1 CECÍLIA MEIRELES E O FENÔMENO DA - Assis

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1 CECÍLIA MEIRELES E O FENÔMENO DA - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
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CECÍLIA MEIRELES E O FENÔMENO DA INTERLOCUÇÃO
Márcia Eliza Pires (Doutoranda – UNESP/Assis)
RESUMO: Ao lermos as obras Viagem (1939), Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas
(1945) e Retrato natural (1949), podemos claramente perceber que existe um alguém para o qual Cecília
Meireles se direciona. Quando se trata de interlocutores relacionados a fenômenos da natureza, objetos,
cidades, animais, entre outras variações, a identificação desse alguém torna-se mais evidente. Se
pensarmos na personificação dos aspectos naturais, vem a nossa mente a influência das cantigas do
Trovadorismo português. Não podemos deixar de mencionar que a solidão é fator primordial para que
esse interlocutor seja criado. A voz lírica, estando sozinha, inventa com quem dividir suas impressões. Na
crônica “Conversa com as águas” Cecília afirma: “Mas quando se tem vontade de conversar, qualquer
interlocutor pode servir.” (2003, p.111). O fenômeno da interlocução torna-se ainda mais complexo
quando o diálogo é voltado ao pronome tu. Nesses casos, a ambiguidade ganha vulto maior e o caráter
polissêmico da metáfora desafia-nos a descobrir qual é a ordem desse interlocutor. Observamos que
esse tu enigmático é descrito a partir de seus atributos – sejam eles físicos ou morais. Não há uma
menção direta, mas sim a representação através das qualidades. A metonímia é a figura de linguagem
recorrente. Em nosso trabalho propomos mostrar as variações desse pronome tu a partir da análise de
alguns poemas pertencentes às quatro obras acima mencionadas.
PALAVRAS-CHAVE: Cecília Meireles; o pronome Tu; interlocução.
Introdução
Como já mencionamos, o pronome “tu” é um interlocutor recorrente nos poemas
cecilianos. Mas, de acordo com as configurações do texto, ele apresenta-se de forma variada.
Esse comportamento ambivalente proporciona inúmeras possibilidades de interpretação, pois
seu emprego intensifica a ambiguidade do poema, tornando-o extremamente hermético.
Há poemas em que a voz lírica se direciona a esse pronome a partir de ações
imperativas, o que denota um tom de súplica e até mesmo uma posição prostrada. Porém, há
outros em que o “tu” é envolvido e protegido pelas proporções gigantescas do sujeito poético,
fazendo com que as antigas posições se invertam. Verificamos também que o interlocutor serve
de espelho para a própria voz lírica, e, quando tal fato acontece, é travado então um monólogo.
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Para nossa análise, selecionamos poemas em que se evidencia a conflituosa relação da voz
lírica com seus diversos “eus”, pois não nos esqueçamos de que Cecília Meireles é “inúmera” e,
não raro, essa personalidade tão diversificada encontra-se em situações de impasse. Os
poemas são: “Vinho” – de Viagem, “Pergunta” – de Vaga música, “Sensitiva” – de Mar absoluto e
“Canção” – de Retrato natural.
Análise de “vinho” – Viagem (1939)
A taça foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi,
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.
Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci,
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.
Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste, à minha procura.
A taça foi brilhante e rara:
mas, com certeza, enlouqueci.
E desse vinho que bebi
se originou minha loucura. (MEIRELES, 2001, p.262)
Logo na primeira estrofe, percebemos que a questão da essência e da aparência é um
tema que será desenvolvido ao longo do poema. Essa questão é expressa por palavras que se
encontram opostas, como taça (invólucro) versus vinho (conteúdo). Enquanto o recipiente é
transparente e claro, seu conteúdo conduz a uma sensação sombria e pesada – a amargura.
Notemos o emprego do verbo no pretérito: “A taça foi brilhante e rara,” o que denota uma
consideração a respeito do que já passou.
Já na primeira estrofe podemos observar a menção do pronome “tu”. Esse interlocutor,
por sua vez, é alvo do olhar do sujeito quando esse traga o vinho. A construção textual permite
que o leitor visualize facilmente a cena: O eu lírico ao beber o vinho, depara-se com uma outra
parte de seu eu refletido no líquido (o próprio “u”). A partir dessa revelação, a autoanálise iniciase.
No segundo verso da segunda estrofe, deparamo-nos com uma palavra que abrange
grande valor simbólico: desci. Essa ação demonstra que a voz lírica se encontrava em uma
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posição superior e, através do ato de descer, é impelida a entrar em contato com sua porção
imperfeita, mundana: “e em meu pensamento senti/ o desgosto de ser criatura.” O pronome “tu”,
evocado pelo vinho, revela justamente essa porção controversa e tem o papel de alertar de que
a afirmação “Eu sou de essência etérea e clara” pode ser ilusória.
Vemos no poema “Vinho” o embate entre um eu que aspira pelo equilíbrio, pelo
elevado e um “eu outro” que revela as contradições de uma personalidade múltipla e confusa.
Esse “eu outro” é representado justamente pelo pronome “tu”. O vinho – artifício inebriante que
pode ser a representação do próprio ofício poético – faz com que a voz lírica expresse sua
verdadeira condição: Um ser dono de vozes que se destoam e que é, ao mesmo tempo,
grandioso e fragmentado.
Quanto aos aspectos formais do poema, notamos que ele é composto por quatro
estrofes, sendo que cada uma delas contém quatro versos. O número quatro está diretamente
relacionado ao quadrado. Recorremos ao dicionário de símbolos e vimos que o quadrado
representa a terra em oposição ao céu:
O quadrado é uma das figuras simbólicas mais frequentes; símbolo estático e antidinâmico;
quase sempre relacionado e oposto ao círculo, o quadrado simboliza a terra em oposição ao
céu, ou o limitado em oposição ao ilimitado. (LEXICON, 1990, p. 166)
A forma ajusta-se ao conteúdo. Cecília, ao dispor o poema em quatro estrofes
compostas por quatro versos, reproduz a forma geométrica do quadrado. Essa estrutura pode
ser outra alusão ao conflito interior, à luta entre o eu que aspira pela perfeição e seu oponente
mundano e falho, visualizado no reflexo do vinho. Por sua vez, na soma entre estrofes e versos,
obtemos o valor oito. Outra vez, recorremos ao dicionário de símbolos:
É o número das direções cardeais da rosa dos ventos em sua forma mais simples; nesse
sentido, o oito é, entre outras coisas, o número da ordem e do equilíbrio cósmico. Ele
desempenha um importante papel no hinduísmo e no budismo, por ser o número dos raios da
Roda de Lei búdica; a flor simbólica do lótus tem oito pétalas, [...] (LEXICON, 1990, p. 147).
Mesmo em se tratando de um eu lírico conflituoso, de faces diferentes, Cecília
demonstra que, das somas finais extrai-se a perfeição. Essa, por sua vez, é originada da
confusão e do caos. Eis aí o caminho paradoxal pelo qual a poesia moderna trilha suas
características.
Análise de “Pergunta” – Vaga Música (1942)
Se amanhã perder o meu corpo,
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será possível que ainda venha,
e que ao pé de ti me detenha
como um levíssimo sopro?
E essa minha humilde presença
te despertará como um grito?
E pensarás no pálido, hirto
Fantasma que ainda em ti pensa?
Ou teu sono será tão doce
que o meu arrependido espectro,
sofrendo por chegar tão perto,
volte no vento que o trouxe?
Teu rosto é um jardim, na sombra.
Teu sonho, flor sob a lua.
Por aquela que foi tua,
que orvalho em teus olhos tomba? (MEIRELES, 2001, p. 368)
O poema tem a tonalidade da indagação, o que faz jus a seu título – “Pergunta”. Outra
vez, o eu lírico reflete sobre as mudanças e os imprevistos acarretados pela passagem do
tempo. A transformação de seres e coisas pode ser observada através do uso de palavras como
“amanhã” e verbos utilizados no futuro. Notamos também que nas três primeiras estrofes
predomina o tom de incerteza, de hipótese. Esse tom é demarcado por conjunções que denotam
condição: “se”, “ou” e mesmo pela própria interrogação.
“Pergunta” é escrito em primeira pessoa, porém, vemos uma mudança de foco de
atenção ao longo de todo poema. Essa alternância chega a seu máximo quando a mesma ação
– pensar – volta-se tanto para a voz enunciativa quanto para o pronome “tu”: “E pensarás no
pálido, hirto/ Fantasma que ainda em ti pensa?”.
Podemos afirmar que o interlocutor tem características delicadas, pois, futuramente,
para que o narrador aproxime-se dele destituído de seu “corpo”, é preciso que o faça através da
sutileza do “sopro”. Aliás, “corpo” tem sua rima correspondente a “sopro”. O sopro liga-se
diretamente à criação, à inspiração. Essa combinação de sons pode sugerir a ideia de que tudo
é perdido ao longo do tempo, exceto o ato criador promovido pela poesia.
Sem dúvida, o interlocutor representado pelo “tu” é fonte de inspiração para que a voz
lírica se expresse. Sua “humilde presença” (outra referência a “sopro”) teria o poder de despertar
o interlocutor num “grito” – ato violento que arrancaria o de seu sono e o arremeteria a pensar no
próprio eu lírico.
Resta-nos depreender o que esse pronome “tu” representa. Esse poema é mais
hermético que o anterior. A construção metafórica é complexa e de intensa ambiguidade. Como
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já afirmamos, entendemos que se trata de um interlocutor de aspecto delicado. Pode até mesmo
ser uma criança embalada pela suavidade do sono: “Ou teu sono será tão doce”, “Teu rosto é
um jardim, na sombra. / Teu sonho, flor sob a lua.”. Pensamos também que esse interlocutor
refere-se a uma mulher, uma vez “flor” e “lua” frequentemente associam-se à figura feminina.
Logo, afirmamos novamente que esse tu simboliza a própria poetisa, pois sabemos que Cecília é
dona de uma personalidade múltipla e que em cada poema é possível observar as variações
dessa personalidade inconstante, bem como seus conflitos interiores:
Teu rosto é um jardim, na sombra.
Teu sonho, flor sob a lua.
Por aquela que foi tua,
que orvalho em teus olhos tomba?
O “tu” é descrito a partir de seus atributos. Seu rosto é um “jardim, na sombra”. Um
jardim é colorido, variado e, para que seja admirado, é preciso que haja luz. Mas, no texto, isso é
possível na escuridão. Seu sonho é “flor sob a lua” – a flor remete à fugacidade, mas também à
beleza, o que pode ser uma referência à própria criação poética. “Noite” e “lua” são outras
referências ao feminino e esses dados remetem a características que são particulares à poetisa
– complexa, paradoxal, enigmática. Por isso afirmamos que o “tu” representa uma dentre as
diversas faces da autora. Passemos à leitura dos dois últimos versos: “Por aquela que foi tua,
/que orvalho em teus olhos tomba?”. Reparamos que a ação se encontra no pretérito e que está
diretamente relacionada ao pronome “aquela”. Essa construção pode simbolizar o abandono de
uma antiga forma de viver em proveito de outra. Isto é, o “eu” que servia de objeto inspirador
passa a ser sujeito agente, criador. “Aquela” que se encontrava embalada pelo sono (parte da
autora representada pelo “tu”) cede lugar à artista, à artífice da palavra, em resumo, à própria
poetisa. Logo, vemos no texto um diálogo estabelecido entre as facetas distintas pertencentes à
própria Cecília.
O “orvalho” tombado nos “olhos” do interlocutor e não de seus “olhos” demonstra uma
atitude que vem do alto. Trata-se do eu poético, em posição superior, que contempla
melancolicamente sua porção reduzida às fronteiras do limitado.
Análise de “Sensitiva” – Mar absoluto e outros poemas (1945)
No cedro e na rosa,
o gesto da brisa.
De joelhos, na noite,
Colhíamos a sensitiva.
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Teu lábio formava
uma lua fina.
Mas tua figura,
na sombra – a folhagem
muda bebia.
Junto à áspera terra,
tua mão e a minha
se encontraram sob
o pânico súbito
da sensitiva.
Que espasmo de nácar
pela seiva aflita!
Nem rosa nem cedro
souberam da ausência
da sensitiva.
Aonde levaremos
esta dolorida
planta frágil, se
tua mão se apaga
em lírio e cinza?
Se teu rosto esparso
já não se adivinha,
e teu lábio é, agora,
na manhã que chega,
puro enigma?
Voa dos meus olhos
a noite vivida.
Na areia dos sonhos,
somente o desenho
da sensitiva. (MEIRELES, 2001, p. 534)
Podemos observar nesse poema vários elementos em ação: A “brisa”, a “folhagem”, a
“sensitiva”, o sujeito poético e, mais uma vez, o pronome “tu”. São ações se entrelaçam e tornam
o texto de difícil apreensão, pois intensificam o grau de ambiguidade. No início, o poema
menciona o “cedro” e a “rosa” e temos a impressão de que o tema será desenvolvido focado
nesses dois personagens. Mas, à medida que o texto avança, vemos o início do diálogo com o
interlocutor. Nesse poema, podemos observar a ação em conjunto da voz lírica com o “tu” o que,
na maioria das vezes, isso não acontece: “De joelhos, na noite/ Colhíamos a sensitiva”. O ato de
colher a “sensitiva” revela um procedimento um tanto quanto paradoxal, uma vez que essa flor
recua com o toque. Querer colher a “sensitiva” pode ilustrar o anseio por captar o que é
considerado impossível.
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Novamente, o interlocutor “tu” é descrito a partir de atributos expressos por
metonímias: “lábio”, “mão”, “figura”. A apreensão desse alguém é feita aos poucos, através de
aspectos que ora se revelam, ora se escondem. O “lábio” que forma uma “lua fina” implica ao
mesmo tempo o misterioso e a claridade, mas, essa luz esvai-se quando a “folhagem muda”
traga a figura do interlocutor. Essa tensão entre revelar e ocultar, ser e não ser leva-nos a
questionar se o “tu” não serve – novamente – de espelho para a própria voz lírica. O “tu” exerce
a função de representar as diferentes faces do sujeito poético, variando de acordo com cada
poema. Mas, a apreensão da natureza desse interlocutor torna-se mais dificultosa com a estrofe:
Junto à áspera terra,
tua mão e a minha
se encontraram sob
o pânico súbito
da sensitiva.
O encontro das mãos faz com que pensemos que, de fato, se tratam de seres
diferentes. Mas, observamos que esse encontro é possibilitado pelo recuo da “sensitiva”.
Sabemos que as “mãos” estão ligadas ao ato criar, de escrever. Logo, a “sensitiva” pode ser a
busca pelo poético de natureza fugaz, mutável e que é impossível mantê-lo dominado. Por outro
lado, não podemos deixar de mencionar que o “tu” é tão enigmático quanto à própria “sensitiva”:
Aonde levaremos
esta dolorida
planta frágil, se
tua mão se apaga
em lírio e cinza?
Novamente a metonímia da “mão” é explorada. O desejo mútuo de conduzir a
“sensitiva” pela “mão” que “se apaga em lírio e cinza” pode ser lido da seguinte forma: Aonde
conduzir a poesia (a “sensitiva”) se o fim é certo com a passagem do tempo, com a chegada da
morte? Talvez o tempo não seja suficiente para que o canto se propague e a poesia somente
possa existir através da intenção de criá-la. Logo, o “tu”, assemelhando-se à “sensitiva”, pode
simbolizar o próprio sujeito poético em sua porção frágil, passível de ser consumida pelo tempo e
pela morte. Mas, o “tu” funde suas características com as da “sensitiva”. Essa, por sua vez, é
menção à própria criação poética. Logo, essa miscelânea de atributos remete à tentativa de
superar as precariedades da existência através da criação da poesia (mesmo que isso seja
realizável somente pela intenção). Passemos à ultima estrofe:
Voa dos meus olhos
a noite vivida.
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Na areia dos sonhos,
somente o desenho
da sensitiva.
Por fim, voz autoral, interlocutor e o próprio ato poético fundem-se, por serem descritos
através de um ponto em comum: O fugidio. No final, resta o “desenho da sensitiva” na “areia dos
sonhos”, isto é, uma permanência sem qualquer garantia no que é mutável.
Análise de “Canção” – Retrato natural (1949)
Eras um rosto
na noite larga
de altas insônias
iluminada.
Serás um dia
vago retrato
de quem se diga:
“o antepassado”
Eras um poema
cujas palavras
cresciam dentre
mistério e lágrimas.
Serás silêncio.
tempo sem rastro,
de esquecimentos
atravessado.
Disso é que sofre
a amargurada
flor da memória
que o vento fala. (MEIRELES, 2001, p. 626)
O poema é construído a partir de três tempos verbais. Pretérito, presente e futuro.
Pretérito e futuro intercalam-se até a quarta estrofe. Somente na última estrofe podemos ver uma
ação referente ao presente. Esses tempos são expressos através da voz lírica que, ocupa lugar
de observador ao demonstrar uma posição de distância em relação ao objeto observado – o
interlocutor “tu”. Numa primeira leitura, essa distância garante a impessoalidade, o que faz com
que a observação seja mais precisa e analítica. Mas, a releitura permite-nos ver que esse
afastamento é apenas aparente e que a voz lírica encontra-se totalmente envolvida com seu
interlocutor, pois, novamente, trata-se de um diálogo desenvolvido com ela mesma.
Notem que as ações passadas referem-se a momentos saudosos:
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Eras um rosto
na noite larga
de altas insônias
iluminada.
Eras um poema
cujas palavras
cresciam dentre
mistério e lágrimas.
Novamente, o “tu” é descrito através de seus atributos. Esses, por sua vez, são
configurados pela metonímia: “Rosto”, “poema”. O rosto é a parte humana que é responsável
pela primeira comunicação. Lá encontram-se os olhos, a boca – elementos responsáveis pela
expressividade. O adjetivo “iluminada” qualifica “noite”, mas é posicionado de tal maneira que faz
com que a leitura recaia sobre o próprio “tu”. Pelo fato de “noite” estar ligada ao aspecto
feminino, não nos restam dúvidas de que esse interlocutor é uma mulher. Criador e criação
também se fundem com a afirmação: “Eras um poema”. Ou seja, o “tu” é a imagem da própria
poetisa, cujos atributos são traçados pelo seu legado poético. Mas, essa época áurea é
ameaçada pelo tempo e pelo risco do esquecimento:
Serás um dia
vago retrato
de quem se diga:
“o antepassado”
Serás silêncio.
tempo sem rastro,
de esquecimentos
atravessado.
Antes o sujeito poético, representado pelo “tu” era expressão, uma existência revestida
pela própria poesia. No futuro, será resumida em “retrato” – elemento inanimado em oposição à
vivacidade do “rosto”. Há o temor do esquecimento perante as gerações que a sucederem. Toda
a grandiosidade artística resultará em “silêncio” em “tempo sem rastro”. Entre o passado e o
futuro, a ponte que os une é o presente:
Disso é que sofre
a amargurada
flor da memória
que o vento fala.
A única garantia de alguma persistência, frente às transformações provocadas pelo
tempo, é o que resta na memória. Mas, ao mesmo tempo, essa capacidade gera ansiedade e
angústia, pois a memória reside no universo subjetivo e a realidade externa não se rende aos
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desejos da interioridade. Cabe à voz lírica contemplar sua frágil condição, sua impotência,
cantando sobre o que foi um dia – Um “tu” poderoso, criador, a própria encarnação da poesia.
Considerações finais
Através da análise desses poemas, procuramos mostrar que o interlocutor “tu”
atravessa as obras Viagem (1939), Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas (1945) e
Retrato natural (1949) e que, na verdade, são variações de um sujeito poético complexo,
fragmentado, de aspecto camaleônico, diversificado. Assim é a própria Cecília que se auto
afirma como a “inúmera”. Observando o “tu” e propusemos mostrar suas variantes desenvolvidas
segundo o tema de cada texto. Mostramos também que esse interlocutor é descrito através de
seus atributos, de forma indireta – o que dificulta captar sua natureza.
Nossos estudos encontram-se ainda em fase inicial e é cedo para afirmar se o
pronome “tu” é, na maioria dos casos, um espelho da própria voz poética. Acreditamos que ele
represente outros personagens que não a própria Cecília, mas isso é matéria para as próximas
leituras.
Referências bibliográficas
LEXICON, Herder. Dicionário de símbolos. São Paulo: Cultrix, 1990.
MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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