autor con-
Zezé Mota na cena inicial do filme.
centra a atenção em ações desenvolvidas por
ONG´s, mostrando como elas, em sua maioria,
alimentam-se exatamente da existência e profundidade da pobreza e da miséria.
O termo ONG, utilizado pela ONU em
1940 e adotado largamente a partir dos anos
1960, designava organizações não governamentais – hoje também denominadas terceiro setor - definidas como de direito civil, sem
fins lucrativos e sem vínculos com governos,
sindicatos ou partidos políticos.
Até a década de 1970, as ONG´s increviam-se nos movimentos sociais, atuando
em vários ramos de atividades, trabalhando com projetos sociais e de promoção da cidadania, defendendo o meio ambiente e os
direitos das minorias. Elas se constituíam,
então, em instrumento eminentemente polí-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
59
tico. No caso brasileiro, por exemplo, foram
instrumento de luta pela democratização da
sociedade nos anos da ditadura.
A partir da década de 1990, já totalmente absorvidas pelo sistema, as ONG´s têm
tido como marca fundamental a parceria com
o Estado, com instituições religiosas e com
fundações empresariais, exercendo papel paliativo e amortecedor da luta social.
Vale observar que a existência das
ONG´s está ligada, de forma diretamente
proporcional, à sua capacidade de angariar
fundos para seu funcionamento, sendo, pois,
relativa a sua autonomia. Esta dependerá
sempre da origem dos recursos.
A ação das ONG´s, ao se dirigir a grupos
específicos, acaba negando a universalidade
das lutas sociais. Em outras palavras, na medida em que dirigem suas ações a grupos específicos, fragmentam as reivindicações de políticas
sociais e universais de cidadania. Dessa forma,
o dito terceiro setor torna-se braço auxiliar na
implementação de políticas favoráveis à reestruração do capital. E mais: tal como o filme denuncia, as ONG´s se constituem, elas mesmas,
em agentes da exploração direta da miséria.
Podemos concluir que o papel efetivo das
ONG´s tem sido – direta ou indiretamente – o
de contribuir para a manutenção da hegemonia do projeto social sob a égide da burguesia.
Ao partir para a ação diretamente ligada a
grupos de interesse que não se definem pelas relações de trabalho, tais como mulheres,
crianças, homossexuais, terceira idade, ecologia, etnia, as ONG´s, além de pulverizar e
particularizar as atuações desses grupos de
60
referência, ao colocar as lutas fora do campo
econômico, não representam um perigo para
o funcionamento da sociedade capitalista. Na
realidade, suas ações acabam por desviar a
reflexão que deveria estar voltada para os
mecanismos de exploração e expropriação a
que está submetida a classe trabalhadora.
Filmes como esse permitem a reflexão
sobre a realidade. Possibilitam-nos pensar
em formas de rejeição da exploração, primeiro passo para a luta por uma outra forma de organização societária. Por uma organização em que os homens, afinal saindo
do ensaio de humanidade, possam exercer
sua humanidade em plenitude.
Ficha Técnica:
Título Original: Quanto Vale ou é por Quilo?
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 104 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2005
Site Oficial: www.quantovaleoueporquilo.com.br
Estúdio: Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda.
Distribuição: Riofilme
Direção: Sérgio Bianchi
Roteiro: Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim e Newton Canitto,
baseado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis
Produção: Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira
Fotografia: Marcelo Copanni
Desenho de Produção: Jussara Perussolo
Direção de Arte: Renata Tessari
Figurino: Carol Lee, David Parizotti e Marisa Guimarães
Edição: Paulo Sacramento
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Nossa Resenha
Mike Davis,
Planeta favela
Maurício Vieira Martins
Professor do Depto. de Sociologia da UFF
“Mas o que é slum, palavra inglesa que significa ‘favela?’”,
pergunta-se Mike Davis num
certo momento de seu livro “Planeta favela” (Editorial Boitempo,
2006). Para responder esta pergunta, Davis recua até o início do
século XIX, na Inglaterra pós-Revolução Industrial, onde localiza a
primeira definição de que se tem
notícia de “slum”, que associa a
palavra a “estelionato” (racket), e
ao “comércio criminoso” (p. 32).
Não demorou muito para que, de
designação de um ato, a palavra
passasse a ser atribuída também
aos locais urbanos degradados
onde habitavam trabalhadores
pobres. Marcada pelo preconceito, a definição associada a estelionato desliza, de maneira nada
sutil, à moradia dos próprios
habitantes desfavorecidos.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Já no século XX, sofistica-se a categorização de favela, que passa a ser associada, de
acordo com documentos recentes da ONU, a
um “excesso de população, habitações pobres
ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança da
posse da moradia.” (p. 33). Porém, se a consulta às fontes históricas do século XIX revela o
caráter mais do que secular da pobreza urbana concentrada, não resta dúvida de que ela
sofreu uma explosão a partir da década de 80
do século XX. É possível descobrir com maior
precisão as causas, nas palavras de Davis, deste verdadeiro Big Bang da pobreza; na verdade, este é talvez o maior objetivo de seu livro.
Já conhecido pelo leitor brasileiro por outros
textos, como “Cidade de Quartzo” e “Holocaustos coloniais”, desta vez o autor amplia o escopo de sua análise e realiza um vasto percurso
pelo planeta afora, numa investigação sobre
porque, em época de altíssimo desenvolvimento tecnológico – que possibilitaria, em tese, a
resolução de problemas bem mais difíceis – a
moradia urbana degradada só faz crescer.
Para aqueles que possuem uma visão localizada do processo de empobrecimento urbano (vinculando-o, por exemplo, apenas à conduta inadequada de políticos locais), a leitura
do “Planeta favela” é especialmente instrutiva. Ela nos mostra de forma persuasiva como
só uma abordagem macro-social pode captar a
dimensão decididamente transnacional do fenômeno. Na medida em que o texto percorre
as regiões empobrecidas da América Latina,
Ásia, África e dos ex-países socialistas, somos
apresentados aos diferentes nomes de uma
62
mesma realidade: slums, barrios, gecekondus, desakotas, até a brasileiríssima favela. Se
os nomes locais diferem, a realidade de precarização da moradia urbana é recorrente, o que
motiva Davis a usar toda a primeira parte de
sua pesquisa para apresentar as características mais centrais desta precarização. Ele alerta para as dificuldades presentes no empreendimento, devido ao fato de que as estatísticas
produzidas sobre o tema são lacunares e, em
muitos casos, pouco confiáveis, pois sofrem a
interferência de governos que visam maquiar
as reais condições de vida de suas populações.
Para tentar corrigir este limite, o texto recorre
a um amplo conjunto de análises, desde aquelas produzidas por autores independentes, até
um importante documento elaborado pelo Programa de Assentamentos Urbanos das Nações
Unidas (UN-Habitat, instituição pouco suspeita de esquerdismo...), que utiliza um banco de
dados comparativo de 237 cidades do mundo.
Mesmo recorrendo a uma categorização que,
no entendimento de Davis, é restritiva, “os
pesquisadores da ONU estimam que havia
pelo menos 921 milhões de favelados em 2001
e mais de 1 bilhão em 2005” (p. 34). E a tendência é de crescimento.
Ao longo deste trajeto, algumas conclusões se impõem com força. A primeira delas é
que o contraste das condições de vida dos países capitalistas centrais com o que ocorre no
chamado Terceiro Mundo (conceito questionável para alguns autores das Ciências Sociais,
mas que comparece no texto de Davis) permanece sendo gritante: apenas 6% da população
urbana dos primeiros podem ser considerados
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
favelados, percentual que pula para mais de
70% nos países menos desenvolvidos. Mas
nem por isso a realidade destes últimos – objeto principal de Davis - pode ser considerada
homogênea. Longe disso. Também neles, ilhas
de prosperidade convivem lado a lado com a
miséria mais degradante: a proliferação de
favelas encontra sua antítese complementar
nos condomínios de luxo, fechados, que se isolam do contato com o mundo exterior. Nesta
configuração que se repete, diferencialmente,
pelo mundo afora, o paradigma vem a ser uma
estética e um padrão de consumo norte-americanos. Para os que supõem que os brasileiros
abastados são únicos em sua tendência a copiar compulsivamente o modo de vida norteamericano, convém saber que “Beverly Hills
não existe apenas no código postal 90210 dos
Estados Unidos; também é, ao lado de Utopia e Dreamland, um subúrbio do Cairo, uma
rica cidade particular ‘cujos habitantes podem
manter distância da vista e da gravidade da
pobreza e da violência...’ ” (p. 120)
Além disso, o texto chama a atenção
também para a feminização da pobreza, tendo em vista a drástica perda de oportunidades de empregos formais para os homens.
Resultado disso é que as mulheres de boa
parte do Terceiro Mundo passam a arcar
com o sustento de seus filhos, mesmo num
contexto em que a pressão para que a totalidade da família ingresse no mercado de
trabalho é cada vez maior. Aliás, a análise
das condições de vida da infância vem a ser
um dos momentos mais tocantes do livro,
como quando é abordado o episódio das Bru-
xinhas de Kinshasa (no Congo). Em clima de
exasperação de formas de religiosidade que
findam por ganhar contornos de um desespero coletivo (p.195-196), crianças são denunciadas como bruxas pelos seus vizinhos,
que afirmam que são elas as responsáveis
pelos males que afligem as comunidades.
Incapazes de se defender destas acusações,
estigmatizadas pelos próprios familiares e,
finalmente, introjetando os supostos crimes
que lhes são imputados (“Meu pai perdeu o
emprego de mecânico por minha causa”, diz
uma delas), as crianças são expulsas de suas
famílias, abandonadas nas ruas, podendo
chegar a ser assassinadas como causadoras
dos infortúnios locais.
Na outra ponta deste debate, Mike
Davis questiona também o que ele nomeia
como histórias de sucesso, aquelas que apresentam de modo unilateral experiências
bem-sucedidas, tomando-as como exemplos
passíveis de serem universalmente seguidos, não importa em que circunstâncias. É
o que acontece com os que fazem o elogio do
trabalho informal como oportunidade ímpar
para que auto-empreendedores bem sucedidos possam se emancipar da tutela patronal
(desconhecendo a duríssima realidade enfrentada pela maioria dos que perdem seus
empregos). Num âmbito mais abrangente,
Davis problematiza uma certa versão divulgada acerca dos processos de industrialização intensiva sofridos por países como
a China e a Índia. A partir do trabalho de
pesquisadores que fazem uma investigação
in loco, fica claro como indicadores macro-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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econômicos favoráveis, que de fato impressionam pelo aumento de produtividade de
uma economia, podem ocultar uma realidade humana indigente, que simplesmente
não aparece nos quadros estatísticos. Daí a
importância de se chegar até a vida dos trabalhadores reais, os responsáveis anônimos
pela opulência que é divulgada pelos meios
de comunicação. Quando se faz isso, percebe-se por exemplo que a “mobilidade ascendente na economia informal é em grande
parte um ‘mito inspirado pelo mero excesso
de otimismo’ ”. (p.174).
Esta visão muito crítica de Davis acabou
gerando reações contrárias no âmbito da própria esquerda. Neste sentido, é proveitosa a
leitura do Posfácio à edição brasileira, assinado pela urbanista e professora da USP Ermínia Maricato. O texto é muito elogioso ao trabalho de Davis, mas se permite apresentar as
restrições formuladas, por exemplo, por Tom
Angotti, que entende que a visão veiculada
pelo “Planeta favela” seria por demais negativa, não levando em conta algumas diferenças
nacionais importantes, que confeririam um
tom mais diferenciado à realidade exposta. Tocamos aqui numa questão complexa, que não
seria possível desenvolver no âmbito de uma
resenha; de todo modo, parece-nos que cabe
distinguir entre dois níveis distintos de análise. No que diz respeito ao nível macro-social,
entendemos que a análise de Davis atinge
com precisão seu alvo, apontando com clareza para as linhas de fundo do processo de favelização urbana. Já no nível das diferenças
entre as realidades nacionais e locais, talvez
64
coubessem de fato algumas ressalvas que, de
resto, vêm sendo feitas por grupos de ativistas de direitos humanos e sociais, que sabem
que o registro dos ganhos da luta democrática
serve como alimento essencial ao seu próprio
prosseguimento. Para o leitor que tenha um
interesse maior nesta questão, convém ler a
entrevista de Mike Davis ao jornalista brasileiro Sérgio Pompeu (disponível em www.boitempoeditorail.com.br). Questionado se seria
contrário, por exemplo, a uma política de legalização de posse nas favelas, Davis responde que “A legalização é uma demanda justa
e antiga na América Latina. O que eu critico
é a expectativa quase mítica de que a legalização criaria alguma forma de capitalismo
dinâmico nas classes baixas”.
Após um longo percurso por vários continentes, merece destaque especial o capítulo 7
do “Planeta favela”, intitulado “Desajustando
o Terceiro Mundo”. É nele que Davis faz, de forma mais explícita, o que poderíamos nomear
como uma pesquisa de causas para o fenômeno
que estuda. E é neste momento que avultam
em importância as conseqüências dos PAEs
(Planos de Ajuste Estrutural), prescritos pelos
organismos financeiros internacionais, como o
FMI e o Banco Mundial. Drásticas condicionalidades são impostas ao empréstimo de quantias monetárias (para países já sufocados pelo
pagamento dos juros referentes à dívida externa), que interpretam qualquer investimento
social como sendo, na linguagem de seus mentores internacionais, um “populismo econômico”. Pois foram estes PAEs os responsáveis pelo
incremento mais recente da pobreza, gerando
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
desindustrialização, quedas acentuadas de
postos de trabalho no mercado formal e também dos investimentos em serviços sociais básicos. É possível mesmo fazer uma cronologia
da expansão das moradias precarizadas; nas
palavras de Davis: “Os anos 1980, em que o
FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dívida para reestruturar a economia
da maior parte do Terceiro Mundo, foi a época em que as favelas transformaram-se no
futuro implacável não somente dos migrantes rurais pobres como também de milhões
de habitantes urbanos tradicionais” (p. 156).
O resultado destas políticas de ajuste foi o
crescimento pelo mundo de milhões de seres
humanos que não têm acesso não só a uma
moradia, mas sobretudo a uma vida digna.
Se antes cabia falar num exército industrial
de reserva, disponível para a economia em
seus ciclos de expansão, talvez agora a situação seja mais dramática: estamos diante
de uma massa de sujeitos sem perspectiva
nenhuma de trabalho, humanidade excedente, cujas manifestações de insatisfação sem
dúvida existem, mas ainda não encontraram
uma orientação política mais abrangente (e
parece-nos que este é também um dos sentidos presentes no trabalho de Davis).
No final de seu livro, ele nos apresenta
documentos que revelam as preocupações de
estrategistas militares ligados ao Pentágono
norte-americano com as multidões empobrecidas de algumas das principais favelas do
Terceiro Mundo. Ao depararmo-nos com o
tom maniqueísta destas análises, que preferem eleger bodes expiatórios circunstanciais
para um processo muito mais complexo, fica
patente que a “retórica demonizadora das
várias ‘guerras’ internacionais ao terrorismo, às drogas e ao crime são igualmente
um apartheid semântico: constroem paredes epistemológicas ao redor das favelas,
gecekondus e chawls, que impossibilitam
qualquer debate honesto sobre a violência
cotidiana da exclusão econômica. E, como na
época vitoriana, a criminalização categórica
dos pobres urbanos é uma profecia que leva
ao seu próprio cumprimento...” (p. 202).
É neste momento que o trabalho de
Mike Davis pode ser articulado ao do importante sociólogo francês Löic Wacquant (autor
de “Prisões da miséria” e de “Punir os pobres:
a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”). Com efeito, a pesquisa de Wacquant
nos mostra que o crescente inchaço do sistema prisional nos últimos anos é observável
em praticamente todos os países, mesmo no
chamado Primeiro Mundo (como ocorre com
os Estados Unidos). Ora, tal inchaço das prisões é também uma resposta conservadora
para lidar com a pobreza que invade as ruas
das grandes metrópoles: transitar das favelas para os presídios – mesmo que apenas em
função de pequenos delitos - é o triste destino
de muitos cidadãos pobres, donde a formulação bastante cáustica de Wacquant: trata-se
de um “sinistro programa habitacional para
os novos pobres”.... Como se vê, encaixamse aqui mais algumas peças do contraditório
quebra-cabeças contemporâneo: o “Planeta
favela” se ramifica, infiltrando-se também
pelas prisões do mundo afora.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Histórias de Vida
Professor Ronaldo Coutinho:
uma história de lutas
dentro e fora
da universidade
Carolina Barreto da Silva Gaspar, texto e foto
A história de vida do professor Ronaldo Coutinho se mistura com a história do ANDES-SN e da
ADUFF, uma vez que a fundação de ambas as entidades
contou com sua participação ativa. Militante comunista desde muito jovem, aos 16 anos Ronaldo ingressaria no PCB.
Sua entrada no Partido Comunista Brasileiro assinala uma
opção de vida que ele mantém até hoje e que deixou marcas
significativas em sua trajetória. Antes de se tornar professor
universitário, já havia atuado em sindicatos de outras categorias e também no movimento estudantil. Sua militância
política lhe traria alguns problemas no período da Ditadura
Militar, inclusive para tomar posse da vaga de professor da
UFF para a qual havia sido aprovado em concurso. Driblados
esses contratempos iniciais, teve uma passagem marcante
pela universidade. Foi vice-diretor do ICHF e um dos responsáveis pela montagem do curso de graduação em Ciências Sociais e de pós-graduação em História. É com grande
prazer que publicamos aqui um pouquinho dessa trajetória
pontuada por tantas lutas.
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Em nossa conversa com o professor Ronaldo Coutinho, descobrimos que, antes de se tornar professor universitário, ele foi bancário,
comerciário e aeroviário. Como não
poderia deixar de ser, militou nos
sindicatos de todas essas categorias. Também teve uma passagem
marcante pelo movimento estudantil, tendo sido o primeiro presidente do DCE-UERJ escolhido em uma
eleição direta (1960-1961), vice-presidente da Associação Nacional dos
Estudantes de Ciências Sociais, 2º
secretário da UME (União Metropolitana dos Estudantes) e diretor
da UNE. Uma militância tão intensa desde a juventude não passaria
despercebida pela Ditadura Militar.
Na época do golpe de 64, Ronaldo
já era professor da UERJ. Acabou
sendo afastado de suas atividades
docentes naquela universidade por
justa causa, já que, numa das vezes
em que foi preso pela Ditadura, ficou um mês sem aparecer na UERJ.
Ainda assim, seguiu lecionando na
UFF, onde era professor horista. Em
1965, fez concurso para se tornar
professor do quadro efetivo da UFF
e foi aprovado em primeiro lugar.
Tomar posse da vaga, no entanto,
exigiria dele mais do que a compro-
vação de seus méritos acadêmicos.
Na época da Ditadura, era
exigido dos professores da universidade um “Nada Consta” emitido
pelo DOPS que atestasse a sua não
participação em atividades ligadas
à militância política de esquerda.
Ronaldo, que já havia sido preso por
suas atividades políticas, evidentemente não receberia o documento.
Não por vias lícitas, pelo menos.
Para tomar posse de sua vaga de
professor no concurso da UFF, ele se
vira obrigado a subornar um funcionário do DOPS. Por uma bagatela
que hoje equivaleria a cerca de 20
mil reais (pagos à vista e em dinheiro), o “Nada Consta” foi liberado. O
dinheiro foi conseguido junto à sua
mãe, que para isso empenhou algumas jóias e pegou um empréstimo.
Corredor vermelho e
movimento docente
Empossado, participou da fundação do curso de graduação em Ciências Sociais e, em pouco tempo, seria vice-diretor do ICHF exatamente
na gestão da Professora Aidyl à frente do Instituto. Segundo Ronaldo, os
dois tinham um bom entrosamento
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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na direção do ICHF, que na época funcionava
no prédio que hoje abriga o IACS. Ronaldo
também participou ativamente da montagem dos cursos de graduação e pós em História, tendo viajado a São Paulo várias vezes
para recrutar professores e a Brasília para
conversar com o MEC. Também foi chefe do
departamento de Ciências Sociais. Nessa
época, segundo ele, seu departamento era
conhecido como “corredor vermelho”. Suas
atividades de militância nunca o impediram
de exercer atividades administrativas na
universidade e, sobretudo, de estudar.
Foi assim que também participou dovimento docente. E de maneira marcante, diga-se de passagem. Afinal, trata-se
de alguém que participou da fundação do
ANDES-SN, da ADUFF e da ASDUERJ. De
acordo com Coutinho, mesmo ocupando poucas vezes um cargo formal, sua participação
no movimento sempre foi intensa: “Sempre
fui de inventar formas de luta, como por
exemplo o Universidade na Praça, usado
na ADUFF, pela primeira vez, na greve de
1985. Sugeri que cada professor fosse para
a praça Araribóia desenvolver as atividades criativas de suas aulas. De lá para cá,
muitas greves de docentes têm usado esse
recurso”, conta ele. Na ASDUERJ, ajudou
a criar a “Advir”, revista da associação docente daquela universidade, sendo até hoje
membro de seu conselho editorial.
Ele se arriscou a fazer algumas análises acerca do atual momento vivido pelo
movimento docente, marcado por uma tentativa direta de ingerência do governo no mo-
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vimento sindical. “Em termos da nossa luta
específica de movimento docente, eu acho
que nós temos que ter algumas ações. Uma
delas é a gente fazer uma avaliação crítica
da atuação do próprio sindicato. Não desse
sindicato, mas do movimento como um todo.
Nessa hora, nós temos que mobilizar, temos
que engrossar o movimento. Como? Nós temos que ampliar. Está na hora de construir
uma frente organizada de resistência e isso
só se faz com frente ampla”.
“Lênin estragou a
farra acadêmica”
Ronaldo Coutinho se aposentou da
UFF em 1992. Sua aposentadoria foi precipitada pelo Governo Collor, marcado por
uma série de medidas que retiravam direitos dos trabalhadores, principalmente os do
serviço público. Apesar da aposentadoria,
mantém ativas sua militância e atividade
acadêmica. Entre outras coisas, continua no
conselho editorial da “Revista Advir”. Em
termos de produção acadêmica, tem se dedicado a dois projetos, um deles relacionado
ao meio ambiente e direito urbanístico e o
outro, um livro sobre a contribuição de Lênin à academia. Segundo Coutinho, a obra é
sua maneira de demonstrar indignação em
relação ao exílio de Lênin da academia: “Lênin cometeu um delito imperdoável: ele discutiu toda uma teoria ao mesmo tempo em
que praticava isso fazendo uma revolução.
Estragou toda a farra acadêmica”, afirma.
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Poesia
Vandery da Cunha, o Deley de Acari, nasceu no estado do Rio e tem 54 anos.
Milita no movimento negro e favelado há mais de trinta anos e é fundador e participante do “Grupo Negrícia - Poesia de Crioulo”. Bastante conhecido em diversas
rodas de leituras, Deley diz que escreve muito ao sabor da tensão e do stress da
favela. “Uma amiga feminista costuma dizer que sou um poeta afro-prófeminista,
porque a maioria de meus poemas e outros escritos têm a mulher como tema,
abordada de formas positivas”, afirma. O poeta também participa do “Movimento
Funk é Cultura” na Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência. Publicou
seus escritos nas décadas de 80 e 90 em alguns fanzines e, mais recentemente, no
livro “Um século de favela”, de Marcos Alvito e Alba Zaluar.
Síndrome do Desemprego
Saindo do barraco bem cedo
à procura de emprego, levou
a força do meu amor, minha fé.
No último anúncio marcado,
mente e corpo abalados,
pela má aparência rejeitado, deixou
que vissem seus olhos pela fome
bem fundo escavado, que vissem
o carapinha emaranhando, deixou
o suor fazendo da face negra
um ébano vitrificado
mas não deixou
que lhe vissem o medo
comum a quem vive a síndrome do desemprego
não deixou que lhe vissem
o velho medo porque é da certeza
que existe o medo em nós é que
o burguês racista faz do humano dócil escravo
um inimigo finalmente vencido
depois que de sua humanidade
ele mesmo já havia se esquecido.
Saindo do barraco bem cedo
à procura de emprego levou
a força do meu amor, minha fé
deixou um beijo gostoso de Colgate
e café saboroso feito mel
voltou à noite trazendo
um beijo mau gosto de caldo de cana
amargoso feito fél.
Ah, a insegurança do amanhã
de todos, do tudo, ah, seu velho medo
desaguado em lágrimas no regaço
do meu colo, chorado em segredo,
longe do olhar racista do senhor burguês
dono e senhor dos empregos
ah, esse imenso desejo que
seu velho medo se transforme
com o axé do meu amor, minha fé
na minha, na sua na nossa nova e indestrutível
coragem libertária do amanhã.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Diálogos com a Cidade
Aldeia Imbuhy: clima de
tensão com o Exército há
mais de uma década
Carolina Barreto da Silva Gaspar
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Fotos: Luiz Fernando Nabuco
Nesta segunda edição de nossa seção “Diálogos com a cidade”, fizemos uma matéria com
os moradores da Aldeia Imbuhy, comunidade
tradicional situada junto à praias paradisíacas, no interior de fortaleza militar que leva
o mesmo nome. Ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, morar na
Aldeia Imbuhy não é assim tão maravilhoso
quanto parece. Isso porque há mais de 10 anos
,os moradores do local vivem em verdadeiro
clima de guerra com o Exército.
Tudo começou em 1995, quando o Coronel
Paulo Roberto Bueno Costa proibiu a passagem de moradores, visitantes e convidados pela
Guarda do Forte Barão do Rio Branco. Desse
modo, a única passagem liberada era a do portão situado na Guarda da Lagoa. Essa determinação se tornou sinônimo de um grande transtorno para os moradores do local, que decidiram
então entrar com uma ação na Justiça para reabrir a outra passagem. Simultaneamente, entraram com uma ação de interdito proibitório.
Isso abriu espaço para que o Exército entrasse
com um pedido de reintegração de posse e obtivesse vitórias judiciais em 1ª e 2ª instâncias.
Por decisão da Justiça, os moradores da Aldeia
Imbuhy, que lá vivem há décadas, devem desocupar a área, uma vez que supostamente “constituem ameaça à segurança nacional”.
Dessa contenda judicial de 1995 para cá,
a relação dos moradores da Aldeia com o Exército se deteriorou progressivamente. Em nossa
visita ao local, conversamos com diversos aldeões e não faltaram denúncias de arbitrariedades que teriam sido cometidas pelos militares
nesse período. Também existem denúncias de
omissão de socorro. Num dos casos, uma ambulância que chegou ao Forte para socorrer moradora em trabalho de parto teria sido simplesmente barrada na entrada do local. Por conta
disso, um morador teve que levá-la em seu carro até o hospital. Em outro episódio semelhante, a moradora Vanda Leão Barbosa passou mal
na calçada do Forte Rio Branco, mas não pôde
ser socorrida porque um tenente do Exército
impediu que lhe fosse prestado qualquer tipo
de auxílio. Esse caso gerou registro de ocorrência na 79ª DP por omissão de socorro, ameaça
e constrangimento ilegal. Resultado: não deu
em nada. Segundo o morador Fábio Ferreira da
Silva, eles agora sequer têm registrado queixa
contra esse tipo de abuso, já que nunca dá em
nada. Fábio nos contou que, em 95, foi agredido
por soldados quando voltava para casa. O caso
gerou um IPM, mas, nas palavras dele, “ficou
tudo por isso mesmo. Toda a situação que ocorre aqui com a gente eles transformam em problema. Hoje, sou surdo e mudo por aqui.”
Se engana, no entanto, quem pensa que
acabou a lista de arbitrariedades. Só para se
ter uma idéia, os moradores da Aldeia Imbuhy
só podem entrar no Forte se estiverem munidos da chamada “permissão de morador”, único
documento que os habilita a ter acesso ao local onde moram há anos. Como se não bastasse, eles só podem receber em suas casas cinco
visitantes de cada vez, devendo ainda assim
comunicar ao Exército os nomes dos mesmos
com pelo menos 48 horas de antecedência. Nas
palavras de Aílton Nunes Navega, presidente
da Associação de Moradores do Forte Imbuhy,
“nem o Elias Maluco tem limite de visitas, mas
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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nós temos: são só cinco pessoas de cada vez.”
Em 95, os aldeões foram proibidos de utilizar
os telefones públicos existentes no interior do
Forte. Algum tempo depois, os telefones foram
simplesmente retirados. Hoje, é proibido instalar novas linhas telefônicas no local.
Em nossa visita à Aldeia Imbuhy, pudemos perceber que grande parte das casas lá
existentes encontra-se em péssimo estado de
conservação. Isto ocorre simplesmente porque o Exército não permite a entrada de material de construção no local. O objetivo por
trás desta medida, segundo Aílton Navega,
é “deixar que tudo se deteriore, pois isso, na
visão deles, facilita a nossa expulsão daqui”.
Em 2004, a Defesa Civil chegou a condenar
e interditar uma das casas da Aldeia, por estar “colocando vidas em risco”. Os moradores
conseguiram junto à prefeitura uma doação
de material de construção para fazer obras na
casa, mas o Exército impediu a entrada desse material nas dependências do Forte. Tivemos acesso a uma notificação da Defesa Civil
que diz: “... embora esta Coordenadoria tenha
comunicado ao comando do Forte do Imbuhy
da situação de risco que encontra-se o seu
imóvel apontado no relatório número 791/04
originando uma interdição, não nos foi permitido na data de 27/07/2004, a entrega de
1000 (mil) tijolos e 10 (dez) sacos de cimento através do ‘Projeto Morar Certo’. Esclareço
ainda que os materiais seriam para realizar a
segurança do seu imóvel.”
A verdadeira guerra de nervos travada
entre aldeões e o Exército, como se vê, já produziu um sem-número de arbitrariedades. Em
Legenda nononono nonononono onononon ononononono onono onono onono onon
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
conseqüência disso, das 800 famílias
que originalmente habitavam o local,
restam hoje apenas 32. Atualmente, a
pesca, que durante décadas foi a atividade responsável pelo sustento de boa
parte dos moradores, quase não é mais
praticada. Isto porque os militares
passaram a confiscar 10% do pescado,
além de proibirem a entrada de caminhões pesqueiros no Forte. Hoje, após
mais de uma década de conflitos com o
Exército, os aldeões que restaram no
Imbuhy estão ameaçados de despejo do
local onde nasceram e cresceram por
uma ação de reintegração de posse
“Ameaça à
segurança nacional”
A justificativa do Exército para desalojar os moradores da Aldeia Imbuhy é de
que a presença deles no interior da fortaleza militar constitui “ameaça à segurança nacional”.
No entanto, documentos revelam que os militares
realizam uma série de eventos no Forte: réveillon,
happy hour, churrascos, rodeios e festas em geral.
Tudo sempre com muita bebida alcoólica, é claro.
É curioso observar como, na concepção do Exército brasileiro, a presença de milhares de pessoas estranhas no interior do Forte em eventos como esses
não parece constituir ameaça à segurança nacional.
Enquanto isso, 32 famílias que lá vivem há décadas
são vistas como um grande perigo que precisa ser
eliminado “pelo bem da pátria”.
Nas palavras de Aílton Navega, “isso aqui
“isso aqui não é área de segurança
nacional coisa nenhuma. É área de
lazer dos militares, que ganham
muito dinheiro alugando o
espaço para eventos e vendendo
passes àqueles que desejam
freqüentar a Praia do Imbuhy”
Aílton Navega
não é área de segurança nacional coisa nenhuma.
É área de lazer dos militares, que ganham muito
dinheiro alugando o espaço para eventos e vendendo passes àqueles que desejam freqüentar a Praia
do Imbuhy. Em fins de semana de sol, isso aqui fica
coalhado de gente!” Decidimos checar a informação
de que há comércio de passes para se freqüentar
a praia do Forte. Em telefonema ao 21º Grupo de
Artilharia de Campanha, que administra o local,
fomos informados de que, para freqüentar a Praia
do Imbuhy, é necessário ter um passe que custa
a bagatela de R$ 400,00. Tudo pago à vista e em
dinheiro. Nesse contexto, fica mais fácil entender
porque tanta fixação em expulsar os aldeões, que
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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certamente devem estar atrapalhando os negócios.
A sentença judicial que ordena a reintegração de posse nos chamou a atenção por ser extremamente dura com os aldeões. Há uma parte do texto
da sentença que diz: “declaro ser legítimo o direito
da UNIÃO, pela Administração Militar, exercer poder normativo e de polícia no âmbito de suas atribuições (...) Declaro ainda ser legítimo o exercício
do atributo da auto-executoriedade deste mesmo
poder de polícia, autorizando a UNIÃO, pelos seus
prepostos, por exemplo, a apreender mercadorias
e a demolir as benfeitorias edificadas a partir das
notificações realizadas em julho de 1995, bem como
impedir que outras sejam feitas, salvo as absolutamente necessárias à segurança dos moradores.”
Trocando em miúdos, a sentença emitida pelo juiz
federal Rogério Tobias de Carvalho atribui ao Exército poder de polícia numa contenda em que esse
braço das Forças Armadas está diretamente envolvido. Com o clima de guerra vigente na Aldeia
Imbuhy há mais de dez anos, dá para imaginar a
carnificina que vai acontecer caso os militares resolvam se utilizar da “auto-executoriedade deste
mesmo poder de polícia” para desalojar os aldeões.
Diante da iminente consumação dessa
verdadeira tragédia anunciada, a Associação de
Moradores da Aldeia Imbuhy enviou carta solicitando providências ao presidente Lula e a seu
vice. Num trecho da carta, se lê: “Os aldeões, ao
verem suas casas demolidas e seus pertences jogados no meio da rua sem terem para onde ir
talvez reajam de forma emotiva, inconseqüente
e insensata, desencadeando desta forma, uma
onda de violência de conseqüências imprevisíveis e que certamente nos fará relembrar, doze
anos após, a Chacina de Eldorado dos Carajás,
74
só que desta vez, acontecendo em pleno coração
cultural do país. Nossas autoridades constituídas tomarão conhecimento do fato somente por
ocasião da remoção e sepultamento de corpos de
homens, mulheres e crianças.” A única resposta
recebida até hoje, que partiu do vice-presidente
José de Alencar, veio em forma de telegrama e
diz apenas: “transmito votos de que o assunto
relatado por Vossa Senhoria se encaminhe dentro da lei.” Diante dessa situação, Aílton Navega
desabafa: “Nós resistimos à Ditadura Militar e
agora, em pleno governo popular do Partido dos
Trabalhadores, vamos sair daqui sem nada.”
O pai de Aílton, Antônio Navega, mora
na Aldeia Imbuhy há 82 anos. Em 1939, chegou a servir ao Exército no Forte Imbuhy, tendo sido depois transferido para o batalhão de
Santa Cruz. De acordo com ele, durante muito
tempo a convivência entre moradores e militares foi, na medida do possível, harmônica.
Hoje, no entanto, os aldeões estão na iminência de serem expulsos do local onde passaram
suas vidas inteiras. A possibilidade de sair do
Imbuhy é qualificada por S. Antônio em uma
palavra: “Nenhuma”. Como ele, diversos outros moradores construíram suas vidas naquele lugar e muitos sequer têm para onde ir.
O advogado dos aldeões, Arthur Floriano Peixoto, fez várias críticas à maneira como
esse processo tem sido conduzido pela Justiça.
“A parcialidade da Justiça nesse caso é revoltante. Inclusive porque existem dois precedentes de casos semelhantes, ambos com ganho de
causa para os aldeões do Imbuhy. Além disso,
a União teria perdido o prazo de defesa duas
vezes ao longo do processo. Ainda assim, obte-
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
ve ganho de causa. Querem botar as pessoas
para fora na marra sem pagar nada. Para haver uma reintegração de posse, a União teria
que provar a posse anterior do local, ou então
que foi desempossada pelos aldeões. Ela não
fez nenhuma das duas coisas, e por um motivo
muito simples: os aldeões chegaram primeiro
no local, isso está muito claro. Até porque, se
tivessem chegado depois, o Exército não permitiria que se instalassem”, afirma.
Antônio Navega, morador da Aldeia há mais de 80 anos, serviu no Forte Imbuhy e diz não ver posibilidade de deixar sua casa.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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ADUFF:
30 anos de luta!
No dia 10 de outubro de 2008, a ADUFF vai completar 30 anos. Nossa associação
já nasceu forte porque foi fundada em plena
Ditadura Militar e em plena luta pela democratização do país. No rastilho do conflito dessas lutas, outras associações também
foram construídas em todo território nacional, nas universidades federais, estaduais e
particulares. O que nos movia? O desejo de
liberdade, de melhores condições de trabalho, a defesa irredutível do ensino público e
gratuito e contra a privatização da educação.
Nos moviam esses princípios e as flores, porque nascemos em plena primavera.
Um ano depois, a realidade exigia articular as lutas nacionalmente e fizemos o I
Enad (Encontro Nacional de Associações de
Docentes), ao qual sucederiam outros, até a
realização, em fevereiro de 1981, em Campinas (SP), do I Congresso Nacional de Docentes Universitários. Trezentos delegados, entre eles os da ADUFF, representando mais de
70 AD´s, participaram do Congresso histórico
em que foi fundada a ANDES - Associação Na-
76
cional dos Docentes de Ensino Superior. Com
a promulgação da Constituição Federal de
88, a ANDES pôde, finalmente, transformarse no Sindicato Nacional, o ANDES-SN. Nosso sindicato rompeu com a estrutura sindical
autoritária implantada no Brasil na década
de 30 e se consolidou pela organização de
base nos locais de trabalho, pela democracia
interna fundada no respeito às deliberações
da base da categoria e defesa intransigente
do princípio da autonomia sindical em relação às instituições universitárias, aos partidos políticos, credos e governantes.
Além disso, o sindicato, assim como as
AD´s, é mantido pela contribuição voluntária
de seus sindicalizados: somos contrários ao
imposto sindical compulsório. Fomos nos constituindo como entidade, na luta e junto com o
ANDES-SN. Em 1986, para ampliar o espaço
das lutas em defesa dos interesses e conquistas
da categoria e após intenso processo de mobilização, deixamos de ser associação e nos transformamos em seção sindical do ANDES-SN.
Em sua trajetória de luta em defesa
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
da universidade pública, a ADUFF sempre
entendeu que as reivindicações mais imediatas dos professores também dizem respeito
às lutas mais gerais da maioria da população, daí seu histórico de envolvimento com
as grandes mobilizações nacionais como a
Campanha das Diretas, contra as privatizações e a terceirização dos serviços públicos,
pela reforma agrária, contra a criminalização
dos movimentos sociais e da pobreza,
entre outras tantas.
A partir dos anos 90, experimentamos dificuldades de mobilização idênticas aos movimentos sociais que não se dobraram à ordem,
tanto em âmbito local quanto internacional.
No Governo Lula, esta situação se agrava
ainda mais com a transformação da CUT em
um verdadeiro braço do governo no movimento sindical. O resultado de todo esse processo
é que hoje o movimento sindical combativo se
vê forçado a intensificar sua presença junto
à categoria para reafirmar a importância do
sindicato e da luta sindical como espaço privilegiado de resistência e defesa de direitos
dos trabalhadores. Isto se deve, em grande
medida, a dois fatores: a cooptação de parte expressiva do movimento pelo governo e a lógica de
criminalização do movimento
sindical combativo.
Nesse quadro de adversidade, a ADUFF, por se man-
ter fiel aos princípios que a orientam desde
sua fundação, ainda consegue manter alto
grau de representatividade junto à base da
categoria, mesmo em meio a todos os ataques
protagonizados pelo Governo Lula aos sindicatos combativos. A vitoriosa greve de 2005 é
um exemplo recente dessa legitimidade junto
à sua base, da mesma forma que seu posicionamento quanto à contra-reforma universitária do governo, especialmente nas lutas da
ADUFF por ocasião do debate do REUNI.
Em 2007, a luta contra o REUNI fez
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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com que o sindicato conseguisse movimentar
um grupo importante de professores comprometidos com a defesa da universidade pública.
Esse movimento permitiu ao sindicato dialogar com a categoria sobre seu projeto de universidade e, após visitas da direção da ADUFF
a várias unidades, inclusive do interior, cerca
de quinze colegiados se manifestaram contrariamente à adesão da UFF ao REUNI. Como
sabemos, e a exemplo do que aconteceu na
UFF, no país inteiro foi preciso o uso da repressão, da força, para que o termo de adesão fosse
assinado. Mesmo após a adesão da universidade ao REUNI, a ADUFF segue apontando
os problemas que virão com a implementação
do decreto. Conforme nossa seção sindical já
alertava desde o ano passado, a expansão da
universidade tem sido marcada pela lógica da
fragmentação. Para além disso, os recursos
humanos e materiais de que a UFF disporá
para fazer a expansão com que se comprometeu são claramente insuficientes.
Então, o que comemorar?
Diante de uma História de trinta anos
pontuada por tantas lutas importantes, certamente há muito a comemorar na ADUFF. No entanto, o momento por que passa
o sindicato não poderia ser negligenciado
78
nas comemorações de nossos trinta anos de
existência. No plano nacional, os ataques ao
ANDES-SN por parte do governo a seu registro sindical afeta diretamente o conjunto
de suas seções sindicais, inclusive, no que
diz respeito às consignações voluntárias na
folha de pagamento dos professores. Essa
situação significa para a ADUFF, como informamos na última assembléia e em nosso
boletim eletrônico, uma grave crise financeira em função da queda de cerca de 40% na
arrecadação mensal do sindicato pelo não
desconto da GTMS, que substituiu a GED.
Isso significa que o que está em jogo
neste momento é a própria sobrevivência do
nosso sindicato enquanto instrumento de
luta da categoria docente. Embora estejamos
movendo todas as ações necessárias para
enfrentar o problema, sabemos, entretanto,
que a resposta não pode ser dada apenas nos
planos jurídico e administrativo. É preciso
que a categoria, conhecendo a situação, crie
as condições para uma resposta política mais
incisiva. Para garantir nossos direitos, só podemos contar com nossas próprias forças.
Aprendemos com Goethe que só merecem a liberdade e a luta aqueles que lutam por
elas todos os dias. É na luta, portanto, pelo
seu mais legítimo direito de EXISTIR que a
ADUFF comemora seus 30 anos. Vida longa à
ADUFF e ao ANDES-SN!
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Hiperfocal
Ripper:
olhos
na
realidade
A vida do homem do campo, indígenas, a seca do Nordeste, o ambiente urbano, o trabalho escravo
de carvoeiros, crianças em Mato Grosso do Sul. Alguns desses temas nunca perdem o foco nas lentes
do fotógrafo carioca João Ripper, que com 19 anos ingressou na carreira de repórter-fotográfico na
“Luta Democrática”, do controvertido Tenório Cavalcanti. Vieram em seguida o “Diário de Notícias”, a
“Última Hora”, a sucursal carioca do “Estadão” e “O Globo” e os muitos trabalhos como free-lancer.
Isto até ele perceber que gostaria que suas fotos tivessem o poder de levar as pessoas a refletir sobre
a realidade registrada através de sua câmera sem estereótipos — apenas um retrato da desigualdade
social que o incomoda muito. Deixou “O Globo” e foi participar da criação da Agência F4. “A F4, do
Rio; a Ágil, de Brasília; e a Angular, de São Paulo, foram muito importantes, porque permitiram aos
fotógrafos iniciar um movimento. Passamos a pensar as pautas, documentar de forma livre e optar
pelo comprometimento com causas populares. Além de criar mercados de trabalho, este movimento
começou a romper com a hipocrisia de que o jornalista é imparcial”, diz ele, para quem jornais e jornalistas são veículos dos mantenedores da sociedade dividida entre pobres e ricos, na qual impera
a discriminação que faz com que os moradores das periferias e favelas “sejam excluídos e tratados
como subalternos, atendendo aos interesses das classes média e alta e do regime repressor, autoritário e racista que criminaliza a pobreza”. (Resumo a partir do texto de José Reinaldo Marques, no site da ABI)
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
No sentido horário a partir de
baixo, e da esquerda:
• Trabalho escravo - Família espera volta do pai que está preso em
fazenda no Sul do Pará.;
• Índio guarari Kaiowá trabalhando,
em condições análogas a de escravo no corte da cana de açúcar MS; • Criança carvoeira em Ribas
do Rio Pardo, MS.
• Trabalho escravo em fazenda de
cana de açúcar também no MS
João Batista Alves - trabalho análogo ao de escravo no Pará.
Confira mais imagens do
fotógrafo no seu site:
www.imagenshumanas.com.br
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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