Rembrandt comovido pelo rosto de Jesus

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Rembrandt comovido pelo rosto de Jesus
Arte
Rembrandt comovido
pelo rosto de Jesus
por Giuseppe Frangi
m julho de 1656, Rembrandt, à beira da bancarrota, decidiu leiloar todos os
bens conservados na grande casa
de Jodenbreestraat. Como parte
do procedimento, em 24 e 25 daquele mês foi realizado o inventário pela Desolate Boedelskamer de
Amsterdã. Um inventário extremamente longo, no qual a certa altura são listadas três tábuas com
pinturas do rosto de Cristo. Uma
em particular é definida nestes termos: “Cristus tronie nae’t leven”.
Literalmente: “Cabeça de Cristo a
partir do real”. O que indicava essa
especificação “a partir do real”? O
primeiro estudioso que publicou
esse inventário, em 1834, pensou
que se tratasse de um deslize do
magistrado holandês, e não achou
nada melhor para fazer senão fingir que não era nada e suprimir essa nota. Dois anos depois, um observador atento notou essa censura e, para resolver o enigma, propôs uma interpretação decididamente forçada: “em tamanho natural”. Mas, em holandês, esse
“nae’t leven”, contração de “naar
het leven”, não deixa espaço para
ambiguidades: significa “tomado a
partir do real”, ou seja, de modelo
vivo. Por que o anônimo inventarista teria sentido a necessidade de
especificar isso, quase como se se
tratasse de um traço identificador
dessa série de pequenas cabeças
de Cristo? Para responder a essa
pergunta, o Louvre e os museus da
Philadelphia e de Detroit uniram
forças para organizar uma das
mais extraordinárias mostras dos
últimos anos. A mostra, que em
Paris é intitulada Rembrandt e a
figura de Cristo – e que nas etapas
americanas da Filadélfia (até 30 de
outubro) e de Detroit (de novembro a fevereiro de 2012) terá um título muito mais direto: Rem-
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MOSTRA. Rembrandt e o rosto de Cristo
O grande artista holandês pintou uma série de “retratos” do Senhor,
fazendo posar como modelo um judeu de Amsterdã. Para chegar o mais
próximo possível da verdade. Pela primeira vez essas obras, geralmente
pouco consideradas pela crítica, foram reunidas numa bela mostra, que,
depois de passar por Paris, chegou aos Estados Unidos
Rembrandt, A ceia de Emaús, 1648,
Museu do Louvre, Paris; abaixo,
o detalhe do rosto de Cristo
brandt e o rosto de Cristo –, vem
acompanhada por um belíssimo
catálogo, publicado por uma editora italiana (Officina Libraria).
O coração da mostra, que reuniu algumas obras-primas absolutas, como as variantes que Rembrandt pintou sobre o tema da
Ceia de Emaús, é constituído pela
sala em que as três cabeças citadas
no inventário foram reunidas e outras quatro, todas em tábua, que a
crítica com o tempo recuperou. A
importância particular desses quadros para o pintor é demonstrada
pelo fato de que dois deles, segundo o inventário, estavam pendurados em seu quarto de dormir: mas
isso não bastou para convencer a
crítica de sua autografia. Assim, o
Rembrandt Research Project, uma
instituição que é chamada a “certificar”, entre a imensa massa de
obras atribuídas ao mestre holandês, as que são seguramente de
sua mão, chegou a suprimir as sete
tábuas do catálogo. Hoje, o trabalho desse time de críticos, apoiado
também em análises científicas
realizadas sobre as obras, voltou a
garantir a autografia de quatro dessas Cabeças, deixando para as outras uma atribuição “no ateliê de
Rembrandt”. Nesse meio-tempo
apareceram também alguns exemplares que certamente documentam uma série de outros originais
perdidos. Sinal de que esse era um
tema de grande importância para
Rembrandt, e de que muitos o pediam a ele.
Mas qual é o motivo de um tão
sutil ostracismo da crítica perante
essas obras? Certamente tem a ver
com aquele “nae’t leven” que deixou confusos os estudiosos por
tanto tempo. Rembrandt vivia numa sociedade já solidamente protestante, em que também a concepção da arte tinha mudado profundamente. Décadas antes, em
1566, o conflito com o catolicismo
desembocara numa violenta campanha iconoclasta, com a destruição de muitíssimas obras nas igrejas dos Países Baixos. Ao sul do rio
Escalda, os católicos tinham retomado o controle da situação, voltando a encher as igrejas de Antuérpia graças à energia fluvial de
Pieter Paul Rubens; ao norte, ao
contrário, a história foi mudada
para sempre. Os artistas tinham-se
desviado para cenas da vida cotidiana, alimentando um mercado
que já não era caracterizado por
grandes encomendas, mas por
uma nova classe de ricos compradores. Os temas religiosos tinhamse rarefeito muito, com um claro ¬
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prevalecimento de cenas do Antigo Testamento. A imagem de Jesus estava no centro de um debate
acalorado: um dos alunos de Rembrandt, Jan Victors, chegou mesmo a afirmar que havia o risco de
uma “idolatria”.
Nesse contexto, no entanto,
Rembrandt agiu com absoluta liberdade. É claro que sua produção circulava privadamente, quando não
ficava restrita a ele mesmo. Mas é
evidente que ele sentia uma necessidade profunda, quase insuprimível,
de estar frente a frente com a figura
de Cristo. A experiência de Caravaggio, que tinha tirado as representações da vida de Jesus da perspectiva idealista e as levara a um horizonte de credibilidade realista, forneceram a Rembrandt uma referência essencial. Rembrandt vai além
nesse caminho, lidando com o contexto em que se encontrava. Estava
muito atento às fontes, pelos pormenores concretos que podiam fornecer. Tinha estudado a história de
Flávio José, como demonstra uma
gravura de 1659, São Pedro e São
Paulo à porta do Templo, em que
o edifício é desenhado seguindo as
indicações extraídas das Antiguidades judaicas.
O “nae’t leven” de que fala o inventário sugere, nesse sentido, um
elemento essencial. Rembrandt,
como escreve Lloyd DeWitt, um
dos curadores da mostra, procurou
um modelo na comunidade judaica
de Amsterdã, um pouco para confirmar as boas relações que o ligavam àquela comunidade, mas sobretudo para ter diante de si um tipo humano “etnograficamente
próximo de Cristo”. Isso representava “uma recusa tanto dos estereótipos iconográficos quanto da
idolatria, por meio do realismo”.
Não é por acaso que a mostra e as
descobertas relacionadas foram
amplamente destacadas pela imprensa israelense. De modo particular pelo jornal Haaretz, que publicou um artigo de título muito significativo: “Rembrandt’s Jewish Iesus”.
Segundo outro crítico, Willem
Adolph Visser’t Hooft, “à primeira
vista, o retrato parece o de um rabino, o mais profundo e delicado
possível. Mas percebemos logo
que há qualquer coisa de misterio66
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Acima, Rembrandt, Cabeça de Cristo,
aproximadamente 1648,
Museum Bredius, Haia, Países Baixos;
à esquerda, Rembrandt, Retrato do busto
de um jovem judeu, 1663, Kimbell Art
Museum, Fort Worth, Texas, EUA
so. Esse Cristo está longe de nos
impressionar por sua majestade.
Ao contrário, é ‘sem forma nem
beleza’, não ‘eleva a voz’”. Nessas
observações está a substância das
imagens de Cristo pintadas por
Rembrandt. “Sem forma nem beleza” indica a ausência de qualquer
retórica, de qualquer idealismo estético. Cristo nos surpreende num
contexto de absoluta normalidade,
tanto na ambientação quanto na
calma reflexiva de sua atitude. E
“não eleva a voz”, pois Rembrandt
o imagina num instante de diálogo
profundo e amigável com quem está à sua volta. Cristo é imaginado
num momento de intimidade, nos
bastidores da sua aventura pública.
Um Cristo anti-heroico, verdadeiro na paixão do seu olhar e na ternura do vínculo que instaura com
seu interlocutor. São imagens que
se inseriam em continuidade ambiental em relação aos lugares a
que eram destinadas, como se sublinhassem sua contemporaneidade. É isso que provavelmente
Rembrandt buscava, antes de tudo
para si, mas depois também para
uma pequena comunidade de pessoas que não se rendia àquele vazio que o protestantismo tinha imposto. Hoje suas Cabeças de Cristo convencem justamente porque
em sua elementaridade iconográfica não precisam de chaves de interpretação, não requerem uma
“preparação” particular. Pedem
apenas que sejam olhadas.
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